FRSearke (W997 Lis921), A vedescoberte dee mente,
Ed. Macins Fontes.
CAPITULO 1
O QUE HA DE ERRADO COM A
FILOSOFIA DA MENTE
1.A solugdo para o problema mente-corpo e por que
muitos preferem o problema a solugao
O famoso problema mente-corpo, fonte de tanta con-
trovérsia ao longo dos dois tiltimos milénios, tem uma
solugao simples. Esta solug&o encontra-se ao alcance de
qualquer pessoa instrufda desde o inicio de um estudo
sério sobre 0 cérebro ha cerca de um século, e, em certo
sentido, todos sabemos que é verdadeira. Aqui esté ela: os
fendmenos mentais sao causados por processos neurofi-
siolégicos no cérebro, e s4o, eles préprios, caracteristicas
do cérebro. Para distinguir esta concepgio das muitas ou-
tras neste campo, chamo-a de “naturalismo biolégico”. Os
processos e fatos mentais fazem parte de nossa histéria
natural biolégica tanto quanto a digestio, a mitose, a meio-
se ou a secrecdo enzimatica.
O naturalismo bioldgico suscita milhares de questdes
préprias dele. Qual 6, exatamente, 0 cardter dos processos
neurofisiolégicos, e como, exatamente, os elementos da8 A REDESCOBERTA DA MENTE
neuroanatomia — neur6nios, sinapses, fissuras sindpticas,
receptores, mitoc6ndrias, células da neuréglia, fluidos
transmissores etc. — produzem fendmenos mentais? E que
dizer da grande variedade de nossa vida mental — dores,
desejos, sensagdes agradaveis, pensamentos, experiéncias
visuais, crengas, sabores, odores, ansiedade, medo, amor,
6dio, depressio e euforia? Como a neurofisiologia expli-
ca a multiplicidade de nossos fendmenos mentais, tanto
conscientes como inconscientes? Estas quest6es formam
o objeto das neurociéncias, e enquanto escrevo isto ha,
literalmente, milhares de pessoas investigando essas
questdes', Mas nem todas elas so neurobioldgicas. Al-
gumas sio filoséficas ou psicolégicas, ou parte da ciéncia
cognitiva em geral. Algumas das questies filosdficas sdo:
o que é exatamente a consciéncia, e como exatamente os
fendmenos mentais conscientes relacionam-se com os in-
conscientes? Quais sio as caracteristicas especiais do
“mental”, caracter{sticas como consciéncia, intencionali-
dade, subjetividade, causagao mental; e como exatamente
elas funcionam? Quais sao as relagdes causais entre fend-
menos “mentais” e fendmenos “fisicos”? E podemos nés
caracterizar tais relagSes causais de maneira a evitar 0
epifenomenalismo?
Tentarei dizer algo sobre algumas dessas questdes
posteriormente, mas neste ponto quero ressaltar um fato
notavel. Eu disse que a solug’o para o problema mente-
corpo deveria ser 6bvia para qualquer pessoa instruida,
mas hoje, na filosofia e na ciéncia cognitiva, muitos — tal-
vez a maioria dos especialistas — afirmam nao consider4-
la de modo algum 6bvia. De fato, eles nem sequer acredi-
tam que a solugio que propus seja verdadeira. Se alguémO QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 9
examinar 0 campo da filosofia da mente nas tiltimas duas
décadas, vai encontré-lo ocupado por uma pequena mino-
ria que insiste na realidade e irredutibilidade da conscién-
cia e da intencionalidade, e cujos membros tendem a con-
siderar-se dualistas de propriedades, e um grupo muito
maior da corrente principal, cujos defensores consideram-
se materialistas de um tipo ou de outro. Os dualistas de
propriedades pensam que o problema mente-corpo é es-
pantosamente dificil, talvez completamente insoltivel’.
Os materialistas concordam com que, se a intencionalida-
de e a consciéncia realmente existem e sao irredutiveis a
fenémenos fisicos, entéo de fato haveria um dificil pro-
blema mente-corpo, mas eles pretendem “naturalizar” a
intencionalidade, e talvez também a consciéncia. Por “na-
turalizacio” de fendmenos mentais eles entendem a sua
redugdo a fenédmenos fisicos. Pensam que admitir a reali-
dade e irredutibilidade da consciéncia e outros fendmenos
mentais leva ao comprometimento com alguma forma de
cartesianismo, e eles nado véem como tal enfoque pode se
tornar compativel com 0 quadro completo de nosso mun-
do cientifico.
