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Filosofia Geral e da

Religião
Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser

2015
Copyright © UNIASSELVI 2015

Elaboração:
Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

100
L685f Leyser, Kevin Daniel dos Santos

Filosofia geral e da religião /Gesiel Anacleto. Indaial


: UNIASSELVI, 2015.

406 p. : il.

ISBN 978-85-7830-918-3

1. Filosofia.
I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.
Apresentação
Caro(a) acadêmico(a), o presente Caderno de Estudos tem como
objetivo sistematizar os elementos básicos da disciplina de Filosofia Geral
e da Religião, o qual proporcionará um contato com os principais tópicos,
autores e obras da área, além dos instrumentos necessários, não apenas para
acompanhar a disciplina ofertada, mas também para os estudos autônomos
posteriores.

Na primeira unidade, Filosofia Geral e a Investigação Filosófica,


vamos introduzir a filosofia através da distinção de seu modo peculiar de
investigação de questões centrais em comparação com outras áreas do
conhecimento. A proposta será: conduzi-lo ao modo de pensar filosófico e
caracterizar as atitudes e habilidades necessárias para tal empreendimento.
A partir deste ponto, vamos introduzir algumas das principais questões
investigadas pela filosofia. Primeiro, vamos nos debruçar sobre a questão do
Conhecimento, prosseguindo com a investigação filosófica sobre a Verdade, a
Existência, a Mente e a Consciência, e finalizaremos com a reflexão filosófica
sobre o Self e a Identidade Pessoal.

Na segunda e na terceira unidade vamos explorar um campo específico


de investigação filosófica, nomeadamente, a Filosofia da Religião.

O campo da filosofia da religião refloresceu nas últimas décadas


e agora está prosperando internacionalmente com pensadores criativos de
primeira qualidade, muitos dos quais são pensadores de autoridade em outras
áreas da filosofia, utilizando seus conhecimentos filosóficos para abordar
uma série de temas religiosos. O leque de pessoas envolvidas na filosofia da
religião também é bastante amplo e inclui diversos estudiosos, como filósofos
analíticos e continentais, feministas e especialistas em ética, pensadores
orientais e ocidentais, entre outros. Dada a amplitude do campo, uma série
de tópicos poderiam ter sido incluídos neste Caderno de Estudos, e várias
abordagens poderiam ter sido tomadas também. Nosso objetivo, ao escrever
este Caderno de Estudos, tem sido o de construir um texto que inclui as
principais questões, normalmente abordadas nos livros didáticos de filosofia
da religião e vistos nos cursos de filosofia da religião, mas também de abordar
algumas questões mais atípicas que estão surgindo no campo e tornando-se
rapidamente tópicos notáveis de discussão. Tentamos escrever de uma forma
e estilo que é ao mesmo tempo acessível e interessante para os acadêmicos
de graduação em filosofia ou em teologia, mas que também tem mérito para
outros estudantes de graduação e interessados ​​no campo. Procuramos evitar
o jargão técnico desnecessário, tanto quanto possível, e definir e explicar
termos e ideias que seriam desconhecidos para a maioria dos acadêmicos
de graduação. Embora a dicotomia tradicional “analítico/continental” como
III
não é tão bem definida hoje como alguns gostariam de pensar, no entanto, a
abordagem que tomamos aqui geralmente segue o método e estilo da tradição
analítica em que incluímos posições, argumentos formais para essas posições
e objeções ou refutações aos argumentos (e, e alguns momentos, refutações
às refutações), as vezes sem considerar a história, contexto, ou meio cultural
das posições. Este método crítico nem sempre foi viável ou benéfico, pois
alguns tópicos não se prestam facilmente a formas de argumentos e de estilo
analíticos.

Há, certamente, valor em ter um autor de uma obra como esta que
forneça suas próprias opiniões, argumentos e conclusões sobre temas
controversos como muitos daqueles discutidos em filosofia da religião; no
entanto, esta não é a nossa intenção neste trabalho. Pelo contrário, estamos
nos esforçando para ser não partidários, pelo menos até onde isso é possível
em um trabalho que abrange temas tão empolgantes e polêmicos como estes.
Tentamos evitar de apresentar os nossos próprios pontos de vista e conclusões
às questões e, em vez disso, apresentar o mais claro e conciso possível, as
principais posições, argumentos a favor e refutações contra os temas centrais
no campo da Filosofia da Religião na atualidade. Claro que, a própria seleção
de temas e os argumentos e refutações escolhidos irão refletir nossas próprias
inclinações e tendências, em certa medida, mas a nossa intenção foi a de ser
imparcial.

Até recentemente, a maior parte do trabalho filosófico sobre a religião


no Ocidente foi principalmente focado nas tradições teístas do judaísmo,
cristianismo e islamismo. Como resultado, a diversidade de pensamento
religioso expressa por aqueles em outras tradições era, na sua maior parte,
ignorada. Com a presença crescente e a consciência das religiões não teístas
no Ocidente, no entanto, tornou-se cada vez mais importante incluí-las no
diálogo filosófico. Tentamos fazer isso neste Caderno de Estudos. Enquanto
que incluímos muitos dos principais tópicos tradicionais de discussões teístas,
também nos esforçamos para ser multicultural em perspectiva e incluir uma
série de grandes temas não teístas.

Na Unidade 2, Tópico 1, começamos por explorar os significados


dos termos da religião e da filosofia da religião e a questão importante
sobre o que são as crenças e práticas religiosas. No Tópico 2 continuamos
essa exploração através da análise do fenômeno crescente da diversidade
religiosa. Nos concentramos especificamente em cinco grandes religiões do
mundo: hinduísmo, budismo, judaísmo, cristianismo e islamismo. Cada uma
dessas religiões faz declarações sobre questões fundamentais, incluindo o
significado de salvação/libertação e a natureza da Realidade Última. Estas
religiões do mundo, e os filósofos históricos centrais no interior delas,
implicam ou afirmam que suas reivindicações fundamentais são verdadeiras.

IV
Como a maioria dessas reivindicações conflitam uma com as outras, a
próxima pergunta a ser explorada é como se deve, filosoficamente, abordar
esses conflitos. Este tópico também considera a tarefa de avaliar os sistemas
religiosos, os possíveis critérios para a realização dessas avaliações, bem como
a importância da tolerância religiosa.

Os filósofos da religião refletem sobre uma variedade de conceitos


religiosos, mas, provavelmente, nenhum conceito foi mais dominante do
que o conceito de Deus/Realidade Última. Portanto, é importante examinar
os principais temas relevantes para a natureza e existência do divino. No
Tópico 3 exploramos duas maneiras peculiares de conceber Deus/Realidade
Última: (1) como um estado de ser absoluto (como no interior de algumas
escolas do hinduísmo e do budismo), e (2) como um Deus pessoal (como no
interior das três grandes tradições teístas). Uma das principais discussões
contemporâneas relevantes para o conceito de Deus é saber se os atributos
tradicionais são logicamente consistentes e coerentes, de modo que algum
tempo será dedicado a esse problema também.

Os filósofos da religião não estão apenas interessados ​​em explorar o


conceito de Deus, mas também saber se tal conceito é verdadeiro, isto é, se
Deus realmente existe. Os Tópicos 4, 5 e 6 da Unidade 2 explora três principais
tipos de argumentos para a existência de Deus: cosmológicos, teleológicos
e ontológicos. Embora cada uma destas formas de argumento seja bastante
antiga em natureza, nenhuma delas é uma relíquia antiquada; cada uma tem
sofrido muita discussão e desenvolvimento nas últimas décadas. E assim
como há argumentos filosóficos para a existência de Deus, há também desafios
filosóficos para a crença em Deus.

O Tópico 1 da Unidade 3, nos apresenta um deles: o problema do mal.

A religião não é tipicamente um domínio completamente isolado de


outros aspectos da sociedade e da cultura. Inclui (alguns diriam “infeta”)
praticamente todas as facetas da vida humana. Uma dessas áreas é a ciência,
e por séculos a religião e a ciência têm tido um relacionamento complicado;
às vezes elas estão em desacordo, às vezes elas são favoráveis ​​uma a outra.
No Tópico 2, da última unidade, abordaremos várias opções de base para a
compreensão de como a religião e a ciência estão relacionadas. Seja qual for o
relacionamento, parece evidente que a religião e a ciência têm um papel único
na vida e no pensamento. É também evidente que a prática da ciência tem, pelo
menos ocasionalmente, implicações para a fé religiosa, e que a crença religiosa
nem sempre é desprovida de fundamentação científica. Consequentemente,
o restante do tópico se concentrará em várias opções para relacionar a fé e a
razão.

Um dos elementos da religião comum a todas as grandes tradições


é a experiência religiosa. No Tópico 3, da terceira Unidade, exploraremos
este fenômeno em diversas das suas várias formas. Também examinaremos
a questão de saber se este tipo de fenômeno pode justificar a crença religiosa
V
e se as explicações científicas da experiência religiosa demonstram que tais
experiências são apenas o resultado de causas neurofisiológicas (e, portanto,
ilusórias em última instância).

Outra questão pertinente ao refletirmos sobre a religião é a questão


da moralidade e da política. Ambas as questões são centrais para pensarmos
o papel da religião na compreensão de nós mesmos, da sociedade e do
mundo em que vivemos. No Tópico 4 da terceira unidade vamos explorar
minuciosamente estes temas.

Todas as tradições religiosas fornecem uma compreensão do que


significa ser um self (um Eu), e todas elas oferecem esperança para o mesmo,
esperança para esta vida e, especialmente, esperança após a morte. Como
entendemos, a nossa própria natureza desempenha um papel importante na
forma como entendemos o que a vida após a morte implica. Esses temas do
self, da morte e da vida após a morte são considerados no último tópico da
Unidade 3.

Boa jornada a todos, rumo à edificação da educação e sucesso frente


aos desafios intelectuais, éticos e pessoais proporcionados pelo estudo da
filosofia geral e da religião.

Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser

VI
UNI

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades
em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o


material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato
mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação
no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir
a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

VII
VIII
Sumário
SUMÁRIO

UNIDADE 1 – FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA .................................. 1

TÓPICO 1 – A FILOSOFIA E AS QUATRO VIRTUDES FILOSÓFICAS .................................... 3


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3
2 UM OLHAR FILOSÓFICO: ALGO MAIS A SER DITO .............................................................. 3
3 QUESTÕES OU PROBLEMAS FILOSÓFICOS? ............................................................................ 5
4 CONSIDERANDO QUESTÕES FILOSOFICAMENTE ............................................................... 7
5 DISTANCIAMENTO E COMPREENSÃO ...................................................................................... 9
6 VISÃO DE MUNDO, ARGUMENTO REFLEXIVO E VIRTUDES FILOSÓFICAS ................ 11
7 LEITURA ADICIONAL ....................................................................................................................... 12
RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 14
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 16

TÓPICO 2 – A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO ........................................................................ 17


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 17
2 AS DUAS PLATITUDES SOBRE O CONHECIMENTO .............................................................. 17
3 OS CASOS DE TIPO-GETTIER ........................................................................................................ 19
4 O PARADOXO DA LOTERIA ........................................................................................................... 22
5 EXTERNALISMO, INTERNALISMO E O CONHECIMENTO .................................................. 23
6 A EPISTEMOLOGIA ANTISSORTE ................................................................................................ 26
7 A EPISTEMOLOGIA DA VIRTUDE ................................................................................................ 28
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 32
RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 33
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 35

TÓPICO 3 – A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE .......................................................... 37


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 37
2 O QUE É O PROBLEMA FILOSÓFICO DA VERDADE? ............................................................ 37
3 TEORIAS DA VERDADE COMO CORRESPONDÊNCIA ......................................................... 39
4 TEORIAS EPISTÊMICAS DA VERDADE ...................................................................................... 43
5 O ESQUEMA-T E A ADEQUAÇÃO MATERIAL .......................................................................... 46
6 A CONCEPÇÃO SEMÂNTICA DA VERDADE ............................................................................ 47
7 O DEFLACIONISMO .......................................................................................................................... 51
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 54
RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 56
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 58

TÓPICO 4 – A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA ................................................................................... 59


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 59
2 OS ENIGMAS DA EXISTÊNCIA ...................................................................................................... 59
3 SERÁ QUE A ONTOLOGIA SE ESTABELECE EM UM ERRO? ................................................ 61

IX
4 A ANÁLISE DA EXISTÊNCIA ........................................................................................................... 63
5 OS OBJETOS NÃO EXISTENTES .................................................................................................... 67
6 OS OBJETOS “MEIO-EXISTENTES” ............................................................................................... 69
7 OS LIMITES DA EXISTÊNCIA ......................................................................................................... 71
8 POR QUE QUALQUER COISA EXISTE? ........................................................................................ 74
RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 76
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 78

TÓPICO 5 – A FILOSOFIA DA MENTE E DA CONSCIÊNCIA ................................................... 79


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 79
2 O PROBLEMA MENTE-CORPO: ANTIGO E NOVO .................................................................. 79
3 O DUALISMO DE PROPRIEDADES ............................................................................................... 85
4 AS ABORDAGENS FISICALISTAS ................................................................................................. 89
5 CONCLUSÃO: UMA QUESTÃO DE PERSPECTIVA? ................................................................ 94
RESUMO DO TÓPICO 5 ....................................................................................................................... 95
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 97

TÓPICO 6 – A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL ............................................. 99


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 99
2 SELVES E PESSOAS ............................................................................................................................. 99
3 ALGUMAS PERGUNTAS ................................................................................................................... 102
4 O PROBLEMA SELF-CORPO ............................................................................................................ 103
5 A IDENTIDADE PESSOAL ................................................................................................................ 111
RESUMO DO TÓPICO 6 ....................................................................................................................... 120
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 122

UNIDADE 2 – FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA


DIVINA ........................................................................................................................... 123

TÓPICO 1 – RELIGIÃO E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO .............................................................. 125


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 125
2 A RELIGIÃO E AS RELIGIÕES DO MUNDO ............................................................................... 125
3 A FILOSOFIA E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO ............................................................................. 128
4 CRENÇAS E PRÁTICAS RELIGIOSAS ........................................................................................... 130
4.1 O REALISMO RELIGIOSO ............................................................................................................ 130
4.2 O NÃO REALISMO RELIGIOSO .................................................................................................. 131
RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 136
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 137

TÓPICO 2 – A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO ................................................ 139


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 139
2 A DIVERSIDADE DAS RELIGIÕES ................................................................................................ 140
3 O INCLUSIVISMO E O EXCLUSIVISMO RELIGIOSO ............................................................. 143
3.1 A OBJEÇÃO AO INCLUSIVISMO E AO EXCLUSIVISMO: O “MITO DA ................................
NEUTRALIDADE” . ........................................................................................................................ 145
3.2 A OBJEÇÃO DA JUSTIÇA ............................................................................................................. 145
3.3 O “ESCÂNDALO DA PARTICULARIDADE” ........................................................................... 147
4 O PLURALISMO RELIGIOSO........................................................................................................... 148
4.1 A HIPÓTESE PLURALISTA ........................................................................................................... 148
4.1.1 O pluralismo é logicamente contraditório .......................................................................... 150
4.1.2 Pluralismo leva ao ceticismo em relação ao real ................................................................ 151
4.2 PLURALISMO ASPECTUAL ......................................................................................................... 152
4.2.1 O pluralismo aspectual conduz ao sincretismo . ................................................................ 152

X
4.2.2 O pluralismo aspectual conduz ao ceticismo ..................................................................... 153
5 O RELATIVISMO RELIGIOSO ......................................................................................................... 154
5.1 UMA DESCRIÇÃO INADEQUADA DAS CRENÇAS RELIGIOSAS REAIS ......................... 155
5.2 O RELATIVISMO É INCOERENTE .............................................................................................. 155
6 AVALIANDO OS SISTEMAS RELIGIOSOS ................................................................................. 156
6.1 CONSISTÊNCIA LÓGICA ............................................................................................................ 157
6.2 A COERÊNCIA DE TODO O SISTEMA ...................................................................................... 158
6.3 A CONSISTÊNCIA COM O CONHECIMENTO EM OUTROS CAMPOS ............................ 158
6.4 RESPOSTAS RAZOÁVEIS ÀS ​​ QUESTÕES HUMANAS FUNDAMENTAIS ........................ 159
6.5 A PLAUSIBILIDADE EXISTENCIAL ........................................................................................... 159
7 TOLERÂNCIA RELIGIOSA ............................................................................................................... 160
RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 162
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 163

TÓPICO 3 – CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA ............................................................... 165


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 165
2 A REALIDADE ÚLTIMA: O ABSOLUTO E O VAZIO (VÁCUO) .............................................. 166
2.1 O ABSOLUTISMO HINDU ............................................................................................................ 166
2.2 METAFÍSICA BUDISTA ................................................................................................................. 168
3 A REALIDADE ÚLTIMA: UM DEUS PESSOAL ........................................................................... 171
3.1 NECESSIDADE ................................................................................................................................ 173
3.2 ONIPOTÊNCIA ............................................................................................................................... 174
3.3 ONISCIÊNCIA ................................................................................................................................. 176
3.4 ETERNIDADE .................................................................................................................................. 177
3.5 IMUTABILIDADE . .......................................................................................................................... 180
RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 182
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 183

TÓPICO 4 – Argumentos Cosmológicos da Existência Divina ....................................................... 185


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 185
2 O ARGUMENTO DA CONTINGÊNCIA ........................................................................................ 186
2.1 OBJEÇÃO 1: A SÉRIE CONTINGENTE SIMPLESMENTE É ................................................... 190
2.2 OBJEÇÃO 2: A FALÁCIA DA COMPOSIÇÃO ........................................................................... 191
2.3 OBJEÇÃO 3: EXPLICANDO AS PARTES DE UM TODO EXPLICA O TODO EM SI .
MESMO ............................................................................................................................................. 191
2.4 OBJEÇÃO 4: QUEM CAUSOU DEUS A EXISTIR? . ................................................................... 192
2.5 OBJEÇÃO 5: MESMO ADMITINDO A EXISTÊNCIA DE UMA CAUSA NECESSÁRIA, . .
ESTA CAUSA NÃO PRECISA SER DEUS .................................................................................. 192
3 O ARGUMENTO DA RAZÃO SUFICIENTE ................................................................................. 193
3.1 OBJEÇÃO 1: NÃO HÁ NENHUMA MANEIRA DE DEMONSTRAR QUE O PRINCÍPIO .
DA RAZÃO SUFICIENTE É VERDADEIRO .............................................................................. 195
3.2 OBJEÇÃO 2: O PRINCÍPIO DA RAZÃO SUFICIENTE É INCOERENTE . ............................ 196
3.3 OBJEÇÃO 3: A SUBJETIVIDADE DE UMA EXPLICAÇÃO ..................................................... 197
3.4 OBJEÇÃO 4: A CIÊNCIA TEM DEMONSTRADO QUE NÃO É NECESSÁRIO HAVER . .
RAZÕES OU EXPLICAÇÕES PARA TODAS AS COISAS E EVENTOS ............................... 197
4 O ARGUMENTO KALAM ................................................................................................................. 198
4.1 UM ARGUMENTO FILOSÓFICO PARA O INÍCIO DO UNIVERSO . ................................... 200
4.1.1 Objeção: as séries temporais não têm começo .................................................................... 202
4.2 DUAS SUPOSTAS EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS PARA O INÍCIO DO UNIVERSO . .......... 203
4.2.1 Evidência 1: a segunda lei da termodinâmica .................................................................... 203
4.2.1.1 Objeção 1: a teoria do universo oscilante escapa ao controle da segunda lei

XI
e elimina a necessidade de um início do universo . ............................................. 204
4.2.1.2 Objeção 2: o universo é infinito, e assim a segunda lei da termodinâmica não
se aplica ao universo como um todo ..................................................................... 204
4.2.2 Evidência 2: a teoria do big bang . .............................................................................. 204
4.2.2.1 Objeção: alternativas para o big bang ..................................................................... 206
4.3 A CAUSA DO UNIVERSO É UM DEUS PESSOAL? ................................................................. 206
5 UM ARGUMENTO COSMOLÓGICO PARA O ATEÍSMO ........................................................ 207
5.1 OBJEÇÃO 1: A SINGULARIDADE NÃO É ONTOLOGICAMENTE REAL . ........................ 208
5.2 OBJEÇÃO 2: DEUS NÃO É LIMITADO POR LEIS OU PELA FALTA DELAS PARA .
REALIZAR OS PROPÓSITOS DIVINOS ............................................................. 209
5.3 OBJEÇÃO 3: A HIPÓTESE TEÍSTA DA CRIAÇÃO É MAIS SIMPLES E,
PORTANTO, MAIS PROPENSA A SER VERDADE DO QUE A HIPÓTESE ATEÍSTA ....... 209
RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 211
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 212

TÓPICO 5 – ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA ............................ 213


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 213
2 O ARGUMENTO DO DESÍGNIO (DESIGN) DE PALEY ............................................................ 214
2.1 OBJEÇÕES 1-3: AS REFUTAÇÕES DE HUME . .......................................................................... 215
2.2 OBJEÇÃO 4: UMA VISÃO DARWINIANA DOS ORGANISMOS BIOLÓGICOS ................ 217
3 O ARGUMENTO DO AJUSTE FINO ............................................................................................... 219
3.1 AS RESPOSTAS AO ARGUMENTO DO AJUSTE FINO ........................................................... 221
3.1.1 A hipótese dos muitos universos . ........................................................................................ 221
3.1.2 O princípio antrópico ............................................................................................................. 222
3.1.3 Quem projetou o projetista? .................................................................................................. 223
4 O ARGUMENTO DO DESIGN INTELIGENTE ............................................................................ 224
4.1 OBJEÇÕES AO ARGUMENTO DO DESIGN INTELIGENTE . ................................................ 229
4.1.1 Objeção 1: o argumento do design inteligente assenta-se sobre pressupostos filosóficos .
contenciosos, em vez de inferência científica ..................................................................... 229
4.1.2 Objeção 2: desafios para os alegados exemplos de complexidade irredutível .............. 230
RESUMO DO TÓPICO 5 ....................................................................................................................... 232
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 234

TÓPICO 6 – Argumentos ONTOLÓGICOS da Existência Divina ................................................ 235


