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‘a By 0 Campo Histérico Copyright © 2002 by José D’ Assungo Barros I’ Edigdo: Agosto de 2002. CELA Caixa Postal 3597 20.001-000, Rio de Janeiro. RJ. cel@globo.com Dados Internacionais de Catalogacdo na Publicagao (CIP) Barros, José D’ Assun¢4o, 2002. Campo Histérico 1 Rio de Janeiro, 2002 it |. Histéria — Metodologia. 2. Historio- grafia |, Titulo CDD-907. 2 907.18 indices para catélogo sistematico: i 907.2 1. Historia; Metodologia oui 2. Histéria: Historiografia José D’Assungao Barros 2002 Prefacio —_—_——. O texto que aqui se apresenta traz simultaneamente alguns tracos ensaisticos, certas objetivos didaticos bem definidos, e a intengao de balancear a historiografia tal como ela pode ser hoje vista no que se refere as suas sub-especialidades. Aproveita-se a ocasiéo para uma reflexo inicial sobre a tendéncia dos saberes modernos a uma crescente hiper-especializacao. com as Jacunas e Os limites que este tipo de hiper-especializacdo acaba acarretando. A origem do texto esta precisamente na Preocupac4o com © fato de que, embora a Histéria hoje se divida em inumeros campos ou sub-especialidades, estas divisdes acabam parecendo um pouco ambiguas tanto para o PUblico n4o-especializado que consome Histéria, como para aqueles que percorrem uma trajetéria académica com vistas a consolidar uma formacao que os habilitaré, assim se espera, a produzir Historia de boa qualidade (no sentido de pesquisas e textos historiograficos). Ouve-se falar em Historia Cultural, em Historia das Men- talidades, em Histéria do Imagindrio, em Micro-Histéria, em Histéria Serial, em Hist6ria Quantitativa ... 0 que define estes outros campos? E um dos objetivos deste texto contribuir, precisa- mente, para um esclarecimento relacionado a cada uma das varias modalidades em que, no dias de hoje, freqiientemente se divide o campo historiografico, Nota-se nao raramente uma grande confusdo entre algumas destas modalidades de Histéria, e uma expressiva dificuldade dos interessados em Histéria em situar um trabalho historiogréfico qualquer dentro de um destes campos. Veremos que na verdade isto ndo € possivel, j4 que a ampla maioria dos bons trabalhos his- toriograficos situa-se na verdade' em uma interconexio de moda- lidades. Se so bons, so complexos. E se so complexos, hao de comportar algum tipo de ligagio de saberes, seja os interiores ou exteriores ao saber historiografico. Muito da confusdo sobre o que é uma sub-especialidade ou © que € outra, ou sobre como enquadrar uma dada obra neste complexo caleidoscépio de sub-especialidades que coincide com o campo disciplinar da Histéria, esté no fato de que algumas coleta- neas de balanceamentos historiograficos misturam inadvertida- mente critérios de classificago sem alertar devidamente 0 leitor, que acaba perdendo a oportunidade de desenvolver uma maior clareza sobre a rede de modalidades que organiza o pensamento historiografico na atualidade. A chave para compreender estes varios campos, conforme veremos, est4 em distinguir muito claramente as divisdes que se referem a dimensdes (enfoques), as divisdes que se referem a abordagens (ou modos de fazer a Historia), ¢ as divisdes intermi- naveis que se referem aos dominios (areas de concentragéo em torno de certas tematicas ¢ objetos possiveis). O texto, por fim, apresenta-se como oportunidade para dis- cutir aspectos de Teoria ¢ Metodologia em Historia. Ao falarmos em cada uma das modalidades historiograficas, estaremos simulta- neamente discutindo seus objetos preferenciais, seus aportes te6ricos, seus métodos, suas fontes privilegiadas, e sempre que possivel apresentaremos um balanco de algumas das principais obras que poderiam estar inscritas nestes campos. Os imbrica- mentos entre os varios campos, as mituas invasées de fronteiras, as afinidades e as interconexdes possiveis, as diferencas e incompatibilidades ... um pouco de tudo isto serd visto neste livro que, embora se esfargando por delinear com preciso os ambientes internos 4 Historia, aproveita tal esforgo para propor uma historiografia mais complexa, capaz de criatividade na exploracao de suas dimensdes, abordagens ¢ dominios. SUMARIO O Campo Histérico As especialidades e abordagens historiograficas Prefacio.... O Campo Histérico |. Clio Despedagada .. 2. Os lotes da Historia .. Compartimentos Dimensdes, abordagens e domin 3. Demografia, Cultura Material e Geo-Histéria Histéria Demografica ...... wee 22 Histéria da Cultura Material, Geo-Histéria .. 4. Mentalidades .... Histéria das Mentalidades .. Psico-Histéria .37 5. Historia Cultural e Historia Antropoldgica ... Histéria Cultural ... Historia Antropoldgica e Etno-Hist. 6. Historia do Imagindrio ... 7. Historia Politica e Histéria Social ... Historia Politica .. Histéria Social 8, Historia Econémica 9. Abordagens .... ee Ey) Historia Oral ... Histéria do Discurso Historia Imediata .... Historia Serial e Historia Quantitativa .. Hist6ria Regional Micro-Histéria 10. Uma profusao de Dominios .... A diversidade de dominios histéricos A Biografia Mutagées ... 206 Conclusio .. 209 Referéncias bibliograficas .... indice Onomastico indice Remissivo ...... INDICE DE QUADROS eS Quadro 1: © Campo Histérico ... ano. Quadro 2: A Histéria Cultural .... Quadro 3: A Histéria Politica .... Quadro 4: A Historia Social Quadro 5: A Histéria Econémica O Campo Histérico ee Clio Despedagada Uma caracteristica crescente da historiografia moderna é que ela tem passado a ver a simesma— de maneira cada vez mais expli- cita € auto-referenciada — como um campo fragmentado, comparti- mentado, partilhado em uma grande gama de sub-especialidades e atravessado por muitas ¢ muitas tendéncias. Fala-se hoje em muitos tipos de “histéria”, quando na historiografia profissional do inicio do século XIX os historiadores tinham uma idéia bem mais homogénea do seu Oficio. O historiador de hoje é um historiador da cultura, um histo- riador econdmico, um historiador das mentalidades, um especialista em Histéria da Mulher, um medievalista ibérico ou um especialista nos estudos da Antigilidade Classica, ou quem sabe ainda um doutor em Histéria do Brasil Colonial mais particularmente especializado nos processos de visitagao da Inquisigo do Santo Oficio ... De igual maneira, existem os historiadores marxistas, ou mais especificamente os historiadores marxistas da linha gramsciana, thompsoniana ou qualquer outra, os historiadores weberianos, os micro-historiadores da linha italiana, ou sabe-se l4 quantas outras orientagdes. O oceano da historiografia acha-se hoje povoado por inimeras ilhas, cada qual com a sua flora e a sua fauna particular. Ou, para uti- lizar uma metafora mais atual, podemos ver a Historiografia como um vasto universo de informagdes percorrido por inumeras redes, onde cada profissional encontra a sua conexio exata ¢ particular. Exemplo: José D' Assungdo Barros 10 um historiador gramsciano que investiga exclusivamente a histria da cultura tomando por objeto a Mulher da época do Brasil Colonial. Doravante, pelo resto de sua vida, é s6 sobre isto que ele falara em conferéncias, em mesas redondas e em artigos para revistas especia- lizadas — ao mesmo tempo em que zelosamente orientard teses de mestrado direcionadas para aspectos ainda mais _ especificos dentro desta conexo particular, que por acaso também constituird o contetido fundamental de seu curso semestral na Universidade em que trabalha. A hiper-especializagao do conhecimento histérico é um dado curioso e as vezes alarmante. Naturalmente que este ndo € um fenémeno que ocorreu apenas com a historia: uma ciéncia como a Fisica também foi se dividindo a partir dos seus primérdios em muitos compartimentos internos, como a Termodinamica, a Otica, a Mecdnica e tantos outros. Longe vao os tempos iluministas, em que um mesmo fisico podia se interessar por diversificados objetos de investigago que jam da ética a termodinamica. Mas, reconhegamos, houve também um tempo em que o mesmo pensador que escrevia um tratado de fisica ou um compéndio de metodologia experimental podia escrever um livro sobre a Histéria da Inglaterra. Em todo o caso, prossigamos com os nossos exemplos ... E preciso acrescentar ainda que, para além desta fragmentacao da Fisica em uma diversidade de subcampos especializados, a partir do século XX esta mesma Fisica comegou a partir-se em muitos tipos de Fisica conforme a perspectiva € visio de mundo por eles encami- nhada. Assim, superada a Fisica Classica como possibilidade de dar todas as respostas 4 compreensdo dos fendmenos fisicos, surgiram por exemplo a Fisica Quantica, a Fisica da Relatividade, ¢ tantas outras. Conforme se vé, aqui falamos niio mais de compartimentos de estudo no interior da Fisica como campo de conhecimento humano, mas sim de novas maneiras de conceber a propria Fisica. Algo similar também ocorre com a Hist6ria, que hoje em dia se vé tanto fragmentada em uma miriade de compartimentos internos — cada qual portador dos seus proprios objetos ou das suas préprias OCampo Histérico abordagens — como também repartida em varias visées diferenciadas do que seja a propria Histéria enquanto campo do conhecimento. A partir dai poderemos comegar a perceber que a fragmentago do saber, na verdade, éum fendmeno que se acentua no século XX através dois caminhos distintos ¢ independentes, embora no fim das contas ambos acabem contribuindo para este mesmo fim que € a cisdo da Historia ou de qualquer outro campo do saber no seu caleidoscépio interno. : De uma lado, sobressai o fendmeno crescente da “especia- lizagao": © médico jé n&o sera sequer mais especializado em ortorrino- laringologia — talvez seja um especialista na narina esquerda ou no ouvido direito, O advogado sera especializado em processos destina- dos a assegurar indenizagSes motivadas por danos ambientais, e talvez conclua que seré ainda mais adequado especializar-se na legislacdo dos vazamentas nucleares. Pode se dar até mesmo que um tnico vazamento lhe oferega clientes pelo resto de sua vida profissional. Além da fragmentagdo de especialidades, sobressai de outro lado a célebre crise dos paradigmas: j4 n&o existem nos meios académicos muitos estudiosos que acreditem na existéncia definitiva de “uma unica maneira de ver as coisas”. Esta fragmentacdo de perspectivas, assim poderemos chamié-la, nao é de resto apanigio do saber cientifico. A prépria Historia das Artes Visuais, que para os séculds anteriores conhece capitulos sobre os estilos de pintura tio bem arrumados por eras sucessivas — como a Arte Gotica, a Arte Renascentista, a Arte Barroca ou a Arte Neoclassica — depara-se quando chega ao século XX com uma partilha do campo da expresso antistica em indmeras tendéncias, tais como 0 Cubismo, o Abstracio- nismo, 0 Expressionismo, o Neoclassicismo modemo, o Realismo, o Surrealismo ... por ai poderiamos estender indefinidamente esta a de subdivisdes que na verdade nio se sucedem umas 4s outras no tempo, mas partilham a mesma época, mostrando que os artistas modemos jd nao reconhecem mais um padrao de referéncia minima- José D’ Assungao Barros 12 mente consensual. Deste modo, podernos dizer que a Arte € 0 conhecimento cientifico acompanham juntos, de alguma maneira, este mesmo fendmeno da fragmentag4o de perspectivas que € 0 pano de fundo da modemidade ¢ da pos-modernidade. Mas com o problema da especializagio crescente temos questées de outra ordem, que so as qué aqui nos interessam neste momento em que estamos prestes & nos embrenhar por dentro das subdivisdes a partir das quais os historiadores examinam atualmente 0 campo da Historia. A especializagio, de saida, é um problema antigo, que no campo do conhecimento veio acompanhada das perdas de uma cultura mais humanistica, mais completa e mais complexa. Contra este problema basico da humanidade modema, que gera incessantemente mais ¢ mais especialidades — todas devidamente complementadas por um crescente isolamento disciplinar — bate-se precisamente um grupo cada vez maior de pensadores que apregoa a necessidade da interdisciplinaridade e da “interligago dos saberes”. Serao novos tempos que s¢ avizinham? Nao o sabemos, j4 que até 0 momento parece ainda vigorar uma exigéncia de especializagao que premia 0 destro-otorrinolaringologista em detrimento do clinico geral. Na segunda metade do século XIX, esta ordem de problemas jase anunciava menos ou mais discretamente. Assim, 0 Zaratrustra de Friedrich Nietzsche ja se deparava, em uma das paginas desta famosa obra filoséfica, com um daqueles “aleijes a0 avesso” que tanto horro- rizavam 0 filésofo alemao. Ao caminhar por uma ponte, Zaratrustra havia tropegado em uma gigantesca orelha, Mas olhando melhor, acabou verificando que sob a orelha movia-se alguma coisa, muito mirada, de modo que acabou entendendo que a monstruosa orelha achava-se rigorosamente apoiada sobre um pequeno caule que era na verdade um homem. O povo da regido apressou-se & dizer-Ihe que a grande orelha ndo era somente um homem, mas sim um grande homem, um génio. Zaratrustra, contudo, guardou-se de acreditar que aquele era na verdade mais um dos inimeros aleijées a0 avesso, O Campo Histérico “ho i mens aos quais falta tudo, salvo que tém demais de alguma coisa — homens que nao passam de um grande olho ou de ui ma grand ou de um grande ventre ou de qualquer outra coisa grande”! Pose i Esta hiper-especializagiio de que ja Haat € um fenémeno que - eae oe 7 a te a exigéncia de mais e mais fungdes necessérias 7 cette — a complexificagaio crescente do conhecimento Seni — novos horizontes que no cessam de abrir aos seres ai seated de Possibilidades. Mas longe de ser apenas at sare salen desdobramentos do conhecimento, a que se me panera a pees ane ee Ser um “especialista em ouvido eee pean ni s ee nas demais horas o médico hee eee : miisica de boa qualidade, que lesse boa a que buscasse conhecer tanto quanto possivel de Histéri | ines acerca dos avan¢os recentes da Fisica onal alan Hee a cficacia de seu prdprio officio, seré oe ape ic perder de vista 0 conhecimento mais generalizado d i 7 i pois pode ser que um problema de sangramento na a = oi te — decorréncia direta de um aumento da easel u de qualquer outro fator que nada tenha a ver mais com a sua sub-especialidade. a a Pertinentes a fragmentago do saber afetam fare pied et intermitente, a pratica historiografica de nossos dl econémico pode nao dar conta de um problema das vite ee © sangramento social que produz uma revolugdo = r Como. causa mater uma questo religiosa). Isolado Pequeno mundo, o historiador deve enfrentar os riscos de a i Friedrich NIETZSCHE, Assi rust : , Assim Falou Zar Livro, 1976, p.149-150 [original: 1883-1885] oS 13 José D'Assungao Barros hiper-especializagao ao mesmo tempo em que recebe estimulos sociais ¢ institucionais para aprofundé-la cada vez mais. Sem cou com : ja tio discutido agravante de que — com a propalada crise dos grandes modelos de ‘histéria total’ — @ Historia ia tio fragmentada = ‘gimensdes’ (econdmica, politica, social) partiu-se com ° ake : la midia e das demandas editoriais em inumeraveis “migalhas” rel af nadas aos novos ‘dominios histéricos’ (historia a oe fF feiticaria, da vida privada). O historiador das tltimas deca ‘s : século XX viv-se assim autorizado, tanto pela tendéncia & ie especializagio do homem modemo como pela novas = historiogrificas, a cuidar zelosamente do seu pequeno canteiro, se nada mais importasse além de uma rosa rara. : Com tudo isto, talvez de maneira ainda mais delicada do que © cientista que se dedica ao seu fragmento particular de et 3 historiador que se hiper-especializa em determinada oe fe historiogréfica e em determinado objeto deve se por em guarda cont a possibilidade de se transformar em uma gigantesca orelha que se prende a um caule. Ha sempre o risco de que os excessos . dedicagdo a “apenas ouvir” o levem a desaprender a ‘caminhar” i i < esta impossibilidade mesma o impea de se locomover para melhor s posicionar de modo a captar novos sons no futuro. Enfim, a auséncia de pés, de um corpo sauddvel com todos os seus membros e Orgios prontos a funcionar, pode até mesmo dificultar o projeto de alguem se uma boa orelha! aad Abandonando por ora o mundo enigmatico das metaforas, diremos que a hiper-especializagao em Historia Econémica (ou a quer outro campo) pode conduzir a0 esquecimento de que o mundo humano no pode ser decalcado do social, do politico, do mental, ou de que a especializagao exclusiva em métodos de Historia Serial bt impedir que se resolva um problema histérico naquele ponto bin le . requer precisamente uma boa histéria qualitativa, uma recol le depoimentos através da Historia Oral, e assim por diante. 14 Campo Histérico Munidos deste alerta, tentaremos compreender a seguir os varios compartimentos em que a historiografia parece hoje se dividir. Nao importa a que enfoque o historiador se dedique ou esteja mais habituado, dificilmente ele poderd alcangar um sucesso pleno no seu oficio se ndo conhecer todos os outros enfoques possiveis — talvez para conect4-los em determinadas oportunidades, talvez para compor com alguns deles o seu préprio campo complexo de sub-especiali- dades, ou talvez simplesmente para perceber que a historia é sempre multipla, mesmo que haja a possibilidade de examind-la de perspec- tivas especificas. Os lotes da Histéria Existem basicamente duas grandes ordens de dificuldades que costumam tornar confusos os esforgos de classificar e organi- zar internamente a Hist6ria em sub-dreas especializadas. Uma corresponde a uma intrincada confusao de critérios que costuma presidir estes esforgos classificatérios, questdo que deixaremos para discutir mais adiante. A outra ordem de dificuldades, da qual gostariamos de falar em primeiro lugar, corresponde ao fato de que uma abordagem ou uma pratica historiografica nao pode ser rigorosamente enquadrada dentro de um nico campo. Apesar de falarmos frequentemente em uma “Histéria Econémica”, em uma “Histéria Politica”, em uma “Historia Cultu- ral”, e assim por diante, a verdade é que nao existem fatos que se- jam exclusivamente econémicos, politicos ou culturais. Todas as dimensées da realidade social interagem, ou rigorosamente sequer existem como dimensdes separadas. Mas o ser humano, em sua Ansia de melhor compreender o mundo, acaba sendo obrigado a proceder a recortes e a operagdes simplificadoras, e € neste sentido que devem ser considerados os compartimentos que foram criados pelos prdéprios historiadores para enquadrar os seus varios tipos de José D'Assun¢ao Barros — preooupedos com uma “religaco dos saberes” _ baie deste conturbado século que de certa maneira e - —. ss especializagdes” — nio faltam os autores que ee perigos € empobrecimentos do isolamento e da comp: “Sabe-se que 0 historiador tem 0 costume de arrumar 0S fatos em envelopes que sé transformaram as trans-historicas, em categorias temporais € unit eal : social, 0 econdmico, 0 politico, 0 religioso, 0 _ : hee Depois de proceder a esta distribuigdo e a esta et at em, por razdes de competéncia pessoal ou por ¢: sis Srcciplinar, © historiador atém-se comumente & unica ordem de fatos” ificagdes como limites ou é nao utilizar as classi \ aint fica o recuo diante de uma is justi oe demoe endo 0 otic de estudo o exige, sob 0 ee a a é apenas uma Historia Cultural. a we ee um historiador econdmico ndo pode eee Uglies en da cultura (ou dos aspectos culturais de um : a Peter Burke registra em seu livro sobre a aed ee exemplo extraido do grande historiador econdmico | ma andilise econdmica dos latifiandios Le séeules XVIl_e XVIII. Meee ea io rtamento econdmico dos proprietarios de oe Soe era o oposto do que previa a economia cla # 7 tguamds (© prego do centeio, seu produto ae 7 imentava, produziam menos, e quando o preco mes oa produziam mais. A explicagao deste para lor ere ergs . i ito, bifurcaga oe oars on partir das peiferias do Ocidente” I observagdes istori te : (org.) 4 ae ese ri de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p.391 (org.) 16 io, acidente € acaso ... in E, MORIN O Campo Historico deveria ser encontrada, diz Kula [...] no reino da cultura, ou das mentalidades. Tais aristocratas nao estavam interessados em lucros, mas em manter um estilo de vida, da maneira a que estavam acostumados. As variagdes na produg&o eram tentativas de manter uma renda padriio. Seria interessante imaginar as reagdes de Karl Marx a essas idéias”” O fundador do Materialismo Hist6rico teria possivelmente reagido bem 4 flexibilidade de Kula, poderiamos acrescentar. Afi- nal, em sua anilise politica e econémica do 18 Brumdrio de Luis Bonaparte (1952), Marx nao recua diante dos fatos do “‘imagind- rio” (palavra que ainda estava longe de ser cunhada). Sua explica- do para a ascensio de Luis Bonaparte ao governo francés na se- gunda metade do século X1X, com base nos votos dos camponeses, esta ancorada precisamente em uma andlise do imaginario, do peso que a imagem de Napoledo Bonaparte (tio de Luis Bonaparte) ain- da exercia sobre a populagdo. Este € um livro que todos os histo- riadores, marxistas ou ndo marxistas, deveriam ler atentamente’. Em vista destes e de tantos outros exemplos que poderiam ser extraidos de obras historiograficas magistrais, fica a lito de que 0 esclarecimento do campo ou da combinagao de campos em que se insere um estudo no deve ter efeito paralisante, nem servir como pretexto para justificar omissdes. Definir o ambiente intra- disciplinar em que floresceré a pesquisa ou no qual se consolidard uma atuagao historiografica deve ser encarado como um esforgo de auto-conhecimento, de definir os pontos de partida mais significa- tivos — e nfo como uma profissdo de fé no isolamento intra- disciplinar. > Witold KULA, Economic Theory of the Feudal System, apud Peter BURKE, A Escola dos Annales — 1929-1989, S80 Paulo: UNESP, 1991, p.110-111. [Edigio polonesa original da obra de Witold Kula: 1962}. “ Karl MARX, “O 18 Brumério de Luis Bonaparte” In Os Pensadores, vol. XXXV, So Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 329-410 foriginal alemao: 1852]. 