KAFKA E A LITERATURA
“Sou apenas literatura e nao posso nem quero ser outra coisa.” Em
seu Diario, em suas cartas, em todas as épocas de sua vida, Kafka
se considerou um literato e se orgulhou de reivindicar esse titulo
que a maioria hoje despreza. Para varios de seus comentaristas,
admirar Kafka é primeiramente situa-lo fora de sua condigao de
escritor. Ele soube dar a obra um sentido religioso, diz Jean
Starobinski. E na categoria de santidade, e nao na de literatura, que
precisamos colocar sua vida e sua obra, diz Max Brod. Ele nao teve
apenas uma obra para criar, diz Pierre Klossowski, mas também
uma mensagem para passar. Porém Kafka: “Minha situagao me é
insuportavel, porque ela contradiz meu tinico desejo e minha tnica
vocagao, a literatura”; “Tudo o que nao é literatura me aborrece”’;
“Tudo o que nao diz respeito a literatura eu odeio”; “Minha chance
de poder usar de alguma maneira minhas faculdades e cada pos-
sibilidade se encontra inteiramente no dominio literario.”
Temos as vezes a impress4o de que Kafka nos oferece uma
chance de entrever o que é a literatura. Mas nao devemos comegar
por julgar indigna dele uma categoria que nao somente ele nao
despreza, mas também estimava ser a tinica capaz de salva-lo, se
ele pudesse alcanga-la. E estranho que um homem para quem nada
se justificava tenha encarado as palavras com certa confiang¢a, que
ele nao se tenha sentido ameacado pelo que em geral se tornou para
nos a pior ameaga (para nds e também, nao esquegamos, para
muitos escritores de seu tempo. Kafka escolheu como mestres
Goethe e Flaubert, mas vivia na época das manifestagdes ex-
pressionistas de vanguarda). O que ele questiona é a sua capacida-
de de escrever, nao a possibilidade de escrever ou o valor da arte.
Kafka procurou, com todas as suas forgas, ser escritor. Ficava
desesperado cada vez que pensava estar impedido de consegui-lo.20 MAURICE BLANCHOT
Quis se suicidar quando, encarregado da usina do seu pai, pensou
que durante quinze dias nao escreveria mais. A maior parte do seu
Diario gira em torno da luta cotidiana que precisava manter contra
as coisas, contra os outros e contra si mesmo, para chegar a esse
resultado: escrever algumas palavras em seu Didrio. Esta obsessio
é impressionante, mas sabemos que nao é€ tao rara assim. No caso
de Kafka, ela parece ainda mais natural se reconhecermos na
literatura o modo que ele escolheu para preencher seu destino
espiritual e religioso. Tendo empenhado toda a sua existéncia na
arte, ele a vé em perigo total quando essa atividade tem de cedé-lo
a uma outra: nesse momento, literalmente, ele nao vive mais.
Como pode a existéncia se empenhar totalmente no cuidado de
ordenar certo numero de palavras? E 0 que nao esta bem claro. Mas
admitamo-lo. Admitamos que para Kafka escrever nao seja uma
questio de estética, que ele tenha em vista, nao a criagao de uma
obra literariamente valida, e sim a sua salvagao, a realizagio dessa
mensagem que esta em sua vida. Os analistas separam claramente
as preocupa¢ées artisticas, consideradas secundarias, e as preocu-
pag6es interiores, as tnicas dignas de ser pesquisadas por si
mesmas. “A deliberagao estética”, dizem-nos eles, “nao intervém
aqui.” Que seja. Mas vejamos o que passa a ser entao a literatura.
Estranha atividade esta: se visa a uma finalidade mediocre (por
exemplo, a elaboragao de um livro bem-feito), ela exige um
espirito atento ao conjunto, aos detalhes, cioso da técnica, da
composi¢ao, consciente do poder das palavras, mas se ela visa a
algo mais elevado (por exemplo, o préprio sentido da nossa vida),
entao ela consideraria 0 espirito livre de todas essas condigées e se
realizaria por uma completa negligéncia do que constitui, no
entanto, sua propria natureza? Observemos que essa idéia da
literatura, entendida como uma atividade capaz de se exercer sem
considerar seus meios, nao é um simples sonho; ela tem um nome
conhecido: é a escrita automatica; mas justamente esta forma
permaneceu ignorada por Kafka.