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 235
2 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO DE ANSELMO ....................................................................... 236
2.1 AS CRÍTICAS DO ARGUMENTO DE ANSELMO . ................................................................... 239
2.1.1 A maior ilha possível .............................................................................................................. 239
2.1.2 A existência não é um predicado .......................................................................................... 240
3 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO MODAL DE ALVIN PLANTINGA ................................... 242
3.1 OBJEÇÕES AO ARGUMENTO MODAL DE PLANTINGA . ................................................... 245
3.1.1 Objeção 1: a existência de Deus é uma impossibilidade lógica ou metafísica ............... 245
3.1.2 Objeção 2: um problema com a semântica dos mundos possíveis .................................. 246
3.1.3 Objeção 3: o problema das fadas, fantasmas, gremlins e unicórnios .............................. 247
RESUMO DO TÓPICO 6 ....................................................................................................................... 249
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 251

UNIDADE 3 – PERSPECTIVA FILOSÓFICA: Ciência, fé e a experiência religiosa .................. 253


TÓPICO 1 – PROBLEMAS DO MAL .................................................................................................. 255
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 255
2 CLASSIFICANDO O MAL ................................................................................................................. 256

XII
2.1 O MAL NATURAL E O MAL MORAL ........................................................................................ 257
2.2 O MAL HORRENDO E GRATUITO . ........................................................................................... 257
3 Problemas teóricos do mal .................................................................................................................. 260
3.1 O problema lógico do mal .............................................................................................................. 260
3.1.1 Resposta 1 – o argumento “impossível de provar o contrário” ...................................... 261
3.1.2 Resposta 2 – A defesa do livre-arbítrio ................................................................................ 262
3.2 O PROBLEMA PROBABILÍSTICO OU EVIDENCIAL DO MAL ............................................ 264
3.2.1 O problema probabilístico ..................................................................................................... 264
3.2.1.1 Resposta 1 – o lapso de Leibniz ................................................................................ 265
3.2.1.2 Resposta 2 – Não há o melhor de todos os mundos possíveis ............................. 266
3.3 O ARGUMENTO EVIDENCIAL DE ROWE ............................................................................... 266
3.3.1 Objeção 1 - Limitações epistêmicas cognitivas ................................................................... 267
3.3.2 Objeção 2 - Deus pode usar o sofrimento e o mal para nosso bem maior . .................... 267
3.2.3 Objeção 3 - O mal gratuito é consistente com o teísmo ..................................................... 267
4 O PROBLEMA EXISTENCIAL DO MAL ....................................................................................... 268
4.1 RESPOSTA ........................................................................................................................................ 268
5 AS TRÊS TEODICEIAS ....................................................................................................................... 269
5.1 A TEODICEIA DO LIVRE-ARBÍTRIO DE AGOSTINHO ......................................................... 269
5.1.1 Objeção ..................................................................................................................................... 270
5.2 A TEODICEIA IRINEANA OU DA “FORMAÇÃO DA ALMA” DE HICK . ......................... 271
5.2.1 Objeção ..................................................................................................................................... 272
5.3 UMA TEODICEIA DO PROCESSO .............................................................................................. 272
5.3.1 Objeções . .................................................................................................................................. 273
RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 275
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 276

TÓPICO 2 – CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO .................................................................................................. 277


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 277
2 A RELIGIÃO E A CIÊNCIA ................................................................................................................ 278
2.1 CONFLITO ....................................................................................................................................... 278
2.2 INDEPENDÊNCIA .......................................................................................................................... 279
2.3 INTEGRAÇÃO ................................................................................................................................. 281
3 A CRENÇA RELIGIOSA E A JUSTIFICAÇÃO .............................................................................. 283
3.1 O FIDEÍSMO . ................................................................................................................................... 283
3.2 WILLIAM JAMES E A VONTADE DE ACREDITAR . ............................................................... 285
3.3 A APOSTA DE PASCAL ................................................................................................................. 288
3.4 ALVIN PLANTINGA E A EPISTEMOLOGIA REFORMADA ................................................. 291
RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 295
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 297

TÓPICO 3 – EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ........................................................................................... 299


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 299
2 A NATUREZA E A DIVERSIDADE DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ...................................... 299
2.1 O QUE É UMA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA? . ........................................................................... 300
2.2 CATEGORIAS DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ........................................................................ 300
3 A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E A JUSTIFICAÇÃO .................................................................... 306
4 DESAFIOS À EXPERIÊNCIA RELIGIOSA COMO JUSTIFICAÇÃO PARA AS
CRENÇAS RELIGIOSAS .................................................................................................................... 310
4.1 A FALTA DE VERIFICABILIDADE .............................................................................................. 310
4.2 REIVINDICAÇÕES CONFLITANTES NO INTERIOR DA VARIEDADE DAS EXPERIÊNCIAS .
RELIGIOSAS . ................................................................................................................................... 311
4.3 A OBJEÇÃO DA CIRCULARIDADE . .......................................................................................... 312
5 AS EXPLICAÇÕES CIENTÍFICAS DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ........................................ 313

XIII
5.1 UMA COMPREENSÃO PSICOLÓGICA DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ........................... 313
5.2 UM ENTENDIMENTO NEUROCIENTÍFICO DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA .................. 314
RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 316
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 317

TÓPICO 4 – O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE ................................................................. 319


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 319
2 CONCEPÇÕES DO SELF (DO EU) ................................................................................................... 320
2.1 O DUALISMO .................................................................................................................................. 321
2.2 O MATERIALISMO ......................................................................................................................... 324
2.3 O PANTEÍSMO MONISTA ............................................................................................................ 325
2.4 O NÃO SELF .................................................................................................................................... 326
3 A REENCARNAÇÃO E O CARMA .................................................................................................. 327
4 ARGUMENTOS PARA A IMORTALIDADE ................................................................................. 330
4.1 EXPERIÊNCIAS DE QUASE MORTE .......................................................................................... 330
4.2 RESSURREIÇÃO . ............................................................................................................................ 331
4.3 A NATUREZA DE DEUS . .............................................................................................................. 332
4.4 A NATUREZA DA ALMA ............................................................................................................. 333
5 ARGUMENTOS CONTRA A IMORTALIDADE .......................................................................... 333
5.1 A DEPENDÊNCIA DA CONSCIÊNCIA NO CÉREBRO . ......................................................... 333
5.2 A IDENTIDADE PESSOAL ............................................................................................................ 334
5.3 A MISÉRIA ETERNA ...................................................................................................................... 335
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 337
RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 363
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 364
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 365

XIV
UNIDADE 1

FILOSOFIA GERAL E A
INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• introduzir noções básicas de filosofia;

• apresentar o pensamento filosófico e alguns campos centrais de estudo e


suas principais questões;

• demonstrar o procedimento da investigação filosófica referente a algumas


questões nucleares da filosofia.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em seis tópicos e no final de cada um deles você
encontrará atividades que reforçarão o seu aprendizado.

TÓPICO 1 - A FILOSOFIA E AS QUATRO VIRTUDES FILOSÓFICAS

TÓPICO 2 - A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO

TÓPICO 3 - A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE

TÓPICO 4 - A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA

TÓPICO 5 - A FILOSOFIA DA MENTE E DA CONSCIÊNCIA

TÓPICO 6 - A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

A FILOSOFIA E AS QUATRO VIRTUDES


FILOSÓFICAS

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos nos concentrar na proposta de uma introdução à
investigação filosófica, ao pensamento e o fazer filosófico. Para isso, vamos
primeiramente elucidar como surgem os questionamentos da filosofia,
diferenciando-os de outros campos de investigação.

A seguir, levantaremos a reflexão sobre os problemas ou questões que


perfazem o trabalho de filosofar, introduzindo as possíveis posições filosóficas
frente aos mesmos. Então, vamos apresentar diversos exemplos de como
podemos considerar as questões filosoficamente, argumentando pelo viés de
um distanciamento e de uma compreensão geral ao invés de um entendimento
particularizado. Assim, vamos sugerir as vantagens e consequências de uma
abordagem filosófica às questões do mundo e de nós mesmos, como também a
necessidade de desenvolver em nós virtudes indispensáveis ao tirocínio filosófico.

2 UM OLHAR FILOSÓFICO: ALGO MAIS A SER DITO


Este caderno de estudos pretende ser uma introdução abrangente a
algumas questões centrais da Filosofia e da Filosofia da Religião. Claro que há
muitos e variados tópicos possíveis que poderiam ser explorados, entretanto,
selecionamos alguns tópicos e questões que consideramos centrais para introduzir
você, acadêmico, à investigação filosófica, em geral, e à investigação no campo da
filosofia da religião, em particular.

As questões vistas aqui, nesta primeira unidade, podem sintetizar o núcleo


da filosofia e apresentá-lo de uma forma que possa ser facilmente compreendido.
O que, em parte, distingue a abordagem deste caderno de estudos em relação
a alguns outros trabalhos introdutórios é que não iremos explorar a história
da filosofia, nem dos filósofos em particular. Uma abordagem assim é de fato
interessante, todavia tomaria muito espaço e não nos permitiria focar no aspecto

3
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

central de uma introdução à filosofia geral. Uma disciplina de filosofia geral visa,
entre outros objetivos periféricos, introduzir o acadêmico às questões centrais da
investigação filosófica. Em outros termos, a Filosofia Geral visa nos mostrar como
se faz filosofia. Então, o mais importante não são os tópicos particulares e, sim,
entender a disciplina da filosofia, como ela funciona, os tipos de considerações
que ela aborda ao discutir estes tópicos, e assim por diante. Em parte, nossa
proposta também difere de outras, pois em cada tópico não iremos abordar o
assunto diretamente, desde o início, pressupondo que você irá entender o porquê
e de que maneira as questões filosóficas distintivas podem ser levantadas. Vamos
preparar o terreno, explicando porque e de que forma as questões dão origem às
preocupações distintamente filosóficas, ou seja, vamos destacar a razão pela qual,
após termos pensado sobre as questões em todas as maneiras habituais, cotidianas
e científicas, poderíamos ainda supor que há algo mais a ser dito.

Por exemplo, por que depois de olhar para a anatomia do olho e sua rota
para o cérebro, e observar casos em que as pessoas sofrem de ilusões e veem coisas
que não estão realmente lá, supomos que há questões adicionais que possam ser
levantadas sobre a questão da percepção? Bem, a pista aqui é a palavra “olhar”, na
frase anterior. Suponha que imaginássemos o seguinte: como podemos ter certeza
sobre qual seria o modo, se é que há algum, em que as coisas parecem para o
nosso olhar do mesmo modo como elas realmente são. Nesse caso, seria inútil
recolher mais evidências com base em como as coisas parecem, o que seria circular,
pois exatamente o que está em questão é se o como as coisas parecem nos diz
com precisão como as coisas são. Seria como tentar checar a veracidade de uma
manchete de jornal através da compra de outra cópia do mesmo documento.

Considere também o exemplo do Estado. Os Estados têm o direito, se


eles são legítimos, de usar a força para limitar o que poderíamos fazer. Podemos
observar por todo o mundo e ver a extensão e os diferentes modos dos Estados
limitarem o que as pessoas fazem. Mas nenhuma quantidade de coleta de tal
informação factual iria responder à pergunta de qual deveria ser a extensão e os
tipos de limites que o Estado deveria impor. Qual é o alcance legítimo do Estado?
O que ele deveria fazer e não fazer? Isso não é algo que possa ser respondido por
mera reunião de fatos; pelo contrário, é algo que tem de ser decidido pela avaliação
de argumentos que vão além dos fatos, argumentos que são de caráter filosófico.

