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Departamento de Sociologia
Orientador:
Prof. Doutor Victor Hugo Nicolau,
Investigador no Centro de Estudos Africanos do
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
Janeiro, 2008
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Victor Hugo Nicolau, pela disponibilidade com que aceitou orientar esta tese e pela
sua ajuda, força e encorajamento nos momentos de maior hesitação.
Aos meus amigos, pela paciência, apoio e incentivo no decorrer deste trabalho.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO 1
CAPÍTULO 1 - A POLÍTICA INDÍGENA NA DOUTRINA COLONIAL PORTUGUESA ATÉ
1961 6
1. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO E CORRENTES DE PENSAMENTO 6
2. A POLÍTICA INDÍGENA PORTUGUESA 12
2.1. EVOLUÇÃO DA POLÍTICA INDÍGENA 14
2.2. CARACTERÍSTICAS DA POLÍTICA INDÍGENA 21
2.2.1. A CONTEMPORIZAÇÃO COM OS "USOS E COSTUMES" E INSTITUIÇÕES
TRADICIONAIS INDÍGENAS E A SUA CODIFICAÇÃO 22
2.2.1.1. Respeito pelos usos e costumes (contemporização) 23
2.2.1.1.1. As Tentativas de compilação (Estudos) dos usos e costumes dos 27
indígenas
2.2.1.1.2. As Tentativas de codificação dos usos e costumes dos indigenas 28
2.2.1.2. Respeito pelas instituições tradicionais 29
2. 3. OSCILAÇÕES CONCEPTUAIS 32
3. OS SUJEITOS DA LEGISLAÇÃO – O REGIME DO INDIGENATO 34
3.1. RELAÇÕES ENTRE INDÍGENAS E NÃO INDÍGENAS 40
CAPÍTULO 2 - APLICAÇÃO E CONSEQUÊNCIAS DA POLÍTICA INDÍGENA – O CASO DE
MOÇAMBIQUE 42
1. A ABRANGÊNCIA ÉTNICA E TERRITORIAL 42
2. CARACTERÍSTICAS DAS ORDENS JURÍDICAS TRADICIONAIS 45
2. 1. CARACTERÍSTICAS DO CONSTITUTIVAS 45
2. 2. CARACTERÍSTICAS FORMAIS E PROCESSUAIS 47
2. 2. 1. Administração da justiça 47
2. 2. 2. Organização judiciária 48
2. 2. 3. Matérias penal e civil 50
2. 2. 3. 1. Matéria penal 51
2. 2. 3. 2. Matéria civil 53
3. AS ALTERAÇÕES À ORDEM JURÍDICA TRADICIONAL 57
3. 1. ALTERAÇÕES ÀS NORMAS 58
3. 1. 1. «Ossificação» dos Usos e Costumes Indígenas 58
3. 1. 2. Conteúdo Normativo 59
3. 1. 3. Abrangência Normativa 60
3. 2. ALTERAÇÕES DA FORMA E DO PROCESSO 61
3. 2. 1. Administração da Justiça 61
3. 2. 2. Introdução do Princípio da Divisão de Poderes 64
3. 2. 3. Redefinição do Papel das Autoridades Tradicionais 66
3. 3. ALTERAÇÕES RELATIVAMENTE À MATÉRIA JURÍDICA 67
3. 3. 1. Matéria civil 68
3. 3. 2. Matéria penal 68
CONCLUSÃO 72
BIBLIOGRAFIA E FONTES 77
ANEXOS 93
I
INTRODUÇÃO
Tendo inicialmente pensado numa dissertação de Mestrado relacionada com a Educação num dos
Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e tendo optado, no 2º trimestre, pela área de
especialização «Estado, Relações Internacionais e Desenvolvimento», sucedeu que, no âmbito da
disciplina «Estruturas Políticas Anteriores às Independências Africanas», leccionada pelo
Professor Doutor Victor Hugo Nicolau, foi abordada e discutida a questão do Direito Oficial e
dos Direitos Costumeiros no Estado Colonial. Dada a nossa formação de base, as Ciências
Jurídicas, a matéria em causa despertou-nos grande interesse. E vimo-nos, então, confrontados
com um dilema: como fazer um estudo sobre esse tópico, que inevitavelmente nos encaminharia
para uma visão historicista, compatível com os objectivos de investigação dinâmica propostos, e
bem, pelo Mestrado.
Apesar de todas as hesitações que tivemos quanto ao modo de abordagem, das dúvidas sobre a
relevância do tema perante os pressupostos do Mestrado (que privilegia a investigação sobre os
aspectos da modernidade) e não deixando de ter presente o facto de o ISCTE ser uma Escola que
tem como base e linha orientadora uma investigação científica significativa, decidimos realizar
esta dissertação que possui um cariz mais histórico, assentando fortemente na pesquisa e
levantamento de informação, procurando, todavia, não prescindir, como é exigência de qualquer
trabalho desta natureza, do carácter de produção individual e original, do rigor de expressão, da
fundamentação de afirmações e da demonstração de conhecimentos especializados, suportados
por referências bibliográficas credíveis. A constatação da falta dos meios necessários para fazer
um trabalho de terreno consistente, diga-se de passagem, assumiu igualmente um peso
1
considerável na nossa decisão.
Assim, considerando a nossa licenciatura em Direito, ramo do saber estruturante e espinha dorsal
do funcionamento de qualquer sociedade1, decidimos explorar o tema, conciliando a nossa
formação de base com a curiosidade e o interesse que a problemática em causa nos despertou.
Resolvemos, por conseguinte, assumir o risco e o desafio de procurar demonstrar que a
perspectiva das Ciências Jurídicas é, também ela, útil para explicar a configuração das realidades
sociais.
É inegável que a actividade jurídica do colonizador produziu efeitos que ainda hoje se fazem
sentir: a actual legislação moçambicana (local do nosso estudo de caso) é, ainda hoje, fortemente
tributária da legislação portuguesa (mais de trinta anos após a independência Moçambique,
continua, por exemplo, a reger-se pelo Código Civil Português de 1966) e, por isso, ou também
por isso, consideramos necessário e importante estudar esta esfera de acção. No momento em que
Moçambique começa a procurar libertar-se do aparato legislativo herdado da colonização e
produzir as suas próprias leis (existe um Código Comercial, foi elaborada uma nova Lei da
Família em 2004 e os Códigos de Processo Civil e Penal sofreram consideráveis alterações),
instrumentos adaptados à sua realidade, é interessante observar a anterior actuação do
colonizador ao tentar (se é que tentou) gerir idêntica necessidade de adaptação.
A muitos dos autores que escreveram sobre o Direito Oficial e os Direitos Costumeiros no Estado
Colonial terão escapado a perspectiva e a distanciação necessárias à análise das alterações que o
conjunto de leis sobre os direitos indígenas, levadas a cabo pelos diversos agentes do Estado,
operaram nos fundamentos das ordens jurídicas tradicionais, precisamente porque muitos deles
eram historiadores e ideólogos do regime, funcionários da administração colonial ou de uma ou
outra forma ligados ao regime e às suas políticas. Volvidos alguns anos, essas alterações ainda
não terão sido avaliadas em profundidade nos seus diversos níveis, elementos e cambiantes.
Contribuir, de modo necessariamente modesto, para essa avaliação através de uma análise à qual
1
Nas palavras de Pinto (1985, p. 18), o Direito "[...] visa, na sua função de meio de disciplina social, realizar
determinados valores, fundamentalmente a certeza dessa disciplina e a segurança da vida dos homens, por um lado,
e a «rectidão» ou «razoabilidade» das soluções, por outro, abrangendo com estes termos (rectidão, razoabilidade) a
justiça, a utilidade, a oportunidade e a exequibilidade prática".
2
pretendemos dar o devido suporte teórico, alicerçado no escrutínio da documentação existente, é,
pois, o nosso objectivo.
Dito isto, importa aqui tecer algumas considerações teórico-metodológicas. O processo de busca
de um enquadramento jurídico eficaz para as populações indígenas das colónias foi, como seria
de esperar, quase contínuo. Na sequência da tomada de consciência da dificuldade de aplicação
do Direito Português a essas populações, foram várias as tentativas de codificação dos usos e
costumes gentílicos, oscilando entre a contemporização e a pura discriminação. Por isso, e antes
de mais, fomos confrontados com a necessidade de delimitar o tema, balizando-o cronológica e
espacialmente.
O espaço é Moçambique. Assim, interessa-nos escrutinar as diferenças na aplicação, neste
território, do Direito Português (quer civil, quer penal) aos cidadãos portugueses e às populações
indígenas, e analisar os estudos e as várias tentativas de codificação que se foram fazendo dos
direitos costumeiros locais e a legislação adaptada a estes povos e a sua evolução, desde o Código
dos Milandos Inhambanenses até à revogação, em 1961, do Estatuto dos indígenas portugueses
das províncias da Guiné, Angola e Moçambique, promulgado em 1954. Cronologicamente, o
nosso esforço analítico situa-se no período que decorre entre os anos de 1820, data da Revolução
Liberal, e 1961, data em que é revogado o Decreto-Lei nº 39.666 de 20 de Maio de 1954, que
promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses das províncias da Guiné, Angola e Moçambique.
Como já foi referido, em termos do seu enquadramento disciplinar o presente trabalho insere-se
no quadro das ciências jurídicas e tem por objecto a análise da dimensão jurídica da dominação
colonial portuguesa em Moçambique e da sua eficácia prática ou não. O nosso objectivo, por sua
vez, consiste em analisar os efeitos das várias tentativas de codificação, procurando,
nomeadamente, saber em que medida essas tentativas espelhavam os usos e costumes indígenas,
estabelecer os pontos de «permanência» e as «rupturas» introduzidas pelo esforço legislativo do
colonizador em relação às ordens jurídicas tradicionais, tentando assim contribuir para a análise
da faceta jurídica da doutrina colonial portuguesa, fazer um levantamento dos estudos de diversos
autores e das sucessivas tentativas de codificação dos direitos indígenas em Moçambique e
elaborar uma pequena compilação que possa vir a ser útil a futuros investigadores, compilação
essa organizada nos Anexos da presente dissertação.
Procurando disciplinar o nosso esforço analítico, a nossa hipótese de partida é a de que, apesar
das suas proclamadas intenções de permitir às comunidades indígenas regerem-se de acordo com
3
as suas normas tradicionais, os preceitos legais que regulavam os direitos dos indígenas alteraram
profundamente os fundamentos das ordens jurídicas tradicionais a diversos níveis: quer na forma,
no conteúdo e na abrangência (a fixação por escrito, a aproximação ao direito português e a
adaptação da legislação para todos), quer quanto ao aparato formal e processual (alterações na
administração da justiça, nova organização judiciária, constituição de tribunais privativos,
introdução do princípio da divisão de poderes, redefinição do papel das autoridades tradicionais),
quer, ainda, quanto à matéria (divisão de foros, distinguindo-se entre civil e penal).
Estudo da evolução das diferentes leis e verificação da alteração, ou não, da sua forma e
conteúdo de acordo com as flutuações políticas na metrópole;
Verificação dos limites da compatibilidade dos diplomas legais com as práticas jurídicas
indígenas;
Problematização das dissonâncias entre a teoria subjacente às leis indígenas e a sua aplicação
(ou não) na prática;
Verificação da importância do enquadramento jurídico dos direitos dos indígenas no quadro
da dominação colonial.
Esboçados que estão os pressupostos teóricos e as dimensões de análise, importa ainda tecer
algumas considerações sobre a metodologia utilizada. Por força da sua própria natureza, este
trabalho baseou-se, acima de tudo, na consulta de documentação sobre a matéria em apreço,
tendo sido feitas pesquisas bibliográficas no Arquivo Histórico Ultramarino e na Biblioteca
Nacional de Portugal.
Assim, a nossa investigação apoiou-se, no essencial, na análise documental de diversa
bibliografia e fontes, nomeadamente na consulta da legislação produzida sobre o assunto e de
trabalhos de investigação anteriores. A massa documental assim reunida (nomeadamente as
fontes primárias, isto é os diplomas legislativos relevantes, e as fontes secundárias, constituídas
pelos relatos de autores portugueses coevos) foi submetida a um esforço de análise crítica para
validar ou invalidar a hipótese.
4
Na sua formulação, este trabalho encontra-se organizado da seguinte forma: após uma
Introdução, onde procedemos ao enquadramento do tema, se justifica a sua escolha e se tecem
breves considerações teórico-metodológicas que nos pareceram relevantes, no Capítulo 1
procuramos esboçar, à luz das correntes de pensamento dominantes, o enquadramento histórico
da situação nacional e internacional vivida no período em análise. Propomos, ainda, neste
capítulo, uma análise da política e da legislação indígena na doutrina colonial portuguesa até
1961: seus objectivos, características dominantes, evolução temporal, eventuais oscilações
conceptuais e sujeitos da legislação. Com o Capítulo 2, pretende-se fazer uma análise da
aplicação e das consequências da Política Indígena Portuguesa em Moçambique: sua
abrangência, características das ordens jurídicas tradicionais e, ainda, as alterações produzidas
nestas ordens. Na Conclusão, finalmente, tentamos responder à questão central apresentada e
fazer o balanço das conclusões a que julgamos ter chegado.
Uma última referência deve ainda ser feita aos Anexos. Neles daremos informação
complementar, sob a forma de uma compilação, dos principais documentos que deram corpo à
legislação para os indígenas vigente ao longo da época colonial. Aí se incluem, na íntegra, alguns
estudos e codificações dos usos e costumes indígenas feitas por diferentes autores. Optámos por
separar esta pequena colectânea do texto da dissertação por dois motivos: para que o mesmo não
fosse sobrecarregado e para autonomizar uma recolha que possa vir a ser facilmente consultada
por estudantes e investigadores eventualmente interessados nesta mesma problemática. Se
alguma utilidade advier desta nossa singela tentativa, consideraremos o nosso esforço plenamente
compensado.
5
CAPÍTULO 1
A POLÍTICA INDÍGENA NA DOUTRINA COLONIAL PORTUGUESA ATÉ 1961
"A questão colonial tem um peso determinante na história de Portugal desde finais
de Oitocentos até à independência das províncias ultramarinas, em 1975"
(Castelo, 2004, p. 155).
6
sua pele ser sinal dessa mesma inferioridade.
Como, mais tarde, disse Alexandre (2000, p. 237) " [...] nas primeiras fases do liberalismo
português - desde a sua instauração em 1834 até à década de setenta -, duas correntes coexistiam
em matéria de política colonial: a dos pragmáticos, geralmente antigos detentores de cargos no
ultramar, que tendiam a resistir às reformas em nome das realidades, fazendo prevalecer os
interesses dos estratos dominantes nas possessões; e os que [...] reclamando-se de princípios
universalistas com origem no espírito das luzes, tentavam com maior ou menor sucesso
transformar as sociedades coloniais esclavagistas. Dominante - embora com muitas resistências -
até ao último quartel de Oitocentos, esta segunda corrente desfaz-se então: na generalidade, os
teóricos juntam-se aos pragmáticos, na defesa de uma linha dura, de cariz racista, para as
colónias".
Nasce a dicotomia entre o "Outro Exótico" e o "Nós Civilizados": o Outro é qualificado com uma
multidão de sinónimos: primitivo, selvagem, bárbaro, atrasado, não-civilizado, etc. Mas, mais do
que um estádio da história humana, estes termos designam o quadro simétrico e inverso do
modernismo ocidental.
Um dos defensores destas teorias racistas, o publicista, historiador e político, Oliveira Martins,
invocava a superioridade racial dos colonizadores (a suposta nobreza da raça...) e julgava os
africanos povos inferiores e incapazes de uma vida civilizada. No livro O Brasil e as colónias
Portuguesas, considerava-os como sendo de "um tipo antropologicamente inferior, não raro
próximo do antropóide e bem pouco digno do nome de homem" (1978, p. 254)2.
Do mesmo modo, quanto ao indígena da Moçambique, Ornellas (1901, p. 61) dizia: "É um
selvagem que precisa primeiro que tudo ser domesticado". E acrescentava: "Não os deveremos
querer assimilar a nós, partindo do principio que são eguaes a nós menos na côr. Não são tal
eguaes, são inferiores. E são no tanto mais que quatro seculos de contacto com a civilisação
europeia não tem revelado na generalidade delles, grande aptidão para a nossa cultura".