Ele escreveu contos, romances. Em seu Didrio, descreve cenas
a que ele assistiu, pessoas que ele conheceu. Ele julga o seu
trabalho: “A descrigdo da R. nao me pareceu bem-sucedida.” Com
freqiiéncia descreve minuciosamente os objetos. Por qué? Seria
porque, como pretende Max Brod, estando a verdade em toda parteA PARTE DO FOGO 21
visivel, ele a encontra em toda a parte? Nao seria antes porque ele
se exercita, faz seu aprendizado? Sabemos que ele estudou muito
o estilo glacial de Kleist e que Goethe e Flaubert Ihe ensinaram a
reconhecer o valor de uma forma perfeitamente trabalhada. “O que
me falta”, escreve ele a Pollak, “é disciplina... Quero trabalhar com
zelo, trés meses a fio. Hoje sei principalmente isto: a arte precisa
do oficio, mais do que 0 oficio da arte. Naturalmente nao creio que
possamos nos obrigar a conceber filhos, mas creio, porém,
que possamos nos obrigar a educa-los.” Kafka exigiu da literatura
e obteve dela mais do que muitos outros. Porém teve antes de tudo
a honestidade de aceita-la sob todas as suas formas, com todas as
suas servidGes, tanto como oficio quanto como arte, tanto como
tarefa quanto como atividade privilegiada. No momento em que
escrevemos, pensa ele, nio podemos senao escrever bem.
Seria muito c6modo, para alguém que escreve com preocupa-
¢4o vital ou moral, ver-se livre de qualquer consideragao estética.
A literatura nado é€ uma habitag4o de muitos andares onde cada um
escolheria o seu lugar e quem quisesse morar no alto nunca mais
teria de usar a escada de servigo. O escritor nao pode lavar as maos.
No momento em que escreve, ele esta na literatura e esta nela
completamente: é preciso que seja um bom artesao, mas também
esteta, pesquisador de palavras, pesquisador de imagens. Ele esta
comprometido. E a sua fatalidade. Mesmo os casos célebres de
holocausto literario nado mudam em nada esta situag4o. Dedicar-se
a literatura com o unico designio de sacrifica-la? Mas isso suporia
que o que sacrificamos existe. Portanto, devemos primeiro crer na
literatura, crer em nossa vocagao literaria, fazé-la existir — e
conseqiientemente ser literato e sé-lo até o fim. Abraado quis
sacrificar o seu filho, mas e se ele nao tivesse a certeza de ter um
filho, se o que pensasse ser seu filho fosse apenas um carneiro?
Além disso, 0 siléncio nao basta para fazer de qualquer escritor
mais do que um escritor, e quem quiser deixar a arte para se tornar
Rimbaud permanece, mesmo no siléncio, um incapaz. Portanto,
nao podemos nem dizer que Kafka tenha rejeitado sua obra porque
a julgasse moralmente ma ou infiel 4 mensagem que ele tinha a
passar, ou inferior ao siléncio. Talvez quisesse destrui-la simples-
mente porque a considerasse literariamente imperfeita. Como
distinguir o mensageiro que diz: “Nao se importem com minha22 MAURICE BLANCHOT
mensagem” do artista que declara: “Minha obra € um fracasso, que
ela seja destruida”? Em certo sentido, somente o artista tem o
direito de tomar tal decisaéo. O mensageiro nao é senhor de suas
palavras; mesmo mis, elas Ihe escapam, pois € precisamente nisto
que talvez esteja o sentido delas: em serem mas; tudo o que
podemos lembrar é que 4 mensagem deve ser incorporado 0 desejo
de destrui-la; o desejo secreto da palavra é o de se perder, mas esse
desejo é inutil e a palavra nunca se perde.
