Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Religião
Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser
2015
Copyright © UNIASSELVI 2015
Elaboração:
Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser
100
L685f Leyser, Kevin Daniel dos Santos
406 p. : il.
ISBN 978-85-7830-918-3
1. Filosofia.
I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.
Apresentação
Caro(a) acadêmico(a), o presente Caderno de Estudos tem como
objetivo sistematizar os elementos básicos da disciplina de Filosofia Geral
e da Religião, o qual proporcionará um contato com os principais tópicos,
autores e obras da área, além dos instrumentos necessários, não apenas para
acompanhar a disciplina ofertada, mas também para os estudos autônomos
posteriores.
Há, certamente, valor em ter um autor de uma obra como esta que
forneça suas próprias opiniões, argumentos e conclusões sobre temas
controversos como muitos daqueles discutidos em filosofia da religião; no
entanto, esta não é a nossa intenção neste trabalho. Pelo contrário, estamos
nos esforçando para ser não partidários, pelo menos até onde isso é possível
em um trabalho que abrange temas tão empolgantes e polêmicos como estes.
Tentamos evitar de apresentar os nossos próprios pontos de vista e conclusões
às questões e, em vez disso, apresentar o mais claro e conciso possível, as
principais posições, argumentos a favor e refutações contra os temas centrais
no campo da Filosofia da Religião na atualidade. Claro que, a própria seleção
de temas e os argumentos e refutações escolhidos irão refletir nossas próprias
inclinações e tendências, em certa medida, mas a nossa intenção foi a de ser
imparcial.
IV
Como a maioria dessas reivindicações conflitam uma com as outras, a
próxima pergunta a ser explorada é como se deve, filosoficamente, abordar
esses conflitos. Este tópico também considera a tarefa de avaliar os sistemas
religiosos, os possíveis critérios para a realização dessas avaliações, bem como
a importância da tolerância religiosa.
VI
UNI
Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades
em nosso material.
O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação
no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir
a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.
Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.
VII
VIII
Sumário
SUMÁRIO
IX
4 A ANÁLISE DA EXISTÊNCIA ........................................................................................................... 63
5 OS OBJETOS NÃO EXISTENTES .................................................................................................... 67
6 OS OBJETOS “MEIO-EXISTENTES” ............................................................................................... 69
7 OS LIMITES DA EXISTÊNCIA ......................................................................................................... 71
8 POR QUE QUALQUER COISA EXISTE? ........................................................................................ 74
RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 76
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 78
X
4.2.2 O pluralismo aspectual conduz ao ceticismo ..................................................................... 153
5 O RELATIVISMO RELIGIOSO ......................................................................................................... 154
5.1 UMA DESCRIÇÃO INADEQUADA DAS CRENÇAS RELIGIOSAS REAIS ......................... 155
5.2 O RELATIVISMO É INCOERENTE .............................................................................................. 155
6 AVALIANDO OS SISTEMAS RELIGIOSOS ................................................................................. 156
6.1 CONSISTÊNCIA LÓGICA ............................................................................................................ 157
6.2 A COERÊNCIA DE TODO O SISTEMA ...................................................................................... 158
6.3 A CONSISTÊNCIA COM O CONHECIMENTO EM OUTROS CAMPOS ............................ 158
6.4 RESPOSTAS RAZOÁVEIS ÀS QUESTÕES HUMANAS FUNDAMENTAIS ........................ 159
6.5 A PLAUSIBILIDADE EXISTENCIAL ........................................................................................... 159
7 TOLERÂNCIA RELIGIOSA ............................................................................................................... 160
RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 162
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 163
XI
e elimina a necessidade de um início do universo . ............................................. 204
4.2.1.2 Objeção 2: o universo é infinito, e assim a segunda lei da termodinâmica não
se aplica ao universo como um todo ..................................................................... 204
4.2.2 Evidência 2: a teoria do big bang . .............................................................................. 204
4.2.2.1 Objeção: alternativas para o big bang ..................................................................... 206
4.3 A CAUSA DO UNIVERSO É UM DEUS PESSOAL? ................................................................. 206
5 UM ARGUMENTO COSMOLÓGICO PARA O ATEÍSMO ........................................................ 207
5.1 OBJEÇÃO 1: A SINGULARIDADE NÃO É ONTOLOGICAMENTE REAL . ........................ 208
5.2 OBJEÇÃO 2: DEUS NÃO É LIMITADO POR LEIS OU PELA FALTA DELAS PARA .
REALIZAR OS PROPÓSITOS DIVINOS ............................................................. 209
5.3 OBJEÇÃO 3: A HIPÓTESE TEÍSTA DA CRIAÇÃO É MAIS SIMPLES E,
PORTANTO, MAIS PROPENSA A SER VERDADE DO QUE A HIPÓTESE ATEÍSTA ....... 209
RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 211
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 212
XII
2.1 O MAL NATURAL E O MAL MORAL ........................................................................................ 257
2.2 O MAL HORRENDO E GRATUITO . ........................................................................................... 257
3 Problemas teóricos do mal .................................................................................................................. 260
3.1 O problema lógico do mal .............................................................................................................. 260
3.1.1 Resposta 1 – o argumento “impossível de provar o contrário” ...................................... 261
3.1.2 Resposta 2 – A defesa do livre-arbítrio ................................................................................ 262
3.2 O PROBLEMA PROBABILÍSTICO OU EVIDENCIAL DO MAL ............................................ 264
3.2.1 O problema probabilístico ..................................................................................................... 264
3.2.1.1 Resposta 1 – o lapso de Leibniz ................................................................................ 265
3.2.1.2 Resposta 2 – Não há o melhor de todos os mundos possíveis ............................. 266
3.3 O ARGUMENTO EVIDENCIAL DE ROWE ............................................................................... 266
3.3.1 Objeção 1 - Limitações epistêmicas cognitivas ................................................................... 267
3.3.2 Objeção 2 - Deus pode usar o sofrimento e o mal para nosso bem maior . .................... 267
3.2.3 Objeção 3 - O mal gratuito é consistente com o teísmo ..................................................... 267
4 O PROBLEMA EXISTENCIAL DO MAL ....................................................................................... 268
4.1 RESPOSTA ........................................................................................................................................ 268
5 AS TRÊS TEODICEIAS ....................................................................................................................... 269
5.1 A TEODICEIA DO LIVRE-ARBÍTRIO DE AGOSTINHO ......................................................... 269
5.1.1 Objeção ..................................................................................................................................... 270
5.2 A TEODICEIA IRINEANA OU DA “FORMAÇÃO DA ALMA” DE HICK . ......................... 271
5.2.1 Objeção ..................................................................................................................................... 272
5.3 UMA TEODICEIA DO PROCESSO .............................................................................................. 272
5.3.1 Objeções . .................................................................................................................................. 273
RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 275
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 276
XIII
5.1 UMA COMPREENSÃO PSICOLÓGICA DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ........................... 313
5.2 UM ENTENDIMENTO NEUROCIENTÍFICO DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA .................. 314
RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 316
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 317
XIV
UNIDADE 1
FILOSOFIA GERAL E A
INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em seis tópicos e no final de cada um deles você
encontrará atividades que reforçarão o seu aprendizado.
1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos nos concentrar na proposta de uma introdução à
investigação filosófica, ao pensamento e o fazer filosófico. Para isso, vamos
primeiramente elucidar como surgem os questionamentos da filosofia,
diferenciando-os de outros campos de investigação.
3
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
central de uma introdução à filosofia geral. Uma disciplina de filosofia geral visa,
entre outros objetivos periféricos, introduzir o acadêmico às questões centrais da
investigação filosófica. Em outros termos, a Filosofia Geral visa nos mostrar como
se faz filosofia. Então, o mais importante não são os tópicos particulares e, sim,
entender a disciplina da filosofia, como ela funciona, os tipos de considerações
que ela aborda ao discutir estes tópicos, e assim por diante. Em parte, nossa
proposta também difere de outras, pois em cada tópico não iremos abordar o
assunto diretamente, desde o início, pressupondo que você irá entender o porquê
e de que maneira as questões filosóficas distintivas podem ser levantadas. Vamos
preparar o terreno, explicando porque e de que forma as questões dão origem às
preocupações distintamente filosóficas, ou seja, vamos destacar a razão pela qual,
após termos pensado sobre as questões em todas as maneiras habituais, cotidianas
e científicas, poderíamos ainda supor que há algo mais a ser dito.
Por exemplo, por que depois de olhar para a anatomia do olho e sua rota
para o cérebro, e observar casos em que as pessoas sofrem de ilusões e veem coisas
que não estão realmente lá, supomos que há questões adicionais que possam ser
levantadas sobre a questão da percepção? Bem, a pista aqui é a palavra “olhar”, na
frase anterior. Suponha que imaginássemos o seguinte: como podemos ter certeza
sobre qual seria o modo, se é que há algum, em que as coisas parecem para o
nosso olhar do mesmo modo como elas realmente são. Nesse caso, seria inútil
recolher mais evidências com base em como as coisas parecem, o que seria circular,
pois exatamente o que está em questão é se o como as coisas parecem nos diz
com precisão como as coisas são. Seria como tentar checar a veracidade de uma
manchete de jornal através da compra de outra cópia do mesmo documento.
Estes são apenas alguns exemplos. Esperamos que eles lhes ofereçam o
sabor da ideia de que quando muitos ou todos os fatos são conhecidos ou acordados
sobre as questões analisadas aqui, ainda existem questões vitais que podem ser
levantadas.
Cada tópico desta primeira unidade deste caderno de estudos fará você
pensar filosoficamente sobre o assunto em questão, mostrar-lhe-á as formas com
que este tem sido considerado, permitindo que você saiba o que está acontecendo,
o que esperar, e qual caminho explorar. De modo que você possa, em seguida,
partir para ler com maior compreensão as próximas duas unidades deste caderno
de estudos, que introduzirão temas específicos de Filosofia Aplicada à Religião.
Assim como, realizar leituras mais difíceis e mais aprofundadas, conforme as
sugestões que faremos em cada tópico e na lista de referências bibliográficas.
Como já foi dito, esta primeira unidade aborda algumas questões centrais
que surgem na filosofia. Cada tópico explica de que maneira há preocupações
distintamente filosóficas que podem ser levantadas. O termo "questões", ou
assuntos, é usado ao invés de "problemas", porque uma resposta possível dada
por alguns filósofos tem sido a de negar, ao examinar tais questões, que haveria
problemas filosóficos reais envolvendo-as. É altamente característico da filosofia
refletir desse modo sobre o que está fazendo, e não apenas continuar a fazê-lo. É
comum o obrar filosófico dar um passo atrás e considerar se o que está fazendo é,
na sua totalidade, a maneira certa de fazer as coisas. Por analogia, imagine que você
está tentando abrir uma porta, e na tentativa de fazer isso, você percebe que a chave
não está girando a fechadura; você se debate continuamente, mexendo inutilmente
com a chave, lubrificando a fechadura, tentando chaves diferentes, só para então
descobrir que a maçaneta da porta não estava trancada. Você simplesmente não
tinha pensado nisso; você pensou o tempo todo, tinha assumido, que a porta estava
trancada, quando na verdade você poderia apenas ter atravessado a porta sem
nenhum esforço. O "problema da porta trancada" era espúrio, como um problema
de porta trancada; havia uma questão quanto à forma de abrir a porta, mas não
havia problema, uma vez que foi considerado o modo certo.
5
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
Claro, há também uma posição parcial: alguém pode decidir que apenas
algumas das questões, quando examinadas, levantam problemas filosóficos
genuínos, mas outras não o fazem. Pode-se dizer também que na identificação de
problemas filosóficos aparentes, suscitados pelas questões centrais que a filosofia
geralmente aborda como problemas filosóficos não verdadeiros, estaríamos
tornando o trabalho dos filósofos obsoleto, e isto é um ponto relevante. Deve-
se ressaltar que, para a maioria dos filósofos, todas as questões desta unidade, e
por consequência deste caderno de estudos como um todo, levantam problemas
genuínos que exigem soluções que são distintamente assuntos para a filosofia, de
modo que eles não podem ser eliminados ou exportados para as ciências.
NOTA
6
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA E AS QUATRO VIRTUDES FILOSÓFICAS
7
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
certa a fazer. Mas para ser um filósofo, para pensar sobre suas próprias crenças
filosoficamente, é necessário tornar tais crenças próprias por meio do pensar,
através dos argumentos a favor e contra, e isso só é possível por si mesmo. A
filosofia é sobre o chegar às próprias ideias pela avaliação crítica da variedade de
argumentos para elas de uma forma flexível e de mente aberta. Aceitar ideias com
base em mera autoridade examinada ou por causa de sua longevidade não é bom
o suficiente.
Considere, portanto, que você não está sozinho neste pensamento. Você pode
construir sobre as ideias de centenas de filósofos que pensaram sobre as mesmas
questões básicas. Em sentido figurado, ao nos conectarmos com a tradição cultural
filosófica, obtemos um “cérebro muito maior”. Ser filosófico não significa que você
tem que pensar sobre as coisas a partir do nada e sem ajuda. Se, entretanto, você
perceber este prospecto de pensamento aberto como algo perturbador, assustador,
uma espécie de mergulho em um inesgotável mar inseguro de ideias, você poderá
pensar que esse empreendimento lhe fará infeliz. Talvez a sua felicidade, sendo
imperturbável, é mais importante para você. Ninguém garantiria que a filosofia
traz felicidade. Mas antes de optar por “contentamento bovino”, vale a pena
considerar o seguinte aviso. Extrair suas crenças a partir da mera confiança nas
formas de pensar que, por força do acaso, encontram-se à sua volta, formas de
pensar que talvez ninguém tenha totalmente ponderado nem avaliado as suas
8
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA E AS QUATRO VIRTUDES FILOSÓFICAS
razões com uma mente aberta, poderia muito bem conduzi-lo a acreditar em coisas
que lhe deixarão na mão, e o fazem assim porque no final elas são simplesmente
falsas ou mal examinadas. Tal confiança ingênua seria um pouco como conduzir
um carro, do qual nada se sabe, por uma longa distância. Será que você realmente
quereria dirigir um carro sem verificar os freios em primeiro lugar? Na maior
parte do tempo as crenças pobremente justificadas, superficialmente pensadas ou
falsas, parecem não importar. Mas, há momentos em que tais ideias são postas à
prova por circunstâncias, como se algo corresse na frente do carro e, em seguida,
encontramos terríveis consequências.
5 DISTANCIAMENTO E COMPREENSÃO
O objeto de estudo da filosofia se reflete nos títulos dos tópicos desta
primeira unidade do caderno de estudos, tais como: Conhecimento, Verdade,
Existência, Mente e Consciência, Self e Identidade Pessoal. Outras questões
gerais de estudo da filosofia, que não poderemos ver aqui por nos limitarmos em
somente uma unidade, são assuntos como: Percepção, Realidade e Pensamento,
Valor Ético, Escolha Ética, Liberdade, Valor Artístico, Estado, Verdades a Priori,
Ação, Linguagem e Significado, Modalidade, Investigação Científica, Causalidade
e Leis da Natureza, Livre Arbítrio, Existência de Deus, entre outros. Alguns destes
últimos, como a “Existência de Deus” e o “Livre Árbitro”, veremos nas próximas
duas unidades deste caderno de estudos, ao discutirmos questões de Filosofia da
Religião. De qualquer modo, a filosofia visa obter uma compreensão fundamental
e geral dos problemas levantados por estas questões.
9
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
Dado que agora temos uma noção de como a filosofia vai tratar das
questões, a próxima pergunta que pode ocorrer é por que a filosofia toma para
si essas questões. Novamente, a resposta não é muito difícil de encontrar. Há
muitas questões que sentimos que temos de lidar com elas e resolvê-las em nossas
vidas, tanto para o nosso próprio bem como para o bem dos outros. Esse lidar
envolve chegar ao que pensamos ser um posicionamento justificável sobre elas.
Mas, algumas questões são mais fundamentais e mais importantes do que as
outras, e elas assim o são por virtude das amplas implicações da visão que temos
sobre elas. Assim como, da maneira em que elas estão envolvidas nas formas mais
fundamentais de pensarmos sobre o mundo e nós mesmos. Isto é parcialmente
refletido nos grandes conceitos abstratos em que as questões são expressas, como
o “self”, o "livre-arbítrio" e a "liberdade".
10
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA E AS QUATRO VIRTUDES FILOSÓFICAS
Como uma espécie de resumo, aqui é o que poderíamos dizer serem quatro
virtudes filosóficas, as quais incentivamos que você desenvolva:
1. Pense por si mesmo e permita que seus pontos de vista sejam orientados pela
avaliação crítica do leque de argumentos genuínos a favor e contra eles, e
aprenda com o que outros, que pensaram profundamente sobre essas questões,
disseram.
11
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
2. Esteja preparado para questionar pontos de vista mesmo quando eles pareçam
óbvios, sejam acreditados por muitos outros, tenham sido acreditados por um
longo tempo, ou sejam crenças que lhe são de alta estima ou mantidas pelo
hábito.
3. Mantenha uma mente verdadeiramente aberta pela disposição de mudar
seus pontos de vista de acordo com a procedência dos argumentos e não seja
encurralado em um canto defendendo uma posição dogmática, mesmo quando
sinta que o argumento está correndo contra você.
4. Reconheça que uma pessoa inteligente e honesta pode ter uma visão diferente
ou oposta à sua.
7 LEITURA ADICIONAL
Entre as introduções gerais, um livro altamente acessível e inteligente é
Pense, de Simon Blackburn (2001). Outra excelente introdução que abrange todos os
tipos de tópicos importantes, e mostra como eles podem ser tratados filosoficamente
e como os argumentos sobre eles podem ser construídos é o Elementos Básicos de
Filosofia, de Warburton (2007). Outra introdução às questões filosóficas, mas que
utiliza uma abordagem a partir dos filósofos clássicos, é o livro de James Rachels
(2009), Problemas da Filosofia.
12
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA E AS QUATRO VIRTUDES FILOSÓFICAS
13
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico você viu que:
A Filosofia Geral visa nos mostrar como se faz filosofia, como ela funciona, os
tipos de considerações que ela aborda ao discutir tópicos específicos.
Muitas questões não podem ser respondidas pela mera reunião de fatos, pelo
contrário, necessitam ser decididas pela avaliação de argumentos que vão além
dos fatos, argumentos que são de caráter filosófico. Pois, quando muitos ou
todos os fatos são conhecidos ou acordados sobre algumas questões analisadas,
ainda existem questões vitais que podem ser levantadas.
É comum o obrar filosófico dar um passo atrás e considerar se o que está fazendo
é, na sua totalidade, a maneira certa de fazer as coisas.
A maioria dos filósofos pensa que muitas questões, de fato, levantam problemas
filosóficos genuínos que têm de ser resolvidos, necessitando, assim, serem
solucionados e não dissolvidos pela exposição do erro de nossa abordagem ao
pensar que existe um problema.
Para ser um filósofo, para pensar sobre suas próprias crenças filosoficamente,
é necessário tornar tais crenças próprias por meio do pensar, através dos
argumentos a favor e contra, e isso só é possível por si mesmo.
14
com base em mera autoridade examinada ou por causa de sua longevidade não
é bom o suficiente.
15
AUTOATIVIDADE
16
UNIDADE 1
TÓPICO 2
A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO
1 INTRODUÇÃO
17
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
realmente não conhecia de fato). Todos poderiam alegar também que não há muito
mais para o conhecimento do que meramente uma crença verdadeira.
NOTA
Alguns, mais notavelmente Williamson (2000), têm argumentado que esta tarefa
não pode ser concluída, e, portanto, que devemos considerar o conhecimento como não
analisável. Para ver uma discussão mais aprofundada do pensamento de Williamson, verifique
o artigo de Rodrigues (2012), disponível no seguinte endereço eletrônico: <http://www.
repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/3480/1/2012_Art_LERodrigues.pdf>. Outros são mais otimistas
a esse respeito, como veremos em breve.
18
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO
3 OS CASOS DE TIPO-GETTIER
19
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
NOTA
O exemplo do relógio parado vem de Russell (1958), embora ele mesmo não
reconheça que fora um exemplo de crença verdadeira justificada em que não é um caso de
conhecimento.
Esses casos são chamados de casos de "Tipo-Gettier", uma vez que foram
formulados pela primeira vez como uma objeção à explicação tripartite em um
artigo famoso escrito por Edmund Gettier (1963). Há uma receita para a criação
de tais casos. Em primeiro lugar, tomemos uma crença que é formada de uma
maneira que, normalmente, resultaria em uma crença falsa (por exemplo, neste
caso, uma crença que é formada por olhar para um relógio parado). Em seguida,
você configura o caso em que o agente tenha bons motivos citáveis em favor de sua
crença (por exemplo, neste caso, Edmundo tem excelentes razões para considerar
que a hora é realmente 8h20min). Finalmente, você adiciona o detalhe posterior de
que a crença assim formada, por acaso, é verdadeira.
20
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO
Aqui está um segundo exemplo que ilustra esta receita para casos de tipo-
Gettier. Imagine um fazendeiro, que chamaremos de "Pedro", que está olhando
para um campo e vê o que parece ser uma ovelha. Baseado nisso, Pedro passa
a acreditar que há uma ovelha no campo. Porém, o que ocorre é que o que ele
está olhando não é uma ovelha, mas simplesmente um cão grande e peludo que
se parece com uma ovelha. Comumente, então, se fosse para formar essa crença
baseados nisso, acabaríamos com uma crença falsa. No entanto, Pedro tem
excelentes motivos em favor de sua crença, o cão grande e peludo de fato se parece
muito com uma ovelha, e ele não tem nenhuma razão para duvidar do que vê.
Além disso, a crença de Pedro é verdadeira, uma vez que existe uma ovelha no
campo escondida da sua vista por trás do cão grande e peludo. Pedro tem, assim,
uma crença verdadeira justificada que não conta como conhecimento (uma vez
que não se pode vir a saber que há uma ovelha no campo simplesmente olhando
para um cão grande e peludo). (CHISHOLM, 1969).
21
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
4 O PARADOXO DA LOTERIA
Existe outro tipo de exemplo, que ilustra que as exigências impostas por
estas platitudes são distintas. Imagine uma loteria justa com probabilidades de
acerto extremamente pequenas (uma em um bilhão, digamos). Agora, suponha
que o nosso agente, vamos chamá-lo "Lotérico", está na posse de um dos bilhetes
para esta loteria, um bilhete que de fato é um bilhete perdedor (embora o Lotérico
não tenha qualquer ideia disso, ainda). O Lotérico pensa consigo mesmo, que uma
vez que as probabilidades contra ele ganhar são tão altas, o bilhete deve ser um
bilhete perdedor. Baseado nisso, ele forma a crença (verdadeira) de que ele perdeu
na loteria e assim rasga o bilhete.
NOTA
22
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO
A fim de entender isso, perceba que o que está errado com a crença
verdadeira do Lotérico, de que ele perdeu ao basear-se na consideração das
probabilidades envolvidas, é que tal crença muito facilmente pode ser errada.
Imagine, por exemplo, que o Lotérico estivesse em posse do bilhete premiado.
No entanto, formou do mesmo modo a sua crença sobre o fato de seu bilhete
ser perdedor. Nesse caso, ele teria formado uma crença falsa através do mesmo
método. As coisas são diferentes quando se trata de formar sua crença observando o
resultado em um jornal confiável. Isso ocorre porque, se o Lotérico tivesse ganhado
na loteria, então nós esperaríamos que o Lotérico formasse uma crença verdadeira
através deste método. Afinal, se o Lotérico tivesse ganhado, então os resultados
teriam sido publicados no jornal confiável, resultados que corresponderiam aos
números em seu bilhete.
23
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
Um problema que esta proposta enfrenta é que está longe de ser óbvio que
pensemos que, a fim de obter conhecimento, devamos estar justificados no que
acreditamos, pelo menos se por "justificação" aqui queremos dizer que o agente em
causa seja capaz de citar bons fundamentos em favor do que acredita. Para elucidar
melhor, considere o seguinte caso: Imagine que o nosso agente, vamos chamá-lo
de "Pintainho", possui uma capacidade altamente confiável para dizer a diferença
entre pintos machos e fêmeas. Pintainho acredita que ele está distinguindo os
pintinhos usando sua visão e tato, mas vamos estipular que ele esteja enganado a
este respeito e que ele está realmente fazendo isso através da sua olfação. Suponha
ainda que o Pintainho não tenha nenhuma boa razão para pensar que ele é confiável
a esse respeito. Por exemplo, talvez a razão pela qual ele acredita que é confiável é
porque ele acreditou em alguém que lhe disse isso, mas essa pessoa estava de fato
tentando enganá-lo a esse respeito, todavia, acidentalmente lhe disse a verdade.
Deve ficar claro que o Pintainho é incapaz de oferecer quaisquer boas razões em
favor do que ele acredita. No entanto, está longe de ser óbvio que Pintainho não
saiba que, por exemplo, os dois filhotes que ele tem em suas mãos são de gêneros
diferentes. Afinal, ele realmente tem uma capacidade altamente confiável para
diferenciar as duas. Além disso, dado que ele tem essa capacidade, não é uma
questão de sorte que sua crença seja verdadeira, ele não poderia facilmente ter-se
enganado e, assim, ele satisfaz as restrições estabelecidas tanto pela platitude da
capacidade e da antissorte, embora ele não tenha nenhuma justificativa para a sua
crença.
Intuições sobre o que dizer sobre tais casos diferem amplamente, com
alguns epistemólogos argumentando que Pintainho carece de conhecimento e
outros argumentando que ele possui conhecimento. Se você pensa que Pintainho
tem conhecimento, então a conclusão a que chegou é que podemos satisfazer as
restrições estabelecidas pela platitude da capacidade e da antissorte sem cumprir
com a condição de justificação. Em particular, parece que se pode satisfazer a
platitude da capacidade sem satisfazer a condição de justificação, de tal forma
que é apenas a satisfação da primeira que é essencial para o conhecimento. Deste
ponto de vista, então, a conclusão que se deve tirar é que o conhecimento deve ser
definido como crença verdadeira não-por-sorte que é o produto da capacidade/
habilidade. Em contraste, se você acha que o Pintainho carece de conhecimento,
então você está empenhado em sustentar que há, pelo menos às vezes, mais para
o conhecimento do que uma crença verdadeira não afortunada, ou não acidental,
que seja o produto da capacidade.
24
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO
DICAS
DICAS
vez de conhecimentos de baixo nível. Neste sentido, seria melhor ser como o
Pintainho, mas ter uma justificativa para a crença-alvo ao invés de ser como o
Pintainho e carecer de uma justificação. Talvez, então, a escolha entre externalismo
e internalismo na epistemologia não é tão rígida como parece à primeira vista.
6 A EPISTEMOLOGIA ANTISSORTE
DICAS
NOTA
Nesta visão, mesmo que possa ser epistemicamente vantajoso o fato de ter
justificativas para uma crença, pois as crenças justificadas são mais propensas a
serem crenças formadas de maneira confiável, estas não são essenciais, uma vez
que o que é importante é apenas que a crença seja formada de maneira confiável.
Por exemplo, esse ponto de vista, de acordo com outras propostas externalistas
sobre conhecimento, pode admitir que o Pintainho tenha conhecimento, pois a sua
crença, afinal de contas, está sendo formada de uma maneira confiável.
27
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
7 A EPISTEMOLOGIA DA VIRTUDE
Considerando que o confiabilismo não é atraente como uma explicação
do conhecimento, há uma visão intimamente relacionada, que mantém muito do
espírito do confiabilismo, mas que não é suscetível a alguns dos mesmos problemas.
Este ponto de vista é conhecido como a epistemologia da virtude (SOSA, 2013a).
A forma mais básica da epistemologia da virtude mantém, em essência, que o
conhecimento é uma crença verdadeira não-por-sorte, que é formada através de
habilidades cognitivas confiáveis do
agente.
DICAS
Ver, por exemplo, John Greco (1999), que descreve este tipo de epistemologia
da virtude como “confiabilismo do agente”. Verifique também a dissertação de Santos (2013)
para aprofundar a reflexão da influência de Ernest Sosa na proposta de John Greco e de Linda
Zagzebski.
28
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO
NOTA
29
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
É importante ser claro sobre a alegação que está sendo feita aqui. A tese não
é, por exemplo, que Jeniffer não está exercendo as suas capacidades cognitivas de
algum modo relevante, ou seja, este exemplo não é um contraexemplo à platitude
da capacidade (esta, na verdade, é a moral que Lackey (2007) extrai a partir deste
exemplo). Afinal, a fim de manter a intuição de que Jeniffer tem conhecimento
neste caso, temos de supor que ela de fato está exercendo uma grande quantidade
de juízo. Por um lado, seria de se esperar que ela fosse exigente sobre quem ela
pedisse direções, ou seja, se a primeira pessoa que ela encontrasse tivesse sido uma
criança pequena ou alguém que era claramente um turista, então esperaríamos
que ela encontrasse outro informante potencial. Por outro lado, seria de esperar
que Jeniffer exercesse uma discriminação quando tratasse de avaliar a verdade do
testemunho fornecido a ela pelo informante. Se este testemunho fosse claramente
falso, por exemplo, então poderíamos esperar que ela iria reconhecer isso e ignorá-
lo-ia em conformidade.
condições cognitivas (por exemplo, uma boa iluminação etc.), e baseado nisso forma
a crença de que existe um celeiro em sua frente. Suponha ainda que João tem muitas
habilidades cognitivas relevantes que estão trabalhando para permitir-lhe formar
essa crença e que sua crença também é verdadeira, ele está de fato olhando para
um celeiro. Aqui está a reviravolta. Imagine que, sem o conhecimento de João, ele
está em um "condado com celeiros de fachada", um condado onde todos os objetos
em forma de celeiro, exceto aquele que ele está no momento olhando, não são de
fato celeiros em absoluto, mas fachadas (talvez, por exemplo, há algum elaborado
cenário de filme faroeste). Se João estivesse olhando para uma destas falsificações,
então, ele teria formado a falsa crença de que o que ele está olhando é um celeiro,
ao invés da crença verdadeira que ele realmente formou. Será que João sabe que o
que ele está olhando é um celeiro? Certamente não. Sua crença verdadeira, afinal
de contas, é simplesmente de muita sorte para contar como conhecimento desde
que ele poderia muito facilmente ter se enganado a esse respeito. Note, no entanto,
que a verdade da crença de João, enquanto devido à sorte, parece ser por causa de
suas habilidades cognitivas, pois são estas habilidades cognitivas que o levaram a
formar uma crença verdadeira.