2
A perspectiva globalmente qualificada como evolucionista (a natureza e a "civilização" correspondem a uma
ordenação evolutiva e unilinear: a sucessão de estádios da evolução humana é necessária e obrigatória) categorizou o
Outro como Primitivo.
7
Os Europeus sentem-se investidos de um direito e de um dever de carácter humanitário: levar as
luzes da sua civilização aos povos selvagens para aculturar os primitivos. Mas se estas foram as
motivações aduzidas, na realidade o que impulsionou verdadeiramente o colonialismo foi a
cupidez do poder e exploração económica e social dos povos indígenas.
Cruz, (1988, p. 106), sublinha "Embora instaurado a título de contemporização como os usos e
costumes indígenas que não fossem incompatíveis com a moral e os ditames da humanidade, o
Estatuto do Indigenato, que vigorou até ao início dos anos 60, acabou por ser na prática um
instrumento mais de subordinação que de integração civilizacional das populações indígenas.
Feita em nome da preservação e do respeito pelos valores tradicionais das sociedades negras, que
não deviam ser violentamente destribalizadas, mas antes gradualmente assimiladas pela cultura
para uma plena integração política, a consagração jurídica da figura do indigenato tornou-se antes
num expediente que contribuiu para a manutenção da subalternidade, não só política como social,
das populações nativas".
Alexandre (2000, p. 242-243) sustenta "[...] durante o regime salazarista coexistem duas
8
correntes principais na forma de ver os «nativos» das colónias de África, ambas com raízes no
século XIX. Uma delas tributária do «darwinismo social», parte do postulado da inferioridade da
raça negra, a qual, insusceptível de civilização, estaria condenada a viver sob a tutela da raça
branca – sem o que voltaria ao estado natural de selvajaria. É esta teoria dominante até meados da
década de quarenta: estava-se na época de afirmação dos valores de «raça» (uma suposta raça
portuguesa) a impor às etnias bantas; repudiava-se a mestiçagem e falava-se muito de
«colonização étnica», ou seja, do povoamento das colónias africanas por uma população branca
numerosa, de ambos os sexos, de modo a evitar as misturas raciais. A segunda corrente é mais
etnocêntrica do que propriamente racista: proclama-se a superioridade, não da raça branca, mas
da civilização ocidental, imbuída de valores cristãos, de validade universal, a que os povos negros
podem aceder, quando devidamente educados – cabendo a Portugal essa tarefa missionária3.
Marginal até ao conflito de 1939-45, esta doutrina assume depois foros de teoria oficial, em
resposta às tendências descolonizadoras no concerto das nações.
Mas, para além das justificações ideológicas, a realidade mantinha-se inalterada, no essencial,
traduzindo-se pelo que foi referido como «assimilação selectiva» - uma política, já esboçada em
vários diplomas legais da primeira República e consagrada posteriormente nos «Estatutos dos
Indígenas» e legislação conexa, que restringia a concessão da cidadania plena aos negros que
mostrassem estar integrados na cultura portuguesa. Poucos preenchiam os requisitos exigidos: em
1961 (data da abolição do «Estatuto»), menos de 1% do total da população africana de Angola e
Moçambique".
Em 1930 é publicado o Acto Colonial4, que reafirma o regime jurídico especial para os indígenas
até então seguido e que promove um sentimento imperialista e de superioridade nacional e
3
Veja-se, por exemplo, Caetano (1948, p. 251): "Portugal tem procurado sempre, desde o início dos descobrimentos,
dar à sua acção colonial o carácter de missão conduzida sob o signo de princípios mais altos do que um estreito
egoismo dominado por meros interesses materiais". A este propósito, Cruz (1988, p. 65) sublinhou "A função
histórica de colonizar implica a de civilizar e cristianizar, e vice-versa".
4
Segundo Silva (1998, p. 398), "O Acto colonial de 1930 e os decretos que lhe são associados, publicados em 1933,
enunciaram o objectivo da promoção dos interesses de Portugal [...] em relação às colónias, e definiram claramente a
filosofia das principais políticas coloniais em relação à população indígena e o reforço da sua integração na
nacionalidade portuguesa, através da língua, da educação e do cristianismo.
O alinhamento da Igreja católica com o Estado colonial português legitimou o projecto de construção da grande
nação portuguesa, multiracial e pluricontinental, e intensificou a diferença social, reforçando não só o fosso entre as
fronteiras que separavam católicos e protestantes, mas também entre a população nativa, dividida entre
«assimilados» e «indígenas»".
9
civilizacional. No seu artigo 2° diz-se «É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar
a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações
indígenas que neles se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstricta
pelo Padroado do Oriente». "A doutrina não era nova, estando ligada à velha tendência, inerente à
tradição imperial, que via na expansão ultramarina a própria condição da sobrevivência da nação
e um aspecto central da conservação da sua identidade. A novidade reside na sua inserção no
texto constitucional - unindo irrefragavelmente o destino, se não do país, pelo menos do regime
do «Estado Novo», então nascente, ao projecto colonizador. Deste modo se procurava tomar
claro, no campo das relações externas, que se resistiria a quaisquer pressões pelas quais se visasse
obrigar Portugal a cedências de soberania em África. Poucos anos mais tarde - em 1937, quando
se falava de novo numa possível repartição dos territórios ultramarinos portugueses, agora
destinados a satisfazer os apetites coloniais da Alemanha e da Itália -, o tema reaparece numa
nota oficiosa de Oliveira Salazar, onde se volta a acentuar o carácter intocável do domínio
ultramarino: «Alheios a todos os conluios, não vendemos, não cedemos, não arrendamos, não
partilhamos as nossas colónias, com reserva ou sem ela de qualquer parcela de soberania nominal
para satisfação dos nossos brios patrióticos. Não no-lo permitem as nossas leis constitucionais: e,
na ausência desses textos, não no-lo permitiria a consciência nacional». Todavia, a reafirmação
da vocação colonizadora visava também objectivos de ordem interna. Tratava-se de criar - ou de
fazer renascer - uma verdadeira mística imperial, de mobilizar os espíritos, arreigando no
conjunto da população portuguesa (são ainda as palavras de Salazar) o «amor» pelos domínios
coloniais e fazendo passar as elites por África, a preparar o meio de tal modo que se pudesse
viver indiferentemente na metrópole e no ultramar " (Alexandre, 2000, p. 241).
Portugal considerava a sua missão em África diferente das restantes potências europeias. A
presença de Portugal em África e a acção civilizadora lusitana eram orientadas por valores
cristãos e, consequentes, expansão e dilatação da fé, e por um humanismo e altruísmo que levaria
ao real progresso das colónias. A propaganda colonial à volta do Império faz-se através de artigos
em revistas científicas e de divulgação, de fotografias, dos jornais, dos manuais escolares, da
publicidade, do cinema, dos romances e, claro, das exposições universais e coloniais,
supostamente, o lugar da encarnação da «objectividade científica», construção estereotipada
sobre a vida quotidiana (a moral, os costumes, o meio ambiente e a cultura) das populações
10
colonizadas.
Em resumo, e de acordo com Lains (1998, p. 466), as causas do colonialismo português moderno
em África foram as seguintes: "a herança imperial; a necessidade de protecção de mercados
coloniais; a resposta aos movimentos de outras potências coloniais europeias; o desenvolvimento
da capacidade técnica para a colonização; as condições nos territórios africanos; finalmente,
motivos políticos".
5
Nesta linha, o antropólogo Jorge Dias (1957, p. 24-25) proclamava: "A composição heterogénea do povo
português, e a estrutura tradicional comunitária e patriarcal, permitiram-lhe uma perfeita assimilação do espírito
cristão de fraternidade, inteiramente coerente, mesmo quando posto à prova em situações de grandes contrastes
raciais e culturais. E, o que é de transcendente importância, a política da Nação e o comportamento dos indivíduos
formavam um todo completamente harmonioso. [...]
A nossa acção assimiladora não se exerceu de maneira violenta, antes, pelo contrário, procurámos adaptar-nos aos
ambientes naturais e sociais respeitando os estilos de vida tradicionais. Por outro lado íamos pelo exemplo e convívio
despertando nas populações indígenas o respeito por certos princípios da nossa civilização ocidental". E salienta
(1957, p. 27) "Os Portugueses, levados por um são instinto, misturaram-se com as várias populações da Terra e
contribuíram grandemente para a fusão racial".
11
2. A POLÍTICA INDÍGENA PORTUGUESA
"Educar, instruir, moralisar e enriquecer, eis o fim da politica indigena: tolerancia, a sua divisa;
opportunismo intelligente, a sua norma"
(Mello, 1910, p. 25).
Importa, desde já, precisar a noção de colonização. Sousa (1905, p. 8), último Ministro das
Colónias da Monarquia, definia-a como "a acção exercida por um povo civilizado sobre um pais
de civilização inferior, com o fim de o transformar progressivamente, pelo aproveitamento dos
seus recursos naturaes e pelo melhoramento das condições materiaes e moraes de existencia dos
indigenas".
Para Júnior et al. (1931, p. 193-194), "o problema colonial não se resume na conquista e
ocupação de territórios [...]. Colonizar é fundar uma nova sociedade civilizada, e para tanto, à
acção inicial dos exploradores e dos militares é indispensável que se siga a acção do jurisconsulto
e do economista".
Cunha (1953, p. 6), um ideólogo e Ministro do Ultramar do final do Estado Novo (1965-1974),
define a Política Colonial como "o conjunto de princípios e métodos praticados pela autoridade
directiva do Estado na condução das actividades coloniais".
Sistematizando, o autor prossegue dividindo a política colonial em dois grandes ramos: a política
colonial externa, que "respeita à condução das relações estabelecidas pelo Estado na comunidade
internacional e que se originam nas suas actividades coloniais" e a política colonial interna, que
"respeita à actividade que o estado desenvolve relativamente às suas colónias"6. Debruçando-se
6
Para este autor (1953, p. 7-8) Colónia é "um agregado social de base territorial em que se verificam os seguintes
caracteres: a) o resultar da expansão de um grupo social organizado em Estado, para fora dos seus limites territoriais
originários, pela instalação de núcleos de população dele destacados, em territórios separados do território de origem
por um acidente geográfico, geralmente o mar, e em que existem agregados populacionais de raça diferente e
12
especificamente sobre a política colonial interna, a que mais nos interessa no âmbito deste
trabalho, Cunha refere que ela deve responder de forma eficaz a várias dimensões, competindo-
lhe, entre outras coisas, definir a organização do poder da Metrópole em relação aos territórios
coloniais, de acordo com a natureza e os fins do colonialismo, os princípios orientadores da
exploração dos recursos económicos das colónias e as regras a seguir nas relações com as
populações nativas.
Assim, conclui Cunha, "a Política Indígena pode, portanto, definir-se como o ramo da Política
Colonial que se ocupa do estudo dos princípios e métodos a utilizar pelo Estado colonizador para
orientar as relações com as populações nativas das colónias, em função dos objectivos finais das
actividades coloniais desse mesmo Estado".
Um outro autor ainda, Mello (1910, p. 10), valorizando a função transformadora e enfatizando o
papel de instrumento de engenharia social que a Politica Indígena deveria assumir, define-a como
"O conjunto de preceitos e medidas que devem presidir às relações de convivio e
intercomunicação entre a raça colonizadora e a nativa e à transformação gradual e lenta da vida
moral, política e económica desta última".
Aplicando à política indígena a distinção clássica dos sistemas de política colonial, Cunha (1953)
define-os e distingue-os em «sistema de sujeição», em que os indígenas eram vistos como mão-
de-obra útil e necessária para as empresas económicas dos colonizadores, sem direitos alguns; em
«sistema de assimilação», não existindo diferenças entre indígenas e colonizadores, sendo uns e
outros considerados cidadãos, com os mesmos direitos e obrigações; por fim, em «sistema de
autonomia», considerando aqui (1953, p. 15), fazendo eco da doutrina oficial, a "referência a um
sistema de relações da sociedade fundada pelos colonizadores com a Metrópole. Não se quer
aludir à autonomia das populações indígenas". E acrescenta: "Por isso, a maior parte das vezes a
Política de Autonomia conduz a um sistema de Política Indígena caracterizado pela segregação
entre colonizadores e nativos, e, muitas vezes, até, pela opressão sistemática destes por aqueles,
que não raramente conduz à completa destruição dos segundos".
civilização inferior; b) depender politicamente do Estado de que partiu o núcleo originário; c) ter uma organização
administrativa especial, diferente da daquele; d) estar submetida a regras de Direito também especiais".
13
Outro aspecto essencial da política indígena era o que respeitava ao enquadramento
administrativo das populações, ou seja, ao modo através do qual o Estado colonial assegurava o
exercício do seu poder sobre as comunidades locais. E aqui, retomando o pensamento de Cunha
(1953) podemos distinguir dois sistemas: o de administração directa (assimilação), em que não se
reconhecem as organizações sociais indígenas7 e as suas autoridades, integrando-se as populações
indígenas através de autoridades designadas pelos colonizadores e pertencentes aos seus quadros
de funcionários e o de administração indirecta (ou de autonomia), em que se mantêm as
organizações sociais indígenas, procurando preservar o mais possível a sua estrutura. As
autoridades que lhes são próprias não se integram na hierarquia administrativa dos colonizadores,
que actuam junto delas por meio de funcionários com funções de fiscalização e conselho8.
De 1820, ano em que a Monarquia absoluta foi derrubada, até 1910, data da implantação da
República, a política colonial portuguesa foi dominada por correntes liberais, com reflexos na
política indígena.
É o período de Assimilação, traduzida, como já atrás ficou enunciado, na igualdade política e
jurídica entre indígenas e não indígenas. Este pensamento, com raízes na revolução francesa e na
proclamação de liberdade e igualdade entre os homens, manifestou-se legislativamente na
inexistência de especial diferenciação dos territórios de além-mar e dos seus habitantes, formando
o que poderemos chamar de «uma comunidade de direito e de instituições»9.
De acordo com esta lógica, o Código Penal e o Código Civil foram tornados extensivos às
províncias ultramarinas. Todavia, e ao contrário do que se passava no direito penal10, nas
7
Segundo Cunha (1953, p. 189), "a manutenção da organização social indígena tem de considerar-se transitória, pois
está destinada a desaparecer, quando se verificar a assimilação que supõe a agregação social total dos indígenas".
8
Este modelo foi extensivamente utilizado nas colónias britânicas, em que se procurava optimizar o controlo
administrativo do território por intermédio do respeito das formas de organização própria dos povos que estavam sob
tutela da Coroa, através de uma política indígena que reconhecia os usos e costumes e as instituições tradicionais
administrativas e políticas e os chefes indígenas.
9
Nos arts. 1º, 2º e 145º, da Carta Constitucional da Monarquia de 1826, reconhecem-se aos indígenas os mesmos
direitos sociais e políticos de que gozavam os cidadãos portugueses.
10
"Fixa os delitos contra a ordem social e estabelece as penas" (Júnior et al., 1931, p. 13).
14
questões de direito civil11 reconhecia-se o direito tradicional das sociedades indígenas. Assim, o
Decreto de 18 Novembro de 1869, que tornava extensivo – artigo 1º – às províncias ultramarinas
o Código Civil (aprovado por Carta de Lei de 1867), ressalvava na alínea e do artigo 8º «Em
Moçambique, os usos e costumes dos baneanes, bathiás, parses, mouros, gentios e indígenas nas
questões entre eles».
11
"Compreende as normas que regulam as relações recíprocas dos cidadãos entre si, como meros particulares, ou
entre os cidadãos e o Estado em questões de propriedade ou de direitos puramente individuais" (Júnior et al., 1931,
p. 13).
15
escrevia "Quando nos convenceremos nós que as leis feitas para a Metrópole são quasi sempre
impróprias para a África? A prisão, só por si, não é pena que intimide ou morigere o indígena. A
sua passividade e inércia fàcilmente se resignam à privação da liberdade, tanto mais que a
compensam aumentos de bem estar. A pior cadeia é mais abrigada de intempéries do que a
palhota ou ramada, a tarimba menos áspera do que a terra nua, o rancho mais apetitoso e variado
do que a massa de mapira".