7 José D’Assungdo Barros Uma segunda ordem de dificuldades que costuma con- fundir as tentativas de subdividir internamente 0 Campo Histérico refere-se a uma inadvertida mistura dos critérios que sao habitualmente utilizados para a classificagiio das varias “historias”. Fala-se por exemplo em uma Historia Demogrdfica ou em uma Historia Politica, nogdes que se referem a ‘dimensdes’ ou a fatores que ajudam a definir a realidade social (a populagdo, 0 poder); fala-se de uma Historia Oral ou de uma Historia Serial, que sio classificagdes da Historia que remetem ao tipo de fontes com as quais elas lidam ou as ‘abordagens’ que oS historiadores utilizam para tratar estas fontes (a entrevista, @ serializagio de dados); fala-se da Micro-Historia ou da Historia Quantitativa, que sio classificagdes relativas aos campos de observagao aborda- dos pelo historiador (a micro-realidade, 0 namero); fala-se em uma Historia das Mulheres ou em uma Historia dos Marginais, que sao classificagdes relacionadas aos ‘sujeitos’ que fazem a Historia (a Mulher, o Marginal); fala-se em uma His/6ria Rural ou em uma Histéria Urbana, que so subdivisdes relativas aos ‘ambientes sociais’ examinados pelo historiador (0 Campo, @ Cidade); fala-se de uma Historia da Arte ou de uma Historia da Sexualidade, que s&o Ambitos associados aos ‘objetos” considerados na pesquisa histérica (a Criagio Artistica, 0 Sexo). Poder-se-ia falar ainda em uma Historia Vista de Baixo, para simbolizar uma inversdo de perspectiva em relagao A tradicional historiografia que partia do poder dominante, € até em uma Histéria Imediata, modalidade historiografica em que 0 autor & ao mesmo tempo historiador € personagem dos acontecimentos que descreve ou analisa. José D’ Assungao Barros Historia Quantitativa list6ria Imediata téria da Cultura Material jistoria fig al Todos estes exemplos constituem legitimas especialidades da Historia. Mas as dificuldades comegam a se mostrar quando estas varias classificagdes, oriundas de critérios bem diferentes ¢ estranhos entre si, sdo misturadas indiscriminadamente para organizar os varios “lotes” da Histéria. [ceo Quadro 2: O Campo Histérico José D'Assungao Barros 20 O ‘Quadro 1’ foi elaborado com o intuito de organizar estes critérios — distribuindo-os em ‘dimensdes’, ‘abordagens’ & ‘dominios’ da Historia — € buscando esclarecer as varias divisdes que estes critérios podem gerar. De certo modo, as trés ordens de critérios correspondem a divisoes da Histéria respectivamente relacionadas a “enfoques”, “métodos” e “temas”. Uma dimensdo implica em um tipo de enfoque ou em um ‘modo de ver’ (ou em algo que se pretende ver em primeiro plano na observagao de uma sociedade historicamente localizada); uma abordagem implica em um ‘modo de fazer a histéria’ a partir dos materiais com os quais deve trabalhar o historiador (determinadas fontes, determinados métodos, ¢ determinados campos de observacdo); um dominio corresponde a uma escolha mais especifica, orientada em relagao a determinados sujeitos ou objetos para os quais sera dirigida a atengdo do historiador (campos tematicos como o da ‘historia das mulheres’ ou da ‘historia do Direito’). Desnecessario dizer que 0S historiadores podem unir em uma unica perspectiva historiografica uma dimensdo (por exemplo, a Historia Econémica), uma determinada abordagem (a Historia Serial), e um certo dominio (a Histéria dos Camponeses). Na ver- dade, muitos outros tipos de combinagdes serio possiveis, até mesmo no interior de um grupo de critérios, mas deixaremos para mencionar isto no momento apropriado. No Quadro | veremos que & primeira ordem de classifica- gdes a nos referirmos & aquela gerada pelas varias dimensdes da vida humana que podem constituir enfoques historiograficos, em- bora na realidade social efetiva estas dimensdes nunca aparecam desligadas entre si. Teremos entiio uma Hist6ria Demografica, uma Historia da Cultura Material, uma Histéria Econdmica, uma Histd- ria Politica, uma Historia Cultural, € assim por diante. E preciso ter em vista, antes de mais nada, que estas dimensdes a serem definidas como Sinstaincias da realidade social’ so em todos os casos construgdes do historiador, contendo a sua O Campo Historico parcela de arbitrariedade ¢ a sua possibilid Pabeal Re ies da histéria do ee = ‘ z la novo periodo da historiografia, uma dimens&o pode ino se desprender da outra, ou entio duas dimensdes qu S al oo separadas podem voltar a se juntar. _ at eit das Mentalidades, a Histéria do Imaginério ¢ a ao dae gica, Por exemplo, foram enfoques que de certo me ade i leram ha algumas décadas da Historia da Cultu- ws & 3 Hist - Cultura Material organizou-se a partir de um ae . a estava diretamente voltado : onectar la be Histéria Cultural, ao oo 7 outa i = Preocupacdes crescentes com a vida cotidiana que a Se do século XX, Ha também as dimensdes que eames jas pelo contato da Histéria com outras disciplinas, ee a j¢0-Histéria, que surgiu de uma interface do fei oo com a Geografia. ‘nao | a a : na de que algumas dimensdes ie Por contraste com outras, phd ct cers Cposi¢des mais marcantes, até que em = ‘ween pe certas interfaces possam ser estabele- a te oo a ae a ¢ a Historia — pmegaram a Ser ¢ ificadas a partir i oe : velha Historia Politica que se fazia so sees nor estas mova ul ie no Provisério abandono de alguns objetos Pe ans owas su -especialidades (por longo tempo, desapare- ea ie : = ata dane profissional do século XX a oe ee : ona lidades politicas importantes e a hist6ria das ae x a que depois retornaram nas Ultimas déca- a wearnjon = suma: 0 caleidoscépio historiogréfico sofre Ata * estes Fearranjos s&o eles mesmos produtos ee 5 vados das tendéncias de pensamento de cada é Suas motivagées politicas e sociais. Os paradigmas ea 24 José D'Assungao Barros i ham perdurado, sendo substituidos uns por outros, por mais que tenham pe! de classificagao. seu reboque novas tabuas fe ificas ; ' aS isto, sera possivel dividir a Hist6ria conforme ela € ee js mens6 hoje compreendida pelos historiadores profissionais em dimensdes 4) ‘ori sio da relativas a certos enfoques que sdo oer eae s i ma sociedade. Vejam vida e da organizagao de ui divisdes possiveis. Demografia, Cultura Material e Geo-Historia i indicamos no ambito aior parte das dimensdes que i r ° s c nat 1 sera por si s6 evidente para os ae — ais de hoje em dia. Afinal, correspondem a categi tivamente divulgadas, mesmo pela literatu (e que de certo modo sao ca! mo sujeitas a retificagdes pe! mos dizer de antemio € que cada uma remos delimitar a seguir € atravessat marcante, embora nem sempt mica. A Historia Politica ¢ @ ra”, das quais se sabe serem lembrar que 0 conceito de “cultut esto hoje em uso nas cié lidades € atravessada pela a , verdade abarca dois aspectos impo! os ‘modos de pensar’ € 0S be, que um dia ela venha a cin lidades’ propriamente dita eem uma A Historia do Imaginario € gem”, que nfo se prende apenas também 0 ambito das imagens verbais e das imagens mentais. ra menos especializada tegorias de nosso tempo, por isto mes- las geragdes posteriores). que pode- das dimensdes que procura- da por uma “nogao” muito re muito precisa © por vezes polissé- Historia Cultural, por . . i “poder” e de “cultu- eae anus Lapel oe (basta ra” tem dezenas de sentidos que ncias humanas). A Historia das Mena mbigua nogao de “mentalidade”, € na rtantes da vida humana que so ef le sentir’ (é possivel, quem sa- ence em uma ‘histéria das menta- ‘historia das sensibilidades’). atravessada pelo conceito de “ima- ao de imagem visual, mas abarca O Campo Histérico Apenas para dar a partida nesta busca de maior transpa- réncia classificatéria, poderemos comegar discutindo a Historia Demogrdfica, que enfatiza o estudo de tudo aquilo que se refere mais ou menos diretamente 4 ‘Populagdo’: as suas variagdes quantitativas e qualitativas, o crescimento e declinio populacional, 0s movimentos migratérios, e assim por diante. Desta forma, é a no¢ao de “populagao”, com tudo o que ela implica, o que atravessa a constituigao desta sub-especialidade da Histdria. A medida em que vai conectando os aspectos mais especi- ficamente relacionados as categorias populacionais (como a morta- lidade ou a natalidade), com freqiléncia obtidos através de métodos estatisticos e da abordagem quantitativa, para depois relacionar es- tes aspectos de modo a dar perceber a vida social de uma determi- nada comunidade, a Histéria Demografica estabelece interfaces com a Histéria Social. Para utilizar uma imagem mais elogiiente, a Historia Demogréfica vai se convertendo muito claramente em um tipo de Historia Social na razdo direta em que a ‘hist6ria da morta- lidade’ vai derivando para uma ‘historia da morte’, mostrando-se também neste particular a possibilidade de uma interface ainda mais especifica com a Histéria das Mentalidades. Assim, um historiador que esteja preocupado em coligir informages sistematicas a respeito de uma determinada populacao historicamente localizada — ou, ainda mais especificamente, sobre os niveis e tipos de mortalidade desta populagio — estard realizando uma Historia Demografica de cardter ainda descritivo, em que pese a sua importancia para estudos posteriores. Poderd dar perceber — através de grdficos construidos com informagées cuidadosamente extraidas de fontes seriadas — aspectos relativos a idade média com que costumavam morrer os individuos deste ou daquele grupo social, os tipos de morte que mais freqilentemente sofriam (oriundas de doengas, de envelhecimento ou de violéncia social), os bens que costumavam testar para seus herdeiros, os valores monetérios que eram habitualmente despendidos nos seus 23 José D'Assungao Barros 24 enterros, os tipos de destino que tinham seus corpos (cremados, enterrados, engavetados), a qualidade da madeira empregada nos atatides, a presenga ou ndo de epitafios, a ocorréncia de extrema ungo, ou sabe-se la quantos outros aspectos que poderiam compor um panorama informativo sobre a morte na sociedade examinada. Este seria obviamente um grande panorama descritivo, objeto possivel de uma Historia da Mortalidade no sentido em que esta pode ser definida precisamente pela recolha deste tipo de informagdes. A “Morte” propriamente dita é contudo um fenéme- no social. Ela gera representa¢6es, comogoes, expectativas espiri- tuais para os que irdo partir € expectativas materiais para os que vio ficar. A incidéncia de um determinado nimero de mortes através da Peste Negra, comprovada para periodos como 0 do século XIV, pode ter gerado na época um certo imaginario, ter produzido transformagdes na religiosidade, ter modificado formas de sociabilidade, ter dado origem a novos objetos da cultura mate- rial (como as velas de sétimo dia ou os caixdes da madeira menos nobre para atender a demanda de um numero crescente de mortos). Um enterro pode ser examinado no que s¢ refere a certos usos SO- ciais, como por exemplo a presenga de carpideiras ou a ocorréncia de determinado tipo de discursos de despedida, ou ainda a forma de luto e resguardo oficialmente aceita que a viuiva devera observar para ndo correr 0 risco de transgredir as normas aceitas pelo grupo. Os ritos, costumes, tabus, sentimentos, caréncias € repre- sentagdes gerados pelo fenémeno da morte sHo obviamente objetos de uma Hist6ria Social conforme a definiremos mais adiante, ou podem ser também objetos de uma Historia Cultural, de uma His- téria Econdmica, ou mesmo de uma Histéria Politica (dependendo da importancia simbélica do morte). O historiador da demografia que pretenda fazer uma historia que ndo seja simplesmente infor- mativa ou descritiva, mas também problematizada, certamente en- contrara caminhos para estabelecer conexGes entre as informacées numéricas ou padronizadas ¢ as inferéncias sociais ¢ culturais. Dito O Campo Histérico de outra forma, ele se empenhara em realizar nao sé uma Histéria da Mortalidade, mas também uma auténtica Historia da Morte. a A Demografia Historica atravessa hoje estes dilemas. Ja bisialned aquela novidade da estatistica histérica que justificava na 1 de 1950 a feitura de teses mais descritivas — meras cole- a eet sobre a mortalidade, a natalidade ou a nup- ide. Hoje se espera que 0 historiador “problematize” a morte, ° nascimento ‘ou 0 casamento; que nao apenas contabilize os movi- sl migratérios, mas que também fale sobre as expectativas culturais € sociais dos migrantes, que recupere um pouco da sua vida da aparente aridez a partir de uma documentagao que, se utili: zada com finalidades meramente estatisticas, nao traré ara : leitores de em histéria mais do que um niimero, ae = abstrato, preciso mas patético, matematicamente desencamado ° . Os problemas relativos ao risco de que um estilo ~ . titativo nao-problematizado’ comprometa uma obra de Histria Demografica sfo comuns também a outros campos que se utilizar eventualmente das técnicas estatisticas ¢ de quantificagao, cor A Histéria Econémica. Na verdade, estes sao riscos eoniine a woos ©s campos historiograficos que se sintonizam com a cham fi seule Quantitativa (expressdo que se relaciona a uma aa : gem’, conforme pode ser visto no segundo campo de critérios a Quadro 1). Da mesma forma que é um ato meramente descritivo registrar gratuitamente uma variacao secular nos precos de um certo produto, compilar aspectos referentes a uma populacaio sem a problematizag4o correspondente é um gesto historiografi ee de um contetido maior. Voltaremos a esta questéo iru discutirmos os horizontes e os limites da Historia Quantitativa. i : Postos estes cuidados, a Historia Demografica é a di- mensio importante a ser examinada pelos historiadores que se dedicam aos varios periodos, e muitos deles tém prestado contri- buigdes inestimaveis 4 compreensio da vida rural, da vida urbana, das oscilacdes nos niveis populacionais gerais ¢ localizados com as 25 José D'Assungdo Barros 26 suas devidas implicages sociais. Os problemas mais pa tinentes a este campo de estudo esto associados & compreens' ae relatividade do proprio numero. Historicamente, nunca = Ls dizer por exemplo que uma cidade é populosa ou pouco se : a nfo ser que seja avaliado o contexto da informagao num‘ ak que chegou 0 historiador demogrifico. Assim, na eee af Grega o filésofo Aristételes ja idealizava para uma Ci Soe efetivo populacional de no maximo cinco mil cidadaos dis sip as mulheres e escravos que também a habitariam). d ‘rata- ia certo modo de uma critica Aquilo quer Ihe parecta he excessiva populago urbana para a cidade de Atenas, que no 7 de Péricles havia chegado a possuir 40.000 cidadios. a al séculos depois, atingiria um milhdo de habitantes, 0 que = Atenas classica uma cidade comparativamente pequena (ist : 3 os parametros de uma época pudessem modelar a ee i outra). Mas em compensa¢ao, @ antiga capital do ie me is teria a sua populago reduzida a menos de cem mil on ita = periodo medieval. Este periodo conhece portanto um rel — no limiar populacional urbano: lugares com dois erie i: habitantes tenderiam a receber 0 status de uma ‘cic dimensdes consideraveis, conforme estes novos parametros. Mt Hoje em dia, quando vivemos @ drastico problema a superpopulagao mundial e quando consideramos que a maior lesa da populagao de quase todos os paises mais nua ve 7 cidades (fenémeno especifico do século XX) estes imiares . populacdo urbana oriundos de outras épocas tomas aa para o homem comum. Mas nao para 0 historiador. ue aa i nos mostrar simultaneamente @ importéncia e a relativi le ‘0 aspecto populacional para uma caracterizagao da Cidade 2 tal. Ou seja, o namero tomado isoladamente nao deve ter ei importancia para 0 historiador, a nfo a quando ele pode col ii tualiza-lo, produzir a partir dele inferéncias socioculturais, co! a té-lo a outras informagdes & estabelecer hipdteses para a comp! O Campo Historico ens&o de uma sociedade. Outro problema a ser referenciado, além da ‘relatividade do nimero’, refere-se ao da ‘problematizagdo do niimero’. Um campo fértil de aplicagdes da demografia histérica aparece quando comeyamos a relacionar padrdes de comportamento populacional com as necessidades politicas ¢ sociais desta populagao. Malthus, ja no século XIX, fazia notar que diversas sociedades controlavam os seus limites populacionais face aos recursos alimenticios ¢ materiais através da adog&o de um padrao de ‘casamento tardio’ (na faixa etaria de 25 anos para as mulheres e 30 anos para os homens), em uma época em que havia parcos meios de controle da natalidade. O ‘casamento retardado’ adicionado a ‘precariedade de Tecursos anticoncepcionais’ podia exigir 0 desenvolvimento de determinados padrées de abstinéncia entre os jovens (ja que nado eram desejados nestas sociedades os filhos ilegitimos que, de resto, comprometeriam com uma maior demanda por alimentos as possibilidades de sobrevivéncia do grupo). Conexées como estas formaram um campo significativo para os historiadores associarem certos dados demograficos a as- pectos ideolégicos. A valorizagdo da vida ascética, as associagdes entre amor e sexo, a moralizacao do sexo a partir de interditos, ou