Acredito que os dois lados estéo completamente
enganados. Ambos aceitam um determinado vocabulario
e, com ele, um conjunto de hipdteses. Pretendo mostrar
que 0 vocabulério é obsoleto, e que as hipdteses sao fal-
sas. E fundamental mostrar que tanto o dualismo quanto 0
monismo sao falsos porque em geral se supde que esgo-
tam o campo, nao deixando outras opgées. A maior parte
de minha discussdo sera dirigida as varias formas de
materialismo, porque é a visio dominante. O dualismo,
sob qualquer forma, é hoje considerado fora de cogitagao10 A REDESCOBERTA DA MENTE
porque se admite que é incompativel com o enfoque cien-
tifico global.
Dessa forma, a questo que quero propor neste capi-
tulo € no préximo é: 0 que acontece em nosso meio ¢ his-
t6ria intelectual que torna dificil enxergar essas observa-
ges to simples que fiz a respeito do “problema mente-
corpo”? O que fez com que o “materialismo”’ parecesse
ser 0 Unico enfoque racional da filosofia da mente? Este
capitulo e o préximo abordam a situag&o atual da filosofia
da mente, € o presente poderia receber 0 titulo de “O que
ha de errado com a tradicdo materialista na Filosofia da
Mente”.
Vista a partir da perspectiva dos tiltimos cingiienta
anos, a filosofia da mente, bem como a ciéncia cognitiva
e determinados ramos da psicologia, apresentam um
espetaculo muito curioso. A caracteristica mais admirdvel
€ o quanto da corrente principal da filosofia da mente dos
Ultimos cingiienta anos parece obviamente falso. Acredi-
to que nao haja nenhuma outra rea da filosofia analitica
contemporanea onde tantas coisas implausiveis sejam
afirmadas. Na filosofia da linguagem, por exemplo, nao €
de modo algum comum negar a existéncia de frases e atos
de fala; mas, na filosofia da mente, fatos 6bvios sobre o
mental, tais como o fato de que todos nés realmente te-
mos estados mentais subjetivos conscientes, e que estes
nao sdo suprimiveis em favor de qualquer outra coisa, so
rotineiramente negados por muitos, talvez pela maioria
dos pensadores avangados do assunto.
Como é que tantos fildsofos e cientistas cognitivos
podem afirmar tantas coisas que, pelo menos para mim,
parecem obviamente falsas? Pontos de vista radicais emO QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE i
filosofia quase nunca s&o insensatos; hd geralmente razdes
poderosas e muito profundas que justificam sua defesa.
Acredito que um dos pressupostos nao declarados por tras
do corrente conjunto de enfoques é que eles representam
as Unicas alternativas cientificamente aceitdveis ao anti-
cientificismo que acompanhou o dualismo tradicional, a
crenga na imortalidade da alma, o espiritualismo etc. A
aceitag&o das concepgées correntes é motivada nao tanto
por uma convicgao independente em sua veracidade quan-
to por um pavor daquelas que sao, aparentemente, as tni-
cas alternativas. Quer dizer, a escolha que nos é€ tacita-
mente apresentada dé-se entre um enfoque “cientifico”’,
como 0 representado por uma ou outra das correntes ver-
sdes do “materialismo”, e um enfoque “anticientffico”,
como o representado pelo cartesianismo ou por alguma
outra concepgio religiosa tradicional da mente. Outro fato
singular, estreitamente relacionado ao primeiro, é que a
maioria dos autores classicos est4 profundamente compro-
metida com o vocabulario ¢ as categorias tradicionais.
Eles realmente consideram que ha algum significado mais
ou menos evidente associado ao vocabulario arcaico do
“dualismo”, “monismo”, “materialismo”, “fisicalismo” etc.
