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ETNOCENTRISMO AS AVESSAS: O CONCEITO DE “SOCIEDADE COMPLEXA” Mariza G.S. Peirano Desde que a Antropologia foi reco- nhecida como disciplina académica no fi- nal do século pasado, uma tendéncia mar- cante foi sempre a de associéla ao estudo de sociedades ora chamadas de “primiti- vas”, de “tribais”, ou “simples”. Durante muitas décadas, as sociedades modernas contemporineas foram consideradas dreas de preocupacia de outros ramos das Cién- cias Sociais, isto ¢, da Sociologia, Ciéncia Politica ou Histéria. A divisto de trabalho entre as diversas Ciéncias Sociais se realiza- va, portanto, a partir da definicfo de um objeto de estudo concreto, na qual se con- siderava que as sociedades “simples” deve- riam_ ser 0 objeto privilegiado da Antro- pologia. Em 1951, EvansPritchard definia © campo da Antropologia Social segundo esta perspectiva: a Antropologia Social se- ria 0 ramo dos estudos sociolégicos que se devota primordialmente as sociedades pri- mitivas' Pode-se afirmar que somente nos anos sessenta se iniciou 0 processo de in- clustio das “sociedades complexas” como objeto legitimo da Antropologia, proceso este que teve como pano de fundo um sen- timento de crise que tomou conta dos an- tropélogos da época. Anteriormente, nas décadas de 40 e 50, alguns estudos haviam abordado temas semelhantes aos que hoje se chamam de “antropologia das socieda- des complexas” sob a designagao de “es- tudos de comunidade”, mas o termo “so- ciedade complexa” nfo era utilizado, Este trabalho pretende explorar 0 significado ¢ as conotagdes implicitas em tal conceito, a partir do contexto em que foi gerado. Desta foma, pretende-se chamar a atengdo para 0 fato de que conceitos an- tropoldgicos ou sociolégicos so, também, fendmenos sociais e culturais especificos, além de puramente “cientificos”. O tf tulo sugere uma reflexdo sobre uma preo- ‘cupagdo constante da Antropologia — a de se livrar de uma postura etnocéntrica — e adverte para o fato de que a utilizagao de conceitos modemos e progressistas ainda pode estar imbuida de conotacdes que to- mam, em iltima instincia, a “civilizaggo ocidental” como ponto de referencia. Nes- te caso especifico, 0 etnocentrismo se con- EEE, Evans-Pritchard, Social Anthropology, Londres, Cohen and West, 1951. dados ~ Revista de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 26, n? 1, 1983, pp. 97 a 115. figuraria “as avessas”, jd que se desenvolve via “sociedades simples”, com o resultado potencialmente desastroso de transformar a multiplicidade das sociedades hist6ricas do mundo ocidental em uma tinica categoria — “‘sociedades complexas”. Estes pontos ficarfo esclarecidos no decorrer do tra- balho. A CRISE MODERNA DA ANTROPOLO- GIA Na década de 60, os antropélogos viramse frente a frente com um pro- blema que julgaram de maior importin- cia: acreditavase que as sociedades tribais, ou “simples”, tendiam a um crescente ¢ répido desaparecimento, Na verdade, desde a época das grandes expedigdes germéni cas do século XIX as Américas, as quais vi- nham com 0 propésito de coletar 0 maxi- mo de material etnogrdfico possivel para set exposto nos museus europeus, que os etndlogos periodicamente se preocupavam com o fim das sociedades tribais. Esta preocupagdo foi bastante sentida também no perfodo éureo da “‘Antropologia boasia- na”, as décadas de 20 e 30, quando Franz Boas consolidou institucionalmente a An- tropologia nos Estados Unidos. A novidade que a década de 60 trouxe foi o senti- mento de que, com o desaparecimento do objeto concreto da Antropologia, a propria disciplina também desapareceria. Esta possibilidade foi constatada em 1961 por Lévi-Strauss, que batizou a preo- cupagdo da época como “a crise moderna da Antropologia”. Dizia ele: Claude LévisStrauss, “A Crise Moderna da 1. Le 2, 1962, p. 21 id, p. 23. na medida em que nossa ciéncia