NOTA
Este exemplo é devido a Carl Ginet, mas apareceu pela primeira vez na imprensa
em Goldman (1976).
Podemos destacar ainda mais este ponto, observando que o tipo de sorte
epistêmica em jogo neste caso é muito diferente daquela que está em jogo nos casos
padrão de tipo-Gettier. Em casos de tipo-Gettier, como é o caso descrito acima
envolvendo Pedro, é plausível supor que a verdade da crença do agente não é por
causa de suas habilidades cognitivas, e a razão para isso é que algo se interpõe
entre a crença do agente e suas habilidades cognitivas, ainda que de tal maneira
que não impede o agente de ter uma crença verdadeira. No caso de Pedro, por
exemplo, suas habilidades cognitivas não se prendem ao alvo de sua crença, a
ovelha no campo, em absoluto, mas em vez disso são extraviadas pelo cão grande e
peludo que está de pé em frente à ovelha. Toda sorte de tipo-Gettier é desta espécie
de "intervenção".
Daqui resulta que se pode ter uma crença verdadeira que é por causa da
capacidade cognitiva do agente e ainda faltar conhecimento. Mais uma vez, então,
descobrimos que precisamos respeitar tanto a platitude da antissorte como a
platitude da capacidade.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Perante os desafios expostos aqui, a investigação filosófica do conhecimento
nos conduz à versão menos robusta da epistemologia da virtude. Esta, ao menos
até o ponto que chegamos, é a explicação mais acertada, o conhecimento é crença
verdadeira não por questão de sorte e que é o produto de habilidades cognitivas
confiáveis do agente. Temos, assim, respondido uma das questões centrais da
epistemologia: "O que é o conhecimento?". Observe, entretanto, que deixamos
muitas questões mais centrais da epistemologia sem resposta. Por exemplo, por
que o conhecimento tem essa estrutura? Apesar de tudo, está longe de ser óbvio
porque o conhecimento deve ter estas propriedades. Uma questão relacionada a
este respeito concerne à razão pela qual nós consideramos o conhecimento como
uma noção filosófica tão importante, uma questão que podemos esperar que
nossa análise do conhecimento possa lançar alguma luz. E talvez uma questão
epistemológica ainda mais premente que não engajamos aqui é a questão de saber
se temos algum conhecimento.
32
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico você viu que:
33
Não é na confiabilidade per se que estamos interessados quando se trata de
conhecimento, mas sim o tipo específico de confiabilidade que está diretamente
ligada à capacidade cognitiva do agente.
Pode-se ter uma crença verdadeira que é por causa da capacidade cognitiva
do agente e ainda faltar conhecimento. Precisamos, portanto, respeitar tanto a
platitude da antissorte e a platitude da capacidade.
34
AUTOATIVIDADE
35
36
UNIDADE 1
TÓPICO 3
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico nosso objetivo é explorar a questão da verdade pela perspectiva
filosófica. O nosso foco será mais na abordagem analítica do tema, já que vimos,
em aspecto mais geral, a abordagem epistemológica no tópico anterior.
37
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
NOTA
NOTA
A partir de agora, nós usaremos “sse” como uma abreviação para “se, e somente
se”.
(D1) A é verdadeiro sse A diz que tal e tal é o caso, e tal e tal é o caso.
39
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
"declaração aceita com base na observação". Isto não é o que queremos dizer, pois
tais declarações podem ser falsas e, portanto, não corresponderiam a nenhum fato.
Normalmente, os portadores de verdade e os fatos são tidos como tipos distintos
de entidades.
NOTA
Considere a declaração "Brasília está ao norte de São Paulo". Uma vez que
é verdadeira, o fato correspondente poderia ser algo como Brasília-estar-ao-norte-
de-São-Paulo. Este é um "complexo", cujos constituintes são Brasília, São Paulo,
e a relação ao-norte-de. Em linguagem moderna, tais complexos são chamados
de estado de coisas. Nem todo estado de coisas é um fato; pois alguns estados de
coisas obtêm (correspondem ao mundo atual), alguns não. (Pode-se pensar que
não há estados de coisas que não obtêm. Se assim for, os fatos são estados de
coisas, ponto).
E
IMPORTANT
Estado de coisas, conhecido também como situação, é uma forma que o atual
mundo precisa estar ordenado para fazer alguma dada proposição sobre o mundo atual ser
verdadeira. Assim, o estado das coisas seria o gerador das verdades, enquanto a proposição
seria o portador da verdade. Nesse sentido, o estado de coisas pode obter ou falhar em
obter, tornando as proposições verdadeiras ou falsas, respectivamente (TEXTOR, 2014). Para
aprofundar o tema dos fatos, como uma questão da investigação filosófica, veja Santos (2014).
Para aprofundar a compreensão de Estados de Coisas (states of affairs), verifique o termo em
Textor (2014).
Portador de Verdade:
"Brasília ao-norte-de São Paulo”
[correspondência] ⇓ ⇓
Estar-ao-norte-
Estado de coisas: Brasília ⇒ ⇒ São Paulo
de
Objeto Relação Objeto
FONTE: O autor
42
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE
NOTA
43
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
Tal visão, no entanto, tem problemas graves. Por exemplo, não está claro
como verificar as declarações sobre determinados temas, tais como moralidade ou
religião. O verificacionista pode considerar tais declarações como nem verdadeira
nem falsa, ou sem sentido. Também, não podemos verificar, por observação
direta, a afirmação "o período de um pêndulo varia com a raiz quadrada de sua
extensão", pois é uma generalização, e, portanto, requer indefinidamente muitos
experimentos. Além disso, algumas declarações aceitas com base na observação
são errôneas (considere a ilusão de Müller-Lyer, ver Figura 4). Além disso, essa
perspectiva implica que todas as verdades podem, em princípio, ser verificadas.
Mas talvez haja declarações, matemáticas, científicas ou históricas, que são
verdadeiras, mas que não são verificáveis, até mesmo em princípio. Por exemplo,
"Platão espirrou em seu aniversário de 30 anos". Ou isso ou a sua negação "Platão
não espirrou em seu aniversário de 30 anos" é verdade, mas ambas são verificáveis?
44
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE
A fim de lidar com essa objeção, a coisa mais óbvia a se fazer é incluir critérios
observacionais, combinando assim a teoria da coerência com o verificacionismo. Mas
ainda existem problemas. Mesmo que meu sistema de crenças atual, condicionado
pela experiência, é tão coerente quanto possível, experiências futuras podem levar
a novas revisões. E por que o meu sistema deve ser o mesmo que o seu sistema?
De alguma forma, temos de "agregar" estes sistemas, e considerar sua evolução no
futuro, sob as diretrizes da investigação racional.
45
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
46
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE
uma, o que é para "a neve é branca" ser verdadeira, para "os porcos podem voar"
ser verdadeira, e assim por diante.
Por que isso é um absurdo? A razão é que (D*) não implica as sentenças-T
correspondentes. Em outras palavras, não se pode mostrar, a partir de (D*), o que
se segue:
47
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
NOTA
Esta sentença T pode não ser trivial ou analítica para você. Será, no entanto,
trivial ou analítica para um falante português bilíngue que também fala alemão.
Se a metalinguagem contém a linguagem objeto, vemos o efeito do que é chamado
de "descitação":
48
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE
Por exemplo, suponha que L é uma linguagem com apenas duas sentenças,
X e Y, cujas traduções são "cães ladram" e "peixes nadam". Há apenas duas sentenças
T, nomeadamente,
49
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
50
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE
causais entre os falantes, as expressões que eles usam e o referente das expressões.
7 O DEFLACIONISMO
51
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
ATENCAO
1. Se João diz que os pinguins gingam, então os pinguins gingam; e se João diz que
os peixes nadam, então os peixes nadam; e se João diz que plástico é comestível,
então o plástico é comestível; ... e assim por diante.
52
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE
53
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
que quer que seja, suas falhas ou lacunas, não é inconsistente. Era parte da intenção
de Tarski desenvolver uma teoria consistente da verdade).
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este tópico cobriu uma porção de questões, e devemos pedir desculpas que
certas tecnicalidades lógicas tenham entrado à medida que nos movemos além do
material mais básico sobre as teorias correspondentistas e as teorias epistêmicas.
No entanto, isso é praticamente inevitável, como todo o trabalho importante
na filosofia a respeito da verdade, desde a década de 1960. Infelizmente, não
discutimos os debates sobre o significado, o relativismo/racionalismo, declarações
54
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE
DICAS
Como leitura adicional sugerimos o livro Kirkham (2003) e o livro de Dutra (2001).
Duas peças expositivas mais curtas são Haack (2002), especialmente o capítulo 7, e Glanzberg
(2014), no Stanford Encyclopedia of Philosophy on-line (http://plato.stanford.edu/entries/truth/),
que também tem vários artigos relacionados com a verdade. Outros livros expositivos são ao
de Blackburn (2006), Putnam (1992), Davidson (2002) e Engels e Rorty (2008).
55
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico você viu que:
Filósofos estão interessados no que significa dizer, de uma crença, afirmação
ou proposição, que ela é verdadeira. Ou seja, como é que o conceito de verdade
pode ser analisado? Chamamos isto de “Questão Analítica”.
Estado de coisas, conhecido também como situação, é uma forma que o atual
mundo precisa estar ordenado para fazer alguma dada proposição sobre o
mundo atual ser verdadeira. Assim, o estado das coisas seria o gerador das
verdades, enquanto a proposição seria o portador da verdade. Nesse sentido
o estado de coisas pode obter ou falhar em obter, tornando as proposições
verdadeiras ou falsas, respectivamente.
O deflacionismo alega que, dado que as sentenças-T são platitudes, uma sugestão
interessante é que o conceito de verdade é totalmente captado unicamente pelo
esquema-T. Se estiver correto, talvez nada mais, ou pouco mais, precisa ser dito.
O problema de verdade, assim, é deflacionado. Se isso é certo, a visão de que
a verdade tem qualquer tipo de “natureza”, exigindo uma análise metafísica, é
um erro filosófico – uma confusão.
57
AUTOATIVIDADE
I- A é verdadeiro sse A diz que tal e tal é o caso, e tal e tal é o caso.
II- A é verdadeiro sse A corresponde a um fato.
III- A é verdadeiro sse A é verificável, em princípio.
IV- A é verdadeiro sse A pertence ao sistema (de crenças) maximamente coerente.
V- A é verdadeiro sse A for aceito, no limite ideal da inquirição racional, por
qualquer um que investigue.
58
UNIDADE 1
TÓPICO 4
A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico a questão da existência aos olhos da investigação filosófica será
o nosso objetivo principal. Este tema é parte do campo da filosofia que chamamos
de Metafísica, que tem como um de seus principais ramos a ontologia.
2 OS ENIGMAS DA EXISTÊNCIA
Suponha que, um dia, alguém que está no lugar certo, na hora certa e com
todo o equipamento certo é capaz de estabelecer, para além de qualquer dúvida
razoável, que sob a superfície plácida do Lago Ness esconde-se um réptil enorme e
antigo, possivelmente uma besta perigosa, com um pescoço longo. Como pode tal
descoberta ser anunciada nos jornais? Muito provavelmente uma das manchetes
seria "O Monstro do Lago Ness Existe!". Praticamente todo mundo saberia o que
isso significaria. Ou suponha que uma equipe de físicos, ponderando os mistérios
do espaço, do tempo e do universo, se depara com uma solução para algumas
dificuldades de longa data em cosmologia e publicam, em um periódico científico
reconhecido, um artigo intitulado "Mundos Paralelos existem". Mais uma vez,
este anúncio seria amplamente entendido, pelo menos por aqueles que tivessem
apreendido o conceito de mundos paralelos. Ou suponhamos que um matemático,
tendo trabalhado por décadas em um teorema matemático por muito tempo
pensado impossível de se provar (chamá-lo-emos de "Teorema de Fermat"), se
depara finalmente com uma prova. "Claro, a prova já existia esse tempo todo", ele
poderia explicar a um público animado, "É só que ninguém a tinha descoberto!".
Mais uma vez, esta observação não criaria uma perplexidade generalizada.
59
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
E
IMPORTANT
Parece que nós sabemos o que se quer significar por "x existe", se o "x"
em questão é o monstro de Lago Ness, um mundo paralelo, ou uma prova de
um teorema matemático. No entanto, se nós realmente sabemos do que estamos
falando, isto é realmente um tanto enigmático. Porque estamos lidando aqui com
três tipos de coisas muito diferentes, e se nos pedissem para dizer apenas o que é
que estas têm em comum, em virtude da qual podemos dizer que todas existem,
nós provavelmente ficaríamos tateando por uma resposta. Portanto, temos aqui o
primeiro enigma da existência: O que significa dizer que algo existe?
O quarto enigma diz respeito aos itens que existem em algum sentido, mas
de uma forma menos “puro sangue” que você ou eu: sombras, buracos e imagens
especulares, coisas que poderíamos chamar de objetos "meio-existentes". Nós
estamos certamente falando de algo quando falamos sobre esses itens, e podemos
dizer coisas que são verdadeiras ou falsas deles (“a sombra está ficando mais
alongada”, “aquele buraco foi preenchido”, “a imagem especular do meu rosto faz
minha pinta aparecer no lado direito”), mas será que estas são coisas, exatamente?
60
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA
Considere casos em que nos perguntamos sobre o que de fato existe, que não
61
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
genéticas. Para um objeto físico existir (pode ser proposto) é necessário que
ocupe espaço. Para um número existir é necessário que seja incluível em cálculos
matemáticos. As respostas às questões comuns podem não ser sempre fáceis de
encontrar, mas elas não nos obrigam a envolver-nos em filosofia, e uma vez que
as temos respondido, então não precisamos fazer qualquer trabalho adicional
para responder às questões filosóficas. Desse modo a ontologia seria realmente
redundante.
4 A ANÁLISE DA EXISTÊNCIA
O que gostaríamos, idealmente, é um relato informativo do que é existir.
Uma abordagem natural para esta tarefa é perguntar como nós tipicamente nos
tornamos conscientes da existência de algo, e na maioria dos casos, isso ocorre
porque este algo colide direta ou indiretamente com nós de algum modo (a
mesinha de canto quando tropeçamos nela no escuro; a primeira estrela a aparecer
no anoitecer; um parente distante que acabamos de descobrir). Portanto, a nossa
primeira explicação da existência é a seguinte:
63
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
Um objeto existe se, e somente se, é possível para o mesmo que tenha
efeitos sobre outras coisas.
Assim, um objeto solitário ainda conta como existente. Mas isso ainda não
supera a objeção da circularidade, uma vez que, mesmo se os objetos que poderiam
ser afetados não existem realmente, eles devem ser possivelmente existentes. E há
outras preocupações também. Em primeiro lugar, há algo distintamente estranho
sobre a definição de uma qualidade real (existente) em termos do que é possível,
em vez de em termos do que é real. O que é a respeito da verdadeira natureza
deste objeto em virtude da qual ele pode afetar outras coisas? Segundo (e esta
preocupação também se aplica à primeira análise), se nós estamos procurando por
uma explicação da existência tão abrangente quanto possível, uma que permitiria,
ou pelo menos não excluiria automaticamente, objetos não físicos, tais como
números, então esta explicação não poderá servir. Pois os números são objetos
abstratos, não existentes no espaço e no tempo em absoluto: se eles de fato existem,
eles o fazem atemporalmente e não espacialmente.
64
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA
E
IMPORTANT
A ideia de que há coisas abstratas, para além do mundo dos sentidos, é um tema
dominante nos diálogos de Platão: ele as chama de “formas”, e elas incluem a beleza, a igualdade
e a justiça. Veja em particular os seguintes textos de Platão: A Apologia (2008a), o Fédon (2008b)
e A República (2001). Para Platão, não há conflito com o critério causal da existência, uma
vez que estas formas são fontes de conhecimento. A sugestão de que objetos abstratos são
causalmente inertes é característica de uma posição na metafísica contemporânea chamada
(talvez de um modo um pouco desviante) de “platonismo”. As Formas foram pretendidas para
explicar, entre outras coisas, o que as coisas tinham em comum, e o nome padrão para estas
propriedades compartilhadas e gerais é universais (expresso por termos como “vermelhidão”,
“redondidade” etc.). Para uma discussão sobre a indispensabilidade dos universais, consulte
Bertrand Russell, Os problemas da filosofia (2008), especialmente o capítulo 9 – “O mundo dos
Universais”. Um argumento para a existência de objetos abstratos é desenvolvido em Bob Hale
em Abstract Objects (1987), e a questão do status dos números é explorado em John Bigelow,
The Reality of Numbers (1988). Todas estas questões podem ser vistas na obra organizada por
Bruce e Barbone (2013).
65
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
NOTA
A razão oferecida com frequência é que, uma vez que descrevemos algo,
em termos, por exemplo, de algo ser vermelho, redondo e feito de madeira,
não acrescentamos nada à sua descrição dizendo que este algo existe. Isto não
ajuda a defini-lo mais precisamente. O que estamos dizendo, de fato, é que as
propriedades que acabamos de mencionar são todas exemplificadas (na verdade
coexemplificadas, isto é, exemplificadas pela mesma coisa). Como podemos
defender a análise contra esta objeção? Longe de ser inconsistente com o fato de
que "Pedro existe" não acrescenta nada à descrição de que “Pedro tem 180 cm de
altura, é canhoto, e está usando o perfume Paco Rabanne XS”, a análise realmente
explica isso. Porque, se a análise estiver correta, "Pedro existe" está, na verdade,
implicado por “Pedro tem 180 cm de altura...” (ou alguma outra descrição), e o que
está implicado por uma descrição não acrescenta nada a essa mesma descrição. Por
exemplo, uma vez que "a maçã é colorida" resulta de "a maçã é verde", a primeira
declaração não acrescenta nada à segunda. Entretanto, isto não nos levaria a
concluir que o ser colorido não é uma propriedade genuína.
66
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA
Podemos generalizar essa estratégia? Suponha que, um dia, Ana diz: "O
descobridor da prova do último Teorema de Fermat é um gênio". Acontece que
o último Teorema de Fermat ainda não foi provado (e vamos supor, para evitar
complicações, que nunca será), assim a Ana, na verdade, não referiu a uma pessoa
existente. Para dar sentido ao que ela disse, podemos propor a seguinte paráfrase:
"Há alguém que descobriu o último Teorema de Fermat e que é um gênio". Nós
agora removemos qualquer frase que pareça como se a sua função fosse a de
referir a uma pessoa específica. Termos como "Pedro" ou "o atual coordenador
do curso de Teologia" são utilizados para selecionar uma pessoa em particular.
Mas "alguém" (tal como em, por exemplo, "há alguém nesta sala") não é usado
nesta forma. Então, o que a Ana diz, ou melhor, seu conteúdo real, é totalmente
inteligível, embora, reconhecidamente, sua declaração seja falsa. Este tratamento
de declarações, aparentemente acerca de não existentes, foi proposto por Bertrand
Russell (1872-1970), em "Da Denotação" (1978).
Mas agora, veja o que esta estratégia faz com declarações como "Otelo, o
Mouro de Veneza, suspeita infidelidade por parte de sua esposa Desdêmona", "O
Pernalonga gosta de cenouras e é muito dado a dizer ‘O que é que há velhinho?’”,
“Bento Santiago pretende atar as duas pontas da vida e resgatar na velhice a
adolescência”, “Dom Quixote perdeu a razão", e assim por diante. Estas são
declarações sobre personagens fictícios, e nós comumente iríamos tratá-las como
verdadeiras. Mas se nós as parafrasearmos da maneira que nós parafraseamos as
declarações de Ana, obtemos: "Há uma pessoa chamada ‘Otelo’, que é Mouro de
Veneza, e que suspeita infidelidade por parte de sua esposa Desdêmona", "Há um
coelho que gosta de cenouras e que é muito dado a dizer ‘O que é que há velhinho?’”
etc. Mas estas declarações, implicando como elas fazem, que os personagens em
questão realmente existem, são falsas. Assim, parece que deveríamos distinguir entre
uma declaração como a de Ana, que é claramente baseada em uma crença errônea na
existência de um indivíduo, e uma declaração que é feita reconhecidamente sobre
um personagem fictício. Este segundo tipo de declaração poderia ser considerado,
67
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
não como uma afirmação, mas como uma pretensa afirmação feita no contexto
de um jogo de fazer de conta. Assim, enquanto assistimos a uma apresentação de
Otelo, podemos fingir que o que está acontecendo no palco não é meramente uma
representação de um marido ciumento, mas um caso real de um indivíduo assim,
e deste modo fingir que estamos nos referindo a ele.
Talvez nós podemos relacionar "Otelo não existe" ao tipo de declaração que
encontramos em críticas literárias, como "Otelo é um dos personagens trágicos
mais convincentes de Shakespeare" ou "Otelo representa um tema recorrente em
Shakespeare, aquele da natureza possessiva do amor". Neste tipo de declaração, o
status ficcional do personagem não está em questão, não são declarações que são
feitas dentro da ficção, ou que exigem qualquer pretensão, mas a referência parece
ser a um indivíduo específico. Uma abordagem para estas declarações críticas é
tratá-las como sendo sobre um objeto real, no entanto, um objeto abstrato, em vez
de um concreto. A expressão "Otelo", no contexto da crítica literária, funciona mais
como a expressão "o número dois" ou "a justiça", do que "Albert Einstein” ou "o
Coliseu de Roma". Se podemos estender este tratamento para "Otelo não existe",
então poderíamos representar o significado desta declaração como sendo que o
objeto abstrato nomeado aqui não é um objeto concreto (no sentido de que objetos
concretos fornecem o paradigma de coisas existentes).
68
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA
ATENCAO
6 OS OBJETOS “MEIO-EXISTENTES”
Há um grupo de objetos que satisfazem a análise “possuidora de
propriedades” da existência, mas para os quais não estaríamos dispostos a conceder
existência plena. Talvez um nome adequado, embora paradoxal, para esses objetos,
seria objetos "meio-existentes". Buracos, sombras e reflexos se enquadram nesta
categoria. Considere um buraco, por exemplo. Ele certamente tem propriedades,
tem certas dimensões, as coisas podem cair nele ou através dele, e ele tem um local
particular em relação a outros objetos. Mas o que é isso que chamamos de buraco,
exatamente? É uma região do espaço? Não, porque, mesmo se pensarmos que o
espaço existe como um objeto em si mesmo, independentemente das coisas que
ele contém, qualquer buraco que estivermos propensos a nos deparar estaria se
movendo através do espaço (como o resultado da rotação da Terra, por exemplo).
Na medida em que ele se move, ele permanece o mesmo buraco, mas diferentes
partes do espaço irão preenchê-lo. Além disso, as regiões do espaço teriam regiões
menores como partes, mas nunca poderíamos dizer que um buraco tem buracos! E
se nós não pensarmos no espaço como um objeto em si mesmo, mas apenas como
uma rede de relações espaciais entre as coisas, então não há nenhum objeto para
identificarmos com o buraco. De qualquer maneira, então, o buraco não é o mesmo
que uma parte do espaço.
69
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
imaginar depois de um tempo que as pedras são substituídas por tijolos. Desde
que o tamanho e a forma da abertura se mantenham exatamente os mesmos, esta
ainda não é a mesma entrada? Se assim for, observações semelhantes se aplicam a
outros buracos, então, parece que os buracos não dependem de objetos específicos,
mas sim de objetos que estão dispostos, arranjados, de uma certa maneira.
Esta é uma das questões favoritas entre aqueles que encontram a filosofia
pela primeira vez (o que não sugere que ela perca todo o interesse quando estiveres
estudando a filosofia durante anos) se uma árvore, por exemplo, continua a existir
quando ninguém a estiver olhando. Vamos dar a resposta do senso comum que,
claro, a árvore continua a existir, a sua existência não é de todo dependente de a
mesma ser percebida. É o mesmo que acontece com imagens especulares? Se você
está inclinado a dizer "não" a esta pergunta, então o resultado é outra diferença
entre essas imagens, por um lado, e os buracos e sombras por outro, e isso é que as
70
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA
imagens especulares são dependentes não apenas de outros objetos, mas também
de nossas mentes. Talvez nossas mentes sejam a verdadeira localização de tais
imagens. Se assim for, então podemos nos perguntar se elas realmente se encaixam
em nossa análise da existência.
Parece, portanto, que há objetos que não são de todo fictícios, mas são
logicamente dependentes de outros para a sua existência. Estes são, no entanto,
um grupo variado e nenhuma análise singular poderá capturar todos eles.
DICAS
7 OS LIMITES DA EXISTÊNCIA
Se o tipo de objetos que acabamos de discutir formam uma espécie de zona
crepuscular entre a existência e a não existência, os limites temporais da existência
formam outra. Quando é que uma pessoa morre? Quando o coração para de bater?
Quando o cérebro deixa de funcionar? Quando a consciência é permanentemente
perdida? Suponha que digamos: quando o cérebro deixa de funcionar. O que
marca isso, exatamente? Quando o último neurônio cessa seus disparos? Ou algum
tempo antes? Seja qual for o ponto de tomarmos como marcando o instante da
morte, descobrimos que não é um instante em absoluto, mas um processo que tem
fases diferentes, e nós temos que tomar outra decisão sobre qual estágio é o crucial.
Em outras palavras, a fronteira entre a vida e a morte é indeterminada. Isso quer
dizer, então, que a diferença entre a existência e o não existente em absoluto não é
uma questão de tudo ou nada?
71
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
Assim, dado que existem áreas cinzentas onde não temos certeza se uma
palavra particular (como "vida" ou "alto" ou "vermelho") deve ser aplicada, como
é que vamos explicar isso? Há três posições que poderíamos tomar. A primeira é
dizer que há realmente indeterminação do mundo, os limites entre propriedades
diferentes são vagos. Há casos em que simplesmente não há como saber se uma
pessoa é alta ou não, ou se ainda está na existência ou não. Mas faz sentido supor
que o próprio mundo é vago, ao invés de que nossos conceitos que sejam assim?
Suponha que permitamos que a indeterminação esteja no mundo. Então surge
uma consequência bastante estranha. Digamos que às quatro horas da manhã,
Pedro ainda está, muito definitivamente, vivo (embora não exatamente corado).
Às quatro e meia, ele está, muito definitivamente, morto. Em algum lugar no
entremeio há momentos em que não há como saber de fato se Pedro está vivo ou
não. Esse é um nível de indeterminação. Mas será que há, então, um ponto de corte
definitivo entre as horas em que Pedro está vivo, e as horas em que não há como
saber se ele está vivo de fato? Presumivelmente não, já que estamos assumindo os
limites da existência (ou seja, existência definitiva) como sendo vagos. Portanto,
agora há outro nível de indeterminação, onde não há como de fato saber se é o caso
de que (1) Pedro está vivo ou (2) não há como de fato saber se ele está vivo. Mas,
certamente, isso só culmina em não haver como de fato saber se Pedro está vivo.
Pois, nesse caso, deveria haver um ponto definido de corte entre o Pedro estar vivo
e o não haver como de fato saber etc. Mas se nós aceitarmos que há um limite tão
acentuado, então por que não admitir que haja uma fronteira nítida entre estar
vivo e estar morto?
72
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA
NOTA
73
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
Por que qualquer coisa existe? Por que simplesmente não há apenas o nada?
Agora, uma resposta bastante rápida a isso é que existem alguns objetos que apenas
têm de existir, nomeadamente, objetos abstratos como números. Pois o que faz a
matemática verdadeira se não os números e suas relações? E não é a matemática
necessariamente verdadeira? Como poderia objetos meramente contingentes fazer
verdades necessárias necessariamente verdadeiras? É, naturalmente, bastante
controverso se os números e seus semelhantes satisfazem de fato a análise da
existência que sugerimos anteriormente, a saber, uma coisa tendo propriedades
independentemente de qualquer representação desta coisa como tendo estas
propriedades. Poderia pensar-se que os números não têm existência fora do
pensamento matemático. Mas deixemos essa disputa de lado e estreitemos a nossa
pergunta: dado que existem objetos contingentes, objetos que possam não ter
existido, por que há, de fato, quaisquer objetos contingentes em absoluto?
74
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA
absoluto não é, em última análise, uma ideia coerente. Existem várias maneiras
em que podemos tentar estabelecer isso, mas aqui veremos uma que nos diz algo
interessante sobre o mundo. Quando dizemos algo verdadeiro sobre um objeto,
nossa afirmação se torna verdadeira por alguma característica, ou algum traço do
objeto. “Esse livro é verde” se torna verdadeira pelo livro ser de fato verde. Mas e
se tivesse dito “esse livro não é branco”? Desde que essa afirmação é verdadeira,
ela se torna verdadeira pelo o que poderíamos chamar de um traço negativo do
livro, sua “não branquidão”? Não branquidão parece ser um tipo estranho de
propriedade. Por exemplo, se eu disser, ao entrar em uma sala: “Pedro não está
aqui”. Essa afirmação é tornada verdadeira por uma ausência real na sala, a não
existência de Pedro? Mais uma vez, isso soa estranho. Um modo mais natural de
observarmos estes casos é o de supor que afirmações negativas, como “o livro não
é branco” e “Pedro não está aqui” tornam-se verdadeiras por traços positivos. É a
verdidão do livro que torna verdadeiro dizer “o livro não é branco”, pois a verdidão
(paradigmática) exclui a branquidão (paradigmática); é o fato de Pedro estar em
outro lugar que torna verdadeiro dizer “Pedro não está aqui”, estar em outro lugar
exclui estar aqui. Então, embora nós façamos declarações negativas verdadeiras,
não há quaisquer traços negativos no mundo, somente traços positivos. E qual é
a posição sobre a afirmação “não existem unicórnios”? Desde que isso signifique
que não há unicórnios em qualquer lugar, nós não podemos dizer, como o fizemos
referente a Pedro, que há unicórnios em outro lugar. Aqui, é a existência de tudo
no mundo que torna verdadeiro que não existem unicórnios, pois tudo que existe
possui traços que excluem a existência de um unicórnio. Então, para qualquer
declaração negativa ser verdadeira, algo necessita de fato existir. Mas isso significa
que a proposição “nada existe” não poderia possivelmente ser verdadeira, pois
não pode haver verdades negativas sem existir coisas, e apenas uma coisa existente
tornaria falso que nada existe.
