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A ESCRITA DA CULTURA: POETICA E POLITICA DA ETNOGRAFIA James Clifford e George E. Marcus Organizacio ‘Traducio: Maria Claudia Coelho dD uer] a SELVAGENS Rio de Janeiro 2016 Introducao: Vetdades patciais James Clifford trabalho interdisciplinar, tao discutido hoje em dia, nao se refore ao confronto entre disciplinas jd consttuédas (ne~ niuma delas, na verdade, quer se deixar desfazer). Para focer algunas coisa interdiseiphinar, nao basta escolber aim “qhjeto” (umn tema) e colocar i sua volta duas om trés Gncias, A interdisciplinaridade consiste em eriar tm now objeto que niio pertence a ninguém. Roland Barthes, “Jeunes chercheurs”. ocd vai precisar de mais mesas do que imagina. Elenore Stith Bowen, conselho para o trabalho de campo, em Return to laughter. Nosso frontispicio mostra Stephen Tyler, um dos colaboradores deste volume, trabalhando na india, em 1963. O etndgrafo esta absorto, escre- vendo — anota algo que Ihe é ditado? labora uma interpretacio? Registra uma observacio importante? Rabisca um poema? Curvado no calor, tem um pano molhado pendurado sobre 08 dculos. Nao se pode ver sua expresso. “tras dele, um interlocutor olha para longe — com tédio? Paciéncia? Diver- imento? Nesta imagem, o emégrafo esté na borda do quadro — sem rosto, quase extraterreno, uma mio que escreve, Este nfo € 0 retrato coma do szabatho de campo antropol6gico. Estamos mais acostumados a imagens de Margaret Mead brincando exuberante com criancas, em. Manus, ou fazendo 32 A cscrita da cultura: pottica e politica da etnografia perguntas 20s aldedes, em Bali. A observagio participate, a formula clés- sica do trabalho antropolégico, deixa pouco espaco para textos. Mas, ainda assim, perdido em algum lugar em seu relato do trabalho de campo entre os pigmeus Mbuti — correndo por trilhas na mata, sentado noite cantando, dormindo em uma cabana de folhas lotada —, Colin Turnbull menciona que carregava pata todos os lados uma mquina de escrever. Nos Argonautas do Pacifico Ocidental, de Bronislaw Malinowski, em que uma fotografia da tenda do etaégrafo, em meio as habitagdes de Kiriwina, € exibida com destaque, nfio ha qualquer exposi¢ao do interior da tenda. Mas em outra foto, em uma pose cuidadosa, Malinowski registrou a si mesmo escrevendo a uma mesa. (A tenda esti aberta; ele est4 de perfil ¢ alguns trobriandeses esto do lado de fora, e observam aquele tito curioso.) Essa notivel fotografia s6 foi publicada dois anos atris — um sinal dos nossos tempos, e nio dos dele.' Principiamos no com observacio participante ou textos culturais (passiveis de interpretacio), mas com a escrita, a constru- cho de textos. A escrita nfo é mais uma dimensio marginal, ou oculta, mas vem surgindo como central para aquilo que os antropdlogos fazem, tanto no campo quanto no que a ele se segue. O fato de que até recentemente a escrita nao tenha sido retratada ou seriamente discutida reflete a persisténcia de uma ideologia que reivindica a transparéncia da representacio e 0 imediatismo da experiéncia. A esctita reduzida a um método: boas anotagdes de campo, elaboracio de mapas precisos, “redacio minuciosa” de resultados. Os ensaios aqui reunidos afirmam que essa ideologia se desintegrou. Neles, a cultura é vista como composta por representages € codigos se- riamente contestados; neles, assume-se que 0 poético € 0 politico sao in- separiveis, que a ciéncia esta nos processos histéricos e linguisticos, ¢ nfo acima deles, Os textos pattem do principio de que os génetos académicos e literdtios se interpenetram e que a escrita de desctigdes culturais € propria- mente experimental e ética. Seu foco na construcio de textos e na retérica serve para destacar a natureza artificial e construida dos relatos culturais. Esse foco mina modos de autoridade abertamente transparentes ¢ chama a atencio para as condicGes histéricas da etnografia, para o fato de que a