se liga fundamentalmente 20 estudo das po- pulagées ‘primitivs’, podemos nos per- funtar se, no momento em que a opini- 4o publica ihe reconhece o valor, a Antro- pologia nfo corre 0 petigo de tornar-se uma ciéncia sem objeto." Lévi-Strauss fundamentava seu pessi- mismo em dados numéricos: ele citava 0 caso dos indigenas australianos que, de 250.000, tinham sido reduzidos a 40.000 na época, ¢ ilustrava seu ponto de vista também com o exemplo brasileiro: aqui, 100 tribos tinham se extinguido entre 1900 e 1950. Em contraste, outras populacdes “simples” cresciam: na América Central, no sudeste da Asia e na Africa. Mas nestes casos, outro problema surgia, pois na me- dida em que se tornavam politicamente in- dependentes, estas sociedades frequente- mente impediam o estudo antropol6gico de suas populagdes: “As universidades dos Estados jovens que recentemente chegaram 4 independéncia recebem muito bem os economistas, os psiedlogos, os socidlogos; nio se pode di- zer que 0s antropélogos sejam tratados de ‘maneira igual.” Por detrés da rejeigdo dos novos Es- tados nacionais a Antropologia vislumbra- va-se_um forte sentimento anticolonia- lista. Lévi-Strauss assim mostrava sua per- plexidade: “Tudo se passa, pois, como se a Antropo- logia estivesse a ponto de sucumbir a uma conspiragdo, tramada quer por povos que se recusam a cla fisicamente, por desa- parecerem da face da Terra, quet por ou- Antropologia™, Revista de Antropologia, vol. 10, 98 tros, bem vivos ¢ em piena expansfo de- ‘mogrifica, que Ihe opdem uma recusa de ‘ordem psicolégica e moral."* Estas preocupag®es nfo ficaram res- tritas aos antropélogos franceses. Um ar- tigo de Jack Goody, publicado em 1966, fazia observacdes semelhantes. Inicialmente Goody explicitava a definigdo cléssica da abordagem antropoldgica como o estudo de sociedades primitivas através de pesqui- sa de campo, com o propésito de produzir explicagoes “totalizadoras”, para em segui- da notar, como Lévi-Strauss anteriormente: “Se 0 antropélogo social estuda socieds des primitivas contemporineas (e estas so as tinicas que ele pode estudar por ob- servacio participante, e apreendendo-as como totalidade), entéo seu objeto de estudo esté definhando a olhos vistos.”* Como evidencia desta possibilidade, Jack Goody no se preocupava com dados numéricos mas, 0 invés, apontava para mudangas na propria organizagdo social ¢ costumes destes povos: "Atualmente os Nuer clegem membros do Parlamento, os Navaho possuem seus pré: prios pogos de petréleo, os Tallensi, es- colas primdrias ~ e, em qualquer lugar, nos deparamos com a bicicleta, o caminhio, 0 teto de zinco eo trabalho assalariado. Quais as consequéncias para o antro- logo? Dizia Goody: ‘Se [0 antropélogo} parte de uma abor- dagem totalizadora, tentando desvendar Ibid, Idem, ‘uma cultura’, uma sociedade, entio s6 nos resta ver as comunidades (. . .) hoje como parte de uma rede ruralurbana, que in- lui um governo nacional, uma forca poli- cial, um complexo industrial ¢ um sistema ceducacional.”” Em suma, a Antropologia Social, na medida em que definia seu objeto de es- tudo como as sociedades “simples” ou “primitivas”, havia falhado em se ajustar a uma situagdo onde estas sociedades dei- xaram de ser primitivas e, principalmente, isoladas. “Primitivas” ou “simples”, as pe- quenas comunidades passaram a fazer parte de redes sociais muito mais amplas, e estas ligagdes, tanto quanto 0 novo contexto em que elas se inseriam, precisavam ser explicadas. APROCURA DE SOLUCOES Retrospectivamente podemos consta- tar duas tendéncias desenvolvidas para so- lucionar 0 problema da “rise”, ambas da- tando dos anos 60 ¢ 70. A primeira delas consistiu em enfatizar 0 cardter metodo- logico sui generis da Antropologia, desta forma diminuindo a importéncia dada a especificidade de um determinado objeto de estudo; a segunda consistiu em avocar uma ampliago dos