12
Na opinião de Pereira (2001, p. 136) "O adjectivo «tendencial» diz quase tudo sobre a natureza dessa assimilação:
um objectivo diáfano e longínquo, potencialmente intermitente e pouco consistente, a atribuir condicionalmente se
um conjunto de circunstâncias, mal ou nada definidas, se viessem a concretizar".
13
A ideia do Governador como «protector nato dos indígenas» e com a competência de dirigir as relações com os
chefes indígenas atravessa toda a legislação colonial portuguesa. Nesta Lei Orgânica de 1914, diz-se, que ao
governador, como protector dos nativos, compete «dirigir as relações políticas com os chefes indígenas e
agrupamentos sob a sua dependência, de maneira a conseguir e manter, tanto quanto possível por meios pacíficos, a
submissão deles, a sua integração na vida geral da colónia» e «Definir e regular o estatuto civil, político e criminal
dêsses indígenas, e fiscalizar, superiormente, a observância das leis e preceitos tendentes à defesa de suas pessoas e
propriedades, singulares ou colectivas» (base 16.ª), princípio repetido nas Bases orgânicas da Administração das
Colónias (Decreto nº 7:008 de 9 de Outubro de 1920), na base 19ª, na Reforma Administrativa Ultramarina (Decreto-
Lei nº 23:229 de 15 de Novembro de 1933), no artigo 28°, onde se enumeram as funções que lhe incumbiam, e na
Carta Orgânica do Império Colonial Português (Decreto-Lei nº 23:228 de 1933) e na Portaria nº 8:699 de 5 de Maio
de 1937 (nova publicação da Carta Orgânica do Império Colonial Português), no artigo 36°. Também, nas Cartas
Orgânicas de Moçambique de 1922 (artigos 25º, 26º e 29º), de 1926 (artigos 5º, 26º e 29º) e de 1929 (artigos 19º e
20º) se reafirma a protecção aos indígenas por parte do Governador e dos funcionários seus subordinados.
16
e um direito processual especial para a administração de justiça, admitindo-se a existência de
tribunais específicos.
Considerava-se necessária a recolha de informações acerca dos usos e costumes dos nativos,
sistematizando-os e codificando-os em normas legais, sociais e políticas (base 18ª, 7º).
Todavia, devido à conjuntura nacional e internacional, a política consagrada nesta lei nunca se
concretizou.
14
Abrangendo, inicialmente os indígenas de Angola e Moçambique, foi, em 1927, tornado extensivo aos indígenas
da Guiné e dos territórios da Companhia de Moçambique e do Niassa, pelo Decreto nº 13:968 de 20 de Maio.
15
Consagra-se uma política a que alguns autores chamaram de paternalista, baseada no princípio da protecção aos
indígenas, que percorreu o direito colonial português. Previa-se, mesmo, uma Comissão denominada de Defesa dos
Indígenas (artigos 19º e 20º).
17
suavidade a transformação dos seus usos e costumes, a valorização da sua actividade e a sua
integração no organismo e na vida da colónia, prolongamento da mãe Pátria».
Consagrava-se o princípio do respeito pelos usos e costumes indígenas, logo que não ofendessem
os direitos de soberania nem repugnassem aos princípios de humanidade (artigo 2º) ordenando-se
a sua redução a escrito, no intuito de facilitar as funções administrativa e judiciária.
Manteve-se o direito privado no quadro das instituições naturais dos indígenas, o que não
aconteceu com o direito penal, sendo que as penas deviam ser aplicadas com base no Código
Penal Português (artigos 4º e 11º), enquanto não fossem elaborados os códigos penais para os
indígenas.
Previa-se a criação de tribunais privativos dos indígenas, instituições presididas pelas autoridades
administrativas e que contavam com a colaboração de elementos da população nativa,
designadamente com a assistência dos chefes (artigos 12º e 13º).
Em cumprimento do disposto no artigo 21º (em que se previa a entrada em vigor dos
regulamentos necessários à execução do Estatuto) foi aprovado, pela Portaria nº 37 de 12 de
Novembro de 1927, o Regulamento dos Tribunais Privativos Indígenas.
Em 1929 foram publicados um novo Estatuto Político Civil e Criminal dos Indígenas (Decreto nº
16:473), que mantinha a mesma orientação do anterior, não se decretando modificações de fundo,
o Diploma Orgânico das Relações de Direito Privado entre Indígenas e não Indígenas (Decreto nº
16:474), que veio estabelecer regras para a resolução de questões de natureza civil e comercial 16,
afirmando-se no Preâmbulo a continuidade do esforço da legislação sobre a tutela e protecção das
populações de civilização inferior, e o Regulamento dos Tribunais Privativos dos Indígenas
(Diploma legislativo nº162), que executava o disposto no artigo 24º, do Estatuto Político Civil e
Criminal dos Indígenas de 1929.
Em 1930 foi aprovado o Acto Colonial (Decreto nº 18:570, de 8 de Julho), ali se reafirmando a
vocação histórica de Portugal colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações
indígenas, guiado pelos mais altos princípios da civilização cristã (artigo 2º).
No título II, sob a epígrafe «Dos indígenas», na linha anteriormente assumida, consagra-se uma
16
Exceptuavam-se as questões sobre estado de pessoas e as resultantes de contratos de prestação de serviços, que
continuavam a regular-se pelas leis em vigor.
18
política de protecção e defesa dos indígenas, prevê-se a existência de estatutos especiais para os
indígenas não civilizados, reafirma-se a contemporização com os seus usos e costumes, e
reconhecem-se as missões religiosas como agentes eficazes de civilização e de influência
nacional (artigos 22º e 24º).
As disposições do Acto Colonial foram, em 1933, consideradas matéria constitucional e, ainda
nesse ano, foram publicadas a Carta Orgânica do Império Colonial Português (Decreto-Lei nº
23:228 de 15 de Novembro) – uma continuação e sistematização dos princípios estabelecidos no
Acto Colonial – e a Reforma Administrativa Ultramarina (Decreto-Lei nº 23:229 da mesma data
da Carta Orgânica do Império Colonial Português), onde se consideram as autoridades
tradicionais como «auxiliares da administração civil», integradas na hierarquia administrativa,
sob a direcção dos administradores de circunscrição e dos chefes de posto (artigos 76º e 91º).
Um pouco mais tarde, em 1951, os princípios do Acto Colonial são integrados na Constituição
Política, tendo os artigos relativos aos indígenas passado, quase ipsis verbis, para o texto
constitucional17.
A integração dos indígenas foi afirmada como política social do Império Colonial Português («O
Estado garante por medidas especiais, como regime de transição, a protecção e defesa dos
indígenas nas províncias onde os houver, conforme os princípios da humanidade e as convenções
17
Wilensky (1969, p. 14) elucida-nos que "Durante a discussão do projecto na Assembleia Nacional, levantou-se o
problema da outorga de cidadania portuguesa aos indígenas. O deputado Vaz Serra propôs a supressão dos termos
«indígenas» e «indigenato», sem excluir a necessidade de manter regimes especiais, transitórios, para as populações
autóctones. Este deputado não via a necessidade de manter, para uma grande parte da população do Ultramar, uma
condição genérica diferente da cidadania, de que gozavam os habitantes da Metrópole e de algumas outras
províncias".
19
internacionais» – artigo 141º), civilizando-os, fazendo deles católicos, atribuindo-se à Igreja
Católica um papel especial e essencial («As missões católicas portuguesas do Ultramar e os
estabelecimentos de formação do pessoal para os serviços delas e do Padroado terão
personalidade jurídica e serão protegidos e auxiliados pelo Estado, como instituições de ensino e
assistência e instrumentos de civilização, nos termos das concordatas e mais acordos celebrados
com a Santa Sé» – artigo 140º).
Em 1961, o então Ministro do Ultramar, Adriano Moreira, leva a cabo um conjunto significativo
de reformas legislativas:
20
O Decreto-Lei nº 43 893, de 6 de Setembro de 1961, revogou o Estatuto dos Indígenas
Portugueses de 1954, determinando o fim das distinções entre indígenas e não indígenas e a
extensão aos primeiros da cidadania portuguesa, numa tentativa de fazer face à reacção anti-
colonial internacional e crescente pressão contra a política colonial portuguesa18, e, também, à
emergência de forças nacionalistas na África portuguesa e à guerra de guerrilha que, entretanto,
começara em Angola. Ao mesmo tempo era aprovado um conjunto de decretos, entre os quais o
Decreto nº 43 896, introduzindo disposições destinadas a organizar as regedorias nas províncias
ultramarinas, «com manifesto respeito pela tradição e pelos hábitos das populações», como se
refere no preâmbulo e, ainda, o Decreto nº 43 897, que reconhece nas províncias ultramarinas os
usos e costumes locais, reguladores de relações jurídicas privadas, quer os já compilados, quer os
não compilados e vigentes nas regedorias.
Traçado que está o percurso da longa caminhada legislativa ultramarina, olhemos agora para as
lógicas que condicionaram a sua produção. Comecemos pelos seus destinatários, as populações
indígenas. Que visão tinha delas o legislador? Considerados os indígenas como seres primitivos,
inferiores e incivilizados, descrevendo-se a sua cultura como um folclore exótico, incumbia aos
portugueses a tarefa, necessária e virtuosa, da missão civilizadora. A legitimação da dominação e
exploração coloniais justificava-se na missão imperial, histórica e política de Portugal e pela
inferioridade civilizacional (e rácica) do homem negro, por oposição à crença da superioridade da
civilização ocidental, e fez-se tentando anular-se a cultura e a identidade indígenas.
No campo legislativo, a política indígena teve a sua expressão máxima com o Estatuto do
Indigenato. Como se disse, a apontada desigualdade de estatutos entre cidadãos e indígenas
fundava-se na inferioridade cultural e racial destes – existindo, na prática, uma tendência para o
esboçar de uma certa discriminação racial, nunca foi, no entanto, este último aspecto
explicitamente assumido, nem nos discursos oficiais, nem nas leis.
Depois do sistema de assimilação, que, como já vimos, vigorou durante alguns anos em Portugal,
18
Nesta altura já a maior parte das antigas colónias francesas e inglesas tinha obtido a independência.
21
a doutrina oficial do Estado Novo foi uma política de assimilação tendencial, visando a
integração final dos nativos, através duma paulatina transformação dos seus usos e costumes, que
deveriam ser respeitados e mantidos transitoriamente enquanto aquela transformação não
acontecesse. O Estado garantia, por essa via, «a protecção e a defesa dos indígenas das colónias».
Assim, seguia-se uma linha (supostamente) proteccionista com marcadas características
paternalistas, orientada para a defesa dos indígenas, assumindo Portugal a tutela das populações
indígenas. A assimilação destas populações conseguia-se privilegiando o uso da língua
portuguesa, a educação, o ensino e a moral e os preceitos cristãos, atingindo-se quando aqueles se
integravam no que se consideravam as formas de vida e os valores da civilização portuguesas
passando a ter, pelo menos em teoria, as isenções, regalias e obrigações dos cidadãos
portugueses, sem diferenças de raça, cor ou religião.
Foi um sistema apresentado como "virtuoso", mas, na realidade, pensamos, correspondia a uma
inelutável necessidade da administração colonial, pois esta não tinha funcionários em número
suficiente para um controle (político e administrativo) eficaz do território (um dos grandes
obstáculos era a sua aplicação a uma grande diversidade de tecido social), nem capacidade
económica para tal.
19
A despeito das construções teóricas prevalecentes, na prática administrativa, misturavam-se os dois sistemas, o de
indirect rule (controle pelos chefes tradicionais, que respondiam perante a Administração colonial) e o de direct rule
(controle efectivo por funcionários da Administração colonial).
22
2. 2. 1. A CONTEMPORIZAÇÃO COM OS "USOS E COSTUMES" E INSTITUIÇÕES TRADICIONAIS
INDÍGENAS E A SUA CODIFICAÇÃO
Desde cedo se reconheceu a conveniência de se transigir com os usos e costumes das populações
indígenas, existindo na tradição portuguesa o respeito pelos Milandos20 de Moçambique, as
Justiças de Timor e as Ouvidas de Angola, afirmando-se o princípio do respeito pelo seu direito
consuetudinário autóctone e pelas instituições tradicionais desde que não ofensivos da moral, dos
ditames da humanidade e da soberania nacional, procurando-se, no entanto, o seu
aperfeiçoamento e a sua gradual modificação.
20
"Por milando entende-se geralmente toda a questão entre indigenas; mas a lata significação do termo tem sido
restringida pelos esforços das auctoridades para comprehender nessa especie de processo aquelles feitos que
interessam exclusivamente á vida indigena, sem offenderem abertamente os sentimentos humanitarios dos povos
cultos e os de uma tolerante moralidade.
Assim é objecto de milando o crime de furto simples ou damno, o de adulterio ou rapto mesmo, mas não o pode ser o
crime de homicidio, o de envenenamento e outros semelhantes!" (Magalhães, 1907, p. 258).
23
projectos à aprovação do governo».
O preâmbulo do Decreto referia, «Esta concessão representa o reconhecimento de uma
necessidade, que as nações mais adiantadas não hesitam em confessar, garantindo não só os usos
e costumes indigenas, mas admittindo até para a sua applicação tribunas especiaes».
Em 1926, no primeiro Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas, impõe-se a codificação
dos usos e costumes indígenas, proclamando-se o seu respeito, quer nas relações de direito
privado (artigo 4º – «Nas relações jurídicas entre indígenas os direitos de família, sucessões e
regime de propriedade são regulados pelos usos e costumes das populações das regiões que êles
21
«1.° Todos os capitães-móres, commandantes militares e administradores de circumscripções no prazo de quatro
mezes, a contar da data da publicação desta no Boletim Official, remetterão ás secretarias dos respectivos Governos
de districto um relatorio descrevendo os usos e costumes indigenas do territorio sob a sua jurisdicção».
22
Artigo repetido ipsis verbis na Portaria nº 8:699 de 5 de Maio de 1937 (nova publicação da Carta Orgânica do
Império Colonial Português) e na Lei nº 2:016 de 29 de Maio de 1946 (alterações à Carta Orgânica do Império
Colonial Português).
25
habitam»), quer nas relações de direito público, estabelecendo-se, pela primeira vez, o princípio
da individualização da pena quanto a réus indígenas, ordenando-se que, enquanto não fosse
publicado um Código Penal adequado a tais réus, se observassem as regras do Código Penal (de
1884, generalizado às Colónias por Decreto de 16 de Setembro de 1886) ponderando-se o estado
e civilização dos indígenas e seus costumes (artigo 11° – «Emquanto não forem publicados os
Códigos Penais Indígenas nas Colónias, as penas a aplicar pelos tribunais serão reguladas pelo
Código Penal Português, tendo na devida atenção o estado de civilização dos indígenas e os seus
usos e costumes»).
Este Estatuto foi substituído pelo decreto no 16:473, de 6 de Fevereiro de 1929 (Estatuto Político
Civil e Criminal dos Indígenas), repetindo-se no relatório deste segundo Estatuto a motivação que
justificou a aprovação do primeiro, mantendo-se o teor dos artigos com ligeiras alterações,
embora com uma numeração diferente.
O Estatuto dos indígenas portugueses das províncias da Guiné, Angola e Moçambique,
promulgado pelo Decreto nº 39.817 de 15 de Setembro de 1954, consagra, de igual modo, o
princípio do respeito pelos usos e costumes indígenas, princípio sempre limitado «pela moral,
pelos ditames da humanidade e pelos interesses superiores do livre exercício da soberania
portuguesa» (artigo 3º, § 1º), acrescentando-se no § 2º «Ao aplicarem os usos e costumes
indígenas as autoridades procurarão, sempre que possível, harmonizá-los com os princípios do
direito público e privado português, buscando promover a evolução cautelosa das instituições
nativas no sentido indicado por esses princípios» e no § 3º que «A medida de aplicação dos usos
e costumes indígenas será regulada tendo em conta o grau de evolução, as qualidades morais, a
aptidão profissional do indígena e o afastamento ou integração deste na sociedade tribal»,
denunciando uma tendência assimilacionista.
