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Tudo o que dissemos até aqui mostra que, mesmo quando analisamos a experiência
estética apenas do ponto de vista da produção artística, não podemos mais conceber a própria
ação criativa como fruto exclusivo da atividade de um sujeito que seria sempre a fonte de toda
a iniciativa. Se a criação é uma aposta singular, é igualmente uma resposta aos desafios
materiais e aos apelos culturais e históricos.
Baseando-se em Huizinga, Pareyson mostrou, com muita propriedade, o papel
fundamental do elemento lúdico no investimento formativo. O processo de criação, enquanto
tal, é visto como um jogo, o que significa dizer que ele é afetado pela incerteza das condutas,
mas está igualmente submetido a uma certa ordem de convenções; e essa dialética entre
regularidade e indeterminação é o que garante simultaneamente sua riqueza e sua solidez.
Certamente, do ponto de vista dinâmico, o jogo é um palco para tensões que podem traduzir a
simples diferença, o conflito ou a sedução, que, do ponto de vista expressivo, podem-se
traduzir numa brincadeira solitária, numa disputa amistosa ou numa atraente provocação; mas,
mesmo em sua condição de atividade estruturante, desenvolvida em função da aposta numa
expectativa de desdobramentos futuros, todo jogo é um comportamento estruturado a partir do
que foi feito no passado. Desse modo, ao encarar a criação como jogo, estamos admitindo que
as estratégias da invenção artística são indissociáveis da obediência a certos padrões de
regularidade, representados por suas regras estilísticas.
Mas o jogador não carrega essas regras consigo, como um estandarte, como um
repertório de que tenha consciência o tempo todo; ele as apreende e as assimila em seus
procedimentos, de modo que, ao produzir uma obra, está empenhado apenas no objetivo
estratégico de expressar algo através de seus “lances”, sem pensar nas regras, mas sem deixar
de respeitá-las, porque elas foram adotadas por ele, como balizas para seu modo de atuação; e
quanto mais experiente for, mais essas regras estarão incorporadas, e mais espontâneo será o
seu desempenho produtivo. Ao mesmo tempo, é possível alterar as próprias regras, com o fim
de ampliar os limites dos lances que o jogo propõe, de modo que, se nenhum jogador admite
que as regras do jogo sejam mudadas durante uma partida, todos sabem que, com o tempo, as
jogadas inovadoras transformam-se em procedimentos sistemáticos e recorrentes, e podem
gerar novas regras, o que acontece também no jogo mais universal, que é o jogo da linguagem.
Neste último caso, obedecemos o tempo todo à regularidade gramatical, somos
submetidos às regras da sintaxe e, no entanto, ninguém pensa nessas regras ao falar, ao
entregar-se à conversação. A nossa fluência advém do fato de que essas regras foram
incorporadas por nós paulatinamente e nos entregamos à fala de um modo aparentemente livre
de qualquer legislação. Num primeiro momento da aprendizagem e da socialização, o
desrespeito às regras é punido como erro e inadequação, mas à medida que alguém se desvia
de algumas regras, em função de uma efetiva necessidade de expressão, fazendo com que seu
desvio seja partilhado por outros, seu “lance” pode passar a constituir também uma regra.
Quando um poeta introduz um neologismo ou um modo de falar que é repetido e retomado por
outros, ele introduz na língua, através de sua intervenção singular, algo que assume um papel
estrutural, mas isto não depende apenas de uma decisão sua.
Com isso, damo-nos conta da necessidade de relativizar a interpretação que trata a
experiência artística apenas do ponto de vista da atividade de produção, dos procedimentos
que um autor adota na concepção e execução de suas obras. Além de estar submetido a
condições que não determina, o autor não é onisciente em relação a esses procedimentos e
seus resultados. Ele não sabe exatamente o que vai fazer, ele só o descobre fazendo e depois
de ter feito, depois que aprende a tratar as condições de trabalho como meio de expressão; e
nisso ele se descobre também, liberando nuanças da sua personalidade que permaneceriam
ocultas se não se manifestassem através da obra.