horizontes empiricos da Antropologia, anexando-se novos “ti- pos” de sociedade como objeto de estudo. Embora as duas solug6es tenham surgido paralelamente, na medida da interdepen- déncia entre método/teoria e objeto em- Pitico, a distingo nos ajuda a esclarecer Jack Goody, “The Prospects for Social Anthropology”, New Sceiety, 13 de outubro de 1966, 574. Ibid, Idem, bid, Idem, alguns pontos de relevncia para 0 assunto. primeiro tipo de soluego, que aqui estamos caracterizando como “metodol6- ica” por ser de menor importancia para 0 que se refere a0 conceito de “sociedade complexa”, nfo seré objeto de maior ela- boracdo. Basta salientar que a proposiga0 de uma solugo metodolégica tomou im- pulso com os trabalhos de Lévi-Strauss, na Franga, através do método conhecido como “estruturalismo”; nos Estados Uni- dos ela foi elaborada dentro do paradigma que se convencionou chamar de “etnoci- éncia”; na Inglaterra, para citar mais um exemplo, a mesma problemética parece ter inspirado Leach, quando este propos como tarefa inadidvel “repensar a Antro- pologia” e sugeriu um modelo topoldgi- co*. Dado que a énfase recafa na defini- 40 do método, 0 objeto empirico se tor- nava de menor importincia e assim, em dl- tima instincia, a Antropologia poderia re- cuperar sua definicgo mais elementar, a da comparacdo de tipos diferentes de so- ciedade. Desta forma, Lévi-Strauss péde concluir o seu artigo sobre “A Crise Mo- derna da Antropologia” com uma nota oti- mista: ‘Enquanto as maneiras de ser ou de agit de certos homens forem problemas para outros homens, haverd lugar para uma re- flexfo sobre essas diferengas que, de for- rma sempre renovada, continuard a ser © dominio da Antropologia."” segundo tipo de soluggo fez surgir no cendrio da Antropologia os estudos au- todenominados de “antropologia das socie- 0 dades complexas”, 0s quais. mostravam uma extrema variedade de temas: estu- dos microssociolégicos em sociedades mo- demas; temas tradicionais da Antropolo- gia, como parentesco, em contextos ur- banos; tépicos de Antropologia Rural; estudos das chamadas “grandes civiliza- goes”!. Consideravase, portanto, “socie- dade complexa” qualquer sociedade “nao- tribal”, ow “ndo-simples”, 0 proprio con- ceito de “sociedade complexa” assumin- do um cardter de categoria residual. Este ponto é importante porque, tor- nando-se 0 conceito implicitamente resi- dual, acreditava-se que a Antropologia po- deria estar avangando no terreno dos te- mas sociolégicos, ¢ uma questo surgiu a respeito da distingdo entre Antropologia e Sociologia. Em tltima instincia, de novo surgia a antiga pergunta: no estaré a An- tropologia destinada ao desaparecimento? Este problema ficou marcado nés anais da conferéncia organizada em 1963 pela Association of Social Anthropologists (ASA). Através da publicaggo de quatro volumes, a preocupagtio metodolégica e a incorporaedo das sociedades complexas co- ‘mo dominio da Antropologia ficaram mar- cadas. Os temas das colegdes de artigos fo- ram aglomerados da seguinte forma: 1) are- levincia dos modelos para a Antropologia Social; 2) a Antropologia das sociedades complexas; 3) as abordagens antropolé- gicas 20 estudo da religifo; 4) os sistemas politicos e a distribuicgo do poder, temas discutidos por antropélogos britdnicos ¢ a- mericanos jé que, pela primeira vez, a ASA Edmund Leach, Rethinking Anthropology, Londres, Athlone Press, 1962, Lévi-Strauss, “A Crise Moderna. ..", 0p. ci. Para excelente bibliografia, ver $.N. Eisenstadt, “The Social Anthropology of Complex Socie- 26. ties”, Cahiers Internationaux de Sociologie, vol. LX, 1976. 