etnografia esti sempre enredada na invengio, e nfo na tepresentacio das 1 Malinowski, 1961, p. 17. A fotografia dentro da tenda foi publicada, em 1983, por George Stocking, em History of Anthropology 1, p. 101. O volume contém outras cenas zeveladoras da escrita emogrifica, Introdugio: Verdades parciais 33 culturas (Wagner, 1975). Conforme ficara evidente nas préximas paginas, a gama de tépicos abordados nio é literdria, no sentido tradicional. A maior parte dos ensaios, embora enfoquem priticas textuais, vio além dos textos, adentrando contextos de poder, resisténcia, constrangimentos institucionais e inovacdes. A tradiclio etnografica é aquela de Herddoto e do Persa de Montes- quieu. Essa tradicao olha de forma obliqua para todos os arranjos coletivos, distantes ou prdximos. Ela transforma o estranho em familiar, 0 exético em cotidiano. A etnografia cultiva uma clareza engajada, como aquela instada por Virginia Woolf: Que nunca patemos de pensar — 0 que é esta “civilizagio” na qual nos en- contramos? O que sio estas ceriménias ¢ por que devemos participar delas? © gue sio estas profissdes ¢ por que devemos ganhar dinheizo com elas? Aonde, em resumo, isso est nos levando, esse cortejo dos filhos de homens educados? (Woolf, 1936, pp. 62-63). A etnografia situa-se ativamente entre poderosos sistemas de significa- dos. Coloca suas questdes nas fronteiras entre civilizacées, culturas, classes, racas € géneros. A etnografia decodifica e recodifica, revelando as bases da ordem coletiva e da diversidade, da inclusao e da exclusio. Ela descreve pro- cessos de inovacio de estruturacio e faz parte, ela mesma, desses processos. ‘A etnografia é um fendmeno interdisciplinar emergente. Sua autori- dade ¢ sua retérica espalharam-se por muitas 4reas em que a “cultura” é um objeto problematico recente de descri¢io e critica. Este livro, embora parta do trabalho de campo e de seus textos, abre-se para a pratica mais abran- gente de escrever sobre, contra e entre culturas. Este taio de agao de alcance indefinido inclui, para citar apenas algumas perspectivas em desenvolvimen- to, a etnografia histérica (Emmanuel Le Roy Ladurie, Natalie Davis, Carlo Ginzburg), a poética cultural (Stephen Greenblatt), a critica cultural (Hayden White, Edward Said, Fredric Jameson), a andlise do conhecimento implicito e das praticas cotidianas (Pierre Bourdieu, Michel de Certeau), a critica das estruturas hegeménicas de sentimento (Raymond Williams), o estudo de co- munidades cientificas (seguindo Thomas Kuhn), a semiética dos mundos exéticos € dos espacos fantasticos (T'zvetan ‘Todorov, Louis Martin) e todos 34 Acscrita da cultura: pottica¢ politica da emografia aqueles estudos que abordam sistemas de significados, tradices em conflito ou artefatos cultutais. Essa complexa érea interdisciplinar, cuja abordagem toma aqui, como ponto de partida, uma crise na antropologia, é diversa ¢ esté em transforma cao. Por isso, nao quero impor uma falsa unidade aos ensaios exploratérios que se seguem. Embora compartilhem uma simpatia getal por abordagens que combinam poética, politica ¢ hist6ria, eles divergem varias vezes entre si. Muitas contribuicdes combinam teoria literiria e etnografia. Algumas explo- ram os limites dessas abordagens, sublinhando os petigos do esteticismo ¢ os constrangimentos do poder institucional. Outras defendem ardorosamente formas experimentais de escrita. Mas, cada qual a seu modo, todas analisam priticas atuais e passadas a partir de um compromisso com possibilidades futuras, Veem a escrita etnogafica como inventiva, em estado de transfor- macio: “a Historia”, nas palavras de William Carlos Williams, “deveria ser pata nds como a mio esquerda de um violinista”. Hk ‘As abordagens “literétias” vém, nos tiltimos tempos, ganhando certa popularidade nas ciéncias humanas. Na antropologia, esctitores influentes como Clifford Geertz, Victor Turner, Mary Douglas, Claude Lévi-Strauss, Jean