SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 1

Índice Expediente

DESTAQUE 5 POLÍTICA 11
Think Tank - A Revista da Livre-Iniciativa
Ano XIV - no 52 - Set/Out/Nov - 2010

A DIPLOMACIA BRASILEIRA E O CONSELHO
DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS
Georges D. Landau
AS IDEIAS SOCIALISTAS AVANÇAM,
REALMENTE, NA AMÉRICA LATINA?
Armando de la Torre
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
Arthur Chagas Diniz
Elcio Anibal de Lucca
Alencar Burti
Paulo de Barros Stewart
Jorge Gerdau Johannpeter
Jorge Wilson Simeira Jacob
José Humberto Pires de Araújo
Raul Leite Luna
Ricardo Yazbek
Roberto Konder Bornhausen

14
Romeu Chap Chap
ESPECIAL MATÉRIA DE CAPA 15 CONSELHO EDITORIAL
Arthur Chagas Diniz - presidente
Alberto Oliva
Aloísio Teixeira Garcia
Antônio Carlos Porto Gonçalves
Bruno Medeiros
Cândido José Mendes Prunes
Jorge Wilson Simeira Jacob
José Luiz Carvalho
Luiz Alberto Machado
Nelson Lehmann da Silva
O BOM, O MAU E O FEIO Octavio Amorim Neto
MERCADO E REGULAÇÃO DO SETOR Roberto Fendt
Uma visão liberal do fato DE SAÚDE SUPLEMENTAR NO BRASIL Rodrigo Constantino
Sandro Leal Alves William Ling
Og Francisco Leme e
INTERNACIONAL 21 LIVROS 26 Ubiratan Borges de Macedo
(in memoriam)
DIRETOR / EDITOR
Arthur Chagas Diniz
JORNALISTA RESPONSÁVEL
Ligia Filgueiras
RG nº 16158 DRT - Rio, RJ

BRASIL E ÁFRICA: UMA NOVA
ETAPA NO RELACIONAMENTO?
Roberto Fendt
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PAN-AFRICANISMO SEM RACISMO
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SÃO PAULO
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reprodução de seu conteúdo editorial, desde que mencionada a fonte.
 Leitores
Sua opinião é da maior impor-
tância para nós. Escreva para
Banco de Idéias.
Ao Editor,
Tenho assistido inúmeras in-
vasões de terra, aqui perto do
Recife, onde moro. As desocu-
pações são muito demoradas,
embora os invasores não ques-
tionem o direito do proprietário a
essas terras. De um modo geral,
eles abatem cabeças de gado,
destroem plantações e, quando o
proprietário consegue retomar o
uso de suas terras, não recebe
nenhuma indenização pelos pre-
juízos incorridos. O que preten-
dem esses invasores do MST, e
porque a justiça brasileira é tão
leniente?
Paulo Roberto dos Santos
Recife – PE
Prezado leitor,
Embora não exista qualquer
justificativa para leniência em
relação a crimes que caracteri-
zam agressões ao direito de pro-
priedade, o aparelho judiciário
em alguns estados da União pra-
tica o que chamamos de direito
alternativo. Isso significa que lá
a justiça não trata a questão sob
a ótica da legalidade, mas trata
diferentemente os desiguais,
contra o que preceitua a lei.
Quando é autorizada a ação de
reintegração de posse, os pro-
prietários contam com a má von-
tade do governo local.
O MST, que é hoje em dia
uma excrescência, pratica uma
política de invasões cuja essência
não é a ocupação da terra em
si, mas o questionamento do
direito de propriedade. Quanto
ao ressarcimento de prejuízos, o
proprietário que teve sua terra
invadida não tem nenhum ressar-
cimento e paga, ainda, os custos
de sua ação penal, porque o
MST não existe juridicamente.
O editor
Envie as suas mensagens para
a rua Rua Maria Eugênia, 167 -
Humaitá - Rio de Janeiro - RJ -
22261-080, ou ilrj@gbl.com.br.
Editorial
s tentativas do Brasil de par-
A ticipar do Conselho de Segu-
rança das Nações Unidas como
membro permanente datam das
conferências iniciais que consti-
tuíram a ONU. O Professor de Re-
lações Internacionais da FAAP,
Georges D. Laundau, nos conduz
pelos caminhos trilhados pela Di-
plomacia Brasileira, por iniciativa
própria ou induzida pela Presidên-
cia da República, na busca de um
lugar permanente em tão seleto
grupo. Nesse passeio pela histó-
ria diplomática do Brasil o autor
examina com acuidade as impli-
cações da diplomacia presidencial
do governo Lula ao responder à
pergunta: Em que consiste essa
diplomacia essencialmente ideo-
lógica?
Muitos têm se alarmado com
a aparente expansão, na Améri-
ca Latina, das teses reunidas sob
o manto do socialismo do século
XXI. Estariam as idéias socialistas
realmente prosperando na Amé-
rica Latina? Destacando o cresci-
mento do autoritarismo de esquer-
da de alguns governos da região,
assim como o benigno exibicio-
nismo dos autodenominados so-
cial-democratas, o professor Ar-
mando de La Torre, Diretor da
Escola Superior de Ciências So-
ciais da Universidade Francisco
Marroquin, na Guatemala, res-
ponde a essa pergunta com um
sonoro não.
O professor de economia da
Universidade Santa Úrsula e ge-
rente-técnico da Federação Na-
cional de Saúde Suplementar,
Sandro Leal Alves, analisa os prin-
cipais impactos da regulamenta-
ção imposta pela ANS ao setor de
saúde suplementar. De forma cla-
ra e didática o autor faz uma ra-
diografia do setor, demonstrando
sua importância quantitativa, para
então debruçar-se sobre a regu-
lamentação influenciada por um
viés sanitarista. A natureza dos
serviços de saúde impede o bom
funcionamento de um mercado
para tais serviços? A despeito das
chamadas falhas de mercado, o
autor deixa claro que as regula-
mentações impostas ao setor aca-
bam por emperrar o funciona-
mento do mercado. Em sua aná-
lise da regulamentação, Sandro
Leal não só destaca os benefícios
que se vêem, mas também os cus-
tos que não se vêem.
Roberto Fendt, Vice-Presidente
licenciado do IL e atualmente as-
sessor do Ministro de Estado e da
Coordenação Econômica de An-
gola, nos guia em uma viagem até
a África, na qual ilustra seus con-
vidados sobre as relações do Brasil
com aquele continente. Com um
discurso prazeroso e simples nosso
guia inicia a jornada no século XV
com a chegada dos portugueses.
Passando pela intromissão de
outras potências no Atlântico Sul,
somos levados a conhecer as re-
lações do Brasil com a África des-
de a época do império. Nossa
viagem termina com um alerta:
chegaram os chineses.
Na Casa de Meu Pai, do filó-
sofo Kwame Anthony Appiah, é
o livro resenhado por Rodrigo
Constantino. Nascido em Gana,
o autor analisa a noção de pan-
africanismo e destaca ser a cul-
tura mais importante que a raça.
NOTAS examina a proposta do
substitutivo do relator ao PL nº
1876, o novo código florestal
Nesta edição você encontra o
resumo do livro To Serve and Pro-
tect, de Bruce L. Benson, efetuado
pelo Prof. José L. Carvalho.
Encerra esta edição o Bom, o
Mau e o Feio, destacando fatos
ocorridos no trimestre em curso.
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 4
 Destaque

A diplomacia brasileira e o Conselho

de Segurança das Nações Unidas
Georges D. Landau
Professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), São Paulo. Membro do
Conselho Curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), Rio de Janeiro.

I. ANTECEDENTES HISTÓRICOS ção da paz e da segurança inter- ca da China) e a França. Os Esta-

uando, em 1945, após o
Q fim da II Guerra Mundial a
Conferência de São Francisco re-
sultou no estabelecimento da Or-
ganização das Nações Unidas
(ONU), criou-se como órgão su-
premo da Organização o Con-
selho de Segurança (CSNU), in-
cumbido de velar pela manuten-
nacionais. Neste órgão, com 15
membros, estipulou a Carta que
cinco deles – os países vitoriosos
no conflito – teriam assento per-
manente e direito de veto. Então,
como hoje, os membros perma-
nentes eram/são: os Estados Uni-
dos, a Grã-Bretanha, a Rússia (su-
cessora da União Soviética), a Chi-
na Popular (sucessora da Repúbli-
dos Unidos já eram uma potência
nuclear, e subsequentemente os
demais chegaram a sê-lo1.
Foi cogitada em 1945, quan-
do da conferência de Dumborton
Oaks (preparatória da de São
Francisco), a participação do Bra-
sil como um dos membros perma-
nentes do Conselho de Segu-
rança, que passariam a ser seis2.

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 5

Afinal, nosso país contribuiu para
a vitória aliada com um contin-
gente militar que combateu bra-
vamente na Itália, e foi o único
país latino-americano a fazê-lo. O
cemitério militar de Pistóia teste-
munha que sangue brasileiro foi
derramado nos campos de bata-
lha da Europa. Além de tropas, o
Brasil durante toda a II Guerra foi
um precioso fornecedor de ma-
térias-primas, e sem as bases
aéreas estratégicas no Norte e
Nordeste do Brasil dificilmente
teriam podido os Aliados atacar
os redutos do Eixo na África do
Norte. Tudo isso, porém, foi esque-
cido em 19453. No intervalo en-
tre as duas conferências foi logo
descartada a pretensão brasileira,
e a nossa diplomacia, então
caudatária dos Estados Unidos,
com isso se conformou4. Passa-
ram-se décadas sem que o Brasil,
prestigioso e acatado membro da
ONU – e honrado, desde 1948,
com a tradição de abrir todos os
anos a Assembleia Geral – reivin-
dicasse assento permanente no
Conselho de Segurança, embora
muitas vezes – como ocorre ago-
ra (biênio 2010-11) – tenha ocu-
pado uma das dez cadeiras ro-
tativas e várias vezes a presidên-
cia do órgão. A reivindicação res-
surgiu em 1989 no governo Sar-
ney, que empreendeu esforços
diplomáticos nesse sentido. A Car-
ta de São Francisco refletiu a cons-
telação de forças do imediato
após-guerra, e, embora países
como a Grã-Bretanha e a França
estivessem então exangues e
exânimes,5 assim como a URSS e
a então República da China (à
qual sucedeu em 1949 a Repú-
blica Popular)6, todos devastados
pela guerra, qualificavam-se ain-
da como potências vitoriosas na
II Guerra, e o Brasil foi conside-
rado um aliado menor, periférico.
Em sucessivos ensejos subse-
quentes e com diferentes matizes
o Brasil expressou interesse por
Destaque
ocupar um assento permanente
no Conselho de Segurança, re-
nunciando inclusive explicitamen-
te ao direito de veto caso fosse
necessário. A demanda foi sem-
pre individual, e não se revestiu
do caráter de uma representação
regional latino-americana, que
aliás teria sido contestada, como
o foi, pela Argentina e pelo Mé-
xico. Em 1989, no discurso que
pronunciou ao inaugurar a As-
sembleia Geral das Nações Uni-
das, o presidente José Sarney
“
Foi cogitada em
1945, quando da
conferência de
Dumborton Oaks
(preparatória da
de São Francisco),
a participação do
Brasil como um
dos membros
permanentes
do Conselho de
Segurança,
que passariam
”
a ser seis.
postulou formalmente o ingresso
do Brasil como membro perma-
nente do CSNU, abdicando do
direito de veto. Mas a proposta
não foi adiante7.
Durante a presidência de Fer-
nando Collor o chanceler Celso
Lafer, ao proferir, em setembro de
1991, o discurso de abertura da
Assembleia Geral, invocou o ar-
gumento da necessidade de
democratização do sistema inter-
nacional e o da representati-
vidade do Conselho de Seguran-
ça. Propôs o ministro Lafer que
os reajustes a este, reivindicados
por numerosos países, fossem
considerados com prudência,
mas com “perspectivas de futuro”.
Já na presidência de Itamar Fran-
co, estando à frente do Itamaraty
o ministro Fernando Henrique Car-
doso, este, em outubro de 1992,
preconizou a volta do Brasil ao
Conselho como membro não per-
manente (o que efetivamente
ocorreu no ano seguinte, após 13
anos de ausência), e encareceu o
imperativo da democratização do
CSNU. Em sua primeira gestão,
sob a presidência de Itamar Fran-
co, o ministro Celso Amorim pro-
nunciou-se no mesmo sentido, na
Assembleia Geral de 1993. Entre-
tanto, apenas cinco países, e não
dos maiores, apoiaram a preten-
são brasileira, que não vingou.
Com a presidência de Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002),
sendo chanceler (até 2001) Luiz
Felipe Lampreia, mudou a ênfase
do pleito brasileiro, passando este
a ter importância secundária; o
Brasil não mais praticaria uma
política de prestígio, embora sim
defendesse a necessidade de re-
forma do sistema institucional das
Nações Unidas, para que melhor
refletisse “a diversidade de visões
do mundo”. Este tema foi reite-
rado ante a Assembleia Geral e
em várias outras oportunidades
pelo presidente e pelo chanceler.
Em novembro de 2001, ao abrir
os debates da 56ª Assembleia Ge-
ral, o presidente FHC reclamou a
ampliação do CSNU, em nome de
uma ONU “forte e ágil”, e defen-
deu a criação de assentos perma-
nentes para países em desenvol-
vimento credenciados para exer-
cer as altas responsabilidades
que o Conselho demandava. Em
2002, novamente chanceler,
Celso Lafer reiterou que o Brasil
estava “pronto a dar a sua contri-
buição para o trabalho do CSNU,
e a assumir todas as suas respon-
sabilidades”.
Pode-se afirmar, em resumo,
que durante o governo de FHC a
questão foi suscitada, mas não de
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 6
 Destaque

