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Da anistia e de seu contrário*

Nicole Loraux

Na rubrica «Usos do esquecimento», eu gostaria de falar da anistia.

Mas já então terá sido dado o passo que, da memória expurgada, concluiu pelo
esquecimento. A tal ponto – anistia, amnésia – o encadeamento se impõe, sedutor como uma
etimologia, evidente como uma assonância e, pelo que parece, necessário (ou, ao menos, é o que se
acredita, quando, por princípio, se desconfia do esquecimento tanto quanto da anistia). É possível,
no entanto, que o esquecimento se apresente rápido demais, por demais freqüentemente quando,
por este nome, se pretende designar a sombra projetada pelo político sobre a memória. Na anistia,
permanente obliteração institucional destas franjas de história cívica que a polis teme seja
impotente para construir o passado, pode-se, de fato, enxergar algo como uma estratégia do
esquecimento? Neste caso, seria preciso que se pudesse esquecer por força de uma ordem. Mas, em
si, este simples enunciado faz bem pouco sentido.

* Artigo publicado no livro Usages de l’oubli (Colloque de Royaumont). Paris, Seuil, 1987.
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Há ainda outras aporias. Se o esquecimento não é ausência irremediável, mas, como na


hipótese freudiana, presença somente ausentada de si, superfície obscurecida abrigando aquilo que
não teria sido senão recalcado, paradoxal seria, certamente, a visada da anistia. Aliás, tomando as
frases em seu sentido literal, o que pretende, então, a anistia, em sua vontade proclamada? Um
apagamento sem retorno e sem traços? A marca grosseiramente cicatrizada de uma amputação
deste fato eternamente memorável, desde que, com isto, o objeto esteja irremediavelmente perdido?
Ou a disposição de um tempo para o luto e para a (re)construção da história?

Seria necessário optar. Mas eu me abstenho, por hora, de fazê-lo, e proponho um desvio, de
maneira a ganhar um pouco de recuo. O que dizer sobre a anistia, tal como considerada nestes
tempos antigos em que o que hoje assim chamamos não tinha ainda nome (muito embora a palavra
amnestía estivesse disponível para este fim) mas tomava, de duas maneiras, a forma sintática de um
enunciado muito coercitivo? Melhor dizer que o desvio será grego, mais precisamente, ateniense, e
que o duplo enunciado associa uma prescrição (interdição da lembrança dos infortúnios) à
prestação de um juramento (não me relembrarei dos infortúnios).

Interdição da lembrança, eu não me relembrarei. Por duas vezes, é de memória que se trata,
em Atenas. Uma memória recusada, mas uma memória. Perderemos de vista o esquecimento? Por
um momento, e nisto consiste o desvio. Tempo necessário para ganhar alguma distância em relação
ao que entendemos por esta palavra, para melhor construir a noção grega: mais ameaçadora, mais
arcaica e como que originária, na medida em que se esconde abrigando-se em seu contrário, ela só
aparecerá sob a forma de negação (mas de maneira bem diferente da memória em Atenas). O que
conduz a um lento deciframento de interditos que a referência à memória, em uma operação
tipicamente grega, dissimula.

Uma interdição, interdito. Em toda a evidência, entre estes dois registros, a dissonância é
essencial, e mais vale não reduzi-la.

Duas interdições de memória em Atenas

Duas interdições de (se) lembrar na Atenas do século V antes de nossa era. Uma, bem no
início do século; outra, bem no final.

Heródoto fez-se historiador da primeira. Descrevendo o levante da Iônia, e como os persas


esmagaram a revolta, tomando Mileto, que despovoaram e cujos santuários queimaram, Heródoto
atarda-se sobre a reação que tal acontecimento provocou em dois povos da família iônica. Privados,
no passado, de sua pátria, o que ocasionou por parte dos milésios – como se deve a parentes ou
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hóspedes – um grande luto, os habitantes de Sibaris não retribuíram o feito aos de Mileto. Em
revanche, os atenienses teriam manifestado uma aflição extremada, para não dizer excessiva. E
aconteceu, sobretudo, que

Havendo Frínico feito representar uma tragédia, A Tomada de Mileto, por ele composta, o
teatro (todo) derramou-se em lágrimas; quanto a ele, foi-lhe imposta uma multa de mil
dracmas, por (lhes) haver relembrado os infortúnios que lhes concerniam propriamente (hôs
namnésanta oikéia kaká) e ordenaram que ninguém, dali por diante (mêkéti medéna),
fizesse uso desta tragédia.

Sem dúvida, através deste mui oficial decreto da assembléia do povo, os atenienses
pretendiam somente proibir, no futuro, qualquer encenação da Tomada de Mileto, condenando
irreversivelmente ao esquecimento a tragédia de Frínico. Mas imputaremos, sem qualquer
hesitação, a esta decisão uma implicação completamente diferente, eminentemente paradigmática
quanto ao status ateniense da memória cívica, quanto à definição ateniense do trágico. Condenada a
uma pesada multa e à interdição de cena, por haver introduzido no teatro de Atenas uma ação
(drâma) que, para os atenienses, não é senão sofrimento (páthos1) e questão familiar – a família
iônica, esta família que é a pólis, em uma palavra, a identidade cívica, este eu coletivo que se define
pela esfera do próprio (oikeîon)2 – o primeiro dos grandes trágicos, relembrando a seus concidadãos
a memória de seus «próprios infortúnios», os desperta (pelo que me agrada considerar como a
primeira vez) para a consciência dos perigos da rememoração, quando o objeto é fonte de luto para
o eu cívico.

Uma longa história começa, a da prática ateniense da memória, e também a da tragédia,


que imaginaremos marcada para sempre por este decreto inicial. O povo ateniense fez saber que não
suportava que lhe fosse apresentado em cena o que o afeta dolorosamente; os trágicos escutarão a
lição e saberão evitar os argumentos muito atuais, a menos que o presente seja luto para os outros,
um luto incansavelmente convertido, como nos Persas, em hino à glória de Atenas3. Desta
inatualidade necessária talvez derive, para o gênero trágico, uma escolha tão importante quanto a

1 Eu retirei páthos, sofrer [forma cuja identidade o francês pâtir conserva, nota da tradutora] da forma
pathoûsi que, referindo-se aos Milesinos, abre o capítulo 21 do livro VI. Identificando-se aos Milesinos – o que
o emprego de oikéion traduz – os atenienses não viam senão páthos do eu naquilo que, no entanto, é uma ação
dramática.

2 Sobre o relato de Heródoto, ver as observações de S. Mazzarino (que traduz oikéia como «próprios» no Il
Pensiero Storico Classico, T.I, Bari, Laterza, 1983 (2ª ed.), p. 107-108. Sobre oikéios, ver «Oikéios polemos: la
guerra nella famiglia», Studi storici, n° 28, 1987, p. 5-35, assim como «La main d’Antigone», Métis, n°1, 1986,
pp. 165-196.
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da ficção4 – digamos, para abreviar, do mûthos. Mas é preciso observar ainda que, quando o mûthos
encontrará seu lugar em Atenas, a tragédia será tendencialmente dotada, como nos dramas
atenienses de Eurípides, de um fim «positivo»; de forma que as «verdadeiras» tragédias, onde o
drâma é, ao mesmo tempo, páthos, terão seu espaço fora da pólis, e que Isócrates se permitirá
formular, no século IV, a lei segundo a qual, em seu teatro, Atenas se oferece a encenação de crimes
originalmente associados às «outras poleis» (Panatenaico, 121-123)5.

Assim que, no começo do século V, Atenas iniciava-se numa prática muito vigiada da
memória cívica.

A segunda interdição, no extremo fim do século, visa a barrar qualquer rememoração dos
«infortúnios» que, desta vez, atingiram diretamente o eu da pólis, dilacerada do interior pela guerra
civil. Após a derrota militar de Atenas e a sangrenta oligarquia dos Trinta, é a interdição de
«lembrar dos infortúnios» que, em 403, sela a reconciliação democrática. Nós chamamos a isto
anistia – os modernos estudiosos da Grécia fazem, inclusive, deste episódio a anistia modelo,
paradigma de todas que a história ocidental conhecerá – e Plutarco já empregava o termo quando,
consciente da profunda afinidade dos dois gestos, associava o «decreto de anistia» (tò pséphisma tò
tês amnestías) à multa infligida à Frínico6.