100 reunia as duas nacionalidades"'. A relaggo entre Antropologia ¢ Sociologia ficou indi- cada na introdugdo aos quatro volumes, es- crita conjuntamente por Max Gluckman (Manchester) e Fred Eggan (Chicago), quando os dois autores comentam que os ensaios “refletem, na pesquisa ¢ na andlise, a ten- déncia de a Antropologia Social ¢ a So- ciologia serem ensinadas em um 56 depar- tamento, ou em departamentos afins’ Eles também notam que os estudos publicados tratam de problemas que os an- tropélogos sociais compartilham tanto com socidlogos quanto com cientistas poli- ticos ¢, temerosamente, passam a suspei- tar que é “possivel que, considerando-e 0 titulo Antropolologia Social, o social termine por dominar a Antropologia”"*. © volume sobre sociedades comple- xas era composto de artigos versando sobre os seguintes temas: padres de amizade no Tirol, atitudes sobre doencas mentais na Irlanda, eleigdes em pequenas comunida- des na India, padrdes de desenvolvimento econdmico e crescimento das comunidades urbanas na Africa. Um trabalho de Ronald Frankenberg, encerrando 0 volume, consi- derava a contribuigdo dos estudos de comu- nidade na Inglaterra, Implicita e explicita- mente, a Antropologia das Sociedades Complexas se definia como uma microsso- ciologia cuja variedade de temas parecia obedecer apenas a um requisito — de novo, a exclusdo das sociedades tribais, ou “sim- ples”, Frankenberg, por exemplo, procura ‘mostrar como uma microssociologia pode- ria se tornar relevante para uma macrosso- ciologia. Este quadro pouco preciso que acom- panhou a incorporagfo das “‘sociedades complexas” toma-se ainda mais nebuloso quando se junta a ele outras tendéncias da Spoca. Uma delas parece ter sido a com- partimentalizaggo da Antropologia em vé- rias especialidades: Antropologia Econmi- ca, Antropologia Politica, Antropologia da Religito etc., cujo objetivo maior parecia ser o de deixar claro que, apesar da relagfo com outras Ciéncias Sociais, a Antropolo- wa ainda oferecia uma contribuiedo singu- lar. Outra tendéncia que tomou conta dos antropélogos, esta jd na década de 70, foi a preocupagfo de se definir claramente © métier do antropélogo. Nesta década fo- ram abundantes os estudos que definiam a Antropologia como “pér-se em perspecti- va" (Dumont), como “‘tradugdo miitua” (Crick), como “descri¢do” (Silverstein), ou como “interpretacgo” (Geertz). Estas rede- finig6es podem ser vistas, de um lado, co- ‘mo uma tentativa de se recriar um paradig- ma que substitutsse 0s quadros tedricos do funcional-struturalismo dos anos 40 e SO €, de outro, como aparente resposta a im- portincia crescente do estruturalismo levi- straussiano. Em alguns casos, a inspirago s quatro volumes foram editados por Michael Banton ¢ publicados como as ASA Monographs, Tavistock Publications, 1966, sob os t/tulos: vol. 1: The Relevance of Models for Social An- ‘thropology; vol. 2: Political Systems and the Distribution of Power; vol. 3: Anthropological Approaches t0 the Study of Religion; vol. res, Tavistock Publications, 1966, p. xix. Mid, p. xxvii : The Social Anthropology of Cc Max Gluckman & Fred Egan, “Introduction”, Michael Banton, ed., ASA Monographs, Lon- plex Societies, 101 era procurada em um retomo as origens da Antropologia, como Jack Goody que, pro- pondo que se considerasse tanto a Antro- pologia Social como a Sociologia como di ferentes ramos, ou subdivisoes, da “so- ciologia comparada”, de certa forma ten- tava resgatar a tradiefo francesa do inf- cio do século. Goody previu que 0 estudo das sociedades “simples”, até entdo o ob jeto, privilegiado da Antropologia, tenderia a se tomar uma espécie de “arqueologia so- cial”, passivel de ser realizado apenas atra- vés de relatos de viagem ou de notas de campo inéditas de antropélogos de gera- Ges passadas, a0 mesmo tempo em que de- nunciou como um caso de xenofobia a se- paracdo entre Sociologia e Antropologia. Para Goody, tal distingo implicava a acei- tagZo técita de uma dicotomia, em que “a Sociologia ¢ 0 estudo das sociedades complexas, a Antropologia Social, das so- ciedades simples; a Sociologia, 0 estudo da Euro-América (. . .), a Antropologia, dos ndo-europeus; a