forma proativa. Com efeito, o pre- juntura, e outras medidas proces- tações, salvo as dos “hermanos”
sidente FHC temia melindrar a suais. Se adotadas, o Brasil decer- latino-americanos, o mesmo não
Argentina, inequivocamente opos- to teria sido aquinhoado com uma se pode dizer dos demais países
ta à pretensão brasileira, e o mi- das novas vagas permanentes.9 candidatos. A Índia tem as suas
nistro Lampreia, conhecedor das credenciais questionadas pelo
dificuldades de uma reforma II. TEMPOS ATUAIS: A Paquistão, o Japão conta com o
institucional das Nações Unidas, DIPLOMACIA DO GOVERNO LULA veto da China (bem lembrada das
manifestava-se cético em face do atrocidades cometidas em
êxito de uma hipotética reivindica- Já na presidência de Luiz Nanjing) e a Alemanha sofre opo-
ção. Lampreia tinha conhecimen- Inácio Lula da Silva, estando no- sição da Espanha e da Itália. As-
to de que o aumento do número vamente à frente do Itamaraty o sim, a proposta de reforma do
de membros permanentes, possi- ministro Celso Amorim,10 o Brasil Conselho gorou. Realisticamente,
velmente mediante alguma moda- incorporou-se ao G-4 (Alemanha, não se pode esperar a curto pra-
lidade de representação regional, Índia, Japão e, a partir desse mo- zo uma solução favorável da rei-
exigiria a reforma da Carta de São mento, o Brasil). Como tal, vindicação brasileira, agora
Francisco. Isso equivaleria a abrir apoiou uma das opções de indissociável dos seus parceiros
a caixa de Pandora, com conse- Annan, a que aumentava o nú- no G-4. Em termos de estratégia
quências imprevisíveis, e, na con- mero de membros permanentes diplomática, ao vincular a sua
juntura internacional dos anos para seis novos, i.e., os do G-4 candidatura ao G-4, dadas as
90, como na de hoje, as grandes mais dois africanos. No âmbito do resistências aos demais membros
potências, desejosas de preservar G-4 a Alemanha e o Japão (am- deste, o Brasil debilitou a sua pró-
uma situação privilegiada que bos “perdedores” da II Guerra pria aspiração.
para várias delas dificilmente se- Mundial, mas hoje entre os gran- No seu discurso de posse na
ria sustentável na atualidade, pre- des países líderes da economia chefia do Itamaraty, em 2003,
feriram ignorar o problema. global), e a Índia, integram o se- Celso Amorim, chanceler duran-
Em novembro de 2003 um leto clube de aspirantes a uma te todo o governo Lula, advogou
Comitê Internacional de Notáveis, cadeira vitalícia no Conselho. Se a inclusão no CSNU de países em
nomeado pelo Secretário-Geral a participação do Brasil nesse desenvolvimento como membros
Koffi Annan e integrado inclusive grupo não sofre maiores contes- permanentes, “de modo a refor-
pelo embaixador brasileiro João
Clemente Baena Soares, ex-Secre-
tário-Geral da OEA, havia formu-
lado propostas de reforma da
ONU, e em particular a limitação
do direito de veto no seio do
CSNU.8 O Secretário-Geral Koffi
Annan apresentou em 21 de mar-
ço de 2004 as suas propostas,
amplas e abrangentes, para a
reestruturação das Nações Uni-
das, inclusive a reforma do Con-
selho de Segurança, com a espe-
rança de que tais reformas fossem
adotadas no ano seguinte pela
Assembleia Geral comemorativa
dos 60 anos da Organização.
Contudo, tal não ocorreu. A ONU
estava demasiado polarizada com
a guerra do Iraque. Koffi Annan
propôs a expansão do número de
membros do Conselho de 15
para 24, para torná-lo mais re-
presentativo e compatível com a Em 2003, um Comitê Internacional de Notáveis, nomeado pelo então Secretário-
realidade geopolítica daquela con- Geral Koffi Annan, havia formulado propostas de reforma da ONU.

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 7
 Destaque

çar a legitimidade e a repre-

sentatividade [do Conselho]”. Lula
e seu chanceler iniciaram a par-
tir do começo do mandato uma
campanha proativa para obter a
ambicionada cadeira cativa no
CSNU.
Com efeito, o G-4 em dezem-
bro de 2004 expressou a opinião
coletiva dos seus membros de que
as reformas propostas pelo Se-
cretário-Geral Koffi Annan supri-
miriam as deficiências estruturais
do Conselho, e em março de
2005 o Brasil, na presidência
rotativa deste e apoiado pelos
outros três membros do G-4, pro-
pôs formalmente à Assembleia
Geral a reforma do CSNU. Em
julho do mesmo ano o Embaixa-
dor Ronaldo M. Sardenberg, Re-
presentante Permanente do Bra-
sil ante as Nações Unidas, apre-
sentou em nome de 29 países um Não há como negar que o protagonismo pessoal do presidente Lula elevou o
projeto de resolução (com pou- Brasil a um novo patamar nas relações internacionais do país.
cas assinaturas latino-america-
nas: Haiti, Honduras e Paraguai) dente Lula elevou o Brasil a um nismos internacionais tradicio-
sobre a reestruturação do Con- novo patamar nas relações inter- nais, tanto universais como re-
selho. A resolução não vingou, nacionais do país. O que cabe gionais, vem assumindo um papel
graças basicamente à oposição discutir é o custo-benefício dessa crucial na governança global. É
da União Africana – que pleitea- diplomacia presidencial. No cam- evidente que o mundo atual dife-
va para os seus membros três em po comercial, por exemplo, o pre- re fundamentalmente daquele de
vez de dois assentos permanen- sidente tem desempenhado, com depois da Segunda Guerra, e já
tes. Contudo, em sucessivos dis- certo êxito, um papel que melhor que parecem ser insuperáveis as
cursos do presidente Lula e arti- teria correspondido ao ministro dificuldades para a reforma es-
gos do ministro Amorim, entre da pasta pertinente. Entretanto, o trutural das Nações Unidas e seus
2005 – ano do 60º aniversário Brasil, sob a hipoteca diplomáti- Organismos Especializados, foi
da ONU – e 2007, o Brasil ex- ca de sua participação no Mer- preciso criar novos mecanismos
pressou a esperança de um des- cosul, não logrou firmar durante de governança global. Estes, po-
fecho favorável para o projeto esses oito anos um único acordo rém, não subtraem ao Conselho
que ampliaria o Conselho. 11 de livre comércio. Não compete de Segurança a sua responsabi-
Note-se que a política africana do a um chefe de estado ser caixeiro- lidade central pela manutenção
presidente (que até o presente fez viajante, ainda que o faça com da paz e da segurança interna-
onze visitas oficiais à região) não êxito. Mas é certo que o imenso cionais.
logrou angariar o apoio dos paí- carisma do presidente, que se re- Uma das consequências da
ses africanos à reivindicação bra- flete tanto no campo interno como diplomacia presidencial, altamen-
sileira. no externo, tem grangeado ao te personalizada, que caracteri-
país uma atuação invejável nos za o governo Lula, é a sua ideo-
III. CUSTO-BENEFÍCIO DA foros multilaterais. logização. Ao esposar, no início
DIPLOMACIA PRESIDENCIAL Entre estes, sobressaem o G-8 de seu governo, em 2003, os
e o G-20, e particularmente nes- princípios fundamentais da ges-
Não há como negar que o te último, que ante a relativa inér- tão econômica de seu predeces-
protagonismo pessoal do presi- cia e a obsolescência dos orga- sor, o presidente FHC, Lula optou

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 8

por satisfazer a ala radical do
Partido dos Trabalhadores me-
diante uma política externa que
destoa da política econômica in-
terna, relativamente conserva-
dora, que praticou ao longo dos
seus dois mandatos (especial-
mente do primeiro), e que contri-
buiu para a atual prosperidade
do país.
Um dos fatores responsáveis
por tal ideologização da política
externa do país foi a entrega, pelo
presidente, de uma parcela cada
vez maior da sua condução ao
assessor presidencial para assun-
tos internacionais, o Prof. Marco
Aurélio Garcia, ideólogo do PT, e
durante uma década responsável
pelas relações exteriores do Par-
tido com todas as esquerdas do
planeta, refletidas no Foro de S.
Paulo. A partir do Palácio do Pla-
nalto, Garcia pratica uma espé-
cie de diplomacia paralela à do
Itamaraty, e nem sempre con-
soante com esta. O Serviço Exterior
do Brasil é um corpo de elite na
administração brasileira, cultiva tra-
dicionalmente um profissionalismo
que honra o país, mas que muitas
vezes esbarra numa política de
orientação ideológica que tem le-
vado o Brasil e seu governo a
situações constrangedoras.
Obviamente, não se contesta
aqui o direito de um governante
que, democraticamente eleito e
reeleito por expressiva maioria,
queira imprimir à sua política ex-
terior o seu viés político, que co-
incide com o do partido ao qual
pertence. Daí as prioridades diplo-
máticas da gestão Lula – ênfase
na direção Sul-Sul, com especial
relevância para o entorno latino-
americano e o africano, simpatia
por governos de esquerda (que
vão do rosa pálido ao púrpura
carregado), e até um certo anti-
americanismo primário. A execu-
ção dessa política externa se ca-
racteriza por uma assertividade
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 9
Destaque
internacional cada vez maior, em
si salutar, mas não raro remi-
niscente do “Brasil potência” do
regime militar, e igualmente des-
provida de substância. Trata-se
da projeção externa de um na-
cional-desenvolvimentiano socia-
lizante, cujos excessos – como a
estatização desabrida – implicam
altíssimo custo, e só prejudicam
o país.
É nesse contexto que se deve
situar a atuação do governo Lula
em muitos âmbitos externos.
“ Em sucessivos
discursos do
presidente Lula e
artigos do ministro
Amorim, entre
2005 – ano do
60º aniversário da
ONU – e 2007, o
Brasil expressou a
esperança de um
desfecho favorável
para o projeto que
ampliaria o
Conselho.
” no silêncio complacente do Brasil
Uma das linhas mestras da sua
atuação consiste precisamente na
busca de um assento permanen-
te, com ou sem direito de veto, no
Conselho de Segurança das Na-
ções Unidas. As dificuldades
institucionais em lograr tal objeti-
vo já foram mencionadas. Mas,
no altar dessa aspiração têm-se
sacrificado muitos outros interes-
ses nacionais, em detrimento da
cidadania e do contribuinte brasi-
leiro. Dado que a reforma da Car-
ta da ONU e a reestruturação do
CSNU passam pela Assembleia-
Geral da Organização, hoje com
quase 200 Estados-membros, a
cada um dos quais corresponde
um voto, segue-se, na concepção
do presidente Lula, que devem ser
individualmente cultivados muitos
desses Estados, sobretudo os
emergentes, mediante o exercício
de uma “diplomacia da generosi-
dade”, que o governo Lula, nes-
ses quase oito anos de mandato,
tem praticado com afinco.
Em que consiste essa diploma-
cia essencialmente ideológica? Na
criação de inúmeras embaixadas
de duvidosa utilidade nos países
em desenvolvimento, inclusive os
mais insignificantes; no perdão de
vultosas dívidas de países
inadimplentes, na tolerância de
gestos de indisfarçada hostilidade,
como a da expropriação pela Bo-
lívia, mediante uma indenização
pífia, de duas refinarias da Pe-
trobras; na aceitação de violações,
reiteradas e cabais, das regras do
Mercosul e da OMC por países
vizinhos; da renegociação do tra-
tado de Itaipu (1973) com o Pa-
raguai, sob condições que, se
aprovadas pelo Congresso, cus-
tarão ao consumidor brasileiro de
eletricidade mais de US$5 bilhões
ao longo dos próximos 13 anos;
quando o Conselho de Direitos
Humanos das Nações Unidas vota
sanções a países que são contu-
mazes violadores desses direitos;
na recusa da extradição à Itália
do terrorista Battisti, condenado
por quatro homicídios em seu país,
ao passo que foram devolvidos a
Cuba dois atletas cubanos que
pediram asilo ao Brasil após os
Jogos Pan-americanos de 2007;
nas desastradas tentativas de me-
diação no Oriente Médio (repelida
por ambos os lados em conflito) e
com o Irã, em flagrante desafio
aos atuais cinco membros perma-
nentes do CSNU; na ridícula con-
cessão do refúgio na embaixada
do Brasil em Honduras ao golpista
Manuel Zelaya, aliado ‘boliva-