75
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico você viu que:
Em uma análise da existência uma primeira explicação seria que “um objeto
existe se e somente se ele tem efeitos”. Uma segunda seria, “um objeto existe
se e somente se é possível para o mesmo que tenha efeitos sobre outras coisas”.
Uma terceira seria, “um objeto existe se e somente se ele tem propriedades”.
Uma quinta explicação seria, “um objeto existe se e somente se ele tem
propriedades independentemente de qualquer representação dele como tendo
essas propriedades”.
Parece, portanto, que há objetos que não são de todo fictícios, mas são logicamente
dependentes de outros para a sua existência. Estes são, no entanto, um grupo
variado e nenhuma análise singular poderá capturar todos eles.
76
Em outras palavras, a fronteira entre a vida e a morte é indeterminada.
Dado que existem objetos contingentes, por que há, de fato, quaisquer objetos
contingentes em absoluto?
Há um número infinito de formas que o universo poderia ter sido, todas menos
uma delas envolvendo algum objeto contingente, então a probabilidade de não
haver objetos contingentes é infinitamente pequena.
77
AUTOATIVIDADE
78
UNIDADE 1
TÓPICO 5
1 INTRODUÇÃO
79
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
substancial pode fazer justiça a nossas intuições sobre a mente, mas também cria
um novo problema: se mentes e corpos são completamente distintos, então como
eles podem interagir entre si? Como pode um evento em uma alma imaterial, tal
como uma decisão de mover o braço, provocar mudanças em um corpo físico?
E como podem as mudanças em um corpo físico, como a estimulação dos seus
receptores de dor, causarem sensações em uma alma imaterial? Este é o problema
mente-corpo tradicional.
DICAS
Veja a obra de Cottingham (1995), ele oferece uma boa introdução aos conceitos
centrais das obras de Descartes.
80
TÓPICO 5 | A FILOSOFIA DA MENTE E DA CONSCIÊNCIA
DICAS
Sugerimos a leitura inicial de obras introdutórias como Heil (2001), Maslin (2009),
Costa (2005), McGinn (2011a) ou Teixeira (2008, 1994), para começar a investigação deste
campo da filosofia da mente. Os capítulos de abertura de Chalmers (1999), Dennett (1995) e Tye
(1995) também oferecem introduções úteis à consciência, embora cada um reflete a própria
perspectiva teórica do seu autor. Há também material útil disponível na internet. Em especial,
recomenda-se a página <http://plato.stanford.edu/>. Ao pesquisar na enciclopédia pelo termo
“consciência” encontrarás uma série de excelentes artigos por pesquisadores de renome.
Devemos também mencionar o site do David Chalmers, atualmente localizado no seguinte
endereço: <http://consc.net/chalmers/>, que contém uma riqueza de material relacionado
com a mente e a consciência.
81
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
DICAS
podem, por sua vez, ser explicados em termos químicos e físicos. Muitos filósofos
sustentam que todas as propriedades acima do nível da física básica (a ciência
das partículas e das forças fundamentais) podem ser redutivamente explicadas.
Este ponto de vista é uma versão do que chamamos de naturalismo, e parece ser
corroborada pelo enorme sucesso que a ciência tem tido em encontrar explicações
redutivas (McDOWELL, 2013). Resolver o novo problema mente-corpo envolveria
fornecer explicações semelhantes ao conteúdo e às sensação/sentir, mostrando
como a sua existência pode ser explicada em termos de propriedades mais básicas
e menos misteriosas.
DICAS
3 O DUALISMO DE PROPRIEDADES
Um dos argumentos mais conhecidos para uma visão da consciência
dualista da propriedade é o seguinte. Se o fisicalismo da propriedade é verdadeiro,
então os fatos físicos são todos os fatos que há (um fato físico é um fato sobre
propriedades físicas). Assim, se alguém conhecesse todos os fatos físicos acerca
de uma criatura, então conheceria todos os fatos que há para saber sobre ela. No
entanto, prossegue o argumento, não é assim, já que os fatos físicos não iriam dizer
o como eram as experiências da criatura. Podemos saber tudo sobre a neurologia
de morcegos, mas nós não saberíamos como é ser um morcego, sentindo o mundo
por ecolocalização, em vez da visão (NAGEL, 2005). Assim, estes fatos não são os
físicos, portanto, o fisicalismo é falso.
A afirmação clássica deste argumento foi elaborada por Frank Jackson,
que o denominou de o argumento do conhecimento (JACKSON, 1982, 2010;
NAGEL, 2005). Jackson oferece o exemplo de Maria, que fora confinada desde o
85
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
não poderíamos imaginar uma "câmara zumbi", que fosse fisicamente idêntica a
um normal, mas que não pudesse gravar imagens. Se a consciência fosse física, o
mesmo deveria ocorrer com ela (MORGONI, 2013; BRUCE; BARBONE, 2013).
87
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
4 AS ABORDAGENS FISICALISTAS
89
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
Na visão de Dennett (1988), então, quando falamos sobre como são as nossas
experiências, não estamos nos referindo a algum ingrediente mental misterioso,
que nos é apresentado em um domínio interior privado; em vez disso, estamos
nos referindo apenas às atividades de nossos sistemas sensoriais e seus efeitos
complexos sobre a memória, emoção e comportamento. Assim, não é possível para
o caráter subjetivo das nossas experiências variar sem alguma mudança física, e os
zumbis e a inversão de cores não são concebíveis afinal, apesar de nossas intuições.
Essa visão, que nega que as experiências são objetos internos introspectivos, tem
afinidades com a perspectiva behaviorista descrita anteriormente. Os opositores
acusam Dennett de negar que a consciência existe, mas ele diria que está
simplesmente rejeitando uma concepção profundamente equivocada da mesma.
DICAS
93
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
94
RESUMO DO TÓPICO 5
Neste tópico você viu que:
No passado, muitos filósofos defendiam que nossas mentes não são coisas
físicas, mas substâncias imateriais – almas, que são completamente distintas
dos nossos corpos e poderiam sobreviver a sua morte. Esta visão é conhecida
como dualismo substancial, uma vez que é a visão de que somos feitos de duas
substâncias distintas, a mente e a matéria. Também é conhecido como dualismo
cartesiano, após o filósofo do século XVII René Descarte.
95
os fatos físicos são todos os fatos que há. No entanto não é assim, já que os fatos
físicos não iriam dizer o como eram as experiências da criatura.
A afirmação clássica deste argumento foi elaborada por Frank Jackson, que
o denominou de argumento do conhecimento. Um segundo argumento
importante para o dualismo de propriedade é o argumento dos zumbis.
96
AUTOATIVIDADE
97
98
UNIDADE 1
TÓPICO 6
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos nos concentrar em outra questão central da investigação
filosófica, o self e a identidade pessoal.
2 SELVES E PESSOAS
Filósofos são descritos, e descrevem-se, como quem oferece teorias do
self (o “Eu”) e da identidade pessoal. Pode-se perguntar: sobre o que são essas
teorias? Precisamos selecionar os objetos a que tais questões dizem respeito,
para que possamos, pelo menos, tentar testar as teorias. Podemos começar pela
divisão do que está no mundo em três amplas categorias, tendo em mente que
uma implicação de alguma teoria filosófica a ser considerada aqui seria que a lista
exposta é excessivamente restrita. A lista, todavia, fornece uma forma útil para a
discussão, seja qual for o resultado final.
99
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
ATENCAO
Duas ressalvas precisam ser ditas neste momento. Podemos pensar que
sabemos que apenas nós, seres humanos, somos autoconscientes, mas devemos
ser cautelosos sobre a exclusão de todas as outras criaturas. O estudo cuidadoso de
outros animais está em sua infância. Em segundo lugar, não devemos assumir que
a terceira categoria pode ser claramente distinguida da segunda. Criaturas que
não são totalmente autoconscientes podem chegar muito próximas a isso!
usam o termo "self" e por isso formulam perguntas sobre a natureza de um self ou
dos selves. Outros empregam o termo "pessoa". Vamos, a partir de agora, utilizar
os dois substantivos de modo intercambiável.
E
IMPORTANT
Segundo, uma vez que você é um self é uma pessoa, podemos dizer que a
coisa que você discerne quando usa a palavra "eu" é o self ou a pessoa que você
é. Daí a pergunta: o que é um self ou uma pessoa? Pode ser formulada por você
nestas palavras: Que tipo de coisa sou eu? Que natureza eu tenho?
101
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
sem dúvida, ligado ao fato de que você poderia deixar de ser um estudante de
Filosofia, enquanto que, sem dúvida, permaneceria na existência. Portanto, isso
dificilmente equivaleria ao que você é fundamentalmente. Assim, embora fique
acordado que nós somos selves e pessoas, como esses termos foram interpretados,
isso não significa que nós devemos dizer que o que fundamentalmente somos é
um self ou uma pessoa. Talvez nós somos fundamentalmente um tipo diferente de
coisa que, dada a forma como nos desenvolvemos, evoluímos em selves ou pessoas.
A introdução e a aplicação a nós desses substantivos não resolvem a questão de
saber o que somos, ou que natureza fundamentalmente nós temos.
3 ALGUMAS PERGUNTAS
Se estamos interessados em determinar a natureza de um tipo de objeto,
neste caso, o tipo de objeto que nós somos, que tipo de questões necessitam ser
levantadas? Quero me concentrar em duas questões muito básicas. Em primeiro
lugar, para qualquer tipo de coisa, uma questão relevante para estabelecer sua
natureza seria perguntar: do que esses objetos consistem? Quais são os elementos
que compõem o objeto? A forma em que esta questão é habitualmente levantada
em conexão com selves parte do pressuposto de que cada um de nós tem um
corpo, um corpo que está intimamente relacionado com ele ou ela. Concedendo
esse pressuposto, a questão fundamental é: há outras partes para mim além
do meu corpo? Chamamos essa questão de o “problema” self-corpo. Mas uma
segunda questão fundamental para perguntar ao tentar caracterizar a natureza
de uma entidade é o que é necessário ou está essencialmente envolvido em uma
coisa dessa espécie existindo ao longo do tempo, ou seja, a sua continuidade.
Este tipo de problema é com que o problema da identidade pessoal lida: o que é
necessário para coisas do tipo que somos persistir? Um aspecto da divisão é que a
segunda questão refere-se à existência ao longo do tempo, (às vezes chamada de
102
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL
uma questão diacrônica) enquanto que a primeira relaciona-se com quais partes
ou constituintes que o objeto possui a qualquer momento (às vezes chamado de
uma questão sincrônica). Não seria, naturalmente, correto estabelecer uma linha
divisória nítida entre essas duas questões. Deve haver alguma conexão entre o
que ou no que consiste um self, do que é feito, e o que é necessário para que possa
continuar a existir ao longo do tempo. No entanto, facilita dividir o debate nessas
duas questões principais.
DICAS
Para uma discussão aprofundada de algumas destas questões, ver Cassam (1999),
Galvão (2013) e Miguens (2001). Veja também Souza e Gomes (2005) para uma abordagem
histórica das investigações do Self.
4 O PROBLEMA SELF-CORPO
103
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
E
IMPORTANT
Há alguma razão para pensar que esta visão dualista é a correta? É óbvio
que um argumento pode sustentar o dualismo apenas se, pelo menos, sustenta a
reivindicação mais fraca de que P e C não são idênticos. Então, queremos fazer a
seguinte pergunta: será que Descartes nos oferece qualquer razão para pensar que
P e C não são idênticos?
104
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL
que ele mesmo existe, mas não está certo de que o seu próprio corpo exista. Ele
não havia encontrado uma razão convincente para pensar que ele tinha um corpo.
Nesse contexto, Descartes (2004) pode ser lido como argumentando da seguinte
forma:
Portanto,
O pressuposto neste argumento é que as palavras "é certo que ... existe"
expressam uma propriedade de mim, mas algo que não é uma propriedade do
meu corpo (C). Há, portanto, uma diferença entre eles.
Mas como eu não sabia quem ele era, eu também poderia pensar:
105
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
NOTA
Além disso,
1. Eu posso fazer F,
2. Nenhuma coisa que não tenha partes para além das partes do corpo pode fazer
F, portanto,
3. Eu não sou idêntico com o meu corpo.
107
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
de animais. O escrutínio de tais objetos pode indicar que a matéria não é capaz de
muito, mas a pergunta óbvia deveria ter sido: por que supor que tais objetos físicos
são os únicos que podem revelar do que a matéria é capaz? Talvez, uma linha mais
plausível de pensamento que a de Descartes seria a de que nós somos capazes
de resolver problemas etc., e que aparentemente somos coextensivos com nossos
corpos, por isso alguns pedaços de matéria têm capacidades muito avançadas.
Esta linha de pensamento é em efeito uma prova da existência da extraordinária
matéria chamada de “o sistema nervoso central”.
Assumiu-se que selves ou pessoas têm corpos, mas a questão tem sido se
há qualquer razão para postular quaisquer partes aos selves além de seus corpos.
Haverá tais razões somente se houver razões para pensar que o self não é idêntico
ao corpo daquele self. Acabamos de argumentar que Descartes não nos dá nenhuma
razão para pensar que cada um de nós não é idêntico ao seu corpo. Há, no entanto,
razões do outro lado para pensar que não podemos ser idênticos a algo distinto
de nossos corpos? As razões que têm sido oferecidas pelos filósofos podem ser
divididas em duas classes. Um tipo alega que há algo incoerente sobre a teoria. O
segundo tipo alega que a teoria dualista faz sentido, mas afirma que ela apresenta
outros aspectos ruins.
Outro tipo de argumento válido de ser esboçado aqui, que pode ser tratado
como uma tentativa de mostrar que nenhuma parte C é parte de P, deriva de Hume
(2009). Ele é creditado como propondo a chamada Teoria do Feixe, ou Teoria do
Self/Eu como feixe (HACKER, 2010), segundo a qual o self consiste da sequência (ou
feixe) de experiências que esse sujeito desfruta. Desde que eventos do experienciar
não são partes do corpo, se esta afirmação está correta, o sujeito não compartilha
nenhuma parte com o seu corpo. Por que, no entanto, Hume pensa que a sua
proposta dos feixes está correta? Em uma passagem muito famosa ele defende:
109
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
olha em um espelho, ele vê a si mesmo, a coisa mesma que ele é. Por que devemos
aceitar que ele só observa as suas experiências, ao invés de si mesmo? Em terceiro
lugar, Hume afirma como se devêssemos concordar, que se ele não tiver nenhuma
percepção então podemos realmente afirmar que ele não existe. Isto dificilmente
parece ser verdade em absoluto. A nossa concepção de nós mesmos é de coisas que
continuam em estado de inconsciência total. O convite para que acreditemos na
teoria do feixe não é tão atraente.
NOTA
Não encontramos até agora nenhuma razão para pensar que existem
quaisquer partes de P além das partes de C. É correto inferir que, provavelmente,
P e C são uma e a mesma coisa, todavia são, portanto, idênticos? A resposta, assim
cremos, é "não". Para ver como essa inferência pode estar errada, precisamos
considerar um caso intrigante que tem sido de foco central na metafísica recente.
Considere-se uma estátua de Einstein que você fez há alguns dias. Vamos chamar
essa estátua de EE (abreviação de Estátua de Einstein). Para fazer a estátua você
pegou um pedaço de argila (chamaremos de A) e a moldou (VIANA, 2010). No
momento temos EE e A. Qual é a relação entre esses objetos? Nós, inicialmente,
não temos a sensação de que eles não sejam idênticos, mas na medida em que
nós pensamos sobre eles parece que passamos a vê-los de forma diferente. Assim,
podemos dizer que EE foi criado em t (tempo específico), ao passo que A foi criado
muito antes. Também aceitamos que você pode destruir EE sem destruir A. Na
medida em que pensamos sobre eles, parece que creditamos diferentes histórias de
vida à EE e à A. Mas isso cria problemas para pensarmos neles como o mesmíssimo
item, como o único e o mesmo. Parece haver diferenças. Se concluirmos que A
não é idêntico à EE nós não pensaríamos que há algo a mais no EE do que A.
Como poderíamos dizer: EE apenas consiste em A. Uma maneira popular de
expressar esta relação é dizer que A constitui EE. Para todos os argumentos até
agora considerados, então, pode ser que C constitui P, sem ser idêntico ao P. Esta
questão é completamente instável, mas não pode ser avançada aqui. É necessário
introduzir agora o debate sobre selves (ou pessoas) ao longo do tempo.
110
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL
UNI
Um candidato elegante para a mesma relação é fornecido por Kripke (2012). Ele
nos pede para considerar uma árvore a partir da qual todos os ramos foram desbastados,
deixando apenas, podemos supor, o tronco. Qual é a relação entre o tronco e a árvore? Na
cena proposta no momento, não há partes da árvore que não sejam também parte do tronco,
mas isso significa que a árvore é o tronco? Dificilmente, porque parece haver diferenças entre
o tronco e a árvore. Por exemplo, uma vez que o desbastamento cessar a árvore consistirá em
parte das folhas, enquanto que o tronco nunca vai consistir das folhas. Esta diferença parece
significar que devemos pensar no tronco como constituindo a árvore em um período, mas
não sendo idêntico à árvore. Este debate metafísico geral pode ser rastreado pela leitura de
Wiggins (2001).
5 A IDENTIDADE PESSOAL
As coisas do tipo que somos não são, caracteristicamente, de curta duração.
Nós persistimos ao longo do tempo (comumente cerca de 70-80 anos) e assim
temos histórias. A pergunta é: podemos dizer de uma maneira informativa o
que é essencial e suficiente para a nossa persistência, para nossa durabilidade? A
maneira de pensarmos nesse problema é perceber que ele envolve três aspectos em
sua formulação. O primeiro elemento é a ideia de possíveis formas que o mundo
possa desenvolver. Suponha que P está de pé em um campo. Uma coisa que pode
acontecer é que uma bomba caia ao lado de P e o corpo de P se desintegra. Outra
possibilidade é que a bomba caia, mas não exploda, e P permanece de pé. Estas
são apenas algumas das formas possíveis em que o mundo pode desenvolver.
Mas, a segunda ideia é que algumas formas constituem a permanência de P
na existência, enquanto outras constituem a saída de P da existência. Tal como
previsto, o primeiro desenvolvimento presumivelmente resulta no cessar de
existir de P, enquanto que a segunda possibilidade resulta na permanência de P
na existência. O terceiro elemento é o objetivo de especificar de forma informativa
quais possibilidades portam criaturas como P com elas e quais não o fazem.
Estes princípios informativos sobre nossas condições de persistência às vezes são
chamados de Critérios de Identidade Pessoal (COSTA, 2002; MIGUENS, 2001;
VIANA, 2010; GALVÃO, 2013). Para que isso seja informativo, a ideia é especificar
as possibilidades de uma forma que não as escolheremos em termos do veredicto.
Nós podemos, obviamente, dizer que as possibilidades em que P sobrevive são as
que constituem a permanência de P na existência. Porém, será que podemos dizer
de forma informativa quais são estas?
111
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
DICAS
Para ter uma visão mais panorâmica sobre a questão da Identidade pessoal, veja
Galvão (2013), Miguens (2001), Viana (2007) e Bonjour e Baker (2010). Para aprofundar a leitura
sobre a identidade pessoal, leia a obra de H. Noonan (2002). Para ver questões de distinção
entre identidade e constituição, procure em J. Lowe (2002), no capítulo 4, também em D.
Wiggins (2001).
112
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL
Nas discussões sobre a identidade pessoal esta abordagem não tem sido
popular. Qual a razão para isso? Em termos gerais, existem dois tipos de razões.
A discussão de John Locke (1999) sobre a identidade pessoal no século XVII
brilhantemente inaugurou tais argumentos, e como veremos, ele desenvolveu uma
teoria diferente em função destes. O primeiro tipo de razão é que quando se aplica o
método do experimento mental, parece haver casos imaginários, mas em princípio
possíveis, onde o melhor veredicto é que a pessoa e o corpo se separam. Podemos
dividir esses exemplos em dois casos principais. Um tipo é onde supostamente
começamos com uma pessoa e o corpo conectados, mas as coisas se desenvolvem de
tal modo que o corpo permanece, mas a pessoa não o faz. Podemos denominar estes
casos de (C e não P). O outro tipo é onde supostamente as coisas se desenvolvem de
modo que a pessoa ou o self permanece, mas o corpo não o faz. Denominamos estes
casos de (P e não C). A alegação é, então, que os experimentos mentais revelam a
possibilidade de uma dupla dissociação entre a pessoa e o corpo. Agora, há muitos
exemplos sugeridos de ambos os tipos, mas poderemos esboçar apenas alguns.
Aqui estão dois candidatos de casos (C e não P). (1) A pessoa P sofre um
terrível acidente de carro em que o cérebro de P está tão danificado que não há
nenhuma possibilidade do retorno da consciência e, a fortiori (por causa de uma
razão mais forte) nenhuma chance do retorno de qualquer funcionamento mental
mais avançado. O corpo de P, obviamente, ainda está lá. O que aconteceu com P? O
veredicto que parece razoável para muitos filósofos é que desde que o funcionamento
mental está perdido, assim também está a pessoa. Este caso simples se assemelha a
um mais complexo inventado por Shoemaker e Swinburne (1984), que ele chama de
um brain-zap, o caso em que os estados psicológicos e disposições de alguém sejam
totalmente destruídos. (2) Estamos familiarizados com o que pode ser chamado de
um cenário típico do transtorno de personalidade múltipla, ou como o denominamos
atualmente, transtorno dissociativo de identidade. A grosso modo, em t (tempo
específico) há uma pessoa P ligada a um corpo C. Pouco tempo depois, a pessoa
ligada a C nega que ele ou ela é P, tem um caráter completamente contrastante, um
conjunto distinto de memórias e opiniões etc. Então, mais tarde ocorre como se P
voltasse. Qual é a descrição correta de tais casos? Segundo alguns, o veredicto correto
é que, apesar da presença contínua de C há uma sequência de pessoas distintas.
Supondo-se que de acordo com esta explicação a pessoa anteriormente presente,
mas atualmente ausente, não está lá, temos um caso (C e não P).
113
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
NOTA
Locke (1999) antecipou tal caso no livro 2, cap. 27, seção 23, de seu Ensaio sobre
a natureza humana. Já Wilkes (1988), no capítulo 1, desenvolve um argumento em detalhe a
favor do veredicto pluralista. Veja também o artigo de Vidal (2011) para um esboço histórico
desta perspectiva mais cerebral do sujeito. Há uma excelente discussão do problema geral
sobre a identidade pessoal em John Mackie (1988) no capítulo 5, assim como apontamentos
críticos à teoria de Locke. Duas outras excelentes introduções são Harold Noonan (2003) e
Brain Garrett (1998).
E quanto aos casos (P e não C)? Aqui tem de ser suficiente o caso crucial e
muito debatido de um transplante de cérebro (SHOEMAKER; SWINBURNE, 1984;
COSTA, 2005; PARFIT, 2010; ROSS, 2010). Imagine que há uma pessoa P, com um
corpo C1, em um t (tempo específico). Pouco depois, o cérebro de P é removido de
C1 e realojado e religado noutro corpo humano, C2. A suposição normal é que os
nossos estados psicológicos, por exemplo, crenças e memórias, estão baseados no
cérebro. Eles serão, por conseguinte, deslocados transversalmente com o cérebro.
A pergunta é: o que acontece com P? Para muitos, parece óbvio que o veredicto
correto é que P vai com o cérebro. Assim, quando a pessoa no C2 acorda, ele ou
ela vai estar convicto de que eles são P, pois retêm as memórias e crenças etc.
Certamente eles dirão que são de fato P.
114
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL
115
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
NOTA
Para as definições, veja Parfit (2004, 2010; ROSS, 2010). A ideia geral de tais definições
pode ser ilustrada pelo caso da memória, em conexão com o qual foi desenvolvida pela
primeira vez e tem sido amplamente discutida. A suposição é que, se um único sujeito recorda
a sua história anterior, haverá alguma forma de provável ligação causal entre a recordação e o
evento original recordado. Vamos chamar essa ligação de “L”. Esta é normalmente concebida
como o estabelecimento de um traço neural e sua reativação. Não há nenhuma razão para
que esta ligação L não deva, em alguns casos estranhos, ser transferida de um sujeito ao outro,
por exemplo, por alguma transferência minineural. A quase-memória é então concebida como
presente na medida em que um sujeito posterior esteja relacionado de modo L com uma
ocorrência anterior real. Esta relação não requer que seja o mesmo sujeito. Isso permite uma
definição psicológica, aparentemente, não circular. Claro, nem todo mundo reconhece que
este tipo de definição é satisfatório. (WIGGINS, 2001).
Não se pode dizer que há uma objeção decisiva a esta sugestão. Os neo-
lockeanos objetam que há casos (P e não C) plausíveis que revelam que o cérebro
não é essencial à sobrevivência. Também podemos ponderar sobre o porquê haveria
qualquer necessidade para o modo de embasamento de estados psicológicos (que
116
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL
ocorre ser o modo que de fato nós temos, por exemplo, a preservação em uma
única e duradoura entidade), ser o modo essencial para os selves ou pessoas em
geral.
Certamente o animal humano avançado não carece de tais estados, em vez disso,
parece ter estes e outros mais. Animais humanos podem raciocinar, pensar e falar.
Se assim for, então uma visão que diz que o animal é uma coisa e a pessoa ou self
é outra, parece comprometida com a presença no mesmo espaço ao mesmo tempo
de duas coisas que podem pensar, raciocinar e falar. Embora tal consequência não
constitua uma contradição, ela não representa algo que acreditávamos quando
começamos a pensar no problema. Além disso, a suposição padrão na formulação
do problema era que os selves são balizados por suas capacidades psicológicas
avançadas. Verifica-se agora que isso não pode estar certo, uma vez que existem
duas coisas (pelo menos) onde você está que possuem tais propriedades, você e o
animal. Uma nova explicação do que é uma pessoa ou self necessita ser fornecida.
Isso, às vezes, é chamado de o problema das Duas Vidas (PARFIT, 2010; ROSS,
2010; GALVÃO, 2013). Como pode haver duas vidas psicológicas onde você está?
DICAS
Para apresentações da visão animalista, ver Snowdon (2014), Ayers (2000) e Olson
(1997).
118
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL
119
RESUMO DO TÓPICO 6
Podemos fazer uma divisão do que está no mundo em três amplas categorias. A
categoria mais ampla é aquela que poderíamos chamar de as coisas puramente
físicas. A segunda categoria, bem menor, compreende objetos que possuem
propriedades físicas, mas que também têm o que nós reconhecemos como
características psicológicas, e, em amplo aspecto, uma capacidade para agir
de modo ambientalmente dirigido. Finalmente, há a categoria ainda menor,
de criaturas como nós. Nós temos propriedades físicas, e compartilhamos as
capacidades psicológicas básicas possuídas por animais comuns, mas também
possuímos uma série de capacidades psicológicas consideravelmente mais
avançadas.
Você é um self, assim como você é uma pessoa. Isto contrasta com o termo
“mente”; você não é uma mente, em vez disso, você tem uma mente.
Uma vez que você é um self e uma pessoa, podemos dizer que a coisa que você
discerne quando você usa a palavra “eu” é o self ou a pessoa que você é.
120
Assumiu-se que selves ou pessoas têm corpos, mas a questão tem sido se há
qualquer razão para postular quaisquer partes aos selves além de seus corpos.
As razões que têm sido oferecidas pelos filósofos podem ser divididas em duas
classes. Um tipo alega que há algo incoerente sobre a teoria. O segundo tipo
alega que a teoria dualista faz sentido, mas afirma que ela apresenta outros
aspectos ruins.
121
AUTOATIVIDADE
David Hume postula uma teoria, a Teoria do Feixe ou Teoria do Self como
feixe, para mostrar que nenhuma parte do Corpo é parte da Pessoa. Descreva
esta teoria de David Hume e os problemas encontrados na mesma.
122
UNIDADE 2
FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS
ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em seis tópicos e no final de cada um deles você
encontrará atividades que reforçarão o seu aprendizado.
123
124
UNIDADE 2
TÓPICO 1
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos nos concentrar na proposta de uma introdução à
investigação filosófica da Religião. Para isso, em primeiro lugar, delimitaremos,
de acordo com os nossos propósitos, o conceito de Religião, enquadrando os
elementos centrais que devem constituir tal definição.
Finalmente, você poderá ver o resumo dos assuntos deste tópico e fazer a
sua autoatividade.
Por mais que as religiões sejam tão diversas, vários componentes parecem
ser centrais e comuns para as religiões do mundo: um sistema de crenças, a
interferência de uma realidade transcendente, atitudes humanas quanto a
preocupações últimas, tais como o significado e o propósito. Tendo em conta estes
três elementos, a asserção seguinte, talvez, capta o que a maioria assume como a
essência do conceito de religião: uma religião envolve um sistema de crenças e
práticas centradas principalmente em torno de uma realidade transcendente, quer
pessoais ou impessoais, que fornece significado e propósito último para vida.
126
TÓPICO 1 | RELIGIÃO E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO
NOTA
E
IMPORTANT
DICAS
129
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
Os termos realismo e não realismo, até mesmo realismo e não realismo religioso,
têm significados diferentes dependendo de como eles são usados na literatura da filosofia da
religião. Por exemplo, o realismo religioso é por vezes considerado como sendo a visão de que
as afirmações religiosas são informativas em relação a questões não empíricas. Neste caso,
Freud não seria um realista religioso. Como você já pode notar aqui, não estamos usando a
palavra desta forma.