mesmo 0 surgimento de movimentos artisticos que valorizaram 0 “amor casto” (como ocorre com 0 Amor Cortés entre os trovadores da Idade Média) ... tudo isto pode ter uma outra ponta nas necessi- dades vitais de contrabalangar nascimentos em uma sociedade que tem poucas alternativas anticoncepcionais. Torna-se necessdrio nestas sociedades a criag&o de ocupagdes dignas para o jovem que tera de retardar a constituic¢o da familia: dai, na Idade Média, 0 engajamento em aventuras como ‘cavaleiro andante’ ou cruzado, a valorizagao do santo, a alternativa do eremitismo. Surgem também as necessidades de criar um sistema para a distribuig&io do patri- ménio familiar entre os herdeiros de um chefe de familia que morreu — algumas sociedades adotarao o sistema da primoge- 27 José D'Assungao Barros , 28 nitura masculina, para evitar que a propriedade fragmente-se entre varios herdeiros. Resultado disto: novos marginalizados no seio familiar, novas necessidades de praticas comportamentais especi- ficas, novas necessidades de ideologias que obriguem todos a estas praticas. O dado demografico est4 sempre preso a uma teia com- plexa: uma variagéo em um aspecto populacional pode produzir a necessidade de um grande rearranjo na organizagao politica, nos tracos ideolégicos e nos bens culturais a serem produzidos pela sociedade. A estas conexdes 0 historiador demografico deve estar atento. SAo apenas alguns exemplos, entre tantos, que mostram que a dimenséo cultural ou politica e a dimensio demografica devem ser postas a dialogar pelo historiador. Com os exemplos mencionados, fica claro que a Historia Demografica — a boa Histéria Demografica — obriga-se a dialo- gar com aspectos que a ultrapassam. O historiador no deve se transformar em um mero recenseador retroativo, como estamos tentando demonstrar. E preciso que, mesmo partindo dos fatos demograficos, ele esteja atento aos fatos da cultura, aos fatos econémicos, aos fatos politicos, as ideologias, aos aspectos antropolégicos. A Historia Demografica reafirma hoje 0 seu lugar no campo histérico precisamente estabelecendo interfaces com os outros campos historiograficos: com a Historia Econémica, com a Historia Social, com a Hist6ria Politica, com a Hist6ria Cultural, ou com qualquer outra dimensio a ser examinada pelo historiador. Eis aqui um exemplo marcante de que, mais do que nunca, 0 historiador deve evitar de se deixar trancafiar no isolamento de seu compartimento historiografico de maior interesse. A tendéncia do historiador do século XXI, pode-se prever, sera a de trabalhar cada yez mais habitualmente em um campo de interconexdes, mesmo que ele conserve a sua especialidade. Assim como 0 otorrino- laringologista nao deveria deixar de ser um clinico geral em todas as horas, um historiador demografico nao pode deixar de se preparar para dominar satisfatoriamente o métier do historiador da O Campo Historico cultura, do historiador social, do historiador politico. Com relago a obras historiogréficas voltadas para o asj eee es) comegaram a aparecer na década de eg ripest if beta da “reconstituigao familiar” desenvolvido aoe ei uis Henry, que comegou a aplicd-lo a socie- a qaena watiee propunha vincular as informacdes Se 5 casamentos € mortes em uma determinada » ; apreendido no manual escrito por Louis Henry com o titulo de Técnicas de Andlise em Demografia Histérica’. A — = aan uma profusao de teses. Algumas vinculam a Histo- see ihe ae = um campo novo, a Histéria Regional (divisio wvciteene i ro oe no critério ‘abordagens’ mais pam ne sub-item ‘campo de observacao’). O historia- os , a veremos oportunamente, é aquele que trabalha uma leterminada regido, ¢ neste trabalho, dependendo do seu ae historiografico especifico, ele pode realizar uma Historia Demografica (como também uma Historia Econémica, uma Histé- ria Cultural, e assim por diante). . EM hae if sa do entrelagamento entre Histéria Demografica Fite Lees edna ii os historiadores franceses de ), sobretudo Goubert com sei is . ara (1960), que focaliza uma regio Saas i i ‘i a talvez, a primeira obra de ‘demografia social’. Além : ales Regional cuidadosamente articulada com uma emografia Histérica, trata-se de uma verdadeira andlise social, também atenta aos aspectos econémicos. Na mesma linha teriamos os estudos de Pierre Vilar sobre a Catalunha (1962) — mas deixa- aks para depois a mengo a sub-especialidades como a da His- ; ia Regional, jé que elas se referem mais propriamente ao critério ‘abordagem’, e no ao critério ‘dimensdo’ de que aqui tratamos. 5 Louis HENRY, Técnic ; ea ‘enicas de andlise em demografia histérica, Lisboa: 29 José D’Assungao Barros 30 A Historia da Cultura Material estuda os objetos mate- riais em sua interag%o com os aspectos mais coneretos da vida humana, desdobrando-se por dominios hist6ricos que ves do estu- do dos utensilios ao estudo da alimentagao, do vestuario, sano dia e das condigdes materiais do trabalho humano. A ogo que atravessa este campo é a da “matéria” (ou do ‘objeto material’, que pode ser tanto o de tipo durdvel, como no caso dos monumentos e dos utensilios, como do tipo perecivel, como no caso dos ae tos). Contudo, este campo deve examinar n&o 0 objeto material e mado em si mesmo, mas sim os seus USOS, as suas apropriagoe sociais, as técnicas envolvidas na sua manipulagao, a sua impor- tancia econdmica e a sua necessidade social ¢ cultural. Afinal, a nogiio de “cultura” também nio deixa de atravessar a campo. Desta forma, o historiador da cultura material nao estara atento apenas aos tecidos € objetos da indumentéria, mas —s aos modos de vestir, as oscilagdes da moda, as suas variagdes conforme os grupos sociais, 4s demarcagdes politicas que i vezes se colam a uma determinada roupa que os individuos le certas minorias podem ser obrigados a utilizar em sociedades a aproximam os critérios da “diferenga” e da ‘desigualdade : a relaco aos alimentos, 0 historiador buscara nao um fit inventario dos varios géneros alimenticios, mas uma compree! i dos seus modos de consumo, dos regimes alimentares raise minam nos diversificados grupos sociais e profissionais, . expectativas simbélicas de cada alimento; das formas de nae namento € intercdmbio dos géneros alimenticios. Da ean [ le habitagdes, procuraré extrair uma compreensio da sah iliar, das relagdes entre piblico ¢ privado, da segregacao social a po- de ser estabelecida a partir de determinadas configuragoes je espa- 0, dos regimes imagindrios que podem estar associados a ine padrdes habitacionais, da correlagao entre os varios tipos de bens O Campo Histérico im6veis e os grupos sociais a que pertencem os seus possuidores. Ao perceber a materialidade de uma cidade — os seus monumentos, os seus espagos de circulagdo, os seus espagos de trancafiamento, os seus compartimentos licitos e ilicitos — o his- toriador estara buscando perceber os modos de vida da sociedade que a habita, as expectativas dos seus habitantes. Ao examinar uma cidade murada, como aquelas que eram tao tipicas da Idade Média e do principio da modernidade, tentara compreender 0 que significa este tipo de “viver murado”, que medos aparecem a rebo- que desta espécie de enclausuramento urbano ou, na contrapartida, que sensagdes de seguranga contribuirdo para o alivio do habitante murado frente aos riscos de invasdo externa. A cidade aberta, com outros tipos de problemas, inspirarao reflexdes distintas, e dario dar a conhecer outros tipos de sociedades. O historiador da cultura material que trabalha com a Historia Urbana (que é um ‘dominio’ histérico, conforme indicamos no Quadro 1) tem muito a perceber dos seus objetos citadinos. Méveis, objetos decorativos, ferramentas, maquinas, maté- rias primas que darao luz a objetos manufaturados, veiculos que os transportarao ao longo de grandes avenidas e estradas, com destino a determinados grupos de consumidores que por estes bens terdio de pagar em moeda sonante ... tudo pode ser objeto de uma Histéria da Cultura Material. Pode-se perceber que, além da nogao de “materialidade”, uma outra nogdo marcante que muito freqiien- temente atravessa este campo histérico é a de “cotidiano”. O historiador da cultura material estara freqiientemente estudando os dominios da vida cotidiana, da vida privada, embora estes domi- nios também possam ser partilhados por historiadores voltados predominantemente para outras dimensdes ou enfoques, como é também 0 caso da Historia das Mentalidades. O estudo atento dos objetos da cultura material faz com que esta especificidade da histéria esteja intimamente associada 4 Arqueologia, mas esta ultima designagdo refere-se preferencial- vy José D’Assungao Barros 32 mente a uma ‘abordagem’ relacionada ao Ss an go de fontes da cultura material, € _ tanto a ‘dims winnie jal que € trazida por estas fontes’. Deste modo, ao —_— is moda a um ‘modo’ de desvendar vestigios materiais e de santa para reconstruir a Histéria, a — mais coerentemente & segunda ordem de — ane : Quadro | (‘abordagens’). Neste sentido, para um a 7 Arqueologia remete sobretudo aos ‘métodos ae ae eventualmente serio empregados para — es oa empiricos no decorrer da pesquisa — fontes eda 7 a ee o historiador fara incidir _ oo rina 7 an) spas storia da Cultura . 6 : ee Cultura Material e a Arqueologia freqilente- ey a2 eae Historia da Cultura Material pode atuar na conexdo com campos historiograficos definidos por a a sées ou enfoques. Assim, 2 “matéria” e a al aires examinadas nas suas interrelagdes, € ane ae riador pode associar os campos da Historia da i i Pee da Historia do Imagindrio. Segundo Gaston Bacl — - bi imaginagéo de um movimento reclama @ bi en matéria” A partir de um enfoque que nado dcie SS cies objetos ¢ artefatos so encarados como comp on ann ou “redes de gestos” por Leroi-Gourhan a que bs = a no deixa de ser simultaneamente um antropélogo da c! Seen aT ae ga © Tradicionalmente, a Arqueologia vinha era ae te a istOri Jimens%o corporativa propria 2 Hii et tem cena de uma Hist6ria da Cultura Material aue ta vast de incorporar & comunidade arqueolégica na 7 = mar hs st uae Rigorosamente, todo bom arquedlogo é nee a altura Material, no se limitando a coletar residuos deci 7 en : istorii Material” In Jacq. 7 Jean-Marie PESEZ, “Hist6ria da Cultura Hea (ony Hstria ‘Nova, $80 Paulo: Martins Fontes, 1990, p-202 [orig 19 I. 8 Gaston BACHELARD, L ‘Air et Tes songes. Paris: Corti, 1943. O Campo Histérico rial ¢ do imagindrio que se dedicou mais particularmente as cultu- tas paleoliticas. O vaso, por exemplo, seria uma materializagao da tendéncia geral de conter fluidos’. Relacionando gestos, imagens e objetos materiais, Leroi-Gourhan analisa determinados objetos, como a “casca”, visando estabelecer curiosas interconexdes. “AS tendéncias para “conter”, “flutuar”, “cobrir” particularizadas pelas técnicas do tratamento da casca dao 0 vaso, a canoa ou 0 telhado. Se este vaso de casca € cozido, implica imediatamente uma outra clivagem possivel das tendéncias: coser para conter da o vaso de casca, coser para vestir da a veste de peles, coser para abrigar di a casa de pranchas cozidas”"”. Estas divagagdes podem parecer demasiado abstratas a primeira vista, mas devemos aprender com elas. As relagdes entre os objetos da cultura material e o imaginario podem ser exploradas criativamente pelos historiadores de um ou outro destes campos. Independente de ser um simbolo bélico, a ‘espada’ também se abre imagisticamente para o gesto do ‘ordenamento social’. Ela estende- Se para o gesto que corta, que descrimina, que separa, que compartimenta — que ordena o social, enfim. Neste sentido, o simbolo incorpora com a sugestio do ‘ordenamento social’ mais esta outra funcdo representativa, para além do enfrentamento do inimigo. A espada torna-se um simbolo polissémico, representagao da forga mas também, da justiga’’. As interrelagdes mais imediatas da Histéria da Cultura Material afirmar-se-4o provavelmente com a Historia Econémica, que, conforme veremos mais adiante, tera como um dos seus trés ° A. LEROI-GOURHAN, Evolution et Technique: L'Homme et la matigre, Paris: A. Michel, 1943. p.18. "© A. LEROI-GOURHAN, op-cit, p.340 sqs, apud. Gilbert DURAND, 4s estruturas antropolégicas do imagindrio, Lisboa: Presenga, 1989, p.38. "José D’Assungo BARROS, As Trés Imagens do Rei —o imagindério régio nos livros de linhagens nas cantigas trovadorescas (Portugal e Castela, século XIll), Niterdi: UFF, 1999, p.40. 33 José D’Assungdo Barros 34 setores basicos de preocupagées 0 estudo da esfera da Produgao. Neste caso, os objetos materiais privilegiados para estudo serdo as ferramentas, as m4quinas, a matéria prima — ou, para utilizar a terminologia marxista, os ‘meios’ e ‘instrumentos de produgao’. Sem contar as ‘técnicas’, que também se tornam objeto de inte- resse da Histéria da Cultura Material (usos que se incorporam a determinados objetos, ou que até mesmo os definem). Na esfera econémica da Circulago, teremos como objetos da cultura mate- rial importantes as “moedas”, pontos focais para estudos de cultura material, de hist6ria econédmica e novamente do imaginrio (se 0 historiador ocupar-se também do estudo da simbologia de suas efigies). Quanto aos objetos ligados ao Consumo, so infinitos. i Um exemplo de Histéria da Cultura Material foi concreti- zado por Braudel, em um dos volumes de CivilizagGo Material, Economia e Capitalismo 1967)". Por outro lado, Marc Bloch pode ser considerado um precursor, levando-se em conta que teria empreendido uma modalidade de Histéria da Cultura Material ao analisar a ‘paisagem rural’ na medievalidade francesa". Enfim, 0 tratamento historiogrifico da Cultura Material pode ser identificado através de um longo desenvolvimento. no decurso deste ultimo século, que vai desde estas obras pioneiras até as obras mais recentes, como a Histéria das Coisas Banais de Daniel Roche'* — obra que examina para a sociedade européia do século XVII ao XIX diversificados aspectos como a alimenta¢4o, o ” Femando BRAUDEL, Civilizagdo Material, Economia e Capitalismo, 3 vol. S&o Paulo: Martins Fontes, 1997 [ediggo francesa original: 1967]. 3 Mare BLOCH, Les caractéres originaux de l'histoire rurale frangaise. Paris: A. Colin, 1952 (original de 1931). Existem também artigos de Marc Bloch que examinam os instrumentos ¢ as técnicas utilizados pelos camponeses medievais (“Avénement et conquéte du moulin a Meu” € “Les inventions médievales”, Annales d'histoire économique et sociale, Vl, 1935). \4 Daniel ROCHE, Histéria das Coisas Banais — nascimento do consumo (sec. XVII-XIX), Rio de Janeiro: Rocco, 2000. O Campo Histérico vestudrio e aparéncia, o fornecimento de agua, luz ¢ aquecimento, os méveis € utensilios ¢, de uma maneira geral, a produgio de objetos € o seu consumo. Eis ai, portanto, uma histéria do ocidente moderno através dos objetos ¢ dos seus usos, inscrevendo-os em uma teia de relagdes humanas que deve ser captada para que a Historia da Cultura Material nao se transforme em um mero inven- tario descritivo de bens diversos e de suas formas de consumo. No Brasil, registraremos o pioneirismo dos estudos de Historia da Cultura Material com a obra Caminhos e Fronteiras (1956) de Sérgio Buarque de Holanda. Se em Visdes do Paraiso'* 0 socidlogo-historiador aborda o Imaginario (campo que discutire- mos mais adiante), em Caminhos e Fronteiras '* 0 seu enfoque é precisamente a ‘vida material’ da regiaio de Sao Paulo no periodo colonial. Na verdade, Sérgio Buarque focaliza a vida material co- mo meio para perceber a interagdo entre colonizadores de origem européia e amerindios (0 confronto cultural é a sua preocupacdo basica desde 1936, com Raizes do Brasil). Trata-se, portanto, de uma Historia da Cultura Material motivada por uma preocupagao tipica da Histéria Social da Cultura, compreendida aqui no seu sentido mais especifico. As técnicas rurais, a producao de alimen- tos, a paisagem rural assinalada pelos trigais, a indistria caseira e 0 artesanato urbano, os utensilios (como a rede de dormir) ou os instrumentos (como 0 arado utilizado no trabalho rural) ... eis aqui os materiais para uma auténtica Histéria da Cultura Material que Procura reconstruir, a partir de uma problematizagdo sociocultural mais ampla, uma rede complexa que envolve objetos, técnicas e consumo. Horizontes abertos para que a historiografia brasileira continue a elaborar trabalhos ligados a esta modalidade historica. 5 Sérgio Buarque de HOLANDA, Visées do Paraiso, Sao Paulo: Brasiliense, 1994 [original: 1959] 'S Sérgio Buarque de HOLANDA, Caminhos e Fronteiras, $30 Paulo: Companhia das Letras, 2001 [original: 1957] 35 José D’Assungdo Barros 36 A Historia da Cultura Material nao é 0 tnico campo historiogréfico que examina as relagdes mais diretas da vida huma- na com a materialidade que o cerca. Se existe uma materialidade criada culturalmente pelo homem, e que se concretiza nos seus diversificados ambientes, objetos ¢ utensilios, existe também uma ‘materialidade natural’ a ser considerada. Qualquer sociedade deve necessariamente estabelecer contato e formas de apropriacao relativamente a um mundo material que ja estava | antes de sua intervencéo. O homem, jé se disse algures, esta destinado a se relacionar dialeticamente com a Natureza que © cerca, com a matéria que encontra sua disposig&o, com os espagos onde edificara os seus ambientes sociais, com as condigdes climaticas com as quais tera de se defrontar. Tudo isto também fara parte de sua realidade concreta, da sua materialidade imediata, e também aqui existira uma historia a ser contada. A Geo-Histéria estuda precisamente a vida humana no seu relacionamento com o ambiente natural e com o espago concebido geograficamente. E ainda com Fernando Braudel (1949) que este campo comega a se destacar, passando a 7 definir e a se encaixar nos estudos histéricos de “longa duragaio”'’. Por outro lado, a Geo- Histéria pode se dedicar mais especificamente ao estudo de um aspecto transversal no decurso de uma dura¢io mais longa, cone fez Le Roy Ladurie ao realizar uma Histéria do Clima (1967)'*. Nestes casos, ocorre muito freqiientemente que 0 geo-historiador tome para fontes, além da documentagio mais tradicional, os préprios vestigios da Natureza (Ladurie esteve atento aos “anéis” que se formam nos caules das Arvores de vida longa, considerando que, de acordo com conclusées ja estabelecidas pelos botanicos, " 4 obra prima de BRAUDEL neste campo € O mediterrdneo e 0 mundo mediterrénico na época de Felipe H!, Sio Paulo: Martins Fontes, 1984. 2 vol. 18 E LEROY LADURIE, Times of Feast Times Famine. New York: 1971. O Campo Histérico um anel estreito significa um ano de seca, e um anel largo um ano beneficiado por chuvas abundantes). Conforme se vé, a Geo- Histéria deve dialogar necessariamente nfo sé com a Geografia, como também com outras ciéncias da natureza (a exemplo da Botanica ou da Ecologia). Historia Demografica, Historia da Cultura Material e Geo- Histéria constituem um fundo historico primordial. Respectiva- mente a “materialidade humana”, a “materialidade cultural”, e a “materialidade natural” — é disto que tratamos nestas dimensdes primordiais do conhecimento historiografico. Existem por outro lado dimensdes mais etéreas, ou aparentemente mais abstratas. E delas que trataremos a seguir. Historia das Mentalidades Bastante polémica deste os seus primérdios, a Histéria das Mentalidades enfoca a dimens&o da sociedade relacionada ao mundo mental e aos modos de sentir, ficando sob a rubrica de uma designag&o que tem dado margem a grandes debates que nao poderao ser todos pormenorizados aqui’. Tera certamente contribuido para esta polémica o fato de que os historiadores das mentalidades foram os primeiros a se interessarem por determinados temas n&o convencionais, desbra- vando certos dominios da Histéria que os historiadores ainda nio '? Alguns artigos panordmicos podem ser esclarecedores a respeito deste campo histérico: (1) Jacques LE GOFF, “As mentalidades: uma hist6ria ambigua” In Jacques LE GOFF e Pierre NORA (orgs.) Histéria: Novos Objetos, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p.68-83; (2) Philippe ARIES, “A Historia das Mentalidades” In Jacques LE GOFF (org.) 4 Histéria Nova, Sto Paulo: Martins Fontes, 1990, p.154-176; (3) Robert DARTON, “a Historia das Mentalidades —o caso do olho errante” In O Beijo de Lamourette, Si0 Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.225-255. 