riano’ de Hugo Chávez; e em
muitas outras iniciativas, onerosas
quer para o prestígio do país, quer
para o bolso do contribuinte.
Além da acolhida dada a um
bom número de refugiados de va-
riada procedência, há um único
exemplo bem-sucedido da diplo-
macia da generosidade, empre-
endida pelo presidente Lula, com
vistas a robustecer o seu pleito de
um assento permanente no
CSNU: é o da participação bra-
sileira na Minustah, a missão das
Nações Unidas de estabilização
e segurança no Haiti, com um
expressivo contingente militar e o
comando de um general brasilei-
ro. O Brasil no passado teve ati-
va participação em numerosas
missões de paz das Nações Uni-
das, que credenciam o país como
um membro responsável da Or-
ganização, e, como no caso
atual, do seu Conselho de Segu-
rança. A missão no Haiti se dis-
tingue ao representar um esfor-
ço significativo – em termos ma-
teriais e humanos – em prol da
estabilidade do país mais pobre
do continente, mormente após o
recente terremoto que devastou
o pouco que lhe restava. Tanto
assim é que ao contingente mili-
tar vieram somar-se representa-
ções de outros órgãos públicos e
de numerosas ONGs humani-
tárias, que enaltecem o prestígio
do Brasil.
IV. CONCLUSÃO
Ao longo desses oito anos da
presidência Lula, a política exter-
na do país tem sido extremamen-
te ativa. O presidente da repúbli-
ca visitou mais de 60 países, mui-
tos deles mais de uma vez e
vários como primeiro manda-
tário brasileiro a visitá-los. Fez
onze viagens à África, o que não
impediu países africanos de sa-
botarem o pleito brasileiro de um
assento permanente no CSNU.
Destaque
Empenhou-se a fundo pela con-
clusão da Rodada de Doha, mas
não pôde impedir países africa-
nos de torpedear o acordo final,
de transcendental importância
para o Brasil. Tampouco a parce-
ria estratégica com a França im-
pediu que esta inviabilizasse o
acordo de livre comércio entre a
União Européia e o Mercosul, sob
negociação há seis anos. Outros
parceiros votaram contra as can-
didaturas brasileiras em vários or-
ganismos internacionais, como a
OMC e o BID. Não se trata aqui
de fazer uma crítica geral à polí-
tica externa do governo Lula, que
teve aspectos extremamente po-
sitivos.12 Trata-se, sim, de demons-
trar que a insistente busca de uma
posição privilegiada no Conselho
de Segurança das Nações Uni-
das, a de titular de um assento
permanente, representou um alto
ônus para a diplomacia brasilei-
ra e a nação, não condizente com
as realidades e aspirações do
país.
Não se vislumbra por ora a
realização da aspiração brasilei-
ra, velha de 65 anos, de uma ca-
deira permanente no Conselho de
Segurança. Os méritos do Brasil
para candidatar-se a esse galar-
dão são hoje bem maiores e mais
reconhecidos que ao tempo da
Carta de São Francisco. Também
é bem mais nítida a capacidade
brasileira de exercer tal mandato
se e quando for obtido, e de as-
sumir as grandes responsabilida-
des daí decorrentes. Não depen-
de de nós a obtenção do assento
permanente, será um corolário da
conjuntura global. O Brasil fez o
que pôde, e até mais. No gover-
no Lula pagou um altíssimo pre-
ço diplomático por lograr a satis-
fação de uma antiga ambição
nacional. A busca da cadeira no
CSNU permeou toda a política
exterior do Brasil durante o gover-
no Lula e suas relações bilaterais,
assim como multilaterais.
NOTAS E REFERÊNCIAS
1
Não é requisito que os membros perma-
nentes sejam potências nucleares. Também
o “clube atômico” se expandiu, e o mono-
pólio do arsenal nuclear não mais se confi-
na, como há meio século atrás, aos cinco
membros permanentes do CSNU; mais re-
centemente Índia, Paquistão, Israel, Coréia
do Norte e provavelmente o Irã, além de
outros países, já têm ou, em breve, terão
armamentos nucleares e meios de detoná-
los. Com o fim do apartheid, a África do Sul
desistiu de ter uma capacidade nuclear.
2
Comentários do chanceler brasileiro,
Pedro Leão Velloso, ao Plano de Dumborton
Oaks de Criação das Nações Unidas (1945),
em Fernando de Mello Barreto (Os Suces-
sores do Barão, v.1 (1912-1964). S. Pau-
lo: Paz e Terra, 2001, pp. 156-162. Houve
um acordo entre o Ministro Leão Velloso e
o Secretário de Estado americano, Stettinius,
no sentido de que se fosse criada uma sexta
vaga no CSNU ela corresponderia ao Bra-
sil, mas os Quatro Grandes de então, (EUA,
Grã-Bretanha, URSS e China) recusaram a
proposta, oferecendo apenas ao Brasil um
assento não permanente com mandato de
dois anos.
3
Soubessem então os EUA e os demais
aliados ocidentais que dois anos mais tarde
se abateria sobre a Europa uma “Cortina de
Ferro”, e que com ela se iniciaria a Guerra
Fria, talvez tivessem insistido na participação
do Brasil no Conselho de Segurança, mas
isso é mera especulação.
4
Os antecedentes históricos sugeririam o
contrário. Ao tempo da Sociedade das Na-
ções (SDN), em 1926, o Brasil deixou a
organização quando a Alemanha (derrotada
no conflito de 1914-18), e não o Brasil, foi
convidada a integrar o Conselho Permanen-
te da SDN. Veja-se Eugênio V. Garcia, o
Brasil e a Sociedade das Nações. Brasília:
Fundação Alexandre de Gusmão.
5
Para reerguer economicamente a Europa
e salvá-la do proselitismo soviético foi
preciso que os EUA implementassem o Pla-
no Marshall a partir de 1948.
6
Nas Nações Unidas a substituição fez-se
em 1971, após a visita do Presidente Nixon
à China.
7
Luiz Felipe Seixas Corrêa, A Palavra do
Brasil nas Nações Unidas. Brasília: Fundação
Alexandre de Gusmão, 1995, p.p 503-4.
8
Baena Soares integrou, a convite de Koffi
Annan, o Painel de Alto Nível sobre Amea-
ças, Desafio e Mudança.
9
Maria Helena Tachinardi, “A volta da ve-
lha senhora” in Desafios do Desenvolvimen-
to (IPEA, Brasília), ed. 10, agosto de 2004.
A alternância dos chanceleres pode pres-
10
tar-se a alguma confusão: Celso Lafer foi
chanceler de Fernando Collor em 1992 e
outra vez de FHC em 2001-2; Celso
Amorim foi chanceler de Itamar Franco em
1993-94 e outra vez de Lula, em seus dois
mandatos (2003 ao presente).
11
Fernando de Mello Barreto. Os Suces-
sores do Barão, tomo III (volume em prepa-
ração, consultado por deferência especial
do autor).
12
Luiz Felipe d’Ávila e Oliver Stuenkel. O
desafio de tornar a política externa relevante
para o Brasil. S. Paulo: CLP Papers, nº 3,
2010.
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 10
 Política

As ideias socialistas avançam,

realmente, na América Latina?
Armando de la Torre
Diretor da Escola Superior de Ciências Sociais da Universidade Francisco Marroquín, na Guatemala, desde 1977.

ão creio nisso, e até me
N inclino a pensar o contrário.
O acelerado crescimento do au-
toritarismo “de esquerda” durante
a última década na América
Latina (sendo os mais extremados
os de Cuba, Venezuela, Bolívia,
Nicarágua) provoca muita retórica
barulhenta na mídia interna-
cional.
Ainda mais, o benigno exibi-
cionismo de alguns outros
governos da região, que se dizem
“social-democratas” (o de Correa
no Equador, o de Lula no Brasil,
o de Colom na Guatemala), lhes
serve como uma caixa de resso-
nância para aumentar em alguns
decibéis a mais os seus pronun-
ciamentos.
O célebre “socialismo do
século XXI”, contudo, se mostrou
nada mais que uma reciclagem
exausta e superficial de idéias
gastas e obsoletas, retiradas
impulsivamente das diversas
versões do socialismo real do
século XX.
O fato é que isso se traduziu
em um enfraquecimento dos
direitos de propriedade e na
hostilidade governamental, em
certos países, contra a livre
expressão do pensamento, sem
que se tenha chegado, todavia,
exceto em Cuba, às violentas
coletivizações estatizantes cujo
símbolo mais gritante, o Muro de
Berlim, foi derrubado com estré-
pito em 1989, pondo fim a mais
de 70 anos de desumanização
sistemática.
Se alguma coisa tornou o
palavrório demagógico de Hugo
Chávez mais ressonante foi, sem
dúvida, o suporte de abundantes
petrodólares que o acompa-
nham, diferentemente do atual
discurso moribundo de Fidel
Castro.
Inclusive, esse experimento
“comunista” em Cuba já é visto
mundialmente como um fra-
casso total, até mesmo por muitos
daqueles que se manifestam em
sintonia com o “socialismo do
século XXI”. É muito fácil perceber
esse fato: a “esquerda” atual-
mente faz apenas alusões ao
desempenho de Fidel Castro no
passado.
Por outro lado a Venezuela,
enquanto Estado benfeitor
benfeitor,
caminha inevitavelmente em
direção a uma condição de
estado “falido”, e essa realidade

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 11

começa a calar até as massas
“chavistas” da própria república
bolivariana que sentem na carne,
hoje em dia, a maior inflação
galopante do hemisfério, a
progressiva escassez dos artigos
de consumo da cesta básica
familiar, os mais altos índices de
criminalidade urbana de toda sua
história, a ausência de investi-
mentos estrangeiros que geravam
emprego, a contração da pro-
dução agrícola e industrial, a
polarização social cada vez mais
aguda, a corrupção generalizada
nos processos da justiça civil,
penal e processual que atinge a
todos, a ausência de represen-
tação em um parlamento sem
membros da oposição, os cho-
ques com a Igreja no plano
interno e, no plano externo, as
desavenças com sua vizinha
Colômbia, com os EUA, Israel,
União Européia, México, Peru e até
o Chile.
Soma-se a tudo isso uma
constante e maciça fuga de
capitais e a emigração cada dia
mais volumosa de talentos nativos,
algo parecido com a nefasta
experiência dos cubanos na
década de 1960, embora de
maneira um pouco mais lenta.
Porém, nossas classes médias
progressivamente mais edu-
cadas se mostram mais bem
informadas sobre essas reali-
dades em todos os quadrantes
da América Latina.
Do mesmo modo, os êxitos
contemporâneos do livre mer-
cado, apesar da recente crise
financeira mundial e do custo da
luta contra o terrorismo islâmico,
estimulam paralelamente o
avanço pela consecução ou
preservação de estados de direito
genuínos, como no Chile, Co-
lômbia, Peru, Uruguai, Panamá
ou Costa Rica, ressaltando para
nossos povos uma alternativa
válida, em seu futuro, frente
ao mentiroso “socialismo do
século XXI”.
Política
Também não se podem es-
quecer os sucessivos milagres
econômicos ocorridos desde o
fim da Segunda Grande Guerra,
a partir da Alemanha na década
de 1950 e, mais ainda, entre as
economias nacionais da Ásia (os
famosos “tigres asiáticos”),
enfatizando desde o início a
promoção das exportações e
não a sua substituição – ao con-
trário dos conselhos de nossos
teóricos “da dependência” (em tor-
no de Raúl Prebisch e da CEPAL),
que tanto influenciaram os teó-
logos católicos “da libertação”.
Outros exemplos mais re-
centes, como os de algumas eco-
nomias ressurgentes no antigo
bloco soviético (Estônia, Eslovênia,
República Tcheca), se elevam como
uma imponente e reiterada
advertência endereçada ao mais
elementar sentido comum
contra o desacerto de qualquer
enfoque coletivista.
Também, essa colaboração de
fachada cada vez mais estreita
entre os autoproclamados “so-
cialistas do século XXI” e os
autocratas islâmicos, associados
pela opinião pública ao terrorismo
da jihad, os torna cada vez mais
repugnantes aos olhos dos
amantes da liberdade e da paz.
O sonho das utopias cole-
tivistas já foi sonhado, mas os
“socialistas do século XXI” não se
aperceberam.
Ainda se poderia citar o
incidente hondurenho de quase
um ano atrás como uma prova
adicional da paulatina mudança
da maré da opinião política latino-
americana, que nos afasta cada
vez mais do “socialismo do século
XXI”.
Porém, não deveríamos nos
preocupar tanto com esse pre-
tenso “socialismo do século XXI”,
pois isso perturba nossa busca
sistemática para identificar o que
queremos na realidade.
Aqui entra o tópico inevitável
de nossa obrigação de nos
educarmos e educar
educar. Isto é, de
refinar nossos conceitos e hipó-
teses no pressuposto de Pascal de
que “o esforço mental para
aclarar as idéias é o fundamento
de toda vida moral”.
A ética pública ficou esque-
cida em excesso, entre nós, por
muitos anos. Talvez o esforço
obsessivo para construir Estados
benfeitores modernos nos tenha
desviado do dever de prestar aten-
ção prioritariamente à dimensão
ética em nossas opções públicas.
E assim chegamos à prática
pouco questionada de que em
política, sobretudo no que se
refere à justiça social, “o o fim
justifica os meios
meios” (Cárdenas,
Vargas, Perón, Castro e que
tais...)
Por isso mesmo o êxito local e
passageiro do “chavismo” da
última década na América do Sul
não deve nos distrair desse
esforço educativo, muitíssimo
mais importante do que descobrir
como tornar impossível sua recor-
rência: o sentido deliberado
de obrigação moral ao escolher
ou utilizar os métodos para obter
nossos objetivos. Sob o estrito
ponto de vista da experiência
histórica, nossa primeira linha de
defesa deveria ser constituída pela
reafirmação vigorosa dos direitos
de todos à propriedade privada,
inclusive a do subsolo
subsolo. Esta
matéria não recebeu a devida
importância da parte de nossos
juristas latino-americanos. Creio
que isso é uma herança do
esmagador positivismo “científico”
de August Comte (sobre o qual se
construiu, mais tarde, o posi-
tivismo jurídico de Hans Kelsen),
entronizado em fins do século XIX
e que abriu espaço para as
“revoluções sociais” do século XX.
Esquecemo-nos de que os
escravos foram o que foram
porque seu direito à propriedade
não foi reconhecido, o que
consequentemente os deixava
indefesos por não disporem de
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 12

