Mário Ferreira dos Santos – Palestra no Centro Convivium, 1964
Um dos grandes problemas que eu considero hoje em dia no campo da filosofia
que já vem de longe, é a falta da nítida compreensão entre a filosofia especulativa e a filosofia prática, sobre o que se chama ciência especulativa e o que se chama de ciência prática. Muitas vezes nos encontramos em face do que é válido no campo do especulativo e não é válido no campo da praticidade, outras vezes encontramos que aquilo que é válido no campo da praticidade não o é no campo especulativo. Encontramo-nos assim em face de dificuldades teóricas que são fáceis de resolver, porque eu digo sempre que em filosofia não há questões insolúveis, há apenas questões mal colocadas, desde que se faça uma boa colocação do problema as questões tornam-se de fácil solução. Ora o que caracteriza propriamente o ser humano é aquilo que os antigos chamavam a sua racionalidade, que entrava na sua definição clássica: homem animal racional. E nesse termo de racionalidade inclui-se dois aspectos que possui o homem e não possuem os outros animais que conhecemos, é que o homem dispõe de uma vontade e de um entendimento, uma vontade que lhe permite deliberar e escolher entre futuros contingentes, em que o homem pode acertar ou errar a sua escolha porque sempre busca aquilo que é o seu bem, isto é, aquilo que é conveniente a sua natureza. A natureza do homem considerado na sua estaticidade, na sua dinamicidade, isto é, no desenvolvimento das suas possibilidades que vão se atualizando e também na sua cinematicidade, isto é, nas suas correlações e interatuações com os seus semelhantes dentro da vida social e o bem é portanto tudo aquilo que é conveniente a esta natureza. A vontade tende para o bem, mas nós ao tendermos para o bem podemos errar, podemos escolher mal o bem, não sabermos escolher entre o bem e o mal, escolhendo muitas vezes um bem menor por um bem maior ou escolhendo o mal por um bem legítimo para nós. Este é o nosso pecado original, pecado da espécie humana, pecado com o qual todos nós nascemos, pecado que na alegoria do Gênese é apresentado pela desobediência do ato de Adão e Eva. Porque o ser humano é o único ser que pode dizer não, porque os animais não dizem não, os animais apenas seguem os seus instintos, ocupam-se daquilo que é imperioso para sua existência e os seus instintos são suficientes para lhes indicar o que lhes é conveniente a sua natureza, mas o ser humano não, é um ser desprovido de instintos, é um ser que precisa analisar, cogitar, escolher, verificar e consequentemente ele pode errar. Portanto, ao comer do fruto da árvore da ciência que é esta árvore do saber que o homem dispõe, ele está sujeito a negações, é possível desobedecer, ele desobedece, porque desobedece a própria natureza, porque nós mesmos perdemos os nossos instintos logo que nascemos. A confusão entre o especulativo e o páthico está aqui, porque o nosso entendimento tem uma oréxis, tem um desejo, um apetite, ele parte para alguma coisa, assim como a nossa vontade parte para o bem, o nosso entendimento parte para a verdade, nós queremos captar a verdade, o homem é um ser anelante de bem e de verdade, é um ser que se coloca entre estas suas exigências da sua natureza, da sua natureza humana, não animal. A verdade e o bem e o entendimento é esta capacidade de buscar a verdade, quanto à vontade é a capacidade de buscar o bem (do termo grego oréxis que corresponde mais ou menos ao apetite, o apetite em latim que quer dizer este ad petere, este pedir para) este pedir para alguma coisa, um pede para o bem e outro pede a verdade. Então consequentemente o homem constrói o seu mundo fundado nestas suas duas grandes realidades: o mundo da vontade é o mundo da sua prática, é o mundo da sua dramaticidade, é o mundo da sua ação, e o mundo do seu entendimento vai colimar na obra especulativa, o mundo da criação intelectual. Podemos dizer assim: que o mundo da prática é uma criação da vontade, enquanto o mundo da especulação é uma criação do entendimento. Mas estão os dois separados? Será que o entendimento é algo que funciona completamente fora da vontade? Não, os dois estão presentes, a vontade precisa do entendimento para deliberar bem e o entendimento precisa da vontade para por-se em ação, para alcançar a verdade. Ora a filosofia surge e tem as suas raízes na ação do homem, neste desejo do bem, porque aspirando o bem, ele investiga, ele anela este conhecimento e sobretudo tem as suas raízes nesse anelo, nessa orexis, pela verdade que lhe dá o entendimento. E a filosofia vai se polarizar, aquela que predomina no entendimento é especulativa e aquela que predomina a vontade é a filosofia prática. Temos o seguinte: na filosofia prática o valor principal para o qual tende é o conveniente, é o certo, toda vida prática humana, o que vale é aquilo que pode corresponder a natureza humana em todos os aspectos em que ela é considerada, de todas as formas proteicas em que ela possa se manifestar, enquanto que na especulação é a verdade. Ora observamos logo e é fácil observar, que o que se refere a verdade é indivisível porque a verdade é indivisível, ou é ou não é. Então no mundo especulativo estamos no mundo do aut aut, no mundo do ou ou. A disciplina que nos pode guiar como a matemática ou a lógica e a dialética, como a lógica formal que trabalha entre ou ou, ou verdade ou falsidade, não há o menos falso nem o mais falso, não há o menos verdadeiro nem o mais verdadeiro, há o verdadeiro ou há o falso. Mas no mundo da praticidade humana as coisas poderão ser mais ou menos convenientes, poderão ser melhores ou piores, poderão ser mais certas ou erradas, então nós temos uma gradatividade, temos uma divisibilidade. Por isso neste mundo domina a gradação, a intensidade, os graus intensistas. No outro é estático, as idéias são estáticas, os princípios são estáticos, tudo é incomutável, ou é ou não é.