37 José D’Assungao Barros 38 haviam pensado em investigar. Assim, Robert Mandrou estudou a longa persisténcia de certos modos de sentir que motivaram a pratica da feiticaria e sua repressio no livro Magistrados e Seiticeiros na Franga do século XVIP°; Jean Delumeau estudou um complexo de medos de longa duragdo que estruturaram o modo de sentir do homem europeu durante muito tempo, e cuja lenta superacdo permitiu precisamente a passagem para o mundo moderno”', Philippe Ariés ¢ Michel Vovelle estudaram os senti- mentos do homem diante da Morte”, De certo modo, os historiadores das mentalidades consti- tuiram uma vanguarda da tendéncia da Nova Historia em se tornar uma espécie de “historia em migalhas”, para utilizar aqui a famosa expresso que deu um titulo ao impactante livro de Frangois Dosse sobre a passagem dos Annales para a Nova Histéria”. Foram eles que primeiro exploraram certos temas que — a principio recebidos pelos demais historiadores como estranhos ou exdticos — logo encontrariam um curioso lugar editorial entre uma multidio de outros campos tematicos que posteriormente marcariam — através de uma miriade de novas especialidades relativas aos ‘dominios’ 2° Robert MANDROU, Magistrados e feiticeiros na Franca do século XVII, Sto Paulo: Perspectiva, 1979 [original: 1968]. 21 Jean DELUMEAU, Histéria do Medo no Ocidente, Sic Paulo: Companhia das Letras, 1989 [original: 1978]. 22 Philippe Ariés, O Homem diante da Morte, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, 2 vol. Michel VOVELLE, Le mort et l'Occident de 1300 4 nous jours, & paraitre fin 1982, Gallimard: Paris, 1982 [original: 1977]. 3 Francois DOSSE, A Histéria em Migalhas, Sio Paulo: Ensaio, 1994 {orig.: 1987]. Na verdade, a expresso “histéria em migalhas” chegou a ser referida de maneira afirmativa (ndo-depreciativa) por Pierre Nora — organizador de uma coletinea de artigos da Nova Histéria francesa. Pierre Nora enunciou a expres- so em uma entrevista concedida a um jornal francés em 1974, e com ela anun- ciava a consolidacdo de uma moda que passava a privilegiar as curiosidades, os temas exédticos, ou pelo menos o estudo de objetos muito particularizados em contraste com os antigos projetos de produzir uma grande histéria total. O Campo Histérico histéricos — a tendéncia a fragmentagdo das antigas ambigdes braudelianas de realizar uma ‘hist6ria total’. Devido a sua exploragdo ousada de certos temas até entio incomuns, a Histéria das Mentalidades produziu no seu nasce- douro uma forte estranheza que logo despertaria acirradas polé- micas. Mas é muito importante ter em vista que a Historia das Mentalidades nao pode ser definida essencialmente com base nestes novos dominios historiograficos que ela passou a privilegiar em um primeiro momento. Mesmo porque, conforme veremos mais adiante, estes mesmos dominios também foram retomados Por outros campos da histéria que pouco ou nada tém a ver com a Histéria das Mentalidades. Rigorosamente, qualquer tema pode ser trabalhado a partir dos varios enfoques que classificamos aqui como relacionados as ‘dimensdes’ sociais. Assim, uma Historia da Morte pode ser traba- thada pela Historia Demogréfica, pela Histéria Politica, pela Hist- ria da Cultura Material, e nao apenas pela Histéria das Mentalida- des. Em contrapartida, temas ja tradicionais como o do “naciona- lismo” ou o da “religiao” podem ser igualmente examinados da perspectiva de uma Histéria das Mentalidades. Nao s&o portanto os dominios privilegiados pelos historiadores das mentalidades que definem 0 tipo de histéria que fazem, mas sim a dimensio da vida social para a qual os seus olhares se dirigem: o universo mental, os modos de sentir, 0 dmbito mais espontdneo das representacdes coletivas e, para alguns, o inconsciente coletivo. A verdadeira polémica que envolve a histéria das menta- lidades € teérica e metodolégica. Apenas para registrar alguns problemas pertinentes a este campo historiografico que se consolida a partir da década de 1960, mencionaremos aqui as questdes fundamentais que devem ser refletidas pelo historiador que ambiciona trilhar estes caminhos de investigagao. Existird efetivamente uma mentalidade coletiva? Sera possivel identificar uma base comum presente nos “‘modos de pensar e de sentir” dos 39 José D’Assun¢do Barros 40 homens de determinada sociedade — algo que una “César ¢ 0 iiltimo soldado de suas legides, Sdo Luis e 0 camponés que cultivava as suas terras, Cristévio Colombo e o marinheiro de suas caravelas”? Estas imagens, extremamente oportunas, foram cele- brizadas por Lucien Febvre. Abragando a perspectiva tedrica de que existem de fato mentalidades coletivas, o historiador deve ampliar a sua concep¢ao documental. Conforme assinala Francois Furet (1982)", se 0 histo- riador das mentalidades pretende alcangar niveis médios de com- portamento, n&o pode se satisfazer com a literatura tradicional do testemunho histérico, que é inevitavelmente subjetiva, ndo repre- sentativa, ambigua. Assim, como veremos adiante, ocorreu um casamento feliz entre a Histéria das Mentalidades (dimensio) e a Historia Serial (abordagem). A revalidago dos estudos de natu- reza qualitativa, ao lado da abordagem serial, nio esteve contudo alheia a outros historiadores das mentalidades — como no caso de Michel Vovelle, historiador marxista das mentalidades que defende em um artigo importante o uso das duas abordagens como igual- mente validos para captar a dimensdo mental de uma sociedade”*. Para resumir trés ordens de tratamentos metodol6gicos que os historiadores das mentalidades tem empregado na sua Ansia de captar os modos coletivos de pensar e de sentir, poderemos registrar precisamente (1) a abordagem serial, (2) a eleigao de um recorte privilegiado que funcione como lugar de projecio das atitudes coletivas (uma aldeia, uma pratica cultural, uma vida), ou finalmente (3) uma abordagem extensiva de fontes de naturezas diversas. Neste ultimo caso enquadra-se a obra O Homem diante da Morte, de Philippe Ariés. Nesta ambiciosa obra, langa-se mao dos mais diversos tipos de fontes — desde os escritos de todos os > Francois FURET, 4 Oficina da Histéria, Lisboa: Gradiva, 1991. v. 1. p. 93. 25 Michel VOVELLE, “A histéria das mentalidades na encruzilhada de fontes” In Ideologias e mentalidades, Séo Paulo: Brasiliense, 1987. p.31 [orig.: 1982]. 0 Campo Historica tipos (obras literarias, textos hagiograficos, poemas, cangées, cré- nicas oficiais, testemunhos anénimos) até as fontes iconograficas e os objetos da cultura material. Michel Vovelle denomina a esta utilizagZo de um universo de fontes tio heterogéneo, percorrido mais ou menos livremente, de técnica “impressionista””®, Ele mesmo ja utiliza a segunda ordem de procedimentos a que atras nos referiamos: de um modo geral, prefere a abordagem serial. Em sua tese sobre a Piedade Barroca e Descristianizagao (1978) ?’, Vovelle examinou com precisio e método milhares de testamentos provencais — sempre de forma macica e procurando enxergar serialmente padrdes e deslocamentos de padrées que denunciassem as variagdes das atitudes diante da morte na longa duragao por ele escolhida. Quando examina fontes iconograficas, afasta-se da abordagem qualitativa livre para avaliar topicamente a recorréncia ¢ a ruptura de certos modos de representar, as vezes medindo espacos no interior da representagdo iconogrdfica quantificando elementos figurativos. Se vai as fontes da cultura material, 4 arquitetura funeraria por exemplo, faz medicées das distancias que separam timulos e altares. Sua abordagem é portan- to sistematica, cuidadosamente preocupada com a homogeneidade das fontes e com o seu lugar preciso dentro da série. A derradeira ordem de tratamentos metodolégicos corres- ponde 4 jé mencionada elei¢ao de um recorte privilegiado que funcione como lugar de projecao das atitudes coletivas ou de padrées de sensibilidade. Pode ser um microcosmos localizado ou uma vida, desde que o autor os considere significativos para a percepgdio de uma mentalidade coletiva mais ampla. Lucien Febvre, precursor distante dos estudos de mentali- dade, havia tentado precisamente esta via. Em sua famosa obra 26 Michel VOVELLE, “Pertinéncia e ambigdidades do testemunho literdrio” In Ideologias e mentalidades, So Paulo: Brasiliense, 1987. p.51 [original: 1980]. Michel VOVELLE, Piété baroque et déchristianisation, les atitudes devant la mort en Provence au XVIII siécle, Paris: Le Seuil, 1978. a4 José D’Assun¢do Barros 42 sobre Rabelais, o historiador francés se propde — a partir da investigago de um Gnico individuo — identificar as coordenadas de toda uma era”, A abordagem é criticada por Carlo Ginzburg — historiador mais habitualmente classificado na interconexdo de uma Histéria Cultural (dimenséio) com uma Micro-Historia (abor- dagem). Ao contraério de Febvre, Ginzburg opta por instrumen- talizar o conceito de “mentalidade de classe” em sua obra O Queijo e os Vermes”®. Neste ultimo caso — onde toma como documentacdo principal os “registros inquisitoriais” do processo de um moleiro italiano perseguido pela inquisi¢ao no século XVI — Ginzburg mantém-se atento 4 questo da ‘intertextualidade’, isto €, ao didlogo que o discurso do moleiro Menocchio estabelece impli- citamente com outros textos e discursos. Desta forma, embora ambos os historiadores partam de um estudo de caso individual, a abordagem tornou-se distinta. Ressal- te-se no tratamento historiografico levado adiante por Ginzburg, a ja mencionada preocupagaio em identificar os varios registros dialégicos presentes em uma mesma fonte — preocupa¢ao que, conforme veremos oportunamente, coaduna-se muito intimamente com um dos setores da chamada Historia Cultural. Assim, para além do discurso externo do préprio Menocchio, visivel na superficie de suas fontes, 0 historiador italiano toma por objeto a multiplicidade de discursos que 0 constituem; e, além disso, evita a pretensio de reconstituir uma “mentalidade de época”. Sua meto- dologia funda-se em uma anidlise dialégica ¢ intensiva da documen- taco. Seu enfoque, como se disse, é mais propriamente cultural. Uma nova histéria cultural, alias, vem fortalecendo cada vez mais uma alternativa para o tratamento de certos temas que até > Lucien FEBVRE, Le probléme de l'incroyance au XVieme siécle. La religion de Rabelais. Paris: Albin Michel, 1962 (original: 1942). ® Carlo GINZBURG, “Prefiicio & edigSo italiana” In O Queijo e os Vermes. So Paulo: CIA das Letras, 1989. p.34 [original: 1976}. O Campo Histérico entdo foram campos privilegiados pelos historiadores das mentali- dades. Ainda assim, € preciso reconhecer que a Histdria das Mentalidades, sobretudo através dos historiadores franceses da Novelle Histoire, proporcionou uma significativa abertura aos novos modos de fazer a histéria, inclusive deixando sua margem de influéncias na historiografia brasileira da década de 1980. E verdade que, para o caso da maioria dos nossos historiadores, ela raramente foi uma influéncia unica e linear, aparecendo habitual- mente combinada a outras influéncias e entrelacada com outras sub-especialidades da Historia. Apenas como um exemplo, a historiadora Laura de Melo e Souza — autora de obras que vao de Os Desclassificados do Ouro até Inferno Atléntico”® — reconhece em seu trabalho uma influén- cia importante advinda de historiadores das mentalidades como Geremek e Mandrou”', mas acrescenta que suas influéncias ou insérgdes mais importantes referem-se 4 Etno-Historia e a Historia da Cultura, neste ultimo caso a partir das obras de Ginzburg”. Ja Jo&o José Reis — autor do ja classico A Morte é uma Festa? — reconhece a importancia para o amadurecimento de seu trabalho da leitura dos historiadores franceses das mentalidades que estudaram as atitudes diante da morte (Ariés, Vovelle), mas situa sua prin- cipal coordenada em uma Histéria Social da Cultura inspirada no historiador marxista Edward Thompson™. * Laura de Melo e SOUZA, (1) Inferno Antico, So Paulo: CIA das Letras, 1993. (2) Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982. *! 0 historiador polonés Bronislaw Geremek ¢ autor de Os Marginais parisien- ses nos sécs XIV e XV, de A piedade e a forca, ¢ de outras obras importantes. *Iosé Geraldo Vinci de MORAES ¢ José Marcio REGO, Conversa com historiadores brasileiros, Sio Paulo: Editora 34, 2001, p.377. ® Jodo José REIS, A Morte é uma Festa: ritos finebres e revolta popular no Brasil no século XIX, Sao Paulo: Companhia das Letras, 1991. * José Geraldo Vinci de MORAES e José Marcio REGO, Op.cit., p.329-330. José D’Assungao Barros Antes de passar a falar na Histéria Cultural — este outro campo histérico que nos tltimos anos tem se fortalecido cada vez mais na historiografia ocidental — € preciso discutir ainda um campo ou sub-especialidade da Histéria que por vezes se torna muito préximo da Histéria das Mentalidades: a Psico-Histéria. Este campo mostra-se definido ou atravessado por preocupagdes oriundas da Psicologia ¢ por conceitos de diversos tipos desenvol- vidos no interior deste campo do saber. O historiador das mentali- dades Jean Delumeau, por exemplo, lanca mao em alguns momen- tos de conceitos elaborados por Wilhelm Reich e Erich Fromm. Reich e Fromm desenvolveram nogdes que ainda poderao ser utilizadas futuramente pelos historiadores. O primeiro envidou esforgos no sentido de estabelecer a conceituagZo de um “carater social”, que se constituiria a partir de uma interagdo entre a ideologia ¢ o inconsciente, aqui representado por certos padrées € alternativas de comportamento que seriam interiorizadas pelos individuos que vivem em sociedade’®. Além disto, Reich chama atencdo para o papel da Familia na formacdo do tipo carter indivi- dual que sustentaria a ordem politica e econémica da sociedade™*. Consequentemente, sugere que deveriamos examinar a estrutura da familia e suas praticas de criag&o dos filhos em uma época historica para compreender como as realidades econdémicas sdo 35 & idéia de que a ideologia torna-se psicologicamente internalizada ou fixada na estrutura de carater do (duo aparece em Psicologia de Massas do Fascismo [1933}, So Paulo: Martins Fontes, 1990. 36 Wilhelm REICH, A Revolugdo Sexual [1930], Rio de Janeiro: Zahar, 1969. E verdade que, em Reich, este projeto permanece muito incipiente, j que, a0 invés de empenhar-se em uma andlise sistematica das diferentes estruturas historicas da familia e de criago dos filhos, ele grosso modo reduz sua andlise a dois tipos historicos basicos: o “patriarcado autoritério” e o “matriarcado tolerante”, fixando-se em 4000 a. C. a transi¢ao de um modelo a outro. Em todo © caso, desconta-se o fato de que Reich nao era historiador, e nem tinha a erudigfo histérica de um Erich Fromm. O Campo Histérico traduzidas em politica, ética e religiio. Dito de outra forma, seria possivel analisar as principais forgas sociais presentes em determi- nada sociedade em fungdo da situag&o familiar tipica e da estrutura do cardter, 0 que toca pelos dois lados no projeto de alguns dos historiadores das mentalidades que estudaram a Familia e a Crianga, como Philippe Ariés”. Aprimorando o conceito de “carater social”, Erich Fromm também se expressa em termos de um “filtro condicionado social- mente™*, © “filtro social” seria constituido por uma série de ele- mentos, como a linguagem, a légica e os tabus sociais, mas tam- bém por toda uma série de habitos enraizados, de atitudes automa- tizadas e de impulsos que dao origem a praticas culturais diversas. E interessante comparar 0 conceito de carater social em Fromm com a no¢gaio de “mentalidade de época” que seria desenvolvida depois, no final da década de 1960, por alguns historiadores france- ses ligados a Novelle Histoire. Para Erich Fromm, o carater social corresponderia a “um nucleo da cstrutura do carater que é inerente 4 maioria dos membros da mesma cultura, diferentemente do cardter individual que varia entre as pessoas da mesma cultura”. Ou seja, existiria em qualquer sociedade uma estrutura nica de cardter que seria especifica dela e comum & maioria dos grupos e classes que fizessem parte desta sociedade. Por outro lado, em outra oportunidade Fromm reconhece a nogo de que diferentes classes dentro da sociedade tenham um determinado cardter social sob cuja base diferentes idéias podem » Philippe Ariés. Histéria Social Crianca e da Familia, Rio de Janeiro: Zahar, 1981 [original: 1964]. * © conceito de “filtro socialmente condicionado” € introduzido por Erich Fromm para referir-se 4 formagao de um “inconsciente social” mais amplo (Erich FROMM, Beyond the Chains of Illusion, New York: 1963. p.125). * Erich FROMM, The Sane Society, London: 1959, p.78 [edigdo original: New York: Rinehart & Company, 1955]. 45 José D’Assungao Barros, 46 se desenvolver e adquirir forca’®. Para além disto, é importante ressaltar a adaptagio de todas estas nogdes aos principios funda- mentais do Materialismo Histérico, dos quais este tedrico ligado a Escola de Frankfurt parte primordialmente. Para Erich Fromm, “o cardter social é um elo de ligacdo entre a estrutura econémico- social € as idéias e ideais que ganharam difusio na sociedade”, € sua influéncia exerce-se nas duas diregdes: da base econémica as idéias e das idéias & base econémica (0 que se sintoniza com a flexibilizagao do determinismo histérico que foi eames por diversos autores importantes do Marxismo no século xx)". Wilhelm Reich e Erich Fromm, para nio falar em Freud, so apenas dois dos muitos autores que tém exercido alguma influéncia nos historiadores, ainda poucos, os quais tém buscado constituir um campo novo a partir da interconexio entre Histéria Psicologia. Seria esta exploragao mais sistematica de diversifica- das nogdes e conceitos desenvolvidos no ambito da Pscandlise o que poderia distinguir mais propriamente a Psico-Hist6ria (ou a psicologia histérica) da Histria das Mentalidades, j4 que o terreno em que ambas se movimentam seria a principio o mesmo. Vale lembrar, para citar um exemplo que tem influenciado mais incisivamente os historiadores da atualidade, que 0 socidlogo- historiador (e médico) Norbert Elias também percorreu caminhos similares ao examinar a interiorizagao de certos modos de agir e de sentir que passam a condicionar os individuos em sociedade. Embora sem indicar Freud como interlocutor, o socidlogo alemfo vale-se por diversas vezes de nogdes oriundas do campo da Psicandlise — como as das “pulsdes” — para embasar seu mais célebre trabalho: O Processo Civilizador (1939). Trata-se de uma “© Erich FROMM, Escape from Freedom, New York: 1964, p.279 [orig:1941)] “" Eich FROMM, Beyond the Chains of Illusion, New York: 1963, p.93. {original: 1962). 