Sociologia, 0 estudo dos brancos, a Antropologia, dos mesticos”™, AS IMPLICACOES DICOTOMICAS As dicotomias freqiientemente apre- sentam um aspecto paradoxal, e o par “so- ciedade simples” /“sociedade _complexa” no escapa a este fendmeno: de um lado, quando vista como pélos opostos de um continuum, a dicotomia sugere uma pers- pectiva evolucionista; de outro lado, quan- do aplicada indistintamente a contextos diferentes, ela se mostra a-historica, Veja- ‘mos como estes dois aspectos se apresen- tam aqui. 14 Goody, “The Prospects. ..", 0p. cit., p. $76. Eisenstadt, “The Social Anthropology. . A sugestifo evolucionista implicita no par sociedade simples x sociedade comple- xa tem raizes na teoria da modernizacio, desenvolvida a partir dos anos 50. Esta teoria indicava que, na medida em que as sociedades se modernizassem, surgiria um fendmeno universal unico corporifica- do numa convergéncia das sociedades in- dustriais. De forma condensada, o modelo funcionava segundo os seguintes pressu- postos: as condigGes que permitiriam 0 desenvolvimento de uma sociedade mo- dema se baseariam, de um lado, no aumen- to continuo dos indices sociodemogré- ficos e, de outro, na destruicdo de todos os clementos tradicionais. Segundo esta con- cepgao, quanto mais uma sociedade apre- sentasse caracteristicas de especializacio estrutural, mais ela estaria direcionada no sentido da modemizagio. Ao mesmo tem- po, quanto mais os elementos tradicionais desaparecessem, mais a sociedade se tor- naria apta a se desenvolver de maneira continua — a elaborar uma estrutura insti- tucional sempre em processo de expansio, @ absorver mudangas sociais, ¢ a aceitar outras qualidades caracteristicas das socie- dades modemnas, como a racionalidade, a eficdcia e a predilegdo pelos principios de liberdade'. Nesta concepgao, ser “modemo” sig- nificava ser “complexo”, a complexidade aqui se referindo principalmente aos aspec- tos institucionais da organizagdo social. Dentro deste quadro, as sociedades simples potencialmente se transformariam em so- ciedades “complexas” na medida em que desenvolvessem uma maior capacidade para a racionalidade, maior diferenciago de pa- Péis sociais ¢ um processo de mobilidade 0p. cit. 102 social mais efetivo. Neste proceso evoluti- vo, sociedades que estivessem a meio ca- minho para a modemizaco seriam consi- deradas “sociedades em transigg0”. Assim, sociedades “simples”/ “em transi¢o”/ “complexas” fechariam e completariam 0 esquema’®. ‘Aos antropélogos ndo ¢ tarefa difi- cil descartar implicag6es evolucionistas, dada a propria hist6ria da disciplina. Desde Malinowski que sociedades tribais, ou “sim- ples”, sdo estudadas e aceitas em seus pré- prios termos. Mas, talvez pela mesma ra- 240 por que é facil questionar os esquemas evolucionistas a partir de uma perspec- tiva sincrOnica, a ahistoricidade impl cita na dicotomia “simples” versus “com- plexa” apresente maior dificuldade de apreensao. Aqui, a questo se refere a0 pressu- posto de que é pela eliminago dos elemen- tos tradicionais que se chega as sociedades complexas. Mas, neste caso, é preciso sa- ber 0 que se entende por “tradicfo”, ou por “tradicional”. Quando estes conceitos so indistintamente impostos a grupos so- ciais que passaram pelos mais variados pro- cessos de desenvolvimento histérico, sua fragilidade se torma aparente. Além do mais, nfo se trata apenas da Histéria como sucessio de eventos, mas também da cons- ciéncia histérica que certas sociedades ela- boram a respeito de seu pasado, ou de sua tradi¢do. Stanley Tambiah alerta para este problema: “Tradig40 é um termo muito usado, tan- to pelo cientista social quanto pelo ho- Ver Dean Tipps, mem politico, seja ele conservador ou ra- dical, O termo € usado, especialmente, em ‘um sentido ‘ahistérico’, e denota algum tipo de heranca coletiva que supostamen- te foi transmitida de forma muito pouco modificada. Concebendo a tradigdo desta forma, dois pontos ficam esquecidos: um, que 0 passado foi, talvez, to aberto e tdo inmico 20s atores daquele tempo como ‘4 nossa época parece a nés mesmos; outro, {que as normas, regras e orientagies do ps sado no foram necessariamente to con- sistentes, unificadas e coerentes como ten- ‘demos a imaginar.""