Encontramos o princípio do respeito pelos usos e costumes indígenas noutros artigos do Estatuto,
como, por exemplo, nos artigos 20º (funções dos chefes gentílicos: «Os chefes gentílicos
procurarão desempenhar-se das funções que lhes incumbem, respeitando, quanto possível, os
usos, costumes ou tradições permitidos pelo artigo 3º e seus parágrafos deste diploma; à
autoridade administrativa cumpre dirigi-los por forma a, com reconhecimento público, integrar a
sua acção na obra civilizadora») e 35º (direitos sobre coisas imobiliárias).
Estudo acerca dos usos e costumes dos banianes, bathiás, parses, mouros, gentios e indigenas
(1885), de Joaquim de Almeida da Cunha; Indígenas de Moçambique (1900), de Manuel Moreira
Feio; Raças e linguas indigenas de Moçambique: memória apresentada ao Congresso Colonial
(1901), de Ayres de Ornellas. Apontamentos sôbre «milandos», (1907), de Albano Magalhães;
Informações do administrador da 5.ª circunscripção25 (1907) e Usos e Costumes nas terras da
Corôa de Lourenço Marques (1909), de João Bravo Falcão; Usos e crenças dos indigenas do
districto de Inhambane (1910), de Bento Casimiro Feio; Raças, usos e costumes dos indígenas do
Districto de Inhambane. Acompanhado de um vocabulário em shitsua, guitonga e shishope
(1910) e Raças, usos e costumes dos indígenas da Província de Moçambique (1925), de António
Augusto Pereira Cabral; Algumas observações sobre os indígenas da Angónia (1941), de Lis
23
Artigo repetido ipsis verbis no Decreto nº 22:465 de 11 de Abril de 1933 (nova publicação do Acto Colonial de
acordo com o disposto no artigo 132º da Constituição Política da República Portuguesa) e no Despacho do
Presidente do Conselho de 5 de Junho de 1935 (nova publicação do Acto Colonial, em cumprimento do disposto no
artigo 7º da Lei nº 1:900 de 21 de Maio de 1935).
24
Também encontramos a afirmação desse respeito pelos usos e costumes noutras disposições legais, por exemplo,
no artigo 91.° e seguintes da Reforma Administrativa Ultramarina (Decreto-Lei nº 23:229, de 15 de Novembro de
1933).
25
Districto de Lourenço Marques.
27
Ferreira; Noções de Direito Consuetudinário Indígena e formulário de processos (1944), de
Adelino José Macedo e Mitologia e direito consuetudinário dos indígenas de Moçambique
(1944), de José Gonçalves Cota.
Foram várias as tentativas de codificação dos usos e costumes indígenas. Nunca sancionadas pelo
poder colonial, tiveram, pelo menos, a utilidade de servirem de orientação aos funcionários
coloniais e, para o nosso trabalho, revelaram-se fontes de excelência. Mencionamos aquelas que
nos pareceram mais importantes:
Código Cafreal do districto de Inhambane (Portaria de 15 de Outubro de 1852): este código foi
elaborado por uma comissão que consultou diversos régulos sobre os usos e costumes que
serviam de fundamento ou lei aos povos bitongas.
Bases para o julgamento dos milandos cafreais (1907), de Albano Magalhães: conjunto de
instruções sobre o julgamento dos milandos destinadas a servir de orientação aos juízes
territoriais da comarca da Beira;
26
No artigo 14º indicam-se quais eram estas terras, que se dividiam em quatro circunscrições.
28
Projecto de Regulamento para o julgamento de «Milandos» (1907), de Albano Magalhães:
conjunto de normas que deveriam ser seguidas no julgamento dos milandos;
Projecto de codigo de costumes cafreais (1910), apresentado por Augusto Cardoso, Governador
do distrito de Inhambane;
29
2.2.1.2. Respeito pelas instituições tradicionais
O princípio do respeito pelas instituições tradicionais (que, em muitos casos, não significava mais
do que a constatação da inevitabilidade de uma contemporização transitória, entendida como
necessária enquanto não se verificasse a assimilação dos nativos), com a ressalva do seu
reconhecimento pelas autoridades administrativas, é continuamente reafirmado, limitando-se a
concessão de direitos políticos aos indígenas a estas mesmas instituições tradicionais.
A Lei nº 277, de 15 de Agosto de 1914 (Lei Orgânica da Administração Civil das Províncias
Ultramarinas), determinava na base 18ª «Na definição do estatuto civil, político e criminal dos
indígenas observar-se hão as seguintes regras: [...] 3º Não lhe serão, em regra, concedidos direitos
políticos em relação a instituições de carácter europeu», acrescentando-se «Sempre, porêm, que
nos usos ou tradições da raça, tríbu, ou outros agrupamentos indígenas, subsistir a noção ou a
prática de instituições próprias, embora rudimentares, tendentes a deliberar em comum, ou a fazer
intervir, por outra maneira, a opinião e a vontade da maioria dos indivíduos no govêrno do
agrupamento, ou na administração dos seus interêsses colectivos, procurar-se há manter e
aperfeiçoar tais instituições, orientando-as gradualmente, a bem do desenvolvimento do território
e da administração geral da colónia». Preconiza-se, assim, a modificação gradual (e que seria,
supostamente, por mútuo consenso) das instituições indígenas.
Esta regra repete-se, nas Bases orgânicas da Administração de 1920, 1926 e de 1928 – Decreto nº
7:008 de 9 de Outubro (base 97ª, 3ª), Decreto nº 12:421 de 12 de Outubro (base V) e Decreto nº
15:241 de 24 de Março (base III), respectivamente.
Os Estatutos do Indigenato de 1926 (artigo 9º) e de 1929 (artigo 7º) dizem expressamente: «não
são concedidos aos indígenas direitos políticos em relação a instituições de carácter europeu»27,
referindo, respectivamente nos artigos 8º e 6º, que «O Estado assegura o bom funcionamento e
progressivo aperfeiçoamento das instituïções politicas dos indígenas e mantém as autoridades
gentílicas, como tal reconhecidas pelas autoridades administrativas».
No Estatuto de 1954 ressalvando-se, embora, no artigo 7º que «As instituições de natureza
política tradicionais dos indígenas são transitòriamente mantidas e conjugam-se com as
instituições administrativas do Estado Português pela forma declarada na lei» e no artigo 8° que
27
Considera-se no preâmbulo destes dois Estatutos: «Não se atribuem aos indígenas, por falta de significado prático,
os direitos relacionados com as nossas instituições constitucionais».
30
«Os agregados políticos tradicionais são genericamente considerados regedorias indígenas,
consentindo-se embora a designação estabelecida pelo uso regional (sobado, regulado, reino,
etc.), determina-se no artigo 23º que «Não serão concedidos aos indígenas direitos políticos em
relação a instituições não indígenas», acrescentando-se, no entanto, no seu § único: «Os
indígenas terão representantes, escolhidos pela forma legal, nos conselhos legislativos ou de
Governo de cada província».28
Moreira (1955, p. 13-15) defendia que os indígenas tinham nacionalidade mas não tinham
cidadania, sustentando "[...] reservando a palavra cidadania para designar o estado jurídico
caracterizado precisamente pela detenção dos poderes jurídicos pertinentes à intervenção no
exercício da soberania, os indígenas integram uma categoria de nacionais que não são cidadãos,
como não o são os não indígenas que não reúnam as condições fixadas por lei.
[...] só a assimilação total, regulada no Capítulo III do Estatuto [dos indígenas portugueses das
províncias da Guiné, Angola e Moçambique de 1954], subordinado ao título, «Da extinção da
condição de indígena e da aquisição da cidadania», abre o caminho da titularidade dos direitos
políticos em relação às instituições metropolitanas. Necessârio se torna esclarecer que a
expressão cidadania em tal capítulo, significa unicamente sujeição à lei comum, sem que isso
implique a detenção dos direitos pertinentes à intervenção no exercício da soberania, que
também a qualidade originária de não indígena não implica: para tanto é indispensável que na
pessoa concorram os requisitos legais, conforme a lei que é uniforme para não indígenas
originários, e não indígenas por assimilação. [...]
Com a limitação indicada, [...] as garantias constitucionais aplicam-se a indígenas e não
indígenas. Com efeito, o art. 137.° da Constituição afirma que «os direitos, liberdades e
garantias individuais, consignados na Constituição, são igualmente reconhecidos a nacionais e
estrangeiros nas províncias ultramarinas», donde resulta que o estado jurídico de nacional,
género de que são espécies os estados de indígena e não indígena, a todos coloca sob a
protecção dos mesmos princípios constitucionais".
E prossegue com complacência "[...] é o objectivo da efectividade dos poderes jurídicos que
justifica o reconhecimento das instituições gentílicas, a correlativa capitis deminutio em relação
28
Reconhecendo-se-lhes, ainda, os direitos de petição e de reclamação (artigo 24º).
31
às instituições políticas metropolitanas, e a definição de garantias especiais para os indígenas,
que quebram, em seu favor, o princípio da igualdade perante a lei, e a que a nossa Constituição
dedicou o Capítulo III do Título VII [Das garantias especiais para os indígenas] [...]. Não só,
portanto, se não dispensa nenhuma das garantias que a todos os nacionais se garantem, como se
organizam garantias especiais no sentido de assegurar que as garantias tradicionais sejam, para
os indígenas, mais do que uma declaração platónica" (Moreira, 1955, p. 17).
2. 3. OSCILAÇÕES CONCEPTUAIS
A política indígena pautou-se sempre por uma marcada visão nacionalista da sempre afirmada
«missão» colonizadora de Portugal, concepção que, aliás, não sofreu alterações significativas
durante a época colonial a que poderemos chamar «moderna». Proclamada a sua vocação
imperial e função histórica, Portugal nunca deixou de encarar a conquista e a manutenção dos
territórios ultramarinos como guiado e assente nos mais altos princípios cristãos.
A política colonial portuguesa e a política indígena, em particular, mantinha uma teoria oficial de
unidade política e de assimilação, oscilando esta entre um sistema «puro» de assimilação, a
assimilação uniformizadora que vigorou durante a monarquia constitucional, e o denominado
sistema de «assimilação tendencial».
Defendia-se a assimilação cultural e espiritual das populações indígenas e o respeito pelos seus
usos e costumes, enquanto aquele objectivo não fosse atingido.
Em 1951, ditado por pressões que se faziam sentir a nível internacional, no sentido de se
conceder independência às colónias, há um regresso à assimilação uniformizadora. Todavia, foi
uma alteração puramente semântica: voltou a chamar-se «Províncias» às Colónias e «Ultramar
Português» ao Império Colonial Português, e atribuindo novas designações ao Ministério das
Colónias («Ministério do Ultramar») e ao Conselho do Império Colonial («Conselho
Ultramarino»), por exemplo. No artigo 135º da Constituição considerava-se «As províncias
ultramarinas, como parte integrante do Estado Português, são solidárias entre si e com a
metrópole» [sublinhado nosso], e apesar de não existir continuidade geográfica era o Portugal
32
uno e pluricontinental.
O fundamento ideológico da Política Indígena não sofreu alterações. O indígena era visto como
um ser à parte, sofrendo de limitações intelectuais e culturais. Persistia a dualidade de estatutos
político-jurídicos e a discriminação entre indígenas e portugueses. O conceito de indígena que se
manteve durante décadas, nunca sofrendo alterações substanciais (como se pode verificar no
ponto seguinte), consubstanciava uma subordinação cultural, social e política.
Em termos legislativos, como já referimos, não existiram inovações. Em 1951, passaram para a
Constituição, por força das circunstâncias mas sem alterações assinaláveis, as disposições do
Acto Colonial referentes ao regime jurídico especial dos indígenas e das obrigações públicas para
com eles, mantendo-se, assim, o regime do indigenato com carácter transitório (artigo 141º),
apesar de durante a discussão do projecto da lei de revisão constitucional alguns deputados terem
defendido a redução das distinções entre indígenas e não indígenas e a extensão aos primeiros da
plena cidadania, o que não aconteceu, eternizando-se a hierarquia social. E em 1954, foi
publicado um novo Estatuto do Indigenato, em que se proclamava uma política de integração que
se pretendia multiracial e multicultural.
33
3. OS SUJEITOS DA LEGISLAÇÃO – O REGIME DO INDIGENATO29
A Lei nº 277 de 15 de Agosto de 1914 (Lei Orgânica de Administração Civil das Províncias
Ultramarinas) na sua base 17ª dispõe «As leis e outras disposições, exclusivamente adoptadas
para indigenas, só são aplicáveis aos indivíduos naturais da colónia ou nesta habitando, assim
considerados por deliberação do Conselho de Govêrno. Todos os outros indivíduos são isentos
dessa aplicação e tem garantido o pleno uso de todos os direitos civis e políticos, concedidos
pelas leis em vigor».
29
Legalmente só existiam indígenas na Guiné, S. Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e Timor. Em Cabo Verde,
Índia e Macau, como na Metrópole, só havia cidadãos. No artigo 246º § único, da Lei nº 2:016 de 29 de Maio de
1946 [alterações à Carta Orgânica do Império Colonial Português] determinava-se: «No Estado da India e nas
colónias de Macau e Cabo Verde, as respectivas populações não estão sujeitas nem à classificação de indígenas nem
ao regime de indigenato, na sua acepção legal».
30
Considera-se, ainda, no artigo 2º: «Por se distinguir do comum da raça negra, é considerado assimilado aos
europeus o indivíduo daquela raça ou dela descendente que reunir as seguintes condições:
a) que não siga os usos e costumes da raça negra ou que tenha abandonado inteiramente tais usos e costumes;
b) falar, ler e escrever a língua portuguesa;
c) Adoptar a monogamia;
d) Exercer profissão, arte ou ofício compatível com a civilização europeia ou ter rendimento obtido por meio lícito
que seja suficiente para prover os seus alimentos, compreendendo sustento, habitação e vestuário, para si e sua
família».
34
«todo o indivíduo natural da terra em que habita», só podendo ser objecto de leis especiais
«aqueles indígenas vulgarmente conhecidos pelo nome de gentios, que vivem e desejam
continuar a viver sob os usos e costumes privativos dos agregados sociais indígenas».
Diz-se no artigo 3º do Estatuto político, civil e criminal dos indígenas de Angola e Moçambique31
(Decreto nº 12:533 de 23 de Outubro de 1926): «[...] são considerados indígenas os indivíduos da
raça negra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do comum
daquela raça». Acrescentando-se que «Aos governos das colónias compete definir, em diploma
legislativo, as condições especiais que devem caracterizar os indivíduos naturais delas ou nelas
habitando, para serem considerados indígenas, para o efeito da aplicação do Estatuto e dos
diplomas especiais promulgados para indígenas».
No diploma nº 36, de 12 de Novembro de 1927 (que define as condições especiais que devem
caracterizar os indígenas ou não indígenas, em cumprimento do disposto na segunda parte do
artigo 3º do Estatuto político, civil e criminal dos indígenas de Angola e Moçambique de 1926),
artigo 1º, consideram-se «indígenas, para os efeitos da aplicação do respectivo estatuto e dos
diplomas ou disposições especiais promulgadas para indígenas, os indivíduos da raça negra ou
dela descendentes que não satisfaçam cumulativamente às seguintes condições32:
a) falar português;
b) Não praticar os usos e costumes característicos do meio indígena;
c) Exercer profissão, comércio ou indústria ou possuir bens de que se mantenha».
31
Abrangendo, inicialmente os indígenas de Angola e Moçambique, foi, em 1927, tornado extensivo aos indígenas
da Guiné e dos territórios da Companhia de Moçambique, pelo Decreto nº 13:968.
32
Como observa Cota (1946, p. 62), [...] "se ser indígena é não possuir determinados requisitos, ser não indígena é
possuí-los".
33
O Decreto nº 16:474 de 6 de Fevereiro de 1929 (Diploma orgânico das relações de direito privado entre indígenas
e não indígenas) dispunha, na alínea a do seu artigo 2º, que «Indígenas são considerados os indivíduos a quem se
aplicar o estatuto político, civil e criminal dos indígenas em vigor na respectiva. colónia».
35
Legalmente, a definição de indígena estava subordinada ao critério racial ou étnico – os
indivíduos de raça negra, e ao critério cultural – os indivíduos que pela sua ilustração e costumes
se integravam na cultura indígena.