403, antes de nossa era: os democratas, ontem perseguidos, entrando hoje como vencedores
em Atenas, proclamam a reconciliação geral, recorrendo a um decreto e a uma prestação de
juramento. O decreto proclama a interdição: mè mnesikakeîn, «é proibido lembrar os infortúnios»;
o juramento engaja todos os atenienses, democratas, oligarcas conseqüentes e pessoas «tranqüilas»

3 Ésquilo, Os Persas,, 284-285, 287, 824 (assim como Heródoto, V, 105). Tal como S. Mazzarino ( op. cit., p.
107-108), observaremos que o Darius dos Persas não relembra, evidentemente, a vitória que havia obtido em
Éfeso sobre atenienses e iônios.

4 Esta é a leitura de J.-P. Vernant, «Le sujet tragique: historicité et transhistoricité», in J.-P. Vernant e P.
Vidal-Naquet, Mythe et tragédie, t.II, Paris, La Découverte, 1986, pp. 86-87.

5 Tragédias atenienses: é, mesmo considerando a ambigüidade, o caso em Eurípides (Ion, Suplicantes,


Heráclidas), assim como nos Eumênides de Ésquilo. Que Atenas possa, entretanto, ser posta em questão por
aquilo que se passa entre «os outros», como me assinala Renate Schlesier, é inegável; mas ela o é
indiretamente, por exemplo, através da oposição Gregos/Bárbaros nas tragédias do ciclo troiano de Eurípides.

6 Preceitos políticos, 814 b-c. Note-se que este texto, consagrado ao fato de que é preciso relembrar o passado
para oferecê-lo à imaginação, só retém explicitamente como objeto de memória os atos que induzem ao
esquecimento.
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que permaneceram na cidade durante a ditadura, mas os engaja um por um: ou mnesikakéso, «eu
não relembrarei os infortúnios».

Lembrar os infortúnios – o que quer dizer este sintagma que o verbo composto
mnesikakeîn exprime formularmente em Atenas, como em outras poleis? Uma vez admitido que,
sob a denominação de kaká, os infortúnios, os gregos designam aquilo que chamamos, mais
correntemente, sob o modo do eufemismo, os «acontecimentos» – a desordem na pólis – é à mnesi,
forma desenvolvida do radical grego da memória, que convém prestar atenção. A julgar pelos
empregos de mnesikakeîn, tratar-se-ia menos de recolocar em memória, como Frínico provocando
uma anamnese (anmnésanta) nos atenienses, do que de relembrar contra. A anamnese agindo
(sobre) os cidadãos de Atenas, o verbo carregava um duplo objeto no acusativo – o conteúdo da
lembrança, o sujeito chamado à memória; em revanche, regendo muitas vezes um dativo de
hostilidade, mnesikakeîn implica brandir a memória ofensivamente, que se vá contra ou que se
puna a outrem – em resumo, que com ela se tire vingança. Assim, do início ao fim do século, a
lembrança dos infortúnios, de neutra que era (supõe-se) antes de Frínico, tornou-se ato de vindita.
Mnesikakeîn: diz-se, em Platão, do partido vencedor no combate, que exerce represálias sob a forma
de banimentos e de enforcamentos7, mas, mais especificamente, a propósito da Atenas de após 403
designa, em Aristóteles tanto quanto nos discursos judiciários, o ato – considerado, ao mesmo
tempo, explicável e ilegítimo, e cuja responsabilidade é regularmente imputada aos democratas – de
intentar um processo por fatos da guerra civil8.

Mè mnesikakeîn: maneira de proclamar que, para atos de sedição, há prescrição. Com o


objetivo de restituir uma continuidade que nada deveria ameaçar, como se nada houvesse
acontecido. Continuidade da pólis, simbolizada pelo aeí (sempre, quer dizer, a cada vez) da rotação
dos cargos, para além da oposição da democracia e da oligarquia: símbolo desta continuidade é, por
exemplo, o magistrado Rinão, que assumiu na oligarquia e que, sem qualquer dificuldade, prestou
contas diante da assembléia democrática (Aristóteles, Constituição de Atenas, 38, 4) – e sabe-se que
a cláusula que fazia dos Trinta uma exceção na anistia desaparecia por si só para os que, entre eles,
se consideravam suficientemente irreprováveis para se exporem ao exame do povo. Mas, também,
ao mesmo tempo e sem temer a contradição, continuidade da democracia do século V com a que é

7 Carta VII, 336 e-337a; adoto a tradução de Luc Brisson (Platão, Lettres. Paris, Garnier-Flammarion, 1987),
que presta contas da construção da frase agrupando kratésantes mákhais.

8 Ver, por exemplo, Aristóteles, Constituição de Atenas, 40, 2; Isócrates, Contra Calímaco,23 (e 2, onde
dikázesthai parà toùs hórkous é o equivalente estrito de mnesikakeîn), Lísias, Contra Nicômaco, 9 e Andócido,
Mistérios, 104. Ilegitimidade: a ação de inadmissibilidade evocada no Contra Calímaco, 2, tenta prevenir a
existência de tais processos e, como me assinala Yan Thomas, tal como a atual questão prejudicial, ela amarra
todo o sistema ateniense contra a memória.
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posterior à reconciliação, continuidade seguramente mais difícil de se conceber, a menos que se


trate a ferida aberta da ditadura como um parênteses; bastaria, então, expurgar este parênteses
oligárquico, senão da «tirania» (cuidadosamente mantida, ao contrário, à título de anomalia,
cômodo bode expiatório oferecido a todas as indignações retóricas) ao menos da guerra civil em sua
realidade. Que a operação tenha sido benéfica, esta é uma outra questão: a julgar por tudo que opõe
a democracia «restaurada», mas edulcorada, de após 403 àquela de antes de 405, poderíamos
facilmente apostar que nenhuma operação de memória conseguiu fechar a ferida, tão profundo era
o corte introduzido na pólis por este conflito.

Ora, é exatamente conflito (divisão) que convém, a cada evocação do passado, expurgar da
história de Atenas, «deixando de lado os acontecimentos anteriores» (Andócido, Mistérios, 81).
Subtrai-se, portanto, ou ainda, mais sutilmente, apaga-se, e é deste mesmo ato de apagar, a cada vez
repetido, que se extrai o benefício do esquecimento9.

Uma precisão se impõe: ao falar de apagar, não pretendo recorrer a uma metáfora gasta,
cara a nosso idioma contemporâneo, mas falar grego, no caso, ateniense. Pois, na temática grega da
escritura como instrumento privilegiado da política, o ato de apagar (exaleíphein) é, antes de mais
nada, um gesto a uma só vez institucional e bastante material. Nada de mais oficial do que apagar;
apaga-se um nome em uma lista (os Trinta, quanto a eles, não se privaram de fazê-lo), apaga-se um
decreto, uma lei tornada caduca (para interditar de memória os fatos da stásis, a democracia
restaurada precisou, mais de uma vez, servir-se desta prática): assim as supressões respondiam às
supressões. Mas, até aí, nada de muito material. Apagar, é destruir por sobrecarga: sobre uma
determinada tábua oficial branqueada pela cal, passa-se uma camada de cimento e, uma vez
recobertas as linhas condenadas ao desaparecimento, eis que emerge um espaço pronto para um
novo texto; da mesma forma, sobre determinada pedra inscrita, introduz-se uma correção com a
ajuda da tinta e do pincel, dissimulando a letra antiga debaixo da nova. Apagar? Nada mais banal, o
dia-a-dia da vida política. O que não quer dizer que, aqui e ali, exaleíphein não se faça metafórico.
Então se esboça a imagem de uma escritura totalmente interior, traçada na memória ou no espírito,
e assim suscetível, como qualquer inscrição, de ser apagada, quer este ato seja benéfico, quando o
pensamento, em seu progresso, se desfaz de opiniões erradas (Platão, Teeteto, 187b), quer seja
nefasto, quando se trata de fazer a economia de um luto todo-poderoso (Eurípides, Hécuba, 590).
Ora, é característica da reconciliação de 403 que a memória política se expressa através de um
registro que toca, ao mesmo tempo, ao simbólico e ao material – não somente um, não somente o
outro, os dois simultaneamente. Pois, o apagamento realiza-se, então, sobre dois planos: a