Tome então a questão da linguagem e do significado. Podemos querer


descobrir o que "the sea" significa em português. Para fazer isso, podemos olhar em
um dicionário bilíngue adequado, uma vez que reconhecemos a expressão como
inglesa. Descobrimos que significa "o mar". Mas como é que as palavras e outras
expressões linguísticas, escritas ou faladas, esses rabiscos engraçados e ruídos,
ganham significado de fato? Poderíamos pensar que o problema é resolvido
através de um dicionário, mesmo quando estivermos considerando uma única
língua. Procure uma palavra como "mar" no dicionário e você terá uma definição
do que significa. Mas a definição só usa mais palavras; se houvesse apenas palavras
para dar às palavras o seu significado, prosseguiríamos desse modo até concluir
que nenhuma palavra jamais teria significado. Deve haver algo fora do círculo
de palavras que dá significado às palavras. Observe isso de outra forma: você
4
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA E AS QUATRO VIRTUDES FILOSÓFICAS

pousou em outro planeta e notou formas padronizadas decorando uma rocha; o


que tornaria isso uma língua, se assim o for, algo que diz algo, em vez de uma
mera decoração bonita? Não adianta simplesmente pedir aos alienígenas locais
para lhe dizer, pois você já necessitaria saber (mesmo antes de você traduzir o que
eles disseram) que, entre os seus sons e gestos, assumindo que eles fazem algum,
constituem tentativas de comunicação, perceba que exatamente isso era o problema
em primeiro lugar. A preocupação sobre como língua recebe seu significado é uma
questão para a filosofia.

Estes são apenas alguns exemplos. Esperamos que eles lhes ofereçam o
sabor da ideia de que quando muitos ou todos os fatos são conhecidos ou acordados
sobre as questões analisadas aqui, ainda existem questões vitais que podem ser
levantadas.

Cada tópico desta primeira unidade deste caderno de estudos fará você
pensar filosoficamente sobre o assunto em questão, mostrar-lhe-á as formas com
que este tem sido considerado, permitindo que você saiba o que está acontecendo,
o que esperar, e qual caminho explorar. De modo que você possa, em seguida,
partir para ler com maior compreensão as próximas duas unidades deste caderno
de estudos, que introduzirão temas específicos de Filosofia Aplicada à Religião.
Assim como, realizar leituras mais difíceis e mais aprofundadas, conforme as
sugestões que faremos em cada tópico e na lista de referências bibliográficas.

3 QUESTÕES OU PROBLEMAS FILOSÓFICOS?

Como já foi dito, esta primeira unidade aborda algumas questões centrais
que surgem na filosofia. Cada tópico explica de que maneira há preocupações
distintamente filosóficas que podem ser levantadas. O termo "questões", ou
assuntos, é usado ao invés de "problemas", porque uma resposta possível dada
por alguns filósofos tem sido a de negar, ao examinar tais questões, que haveria
problemas filosóficos reais envolvendo-as. É altamente característico da filosofia
refletir desse modo sobre o que está fazendo, e não apenas continuar a fazê-lo. É
comum o obrar filosófico dar um passo atrás e considerar se o que está fazendo é,
na sua totalidade, a maneira certa de fazer as coisas. Por analogia, imagine que você
está tentando abrir uma porta, e na tentativa de fazer isso, você percebe que a chave
não está girando a fechadura; você se debate continuamente, mexendo inutilmente
com a chave, lubrificando a fechadura, tentando chaves diferentes, só para então
descobrir que a maçaneta da porta não estava trancada. Você simplesmente não
tinha pensado nisso; você pensou o tempo todo, tinha assumido, que a porta estava
trancada, quando na verdade você poderia apenas ter atravessado a porta sem
nenhum esforço. O "problema da porta trancada" era espúrio, como um problema
de porta trancada; havia uma questão quanto à forma de abrir a porta, mas não
havia problema, uma vez que foi considerado o modo certo.

5
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

Por outro lado, fazendo outra analogia, um encanador pode se perguntar


se ele está usando a chave de tamanho certo, ou mesmo as ferramentas certas,
para resolver algum problema. Mas ele raramente estaria na posição de levantar a
questão de saber se há um problema e se são necessárias ferramentas de fato para
resolvê-lo, se a água estivesse vazando de um cano escondido sobre a sua cabeça.
Alguns filósofos pensam que alguns ou todos os chamados problemas filosóficos
são como o caso da porta não-realmente-trancada: se você der conta de pensar
sobre isso da maneira certa, você vai ver que não é realmente um problema, mas,
em vez disso, apenas a aparência de um problema, um pseudoproblema. Há, em
vez disso, somente uma questão levantada e só precisas ter clareza sobre ela para
superá-la.

No entanto, tornar claras as questões de modo a provocar a dissolução


dos problemas que estas parecem levantar pode ser muito difícil. Ainda se tem de
apresentar bons argumentos. Se fosse fácil, não seria de nenhum modo provável
que alguém suporia que houvesse um problema onde não existe nenhum. Nem
todos os filósofos adotam essa abordagem em qualquer caso; de fato, embora
seja uma posição perfeitamente respeitável a se manter, tais filósofos são,
provavelmente, uma minoria. A maioria dos filósofos, por contraste, pensa que
as questões que serão levantadas nesta unidade, entre outras, de fato levantam
problemas filosóficos genuínos que têm de ser resolvidos, necessitando, assim,
serem solucionados e não dissolvidos pela exposição do erro de nossa abordagem
ao pensar que existe um problema.

Claro, há também uma posição parcial: alguém pode decidir que apenas
algumas das questões, quando examinadas, levantam problemas filosóficos
genuínos, mas outras não o fazem. Pode-se dizer também que na identificação de
problemas filosóficos aparentes, suscitados pelas questões centrais que a filosofia
geralmente aborda como problemas filosóficos não verdadeiros, estaríamos
tornando o trabalho dos filósofos obsoleto, e isto é um ponto relevante. Deve-
se ressaltar que, para a maioria dos filósofos, todas as questões desta unidade, e
por consequência deste caderno de estudos como um todo, levantam problemas
genuínos que exigem soluções que são distintamente assuntos para a filosofia, de
modo que eles não podem ser eliminados ou exportados para as ciências.

NOTA

Ludwig Wittgenstein, com uma integridade que poucos têm correspondido,


aposentou-se da filosofia para ensinar em uma remota escola secundária austríaca depois
de decidir que, em seu Tractatus Logico-Philosophicus (1968), ele tinha resolvido, ou pode-se
dizer eliminado, todos os problemas da filosofia. Mas depois de alguns anos ele foi atraído de
volta a fazer o trabalho em filosofia, tendo percebido, com a ajuda de críticos e amigos, que sua
aniquilação de filosofia não era tão conclusiva quanto ele pensava.

6
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA E AS QUATRO VIRTUDES FILOSÓFICAS

4 CONSIDERANDO QUESTÕES FILOSOFICAMENTE

Então, o que é a filosofia e o que é tomar uma questão e considerá-la


filosoficamente? A filosofia é, em parte, uma questão de seu objeto de estudo e em
parte uma questão de seu método em abordar as questões que constituem o seu
objeto de estudo.

Vamos considerar algumas características da filosofia como ela é praticada.


O ponto de partida pode ser considerado como a suposição de que algumas
formas de pensar sobre as coisas são mais defensáveis ou justificadas quando
avaliadas pelos méritos dos argumentos a favor e contra elas, do que outras. Isso
pode parecer óbvio. No entanto, pode-se sugerir, como alguns o têm feito, de que
nenhuma visão é mais intelectualmente defensável ou justificável do que qualquer
outra, e que tudo o que nós temos são pontos de vista diferentes, mas não do tipo
que, no fundo, tem a intenção de competir um com o outro, no senso de ser mais
defensável ou justificável por algum processo de argumento para manter uma visão
em vez de outra. Esta é uma espécie de niilismo intelectual, fruto de um relativismo
epistêmico radical, uma posição onde não há nenhuma boa razão para pensar uma
coisa em vez de outra, porque nenhum argumento é melhor do que qualquer outro
no sentido de proporcionar maior ou menor justificativa. O que você pensaria,
nesta perspectiva, é que todos os casos seriam totalmente arbitrários, mas não
aleatórios, como se fossem determinados indubitavelmente pela circunstância, ou
seja, a escolha do que acreditar, na medida em que a escolha estaria envolvida em
tudo, é puramente uma questão de gosto. Como esta posição, sobre a inutilidade
fundamental de se tentar distinguir os méritos do que pensamos por argumentos,
pode ser justificada e apresentada de uma forma que dá a alguém uma razão para
acreditar nela, sem contrariar a sua principal reivindicação, é de fato um mistério.
Um filósofo profissional que passasse o seu tempo defendendo uma posição que
supostamente não poderia haver nenhuma possibilidade de oferecer qualquer
justificação para a mesma ou qualquer razão para aceitá-la, teria uma desculpa
tênue para obter o seu salário. Se aceitarmos esse ponto de vista, então não há
nenhum ponto em prosseguir e argumentar sobre os méritos de qualquer coisa
contra qualquer outra coisa. Felizmente, a maioria dos filósofos não tem essa visão
intelectualmente suicida, embora ainda seja considerada como uma possibilidade
dentro da filosofia.

O próximo passo é livrar-se do pensamento que possamos ter sobre as


questões fundamentais, de que estas só podem estar vinculadas ao lugar, ao tempo
e ao contexto no qual nascemos ou fomos educados, não importa o quão estimado
ou até mesmo desconfortável isso possa ser. Tais formas de pensamento, crenças
e tradições podem se tornar hábitos tão arraigados que deixamos de percebê-los,
e muito menos os questionar. Você poderá se surpreender ao perceber o quanto
você, de fato, estima estas formas de pensamento. Pisar para fora das mesmas por
conta própria, ainda que com a ajuda de grandes pensadores da longa história
da filosofia que também o tenham feito, pode deixá-lo ansioso, mas pode trazer
uma sensação de libertação empolgante também. Você poderá vir a aceitar as
crenças que o rodeiam como perfeitamente justificáveis, e que mantê-las é a coisa

7
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

certa a fazer. Mas para ser um filósofo, para pensar sobre suas próprias crenças
filosoficamente, é necessário tornar tais crenças próprias por meio do pensar,
através dos argumentos a favor e contra, e isso só é possível por si mesmo. A
filosofia é sobre o chegar às próprias ideias pela avaliação crítica da variedade de
argumentos para elas de uma forma flexível e de mente aberta. Aceitar ideias com
base em mera autoridade examinada ou por causa de sua longevidade não é bom
o suficiente.