Em Cuba, Fidel Castro valeu-se espertamente por meio século da supressão de fato da
propriedade privada na ilha para consolidar sua férrea ditadura totalitária.
meios com os quais pudessem
defender todos os seus outros
direitos, começando pelos direitos
à liberdade e à vida.
O caso de Cuba talvez seja
mais transparente. Fidel Castro
valeu-se espertamente por meio
século da supressão de fato da
propriedade privada na ilha para
consolidar sua férrea ditadura
totalitária, enquanto desviava
nossa atenção de suas ações
atrozes contra os direitos hu-
manos ao pôr em prática um
virulento antiamericanismo.
Uma segunda linha de defesa
que poderíamos adotar deveria ser
a salvaguarda incondicional do
direito à livre expressão
expressão. Sem
esse direito os povos se arrastam
às cegas para seu próprio des-
penhadeiro, que neste caso é o
“socialismo do século XXI” ao
estilo venezuelano.
Uma terceira linha de resis-
tência seria constituída pela
vontade solidária de todos os
homens e mulheres que acreditem
que viver subjugado por tiranos é
a única coisa que não se pode
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 13
aceitar, e isso desde o primeiro
gesto de despotismo
despotismo. Não somos
ilhas, muito menos átomos sepa-
rados...
Tal vontade solidária se con-
cretizou exemplarmente em
Honduras, onde o povo, em sua
maioria e através de suas ins-
tituições mais representativas (o
Congresso, a Corte Suprema, a
Corte de Constitucionalidade, a
Controladoria de Contas, o
Ministério Público), com o apoio
moral das igrejas, impediu as
intenções golpistas de Manuel
Zelaya, que seguia a linha orde-
nada por Hugo Chávez.
Lamentavelmente, essa mesma
vontade solidária para com o
povo hondurenho não ocorreu na
OEA, entre os embaixadores das
Américas, devido à intromissão
ilegítima de Lula da Silva, Daniel
Ortega e, uma vez mais, dos
irmãos Fidel e Raúl Castro, de
mãos dadas com seu financiador,
Hugo Chávez.
“Não há mal que dure 100
anos nem corpo que resista a
tanto”, diz um velho ditado cas-
Política
telhano. Os dissidentes cubanos
parecem divisar as primeiras luzes
do fim do longuíssimo túnel em
que vegetaram por mais de meio
século, enquanto ao mesmo
tempo os “socialistas do século
XXI” percebem as sombras que
haverão de engoli-los definitiva-
mente em um prazo relativamente
médio.
A antipatia dos governos do
Canadá, EUA e México em rela-
ção ao “socialismo do século XXI”
se soma às graduais medidas
restritivas da União Europeia, de
Israel e do Japão ao intercâmbio
comercial com esses regimes que
se qualificam como pseudosso-
cialistas.
Devemos nos voltar todos para
um pacto pan-americano que
destaque, como proclamou no
século XIX o mexicano Benito
Juárez, a obrigação, tanto por
parte dos estados como dos
indivíduos, de sempre ter em
mente este lema primordial: “o
respeito ao direito alheio é a paz”.
Isso implicaria, naturalmente,
algumas reformas profundas em
nossos códigos civil, penal e
processual, para assegurar mais
efetivamente a integridade das
pessoas e de seus bens diante das
agressões dos poderosos, visíveis
ou não
não.
Para isso cada um de nós
precisa fazer um profundo exame
de consciência sobre nossos
respectivos contratos sociais
constitucionais
constitucionais. Temos fracas-
sado repetidamente porque não
reconhecemos a importância
fundamental da cláusula de se-
paração dos poderes supre-
mos autônomos e iguais en-
tre si
si, a essência de qualquer
republicanismo, de modo que
realmente contemos com repú-
blicas que respeitem as minorias,
e não com monarquias presiden-
ciais eleitas por prazos de quatro,
cinco ou seis anos.
Mas esse assunto ficará para
uma outra ocasião.
 Especial
Uma visão liberal do fato
exta-feira, 8 de agosto de 2010:
S Augusto Nunes mostra no blog
‘Direto ao Ponto’, na Veja Online,
vídeo revelador sobre o Presidente
Lula e o governador do Rio, Sérgio
Cabral, na inauguração de conjunto
habitacional em Manguinhos, zona
norte do Rio. O jovem Leandro, de
17 anos, se aproxima do Sr.
Presidente e do Sr. Governador – e
sua entourage – para indagar sobre
a não existência de quadras de tênis
e sobre o acesso à piscina, fechada.
Surpreso com a interpelação, o
Presidente justifica que tênis é coisa
de burguês. Quanto à
impossibilidade de uso da piscina,
Lula reage com um palavrão e
volta-se para um assessor, advertindo
sobre “o custo político” de uma
piscina fechada num fim de semana.
O Governador também se
destempera e qualifica o jovem de
“otário”, procurando intimidá-lo num
bate-boca revelador, talvez assustado
com a coragem do adolescente. Era
um dia de capitalizar politicamente
as propaladas benesses da parceria
política entre o governo federal e o
estadual para a população mais
carente. O vídeo foi gravado em
maio de 2009, mas só agora vem
a público. São 73 segundos de pura
revelação da verdadeira face dos
dois políticos. A coragem de Leandro
e a tecnologia hoje disponível a
baixo custo tornaram possível ao
morador de Manguinhos a
“revelação”.
um mal para a democracia no
É Brasil a homogeneidade, tanto
de propostas quanto de ideologia,
dos candidatos à Presidência da
República. Estamos manietados pelo
politicamente correto. A mesmice
predomina devido aos riscos de ser
diferente, de propor algo novo.
A ausência de diversidade limita as
escolhas. Isso não ocorre por acaso.
Nosso sistema político sempre teve
como alimento o fisiologismo com
um forte componente arrivista.
Todos querem estar com o vencedor,
inclusive os financiadores de
campanha. Temos uma gigantesca
deficiência de homens e mulheres de
convicção, maior ainda entre os
políticos. Convicções são forjadas na
família e na escola. Nosso “índice
de desenvolvimento” nestes dois
quesitos é muito baixo, não por
acaso. Hayek identificou a seleção
adversa na política: os cidadãos
mais bem preparados raramente se
tornam políticos profissionais, e
quando tentam, não são eleitos,
não dominam o idioma das urnas.
No Brasil, o custo moral de se
aprender esse dialeto é muito
elevado. Os empresários já
perceberam que é mais fácil e
proveitoso comprar a simpatia dos
dirigentes em favor de seus negócios
do que lutar abertamente por
liberdade. Aqueles convictos dos
ideais libertários vivem entre a cruz
e a caldeirinha, em um exercício
permanente para manterem
seus negócios.
entir é feio, aprendemos na
M infância, tanto em casa quanto
na escola. Entretanto, os políticos do
PT agem como se nunca tivessem
aprendido isso, ou se esqueceram.
Mentem e dizem meias verdades. A
pessoa que se vale da mentira para
atingir seus objetivos torna-se um
viciado em mentir. Mesmo que não
venha a tirar partido de uma
afirmação mentirosa, ela é incapaz
de dizer a verdade. O vício a
identifica com a mentira. Esse parece
ser o caso da candidata Dilma
Rousseff. Sua propaganda eleitoral
está recheada de mentiras sobre as
realizações do atual governo. Uma
delas é que ele criou o ProUni.
Mentira, o ProUni resultou de
modificações introduzidas no já
existente crédito educativo, Creduc.
O programa ‘Minha Casa Minha
Vida’, apontado repetidamente como
responsável pela construção, e
suposta entrega, de 400 mil
unidades em um ano, até agosto
tinha produzido e entregue apenas
0,9% do que foi prometido.
Entretanto, a propaganda, em
meia- verdade, só se refere ao total
programado. As realizações do PAC
apresentadas como investimentos
efetivamente realizados são, na
realidade, apenas intenções, como
no caso da Rocinha – meia verdade
desmascarada pela imprensa.
A estratégia do PT é insistir com a
mesma mentira muitas vezes até
que ela seja vista como verdade.
Além de feio, é imoral.
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 14
 Matéria de Capa

Mercado e regulação do setor de

saúde suplementar no Brasil
Sandro Leal Alves
Economista, Mestre em Economia, Professor-assistente do Instituto de Ciências Econômicas e Gestão
da Universidade Santa Úrsula e gerente-técnico da Federação Nacional de Saúde Suplementar.

aturalmente, nem a diligên-
“N cia dos mortais comuns nem
as energias de uma economia
competitiva podem detectar, pre-
venir ou corrigir todos os azares,
negligências e fraudes da vida.
Portanto, nada mais natural que
nos voltarmos para aquele centro
de autoridade, aquele depositário
da virtude e da benevolência,
aquela fonte de justiça – o Esta-
do, para prover a mais ampla pro-
teção ao consumidor. Em conse-
quência, convivemos hoje com um
regime luxuriante e prolixo de leis
e agências para proteger o con-
sumidor”.
(George Stigler, prêmio Nobel de
Economia de 1982, em “The Theory
of Economic Regulation.” Bell Journal
of Economics and Management Science,
nº 3, pp. 3-18 – Tradução Livre)
para comprovar tal resultado.
Basta ler os jornais e assistir aos
noticiários que teremos a dimen-
são das dificuldades que per-
meiam o oferecimento público
de serviços de saúde e que re-
sultam em filas intermináveis e
baixa qualidade de atendimento,
penalizando principalmente os
mais pobres.
Não constitui objetivo deste en-
saio buscar as causas para a ine-
ficiência do SUS, que vão desde
os objetivos definidos constitucio-
nalmente, colocando a saúde
como um direito fundamental, até
as mazelas que atingem todo o
sistema político, como a ocupação
de espaços públicos por grupos
de interesses. Ao contrário, bus-
caremos neste artigo analisar al-
gumas das razões pelas quais o
mercado de saúde suplementar
não consegue atender o desejo de
muitos consumidores.
Para dar maior realismo ao ar-
gumento, imaginem as seguintes
situações hipotéticas. Um cida-
dão deseja adquirir um plano de
saúde que cubra o tratamento
de apenas algumas doenças bem
específicas, como câncer ou
doenças coronarianas, que ele,
por razões próprias, tema e bus-

1. INTRODUÇÃO
O sistema de saúde brasileiro
é tido pelos sanitaristas como sen-
do a maior e mais bem-sucedida
experiência de política social no
país. Ao final do período militar,
no esteio da chamada reforma
sanitária e, mais concretamente,
na promulgação da Carta Magna
de 1988, foram constituídos os
pilares de sustentação de um
sistema de saúde universal, inte-
gral e hierarquizado de viés bis-
marquiano. O Sistema Único
de Saúde (SUS) não consegue su-
prir as demandas crescentes da
sociedade por serviços de assis-
tência à saúde de forma igualitá-
ria e universal, e não é preciso
grande esforço demonstrativo