Nesse sentido, é importante ressaltar que os procedimentos adotados por um autor, na
realização de seu trabalho, estão associados a critérios e a escolhas que ultrapassam a esfera
idiossincrática da sua subjetividade. Concebendo a arte como jogo, percebemos a criatividade
artística como uma força que resulta da tensão entre o padrão e o desvio. Todo processo
simbólico, todo processo em que a configuração de signos ou elementos plásticos visa à
construção de um sentido partilhado, só é possível através do permanente confronto e
combinação entre o regime espontâneo de uma performance que assimila o acaso, a
circunstância e o próprio “erro”, e os quadros sistemáticos, regrados e estruturais, que
restauram continuamente a tensão entre diferença e repetição. Portanto, ao falar das formas de
expressão cultural como “criação”, não devemos supor, apressadamente, que um desses dois
aspectos do processo simbólico deva ser privilegiado. Ao contrário do que prega o discurso de
vanguarda, o sentido não vem apenas da diferença, mas do rebatimento do desvio sobre os
padrões de repetição. Cada lance no jogo entre o outro e o mesmo parte de uma condição
prévia, que se atualiza uma vez mais frente a cada desvio.
De maneira geral, as possibilidades de fazer valer e expandir nossa singularidade são
limitadas e qualificadas pelos modos de visão, disposição e compreensão que herdamos de
nossos pais e legaremos aos nossos filhos, graças justamente a nossa atuação desviante e, não
obstante, recorrente. É fácil perceber que, se fizermos uma anamnese da nossa vida, da nossa
experiência, nós poderemos retroceder a camadas cada vez mais primitivas, em nossa
formação psicológica ou na formação cultural de nossa sociedade, mas jamais conseguiremos
chegar a um instante originário. É característico da experiência simbólica o fato de que não
exista o grau zero do sentido, ou, dito de outro modo, que não seja concebível um estado de
experiência nula, pois, à medida que somos acolhidos numa convivência coletiva, segundo
padrões simbólicos prévios, antes mesmo que possamos desempenhar qualquer papel que nos
proporcione uma experiência própria, já estaremos partilhando os formatos e os padrões da
experiência vigentes em nossa cultura.
Caminhando na direção oposta e tendo em vista o desenvolvimento de nossas
“faculdades superiores”, ainda seremos obrigados a admitir que, mesmo as nossas opções mais
racionalmente fundadas, têm também um fundo obscuro que é exatamente o horizonte de
nossa cultura, que nós não escolhemos, que nós não adotamos por meio de uma opção
temática, como se tivéssemos possibilidade de eleger os nossos valores. Os valores são
exatamente os padrões de julgamento que nós acionamos diante das obras e das coisas, mas
que nunca aparecem para nós como coisas ou obras e nunca se apresentam diante de nós.
Dessa forma, raramente temos em vista os valores que nos instruem em nossas opções, porque
eles funcionam para nós como uma ambiência simbólica e afetiva que possibilita as nossas
escolhas, mas não está entre as escolhas possíveis.
Do mesmo modo, nós não podemos escolher e nem podemos nos desvencilhar
completamente dos nossos preconceitos. Sobre esse ponto, aliás, talvez seja oportuno lembrar
aqui a observação de Octávio Paz, para quem o grande preconceito da época moderna foi
justamente o preconceito iluminista contra o preconceito, materializado na idéia de que a
ciência se faz contra o senso comum. Esta idéia, que penetrou no próprio senso comum, vem
sendo abandonada na prática científica de fronteira, para dar lugar à constatação de que não se
pode fundar logicamente o discurso lógico e não se pode fundar racionalmente o discurso
racional, pois, em última instância, eles dependem de certos padrões culturais e institucionais,
de certos modos de experiência do mundo, que não podem ser reduzidos a um simples modelo
intelectual.