Em parte, a motivação pode ser dita, ser a de não acabar acreditando no


absurdo, o qual há certamente suficiente em nosso meio. Além disso, deve-se
pensar de uma maneira determinantemente de mente aberta, sem tabus; pensar,
como poderíamos dizer, até os limites. Em parte, isso é uma questão de abandonar
as maneiras habituais de pensar. Ninguém deve exagerar a extensão em que esta
tarefa seja fácil, pois fazer isso é subestimar o esforço contínuo que é necessário
para nos proteger contra a suposição de que estamos pensando livremente e
abertamente quando de fato não estamos. Isto é tanto uma questão de psicologia
emocional e determinação de vontade, quanto o é de se tornar hábil em entender
argumentos. Às vezes, os hábitos de pensamento, exacerbados pelas pressões
sociais para nos conformarmos a uma visão comum, são muito difíceis de serem
superados. Neste sentido, a filosofia só pode prosperar em uma sociedade livre.

A fim de começar a usar argumentos apropriadamente como a base do que


se crê é necessário que primeiro se esteja aberto à discussão, à argumentação. Se
você prefere não pensar sobre suas crenças básicas, ou em algum sentido é incapaz
de fazê-lo, se você prefere aceitar o que todo mundo acredita só porque isso significa
ir junto com a maioria, se você prefere confiar em autoridades autoproclamadas
e na mera longevidade de uma opinião para chegar a uma perspectiva sobre as
coisas, então a filosofia não é, talvez, para você. Não abrir a mente desta maneira
não é necessariamente algo mau ou fraco. Engajar-se na filosofia, para você, se
resume ao que de fato importa para você. Se for importante para você que os teus
pontos de vista sejam adquiridos por meio de uma busca própria, de mente aberta
e determinada em encontrar as razões a favor e contra. Se você estiver de um modo
contínuo disposto a mudar sua mente, caso boas razões para fazê-lo aparecerem,
então, pensar filosoficamente é o que você provavelmente já está fazendo.

Considere, portanto, que você não está sozinho neste pensamento. Você pode
construir sobre as ideias de centenas de filósofos que pensaram sobre as mesmas
questões básicas. Em sentido figurado, ao nos conectarmos com a tradição cultural
filosófica, obtemos um “cérebro muito maior”. Ser filosófico não significa que você
tem que pensar sobre as coisas a partir do nada e sem ajuda. Se, entretanto, você
perceber este prospecto de pensamento aberto como algo perturbador, assustador,
uma espécie de mergulho em um inesgotável mar inseguro de ideias, você poderá
pensar que esse empreendimento lhe fará infeliz. Talvez a sua felicidade, sendo
imperturbável, é mais importante para você. Ninguém garantiria que a filosofia
traz felicidade. Mas antes de optar por “contentamento bovino”, vale a pena
considerar o seguinte aviso. Extrair suas crenças a partir da mera confiança nas
formas de pensar que, por força do acaso, encontram-se à sua volta, formas de
pensar que talvez ninguém tenha totalmente ponderado nem avaliado as suas
8
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA E AS QUATRO VIRTUDES FILOSÓFICAS

razões com uma mente aberta, poderia muito bem conduzi-lo a acreditar em coisas
que lhe deixarão na mão, e o fazem assim porque no final elas são simplesmente
falsas ou mal examinadas. Tal confiança ingênua seria um pouco como conduzir
um carro, do qual nada se sabe, por uma longa distância. Será que você realmente
quereria dirigir um carro sem verificar os freios em primeiro lugar? Na maior
parte do tempo as crenças pobremente justificadas, superficialmente pensadas ou
falsas, parecem não importar. Mas, há momentos em que tais ideias são postas à
prova por circunstâncias, como se algo corresse na frente do carro e, em seguida,
encontramos terríveis consequências.

5 DISTANCIAMENTO E COMPREENSÃO
O objeto de estudo da filosofia se reflete nos títulos dos tópicos desta
primeira unidade do caderno de estudos, tais como: Conhecimento, Verdade,
Existência, Mente e Consciência, Self e Identidade Pessoal. Outras questões
gerais de estudo da filosofia, que não poderemos ver aqui por nos limitarmos em
somente uma unidade, são assuntos como: Percepção, Realidade e Pensamento,
Valor Ético, Escolha Ética, Liberdade, Valor Artístico, Estado, Verdades a Priori,
Ação, Linguagem e Significado, Modalidade, Investigação Científica, Causalidade
e Leis da Natureza, Livre Arbítrio, Existência de Deus, entre outros. Alguns destes
últimos, como a “Existência de Deus” e o “Livre Árbitro”, veremos nas próximas
duas unidades deste caderno de estudos, ao discutirmos questões de Filosofia da
Religião. De qualquer modo, a filosofia visa obter uma compreensão fundamental
e geral dos problemas levantados por estas questões.

Isso pode parecer assustador, mas não é difícil de entender. É,


principalmente, uma questão de distanciar-se de assuntos específicos relacionados
com as questões para obter uma compreensão da questão em geral. Tomemos,
por exemplo, a questão da verdade. É uma coisa perguntar se esta ou aquela
alegação específica é verdade, outra coisa é perguntar o que, em todos os casos em
que dizemos que algo é verdadeiro, devemos entender por verdade. É uma coisa
perguntar se a declaração de uma pessoa de que "Henrique VIII teve seis esposas"
é verdade, outra coisa é perguntar o que devemos entender por qualquer alegação
de que uma afirmação é verdadeira.

Vejamos um exemplo da questão da “Causalidade”. Uma coisa é afirmar


que fumar provoca câncer e outra é considerar o que devemos entender pela
afirmação de que alguma coisa causa algo em outra coisa. À primeira vista, as
respostas a estas questões podem parecer óbvias, mas na verdade, se você começar
a pensar sobre elas com cuidado, descobrirá que estes assuntos estão longe de ser
tão simples como parecem. Pensar estas questões meticulosamente, considerando
os argumentos sobre qual perspectiva devemos manter, é o objeto de estudo da
filosofia.

9
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

Dado que agora temos uma noção de como a filosofia vai tratar das
questões, a próxima pergunta que pode ocorrer é por que a filosofia toma para
si essas questões. Novamente, a resposta não é muito difícil de encontrar. Há
muitas questões que sentimos que temos de lidar com elas e resolvê-las em nossas
vidas, tanto para o nosso próprio bem como para o bem dos outros. Esse lidar
envolve chegar ao que pensamos ser um posicionamento justificável sobre elas.
Mas, algumas questões são mais fundamentais e mais importantes do que as
outras, e elas assim o são por virtude das amplas implicações da visão que temos
sobre elas. Assim como, da maneira em que elas estão envolvidas nas formas mais
fundamentais de pensarmos sobre o mundo e nós mesmos. Isto é parcialmente
refletido nos grandes conceitos abstratos em que as questões são expressas, como
o “self”, o "livre-arbítrio" e a "liberdade".

Os conceitos podem ser considerados como os blocos de construção do


pensamento articulado e organizado. Sem eles, podemos afirmar que não seria
possível pensar em nada, porque pensar em algo é aplicar um conceito ao mesmo.
Por exemplo, pensar sobre um gato, pensar que é um gato que está passando por
aqui, é ter, em algum sentido, uma compreensão do conceito "gato" e, em seguida,
aplicá-la a algo de que estamos cientes, de modo que aparece ante nossas mentes
como uma coisa ou outra. No entanto, uma coisa é não ser capaz de pensar sobre
gatos sem possuir o conceito de um gato, e é outra coisa simplesmente nunca
pensar sobre gatos. Isto parece perfeitamente possível. Podemos viver no mundo
sem pensar sobre gatos, sem grandes problemas decorrentes disso; poderíamos
simplesmente nunca ter encontrado um gato. No entanto, a filosofia se preocupa
com questões que são refletidas em conceitos sem os quais dificilmente seria
possível dizer que tivemos pensamentos sobre o mundo, ou até mesmo sobre
qualquer coisa. Seria incrível afirmar que nós ainda teríamos pensamentos sobre
o mundo se não tivermos alguma ideia do que envolve algo ser verdadeiro,
ou existente, ou causador. Tais conceitos parecem indispensáveis ​​ao nosso
pensamento, à nossa capacidade de pensar. Parece importante, então, adquirir o
melhor entendimento que possamos desses conceitos fundamentais e fazê-lo com
base em argumentos disponíveis. Então é isso que o núcleo da filosofia faz: se
afasta da aplicação particular dos conceitos básicos mais indispensáveis ​​que são
necessários para entender as coisas, necessários para pensarmos sobre as coisas,
para observá-los em sua forma mais geral, sem o que não seria possível sequer
pensar, e tem o objetivo de dar sentido ao que está acontecendo quando esses
conceitos estão envolvidos em nossos pensamentos.

A filosofia, em suma, procura entender os conceitos que sustentam todos os


outros conceitos que usamos, para que possamos entender o que estamos fazendo
quando nós os usamos. Sem isso, estaríamos apenas prosseguindo aplicando-
os cegamente, talvez de maneiras errôneas ou confusas. Sem examinar nossos
conceitos básicos, podemos argumentar, ao pensar sobre as coisas não saberíamos
realmente o que estaríamos fazendo. Seria semelhante à afirmação socrática, de
que para os seres humanos a vida não examinada não vale a pena viver, e para
alguns, apenas vivendo uma vida assim é uma traição do aspecto mais nobre de
nossa existência como seres humanos. (PLATÃO, 2008).

10
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA E AS QUATRO VIRTUDES FILOSÓFICAS

6 VISÃO DE MUNDO, ARGUMENTO REFLEXIVO E VIRTUDES


FILOSÓFICAS

Se alguém considera que a filosofia é, no fundo, simplesmente uma questão


de pensar por si mesmo sobre quais deveriam ser as suas perspectivas mais
básicas na base de argumentos, então a filosofia não é um espetáculo esotérico
ou uma questão de cortes lógicos, frios e pedantes feitos por alguém que tem
disponibilidade para abrir mão das preocupações reais da vida.

A filosofia envolve no final a obtenção de uma visão de mundo moldada


por argumento reflexivo, uma visão de como o mundo de um modo geral se
encaixa. Neste sentido, a filosofia não é por qualquer meio apenas uma questão
de esmerilhar através de argumentos, tendo o cuidado especial de que a lógica
esteja correta. Envolve certo tipo de sensibilidade para a relevância das questões
que possam ser consideradas, e uma capacidade de imaginação para conectar e
sintetizar estes assuntos de uma forma que conduza a uma perspectiva coerente.
A perspectiva filosófica de alguém se espalha como ondulações em uma piscina,
colidindo com e permeando as crenças que moldam diretamente a própria visão
da vida, a própria visão do mundo e o seu lugar nele, pontos de vista que, por sua
vez, determinam suas ações ou omissões, ações que podem ter consequências boas
ou terríveis. Se viver a sua vida de uma forma pensada da melhor maneira que
você pode fazer importa para você, então a filosofia é uma necessidade e não um
luxo opcional que pode ser deixado com segurança para um dia de folga.

Nós somos todos filósofos, na medida em que estivermos dispostos a


abrir a nossa mente quanto ao que nossas crenças básicas devem ser, e estivermos
preparados para avaliar e reavaliá-las de acordo com os argumentos disponíveis.
Você pode, então, ser praticamente um filósofo e nem sequer saber disso. É apenas
uma questão de quanto esforço você está preparado a colocar nisso e quão longe
e profundo você está preparado em ir no exercício de pensar sobre as coisas. Na
verdade, o fato de que você teve a curiosidade de fazer este curso, em que esta
disciplina está inclusa, analisar este caderno de estudos, sugere que você está na
direção certa para de fato filosofar. O objetivo deste caderno de estudos é conduzi-
lo de uma maneira significativa a tornar-se mais um filósofo do que era quando
começou a lê-lo, sabendo o que envolve a filosofia e como ela aborda as suas
questões centrais.