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 15

que proteção fora do setor públi-
co. Imagine outra situação onde
numa localidade do interior exis-
tam apenas algumas clínicas par-
ticulares que queiram vender para
os moradores da região planos
de saúde com cobertura restrita
àqueles serviços disponíveis. Ima-
gine uma terceira situação. Um
empresário deseja oferecer um
plano para seus funcionários que
contemple apenas alguns tipos de
consultas e exames.
Todas as situações anterior-
mente caracterizadas têm em co-
mum o fato de, por força da re-
gulamentação, não existir casa-
mento entre a oferta e a deman-
da de mercado. Nestes e em inú-
meros outros casos não há equi-
líbrio entre o desejo de ofertantes
e compradores, pois o Estado en-
tende que na área da saúde o
consumidor é hipossuficiente e in-
capaz de decidir pelo seu consu-
mo. A regulamentação do setor
buscou a proteção dos consumi-
dores a partir do estabelecimento
de coberturas mínimas obrigató-
rias, do controle dos reajustes dos
planos individuais, da criação de
regras para a entrada, operação
e saída do setor, dentre muitas
outras. Com o argumento de se
proteger o consumidor, a regula-
Tabela 1 – Distribuição dos Beneficiários de Planos de Saúde por Modalidade (Mar/2010)
Modalidade
Autogestão
Cooperativa Médica
Filantropia
Medicina de Grupo
Seguradora Especializada em Saúde
Cooperativa Odontológica
Odontologia de Grupo
Administradora
Total do Mercado
Matéria de Capa
mentação criou uma série de difi-
culdades para o oferecimento de
novos planos, e muitas operado-
ras optaram por atuar apenas no
mercado corporativo, deixando o
mercado de planos individuais,
que precisa da constante entrada
de novos consumidores para sus-
tentar o princípio do mutualismo.
Com o envelhecimento da popu-
lação brasileira (daqui a quarenta
anos teremos três vezes mais o
número de idosos), ficamos com
o risco de inviabilizar soluções
advindas do setor privado devido
à proteção excessiva dada aos
consumidores atuais. A proteção
atual gera custos aos consumido-
res do futuro.
Após uma breve apresentação
do setor passaremos a discutir,
sob o enfoque da economia da
regulação, algumas das políticas
públicas adotadas e seus efeitos
imediatos e secundários.
2. RAIO X DO SETOR
O setor de saúde suplementar,
segundo dados da Agência Na-
cional de Saúde Suplementar (ANS),
é constituído pelas denominadas
operadoras de planos de assistên-
cia à saúde, que oferecem cober-
tura para 56 milhões de benefi-
Número de
Operadoras % Beneficiários
244 14,7
339 20,4
97 5,9
479 28,9
13 0,8
133 8,0
330 19,9
23 1,4
1.658 100,0
Fonte: Caderno de Informações de Saúde Suplementar (ANS - Jun/2010)
ciários de planos médicos e odon-
tológicos, cerca de 29% da popu-
lação. Atualmente, operam no se-
tor 1.658 empresas, sendo que
1.195 operam no segmento médi-
co-hospitalar e 463 no odontológico.
Existem diferentes modalidades
de operadoras, como as segura-
doras especializadas em saúde, as
empresas de medicina de grupo,
as cooperativas médicas, as filan-
trópicas, as empresas de auto-
gestão, as administradoras, as
odontologias de grupo e as coo-
perativas odontológicas. Essas
modalidades variam na sua cons-
tituição jurídica e tributária, mas
essencialmente na forma de pres-
tação de serviços médicos. Por
exemplo, as seguradoras não po-
dem, por força de lei, possuír
redes de hospitais, enquanto as
demais podem. As cooperativas
são regidas pelo cooperativismo,
além da legislação específica do
setor de saúde suplementar, e os
médicos são, em tese, ao mesmo
tempo prestadores e donos do ne-
gócio. As empresas de auto-
gestão são constituídas sob o pa-
trocínio de uma empresa que de-
seja oferecer o benefício saúde
aos seus funcionários. As admi-
nistradoras apenas procedem à
gestão do benefício, enquanto as
%
5.328.492 9,4
15.431.176 27,3
1.472.185 2,6
17.527.980 31
6.750.078 11,9
2.371.443 4,2
7.692.238 13,6
0 0,0
56.573.592 100,00
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 16

operadoras de odontologia de
grupo e cooperativas odonto-
lógicas oferecem apenas planos
odontológicos.1 A Tabela 1 resu-
me as estatísticas dessas modali-
dades.
Esse conjunto de empresas foi
responsável pelo pagamento de
R$ 53 bilhões de despesas assis-
tenciais no ano de 2009, o que
equivale a aproximadamente 44%
do orçamento público destinado
à saúde para a cobertura da to-
talidade da população brasileira.
Para fazer frente a essas despe-
sas o setor arrecadou voluntaria-
mente da sociedade, empresas e
indivíduos cerca de R$ 65 bilhões,
e constituiu cerca de R$ 10 bi-
lhões em provisões técnicas para
garantir eventos futuros. Nesse
mesmo ano o setor foi respon-
sável pela realização de 223 mi-
lhões de consultas médicas e
odontológicas e aproximada-
mente 5 milhões de internações
hospitalares.
3. MERCADO E REGULAÇÃO
A saúde suplementar foi regu-
lamentada pela Lei nº 9.656 de
1998, após dez anos em trami-
tação no congresso nacional.
Como resultado tivemos a ampli-
ação e a padronização das co-
berturas mínimas obrigatórias, a
necessidade de cumprimento de
requisitos técnicos e financeiros
para a entrada e continuidade no
negócio, a proibição da seleção
de riscos por doença ou lesão pre-
existente, o controle atuarial so-
bre os preços de venda, o estabe-
lecimento de faixas etárias para a
precificação dos contratos e a re-
gulamentação dos períodos de
carência. Criada pela Lei nº
9.961, de 2000, a ANS é a agên-
cia reguladora das operadoras e
é uma autarquia sob regime es-
pecial, vinculada ao Ministério da
Saúde.
Na prática, o que se observa é
que a regulação desse setor foi
1
Veja a Resolução de Diretoria Colegiada da ANS nº 39 de 2000 para maiores detalhes das modalidades.
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52
Matéria de Capa
historicamente influenciada pelas
diretrizes do sanitarismo, cuja aver-
são ao setor privado é notória.
Parte da explicação deve-se ao
fato de a ANS ser uma agência
vinculada ao Ministério da Saúde,
portanto muito mais perto de
uma regulação da assistência do
que da regulação técnico-econô-
mica. Duas máximas, pode-se di-
zer, são adotadas pelos sanitaris-
tas: 1)O mercado é imperfeito e
o governo é dotado de qualida-
des morais superiores para re-
gulá-lo de forma a atender as de-
mandas da sociedade, e 2) Não
se aplica a teoria econômica tra-
dicional para estudar o funciona-
mento dos mercados de saúde,
pois saúde é um bem diferente.
Partidários do sanitarismo brasi-
leiro acreditam que a atuação pri-
vada na área da saúde deve ser
evitada, e a regulamentação re-
flete esse pensamento. Retirando
as digitais ideológicas da regula-
mentação, pode-se buscar por ar-
gumentos que respaldem deter-
minadas intervenções, como a
produção pública de vacinas de-
vido a externalidades positivas
que produz na sociedade.
3.1. Organização do
Mercado
O setor de saúde suplemen-
tar está organizado, pelo lado da
oferta, por um conjunto de rela-
ções contratuais (formais ou in-
formais) entre as operadoras de
planos de saúde, os prestadores
de serviços de assistência médi-
co-hospitalar e odontológica, a
indústria de medicamentos e, fi-
nalmente, a indústria de mate-
riais e equipamentos. Pelo lado da
demanda temos os consumidores
individuais, pessoas físicas, e os
clientes corporativos, pessoas ju-
rídicas.
A literatura de falhas de mer-
cado é bastante ampla, mas no
caso dos planos de saúde a pre-
sença de informação assimétrica
17
tem sido a justificativa econômica
básica para a intervenção. A eco-
nomia da saúde reporta às deno-
minadas assimetrias informa-
cionais a causa de distorções que
afetam o mercado de saúde su-
plementar, de modo que este não
opere com o mesmo grau de efi-
ciência que os mercados em con-
corrência perfeita. Ao menos três
problemas resultam da existência
de assimetrias de informação en-
tre os participantes desse merca-
do: risco moral, seleção adversa
e a indução de demanda.
O risco moral ocorre quando,
na presença de seguro (ou plano),
a estrutura de incentivos que o se-
gurado se depara se altera, favo-
recendo a utilização de serviços
para além do limite em que este
utilizaria caso incorresse direta-
mente no pagamento dos serviços.
Como o custo (monetário) mar-
ginal da utilização é zero, o bene-
ficiário não tem incentivo suficien-
te para racionalizar sua deman-
da e provoca muitas vezes a utili-
zação desnecessária de serviços,
alterando a distribuição de proba-
bilidades associada à ocorrência
do evento indenizável. O risco
moral pode ser atenuado median-
te mecanismos de compartilha-
mento de risco entre a operadora
e o segurado, como a coparti-
cipação deste no pagamento dos
serviços. A literatura mostra que
a utilização desses mecanismos é
capaz de reduzir as perdas de bem-
estar provocadas pelo risco moral.
Adicionalmente, quanto maior for
a cobertura, maior é o estímulo
ao risco moral, produzindo um
trade-off entre grau de cobertura
e risco moral.
Já o fenômeno da seleção ad-
versa ocorre no caso em que as
operadoras não são capazes de
conhecer perfeitamente o risco
dos indivíduos (a probabilidade de
adoecimento) antes de aceitá-los
em sua carteira. Assim, caso a
operadora estabeleça um preço
baseado na média de risco des-

ses indivíduos teremos como re-
sultado que os indivíduos de nível
de risco superior à média do mer-
cado contratarão o plano de saú-
de. Ao contrário, aqueles indiví-
duos com risco inferior ao risco
médio não aderem ao contrato,
pois seria caro demais para eles.
No final do processo apenas os
indivíduos com saúde precária
participariam dos contratos, o que
inviabilizaria a existência do mer-
cado privado diante da não pos-
sibilidade de diluição dos riscos
entre os seus consumidores. Em-
piricamente, entretanto, diversos
estudos demonstraram que na
prática este efeito é muito reduzi-
do ou inexistente: as empresas pro-
curam reduzir a assimetria de in-
formação que lhes é desfavorável
através de, por exemplo, uma ava-
liação individual do risco (ques-
tionários médicos), pelo estabele-
cimento de carências e de contra-
tos diversificados.
Uma característica interessante
no setor de serviços médicos é que
a responsabilidade pelo diagnós-
tico e, muitas vezes, pelo trata-
mento é uma tarefa que o pa-
ciente delega ao médico (ou den-
tistas, hospitais etc.), em função
da assimetria de informação en-
tre ambos. Quem compra não é
quem decide, na grande maioria
das situações. Nesse contexto, o
corpo clínico e o médico são os
principais responsáveis pelo di-
recionamento do paciente dentro
do setor médico-hospitalar, e é
o médico quem determina em
grande parte a alocação dos re-
cursos escassos do setor. Surge
dessa forma a possibilidade de
criação de demanda pelos seus
próprios serviços creditada, nova-
mente, à assimetria de informa-
ção entre o médico e o paciente e
entre o médico e a operadora de
plano. Tal fenômeno é conhecido
como indução de demanda pela
oferta. O mecanismo adotado
pelas operadoras na remunera-
ção dos prestadores influencia di-
retamente o comportamento des-
tes com relação à utilização dos
Matéria de Capa
serviços. O sistema fee-for-ser-
vice (pagamento por procedi-
mento realizado) está associado
à indução de demanda, enquan-
to outros mecanismos de remu-
neração, como pacotes, por
exemplo, procuram reduzir tal in-
centivo. Na prática, o sistema de
incentivos do setor leva a uma
produção exagerada de consul-
tas, exames e internações, o que
não necessariamente acompanha
“ O setor de saúde
suplementar está
organizado, pelo lado da
oferta, por um conjunto
de relações contratuais
(formais ou informais)
entre as operadoras
de planos de saúde,
os prestadores de
serviços de assistência
médico-hospitalar e
odontológica, a indústria
de medicamentos e,
finalmente, a indústria
de materiais e
”
equipamentos.
o interesse do paciente, que aca-
ba pagando a conta na forma de
maiores mensalidades.
3.2. Regulação
Olhando de um prisma neo-
clássico, o arcabouço regulatório
em mercados privados de saúde
deveria se limitar a garantir a
produção de bens com grandes
externalidades positivas e, no limi-
te, contribuir para se evitar o risco
moral e a seleção adversa, além
de garantir direitos de propriedade.
No Brasil, tais parâmetros nunca
foram respeitados. Ao contrário,
a regulamentação incentiva o ris-
co moral ao ampliar coberturas,
e incentiva a seleção adversa ao es-
tipular regras para a precificação
por faixas etárias. Ao aumentar as
coberturas a cada dois anos o re-
gulador estimula a utilização des-
ses procedimentos, e por mais que
possam ter recomendação cientí-
fica, acabam aumentando os pre-
ços dos planos. No caso das
faixas etárias, como há uma re-
gra que estabelece que a últi-
ma faixa etária não pode cus-
tar mais do que seis vezes a pri-
meira, os preços dos planos
acabam sendo caros para os jo-
vens para subsidiar os mais ido-
sos, incentivando a entrada
daqueles com maior tendência
de utilização.
Como é fruto da própria expe-
riência humana com o objetivo de
facilitar o processo de trocas
numa sociedade, o mercado, tal
qual o ser humano, não é perfei-
to. Entretanto, a utilização do sis-
tema de mercado tem sido a for-
ma mais indicada para resolver
diversos problemas de alocação
de recursos escassos a partir do
interesse pessoal e da coordena-
ção pelo sistema de preços, mas
está longe da perfeição. O “mer-
cado”, tratado muitas vezes como
se fosse um ser dotado de conhe-
cimento e desejos, nada mais é do
que o conjunto de escolhas inde-
pendentes realizadas por seres
humanos imperfeitos, mas que,
na ausência de distorções, fun-
ciona de forma superior ao ofere-
cimento público estatal de bens e
serviços.
Em que pese estarem as cha-
madas falhas de mercado bem
identificadas e com elevados in-
centivos para sua autocorreção,
a experiência mostra que a regu-
lação que vem sendo implemen-
tada no setor ultrapassa os limi-
tes da regulação econômica, in-
duzindo as empresas de planos
de saúde a oferecerem cobertu-
ras amplas e serem cada vez mais
responsáveis pelo resultado de
sua gestão assistencial. Nesse sen-
tido, duas vertentes regulatórias
serão examinadas no sentido de
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 18
 Matéria de Capa