A utopia “vanguardista” lança o artista num estado paranóico, porque lhe impõe a
obrigação de se afastar de si mesmo todo o tempo, para impedir a sedimentação de um
“identidade” definitiva. Para escapar da cristalização, ele tem que se tornar um mutante
obsessivo, um verdadeiro transformista, que deve continuamente produzir revoluções
sintáticas no seu próprio discurso ou subverter as regras do seu próprio estilo. Ele vive num
regime de insegurança premeditada, tentando alcançar a originalidade absoluta, buscando a
novidade pela novidade, o efeito do choque, o efeito do escândalo. Isso, de certa maneira,
comprometeu a expressividade da arte de vanguarda: a busca desmesurada da originalidade,
da novidade, do efeito de estranhamento. E, paradoxalmente, isso também a aproximou de seu
gêmeo antípoda – o kitsch –, pela busca de um efeito facilmente previsível, embora de
natureza contrária.
A arte e a comunicação, com as devidas proporções, são simultaneamente
estranhamento e reconhecimento, porque não se pode experimentar o estranhamento enquanto
tal, a não ser no abismo da angústia existencial. Numa atividade qualquer, é preciso ter a
referência de um padrão, para poder-se desviar dele. O sentido da palavra tradição é, na
verdade, o de um movimento complexo, capaz de reproduzir um quadro de referências,
assimilando as inovações mais diversas. A tradição não é o monolitismo de um conjunto de
valores que se impõem pela força, de cima para baixo, de maneira unilateral. Ao contrário, ela
é essa capacidade de pôr em movimento o jogo simbólico a partir de determinadas regras,
constituindo um sistema capaz de assimilar a aparição a desaparição e os desvios, sem perder
sua estrutura.
Neste sentido, a nossa época conquistou, por assim dizer, uma serenidade
hermenêutica em relação ao passado recente. A tradição não mais nos ameaça, no sentido de
ser uma imposição ou uma interdição; pelo contrário, ela nos motiva a permanecer ativos
dentro dos costumes estabelecidos e nos desafia a produzir essa singularidade e essa diferença
que nós somos, sem ter necessariamente que romper (ou proclamar a ruptura) com todos os
padrões vigentes. Por isso, ainda continua sendo mais desafiador e instigante, para o poeta,
compor um bom soneto do que simplesmente adotar o verso livre e escrever um poema sem
rima e sem métrica. É mais complexo e interessante responder com originalidade aos desafios
de uma velha regra, do que instaurar ou adotar uma regra nova, sem grande alcance, apenas
para se tornar o senhor do seu próprio gênero.
De certo modo, uma parte muito grande da “arte moderna” está marcada por esse
procedimento: o artista instaura uma sintaxe própria e, nela, impõe-se como mestre absoluto,
já que, como seu inventor, tem maiores chances de se mover com agilidade, segundo uma
gramática que, no entanto, só concerne a ele e ninguém mais reconhece como regra. É muito
mais fácil fazer as coisas dessa forma e a criatividade, nesse caso, transforma-se em um
expediente ardiloso e egocêntrico. O velho desafio continua sendo o mesmo, para todo artista:
ser expressivo a partir do formato, da estrutura e das formas dadas, até esgotá-las, e não se
deixar levar precocemente por essa obsessão de produzir uma nova sintaxe a cada obra, como
artifício para distinguir-se radicalmente dos seus contemporâneos e alimentar a presunção de
pertencer ao mundo futuro.
Com isso, evidentemente, não se está condenando a busca da originalidade, mas, sim, a
presunçosa ilusão de se poder ser voluntariamente extemporâneo, sendo “absolutamente”
original. Todo grande criador é obrigado, pelo simples desenvolvimento de sua busca
expressiva, a ultrapassar os limites normativos de sua própria poética, mas ele faz isto
espontaneamente, por um desdobramento necessário de seu percurso, acabando por assumir,
em relação aos procedimentos ou recursos materiais empregados em sua atividade criadora,
um papel inovador, sem precisar adotar explicitamente um programa ou uma pose de
vanguarda.