Duvignaud e Edmund Leach, para mencionar apenas alguns, demons- traram interesse pela teotia ¢ prética literdrias. Cada um a sua maneira, bor- raram a fronteira que separa arte e ciéncia. Mas essa atracio nfo é inédita. As identificagdes autorais de Malinowski (Conrad, Frazet) so bem conhecidas. Margaret Mead, Edward Sapir ¢ Ruth Benedict viam a si mesmos como ao mesmo tempo antropdlogos e artistas literarios. Em Paris, 0 surrealismo e a etnografia profissional trocavam zegularmente tanto ideias quanto pessoas. ‘Mas, até tecentemente, as influéncias literdrias foram mantidas 4 distancia do cemne “‘rigoroso” da disciplina. Sapir e Benedict tiveram, afinal, que escon- der sua poesia do olhar cientifico de Franz Boas. E, embora os etndgrafos tenhham sido muitas vezes chamados de romancistas mangué (ptincipalmente aqueles que esctevern um pouco bem demais), a nocio de que procedimen- tos literftios perpassam qualquer trabalho de representagio cultural € uma ideia nova na disciplina. Pata um nmimero cada vez maior, contudo, a “na- cureza literéria” da antropologia — ¢, particulatmente, da etnografia — parece Introducio: Verdades parciais 35 ser muito mais do que uma questo de esctever bem ou de ter um estilo particular? Os processos literarios — metiifora, figuragio, narrativa — afe- tam as formas como fendmenos culturais so registrados, desde as ptimeiras “observagdes” rabiscadas até a versio final do livro, até chegar 4 forma como essas configuragdes “fazem sentido” em atos de leitura especificos.* Jé ha muito se afirma que a antropologia cientifica é também uma “arte”, que as etnografias tém qualidades literdrias. Escutamos com frequén- cia que um autor escreve com estilo, que determinadas descrigdes sio vividas ow convincentes (mas qualquer descrigdo precisa nfo deveria ser convincen- te?), Uma obra é considerada evocativa ou artisticamente composta, além de ser factual; fungdes expressivas ou retéricas sfio concebidas como decotati- vas ou apenas como maneiras de apresentar uma anélise ou descricéo objeti- va de forma mais eficaz. Assim, os fatos podem ser mantidos separados, a0 menos em prinefpio, de seu meio de comunicacio. Mas as dimensées litera- sia ow ret6rica da etnografia nao podem mais ser compartimentalizadas tio facilmente. Elas atuam em todos os niveis da ciéncia cultural. Na verdade, a propria nogdo de uma abordagem ““literéria” de uma disciplina, a “antropo- logia”, é seriamente enganosa. Os ensaios aqui teunidos nfo representam uma tendéncia ou perspec- tiva dentro de uma “antropologia” coerente (pace Wolf, 1980). A defini¢io da disciplina no modelo dos “quatro campos” — da qual Boas foi, talvez, 0 iltimo virtuoso — inclufa a antropologia fisica (ou biolégica), a atqueologia, 2 antropologia cultural (ou social) ¢ a linguistica. Poucos argumentatiam, hoje, a sério que esses campos compartilham uma abordagem ou objeto uni- ficados, embora 0 sonho continue, gracas, em larga medida, a arranjos ins- titucionais. Os ensaios deste volume ocupam um novo espaco aberto pela desintegracio do “Homem?” como #e/as de toda uma disciplina, ¢ recorrem a desenvolvimentos recentes nos campos da critica textual, da historia cultural, da semidtica, da filosofia hermenéutica ¢ da psicandlise. HA alguns anos, em > Uma lista parcial de obras que exploram esse campo em expansio do “literitio” na antropo- logia inclui (sem mencionar os colaboradotes deste volume): Boon (1972, 197, 1982); Ge- extz (1973, 1983); ‘Turner (1974, 1975); Fernandez (1974); Diamond (1974); Duvignaud (1970, 1973); Favret-Saada (1980); Favret-Saada e Contreras (1981); Dumont (1978); Tedlock (1983); Jammin (1979, 1980, 1985); Webster (1982); Thornton (1983, 1984). > Para uma teoria tropologica de realidades “pré-figuradas”, vet a obta de Hayden White (1973, 1978); ver, também, Latour ¢ Woolgar (1979), para uma concep¢io da atividade cientifica como “inscricio”. 