que elas ultrapassam a raciona- poucos competidores atuando, se 3.2.2. Rating de

lidade econômica para interven- recomenda, como política públi-
ção no mercado e produzem ca, a redução das barreiras à en-
custos sociais elevados que, se fo- trada no mercado, algumas eco-
rem mantidos tendem a ser trans- nômicas e tecnológicas e outras
mitidos às futuras gerações. de natureza regulatória, como for-
ma de incentivar a competição e
3.2.1. Regulação de Preços inibir práticas anticompetitivas. É
a política de defesa da concorrên-
O controle de preços demons- cia monitorando a competição
tra ser uma prática tão antiga nos mercados a partir do contro-
quanto ineficiente. Datada pelo le dos atos de concentração, da
menos do Código de Hamurabi repressão às práticas de cartel e
(2000 a.c.),2 que controlou pre- demais condutas anticoncor-
ços e salários, teve seu “apogeu” renciais.5
na época do Imperador Dio- Talvez mais importante do que
cleciano que determinava simples- buscar argumentos que justifi-
mente a pena capital para aque- quem intervenção pública nos pre-
les que ousassem elevar os seus ços vale observar os seus efeitos
preços.3 Como resultado, tivemos reais no mercado como um bom
a redução da oferta no mercado. indicador da qualidade da políti-
Por mais rigorosa que seja uma ca. A proteção de 7,5 milhões de
legislação restritiva, como nos consumidores de planos individu-
casos acima mencionados, não ais resulta em ganhos reais de
há como revogar as leis da de- bem estar para a sociedade? Pro-
manda e da oferta. vavelmente para esses consumi-
A teoria econômica moderna, dores a política tenha sido bené-
longe de prescrever punições mor- fica pois os preços pagos crescem
tais como a do Imperador roma- menos que os custos para os pla-
no, é capaz de identificar um con- nos. E os consumidores que
junto de situações em que a re- poderiam ter coberturas de pla-
gulação dos preços pode ser efi- nos de saúde, mas não possuem
caz. Entretanto essas são poucas, devido ao aumento dos preços
e muito bem delimitadas situações, dos novos produtos? Possivel-
como no caso de um monopólio mente o mercado ofereceria
natural.4 Nesse caso, como não produtos ajustados à demanda
existe mercado para forçar uma na ausência da regulação de
redução de preços aos níveis com- preços e os consumidores, em
petitivos, a empresa monopolista sentido amplo, estariam em
se vale de seu poder de mercado melhor situação, pois o merca-
para cobrar preços de monopó- do estaria funcionando mais li-
lio. Há quem defenda que mes- vremente.
mo nesses casos, caso as barrei- A despeito da questão teóri-
ras à entrada no mercado sejam ca, na prática a regulação dos
suficientemente baixas a ponto de reajustes é identificada como
contestar o monopólio, a própria importante inibidor do cresci-
possibilidade de entrada elimina mento do mercado dos planos
a regulação de preços. individuais e a intensificação dos
Em mercados onde a compe- controles burocráticos da utili-
tição é reduzida, ou seja, existem zação dos planos.
Operadoras
Outra regulação, digamos,
heterodoxa, é a produção pela
ANS do índice de desempenho em
saúde suplementar (IDSS). O go-
verno entendeu ser de responsa-
bilidade da operadora o resulta-
do final sobre a saúde dos bene-
ficiários, e cabe a ela perseguir
formas de indução a um compor-
tamento de qualidade dos seus
credenciados. O seu programa de
qualificação segue esta lógica
onde a operadora é uma gestora,
não de recursos financeiros, mas
da saúde dos seus beneficiários.
Na prática, o IDSS procura
medir o desempenho das opera-
doras mediante a utilização de
diversos indicadores a fim de
auferir os seus níveis de qualida-
de. A partir da divulgação desses
dados à sociedade, segundo a
ANS, os agentes econômicos po-
derão superar a assimetria in-
formacional e melhorar a capaci-
dade de escolha. O processo de
ajustamento do mercado se da-
ria no sentido de uma migração
dos consumidores para as opera-
doras de melhor qualidade, o que
estimularia o lado da oferta a se
adaptar a esse novo ambiente e
introduzir em suas funções-obje-
tivos a melhoria da qualidade
como forma de atração e reten-
ção de clientes.
No setor financeiro, por exem-
plo, as agências de rating produ-
zem serviços de avaliação sobre
a qualidade de crédito e a proba-
bilidade default. Na vida cotidia-
na existem inúmeros exemplos de
publicações que também ofere-
cem o serviço de avaliação de qua-
lidade de restaurantes, hotéis etc.
No setor hospitalar existem enti-
dades privadas que também pro-

2
O Código de Hamurabi é um dos mais antigos conjuntos de leis já encontrados, e um dos exemplos mais bem preservados desse tipo de documento da antiga Mesopotâmia.
O objetivo deste código era homogeneizar o reino juridicamente e garantir uma cultura comum. No seu epílogo, Hamurabi afirma que elaborou o conjunto de leis “para
que o forte não prejudique o mais fraco, a fim de proteger as viúvas e os órfãos” e “para resolver todas as disputas e sanar todos os ferimentos”. Fonte: wikipedia.org
3
Mises, L. “As Seis Lições” Instituto Liberal, 1998.
4
O monopólio natural pode ser descrito como a estrutura de mercado onde a eficiência econômica é alcançada com a presença de apenas uma única empresa devido às
características tecnológicas de produção (elevados custos fixos e baixos custos marginais). Ex. Estações de tratamento de água, esgoto, redes de distribuição. Ainda que seja
monopolística, nada indica que a empresa tenha que ser de capital público.
5
Veja, por exemplo, W. Kip Viscusi, Joseph E. Harrington e John M. Vernon (2005) Economics of Regulation and Antitrust, 4th Ed. MIT Press.

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 19
 Matéria de Capa

duzem serviços similares, como a

Organização Nacional de Acredi-
tação e o Consórcio Brasileiro de
Acreditação. Os hospitais acredi-
tados por essas instituições bus-
cam voluntariamente a certifi-
cação como uma comprovação
de diferenciação da qualidade
procurando com isso angariar
mais clientes, melhores taxas de
financiamento ou melhores con-
dições de negociação.
No caso da saúde suplemen-
tar a ANS se apropriou dessa ta-
refa e, ao contrário das demais
agências reguladoras, que tenha-
mos conhecimento, divulga notas
de qualidade para as operadoras
reguladas numa tentativa de
influenciar a demanda e o com-
portamento das próprias opera-
doras, consequentemente.

4. CONCLUSÃO
A conclusão a que chegamos é
que o setor de saúde suplementar
não teve sua regulação pautada
por critérios técnicos de raciona-
lidade econômica. Ao contrário,
grande parte da intervenção pú-
blica se dá no sentido de ampliar
a cobertura e a responsabilidade
do setor privado como se este fos-
se público. O argumento prepon-
derante da denominada econo-
mia do bem-estar social está na
assertiva de que cabe ao Estado
remediar as distorções e falhas
dos mercados, eliminando suas
deficiências. Toda a literatura se
desenvolveu no sentido de identi-
ficar falhas no funcionamento dos
mercados privados e, a partir des-
se diagnóstico, sugerir a partici-
pação do Estado seja regulamen-
tando, seja provendo diretamente
bens públicos. Essa escola de pen-
samento pressupõe que a ação
pública é sempre bem-sucedida
na tarefa de eliminar falhas de
mercado, ou seja, os governos têm
sucesso onde os mercados fa-
lham e os recursos são alocados
eficientemente. Ledo engano.
Nem mesmo o SUS está sujeito à atribuição de notas pelo Ministério da Saúde.
No setor de saúde suplemen-
tar os incentivos gerados são
preocupantes. O controle de rea-
justes de preços, por exemplo, a
despeito de proteger 7,5 milhões
de consumidores, gera externali-
dades negativas sobre os demais
consumidores, que não acessam
o mercado devido à ausência de
oferta ou pelos preços majorados.
Além disso, algumas empresas
que continuam a oferecer o pro-
duto individual utilizam controles
estritos para conter a utilização.
Qual o custo social dessa políti-
ca? Há também um problema
intertemporal. Se as populações
jovens não aderirem aos planos
de saúde devido ao preço eleva-
do (em comparação com a sua
percepção de risco), como se dará
a sustentabilidade intergeracional
diante do envelhecimento da po-
pulação?
Outra política abordada neste
artigo diz respeito ao índice de
qualidade adotado pela ANS.
Além de regular e fiscalizar, a ANS
atribui notas segundo seus pró-
prios critérios de performance no
mercado. Vale lembrar que nem
mesmo o SUS está sujeito à atri-
buição de notas pelo Ministério da
Saúde. No longo prazo, cada vez
mais o setor se submeterá aos
comandos regulatórios sob o ris-
co de ter seu maior ativo, sua re-
putação, arranhada por critérios
subjetivos e mutáveis.
Nossa conclusão é que o se-
tor de saúde suplementar de fato
nada tem de suplementar ao se-
tor público no sentido técnico do
vocábulo. Cada vez mais, a regu-
lamentação, sob o pretexto de
proteger o consumidor, vem intro-
duzindo obrigações e coberturas
ao setor privado que, em tese,
seriam de responsabilidade do
setor público, sem a necessária
liberdade de revisão de preços.
Trata-se, portanto, de um sistema
de saúde duplicado com redes
públicas e privadas, mas que pela
ideologia regulatória falta oferta
privada onde há demanda. Não
seria um bom momento para re-
ver a regulamentação?

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 20
 Internacional

Brasil e África: uma nova etapa

no relacionamento?
Roberto Fendt
O autor é economista e vice-presidente licenciado do Instituto Liberal.
Atualmente assessora o Ministro de Estado e da Coordenação Econômica de Angola.

m 2000, O embaixador
E José Vicente de Sá Pimentel,
então Diretor-Geral do Departa-
mento de África e Oriente Próxi-
mo do Ministério das Relações Ex-
teriores do Brasil, observou que
“os temas africanos têm entre nós
uma trajetória peculiar. Suas re-
percussões são episódicas e emo-
cionais. Talvez por isso as percep-
ções mais difundidas sobre as re-
lações do Brasil com o continente
africano em geral oscilam entre
dois polos extremados, um deci-
didamente nostálgico, outro ca-
tastrófico.”1
O que mudou? A atual políti-
ca externa brasileira tem entre
suas prioridades o estreitamento
das relações Sul-Sul. Nesse con-
texto os países africanos, em es-
pecial os membros da Comunida-
de dos Países de Língua Portu-
guesa (CPLP), estariam entre os
prioritários. Qual a razão dessa
prioridade? Que interesses na-
cionais se refletem na expansão
das relações Sul-Sul, particular-
mente com relação à África? O
que justifica hoje o interesse na
bacia do Atlântico Sul na política
externa brasileira?
sa na costa atlântica e suas ilhas. teve pouco a ver com essa política
PRIMÓRDIOS: UMA DIGRESSÃO Foi também o começo de cinco de expansão ultramarina.3 É o que
NECESSÁRIA séculos de relações muitas vezes afirmou Celso Furtado na For-
tensas entre a Europa e a África mação econômica do Brasil.
O início do relacionamento da meridional.”2 O desenvolvimento econômico
África com a Europa é assim As razões para a busca de co- de Portugal no século XV — a ex-
descrito por David Birmingham: lônias ultramarinas estavam na ploração da costa africana, a ex-
“Cerca de 1.488, Bartolomeu pobreza do país e nas dificulda- pansão agrícola nas ilhas do
Dias, um navegador português, des de transporte do interior de Atlântico, e finalmente, a abertu-
chegou ao Cabo da Boa Esperan- Portugal para o litoral. Diferente- ra da rota marítima das Índias
ça, na ponta mais longínqua da mente de outros Estados contem- Orientais — constitui um fenôme-
África meridional. Esta foi a últi- porâneos, o fechamento do Me- no autônomo na expansão comer-
ma fase da exploração portugue- diterrâneo pela expansão turca cial européia, em grande parte in-