No que diz respeito a esse último aspecto, aliás, não se pode deixar de mencionar a
verdadeira histeria provocada, em nossa época, pela adoção da tecnologia eletrônica e digital
no processo artístico. Há artistas e teóricos que supõem que esta tecnologia introduziu padrões
tão distintos na operatividade humana, que estabeleceu a possibilidade de configurações
absolutamente originais, situados totalmente além de todas as expectativas. Em função disso,
temos testemunhado, não só na mídia, mas também na esfera da cultura artística e mesmo
acadêmica, uma verdadeira mistificação das questões postas pela atualidade, um certo
deslumbramento e até mesmo uma “nova” fetichização da tecnologia.
Do ponto de vista da experiência estética, o procedimento construtivo enquanto tal é o
que menos importa, se não se tem em mente os resultados, os efeitos e o grau de vigência de
uma determinada obra. A tecnologia digital, como qualquer tecnologia, traz diferentes
instrumentos, que permitirão produzir obras cujo resultado, no entanto, precisa ainda ser
fruído por alguém. Nesse sentido, é completamente ingênua a dicotomia entre átomos e bits,
essa idéia de que tínhamos vivido até hoje no universo dos átomos e hoje passamos a viver no
universo dos bits, das configurações numéricas, submetidas a algorítimos lógicos. É preciso
não esquecer que a base da experiência estética é a forma, cujo regime de funcionamento é
irredutível ao seu modo de produção. Se olhamos uma imagem na página de um livro ou na
tela de um computador, o que vemos é uma figura, e não dígitos ou átomos.
Não deixa de ser chocante ler, em certos textos sobre cibercultura e arte eletrônica, que
a criação de imagens digitais é uma atividade intelectual, porque processa informações. O
artista (ou o webdesigner) configura formas e mesmo que utilize algoritmos numéricos como
instrumentos para produzí-las, ele toma suas decisões sobre a construção de uma imagem a
partir do que vê numa tela. Suas escolhas são, portanto, baseadas na percepção, e não na
racionalidade de uma fórmula abstrata ou na suposta objetividade de uma tabela de valores
numéricos. Excetuando o caso da geometria fractal, na qual não ocorre exatamente a produção
de formas, mas a tradução visual de processos numéricos iterativos e automáticos, o artista
não cria formas escrevendo equações; além disso, ele continua a acionar a sua sensibilidade
para decidir se uma obra está pronta, assim como o espectador continua a depender dos
próprios olhos e dos próprios valores para poder decidir se ela é bela, não importando se foi
formada por pixels ou pigmentos.
Equívoco semelhante, embora ainda mais grave, é o de supor que a cultura
contemporânea instaurou uma estética do fragmento, uma estética da fuga ou da desaparição,
por ser a época em que as formas de expressão dominantes no âmbito das poéticas
audiovisuais, auxiliadas pelo processamento digital da informação, apelam para a
fragmentação e a aceleração. A exigência básica da experiência estética é, e sempre será, o
critério da unidade, porque essa é também a exigência básica da percepção, em qualquer
experiência mundana. Perceber o mundo é viver a experiência da unidade na diversidade e
criar representações belas não é senão produzir essa unidade em termos expressivos.
Ao procurarmos refletir sobre o complexo percurso que leva das chamadas “belas
artes” às poéticas audiovisuais contemporâneas, a primeira dificuldade que enfrentamos diz
respeito ao uso da própria palavra arte. Será que podemos falar de “arte” ainda hoje, com
referência ao videoclipe, por exemplo, ou à canção pop que toca no rádio? Por outro lado, por
que, desde Hegel, fala-se da “morte da arte” e esse cadáver renasce sem cessar? Tudo isso não
traduzirá apenas nossa insegurança em relação a sua natureza?
De início, é necessário admitir que é pouco pertinente, hoje, conceber as práticas
expressivas de uma maneira unitária e uniforme, sem qualquer referência a seu caráter
específico. A rigor, deveríamos simplesmente evitar a utilização abstrata desse termo, pois a
“Arte”, neste sentido singular e maiúsculo, surgiu apenas com o nascimento do museu.