? Em suma, Tambiah mostra que, fi- xando-se em um dos pélos de uma dicoto- mia analitica, pode-se facilmente imaginar graus de coeréncia inexistentes e ide lizar graus de integracdo social maiores que aqueles realmente encontrados em socie- dades do pélo oposto. Tal como o indivi- duo que idealiza 0 passado como sempre melhor que 0 presente, 0 antropélogo se- ria suscetivel de cair na mesma armadi- Iha, idealizando a “tradiggo”, ou mesmo a “sociedade simples”. Neste sentido, vale a pena alertar pa- ra todo e qualquer uso indiscriminado de dicotomias, sejam elas “simples” versus “complexa”; “tradicional” versus “moder- na”; “letrada” versus “iletrada”; “subde- senvolvida” versus “desenvolvida”.O perigo das dicotomias & o de o cientista social to- mar como ponto de referéncia um dos po- los e darhe um determinado valor ideols- gico. A utilizagdo do termo “subdesenvolvi- 40”, por exemplo, traz implicita a idéia de que as sociedades “desenvolvidas” nao es Modernization theory and the comparative study of societies”, Comparative Studies in Society and History, vol. 15, n. 2, 1973. Stanley Tambiah, “The Persistence and Transformation of Tradition in Southeast Asia” N. Eisenstadt, ed., Post-Traditional Societies, New York, W.W. Norton, 1972, p. 5S. 103 ‘io mais sujeitas a processos de desenvolvi- mento"®. O problema é complexo. Na qualida- de de antropélogos, como poderemos dar conta das diferengas empiricamente percep- tiveis que nos fazem constatar, por exem- plo, que a sociedade Bororo ¢ qualitativa- mente diferente da sociedade iraniana? E se o conceito de “'sociedade complexa” possui tantas conotagdes potencialmente negati- vas, quer isto dizer que devemos abandond- Jo? Mas, ento, nfo cairfamos em um tipo de relativismo extremo que concretamente impediria qualquer tipo de compara¢ao? © antropélogo que decide fazer das sociedades modernas contempordneas seu objeto de estudo parece enfrentar um desa- fio e correr um perigo. O desafio consiste em fazer com que a tradig%0 antropolé- gica, desenvolvida principalmente a partir do estudo de sociedades tribais, nZo se perca nem seja abandonada como ultrapas- sada, Faz parte deste desafio, portanto, ‘uma visio da perspectiva antropoldgica que ultrapasse os limites estreitos impostos pela definigdo de um objeto de estudo concre- to. O perigo que o antropélogo corre é, a0 contrério, o de reificar os procedimen- tos através dos quais estudou sociedades “simples” e aplicd-los indiscriminadamente as sociedades “‘complexas”. Qualquer forma que tome, a alter- nativa deve implicar o reconhecimento do que € especifico ao objeto de estudo investigado; do que o torna sui generis ¢ do que © toma compardvel ¢ universal. Se houve um momento no desenvolvimento da Antropologia em que era preciso adver- tir 08 etndlogos dos perigos do etnocentris- ‘mo, 0 momento atual parece indicar que 0s antropélogos que “estranham” a sua propria sociedade ndo devem se deixar le- var por uma atitude simplista que con- sidera as “sociedades complexas” como “sociedades simples”, apenas “complexifi- cadas”. O problema se resume, ento, em eliminar as conotagdes simplificadoras que as dicotomias potencialmente sugerem, tan- to quanto introduzir um elemento fun- damental no estudo das sociedades comple- xas — isto 6, 0 cardter histérico do fend- meno sociolégico tinico que foi o apareci- mento das sociedades nacionais moder- nas para o qual, em 1920, Marcel Mauss jé to bem chamava a atencdo’?. A SOCIEDADE COMPLEXA COMO CULTURA Vejamos num exemplo concreto os problemas que