E Cota (1946) considerava que a assimilação legal era uma mera presunção que o indígena estava
apto a fazer parte da civilização, acentuando a incerteza e questionando a sua real integração e
sublinhando a possibilidade, esta sim real, da revogação da sentença de assimilação 34. Desta
forma, reforçando-se a desigualdade, garantia-se a manutenção da situação de subalternidade das
populações africanas e o sistema político e social instituído pelos colonizadores.
34
Sobre a possibilidade de se perder a condição de não-indígena Pereira (2001, p. 159) sublinhou que "o estatuto de
não-indígena ou de assimilado não era, portanto, uma prerrogativa dos africanos que conseguissem preencher os
requisitos exigidos pela lei, mas apenas uma faculdade transitória, passível de caducidade regressiva pelo julgamento
arbitrário, porque não previsto no corpo da própria lei, das autoridades administrativas ou judiciais". E a lei previa
expressamente esta possibilidade. Tomemos como exemplo o que se determina no artigo 6º, da portaria nº 317, de 9
de Janeiro de 1917, e da Portaria nº 1:041, de 18 de Janeiro de 1919: «O assimilado ou seus descendentes que
regressarem à prática dos usos e costumes indígenas perdem a qualidade de assimilados e serão trancados os seus
nomes e referências nos respectivos registos por sentença da autoridade judicial da comarca da residência do arguido.
O juiz poderá, ouvido o Ministério Público, ordenar as diligências que entender necessárias ao conhecimento da
verdade, proferindo finalmente a sua decisão, de que não há recurso».
Também, no artigo 64º, do Estatuto dos Indígenas de 1954, se diz que «A cidadania concedida ou reconhecida nos
termos dos artigos 58º e 60º poderá ser revogada por decisão do juiz de direito da respectiva comarca, mediante
justificação promovida pela competente autoridade administrativa, com intervenção do Ministério Público.
§ 1º A decisão será notificada aos interessados, que dela podem recorrer, no prazo de trinta dias, para a Relação.
§ 2º Julgado definitivamente o recurso, será apreendido o bilhete de identidade e o interessado voltará a ser
considerado indígena, excepto para o cumprimento das obrigações que haja assumido para com terceiros».
36
e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos
portugueses35.
§ único. Consideram-se igualmente indígenas os indivíduos nascidos de pai e mãe indígena em
local estranho àquelas províncias para onde os pais se tenham temporàriamente deslocado».
As condições estabelecidas para a aquisição da cidadania portuguesa, com o consequente
abandono da condição de indígena eram as seguintes:
«a) Ter mais de 18 anos;
b) Falar correctamente a língua portuguesa; [sublinhado nosso]
c) Exercer profissão, arte ou ofício de que aufira rendimento necessário para o sustento próprio e
das pessoas de família a seu cargo, ou possuir bens suficientes para o mesmo fim;
d) Ter bom comportamento e ter adquirido a ilustração e os hábitos pressupostos para a integral
aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses;
e) Não ter sido notado como refractário ao serviço militar nem dado como desertor (artigo 56°).
Nos artigos 60º e 61º previam-se as situações em que o bilhete de identidade (que fazia prova
plena da cidadania) seria passado sem dependência das formalidades previstas no Estatuto «a
quem apresente documento comprovativo dalguma das seguintes circunstâncias:
a) Exercer ou ter exercido cargo público, por nomeação ou contrato;
b) Fazer ou ter feito parte de corpos administrativos;
c) Possuir o 1.° ciclo dos liceus ou habilitação literária equivalente;
d) Ser comerciante matriculado, sócio de sociedade comercial, exceptuadas as anónimas e em
comandita por acções, ou proprietário de estabelecimento industrial que funcione legalmente».
Os governadores de província tinham competência para «conceder a cidadania com dispensa da
prova dos requisitos exigidos no artigo 56.° aos indivíduos que notòriamente os possuam ou que
tenham prestado serviços considerados distintos ou relevantes à Pátria Portuguesa» (artigo 61°).
Como se pode constatar, pela comparação dos artigos, este novo Estatuto veio agravar,
relativamente aos anteriores, as condições necessárias para se adquirir a cidadania36. Poucos eram
os nativos que conseguiam preencher todos os requisitos (pois era necessário preenche-los
cumulativamente) constantes das alíneas do artigo 56°, e assim «ascender» à categoria de não
35
Na feliz expressão de Eduardo Mondlane (1975), o africano só seria aceite como pessoa se renunciasse a si
próprio.
36
Em todo este processo deu-se a destruição das sociedades tribais, desagregando-se quase por completo os grupos
sociais nativos, que se deslocavam para as cidades, criando graves problemas.
37
indígena ou de cidadão.
Do exposto, podemos concluir que a definição de «Indígena» nunca foi substancialmente alterada
na diversa legislação publicada ao longo dos anos, mantendo-se sempre estreitos os limites para
os que queriam «ascender» à categoria de não indígena (ou assimilado, como chegou a ser
definido em alguma legislação), negando, assim, o Estado colonial português a possibilidade de
mudança social aos indígenas, pois ser não indígena equivalia a ser civilizado, evoluído.
A população estava dividida em duas classes distintas, sujeitos a princípios e regras diferentes: os
cidadãos e os indígenas, «protegidos» estes pelo Estatuto do Indigenato contra os inconvenientes
da aplicação de um Direito de tipo europeu que não compreenderiam e os violentaria nos seus
hábitos. Eram objecto de uma suposta discriminação positiva, com vista a proteger as suas
pessoas e cultura. Quando adquirissem a mentalidade e os costumes europeus tornar-se-iam
cidadãos e participariam da vida cívica da Nação Portuguesa, o que era muito difícil de obter, se
considerarmos os requisitos que tinham que ser preenchidos e os obstáculos que tinham que ser
ultrapassados.
38
Podemos resumir, da seguinte forma, as diferenças que se registavam:
REGIME DO
INDIGENATO
39
3.1. RELAÇÕES ENTRE INDÍGENAS E NÃO INDÍGENAS
Aspecto importante era o das relações de direito privado entre indígenas e não indígenas. No
Estatuto político, civil e criminal dos indígenas de Angola e Moçambique de 1926 previa-se que
os contratos, com excepção dos de prestação de serviços, entre indígenas e não indígenas, só
seriam válidos desde que aprovados pela comissão de defesa dos indígenas (artigo 6º), princípio
repetido no Estatuto político, civil e criminal dos indígenas de 1929, no artigo 10º,
acrescentando-se no § único que os presidentes das comissões de defesa podiam delegar nos
presidentes dos tribunais privativos dos indígenas as necessárias atribuições para a aprovação
daqueles contratos. Para disciplinar juridicamente as relações de direito privado entre indígenas e
não indígenas, previa-se uma lei especial (artigo 11º). Assim, pelo Decreto nº 16:474 de 6 de
Fevereiro de 1929 foi aprovado o Diploma orgânico das relações de direito privado entre
indígenas e não indígenas, que estatuía no artigo 3°: «As questões de natureza civil e comercial
entre indígenas e não indígenas são julgadas ex aequo et bono pelos juízes de direito e
processadas nos termos do presente diploma». E no § único exceptuavam-se «as questões sôbre
estado de pessoas e as resultantes de contratos de prestação de serviços», que continuavam a
regular-se pelas leis em vigor.
E, seguindo a mesma orientação, o Estatuto dos indígenas portugueses das províncias da Guiné,
Angola e Moçambique de 1954 estipulava no artigo 47º «As relações de natureza civil ou
comercial entre indígenas e pessoas que se regem pela lei comum serão reguladas por esta última,
quando não houver outra especialmente aplicável». Acrescentando-se no artigo 48º «Ao aplicar a
lei, nos termos do artigo anterior, o juiz decidirá sempre de modo a não impor ao indígena o
cumprimento de deveres que ele não pudesse razoàvelmente ter previsto ou querido aceitar».
Moreira (1955, p. 101) assume: "Aqui, onde está em jogo precisamente o aspecto mais delicado
das relações entre as duas sociedades coexistentes no território colonial, adoptou-se puramente a
jurisdição metropolitana e ainda o próprio direito metropolitano, único pelo qual se regem,
faltando lei especial, tais relações. [...] a actuação sobre o direito e os costumes locais se dá por
meio de decisões baseadas em critérios inteiramente diferentes, porventura para litígios
equivalentes na estrutura: por um lado e sempre, pelo menos quando surge o contacto litigioso
das duas sociedades, a fonte da decisão é simplesmente o direito do colonizador; por outro lado,
40
quando a questão se limita aos indígenas, o seu direito tem um papel a desempenhar na decisão
tomada".
41
CAPÍTULO 2
APLICAÇÃO E CONSEQUÊNCIAS DA POLÍTICA INDÍGENA
– O CASO DE MOÇAMBIQUE
Ao estender o seu domínio sobre os territórios africanos, o colonizador viu-se confrontado com a
necessidade de gerir realidades sociopolíticas diferentes das que lhe eram familiares. Esta
circunstância foi, inevitavelmente, rica em consequências. Antes de mais, a edificação do Estado
colonial alterou as formas de domínio político tradicionais, que se baseavam em pressupostos
algo diversos. Por exemplo, o Estado pré-colonial africano não era constitutivamente territorial,
não se baseava na noção de fronteiras rigorosamente traçadas: definia-se em função de um poder
central virado para a obtenção de recursos. Uma das suas linhas de força era o território, mas
como enquadramento das comunidades (e referente simbólico ligado aos antepassados). E nunca
se procuraram alterar os sentimentos identitários das populações, criando laços territoriais
rígidos. A linhagem, e não o território, continuou a ser o pilar em torno do qual se erigiam as
identidades e as lealdades.
Com a colonização, a divisão dos territórios não respeitou nem a história nem as etnias 37, sendo
as fronteiras arbitrariamente fixadas, com uma rigidez a que as populações não estavam
habituadas; a introdução do «princípio da territorialidade» criou uma perturbação do vínculo
comunidade/antepassados/terra e facilitou a emergência de situações de anomia social, uma vez
que aquele vínculo era essencial para a harmonia e equilíbrio social38. A esfera jurídica, vital para
a gestão de conflitos e para a regulação das relações sociais, foi, também ela, profundamente
37
De acordo com Munanga (2003, p. 12), "Uma etnia é um conjunto indivíduos que, histórica ou mitologicamente,
têm um ancestral comum; têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão; uma mesma cultura e
moram geograficamente num mesmo território.
Algumas etnias constituíram sozinhas nações. Assim o caso de várias sociedades indígenas brasileiras, africanas,
asiáticas, australianas, etc. que são ou foram etnias nações. Os territórios geográficos da quase totalidade das etnias
nações africanas foram desfeitos e redistribuidos entre territórios coloniais durante a conferência de Berlim (1884-
1885). É por isso que o mapa geo-político da África atual difere totalmente do mapa geo-político pré-colonial. Os
antigos territórios étnicos, no sentido dos estados nações são hoje divididos entre diversos países africanos herdados
da colonização".
38
A terra era um factor estruturante da vida social, sendo os antepassados os verdadeiros donos dessas mesmas terras
e, simultâneamente, protectores dos vivos. Se uma comunidade era expulsa da terra onde habitualmente habitava era
privada da protecção dos seus antepassados. Ora, em muitos casos, a colonização obrigou a deslocações das
populações, que, assim, ficaram privadas da terra onde viviam e da protecção sobrenatural dos antepassados.
42
afectada pela colonização. Enquanto nos Estados europeus existia uma única ordem jurídica,
abrangendo toda a população residente nos respectivos territórios, nas colónias africanas o
colonizador viu-se confrontado com lógicas jurídicas que eram não só diversas entre si mas
também assentes em fundamentos distintos dos que definiam o Direito ocidental. Ou seja, nos
quadros territoriais construídos pelas nações europeias em África não existia um único direito
pré-estabelecido mas sim diversos direitos costumeiros que variavam de grupo étnico para grupo
étnico, de comunidade para comunidade, de regulado para regulado.
Esta realidade implicava muitas complexidades. Diferentes autores reconhecendo a dificuldade
em conceber Códigos que se adequassem e se pudessem aplicar aos diversos grupos étnicos,
propunham a organização de diferentes códigos, penais e civis, para cada uma das colónias e para
cada etnia, grupo ou tribo. Na sua elaboração, a cargo dos governos provinciais e distritais,
colaborariam funcionários administrativos e judiciais, missionários e outras pessoas consideradas
dignas de confiança.
Os agentes da colonização estavam conscientes das dificuldades. Tomemos como exemplo o que
escreve Feio (1900, p. 71): "É extremamente difficil formar um corpo de leis penaes, que possa
applicar-se com vantagem a todos os povos das regiões daquella nossa provincia da Africa, já por
que os seus usos e costumes se modificam sensivelmente de regulo para regulo, já tambem por
que, não obstante todos os esforços, me foi impossivel, e creio será a outros, colligir todos os
crimes e respectivas penas".
E, ainda neste contexto, acrescenta: "[...] por que o seu estado sociologico e condições especiaes
[dos povos africanos] variam muito de umas para outras, tambem não podemos estabelecer uma
legislação uniforme para todo o nosso dominio colonial.
O que póde ser proveitoso para a Guiné, póde deixar de o ser para Angola e Moçambique, o que
se torna necessario para a India é inapplicavel á Africa ou Macau, o que n’esta póde promover o
progresso, póde n’aquella determinar um atrophiamento.
Além pois das suas condições physicas e economicas é indispensavel conhecer os usos e
costumes de cada colonia, a fim de bem se poder legislar para cada uma, e n’este bom e prudente
criterio estará o merecimento do legislador e o futuro da colonia" (Feio, 1900, p. 151).
E, aludindo à diversidade de usos e costumes das diferentes tribos de Moçambique, Magalhães
(1907, p. 140-141) afirma "Algumas tentativas se teem feito na provincia de Moçambique para a
codificação dos usos e costumes da região, tão diversos de um districto para o outro e no proprio
43
districto, como diversos são os seus habitantes pelas tribus a que pertencem, e que os divide em
Vatuas, Macuas, Matongas, Landins, Zulus e outros."
A lei, de alguma forma, reconheceu esta realidade. Podemos ver alusões a esta situação no
Estatuto político, civil e criminal dos indígenas de Angola e Moçambique de 1926, cujo artigo 2º
prescreve que «as codificações dos usos e costumes dos indígenas serão feitas por circunscrições
administrativas ou regiões, [sublinhado nosso] segundo as circunstâncias, e nelas serão aceitos
todos os usos e costumes da vida social indígena que não ofendam os direitos de soberania ou
não repugnem aos princípios de humanidade», e no diploma congénere de 1929 no artigo 4º, em
que se repete o teor daquele artigo.
44
2. CARACTERÍSTICAS DAS ORDENS JURÍDICAS TRADICIONAIS
Nas colónias coexistiam o direito moderno, oficial, codificado, e os direitos costumeiros dos
povos indígenas. Como observa Santos (2003, p. 48) "apesar de o paradigma normativo do
Estado moderno assumir que em cada Estado só há um direito e que a unidade do Estado
pressupõe a unidade do direito, a verdade é que sociologicamente, circulam na sociedade vários
sistemas jurídicos e o sistema jurídico estatal nem sempre é, sequer, o mais importante na gestão
normativa do quotidiano da grande maioria dos cidadãos".
De facto, as lógicas (utilidade e enquadramento social) que presidiam ao pluralismo legal
instituído, lei colonial e o (s) direito (s) costumeiros, eram diferentes. Seguindo o pensamento de
Meneses et al. (2003), a lei estatal, que regulava as relações entre os não-indígenas e as relações
entre estes e os indígenas e todas as questões do foro criminal, era de raiz individual procurando
resolver situações de litígio, sendo a lei um conceito abstracto (o juiz devia interpretar a lei e
aplicá-la com o maior rigor possível e punir o prevaricador – aplicação de princípios gerais e
abstractos).
Quais eram, então, as características39 do direito dos povos indígenas, denominado
consuetudinário, gentílico, costumeiro ou indígena, as suas leis tradicionais, os seus usos e
costumes?
2. 1. CARACTERÍSTICAS CONSTITUTIVAS
Os povos das possessões portuguesas além-mar eram detentores de culturas baseadas na tradição
oral. O relato da sua história, a notícia dos acontecimentos mais notáveis, a narração dos factos e
39
Muitas das características aqui enumeradas basearam-se nos estudos que diversos autores portugueses fizeram, o
que, necessariamente, deturpará a realidade. A descrição dos usos e costumes dos nativos foi feita através dos olhos
do «Nós civilizados» por contraposição ao «Outro», exótico, incivilizado, imoral, bárbaro...