Como já foi assinalado (cf. especialmente DEBRAY, cap. V-VII), esta noção é uma
particularidade histórica da cultura européia moderna, já que a Antigüidade não conhecia “a
arte”, e os astros da cultura pop não fazem questão de utilizar esse rótulo para caracterizar o
seu trabalho. Ironicamente, os próprios publicitários, que receberam, sem pleitear, o título de
“verdadeiros artistas da sociedade de consumo”, recusam-se a considerar como arte as peças
que criam; pelo contrário, mantêm uma verdadeira cruzada contra essa interpretação “pouco
profissional” de sua atividade.
No entanto, na vida cotidiana, quando comemos uma comida feita com esmero,
dizemos que ela é uma “obra de arte”, da mesma forma que, no futebol, ao assistir a um gol
mirabolante, misto de ousadia e habilidade, nós dizemos que ele é “uma pintura!”. O que quer
que possa estar na origem dessa situação – que se caracteriza, por um lado, pela necessidade
de reconhecer a beleza dessas realizações (seu caráter “artístico”) e, por outro, pela virtual
interdição em chamá-las de “arte” – eis aí algo que parece difícil desvendar.
Quando Marcel Duchamp colocou um urinol numa galeria de arte, antes de estar
apenas praticando um ato de iconoclastia, estava talvez antecipando uma compreensão do
fenômeno artístico, como algo de natureza institucional. Não deveríamos, segundo esta
perspectiva, perguntar-nos “o que é arte?”, buscando identificar os atributos de um tipo ideal,
mas procurar compreender quando algo produzido por membros da comunidade é destacado
de todos os usos prosaicos e erigido em padrão de beleza digno de ser contemplado e cultivado
pelo grupo. O gesto de Duchamp serviu para sugerir que, se o museu é a instituição que diz o
que é e o que não é arte, tudo o que estiver no museu deverá ser considerado arte, porque o
que assegura o seu caráter artístico não é sua natureza substancial ou suas qualidades
intrínsecas, mas exatamente uma relação social que se encarna nessa instituição.
A radicalização modernista desta crítica às tradições acabou por inverter aquela
equação, recusando a autoridade dos salões e dos museus e proclamando a chegada de uma era
de anti-arte. Paradoxalmente, o desejo vanguardista de se colocar fora dos espaços
tradicionalmente reservados à arte, mostrou-se, a médio prazo, uma veleidade, à medida que
as instituições artísticas se apressaram em assimilar todas as atitudes pretensamente anti-
institucionais. À propósito, é muito interessante observar que propostas artísticas que
pretendiam colocar em questão os suportes tradicionais, como o “happening”, a
“performance” e a “instalação”, por exemplo, acabaram sendo considerados como formatos
plenamente aceitáveis pelas instituições que elas procuravam justamente questionar. Como já
se disse várias vezes, a ruptura com a tradição acaba instituindo outras tradições, mesmo que
sejam tradições de ruptura, que não deixam de se tornar institucionais por causa disso.
Desde que o cinema, depois da fotografia, obrigou os críticos a ampliarem seu quadro
classificatório das “belas artes”, para conceder-lhe o título de “sétima arte”, tornou-se
supérflua a preocupação em saber qual seria a oitava, a nona ou a décima arte, e nós passamos
a encarar com naturalidade o fato de não sabermos se um formato plástico como o videoclipe
se enquadraria nessa classificação, embora sejamos obrigados a reconhecer a sua qualidade
artística.
Um urinol no museu é uma obra de arte, mas em casa é um utensílio, e é aquele
contexto institucional que decide a questão, pois não existe uma substância artística que nos
permita identificar uma “obra de arte” com isenção e segurança. Mas tal conclusão não
deveria deixar-nos frustrados pela falta de garantias quanto a tais definições, pois, na verdade,
liberta-nos da angústia e da insegurança quanto ao que é ou não é arte… Independentemente
disso, continuaremos a correr o risco de julgar se algo é belo, quer os museus o aclamem, ou
não, como “arte”.