42 Norbert ELIAS, O Processo Civilizador, Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 1990. O Campo Historica cuidadosa anilise social que objetiva mostrar como a interiorizagao de certos habitos € 0 contraponto psicossocial de um Processo Civilizador que foi se produzindo desde o periodo medieval, que se instala gradualmente no Ocidente a partir de poderes centrali- zados em tomo dos modemos estados nacionais. Em diversos aspectos, O Processo Civilizador tem liga- ges muito definidas com A Sociedade de Corte®, obra anterior em que Norbert Elias jé havia estabelecido claramente os para- metros do tipo de sociologia histérica que pretendia propor com| suas obras. A idéia é examinar, explica ele na Introdugao desta Ultima obra, no os individuos do passado histérico tomados com tnicos em si mesmos e como possuidores de uma expressi' liberdade para agir no mundo histérico (tendéncia que Elias sugerit bead a dos historiadores alemies de seu tempo), mas sim a rede de interdependéncias e condicionamentos que inscreveriam todos es- tes seres humanos em sociedade. Isto explica, alias, a atualidade d: obra de Elias: no decurso do século XX foi se afirmando cada mais uma historiografia que se opunha precisamente ao historicis- mo criticado pelo socidlogo alemao, tanto no que se refere a0) surgimento da vertente francesa inaugurada pela chamada Escola dos Annales, como através dos novos desenvolvimentos his: graficos inscritos no Materialismo Dialético. Assim a sociologia histérica proposta por Elias — diretamente Preocupada com as determinagdes que impdem um limite aos destinos pessoais — foi sendo identificada cada vez mais com uma Histéria que avangou na mesma diregao nas suas inimeras modalidades. E interessante constatar, alids, que mesmo no perfodo pés- Annales e pés-Novelle Histoire, marcado por novos desenvol- vimentos como a Micro-Histéria, uma obra como A Sociedade de 6 Norbert ELIAS, A Sociedade de Corte, Lisboa: Estampa, 1986. Embora a sua ee ae lente, cee a 1969, esta obra é anterior a O Processo Civilicador, jé contando com uma edigSo praticamente definitiva em 1933. 47 José D’Assungdo Barros Corte continua a mostrar-se sintonizada com alguns dos mais recentes caminhos historiograficos. O que se faz nesta obra, sen3o tomar um universo micro-recortado — a corte dos reis de Franca entre Francisco | e Luis XIV com todo o seu sistema ritualizado pela etiqueta — para a partir dai examinar a rede de relacionamen- tos e imposigdes de comportamento que passam a constranger os individuos, produzindo de um lado estratégias daqueles que sio obrigados a se movimentarem neste sistema, e de outro lado automatismos a serem decifrados pelos socidlogos ¢ historiadores? O que se faz nesta obra, ainda, sendo uma tentativa de apreender a sociedade do Antigo Regime a partir desta formagao social mais especifica que é a ‘corte principesca’, oferecendo aqueles que puderem decifté-la as chaves para compreender padrdes de comportamento que se difundem para a sociedade mais ampla? Para utilizar um comentario pertinente de Roger Chartier, que tomaria mais tarde a obra de Norbert Elias como _um_dos modelos de sua Histéria Cultural, € possivel dizer que 0 que 0 socidlogo alemao esta propondo é precisamente “estabelecer as leis de funcionamento das formas sociais a partir de um ‘exame minucioso” de ti ilizagdes histéricas™*. Trata-se, entd0, dé dar uma triplice utilidade a este estudo de caso: por um lado utilizando-o para compreender certos aspectos do Antigo Regime; por outro lado aproveitando-o para investigar, a partir das comparagées com que Elias enriquece o livro, se uma formagao social como a ‘corte’ produziria efeitos similares em outras sociedades; por fim — ¢ é este 0 aspecto que nos interessa mais especificamente nesta secdo em que estamos abordando a Psico- Historia — Elias propde-se a examinar a fungao da corte em um processo de civilizago que transforma radicalmente a economia psiquica dos homens entre os séculos XI e XIII. “ Roger CHARTIER, “Formacio social e habitus: uma leitura de Norbert Elias” In A Historia Cultural, Lisboa: Difel, 1990. p.91-119 [original: 1985]. O. Campo Historica O objetivo central de O Processo Civilizador também se enquadra perfeitamente neste campo intradisciplinar que poderia ser definido como uma Psico-Histéria, ou nestes intersticios situa- dos entre a Histéria e a Psicologia (e que Norbert Elias pretendia inscrever no interior do campo sociolégico). Trata-se de investigar nesta obra de 1939 a variago das normas de agressividade no tem- po, e de examinar como estas normas se refinam (ou civilizam-se) de modo a transferir um controle que antes era exercido de fora para um espaco intra-individual e intersubjetivo onde 0 individuo entroniza as regras e interdigdes sociais até que passa a agir auto- maticamente, de maneira autocoativa. Dito de outro modo, o que Elias esta estudando neste livro € a formacao de um psiquismo especifico no homem Ocidental, que esta precisamente ligado a motivagdes sécio-histéricas. Na verdade, o enquadramento de O Processo Civilizador em um campo que poderia ser definido como uma Psico-Historia é autorizado pelo préprio Norbert Elias, j4 que no segundo volume desta obra ele reclama precisamente a constituigo de uma ciéncia humana que ainda nfo existia, e que poderia ser chamada de “psicologia histérica”, vindo esta a ocupar 0 vazio produzido pelo abismo que separa uma Histéria nao-psicologizada de uma Psicologia que recusa a si mesma pensar historicamente seus objetos**: “Exatamente porque o psicélogo pensa ndo-historica- mente, porque aborda as estruturas psicolégicas dos homens de nossos dias como se fossem algo sem evolugao ou mudanca, os resultados de suas investigagdes de pouco servem ao historiador. E porque, preocupado com © que chama de fatos, evita problemas psicolégicos, 0 historiador pouco tem a dizer ao psicélogo” “ Norbert ELIAS, O Processo Civilizador, vol 2, p.234. 49 José D’ Assungao Barros E este didlogo de surdos, onde psicélogos ¢ historiadores habitam constelagdes tedricas separadas por anos-luz de incom- preenso mitua, o que Norbert Elias propée-se a superar. A Psicologia Social Histérica, tal como a define 0 sociélogo alemao em outro passo de O Processo Civilizador, deveria produzir estu- dos simultaneamente psicogenéticos e sociogentticos. E € isto o que Elias realiza efetivamente com suas obras. Norbert Elias foi na verdade um critico contumaz da Psica- nalise enquanto campo de saber até entdo redutor e tendente a naio- historicizag&o. Criticou-lhe — além da a-historicidade — a utilizago dos conceitos de Ego, Id e Superego para identificar compartimentos separados da mente humana, propondo, ao contrario, uma aten¢ao especial as relagdes entre estes trés conjun- tos de fungdes psicolégicas”*. Seu objetivo era investigar as rela- Ses entre os sentimentos controlados pelos individuos humanos e aquelas agéncias controladoras da psique, mas chamando aten¢ao para o fato de que a estrutura média ou habitual destas agéncias controladoras (ego, superego) vai se transformando no decurso de um processo civilizador como aquele que foi sendo produzido *6 Q “id” constitui na teoria psicanalitica aquela parte da psique de onde partem as pulsées em sua busca de atingir a realidade da satisfagdo. Consoante Freud, as pulsdes sdo impulsos inerentes a vida organica”, e abrangeriam tanto as pulsées de vida (eros) como a pulsdo de morte (fanatos), Esta ultima, inicialmente voltada para dentro do proprio sujeito no sentido de destruir 0 estado de tensionamento que é a propria vida, estaria apta a se dirigir parcialmente para o exterior em forma de agressividade. A agressividade seria, portanto, inerente ao homem, ¢ isto explica em parte a sua propria expressio social, Por outro lado, em seu confronto com o mundo externo, a psique produz uma zona destinada a regular 0 individuo de modo a nao deixé-lo a deriva em seu universo pulsional, o que na verdade impediria a sua propria sobrevivéncia ‘em uma civilizagao formada por outros individuos dotados das mesmas pulses internas. O superego é, desta forma, o lugar da lei, da légica, da moral, e assu- me uma fungéio normatizadora. Entre 0 id e 0 superego, o ego corresponderia a0 lugar da transagdo, com o papel de conciliar os impulsos do id ¢ a normativi- dade do superego. OCampo Histérico socialmente no Ocidente & medida em que se sofisticava e se transmudava a rede de interdependéncias humanas. Introduzir simultaneamente uma abordagem social e uma profunda cons- ciéncia histérica no Ambito da Psicologia foi a sua pedra de toque. Da mesma forma, Norbert Elias foi um critico arguto da historiografia alema de sua época, seja a associada aquele tipo de Histéria das Idéias que almejava investigar 0 pensamento humano desencarnado de sua sociedade, seja a historiografia que. a titulo de examinar a sociedade nas suas relagdes concretas, acabava por abstrair esta sociedade de um universo mental que constitui parte fundamental de sua prépria vida. Romper o isolamento injustificd- vel entre estes dois tipos de Historia, e reinstaurar 0 didlogo de uma Hist6ria simultaneamente mental e concreta com a disciplina da Psicologia — este foi um dos seus projetos mais pessoais, vindo a constituir-se em uma contribuigdo decisiva para este campo que tigorosamente nem comegou ainda a se formar, mas que desde j4 poderemos chamar de Psico-Historia. Os maiores riscos que rondam a Psico-Histéria envolvem de.um modo ou de outro os chamados “perigos do Anacronismo”. Q que é Anacronismo? Em primeiro lugar, é preciso considerar que 0 historiador, ao examinar uma determinada sociedade loca- lizada no passado, ‘esta Sempre © operando « com categorias de seu proprio tempo. Gesmo. nesmo que ele ndo queira). Dai aquela célebre frase de Benedetto Croce, que dizia que “toda histéria é contem- pordnea”. Isto quer dizer que mesmo a Histéria Antiga e a Histéria Medieval so histérias contempordneas, porque feitas pelos historiadores de nosso tempo (€ voltada para leitores de nosso tempo). Ha uma tens%o muito delicada que envolve esta inarre- davel caracteristica_do trabalho 0 _historiografico: : por um lado o lado o historiador deve conservar. a consciéncia « a de que cabal com com as categor is de seu tempo (as ue_Ihe serao por outro lado devera evitar que estas categor Sapa as suas Sado, ¢ que tinham 54 José D’Assuncao Barros 52 as suas proprias categorias de pensamento e de sensibilidade. Por exemplo, os métodos que um historiador emprega sero sempre métodos seus, desenvolvidos na sua propria época: ele poderd empregar os recursos da andlis semidtica, s6 desenvolvidos recentemente, para examinar "fonte: da historia antiga ou medieval; s, somente tornados possiveis no jseu tempo, para 1 iluminar uma epoca anterior 4 sua. Nao ha o menor problema nestes usos. Alids, sao precisa- mente os usos de novas técnicas, conceitos e modos de ver uma realidade passada o que assegura que a Histéria de uma deter- minada época devera ser sempre recontada. A questo do Anacro- nismo € muitas vezes mal interpretada. Nao tenho porque me constranger de utilizar a expresso “ataque cardiaco” para uma morte deste tipo ocorrida na Antigiiidade Greco-Romana ou na Idade Média sé porque os homens de entdo se referiam a estes males como “mal sbito”. O que no posso é dizer que um determinado grupo de mulheres destas épocas, dadas as suas atitudes de resisténcia ao controle masculino em um tempo em que estas resisténcias nao eram esperadas, eram “feministas”. O erro, neste caso, esta em que estou hes atribuindo uma categoria de pensamento que sé surgiu nas mulheres do século XX — a luz de uma equivalente conquista de direitos politicos e de obtengao de espago social ¢ profissional — e transferindo isto para uma época em que o discur- so feminista simplesmente nao existia. O discurso feminista é data- do, e na verdade inseparavel das condi¢des de seu surgimento e perpetuaco. Se quero tentar compreender as mulheres da Antigili- dade ¢ da Idade Média que resistiram a sociedade misdgina de suas épocas, devo tentar perceber como elas viam 0 mundo, atra- vés de que categorias de pensamentos, a partir de que praticas € representagdes. Devo examinar, além disto, a excepcionalidade ou n&o do comportamento deste ou daquele grupo, que sentido os componentes deste grupo atribufam aos seus proprios discursos. O Campo Histérico Devo refletir longamente sobre as suas palavras (que certamente nao incluiréo a expressdo “porco chauvinista”). Metaforicamente falando, deverei sintonizar neste caso esta singular estado que éa mulher antiga ou a mulher medieval, sempre com a consciéncia de que deverei apreender um idioma estrangeiro, diferente do meu. Muitas vezes os historiadores de nosso tempo, que apren- dem desde cedo na Academia que o maior pecado para um histo- tiador é 0 do Anacronismo, quase se sentem tentados a mandar confeccionar um manto medieval para depois se encerrarem nos seus gabinetes de estudo com uma roupa apropriada para iniciar uma investigacdo sobre a ordem medieval dos Templérios. Nao é isto 0 que os libertaré dos riscos do Anacronismo, e nem um eventual horror a utilizar categorias teéricas contemporaneas na hora de analisar uma fonte histérica. Se assim fosse, a propria discussdo sobre a possibilidade de didlogo entre a Histéria e a Psicologia, ou entre a Histéria e a Semistica, seria invidvel ... ja que nao existiam estes campos de saber naquelas épocas mais remotas (€ jé que, rigorosamente, a prépria Histéria no existia da maneira como hoje concebemos este campo de conhecimento). O que o historiador n&o deve fazer, com vistas a evitar os riscos do anacronismo, é inadvertidamente projetar categorias de Pensamento que s4o sé suas e dos homens de sua época nas mentes das pessoas de uma determinada sociedade ou de um de- terminado periodo. Para compreender os pensamentos de um chi- nés da época dos mandarins, terei de me avizinhar dos cédigos que (tanto quanto me for possivel perceber) regeriam o universo mental dos chineses. Este exercicio de compreender 0 ‘outro chinés’ é que tem que ser feito. Mas nfo € a andlise que tem de ser chinesa. Compreendido isto, poderemos retornar agora aos proble- mas do didlogo entre Histéria e Psicologia. Lucien Febvre, em um texto visiondrio, deixou registrado um alerta que poderemos repro- duzir literalmente aqui, j4 que diz tudo: 53 José D’Assungdo Barros “Muito j4 dissemos para mostrar que, se evitarmos projetar 0 presente, © nosso presente, no passado; se rejeitarmos o anacronismo psicolégico, o pior de todos, o mais insidioso ¢ 0 mais grave; se pretendermos esclarecer todas as atitudes das sociedades e, inicialmente, suas atitudes mentais, pelo exame de suas condigdes gerais de existéncia — é evidente que nao poderemos considerar como validas, para esse passado, as descri¢des e constatagdes de nossos psicdlogos, operando sobre dados que nossa época Ihes fornece. E também evidente que uma psicologia histérica verdadeira s6 sera possivel pelo acordo, negociado claramente, do psicélogo com o historiador. Este orientado por aquele. Mas aquele claramente tributario do primeiro, e obrigado a procurd-lo, para criar suas condi¢des de trabalho. Trabalho em colaboragao. Trabalho em equipe, para falar mais claramente”*” A Psico-Histéria, enfim, mostra-se um campo promissor, que requer naturalmente os seus cuidados. Uma Ultima tentagao a evitar nos trabalhos que poderiam ser enquadrados pela Psico- Histéria é a de pretender psicanalisar os homens do passado, como se estes pudessem “deitar-se no diva de um hipotético historiador psicanalista™*, Naturalmente, sabe-se que 0 processo psicanalitico, pelo menos no sentido freudiano, necessita ser construido a partir de um discurso interativo com o ‘outro’ — o que seria impossivel no caso dos atores sociais do passado que nos chegam através das fontes. Para citar um ultimo conjunto de historiadores que tém investido na conformagao de uma ainda incipiente Psico-Histéria, poderemos registrar que também entre os historiadores ligados 4 “7 Lucien FEBVRE, “Une vie d’ensemble: Histoire et Psychologie” in Combats pour U'Histoire, Paris: Armand Colin, 1953, p.207-15 [incluldo em Carlos Guilherme MOTA (org.) Febvre, So Paulo: Atica, 1978, p.118]. “ Esta imagem foi utilizada ironicamente por Le Roy LADURIE, que também dialoga eventualmente com a teoria psicanalitica (Le Roy LADURIE, The peasants of Languedoc. London: Urbana, 1974, p.284). (original de 1966] OCampo Histdrico heranga dos Annales comegaram a surgir no final do século XX algumas contribuigdes importantes. Destes, talvez o mais entusias- mado com as possibilidades de didlogo com a Psicanilise seja Alain Besancon, que escreveu um texto sobre o Inconsciente para a obra coletiva da Nova Histéria coordenada por Pierre Nora e Jacques Le Goff (1974). Fora do circuito francés, o grande marco nas tentativas de repensar as relagdes entre Histéria e Psicandlise esta registrado na obra Freud para Historiadores (1985), de Peter Gay”. E a sua propria série de obras sobre os padres de afetivi- dade e sexualidade na época vitoriana dao uma idéia dos caminhos possiveis a partir deste didlogo (1984-1995)°". Histéria Cultural e Historia Antropolégica A Historia Cultural, campo historiografico que se torna mais preciso e evidente a partir das ultimas décadas do século XX, mas que tem claros antecedentes desde 0 inicio do século, € parti- cularmente rica no sentido de abrigar no seu seio diferentes possi- bilidades de tratamento, por vezes antag6nicas. Apenas para ante- cipar algumas possibilidades de objetos, faremos notar que ela abre-se a estudos os mais variados, como a ‘cultura popular’, a ‘cultura letrada’, as ‘representagSes’, as praticas discursivas parti- thadas por diversos grupos sociais, os sistemas educativos, a medi- “ Alain BESANCON, “O inconsciente” In Jacques LE GOFF e Pierre NORA (orgs.) Histéria: Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. * Peter GAY, Freud para Historiadores, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 5' Peter GAY, A experiéncia burguesa da rainha Vitéria a Freud. A educacdo dos sentidos. $80 Paulo, Companhia das Letras, 1988 [original: 1984]. José D’Assun¢ao Barros ago cultural através de intelectuais, ou a quaisquer outros campos tematicos atravessados pela polissémica nogo de “cultura”. E esta Histéria Cultural — aqui entendida no sentido de uma Histéria da Cultura que ndo se limita a analisar apenas a pro- dugdo cultural literdria ¢ artistica oficialmente reconhecidas — que tem atraido o interesse de historiadores dos mais diversos matizes tedricos desde o ultimo século, inclusive no seio da historiografia marxista. Neste sentido, nfo estaremos utilizando a expressao “Historia Cultural” para nos referirmos a esta ou aquela corrente historiografica mais recente (a “Nova Historia Cultural” francesa, por exemplo), mas sim a toda historiografia que se tem voltado para o estudo da dimensio cultural de uma determinada sociedade historicamente localizada. O que se faz mais habitualmente ¢ uma distingao entre uma Histéria Social da Cultura (ou uma Historia Cultural propriamente dita) e uma Hi da Cultura que se ———— Fn limita a examinar estilisticamente certos objetos culturais — -geral- mente pertencentes 4 “grande” Arte ou ‘a “grande” Literatura _ como se estes objetos pudessem ser abordados de maneira aut6no- tha, mais ou jenos desvinculados da sociedade que os produziu. ‘O campo deste tipo de Histéria da Cultura que pretende se voltar *MXexclusivamente para as manifestagdes textuais que se sintonizam com os dominios da Historia da Literatura ¢ da Histéria da