e que as questdes tém que ser propostas e solucionadas
nesses termos. Usam essas palavras sem embarago nem
jronia. Um dos muitos objetivos que tenho neste livro é
mostrar que essas duas hip6teses esto erradas. Com-
preendidos de maneira correta, muitos dos enfoques atual-
mente em voga sao incompativeis com o que conhecemos
a respeito do mundo, tanto a partir de nossas prdéprias ex-
periéncias quanto das ciéncias especificas. Para expressar
0 que sabemos ser verdadeiro, deveremos desafiar as hi-
poteses por tras do vocabulario tradicional.12 A REDESCOBERTA DA MENTE
Antes de identificar alguns desses enfoques questio-
naveis, quero fazer uma observagio sobre estilos de apre-
sentacao. Autores que esto prestes a afirmar algo que soa
absurdo muito raramente vém a ptiblico para express4-lo
diretamente. Em geral, um conjunto de artificios retéricos
ou estilfsticos é empregado para evitar ter que dizé-lo em
palavras simples. O mais 6bvio desses artificios é fazer
rodeios através de um discurso muito evasivo. Penso que é
Obvio nos escritos de diversos autores, por exemplo, que
eles consideram que realmente n&o temos estados mentais
como crengas, desejos, medos etc. Mas é dificil encontrar
trechos onde eles efetivamente afirmem isto de forma
direta, Em geral, querem manter 0 vocabuldrio de senso
comum, a0 mesmo tempo em que negam que 0 mesmo
represente, efetivamente, algo no mundo real. Outro artiff-
cio retérico para disfargar o implausfvel € dar uma desig-
nacao ao ponto de vista de senso comum e entio rejeitar
esta designagao, mas nao seu contetido. Assim, é muito
dificil, mesmo no perfodo atual, vir a ptiblico e afirmar:
“Nenhum ser humano jamais foi consciente.” Antes, o(a)
filésofo(a) sofisticado(a) nomeia a concepgiio de que as
pessoas sao algumas vezes conscientes, por exemplo,
como “a intuigdo cartesiana”, e ent’io comega a contestar,
questionar, negar algo descrito como “a intuicdo cartesia-
na”. Novamente, é dificil vir a puiblico afirmar que nin-
guém na histéria do mundo jamais bebeu porque estava
com sede, ou comeu porque estava com fome; mas é facil
contestar algo se vocé pode rotuld-lo de antemao como
“psicologia popular’. E, para dar um nome a este estrata-
gema, vou chamé-lo de estratagema de “dar-um-nome”. A
outro estratagema, o preferido, chamarei de estratagemaO QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 13
da “era-herdica-da-ciéncia”. Quando um(a) escritor(a) en-
tra em apuros, tenta tragar uma analogia entre sua propria
assergdo e alguma grande descoberta cientifica do passa-
do. A concepgio parece tola? Bem, os grandes génios
cientfficos do passado pareceram tolos a seus contempo-
raneos ignorantes, dogmiaticos e preconceituosos. Galileu
é a analogia histérica favorita. Retoricamente falando, a
idéia é fazer com que vocé, 0 leitor cético, sinta-se, caso
nado acredite na concepgao que esta sendo desenvolvida,
bancando o cardeal Belarmino para 0 Galileu do autor’.
Outros favoritos so 0 flogisto e os espiritos vitais, e outra
vez a idéia é forgar o(a) leitor(a) a supor que, se ele (ela)
duvida, por exemplo, que os computadores estiio efetiva-
mente pensando, s6 pode ser porque cré em algo tao nao
cientffico quanto 0 flogisto ou os espiritos vitais.
IL. Seis teorias inverossimeis da mente
Nao tentarei fornecer um catélogo completo de todas
as implausfveis concep¢des materialistas em voga na filo-
sofia contemporanea e na ciéncia cognitiva, mas relacio-
narei somente meia diizia para dar uma idéia da questio.
O que esses enfoques tém em comum é uma hostilidade
em relagdo a exist@ncia e ao cardter mental de nossa vida
mental ordindria. De uma maneira ou de outra, todos eles
tentam depreciar fendmenos mentais ordindrios como cren-
cas, desejos e intengGes, e colocar em dtivida a existéncia
de caracteristicas gerais do mental, como a consciéncia €
a subjetividade*.14 A REDESCOBERTA DA MENTE
Primeiramente, talvez a versdo mais radical desses
enfoques seja a idéia de que, enquanto tais, os estados
mentais nao existem de modo algum. Este enfoque é sus-
tentado por aqueles que se autodenominam “materialistas
eliminativos”’. A idéia é que, contrariamente a uma opi-
niao amplamente aceita, na verdade nao existem quais-
quer fatos como crengas, desejos, esperancas, medos etc.
Versées primeiras dessa concepgao foram propostas por
Feyerabend (1963) e Rorty (1965).