Segundo a estética da formatividade proposta por Luigi Pareyson, ao admitir que uma
obra é bela, estamos reconhecendo que ela é íntegra, que se sustenta, que sua elaboração
obedeceu a sua própria vontade, a sua própria lei, que conseguiu ir até o seu próprio limite e
impor-se ao próprio “autor” como um estilo de abordagem do material de que é feita. E é esse
seu êxito que nos faz reconhecer sua excelência e tomá-la como uma nova matriz de sentidos,
capaz de ampliar o horizonte da própria experiência ordinária.
Pareyson foi, provavelmente, o primeiro estetólogo que freqüentou o ateliê. Talvez por
essa razão, elaborou uma teoria estética que não foi deduzida de princípios filosóficos gerais,
mas procurou penetrar no processo produtivo, tentando conhecer a relação que o artista tem
com o seu métier, bem como sua reação à resistência do material. Assim, ele escreveu um
texto de estética que o artista recebe muito bem. Contudo, se esse foi certamente um dos seus
principais méritos, foi também, provavelmente, sua maior limitação, porque, ao concentrar-se
no âmbito da criação, ele, que foi também um dos primeiros a assinalar a importância da
interpretação e da leitura da obra de arte, acabou interpretando a própria leitura segundo o
paradigma da produção.
A teoria estética dominante depois de Kant, voltada para as “belas artes” e guiada pela
concepção da criatividade como um dom de personalidades excepcionais, reduziu a
experiência estética à mera contemplação, considerando o fruidor como um coadjuvante
passivo, prostrado à frente da obra, à espera do milagre. Desse modo, a contemplação estética
foi associada a uma forma de inatividade, que correspondia ao oposto da ação.
O grande mérito de Pareyson e da estética ligada a ele – especialmente a esboçada por
seu aluno mais famoso, Umberto Eco – foi o de mostrar que a recepção estética é uma forma
de atividade: uma ação de leitura, interpretação e avaliação. A partir daí, tornou-se
fundamental para a investigação estética a compreensão da dimensão performativa da
recepção*.
Todavia, numa estética que, em meados do século XX, ainda tinha como referência o
círculo das formas tradicionais de manifestação artística, a ênfase na formatividade só poderia
desembocar numa disfarçada apologia da produção. Dessa forma, talvez inadvertidamente, o
próprio Pareyson, ao tentar descrever o regime da atividade do receptor, acaba caindo num
jogo especular e fazendo da prática receptiva o reflexo das práticas do produtor. Tal posição
está muito clara na dialética que ele propõe, ao descrever a relação entre o processo de
produção artística e a fruição que caracteriza a experiência estética, nos termos de uma
simetria entre o percurso do autor – que parte do projeto para a obra, ou da forma formante
para a forma formada – e o movimento do fruidor, que faz o caminho inverso, partindo da
obra, enquanto produto realizado, para penetrar na dinâmica do seu processo de configuração.
Essa idéia é interessante porque tenta sublinhar o caráter ativo da recepção, mas é frustrante
porque descreve a atividade típica do receptor nos termos da atividade do produtor, o que
significa, em última instância, denegar a especificidade da prática da leitura, não reconhecer
que ela tem uma particularidade, que exige uma abordagem própria e não admite ser tratada
apenas como uma imagem no espelho. Como Dufrenne já havia apontado, a sensibilidade é o
elo de ligação entre o artista e seu público, mas, enquanto o primeiro “pensa em termos de
regras e operações”, o segundo “pensa em termos de efeitos” (1981, p. 97). Existiria, pois,
uma diferença sutil entre a perspectiva do autor, para o qual a obra se impõe quando está
pronta e a do receptor, para quem a obra é bela quando se impõe.