3: poéticae politica da etnografia um ensaio vigoroso, Rodney Needham passou em teyista as incoeréncias te- dricas, as raizes entrelacadas, as companhias impossiveis e as especializagdes divergentes que pareciam estar conduzindo a uma desintegracio intelectual da antropologia académica. Ele sugeriu, com uma imparcialidade ir6nica, que © campo poderia, em breve, ser redistribuido por diversas disciplinas vizi- nhas. A antropologia, em sua forma atual, iria passar por uma “metamorfose iridescente” (Needham, 1970, p. 46). Este conjunto de ensaios faz parte des- sa metamorfose. Mas, se sio pés-antropologicos, séo, também, pés-literirios. Michel Foucault (1973), Michel de Certeau (1983) e Tetry Eagleton (1983) argumen- taram recentemente que “literatura” é, em si mesma, uma categoria transi- téria. Desde o século XVII, sugerem eles, a ciéncia ocidental teria excluido certos modos expressivos do seu repertorio legitimo: a retdrica (em nome da significagao transparente e “evidente”), a fic¢io (em nome do fyto) e a subjetividade (em nome da objetividade). As qualidades eliminadas da ci- éncia foram alocadas na categoria de “literatura”. Os textos literarios eram considerados metaféricos ¢ alegdricos, compostos de invengGes ao invés de fatos observados; concediam ampla elasticidade as emogées, as especulaces ¢ a0 “génio” subjetivo de seus autores. De Certeau observa que as ficcGes da linguagem literaria cram cientificamente condenadas (e esteticamente apreciadas) por carecerem de “univocidade”, do relato supostamente sem ambiguidades da ciéncia natural e da historia profissional. Nesse esquema, 0 discurso da literatura e da ficco é inerentemente instavel; ele “joga com a es- tratificacio do sentido; narra uma coisa para dizer outta; esboca a si mesmo em uma linguagem da qual retira continuamente efeitos de significado que no podem ser circunscritos ou verificados” (De Certeau, 1983, p. 128). Esse discurso, reiteradamente banido da ciéncia, mas com sucesso irregular, é in- cutavelmente figurativo e polissémico. (Sempre que seus efeitos comecam a ser sentidos muito abertamente, um texto cientifico parecera “literario”; a impressio sera de que usa metéforas demais, de que se apoia no estilo, na evocacao etc.)* “Pode-se objetar que estilo figurativo nao é o unico estilo, ou mesmo 0 tinico estilo poético, e ‘que a ret6tica também esta presente naquilo que € chamado de estilo simples. Mas, na verda- de, esse € apenas um estilo menos decorado, ou melhor, um estilo decorado de maneira mais simples, ¢ ele tem também, como 0 litico 0 épico, suas proprias figuras especiais. Um estilo do qual a figura esteja estritamente ausente nfo existe”, afirma Gérard Genette (1982, p. 47). Introdugio: Verdades parciais, | 37 Por volta do século XIX, a literatura havia despontado como uma instituicao burguesa intimamente aliada da “cultura” e da “arte”. Raymond Williams (1966) mostra como essa sensibilidade especial e refinada funciona- +a como uma espécie de tribunal de recutsos, em reagao aos deslocamentos © A vulgatidade atribuidos & sociedade industrial de classes. A literatura ¢ 2 arte eram, de fato, zonas circunscritas, nas quais os valores “mais clevados” nio utilitatios eam preservados. Ao mesmo tempo, exam dominios para encenacio de transgress6es expetimentais € avant-garde. Sob essa luz, as Formacdes ideol6gicas da arte ¢ da cultura nao tém qualquer sfafus essencial ou eterno. Encontram-se em mudanga ¢ em contestagio, como a retérica especial da “literatura”. Os ensaios que se seguem nfo recorrem, na verdade, 2 uma pritica literétia demarcada como um dominio humanizados, estético ou criativo, Lutam, cada um a seu jeito, contra as definigbes prontas de arte, Ireratura, ciéncia ¢ historia. E, se as vezes sugetem que a etnografia ¢ uma “arte”, devolvem a palavra a um uso mais antigo — antes que fosse associada 2 uma sensibilidade mais elevada ou rebelde -, a0 significado que tinha no <éculo XVII, tal