Oestranho nao é apenas que tantos escritores pensem empe-
nhar toda a sua existéncia no ato de escrever, mas também que,
engajando-se em tal tarefa, concebam, mesmo assim, obras-pri-
mas apenas do ponto de vista estético, ponto de vista este que
justamente eles condenam. Mais ainda, esses que querem dar a sua
atividade um sentido fundamental, o de uma pesquisa que implica
0 conjunto de nossa condi¢gao, s6 conseguem levar essa atividade
a bom termo reduzindo-a ao sentido superficial que eles excluem,
a criagéo de uma obra bem-feita, e essa criagao os obriga, pelo
menos momentaneamente, a se separar da existéncia, a se libertar
dela, a se desinteressar dela. Existe nisso um conflito que conhe-
cemos muito bem. “Escreva com o sangue”, diz Zaratustra, “e
aprenderas que o sangue é espirito.” Porém seria mais propriamen-
teocontrario: escrevemos com o espirito e cremos estar sangrando.
O proprio Kafka afirma: “Nao cederei 4 fadiga, mergulharei
totalmente na minha novela, ainda que para isso tenha que me
cortar 0 rosto.” Certamente a imagem é dramatica: o escritor sai do
seu trabalho, 0 rosto lanhado de cortes, porém é apenas uma
imagem. O Caligula de Camus manda cortar a cabega de quem nao
compartilha suas emogées artisticas. Nao existe Caligula para 0
escritor. Sua situagdo lamentavel (e para alguns desonrosa) vem
em parte do seu sucesso: ele pretende se arriscar em sua obra, mas
0 risco que ele corre talvez nao seja risco algum; longe de su-
cumbir, ele sai dali com uma admiravel obra que multiplica sua
existéncia. Daj 0 alibi de tantas palavras que sangram, pois nao ha
sangue. Dai também a frase desdenhosa sobre a mao que escreve.
Podemos imaginar Racine escrevendo sob a pressao de uma
“verdade” a ser encontrada. Podemos ainda imagina-lo levado por
essa busca a uma espécie de ascese, A repulsa a versos harmonio-
sos, a recusa da perfeigao, em suma, nao ao siléncio de apés Fedra,A PARTE DO FOGO 23
mas a alguma Fedra de Pradon. Eis o problema. Vimos escritores
renunciarem a escrever pela repulsa a escrever ou ainda pela
necessidade de superar a literatura sacrificando-a. Vimos outros
prontos para destruir obras-primas porque essas obras-primas lhes
pareciam uma trai¢ao. Mas nao vimos ninguém se perder como
bom escritor por dedicagao a sua vida interior, continuara escrever
porque escrever fosse necessério, mas escrever de mal a pior.
Nenhum Rimbaud jamais se tornou um Sully Prudhomme. Como
é estranho! Mesmo Hélderlin, em sua loucura, continua sendo um
grande poeta. E Kafka péde condenar sua obra, mas nunca se
condenou a nulidade de uma linguagem mediocre, 4 morte pela
banalidade e pela tolice (somente Flaubert evoca, as vezes, esse
suicidio).
Por que um homem como Kafka se sente perdido, se nao se
tornar um escritor? E sua “vocagao”, a forma propria da sua
missao? Mas de onde Ihe vem essa quase-certeza de que talvez ele
traia o seu destino, mas que sua maneira pessoal de trai-lo é
escrever? Que ele atribui a literatura um sentido extremamente
grave, isto os intimeros textos o demonstram. Quando ele anota:
“Imensidade do mundo que tenho em minha cabega... Antes
explodir mil vezes do que recalca-lo ou sepulta-lo em mim; pois é
para isso que estou aqui, sobre isso nao tenho a menor divida”, ele
expressa ainda de uma maneira comum a urgéncia de uma cria¢ao
que se lan¢a cegamente para fora. Quase sempre € a sua propria
existéncia que ele sente estar em jogo na literatura. Escrever o faz
existir. “[...] Encontrei um sentido, e minha vida, monotona, vazia,
extraviada, uma vida de celibatario, tem sua justificativa... Eo
unico caminho que pode me levar a um progresso.” Em outro
trecho: “Intrépido, nu, poderoso, surpreendente como sou habitu-
almente apenas quando escrevo.” Esse texto tende a reduzir a
atividade literaria a uma atividade de compensagao. Kafka nao
tinha muita aptidao para viver, s6 vivia quando escrevia. Todavia,
mesmo dentro dessa perspectiva, 0 essencial fica por ser explicado,
pois o que gostariamos de compreender € por que escrever — e nao
uma obra importante, mas palavras insignificantes (“O género
particular da inspiragdo em que estou... é que estou inteiramente,
e nao somente em vista de um trabalho determinado. Quando24 MAURICE BLANCHOT
escrevo, sem escolher, uma frase como esta: ‘Ele olhava pela
janela’, esta frase ja é perfeita”), — porque escrever “ele olhava pela
janela” ja é ser mais do que ele mesmo.