Do ponto de vista da formação pessoal, a capacidade produtiva de alguém depende, em
grande medida, da sua habilidade receptiva, e, quanto mais ele for sensível a determinada
*
Ao mostrar que esta ação de leitura é uma prática social, a chamada estética da recepção – cujas teses
discutiremos mais adiante – viria complementar a estética da formatividade, pondo em relevo a dimensão
histórica da recepção.
forma de expressão, mais poderá instruir-se nela, mais possibilidades terá de penetrar na
dinâmica de sua produção. Indo mais além, podemos dizer que, de certo modo, a recepção é
mais abrangente e originária do que a própria produção, pois mesmo o artista tradicional tem o
seu primeiro aprendizado na experiência da fruição e não no treinamento formal. Alguém se
decide, por exemplo, a ser pintor, através da fruição da pintura e é aí que tem a sua introdução
ao universo pictural. Quando entra num ateliê para pintar, ele já fez, antes, várias escolhas, e
suas predileções tendem a se tornar regras de estilo, ainda que provisórias e não-conscientes. E
uma vez mais, no momento mesmo da conclusão de uma obra, quando tiver que decidir se ela
está pronta, será como receptor que tomará esse decisão.
Observa-se aí uma assimetria entre os processos de produção e de recepção, pois esta é
mais abrangente que aquela, uma vez que nem todos os homens se pretendem “autores” e
todos são, de certa forma, “leitores”. Provavelmente está aí a profunda verdade de toda a
problemática da recepção e da artisticidade, na época da reprodutibilidade tecnológica e das
sínteses digitais: numa situação em que as técnicas de produção e reprodução são
universalmente acessíveis, a autoria se transforma numa espécie sofisticada de leitura. Mas
talvez tenha sido sempre essa a condição de toda téchne.
Em última instância, seria necessário reconhecer que não só a experiência estética, mas
a própria comunicação cotidiana é, antes de tudo, um processo de recepção. Indo mais longe,
poder-se-ia mesmo dizer que não há sujeito da comunicação, pelo menos no sentido do sujeito
fundador da filosofia moderna, à medida que o “emissor” não é a causa da sua mensagem,
nem do sentido que se realiza na comunicação. Cada locutor que toma a palavra põe em jogo
uma série de mecanismos que ele não criou e uma série de processos dos quais ele não é a
origem; e, mesmo em situações muito concretas, quando parece que só ele pode ser a causa de
suas atitudes, certamente não poderá ignorar o papel da reação do seu interlocutor, na
configuração do sentido do seu próprio discurso, e não poderá jamais pretender ser a fonte das
estruturas que permitem que esse discurso seja pronunciado por ele e partilhado com os
outros.
Nesse sentido, a comunicação é um fluxo sem paternidade e cada interlocutor ingressa
numa corrente que o antecede e o sucederá. Cada locutor diz sempre mais do que diz e é
legítimo que as interpretações divirjam, justamente porque é próprio da palavra a polissemia, a
riqueza, a equivocidade, a capacidade, enfim, de abrir mundos, de gerar uma cadeia de
significações que faz deslizar os significantes em várias direções, permitindo que cada um
retome a palavra do outro e a leve a participar em diferentes jogos de linguagem,
independentemente da sua vontade e, mais ainda, livre do seu controle.
Está claro que o autor de um texto pode tentar legislar sobre as possibilidades de
superinterpretação que possam vir a ocorrer, especialmente se sua obra tiver caráter
discursivo, mas, em termos de expressão artística, e no que se refere aos aspectos plásticos,
esse controle é ainda mais relativo, à medida que as obras resistem à simples decodificação.
Por essa razão, seria inútil, para o autor, tentar estabelecer definitivamente o modo como se
deve interpretar uma obra que ele produziu num determinado momento. Não há como não
admitir que, uma vez tornada pública, uma mensagem ou uma obra não tem mais paternidade,
não pode mais ser remetida a uma origem, a uma causa, muito menos se essa causa for
concebida como esse centro psicológico que seria o autor. Mas como o leitor só se forma em
contato com várias gerações de obras, que citam e comentam outras obras, é totalmente
insatisfatório inverter simplesmente as coisas e passar a afirmar que o leitor empírico é o
verdadeiro sujeito da leitura.