130
TÓPICO 1 | RELIGIÃO E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO
NOTA
Entre os não realistas, há aqueles que são, por assim dizer, favoráveis à
religião e aqueles que não o são. Considere as palavras de Sigmund Freud:
131
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
132
TÓPICO 1 | RELIGIÃO E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO
Outros não realistas são mais favoráveis à religião. Ludwig Wittgenstein
(1889-1951), por exemplo (um dos filósofos mais influentes do século XX) levou
a religião muito a sério, até mesmo ao ponto de considerar o sacerdócio. No
entanto, ele se opôs à teologia natural (a tentativa de demonstrar a existência de
deus a partir da evidência no mundo natural) e ao desenvolvimento das doutrinas
religiosas. Ele estava mais interessado no símbolo e no ritual religioso.
DICAS
Para uma interessante biografia abrangendo a vida e obra deste grande filósofo,
veja Ray Monk (1995) em sua obra Wittgenstein: O dever do Gênio.
133
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
134
TÓPICO 1 | RELIGIÃO E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO
TUROS
ESTUDOS FU
Temos dado espaço aqui para o não realismo, mais do que para o realismo,
tanto porque é um desenvolvimento importante na filosofia contemporânea
da religião e porque, considerando o trabalho predominante neste campo de
investigação, o restante deste Caderno de Estudos é voltado para uma perspectiva
realista.
135
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico vimos que:
• A reflexão filosófica sobre as crenças e ideias religiosas, uma atividade que está
em curso há milênios, foi submetida a um grande desafio no século passado
com as críticas dos positivistas lógicos.
136
AUTOATIVIDADE
137
138
UNIDADE 2 TÓPICO 2
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos explorar o tema da diversidade religiosa e o pluralismo.
Para isso, primeiro vamos descrever, a grosso modo, o quadro da diversidade das
religiões, focando nas principais grandes religiões mundiais.
Finalmente, você poderá ver o resumo dos assuntos deste tópico e fazer a
sua autoatividade.
139
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
E
IMPORTANT
O Dalai Lama Tenzin Gyatso (1935-) – o décimo quarto Dalai Lama – é o líder
espiritual do povo tibetano. Os budistas tibetanos acreditam que o Dalai Lama é uma das
inúmeras encarnações do bodisatva (em sânscrito, ser iluminado) da compaixão. Tenzin
Gyatso recebeu o reconhecimento internacional, incluindo o Prêmio Nobel da Paz, por seus
esforços assíduos em favor dos direitos humanos e da paz mundial. Ele tem escrito muitos
livros importantes, incluindo: Uma ponte entre as religiões (2015), Uma ética para o Novo
Milênio (2006), e A Arte da Felicidade (2000).
140
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO
ATENCAO
Deve ser observado que a maioria dos leigos nas religiões hindu e budistas não
buscam o nirvana ou o moksha nesta vida; em vez disso, eles são muitas vezes fervorosamente
dedicados à obtenção de mérito para as vidas futuras e ao cumprimento dos deveres à família,
aos antepassados e à sociedade em geral.
141
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
pecado (hamartion), (2) por receber a graça divina por meio da fé (pistis) em
Cristo e os sacramentos, e (3) por seguir a lei (nomos) de Deus pelo apreço
ao dom da graça. [Os católicos romanos e os protestantes discordam sobre o
papel dos sacramentos. Para uma apresentação irênica das diferenças, consulte
Norman Geisler e Ralph Mackenzie em sua obra Roman Catholics and Evangelicals:
Agreements and Differences (1995)].
Ateísmo: todas as religiões são falsas; não há nenhuma religião cujas reivindicações centrais são
1
verdadeiras.
Agnosticismo: não há nenhuma maneira de determinar qual, se for o caso, das religiões é mais
2 provável de ser verdadeira, e, portanto, a melhor resposta é permanecer agnóstico sobre as
reivindicações de qualquer religião.
Relativismo religioso: enquanto cada religião pode ser considerada como "verdadeira" e "eficaz"
3 para seus adeptos, não há nenhum sentido, objetivo ou transcendente à tradição no qual podemos
falar de uma verdade religiosa.
O pluralismo religioso: em última análise, todas as religiões do mundo estão corretas, cada uma
4
oferecendo um caminho diferente e perspectiva parcial vis-à-vis à Realidade Última.
Inclusivismo Religioso: apenas uma religião do mundo é totalmente correta, mas outras religiões
5 do mundo participam ou parcialmente revelam algo da verdade da única religião correta; é possível,
no entanto, obter a salvação (ou nirvana, ou moksha etc.) através das outras religiões.
Exclusivismo religioso: uma religião mundial está correta e todas as outras estão erradas; a
6
salvação (ou nirvana, moksha etc.) só é encontrada através desta única religião.
FONTE: Joseph Runzo (2008) e Harold Netland (2013). Sintetizamos as abordagens de Runzo e
de Netland em uma só neste quadro.
142
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO
TUROS
ESTUDOS FU
Análises e respostas às posições (1) e (2) serão oferecidas nos Tópicos 4 a 6 desta
unidade. Obviamente, nenhuma dessas posições é mantida pelos crentes religiosos. Neste
tópico, vamos nos concentrar nas posições de (3) a (6). A (3) e a (4) são recém-chegadas à
paisagem religiosa, e neste momento relativamente poucos adeptos religiosos, na verdade,
afirmam as mesmas. A (5) e (6), por outro lado, são amplamente sustentadas pelos crentes
religiosos de hoje, e é com essas duas abordagens mais proeminentes, que iniciaremos.
143
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
anatman
atman (para
(não self –
a l g u n s
a ausência
O Self h i n d u s , Corpo/alma Corpo/alma Corpo/alma
de um self
atman é
ou alma
Brahman)
subsistente)
m o k s h a
O b j e t i v o n i r v a n a Presença do Eternidade com Eternidade com
(liberação) da
Soteriológico (liberação) Yahweh Deus no céu Alá no paraíso
reencarnação
Jesus – “o
Maomé –
Fundador/Messias/ Siddhartha C r i s t o ”
Sacerdotes A b r a ã o / “O Profeta”
Profetas/Sacerdotes Gautama – ( A b r a ã o /
brahmanicos Moisés ( A b r a ã o /
fundadores “O Buda” Moisés/
Moisés)
Paulo)
DICAS
144
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO
145
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
DICAS
Veja, por exemplo, os argumentos de Jerry Walls, em seu livro Hell: the logic of
dammation (1992), especialmente no capítulo quatro, sobre o problema do inferno que vai
contra a existência de Deus. Outras obras que lidam com questões similares é: O problema do
sofrimento de C. S. Lewis (2006) e o artigo de Theodore Sider (2002) com a réplica de Dougherty
e Poston (2008). Referente às respostas do conhecimento médio (descritas a seguir), veja os
seguintes vídeos: Vídeo com William Craig, Onisciência e Conhecimento Médio, disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=a5ts7gzs6Nc>. Acesso em: 12 jun. 2015. E outro vídeo de
Craig, Quatro visões sobre a providência divina, disponível em: <https://vimeo.com/20376525>.
Acesso em: 12 jun. 2015. Veja também uma possível réplica à questão da justiça divina teísta
cristã (especificamente à proposta de Craig) no vídeo de Sam Harris, disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=MLkkRzEQmak>. Acesso em: 14 jun. 2015. a
146
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO
NOTA
Uma resposta a essa objeção é que Deus, se Deus existe, poderia revelar-se
de qualquer forma que ele escolhesse. (Estamos usando o pronome masculino aqui
não porque acreditamos que Deus é masculino, e sim, porque essa é a maneira
que Deus tem sido historicamente referenciado nas religiões teístas nas quais os
pronomes pessoais são utilizados). Poderia, portanto, haver razões legítimas para
que Deus pudesse revelar-se, desta forma ou de outra. Além disso, só porque
algumas pessoas podem não estar cientes de um fato não significa que este seja
falso. Há muitos assuntos importantes sobre os quais muitas pessoas não sabem
nada. Por exemplo, muitas pessoas ainda não sabem que o vírus HIV é transmitido
de uma pessoa infectada para uma pessoa não infectada através do sangue, esperma
147
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Outra resposta a esta objeção é que só porque alguém faz uma reivindicação
exclusiva não implica que ele ou ela é arrogante, imperialista, imoral ou opressivo.
Alvin Plantinga (1999), por exemplo, tem demonstrado que a realização do
exclusivismo não viola quaisquer obrigações morais ou epistêmicas. Na verdade,
aquele que argumenta que o exclusivismo é falso está, de uma maneira fundamental,
fazendo o mesmo que o exclusivista faz: uma reivindicação de tal forma que o
ponto de vista oposto é considerado falso. Assim, parece que não se pode julgar de
forma consistente o exclusivismo fundamentado nestes motivos, sem ser hipócrita.
4 O PLURALISMO RELIGIOSO
Perante as preocupações descritas acima, bem como outras, alguns negaram
o exclusivismo e foram para além do inclusivismo ao afirmar a verdade dentro das
diferentes religiões. Um jeito de fazer isso é através de pluralismo religioso, as
duas versões mais proeminentes são a hipótese pluralista e o pluralismo aspectual.
Vamos olhar para cada uma delas.
148
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO
real, somos muito parecidos com os homens cegos, os nossos pontos de vista são
limitados por nossos conceitos aculturados.
NOTA
John Hick (1922-2012) assumiu várias posições acadêmicas como professor de Filosofia
da Religião e Teologia em diversas universidades, como a Claremont Graduate University, a
University of Birmingham, a Cornell University e a Cambridge University. Foi um dos principais
filósofos contemporâneos da religião e teólogos, e o mais proeminente defensor do pluralismo
religioso. Ele publicou vários livros amplamente influentes, incluindo An Interpretation of
Religion (2004), Teologia cristã e pluralismo religioso (2005), e A metáfora do deus encarnado
(2000).
149
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
150
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO
DICAS
151
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Um alegado problema com este ponto de vista é que desde que cada uma
das religiões está apreendendo apenas um aspecto do Real, parece que se poderia
obter uma melhor compreensão da essência do Real, criando uma nova religião
sincretista, a fim de recolher mais aspectos do Real. Uma versão desta crítica é
oferecida pelo próprio John Hick (2013) nas páginas 240-249 de seu texto. Byrne
consente que:
Entretanto, ele não acredita que isso deva levar ao sincretismo. Pode-se
argumentar, por exemplo, que cada tradição capta um aspecto do Real via os
conceitos aculturados dentro daquela tradição, e este aspecto seria perdido em
uma nova religião sincrética. Se este for o caso, cada uma das tradições religiosas
é necessária do modo como são criadas e praticadas para que os seus seguidores
religiosos possam compreender e experienciar da melhor maneira o Real.
152
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO
NOTA
Tipos naturais são muitas vezes entendidos como agrupamentos que são
agrupamentos naturais. Por exemplo, os seres humanos, os cães e o ouro, são cada um exemplo
de tipos naturais. Eles são distintos das propriedades (tais como o amarelo, por exemplo, ou ter
1,80m de altura) que são possuídas pelos indivíduos dos tipos naturais. Os tipos naturais não
podem ser reduzidos às propriedades que são por eles possuídas.
A resposta de Byrne é que este tipo de objeção pode ser defletido apenas
parcialmente. Ele consente que os pluralistas são "céticos mitigado". Não se pode
ter certeza de que qualquer uma das religiões de fato está certa, portanto, é melhor
reconhecer isso e ser agnóstico sobre as interpretações da religião (BYRNE, 1995).
Entretanto, as reivindicações doutrinárias fundamentais das religiões, tais como
"Jesus é o Filho de Deus", de fato possuem um aspecto cognitivo (elas vão ajudar
a formar modos de prática e experiência religiosa, por exemplo), e elas podem
até ter sucesso referencial e verdade metafórica. Mas o pluralista não pode, em
sã consciência, afirmar que as declarações doutrinais são inequivocamente e
objetivamente verdadeiras.
153
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
5 O RELATIVISMO RELIGIOSO
Uma terceira forma de responder às reivindicações de verdade conflitantes
das diferentes tradições de fé é permanecer comprometido com a verdade dos
ensinamentos religiosos de sua própria tradição enquanto que ao mesmo tempo
concordando com algumas das preocupações centrais levantadas pelo pluralismo.
Isso pode ser realizado ao postular uma visão conhecida como relativismo religioso.
Joseph Runzo, talvez seu defensor mais proeminente, apresentou uma versão do
relativismo religioso, o que ele chama de "henofideísmo", derivado do termo grego
heno (um) e do termo latino fide (fé), pela qual a correção de uma religião é relativa
à visão de mundo de sua comunidade e de seus adeptos (RUNZO, 2007).
Deste ponto de vista, entende-se que visão de mundo de uma pessoa (ou
seja, a rede cognitiva total de nossos conceitos, crenças e processos de pensamento
racional inter-relacionado) determina como se compreende e se experiencia
a Realidade Última. Além disso, correspondente às diferenças de visão de
mundo, há conjuntos de verdades relativas a esquemas conceituais mutuamente
incompatíveis, entretanto, individualmente adequados. Em outras palavras,
a verdade de uma religião é determinada por sua adequação em corresponder
apropriadamente à visão de mundo da qual faz parte.
154
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO
155
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
156
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO
FONTE: Adaptado de Yandell (2007, p. 204-215; 1974), Netland (1999, p. 151-195) e Wainwright
(1998, p. 182-185)
No entanto, não fica claro o que se quer dizer com a afirmação de que
a realidade transcende a concepção lógica, ou que a lógica não se aplica às
reivindicações de verdade religiosas, pois, deve-se usar conceitos lógicos e
princípios racionais de pensamento até mesmo para poder compreender estas
declarações. Além disso, parece que não importando qual seja o sistema religioso
que alguém possa aderir (seja ele a escola Madhyamika ou não), ele ou ela utiliza a
razão e a lógica em praticamente todas as outras áreas da vida. Negar isso na religião
parece ser injustificado, se não incoerente. Isto é especialmente significativo em
relação às reivindicações proposicionais fundamentais e definidoras dos sistemas
religiosos. Poderia, certamente, haver desacordo sobre quais são as reivindicações
fundamentais de um determinado sistema. Mas, como vimos anteriormente,
cada um dos grandes sistemas religiosos está tentando fornecer reivindicações
proposicionais sobre a natureza do Real, a natureza do self, o objetivo soteriológico,
e os meios para a obtenção desse objetivo. Como cada uma dessas reivindicações
é geralmente considerada como sendo um aspecto não negociável do sistema, se
elas se contradizem entre si, não poderiam ser verdadeiras.
157
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
então essa é uma reivindicação autorrefutadora (pois, ela também deve ser falsa!).
Alguns argumentaram que a escola Madhyamika do budismo afirma tal visão. Se
assim for, então seria autodestrutiva, e, portanto, falsa.
158
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO
159
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
rejeitada.
7 TOLERÂNCIA RELIGIOSA
Como vimos, o mundo em que vivemos está florescendo com diversas
perspectivas sobre questões religiosas fundamentais. À medida que o mundo se
torna mais globalizado, vamos continuar a crescer na consciência da riqueza e
da ampla diversidade de tradições religiosas (muitas das quais são radicalmente
diferentes das nossas). Se sustentarmos a visão de que as religiões podem ser
avaliadas, e a maioria dos pluralistas concordaria que algumas religiões são piores
do que outras (pensem na religião fundada por Marshall Applewhite, a Heaven’s
Gate, por exemplo), deve a intolerância religiosa ser o resultado disso? A resposta
a esta pergunta depende, parcialmente, do que entendemos por "tolerância" e
"intolerância". Se por "tolerância" queremos significar a afirmação que todas as
tradições são igualmente verdadeiras e por "intolerância" a negação que todas
elas são igualmente verdadeiras, então é claro que qualquer avaliação seria um
empreendimento intolerante. No entanto, se "tolerância" significa reconhecer e
respeitar as crenças e práticas dos outros, então, a avaliação e a tolerância não
necessitam estar em desacordo.
160
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO
esforço de compreensão. Isto não necessita implicar uma capitulação a uma atitude
de que "todo mundo está certo", mas pode-se argumentar que ela deve se tornar
uma atitude de que “todo mundo é significativo". Afinal, quaisquer que sejam as
nossas convicções religiosas, todos nós somos homo sapiens, todos parte da grande
comunidade que chamamos de “humanidade”.
161
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico vimos que:
• Muito território foi coberto neste tópico. Começamos com uma visão geral da
crescente diversidade da paisagem religiosa global.
162
AUTOATIVIDADE
163
164
UNIDADE 2
TÓPICO 3
1 INTRODUÇÃO
No interior de todas as grandes religiões há uma crença sobre uma
realidade transcendente subjacente ao mundo físico e natural. Desde o seu início,
a filosofia da religião tem se preocupado em refletir sobre, na medida do possível,
como as religiões podem entender o que chamam de “Realidade Última”. As
várias religiões diferem em como conceituam esta realidade, especialmente
entre as religiões orientais e as ocidentais. Na religião ocidental (enquanto que
a distinção Leste/Oeste ou Oriental/Ocidental não é bem acurada, estamos
utilizando aqui para condensar a discussão), pela qual referimos principalmente
as três religiões de descendência de abraâmica, ou seja, o judaísmo, o cristianismo
e o islamismo, a Realidade Última é concebida em termos de um Deus pessoal.
Deus, nestas religiões, não é apenas pessoal, mas o criador de tudo e perfeito em
todos os aspectos. Muitas outras propriedades são atribuídas a Deus, inclusive a
onisciência, a onipotência e a imutabilidade.
165
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
166
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA
167
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
DICAS
O ensaio de Sri Ramana, “Quem sou eu?”, pode ser encontrado em sua totalidade
em inglês, Who Am I? Disponível em: <http://advaita.com.br/wp-content/uploads/2010/08/
Who-am-I-Sadhu-Oms-Translation.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2015. Foi publicado por V. S.
Ramanan. Para ler uma breve biografia de Sri Ramana e boa parte do texto traduzido com
comentários em português, veja Niraj (2009).
168
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA
NOTA
Nagarjuna (c. 150-250 EC) foi um filósofo budista indiano e talvez o pensador
budista mais influente além de Siddhartha Gautama – o Buda (c. 563-483 AEC). Ele
é conhecido principalmente pelo desenvolvimento de uma visão chamada sunyata, ou vazio
(vacuidade), que unifica duas outras doutrinas budistas centrais: o “não self” e o surgimento
codependente (ou originação interdependente). Seus escritos formaram a base da escola
Madhyamika (Caminho do Meio) do Budismo. Ele escreveu muitas obras, incluindo Versos
fundamentais sobre o Caminho do Meio (Mulamadhyamakakarika), Setenta Versos sobre o
Vazio (Sunyatasaptati), e os Sessenta Versos sobre o Raciocínio (Yuktisastika). Um excelente
texto para verificar as contribuições de Nagarjuna é o de Octavio da Cunha Botelho (2014).
À primeira vista, pode parecer que o vazio e a Realidade Última são noções
contraditórias. Como pode algo real ser vazio? Mas os budistas desta escola
entendem o "ser real" como o "ser independente de outras coisas". O intelectual
budista Masao Abe (1993, p. 115, tradução nossa) esclarece:
169
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Assim, tudo o que existe o faz somente em relação a outras coisas. Além
disso, todas as coisas se originam de um nexo causal autossustentável em que cada
elo surge a partir de outro. Esta é a doutrina budista do surgimento interdependente
(pratitya-sumutpada), e é um elemento importante da metafísica budista. Tudo é
dependente e conectado às outras coisas. Nada no nexo é independente, tudo
surge de outra coisa.
170
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA
FONTE: O autor
Mas o que se quer dizer com o termo "Deus" do ponto de vista da religião
ocidental? Para as religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo),
Deus é um ser pessoal e perfeito que criou o mundo e que tem determinadas
propriedades divinas, ou atributos, que o definem (e o separam) para além de
todos os outros seres. Isso é chamado de "teísmo", e é a perspectiva de Deus
tradicionalmente sustentada não apenas por adeptos das três grandes religiões
monoteístas, mas também por aqueles dentro de uma longa tradição hindu que,
ao contrário do Advaita Vedantins, afirmam certos atributos de Realidade Última.
Uma tal representação de Deus, ou Brahman, como ele é chamado, a partir dessa
tradição foi oferecida pelo filósofo hindu Ramanuja (c. 1017-1137 – sim, parece que
ele viveu uma vida muito longa!):
171
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
Ramanuja (c. 1017-1137) foi o principal defensor de uma forma não dualista
qualificada do hinduísmo Vedanta chamado de Vishishtadvaita que inclui uma visão de
Brahman mais parecida com o monoteísmo do que o panteísmo. Ele também foi um dos
principais filósofos hindus a interpretar sistematicamente os Vedas, ou escrituras hindus, a partir
de uma perspectiva teísta, e ele argumentou a importância soteriológica (salvífica) de bhakti,
ou devoção a Deus.
Deus é o que é melhor ser que não ser; existindo por si só, fez todas as
coisas do nada.
Que és portanto, Senhor Deus, <tal> que nada de maior possa ser
pensado? Mas quem és tu, senão a suma realidade sobre todas as coisas
e, existindo unicamente por si mesma, fez todas as outras coisas do
nada? Na verdade, aquilo que não é assim é algo menor do que pode ser
pensado. Mas isto não se pode pensar de ti. Pois que bem falta ao sumo
bem, pelo qual existe tudo o que é bom? Assim tu és justo, verídico, feliz
e tudo aquilo que é melhor ser do que não ser. Porque é melhor ser justo
que não justo, feliz que não feliz (2008, p. 15).
172
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA
FONTE: O autor
3.1 NECESSIDADE
Na teologia filosófica ocidental, Deus é concebido como um ser
necessariamente existente. Existir como um ser necessário significou que a
existência do ser não depende de nada, nem de ninguém; é autoexistente (o termo
em latim é "a se", por si só). Um ser necessário pode ser contrastado com um ser
contingente. Um ser contingente é um ser que pode não existir; se tal ser existe, ele
poderia muito bem não ter existido. Além disso, a existência de um ser contingente
é dependente de algo a mais; não é autoexistente. A partir de uma perspectiva
ocidental, quando examinamos o mundo, descobrimos que ele está cheio de seres
contingentes. Mesmo se olharmos para o micro (o mundo das partículas de quarks
e glúons, por exemplo), ou para macro (planetas, estrelas e galáxias), ou para as
coisas no entremeio (como plantas, pandas e pessoas), tudo o que encontramos é
contingente.
173
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
se respeitável, mais uma vez. (No momento deixaremos este tema, voltaremos a
ele no Tópico 6 desta unidade, quando examinarmos o argumento ontológico da
existência divina.)
NOTA
3.2 ONIPOTÊNCIA
Outra propriedade tipicamente atribuída a Deus é a onipotência – do latim
omnis (tudo), e potens (poderosos), que é a propriedade de ser perfeito no poder.
Mas o que significa isso, ser perfeito no poder? Os filósofos ao longo dos tempos
têm se debatido com esta questão. Até mesmo o grande teólogo e filósofo cristão
Thomas Aquino (2001, p. 291, C.25 a.4, tradução nossa) labutou com ela: “Temos
que dizer: Pela regra geral todos confessam que Deus é onipotente. Mas parece
difícil determinar a razão da onipotência”.
A maioria dos filósofos não concordou com Descartes sobre este ponto e
qualificaram a afirmação "Deus pode fazer qualquer coisa que seja", com uma mais
sutil, como "Deus pode fazer tudo o que é logicamente possível" ou "Deus possui
todo o poder que é logicamente possível possuir". Alguns filósofos notaram que
a "impossibilidade metafísica" é uma noção mais rica do que a "impossibilidade
lógica". Peter Van Inwagen (2006, p. 22-23) vai ainda mais longe e argumenta que
a frase "impossibilidade lógica não é significativa”. Algo é logicamente possível se
não violar as leis básicas da lógica, como a lei da não contradição (que é aquela que
174
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA
uma proposição e seu oposto não podem ser ambas verdadeiras). Um representante
dessa visão é Richard Swinburne, e ele expressa o ponto da seguinte maneira:
Uma ação logicamente impossível não é uma ação. É o que é descrito por
uma forma de palavras que pretendem descrever uma ação, mas não
descrevem qualquer coisa que é coerente supor que poderia ser feito.
Não é nenhuma objeção à onipotência de alguém que ele não possa
fazer um círculo quadrado. Isto é porque ‘fazer um círculo quadrado’
não descreve qualquer coisa que é coerente supor que poderia ser feito
(1993, p. 153-154, tradução nossa).
NOTA
Cada uma das grandes religiões ocidentais parece afirmar a onipotência de Deus:
• Bíblia Hebraica: “Ah Senhor Deus! Eis que tu fizeste os céus e a terra com o teu grande poder,
e com o teu braço estendido; nada há que te seja demasiado difícil.” (JEREMIAS 32.17, ACF –
BÍBLIA, 1994).
• Novo Testamento: “Porque para Deus nada é impossível” (LUCAS 1:37, ACF – BÍBLIA, 1994).
• Alcorão: “Dize: Ó Deus, Soberano do poder! Tu concedes a soberania a quem Te apraz e a
retiras de quem desejas; exaltas quem queres e humilhas a Teu bel-prazer. Em Tuas mãos está
todo o Bem, porque só Tu és Onipotente.” (ALCORÃO, SURATA 3.26).
Dada a crença de que Deus não pode executar determinadas ações (nem
imorais, nem logicamente impossíveis, por exemplo), muitos teístas têm sustentado
a visão anselmiana tradicional da onipotência como significando poder perfeito em
vez de poder absoluto. Deste ponto de vista, o mero poder em si não é louvável,
mas o poder perfeito ou excelente o é. Uma vez que não seria um poder perfeito
ser capaz de quebrar promessas, ou mentir, ou violar contradições, mesmo que
essas ações não possam ser realizadas por Deus, Deus não deixa de ser onipotente.
175
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
3.3 ONISCIÊNCIA
Historicamente, tem sido defendido pela maioria dos teólogos que
Deus é onisciente, do latim omnis (tudo), e sciens (conhecimento). O significado
da onisciência tem sido amplamente debatido, mas uma perspectiva histórica
proeminente é que Deus é completamente perfeito em conhecimento. Deste ponto
de vista histórico, ser onisciente significa saber/conhecer todas as coisas que são
objetos próprios do conhecimento, e uma vez que apenas as proposições verdadeiras
são objetos próprios do conhecimento (apenas proposições verdadeiras podem
ser conhecidas), Deus sabe/conhece todas as proposições verdadeiras. Assim,
o conhecimento de Deus inclui todos os eventos, sejam passados, presentes ou
futuros.
E
IMPORTANT
Teísmo Aberto: a visão de que Deus é onisciente, mas não tem conhecimento
de determinados eventos futuros (como as ações humanas livres futuras) porque ainda não
existem e não são predeterminados, portanto eles não podem possivelmente ser conhecidos,
mesmo por um ser onisciente. Para uma defesa do Teísmo Aberto veja Hasker (1989),
especialmente o capítulo 10.
176
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA
DICAS
3.4 ETERNIDADE
Os teístas são praticamente unânimes em afirmar que Deus existe
eternamente, que Deus não tem começo nem fim. Mas a unanimidade termina
quando tentamos definir o "eterno". O que significa ser eterno? E qual é o
relacionamento de Deus com o tempo e o universo temporal? Podemos delinear
várias posições de destaque.
177
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Há uma série de acusações a este ponto de vista, incluindo, é claro, cada uma
das acusações citadas acima para as duas primeiras posições. Uma objeção especial
para este ponto de vista é que ele é incoerente. Alan Padgett (2013), por exemplo,
levanta este ponto, pois Deus não pode ser totalmente atemporal. A objeção segue
assim, porque Deus foi capaz de mudar até mesmo no alegado estado atemporal.
Com efeito Deus se alterou, pelo menos relacionalmente, no momento da criação.
Desde que o tempo e as mudanças são necessariamente interligados, não pode
haver um sem o outro. Assim, uma vez que Deus mudou, Deus não pode ser (não
poderia ter sido) totalmente atemporal.
179
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
3.5 IMUTABILIDADE
NOTA
180
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA
181
RESUMO DO TÓPICO 3
• A Realidade Última pode ser entendida como um Deus pessoal, tais como o
Deus das religiões teístas e abraâmicas.
• É claro que alguém ainda pode ser um teísta e concordar que, pelo menos,
alguns dos atributos como tradicionalmente definidos são incoerentes. Como
vimos, os teístas abertos e os filósofos do processo assim o fazem em diferentes
graus e oferecem descrições novas em uma tentativa de evitar incoerências.
Outros argumentam que os atributos tradicionais podem ser defendidos, como
têm sido historicamente definidos.
182
AUTOATIVIDADE
183
184
UNIDADE 2
TÓPICO 4
ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA
EXISTÊNCIA DIVINA
1 INTRODUÇÃO
Por pelo menos dois milênios filósofos têm tentado demonstrar, por
meio da razão e do argumento, que Deus existe. É claro que nem todos os teístas
concordam que a existência de Deus pode ser demonstrada através de argumento,
e alguns até mesmo concordam com a tese ateísta de que nenhuma explicação
racional da existência de Deus pode ser oferecida. Alguns teístas, porém, têm ido
tão longe a ponto de afirmar que existem meios racionais para provar que Deus
existe, enquanto outros afirmam que a existência de Deus pode ser demonstrada
de forma plausível, mas não comprovada.
185
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
2 O ARGUMENTO DA CONTINGÊNCIA
A pessoa que provavelmente recebeu o maior reconhecimento por oferecer
um argumento cosmológico para a existência de Deus é o monge católico, Tomás
de Aquino (1224-1274).
E
IMPORTANT
186
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
FONTE: O autor
187
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
188
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
que a série é inexplicável por si só, não importa o quanto retrocedermos. Se todas
as coisas na série são contingentes (isto é, coisas dependentes de outras coisas),
parece que a soma total da série também é contingente. Uma vez que cada coisa na
série de coisas contingentes precisa de uma causa para a sua existência, como pode
a série tomada como um todo também não necessitar de uma causa?
DICAS
Assim, como enunciado na premissa 3, parece que uma causa externa, uma
que é em si não causada e fundamenta a série contingente, é necessária para a série
(veja a Figura 3). Como veremos mais adiante, este argumento para a premissa 2 é
muito semelhante ao argumento de razão suficiente.
