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Sonhos e Outras Verdades

Ficção

Poncio Arrupe

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Manuel

Alguns segundos de hesitação..., mais uma vez, como acontecia com frequência
naquelas ocasiões, João tinha-se esquecido de contabilizar as cartas já saídas. Decidiu-
se então por jogar o três de copas esperando que não houvessem mais espadas na mesa
para além das da sua mão. Talvez daquela vês se livrasse das Duas Últimas... Noite de
sexta feira. Era mais uma vez ocasião para apelar ao seu espirito de sacrifício: noitada
de cartas em casa de Manuel e Susana, acompanhado de sua mulher Paula. Desde o
início do jogo que João tinha ligado o piloto automático, como habitualmente,
procurando manter apenas um nível de concentração quanto bastasse. Paula era uma
grande apreciadora de jogos de cartas e frequentemente arrastava-o para sessões
intermináveis à volta de uma mesa. João, em nome de uma sã convivência e
procurando não ser desmancha prazeres, normalmente cedia. A verdade é que nunca
conseguiu sentir grande entusiasmo por aquelas disputas, sempre acérrimas para os seus
parceiros habituais. Desta vez, como quase sempre, era Barbue que se jogava. Nessa
noite, e em todas as noites em que entre os convivas se encontrava Manuel, um jogo de
cartas era, apesar de tudo, mal que vinha por bem ...
João continuava a cartear e a seguir as jogadas e diálogos entre jogadores como
quem escutava sons longínquos. Procurava apenas reter o estritamente essencial para
poder tomar opções de jogo que não fossem totalmente disparatadas. Ao mesmo tempo,
a sua mente ocupava-se com novas reelaborações de algumas ideias já antigas.
... As duas últimas vasas não lhe calharam. Susana comentou afavelmente a boa
jogada de João cujo o resultado foi, na sua opinião, terem ido parar a ela. Manuel
insurgiu-se imediatamente em tom agressivo contra o comentário, atribuindo o resultado
da jogada à sorte de João. Susana apressou-se a reformular o que tinha dito qual aluna
assustada que procura emendar o seu erro a tempo de evitar a punição do severo
professor. João, calado e fingindo interesse sobre outros aspectos do jogo, congratulou-
se pelo facto deste constituir mais uma vez oportunidade para evitar qualquer tipo de
conversação com Manuel e conseguir até esquecer-se da presença daquele. Manuel
representava quase tudo o que João verdadeiramente desprezava. Não conseguia
imaginar-se a manter um diálogo a sós com ele minimamente consequente sem que em
poucos segundos, em pouca palavras incisivas, lhe revelasse, num vómito imenso e
imparável, os seus verdadeiros sentimentos. Nas poucas ocasiões em que o acaso

