Sonhos e Outras Verdades

Ficção

Poncio Arrupe

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Rita

Rola agora, a sessenta quilómetros por hora, nas suaves curvas da estrada marginal
que o conduz de Lisboa a Cascais, ao longo da margem da extensa zona fronteira entre
o rio Tejo e o Atlântico. Gostaria de passar um dia e uma noite naquele, ao longe, farol
do Bugio, no meio da água, afastado de todos os sons para além dos do mar. João opta
frequentemente por aquela estrada, em vez da auto-estrada, sob o pretexto de que
sempre poupa um euro e tal de portagem. Na verdade, sabe-o, rodar naquela via quando
quase deserta permite-lhe apreciar da melhor forma aquelas paisagens das quais nunca
se cansa. Como lhe apetece voar rápido para Istambul e cheirar os odores do Bazar
Egípcio ... Tinha posto no leitor de cêdês um tema de Omar Faruk Tekbilek .... Ou então
dar um tiro de carro até Barcelona e embrenhar-se nos vapores espessos das comidas da
La Boqueria! ... Aquela música ajudava-o a sentir-se transportado suavemente pelas
ondas do mar, ou a descer em prancha umas dunas algures no norte de África, a um
saltinho dali ..., como tinha feito uma vez em Florianópolis, junto ao mar, no Brasil,
com a Rita, e o Miguel ainda quase bebé.
Miguel e Teresa, particularmente Miguel, haveriam de gostar de subir e descer
aquela rocha sobre o mar ... Não tem mexilhões ..., desligou o quente do ar
condicionado, abre as janelas e deixa entrar o avassalador turbilhão de maresia gélida e
húmida, ... já não os há como na Barra de Aveiro, quando tinha por volta de oito anos,
... uma tarde inteira a colhê-los nas rochas, bem junto à água, com o Florindo, soldado
comando em período de licença da guerra, marido da empregada, de outra, não da Maria
... Desde que tinha deixado de fumar tinha redescoberto a dimensão sensorial do olfacto.
Os aromas invadiam-lhe agora com frequência a atenção, sem pedir licença, impondo-
se-lhe e espalhando as suas memórias já esquecidas como um baralho de cartas lançado
ao caminho, num acto de assalto furtivo. E depois sentir os cheiros do tempero na
panela, comê-los até mais não poder, sorvendo-os directamente das conchas, retiradas
uma a uma de um imenso monte delas, ao ar livre, à sombra, trincar e sentir na boca o
mar a misturar-se com o limão, o alho e as ervas, sujar-se e não se importar. E o espanto
e a tranquilidade ganha ao observar a inesperada humanidade e benignidade no sorriso
do soldado guerreiro. ... Aquela maresia da Barra era mais forte, pesada, quente, do que
esta mais leve, mais espuma. Ou seria das esperas prolongadas no pontão sobre o mar,
ao sol, junto a seu irmão mais velho que se iniciava na pesca?, ... desesperando pela

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chegada de algum robalo ou solha na ponta da linha, vezes sem conta puxada e trazendo
sem espanto desilusão. As três décadas como heavy smoker transformaram, por força do
esquecimento, velhas memórias em mundos a descobrir e a usufruir de novo.
A João bastaram a faina e a comezaina dos mexilhões para contornar o
constrangimento motivado pela presença de um quase desconhecido adulto que, na sua
imaginação de criança, havia por certo morto outros seres humanos na guerra (nunca
chegou a reunir a necessária coragem para lho perguntar), e que naquele momento se
encontrava apenas num imoralmente descomprometido interregno dos seus actos
sanguinários! ... Onde e como estaria agora Florindo? Teria sofrido bem mais do que
alguma vez João criança se apercebeu? A guerra, então, durava já há tanto tempo, era o
estado próprio e permanente do mundo incompreensível dos adultos, de tal forma que
João a tinha interiorizado como seu destino certo e natural quando a idade fatídica
chegasse. Restava-lhe, apenas, retardar o crescimento ... Ouve agora Samira Said ... Um
dia haveria de ir à costa ocidental de Marrocos apanhar em cheio pelas ventas aquela
parte do Atlântico. Que diferenças encontraria em comparação com o Guincho, o Cabo
da Roca, a praia da Barra, Rias Bajas, ...? Porque seria que preferia quase sempre a
música originária da Ásia e Europa, particularmente do sul desta, do Médio Oriente, do
Crescente Fértil, do Norte de África, enfim ... em grande parte da bacia mediterrânica e
proximidades? Por outro lado, por que razão a música do continente americano, do dito
Novo Mundo, o atraia tão pouco? ... Ainda chegaria a tempo de se aninhar? Também
queria escrever ainda hoje, sem falta, à sua filha mais velha Margarida (a conversa de
ontem tinha-o marcado). Parou num semáforo ... Já se via na linha de horizonte a baía
de Cascais ... Seria porque a música das culturas milenares, em comparação com as de
há alguns séculos apenas, transmite a maior espessura e solidez da acumulação dos
anos, das diferenças apuradas em quase absoluto isolamento antes do começo da
globalização, na época dos descobrimentos? Será possível à música emular a
aglomeração dos milénios que a fabricaram conduziram até nós, tal como as camadas
dos solos guardam em si e exibem, quando explorados, a passagem dos tempos? João
pensa mesmo que esta diferença é constatável até quando se compara a música norte
americana com a proveniente das ilhas britânicas. Dever-se-ia isso essencialmente à
diferença entre escalas temporais que se medem umas em milénios, outras em séculos?
Acontecerá isto, também, com os aromas das cidades, ruas, mercados, pessoas, ...? Tal
como acontece evidentemente com os edifícios, as artes plásticas, as danças, os
artefactos de uso quotidiano, a culinária ... logo também com os cheiros, claro!