E, também, porque, como refere Falcão (1909, p. 151), "Quasi todos os europeus que passam alguns annos em Africa
se julgam conhecedores da psychologia indigena, quando apenas conhecem os actos dos seus muleques e que
interpretam ao sabor dos seus interesses ou debaixo d'um ponto de vista muito differente dos motivos reaes que os
determinam. Isto tem dado logar a que sobre a organisação social, estado de civilisação, instinctos, caracter,
superstições, etc., etc., emfim, sobre o espirito do indigena se faça, quasi universalmente, uma opinião errada, quasi
sempre baseada nos actos dos muleques, dos pretos da cidade ou com largo contacto com o europeu de quem
assimilou a maior parte das vezes só os defeitos e os vicios. E isto tem dado tambem logar a que a maior parte da
nossa legislação sobre indigenas esteja em contradicção com os seus costumes, e dê resultados por vezes bem
funestos e contrarios aos nossos interesses".
45
acontecimentos e a transmissão dos seus usos e costumes passava de pais para filhos oralmente.
Como refere Júnior et al. (1931, p. 5) "Durante bastante tempo as normas de direito não eram
escritas, perpetuando-se pelo costume na memória do povo. Por costume entende-se a prática
regular e constante de certos actos seguida da constatação da sua necessidade geral. Durante essa
fase o direito chamava-se consuetudinário e só muito mais tarde é que apareceu o direito escrito".
Os normativos jurídicos destas populações eram compatíveis com as suas necessidades sociais.
Se quisermos resumir, podemos dizer que os direitos costumeiros africanos se caracterizavam por
três traços fundamentais: baseavam-se no princípio da consensualidade, eram situacionalmente
flexíveis e eram contingentes. A primeira destas características, a preocupação com a
consensualidade, era absolutamente marcante: a ordem jurídica devia, acima de tudo, procurar
evitar o eclodir e a perpetuação de situações de conflito, a tensão social, e restabelecer a
harmonia comunitária. Os agentes da colonização, de resto, depressa compreenderam esta
realidade. Cota (1946, p. 81) sublinha no artigo 8º, do seu Projecto definitivo do direito Privado
dos indígenas da Colónia de Moçambique, "O juizo cível dos indígenas é essencialmente
conciliatório."
E na NOTA a este artigo «aconselha» a rapidez e a prontidão da justiça, e ao juiz a conciliação das
partes, com a interferência do respectivo regedor, devendo a decisão ser uma solução de
compromisso e de transigência recíproca das partes. Consciente de que esta busca do consenso
resulta, em grande parte, da natureza comunitarista das sociedades africanas, o mesmo autor
acrescenta, e ressalva, que o juiz, nas questões sobre direitos da família, deverá "promover o
comparecimento dos parentes que representam a autoridade paternal ou que, mesmo
indirectamente, possam ser afectados pela decisão a proferir", pois "O princípio colectivo em que
se funda toda a orgânica da família indígena40 importa, em regra, não considerar os interesses do
indivíduo isoladamente do seu grupo familiar, muito embora o direito da comunidade se
personifique num só indivíduo, o chefe".
40
[A estrutura social de base era a família alargada, fornecendo o modelo para a estruturação das diversas unidades
políticas aos diversos níveis. A função da família era política (unidade de poder, existindo um chefe a que os outros
deviam respeito), económica (unidade produtiva fundamental) e religiosa (culto dos antepassados e respeito pelo
princípio da senioridade). A linguagem do parentesco assumia um papel essencial. A família era, pois, o fundamento
de todo o direito consuetudinário destes povos. A este propósito Macedo (1944, p. 17) observa: "A organização das
sociedades indígenas da raça negra têm por base a família, à volta da qual gira toda a vida cafreal e a sua feição
colectivista prende e embaraça o indivíduo em todos os actos da sua vida"].
46
O princípio do consenso, no entanto, é encarado com reservas pelo colonizador. Assim, sustenta-
se que nas questões "que representem ofensa às normas de carácter morigerador com uma
finalidade social, não poderá haver conciliação por ser inadmissível a transacção. Nessas
questões o que está em foco é o interesse e ordem pública e não pròpriamente o interesse das
partes".
O direito costumeiro era igualmente flexível, adaptando-se as decisões às alterações dos ideais e
dos valores das comunidades e ao caso concreto – julgamento ex aequo et bono, guiado pelos
simples ditames da consciência social, aplicando-se as normas socialmente aceites caso a caso,
não sendo, consequentemente, a lei igual para todos.
Finalmente o direito costumeiro era contingente, podendo ser alterado pelas partes. Cota (1946a,
p. 139-140), refere "O juízo, sobretudo criminal, tal como o concebe a maioria dos países da
civilização ocidental, onde o julgador exercita a sua função como um técnico, subordinado a
regras e preceitos rígidos, somente é compreensível em sociedades que codificaram o seu direito,
ou que por outra forma escrita lhe deram carácter imperativo. O direito consuetudinário é
contingente, sobretudo porque ele se resume, quase sempre, a um sistema de princípios basilares
que orientam a conduta individual, deixando ao critério dos próprios interessados ou do julgador
a resolução de questões acompanhadas de circunstâncias e de factos que lhe dêem uma feição
particular e que não podem ser previstas.
De resto, entre os indígenas, pelo menos desta província [Moçambique], o direito cível, com
excepção das sucessões, pode ser alterado pelas partes, pois a sua vontade comum sobrepõe-se
frequentemente às regras tradicionais, por motivos de vária natureza".
2. 2. 1. Administração da justiça
Nas sociedades pré-coloniais africanas, por via de regra, eram os chefes tradicionais (os régulos,
como lhes chamaria o colonizador) que decidiam todos os milandos entre as populações que
estavam sob a sua alçada ou entre queixosos de outra chefatura e acusados da sua, sendo,
normalmente, todos os delitos e crimes reduzidos a multas ou indemnizações. Mas a resolução
dos milandos não era uma decisão individual: a discussão da causa era pública estando a decisão
47
da questão equilibrada pela interferência dos grandes e pelo juízo dos prudentes, como veremos
mais à frente. "Não se actua modo individual; porque se trata de um sistema que pretende regular
e evitar as situações problemáticas de um dado grupo, o chefe não pode dispensar o apoio das
bases sociais, da comunidade. Assim os notáveis actuam como conselheiros e a população como
avalista da justeza da decisão tomada" (Meneses et al., 2003, p. 347).
O processo de averiguação era, frequentemente, apoiado pelo recurso a práticas mágico-
religiosas. Almeida (1911, p. 323) fala-nos dos macangueiros, em quem os indígenas confiavam
a resolução dos seus milandos: "o macangueiro sentado no chão, ouve attenciosamente as razões
de um lado e de outro, sem fazer o mais pequeno commentario. Depois deita num pequeno
cadinho, aquecido ao rubro, uma porção de agua e dentro d'esta uns pós quaesquer; quando a
agoa fervilha deita-lhe dois pequenos pausinhos, diz uma lenga-lenga mais ou menos comprida, e
se os paus, apesar de tudo, lá ficam emquanto a maior parte da agua foi expellida, o accusado tem
culpas, estando innocente se, ao contrario, elles saem com a agua. Por veses o accusado não se
conforma com a solução e é então sujeito á prova do muàvi, que consiste em metter as mãos em
agua quente depois de as metter em agua fria; se ellas não empolam então está absolutamente
innocente.
Antigamente, e ainda hoje, entre os povos mais selvagens, o muàvi era tambem um veneno que se
dava a um individuo para lhe conhecer as suas culpas, sendo certo que era criminoso se o veneno
o matava ou mesmo lhe fazia qualquer mal; hoje os menos selvagens, quando fazem essa prova,
em vez de darem o veneno ao individuo dão-n'o a qualquer animal, geralmente a uma galinha ou
a um cão".
2. 2. 2. Organização judiciária
O processo era célere, para não aumentar a tensão social. As formalidades do julgamento
reduziam-se à audição das partes em litígio e das testemunhas. Geralmente, a queixa era
apresentada ao secretário do régulo que levava o queixoso à casa deste. O régulo mandava
chamar o acusado e ouvia as partes e as testemunhas em sessão pública. Quando não havia
testemunhas presenciais ou havia contradição de depoimentos, o régulo pedia a intervenção do
feiticeiro para descobrir pela magia a verdade. No fim da discussão da questão o régulo proferia a
sentença, depois de ouvir os seus conselheiros. Feio descreve o processo com considerável
48
detalhe:
"Ha dias determinados para os julgamentos, milandos, considerando-se feriados não só os dias
immediatos ás principaes phases da lua, mas ainda os de muito chuva quando esta não permitta a
reunião do publico na banja.
Banja ou bange é o local destinado ás audiencias e reuniões publicas, para o que se escolhe o
espaço abrigado pela sombra da arvore mais frondosa, que exista nas proximidades da residencia
do regulo.
Nos dias da audiencia vão uns determinados grandes ou secretarios, que têem por especial
funcção este mister, abrir a sessão em nome do regulo e ali tomam conhecimento das questões,
que ha a propôr, natureza do seu assumpto e nomes dos litigantes.
As dez ou onze horas da manhã estes secretarios ou grandes transportam-se ao logar onde se
acha o regulo com a sua côrte, e perante todos fazem a exposição das causas que ha a tratar,
depois do que o regulo com os grandes mais graduados e mais velhos, e que constituem como
que o seu conselho privado, consideram em abstracto as differentes hypotheses que pódem
suscitar-se, verificam a natureza do milando pelo acto em si e pela qualidade das partes e
assentam na lei ou na penalidade, que a cada um e aos differentes casos deve ser applicada.
Entretanto os secretarios, a que nos referimos em primeiro logar, têem-se dirigido para a bange
onde aguardam a vinda do regulo seguido do seu conselho e côrte. [...]
Aberta a audiencia em nome de regulo, um dos secretarios menores apresenta as questões, que ha
a tratar, especificando as partes e os assumptos a discutir, e sobre esta apresentação os grandes
secretarios fazem entre si e perante o regulo segunda apreciação do milando com o fim de
esclarecer e definir o estado do pleito, a sua natureza, a qualidade das partes e a hypothese
especial que se ventila.
O regulo manda apregoar e vir á sua presença os litigantes e pessoalmente lhes faz quaesquer
perguntas que julgue necessarias ou convenientes para se esclarecer, ordenando em seguida,
quando necessario fôr, que a causa seja discutida em publica audiencia entre as pessoas de mais
edade e de melhor criterio, que se achem presentes.
Para esta discussão nomeia o regulo um jury composto de numero variavel, mas entrando na sua
constituição tantos membros dos que foram propostos pelo auctor quantos os que o forem por
parte do réo, competindo ao regulo fixar o seu numero e conhecer a sua idoneidade.
Em seguida tem logar a producção das provas, sendo ouvidas as testemunhas de uma e outra
49
parte, convidando-se por ultimo quaesquer pessoas a darem conhecimento ao tribunal de qualquer
elemento que possa esclarecer a causa, o que sempre se faz pedindo venia ao regulo.
Terminadas as provas tem logar entre o jury a discussão do valor destas, pleiteando entre si os
membros do mesmo jury que representam o auctor com os que representam o réo.
Finda que seja a discussão, constitue-se o tribunal em sessão secreta, composta dos grandes
secretarios presidida pelo regulo, e n’ella se discute sobre a sentença que definitivamente deve
applicar-se quer absolvendo, quer condemnando o réo, que póde variar segundo o resultado das
provas, ficando ao regulo o livre arbitrio de julgar como lhe aprouver, tendo todavia de
conformar-se com uma das duas hypotheses formuladas e assentes pelo conselho em sessão
secreta.
Aberto novamente o tribunal em sessão publica e na presença das partes, o regulo apresenta o
resumo da queixa e da defeza e os fundamentos de cada uma concluindo por dar a sua sentença,
cuja publicação é annunciada por toques de tambores, gritaria e extraordinaria algazarra, feita
pela parte vencedora e seus parciaes.
De todas as sentenças ha appellação para o regulo de superior cathegoria, se o ha, ou para o mais
proximo, em caso contrario, sendo certo que por via de regra este recurso é inefficaz, pois que,
para não desprestigiar a auctoridade do seu collega, raras vezes um regulo reforma a sentença
proferida por outro. [...]
Em todos os julgamentos se attribue uma importancia capital, e ate mesmo em todos os
assumptos da vida, a provas que bem poderemos chamar-lhes julgamentos de Deus, sendo as
principaes, dentre todas, seis e que se denominam: Zembe ou acata, magona, ganga, chipendo,
baja e muave" (Feio, 1900, p. 75-78).
50
exemplo timhaka ta lobolo (questões sobre casamento), e as questões crimes designavam-se, de
um modo genérico, pela expressão timhaka ta mudôhi".
2. 2. 3. 1. Matéria penal
2. 2. 3. 2. Matéria civil
Os litígios do foro civil prendiam-se, quase sempre, com questões de heranças, problemas
familiares e assuntos patrimoniais. A este respeito, parece-nos interessante transcrever a
descrição que fez Cabral (1925, p. 48-50):
"Da herança
As mulheres são herdadas pelo irmão mais velho e os restantes haveres pelo filho primogénito, e
na falta dêste pelo que se lho segue em idade.
Quando não há herdeiro legítimo por parte da família do marido ficam os filhos pertencendo ao
avô materno. Na falta de filhos é herdeiro o irmão mais velho do falecido. Sendo os filhos ainda
menores é o tio paterno o seu tutor.
Nalgumas tribos macuas e bashopes o herdeiro natural é sempre o irmão mais velho, ou, na falta
dêste, o que se lhe segue em idade. Não existindo já nenhum irmão, a herança pertence ao
sobrinho mais velho, filho do irmão mais velho também.
Os parentes da mulher são sempre excluídos das heranças, sendo-lhes todavia reservado, o direito
de assistir à sua divisão.
As dívidas activas e passivas são herdadas e geralmente reconhecidas, não havendo para elas
prescrição.
Em caso algum as mulheres viúvas podem dispor dos bens deixados pelo marido.
53
Do testamento
Os indígenas não fazem testamento, sucedendo porém que alguns, sentindo a morte aproximar-se,
dizem onde têm o dinheiro escondido.
Do divórcio41
São causas de divórcio por parte do homem:
Adultério, Esterilidade, Recusa aos deveres conjugais, Recusar-se a trabalhar.
Por parte da mulher:
Impotência, Maus tratos, Ausência prolongada, Falta de pagamento da totalidade do dote.
No caso de adultério, o marido algumas vezes contenta-se com uma indemnização em dinheiro
paga pelo cúmplice, continuando com a mulher. Optando, porém, o indígena pelo divórcio, é a
família da mulher obrigada a restituir o dote ao marido.
No norte, entre os macuas, o marido não recebe o dote, mas tem o direito de escolher outra
mulher solteira pertencente à mesma família.
Reconhecidas como verdadeiras as causas que originam o divórcio pedido pelo marido, tem êste
o direito de receber novamente o dote por inteiro.
Outras vezes os pais da mulher divorciada entregam, por impossibilidade de restituir o dote, uma
outra filha solteira, no caso de divórcio. Por falta de pagamento do dote os filhos ficam em
companhia da mãe, não tendo o pai direito sôbre eles.
Quando o divórcio é decidido a favor da mulher o marido fica sem direito a qualquer espécie de
indemnização ou restituïção do dote.
41
Os indígenas do norte usam dizer quando pretendem divorciar-se, terem o coração cansado.
54
menoridade.
Os filhos adulterinos são considerados filhos legítimos, ainda que o pai tenha a certeza de que o
filho não é seu42.
Supondo mesmo que a mulher esteve já grávida doutro homem quando casou, o filho pertence ao
seu marido legítimo.
Podem haver pretensões sôbre a paternidade dos filhos, mas nunca a sua impugnação. Os filhos
da mulher viúva, solteira ou divorciada, que não tenha ainda casado legalmente, pertencem
sempre ao avô materno.
O pais não têm direitos alguns sôbre os filhos nascidos da mulher que não tiver sido dotada.