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proporcionou por breves segundos essa oportunidade, optou sempre pelo mutismo,
defendendo-se assim de um eventual corte de relações definitivo com um amigo de
infância de sua mulher. Evitava mesmo qualquer diálogo directo com Manuel, mesmo
em publico, por não suportar nele aquilo que costumava designar para si de
desonestidade intelectual crónica ao serviço de uma necessidade avassaladora de auto-
afirmação ressabiada. Nunca chegou a perceber se deveria associar a esta característica
da personalidade de Manuel algum rasgo de intencionalidade, ou se deveria apenas
condoer-se do facto, atribuindo-lhe uma natureza puramente inconsciente.
Paula deu início ao seu beneficio baralhando e distribuindo as cartas com a destreza
só possível a quem jogava com regularidade desde os primórdios da adolescência.
Observava-se na sua postura e gestos uma total concentração. O modo como
minuciosamente e com extrema precisão ruía as unhas, sem esforço consciente, era a
melhor evidência da sua capacidade em mergulhar naquele jogo, numa absoluta
interrupção do devir. João, enquanto recolhia e ordenava as suas cartas, perpassava
mentalmente alguns comportamentos de Manuel e tentava encontrar explicação para tão
desmesurada necessidade de demarcação da individualidade. Sorriu perante as diversas
imagens evocadoras de episódios passados em que Manuel tinha dado provas de
pateticamente se recusar a atribuir aos seus comportamentos causas comuns.
Considerava que comia, bebia, fumava, dormia, etc., por razões radicalmente diferentes
das do resto da Humanidade, negando qualquer evidência contrária. Tendo por hábito
embriagar-se até aos limites da prostração física, era-lhe particularmente penoso encarar
esse facto sem se justificar com causas de teor idiossincrático, só compreendidas por si,
e supostamente sob o seu absoluto controlo. Manuel entendia que não partilhava da
condição menor que se revela nos vícios humanos que se nos agarram, que não
conseguimos sacudir, ou, se sim, só com dor. Para ele sempre lhe era possível largá-los
quando quisesse, e tinha-os apenas por prazer, e não por qualquer tipo de necessidade
fisiológica contraída. A simples menção por outros da possibilidade do contrário
provocava nele comportamentos insultuosos, sobranceiros, de desprezo. Não mais eram,
estes seus comportamentos, do que estremecimento interior, fuga, de pânico e
indignação, para a frente perante o facto dos outros o julgarem atribuindo aos seus
hábitos motivos comuns, vulgares, dos fracos.
No entanto, ele próprio, pressupunha e generalizava muito, e agia para com os
outros com constante agressividade e despeito. Sobretudo para com aqueles que não o
valorizavam como se julgava merecedor. Expressava, constantemente a despropósito,

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interpretações sobre os comportamentos que observava visando apenas o encaixe
primário no rótulo que há muito havia atribuído ao alvo do momento. Manuel era
exímio na prática de precisamente aquilo que tanto temia que lhe fizessem. Tinha
grande facilidade em distribuir epítetos depreciativos por aqueles que alguma vez
haviam constituído uma ameaça à preservação da sua imagem. A partir desse momento,
como ilusoriamente pensava que os outros se dedicavam a interpretar os seus
comportamentos, passava a defender-se sistematicamente, e quase sempre a priori, dos
seus supostos julgamentos, utilizando indiscriminadamente a agressão verbal. Com
uma gargalhada interior, João recordava agora como Manuel, fumador de mais de dois
maços por dia, se negava terminantemente a admitir que dependia do tabaco. Afirmava-
o pateticamente em nome, dizia, do que se poderia designar por uma sua cruzada contra
as generalizações. Em coerência com o seu elementarismo boçal, não se dava conta que
qualquer palavra ou expressão é uma generalização. Manuel não conseguia, de todo, ir
mais além das interpretações à letra. Sobretudo quando se apoderava de si o pânico de
se ver descoberto como semelhante ao que tanto desprezava..
Entretanto, joga-se o Rei de Copas. João apercebe-se que está em maus lençóis. Há
muito que deveria ter baldado o seis e o sete de espadas. Já não se lembrava se o
decurso da jogada lhe havia proporcionado esse ensejo. Uma forte irritação apodera-se
dele porque constatou que tinha estado desatento e, evitavelmente, estava na iminência
de dar um motivo de satisfação a Manuel. Este iria certamente retirar daquele eventual
desfecho isolado ilações definitivas, como se estatisticamente comprovadas, para
confirmar a sua teoria sobre a sorte de João. Até para o acaso, para o puramente
aleatório, Manuel conseguia paradoxalmente atribuir desfechos mais prováveis,
enviesamentos e tendências constantes ao longo dos tempos. João aconselhou-se calma
e, sobretudo, distanciamento. Um pouco de concentração redobrada era necessária para
tentar escapar ao quase inevitável. Manuel, bom jogador, não haveria de perdoar se
viesse a estar nas suas mãos o controlo sobre o desfecho da jogada...
Em fracções de segundo as vicissitudes do jogo passaram novamente para segundo
plano. João passava agora em revista alguns dos momentos do passado em que Manuel
se tinha revelado particularmente ridículo. Espantava-se de novo com a facilidade com
que ele se enganava a si próprio para conseguir acreditar naquilo que lhe interessava. A
leviandade com que se socorria num momento de determinado estereotipo ou
preconceito para desqualificar o interlocutor e terminar abruptamente uma discussão
que seguisse um curso ameaçador para a sua sacrossanta imagem. E como alguns dias