estamos mencionando, um exemplo que é tZo mais interessante quan- to sua proposta, impressionante pela qua- lidade intelectual, € justamente a de eli- minar as implicagbes dicotdmicas. No entanto, Cultura e Razio Pritica de Mars- hall Sahlins, publicado em 1976, constitui- se, paradoxalmente, numa das mais claras provas do que estamos chamando de “et- nocentrismo as avessas”. Sablins inicia seu trabalho distinguin- do 0 que chama de “sociedades tribais” de “sociedades capitalistas” (ou “burguesas”), mostrando como os dois tipos foram es- tudados a partir de pressupostos tedricos diferentes, Exemplificando o estudo de uma e de outra pela tradiefo antropolé- gica e pela abordagem marxista, Sahlins Norbert Elias, “Processes of State-Formation and Nation-Building”, Transactions of the Seven- 1h World Congress of Sociology, vol. IIL, Genebra, 1972. Marcel Mauss, “La Nation”, L Année Sociologique, série 3, 1953-4. 104 discute a plausibilidade do ponto de vista “duas sociedades-duas ciéncias”, Este pon- to de partida, no entanto, ¢ estabelecido “somente para negé-lo num capitulo pos- terior como uma espécie de falsa consci- éncia”, A segunda parte do livro € dedicada a um escrutinio de alguns dos fundadores da Antropologia, a partir do par classico Mor- gan-Boas. Seu objetivo é mostrar como a Oposigdo cultura versus razio pritica endémica ao pensamento antropol6gico: “Esse conflito entre a atividade pritica e 08 limites da mente se insere numa contra- digdo original ¢ bésica, entre cujos pélos 4 teoria antropoligica tem oscilado des- de o século XIX." Mas adverte: “As alternativas nesse venerdvel conilito entre utilitarismo © um enfoque cultural ( . ) no so simples, nem serio resol- Yidas pela feliz conclusio académica de que a resposta se encontra em algum lugar no meio das duas ou mesmo em ambas as artes (isto 6, dialeticamente)."” Seu coragdo, claramente, pende para a “razdo cultural” e, no final do livro, Sahlins propée uma integragg0 do estudo dos dois tipos de sociedade (tribal/primiti- va e ocidental burguesa/capitalista) em um 86 esquema tedrico, esquema este baseado em um sistema de avaliagdes simbilicas. Antes, porém, uma terceira parte do livro analisa os problemas do materialismo his- térico, em seus “momentos” culturais e * (bid, p.68. 2 id, Idem. Bid, p. 182. * id, p. 184. naturais. A conclusdo de Sahlins, depois de longa andlise dos escritos de Marx, é de que 0 conceito de natureza humana de Marx se resume a uma metéfora da racio- nalidade capitalista: “Marx nunca abandonou esse conceito de ‘necessidades’, nem por conseguinte 0 con- ceito de produgdo como ago intencional no sentido de sua satisfacio. (,...) A natu- reza da racionalidade econémica surge nas anélises hist6ricas de Marx como evidente ‘em si mesma, como algo que provém dire- tamente da necessidade natural. da produ- = Para Sablins, diferentemente, “o problema ¢ que a efetividade material, 4 praticabilidade, ndo existe em nenhum sentido absoluto, mas somente na medida © na forma projetada por uma ordem cul- tural, Ao selecionar seus meios e seus fins materiais dentre todos os possiveis, bem como as relagdes nas quais so combina- dos, a sociedade estabelece as inten. 9888 © as intensidades produtivas, de uma ‘maneira e medida apropriadas a todo o sis- tema estrutural"™, Para 0s leitores que resistiram as lei- turas pouco ortodoxas — porquanto desti- nadas a discriminar a “razo prética” da “razdo cultural” — dos escritos de Morgan, Malinowski e Marx, ¢ as criticas muitas ve- zes contundentes que faz a estes autores (a leitura de Malinowski, tomando como pon- to de partida os trabalhos de 1944, é bas- tante problematica), Sahlins reserva um es- quema comparativo analiticamente sofisti- Marshall Sablins, Cultura ¢ Razdo Prética, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 67 105

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