Não há perfilhações, pelo simples motivo de não haver repúdio de filhos.
Aos pais compete a obrigação de alimentar os filhos durante a sua menoridade.
Da tutela
Poucas vezes é exercida a tutela, e esta em geral aplica-se especialmente aos menores filhos dum
chefe.
A tutela do sucessor de um chefe importante é exercida pelos conselheiros do chefe falecido,
durante a menoridade do herdeiro; e no caso de um chefe de pequena importância, em geral a
tutela pertence a um tio paterno ou materno.
- Quando, por motivo do guerra, peste ou fome, se encontrarem menores abandonados, é o régulo
que toma conta dêles.
Da incapacidade
Pela interdição absoluta só são alcançados os mentecaptos, e sôbre estes é exercida a mesma
tutela que é concedida aos menores.
Da ausência
Quando a ausência do indígena se prolonga, procede-se em relação à família por este deixada
como se tivesse morrido, isto é, o herdeiro natural toma todos os seus encargos e constitui-se o
seu chefe e tutor.
42
Os indígenas do sul costumam dizer: nasceu no curral, querendo significar que, à semelhança do que se passa com
o seu gado, os filhos que nascem em casa também lhes pertencem.
55
Aos parentes do indígena ausente nunca é devida qualquer indemnização, mesmo no caso de mais
tarde aparecer.
Com os indígenas condenados a pena maior procede-se de igual forma como se tivessem
morrido.
Da propriedade
A terra, segundo o regime tribal em que vivem todos os indígenas da raça bântu, é usufruída
colectivamente.
O régulo é o detentor da terra e a êste pertence a sua distribuição.
Embora o terreno onde os indígenas fazem as suas culturas se transmita por herança e se conserve
na posse da mesma família e seus descendentes durante muitos anos, não lhe é todavia dada a sua
posse definitiva, não podendo o indígena vender ou alugar o terreno que aproveita.
As árvores de fruto pertencem a quem as plantou, podendo ser vendidas ou compradas. As
palhotas da povoação em que o indígena vive constituem propriedade exclusivamente sua,
podendo fazer delas o que entender. Raras vezes as palhotas são vendidas ou cedidas a outros
indígenas, por motivo de estes, sempre que se deslocam, construírem novas palhotas, pela
enorme repugnância que têm em ocupar palhotas já habitadas por outros indígenas.
Quando um indígena se pretende fixar numa determinada região, dirige-se ao régulo a pedir lhe
seja concedida a ocupação duma certa área de terreno que esteja desocupada. Mediante um
pequeno presente é fàcilmente concedido o terreno que o indígena pretende".
56
3. AS ALTERAÇÕES À ORDEM JURÍDICA TRADICIONAL
"Auctoritas non veritas facit jus (é a autoridade e não a verdade que faz o Direito)".
43
As sociedades indígenas e as suas instituições eram consideradas por muitos autores como inferiores, bárbaras,
primitivas e exóticas, por contraposição às civilizadas e culturalmente avançadas sociedades europeias.
57
a colonização acarretou alterações sensíveis na ordem jurídica tradicional. Essas alterações
reflectiram-se a diferentes níveis: ao nível normativo, ao nível formal e processual e ao nível da
matéria jurídica.
3. 1. ALTERAÇÕES ÀS NORMAS
3. 1. 2. CONTEÚDO NORMATIVO
3. 1. 3. ABRANGÊNCIA NORMATIVA
60
3. 2. ALTERAÇÕES DA FORMA E DO PROCESSO
3. 2. 1. Administração da justiça
61
O sistema passou, portanto, a ser dualista: de um lado os Tribunais Europeus que julgavam as
questões entre os «cidadãos», entre os indígenas e não indígenas, e todas as questões do foro
criminal (os crimes aos quais se aplicava o Código Penal Português eram sempre julgados nos
tribunais do Estado), e do outro, os Tribunais Privativos, que dirimiam os conflitos entre os
indígenas, duma forma que se pretendia «simples, rápida e eficaz», estando uns submetidos à lei
portuguesa e outros à lei tribal.
Eram as autoridades administrativas e militares que julgavam os milandos entre os indígenas.
Costa (1903, p. 165-166) reconhecia a utilidade da experiência e do conhecimento das tradições
dos indígenas e a necessidade de os juízes/administradores serem assessorados por indígenas de
"reconhecido prestigio e de experiencia comprovada", pois considerava: "Por melhor que seja o
criterio do juiz europeu encarregado de applicar a lei aos indigenas, por maior que seja o seu
conhecimento dessa lei, por mais cuidadosa que tenha sido feita a sua codificação havera sempre
mil causas de erronea apreciação e applicação, pois ella não pode ter a precisão e, ao mesmo
tempo, a elasticidade da lei europeia. Convem, pois, qualquer que seja o grau do tribunal
indigena, rodear o juiz, singular ou collectivo, de assessores indigenas, destinados a esclarecer o
seu voto, supprindo as deficiencias da lei". Esclarecia, ainda que esta composição do tribunal não
seria "uma instituição de jury" mas sim "uma corporação consultiva".
O Estatuto Político Civil e Criminal dos Indígenas de 1926, seguindo esta linha, considerava no
artigo 12º «A administração da justiça aos indígenas rege-se por fôro privativo, independente da
organização judiciária portuguesa», e previa no artigo 13º a existência «Em cada circunscrição
administrativa de regime civil ou militar» de um «tribunal privativo dos indígenas com jurisdição
em toda a sua área, constituído pela autoridade administrativa da sede da circunscrição, que
servirá de presidente, e por dois indígenas, sendo um nomeado pelo governador do distrito e
outro escolhido pela comissão de defesa dos indígenas, servindo por dois anos, sendo escrivão o
secretário da circunscrição». Acrescentava-se no seu § único: «Assistirão aos julgamentos dêste
tribunal, consoante as distâncias e a importância das causas com atribuïções de mera informação,
os chefes indígenas das regiões a que pertencerem as partes, quando residentes dentro da área de
circunscrição administrativa». Instituiu-se o princípio da unidade de jurisdição, cabendo a função
de julgar a representantes do Estado colonizador. A competência dos tribunais estava definida no
artigo 14º, «a) Em matéria civil e comercial: O julgamento de todas as questões em que autores
62
ou réus sejam indígenas. b) Em matéria criminal: 1º O julgamento dos crimes contra a
propriedade a que corresponda pena correcional e que os réus sejam indígenas; 2º O julgamento
de todos os crimes contra as pessoas e daqueles a que corresponda pena maior em que ofendidos
e réus sejam todos indígenas. § único Nos casos dos nos 1º e 2º da alínea b), havendo co-réus não
indígenas, o julgamento da causa pertencerá aos tribunais ordinários», estando prevista a
possibilidade de recurso (artigo 17º). Em cumprimento do disposto no artigo 21º do Estatuto foi
aprovado, pela Portaria nº 37 de 12 de Novembro de 1927, o Regulamento dos Tribunais
Privativos Indígenas.
No Estatuto Político Civil e Criminal dos Indígenas de 1929 repete-se o princípio de que a
administração da justiça aos indígenas se regia por foro privativo independente da organização
judiciária portuguesa (artigo 14º), passando os tribunais privativos a ter uma composição
ligeiramente diferente. Eram constituídos pelo administrador, intendente ou chefe da
circunscrição, que servia de presidente, por dois vogais com voto deliberativo e por dois
assessores com funções de mera informação sobre os usos e costumes (artigo 15º). Sendo a
competência igual à consagrada no anterior Estatuto (artigo 17º), aumentaram-se as atribuições e
modificou-se a composição do tribunal de recurso – Tribunal Superior Privativo dos Indígenas
(artigo 20º). Na sede dos postos administrativos de maior densidade populacional, previa-se a
existência de tribunais de conciliação e polícia (artigo 16.°), que, no entanto, nunca foram
criados. O Regulamento dos tribunais privativos dos indígenas (Diploma legislativo nº162 de 1
de Junho de 1929), dava execução ao disposto no artigo 24º, do Estatuto. Integrava as disposições
do Estatuto relativas à criação e estrutura dos tribunais, definia as competências em relação às
matérias de direito civil, comercial e criminal, descrevia as regras de processo civil, comercial e
criminal e estabelecia o processo relativo ao recurso para o Tribunal Superior Privativo dos
Indígenas.
Todavia, as questões civis indígenas eram, em muitos casos julgadas, em tribunais ordinários,
pois, os tribunais privativos não funcionavam com regularidade, e o tribunal de recurso foi
extinto e substituído em Moçambique pela Relação de Lourenço Marques – Decreto nº 21.215,
de 15 de Abril de 1932.
A orientação seguida no Estatuto dos indígenas portugueses das províncias da Guiné, Angola e
Moçambique de 1954, relativamente a estas matérias, foi definida nos artigos 51º a 55º,
63
determinando-se a competência dos juízes municipais em matéria civil, comercial e criminal
(assessorados por indígenas de prestígio reconhecido que conhecessem as tradições jurídicas
locais), a possibilidade de recurso da sua decisão para um juiz de direito e para o Tribunal da
Relação e o tipo de processo.
Não existindo, na cultura política tradicional africana, a clássica divisão de poderes (executivo,
legislativo e judicial) típica das sociedades europeias, e estando, nas comunidades locais, todos os
poderes centralizados na figura do chefe, os autores portugueses eram unânimes em reconhecer a
vantagem de reunir a função de administrar e a função de julgar numa única pessoa, que, pelo
contacto privilegiado e directo com as populações, era, muitas vezes, o administrador da
circunscrição, coadjuvado por chefes indígenas, conhecedores dos usos e costumes locais. Aqui
existiu, pois, uma aproximação aos usos e costumes indígenas, por necessidade administrativa e
económica (seria difícil às finanças portuguesas cobrir um território tão vasto) e por manifesta
conveniência política.
Muitos autores, aliás, referem isto mesmo. "A autoridade para os negros deve, pois, ser ao mesmo
tempo administrativa, judicial e militar" reconhece Costa (1903, p. 59). Opinião partilhada por
Sousa (1905, p. 421), que afirma: "Não é conveniente estabelecer para o exercicio da justiça
repressiva relativa aos indigenas uma auctoridade judiciaria differente da auctoridade
administrativa".
Cabral (1925, p. 8-9), sobre esta matéria, cita Girault: "Um administrador-juiz estará ao corrente
da situação política; preocupar-se há com as conseqüências indirectas do julgamento, porque se
houver desordem é a êle que pertence reprimi-la. Um magistrado não admite - e nisso julga
cumprir o seu dever - esta ordem de consideração. Profere a sentença, sem se preocupar com as
conseqüências políticas, que o administrador terá de reparar. [...] ainda se os indígenas
apreciassem esta separação das autoridades administrativas e judiciárias!... Mas, aos seus olhos, é
uma chinesice pura êste desdobramento de poderes: O indígena é simplista. Não compreende que
quem manda e dirige não possa punir. Este desdobramento de atribuïções diminui, sem o mínimo
proveito, o prestígio do administrador. ¿E que importa ao indígena ser julgado por um
administrador ou por um magistrado? ¿Não pertencem ambos igualmente à raça dominadora?".
64
Conhecendo os administradores a psicologia dos administrados-indígenas e os seus usos e
costumes, pelo contacto directo e relacionamento que com eles tinham, estavam nas melhores
condições para resolverem os seus milandos e a seu contento. O conhecimento do direito
consuetudinário era considerado um elemento valioso e indispensável para o julgamento dos
milandos de natureza civil. Há que referir que as autoridades administrativas eram procuradas
pelos próprios indígenas para a resolução dos seus litígios.
E desde cedo se reconheceu a conveniência em concentrar numa única pessoa as funções de
administrar e de julgar. Podemos apontar, a título de exemplo, o Regulamento para o Capitão-
Mór da Villa de Quilimane e seu termo (Portaria nº 393/A de 4 de Junho de 1853), um conjunto
de disposições sobre o relacionamento jurídico entre as autoridades do distrito e as populações
africanas no julgamento das “questões cafreaes”, e o Regimento da administração da justiça nos
territorios continentaes da comarca de Moçambique (Portaria nº 137 de 12 de Abril de 1898), em
que se reconhece a especialidade das mesmas questões cafreais.
Encontramos a afirmação legal da possibilidade de serem investidos funcionários administrativos
na função de julgar, assistidos por autoridades tradicionais locais, bem como o princípio que
reconhece expressamente a especialidade de tribunais que julgassem as questões entre indígenas,
na base 18ª, 5º da Lei nº 277 de 15 de Agosto de 1914 (Lei Orgânica de Administração Civil das
Províncias Ultramarinas44) repetindo-se no Decreto nº 7:008 de 9 de Outubro de 1920 (Bases
orgânicas da Administração das Colónias), base 97ª, 5ª, no Decreto nº 12 421 de 12 de Outubro
de 1926 (Bases Orgânicas da Administração Colonial) e no Decreto nº 15:241 de 24 de Março de
1928 (Bases orgânicas da Administração Colonial), base XII. Também no Decreto-Lei nº 23:228
de 15 de Novembro de 1933 (Carta Orgânica do Império Colonial Português), artigo 189.° («A
administração da justiça no Império Colonial Português rege-se pelo Estatuto Judiciário das
Colónias e pela legislação especial aplicável, observados os princípios do Acto Colonial e da
presente Carta Orgânica») e artigo 190.° («A função judicial é exercida no Império Colonial
Português por tribunais ordinários e tribunais especiais.[...] § 2º Para resolução da questões entre
indígenas podem ser investidos, nas funções de julgar, funcionários ou tribunais especiais ou as
44
«Na administração da justiça poderá admitir-se que nas funções de julgar sejam investidos funcionários ou
tribunais especiais, ou os chefes administrativos locais, assistidos de grandes (indígenas), letrados conhecedores da
lei especial, ou outros indivíduos de respeito e consideração no seu meio»
65
autoridades administrativas locais») 45 e na Lei nº 2.066 de 27 de Junho de 1953 (Lei Orgânica do
Ultramar Português), base LXV, («I- A função judicial é exercida no ultramar por tribunais
ordinários e especiais. Diplomas especiais regularão a sua organização e competência. e V- Nas
províncias do continente africano, ao juiz municipal compete o julgamento das questões
gentílicas, na forma definida por lei»).
Nas sociedades pré-coloniais africanas, o chefe tinha poder absoluto sobre as populações que
estavam sob o seu domínio, resolvendo os seus milandos, concentrando em si toda a autoridade e
delegando algumas funções em chefes subalternos.
Com o colonialismo e a ocupação efectiva dos territórios o seu poder foi substancialmente
reduzido, cabendo às autoridades administrativas a resolução das questões mais importantes,
passando os régulos a desempenhar funções menores, como a recolha dos impostos, o
fornecimento de serviçais para trabalhos agrícolas ou industriais e o recrutamento de homens para
os contingentes militares, a organização do trabalho indígena e a transmissão aos indígenas do
seu regulado das ordens e instruções que recebiam das autoridades coloniais. A resolução dos
milandos e instauração de processos-crime, aos quais se aplicava o Código Penal português, por
exemplo, passou a constituir prerrogativa do administrador da circunscrição. De forma a evitar a
reconstituição das linhagens consideradas poderosas, e perturbando os mecanismos sucessórios
tradicionais que constituíam uma ameaça à legitimação do poder político português e ao controle
das populações indígenas, depuseram-se ou eliminaram-se os potentados mais importantes,
dividindo as suas terras por chefes menores, nomeando-se auxiliares do governo chefes indígenas
da confiança das autoridades portuguesas, manipulando, assim, o Governo Português o poder
tradicional de acordo com os seus interesses e fazendo emergir novos modelos de liderança. A
diminuição do prestígio das chefias tradicionais, como é óbvio, obedeceu a considerações
políticas precisas, tendo por objectivo o enfraquecimento da sua autoridade e da sua legitimidade
junto das populações nativas.
O aproveitamento que o governo colonial fez das autoridades tradicionais é claramente assumido
45
Estatui-se o mesmo na Portaria nº 8:699 de 5 de Maio de 1937 (nova publicação da Carta Orgânica do Império
Colonial Português), com a mesma numeração.