9 Alguns oradores democratas se referem, efetivamente, ao esquecimento, mas no sentido de uma falta: ver
Lísias, Contra Erastótenes, 85 («eles vos acreditam bem esquecidos»); ver, também, Contra uma proposição
tendendo a destruir o governo tradicional, 2.
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supressão de certos decretos tem, realmente, lugar (Andócido, Mistérios, 76); mas, quando
Aristóteles afirma que os atenienses agiram bem em «apagar as queixas (tàs aitías, as causas de
processo) do período anterior» (Constituição de Atenas, 40, 3), este apagamento, inteiramente
preventivo, não tem outro fim senão a interdição de mnesikakeîn, outro objetivo além de evitar os
processos a vir, outra eficácia senão a de um ato de palavra como o juramento. Donde se conclui
que, entre interdição de memória e apagamento, os atenienses estabeleciam uma estreita relação de
equivalência10.

Avancemos: se houve, em revanche, democratas que, por sua vez, desejaram apagar –
simbólica e, talvez, institucionalmente – os acordos entre cidadãos dos dois lados, isto é algo que
poucas fontes testemunham, pois raros foram, sem dúvida, os democratas que ousaram se exprimir
desta forma11. Mas houve, seguramente, os que desejassem «relembrar os infortúnios» ou, mais
exatamente – sobre este ponto Aristóteles é formal – houve, ao menos, um, entre aqueles que
«voltaram para casa», que começou a mnesikakeîn; então, o moderado Arquino, que também
voltara com o dêmos a Atenas, aureolado deste prestígio, o arrastou diante do Conselho e o fez
condenar à morte sem julgamento. Quer o episódio deste democrata desconhecido, condenado ao
anonimato por haver manifestado um gosto intempestivo pela memória, seja histórico, quer sirva de
aítion para a lei deste mesmo Arquino, regulamentando as modalidades de acusação após 403 12, a
lição é clara: o homem político moderado estabeleceu um exemplo (parádeigma) e, quando o
culpado de memória foi posto à morte, «ninguém mais se relembrou dos infortúnios» (Constituição
de Atenas, 40, 2). Como memória, uma vítima expiatória; em seguida, uma multa bastará para
dissuadir.

Se foi preciso, no mínimo, uma execução, é porque, ordenando todo o processo, o móvel
político era importantíssimo: tratava-se de restabelecer a troca – os atenienses diziam «a
reconciliação» (diallagé) ou «a concórdia» (homónoia) – entre cidadãos que, alguns meses antes, se
haviam enfrentado, exército contra exército. Com este fim, era preciso, para desculpar os que não
haviam vencido, isolar os culpados: os Trinta, é claro, que, de fato, já ocupavam esta posição,
designados numericamente como o são freqüentemente os colégios de magistrados na Grécia 13, e
portanto mais fáceis de se contar e, ainda por cima, manifestadamente culpados do conflito. Uma
cláusula do acordo – adicionada, como se viu, de uma restrição nada negligenciável – abria, apenas

10 Quanto à associação entre os dois gestos, ver Andócido, Mistérios, 79.

11 Somente Isócrates, Contra Calímaco, 26: «Vós vos irritais contra aqueles que dizem que é preciso apagar
(exaleíphein) os acordos.»

12 Ver Isócrates, Contra Calímaco, 2-3. Aítion: o infeliz democrata foi, sem dúvida, o primeiro (érxato) a
mnesikakeîn, mais do que ele «começou a» (Mathieu, Collection des Universités de France).
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contra eles, uma exceção ao interdito de mnesikakeîn. A responsabilidade pelo sangue derramado
assim fixada, restariam todos os outros atenienses, votados a se reconciliarem. O que permitiria não
pensar sequer na noção de executante (“branqueados” NdT são os delatores à serviço dos tiranos,
desde que não tivessem matado com suas próprias mãos, e tudo se passa como se ninguém o
houvesse feito) e restringir-se à noção confortadora de cidadãos «tranqüilos». E, nos processos, eis
de fato que enxames de kósmioi, partidários da ordem que nada têm a se reprovar, protestam sua
inocência… Ao fim do processo, estará reconstituía a pólis una e indivisível dos elogios oficiais de
Atenas.

Eu falei de móvel político. Se eu fosse aristotélica, teria dito que o móvel era a política, ela
própria. Seja, portanto, Aristóteles, a propósito de Arquino: «Ele age como bom político»
(politeúsasthai kalôs); e, a propósito dos democratas atenienses: «Parece de fato que eles usaram
seus infortúnios passados da mais bela e mais política maneira» (kállista kaì politikótata). Isócrates
já fornecia a moral da operação: «Já que nós nos oferecemos mutuamente cauções […], nós nos
governamos de maneira tão bela e tão coletiva (hoúto kalôs kaì koinôs politeuómetha) que é como
se nenhum mal nos tivesse acontecido14.» Tudo está dito: a política é fazer como se nada fosse.
Como se nada se houvesse produzido. Nem conflito, nem assassinato, nem ressentimento (ou
rancor).

Política, portanto, como o que começa quando cessa a vingança. Assim, na linha de
Isócrates e de Aristóteles, Plutarco louvará Possêidon, antes pretendente ao título de senhor de
Atenas, mas vencido pela deusa Atenas, por haver-se comportado sem ressentimento (aménitos),
quer dizer, de forma «mais política» (politikóteros) que Trasíbulo, chefe dos democratas
regressados à pólis, a quem sua vitória permitia uma fácil generosidade. O mesmo Plutarco
acrescentará que os atenienses reconheceram duplamente este ato de clemência divina: suprimindo
do calendário o dia de aniversário do conflito, de funesta memória para o deus, e erguendo no
Erecteion um altar a Léthè, Esquecimento15. Uma operação negativa – a supressão – e a instalação
do esquecimento na Acrópole (aquilo mesmo que os atenienses correntemente chamavam «a

13 E alguns outros corpos oligárquicos: ver Aristóteles, Constituição de Atenas, 39, 6, e Andócido, Mistérios,
90. Sobre o uso que cidadãos acusados de ações antidemocráticas fazem disto, ver Lísias, XXV, 5, 16, 18.

NNdT No original, blanchis: que, em francês, guarda a dupla referência à inocentação e ao processo de
branqueamento.

14 Aristóteles, Constituição de Atenas, 40, 2 e 3 (onde se notará que os atenienses «usam» seus infortúnios
exatamente como, em Heródoto, eles proibiam qualquer um de «usar» a tragédia de Frônico); Isócrates,
Contra Calímaco, 46.

15 Plutarco, Conversas de mesa, 9, 6 (in Moralia,,, 741 b); Do amor fraternal, 18 (Moralia, 489 b-c).
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Pólis»), no mais profundo do templo de Atenas Políade: apagamento do conflito, promoção de léthe
como fundamento da vida na pólis. E Plutarco fornece, ainda, como definição do político
(politikón), o fato de que ele retira – e esta é, talvez, a supressão essencial – do ódio seu caráter
eterno (tò aídion)16.