Filoso- fia é muito freqiientemente chamado de “Historia Intelectual”®?. Na verdade, a Histéria Intelectual € apenas uma peque- nissima parte da Historia Cultural tomada em seu sentido mais amplo, embora fosse quase que exclusivamente para ela (e tam- bém para uma Histéria da Arte tomada no seu sentido mais restrito) que os historiadores da Cultura se voltavam no século XIX, Estudava-se entdo a cultura renascentista (bem entendido, a cultura renascentista que na sua época era reconhecida como “alta cultura”), as obras de arte dos varios periodos, os grandes textos ———— * Ver nota n° 119. O Campo Histérico literarios, os tratados filoséficos (dominio que é também ocasional- mente chamado de Historia das Idéias). Os historiadores de entiio_passavam_ao_largo_das mani: festagdes culturais de todos os tipas_que aparecem através _da cultura popular, além de também ignorarem que qualquer objeto material produzido pelo. homem faz. também parte da cultura — da cultura material, como ja vimos. Além to, neglig iava:se.0,fa- to de que toda a vida cotidiana est inquestionavelmente mergulha- ng.mundo da cultura. Ao existir, qualquer individuo jé esté au- tomaticamente produzindo cultura, sem que para isto seja preciso ser um artista, um intelectual, ou um artesdo. A propria linguagem, € as praticas discursivas que constituem a substancia da vida so- cial, embasam esta nogdo mais ampla de Cultura. “Comunicar” é produzir Cultura, e de saida isto ja implica na duplicidade reconhe- cida entre Cultura Oral e Cultura Escrita (sem falar que o ser hu- mano também se comunica através dos gestos, do corpo, e da sua maneira de estar no mundo social, isto ¢, do seu ‘modo de vida’). Apenas para exemplificar com uma situagdo significativa, tomemos um “livro”, este objeto cultural reconhecido por todos os que até hoje se debrugaram sobre os problemas culturais. Ao escrever um livro, o seu autor est incorporando o papel de um produtor cultural. Isto todos reconhecem. O que foi acrescentado pelas mais recentes teorias da comunicacao é que, ao ler este livro, um leitor comum também esté produzindo cultura. A leitura, en- fim, é pratica criadora — t&o importante quanto o gesto da escritu- ra do livro. Pode-se dizer, ainda, que cada leitor recria 0 texto original de uma nova maneira — isto de acordo com os seus &mbitos de “competéncia textual” e com as suas especificidades (inclusive a sua capacidade de comparar 0 texto com outros que leu, € que podem no ter sido previstos ou sequer conhecidos pelo autor do texto original que esté se prestando 4 leitura). Desta forma, uma pratica cultural nfo € constituida apenas no momento da produgao de um texto ou de qualquer outro objeto cultural, ela 57 José D'Assungao Barros também se constitui no momento da recepgao. Este exemplo, aqui © evocamos com o fito de destacar a complexidade que envolve qualquer pratica cultural (¢ elas s4o de numero indefinido). Desde jé, para aproveitar o exemplo acima discutido, pode- remos evocar uma delimitagao de Histéria Cultural elaborada por Georges Duby. Para o historiador francés, este campo historio- grafico estudaria dentro de um contexto social os “mecanismos de produgdo dos objetos culturais” (aqui entendidos como quaisquer objetos culturais, e nfo apenas as obras-primas oficialmente reconhecidas). O exemplo acima proposto autoriza-nos a acres- centar algo. A Historia Cultural enfoca no apenas os mecanismos de produgao dos objetos culturais, como também os seus mecanismos de recep¢%o (e ja vimos que, de um modo ou de outro, a recepgaio é também uma forma de produgio). Estabelecido isto, retomemos a comparagao entre os atuais tratamentos historio- graficos da Cultura e aqueles que eram tao tipicos do século XIX. Ao ignorar a inevitavel complexidade da nogao basica que a fundamentava, a Historia da Cultura tal como era praticada nos tempos antigos era uma historia elitizada, tanto nos sujeitos cor como “HOS “dbjetos esiiidad dos K nocd de “cultura” que a perpassava era uma nog ¢ demasiado restrita, que os avancos da reflexo antro- polégica vieram desautorizar. Nao que as produgdes culturais que as varias épocas reconhecem como “alta cultura”, ou que a produ- do artistica que est4 hoje sacramentada pela pratica museolégica tenham perdido interesse para os historiadores. Ao contrario, estuda-se Arte e Literatura do ponto de vista historiografico muito mais do que“nos séculos anteriores a0 século XX. Apenas que a estes interesses_ mais s_acrescentou-se uma “infinidade.. de. ou utros. ‘Tal parece ter sido a principal contribui¢do do Ultimo sécu- ‘jo para a Histéria da Cultura, Para além disto, passou-se a avaliar a Cultura também como processo comunigativo, ¢,ndo como a totali- dade dos bens culturais produzidos pelo homem. Este aspecto, ee O Campo Histérico para o qual confluiram as_contribuigdes advindas das teorias ticas da cultura, | também representaram um pas passo d > decisivo. As ‘nogdes que se - acoplam n mais habitualmente A de “cultu- ra” para constituir um universo de abrangéncia da Histéria Cultural sao as de “linguagem” (ou comunicacao), “representacdes”, e de “praticas” (praticas culturais, realizadas por seres humanos em relago uns com os outros e na sua relaco com o mundo, o que em Ultima instancia inclui tanto as ‘praticas discursivas’ como as ‘praticas nao-discursivas’). Para além disto, a tendéncia nas cién- cias humanas de hoje é muito mais a de falar em uma ‘pluralidade de culturas’ do que em uma unica Cultura tomada de forma gene- ralizada. Em nosso caso, como estamos empregando a Histéria Cultural como um dos enfoques possiveis para o historiador que se depara com uma realidade social a ser decifrada, utilizaremos em algumas ocasides a expressio empregada no singular como orde- nadora desta dimensio complexa da vida humana. Trata-se no entanto de uma dimensio miltipla, plural, complexa, e que pode gerar diversas aproximagdes diferenciadas. ,O8 objetos da Histéria Cultural, face & nogio complexa de cultura que hoje predomina nos meios da historiografia profi nal, sdo indmeros (ver Quadro 2). A comegar pelos objetos que is faziam parte dos antigos estudos historioy nuaremos mencionando o &mbito das Artes, da Literatura ¢ da Ciéncia — campo ja de si multi-diversificado, no qual podem ser observados desde as imagens que o homem produz de si mesmo, da_soviedade_¢ € : condigdes sociais = : producto literatura, Fora estes objetos culturais ja de ha muito reconhecidos, e que de resto sintonizam com a “cultura letrada”, incluiremos todos os objetos da ‘cultura material’ ¢ os materiais (concretos ou nao) oriundos da “cultura popular” produzida ao nivel da vida cotidiana através de atores de diferentes especificidades sociais. 59 O Campo Histérico De igual maneira, uma uma nova Histéria Cultural interessar- se 4 pelos sujeitos produtores € receptores de cultura —o que abarca tanto a fungao social dos “inielectuais* de | todos os tipos (no sentido amplo, conforme veremos adiante), até © piblico receptor, © leitor comum, ou as massas capturadas | modernamente pela chamad “indistria ‘cultural ‘(esta que, alias, também pode ser jeanyng e101 ep soriqQ :z Cupend 32 ; relacionada como ‘uma agéncia produtora e difusora de cultura). g BR Agéncias de producao e difusao cultural também se encontram no : | las Ambito institucional: os Sistemas Educativos, a Imprensa, os meios i y \ de comunicagao, as organizagées socioculturais ¢ religiosas. 5 Para além dos sujeitos e agéncias que produzem a cultura, estuda-se os meios através dos quais esta se produz e se transmite: as prdticas € os processos. Por fim, a ‘maté ima’ cultural pro- priamente dita (os padrdes que esto por tras dos objetos culturais produzidos): as “visdes_de mundo”, os temas de. Nalores, os sistemas norm | que constrangem os ind os ‘modos de Vida rélacionados aos varios S_grupos sociais, as concepsoes | rela- sossav0id Temayn PUISTpUL een) 9p SODA Sonueonpa SeuDTss > OFSENPT VINO.LSIH J ipos. Com um investimen- lidades, podem ser estudados Y wwanind to mais proximo ai ze 2 ainda os modos de pensar e de sentir tomados coletivamente. z : " Estes inimeros objetos da Histéria Cultural — distribuidos Be ar! ou partilhados entre os cinco eixos fundamentais acima citados tH [ (objetos culturais, sujeitos, praticas, processos e padres) — tém constituido um foco especial de interesses da parte de varios z 2 ul 3 historiadores do século XX. Nos pardgrafos que se seguem, ae # procuraremos discutir algumas das varias contribuigdes importan- 33 & tes que atuaram conjuntamente para a constitui¢&io deste campo no gz Ss decurso do século. Muitos autores ficardio de fora, niio porque nao 3 meregam figurar em um balango como este, mas apenas porque deveremos fazer algumas escolhas em fungdo da brevidade requerida por um texto que pretende ser sintético. No seio do Materialismo Histérico, a preocupacdo com a 61 og José D’Assungao Barros 62 Histéria Social da Cultura tem tido muitos desdobramentos. A Escola Inglesa do Marxismo — com autores como Thompson, Eric Hobsbawm e Christopher Hill — especializou-se por exemplo em uma triplice articulacdo entre a Historia Cultural, a Historia Social e a Hist6ria Politica. Seus trabalhos remontam 4 década de 1960. A renovagio dos estudos culturais trazida pela Escola Inglesa tem sido fundamental para repensar o Materialismo Histo- rico — particularmente para flexibilizar o ja desgastado esquema de uma sociedade que seria vista a partir de uma cisdo entre infra- estrutura e superestrutura. Com os marxistas da Escola Inglesa, 0 mundo da Cultura passa a ser examinado como parte integrante do “modo de produgao”, € nao como um mero reflexo da infra-estru- tura econémica de uma sociedade. Existiria, de acordo com esta perspectiva, uma interagZo e uma retro-alimentagao continua entre a Cultura e as estruturas econdémico-sociais de uma Sociedade. Desaparecem aqueles esquemas simplificados que preconizavam um determinismo: linear e que haviam sido defendidos pela historiografia stalinista, ¢ que, rigorosamente, também ja haviam sido criticados por Antonio Gramsci, outro historiador marxista especialmente preocupado com 0 campo cultural. Sera suficiente citar uma remarcavel passagem de Edward Thompson: “Uma divisio tedrica arbitraria como esta, de uma base econémica e uma superestrutura cultural, pode ser feita na cabega e bem pode assentar-se no papel durante alguns mo- mentos. Mas nao passa de uma idéia na cabeca, Quando pro- cedemos ao exame de uma sociedade real, seja qual for, rapi- damente descobrimos (ou pelo menos deveriamos descobrir) a inutilidade de se esbogar a respeito de uma divisto assim”* ® Edward P. THOMPSON, “Folklore, anthropology and social history”, The Indian Historical Review, n°2, 1977 [incluido em E. P. Thompson, “Folclore, ‘Antropologia € Histéria Social” In As peculiaridades dos ingleses e outros artigos, So Paulo: UNICAMP, 2001. p.254-255} O Campo Historica A dimensio cultural que Edward Thompson acrescentou a conceitos fundamentais do Materialismo Histérico (ou que, como ele gostava de dizer, j4 estava implicita no verdadeiro Marx negligenciado por marxistas posteriores) foi tfo fundamental para uma historiografia marxista que necessitava estender sua reflexdo para novos dominios como, digamos, a contribuigao teérico-pratica de Braudel para a historiografia francesa associada aos Annales. Basta ler o curto prefacio de Thompson para A Formacdo da Classe Operdria Inglesa (1960) para perceber a qualidade de sua Proposta simultaneamente tedrica e empirica™. Ao refletir sobre os usos do conceito de “classe social”, de saida o historiador inglés coloca-se a distancia dos pensadores marxistas que viam a classe social como uma “estrutura” ou como uma “categoria” abstrata. Guarda a mesma distdncia dos que viam a classe como uma “coisa”*’, Classe social, para Thompson, é algo que ocorre efetivamente, e cuja ocorréncia pode ser demonstrada empiricamente pela analise histérica, mas como uma “relagio”. Nao adianta simplesmente parar a Histéria com a esperanca de flagrar a classe social como se esta fosse um corpo inerte estendido em uma mesa de operagées (para utilizar uma imagem do proprio Thompson). A classe social tem de ser percebida como “relacdo” e “processo”, em meio ao devir hist6rico, e preferencialmente em pontos privilegiados do desenvolvimento de uma “consciéncia de classe”. Assim, o historiador que examinar determinados grupos * E. P, THOMPSON, 4 Form sri i Me eet aco da Classe Operdria Inglesa, Rio de * “Existe atualmente uma tentagdo generalizada em se supor que classe é coisa. Nao era esse o significado em Marx, em seus ceortos Nisteicos, mas 0 erro deturpa muitos textos ‘marxistas’ contemporineos. ‘Ela’, a classe operéria, € tomada como tendo uma existéncia real, capaz de ser definida quase matema- ticamente — uma quantidade de homens que se enconira numa certa propor¢do com 0s meios de produgo. [...] Mas um erro semelhante ¢ cometido diariamen- tedo outro lado da linha diviséria ideolégica. Sob certa forma, é uma negagdo pura e simples” (A Formagdo da Classe Operdria Inglesa, vol |, p.10). 63 José D'Assun¢ao Barros de homens em um periodo adequado de mudangas sociais sera capaz de observar precisamente certos padrdes em suas relagdes, suas idéias e instituigdes®. A classe, além de seu componente eco- némico, deve entio ser vista como uma formagao social e cultural. Este ultimo aspecto é tao importante que Thompson dedica a primeira parte de A Formag@o da Classe Operdria Inglesa ao estudo das tradigdes populares que, vigentes no século XVIII, influenciaram as agitagdes jacobinas entre os trabalhadores ingle- ses dos anos 1780 a 1832 (seu objeto de estudo). Neste sentido, estudou — sem usar este termo — 0 imagindrio sobrenatural € apocaliptico das seitas radicais’, as idéias que circulavam nas pequenas rodas intelectuais, as praticas culturais das camadas populares para encaminhar sua resisténcia aos poderes instituidos. Examinou sonhos extraidos de didrios, as cangdes, os jornais populares, os panfletos, os tratados, os sermdes de pregadores radicais, as petigdes de trabalhadores, os aforismas de William Blake, 0 cédigo popular ndo-escrito em contraste com o cédigo legal ... nada do que era cultural Ihe foi estranho. A leitura dos trés volumes de Formagdo da Classe Operd- ria Inglesa oferece uma verdadeira aula de Historia Cultural traba- Ihada na conexdo com uma Histéria Politica de novo tipo. Mas 0 texto angular, que sintetiza as idéias fundamentais de Thompson a respeito da Cultura ao mesmo tempo em que mostra um lastro de diversificadas pesquisas de Histéria Cultural realizadas pelo histo- riador britanico entre 1960 € 1977, aparece sob 0 titulo de “Folclo- re, Antropologia e Histéria Social”®*, Para além de advogar a necessidade de um didlogo com a antropologia, Thompson ja * A consciéncia de classe é a forma como essas experiéncias sdo tratadas em termos culturais: encamadas em tradigdes, sistemas de valores, idéias e formas institucionais” (op.cit., p.10). * Thompson prefere falar em uma “imagistica milenarista” (op.cit., vol.1, p.49). Edward P. THOMPSON, “Folklore, anthropology and social history", The Indian Historical Review, n°2, 1977. O Campo Histérico revela agora uma consciéncia muito clara de sua posicao dentro de uma Histria da Cultura. Ao velho dito de que “sem produgao nao ha historia”, acrescenta que “sem cultura nfo ha producao”®. Além disto, o historiador inglés chama ateng&o para novas ques- t6es que logo seriam exploradas pelos historiadores do Imaginario € das representagdes, como a questo do ‘teatro do poder’: “Os donos do poder representam seu teatro de majestade, supersti¢ao, poder, riqueza e justiga sublime. Os pobres ence- nam seu contrateatro, ocupando o cendrio das ruas dos merca- dos e empregando o simbolismo do protesto e do ridiculo”™ Aspectos relacionados a violéncia simbdlica — seja a violéncia simbélica do Estado ou a violéncia simbélica do protesto popular — sio articulados a nog&o utilizada por Thompson de “teatro do controle”. Em relaciio ao primeiro aspecto, o do “teatro de controle” exercido através das execugdes publicas na Inglaterra do século XVIII, Thompson vai ao encontro de reflexdes andlogas que coincidentemente estavam sendo desenvolvidas por Foucault em Vigiar e Punir (1975)*'. Destaca-se aqui a importancia que se **Folclore, Antropologia e Historia Social” In As peculiaridades dos ingleses € outros artigos, p.258-259. © Id.ibid, p.239-240. *! Michel FOUCAULT, Surveiller et Punir — Naissance de la Prision, Paris, Gallimard, 1975 (Vigiar e Punir, historia da violéncia nas prisdes, Petropolis, Vozes, 1977). Na verdade, o objeto mais amplo de Foucault em Vigiar e Punir abarca a permanente reconfiguraglio histérica das ‘tecnologias de poder’ — desde aquelas tecnologias de poder que se sustentavam no século XVIII em sistemas punitivos alicergados no ‘teatro das execugSes’ até as tecnologias de poder que se estabelecem em relago a0 corpo, como algo analisdvel ¢ manipulavel pelo poder. Para 0 exercicio deste poder, como bem ressaltou Foucault, s4o constituidos varios mecanismos que vio desde os sistemas de Punigdo historicamente localizéveis até o “olhar pandptico” — teatro do poder invisivel, vigilancia que dispensa a presenga consolidando uma forma de poder que faz com que o individu submeta-se ora sem sentir, ora por se sentir vigiado por um olho oculto que estd em toda parte. 