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 E nos jogos e desportos ..., ... e nas mulheres! Nos seus andares ..., também? Rita
teria nos seus aromas, caminhares e posturas a mistura de substractos de duas culturas
milenares (uma quase extinta) e uma secular, de seus antepassados? Seria por isso que
ao fim de tantos anos continuava a descobri-la? Também nos dois filhos de ambos.
Ultimamente sobretudo os cheiros e movimentos, em particular os cheiros que chegam e
vão com ela, quando se movimenta e João a observa vindo ou indo, esperando
silenciosamente a dádiva de um sorriso. Passa agora em frente ao Casino do Estoril. Há
anos que lá não entra. As últimas vezes fê-lo na companhia de sua primeira mulher
Paula, mãe de Margarida, e com alguns amigos de então. Um deles era o Manuel ... Em
Rita João podia observar como os adereços culturais interferem com as essências dos
humanos, como não são simplesmente artefactos que se tiram e põem, mas sim que
participam nos sentidos que construímos sobre o outro. Por exemplo, Rita, sem saltos,
descalça, caminha como um jaguar em silêncio em busca de uma presa, bamboleando as
ancas, o tronco em sintonia, lançando para a frente de modo displicente cada passada,
mas poderosa, pronta a acelerar e a saltar repentinamente - talvez porque, quando nesse
estado, muitas vezes se vai juntar a João na cama. De saltos altos transforma-se numa
gazela caminhando altiva, intocável, com as ancas proeminentes acentuando a cintura
delgada mas forte, o comprimento das longas e sólidas pernas realçado, as nádegas
perfeitamente desenhadas e firmes, apenas discretamente mais sobressalientes e subidas
pelo efeito da tensão muscular induzida pelo uso dos saltos, e o andar equilibrado,
tronco e pescoço oscilando muito suavemente, poisando no chão os pés com harmonia,
precisão, sem esforço algum. E, de uma forma ou de outra, parece sempre deslocar-se
ao som de música que emerge do seu próprio andar, das tensões e distensões das fibras
do seu corpo.
O semáforo abriu e deixou o jardim do casino para trás. Esboçou um sorriso triste de
quem se resigna perante um passado que gostaria que tivesse sido diferente em alguns
aspectos. Nomeadamente na relação com Manuel. Naquele momento assumiu que
deveria ter sido mais condescendente ..., ultrapassado a sua timidez e encarado os
desencontros de frente. Lamentou não ter estado no funeral de seu pai (ninguém lhe
disse nada), com quem se iniciou na audição de música clássica, ...E de cujos discos em
vinil abusou profusamente! Sobre o Manuel tinha ouvido, por puro acaso, que tinha
sofrido o início de um enfarte, que tinha deixado de fumar em consequência, ... Há
alguns meses atrás viu-o de longe, num restaurante de estrada, só, muito gordo,
sobreencasacado, aproximando-se sucessivamente de quatro ou cinco mesas vazias,

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olhando fixamente os restos nos pratos deixados pelos comensais, e sair porta fora. Este
episódio assustou-o, deixou-o angustiado.
De súbito veio-lhe à memória as circunstâncias em que o conheceu pela primeira
vez. Há poucos dias que conhecia Paula. João sentia-se lisonjeado, e também
intimidado, pela forte atracção não declarada de Paula por si. Nos olhares, nos toques
ocasionais, na monopolização que a sua presença exercia sobre a atenção de Paula em
todas as situações. Era também uma noite de sexta feira em casa de Manuel, juntamente
com dois ou três amigos de infância deste e de Paula. Um grupo de adultos ainda há
pouco adolescentes. Manuel provocou de imediato em João uma impressão fortemente
desconcertante, que desde logo o deixou algo paralisado por não encontrar
comportamentos que o ajudassem a entrar em sintonia. João tinha há pouco tempo
optado por cortar radical e definitivamente com o grupo de amigos com quem convivia
diária e quase exclusivamente desde os seus treze anos. Dados estes antecedentes
próximos, era grande a sua vontade de agradar, de se integrar, o que lhe tolhia ainda
mais a fluência de comportamentos. Manuel revelou-se desde logo de uma
expansividade forçada e exagerada, definindo, a propósito dos diferentes temas de
conversa, quais os gostos e opiniões que se deveriam ter sobre cinema, literatura,
restaurantes, música, pessoas, etc. Esta torrente emissora de normas radicais sobre tudo
e todos como que sofocou João num espanto totalmente contido. Causou-lhe particular
impressão a leviandade e crueldade de que Manuel dava mostras ao desqualificar
definitivamente algumas pessoas, que João na altura ainda nem sequer conhecia, pelo
facto de em algumas ocasiões terem manifestado opiniões contrárias às suas. Como se
aquelas se tratassem de questões de vida ou de morte. Os seus discursos, de um
arrebatamento alucinante, incondicionalmente a favor ou contra, e demolidores da
dignidade de algumas pessoas, por questões de somenos importância, provocaram em
João estranheza, desconfiança, receio. Para todo aquele arrebatamento, João não
encontrou resposta, e optou inconscientemente por não se expressar, na medida em que
isso fosse possível. Percebia agora, anos depois, que aquele era o modo de Manuel
tentar agradar, ser reconhecido, valorizado, ... Bastava ter-lhe dado um pouco do que ele
queria! Talvez a relação entre ambos tivesse vindo a ser diferente.
Quiça um dia se encontrem ... Sai do seu carro, acciona o alarme e fecho
automático, e em passos largos dirige-se para casa, ao encontro da alcofa aquecida,
espera, por uma gata e dois gatinhos. O espaço para a música continuaria, como quase
sempre, limitado aos tempos de viagem na estrada ...

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