Questões atenienses, de fato, tudo isto. Mas como mantê-las sempre à distância? Eu venho
resistindo ao demônio da analogia que, mais de uma vez, me soprava, não sem razão, um certo
paralelo com a França liberada e os debates que, de 1945 a 1953, se desenrolaram, quanto à
legitimidade da depuração, uma certa comparação com os recalques e esquecimentos de que, em se
tratando da França de Vichy, nós gostaríamos de estar certos de que foram realmente deixados para
trás17. Mas não resisto em citar, à guisa de contraponto quase contemporâneo, uma conversa de 24
de julho de 1902, anotada por Jules Isaac:

Péguy me disse que a tolerância conduz ao aviltamento, que é preciso odiar. Eu lhe perguntei:
«Mas, o que é o ódio? – A não-anistia.18»

Em 1900, o caso Dreyfus conhecera uma primeira reviravolta com o voto da anistia, mas,
em sua cólera19, Péguy era daqueles que não queriam considerar como encerrado um incidente que
não havia ocorrido. Acrescente-se que, em 1902, Péguy, decididamente pouco «político», no sentido
grego (no sentido durável?) do termo, rompia com Jaurès…

Eu fecho o parênteses, mas coloco a questão que sempre, como a mais proibida das
tentações, se reabre: e se a palavra «política» tivesse mais de uma acepção? Ou, mais precisamente,
recorrendo à distinção entre a política e o político: o que aconteceria com o político grego que não se
construísse sobre o esquecimento? Este político, que levaria em conta a inevitabilidade do conflito,
que admitiria que a pólis é, por definição, condenada a se dividir em dois, e não entre «tiranos», de
um lado, e atenienses, de outro, este político, a uma só vez conflituoso e comum 20 teria ele outra
existência, além daquela de uma construção imaginária? Ora, acontece que, ainda que esta
construção seja perfeitamente grega, a comunidade conflituosa assim erguida parece não tê-lo sido

16 Plutarco, Sólon, 21, 2.

17 Ver H. Rousso, «Vichy, le grand fossé», Vingtième Siècle, n° 5, 1985, pp. 55-79, assim como Le Syndrome
de Vichy, 1944-198…, Paris, Seuil, 1987.

18 J. Isaac, Expériences de ma vie, t.I, Péguy, Paris, 1963, p. 282. Sobre a «contemporaneidade» do caso
Dreyfus, ver M. Winock, «Os casos Dreyfus», Vingtième Siècle, n° 5, 1985, pp. 19-37.

19 Ver J.-M. Rey, Colère de Péguy, Paris, Hachette, col. «Textes du XXe. Siècle», 1987.

20 Ver «Le lien de la division», Le Cahier du Collège international de philosophie, n° 4, 1987, p. 102-124.
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senão como ficção de uma origem já superada – no início, o conflito; então, veio a pólis… E, sem
fim, a anistia reinstauraria a pólis contra os infortúnios recentes, diz-se. Ou antes: contra o mûthos
da origem.

Decididamente, não conseguiremos escapar. Mais vale retomar as coisas sob a perspectiva
do esquecimento e daquilo que, na Grécia, o torna uma questão crucial.

Esquecer o não-esquecimento

Introduzamos a estratégia ateniense de memória por alguns de seus homólogos, mais


generalizadamente gregos. E, então, tratar-se-á, abertamente, de esquecimento.

Tudo começa com o epílogo da Odisséia. Ao anúncio da morte dos pretendentes, grande emoção em
Ítaca. Todos reúnem-se na agorá, o coração pesado. Eupeitos, pai deste Antínoos que foi o primeiro
alvo de Ulisses, fala: álaston pénthos, o luto inesquecível (o luto que não quer esquecer) o domina,
ele clama à vingança contra os assassinos. Um sábio discurso de um sábio lhe responde, defendendo
os direitos do presente. Ainda que a maioria, surda aos argumentos de Eupeitos, o Persuasivo, se
coloque deste (bom) lado, o resto do povo corre às armas. Diante da urgência, concertação de Zeus e
Atenas: que o povo de Ítaca troque juramentos, e os deuses instituirão o esquecimento (éklesin
théomen: XXIV, 485) do assassinato. Retornará a paz. Por hora, é o combate que se trava: Eupeitos
cai, e outros ainda em sua tropa. Então Atenas segura o braço de Ulisses («Põe um termo ao conflito
da guerra muito igual», diz a seu protegido). Trocam-se juramentos solenes. Fim da Odisséia.

Em eco, o voto de Alceu, poeta engajado, o primeiro a pronunciar em seus versos a palavra
stásis:
Possamos nos esquecer esta cólera (ek dè khólo tôde lathoímetha).
Nós nos libertaremos da ruptura que devora os corações
E do combate intestino que um dos Olímpios
Desencadeou (Fr. 70, ed. Campbell)

Ekléthomai em Alceu, éklesis na Odisséia: tudo começa por apelos ao esquecimento.


Esquecer não somente os erros dos outros, mas sua própria cólera, para que se refaça o laço da vida
na pólis. Donde a questão: entre o voto arcaico do esquecimento e a interdição ateniense da
memória, seria necessário supor que se intercala algo como uma história? O que se teria passado, do
esquecimento reivindicado à prescrição de não se relembrar? Já que, de novo, portanto, é preciso
tentar construir história, eu proponho, entre o esquecimento da cólera e a lembrança dos
infortúnios, interpor a noção poética de «esquecimento dos males».
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Da anistia e de seu contrário Nicole Loraux

Positivo21, quando derramado pelas Musas, filhas de Memória – elas próprias definidas,
entretanto, como Lesmosúne kakôn, Esquecimento dos Males (Hesíodo, Teogonia, 55) – seria este
esquecimento do presente doloroso que o canto do poeta propicia, ao celebrar a glória dos homens
do passado. Mas ainda caberia se assegurar que, mesmo imputado ao poder instantâneo do verbo
inspirado, o esquecimento de um luto muito recente (Teogonia, 98-103) esteja ao abrigo de
qualquer ambigüidade. Ao menos, sobre este esquecimento «benéfico», já pesava a dúvida em
Homero, quando, no canto IV da Odisséia, para arrancar Telêmaco e Menelau do álaston pénthos
de Ulisses, Helena recorre a uma droga e a um relato. Antídoto para o luto e para a cólera,
nepenthés, ákholon, kakôn, epílethon hapantôn, a droga derrama o esquecimento sobre todos os
males. E que males!

Uma dose na crateraNdT impedia, durante todo o dia, àquele que dela bebesse de derramar
uma só lágrima, ainda que houvesse perdido seu pai e sua mãe, ainda que tivesse visto, com
seus próprios olhos, tombar diante de si um irmão, um filho amado (IV, 222-226, trad. V.
Bérard)

Chorar pai e mãe é um dever que não conhece exceções, e a obrigação de vingança está
particularmente relacionada ao assassinato de um filho ou de um irmão 22. Imediata, tanto quanto
provisória em seus efeitos, a droga pode substituir o luto pelo «encanto» – ele próprio
eminentemente ambígüo – «do relato»23 e pelas alegrias do festim, mas ela não deixa de, por um
tempo, afastar da sociedade aquele que a ingere. Esta é a conseqüência do esquecimento dos males,
este phármakon, antídoto da dor, mas veneno para a existência humana, na medida em que esta se
faz eminentemente contratual.

Entre a proibição política, durável, de dar prosseguimento a uma vingança que prejudique a
comunidade e o charme que dissipa, repentina mas provisoriamente, o luto, a distância é patente.
Jurando não lembrar dos infortúnios de outrora, o cidadão de Atenas afirma renunciar ao exercício

21 M. Detienne, Les Maîtres de vérité dans la Grèce archaïque, Paris, Maspero, 1967, p. 69-70.

NNdT Cratera, do grego kráter, designa um vaso de dupla alça onde se misturavam o vinho e a água.

22 Ver, sobretudo, Ilíada, IX, 632-633 (criticando Aquiles fechado em sua recusa, Ajax afirma que se deve
aceitar uma compensação mesmo do assassino de um irmão ou de um filho, maneira de sugerir que o desejo de
vingança nunca é tão forte quanto neste caso), assim como Odisséia, XXIV, 433-435 (palavras de Eupeitos).