FONTE: O autor
189
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
190
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Mas o todo, você diz, precisa ter uma causa. Minha resposta é que
a união dessas partes em um todo, assim como a união de várias
províncias diferentes em um reino, ou de vários membros distintos
em um corpo, realiza-se simplesmente por um ato arbitrário da mente
e não tem influência sobre a natureza das coisas. Se eu lhe tivesse
mostrado as causas particulares de cada indivíduo de uma coleção
de vinte partículas materiais, seria muito pouco razoável que você me
perguntasse, a seguir, pela causa das vinte como um todo. Pois ela já foi
suficientemente explicada ao se explicarem as causas das partes.
Hume está certamente correto que por vezes é o caso que uma explicação
sobre as partes de uma coisa explica o todo do qual as partes consistem, pelo menos
em um nível. Usando o seu próprio exemplo referindo-se a um reino particular,
191
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
uma explicação para "Por que isso é um reino?" Poderia ser "Porque há várias
províncias unidas". Mas, é claro, em outro nível esta resposta é incompleta. Pode-
se também buscar razoavelmente a causa porque as províncias foram, de fato,
unidas umas às outras para formar o reino, pois os reinos são os tipos de coisas que
envolvem a união de províncias por razões específicas. Portanto, esta analogia,
bem como a que ele usa sobre os membros de um corpo, não parecem funcionar
no modo como Hume havia imaginado.
Para que possamos afirmar que o universo como um todo não precisa de
uma causa, parece que teríamos de afirmar que os indivíduos contingentes do
qual a série consiste também não precisam de causas. Mas isso seria simplesmente
afirmar que eles não são contingentes afinal de contas. De fato, alguns sustentam a
visão de que não existem seres contingentes, e o fazem isso por várias razões. Uma
destas razões oferecidas é que os termos “contingente” e “necessário” carecem de
sentido.
Uma resposta a essa objeção é manter que o ser necessário exigido pelo
argumento cosmológico é melhor compreendido como o ser mais perfeito do
argumento ontológico, um exemplo de tal posição pode ser visto nas partes A605-
7 e 508-10 da “Crítica Razão Pura” de Kant (2001). Vamos examinar o argumento
ontológico no Tópico 6, mas uma dificuldade aqui, como observado por Immanuel
Kant (1704-1824), é que, se o conceito de um ser necessário é expresso em termos do
conceito de um ser mais perfeito (e o último é central para o argumento ontológico),
isto parece fazer o argumento cosmológico dependente do argumento ontológico,
e muitos têm argumentado que o argumento ontológico é deficiente.
193
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Portanto, deve haver uma coisa (Ser) primeira autoexplicativa cuja razão suficiente para
a sua existência encontra-se em si mesma, em vez de fora de si (ou seja, um ser necessário
cuja não existência é impossível).
FONTE: O autor
Uma pergunta relacionada colocada por Leibniz (2009) é esta: "Por que
existe algo em vez de nada?" Por que o universo existe, em vez de apenas nada?
Não parece razoável buscar uma explicação para sua existência? Uma analogia
pode ser útil neste momento. O filósofo Richard Taylor (1919-2003) nos pede para
imaginar que estamos caminhando por uma floresta e nos deparamos com uma
bola translúcida:
Ele continua:
Isso ilustra uma crença metafísica que quase parece fazer parte da
própria razão, mesmo que apenas alguns homens pensem nisso; a crença
de que há uma explicação para a existência de qualquer coisa, alguma
razão do por que isso deve existir ao invés de não. A não existência de
algo, o que não deve ser confundida com a extinção da existência de
algo, nunca requer uma explicação; mas a existência requer. Que nunca
devesse haver qualquer bola na floresta não exige qualquer explicação
ou razão, mas que devesse haver tal bola, exige (TAYLOR , 1969, p.
100-101).
194
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
195
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
De acordo com essa objeção, o princípio da razão suficiente acaba por ser
uma noção incoerente em relação à existência do universo. Veja como a objeção
se desenvolve. Ou a explicação para a existência do universo contingente está
em si mesma em necessidade de mais explicações, ou ela não está. Se ele está em
necessidade de mais explicações, então ela também é contingente, e por isso não
fornece uma explicação última (ou seja, não é uma razão suficiente) para o universo.
Por outro lado, se a explicação para a existência do universo contingente é em si
mesma uma explicação necessária, então o que explica (isto é, o universo) deve
também ser necessário. O universo teria que ser necessário, em vez de contingente,
uma vez que o que se explica por uma razão suficiente também está implicado
por ela. Portanto, se o universo está implicado por um ser necessário, então ele
também deve ser necessário. Se o universo é necessário, então ele não precisa de
uma explicação externa para sua existência.
196
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Outra objeção é que, mesmo supondo que cada coisa tem uma explicação
suficiente, o que constitui uma justificação satisfatória para uma pessoa pode
não ser para outra. A este respeito a visão de mundo dos indivíduos pode entrar
em jogo. Uma explicação satisfatória para um ateu de um dado fenômeno pode
ser muito diferente daquela para um teísta, ou para um panteísta, ou para um
panenteísta.
Einstein estava duplamente errado quando disse que ‘Deus não joga
dados’. Deus não só joga dados, mas Ele às vezes nos confunde jogando-
os onde ninguém os pode ver [...] o universo não se comporta de acordo
com as nossas ideias preconcebidas. Ele continua a nos surpreender.
197
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
4 O ARGUMENTO KALAM
Uma terceira forma do argumento cosmológico é referida como o argumento
kalam, o termo "kalam” é uma palavra árabe que significa “teologia especulativa".
Foi desenvolvido nos tempos medievais por dois filósofos islâmicos, al-Kindi (c.
801-c. 873) e al-Ghazali (1058-1111). O seu principal defensor nos últimos tempos é
o filósofo cristão William Lane Craig (1949-), e, ao explicar e defender o argumento
ele estabelece a estrutura mostrada na figura abaixo.
DICAS
Para uma história e defesa do argumento kalam, veja a obra de William Lane Craig,
The Kalam Cosmological Argument (2000) ou o texto de Harry Lesser (2013), que sintetiza a
proposta de Craig.
198
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
1 Tudo que começa a existir tem uma causa para sua existência.
2 O universo começou a existir.
3 Portanto, o universo tem algum tipo de causa para sua existência.
4 A causa do universo, ou é uma causa impessoal ou um Deus pessoal.
5 A causa do universo não é impessoal.
6 Por isso, a causa do universo é um Deus pessoal.
FONTE: O autor
Como foi dito, o argumento é logicamente válido. Então, mais uma vez, a
questão importante é, são as premissas verdadeiras? A primeira premissa parece
intuitivamente óbvia. Se alguma coisa vem a ser, ou passa à existência, deve haver
algo que causou a sua existência. Historicamente, esta primeira etapa não foi muitas
vezes negada, até mesmo por aqueles que duvidaram ou negaram a existência de
Deus, pela simples razão de que os eventos físicos parecem ser rastreáveis a causas
anteriores (em teoria, se não na prática real). Mas enquanto a sua verdade pode ser
intuitiva, como observado anteriormente, tem surgido nos últimos tempos objeções
significativas para a mesma. Por exemplo, Quentin Smith (2010, p. 128), um filósofo
ateu, escreve um excelente texto argumentativo para “mostrar que esta segunda
parte ‘teísta’ [do argumento kalam] não é sólida e que há uma segunda parte ‘ateia’
sólida que mostra que o universo se causa a si mesmo”.
NOTA
Uma vez que a série não pode ser um infinito real, deve ser finita. Sendo
finita, a série de eventos no tempo deve ter um começo. Assim, o universo deve ter
um começo.
200
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
DICAS
Para aprofundar nas questões da filosofia e física do tempo, sugerimos a leitura dos
seguintes textos. Os capítulos Natureza do tempo, Análises adicionais do tempo, e Natureza
relativística do tempo, de Osvaldo Pessoa Jr (2014) – capítulos 7, 8 e 9, respectivamente, o
artigo A irrealidade do tempo (2014) de MacTaggart J. e MacTaggart E., e o texto de Craig (2010),
Começar a Existir. Todos estes disponíveis on-line (verifique na bibliografia deste Caderno de
Estudos para acessar os textos). Outra importante obra é o livro Uma breve história do tempo
de Hawking (2015).
NOTA
201
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
No entanto, a seguinte resposta pode ser feita. Se houvesse uma série sem
começo, seria absurdo supor que em algum momento nós poderíamos alcançar o
momento presente.
O problema aqui não é nem uma questão de não ter tempo suficiente nem
de infinitamente adicionar um membro após o outro. Pelo contrário, parece ser um
absurdo metafísico. Craig (2014, sem paginação) expressa desta forma:
202
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
203
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
204
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
FONTE: O autor
205
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Quais podem ser algumas das razões para sustentar que a causa do
universo é pessoal, como os proponentes do argumento Kalam mantêm? De acordo
com a cosmologia do big bang, antes do início do universo (antes em um sentido
ontológico, não temporal) não havia tempo, espaço, matéria ou energia, e, portanto,
nenhuma mudança de um estado de coisas para outro. Mas em tal estado, como
pode um primeiro evento ocorrer? Poderia surgir espontaneamente e sem uma
causa? Isto pareceria ser menos do que razoável. Outra possibilidade é que é
um evento pessoal em que um agente escolhe livremente agir. Esta é a resposta
teísta: um Deus pessoal atemporal, sem espaço, sem matéria, trouxe o universo à
existência por sua própria escolha livre. Deste ponto de vista, a decisão de Deus
de criar o universo não foi determinada por uma causa anterior. Pelo contrário,
foi um evento autocausado deliberadamente escolhido por um Deus pessoal para
uma razão (não determinativa) ou conjunto de razões (ABBAGNANO, 2007;
O’CONNOR, 2000).
206
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
DICAS
207
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Craig argumenta ainda que uma boa razão para interpretar a singularidade
como irreal é que ela é descrita como não tendo dimensões espaciais e sem duração
temporal. Como ele diz: "A singularidade tem zero dimensionalidade e existe por
nenhum período de tempo; ela é de fato um ponto matemático" (CRAIG; SMITH,
1995, p. 227, tradução nossa). Sustentar que tal ponto é real é reificar uma mera
construção matemática.
Smith contrapõe essa objeção, argumentando que não há razão para rejeitar
a realidade da singularidade; ao contrário, ele argumenta que, na cosmologia do
big bang padrão a singularidade é o término real dos caminhos espaço-temporais
convergentes dirigidos ao passado. O debate, então, gira em torno da metafísica do
tempo, do espaço e da matemática.
E
IMPORTANT
208
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
209
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
O ateu pode responder de, pelo menos, duas maneiras. Primeiro, ele
poderia conceder o princípio da simplicidade e da suposição (2), mas negar a
suposição (1). Isto é precisamente o que Smith faz. Ele concede o princípio, mas
nega a suposição (1) pelo seguinte motivo: uma vez que a singularidade tem zero
volume espacial, zero duração temporal, e não tem valores finitos particulares para
sua densidade, "Parece razoável supor [... que] este ponto instantâneo é o objeto
físico mais simples possível" (SMITH, 1992, sem paginação). Concedendo que este
objeto simples é pelo menos tão simples quanto a hipótese teísta, é mais simples
supor que o universo começou a partir do mesmo tipo de material básico (ou seja,
coisas materiais) do que postular algum tipo adicional de material (ou seja, "coisa
divina" imaterial).
DICAS
210
RESUMO DO TÓPICO 4
• O terceiro argumento, o argumento kalam, concluiu que deve haver uma causa
pessoal para o universo. Ele utilizou um argumento filosófico e duas evidências
científicas para apoiar a premissa de que o universo começou a existir, e também
incluiu um argumento filosófico que este início deve ser pessoal. Quatro objeções
foram levantadas, duas para o primeiro argumento filosófico e uma para cada
uma das supostas evidências científicas. As objeções contra um início pessoal
também foram observadas.
211
AUTOATIVIDADE
1 - Tudo que começa a existir tem uma causa para sua existência.
2 - O universo começou a existir.
3 - Portanto, o universo tem algum tipo de causa para sua existência.
4 - A causa do universo, ou é uma causa impessoal ou um Deus pessoal.
5 - A causa do universo não é impessoal.
6 - Por isso, a causa do universo é um Deus pessoal.
212
UNIDADE 2
TÓPICO 5
ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS
DA EXISTÊNCIA DIVINA
1 INTRODUÇÃO
Como vimos no tópico anterior, os argumentos cosmológicos começam
com o fato de que há coisas existentes contingentemente no mundo e concluem
com a existência de um criador não contingente para explicar a existência dessas
coisas. Os argumentos teleológicos (ou argumentos do, ou para o design), por
outro lado, são bastante diferentes, pois eles começam com certas propriedades do
mundo e concluem com a existência de um grande arquiteto/designer do mundo,
um designer com certas propriedades mentais, tais como intenção, conhecimento e
propósito.
E
IMPORTANT
Argumento teleológico: deriva dos termos gregos telos (fim ou objetivo) e logos
(razão ou explicação racional). O argumento teleológico, primeiro desenvolvido por antigos
filósofos gregos e indianos, assume uma variedade de formas. O tema comum entre todas
elas é que a ordem meios/fins que existe no mundo natural é melhor explicada por um design
intencional/proposital.
213
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
William Paley (1743-1805) foi um teólogo inglês, filósofo e apologista cristão. Ele
se tornou um membro no Christ College de Cambridge, em 1766. Escreveu uma
série de livros, incluindo o The Principles of Moral and Political Philosophy que se tornou o
livro-texto de ética na Universidade de Cambridge. Sua obra mais famosa é a Natural History:
or evidences of the existence and attributes of the Deity, collected from the appearances of
nature (1802), o livro no qual ele apresenta sua analogia do relojoeiro. O livro Teologia Natural,
pode ser lido em espanhol na íntegra, em sua edição de 1825, no Google Books. Disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=hQVeAAAAcAAJ&hl=pt-BR&source=gbs_navlinks_s>.
Acesso em: 26 jul. 2015.
214
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Paley está usando um argumento da analogia: uma vez que podemos inferir
um designer (arquiteto) de um artefato, como um relógio, dado o seu propósito
evidente e sua estrutura ordenada, assim também devemos inferir um grande
designer das obras da natureza, uma vez que elas são ainda maiores em termos
de sua ordem e de sua complexidade, o que ele posteriormente descreve como
“meios ordenados para fins". O argumento de Paley pode ser esboçado na forma
apresentada no quadro "O argumento do desígnio de Paley".
Artefatos (como um relógio), com suas configurações de meios para fins, são os produtos de
1
desígnios (humanos).
2 As obras da natureza, tais como a mão humana, se assemelham a artefatos.
3 Assim, as obras da natureza são, provavelmente, os produtos de desígnio.
4 Além disso, as obras da natureza são muito maior em número e maior em complexidade.
Por isso, as obras da natureza foram, provavelmente, os produtos de um grande designer, muito
6
mais poderoso e inteligente do que um designer humano.
FONTE: O Autor
215
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
E
IMPORTANT
NOTA
216
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
217
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
DICAS
Para uma apresentação clara da Teoria da Evolução leia a obra de Ernst Mayr, O
que é a evolução (2009), a obra de Mark Ridley, Evolução (2006) e a obra de Douglas Futuyama
(2009). Essas três obras apresentam não somente a história da teoria, mas as evidências em
diversas áreas da ciência e seu status atual. Um texto excelente que visa esclarecer algumas
dúvidas sobre a confusão que muitos fazem se a evolução é uma teoria ou um fato, é o
Evolução é um fato e uma teoria de Laurance Moran (1993). Disponível em: <http://www.
darwin.bio.br/?p=75>. Acesso em: 29 jul. 2015.
218
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
219
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
1. Se a explosão inicial do big bang diferisse em força por tão pouco quanto uma
parte em 1060, o universo teria rapidamente entrado em colapso sobre si mesmo
ou expandido rápido de mais para que as estrelas pudessem se formar. Em
ambos os casos, a vida seria impossível. (Uma precisão de uma parte em 1060
pode ser comparada ao disparar uma bala em um alvo de uma polegada no
outro lado do universo observável, vinte bilhões de anos luz de distância, e
acertar o alvo).
2. Os cálculos indicam que se a força nuclear forte, a força que une os prótons
e nêutrons juntos em um átomo, tivesse sido mais forte ou mais fraca por tão
pouco quanto cinco por cento, a vida seria impossível.
3. Cálculos feitos por Brandon Carter mostram que se a gravidade fosse mais forte
ou mais fraca por uma parte em 1040, então, as estrelas que sustentam a vida,
como o sol, não poderiam existir. Isto tornaria provavelmente a vida impossível.
4. Se o nêutron não fosse cerca de 1.001 vezes a massa do próton, todos os prótons
se deteriorariam em nêutrons ou todos os nêutrons se deteriorariam em prótons
e, assim, a vida não seria possível.
5. Se a força eletromagnética fosse ligeiramente mais forte ou mais fraca, a vida
seria impossível, por uma variedade de diferentes razões.
220
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
221
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
DICAS
222
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Como, então, poderíamos nos dar por satisfeitos com relação à causa
daquele Ser que você toma como o Autor da Natureza, ou, de acordo
com seu sistema antropomórfico, daquele Mundo Ideal no qual você
encontra a origem do mundo material? Não teríamos iguais razões
para buscar a origem desse mundo ideal em outro mundo ideal, ou
princípio intelectivo? Mas, se nos detemos em algum ponto e não
avançamos mais, de que serve ter avançado até aí? Como poderíamos
nos dar por satisfeitos sem avançar in infinitum? E que satisfação, afinal,
encontraríamos nessa progressão infinita? Recordemo-nos da história
do indiano e seu elefante [o filósofo indiano disse que o mundo estava
descansando na parte traseira de um elefante, e o elefante estava
descansando na parte traseira de uma grande tartaruga, e a tartaruga na
parte traseira de algo que não sabia o quê]: ela nunca foi tão adequada
como ao presente assunto. Se o mundo material repousa sobre um
mundo ideal semelhante, este mundo ideal deve repousar sobre algum
outro, e assim indefinidamente. Seria melhor, portanto, jamais lançar os
223
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
olhos para além do mundo material presente. Ao supor que ele contém
em si mesmo o princípio de sua própria ordem, estamos, na realidade,
afirmando que ele é Deus; e quanto antes chegarmos àquele Ser Divino,
tanto melhor para nós. Quando você dá um passo além do sistema
mundano, apenas excita uma disposição inquisitiva que jamais poderá
ser satisfeita.
DICAS
224
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
E
IMPORTANT
225
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
FONTE: O autor
Behe usa a analogia simples de uma ratoeira para demonstrar seu ponto.
226
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
FONTE: O autor
227
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
O que interessa aqui é que as quarenta partes das quais este motor flagelar
consiste aparentemente em serem organizadas exatamente assim. Se qualquer
uma delas estiver mal colocada ou ausente, o "motor" não vai funcionar. É,
portanto, um mecanismo complexo irredutível. Os defensores do argumento
do design inteligente afirmam que é mais razoável acreditar que um designer
inteligente esteve envolvido na criação de um sistema deste tipo do que o sistema
ter se desenvolvido gradualmente através de processos darwinianos naturalistas.
Pois a menos que o mecanismo é totalmente funcional, a seleção natural não teria
nenhum motivo para preservá-lo.
228
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Se houver eventos, objetos ou estruturas no mundo natural, que são complexas e especificadas,
1
então é razoável concluir que elas são o resultado de design.
Existem eventos, objetos ou estruturas no mundo natural, como sistemas moleculares
2
irredutivelmente complexos, que são ao mesmo tempo complexos e especificados.
3 Portanto, é razoável concluir que eles são o resultado de um design.
FONTE: O autor
230
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
DICAS
Para uma crítica mais avançada do argumento do Design veja John Leslie Mackie
(1994), El Milagre del Teísmo, nas páginas 83-102. Um excelente vídeo que retrata uma batalha
jurídica que ocorreu em Dover, nos Estados Unidos, sobre o ensino da evolução e do design
inteligente é o documentário “Dia do julgamento: Design Inteligente Na Corte”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=p_YZpa5M-DY>. Acesso em: 25 jul. 2015. Veja também o
debate “Criacionismo x Evolucionismo” da SESC TV, mediado por Mario Cortella. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=53JrgU1-W78>. Acesso em: 26 jul. 2015.
231
RESUMO DO TÓPICO 5
Neste tópico vimos que:
232
• Atualmente, há muita atividade acadêmica que ocorre relativas aos argumentos
do desígnio. Alguns estão convencidos de que um ou mais dos argumentos
apontam para um grande designer do cosmos; outros estão convencidos de que
eles não o fazem; e outros ainda estão indecisos. Em qualquer caso, Paley e
Hume estariam, talvez, satisfeitos de saber que seus legados sobre este tema
continuam até os nossos dias ... sem um fim à vista.
233
AUTOATIVIDADE
Assinale abaixo a alternativa correta sobre qual foi o argumento descrito acima.
234
UNIDADE 2
TÓPICO 6
ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS
DA EXISTÊNCIA DIVINA
1 INTRODUÇÃO
Nos dois últimos tópicos examinamos os argumentos cosmológicos e
teleológicos, ambos focados em alguma característica do universo, concluíram que
Deus deve ser postulado como a explicação para estas características (argumento
cosmológico) ou que estas apontam para um designer do universo (argumento
teleológico). Estes argumentos são a posteriori, pois são baseados em premissas
que podem ser conhecidas somente pela experiência do mundo. Outro tipo de
argumento tenta demonstrar que a não existência de Deus é impossível, este é o
argumento ontológico. É bem singular entre os argumentos tradicionais para a
existência de Deus na medida em que é um argumento a priori, pois está baseado
em premissas que supostamente podem ser conhecidas independentemente da
experiência do mundo.
E
IMPORTANT
Argumento ontológico: deriva dos termos gregos ontos (ser) e logos (narrativa
racional). O argumento ontológico, desenvolvido pela primeira vez por Santo Anselmo de
Cantuária, assume uma variedade de formas. O tema comum entre eles é que eles começam
a priori, procedendo a partir do mero conceito de Deus, e concluem que Deus deve existir.
235
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Assim, pois, Senhor, tu que dás a inteligência da fé, dá-me, tanto quanto
aches bem, que eu compreenda que tu existes como nós <o> acreditamos
que tu és o que nós acreditamos. Nós acreditamos, com efeito, que tu és
‘alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado’. Será que não
existe uma tal natureza, uma vez que o ‘insensato disse no seu coração:
‘Deus não existe’?’ Mas certamente este mesmo insensato, quando
ouve isto que eu digo – ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode
ser pensado’, compreende o que ouve, o que ele compreende existe
na sua inteligência, mesmo se ele não compreende que isso existe <na
realidade>. Porque uma coisa é que certa realidade esteja no intelecto,
outra é compreender que tal realidade existe. De facto, quando um
pintor pensa antes o que vai fazer, tem na inteligência o que ainda não
fez, mas de modo nenhum compreende que exista o que ainda não fez.
Pelo contrário, quando já o pintou, tem na inteligência o que já fez e
compreende que isso existe <na realidade>. Mesmo o insensato está,
pois, convicto de que ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode
ser pensado’ existe pelo menos no intelecto: porque ele compreende-o
quando o ouve, e tudo o que é compreendido existe no intelecto.
Mas, sem dúvida, ‘aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado’
não pode existir unicamente no intelecto. Se, na verdade, existe pelo
menos no intelecto, pode pensar-se que exista também na realidade, o
que é ser maior. Se, pois ‘aquilo maior do que o qual nada pode ser
pensado’ existe apenas no intelecto, então ‘aquilo mesmo maior do que
o qual nada pode ser pensado’ é ‘algo maior do que o qual algo pode ser
pensado’. Mas isto, <como é evidente>, é claramente impossível. Existe,
pois, sem a menor dúvida, ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode
ser pensado’ tanto no intelecto como na realidade (ANSELMO, 2008, p.
12).
236
TÓPICO 6 | ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
1. Todo mundo (até mesmo o ateu) é capaz de entender pelo termo "Deus" um ser
do qual nenhum maior pudesse ser concebido.
2. Assim, um ser, do qual nenhum maior pode ser concebido, existe na mente (ou
seja, no entendimento) quando se ouve falar de tal ser.
3. Podemos conceber um ser do qual nenhum maior pode ser concebido que existe
tanto na mente e na realidade.
4. Existir na realidade é maior do que existir somente na mente.
5. Se, portanto, um ser, do qual nenhum maior pode ser concebido, existe somente
na mente e não na realidade, não é um ser do qual nenhum maior pode ser
concebido.
6. Portanto, um ser do qual nenhum maior pode ser concebido existe na realidade.
237
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
papai-noel);
b) na realidade, mas não na mente (tal como uma estrela não descoberta);
c) tanto na mente e na realidade (como o autor deste Caderno de Estudos, Kevin
D. S. Leyser);
d) nem na mente, tampouco na realidade (como a internet em 500 AEC).
NOTA
238
TÓPICO 6 | ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
1. Todo mundo é capaz de entender pelo termo "ilha perfeita" uma ilha da qual
nenhuma maior/melhor pode ser concebida.
2. Então, uma ilha da qual nenhuma maior/melhor pode ser concebida existe na
mente (ou seja, no entendimento), quando se ouve falar de uma tal ilha.
3. Podemos conceber uma ilha da qual nenhuma maior/melhor pode ser concebida
que existe tanto na mente e na realidade.
4. Existir na realidade é maior do que a existir somente na mente.
5. Se, portanto, uma ilha da qual nenhuma maior/melhor pode ser concebida existe
somente na mente e não na realidade, não é uma ilha da qual nenhuma maior/
melhor pode ser concebida.
6. Por isso, uma ilha da qual nenhuma maior/melhor pode ser concebida existe na
realidade.
239
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
240
TÓPICO 6 | ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
Considere este exemplo. Suponha que você vê um gato andar na sua frente,
e que o gato porventura é preto. Quando você faz a alegação de que o gato é preto,
você está adicionando uma propriedade (pretidão) ao conceito de um gato. Há
outros gatos que não são pretos; não é essencial para o conceito de um gato que
este seja preto. Quando você alega que o gato existe, no entanto, você não está
adicionando qualquer coisa ao conceito de um gato; você só está dizendo que o
conceito de um gato é exemplificado ou instanciado. No argumento de Anselmo
ele está insinuando que a existência é um predicado que acrescenta ao conceito
de um ser do qual nada maior pode ser concebido (é maior ter a propriedade de
existente do que não tê-la). Mas, argumenta Kant, ao afirmar que algo existe não
acrescenta nada ao conceito de um tal ser (ou a qualquer outro conceito); está
apenas afirmando que o conceito é instanciado. Portanto, o argumento de Anselmo
é falho. Um excelente artigo que explora os limites desta crítica kantiana pode ser
encontrado em Xavier (2007).
NOTA
241
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
DICAS
Para uma visão panorâmica dos argumentos de Anselmo, assim como das
objeções que foram levantadas contra o mesmo, veja o artigo de Peter Millican (2004), o
capítulo “O argumento Ontológico” de Rowe (2011) e a dissertação de Pereira (2012), todos
disponíveis on-line (verifique nas referências bibliográficas para acessar os links).
1. É possível que exista um ser que seja maximamente grandioso (um ser que
podemos chamar de Deus).
2. Portanto, há um mundo possível em que um ser maximamente grandioso existe.
3. Um ser maximamente grandioso é necessariamente maximamente excelente em
todos os mundos possíveis (por definição).
4. Uma vez que um ser maximamente grandioso é necessariamente maximamente
excelente em todos os mundos possíveis, este ser é necessariamente maximamente
excelente no mundo real.
5. Portanto, um ser maximamente grandioso (ou seja, Deus) existe no mundo real.
242
TÓPICO 6 | ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
DICAS
Vamos tomar as premissas, uma por vez. A primeira premissa afirma que
é possível que Deus, um ser maximamente grandioso, existe. O caso de que é
possível que tal ser exista é crucial para o argumento, e nós vamos examinar isso
mais de perto a seguir, na primeira objeção.
243
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
acima. Mas há também um mundo possível -a & b & c & d ... ("-a" significa "não
a"), e outro a & -b & c & d ..., e ainda um outro -a & -b & c & -d ..., e assim por
diante. Uma, e apenas uma, das descrições de mundos possíveis incluirá apenas
conjunções verdadeiras e, portanto, irá retratar o mundo como ele realmente é; ou
seja, o mundo real (CRAIG, 2006).
E
IMPORTANT
Lógica Modal é um sistema de lógica que utiliza tais expressões modais como
“possivelmente” e “necessariamente”. As proposições são verdadeiras ou falsas. Às vezes, porém,
uma proposição não é apenas verdadeira, mas necessariamente verdadeira. Outras proposições
são falsas, mas possivelmente verdadeira, e outras ainda são falsas e necessariamente falsa.
Utilizando estas noções de necessidade e possibilidade, os princípios básicos da lógica modal
incluem tais alegações como “se algo é impossível, então é necessariamente falso” e “o que
é necessário é ao mesmo tempo verdadeiramente real e possível”. A lógica modal tornou-
se uma ferramenta utilizada com frequência na análise formal dos argumentos filosóficos,
especialmente na metafísica, na epistemologia e na filosofia da religião.
244
TÓPICO 6 | ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
245
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
As respostas podem ser oferecidas, tais como que a premissa 1 é falsa. Mas
essa objeção à coerência divina, assim como outras, estão disponíveis na literatura
na tentativa de demonstrar a impossibilidade de existência de Deus.
DICAS
Uma questão importante no que diz respeito aos argumentos modais como
este é se a lógica modal utilizada é o tipo apropriado de lógica para possibilidades
metafísicas. Alguns argumentam que não o é (MURCHO, 2002; CID, 2010). Outro
ponto a considerar é que, enquanto nós podemos concordar que o mundo real
existe, não existe um acordo universal sobre o papel ontológico ou funcional que os
mundos possíveis devem desempenhar nas discussões metafísicas. Considere este
exemplo: Jane Austen poderia ter escrito um livro sobre a escravidão na Inglaterra
no século XVIII. Ou ela poderia ter escrito um livro sobre a Guerra de Troia. Mas
será que o fato de que ela poderia ter escrito esses livros implica que eles realmente
existem em um mundo possível? O que significaria dizer que eles assim o fazem?