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 21

dependente das vicissitudes cres-
centes criadas ao comércio do
Mediterrâneo oriental pela pene-
tração otomana. A produção de
açúcar na Madeira e São Tomé
alcançou seus pontos altos na
segunda metade do século XV,
época em que os venezianos ain-
da conservavam intactas suas fon-
tes de abastecimento nas ilhas do
Mediterrâneo oriental. O mesmo
se pode dizer do comércio das
especiarias das índias, pois a ocu-
pação do Egito — entreposto prin-
cipal — pelos turcos só ocorreu
um quarto de século depois da
viagem de Vasco da Gama.4
A produção de açúcar não foi
a primeira tentativa de Portugal
de superar as limitações da me-
trópole com a expansão ultrama-
rina.
David Birmingham identificou
seis fases da expansão portugue-
sa na África. A primeira começou
com a colonização dos Açores (a
partir de 1420) e da Madeira (a
partir de 1427), com o objetivo
de suprir de trigo a metrópole. O
modelo era o de plantations com
mão de obra suprida por colonos
portugueses e escravos obtidos
das costas berberes. Procurava-se
com isso minimizar os problemas
e custos de acesso de Lisboa ao
interior de Portugal, além das li-
mitações naturais do tamanho e
da topografia do território.5
A segunda fase envolveu a ten-
tativa de estabelecer uma indús-
tria vinícola no ultramar, de forma
a superar os problemas de trans-
porte do vinho do Porto em um
rio problemático como o Douro.
As ilhas Canárias foram o território
escolhido para esse experimento.
O sistema de exploração conti-
Cerca de quatro milhões de escravos
africanos foram levados ao Brasil.
Internacional
nuava a ser uma combinação de
trabalho livre vindo de Portugal
combinado com trabalho escra-
vo, trazido de Tenerife.
A terceira fase teve por cená-
rio as ilhas de Cabo Verde (a par-
tir de 1460). Agora, o objetivo era
suprir Portugal de algodão. Se-
guindo o modelo das fases ante-
riores, combinava mão de obra
comprada no oeste do continen-
te africano com artesãos portu-
gueses que transferiam a tecno-
logia de tecelagem. Os tecidos
produzidos nas ilhas eram troca-
dos no continente por mais escra-
vos para a expansão da produção.
Na quarta fase o alvo era a
ilha de São Tomé, ao largo do del-
ta do Níger, iniciada em 1471. Lá
foi introduzida pela primeira vez
a cana-de-açúcar, contando com
a ampla oferta de escravos a par-
tir dos entrepostos de São Jorge
da Mina e de Axim, no continente.
Diferentemente dos experimentos
anteriores, o açúcar exigia uma
grande escala de produção, de
forma a amortizar os investimen-
tos em engenhos e alambiques.
Era também a cultura mais ade-
quada para uma economia escra-
vagista, dadas as demandas por
trabalho intenso nas épocas de
colheita.
A quinta fase deu-se com a
exploração mineira. Os escravos
das plantations nas ilhas do Atlân-
tico foram transferidos para as
minas de ouro no continente, pas-
sando as ilhas a funcionar como
entrepostos de escravos.
Finalmente, na última fase de
sua expansão colonial, em Ango-
la deu-se um experimento diver-
so. Ali, os portugueses tentaram
um modelo de colonização em
terra firme e em parceria com os
nativos. Nessa colônia, todo tipo
de comércio interessava aos co-
lonizadores portugueses; a com-
pra de escravos era apenas uma
entre essas atividades. De resto,
já a partir de 1441 o comércio
de escravos havia se tornado sua
principal atividade.
A partir da década de 1570
evidenciou-se a impossibilidade da
escravidão dos indígenas no Bra-
sil e iniciou-se o tráfico de escra-
vos africanos para a colônia ame-
ricana. Por mais odioso que seja
dizê-lo, a rentabilidade do investi-
mento em escravos africanos era
alta. Na primeira metade do sé-
culo XVII o pay back nesse inves-
timento macabro era de 13 a 16
meses. Em razão disso, estima-se
que entre 1550 e 1855 cerca de
quatro milhões de escravos afri-
canos foram levados ao Brasil.6
No século XVI a principal ori-
gem dos escravos eram as costas
da Guiné e da Mina. A partir do
século XVII a origem desloca-se
para o Congo e Angola. Os por-
tos de embarque são Cabinda,
Luanda e Benguela. No século
seguinte, estima-se que 70%
dos escravos provinha de Ango-
la. O pagamento pelos escravos
nas praças de destino, Salvador
ou Rio de Janeiro, era feito ou
com aguardente de cana e tiras
grossas de tabaco curado com
melaço.7
INTRUSOS NO ATLÂNTICO SUL
O sucesso do modelo de colo-
nização portuguesa e as riquezas
geradas com o trabalho escravo
– nas plantations de cana e nas
minas de ouro de prata, nos im-
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périos português e espanhol –
atraiu outros Estados europeus
para o Atlântico Sul.
Primeiro vieram os franceses.
Em 1555-1560 se estabelece-
ram no Rio de Janeiro, e em 1612-
1615 em São Luiz, no Maranhão.
Foram expulsos, como se sabe.
Depois vieram os holandeses.
Se o período entre 1637 e 1644
foi de paz sob o governo de Mau-
rício de Nassau, o período entre
1645 e 1654 — a “reconquista”
— foi de guerra. Em 1654 os ho-
landeses capitularam. Durante
sua permanência no Brasil os ho-
landeses procuraram mater os flu-
xos de escravos africanos. Para
isso, os holandeses ocuparam
Luanda e Benguela, em Angola,
em 1641.
Salvador Correia de Sá e Bene-
vides, que em 1625 combateu os
holandeses na defesa da Vila do
Espírito Santo e na reconquista da
cidade do Salvador, na Bahia, co-
mandou as forças que em 1647
expulsaram os holandeses de
Luanda. Como que explicitando o
estreito relacionamento entre as
colônias brasileira e africana, Sal-
vador Correia de Sá e Benevides
foi Governador da Capitania do
Rio de Janeiro entre 1637 e
1642, Governador-geral da An-
gola portuguesa em Luanda en-
tre 1648 e 1652, e novamente
governador do Rio de Janeiro en-
tre 1659 e 1660. João Fernandes
Vieira e André Vidal de Negreiros
também participaram da adminis-
tração da Luanda restaurada.
Novos desenvolvimentos trou-
xeram outros europeus para o
Atlântico Sul. O ouro foi desco-
berto em Minas Gerais por volta
de 1700, e em 1710 o corsário
francês Charles Duclerc atacou o
Rio de Janeiro, e logo depois foi a
vez do almirante Duguay-Trouin
saquear a cidade.8
Pela época da independência
a Inglaterra já substituíra há mui-
to Portugal como a grande potên-
cia colonial. Desde a metade do
século XVIII a Inglaterra já inicia-
ra sua Revolução Industrial, cujos
fundamentos foram descritos
com maestria por Adam Smith.9
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 23
Internacional
Preocupados em assegurar
suas rotas para a Índia e com a
abertura ao comércio para suas
manufaturas, a marinha real bri-
tânica restringiu progressivamen-
te o tráfico de escravos no Atlân-
tico Sul. Em 1823, com o enfra-
quecimento do império portu-
guês, soldados e colonos de Ben-
guela promoveram uma rebelião
separatista. Os rebeldes procla-
maram o desejo de formar uma
confederação com o Brasil, a
“Confederação Brasílica”, com o
objetivo de manter o tráfico de
escravos entre os dois lados do
Atlântico.10 O comércio entre Sal-
vador, Bahia, e o Golfo da Guiné,
e entre o Rio de Janeiro e Luanda,
definhava.
O IMPÉRIO, AS RELAÇÕES
BRASIL-ÁFRICA, E DEPOIS
A contestação britânica à su-
premacia de Portugal, e depois do
império do Brasil, nas rotas do
Atlântico Sul, consolidou-se com
a progressiva redução do tráfico
negreiro entre a costa africana e
o Brasil, e com a abertura do ca-
nal de Suez em 1837. O golpe
final se daria com a abertura do
canal do Panamá em 1914. O
Atlântico Sul, aos poucos, no “lon-
go século XIX” que termina em
1914, se tornando um “vazio” sob
a égide da Pax Britannica.11
Encerrado o tráfico, com a
perda de significado econômico
do Atlântico Sul, paulatinamente
definha o relacionamento do Bra-
sil com a África. O predomínio da
Royal Navy na região, assegura-
do pelo Acordo de Simonstown de
1955 com a África do Sul, somen-
te seria questionado pela Argenti-
na, com trágicas consequências
na Guerra das Malvinas (Falk-
lands).12
A Guerra Fria cristalizaria o
espaço do Atlântico Sul como “re-
serva estratégica” do Ocidente.13
Restava pouco para basear obje-
tivamente um relacionamento en-
tre o Brasil e a África, exceto a his-
tória, a tradição e uma indefinida
projeção dos interesses estratégi-
cos em torno de um espaço re-
gional dos países da região, nota-
damente Brasil, Argentina e Áfri-
ca do Sul.
Iniciativas isoladas, como a
política externa independente (PEI)
de San Tiago Dantas e do chan-
celer Araújo Castro, não tiveram
consequências duradouras. A PEI
teve resultados mais concretos, no
campo político, com o chamado
“ecumenismo” do governo dos
presidentes Ernesto Geisel e João
Baptista Figueiredo. O presidente
Sarney e o chanceler Abreu Sodré
procuraram consolidar os ganhos
diplomáticos com a realização da
Primeira Cúpula dos Países
Lusófonos e a criação do Institu-
to Internacional de Língua Portu-
guesa.
Ainda no campo político o Bra-
sil condenou explicitamente a po-
lítica do apartheid sul-africano e
impôs sanções econômicas ao
país. Ainda por iniciativa brasilei-
ra, em 1986 resolução da ONU
aprovou a declaração de Zona de
Paz e Cooperação do Atlântico Sul
(ZOPACAS), com o objetivo de
promover o uso pacífico do Atlân-
tico Sul pelos Estados ribeirinhos.
Eram tempos de descolo-
nização (iniciada nas décadas de
1950-60 e concluída em 1975
na África portuguesa) e redemo-
cratização, a última nos dois la-
dos do Atlântico. Um novo mar-
co na nova política externa brasi-
leira com relação à África foi a
criação da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa
(CPLP). Expandiu-se a rede de re-
presentações diplomáticas do
País, a um tempo em que o nú-
mero de missões diplomáticas
africanas em Brasília passou de
16 (em 2003) para 24.
No campo econômico, em-
preiteiras brasileiras começaram
a participar em obras de infra-
estrutura viária, urbana e ener-
gética em Angola e em outros
países da região. Essa presença,
com apoio creditício do governo
brasileiro, enfatizou a intenção de
ampliar a inserção internacional
do Brasil. O objetivo de nossa di-
plomacia era colocar a África no
centro da afirmação brasileira de

potência regional. Justificando
esse intento, criou-se um novo
conceito de vizinhança: a “fron-
teira oriental” do outro lado do
Atlântico Sul.
A principal motivação para a
Zopacas era o jogo diplomático
em tempos de Guerra Fria. O fim
desse período retirou a maior parte
do conteúdo dessa iniciativa. E
com ela modificou-se também a
agenda da cooperação regional,
que passa a privilegiar o espaço
geográfico dos países vizinhos na
América Latina.
O fim da Guerra Fria dá tam-
bém nova configuração ao Con-
selho de Segurança. Reunidas ali
as superpotências que agora já
superaram muitas de suas rivali-
dades e passam a agir de forma
mais concertada nos conflitos de
suas periferias, reduz-se mais ain-
da a importância dos arranjos re-
gionais no Atlântico Sul. 14
O CRESCIMENTO DO
COMÉRCIO BILATERAL
A atual administração enfatiza
a prioridade do relacionamento
horizontal Sul-Sul e, dento dele,
com a África em particular. O
crescimento do comércio tem sido
apontado como o motor do novo
relacionamento, desde que a ini-
ciativa da Zopacas perdeu muito
de sua consistência como promo-
tor da coordenação política da
Zona.
Mais importante passou a ser
a iniciativa de conformação de
blocos econômicos regionais — o
Mercosul, em um dos lados do
Atlântico, e a SADC do outro.15
A busca de cooperação entre os
países-membros desses dois blo-
cos substitui em larga medida as
boas intenções de coordenação
política da Zopacas, cujos resul-
tados prático ficaram aquém do
desejado.
Isso não quer dizer que as ini-
ciativas políticas tenham sido des-
providas de resultados. Coerente
com a intenção de promover a paz
e a cooperação no Atlântico Sul,
o Brasil condenou o apartheid na
África do Sul e impôs sanções ao
Internacional
país. O Brasil foi também o pri-
meiro país a reconhecer a inde-
pendência de Angola, em 11 de
Novembro de 1975. E, em 20 de
novembro de 1994, para apoiar
o Acordo de Paz assinado em Lu-
saca, tropas brasileiras integra-
ram as forças de manutenção de
paz da ONU, a UNAVEM III, no
total de sete mil homens, junta-
mente com tropas da Índia,
Romênia e Zimbabue.
“ As construtoras
chinesas têm
penetrado agressi-
vamente em toda a
África, deslocando
antigos fornecedores
desses serviços,
como as construtoras
chinesas, e ocupando
espaços que poten-
cialmente poderiam
vir a ser ocupados
por empreiteiros
brasileiros.
” mércio com os demais parceiros.
A PROVA DO PUDIM: AS
RELAÇÕES COMERCIAIS
BRASIL-ÁFRICA
Entre 1989 e 2009 a corren-
te de comércio brasileira cresceu
a uma taxa média de 7,6%
ao ano, passando de US$ 52,6
bilhões para US$ 280,6 bilhões.
As exportações totais do País cres-
ceram a uma taxa mais modesta,
de 6,4% ao ano. Já as importa-
ções aumentaram a uma taxa
média de 9,4% ao ano, recupe-
rando nesse período de 20 anos
as décadas de forte repressão que
caracterizou o comércio exterior
brasileiro antes da abertura da
economia.
Os mesmos cálculos para o
comércio Brasil-África mostram
que a corrente de comércio au-
mentou a uma taxa média anual
de 23,8%. O valor da corrente de
comércio aumentou quase 11,5
vezes, passando de US$ 1,5
bilhão em 1989 para US$ 17,2
bilhões em 2009. As exporta-
ções brasileiras para o continente
cresceram muito mais rapidamen-
te que as exportações do País
para outros destinos, acumulan-
do uma taxa média de crescimen-
to de 11% ao ano. O crescimento
das importações foi ainda mais
expressivo, acumulando cresci-
mento médio anual de 14,3%
ao ano.
Considerados os 20 anos de
comércio aqui cobertos (1989-
2009), nossas trocas com a Áfri-
ca revelaram um saldo negativo
acumulado de US$ 14,5 bilhões
nominais. Esse saldo foi positivo
entre 1989 e 1995 (US$ 2,3 bi-
lhões). Tornou-se negativo a par-
tir de então, acumulando um
deficit de US$ 17 bilhões entre
1986 e 2009, com particular ex-
pressão nos últimos dois anos
(US$ 8,4 bilhões).
Por esse indicador singelo, o
comércio Brasil-África cresceu
mais acentuadamente que o co-
Essa conclusão, contudo, deve ser
considerada com uma pitada de
cautela, já que ela ignora a com-
posição do nosso comércio e a
importância do petróleo em nos-
sas importações em boa parte do
período aqui considerado.
O FUTURO: CHEGARAM
OS CHINESES
Até aqui nos detivemos na aná-
lise dos fluxos de comércio entre
o Brasil e seus parceiros africanos.
Para avaliar até que ponto a sim-
ples extrapolação das tendências
recentes pode ser equivocada, tor-
na-se necessário introduzir um
novo ator no palco do comércio
bilateral: os chineses.
As construtoras chinesas têm
penetrado agressivamente em
toda a África, deslocando antigos
fornecedores desses serviços,
como as construtoras chinesas, e
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 24