como recuperado por Williams: a arte como modelagem habilidosa de artefatos uteis. A construcio da etnografia é artesanal, ligada ao srabalho mundano da escrita. ‘A eserita etnografica é determinada a0 menos de seis maneitas: (1) contextualmente (cla ctia e se apoia em meios sociais significativos); (2) reto- ricamente (usa e é usada por convengGes expressivas); (3) institucionalmente escreve-se dentro, e contra, tradig6es, disciplinas e publicos especificos); (4) do ponto de vista do género (uma etnografia pode, geralmente, ser distingui- « da de um romance on de um relato de viagem); (5) politicamente (a autosi- dade para septesentar realidades culturais € distribuida de forma desigual e, por vezes, contestada); (6) historicamente (todas as convencoes € constran- gimentos acima esto em mudanca). Essas determinacdes regulam 0 registro de ficgdes etnograficas coerentes. Chamar etnografias de ficcdes pode suscitar contendas empiticistas. Mas a palavra, tal como vem sendo comumente utilizada na teoria textual recente, perdea sua conotacio de falsidade, de algo que apenas se opde 2 verdade. Sugere a parcialidade das verdades culturais e hist6ricas, as formas nas quais so sisteméticas e exclusivas. Os esctitos etnogrificos podem ser adequadamente chamados de ficgBes no sentido de “algo feito ou mode- lado”, 0 que é o sentido principal da raiz latina da palavea, fingere. Mas € 38 A cscrita da cultura: poética e politica da etnogralia importante preservar o sentido nio apenas de construcio, mas também de ctiagio, de invengao de coisas que nao sao de fato reais. (Fingere, em alguns de seus usos, implica certo grau de falsidade.) Os cientistas sociais inter- ptetativistas come¢aram, recentemente, a encarar as boas etnografias como “fiegdes verdadeizas”, mas, em geral, a0 pteco de enfraquecer o oximoro, reduzindo-o @ alegagiio banal de que todas as verdades so construidas. Os ensaios aqui reunidos preservam a perspicdcia do oximoro. Por exemplo, Vincent Crapanzano retrata os etndgrafos como malandros, prometendo, como Hermes, nio mentit, mas sem nunca se comprometer também a con- tar toda a verdade. Sua retérica fortalece ¢ subverte sua mensagem. Outros ensaios reforcam 0 ponto ¢ enfatizam que as ficgdes culturais se baseiam em exclusdes sistematicas e questiondveis. Essas exclusées podem envolver 0 silenciamento de vozes incongruentes (“O caso de Dois Corvos nega isso!”) ou 0 emprego recorrente de uma forma de citar, “falando em some de”, traduzindo a realidade dos outros. Circunstincias histdricas ou pessoais su- postamente irrelevantes também serio excluidas (nao se pode contar tudo). Além disso, 0 ctiador (mas por que somente um?) de textos etnograficos nao pode evitar figuras de linguagem, imagens ¢ alegorias que selecionam ¢ impdem sentido 4 medida que o traduzem. Nesta visio, mais nietzschiana do que tealista ou hermenéutica, todas as verdades construfdas sao tornadas possiveis pot meio de “mentiras” poderosas de exclusio e retérica. Mesmo os melhores textos etnograficos — ficcSes sétias, verdadeiras — so sistemas, ou economias, de verdade. O poder e a histéria atuam por seu intermédio, de formas sobre as quais os autores nfo tém pleno controle. As verdades etnograficas so, assim, inerentemente parviais— engajadas € incompletas. O ponto é hoje amplamente reiterado — e questionado em aspectos estratégicos por aqueles que temem o colapso de padrées claros de verificagio. Mas, uma vez aceito e incorporado @ arte etnografica, um senso tigoroso de parcialidade pode set uma fonte de juizo representacio- nal. Uma obra recente de Richatd Price, First-Time: The historical vision of an Afro-American people (1983), € um bom exemplo de parcialidade séria ¢ auto- consciente. Price reconta as condigées especificas de seu trabalho de campo entre os Saramaka, uma sociedade Maroon do Suriname. Somos informados a respeito dos limites externos ¢ autoimpostos da pesquisa, sobre