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depois endeusava alguém que, quase sempre inadvertidamente, o tinha ajudado a
colocar diante de uma qualquer audiência mais um tijolo na sua fachada. A formação
académica, as convicções religiosas, a profissão, etc., formavam na mente de Manuel a
superestrutura barata, disponível, com muito pouca contribuição sua, na qual arrumava
as pessoas que conhecia. Tornou o processo de tal forma cómodo que atingiu o estadio
de para cada rótulo ter pronta a usar uma versão totalmente depreciativa, e uma outra
incondicionalmente laudatória. Podia assim recorrer a uma das versões consoante as
suas necessidades de coerência com as conveniências do momento, repetindo-as um
sem número de vezes. Esta superficialidade, esta prontidão do argumentário prêt a
porter, tornava-o particularmente rápido na verbalização. Era quase impossível a
alguém concluir uma ideia na sua presença, mesmo que muito simples, se não fosse
expressa numa qualquer fórmula estafada, gasta, instantânea. Por outro lado, se isso
acontecesse, o interlocutor seria de imediato enxovalhado com a acusação de estar a
generalizar abusivamente. As conversas com Manuel eram um verdadeiro catch-22
patológico, um jogo sempre para perder, concluiu João.
Em boa verdade, acabou por reconhecer posteriormente, não só Manuel não sabia o
que fazia, como também não sabia que fazia o que todos nós também fazemos. O que
nele se tornava exasperante era a sua negação patética do óbvio, conjugada com o facto
de se comportar da forma mais estúpida, ridícula, e elementar, retirando qualquer
estética à convivência humana. O uso e abuso da justaposição dos clichets, que tanto
pretendia combater, tornavam os seus comportamentos e afirmações entediantemente
previsíveis. E João apreciava nos outros sobretudo a capacidade de o surpreenderem.
Podia, até, considerar-se viciado na novidade, no diferente.
Não conseguiu escapar ao Rei de Copas. Procedeu ao pagamento das apostas aos
outros jogadores, em silêncio. Manuel emitiu um comentário jocoso que João fez por
não ouvir pedindo bruscamente fichas mais pequenas a Paula. Paula era transformada
frequentemente num indirecto bode expiatório nestas ocasiões. Perguntou-se, irritado
consigo próprio, porque acabava sempre por ceder aos desejos de sua mulher e se
sentava a jogar. Desconcertava-o especialmente em Manuel a frequência com que este
negava factos objectivos que outros lhe davam a conhecer somente porque contradiziam
as suas ideias ou afirmações que acabara de proferir. O seu subterfúgio favorito
consistia, com ar de desafio antevendo desde logo o triunfo final, manifestar dúvidas
sobre os conhecimentos do interlocutor sobre a matéria discussão. Optava por esta
estratégia particularmente quando não era possível a prova no momento (aquela não era