Você não pode tocar esses livros; você não pode ler esses livros; você não pode até
mesmo ver esses livros. Não há nada que você possa fazer com estes livros porque
eles não são reais; eles não existem. Assim, parece estranho dizer que eles existem
em um mundo possível.
Se uma das razões para que os romances de Jane Austen sobre a escravidão
e a Guerra de Troia não existem é porque nada existe em um mundo possível, então
seria falsa a afirmação de que Deus (ou seja, um ser maximamente grandioso)
existe em um mundo possível. E se Deus não existe em um mundo possível,
então a premissa 2 do argumento de Plantinga é falsa, e o argumento é infundado
(GOMES, 2011).
246
TÓPICO 6 | ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
247
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA
NOTA
248
RESUMO DO TÓPICO 6
Neste tópico vimos que:
• Muitos dos principais filósofos ao longo dos séculos têm interagido com a
existência de Deus, e alguns tentaram refutá-lo.
• Nós analisamos duas objeções proeminentes. A primeira foi com base na analogia
da maior ilha possível e foi desenvolvida pelo monge colega de Anselmo,
Gaunilo. Utilizando um argumento de estilo reductio ad absurdum, ele argumentou
que, se nós afirmamos o argumento ontológico de Anselmo, devemos também
afirmar que a maior ilha possível existe. Desde que esta conclusão é absurda,
assim também é a conclusão de Anselmo. A segunda objeção ao argumento de
Anselmo foi oferecida por Immanuel Kant; a saber, que a existência não é um
predicado real. Desde que a existência não acrescenta nada ao conceito de uma
coisa, e no argumento de Anselmo a existência é tratada como um predicado
real, seu argumento é falho.
• Dos vários argumentos para a existência de Deus, que têm sido propostos
historicamente, os argumentos ontológicos talvez tenham sido os menos
eficazes em convencer os descrentes de que o teísmo é verdadeiro. No entanto,
mais do que algumas das principais mentes da história têm sido convencidas
por pelo menos uma versão dele, seja por sua solidez ou por sua aceitabilidade
racional. Além disso, uma vez que o argumento ontológico é dedutivo, em
vez de indutivo, se for de fato sólido, ele realiza mais com somente algumas
premissas simples do que os outros argumentos realizam com um acúmulo de
evidências e considerações científicas. Assim, apesar de controverso, tem um
golpe poderoso para aqueles que se deixam convencer da sua solidez.
250
AUTOATIVIDADE
251
252
UNIDADE 3
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos e no final de cada um deles
você encontrará atividades que reforçarão o seu aprendizado.
253
254
UNIDADE 3
TÓPICO 1
PROBLEMAS DO MAL
1 INTRODUÇÃO
Onde quer que olhemos no mundo, as pessoas estão sofrendo. Nas favelas
em Calcutá, em bares na Irlanda do Norte, nas cidades costeiras do Equador, nas
igrejas em Nova York, nos campos de arroz na China, no sertão nordestino do
Brasil, em Serra Leoa na África, e a lista continua. Não há lugar onde a dor esteja
ausente, nenhum lugar onde não exista sofrimento humano e animal.
De certa forma, parece que nosso mundo ficou melhor ao longo das eras
desde o surgimento do primeiro Homo sapiens no planeta Terra. De fato, tem
havido progressos sólidos, especialmente no aproveitamento da natureza. E
grande parte da barbárie dos tempos antigos parece ter diminuído, em geral. Veja,
por exemplo, a pesquisa de Steven Pinker (2013), publicada em sua excelente obra
“Os anjos bons da nossa natureza: porque a violência diminuiu”. Mas o mundo
certamente não é uma utopia, ainda não o é, de qualquer maneira. O século XX
experimentou terríveis atrocidades humanas. Nesse século, por exemplo, perto de
meio bilhão de pessoas morreram de varíola; mais de 200 milhões de vidas foram
desperdiçadas na guerra e no democídio (RUMMEL, 1998), o assassinato de pessoas
por um governo; e cerca de doze milhões morreram de AIDS, a maioria deles nos
últimos quinze anos do século XX. As palavras do filósofo Hegel, expostas por
Marcuse, sintetizam o último século: “A história aparece, então, como o ‘patíbulo
onde foram sacrificados a felicidade dos povos, a sabedoria dos Estados, a virtude
dos indivíduos’” (MARCUSE, 2004, p. 202).
255
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Mas espera! Muitos acreditam que há alguém que tem não só o desejo, mas
o conhecimento e o poder para remover para sempre o mal e o sofrimento que
existem no mundo. Para a maioria dos teístas, há um Deus que existe como um
ser todo poderoso, todo conhecedor e totalmente bom. Certamente, se este tipo
de ser existe, ele/ela iria destruir o mal e o sofrimento. Então, por que persistem?
O filósofo cético David Hume reconheceu este problema e expressou isso de
forma concisa: “A Divindade quer evitar o mal, mas não é capaz disso? Então ela
é impotente. Ela é capaz, mas não quer evitá-lo? Então ela é malévola. Ela é capaz
de evitá-lo e quer evitá-lo? De onde, então, provém o mal?” (HUME, 1992, p.136).
2 CLASSIFICANDO O MAL
Alguns termos familiares são bastante fáceis de entender, mas quase
impossíveis de definir. Tomemos a palavra "jogo", por exemplo. Como Ludwig
Wittgenstein (1999) assinalou, é virtualmente impossível definir esta palavra,
embora normalmente temos nenhum problema de escolher um jogo dentre
alguma outra atividade ou evento. (Se você duvida da dificuldade de definir
"jogo", apenas tente oferecer uma definição que inclui apenas jogos e exclui tudo
o resto). Muitas outras palavras são como esta, incluindo o termo "mal". Enquanto
que uma série de definições de "mal" foram oferecidas ao longo dos séculos,
os debates sobre como deve ser definido são intermináveis. Então, ao invés de
tentar oferecer uma definição formal, vamos usar exemplos familiares, do que é
comumente considerado como sendo males, como o nosso padrão e guia. Aqui,
então, são alguns exemplos comuns de mal: catástrofes naturais, como terremotos,
furacões e incêndios florestais em que ocorre a morte de vida inocente; intenso
sofrimento e dor, como uma criança sendo espancada até a morte por um inimigo
tribal bárbaro, ou uma mulher grávida morrendo de câncer, ou uma zebra sendo
comida viva por um leão; deficiências físicas, mentais ou emocionais, tais como
nascer com uma fenda palatina, ou ter transtorno de personalidade borderline, ou
experienciar fraqueza da vontade em um momento crucial, e assim por diante. O
mal vem em toda a variedade de formas e tamanhos. Dado este fato, os filósofos
têm classificado o mal de várias maneiras, e uma das classificações mais comuns é
a distinção entre o mal natural e o mal moral.
256
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL
John Hick (2010, p. 12) oferece uma descrição muito concisa desta
distinção quando escreve: "O mal moral é o que nós, seres humanos, originamos:
pensamentos e atos cruéis, injustos e perversos. O mal natural é o mal que se origina
independentemente das ações humanas: na doença [...] terremotos, tempestades,
secas, tornados etc.". O mal moral é o tipo de mal pelo qual um agente moral
é moralmente responsável, incluindo tanto ações (tais como mentir, estuprar,
assassinar etc.) quanto traços de caráter (como a malícia, ganância, inveja e assim
por diante). O mal natural inclui os eventos pelos quais os agentes morais não são
responsáveis.
NOTA
Mal natural: o mal que resulta de fenômenos naturais e não é provocado pelo livre-
arbítrio de um agente moral. Ele inclui desastres naturais e determinadas doenças humanas.
Mal moral: o mal que resulta de um agente moral ao abusar de seu livre-arbítrio de tal forma
que o agente é condenável por ele. Ele inclui ações humanas, bem como traços de caráter.
Para uma excelente exploração dos problemas do mal, recomendamos a leitura da obra editada
por Sergio Miranda (2013), O problema do mal.
Enquanto estamos escrevendo este tópico, é possível que uma querida amiga
sua tenha sido diagnosticada com câncer de mama de estágio três. Imaginemos
que ela tem um marido e dois filhos pequenos e, dadas as probabilidades, ela não
tem uma grande chance de viver mais de cinco anos. Por que isso aconteceu? Por
que ela? Por que agora? O que pode ser ganho por ela passar por vários anos de
quimioterapia, dor e o terrível pensamento de deixar seu marido e filhos sem uma
esposa e mãe?
Imagine outra situação. Você está lendo, no jornal local, que uma mãe de
várias crianças foi sair de sua garagem, sem saber que a sua filha de três anos de
idade saiu de casa e caminhou atrás do veículo dela. A mãe, inadvertidamente,
atropelou a menina, matando-a no processo. Será que esses eventos não soam
sem sentido, totalmente inúteis? E se Deus, um ser onipotente (todo poderoso),
onisciente (todo conhecedor) e onibenevolente (plenamente bom) existe, por que
ele deixaria isso acontecer? Qual é o sentido disso? Estes são exemplos de mal
gratuito, injustificado, e eles são inumeráveis.
257
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
NOTA
258
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL
O Caso Sue (mal horrendo): nas primeiras horas do dia de Ano Novo de 1986, uma menina foi
brutalmente espancada, estuprada e depois estrangulada em Flint, Michigan. A mãe da menina
estava morando com o namorado e um outro homem que estava desempregado, além de seus
três filhos, incluindo um bebê de nove meses de idade, filho de seu namorado. Na véspera de
Ano Novo, todos os três adultos foram beber em um bar perto da casa da mulher. O namorado,
que estava usando drogas e bebendo muito, foi convidado a se retirar do bar às 20h00min.
Depois de várias reaparições ele finalmente deixou de fato o bar cerca de 21h30min. A mulher
e o homem desempregado permaneceram no bar até as 02h00min da madrugada, ponto
em que a mulher foi para casa e o homem foi a uma festa na casa de um vizinho. Talvez por
inveja, o namorado atacou a mulher quando ela entrou na casa. Seu irmão interveio, atingindo
o namorado e deixando-o desmaiado e caído sobre uma mesa. O irmão foi embora. Mais
tarde, o namorado atacou a mulher novamente e desta vez ela o deixou inconsciente. Após
ver os filhos, ela foi para a cama. Mais tarde, a filha de cinco anos de idade, desceu as escadas
para ir ao banheiro. O homem desempregado testemunhou que quando ele voltou da festa,
às 03h45min, ele encontrou a menina de cinco anos de idade morta. No seu julgamento, o
namorado foi absolvido do crime porque seu advogado lançou dúvidas sobre a inocência do
homem desempregado. Mas a menina fora estuprada, espancada gravemente sobre a maior
parte de seu corpo, e estrangulada por um desses homens naquela noite.
259
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
FONTE: O autor
260
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL
DICAS
Para uma visão geral destes problemas verifique a obra de Sweetman (2013),
especialmente as páginas 91-93. Para compreender melhor as críticas e refutações ao problema
lógico do mal, veja o artigo O desafio do Deus Malévolo de Stephen Law (2010), disponível
em: <https://rebeldiametafisica.wordpress.com/tag/problema-logico-do-mal/>, e o artigo O
problema lógico do mal de James R. Beebe (2011), disponível em: <https://rebeldiametafisica.
wordpress.com/2011/06/24/o-problema-logico-do-mal/>.
Podemos até imaginar casos em que algum mal possa ser necessário para
que o bem possa resultar. Por exemplo, mostrar o perdão a alguém que tenha lhe
prejudicado maldosamente e que esteja arrependido, ou mostrar coragem perante
a tortura, ambos exigem logicamente que eu estivesse ferido e torturado. Se estes
são bons exemplos não vem ao caso, pois é logicamente possível que certos bens
justificam certos males, e é impossível provar o contrário.
261
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
262
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL
DICAS
263
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
264
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL
Agora, considere dois mundos possíveis, M e M*, que têm o José neles e
são idênticos até o ponto em que é oferecida a José a oportunidade de destruir os
documentos e encobrir a dívida. Suponha que em M ele aceita a oferta e em M*
ele não a aceita. O argumento de Plantinga, então, é que se M ou M* tornar-se real
é em parte devido a Deus e em parte a José. Dado o livre-arbítrio de José, se José
aceita a oferta de fazer errado, então Deus não poderia fazer ocorrer o cenário em
que José rejeita a oferta, Deus não poderia fazer ocorrer o M*.
265
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Uma resposta a essa objeção é que, embora possa ser o caso que se
poderia conceber um cenário como esse, não se segue que o mesmo poderia
(metafisicamente) acontecer. Poderia haver razões pelas quais a adição de mais
uma coisa boa não faria um mundo particular melhor do que é.
Existem grandes quantidades de mal horrendo e gratuito que um ser onipotente, onisciente e
1 onibenevolente poderia ter evitado sem perder um bem maior ou permitir algum mal igualmente
ruim ou pior.
Um ser onipotente, onisciente e onibenevolente teria impedido os males horrendos e gratuitos
2 que existem, a menos que o ser não pudesse fazê-lo sem perder um bem maior ou permitir algum
mal igualmente ruim ou pior.
3 Portanto, um ser onipotente, onisciente e onibenevolente não existe.
FONTE: O autor
266
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL
Uma objeção ao argumento de Rowe é que uma vez que somos seres
humanos finitos, limitados, simplesmente não estamos em uma posição epistêmica
apropriada para fazer uma avaliação legítima sobre o que um ser onisciente,
onipotente e onibenevolente poderia ou iria fazer em qualquer situação, inclusive
situações em que o mal existe. Dado as nossas óbvias limitações temporais e
espaciais, nós simplesmente não podemos justificadamente fazer julgamentos
morais sobre Deus (WYKSTRA, 2013).
A segunda objeção é que pode muito bem não haver nenhum mal gratuito
nem horrendo como definido acima. Por exemplo, depois de descrever sua jornada
pessoal através do que lhe parecia, à primeira vista, como um mal gratuito em sua
vida e a de sua família, o filósofo John Feinberg oferece dez "usos do sofrimento",
em que um teísta cristão pode ter conforto. Não podemos delineá-los aqui, mas
eles incluem Deus permitindo a dor a fim de proporcionar uma oportunidade
para demonstrar a fé verdadeira ou genuína e promover a maturidade na vida
(FEINBERG, 2004). Pode-se objetar a isso citando os exemplos dos tipos de Ivan
Karamazov (como as crianças que são jogadas aos cães) nos quais parece evidente
que nem todos os casos de sofrimento/mal estão conectados a um bem maior. No
entanto, a resposta poderia ser dada de que, mesmo se isto for assim, de um modo
geral todo o mal/sofrimento, no final, será redimido por Deus. Marilyn McCord
Adams (2000) elabora tal ponto, utilizando uma estrutura teológica cristocêntrica
que leva a sério o Filho de Deus sofredor. Ela argumenta que há uma boa razão
para que os cristãos acreditem que Deus irá, no final, engolfar e derrotar todos os
horrores pessoais através da participação integradora nos males na relação de uma
pessoa com Deus.
267
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
4.1 RESPOSTA
Uma resposta comum para o problema existencial do mal, de cunho
experiencial, é que o "problema" aqui não é realmente um argumento em absoluto,
e, portanto, não tem a necessidade de uma resposta lógica, racional.
268
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL
Se ela, em seguida, faz uma pausa e pede a sua filha, "Você entende,
querida?", não se surpreenda se a menina respondesse: "Sim, mamãe, mas ainda
dói!". Toda a explicação, naquele momento, não impede a sua dor. A criança não
precisa de um discurso; ela precisa de abraços e beijos de sua mãe. Haverá um
tempo para o discurso mais tarde; agora ela precisa de conforto.
5 AS TRÊS TEODICEIAS
269
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Esta tem sido a teodiceia mais utilizada no Ocidente desde o século V da era
comum, e ela ainda é amplamente utilizada hoje, como, por exemplo, na excelente
obra de Richard Swinburne (1998), que também tem sido amplamente criticada, a
qual traz duas objeções.
5.1.1 Objeção
Para Agostinho, Deus é totalmente soberano e não está sujeito às escolhas e
caprichos de pessoas falíveis e finitas, mas, se Deus é soberano, como é que o mal
emergiu em seu universo? Parece haver um conflito entre a defesa do livre-arbítrio
de Agostinho, de um lado, e sua visão de Deus, de outro, pois parece que Deus,
entendido desta maneira, poderia ter criado pessoas que seriam santos espirituais
e, portanto, sempre escolheriam o bem. Então, por que eles escolheram pecar?
270
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL
NOTA
Santo Agostinho (354-430 EC) foi um filósofo, teólogo e padre cristão da Igreja,
entre os mais influentes na história. Sua peregrinação espiritual o levou do
ceticismo como um jovem adulto até tornar-se Bispo de Hipona em seus últimos anos. Seu
trabalho sobre a liberdade humana difundiu sua carreira, e praticamente todos os filósofos
medievais de renome no Ocidente cristão interagiam com a obra de Agostinho sobre o livre-
arbítrio e questões relacionadas, tais como a presciência, predestinação e a graça divina. Suas
obras filosóficas mais importantes incluem A Cidade de Deus (1990), O Livre-Arbítrio (1995), e
sua autobiografia, Confissões (1996).
Teodiceia: a palavra “teodiceia” vem de duas palavras gregas – theos (Deus), e dikei (justiça). A
teodiceia é uma tentativa de reivindicar a bondade e justiça de Deus perante a realidade do mal.
Deus criou o mundo como um lugar bom (mas não um paraíso) para o desenvolvimento de pessoas humanas
1
tanto espiritual quanto moralmente.
Através de meios evolutivos, Deus fez emergir pessoas humanas com a liberdade de vontade e a capacidade
2
para amadurecer no amor e na bondade.
3 O mal é o resultado tanto da criação de um mundo bom de formação de almas e da escolha humana de pecar.
Ao colocar as pessoas humanas neste ambiente desafiador, através de suas próprias respostas livres, elas têm a
4 oportunidade de escolher o que é certo e bom e, portanto, crescer gradualmente em pessoas maduras (que exibem
as virtudes da paciência, coragem e generosidade, por exemplo) que Deus deseja que elas sejam.
Deus continuará a trabalhar com as pessoas humanas, mesmo na vida após a morte se necessário, permitindo-
5 lhes oportunidades para amar e escolher o bem, de tal forma que no escaton (último, fim das coisas) todos serão
levados a um relacionamento correto com Deus.
FONTE: O autor
271
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
5.2.1 Objeção
272
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL
Deus não é o criador transcendente que criou o mundo ex nihilo (do nada), mas é Deus no mundo;
1
isto é, o panenteísmo no qual tudo está em Deus, mas nem tudo é Deus.
Deus não é nem onisciente nem onipotente no sentido tradicional; O poder de Deus é compartilhado
2 com outras entidades e o conhecimento de Deus aumenta na medida em que suas experiências
aumentam.
O universo é caracterizado pela evolução, processo e mudança, alguns dos quais tem sido provocado
3
pelas escolhas livres autodeterminadas de entidades, incluindo Deus e as pessoas finitas.
Algumas das escolhas feitas por pessoas humanas são boas e algumas são más. Há a esperança de
4 que o mal continuará a ser engolfado na medida em que todas as experiências sejam sintetizadas
na própria vida consciente de Deus.
FONTE: O autor
DICAS
5.3.1 Objeções
273
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
comum, compreensão do poder divino. Então, essa crítica do processo está mal
colocada contra a maioria das noções tradicionais da onipotência. Por outro lado,
a crítica do processo referente à teologia tradicional que afirma o livre-arbítrio
humano e, portanto, uma limitação de alguma espécie no poder de Deus, é sem
dúvida fraca. Por exemplo, em resposta a uma teodiceia do livre-arbítrio, os
filósofos do processo alegaram que tal visão permitiria que Deus pudesse eliminar
qualquer mal particular que ocorresse orientado pela vontade livre, mas ele não
o faz. Portanto, Deus poderia parar um estuprador antes de estuprar, fazer uma
bomba terrorista não explodir, ou fazer com que um ladrão seja pego, antes de
fugir. Uma vez que Deus poderia fazer tais coisas sem interromper o livre-arbítrio,
mas não o faz, argumentam eles, Deus não é realmente bom sob esta perspectiva.
No entanto, os defensores da teodiceia do livre-arbítrio respondem argumentando
que um tipo de livre-arbítrio em que não se permite as ações de uma pessoa ser
eficaz não é verdadeiramente livre-arbítrio em absoluto. Assim, tal objeção não se
justifica.
DICAS
274
RESUMO DO TÓPICO 1
275
AUTOATIVIDADE
I – Mal Horrendo
II – Mal Gratuito
III – Mal Natural
IV – Mal Moral
276
UNIDADE 3
TÓPICO 2
CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO
1 INTRODUÇÃO
Será que esta dicotomia entre a religião e a ciência, com a aquela baseada na
fé cega subjetiva e esta baseada na razão objetiva e evidências, é correta? Podem as
crenças religiosas ser, em algum momento ao menos, racionalmente justificadas?
Será que elas devem ser racionalmente justificadas? Além disso, qual é a relação
adequada entre a ciência e a religião? Seriam elas de alguma forma compatíveis?
Há muitas vezes um confronto entre a fé e a razão, entre a religião e a ciência. Mas
deve ser assim? Estas são algumas das questões e problemas, que vamos explorar
neste tópico.
277
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
2 A RELIGIÃO E A CIÊNCIA
Antes de examinar esta relação, vamos primeiro tentar uma breve descrição
da ciência (uma descrição da religião foi oferecida no Tópico 1 da Unidade 2):
ciência envolve a exploração, a descrição, a explicação e a previsão de ocorrências
no mundo natural que podem ser verificadas e apoiadas pela evidência empírica.
Esta descrição da ciência é derivada daquela oferecida por Carl Hempel (1981).
Como se vê, as alegações feitas por aqueles que praticam a ciência estão às vezes
em desacordo com as afirmações religiosas. Então, como a ciência e a religião se
relacionam uma com a outra? Várias opções foram propostas, e para os nossos
propósitos, vamos restringi-las a três: conflito, independência e integração. Para
explorar estas e outras opções veja a obra “Quando a Ciência encontra a Religião”
de Ian Barbour (2004).
2.1 CONFLITO
Uma maneira de compreender a relação entre a ciência e a religião é vê-las
em conflito uma com a outra. Este conflito tem sido evidente ao longo dos séculos.
Talvez o mais bem conhecido destes engajamentos tenha sido a controvérsia
criação-evolução. Este confronto foi tipificado em 1860 quando o bispo Samuel
Wilberforce (1805-1873) pediu ao biólogo Thomas Huxley (1825-1895; conhecido
como o "Buldogue de Darwin" por sua defesa da teoria da evolução) se ele alegava
descendência simiesca por meio de seu avô ou de sua avó. A resposta de Huxley
foi tão sarcástica quanto à própria interpelação, afirmando que ele seria muito
mais feliz de ter um símio como um avô do que alguém que distorce a verdade e
confunde as coisas (HUXLEY, 2009; BONE, 2003).
278
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO
2.2 INDEPENDÊNCIA
Uma segunda opção para a compreensão da relação entre a ciência e a
religião é a independência; é vê-las como formas completamente independente de
pensamento e práticas que nunca entram em contato. Esse ponto de vista tende
a proporcionar um relacionamento mais irônico entre a ciência e a religião, pois
desde que elas são domínios totalmente diferentes, as mesmas nunca estão em
desacordo. Existem diferentes expressões da posição de independência, mas as
duas mais proeminentes são a neo-ortodoxia protestante e a análise linguística.
Vamos examinar brevemente cada uma por sua vez.
279
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
NOTA
Karl Barth (1886-1968) foi um teólogo reformado suíço e um dos mais influentes
pensadores cristãos protestantes do século XX. Ele desenvolveu uma “teologia da Palavra”, em
que o conhecimento e o entendimento religioso é conferido pela fé, uma fé oferecida somente
por Cristo, sob a soberania de Deus. Sua teologia é muitas vezes referida como neo-ortodoxia
pelos críticos. Ele foi um escritor prolífico, com sua magnum opus sendo os treze volumes da
Dogmática Eclesiástica (1932-1967), cuja tradução para o português está ainda em andamento.
Algumas de suas obras já traduzidas para o português são “Fé em busca de compreensão”
(2003) e “Esboço de uma dogmática” (2006).
280
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO
A independência assume que a religião não tem nada a dizer sobre o mundo
natural e que a ciência não faz nenhuma reivindicação cognitiva sobre o domínio
religioso. Mas isto parece ser falso. Por exemplo, as três principais religiões teístas
afirmam um evento de criação em que Deus trouxe o universo à existência, e elas
descrevem Deus como estando ativamente envolvido na ordem criada (induzindo
pragas, curando os enfermos, partindo o mar etc.). Alguns dos argumentos para a
existência de Deus também incluem fatos empíricos, como base para a crença em
um criador ou designer sobrenatural, como vimos nos Tópicos 4 e 5 da Unidade 2.
As religiões não teístas também fornecem afirmações relevantes para o universo
físico natural. Entendimentos budistas do dharma (por exemplo, a verdade ou
a realidade última) ou noções budistas e hindus do carma, são tomadas como
aspectos reais do mundo que têm efeitos físicos e causais dentro do mundo. A
ciência e a religião às vezes fazem reivindicações que entram em conflito.
2.3 INTEGRAÇÃO
Uma terceira maneira de compreender a relação entre a ciência e a religião
é aquela em que é possível alguma forma de integração entre elas (PETERS;
BENNETT, 2003; McGRATH, 2005). A abordagem de integração leva a sério
tanto os conflitos que ocorrem entre a religião e a ciência, por um lado, e o papel
singular de cada domínio, por outro. Diferentes versões da integração têm sido
apresentadas, e duas perspectivas principais serão esboçadas a seguir.
281
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
o ponto é que mesmo que a teologia natural e ciências naturais tenham objetivos,
metas e métodos singulares, suas descobertas podem levá-los ao mesmo objeto.
Por exemplo, como vimos no Tópico 5 da Unidade 2, as constantes cósmicas do
universo físico podem (assim sugerem os defensores da teologia natural) apontar
para um designer inteligente do universo – um designer postulado pelas religiões
teístas. Além disso, Richard Swinburne (1934-) propôs recentemente argumentos
bayesianos (probabilísticos) para a existência de Deus e para a ressurreição de
Jesus (SWINBURNE, 1979; 2003).
282
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO
NOTA
Por outro lado, estão aqueles que negam que a razão e a evidência devem
ser usadas para justificar ou validar a fé religiosa; podemos chamar perspectivas
deste tipo de perspectivas não evidenciais da fé e da razão. Isso não quer dizer
que os adeptos das perspectivas não racionais negam que a razão seja necessária
para entender as crenças religiosas ou praticar a fé religiosa. Em vez disso, eles
negam que manter crenças religiosas depende de ter razões ou evidências para
essas crenças serem objetivamente verdadeiras. Em tópicos anteriores examinamos
diferentes tipos de evidências que têm sido utilizadas por aqueles que afirmam a
validação racional para sustentar certas crenças religiosas (como aquela que Deus
existe). No restante deste tópico, examinaremos várias diferentes perspectivas não
evidenciais da razão e da fé.
3.1 O FIDEÍSMO
Para os fideístas (da palavra latina fides, que significa fé), usar a razão para
demonstrar ou avaliar as religiões ou crenças religiosas é sempre inadequado. A
fé não é o tipo de coisa que precisa de justificação racional, mantêm os fideístas, e
tentar provar a própria fé religiosa pode até ser uma indicação de uma falta de fé.
283
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Kierkegaard viu a sua sociedade como uma em que ser cristão tornou-se,
devido à influência hegeliana e outras, simplesmente nascer na "cristandade".
Não era mais uma experiência individual de escolher viver uma vida interior
de devoção e paixão, mas sim se tornou um conjunto de crenças culturais que
alguém poderia vir a manter através de argumentos racionais e evidências. Mas,
para Kierkegaard, a verdadeira religião não é fria e calculista, regurgitando as
respostas certas para problemas lógicos e questões estereotipadas em uma forma
sistemática e impessoal. Pelo contrário, é apaixonada e obsessiva, mais semelhante
a uma relação íntima entre dois jovens amantes. Ele acreditava que não há provas
sólidas para a fé religiosa, e que, mesmo que houvesse elas seriam inúteis para
o desenvolvimento de verdadeira fé religiosa, pois a "certeza [...] se esconde na
porta da fé e ameaça devorá-la" (2013b, p. 30). Além disso, o dogma cristão, como
a crença de que um Deus infinito se tornou um ser humano finito, inclui paradoxos
que são contrários à razão e à lógica, enquanto a verdadeira fé religiosa implica
um “salto”. Um filósofo da história resume a visão de Kierkegaard sobre o assunto
desta maneira:
NOTA
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um filósofo idealista alemão. Ele
argumentou que a história tem uma teleologia – é o desenvolvimento racional e
a produção da Mente ou do Espírito, que ele chamou de o Absoluto. Seus trabalhos incluem
Lectures on the philosohpy of religion (1895; Lições sobre a filosofia da religião), Fenomenologia
do Espírito (1992) e Enciclopédias das Ciências Filosóficas em Compêndio (1995).
284
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO
285
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
útil primeiro esboçar a posição para a qual ele estava respondendo, uma posição
estabelecida pelo matemático e filósofo britânico, W. K. Clifford (1845-1879).
286
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO
1. Viva ou morta: uma opção viva é aquela em que ambas as hipóteses possuem
algum apelo emocional (mas não racional) para aquele que fará a escolha; uma
opção morta carece de tal apelo. Por exemplo, para muitos europeus e norte-
americanos, no século XIX, a opção, "ser um hindu ou budista," não era uma
opção viva, ao passo que "ser um cristão ou um agnóstico" era uma opção viva.
2. Forçosa ou evitável: uma opção forçosa é aquela em que ambas as hipóteses
são mutuamente exclusivas e na qual não há uma terceira possibilidade. Por
exemplo, a opção de "ler este livro ou de não lê-lo" é forçosa. Uma opção evitável
é aquela em que as duas hipóteses não envolvem tal disjunção ou dilema lógico;
por exemplo, se perguntarmos qual entre dois partidos políticos brasileiros
alguém apoia, não há nenhuma opção forçosa aqui. Pode-se apoiar a um terceiro
partido ou simplesmente ser ambivalente sobre qualquer um deles.