informan- tes especificos e sobre a construcio do artefato escrito final. (O livro evita uma forma aplainada, monolégica, apresentando-se literalmente como uma montagem, cheia de buracos.) First-Time € uma evidéncia do fato de que Inerodugio: Verdades parciais, 39 uma autoconsciéncia politica e epistemol6gica aguda nio precisa levar a uma antoabsoroio etnogrifica, ou A conclusio de que é impossivel ter certeza de qualquer coisa sobre outros povos. Em vez disso, 0 livro nos conduz a uma percepgio concreta de por que um conto popular Saramaka, nartado por Price, ensina que “conhecimento é poder, e que nunca se deve revelar tudo o que se sabe” (Price, 1983, p. 14). Uma complexa técnica de revelagio ¢ de segredo regula a comunica- co (reinvengiio) do conhecimento dos “Primeiros Tempos”, um saber so- bre as lutas cruciais da sociedade pela sobrevivéncia no século XVIII. Com © emptego de técnicas de frustracio, digressio ¢ incompletude deliberadas, os anciZos transmitem seu conhecimento histérico aos parentes masculinos mais jovens, de preferéncia na hora do canto do galo, que antecede ama- shecer, Essas estratégias elipticas, de ocultacio e revelacio parcial, determi- nam as relagdes etnograficas tanto quanto a transmissao de hist6rias entre gerages. Price tem que aceitar 0 fato paradoxal de que [..] qualquer natrativa Saramaka (inclusive aquelas natradas durante 0 canto do galo, com a intengio explicita de comunicagio de conhecimento) deixara de fora muito daquilo que o natrador sabe sobre 0 acontecimento em ques- tio, O pressuposto é de que 0 conhecimento de uma pessoa deve aumentar Ientamente, ¢ s6 se conta a alguém, sobre qualquer aspecto da vida, um pou- quinho mais do que o falante supde que cle ja sabe (Price, op. cit, p. 10). Logo se toma evidente que nfo existe um corpus “completo” de conhe- cimento dos “Primeiros ‘Tempos”, que ninguém — ainda mais etnégtafo visitante — pode ter acesso a esse saber, a nfo ser por meio de uma sétie infinita de encontros citcunstanciais ¢ perpassados pelo poder. “Aceita-se que os diversos histotiadores Saramaka terio versdes diferentes, ¢ cabe a0 ouvinte compot para si mesmo a versio de um acontecimento que ele, na- quela ocasiio, aceita” (ibid., p. 28). Embora Price, o historiador e etndgrafo escrupuloso, armado com a escrita, tenha construido um texto que supera em extensio aquilo que os individuos sabem ou contam, esse texto, ainda assim, “representa apenas a ponta do iceberg que os Saramaka preservam cole- finamente sobre os Primeiros Tempos” (ibid., p. 25). ‘As questdes éticas levantadas pela formagio de um arquivo escrito de um saber secteto € oral sfio consideraveis, e Price lida com elas abertamente, 40 Acscrita da cultura: poéticae politica da etnografia Parte da solugio adotada foi minar a completude (mas niio a setiedade) de seu préprio relato por meio da publicacio de um livro que é uma série de fragmentos. O objetivo nio é indicar lacunas lamentaveis que permanecem em nosso conhecimento acerca da vida Saramaka no século XVIII, mas, em vez disso, apresentar um modo de conhecimento intrinsecamente imperfei- to, que gera lacunas a medida que as preenche. Embora 0 proprio Price nio esteja livte do desejo de esctever uma etnogtafia ou uma histéria completas, de retratar “todo um modo de vida” (ibid., p. 24), a mensagem da parcialida- de ecoa por todo 0 livto. Os etnégtafos sio mais ou menos como 0 cacador Cree que (de acor- do com a hist6ria) veio a Montreal para testemunhar em um julgamento relativo ao destino das terras onde cacava, no novo projeto hidrelétrico de James Bay. Ele deveria descrever seu modo de vida. Mas, quando foi fazer 0 juramento, hesitou: “Nao tenho certeza se posso dizer a vetdade... S6 posso dizer 0 que sei”. E importante lembrar que a testemunha falava de forma astuta, em um determinado contexto de poder. Desde 0 ensaio seminal de Michel Lei- ris, em 1950, “L’Bthnographe devant le