Kafka nos daaentender que ele é capaz de liberar em si proprio
as forgas latentes, ou ainda que, no momento em que se sente preso
e cercado, pode descobrir por esse caminho as possibilidades
proximas que ele ignora. Na solidao, ele se dissolve. Esta dissolu-
¢4o torna sua solidéo muito perigosa; porém, ao mesmo tempo,
dessa confusao algo importante pode surgir, com a condi¢ao de que
a linguagem o recolha. O drama é que em tal momento lhe seja
quase impossivel falar. Em tempos normais, Kafka sente as maio-
res dificuldades para se expressar por causa do contetido nebuloso
de sua consciéncia, mas nesse momento as dificuldades ultrapas-
sam tudo o que é possivel. “Minhas forgas nao bastam para a menor
frase”; “Quando escrevo, nenhuma palavra convém a outra..
Minhas davidas cercam cada palavra antes mesmo que euas ae
ceba, que eu diga: esta palavra eu a invento! Neste estagio, o que
importa nao é a qualidade das palavras, e sim a possibilidade de
falar: é ela que esta em jogo, é ela que experimentamos”; “Fiquei
a minha escuta de tempos em tempos, ouvindo, por momentos,
dentro de mim mesmo, como um miado de um gatinho, mas, enfim,
pelo menos ja é isso.”
Parece que a literatura consiste em tentar falar no instante em
que falar se torna o mais dificil, orientando-se para os momentos
em que a confusao exclui qualquer linguagem e conseqiientemente
torna necessario o recurso de uma linguagem mais precisa, mais
consciente, mais distanciada do vago e da confuso, a linguagem
literaria. Nesse caso, o escritor pode crer que ele cria “sua possi-
bilidade espiritual de viver”; ele sente sua criagdo ligada palavra
por palavra a sua vida, ele se auto-recria e se reconstitui. E entao
que a literatura se torna um “assalto nas fronteiras”, uma cagada
que, pelas forgas opostas da solidao e da linguagem, nos leva ao
extremo limite desse mundo, “aos limites do que é geralmente
humano”. Poderiamos mesmo sonhar em vé-la desenvolvendo-se
em uma nova Cabala, uma nova doutrina secreta que, vinda dos
séculos antigos, se criaria de novo hoje e comegaria a existira partir
e além de si mesma.A PARTE DO FOGO 25
Tarefa que certamente nao pode se consumar; mas ja é surpre-
endente que seja considerada possivel. Nos ja 0 dissemos: no meio
da impossibilidade geral, aconfianga de Kafka na literatura perma-
nece excepcional. Raramente ele pensa na insuficiéncia da arte. Se
escreve: “A arte voa em torno da verdade, mas com a intengdo
decidida de nao se deixar queimar por ela. Sua capacidade consiste
em encontrar no vacuo um lugar em que o raio de luz possa ser
captado com toda a forga, sem que a luz tenha sido anteriormente
assinalavel”, ele proprio fornece a resposta a esta outra reflexao,
mais sombria: “Nossa arte é a de nos ofuscarmos com a verdade:
aluzsobre o rosto que recuaem esgares, so isto € verdadeiro, e nada
mais.” E até mesmo esta definigao nao é sem esperanga: Ja basta
perder a visao, mais ainda, ver como cego; se nossa arte nao é a luz,
ela é obscuramente a possibilidade de alcangar o brilho pela obscu-
ridade.