23 É o título do estudo de R. Dupont-Roc e A. Le Boulluec, «Le charme du récit ( Odyssée, IV, 218-289)», in
Écriture et Théorie poétiques. Lectures d’Homère, Eschyle, Platon, Aristote, Paris, Presses de l’ENS, 1976; ver
também A. Bergren, «Helen’s Good Drug», in S. Kresic (ed), Contemporary Literary Hermeneutics and
Interpretation of Classical Texts, University of Ottawa Press, 1981, p. 200-214.
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Da anistia e de seu contrário Nicole Loraux

de qualquer vindita e, colocando-se sob a dupla autoridade da pólis que decreta e dos deuses que
sancionam, ele também enuncia o domínio que, como sujeito, ele exercerá sobre si próprio;
inversamente, o doce esquecimento vem de fora e, seja ele dom das Musas ou do poeta, efeito da
droga de Helena ou do vinho (diversas vezes) ou do seio materno, este refúgio (no canto XXII da
Ilíada), repetidamente apresentado como o esquecimento daquilo que não se esquece, não requer
nenhuma adesão, nenhum consentimento, daquele que o recebe, de que o submetimento
instantâneo a este “parênteses” oferecido à dor priva, talvez, de tudo que fazia sua identidade.

Pois, aquilo que, não atribuindo ao esquecimento todo seu poder, vimos traduzindo no
passivo como «inesquecível» é também – eis minha hipótese – o que deveria ser chamado
inesquecidiço24: aquele, justamente, que, na tradição poética grega, não se esquece e habita o
enlutado até o ponto de, por sua boca, dizer eu. É isto que se trata de anular, recorrendo à droga de
«esquecimento dos males»; isto, talvez, que os Atenienses preferem conjurar de seu próprio nome
por um decreto e um juramento. Apesar do evidente paralelismo das fórmulas, nenhuma
transposição termo a termo poderia, portanto, fazer da proibição política da memória um avatar
direto de léthe kakôn. E ainda seria necessário desconstruir este sintagma para identificar o
inesquecível, debaixo de um nome tão genérico como «males» (de infortúnios NdT : kaká). Portanto, a
injunção de mè mnesikakeîn não é tanto uma referência a léthe kakôn, em sua inquietante
suavidade; mas, antes, uma forma de, evitando qualquer referência explícita ao esquecimento,
anular este oxymoron jamais formulado que se esconde por detrás de «esquecimento dos males»: o
esquecimento do não-esquecimento.

Mapeemos o que não (se) esquece. Já nomeei o luto, e a cólera, que a droga de Helena
dissolve e que os sediciosos de Alceu desejam poder esquecer; muito mais tarde, em uma pequena
cidade da Arcádia, a cólera virá substituir os infortúnios que não devem ser lembrados durante uma
reconciliação (e mnesikholân substitui mnesikakeîn)25. Mas, na Atenas reconciliada de fins do
século V, não é outro o raciocínio: pois, perseverar na cólera seria eternizar como o mais precioso
dos bens o passado do conflito que não quer passar (o infortúnio); inversamente, quem quiser

24 Para forjar o neologismo («inoublieux»), eu me valho da existência do adjetivo «oublieux» («esquecidiço»).


O «inesquecidiço» tem muito a ver com a «coisa intratável» de que fala J.-F. Lyotard («À l’insu», Le Genre
Humain, n° 18, «Politiques de l’oubli», a ser publicado em 1988). Sobre álastos / alástor e a indecisão entre
«inesquecível» e «inesquecidiço», ver, recentemente, L. Slatkin, «The Wrath of Thetis», Transactions of the
American Philological Association, n°116, 1986, p. 19 n.

NNdT No original francês, maux (males) e malheurs (infortúnios) evidenciam o parentesco etimológico
intraduzível (NdT).

25 Inscrição d’Alipheira (IIIe siècle av. J.-C.): T. Riele, Mnemosyne, n° 21, 1968, p. 343.
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Da anistia e de seu contrário Nicole Loraux

atacar um dos Trinta deve poder impunemente aconselhar aos juízes atenienses manifestar contra
os tiranos «a mesma cólera dos tempos de exílio» (Lísias, Contra Eratóstenes, 96).

Luto e cólera: recordaremos, talvez, a «extrema aflição» dos Atenienses, quando da tomada
de Mileto. Ora, acontece que o verbo huperákhthomai (onde, sem dúvida, no extremo, Heródoto
deixava entender o excessivo) é um quase-hapax, já que à ocorrência herodotiana pode-se somente
aditar um único emprego, em Eletra, de Sófocles: à Eletra, abatida pelo pensamento de um Orestes
esquecidiço, o corifeu aconselha a abandonar «uma cólera por demais dolorosa» (huperalgê
khólon), de forma a não conceder àquele que ela odeia «nem demasiada aflição, nem completo
esquecimento» (méth’… huperákhtheo mét’epiláthou). De um lado, o esquecimento; de outro, uma
memória em sangue vivo, que não possui outro nome, senão o de excesso de dor. Desta memória
que apenas metaforicamente é um aguilhão26, desta dor-cólera que, na Ilíada, caracteriza Aquiles
(khólon thumalgéa: IX, 260; 565), Eletra é, de fato, em Sófocles, a perfeita encarnação, e quando ela
afirma ou láthei m’orgá (Eletra, 222), ela não diz apenas «minha cólera não me escapa», ou «não
me esqueço de minha cólera», mas também «minha cólera não me esquece». Como se somente a
cólera fornecesse ao eu a coragem de entregar-se inteiramente à cólera, porque a cólera é, para o
sujeito, presença ininterrompida de si a si mesmo.

Cabe aos cidadãos-espectadores reunidos no teatro adivinhar o que, nesta cólera que não se
esquece, é perigo absoluto para a pólis, posto que o pior adversário da política: luto, a cólera faz
«crescer» os males que ela cultiva assiduamente (Eletra, 259-260), ela é um laço que se estreita
sobre si mesmo até o ponto de resitir a qualquer desligamento 27. Temível cólera… E não sem
motivos: é, no caso, à mais antiga tradição poética que a tragédia toma de empréstimo a noção e,
muito particularmente, à epopéia, que, desde a primeira palavra da Ilíada, concede a este afeto
extremamente ativo o nome de mênis. Cólera de Aquiles e, em seguida, cólera das mães enlutadas,
de Deméter a Clitemnestra. Não fosse por Aquiles, cuja mênis figura em todas as memórias gregas,
eu diria facilmente que nos encontramos aí face a uma figura feminina da memória 28, que as
cidades-Estado se esforçam por rechaçar para a esfera do anti-(ou do ante-) político. E, de fato, a

26 Ver Sófocles, Édipo-Rei, 1317-1318: «Como penetrou em mim, ao mesmo tempo, a laceração destes
aguilhões e a memória dos males (mnéme kakôn)».

27 Eletra, 140-142, 230, 1246-1248; áluton na Ilíada: os entraves (XIII, 37) e o laço da guerra (XIII, 360).
Relembre-se que, na língua cívica, o nome mais usual da reconciliação – inclusive em 403 – é a diálusis, o
desligamento (ver Aristóteles, Constituição de Atenas, 39, 1, assim como 38, 4 e 40, 1), como se a guerra civil
fosse o mais forte dos laços.

28 Tratando-se, todavia, de Aquiles, Laura Slaktin, em obra ainda inédita The Wrath of Thetis (Ph.D.,
Harvard) sugere que a mênis do herói seria uma releitura, por deslocamento, da «cólera» de sua mãe Thétis.
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Da anistia e de seu contrário Nicole Loraux

cólera em luto, cujo princípio é a eterna repetição, exprime-se perfeitamente por um aeí29, e o
fascínio deste incansável «sempre» ameaça erguê-lo, como um poderoso rival, contra o aeí político
que funda a memória das instituições30.