Como uma espécie de resumo, aqui é o que poderíamos dizer serem quatro
virtudes filosóficas, as quais incentivamos que você desenvolva:

1. Pense por si mesmo e permita que seus pontos de vista sejam orientados pela
avaliação crítica do leque de argumentos genuínos a favor e contra eles, e
aprenda com o que outros, que pensaram profundamente sobre essas questões,
disseram.

11
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

2. Esteja preparado para questionar pontos de vista mesmo quando eles pareçam
óbvios, sejam acreditados por muitos outros, tenham sido acreditados por um
longo tempo, ou sejam crenças que lhe são de alta estima ou mantidas pelo
hábito.
3. Mantenha uma mente verdadeiramente aberta pela disposição de mudar
seus pontos de vista de acordo com a procedência dos argumentos e não seja
encurralado em um canto defendendo uma posição dogmática, mesmo quando
sinta que o argumento está correndo contra você.
4. Reconheça que uma pessoa inteligente e honesta pode ter uma visão diferente
ou oposta à sua.

7 LEITURA ADICIONAL
Entre as introduções gerais, um livro altamente acessível e inteligente é
Pense, de Simon Blackburn (2001). Outra excelente introdução que abrange todos os
tipos de tópicos importantes, e mostra como eles podem ser tratados filosoficamente
e como os argumentos sobre eles podem ser construídos é o Elementos Básicos de
Filosofia, de Warburton (2007). Outra introdução às questões filosóficas, mas que
utiliza uma abordagem a partir dos filósofos clássicos, é o livro de James Rachels
(2009), Problemas da Filosofia.

Para uma visão geral da história da filosofia, recomendamos a monumental


obra de Giovanni Reale e Dario Antiseri, dividida em sete volumes (2003-2006).
Outra obra sempre citada é a de Bertrand Russel, História do pensamento
ocidental (2008). Vale a pena mencionar um livro inspirado e surpreendentemente
amplo, que põe claramente algumas das questões mais difíceis na filosofia, é El
Racionalismo, de John Cottingham (1987).

Voltando-nos aos clássicos da filosofia, sugerimos quatro livros para


começar. A ideia de recomendar a leitura destes é que dessa forma você obterá
uma experiência direta dos grandes filósofos, ao invés de ler ou ouvir sobre eles
em segunda mão. Eles não precisam ser lidos na ordem apresentada aqui.

Descartes (2004), em Meditações sobre a Filosofia Primeira. Essa obra


aparece em muitas edições e foi publicada pela primeira vez em 1641. É uma
obra fundamental da filosofia moderna. O próximo livro é uma pedra angular
da filosofia política, do pensar sobre como devemos viver juntos, em grupos, é
Sobre a Liberdade, de John Stuart Mill (1991), publicado pela primeira vez em
1859. Sua influência sobre o pensamento político em todo o mundo não pode ser
superestimada. Seria impossível não sugerir algo desde as origens da filosofia
ocidental na Grécia Antiga. Se a filosofia é uma questão de pensar por si mesmo
guiado pelo argumento aberto, então a Grécia, por volta de 600 a.C., é o lugar
onde a humanidade começou a pensar filosoficamente de uma forma substancial
e sistemática. O apogeu desse pensamento deve ser certamente Platão, em A
República (2001), foi escrito por volta de 375 a.C. Muitas das questões centrais

12
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA E AS QUATRO VIRTUDES FILOSÓFICAS

da filosofia são exploradas neste livro com uma presciência surpreendente.


Finalmente, dando uma visão bastante diferente das coisas, e que envolve uma
vertente diferente da tradição filosófica ocidental, é a vertente continental do
existencialismo. Uma obra-prima, considerada como um romance filosófico,
é Náusea (2005), de Jean-Paul Sartre, publicado pela primeira vez em 1938.
Nele se encontram ideias filosóficas e questões incorporadas na narrativa e nos
personagens.

Se a ideia for aprender filosofia através da vida de um filósofo, então uma


obra que fornece uma visão sobre a vida e a mente de um grande filósofo, ao
mesmo tempo que explica as suas ideias, é de Ray Monk, Wittgenstein: O dever
do Gênio (1995).

Para concluir, uma obra de referência que recomendamos, uma espécie


de companheiro de cabeceira para a leitura de qualquer obra de filosofia, é
Ted Honderich, Enciclopédia Oxford de Filosofia (2009). Ela contém muitas
entradas que apresentam em poucas palavras os aspectos essenciais da filosofia,
o significado de termos filosóficos, explicações de posições e ideias filosóficas, e
esboça as ideias dos filósofos famosos. Outras duas obras que auxiliarão na busca
por termos gerais da filosofia é o Dicionário Oxford de Filosofia, de Blackburn
(1997), e o Dicionário de Filosofia de Abbagnano (2012).

13
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico você viu que:

 A Filosofia Geral visa nos mostrar como se faz filosofia, como ela funciona, os
tipos de considerações que ela aborda ao discutir tópicos específicos.

 Muitas questões não podem ser respondidas pela mera reunião de fatos, pelo
contrário, necessitam ser decididas pela avaliação de argumentos que vão além
dos fatos, argumentos que são de caráter filosófico. Pois, quando muitos ou
todos os fatos são conhecidos ou acordados sobre algumas questões analisadas,
ainda existem questões vitais que podem ser levantadas.

 É comum o obrar filosófico dar um passo atrás e considerar se o que está fazendo
é, na sua totalidade, a maneira certa de fazer as coisas.

 Alguns filósofos pensam que alguns ou todos os chamados problemas filosóficos


são como o caso da porta não-realmente-trancada: se você der conta de pensar
sobre isso da maneira certa, você verá que não é realmente um problema, mas,
em vez disso, apenas a aparência de um problema, um pseudoproblema.

 A maioria dos filósofos pensa que muitas questões, de fato, levantam problemas
filosóficos genuínos que têm de ser resolvidos, necessitando, assim, serem
solucionados e não dissolvidos pela exposição do erro de nossa abordagem ao
pensar que existe um problema.

 A filosofia é, em parte, uma questão de seu objeto de estudo e em parte uma


questão de seu método em abordar as questões que constituem o seu objeto de
estudo.

 O ponto de partida para a investigação filosófica pode ser considerado como a


suposição de que algumas formas de pensar sobre as coisas são mais defensáveis
ou justificadas, quando avaliadas pelos méritos dos argumentos a favor e contra
elas, do que outras.

 Se aceitarmos o ponto de vista espécie do niilismo intelectual, que é fruto de um


relativismo epistêmico radical, então não haveria nenhum ponto em prosseguir
e argumentar sobre os méritos de qualquer coisa contra qualquer outra coisa.

 Para ser um filósofo, para pensar sobre suas próprias crenças filosoficamente,
é necessário tornar tais crenças próprias por meio do pensar, através dos
argumentos a favor e contra, e isso só é possível por si mesmo.

 A filosofia é sobre o chegar às próprias ideias pela avaliação crítica da variedade


de argumentos para elas de uma forma flexível e de mente aberta. Aceitar ideias

14
com base em mera autoridade examinada ou por causa de sua longevidade não
é bom o suficiente.

 Na maior parte do tempo as crenças pobremente justificadas, superficialmente


pensadas ou falsas, parecem não importar. Mas, há momentos em que tais ideias
são postas à prova por circunstâncias e, em seguida, encontramos terríveis
consequências.

 A Filosofia visa obter uma compreensão fundamental e geral dos problemas


levantados por questões como: Conhecimento, Verdade, Existência, Mente e
Consciência, Self e Identidade Pessoal, entre outras. É, principalmente, uma
questão de distanciar-se de assuntos específicos relacionados com as questões
para obter uma compreensão da questão em geral.

 Os conceitos podem ser considerados como os blocos de construção do


pensamento articulado e organizado. Sem eles podemos afirmar que não seria
possível pensar em nada, porque pensar em algo é aplicar um conceito ao
mesmo.

 O núcleo da filosofia se afasta da aplicação particular dos conceitos básicos mais


indispensáveis ​​que são necessários para entender as coisas, necessários para
pensarmos sobre as coisas, para observá-los em sua forma mais geral, sem o
que não seria possível sequer pensar, e tem o objetivo de dar sentido ao que está
acontecendo quando esses conceitos estão envolvidos em nossos pensamentos.

 A filosofia envolve a obtenção de uma visão de mundo moldada por argumento


reflexivo, uma visão de como o mundo, de um modo geral, se encaixa. Envolve
certo tipo de sensibilidade para a relevância das questões que possam ser
consideradas, e uma capacidade de imaginação para conectar e sintetizar estes
assuntos de uma forma que conduza a uma perspectiva coerente.

15
AUTOATIVIDADE

Um aspecto fundamental da filosofia é refletir sobre si mesma, questionar-


se sobre o que está fazendo e não apenas continuar a fazê-lo. Neste contexto,
explique o significado do “problema da porta trancada”.

16
UNIDADE 1
TÓPICO 2

A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO

1 INTRODUÇÃO

Neste tópico vamos explorar a investigação filosófica do conhecimento,


especificamente do conhecimento proposicional. Que é um campo de investigação
próprio da filosofia, a teoria do conhecimento, mas contemporaneamente chamada
de Epistemologia. Iniciaremos expondo as duas platitudes sobre o mesmo, a
platitude da antissorte e a platitude da capacidade.

A seguir vamos expor e explicar, com vários exemplos, os casos de tipo-


Gettier. O que nos levará ao Paradoxo da Loteria. Então, apresentaremos as
posições externalistas e internalistas sobre o conhecimento proposicional.

Antes de concluirmos, ainda ofereceremos vários exemplos e argumentações


pró e contra as epistemologias antissorte e da virtude.

2 AS DUAS PLATITUDES SOBRE O CONHECIMENTO


Há muitos tipos de conhecimento. Você pode saber que Paris é a capital
da França, ou saber como assar um bolo, ou saber onde estão as suas chaves, ou
saber quem foi o inventor da lâmpada, e assim por diante. Para manter as coisas
simples, vamos nos concentrar em um determinado tipo de conhecimento que
é de importância central, que é conhecido como conhecimento proposicional.
Conhecimento proposicional, como o nome sugere, é o conhecimento de uma
proposição. A proposição é, grosso modo, o que é expresso por uma sentença
que diz que algo é o caso, por exemplo, de que Paris é a capital da França, ou
que a Terra é plana. Ao focar no conhecimento proposicional, então, estamos nos
concentrando no conhecimento de que tal e tal é o caso, em vez de, digamos, no
conhecimento como fazer tal e tal, ou conhecimento onde tal e tal estão, e assim
por diante.

Todos concordariam que o conhecimento implica crença verdadeira, no


sentido de que se alguém conhece uma proposição, p, então, este alguém acredita
p, e p é verdade. (Claro, pode-se pensar no caso de alguém que conhecia certa
proposição, que acabou por ser falsa, mas, em tal caso, este alguém descobriu que

17
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

realmente não conhecia de fato). Todos poderiam alegar também que não há muito
mais para o conhecimento do que meramente uma crença verdadeira.