Os hábitos mentais dominantes ainda hoje, herdeiros das tradições e instituições
modernas, enquadram a experiência estética a partir da produção artística e nós tendemos a
analisar o problema da arte a partir do exercício da atividade voluntária de uma subjetividade
especial, a subjetividade do autor, do criador, do inventor, do “artista”, chegando a tematizar a
própria experiência estética a partir das operações construtivas que o autor desenvolve ao
elaborar o seu produto. A exacerbação modernista desse ponto de vista leva-nos a uma atitude
que procura decifrar a experiência estética a partir de uma análise exclusivamente
procedimental daquelas operações que o autor aciona para produzir efeitos no seu público,
sem se dar conta propriamente do modo como esses efeitos se produzem ou do tipo de
dinâmica que eles envolvem. A discussão propriamente estética é, assim, rebaixada ao plano
poético e este último é reduzindo à mera descrição dos gêneros, modos e técnicas de
expressão.
Certamente, a crítica estruturalista já anunciou a morte do autor e o “fim” do sujeito,
mas apenas para proclamar o primado do texto, que passava, assim, a ser encarado como uma
espécie de sujeito hipertrofiado, capaz de conter, ao mesmo tempo, o autor e o leitor, ainda
que “implícitos”. Ao afirmar que a produção de sentido se dá na leitura e não na escritura, é
claro que nos afastamos do estruturalismo e também do paradigma semiótico, exatamente
porque este igualmente denega o aspecto de recepção que toda obra implica, permanecendo na
esfera da produção. Hoje já não acreditamos que tenha sentido tratar o texto como uma espécie
de arquétipo do seu próprio sentido. O sentido não é algo que esteja simplesmente embutido
nas obras e nas coisas, e se o próprio texto funciona como uma espécie de instrução a partir da
qual o leitor vai operar para produzir sentido, ele herda estas suas “estruturas de apelo” de
outros textos e outras experiências de leitura. Além disso, é esse mesmo sentido,
compreendido de maneira extra-textual, a partir do conjunto das interpretações a que o texto
esteve sujeito numa certa tradição, que vai, por sua vez, produzir o leitor e “sua” leitura.
Quando, no decurso dos séculos XVII e XVIII se começa a distinguir uma faculdade específica
a que são confiados o juízo e o gozo da beleza, é justamente o termo “gosto”, oposto
metaforicamente como um “sobre-sentido” à acepção própria, que se impõe na maior parte das
línguas européias para indicar aquela forma especial de saber que goza o objeto belo e aquela
forma especial de prazer que ajuíza da beleza (AGAMBEN, 1992, p. 139).
A idéia de uma forma de conhecimento outra, que se opõe tanto à sensação quanto à ciência, e
é ao mesmo tempo prazer e saber, é o traço dominante das primeiras definições do gosto como
juízo sobre o belo (p. 144). (…) Nesta perspectiva, o gosto aparece como um sentido
supranumerário, que não pode encontrar lugar na divisão metafísica entre sensível e inteligível,
mas cujo excesso define o estatuto particular do conhecimento humano (p. 145).
Esta colocação do gosto numa região intermediária entre saber e prazer parece indicar,
nas formulações habituais, uma perniciosa confusão entre o tipo de conhecimento prático, que
se veicula espontaneamente através da atividade simbólica da cultura e a cognição
propriamente intelectiva, associada aos processos racionais e formalizados do conhecimento
científico.
O belo suscita em nós um tipo de satisfação indissociável da surpresa, portanto, uma
forma de compreensão que não se poderia reduzir ao simples reconhecimento da adequação
dos nossos modelos de interpretação e explicação e a realidade que eles pretendem
representar. O que gozamos no belo é “o puro remeter de uma coisa a outra coisa; por outras
palavras, o seu caráter significante, independentemente de qualquer significado concreto”
(AGAMBEN, 1992, p. 146). Por esta razão, Diderot definiu o belo como um “significante
excedente” e Kant, antes dele, como “um excesso da representação sobre o conhecimento”,
excesso este que se experimenta, justamente, como prazer propriamente estético.
Na sua formulação mais radical, a reflexão setecentista sobre o belo e sobre o gosto culmina
assim no reenvio a um saber, que não se pode explicar porque se apóia num puro significante
(…), e tem um prazer que permite julgar, porque se apóia não numa realidade substancial, mas
naquilo que no objeto é pura significação. (AGAMBEN, 1992, p. 147).