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ainda a era da internet e da banda larga onde tudo podia ser perscrutado). João, que em
geral possuía um conhecimento mais aprofundado dos assuntos, e que não
acompanhava e memorizava as ideias feitas mais recentes sobre os mesmos, por regra
optava por não se manifestar. Há muito que havia desesperado de tentar entabular
conversação uma vez que Manuel era incapaz de ajuizar com um mínimo de
imparcialidade e abertura de espirito qualquer questão. As conversas serviam-lhe
sempre de palco para demonstrar à audiência, e a si próprio, que os preconceitos que
nutria sobre o interlocutor eram apropriados, e que justificavam só por si a
desqualificação do que quer que o interlocutor pudesse dizer.
Tinha, no entanto, o pressentimento de que o seu mutismo contribuía para que
Manuel reforçasse as suas obnubilantes convicções e acreditasse que, não obtendo
contra-argumentação, isso seria por incapacidade de João e pela valia dos seus
argumentos. Este pressentimento provocava neste último arrepios de indignação, mas
sabia que estava aí a sua grande fraqueza. Nunca conseguia manter o controlo
emocional e a focalização no essencial da sua argumentação, o que gerava nele um
pesado e irritante sentimento de impotência. Sempre que se deparava com sujeitos
como o Manuel, incorria em sério risco de se deixar arrastar pelas questões colaterais
lançadas para a mesa pelo outro, traindo os seus próprios princípios. Atingia facilmente
a ruptura nas relações pela veemência com que ridicularizava e humilhava o outro, em
explosões descontroladas de expressão de seu desprezo.
Paula e Manuel embrenhavam-se agora numa discussão sobre como este poderia ter
evitado apanhar as quatro Damas. Manuel apresentava a sua argumentação, em tom
paternalista completamente deslocado, fundamentada nos imponderáveis da sorte.
Senhor de um espírito competitivo digno de um broker da bolsa de Nova York, sempre
que qualquer desfecho lhe era favorável, apressava-se a atribuir-se a responsabilidade
do mesmo. Quando acontecia o inverso, dava a entender que estava fora do seu alcance
o controlo dos eventos. Mais uma vez, João sabia que, na essência, Manuel pensava e
agia como todos nós. O que o exasperava em Manuel era a sua crença inabalável de que
se exímia a esta natureza comum. Manuel utilizava o mesmo tipo de raciocínio viciado
sempre que se arvorava em defensor daqueles que se deixavam arrastar, por falta de
maturidade emocional e autonomia intelectual, para o mundo dicotómico dos que
recebiam a sua benção e dos que eram liminarmente excomungados. Manuel acabava
sempre por manter relações prolongadas apenas com aqueles que se revelavam
suficientemente imaturos para se sentirem reconfortados emocionalmente pela sua

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bajulação vácua. Deste modo mantinha-se rodeado de algumas mentes superficiais e
acríticas, que compunham a pequena entourage dócil e adequada à manutenção da sua
imagem. Ao seio deste pequeno grupo de pessoas se recolhia sempre que sentia
necessidade de reparar alguma muralha da sua fortaleza psíquica monolítica abalada no
mundo exterior àquele circulo restrito. Aqueles que revelavam personalidade e
maturidade acabavam por esfriar gradual e silenciosamente as suas relações, ou mesmo
por se afastar.
Assim que Manuel se apercebia do facto, incapaz de encarar tranquilamente que
alguém não o admirasse incondicionalmente, tratava de imediato de se convencer a si
próprio e a outros de que a pessoa em causa não era merecedora de amizade e
consideração. Difundia então profusamente a rotulagem depreciativa que encontrava
mais conveniente de entre o seu stock de arquétipos, exigindo veladamente
concordância e fidelidade cega. Agia convicto de que empreendia uma estratégia de
defesa inteiramente proporcional e legitima. Nestas ocasiões, Manuel torturava-se de
pânico perante a eventualidade da sua harmonia relacional sofrer alguma
desestabilização. Algo que nunca acontecia por culpa do visado, mas que ele assumia,
no seu intimo, estar a ser tentado secreta e implacavelmente pela sua vítima. Em
consequência, pela persuasão ou por coacção emocional, tentava limitar ao máximo
qualquer contacto entre esta o os elementos do seu circulo. Se efectivamente alguém
manifestasse algum apresso e compreensão por quem se afastava, João passava-lhe
imediatamente um atestado de menoridade, qual fatwa, atribuindo as culpas por inteiro
a supostas más influências do objecto do seu ódio.
João contabilizou as suas fichas e verificou com agrado que, apesar de tudo, ainda
estava com um saldo positivo. Mas o seu beneficio já tinha passado... Perguntou, sem
levantar os olhos da sua mão e para se reenquadrar no jogo, que benefícios faltavam.
Paula censurou-o por não prestar suficiente atenção e informou-o de que restava apenas
o de Manuel.

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