3. Premente ou trivial: uma opção premente é aquela na qual muita coisa depende
da decisão entre as hipóteses. Por exemplo, se a você fosse dada a oportunidade
de participar da próxima tripulação do ônibus espacial para viajar ao espaço
sideral, a sua opção seria premente; é uma oportunidade única e significativa.
Por outro lado, ser ofertado com a escolha de beber café em vez de chá, é uma
opção trivial (em algumas ocasiões, ao menos).
Nossa natureza passional não só pode, como deve, licitamente decidir-
se por uma opção entre proposições sempre que esta for uma opção
genuína que não possa, por sua natureza, ser decidida sobre bases
intelectuais; pois dizer, nessas circunstâncias: ‘Não decida, deixe a
questão em aberto’ é, por si só, uma decisão passional - assim como
decidir sim ou não - e acompanha-se do mesmo risco de perder a
verdade (JAMES, 2001, p. 22).
No que diz respeito às crenças religiosas, as apostas são, por vezes, tão
altas que o risco de se perder a verdade de fato vale a pena, mesmo que o erro
seja uma possibilidade real. Seguir a abordagem de Clifford, de acreditar somente
287
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
quando a evidência está disponível e certa, faria com que nossas vidas se tornassem
epistemologicamente estéreis e privadas da plenitude que poderiam experienciar.
James define a fé deste modo: “uma crença em algo preocupante no qual a dúvida é
ainda teoricamente possível; e enquanto o teste da crença é a vontade para agir, alguém
poderia dizer que a fé é a prontidão para agir em uma causa em que a sua questão
próspera não está certificada com antecedência” (JAMES, 1970, p. 90). Há riscos em
ambas as abordagens de Clifford e de James. Se seguirmos a Clifford, enquanto nós
poderíamos evitar de acreditar no que é falso, poríamos em risco acreditar no que
é verdadeiro e útil. James descreve a abordagem de Clifford da seguinte maneira:
"É melhor se arriscar à perda da verdade do que à chance de erro – esta é a posição
exata daquele que veta a fé" (JAMES, 2001, p. 43-44). Se seguirmos James, a escolha de
acreditar corre o risco de cair em erro sobre questões fundamentais. No entanto, ele
diz: "Se a religião for verdadeira e as evidências em prol dela ainda forem insuficientes,
não desejo, [...] ser privado de minha única chance na vida de ficar do lado vencedor"
(JAMES, 2001, p. 44-45).
E
IMPORTANT
Pondere a seguinte citação de Russell: “Podemos definir ‘fé’ como a firme crença
em algo para o qual não há nenhuma evidência. Onde há evidências, ninguém fala de ‘fé’. Nós
não falamos de fé em que dois e dois são quatro, ou que a Terra é redonda. Nós só falamos de
fé quando queremos substituir emoção por evidências. (RUSSELL, 2009, p. 34).
NOTA
288
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO
‘Deus existe ou não existe’. Para que lado tenderemos? A razão não o
pode determinar: um caos infinito nos separa. Na extremidade desta
distância infinita, joga-se cara ou coroa. Em que apostareis? Pela razão,
não podereis atingir nem uma nem outra; pela razão, não podereis
defender uma ou outra. Não acuseis, pois, de falsidade os que fizeram
uma escolha, já que nada sabeis [...] mas é mister apostar. Não é algo
que dependa da vontade, já estamos inseridos nisso. Qual escolhereis?
Vejamos. Uma vez que é necessário escolher, vejamos o que menos vos
interessa. Tendes duas coisas a perder: a verdade e o bem; e duas coisas
a empenhar: vossa razão e vossa vontade, vosso conhecimento e vossa
beatitude; e vossa natureza tem que fugir de duas coisas: o erro e a
miséria. Vossa razão não se sentirá mais atingida por terdes escolhido
uma coisa de preferência a outra, pois é preciso necessariamente escolher
[...] Mas, e vossa beatitude? Pesemos o ganho e a perda escolhendo a
cruz, que é Deus. Consideremos esses dois casos: se ganhares, ganhareis
tudo; se perderes, não perdereis nada. Apostai, pois, que ele existe sem
hesitação. (PASCAL, 1999, p. 92-93).
Se você optar por acreditar em Deus e Deus existe, você tem ganho infinito.
Se você optar por acreditar em Deus e Deus não existe, você não perdeu muito,
terás uma perda finita (ou nada). Se você optar por não acreditar em Deus e Deus
existe, você não terá nenhum grande ganho, um ganho finito, e você poderá ter
uma perda infinita. Se você optar por não acreditar em Deus e Deus não existe,
você de novo não terá um grande ganho. Assim, mesmo com pouca ou nenhuma
evidência, temos razão, razão de autointeresse ou de investimento em si mesmo, de
acreditar em Deus. A nossa melhor aposta, Pascal sustenta, é acreditar. O quadro a
seguir representa a estrutura da matriz de decisão, matriz de Pascal.
289
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
290
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO
291
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Além disso, as crenças como estas acima podem ser plenamente justificadas:
292
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO
ATENCAO
DICAS
293
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Isso conduz a uma segunda crítica. Mesmo que a crença em Deus seja
propriamente básica para algumas pessoas (os epistemólogos reformados, por
exemplo), isso não é garantia de que a crença é, de fato, verdadeira. Plantinga
admite isso. Ele expõe o fato deste modo:
294
RESUMO DO TÓPICO 2
295
• A fé religiosa não precisa de justificativa racional; a razão pode até mesmo ir
contra tal fé. Em resposta àqueles que não concordam com este ponto de vista
(chamados de evidencialistas).
• Blaise Pascal vai ainda um passo adiante em seu pragmatismo: a nossa melhor
aposta, ele argumenta, é acreditar em Deus. Temos muito a ganhar se optarmos
acreditar assim, e muito a perder se nós escolhermos desacreditar.
296
AUTOATIVIDADE
a) Uma opção morta é aquela em que ambas as hipóteses possuem algum apelo
emocional (mas não racional) para aquele que fará a escolha.
b) Uma opção evitável é aquela em que ambas as hipóteses são mutuamente
exclusivas e na qual não há uma terceira possibilidade.
c) Uma opção premente é aquela na qual muita coisa depende da decisão entre
as hipóteses, uma oportunidade única e significativa.
d) Uma opção forçosa é aquela em que duas hipóteses não envolvem dilemas
lógicos, ou seja, há sempre uma terceira alternativa.
297
298
UNIDADE 3
TÓPICO 3
EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
1 INTRODUÇÃO
299
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
300
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
DICAS
301
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
DICAS
302
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
De acordo com estudos recentes, pelo menos um quarto dos dois bilhões
de cristãos do mundo são pensados como sendo membros desta faceta da fé
cristã que enfatiza tais "dons do Espírito Santo", como a cura, a glossolalia (falar
em línguas), o profetizar, ter sonhos e visões. Veja, por exemplo o livro de I
Coríntios, 12.4-11 e o livro de Atos dos Apóstolos, 2.4-42 (BÍBLIA, 1994). Estes dons
carismáticos são descritos nestes livros bíblicos (que também incluem referências
ao Antigo Testamento, onde os dons carismáticos foram profetizados), mas não
estão limitados aos mais espetaculares mencionados anteriormente; eles também
incluem infusões sobrenaturais de sabedoria, de conhecimento e de fé, por exemplo.
303
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
E
IMPORTANT
Carismáticos são cristãos que quer descrevem a si mesmos como “cristãos carismáticos” (mas
não pertencem a denominações pentecostais), ou que manifestam um ou todos os chamados
dons carismáticos.
Santa Teresa de Ávila (1515-1582), também conhecida como Santa Teresa de Jesus, era uma
freira mística e carmelita espanhola. Ela tinha visões frequentes e experiências religiosas de
êxtase. Ela se tornou a primeira mulher a ser nomeada Doutora da Igreja Católica em 1970, e
é uma das três únicas mulheres a receber tal honra. Seus escritos incluem sua autobiografia,
Castelo Interior ou Moradas (2015) e O Caminho da Perfeição (2015).
304
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
305
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
NOTA
Daisetz Teitaro (D. T.) Suzuki (1870-1966) foi professor de filosofia budista na
Universidade Otani, Kyoto, e lecionou em universidades norte-americanas, incluindo Columbia
e Harvard. Ele era um dos principais proponentes do Zen Budismo no Ocidente. Seus principais
trabalhos incluem Uma Introdução ao Zen-Budismo (1964), A doutrina Zen da Não Mente
(1993), e Mística: cristã e budista (1976).
306
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
experiência? Como William James (1995, p. 407) pergunta, "será que os estados
místicos estabelecem a verdade daqueles afetos teológicos nos quais a vida santa
tem a sua raiz?".
NOTA
308
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
transferido para o cético que duvida de sua veracidade? Ele observa que, embora
na vida ordinária a experiência de uma cadeira seja um bom motivo para acreditar
em uma cadeira, assim também a experiência da ausência de uma cadeira é um
bom motivo para acreditar que a cadeira está ausente (MARTIN, 1990).
309
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Nessa discussão, uma distinção deve ser feita entre os relatórios psicológicos
em primeira pessoa, tais como "parece que estou vendo um cisne negro", com
experiências perceptivas, tais como "Eu vejo um cisne negro". Com este último
tipo de experiência uma pessoa pode estar enganada. Eu pensei que era um cisne
negro, mas acabou por ser um ganso marrom do Canadá. Com o primeiro tipo de
experiência uma pessoa não pode estar enganada. Mesmo que acabou por ser um
ganso marrom do Canadá, a alegação de que "parece que estou vendo um cisne
negro" não deixa de ser verdadeira. Esses tipos de relatórios privados de primeira
pessoa são sobre os acontecimentos que ocorrem na própria mente do indivíduo e
são referidos como experiências incorrigíveis, enquanto eu possa estar enganado
sobre o que eu vejo, eu não posso estar equivocado de que parece-me estar vendo
o que eu vejo.
310
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
NOTA
311
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Até aqui tudo bem, digamos. Contudo o que dizer sobre as experiências
que são totalmente contraditórias, tais como aquelas do advaita vedanta e do
muçulmano descritas acima? Não são elas tão inconsistentes que chegam a
anular-se mutuamente? Além disso, não é o caso de que os adeptos religiosos
têm experiências que tendem a estar em conformidade com as suas próprias
perspectivas religiosas? Os muçulmanos têm experiências de Alá; os cristãos têm
experiências de Jesus; os budistas têm experiências do não self; e assim por diante,
certo? Isto nos conduz para a próxima objeção.
312
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
313
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
causa de uma profunda necessidade de um Pai celestial. Isso prova que um Deus
pessoal e poderoso não existe? Certamente não. Além disso, pode ser que um tal
Deus pessoal e poderoso utiliza a relação familiar como ferramenta pedagógica
para ensinar as pessoas sobre a natureza de Deus. Na verdade, isto é precisamente
o que muitos judeus, cristãos e muçulmanos realmente acreditam e como eles
interpretam as passagens em suas escrituras sagradas que se referem a Deus como
Pai, amigo etc. Um mesmo tipo de resposta poderia ser desenvolvido com respeito
às outras religiões também.
NOTA
314
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
DICAS
• Seja qual for a sua causa, as experiências religiosas têm sido uma parte do tecido
das tradições religiosas desde os seus primeiros desenvolvimentos. Elas se
apresentam em toda a variedade de formas.
316
AUTOATIVIDADE
317
318
UNIDADE 3
TÓPICO 4
1 INTRODUÇÃO
Enquanto cada uma das religiões do mundo fornece uma resposta positiva
à questão de saber se há uma existência continuada após a morte, as respostas
fornecidas por elas são bastante diferentes. Antes de explorar algumas das questões
centrais que circundam a vida após a morte, é importante, primeiro, aprofundar
a questão do que é o self (o eu) e do que consiste a identidade pessoal, pois nossas
respostas a estas questões irão influenciar significativamente a nossa compreensão
de como nós vemos a vida após a morte.
319
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
1. Dualismo
2. Materialismo
3. Panteísmo Monista
4. A doutrina budista do Não Self
320
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
2.1 O DUALISMO
Historicamente houve uma variedade de concepções do self, e no Ocidente
o dualismo tem sido a concepção mais amplamente aceita entre todas elas. Em uma
das principais explicações dualistas, uma pessoa é composta por duas substâncias,
uma substância material (o corpo) e uma substância imaterial ou mental (a alma
ou a mente). René Descartes (1596-1650) é talvez o defensor mais amplamente
reconhecido do dualismo substancial, ou dualismo da mente-corpo (DESCARTES,
2002; MARQUES, 1993). Em sua explicação, a alma é uma substância sem extensão
(não espacial), e é contrastada com o corpo, uma substância extensa (espacial). A
alma e o corpo (de alguma forma) se relacionam entre si, mas como uma substância
imaterial pode interagir com uma substância física é um mistério, um mistério que
tem sido muitas vezes criticado severamente como o problema do “fantasma na
máquina”. O filósofo britânico Gilbert Ryle (2005) foi o primeiro a usar o termo
“fantasma na máquina” como uma descrição pejorativa do dualismo de substância
de René Descartes.
321
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
NOTA
Veja também outro artigo de F. C. Jackson (2013), no qual ele amplia a discussão
vista acima. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Jackson-Mary-nao-sabia-1.
pdf>.
322
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
323
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
2.2 O MATERIALISMO
Por uma série de razões que não caberiam aqui, a teoria da identidade
tem estado em declínio nos últimos anos. Outra perspectiva materialista tem se
tornado proeminente e é, provavelmente, a visão dominante hoje entre os filósofos
da mente e cientistas cognitivos. Este ponto de vista é chamado de funcionalismo
(COSTA, 2005; FONTANELLA, 2013). Os funcionalistas sustentam (tal como
fazem os dualistas) que é impossível identificar determinados estados mentais
com determinados estados cerebrais. No entanto, é possível caracterizar os estados
mentais por referência ao comportamento. Na explicação funcionalista, a mente
é como uma caixa-preta e pode ser explicada em termos de inputs (entradas) e
outputs (saídas). Considere esta analogia. Eu não sei como este computador em
324
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
que estou escrevendo funciona; Estou totalmente não familiarizado com as suas
estruturas internas, peças e seu funcionamento interno. No entanto, eu não preciso
saber de tais informações. O que conta é que, dados certos inputs, certos outputs
ocorrem. Quando eu teclei a letra "m", por exemplo, um “m” aparece na tela. Para
mim, o computador é uma caixa-preta.
FONTE: O autor
Para alguns materialistas não há vida após a morte. Uma vez que o corpo
físico morre, a pessoa morre para sempre. Para outros materialistas, a vida após
a morte é uma possibilidade real. Os materialistas cristãos recentes, por exemplo,
afirmam que haverá vida após a morte, quando Deus trouxer o corpo de volta à
vida no escaton. Vamos examinar a possibilidade da ressurreição depois.
garras desta grande ilusão e torna-se consciente de seu verdadeiro Self como o
Brahman indiferenciado. Uma símile que às vezes é usada aqui é que o Brahman é
como o Espaço e os selves individuais são como espaços em jarros. Quando os jarros
são destruídos o espaço nos jarros mescla-se de volta no Espaço. A iluminação
rompe aberto os jarros e a identidade individual em última análise é vista como
sendo absorvida no Brahman indiferenciado. Shankara (1992, verso 288) expressa
isso da seguinte forma: “Como se une o espaço dentro da jarra (rompendo-a) com o
espaço infinito, assim unindo ao jiva [sem divisão] com Brahman [o Self supremo]”.
Entretanto, alcançar o moksha é uma tarefa árdua, e para o Vedanta o processo pelo
qual se alcança o mesmo envolve livrar-se, através de muito esforço, dos efeitos
negativos do carma, tipicamente através de uma sucessão de reencarnações.
DICAS
Uma jarra, ainda que seja uma modificação da argila, não é diferente dela. Em
qualquer parte, a jarra em essência é argila. Então, por que denominá-la jarra? É uma coisa
fictícia, é um nome de fantasia. A realidade é o próprio barro. Ninguém pode demonstrar que
a essência da jarra é algo diferente da argila (da qual é feita). Portanto, a jarra foi imaginada
meramente pela ilusão; seu componente, a argila, é a realidade básica. Do mesmo modo, o
universo inteiro, sendo o efeito do real Brahman, em essência não é nada mais que Aquele.
A realidade do universo é Brahman, fora do qual não há outra existência. Se alguém diz,
“este é” (que o universo tem sua existência particular), está ainda sob a ilusão e está falando
incoerentemente, como aquele que fala dormindo (SHANKARA, 1992, versos 28-30).
Por uma série de razões os budistas não estão satisfeitos com os dualistas,
materialistas, e com a perspectiva hindu do self. Nós vimos no Tópico 3, da Unidade
2, a doutrina budista do Anatman (não self). Esta perspectiva é baseada na metafísica
budista na qual não há nenhuma "coisa" que tenha existência independente; não
existem substâncias individuais. Similar à perspectiva Advaita observada acima,
uma verdade central de uma escola do Budismo, a escola Mahayana, é que o self
individual não existe e nossa crença de que ele exista é apenas uma ilusão. Mas
ao contrário da visão Advaita, existem várias experiências, desejos, sentimentos e
anseios que são reais e estão em fluxo contínuo.
326
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
Os budistas admitem que apreender o ensino de não self não pode ser fácil;
também aqui pode muito bem requerer livrar-se, através de muito esforço, dos
efeitos negativos do carma e múltiplas reencarnações para chegar a esta realização.
Portanto, temos quatro concepções distintas do self, e cada uma delas oferece
perspectivas únicas sobre a morte e a vida após a morte. Para o materialista, a vida
após a morte é possível se o corpo puder ser ressuscitado dos mortos ou de alguma
forma ser reconstituído. Para o dualista, a morte física não é necessariamente o fim
do self também, pois a alma pode muito bem continuar a existir após a morte, seja
encarnada ou desencarnada. Para as concepções panteístas hindu e o não self budista,
a reencarnação e o carma são de fundamental importância para compreender o que
acontece depois que o corpo morre. Vamos comentar a seguir sobre a reencarnação
e o carma.
3 A REENCARNAÇÃO E O CARMA
327
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
extremamente injusto que uma criança possa nascer saudável em uma amável
família rica, enquanto outra criança possa nascer doente em um ambiente pobre e
cruel. Se existe um Deus Criador que trouxe estas duas pessoas ao mundo, tal Deus
parece ter falta de amor e ser injusto. No entanto, se as duas crianças estiverem
colhendo as consequências das ações que realizaram em vidas anteriores, isso
parece fornecer uma justificativa para as desigualdades. O efeito do próprio carma
determina as circunstâncias da nossa vida presente e futuras; nós colhemos o que
semeamos.
FONTE: O autor
329
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Além das EQM, muitas pessoas têm descrito ter outros tipos de experiências
fora do corpo (EFC), que incluem a reencarnação e a projeção astral. Enquanto a
330
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
evidência para as EQM e as EFC não sejam conclusivas, tais experiências fornecem
alguma justificativa para a crença em uma alma que é separada do corpo. Se a alma
existe e pode ser separada do corpo, então a vida após a morte é uma inferência
razoável.
4.2 RESSURREIÇÃO
A questão torna-se então o que melhor explica estes dados. Gary Habermas,
Stephen Davis e William Lane Craig são notáveis estudiosos que argumentam
que a literal ressurreição corporal de Jesus oferece a melhor explicação dos fatos
históricos. Michael Martin, Antony Flew e Robert Price são notáveis estudiosos que
argumentam que uma abordagem naturalista fornece a melhor explicação para
os fatos históricos sobre o corpo de Jesus após a sua morte. Eles afirmam que há
explicações razoáveis, não milagrosas para o surgimento da crença na ressurreição
de Jesus após a sua morte, e por isso não há razão para afirmar uma explicação
sobrenatural.
331
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
NOTA
Estas garantias, é claro, não são tão certas como poderíamos esperar que
elas fossem. Porque, como veremos a seguir, mesmo se Deus existisse, pode haver
boas razões para que um deus amoroso, justo e onibenevolente não desejasse que
vivêssemos indefinidamente.
NOTA
332
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
No entanto, mesmo que seja o caso que tenhamos uma alma imaterial que
não consiste de partes, pode-se perguntar por que ela não poderia simplesmente
deixar de existir com a morte do corpo? Talvez como um campo magnético que é
destruído com a destruição do ímã ou de sua fonte, de modo que também a alma
poderia ser destruída com a destruição do corpo.
1. Para que um ser humano seja imortal, o self humano individual deve sobreviver
à morte física.
2. Ser um self humano individual implica ser (capaz de ser) consciente.
3. Para um self humano individual ser consciente, ele ou ela precisa de um cérebro
físico vivo.
4. Mas o cérebro físico morre quando o corpo físico morre.
5. Portanto, o self humano individual morre quando o corpo morre.
6. Por isso, um ser humano não pode ser imortal.
333
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Uma resposta a este argumento é que, embora ter um cérebro físico vivo
e funcional possa ser uma condição suficiente para a consciência, não é uma
condição necessária. Vários dualistas, por exemplo, afirmam que a alma continua
a existir em um estado consciente, mesmo após a morte do corpo (SWINBURNE,
1997). Outra resposta é concordar que os selves humanos individuais necessitam
de um cérebro físico vivo para estar/ser conscientes, e que não estarão/serão
conscientes após a morte do corpo (a não ser, digamos, que Deus lhes dê um novo
corpo). No entanto, eles estarão/serão novamente conscientes quando eles forem
ressuscitados corporalmente dos mortos (como mencionado acima, a ressurreição
corporal é uma visão judaica e cristã comum).
334
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
Assim, a vida eterna poderia muito bem ser chata, sem sentido e
insatisfatória. O céu poderia ser o inferno.
Enquanto que Jantzen não argumenta que não há vida após a morte, ela
argumentar que a mesma não pode ser inferida a partir da afirmação de que Deus
é amor. Ela continua:
Os teólogos cristãos reconhecem cada vez mais que não é o caso de que
toda a terra, cada prímula, cada ave canora, todas as galáxias de todos
os céus, existem para o benefício da humanidade somente. No entanto, é
verdade que Deus trouxe à existência todas estas coisas e se deleita nelas;
então também é verdade que algumas das coisas nas quais Ele se deleita
perecerão para sempre [...]. Assim como o que é moralmente valioso é
valioso por seu próprio bem e não pela recompensa que ele pode trazer,
assim também confiar em Deus, se vale a pena em absoluto, vale a pena,
mesmo que não possa continuar para sempre. Um relacionamento com
outro ser humano não se torna inútil só porque em algum momento isso
vai acabar com a morte de um dos parceiros; por que se deveria pensar
que um relacionamento com Deus seria inútil se um dia ele também
deverá acabar? (JANTZEN, 1984, p. 41-43).
Então, deleites sensuais eternos não seriam apropriados para nós. Como
poderia uma vida interminável ser para que pudesse ser verdadeiramente e
335
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
eternamente agradável, algo que nós desejaríamos para sempre? Talvez não haja
nenhuma resposta. Talvez Emily Dickinson (2008, p. 59 – poema 1741) acertou ao
dizer: "Que nunca mais virá de novo; é o que faz doce a vida". Talvez até mesmo
se Deus nos deu uma alma, não há uma vida após a morte interminável, pois seria
apenas muito miserável.
336
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
LEITURA COMPLEMENTAR
337
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
científica.
Isto significa que a ideia de que só podemos saber o que podemos saber
pela experiência é, se não incoerente, pelo menos teoricamente instável, pois, se
for verdadeira, parece que não podemos saber que é verdadeira. Uma saída para
esta dificuldade é sublinhar, como Kant, a diferença entre saber ou conhecer algo,
por um lado, e pensar algo ou levantar conjecturas, por outro. Assim, podemos
argumentar que a nossa posição, pelos seus próprios critérios, não pode obviamente
ser conhecida, porque não pode ser conhecida pela experiência; no entanto, pode
338
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
339
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
341
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
ao que podemos ou não concluir (será que da existência do mal gratuito se pode
concluir que Deus não existe?); e, como deveria ser evidente, todos os problemas
epistêmicos dizem respeito a um determinado aspecto da realidade: a atividade
cognitiva de agentes capazes de ter estados cognitivos sofisticados. Em todo o
caso, é importante distinguir, ao abordar um dado problema, os seus aspectos
metafísicos, epistemológicos e lógicos.
Epistemologia
342
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
343
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
para a sua crença, que, contudo, era falsa. Ptolomeu teve azar epistêmico: estava
numa situação epistêmica em que não podia saber que a sua crença era falsa e que
os dados em que se apoiava eram enganadores. O mesmo acontece a um detetive,
por exemplo, que investiga um crime: pode ficar convencido de que o criminoso
foi o Vilaça, não por preguiça, preconceito ou hipocrisia, mas por azar epistêmico:
todas as pistas apontam, por azar, para o Vilaça, mas não foi ele realmente o
criminoso.
Uma análise da fé
347
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
podemos ter perante objetos diferentes. E ainda que objetos diferentes possam
alterar a fenomenologia da confiança, é argumentável que há algo de comum
a todas ou, pelo menos, à maioria das atitudes de confiança; seria esse aspecto
fenomenológico da confiança que a caracterizaria, e não o objeto da confiança.
Em conclusão, tentar defender a perspectiva objetal da fé socorrendo-se de uma
acepção de fé que a aproxima da confiança tem um efeito contrário ao pretendido,
pois conduz-nos à perspectiva fenomenológica da natureza da fé.
A concepção fenomenológica de fé
349
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
350
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
Esta perspectiva implica que, caso não exista justificação adequada para
crer numa divindade, ninguém teve jamais fé nessa divindade, apesar de ter
pensado que a tinha. Note-se que isto é compatível com a diversidade de religiões
e de divindades; pois apesar de as diversas divindades que são objeto de fé
em diferentes religiões serem incompossíveis (ou seja, não são conjuntamente
possíveis: não podem existir todas simultaneamente), é perfeitamente possível
que existam justificações adequadas para as crenças religiosas nessas divindades.
Recorde-se que podemos defender que a justificação não é factiva, o que significa
que diferentes pessoas em diferentes contextos epistêmicos podem ter justificação
adequada para crer em divindades diferentes e incompossíveis.
Uma saída para esta dificuldade seria sustentar que a fé é um tipo diferente
de conhecimento, que não envolve factividade. Mas isto seria presumivelmente
um mero jogo de palavras, dado que conhecimento infactivo não é conhecimento,
em qualquer acepção relevante do termo: é mera crença (que pode até estar
justificada).
351
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
a ilusão de que a teve, dado que as muitas divindades que foram objeto de fé ao
longo da história humana são incompossíveis.
Aposta momentosa
Sem dúvida que este tipo de crença motivadora e sem grandes provas
existe. É difícil imaginar como seria a nossa vida sem elas. Mas não é claro que este
fato acerca da nossa vida cognitiva tenha relevância para a legitimidade da fé sem
provas, ao contrário do que James parecia pensar. Vejamos dois argumentos contra
a posição de James.
355
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Blaise Pascal (1623-1662), contudo, ficou famoso por defender que, bem
vistas as coisas, temos tudo a ganhar e nada a perder em apostar na existência de
Deus. Chama-se aposta de Pascal ao seu argumento, que pertence à mesma família
da posição de James: trata-se de dizer que, na ausência de provas a favor ou contra
a existência de Deus, temos um argumento a favor da crença sem essas provas.
1. Caso não acreditemos e Deus não exista, nada de especial ganhamos. Apenas
não perdemos tempo, por exemplo, em rituais religiosos.
2. Caso não acreditemos e Deus exista, perdemos a possibilidade do paraíso, o que
é terrível.
3. Caso acreditemos e Deus não exista, nada de especial perdemos. Apenas
perdemos tempo, por exemplo, em rituais religiosos.
4. Caso acreditemos e Deus exista, ganhamos o paraíso, o que é maravilhoso.
Este gênero de argumento pode ser visto como desprezível por muitos
crentes. Pois o seu efeito é retirar à fé o elemento de risco epistêmico que
Kierkegaard considerava importante: a fé torna-se o mero resultado do calculismo
egoísta, e não uma atitude de risco epistêmico que nos dá confiança perante a
“incerteza objetiva”.
356
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
William James tem em mente algo como esta caracterização da vida de fé.
Antes de analisarmos brevemente as suas ideias, importa esclarecer as seguintes
diferenças:
Uma opção é viva quando não é uma mera hipótese intelectual vaga, mas
antes algo que realmente nos importa: supostamente, para quem se debate com a
questão de Deus, a hipótese de acreditar ou não é para ela uma opção viva. Essa
mesma pessoa pode não se debater com a questão de acreditar ou não em Apolo,
357
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
por exemplo. Uma opção é forçosa quando não tomar partido é o mesmo que
tomar partido. Suspender a crença quanto à existência de Deus tem o mesmo efeito
que não acreditar na existência de Deus, pensa James. Finalmente, uma opção é
momentosa quando é de extrema importância, e não uma questão trivial.
A ideia de que uma vida virtuosa não é possível sem crer em divindades
é uma manifestação de provincianismo, ou de um mau íntimo: alguém que só
não trapaceia, mente, rouba e mata por ter medo de ser castigado na outra vida.
Kant, que era religioso, considerava que uma ação feita com vista à recompensa
ou com medo do castigo não é moralmente correta, ainda que exteriormente o
pareça. E não é preciso invocar Kant para compreender que quem não mata o seu
semelhante por medo do inferno e não por respeitá-lo, não é o gênero de pessoa
que queiramos ter por semelhante.
James poderia aceitar que é possível ter uma vida compensadora e virtuosa
sem qualquer crença religiosa, mas insistir que uma vida religiosa permite a
qualquer pessoa, por mais culturalmente carenciada que seja, o gênero de vida
compensadora que um artista ou cientista pode ter. A vida religiosa colocaria ao
alcance de qualquer pessoa o gênero de vida compensadora a que, de outro modo,
só alguns poderiam almejar.