Duas palavras, ainda, sobre esta mênis, originariamente percebida como perigosa, a tal
ponto que o próprio nome não pode ser pronunciado por aquele que a acolhe, a tal ponto que o
enunciado hipogramático da Ilíada – Eu renuncio a minha mênis – jamais é formulado31. Mênis:
aquilo que dura, que se mantém e que, no entanto, é como que necessariamente votado a ser o
objeto de uma renúncia. Mênis: um nome para esconder a memória cujo nome aí se dissimula 32.
Uma outra memória, bem mais temível do que mnéme. Uma memória que, inteira, se reduz ao não-
esquecimento. Ora, como se pode adivinhar, no não-esquecimento a negação deve ser considerada
em sua performatividade: o «inesquecidiço» se instaura por si próprio. E, assim como era preciso
esquecer a força desta recusa dissimulada atrás dos «males», um enunciado recorrente diz a
renúncia da memória-cólera: é preciso recusar – supondo-se que seja possível – a recusa fechada
sobre si mesmo.

O que nos leva de volta a álaston pénthos, este luto que não quer se fazer33.

Álastos, portanto: feito, como alétheia, de uma negação do radical do esquecimento. E, no


entanto, uma maneira completamente diferente de não entrar no esquecimento. Que, na linguagem
e no pensamento gregos, alétheia tenha se imposto como nome «positivo» da verdade, ao mesmo

29 Nas categorias de J.-F. Lyotard, ele está ligado à «repetição idêntica», regime de frase cuja marca recai
sobre o locutor e não, como na frase «judia», sobre o destinatário (Le Différend, Paris, Minuit, 1983, p. 157).

30 Aeí de Eletra: dezenove ocorrências em Eletra de Sófocles (note-se que este aeí desaparece sem retorno
assim que Orestes passa ao ato). Aeí e memória institucional: ver [Lísias], Contra Andócido, 25, onde é a
entidade-Atenas (Athenai e não a coletividade dos atenienses (Athenaîoi) que é o sujeito todo-memória
(aeímnestoi). Quanto ao caráter ante-político de mênis, pode-se talvez colocá-lo em dúvida ao constatar, como
L. Gernet (Recherches sur le développement de la pensée juridique et morale en Grèce, Paris, E. Leroux, 1917,
p. 148), que, em Heródoto, o verbo menío designa (sempre?) um sentimento coletivo.

31 Refiro-me aqui à notável análise de C. Watkins, «À propos de mênis», Bulletin de la société linguistique, n°
72, 1977, p. 187-209.

32 A etimologia popular aproxima a palavra de méno, por que se trata de uma cólera durável (Chantraine,
Dictionnaire étymologique de la langue grecque); apesar de Chantraine, eu creio ser reveladora a etimologia
que faz de mênis a deformação de um mnanis original (Watkins, op.cit., p. 205-206).

33 Ver as observações de P. Pucci, Odysseus Polutropos. Intertextual Readings in the Odyssey and the Iliad,
Ithaca e Londres, Cornell University Press, 1987, p. 199.
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Da anistia e de seu contrário Nicole Loraux

tempo em que a prosa esquecia álastos, não será surpresa. Deve-se, sem dúvida, ao mesmo processo
eufemisante o fato de que o verbo alasteîn, equivalente do arcadiano erinúein, «estar em furor»
(onde se reconhece facilmente a Erínia vingadora), foi, na prosa clássica, substituído pelo menos
inquietante mnesikakeîn, o «contrário da anistia»34.

Luto, cólera. Os filólogos se interrogam: luto ou cólera? Mas, em alasteîn, esta escolha se
mostra, mais de uma vez, indecidível. O que não significa que o verbo fruncione, sem referência à
sua etimologia, como um derivativo de pénthos, ao qual tão freqüentemente aláston é associado35,
ou de khólos, mas que luto e cólera se comunicam naturalmente entre si, pelo fato de participarem,
um e outro, do não-esquecimento. Alast, portanto: matriz de sentido para exprimir o páthos (ou, na
versão de Frínico, o drâma) de uma perda irreparável, desaparecimento (álaston pénthos de
Penélope, ao pensamento de Ulisses, de Tros chorando seu filho Ganimedes no Hino heróico a
Afrodite) ou morte (álaston pénthos de Eupeitos)36. E este páthos é lacinante: álaston odúromai,
«eu gemo sem me esquecer», diz Euméia a Ulisses (Odisséia, XIV, 174). Ou antes: (jamais) esqueço
de gemer, eu não posso evitar de gemer. Donde se entende que, como mênis, álaston exprime, por si
só, a duração intemporal, imobilizada em um querer negativo, eterniza no presente o passado.

Insônia de Menelas, sangue do parricídio e do incesto que, em Édipo, não esquece


(Odisséia, IV, 108; Sófocles, Édipo em Colona, 1672), há ódio em álaston, presença sem trégüa que,
no sentido forte do termo, ocupa o sujeito e não o deixa mais. Um exemplo, ainda: antes do
derradeiro duelo com Aquiles, Heitor vem suplicar a seu adversário que troque com ele a promessa
recíproca de não mutilar o cadáver do inimigo morto. Recusa de Aquiles: «Não me venha, álaste,
falar em acordos» (Ilíada, XXII, 261). E acrescenta que, entre eles, não há mais possibilidade de
pacto leal do que entre o lobo e o cordeiro, antes de concluir: «Tu vais pagar de um só golpe todos os
sofrimentos que senti por aqueles dentre os meus que tua lança furiosa assassinou.» Álaste:
maldito, traduz-se. E de fato: Aquiles sabe que, para ele, Heitor é inesquecível, tal uma obsessão,
exatamente como Patrocles. Inesquecível, por ter matado aquele que Aquiles não quer nem pode
esquecer.

34 Citação de L. Gernet (op.cit., p. 324-325); Gernet glosa alasteîn como «ser irritado por um sofrimento que
não se esquece».

35 Como escreve, sob o modo do «como se…», G.Nagy em comparative Studies in Greek and Indic Meter,
Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1974, p. 258.

36 A mênis de Aquiles contra Agamemnon deriva, decerto, da perda de sua tíme, e não daquela de um ser
querido; mas, além de ele se conduzir como se houvesse perdido mais do que um filho ou um irmão, o que
ainda remeteria a uma compensação (Ilíada, IX, 632 e seg.), mas excede amplamente qualquer tíme, ele não
tardará – exatamente por causa desta mênis – a reconhecer o álaston pénthos de haver perdido seu duplo.
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Da anistia e de seu contrário Nicole Loraux

E eis o assassino lado a lado com sua vítima no não-esquecimento. O que me leva a evocar
ainda um derivado do radical alast-: alástor, nome do criminoso que, diz Plutarco, «realizou atos
inesquecíveis (álesta), que serão recordados por longo tempo» (Questions grecques, 25, in Moralia,
297 a); mas, também: nome do gênio vingador do morto que persegue, incansavelmente, o
assassino.

O não-esquecimento é um fantasma. Alástor, ou ainda alitérios: o que, na etimologia


popular, «erra» (do verbo aláomai) ou, como em Plutarco, deve imperativamente ser evitado
(aleúasthai: Questions grecques, 25)

Teriam os gregos vivido, como pretende o título de um livro frequentemente citado, «sob o
domínio do passado»37? É, seguramente, o que indicaria a fascinação que, à cada menção do «luto
inesquecidiço», faz-se sentir. Mas é preciso percorrer a outra metade do caminho; porque, talvez,
eles o sabiam e disto desconfiavam, como de tantas fascinações, os Gregos jamais cessaram (e, isto,
desde a Ilíada e da cólera, no entanto tão soberbamente dramatizada! de Aquiles) de buscar
conjurar o não-esquecimento como a mais temível das forças da insônia 38. O ideal seria, como no
fim de Oréstia, neutralizar sem perder, inteiramente, domesticar, instalando na pólis, desarmado,
se não voltado contra si próprio: assim, por vontade de Atenas, as Erínias proclamam que elas
renegam qualquer furor e aceitam velar aos pés do Aerópago, enquanto dorme a pólis (Ésquilo,
Eumênides, 690-693, 700-706). Mas a operação é delicada, destas, sem dúvida, que somente uma
divindade pode levar a bom termo. E, quando a cólera retoma sua autonomia e a stásis aliteriódes
retorna39, tudo deve ser colocado em ação para conjurar a ameaça de álaston: então, por não se
poder verdadeiramente esquecê-lo, ele será esquecido nas palavras, de forma a se proibir a memória
dos infortúnios.