Segundo Max Brod, cujos comentarios tendem piedosamente
a aproximar de si o amigo que perdeu, a arte seria um reflexo do
conhecimento religioso. Temos as vezes a impressao, bem diferen-
te, de que para Kafkaa arte vai além doconhecimento. O autoconhe-
cimento (no sentido religioso) é um dos modos da nossa condena-
¢4o: sé nos elevamos gragas a ela, mas também somente ela nos
impede de nos elevarmos; antes de ser obtida, ela é 0 caminho
necessario; depois disso, é o obstaculo intransponivel. Esta antiga
idéia, vinda da Cabala, em que nossa perda aparece como nossa
salvagao e vice-versa, talvez nos faga compreender por que a arte
pode vencer onde o conhecimento fracassa: é que ela é e nao é
bastante verdadeira para se tornar 0 caminho, e muito irreal para se
tornar obstaculo. A arte é um como se. Tudo se passa como se
estivéssemos em presenga da verdade, mas essa presen¢ga nao
chega a ser de fato e por isso nao nos proibe o avangar. A arte se
afirma como conhecimento quando o conhecimento é degrau
levando 4 vida eterna, e se afirma nao-conhecimento quando o
conhecimento é obstaculo erguido diante desta vida. Ela muda de
sentido e de sinal. Destréi-se e subsiste. Esta é a sua impostura, mas
também sua dignidade maior, aquela que justifica a frase: “Escre-
ver, forma da oragao.”
As vezes Kafka, surpreso como muitos outros, pelo carater
misterioso dessa transformagao, parece prestes a reconhecer nela26 MAURICE BLANCHOT
a prova de um poder anormal. Na ordem da atividade literaria, ele
diz ter experimentado (as vezes) estados de iluminagao, “estados
nos quais eu habitava inteiramente cada idéia, mas também reali-
zava cada uma delas”, grande estados dilacerantes em que tinha a
impressao de ultrapassar seus limites e alcangar os limites univer-
sais; alias, ele acrescenta: “Nao foi nesses estados que escrevi 0
melhor dos meus trabalhos.” Portanto, a iluminagao seria ligada ao
exercicio dessa atividade especial da linguagem, sem que possa-
mos saber se esta a supde ou provoca (0 estado de dissolugao,
associado a solidao, do qual falamos acima, é também ambiguo:
existe dissolugao pela impossibilidade de falar e, no entanto, em
vista da palavra; o mutismo e€ o vazio parecem estar ali apenas para
ser preenchidos). De toda maneira, o extraordinario se situa no
nivel da linguagem, seja porque esta, pelo poder “magico” da
palavra exata, “que nao cria mas evoca”, faz surgir da profundeza
a magnificéncia da vida, seja porque ela se volta contra aquele que
escreve, como um dardo nas m4os dos “espiritos”. A idéia de
espirito e de magia nao explica nada por si s6; é uma adverténcia
para dizer: ha nisso algo misterioso, é preciso tomar cuidado.
O mistério é 0 seguinte: estou infeliz, sento-me 4 minha mesa
e escrevo: “Sou infeliz.”” Como é possivel? Vemos por que essa
possibilidade é estranha e até certo ponto escandalosa. Meu estado
infeliz significa esgotamento de minhas forgas, a expressao de
minha infelicidade, acréscimo de forgas. Do lado da dor, existe a
impossibilidade de tudo, de viver, ser, pensar; do lado da escrita,
possibilidade de tudo, de palavras harmoniosas, desenvolvimentos
exatos, imagens felizes. Além disso, expressando minha dor,
afirmo 0 que é nega¢ao e, contudo, afirmando-a, nao a transformo.
Fago a maior boa sorte carregar a mais completa desgraga, e a
desgraga nao é atenuada. Mais tenho a sorte, isto é, mais tenho dons
para tornar sensivel minha infelicidade por desenvolvimentos,
adornos, imagens, mais essa ma sorte que essa infelicidade signi-
fica érespeitada. E como sea possibilidade representada por minha
escrita tivesse como esséncia carregar sua propria impossibilidade
—aimpossibilidade de escrever o que é minha dor —, nao apenas de
coloca-la entre parénteses ou de recebé-la em si sem destrui-lanem
ser por ela destruida, mas também de ser realmente possivel,
somente dentro e em razao de sua impossibilidade. Sea linguagem,