358
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
Assim, a ideia é que, precisamente por prezar a verdade, o ser humano não
deve aderir sem provas, sobretudo quando se trata de matérias de importância
superlativa. É verdade que muitas vezes temos de assumir riscos epistêmicos,
mas estes casos só são razoáveis quando há uma relação causal entre a crença e
o que dela resulta: cremos, sem grandes provas, que somos capazes de fazer um
curso universitário, e isso motiva-nos de tal modo que contribui para o sucesso dos
nossos estudos. No que respeita a Deus, não há tal relação causal: crer em Deus não
o faz existir magicamente. O único poder causal dessa crença diz respeito à nossa
vida, e não é óbvio que, sob a hipótese de Deus não existir, uma vida de crente seja
realmente melhor do que uma vida virtuosa e realizada, aberta à possibilidade de
existir Deus, mas que não a aceita sem provas.
James enfrenta outra dificuldade. Uma opção é forçosa quando não tomar
partido é, na prática, a mesma coisa que tomar partido. O problema é que não é
fácil encontrar casos neutros de opções forçosas. Um caso de uma opção forçosa
é alguém dar-nos um prazo de dois dias para decidir comprar ou não uma casa,
por exemplo. Mas estamos indecisos e deixamos passar o prazo. A indecisão, neste
caso, é equivalente à decisão de não comprar a casa. O problema deste tipo de
exemplo é que só se aplica ao Deus mesquinho referido. Pois seria como se Deus
nos desse nesta vida a oportunidade de optar sem provas pela crença, acabando-se
o prazo quando morremos. Pelo contrário, um Deus razoável consideraria sensato
que não decidíssemos tão momentosa questão sem provas fortes; e se só na outra
vida tais provas surgissem, essa seria a altura para crer na sua existência.
360
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE
Acresce que a ideia de que crer sem provas é virtuoso poderá ser uma
forma subtil de impor a crença religiosa, um pouco como jogar um jogo viciado
em que se sair caras ganho eu, se sair coroas perdes tu. Pois se alguém declarar
que algo existe, fica a dever-nos evidentemente algumas provas, sobretudo se
for algo momentoso e não uma trivialidade. Se essa pessoa declarar que não tem
provas, mas que é bom acreditar sem provas nisso que ela diz que existe porque
nessa circunstância coisas maravilhosas irão acontecer-nos, está a trapacear-nos.
O que lhe pedimos, muito razoavelmente, foram provas. A sua resposta, muito
insensatamente, foi uma ameaça. Perante a incerteza da vida humana, sobretudo
onde os níveis de bem-estar são muitíssimo baixos (por falta de cuidados de
saúde, proteção no emprego, recursos econômicos adequados etc.), este gênero
de resposta torna a aposta de Pascal muito vívida: nada se tem a perder e pode-
se ganhar muito em crer sem provas. Mas o preço a pagar, como vimos, é uma
concepção de uma divindade brutal. Concepção que é difícil crer que uma pessoa
genuinamente boa e epistemicamente virtuosa possa aceitar.
361
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
crenças momentosas: queremos saber o que poderá curar uma doença grave, por
exemplo, e é extremamente difícil decidir. Mas se pararmos de tentar decidir
porque consideramos virtuoso o risco epistêmico de apostar numa das hipóteses
sem provas, não estamos a contribuir para a descoberta da verdade, mas antes a
dificultá-la. Se o que realmente nos interessa é saber se Deus existe ou não, e isso
qualquer crente terá de aceitar, a menos que tenha uma concepção de tal modo
subjetiva da crença que torne irrelevante a existência de Deus, não é uma boa ideia
decidir de antemão e sem provas que existe. Se Deus realmente existir, acertamos
na verdade por sorte apenas, o que não constitui conhecimento, privamo-nos
assim de conhecer uma verdade de superlativa importância. Se não existir, fomos
crédulos e impedimos a descoberta de que não existe. Assim, a acusação central
que James faz a Clifford, que está tão preocupado em evitar o erro que não permite
acertar na verdade, aplica-se facilmente a James, que parece ter pensado que tudo
o que conta no que respeita à verdade é acertar nela, ainda que por acaso, e não
conhecê-la. [...]
FONTE: MURCHO, Desidério. Fé, epistemologia e virtude. In: MURCHO, Desidério (Org.). A ética
da crença. Trad. de Vítor Guerreiro. Lisboa: Bizâncio, 2010. Disponível em: <http://criticanarede.
com/feevirtude.html>. Acesso em: 12 set. 2015.
362
RESUMO DO TÓPICO 4
• Quem somos e o que nos acontece após a morte são questões perenes que os
seres humanos têm ponderado por milênios. Refletir sobre essas questões irá,
sem dúvida, continuar a ser uma parte da experiência intelectual humana nesta
vida e, talvez, até mesmo além.
363
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
AUTOATIVIDADE
Neste tópico pudemos ver pelo menos quatro concepções do self que foram
mantidas no Ocidente e no Oriente. Leia as afirmações abaixo sobre estas
diferentes posições e assinale a alternativa correta.
364
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
ABE, Masao. Buddhism. In: SHARMA, Arvind (Ed.). Our religions. San Francisco:
HarperSanFrancisco, 1993.
ADAMS, Marilyn McCord. Horrendous evils and the goodness of God. Ithaca,
NY: Cornell University Press, 2000. Disponível em: <http://books.google.com/
books?vid=ISBN0801486866>. Acesso em: 17 ago. 2015.
ANSELMO, Santo. Monológio. In: ______. Santo Anselmo de Cantuária. 4. ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1988. Disponível em: <http://charlezine.com.br/wp-content/
uploads/2012/10/07-Santo-Anselmo-e-Abelardo-Cole%C3%A7%C3%A3o-Os-
Pensadores-1988.pdf>. Acesso em: 2 ago. 2015.
365
AQUINO, Santo Tomás de. Suma de Teologia. 4. ed. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 2001. Disponível em: <http://biblioteca.campusdominicano.org/1.pdf>.
Acesso em: 24 jun. 2015.
ÁVILA, Santa Teresa de. Castelo interior ou Moradas. Petrópolis: Vozes, 2015a.
AYER, A. J. What I saw when I was dead. National Review, Oct. 14, 1988.
Disponível em: <http://www.philosopher.eu/others-writings/a-j-ayer-what-i-saw-
when-i-was-dead/>. Acesso em: 05 set. 2015.
366
Oxford University Press, 1988.
BARTH, Karl. Esboço de uma dogmática. São Paulo: Fonte Editorial, 2006.
BERKELEY, George. Três diálogos entre Hilas e Filonous em oposição aos céticos
e ateus. São Paulo: Abril Cultural, 1996b.
BIZZO, Nelio. Darwin e o fim da adaptação perfeita dos seres vivos: a superação
da visão teológica de Paley e o princípio da divergência. Filosofia e História da
Biologia, v. 2, p. 351-367, 2007. Disponível em: <http://www.abfhib.org/FHB/FHB-
02/FHB-v02-21-Nelio-Bizzo.pdf>. Acesso em: 26 jul. 2015.
367
BIZZO, Nelio. Darwin e o rompimento com a teologia natural de Paley. Brazilian
Geographical Journal: Geosciences and Humanities research médium, v. 1, p. 21-
32, 2010. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/braziliangeojournal/
article/view/8175/5234>. Acesso em: 25 jul. 2015.
368
BROAD, C. D. The Mind and Its Place in Nature. London: Kegan Paul & Co, 1925.
Disponível em: <https://ia800307.us.archive.org/16/items/minditsplaceinna00broa/
minditsplaceinna00broa_bw.pdf>. Acesso em: 20 maio 2015.
369
enigma que fascinou as grandes mentes da humanidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
CASSAM, Quassim. Self and World. Oxford: Oxford University Press, 1999.
COLLINS, Robin. A scientific argument for the existence of God: the fine-tuning
370
design argument. In: MURRAY, Michael J. Reason for the hope within. Grand
Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing, 1999. p. 47-75. Disponível em: <http://books.
google.com/books?vid=ISBN0802844375>. Acesso em: 26 jun. 2015.
371
com/2014/09/a-existencia-de-deus-e-o-inicio-do.html>. Acesso em: 22 jul. 2015.
CRAIG, William Lane. The cosmological argument from Plato to Leibniz. Eugene:
Wipf and Stock Publishers, 2001.
CRAIG, William Lane. The kalam cosmological argument. Eugene: Wipf and
Stock Publishers, 2000
CRAIG, William Lane. The middle-knowledge view. In: BEILBY, James K.; EDDY,
Paul (Eds.). Divine foreknowledge: for views. Downers Grove: InterVarsity Press,
2009. Disponível em: <http://books.google.com/books?vid=ISBN0830874933>.
Acesso em: 23 jun. 2015.
CRAIG, William Lane; SMITH, Quentin. Theism, Atheism, and Big bang
Cosmology. Oxford: Clarendon Press, 1995.
CRAIG, William. A aposta de Pascal. Trad. de Felipe Miguel. Q & A, dez. 28, 2012.
372
Disponível em: <http://www.reasonablefaith.org/portuguese/a-aposta-de-pascal>.
Acesso em: 29 ago. 2015.
CUPITT, Don. Depois de Deus: o futuro da religião. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
CUPITT, Don. Non-realism. In: Don Cupitt Official Website. Cambridge, UK:
Intergrid Web Design, 2011. Disponível em: <http://www.doncupitt.com/non-
realism>. Acesso em: 20 jun. 2015.
D’COSTA, Gavin. John Hick and Religious Pluralism. In: HEWITT, Harold. (Ed.).
Problems in the Philosophy of Religion: Critical Studies of the Work of John Hick
London: Macmillan,1991.
D’COSTA, Gavin. O homem que torna Deus uma realidade para nós. Revista do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU on-line, 248, ano VII, dez. São Leopoldo,
RS, Unisinos, 2007. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
php?option=com_content&view=article&id=1584&secao=248>. Acesso em: 16 jun.
2015.
D’COSTA, Gavin. Whose objectivity? Which neutrality? The doomed quest for a
neutral vantage point form which to judge religions. Religious Studies, v. 29, n. 1,
p. 79-95, mar. 1993.
DALAI-LAMA, Sua Santidade. Uma ética para o novo milênio: sabedoria milenar
para ao
mundo de hoje. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.
DALAI-LAMA, Sua Santidade. Uma ponte entre as religiões: por uma verdadeira
comunhão da fé. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
373
DARWIN, Charles. A origem das espécies. Leça da Palmeira: Planeta Vivo, 2009.
DAWKINS, Richard. Deus, um delirio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
DAWKINS, Richard. O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp,
1979.
374
Qualia.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2015.
DOUGHERTY, Trent; POSTON, Ted. Hell, vagueness, and justice: a reply to Sider.
Faith and Philosophy, v. 25, n. 3, p. 322–328, 2008. Disponível em: <http://www.
southalabama.edu/philosophy/poston/Documents/Hell.pdf>. Acesso em: 13 jun.
2015.
DRAPER, Paul. The argument from evil. In: COPAN, Paul; MEISTER, Chad
(Eds.). Philosophy of Religion: Classic and Contemporary Issues. Oxford:
Blackwell, 2008.
DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo:
Paulinas, 1999.
ECK, Diana. A new religious America. San Francisco, CA: Harper San Francisco,
375
2001. Disponível em: <http://books.google.com/books?vid=ISBN006175028X>.
Acesso em: 13 jun. 2015.
EDDY, Mary Baker. Ciência e saúde: com a chave das escrituras. São Paulo: DBA,
2001.
ENGEL, Pascal; RORTY, Richard. Para que serve a verdade? São Paulo: UNESP,
2008.
FEINBERG, John S. The many faces of evil: theological systems and the problems
of evil. rev. Wheaton, IL: Crossway Books, 2004.
376
FODOR, F. A. O problema mente-corpo. TCFC3 – Filosofia das Ciências Neurais,
São Paulo: FFLCH-USP 2011. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/
Fodor-Port-4.pdf>. Acesso em: 12 maio 2015.
FOSTER, John. Uma defesa do dualismo. In: BONJOUR, Laurence; BAKER, Ann.
Filosofia: Textos Fundamentais Comentados. Porto Alegre: Artmed, 2010b.
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão e outros textos. In: Obras completas
volume 17: Inibição, sintomas e angústia, o futuro de uma ilusão e outros textos
(1926-1929). São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. In: ______. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro:
Imago, 1974.
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. In: ______. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In: Obras completas volume 11: totem e tabu,
contribuições à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914).
São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
377
FUMERTON, Richard. Epistemologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
GIAROLO, Kariel Antonio. Frege e a teoria da verdade como identidade. 2011. 172
f. Dissertação (Mestrado). UFSM, Santa Maria, RS, 2011. Disponível em: <http://
w3.ufsm.br/ppgf/wp-content/uploads/2011/10/Frege-e-a-Teoria-da-Verdade-
como-Identidade.pdf>. Acesso em: 13 maio 2015.
378
XVII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE. 29 de
Outubro a 1º de Novembro de 2012 – UNIOESTE Campus de Toledo. Disponível em:
<https://www.academia.edu/3669343/Teorias_Substancialistas_e_Deflacionistas_
da_Verdade>. Acesso em: 20 maio 2015.
GILLESPIE, Neal. Charles Darwin and the problem of creation. Chicago, IL:
University of Chicago Press, 1979.
379
2015.
GOULD, Stephen Jay. Darwin e Paley encontram a Mão Invisível. In: _______. Dedo
Mindinho e seus Vizinhos: Ensaios de História Natural. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.
GRESCHAT, Hans Jürgen. O que é ciência da religião? São Paulo: Paulinas, 2005.
GRIFFIN, David Ray. Creation out of Nothing, Creation out of Chaos, and the
Problem of Evil. In: DAVID, Stephen T. (Ed.). Encountering Evil: Live Options in
Theodicy. Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2001. p. 108–25. Disponível
em: <http://www.anthonyflood.com/griffincreationoutofchaos.htm>. Acesso em:
27 ago. 2015.
HAACK, Susan. Filosofia das lógicas. São Paulo: Ed. UNESP, 2002.
380
HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003.
HARRIS, Sam. A morte da fé: religião, terror e o futuro da razão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
HASKER, William. God, time, and Knowledge. Ithaca: Cornell Universty Press,
1989.
HAWKING, Stephen. Does God play Dice?. 1999. Disponível em: <http://www.
hawking.org.uk/does-god-play-dice.html>. Acesso em: 15 jul. 2015.
381
HEIL, John. Filosofia da mente. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
HICK, John. Evil and the God love. New York: Palgrave Macmillan, 2010.
HICK, John. Problems of Religious Pluralism. New York: St. Martin’s Press, 1985.
HICK, John. Religious Pluralism. In: MEISTER, Chad; COPAN, Paul (Eds.). The
Routledge Companion to Philosophy of Religion. London: Routledge, 2013. p.
240-249. Disponível em: <http://books.google.com/books?vid=ISBN1136696857>.
Acesso em: 26 jun. 2015.
HICK, John. Teologia cristã e pluralismo religioso: o arco-íris das religiões. Juiz
de Fora: PPCIR, 2005.
HICK, John. The new frontier of religion and science: religious experience,
neuroscience and the transcendent. New York: Palgrave Macmillan, 2006.
HITCHENS, Christopher. Deus não é grande: como a religião envenena tudo. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2007.
HOBBES, Thomas. Elementos da filosofia: sobre o corpo. São Paulo: Ícone, 2012.
HOLT, Jim. Por que o mundo existe? um mistério existencial. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2013.
382
HORVATH, Jorge et al. Cosmologia física: do micro ao macro cosmos e vice-versa.
São Paulo: Livraria da Física, 2007.
HUME, David. Diálogos sobre a religião natural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
HUXLEY, Thomas Henry. Escritos sobre ciência e religião. São Paulo: UNESP,
2009.
INWAGEN, Peter van. The problem of evil. Oxford: Oxford University Press,
2006.
JACKSON, Frank C. O que Mary não sabia. Trad. de Ricardo Miguel, adapt. de
Osvaldo Pessoa Jr. São Paulo: FFLCH-USP, 2013. Disponível em: <http://www.
fflch.usp.br/df/opessoa/Jackson-Mary-nao-sabia-1.pdf>. Acesso em: 4 set. 2015.
JACKSON, Frank. O que Mary não sabia. In: BONJOUR, Laurence; BAKER, Ann.
Filosofia: Textos Fundamentais Comentados. Porto Alegre: Artmed, 2010.
JAMES, William. The sentiment of rationality. In: CASTELL, Alburey (Ed.). Essays
in pragmatism. New York: Hafner Press, 1970. Disponível em: <http://books.
google.com/books?vid=ISBN0028471407>. Acesso em: 29 ago. 2015.
383
Janeiro: Record, 2004.
KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Lisboa: Edições 70,
1992.
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Edição Bilíngue. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
KNITTER, Paul F. Introdução às teologias das religiões. São Paulo: Paulinas, 2008.
KNITTER, Paul F. Jesus e os Outros Nomes: missão cristã e responsabilidade
global. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2010.
384
12 de janeiro de 2012.
KOBER, Michael. O que nos faz pensar. Verdade como valor. Rio de Janeiro: PUC,
v. 20, dez. 2006. p. 45-64. Disponível em: <http://www.oquenosfazpensar.com/
adm/uploads/artigo/constituindo_a_verdade_como_um_valor/michaelhober.
pdf>. Acesso em: 20 abr. 2015.
KRIPKE, Saul. Identity and Necessity. In: MUNITZ, Milton K (Ed.). Identity and
Individuation. New York: New York University, 1971. p. 135-164. Disponível em:
<http://dmurcho.com/docs/idnec.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2015.
LEFTOW, Brian. Time and Eternity. Ithaca: Cornell University Press, 2009.
Disponível em: <http://books.google.com/books?vid=ISBN0801475228>. Acesso
em: 27 jun. 2015.
LESSER, Harry. O argumento Kalam para a existência de Deus. In: BRUCE, Michael;
BARBONE, Steven (Orgs.). Os 100 argumentos mais importantes da Filosofia
Ocidental: uma introdução concisa sobre lógica, ética, metafísica, filosofia da
religião, ciência, linguagem, epistemologia e muito mais. São Paulo: Cultrix, 2013.
LESTIENNE, Rémy. A emergência, uma solução ao problema mente-cérebro? Cienc.
Cult., São Paulo, v. 65, n. 4, 2013 . Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000967252013000400016&lng=en&nrm=iso>.
385
Acesso em: 20 maio 2015.
LIBÂNIO, João Batista. A religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 2002.
386
Paulo, 2008. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp107934.pdf>.
Acesso em: 16 jul. 2015.
MARTIN, Michael. Um mundo sem Deus: ensaios sobre o ateísmo. Lisboa: Edições
70, 2010.
387
McDONALD, John H. A reducibly complex mousetrap. Department of biological
Sciences, University of Delaware, 14 mar. 2011. Disponível em: <http://udel.
edu/~mcdonald/mousetrap.html>. Acesso em: 30 jul. 2015.
388
MIGUENS, Sofia. Compreender a Mente e o Conhecimento. Porto: FLUP, 2009.
MILLER, Kenneth R. THe flaw in the mousetrap. Natural History, p. 75, abr. 2002.
Disponível em: <http://www.evcforum.net/RefLib/NaturalHistory_200204_Miller.
html>. Acesso em: 3 ago. 2015.
MILLICAN, Peter. The one fatal flaw in Anselm’s argument. Mind, v. 113, n. 451
p. 437-476, jul. 2004. Disponível em: <http://millican.org/papers/2004OntArgMind.
pdf>. Acesso em: 20 jul. 2015.
MONK, Ray. Wittgenstein: o dever do gênio. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
MOODY JR., Raymond A. A vida depois da vida. São Paulo: Butterfly, 2004.
389
outras histórias. Curitiba: Champagnat, 2013.
MORAN, Laurence. Evolução é um fato e uma teoria. [S.l.: s.n.], 1993. Disponível
em: <http://www.darwin.bio.br/?p=75>. Acesso em: 29 jul. 2015.
MORTARI, Cezar A. Introdução à lógica. São Paulo: UNESP, 2001. Disponível em:
<http://books.google.com/books?vid=ISBN8571393370>. Acesso em: 25 jul. 2015
NAGEL, Thomas. A visão a partir de lugar nenhum. São Paulo: Martins Fontes,
2004.
NAGEL, Thomas. Como é ser um morcego? Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3,
v. 15, n. 1, p. 245-262, jan.-jun. 2005. Disponível em: <http://www.cle.unicamp.br/
cadernos/pdf/Paulo%20Abrantes(Traducao).pdf>. Acesso em: 20 abr. 2015.
NASH, Ronald H. Is Jesus the Only Savior? Grand Rapids, MI: Zondervan, 1994.
390
NIRAJ. Vida e Ensinamentos de Sri Ramana Maharshi. Bodigaya, n. 21, 2009.
Disponível em: <http://issuu.com/omniraj/docs/vida_e_ensinamentos_de_srm_-_
autoinquiri__o/1?e=1887206/3770146>. Acesso em: 14 jun. 2015.
NOVELLO, Mário. Do big bang ao Universo eterno. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
O’CONNOR, Robert. The Design inference. In: MANSON, Neil A. God and
Design: the teleological argument and modern science. London: Routldge, 2003.
O’CONNOR, Timothy. Persons and causes: the metaphysics of free will. Oxford:
Oxford University Press, 2000.
OLSON, Eric. The Human Animal. Oxford: Oxford University Press, 1997.
PADGETT, Alan. Eternity. In: MEISTER, Chad; COPAN, Paul (Eds.). The
Routledge Companion to Philosophy of Religion. London: Routledge, 2013. p.
335-343. Disponível em: <http://books.google.com/books?vid=ISBN1136696857>.
Acesso em: 26 jun. 2015.
PALEY, William. Natural Theology: evidence of the existence and attributes of the
deity, collected from the apperances of nature. Oxford: Oxford University Press,
2006. Disponível em: <http://books.google.com/books?vid=ISBN0192805843>.
Acesso em: 26 jul. 2015
PALEY, William. Teología natural: demonstracion de La existência y de los
atributos de la Divindad: fundada en los fenómenos de la naturaleza. Londres:
Ackermann and Strand, 1825. Disponível em: <https://books.google.com.br/
books?id=hQVeAAAAcAAJ&hl=pt-BR&source=gbs_navlinks_s>. Acesso em: 26
391
jul. 2015.
PESSOA Jr., Osvaldo. Filosofia da física clássica. São Paulo: USP, 2014. Disponível
em: <http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/FiFi-14>. Acesso em: 19 jul. 2015.
PHILLIPS, D. Z. Wittgenstein and Religion. New York: St. Martins Press, 1993.
PIKE, Nelson. God and timelessness. Eugene, OR: Wipf and Stock Publishers,
2002. Disponível em: <http://books.google.com/books?vid=ISBN1579108784>.
Acesso em: 23 jun. 2015.
PLANTINGA, Alvin. Deus, a liberdade e o mal. São Paulo: Vida Nova, 2012.
PLANTINGA, Alvin. God and other minds: a study of the rational justification of
belief in God. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1990. Disponível em: <http://
books.google.com/books?vid=ISBN0801497353>. Acesso em: 26 ago. 2015.
392
Van (Eds.). Alvin Plantinga. Dordrecht: D. Reidel, 1985. Disponível em: <http://
www.andrewmbailey.com/ap/AP_Self_Profile.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2015.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: ______. Diálogos III: (socráticos): Fedro (ou do
belo); Eutífrom (ou da religiosidade); Apologia de Sócrates; Críton (ou do dever);
Fédon (ou da alma). Bauru, SP: EDIPRO, 2008a.
QUINE, Willard Van Orman. De um ponto de vista lógico. São Paulo: UNESP,
2011.
393
QUINE, Willard Van Orman. Sobre o que há. Coleção Os Pensadores. 2. ed. São.
Paulo: Abril Cultural, 1980.
RAMANUJA. God as Infinite, Personal, and Good. In: MEISTER, Chad (Ed.). The
philosophy of religion reader. London: Routledge, 2008.
ROSS, Jacob. Parfit. In: BELSHAW, Christopher; KEMP, Gary (Cols). Filósofos
Modernos. Porto Alegre: Artmed, 2010.
394
ROWE, William. Introdução à filosofia da religião. Lisboa: Verbo, 2011.
RUFFINO, Marco. Vagueza De Re. O que nos faz pensar. Rio de Janeiro, n. 17, dez.
2003. Disponível em: <http://www.oquenosfazpensar.com/adm/uploads/artigo/
vgueza_de_re/n17marco.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2015.
RUNDLE, Bede. Problems with the concept of God. In: MEISTER, Chad; COPAN, Paul
(Eds.). The Routledge Companion to Philosophy of Religion. London: Routledge,
2013. Disponível em: <http://books.google.com/books?vid=ISBN1136696857>.
Acesso em: 26 jun. 2015.
RUNZO, Joseph. Religious Pluralism. In: COPAN, Paul; MEISTER, Chad (Eds.).
Philosophy of Religion: Classic and Contemporary Issues. Oxford: Blackwell,
2008.
RUNZO, Joseph. Religious Relativism. In: MEISTER, Chad (Ed.). The philosophy
of Religion Reader. London: Routledge, 2007.
RUSE, Michael. Charles Darwin. Buenos Aires: Katz Editores, 2008. Disponível
em: <http://books.google.com/books?vid=ISBN8496859991>. Acesso em: 30 jul.
2015
RUSSEL, Bruce. Why doesn’t God intervene to prevent Evil? In: POJMAN, Luis
P. Philosophy: The Quest for Truth 3. ed. Belmont: Wadsworth, 1996. p. 74-80.
Disponível em: <http://infidels.org/library/modern/bruce_russell/intervene.html>.
Acesso em: 24 ago. 2015.
395
RUSSELL, B. Da Denotação. In: RUSSELL, B. Lógica e Conhecimento: Ensaios
Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, Coleção Os Pensadores, 1978.
RUSSELL, Bertrand. Porque não sou cristão: e outros ensaios sobre religião e
assuntos correlatos. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, 1972. Disponível em:
<https://racionalistasusp.files.wordpress.com/2010/01/porque_no_sou_cristo__
bertrand.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2015.
396
com/uploads/6/7/1/6/6716383/santos_fatos_artigo.pdf>. Acesso em: 20 maio 2015.
SARTRE, Jean-Paul. A náusea. 12. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
SCHAMA, Simon. O poder da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SHARMA, Arvind. Hinduism. In: SHARMA, Arvind (Ed.). Our religions. San
Francisco: HarperSanFrancisco, 1993.
SIDER, Theodore. Hell and Vagueness, Faith and Philosophy, v. 19, 2002.
Disponível em: <http://tedsider.org/papers/hell.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2015.
397
as mais brilhantes mentes do mundo durante 258 anos. Rio de Janeiro: BestBolso,
2014.
SMART, Ninian. Philosophers and religious truth. 2. ed. London: SCM Press,
1978.
SMITH, Huston; NOVAK, Philip. Budismo: uma introdução concisa. 4. ed. São
Paulo: Cultrix, 2010.
SNOWDON, Paul F. Persons, Animals and Ourselves. Oxford: OUP Oxford, 2014.
Disponível em: <http://books.google.com/books?vid=ISBN0191030309>. Acesso
em: 25 abr. 2015.
398
2015.
SORABJI, Richard. Time, creation and the continuum: theories in antiquity and
the early middle ages. London: Duckworth, 1983. Disponível em: <http://pt.scribd.
com/doc/165766745/Richard-Sorabji-Time-Creation-and-the-Continuum-BookFi-
org#scribd>. Acesso em: 25 jul. 2015
SOSA, Ernest. Agência epistêmica. Caderno CRH, Salvador, v. 25, n. spe 2, p. 23-
37, 2012.
STEVEN, Pinker. Os anjos bons da nossa natureza: por que a violência diminiui.
São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
399
STRAWSON, P. F. Libertad y resentimiento. Barcelona: Paidós, 1995.
TARSKI, Alfred. A concepção semântica da verdade. São Paulo: Ed. UNESP, 2007a.
400
TEIXEIRA, João Fernandes de. O que é filosofia da mente? São Paulo: Brasiliense,
1994.
TEIXEIRA, João Fernandes de. Como ler a filosofia da mente. São Paulo: Paulus,
2008.
TENNANT, Frederick Robert. Philosophical Theology vol 2: the world, the soul,
and God. Cambridge: Cambridge University Press, 1956.
TEXTOR, Marc. State of Affairs. In: ZALTA, Edward N. (Ed.). The Stanford
Encyclopedia of Philosophy. Sumer Edition. Stanford: Stanford University, 2014.
Disponível em: <http://plato.stanford.edu/archives/sum2014/entries/states-of-
affairs>. Acesso em: 14 maio 2015.
TORTORA, Gerard J.; FUNKE, Berdell R.; CASE, Christine L. Microbiologia. 10.
ed. Porto Alegre: Armed, 2012.
TUCKER, Jim B. Vida antes da vida: uma pesquisa científica das lembranças que
as crianças têm de vidas passadas. São Paulo: Pensamento, 2007.
401
Fishborn-Andre-Abath-Traducao-Consciencia-SEP#scribd>. Acesso em: 13 maio
2015.
VIGIL, Jose Maria. Por uma teologia planetária. São Paulo: Paulinas, 2011.
VIGIL, Jose Maria; TOMITA, Luiza E.; BARROS, Marcelo. Pluralismo e libertação:
por uma teologia latino-americana pluralista a partir da fé cristã. São Paulo: Loyola:
2005.
VIGIL, Jose Maria; TOMITA, Luiza E.; BARROS, Marcelo. Teologia pluralista
libertadora intercontinental. São Paulo: Paulinas, 2008.
WALLS, Jerry. Hell: The Logic of Damnation. Notre Dame, IN: University of
402
Notre Dame Press, 1992.
403
XAVIER, Leonor Maria. O argumento ontológico: Kant e Santo Anselmo. In:
LEONEL, Ribeiro dos Santos (Org.). Kant em Portugal: 1974-2004. Lisboa: CFUL,
2007. p. 447-460. Disponível em: <https://www.academia.edu/10963065/O_
Argumento_Ontol%C3%B3gico_Kant_e_Santo_Anselmo>. Acesso em: 12 jul. 2015.
ZAGZEBSKI, L. Virtues of the Mind: An Inquiry into the Nature of Virtue and
the Ethical Foundations of Knowledge. Cambridge: Cambridge University Press,
1996.
404
ANOTAÇÕES
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
405
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
406