No entanto, é fácil formular casos de crença verdadeira que também não


são casos de conhecimento. Por exemplo, imagine um apostador, vamos chamá-
lo de "Afortunado", que acredita que o cavalo que vai ganhar a próxima corrida
é o “Trovão Afortunado”, onde essa crença é formada simplesmente na base de
que ele gosta do nome. Suponha ainda que o Trovão Afortunado, de fato, ganhe
a próxima corrida. Será que podemos dizer que o Afortunado sabia/conhecia
que o Trovão Afortunado ganharia? Certamente não, uma vez que a sua crença
é simplesmente o resultado de suposições e conjecturas e, por si só, nenhuma
rota para o conhecimento. E ainda assim ele tem uma crença verdadeira nessa
proposição.

A tarefa complicada para aqueles que trabalham em filosofia com a teoria


do conhecimento (também conhecida como epistemologia) é explicar o que mais é
necessário para o conhecimento além da crença verdadeira.

NOTA

Alguns, mais notavelmente Williamson (2000), têm argumentado que esta tarefa
não pode ser concluída, e, portanto, que devemos considerar o conhecimento como não
analisável. Para ver uma discussão mais aprofundada do pensamento de Williamson, verifique
o artigo de Rodrigues (2012), disponível no seguinte endereço eletrônico: <http://www.
repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/3480/1/2012_Art_LERodrigues.pdf>. Outros são mais otimistas
a esse respeito, como veremos em breve.

Há duas maneiras muito naturais de explicar por que a crença verdadeira


do Afortunado não se qualifica como conhecimento. A primeira é notar que a crença
do Afortunado só é verdade por uma questão de sorte. Isto é, dada a maneira como
ele formou a sua crença, aquela crença poderia muito facilmente ter sido errada.
Compare a crença do Afortunado a este respeito com a crença mantida por alguém,
que poderíamos considerar como alguém que sabia, que tinha o conhecimento, de
que o Trovão Afortunado de fato ganharia. Vamos supor que, sem o conhecimento
do Afortunado, a corrida foi fixada (comprada) e o fixador foi um gângster local,
que vamos chamar de "Sr. Mafioso”. Desde que o Sr. Mafioso sabe que a corrida
foi fixada em favor de Trovão Afortunado, nós naturalmente considerá-lo-íamos
como alguém que sabia/conhecia que o Trovão Afortunado iria ganhar. Note, no
entanto, que dada a forma como Sr. Mafioso formou sua crença verdadeira, não é
uma questão de sorte que sua crença é verdadeira. Ou seja, a sua crença verdadeira
não poderia ser errada tão facilmente. Há, portanto, muito a ser dito referente à
ideia de que uma précondição para o conhecimento não seja uma questão de mera
sorte de que a crença de alguém na proposição visada seja verdade. Chamemos
essa intuição sobre o conhecimento de a platitude da antissorte.

18
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO

A segunda maneira em que se poderia naturalmente explicar a falta de


conhecimento do Afortunado é em termos do fato de que sua crença verdadeira
não era de forma alguma o produto de sua habilidade, mas simplesmente devido
a um golpe de sorte. Em contraste, a crença verdadeira do Sr. Mafioso foi formada
através de sua capacidade. Afinal, ele viu por si mesmo que todos os outros cavalos
da corrida foram drogados e, portanto, tendo em conta o que ele sabe sobre o
desempenho de cavalos drogados, ele sabe que, assim, o Trovão Afortunado vai
ganhar. Uma forma de colocar esta questão é dizer que quando alguém sabe algo
é devido a algum crédito deste alguém para que tenha uma crença verdadeira.
No caso do Afortunado, no entanto, é de nenhum crédito seu que ele tenha
formado uma crença verdadeira, uma vez que sua crença só é verdadeira por
sorte. Há, portanto, muito a ser dito referente à ideia de que uma precondição do
conhecimento é que a crença verdadeira na proposição-alvo seja adquirida por
meio de habilidade/capacidade. Chame essa intuição sobre o conhecimento de
platitude da capacidade.

Estas duas platitudes têm sido extremamente influentes na teorização


contemporânea sobre o conhecimento. Curiosamente, poderíamos ser tentados a
supor que elas são apenas duas maneiras de expor o mesmo ponto, de modo que
estaria em vigor apenas uma "superplatitude” em jogo. Afinal, alguém poderia,
naturalmente, supor que qualquer crença verdadeira que foi adquirida através
da habilidade não seria verdadeira como uma questão de sorte, e que qualquer
crença verdadeira não atrelada à sorte deve ter sido obtida através da habilidade.
Se isso estivesse certo, então nós estaríamos no caminho de compreender o que
é o conhecimento, uma vez que só precisaríamos dizer algo a mais sobre o que
envolveria satisfazer estas duas platitudes. Como veremos, no entanto, as coisas
não são tão simples. Na verdade, veremos que estas duas platitudes de fato impõem
duas restrições independentes ao conhecimento.

3 OS CASOS DE TIPO-GETTIER

Tradicionalmente, a maneira de explicar o que é o conhecimento de uma


forma que seja coerente com as platitudes da capacidade e da antissorte é apelar
para uma condição de justificação, em que satisfazer essa condição envolve o
agente ser capaz de citar bons fundamentos em favor do que o mesmo acredita.
Tal explicação do conhecimento é conhecida como a abordagem "tripartite"
do conhecimento, uma vez que define o conhecimento como tendo três partes:
justificação, verdade e crenças.

Quando tratamos do exemplo que acabamos de descrever, envolvendo o


Afortunado e o Sr. Mafioso, esta proposta dá muito certo. Afinal, o Afortunado é
incapaz de oferecer qualquer boa razão em favor do que ele acredita, ao contrário
do Sr. Mafioso, que pode oferecer excelentes razões em favor de por que ele acha
que o Trovão Afortunado irá ganhar. No entanto, a proposta não se sai bem
quando se trata de outros casos. Um problema diz respeito ao fato de que muitas

19
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

vezes atribuímos conhecimento aos casos em que o agente em questão é incapaz


de oferecer quaisquer boas razões em favor do que acredita. Vamos considerar um
exemplo deste mais adiante. Primeiro, porém, precisamos observar um problema
ainda mais fundamental que desafia a explicação tripartite do conhecimento.

Considere o seguinte exemplo. Suponha que o nosso agente, vamos chamá-


lo de "Edmundo", sai do seu quarto em uma manhã e forma a sua convicção sobre
que horas são ao olhar para o relógio do seu avô que está na parede da sala. A crença
que ele forma, digamos, é de que são 8h20min. Suponha ainda que este relógio tenha
sido muito confiável no passado e Edmundo sabe disso, e também que Edmundo
tem motivos independentes para pensar que o tempo é aproximadamente 8h20min
da manhã (por exemplo, já tem luz exterior, ele geralmente se levanta em torno
deste tempo, e assim por diante). Finalmente, vamos estipular que a crença de
Edmundo é verdade, de fato, são 8h20min. Edmundo tem, assim, uma crença
verdadeira nessa proposição, e ele também está em posição de oferecer excelentes
razões em favor de sua crença, ou seja, sua crença é justificada. Então, de acordo
com a explicação tripartite do conhecimento, ele deve saber/conhecer que a
hora assinala 8h20min. Todavia, aqui vem a reviravolta. O que ocorreu, e sem
o conhecimento de Edmundo, é que o relógio parou de funcionar vinte e quatro
horas antes e está preso nesta hora específica. Será que Edmundo de fato sabe que
horas são? Certamente não. Afinal de contas, não se pode descobrir que horas são
olhando para um relógio parado. A moral da história é, portanto, que qualquer que
seja a definição do conhecimento, não pode ser meramente uma crença verdadeira
justificada. (RUSSEL, 1958)

NOTA

O exemplo do relógio parado vem de Russell (1958), embora ele mesmo não
reconheça que fora um exemplo de crença verdadeira justificada em que não é um caso de
conhecimento.

Esses casos são chamados de casos de "Tipo-Gettier", uma vez que foram
formulados pela primeira vez como uma objeção à explicação tripartite em um
artigo famoso escrito por Edmund Gettier (1963). Há uma receita para a criação
de tais casos. Em primeiro lugar, tomemos uma crença que é formada de uma
maneira que, normalmente, resultaria em uma crença falsa (por exemplo, neste
caso, uma crença que é formada por olhar para um relógio parado). Em seguida,
você configura o caso em que o agente tenha bons motivos citáveis ​​em favor de sua
crença (por exemplo, neste caso, Edmundo tem excelentes razões para considerar
que a hora é realmente 8h20min). Finalmente, você adiciona o detalhe posterior de
que a crença assim formada, por acaso, é verdadeira.

20
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO

Aqui está um segundo exemplo que ilustra esta receita para casos de tipo-
Gettier. Imagine um fazendeiro, que chamaremos de "Pedro", que está olhando
para um campo e vê o que parece ser uma ovelha. Baseado nisso, Pedro passa
a acreditar que há uma ovelha no campo. Porém, o que ocorre é que o que ele
está olhando não é uma ovelha, mas simplesmente um cão grande e peludo que
se parece com uma ovelha. Comumente, então, se fosse para formar essa crença
baseados nisso, acabaríamos com uma crença falsa. No entanto, Pedro tem
excelentes motivos em favor de sua crença, o cão grande e peludo de fato se parece
muito com uma ovelha, e ele não tem nenhuma razão para duvidar do que vê.
Além disso, a crença de Pedro é verdadeira, uma vez que existe uma ovelha no
campo escondida da sua vista por trás do cão grande e peludo. Pedro tem, assim,
uma crença verdadeira justificada que não conta como conhecimento (uma vez
que não se pode vir a saber que há uma ovelha no campo simplesmente olhando
para um cão grande e peludo). (CHISHOLM, 1969).

O que é interessante sobre casos de tipo-Gettier é que eles demonstram que


a simples existência de uma justificação em favor do que você verdadeiramente
acredita é insuficiente para lidar com a restrição imposta ao conhecimento pela
platitude da antissorte. Pois, em todos esses casos, o que você tem é uma crença
verdadeira justificada que não conta como conhecimento, porque a crença em
questão é apenas por sorte verdadeira, ou seja, ela poderia muito facilmente ter
sido errada. No caso de Edmundo, por exemplo, se ele tivesse descido um minuto
antes ou um minuto depois (ou se o relógio tivesse parado um minuto antes ou
um minuto depois), então ele teria formado uma crença falsa ao olhar para este
relógio. O mesmo vale para Pedro. Se não houvesse uma ovelha escondida da
vista, por trás do cão grande e peludo, então ele teria formado uma crença falsa,
olhando para o cão grande e peludo. Em ambos os casos, então, a crença formada
é verdadeira apenas por sorte mesmo que seja justificada.

Um segundo ponto que podemos notar sobre os casos de tipo-Gettier é que


eles satisfazem a restrição ao conhecimento imposta pela platitude da habilidade/
capacidade. Afinal, ambos, Edmundo e Pedro, formam suas respectivas crenças
através da capacidade, ou seja, estes casos não são como o caso do Afortunado, que
adquire uma crença verdadeira simplesmente por adivinhação. Lembre-se de que
Edmundo tem todos os motivos para confiar no que o relógio lhe diz, e Pedro está
realmente olhando para algo que se parece muito com uma ovelha.