Tudo se passou entre negações: como o a privativo de álaston será sempre mais poderoso
do que todo o verbo «esquecer», melhor vale evitar alasteîn e recorrer a mnesikakeîn, ainda que ao
preço de situar a cada vez esta memória sob a negação. Sob a vigilânia da mais intratável das
negações: mé, que, em si, enuncia o interdito.

37 B. A. Van Groningen, In the Grip of the Past, Essay on na Aspect of the Greek Thought, Leyde, 1953.

38 Eu penso em Y. Yerushalnmi (Zakhor. Histoire juive et mémoire juive, trad. E. Vigne, Paris, La Découverte,
1984, p. 118-119), citando Borges e Nietzsche (Considérations inactuelles, trad. G. Bianquis, Paris, Aubier,
1964, p. 119) à propósito daquilo que espreita o historiador contemporâneo.

39 Ver Platão, República, V, 470 d 6; alitérios, de que alitériódes é derivado, bem pode merecer uma outra
etimologia, sua vizinhança com alástor o torna como um duplo desta palavra (Chantraine, Dictionnaire,
op.cit., s.v. aleítes).
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Da anistia e de seu contrário Nicole Loraux

Poder do negativo, força da negação

O não-esquecimento é todo-poderoso, na medida em que não tem limites, sobretudo, os da


interioridade do sujeito.

Retomemos as coisas desde Heitor álastos. Ou, para recorrer a um termo mais usual, desde
alástor. Entre o assassino e o demônio vingador do morto, o não-esquecimento não é indiviso senão
porque ele ultrapassa um e outro; ele está entre os dois, mas também muito antes e muito depois, e
por ele os dois são tomados. Assim, Plutarco tanto pode fazer de alástor o nome do criminoso,
quanto tratar desta apelação na rubrica «cólera dos demônios» (mnenímata daimónon) e falar de

estes demônios que chamamos justiceiros implacáveis (alástores) e vingadores do sangue


derramado (palamnaîoi) porque eles perseguem a lembrança das máculas antigas (palaiá) e
não esquecidas (álesta) (Sobre o desaparecimento dos oráculos, 418 b-c);

num caso como no outro, o inesquecível serve-lhe de princípio explicativo. Sem dúvida, a partir de
então, torna-se vão construir, à maneira dos filólogos, uma história da palavra na qual alástor seria,
por exemplo, a princípio o vingador, em seguida o assassino; mas não é igualmente suficiente
invocar uma «lei de participação», se for para manter a noção de um «ponto de partida» que pode,
indiferentemente, ser o culpado maculado ou o «fantasma» 40. A menos que se dê a este fantasma a
figura principial do não-esquecimento: muito mais do que «ato que macula» 41, mas também muito
mais do que um simples estado interior. Ao mesmo tempo fora e dentro, realidade sinistra e
experiência psíquica, como Gernet o dizia, tão bem, da Erínia. Com esta diferença, de que ele fala, a
este propósito, de «realidade… sobrenatural» e que, tratando-se do não-esquecimento, eu preferiria
insistir sobre sua materialidade, indissociável de sua dimensão psíquica.

Seja o coro de Eletra, onde, para multiplicar ainda as negações, a afirmação do não-
esquecimento dá lugar à declaração de não-anistia:

Não, ele jamais perde a memória (oú pot’ amnasteî), o soberano dos Gregos, teu genitor,
Nem o velho machado duplo de bronze cortante
Que o matou em infames violências

40 História: Chantraine, Dictionnaire…, op.cit., s.v. alástor; «lei de participação»: L. Gernet, recherches…,
op.cit., p. 319-320.

41 Do qual R. Parker (Miasma. Pollution and Purification in Early Greek Religion, Oxford, Clarendon Press,
1983,p. 108-109) pretende fazer o fator unificante, porque ele centra tudo sobre a mácula.
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Da anistia e de seu contrário Nicole Loraux

(Sófocles, Eletra, 481-485)

Nem o morto – que, na Céforas (491-493) era chamado a se relembrar do banho fatal – nem o
instrumento do assassinato, a quem também se credita o fato de não ser esquecidiço: a dupla do
morto e do assassino foi substituída por outra, aparentemente desequilibrada, a da vítima e da arma
de morte42. Englobando tempo e espaço em sua totalidade, o não-esquecimento é onipresente, ativo
à cada etapa do processo. Eis o porquê da materialidade de aláston que, silenciosamente, monta
guarda contra o esquecimento. Mas esta lista permaneceria incompleta se a ela não
acrescentássemos o próprio «infortúnio» (kakón), ao qual igualmente se credita a recusa da
anistia43; sabe-se, porém, que os «infortúnios» substituem, eufemisticamente, o «inesquecidiço»
nos verbos compostos. De novo, alguns versos de Eletra podem testemunhá-lo:

Estonteante,… jamais ele será desligado (où pote katalúsimon)


E ele jamais se esquecerá (oudé pote lesómenon), tão grande
Nasceu nosso infortúnio

(1246-1247)

«O infortúnio jamais esquecerá»44: é Eletra quem fala e, no entanto, nenhum herói grego
acredita mais que Eletra tenha sua própria autonomia interior. Como se, no sujeito, a força
indivisa45 e silenciosa se fizesse vontade mantida na persistência: domínio, talvez, mas que é o
mestre, nesta história?

Eletra, é claro, acredita sê-lo; ao menos ela dá repetidamente a palavra àquilo que, nela,
deseja dizer-se. E, como se jamais se afirmasse melhor do que quando se nega, ela só recorre, então,
enunciados no negativo:

No tenebroso, eu não guardarei

42 Note-se que ela não é mais instrumento, mas sujeito a quem se credita a morte de Agamemnon; assim, a lei
ateniense julga, no Pritaneu, os objetos que «causaram» a morte de um homem; ver M. Simondon, La
Mémoire et l’Oubli dans la pensée grecque, Paris, Belles Lettres, 1982, p. 218-219.

43 A esta lista pode-se acrescentar, em Antígona, a evocação das filhas de Fineu, que uma madrasta cegou e
cuja «órbita dos olhos» é, ela mesma, qualificada de alástor (v. 974).

44 Mazon (Coll. des Universités de France) recua diante da evidência e recorre ao passivo, M. Simondon ( ibid.)
opta por uma tradução «voluntariamente equívoca» («que não pode conhecer esquecimento»); como Jebb,
ilustre editor inglês de Sófocles, deve-se compreender «one sorrow which cannot forget»).

45 Talvez qualquer coisa desta indivisão se mantenha no duplo acusativo – o da pessoa chamada à memória,
aquele do objeto de memória – regido por anamimnésko (verbo que designa, em Heródoto, a intervenção de
Frínico).
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Da anistia e de seu contrário Nicole Loraux

Estas calamidades (223-224)

Ou ainda:

Isto será para sempre chamado indesligável (áluta keklésetai)


E não darei jamais repouso às minhas fatigas (230-231)

Uma negação, uma forma verbal no futuro. Recusa e domínio do tempo, tal parece bem ser a
fórmula linguística privilegiada para firmar o ser sem esquecimento que é Eletra. Mas aí, também,
há recurso a negações em cascata, acumulações onde a lógica que reduz e anula corre o risco de se
perder, em proveito de uma pura intensidade negativa.