colonialisme” (mas por que tio tar- diamente?), a antropologia vem tendo que lidar com a determinacio hist6- rica € 0 conflito politico em seu meio. Uma década veloz, de 1950 a 1960, vin 0 fim do impétio transformar-se em um projeto amplamente aceito, se nao um fato concreto. A “stixation colonialé’ de Georges Balandier tornou-se siibrtaiare bviarel (19S5)RAs aelagUCStimipetiais ommnis'e iifotmaielalaNo eram a regra aceita do jogo — a ser reformado gradativamente, ou ironica- mente ultrapassado, de diversas maneiras. Essa “situagao” foi sentida, em primeiro lugar, na Franca, em larga medida devido aos conflitos vietnamitas e argelinos e através dos esctitos de um grupo etnogtaficamente consciente de intelectuais e poetas negtos, o movimento négritude de Aimé Césaire, Lé- opold Senghor, René Ménil ¢ Léon Damas. As paginas de Présence Africaine, no inicio dos anos 1950, criaram um férum incomum pata a colaboragio entre esses esctitores € cientistas sociais, tais como Balandier, Leiris, Marcel Griaule, Edmond Ortigues e Paul Rivet. Em outtos paises, a crise de conscience elo tit ponco nals tates Pade-se jpensar'no influctite: ensaiorde Jacques Tnwodugio: Verdades parciais 41 Maquet, “Objectivity in Anthropology” (1964), em Reinventing Anthropology de Dell Hymes, nas obras de Stanley Diamond (1974), Bob Scholte (1971, 1972, 1978), Gérard Leclere (1972) ¢, em particular, na coletinea Anthropology and the colonial encounter de Talal Asad (1973), que estimulou um debate bastante esclarecedor (Firth et al., 1977). Nas imagens populares, o etndgrafo passou de um observador soli- diario ¢ dotado de autoridade (cuja melhor encarnagio, talvez, seja Margaret Mead) para a figura pouco lisonjeira retratada por Vine Deloria em Custer died fr your sins (1969). Na verdade, o retrato negativo acentuou-se, por vezes, 20 ponto da caricatura — 0 ambicioso cientista social que se apropria do conhe- cimento tribal sem oferecer coisa alguma em toca, divulga retratos toscos de povos refinados ou (mais recentemente) se deixa iludir por informantes sofisticados. Essas imagens sfo tao realistas quanto as vers6es heroicas an- reriores da observacio participante. O trabalho etnografico de fato enredou- se em um mundo de desigualdades de poder duradouras ¢ em estado de sransformacio, e essas implicacdes continuam. Esse trabalho coloca em cena relacdes de poder. Mas sua fungio nessas relacdes é complexa, por vezes ambivalente, e potencialmente contra-hegeménica. Em muitas partes do mundo surgem, hoje, regtas diferentes pata o jogo da etnografia. Um estranho que estude as culturas nativas ameticanas pode esperar, talvez como exigéncia para que possa continuar sua pesquisa, ser chamado a testemunhat em favor de conflitos em torno de reivindicagdes de terras. E muiltiplas restricdes formais so agora impostas ao trabalho de campo pelos governos nativos, em niveis nacional ¢ local. Essas restrigdes condicionam a partir de novas formas aquilo que pode, e, especialmente, que nao pode ser dito sobre povos especificos. Uma nova personagem entrou em cena: 0 “etndgrafo nativo” (Fahim (org), 1982; Ohnuki-Tierney, 1984). Nativos que estudam suas proprias culturas oferecem novos angulos de vi- s&o ¢ ptofundidade de entendimento. Seus relatos séo, ao mesmo tempo, empoderados ¢ restritos, de formas muito particulares, As diversas regras pos ¢ neocoloniais para a pratica etnogrifica no necessariamente geram re- latos culturais “melhores”. Os critérios para se avaliar um bom telato nunca foram definidos ¢ esto em transformacio. Mas o que surgiu a partir de todas essas mudancas ideolégicas, alteracdes nas regras ¢ novos compromissos é © fato de que uma sétie de pressdes histdricas comecou a reposicionar a antropologia em relacio a seus “objetos” de estudo. A antropologia jé nao fala com uma autotidade automatica em nome de outtos definidos como in-

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