ocupando espaços que poten-
cialmente poderiam vir a ser ocu-
pados por empreiteiros brasileiros.
A atuação chinesa baseia-se
em um tripé: crédito amplo e ba-
rato; mão-de-obra barata e
trazida da China; e preços mais
competitivos que os dos concor-
rentes ocidentais. A forma de
atuação é agressiva. De casas a
hotéis, de estradas e portos a li-
nhas de transmissão, os chineses
estão em toda parte.
E os chineses estão em toda
parte e em todos os ramos de ati-
vidade: estão operando postos de
gasolina e supermercados no
Lesoto; e se os russos construíram
em Luanda o mausoléu de Agos-
tinho Neto, o herói da indepen-
dência angolana, os chineses es-
tão agora a terminar o novo pré-
dio do Ministério da Justiça, além
de estarem construindo hotéis e
casas populares no país. Os ne-
gócios são melhores na África do
que na China, não somente para
os empresários chineses, mas
também para os trabalhadores.16
Além disso, a pauta de expor-
tação de produtos chineses para
a África é similar à pauta brasilei-
ra. As vendas chinesas para a Áfri-
ca em 2009 totalizaram US$ 50
bilhões, frente a menos de US$ 9
bilhões exportados pelo Brasil. Os
últimos números da balança co-
mercial brasileira deste ano já
mostram os efeitos da expansão
chinesa na África. O valor ex-
portado pelo Brasil entre abril e ju-
nho deste ano está 9% abaixo do
valor obtido no correspondente pe-
ríodo do ano passado.
Não somente a concorrência
chinesa limita o crescimento de
nossas exportações para o conti-
nente. Os chineses investiram em
uma infraestrutura de transporte
que permite negócios na região na
faixa de US$ 50 bilhões anuais.
No nosso caso, os transportes
constituem um limitador importan-
te, ao lado da menor disponibili-
dade de crédito e da menor ofer-
ta de mão de obra, especialmen-
te a qualificada. A necessidade de
“exportar” mão de obra torna a
China imbatível em obras de infra-
SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 25
Internacional
estrutura, intensivas em trabalho
– um objetivo importante para a
China, independentemente da
rentabilidade dos projetos envol-
vidos nas licitações em que suas
empresas são vencedoras. So-
mente em Angola estima-se que
residam e trabalhem cem mil chi-
neses; para a totalidade da Áfri-
ca, a estimativa de mão de obra
chinesa residente situa-se entre
500 mil e um milhão de trabalha-
dores.
Também a Índia torna-se pro-
gressivamente um concorrente de
peso. A África abriga um grande
número de descendentes de
indianos e há séculos mantém um
fluxo regular de comércio com a
Índia. Mais recentemente, medi-
camentos provenientes deste últi-
mo país estão deslocando forne-
cedores tradicionais e estabele-
cendo canais de comercialização
de difícil conquista no futuro.
Por tudo isso, o crescimento
vegetativo do intercâmbio comer-
cial entre o Brasil e a África pas-
sará a depender cada vez mais de
investimentos – em transportes,
logística e criação de redes de
comercialização. Os bons tempos
de pouca concorrência de forne-
cedores não tradicionais, e do de-
sinteresse de fornecedores dos
países desenvolvidos, estão se
acabando.
Essas considerações são im-
portantes ao se levar em conta o
objetivo declarado de nossa polí-
tica externa de privilegiar as rela-
ções comerciais e de investimen-
tos Sul-Sul. As oportunidades de
cooperação econômica se apro-
fundarão, já que os países da
SADC crescem mais rapidamen-
te que o restante da economia
mundial. Para tirarmos partido
dessas oportunidades será im-
prescindível secundar as intenções
com atos – notadamente com in-
vestimentos em infraestrutura de
transportes do nosso lado do
Atlântico. Afinal, outros países
emergentes, situados no hemisfé-
rio norte, como a China e a Ín-
dia, serão cada vez mais concor-
rentes sérios, a disputar mercados
cada vez mais seletivos.
NOTAS E REFERÊNCIAS
1
José Vicente de Sá Pimentel, “Relações
entre o Brasil e a África subsaárica”.
Rev. Bras. Polít. Int. 43 (1): 5-23 [2000].
2
David Birmingham. Portugal e África. Lis-
boa: Nova Veja, 2010, p.25. De fato, o
ciclo da expansão portuguesa se inicia em
1415 com a conquista de Ceuta. Foram
necessários 53 anos para que fosse com-
pletada a exploração da costa da África oci-
dental, iniciada com a passagem por Gil
Eanes do Cabo Bojador em 1434, até que
Bartolomeu Dias circunavegasse o Cabo da
Boa Esperança em 1487.
3
O Mediterrâneo tem papel central na histó-
ria européia. A opus magna de Fernand
Braudel não por outra razão tem por título
La Méditerranée et le monde méditerranéen
à l’époque de Philippe II. Henri Pirenne, no
seu Mahome et Charlemagne introduziu a
hipótese de que o fechamento das rotas do
Mediterrâneo pelos árabes foi a principal
causa da queda do império romano. A ex-
pansão turca na borda do Mediterrâneo de-
terminaria alguns séculos depois igual sorte
à república de Veneza.
4
Celso Furtado. Formação econômica do Bra-
sil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Na-
cional, 32 ed. 2003, p. 15.
5
Birmingham, op. cit., pp. 27-32.
6
Os primeiros escravos africanos chegaram
ao Brasil em 1538.
Birmingham, op. cit., pp. 70-71.
7
8
Para detalhes, ver Jorge Caldeira. A nação
mercantilista. São Paulo: Editora 34, 1999,
p. 13.
9
Adam Smith. An Inquiry Into the Nature and
Causes of the Wealth of Nations Nations.
Indianápolis: Liberty Fund, 1987.
10
Benguela é a segunda mais importante
cidade e segundo porto de Angola, situada
ao sul de Luanda. O enfraquecimento do
império português, além da natural decadên-
cia de uma economia baseada na tributação
de suas colônias, deveu-se às invasões
napoleônicas em 1807-11; às guerras civis
de 1820 a 1845 e à independência do Bra-
sil em 1822. Ver, para detalhes, Wheeler e
Pélissier, op. cit., pp. 143-44. Ver também
José Honório Rodrigues.
Brasil e África: outro horizonte. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, 1961.
11
A expressão, como se sabe, é de Eric
Hobsbawn para caracterizar o período ho-
mogêneo que vai de 1789 a 1914. A
caracterização do Atlântico Sul como um
“vazio” aparece no importante ensaio de Eli
Alves Penhas, “Relações Brasil-África: os
avatares da cooperação sul-atlântica”.
12
Como se recorda, o conflito deu-se entre
o governo militar argentino encabeçado pelo
general Galtieri e o governo da primeira-
ministra Margaret Thatcher, após a ocupa-
ção pela Argentina das Ilhas Falkland, da
Geórgia do Sul e das Sandwich do Sul.
Alves Penhas, op. cit.
13
14
Pimentel, op. cit.
15
A Comunidade para o Desenvolvimento
da África Austral reúne África do Sul, An-
gola, Botsuana, República Democrática do
Congo, Lesoto, Madagáscar, Malawi, Maurí-
cias, Moçambique, Namíbia, Suazilândia,
Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue.
16
The Economist, edição de 5 de agosto de
2010.

Pan-africanismo sem racismo
Resenha do livro Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura, de Kwame A. Appiah, Ed. Contraponto, RJ.
“Muitas sociedades africanas
têm tanto em comum com as
sociedades tradicionais não
africanas quanto entre si.”
(Kwame Appiah)
o afã de resgatar um su-
N posto “orgulho negro” con-
tra o racismo histórico, muitos têm
insistido num mito que pode vir a
ser perigoso: a ideia de um pan-
africanismo sustentado pela iden-
tidade racial. Para qualquer um
interessado no assunto – e acre-
dito que todos deveriam estar, pe-
los riscos envolvidos –, a leitura
de “Na Casa de Meu Pai”, do fi-
lósofo Kwame Anthony Appiah, é
altamente indicada.
Filho de pai ganês e de mãe
inglesa, Appiah está numa posi-
ção privilegiada para tratar do
tema em questão. Ainda assim, é
submetendo os argumentos à luz
da razão que ele pretende de-
monstrar como o racialismo tem
sido prejudicial aos próprios afri-
canos. Por trás da noção de pan-
africanismo jaz o pressuposto de
unidade política natural dos dife-
rentes povos africanos. A Mãe
África acaba sendo vista como
berço da “raça” negra, de forma
um tanto monolítica, ignorando as
inúmeras diversidades dentro do
continente. Para o autor, “os po-
vos da África têm muito menos em
comum, culturalmente, do que se
costuma supor”.
Para Appiah, um dos primei-
ros legados incômodos desta vi-
são falsa é a associação entre a
opinião negativa ocidental em re-
lação à África com a questão ra-
cial. A África, local de extrema
miséria e palco de desgraças hu-
manas infindáveis, ajuda a disse-
minar uma opinião negativa so-
bre os negros, resultado, em par-
te, do racialismo dos próprios de-
Livros
fensores do pan-africanismo, nor-
malmente cidadãos negros “exi-
lados” no Novo Mundo, e criados
na cultura ocidental.
A importância da cultura é
muito maior que a da “raça”, eis
o que sustenta Appiah. A África
não é um lugar homogêneo, mas
os africanos podem aprender uns
com os outros, “tal como pode-
mos, é claro, aprender com toda
a humanidade”. O intercâmbio
cultural e a crítica racional podem
beneficiar todas as culturas, aju-
dar a “ensinar à raça única a que
todos pertencemos”. A mentali-
dade coletivista de pensadores
como Du Bois, que enxergaram a
história como história de raças,
comete o mesmo tipo de erro dos perigoso. A “raça”, segundo ele,
marxistas, que viram a história “nos incapacita porque propõe
como história de classes. O como base para a ação comum
simplismo e a arbitrariedade des- a ilusão de que as pessoas negras
ses conceitos anulam qualquer (e brancas e amarelas) são fun-
realismo da análise. damentalmente aliadas por natu-
Falar de “raça”, para Appiah, reza e, portanto, sem esforço; ela
é “particularmente desolador para nos deixa despreparados, por
aqueles de nós que levamos a conseguinte, para lidar com os
cultura a sério”. Além disso, o conflitos ‘intrarraciais’ que nas-
autor mostra como a ideologia do cem das situações muito diferen-
pan-africanismo depende justa- tes dos negros (e brancos e ama-
mente de traços culturais ociden- relos) nas diversas partes da eco-
tais: “A nostalgia nativista, em nomia e do mundo”.
suma, é basicamente impulsiona- Temos inúmeras identidades
da pelo sentimentalismo ociden- distintas, como “tribo”, religião,
tal que nos é tão familiar desde etc. As identidades são comple-
Rousseau; poucas coisas, portan- xas e múltiplas. Usar somente
to, são menos nativas do que o uma delas como preponderante,
nativismo em suas formas atuais”. e ainda por cima a racial, repre-
O pan-africanismo centrado na senta um grave erro. É possível
ideia de raça não passa de uma defender o pan-africanismo sem
invenção não africana. o racismo. O projeto de um na-
Apesar de a fase do pré- cionalismo negro racializado vai
colonialismo africano ser carac- contra a ideia moderna – e mais
terizada pela ausência de algo racional – de direitos individuais
como uma identidade africana, e humanos.
Appiah reconhece que começa a
surgir tal fenômeno, como cons-
trução histórica. Mas, para o au- por Rodrigo Constantino
tor, sustentar tal identidade com Economista e escritor
base na ideia falsa de “raça” é
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