66
por Monteiro (1942, p. 63-64): "os chefes gentílicos desempenham os seus cargos enquanto
servirem os interêsses nacionais a contento do Govêrno e tôda a acção que desenvolverem deve
aparecer sempre às populações como simples resultado da superior intervenção portuguesa.
Modeladas por êste espírito podem desempenhar utilíssima função como agentes civilizadores,
agindo pelo exemplo tanto como pela persuasão directa ou pela intimidação. Será mais fácil
convencer e educar a minoria dos chefes do que a massa dos restantes indígenas".
Este cálculo político é também, e explicitamente, reconhecido por Caetano (1948, p. 219-220),
que escreve sem meias-tintas: "[...] vencidos os imperadores cafres que se opuseram à
implantação do nosso domínio efectivo, quebrámos a organização feudal e só tolerámos régulos
de minguada autoridade e riqueza de tal modo que, hoje em dia, os funcionários lidam com
grande quantidade de pequenas autoridades gentílicas sem outro prestígio e sem outra força senão
a proveniente da investidura e do apoio português".46
No entanto, nem todos reconheciam a existência de manipulação mais ou menos transformadora,
das instituições indígenas por parte da administração central: na opinião de Jorge Dias (1957, p.
24), destacado antropólogo colonial, "O princípio de autoridade e as hierarquias das diferentes
sociedades indígenas eram escrupulosamente respeitados".
Como atrás foi referido, os deveres dos régulos foram fixados legalmente no Regulamento das
circumscripções civis dos districtos de Lourenço Marques e Inhambane (Portaria Provincial
nº671-A de 12 de Setembro de 1908), nos artigos 55º a 69º. Também na Reforma Administrativa
Ultramarina (Decreto-Lei nº 23:229 de 15 de Novembro de 1933) se determinam, nos artigos 91º
a 119º, as funções das autoridades gentílicas, consideradas como auxiliares da administração civil
nas colónias. Define, igualmente, o Estatuto dos indígenas portugueses das províncias da Guiné,
Angola e Moçambique de 1954 (Decreto-Lei nº 39.666 de 20 de Maio de 1954), artigo 7º a 24º,
quais as suas funções.
Nesta área como em muitas outras, a prática instituída pelas autoridades coloniais nem sempre
46
O chefe indígena passou a ser "confirmado" pela Administração Colonial. Existiu aquilo a que se pode chamar de
uma «produção» colonial de chefes tradicionais. Mas, frequentemente, estas autoridades tradicionais representavam
um duplo papel: por um lado eram um simples instrumento ao serviço do Governo colonial, e, por outro, defendiam,
ou tentavam defender, com maior ou menor sucesso, os interesses das populações indígenas.
67
coincidiu com as declarações de princípio. Por exemplo, embora se reconhecesse a necessidade
de aperfeiçoar os meios de conhecimento do direito privativo dos indígenas e a necessidade de se
organizar um direito criminal adaptado a povos com uma cultura e com valores diferentes dos
europeus, como suposta forma de protecção dos seus interesses, nunca tal intento se concretizou.
Assim, as relações civis eram reguladas pelo Código Civil, aplicado às colónias portuguesas pelo
Decreto de 19 de Novembro de 1869, com as excepções admitidas no artigo 8º, os crimes e as
penas regulados pelo Código Penal de 1884, generalizado às Colónias por Decreto de 16 de
Setembro de 1886.
3. 3. 1. Matéria Civil
3. 3. 2. Matéria Penal
A aplicação do Código Penal português, que se baseava num sistema social e moral que não
tinha, em muitos aspectos, paralelo com o sistema social e moral dos povos indígenas e
contemplava situações sem analogia possível, criava, manifesta e necessariamente, situações de
profunda injustiça e desigualdade. Esta situação era reconhecida por Cunha (1953a, p. 81): "Nada
mais prejudicial do que a aplicação inconsiderada de leis penais elaboradas para povos com um
certo nível de civilização, a outros de civilização inferior".
Note-se que, e deve ser feita esta ressalva, por vezes o pretenso atraso civilizacional (e
consequente «estatuto diminuído») dos indígenas jogava a seu favor, dado que o legislador e
68
considerava a necessidade de contemporizar e de transigir com determinados tipo de crimes, sem
correspondência nos códigos penais portugueses, mitigando-se, ipso facto, certas penas. Note-se
ainda que, apesar da constante afirmação relativa ao atraso civilizacional dos indígenas, a
generalidade dos autores lhes reconhecia sentido de justiça, embora considerando a sua moral
bárbara, primitiva e inferior.
Preconizava-se, assim, uma justiça equitativa, rigorosa e expedita. Defendiam-se os valores da
ordem e segurança públicas, acima dos interesses individuais, e a elaboração dum código penal
especial para os indígenas, salientando os especialistas quatro aspectos aos quais se devia dar
particular atenção na elaboração do referido código: a lista das infracções (variável com as raças
e com as civilizações, havendo crimes que não seriam contemplados e outros que seriam punidos
com severidade), a forma do processo (simplificada), a organização da justiça repressiva
(exercida pela potência colonizadora, através de funcionários ou juízes europeus) e o regime
penitenciário.
Cunha (1953), considerando várias razões para não se contemporizar como os usos e costumes
dos nativos em matéria penal (a saber, a necessidade de normas penais feitas pelos colonizadores
e que, preventiva ou repressivamente, defendessem a acção colonial contra os factos que
pudessem prejudicar os objectivos do Estado colonizador, a necessidade de proteger os colonos e
nativos contra violências e espoliações mútuas, a transformação das concepções morais dos
nativos resultante do contacto com os colonizadores e, finalmente, a dificuldade de encontrar no
direito tradicional dos indígenas normas especializadas de direito criminal), advogava a
necessidade de se elaborar um Código Penal para os indígenas, apontando lucidamente os
inconvenientes de se lhes aplicar o Código Penal Português: "O quadro de infracções é
inadequado, porque não tem em conta a mesma tábua de valores, as mesmas concepções sociais,
religiosas e morais47; as penas e as medidas de segurança, são ineficientes, porque não se
47
Neste contexto, Moreira (1955, pp. 128-129) refere-se às "[...] condutas reprovadas pelos próprios usos e
costumes, que constituem flagelos para as populações indígenas, e que não são previstas pela legislação
metropolitana porque as condições de vida da respectiva sociedade não mostravam ser necessária a intervenção
legislativa [...]. A prudência parece porém aconselhar uma importante regra de orientação de política legislativa ao
proceder à definição dessas infracções típicas: reservar para a lei penal exclusivamente aquelas práticas que os
próprios usos e costumes, que integram os estatutos indígenas, consideram ilícitas, deixando à acção administrativa o
complexo de condutas, de resto menos graves, que constituem prática generalizada das populações. É que a paz
pública que limita a aplicação da ordem pública portuguesa não ganha nada com a brusca imposição de normas que,
embora inspiradas pela moral, pelos ditames da humanidade e pelo livre exercício da soberania [...] não podem
esperar a generalizada observância e efectiva repressão das violações cometidas que caracterizam a falada paz
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coadunam com a personalidade dos delinquentes; os critérios para a avaliação da
responsabilidade criminal e para verificação e qualificação da perigosidade são também
impróprios; e os sistemas de execução são ou desumanos ou inúteis".
E, fiel ao espírito destas considerações, existe uma reafirmação legislativa sistemática destes
princípios: os Estatutos de 1926 e de 1929 dispunham, relativamente ao direito civil, nos artigos
4ºe 8º, respectivamente, que «Nas relações jurídicas entre indígenas os direitos de família,
sucessões e regime de propriedade são regulados segundo os usos e costumes privativos das
populações das regiões que êles habitam», e no § único: «Emquanto não forem reduzidos a
escrito os usos e costumes dos indígenas de cada região, serão êles estabelecidos, para cada caso
sujeito a julgamento, pelas declarações do chefe indígena da região e de dois indígenas dos mais
conceituados no seu meio, designados pelo presidente do tribunal».
Em relação ao direito criminal, estatuía-se nos artigos 11º e 13º, respectivamente, que as penas a
aplicar, enquanto não fossem publicados códigos especiais, seriam as do Código Penal Português
de 1886, tendo em atenção «o estado de civilização dos indígenas e os seus usos e costumes»
(estabelece-se, pela primeira vez, o princípio da individualização da pena quanto a réus indígenas
e a necessidade de contemporizar com os seus usos e costumes em matéria penal).
Acrescentando-se no § único «Emquanto não forem reduzidos a escrito os usos e costumes dos
indígenas de cada região, serão êles estabelecidos, para cada caso sujeito a julgamento, pelas
declarações de dois acessores». Nos artigos 10º (Estatuto de 1926) e 12º (Estatuto de 1929)
determinavam-se os objectivos da repressão criminal quanto aos indígenas («a) A reparação do
dano causado; e b) A intimidação, pela imposição de penas, graduadas conforme as culpas»)
impondo-se a repetidamente declarada desde o século XIX, e nunca executada, codificação dos
usos e costumes indígenas (artigos 21º e 24º).
De acordo com o Estatuto de 1954, em matéria de direito penal, e na falta de leis especiais,
seriam aplicáveis a leis penais comuns, apreciando o juiz as condutas dos réus tendo em conta as
circunstâncias da sua vida social. Previa-se a substituição das penas de prisão pelo trabalho
obrigatório. Em questões civis, era permitido aos indígenas optarem pela lei comum em
determinadas matérias. Nas relações civis e comerciais entre indígenas e não indígenas aplicava-
se a lei comum, salvo se existisse lei especialmente aplicável.
pública".
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Também a Lei nº 277 de 15 de Agosto de 1914 (Lei Orgânica de Administração Civil das
Províncias Ultramarinas), na base 18ª, 2º e 4º, o Decreto nº 7:008 de 9 de Outubro de 1920 (Bases
orgânicas da Administração das Colónias), base 97ª, 2ª e 4ª, e a Lei nº 2.066 de 27 de Junho de
1953 (Lei Orgânica do Ultramar Português), base LXIX, I e II, definiram os mesmos princípios.
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CONCLUSÃO
Na prática, no entanto, e este facto não constitui surpresa, a feitura e implementação das
codificações dos direitos indígenas traduziu um exercício desligado das declarações de princípio
dos agentes da colonização, pois os fins pretendidos pela política colonial baseavam-se mais em
objectivos pragmáticos e materiais do que nos princípios éticos afirmados nas sucessivas leis.
Exemplo disto mesmo é o conjunto de medidas de carácter político tomadas nos anos 40 e 50 e
que não alteraram os princípios, os fundamentos e a linha orientadora da política colonial e
indígena até então seguida, sendo o resultado não de uma reformulação de fundo da ideologia
oficial/colonial mas do apego português ao Império e da tentativa de manutenção dos domínios
coloniais. As reformulações então empreendidas, efectivamente, surgem não como fruto da
evolução do pensamento colonial português mas sim como forma de fazer face à crescente
ofensiva anti-colonialista que se esboçava a nível internacional, não passando de mera retórica
nacionalista, de simples modificações terminológicas, tentando atenuar a carga negativa de
determinadas palavras. A título de exemplo, as colónias passaram, novamente, a ser designadas
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por «províncias ultramarinas», como o já tinham sido durante a época liberal, considerando-se e
sublinhando-se na Constituição Portuguesa que faziam «parte integrante do Estado Português».
Deste modo, nas colónias portuguesas como em quaisquer outras, o estabelecimento de regras
jurídicas foi um instrumento ao serviço da dominação colonial. A lei definiu os princípios
legitimando a exclusão social dos indígenas, atribuindo-lhe um regime jurídico especial.
Introduziu-se a distinção legal entre indígenas e não indígenas, cada um dos quais submetido a
autoridades diferentes e com limites e lógicas diferentes, sublinhando-se o conceito de hierarquia
entre as raças – a desigualdade e a inferioridade dos indígenas baseada na cultura, na raça e na
religião.
A doutrina oficial, segundo a qual as populações indígenas estavam submetidas a um regime
jurídico e político especial para protecção dos seus direitos, para a conservação do seu bem-estar
e para a sua evolução moral e material, formulava assim uma versão eticamente aceitável dos
objectivos pretendidos: o «desenvolvimento do território e da administração em geral» e o
«aperfeiçoamento e transformação de uma raça» (como foi expressamente afirmado no Estatuto
do Indigenato de 1926).
O Estado colonial era, assim, um instrumento de gestão de situações complexas, sobrepondo-se a
um tecido social descontínuo: por um lado, colonos e assimilados (a elite), cidadãos, aos quais se
aplicavam as leis metropolitanas, e, por outro, as populações indígenas sem direitos de cidadania,
organizadas em termos étnicos e aos quais se aplicavam as leis consuetudinárias. Os diferentes
Estatutos do Indigenato, baseados num critério racial e cultural, realçavam a subalternidade
política, económica, cultural e social dos indígenas. Para facilitar a acção administrativa e
judiciária portuguesas neste contexto de reconhecida complexidade, mandou-se proceder à
codificação dos usos e costumes das populações nativas. Na prática, as codificações dos direitos
indígenas seriam um instrumento de soberania traduzindo a aplicação do princípio do «direct rule
by indirect means», pois ao codificar os usos e costumes das populações indígenas a
Administração portuguesa controlava juridicamente as populações, excluindo das normas
costumeiras tudo o que fosse lesivo dos seus interesses e dispensando a sua observância sempre
que tal se afigurasse vantajoso.
Por outras palavras, a sistematização e as diversas tentativas de codificação dos usos e costumes
traduziam a vontade política de alterar os fundamentos das ordens jurídicas tradicionais, não no
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sentido da tão proclamada «assimilação» dos indígenas mas numa perspectiva de domínio
cultural, social, político, militar e económico. Essas tentativas de codificação, no entanto, e
segundo cremos, nunca foram bem sucedidas por diferentes motivos, entre os quais poderemos
apontar o desleixo, a incúria, a inércia, a desorganização administrativa e política, a falta de
quadros para cobrir eficazmente a grande extensão do território, imperfeições no conhecimento
das sociedades africanas, dos seus usos e costumes e instituições tradicionais e a ignorância das
línguas locais, e, por último, mas não menos importante que as razões apontadas, por falta de
empenhamento dos quadros administrativos coloniais no cumprimento das directivas do poder
metropolitano nesse sentido.
Por outro lado, o estabelecimento de uma administração da justiça dualista (uma rede de tribunais
nativos, presididos pelos administradores de circunscrição, coadjuvados pelos chefes tradicionais
conhecedores das tradições locais, que aplicavam as leis consuetudinárias e uma rede paralela e
mais abrangente de tribunais constituídos à semelhança dos tribunais das potência colonizadoras,
que aplicavam o direito dos colonizadores garantindo a protecção a todos os cidadãos – colonos e
«assimilados»), tendia a sublinhar e acentuar as diferenças sociais entre os diversos estratos da
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população do território, em contraste com a proclamada política assimilacionista.
Por último, mas não menos importante, o enquadramento legal das populações indígenas
conduziu a uma redefinição do papel das autoridades gentílicas e à sua integração na estrutura da
Administração colonial portuguesa. Efectivamente, o Estado instrumentalizou activamente as
estruturas políticas locais para prosseguir os seus objectivos políticos, económicos e sociais,
manipulando-as e enfraquecendo o seu poder. O chefe indígena, passou a ser um delegado do
Governo subordinado ao Administrador de circunscrição, recebendo e transmitindo ordens e
instruções da Administração colonial, e desempenhando o papel de intermediário e elo de ligação
entre as populações nativas e a Administração.
Por tudo isto, parece poder concluir-se que a regulação por escrito dos direitos indígenas
constituiu um factor que alterou profundamente os fundamentos das ordens jurídicas tradicionais
a diversos níveis (quer na forma, no conteúdo e no enquadramento normativo, quer quanto ao
aparato formal e processual, quer quanto à abrangência) e que tais alterações foram, no essencial,
premeditadas, destinando-se a optimizar a eficácia da esfera jurídica como elemento-chave do
processo de dominação colonial.
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Portaria nº 3:316, de 9 de Fevereiro de 1938, introduz alteração ao Diploma Legislativo,
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Lourenço Marques, Moçambique.
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Lei nº 2.066, de 27 de Junho de 1953, promulga a Lei Orgânica do Ultramar Português.
Diário do Governo de 27 de Junho de 1953, nº 135. Lisboa, Portugal.
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