65 José D’Assungao Barros 66 dava na época tanto a ceriménia de execugio diante das multiddes, com direito a teatral procisso dos condenados, até 4 conseqiiente publicidade dos exemplos através de folhetos com as ultimas palavras da vitima. S40 questdes bem atuais no campo de uma Historia Cultural atenta as imagens do poder, as quais Thompson antecipa como pioneiro voltando-se tanto 0 que se refere ao teatro das autoridades como o contrateatro popular. artigo registra ainda uma série de pesquisas realizadas por Thompson a respeito de rituais da tradi¢&o popular (a “venda de esposas”), das formas culturais de resisténcia, ou dos charivari (“misica ruidosa” utilizada pelas classes populares para admoestar publicamente os infratores das normas da comunidade). Adicional- mente as contribuigdes sintetizadas neste artigo, torna-se extrema- mente relevante a preocupagio de Thompson em examinar a Cultura e a Sociedade nfo do ponto de vista do poder instituido, das instituigdes oficiais ou da literatura reconhecida, mas sim da perspectiva popular, marginal, incomum, nao-oficial, das classes oprimidas — 0 que também 0 coloca como um dos pioneiros da chamada Historia Vista de Baixo. E esta nova perspectiva que culmina com Senhores e Cagadores (1975), obra que € 0 ponto de partida para resgatar a vida dos camponeses da Inglaterra, suas lutas pelos direitos de utilizarem a florestas para a caga, seus modos de resisténcia ao poder constituido®. = © rétulo “Historia Vista de Baixo”, aparece pela primeira vez em um artigo de Edward Thompson (“History from Below”, The Times Literary Supplement, 7 de abril de 1966, p.278-280). Posteriormente, foi publicado um livro intitu- lado History from Below que consagrou o termo (History from Below: Studies in Popular Protest and Popular Ideology. Oxford: ed. Frederick Krantz, 1988). No Brasil, o artigo de Thompson sobre “A Histéria vista de Baixo” foi incluido na coletinea de artigos As peculiaridades dos ingleses, op.cit., p.185-201. Deve se notar ainda que “Historia Vista de Baixo” ndo é bem uma especialidade da Histéria, sendo uma atitude de examinar a Historia. © Edward P, THOMPSON, Senhores e Cacadores: a origem da lei negra, Rio de Janeiro: Paz ¢ Terra, 1987. O Campo Histérico Poucos autores como Edward Thompson influenciaram tanto a historiografia cultural no Brasil. Jo&io José Reis, evocando o historiador inglés, propde-se a investir em uma “economia moral do sentimento religioso” com A Morte é uma Festa, por ele defini- da como uma “Histéria Social da Cultura” — embora admitindo alguma influéncia das obras de Histéria das Mentalidades mais especificamente voltadas para 0 estudo das atitudes do homem diante da Morte. Em outras obras, Jodo José Reis, conjuntamente com Katia Mattoso, ja havia sido um dos primeiros a chamar aten- ¢4o para o fato de que os escravos brasileiros n&o eram apenas viti- mas, mas utilizavam-se da escravido para negociar e da sua inteli- géncia para elaborar estratagemas e ardis que podem ser encarados como formas de resisténcia contra 0 poder que os subm N&o seria possivel encarar um problema tio delicado como 0 da escravidao a partir desta perspectiva sem o viés da Historia Vista de Baixo, do qual foi pioneiro Edward Thompson. Por outro lado, a quest&o das formas sutis de resistencia empreendidas pelos escravos foi e tem sido uma questao polémica entre os historiado- res brasileiros que examinam de longa data os problemas relacio- nados a escraviddo no século XIX. Uns encaram o estudo das es- tratégias desenvolvidas pelos escravos ao nivel do cotidiano como um discurso historiografico que tende a diluir a crueldade da insti- tuigo escravocrata, associando esta linha de pensamento aos pre- cedentes de Casa Grande e Senzala (1933) de Gilberto Freyre™, Gilberto FREYRE, Casa Grande e Senzala: Formagdo da Familia Brasilei- ra sob o Regime da Economia Patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. ‘Argumenta-se que Gilberto Freyre, com esta obra pioneira, é o fundador de uma avaliagdo da identidade brasileira que se baseia em uma histéria onde os conflitos se harmonizam. Os seus adversdrios referem-se a esta linha de pensamento como o “mito da democracia racial”. A obra de Freyre tendeu a ser endeusada nas décadas de 30 € 40, criticada severamente pela esquerda a partir de 1950 (sobretudo a partir de 1963, quando Freyre dé uma guinada para as atitudes de direita e chega a apoiar a Ditadura Militar). Por fim, sua obra é retomada pelos historiadores do cotidiano na década de 1980. 67 José D’Assungo Barros que fora o primeiro a insistir no modelo do paternalismo. Outros, como Joao José Reis, insistem precisamente que enxergar 0 problema sob os novos angulos das estratégias cotidianas ¢ langar luz sobre as miltiplas formas de resisténcias que os escravos podiam desenvolver, o que justifica a sua auto-filiagio a linha historiografica proposta por Thompson. Mas voltemos aos aspec- tos relacionados a Histérica Cultural. A Escola Inglesa do Marxismo tem ainda outros autores quase tao importantes como Edward Thompson. Envolvendo um uso tio diversificado de fontes como o empreendido por Thompson, 0 percurso de Christopher Hill por uma Historia Cultura! abordada em sua dimensfo social pode ser apreendido desde a leitura de O Mundo de Ponta Cabeca ag71y® — onde so examinados os diversificados extratos culturais que sustentam as idéias radicais durante a Revolucdo Inglesa de 1640% — até a mais recente obra sobre Oliver Cromwell (O Eleito de Deus) onde Hill encampa o projeto de realizar uma Historia Cultural através de uma vida biografada de maneira problematizada®” — como outros fizeram dentro e fora da historiografia marxista, tal como veremos © Christopher HILL, 0 Mundo de Ponta Cabeca, Séo Paulo: Companhia das Letras, 1991. Nesta obra, a idéia de Hill é precisamente a de examinar todo um universo cultural que havia sido negligenciado pelos historiadores da Revolugao Inglesa, mais preocupados com os extratos culturais associados 4 Reforma ¢ 4 filosofia mecanicista, ou com a cis&o politica entre realistas ¢ parlamentaristas. Hill estuda um dmbito cultural e politico pouco conhecido, o da “revolta no interior da Revolugdo", povoado por uma miriade de grupos como os dos quacres, levellers, diggers e ranters. Este terceiro mundo comega a vir & tona quando Hill faz as fontes certas as perguntas certas, e quando assume uma nova perspectiva historiogréfica que antecipa surpreendentemente tendéncias posteriores. Criti- ‘cando outro historiador que examinou o mesmo periodo, Hill anuncia: “o seu ponto de vista € 0 do alto, do pago de Whitehall, enquanto o meu € 0 ponto de vista da minhoca. O indice no final de seu livro ¢ o meu contém listas de nomes completamente diferentes” (op.cit. p.30). ® Christopher HILL, O Eleito de Deus, Sao Paulo: Cia. das Letras, 2001 [1970]. O Campo Histérico oportunamente, ao se empenharem em resgatar este género que havia sido tio rejeitado durante a maior parte do século XX. Os estudos marxistas sobre a Cultura em sua dimenséo histérica e social atingem portanto um elevado grau de maturidade a partir da década de 1970. Mas a sua raiz deve ser buscada muito antes, em autores como Georg Lukdcs (1885-1971) ¢ Antonio Gramsci (1891-1937). Antes que a historiografia marxista se abrisse 4 explosao dos novos objetos explorados pela Escola Ingle- sa — que assume um conceito amplo de Cultura ao abarcar a cul- tura popular e também a cultura em seu sentido mais antropolégico — foram estes autores que abriram caminhos para uma Histéria Cultural alicergada nos fundamentos do Materialismo Histérico. Lukacs passa a dirigir sua atengo para os problemas da Cultura — particularmente para o campo estético — apds 0 perio- do que culminou com a produg&o de Historia e Consciéncia de Classe (1922), sua obra mais conhecida. E com base em uma corajosa autocritica, que leva Lukacs a rever alguns dos pontos de vista ligados a esta ultima obra, que se iniciam suas novas conside- ragdes estéticas. Comegando por coligir e analisar criticamente uma série de textos mais especificos em que Marx e Engels haviam refletido sobre questdes relacionadas Arte e 4 Literatura, © pensagor hingaro passa a privilegiar portanto um enfoque claramente cultural, Um ponto alto deste percurso de reflexdo é a célebre polémica de 1937 com o dramaturgo Bertold Brecht. Os dois autores foram tedricos de uma “estética engajada”, que preconizava um envolvimento do artista com as mudangas s6cio-politicas de sua realidade através da adesdo a uma arte “realista”. Divergem porém no que consideram como um auténtico “ Georg LUKACS, Historia e Consciéncia de Classe, Porto: Elfos, 1974. "0 trabalho voltado para a recuperagdo e critica dos textos estéticos de Marx € Engels foi realizado em colaboragdo com Mikhail Lifschitz, historiador soviético também interessado nos aspectos culturais. 69 José D'Assungao Barros 70 “realismo”: para Lukécs, um realismo formal que tinha seu. modelo nos romancistas do século XIX; para Brecht um realismo que podia assumir novas formas e tendéncias mais modernas, inclusive © expressionismo”®. No que se refere ao relacionamento entre Arte e realidade social, Lukdcs ainda se funda na “teoria do reflexo”, mas jA admite (retomando alguns textos de Lenin) que 0 reflexo do real na consciéncia no é um ato simples e direto”’. Com Gramsci teremos novos elementos de interesse para uma Historia Cultural. Em primeiro lugar, o filésofo italiano afirma que todos os homens, sem excego, sao intelectuais — mesmo que nao desempenhem na sociedade a fungo estrita de intelectuais”. Isto abriria, no futuro, a possibilidade de estudos sobre a multi- diversificagio de sujeitos produtores de cultura. Além disto, Gramsci também foi um dos primeiros a ressaltar 0 que chamou de “carater ativo das superestruturas”, 0 que o levou a adotar 0 con- ceito de “bloco histérico” como uma totalidade constituida pela interag&o entre a infra e a estrutura. Claramente vemos aqui os antecedentes da ampliag&o do conceito de modo de producéio para a inclusio do ambito cultural, tal como seria proposto por Thompson. ® «Realismo” para Brecht era “por a nu” a verdadeira vida social e desmascarar © ponto de vista da classe dominante, sem que isto implicasse em utilizar as formas do realismo antigo. Precisamente para acompanhar as mudancas de seu tempo, o artista engajado deveria ser aberto as novas formas, sem que isto implicasse no compromisso de sua atitude autenticamente realista com um estilo qualquer em particular (BRECHT, On Theatre, London: Methuen, 1955). 1 Em Plekhanov (1875-1918), um dos primeiros criticos marxistas da arte, esta dependéncia da criag&o estética em relagSo as circunstancias sécio-econdmicas ‘era mais estreita e linear — 0 que mereceu severas criticas de Gramsci. Ja Mehring (1846-1919) € Trétski (1877-1940) reconheceriam uma relativa autonomia da arte. A teoria do reflexo tomou-se ainda mais linear com o stalinismo. ™ Antonio GRAMSCI, Os Intelectuais e a Formacio da Cultura, Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 1982 (original péstumo: 1949). OCampo Histérico Com relagao aos seus principais objetos de interesse, Anto- nio Gramsci ocupou-se principalmente dos mediadores culturais identificados com os “intelectuais”, desdobrando-se dai a sua célebre tipificagao entre “intelectuais tradicionais” e “intelectuais organicos” e a sua proje¢ao nos ambientes rural e urbano. Por outro lado, sua preocupacdo bdsica era estudar os mecanismos hegeménicos, através dos quais um grupo social podia exercer seu poder na sociedade de formas muito mais penetrantes do que o mero exercicio do poder estatal — formas que atravessavam preci- samente 0 ambito cultural. Outra torrente de renovacdes que incide decisivamente sobre as perspectivas de uma nova Histéria Cultural advém da chamada Escola de Frankfurt — tendéncia do Materialismo Histérico que propde uma radical renovacdo do marxismo e que incorpora um atento didlogo com a Psicandlise e com as teorias da Comunicagao, enveredando a partir dai por estudos que privile- giam diversificados aspectos culturais da vida social. O grupo surgiu na Alemanha de 1925, tendo entre seus principais represen- tantes Theodor Adorno, Erich Fromm, Herbert Marcuse, Walter Benjamim, Max Horkheimer, ¢ mais tarde Jigen Habermas. Nao se trata propriamente um grupo de historiadores — sendo basica- mente constituido de filésofos, sociélogos e psicdlogos — e suas preocupagées fundamentais associam-se ao desenvolvimento do Capitalismo na modernidade. Mas em todo o caso, pode-se dizer que as tematicas exploradas pela Escola de Frankfurt contribuiram para um tratamento mais diversificado da Cultura, sem o qual nao seria possivel uma Historia Cultural em sentido pleno. Além de suas renovadoras criticas 4 racionalidade moder- na, ao autoritarismo e ao totalitarismo politico (inclusive a vertente stalinista da época) os temas privilegiados pela Escola de Frankfurt € que interessam mais propriamente a uma Histéria Cultural voltam-se para a cultura de massas, para o papel da ciéncia e da 1 José D’Assuncdo Barros fs 72 tecnologia na sociedade modema, para a familia, para a sexualidade. Aparece ainda um especial interesse pelos problemas relacionados a alienagdo, a perda de autonomia do sujeito na sociedade industrializada. Para compreenderem todos estes objetos a partir de uma perspectiva aberta, os frankfurtianos expandem audaciosamente os limites do Materialismo Hist6rico: fi¢is aos textos primordiais de Marx — notadamente aqueles que abordam a alienago, a ideologia, o feitichismo da mercadoria ¢ a dimens&o cultural e filosfica tocada pelos Manuscritos de 1844 — eles também se tornam leitores atentos de Nietzsche, de Heidegger, de Freud. Adorno, interessado em uma Estética Musical, torna-se aluno de composi¢So de Schoenberg, mtsico que introduziu o atonalismo na Musica moderna. Walter Benjamim aprofunda-se no estudo da estética do Cinema, a arte de massas por exceléncia (em uma €poca que ainda n&o conhecera a explosio televisiva). Jirgen Habermas envereda pelos caminhos da semiotizagao da cultura, elaborando uma teoria da “aco comunicativa”. As contribuigdes de Habermas para uma teoria social da Cultura tém a sua pedra angular na percep¢do do fato fundamental de que a sociedade e a cultura so estruturadas em torno ou através de ‘simbolos’ — simbolos que exigem, naturalmente, interpreta- go. Mais propriamente com relagdo 4 sua “teoria da ago comuni- cativa”, Jiirgen Habermas desenvolve o pressuposto inicial de que qualquer processo comunicativo parte da utilizagio de regras semanticas inteligiveis para outros — 0 que, dito de outra forma, corresponde & compreensao da ago comunicativa como inserida em um sistema e uma rede semidticas. O uso de um idioma, por exemplo, traria em si — para além de visdes de mundo — deter- minadas normas sociais e direitos que seriam evocados automati- camente pelo emissor de um discurso, com ou sem uma auto- reflexdo consciente deste processo. Na verdade, o conhecimento social seria governado por normas consensuais capazes de definir expectativas reciprocas sobre 0 comportamento dos individuos. O Campo Histérico Por fim, 0 processo comunicativo idealmente completo estaria ain- da assinalado pela inteng4o ou convic¢ao de transmitir um conteti- do verdadeiro — e seria precisamente a transgress&o desta norma (comum, alids) 0 que geraria a chamada “comunicacio distorcida”. Dai os estudos de Habermas sobre os processos mediante os quais uma ideologia distorce a realidade ¢ sobre os fatores que influenciariam a “falsa consciéncia” destinada a representar os po- deres de dominagao. Tal veremos mais adiante, a reflexZo em tor- no do conceito de “ideologia”, aqui evocado, é fundamental para uma Histéria da Cultura colocada em interface com uma Histéria Social. Examina-se precisamente 0 modo como a rede de depen- déncias dos individuos que coexistem em sociedade esté amarrada por um entremeado de fatores sexuais, raciais, religiosos, educa- cionais, profissionais, politicos, tecnolégicos, ¢ culturais enfim. A atengao as relagdes entre Cultura e Linguagem esta na base de uma série de outros desenvolvimentos importantes para uma teorizagao da Cultura. Como a linguagem é essencialmente dialdgica (envolve necessariamente um confronto plural de vozes diferenciadas) os didlogos entre a Sociologia da Cultura e a lingilis- tica acabaram abrindo espaco para uma concep¢ao mais plural e dialégica da propria Cultura. Nesta esteira, € ainda dentro do Ma- terialismo Histérico que encontraremos a inspiragao para uma His- toria Cultural que tomaremos a liberdade de adjetivar como “polifonica”. Pensar a Cultura em termos de polifonia é buscar as suas multiplas vozes, seja para identificar a interagao e o contraste entre extratos culturais diversificados no interior de uma mesma sociedade, seja para examinar 0 didlogo ou o “choque cultural” entre duas culturas ou civilizagdes distintas. Dentro deste s — que dialoga habilmente com a lingilis- tica e a com a semiética — encontraremos autores como Mikhail Bakhtin e Todorov. A obra pioneira deste grupo é a célebre tese de Bakhtin sobre a Cultura Popular na Idade Média e no Renasci- 73 José D’Assungao Barros 74 mento (1946) — obra que inaugura 0 estudo do “dialogismo”, das varias vozes que podem ser perceptiveis em uma mesma pratica cultural ou em um mesmo texto, ou até mesmo no interior de uma Unica palavra. A sistematizagao tedrica das idéias de Bakhtin encontram um ponto de partida‘em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929)", e envereda depois pela andlise da “polifonia de vozes” que 0 historiador ¢ 0 lingitista podem decifrar em obras artisticas ¢ literérias, como no caso dos estudos de Mikhail Bakhtin sobre os romances de Dostoiévski (1929). E de Bakhtin que Ginzburg extrai a sua influéncia principal para a constituigao de uma nogao operacionalizavel de “circulari- dade cultural’, Enquanto Bakhtin examina a cultura popular filtrada por um intelectual renascentista (Rabelais), Carlo Ginzburg, realiza a operagao inversa: em O Queijo ¢ os Vermes: seu moleiro Menocchio reapropria-se de obras da literatura oficialmente aceita para constituir uma visio de mundo inteiramente original. E a cul- tura oficial que agora aparece filtrada pelo ponto de vista popular. A contribuigo das duas obras a Histéria Cultural esté portanto na possibilidade de empreender a leitura de uma cultura a partir de outra. Com elas, a Histéria Cultural passa a se beneficiar das pos- sibilidades de uma leitura efetivamente polifonica de suas fontes. Outro autor bastante influenciado por Bakhtin é Tzvetan Todorov, que escreveu um livro que ja é hoje um classico sobre A Conquista da América’. Aqui, 0 que se pretende examinar é pre- cisamente 0 “choque de culturas” produzido pelo confronto entre duas civilizagdes tio distintas como a européia ¢ a dos nativos ® Mikhail BAKHTIN, Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento — 0 contexto de Francois Rabelais, Sio Paulo: HUCITEC, 1985. 4 M. BAKHTIN, Marxismo e filosofia da linguagem. S80 Paulo: HUCITEC, 1981. 