Um segundo ponto de vista, utilizado freqiientemente
para dar sustentagdo ao materialismo eliminativo, é a
asser¢ao de que a psicologia popular é — com toda a proba-
bilidade — simplesmente e inteiramente falsa. Este enfoque
foi desenvolvido por P. M. Churchland (1981) e Stich
(1983). A psicologia popular inclui asserg6es como as de
que as pessoas as vezes bebem porque esto com sede e
comem porque estao com fome; que elas tém desejos ¢
crengas, que algumas dessas crengas sao verdadeiras, ou
pelo menos falsas; que algumas crengas sao melhor sus-
tentadas que outras; que as pessoas as vezes fazem algo
porque querem fazé-lo; que elas vez por outra tém afli-
¢Ges, e que estas sfo quase sempre desagradaveis. E assim
—mais ou menos indefinidamente — por diante. A conexfo
entre a psicologia popular e o materialismo eliminativo é
esta: presume-se que a psicologia popular seja uma teoria
empirica, e supde-se que as entidades que “postula” — afli-
g6es, sensagdes agradaveis, dnsias e assim por diante —
sejam entidades teéricas exatamente correspondentes,
ontologicamente falando, a quarks e muGnios. Se a teoria
€ abandonada, as entidades te6ricas morrem com ela:
demonstrar a falsidade da psicologia popular seria remo-O QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 15
ver qualquer justificativa para aceitar a existéncia das enti-
dades da psicologia popular. Sinceramente, espero nao
estar sendo injusto ao caracterizar essas concepgdes como
implausfveis, mas tenho de confessar que esta é a impres-
sao que elas me dao. Permitam-me retomar a listagem.
Uma terceira concepgio deste mesmo tipo defende
que nao ha nada de especificamente mental nos chamados
estados mentais. Estados mentais consistem inteiramente
nas suas relacdes causais entre si, e entre os inputs e Os out-
puts do sistema do qual fazem parte. Essas relagdes causais
poderiam ser reproduzidas por qualquer sistema que tives-
se as propriedades causais corretas. Assim, um sistema
feito de pedras ou latas de cerveja, se tivesse as relagdes
causais corretas, deveria ter as mesmas crengas, desejos
etc. que nés temos, porque tudo 0 que existe sao crengas e
desejos, A versdo mais influente desta concepgao € chama-
da de “funcionalismo”, e é tio amplamente defendida que
chega a constituir uma ortodoxia contemporanea.
Uma quarta concepgio implausivel, e, na verdade, a
mais famosa e amplamente aceita do presente catélogo, é
0 ponto de vista de que um computador poderia ter — na
verdade deve ter — pensamentos, sentimentos e entendi-
mento unicamente em virtude de implementar um progra-
ma de computador apropriado com os inputs e outputs
apropriados. Batizei alhures esse enfoque como “inteli-
géncia artificial forte”, mas ele também tem sido chama-
do de “funcionalismo de computador”.
Uma quinta forma de incredibilidade é encontrada na
assergao de que niio devemos considerar nosso vocabulé-
rio mental de “crenga” e “desejo”, “medo” e “esperanga”’
etc. como uma representacio efetiva dos fenémenos in-16 A REDESCOBERTA DA MENTE
trinsecamente mentais, mas, mais propriamente, apenas
como um modo de dizer. E simplesmente um vocabulério
util para explicar e prognosticar 0 comportamento, mas
nao para ser tomado literalmente, como se remetesse a
fenédmenos psicolégicos reais, intrinsecos, subjetivos. Os
adeptos deste ponto de vista consideram que o uso do
vocabuldrio de senso comum é uma questao de assumir
uma “atitude intencional” em relacdo a um sistema’.
Em sexto lugar, outra concepgo radical é que talvez
a consciéncia como normalmente a consideramos — como
fendmenos de sensibilidade e percepgao internos, intimos
e subjetivos — na verdade nao exista. Esse enfoque quase
nunca é desenvolvido explicitamente’. Muito poucas pes-
soas se dispdem a vir a ptiblico afirmar que a consciéncia
nao existe. Recentemente, porém, tornou-se comum que
autores redefinam a nogao de consciéncia, de modo a esta
nao mais referir-se a estados conscientes efetivos, isto 6,
estados mentais de primeira pessoa, internos, subjetivos,
qualitativos, mas, ao contrério, a fendmenos de terceira
pessoa, publicamente observaveis. Tais autores aparen-
tam crer que a consciéncia existe, mas, na verdade, aca-
bam por negar sua existéncia’.
Algumas vezes, erros na filosofia da mente produ-
zem erros na filosofia da linguagem. A meu ver, uma tese
inverossimil na filosofia da linguagem, que vem do mes-
mo grupo de exemplos que acabamos de considerar, é a
concepgao de que onde os significados estéo envolvidos
nao ha absolutamente quaisquer fatos significantes além
de padrdes de comportamento verbal. Sob este enfoque,
mais notavelmente sustentado por Quine (1960), nao ha
absolutamente nenhum fato importante se, quando vocé