Não, por certo eu não porei fim


A minhas queixas e meus soluços lúgubres

Que eu não cesse, como um rouxinol que matou seus filhos46,
Com um gemido agudo, diante destas portas
De meu pai, de fazer soar para todos o eco (103-110)

Eis aí uma frase, uma única, na qual nenhum gramático se reconheceria; apostemos que o público
ateniense, quanto a ele, ouvia a intensidade da recusa. Eletra diz, também:

Eu não quero renunciar a isto,


[não há nenhum risco de] Que eu não gema sobre meu pai, tão provado (131-132)

E a forma negativa se faz reivindicação de poder e projeto de eternidade. Em nada este


recurso à litotes que por vezes se acredita evidenciar no enunciado do não-esquecimento 47. Bem ao
contrário, a reduplicação que reforça o negativo, como em où pote amnasteî («não, ele não perde a
memória»). Ou a eternidade de um futuro anterior (táde áluta keklésetai: «para sempre, será
chamado indesligável»48). A nós, à escuta de Freud, escutar em todos estes enunciados a mesma
denegação, a confissão, apesar do locutor, que, de fato, se renunciará, desautorizando o sofrimento
ao qual o futuro oferecia a segurança de uma posteridade ilimitada; a confissão, sobretudo, de que a
negação por demais violenta será apesar de tudo combatida – vencida ou, ao menos, reduzida ao
silêncio e, assim, esquecida – por uma outra negação. Pois a renúncia se diz, ela também, como
reverberação de verbos «negar»: para Aquiles, apeîpon (Ilíada, XIX, 67; 35, 74-75) e apennépo,
para as Erínies obrigadas a desfazer os interditos que haviam proferido contra Atenas.

46 Ver «O luto do rouxinol», nas Varia da Nouvelle Revue de psychanalyse, n° 34, 1986, p. 253-257.

47 C. Watkins, «À propos de mênis», p. 209, comentando a fórmula ou… lélethe (Sólon, 13 West, 25).

48 Ver C. J. Ruijgh, «Lémploi onomastique de keklêsthai», Mélanges Kamerbeek, Amsterdan, 1976, p. 379.
20

Da anistia e de seu contrário Nicole Loraux

Pois o Inesquecidiço sempre foi o Esquecido49.

Para colocar um termo ao jogo da dupla negação, é tempo de voltar à Atenas de 403, a este
decreto e a este juramento que proclamam a anistia.

Enunciado no estilo direto, como se deve em um decreto, onde a escritura, ao mesmo


tempo, apresenta o discurso efetivamente pronunciado e a ele se subordina 50, a interdição de
memória está pronta a se integrar, a título de citação, a uma narração de historiador, ou a estas
releituras pragmáticas do passado à qual recorrem os oradores («Então, eles fizeram da “proibição
de lembrar dos infortúnios” um juramento»: tò mè mnesikakeîn). A interdição se cristalizou em
rhêma, dito reificação quase feita máxima, exemplum definitivamente inatual51. Pois «o relato é
talvez o gênero de discurso no qual a heterogeneidade dos gêneros de frases e, mesmo, de gêneros
de discurso encontram mais perfeitamente como se fazer esquecer 52».

Portanto, a pólis proíbe, postulando a eternidade, mas se apaga como instância de palavra.
Sobra o juramento, que deve ser assumido por todos os cidadãos, mas um por um. Ou ainda, por
cada ateniense singular, enunciando na primeira pessoa: «eu não me recordarei dos infortúnios».
Ou mneesikakéso: em atenção à proibição, sempre subordinada à lembrança de que isto foi uma
decisão, o juramento se dota da eficácia dos atos de palavra 53. Ele instaura, engajando aquele que
jura, mas o sujeito ganha a possibilidade de falar como eu, e de dotar seu juramento do poder dos
enunciados negativos no futuro. Não me lembrarei: abster-me-ei de lembrar. Assim cada cidadão se
assegura, a um só tempo, de si mesmo e do futuro.

No entanto, tudo ainda pode mais uma vez se inverter. Para fazer calar a memória, o
ateniense que pronuncia o juramento fala, decerto, sob o mesmo modo que Eletra, ao proclamar sua

49 O «Esquecido»: ver J.-F. Lyotard, Heidegger et «les juifs», Paris, Galilée, 1988.

50 Ao contrário, na comédia, a interdição é facilmente pronunciada no estilo direto (Lisístrata, 590; Ploutos,
1146); mas, endereçada a um único destinatário, ela se faz burlesca.

51 Narração dos historiadores: Xenofonte, Helênicas, II, 4, 43; Aristóteles, Constituição de Atenas, 39,6
(citação do texto do acordo); ver, também, Andócido Mistérios, 77, 79, 81, assim como Tucídides, IV, 74;
citação do orador: Ésquino, Sobre a embaixada infiel, 176; rhêma: Ésquino, Contra Ctesifonte, 208.

52 J.-F. Lyotard, Le Différend, op.cit., p. 218; a inatualidade da citação: ibid., p. 55.

53 Pólis tal qual, o juramento rompe uma narrativa em função de maior eficácia: ver Andócido, Mistérios, I,
90-91. Que este enunciado não seja próprio à política interior de Atenas, testemunham diversas inscrições, não
atenienses ou de política exterior.
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Da anistia e de seu contrário Nicole Loraux

vontade de jamais esquecer. Entretanto, não era um juramento que Eletra pronunciava – o que é, na
verdade, o juramento em si mesmo, sem testemunhos divinos? – como se a simples proclamação do
ser inesquecidiço bastasse para selar o engajamento. Se é verdade que somente o juramento permite
à anistia vencer o ressentimento, é porque ele deve sua eficácia à dupla caução de que se cobre a
palavra promissória: a dos deuses invocados à título de testemunhas sempre prontas a castigar,
aquela – sobretudo – da imprecação, terrível máquina para punir o perjúrio que sujeito, como que
prevendo que se renegaria, põe, de saída, em movimento contra si próprio. Para impedir que a
negação se desfaça em denegação, e mesmo para que ninguém ouse, simplesmente, apagá-la por
subtração, torna-se necessária uma garantia mais do que humana. Quebrar o áklaston pénthos
exigia que se recorresse à magia 54; para recalcar o álaston para aquém das palavras, a política
precisa do religioso55.

Não me esquecerei: não terei ressentimento. De um enunciado ao outro, toda a diferença


entre o rito de palavra, de que se espera que fornecerá a maior efetividade à menos marcada das
duas frase.

Busquemos, para finalizar, unir os dois extremos da história.

Havendo cada ateniense jurado por si próprio, a pólis bem conclui que a soma destes
engajamentos singulares reconstituirá a coletividade; e, na mesma ocasião, ela se livra das
conseqüências do perjúrio, forçosamente individual. Assegurada pelo concurso dos deuses, a
instância política pode se instituir como censor da memória, único habilitado a decidir o que é e o
que não deve ser o uso que dela se faz.

Igualmente, a abertura da Ilíada não poderia se legitimar senão através da Musa, porque
somente a filha da Memória sabe relatar uma mênis sem que o relato seja afetado pela terrível aura
de seu objeto; convertendo a cólera em glória, a Musa abre o caminho da boa anamnese, e o poeta é
o puro instrumento desta transubstanciação.

Reinstaurada em sua integridade por virtude do acordo, a comunidade se reinstitui, e toma


partido. Ela proscreve qualquer lembrança de um passado litigioso, deslocado porque conflituoso,
como se, ao invés e no lugar de Léthè, Memória figurasse na temível lista dos filhos da Noite, a título
de filha da Querela (Éris). Cada ateniense deve esquecer, se puder, o que foi a stásis e, podendo ou
não, cada ateniense deve obedecer à pólis, edificando para si mesmo uma máquina contra a
vertigem lúcida do álaston.

54 G. Nagy, Comparative Studies, op.cit., p. 258.

55 Ver as significativas observações de Isócrates, Contra Calímacos, 3 e 23-25.


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Da anistia e de seu contrário Nicole Loraux

E a política retomará seus direitos, versão cívica e securizante do esquecimento dos


infortúnios. Desaparecido o esquecimento, apagado em benefício da anistia, permanecem os males.
Mas quem se lembraria ainda que, nos «males» interditos de memória, se dissimula aquilo mesmo
que, na tradição poética, recusava o esquecimento?

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