5 As influéncias de Ginzburg devem ser situadas em um tridngulo formado por Gramsci, Bakhtin e a Antropologia de um modo geral. % Tzvetan TODOROV, A Conquista da América — a questéo do outro. Si0 Paulo: Martins Fontes, 1993 [original: 1982}. O Campo Histérico meso-americanos. A Historia Cultural consolida aqui alguns de seus conceitos fundamentais, como o de “alteridade cultural”. Adi- cionalmente, Todorov é também responsdvel por novos métodos destinados a anlise de narrativas””, A abordagem dialégica e polifénica da Cultura que foi desencadeada por Mikhail Bakhtin estende-se por diversos setores historiograficos, inclusive fora do horizonte tedrico do Materia- lismo Histérico. E assim que, operacionalizando uma nog&o bas- tante similar 4 de “circularidade cultural” para 0 contexto medie- val, Paul Zumthor assegura para o dominio da Historia da Litera- tura um avango correspondente no que concerne 4 compreensao dos fenédmenos das “trocas culturais”. Em A letra e a Voz (1985) introduz 0 conceito de “intervocalidade”, aqui referido ao aspecto medieval do predominio da oralidade. “Intervocalidade” é a inter- textualidade proposta por Bakhtin aplicada a uma cultura essen- cialmente oral nos seus principais modos de transmissio. E ainda em Zumthor que iremos encontrar bem mais clari- ficada a idéia de que as oposicées de modos culturais, “litteratus e illiteratus” por exemplo, referem-se “menos a individuos tomados na totalidade do que a niveis de cultura que podem existir (coexis- tem freqiientemente) no interior de um mesmo grupo, até no comportamento € na mentalidade do mesmo individuo””, Esta nogao de “niveis culturais” coexistentes em um mesmo campo (ambiente social, grupo ou individuo) é obviamente imprescindivel para o estudo de realidades culturais que se concebem miltiplas. Trata-se de rejeitar as dicotomias j4 esclerosadas que associavam, na antiga Histéria Intelectual, certos “niveis culturais” (alta e baixa cultura) a estratificagdes sociais especificas. Ainda fora da historiografia marxista ou de inspirag&o mar- xista, outro campo destacado nos estudos de historia cultural coube Tzvetan TODOROV. Estruturalismo e Poética, Sao Paulo: Cultrix, 1994, ™ Paul ZUMTHOR, A Letra e a Vor, So Paulo: CIA das Letras, 1993. p.124, 75 José D’Assungao Barros 76 a um grupo de historiadores franceses que tem dois de seus prin- cipais representantes em Roger Chartier e em Michel de Certeau. Ambos atuam em consonancia com o socidlogo Pierre Bourdieu, que € um autor de grande importancia para a conexdo entre Historia Cultural e Historia Politica. Chartier e Certeau avancam ainda mais na critica as concepgdes monoliticas da Cultura, condenando a pretens&o de se estabelecer em definitivo relagdes culturais que seriam exclusivas de formas culturais especificas € de grupos sociais particulares (Lectures et lecteurs dans I'ancien regime, 1987). Assim, Michel de Certeau, em um registro proximo Aquilo que mais adiante definiremos como uma ‘histria antropo- logica’, investe na possibilidade de decifrar normas culturais através do cotidiano’’, Jé Roger Chartier interessa-se, por exem- plo, pelas transferéncias entre a cultura oral e cultura escrita, mostrando como individuos ndo-letrados podem participar da cul- tura letrada através de praticas culturais diversas (leitura coletiva, literatura de cordel), ou como, ao contrario, da-se a difusdo de conteudos veiculados através da oralidade para 0 registro escrito. Mas a contribuicdo decisiva de Roger Chartier para a His- toria Cultural est4 na elaboragdo das nogdes complementares de “praticas” € “representagdes”. De acordo com este horizonte ted- rico, a Cultura (ou as diversas formages culturais) poderia ser examinada no Ambito produzido pela relagdo interativa entre estes dois pélos. Tanto os objetos culturais seriam produzidos “entre praticas e representagSes”, como os sujeitos produtores e recepto- res de cultura circulariam entre estes dois pdlos, que de certo modo corresponderiam respectivamente aos ‘modos de fazer’ aos ‘modos de ver’. Seré imprescindivel clarificar, neste passo, estas duas nogdes que hoje sio de importancia primordial para o historiador da Cultura. Sige ae ® Michel de CERTEAU, L ‘invention du quotidien, Paris, Union Générales d’Editions, 1980. O.Campo Hi : O que so as “praticas culturais”? Antes de mais nada convém ter em vista que esta nog&o deve ser pensada nao aj re em relagdo as instancias oficiais de produgao cultural, as ee goes varias, as técnicas e as _realizagdes (por exemplo os objetos culturais produzidos por uma sociedade), mas também em relagao aos a € costumes que caracterizam a sociedade examinada pelo historiador. S4o prdticas culturais no apenas a feitura de um thn uma técnica artistica ou uma modalidade de ensino, mas tarbdes os modos como, em uma dada sociedade, os homens falam e se calam, tomem e bebem, sentam-se e andam, conversam ou discutem, solidarizam-se ou hostilizam-se, morrem ou adoecem tratam seus loucos ou recebem os estrangeiros. [ Serd possivel compreender isto a partir de um exemplo concreto. Para este fim, acompanharemos as “praticas culturais” (e neste caso as “praticas sociais”), que se entreteceram no Ocidente ae durante um periodo situado entre a Idade Média e o aan com eee & aceitacdo ou rejeigao da figura do Entre o fim do século XI € 0 inicio do século XIII, o pobre, e entre os varios tipos de pobres o mendigo, desempenhava um papel vital € organico nas sociedades cristés do Ocidente Europeu. A sua existéncia social era justificada como sendo primordial a a “salvacio do rico”, Consequentemente, 0 mendigo — malo menos 0 mendigo conhecido — era bem acolhido na sociedade medieval. Toda comunidade, cidade ou mosteiro queria ter os seus mendigos, pois eles eram vistos como lacos entre o céu e a terra — instrumentos através dos quais os ricos poderiam exercer a rented para expiar os seus pecados, Esta visio do pobre como *instrumento de salvac&o para o rico’, antecipemos desde ja, é uma representagdo cultural’. i an Michel MOLLAT, O ldadle Méclie. Ri . p73 (original: 1978}, pobre na Ic Média, Rio de Janeiro: Campus, 1989, istérico 7 José D’Assungao Barros 78 A postura medieval em relagao aos mendigos gerava ‘prati- cas’, mais especificamente costumes e modos de convivéncia. Tal como mencionamos atras, fazem parte do conjunto das “praticas culturais” de uma sociedade também os ‘modos de vida’, as ‘atitudes’ (acolhimento, hostilidade, desconfianca), ou as normas de convivéncia (caridade, discriminagdo, repidio). Tudo isto, conforme veremos, s&o praticas culturais que, além de gerarem eventualmente produtos culturais no sentido literdrio e artistico, geram também padrdes de vida cotidiana (“cultura” no moderno sentido antropoldgico). No século XIII, com as ordens mendicantes inauguradas por Sao Francisco de Assis, a valorizagdo do pedinte pobre recebe ainda um novo impulso. Antes ainda havia aquela visio ampla- mente difundida de que, embora o pobre fosse instrumento de salvacdo necessdrio para o rico, o mendigo em si mesmo estaria naquela condi¢ao como resultado de um pecado. O seu sofrimento pessoal, enfim, nao era gratuito, mas resultado de uma determi- nago oriunda do plano espiritual. Os franciscanos apressam-se em desfazer esta ‘representagao’. Seus esforgos atuam no sentido de produzir um discurso de reabilitagdo da imagem do pobre, € mais especificamente do mendigo. O pobre deveria ser estimado pelo seu valor humano, ¢ n4o apenas por desempenhar este importante papel na economia de salva¢ao das almas. O mendigo nao deveria ser mais visto em associacao a um estado pecaminoso, embora util Estas ‘representagdes’ medievais do pobre, com seus sutis deslocamentos, sio complementares a inumeras ‘praticas’. Desen- volvem-se as instituigdes hospitalares, os projetos de educacao para os pobres, as caridades paroquiais, as esmolarias de principes. A literatura dos romances, os dramas liturgicos, as iconografias das igrejas e a arte dos trovadores difunde, em meio a suas praticas, representagdes do pobre que lhe dao um lugar relativamente con- fortavel na sociedade. Havia os pobres locais, que eram pratica- mente adotados pela sociedade na qual se inseriam, e os “pobres O Campo Histérico de passagem” — os mendigos forasteiros que, se nio eram aco- lhidos em definitivo, pelo menos recebiam alimentagdo e cuidados por um certo periodo antes de serem convidados a seguir viagem. Daremos agora um salto no tempo para verificar como se transformaram estas praticas € representagdes com a passagem para a Idade Moderna. No século XVI, o mendigo forasteiro sera recebido com extrema desconfianga. Ele passa a ser visto de ma- neira cada vez mais excludente. Suas ‘representagdes’, em geral, tendem a estar inseridas no 4mbito da marginalidade. Pergunta-se que doengas estara prestes a transmitir, se nio sera um bandido, porque razSes ndo permaneceu no seu lugar de origem, porque nao tem uma ocupa¢ado qualquer. Assim mesmo, quando um mendigo forasteiro aparecia em uma cidade, no século XVI ele ainda era tratado e alimentado antes de ser expulso. J4 no século XVII, ele teria a sua cabeca raspada (um sinal representativo de exclusdo), algumas décadas depois ele passaria a ser acoitado, e ja no fim deste século a mendicidade implicaria na condenagao™. O mendigo, que na Idade Média beneficiara-se de uma representago que o redefinia “instrumento necessario para a salva- ¢40 do rico”, era agora penalizado por se mostrar aos poderes dominantes como uma ameaga contra o sistema de trabalho assala- tiado do Capitalismo, que nao podia desprezar bragos humanos de custo barato para pér em movimento suas méquinas e teares, e nem permitir que se difundissem exemplos e modelos inspiradores de vadiagem. O mendigo passava a ser representado entéo como um desocupado, um estorvo que ameagava a sociedade (e nao mais como um ser merecedor de caridade). Ele passa a ser entfo assimilado aos marginais, aos criminosos — sua representacao ® Estas mudangas de priticas foram examinadas por Michel Foucault em obras como O nascimento da Clinica ¢ Vigiar e Punir, e Femando Braudel as sintetiza em um passo de Civilizagdo Material, Economia e Capitalismo. Em O Capital, Marx também examina as rigorosas leis contra a pobreza ‘nfo inserida’ no novo sistema de trabalho assalariado produzido pelo Capitalismo. 79 José D’Assungao Barros 80 mais comum é a do vagabundo. Algumas cangées e obras literarias iro represent4-lo com alguma freqiiéncia desta nova maneira, os discursos juridicos e policiais farao isto sempre. As novas tecno- logias de poder passariam a visar a sua reeducagio, ¢ quando isto n&o fosse possivel a sua punic’o exemplar. Novas praticas irao substituir as antigas, consolidando novos costumes. O exemplo discutido acima, embora tenha requerido uma digressdo de alguns pardgrafos, pretende contribuir para uma me- Ihor compreensio destes dois conceitos que sao tio falados, mas nem sempre tio bem compreendidos. Chama atengao para a com- plementaridade das “praticas ¢ representagdes”, ¢ para a extensdo de cada uma destas nogdes. As praticas relativas aos mendigos forasteiros geram representagdes, e as suas representagdes geram praticas, em um emaranhado de atitudes e gestos no qual nao é possivel distinguir onde esto os comegos (se em determinadas praticas, se em determinadas representacdes). Poderemos dar outros exemplos mais breves. Um livro € um objeto cultural bem conhecido no nosso tipo de sociedade. Para a sua produgdo, sio movimentadas determinadas praticas culturais e também representagdes, sem contar que o prdprio livro, depois de produzido, iré difundir novas representagdes ¢ contribuir para a produgdo de novas praticas. As praticas culturais que aparecem na construgao do livro sdo tanto de ordem autoral (modos de escrever, de pensar ou expor o que sera escrito), como editoriais (como reunir 0 que foi escrito para constitui-lo em livro), ou ainda artesanais (como construir o livro na sua materialidade, dependendo de estarmos na era dos manuscritos ou da impressio). Da mesma forma, quando um autor se pde a escrever um livro, ele se conforma a determina- das representagdes do que deve ser um livro, a determinadas re- presentagdes concernentes ao género literdrio no qual se inscreverd a sua obra, a determinadas representagdes concernentes aos temas por ela desenvolvidos. Este autor também poderd se tornar criador O Campo Hisiérico de novas representagdes, que encontrarao no devido tempo uma ressonancia maior ou menor no circuito leitor ou na sociedade mais ampla. Com relagao a este ultimo aspecto, jé vimos que a leitura de um livro também gera praticas criadoras, podendo produzir concomitantemente praticas sociais. Seré o livro lido em leitura silenciosa, em recinto privado, em uma biblioteca, em praca publi- ca? Sabemos que sua leitura poderd ser individual ou coletiva (um letrado, por exemplo, pode ler o livro para uma multidao de nao- letrados), e que o seu contetido poderd ser imposto ou rediscutido. Por fim, a partir da leitura e difus&o do contetido do livro, poderao ser geradas inimeras representagdes novas sobre os temas que 0 atravessam, que em alguns casos poderdo passar a fazer parte das representagdes coletivas. A produg&o de um bem cultural, como um livro ou qual- quer outro, esté necessariamente inscrita em um universo regido por estes dois pdlos que s&o as praticas e as representacdes. Os exemplos so indefinidos. Cantar musicas em um sarau era uma pratica cliltural da qual participavam os trovadores medievais, que desta forma contribuiam para elaborar através de suas cangdes uma série de representagdes a serem reforgadas ou difundidas (0 Amor Cortés, a vida cavaleiresca). Um sistema educativo inscreve- se em uma pratica cultural, e ao mesmo tempo inculca naqueles que a ele se submetem determinadas representagdes destinadas a moldar certos padrdes de cardter e a viabilizar um determinado tepertério lingilistico e comunicativo que seré vital para a vida social, pelo menos tal como a concebem os poderes dominantes. Em todos estes casos, como também no exemplo do mendigo desenvolvido mais acima, as praticas e representagdes sio sempre resultado de determinadas motivagdes e necessidades sociais. As nogdes complementares de “praticas e representagdes” s&o bastante Uteis, porque através delas podemos examinar tanto os objetos culturais produzidos, os sujeitos produtores e receptores 81 José D’Assungao Barros 82 de cultura, os processos que envolvem a produgao e difusao cultu- ral, os sistemas que dao suporte a estes processos € sujeitos, € por fim as normas a que se conformam as sociedades quando produ- zem cultura, inclusive através da consolidagao de seus costumes. De alguma maneira, a nogao de ‘representagao’ pretende corrigir aspectos lacunares que aparecem em nogdes mais ambi- guas, como por exemplo a de “mentalidades”. Vimos através dos exemplos acima que as representagdes podem incluir os modos de pensar e de sentir, inclusive coletivos, mas nao se restringem @ eles. Quando um pintor produz a sua representagéo de uma cate- dral, com tela e tintas, ou quando um escritor descreve ou inventa uma catedral através de um poema ou de um romance, temos em ambos os casos representagdes, embora nao coletivas. Tal como assevera Jacques Le Goff (1985), 0 campo das representagdes “engloba todas ¢ quaisquer tradugdes mentais de uma realidade exterior percebida”, e esta ligado ao processo de abstragao". O Ambito das representages, ainda conforme Le Goff, também pode abarcar elementos associados ao Imagindrio — nogao que podera ser melhor compreendida quando falarmos na Historia do Imagindrio. As representagdes do poder — como por exemplo a associagao do poder absoluto ao Rei-Sol, a visualizagio deste poder em termos de centro a ser ocupado ou de cume a ser atingido — associam-se a um determinado imaginario politico. Deve-se ter notado que — ao nos referirmos atras a “repre- sentagdes”, “praticas”, “mentalidades”, “imaginario” — em todos estes casos preferimos utilizar a expresso “nogdo” ao invés de “conceito”. As “nogdes” sao “quase conceitos’, mas ainda funcio- nam como tateamentos na elaboracao do conhecimento cientifico, atuando a maneira de imagens de aproximagao de um determinado objeto de conhecimento (imagens que, rigorosamente, ainda nao se acham suficientemente delimitadas). Muitas vezes as no¢des jee eeeeeneneee ® Jacques LE GOFF, O Imagindrio Medieval, Lisboa: Estampa, 1994. p.11. O Campo Hisisrico poe de uma descoberta progressiva, de experiéncias, de s imentos criativos de um ou mais autores que podem ou ni ser incorporados mais regularmente pela comunidade cie1 i Mentalidades, Imagindrio e Representagdes sto nogdes ia estdio sendo experimentadas no campo das ciéncias humenas as ae expressdes fizeram a sua entrada a apenas algunas cas décadas (“mentalidades” é j i historiografia francesa da oo . e€ uma palavra que apenas recentemente migrou para o campo histérico, im i en de campos como a psicologia e a fenomenologia). m “, 7 . : fe ° ae uma “nogao” pode ir se transformando em wan i fe em que adquire uma maior delimitago ¢ em a comunidade cientifica desenv olve uma consciéncia mai se ior = seus limites, da extens&o de objetos 4 qual se aplica. Os ni 7 Es Fi i, : Seti , pode-se dizer, so instrumentos de conhecimento mais = los, longamente amadurecidos, o que nao impede que ist it — omer a grande margem de polissemismo (como o leologia” ou, tal como ja dis: it 5 semi Opri conceito de “cultura”), : a . “Prdticas” e % ir a ras € “representagdes” sao ainda nogées que esto ean radas no campo da Histéria Cultural. Mas, tal como ja s a NOs, is tém possibilitado novas perspectivas para o estu riografico da Cultura, porque j i ; h r juntas permitem abarc: conjunto maior de fendémenos i av culturais, além de cham » Maio . arem atencaio ara 6 7 i ae destes fenémenos. Por outro lado, citamos a ae ee poder’ que produzem associagdes com ae By lo imaginério politico (centralizagao, periferia, mar- a = ee representac&o liga-se a um circuito de = fora de sie # bem entronizado em uma determinada lunidade discursiva’™*, esta representacZo comeca a se avizi- uw, isto é, i a i ee de spaprihs ‘como os Praticantes de uma determinada ¢ tegrant uma socieda i i integrantes de determinados grupos taba ile ca 83 José D’Assungao Barros nhar de uma outra categoria importante para a Histéria Cultural que é o “simbolo”. “Simbolo” € uma categoria teérica jé hd muito tempo amadurecida no seio das ciéncias humanas — seja na Historia, na Antropologia, na Sociologia ou na Psicologia. Nao é mais uma “nogdio’, mas sim um ‘conceito’ que pode ser empregado “quando © objeto considerado é remetido para um sistema de valores subjacente, histérico ou ideal. Alguns simbolos podem ser polivalentes. A serpente, por exemplo, pode ser empregada como simbolo do ciclo, da renovagao (sentido inspirado pela mudanga de peles que ocorre ciclicamente no animal serpente), mas também pode ser empregado como simbolo da asticia, da maldade (sentidos que remetem ao universo biblico). Aquilo que os historiadores da cultura tem chamado de campo das representacdes pode abarcar tanto as representagdes produzidas ao nivel individual (as representagdes artisticas, por exemplo), como as Tepresentagdes coletivas, os modos de pensar e de sentir (a que se referia a antiga no¢ao de “mentalidades”), certos elementos que ja fazem parte do Ambito do imaginario e, com especial importancia, os “simbolos”, que constituem um dos recursos mais importantes da comunicagdo humana. As representagdes podem ainda ser apropriadas ou impri- midas de uma dirego socialmente motivada, situagao que remete a outro conceito fundamental para a Histéria Cultural, que ¢ 0 de “ideologia”. A Ideologia, de fato, € produzida a partir da interag3o de subconjuntos coerentes de representagdes e de comportamen- tos que passam a reger as atitudes ¢ as tomadas de posig&o dos homens nos seus interrelacionamentos sociais e politicos. No exemplo do mendigo, vimos como as suas representacées sociais e deslocamentos no universo mental dos homens medievais atendiam a determinados interesses sociais ou a determinadas motivacdes ** Jacques LE GOFF, O Imagindrio Medieval, p.12. O Campo Histérico coletivas. Podemos dizer que aquelas representagdes estavam sendo apropriadas ideologicamente. A difus&o de uma franca hosti- lidade com relagao ao mendigo do periodo moderno e a impreg- na¢&o de novas tecnologias de exclusdo nos discursos que o tomam como objeto (a sua classificagdo como vagabundo, a raspagem da cabeca) acabam fazendo com que sem querer a maioria das pessoas da sociedade industrial comecem a pressionar todos os seus membros a encontrarem uma ocupacao no sistema capitalista de trabalho. Isto é um processo ideolégico. Por vezes, a ideologia aparece como um projeto de agir sobre determinado circuito de representagdes no intuito de produ- zir determinados resultados sociais. Georges Duby, por exemplo, examina em uma de suas obras como uma antiga representag4o do mundo social em trés ordens — oratores, bellatores, laboratores — € reapropriada ideologicaménte a determinada altura da socie- dade feudal, sendo possivel identificar as primeiras produgdes culturais da Idade Média em que aparece este novo sentido ideo- légico acoplado ao circuito de representagdes da sociedade tripartida®. A ideologia aparece, desta forma, como um projeto de agir sobre a sociedade (este é, alias, um outro sentido empregado para ‘ideologia’, que, conforme veremos adiante, é um conceito extre- mamente polissémico). Outros exemplos similares ao estudado por Georges Duby s&o propostos por Jacques Le Goff para 0 mesmo periodo, conforme poderemos examinar na passagem reproduzida abaixo””: “Quando os clérigos da [dade Média exprimem a estrutura da sociedade terrena pela imagem dos dois gladios —- o do temporal 0 do espiritual, 0 do poder real ¢ o do poder pontifical — nao * Georges DUBY, As Trés Ordens ou 0 Imagindrio do Feudalismo, Lisboa: Ediges 70, 1971 {original: 1978]. * Jacques LE GOFF, O Imagindrio Medieval, p.12. 85

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