No entanto, formar a crença meramente através da capacidade não parece


ser suficiente para o conhecimento. Assim, deve-se, além disso, formar a crença
de uma forma que não seja por sorte. As exigências impostas pelas platitudes da
capacidade e da antissorte são, portanto, distintas.

21
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

4 O PARADOXO DA LOTERIA

Existe outro tipo de exemplo, que ilustra que as exigências impostas por
estas platitudes são distintas. Imagine uma loteria justa com probabilidades de
acerto extremamente pequenas (uma em um bilhão, digamos). Agora, suponha
que o nosso agente, vamos chamá-lo "Lotérico", está na posse de um dos bilhetes
para esta loteria, um bilhete que de fato é um bilhete perdedor (embora o Lotérico
não tenha qualquer ideia disso, ainda). O Lotérico pensa consigo mesmo, que uma
vez que as probabilidades contra ele ganhar são tão altas, o bilhete deve ser um
bilhete perdedor. Baseado nisso, ele forma a crença (verdadeira) de que ele perdeu
na loteria e assim rasga o bilhete.

Provavelmente iríamos considerar o comportamento de Lotérico deveras


enigmático, e parte da razão para isso é que intuitivamente o Lotérico não pode
vir a saber que seu bilhete perdeu simplesmente refletindo sobre as pequenas
probabilidades envolvidas, apesar de sua crença ser de fato verdadeira. Na
verdade, nós provavelmente diríamos ao Lotérico que ele não deveria ter rasgado
o bilhete porque, por tudo o que possivelmente pudesse saber, ele teria ganhado
na loteria. Este exemplo é, portanto, em si um caso tipo-Gettier, em que se trata
de um exemplo de crença verdadeira justificada que, intuitivamente, não é um
conhecimento. Embora, este não é o único aspecto importante deste exemplo.

O que também é interessante neste caso é que, enquanto o Lotérico é incapaz


de saber que perdeu na loteria, simplesmente por considerar as probabilidades
envolvidas, ele pode vir a saber que perdeu pela leitura dos resultados em um
jornal de confiança. O que é misterioso sobre isso, porém, é que a probabilidade
de que o jornal imprimiu o resultado errado é certamente muito maior do que a
probabilidade de Lotérico ter vencido. Assim, do ponto de vista da probabilidade
de que sua crença está correta, há uma maior probabilidade de que sua crença seja
verdadeira se o Lotérico a formar refletindo sobre as probabilidades envolvidas
do que a formando lendo o resultado em um jornal de confiança. Ainda assim, o
Lotérico poderá vir a conhecer essa proposição pelo segundo método, mas não
pelo primeiro.

Este é o denominado "Paradoxo da Loteria”.

NOTA

Para mais informações sobre o Paradoxo da Loteria, consulte Hawthorne (2004).


Para consultar outra obra mais geral sobre Epistemologia que também aborda o Paradoxo da
Loteria de Hawthorne, veja Fumerton (2014). Consulte também o site de Elano Sudário Bezerra
sobre o tema. Disponível em: <https://conceitodeconhecimento.wordpress.com/category/
paradoxo-da-loteria/>. Acesso em: 5 maio 2015.

22
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO

O que ele demonstra é algo surpreendente, que o fato de você saber ou


de você não saber alguma coisa não é em função da força probabilística de sua
evidência de apoio. Ou seja, por um lado, pode-se ter provas em favor de uma
crença que a tornaria muito provável de ser verdadeira, mesmo assim ainda faltar
conhecimento. Por outro lado, embora possuindo evidências em favor desta crença
que não a torne tão provável que seja verdadeira, isso pode ser o suficiente para se
obter conhecimento.

A fim de entender isso, perceba que o que está errado com a crença
verdadeira do Lotérico, de que ele perdeu ao basear-se na consideração das
probabilidades envolvidas, é que tal crença muito facilmente pode ser errada.
Imagine, por exemplo, que o Lotérico estivesse em posse do bilhete premiado.
No entanto, formou do mesmo modo a sua crença sobre o fato de seu bilhete
ser perdedor. Nesse caso, ele teria formado uma crença falsa através do mesmo
método. As coisas são diferentes quando se trata de formar sua crença observando o
resultado em um jornal confiável. Isso ocorre porque, se o Lotérico tivesse ganhado
na loteria, então nós esperaríamos que o Lotérico formasse uma crença verdadeira
através deste método. Afinal, se o Lotérico tivesse ganhado, então os resultados
teriam sido publicados no jornal confiável, resultados que corresponderiam aos
números em seu bilhete.

Assim, a força probabilística do suporte de evidências que você tem para


a sua crença em si não determina se a sua crença verdadeira só é verdadeira por
sorte, uma vez que uma força probabilística muito elevada de apoio evidencial é
consistente com a crença ser apenas por sorte verdadeira, enquanto que uma força
probabilística relativamente baixa de apoio evidencial pode ser suficiente para
garantir que a sua crença não é verdadeiramente sorte. De modo mais geral, o caso
da loteria ilustra adicionalmente o que foi dito acima, que as exigências impostas
pelas platitudes da capacidade e da antissorte são distintas. Afinal de contas, se o
Lotérico formar sua crença verdadeira considerando as probabilidades envolvidas
ou a partir da leitura dos resultados em um jornal, é certamente através de sua
capacidade/habilidade que ele forma a sua crença. Portanto, formar a sua crença
meramente através da capacidade não é suficiente para assegurar o conhecimento,
porque mesmo uma crença assim formada ainda poderia ser apenas por sorte
verdadeira.

5 EXTERNALISMO, INTERNALISMO E O CONHECIMENTO


Uma maneira de responder ao desafio posto pelos casos de tipo-Gettier
e pelo Paradoxo da Loteria, poderia se dizer que o que nós precisamos fazer é
simplesmente definir o conhecimento como crença verdadeira justificada não-por-
sorte. Isto explicaria por que os agentes, nesses casos, carecem de conhecimento,
uma vez que em cada caso as suas crenças verdadeiras justificadas foram apenas
por uma questão de sorte verdadeira.

23
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

Um problema que esta proposta enfrenta é que está longe de ser óbvio que
pensemos que, a fim de obter conhecimento, devamos estar justificados no que
acreditamos, pelo menos se por "justificação" aqui queremos dizer que o agente em
causa seja capaz de citar bons fundamentos em favor do que acredita. Para elucidar
melhor, considere o seguinte caso: Imagine que o nosso agente, vamos chamá-lo
de "Pintainho", possui uma capacidade altamente confiável para dizer a diferença
entre pintos machos e fêmeas. Pintainho acredita que ele está distinguindo os
pintinhos usando sua visão e tato, mas vamos estipular que ele esteja enganado a
este respeito e que ele está realmente fazendo isso através da sua olfação. Suponha
ainda que o Pintainho não tenha nenhuma boa razão para pensar que ele é confiável
a esse respeito. Por exemplo, talvez a razão pela qual ele acredita que é confiável é
porque ele acreditou em alguém que lhe disse isso, mas essa pessoa estava de fato
tentando enganá-lo a esse respeito, todavia, acidentalmente lhe disse a verdade.
Deve ficar claro que o Pintainho é incapaz de oferecer quaisquer boas razões em
favor do que ele acredita. No entanto, está longe de ser óbvio que Pintainho não
saiba que, por exemplo, os dois filhotes que ele tem em suas mãos são de gêneros
diferentes. Afinal, ele realmente tem uma capacidade altamente confiável para
diferenciar as duas. Além disso, dado que ele tem essa capacidade, não é uma
questão de sorte que sua crença seja verdadeira, ele não poderia facilmente ter-se
enganado e, assim, ele satisfaz as restrições estabelecidas tanto pela platitude da
capacidade e da antissorte, embora ele não tenha nenhuma justificativa para a sua
crença.

Intuições sobre o que dizer sobre tais casos diferem amplamente, com
alguns epistemólogos argumentando que Pintainho carece de conhecimento e
outros argumentando que ele possui conhecimento. Se você pensa que Pintainho
tem conhecimento, então a conclusão a que chegou é que podemos satisfazer as
restrições estabelecidas pela platitude da capacidade e da antissorte sem cumprir
com a condição de justificação. Em particular, parece que se pode satisfazer a
platitude da capacidade sem satisfazer a condição de justificação, de tal forma
que é apenas a satisfação da primeira que é essencial para o conhecimento. Deste
ponto de vista, então, a conclusão que se deve tirar é que o conhecimento deve ser
definido como crença verdadeira não-por-sorte que é o produto da capacidade/
habilidade. Em contraste, se você acha que o Pintainho carece de conhecimento,
então você está empenhado em sustentar que há, pelo menos às vezes, mais para
o conhecimento do que uma crença verdadeira não afortunada, ou não acidental,
que seja o produto da capacidade.

Esses epistemologistas, que atribuem conhecimento em casos como o


de Pintainho, são chamados de externalistas, enquanto que aqueles que negam
o conhecimento em Pintainho são chamados de internalistas. Essencialmente, o
debate entre internalistas e externalistas se resume em saber se você pensa que o
conhecimento requer justificação, com os internalistas fazendo essa exigência, e
assim negando conhecimento a Pintainho, e externalistas, aceitando que há casos
em que os agentes possuem conhecimento mesmo quando não há justificativa para
o que acreditam, permitindo-lhes, assim, atribuir conhecimento a Pintainho.

24
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO

DICAS

Para mais informações sobre a distinção externalismo/internalismo, consulte


Kornblith (2001). Outra fonte sobre a origem deste debate é o artigo de Sieczkowski (2008). Um
excelente texto para consulta é o de Sosa (2008).

Os externalistas mantêm que o conhecimento é muitas vezes relativamente


fácil de se adquirir. Na verdade, eles muitas vezes admitem que as crianças muito
pequenas e outros animais intelectualmente sofisticados, nenhum dos quais é
susceptível de ter crenças que satisfaçam uma condição de justificativa, podem
ter conhecimento. Em contraste, os internalistas afirmam que o conhecimento é
muito mais difícil de adquirir. Observe, porém, que isto não é um ataque contra
o internalismo em si mesmo, uma vez que não é de forma alguma absurdo supor
que talvez sabemos muito menos do que pensamos saber.

O debate entre externalismo e internalismo parece ter sido considerado por


muitos como intratável; um confronto direto da intuição que não admitirá uma
resolução. No entanto, uma proposta conciliatória a este respeito que tem sido
relativamente comum é argumentar que os externalistas e os internalistas estão
de fato falando em um diálogo de surdos (em que duas ou mais pessoas falam de
assuntos distintos, enquanto acreditam estar falando sobre o mesmo assunto). Ou
seja, neste caso, estariam focando em diferentes "níveis" de conhecimento. Assim,
pode-se argumentar que é preciso distinguir entre um tipo de conhecimento de
baixo nível, o que às vezes é chamado de "bruto" ou conhecimento "animal", e um
tipo de conhecimento de alto nível, o que às vezes é chamado de conhecimento
"reflexivo". O pensamento é que, embora possa ser suficiente para o conhecimento
de baixo nível meramente ter uma crença verdadeira que satisfaça as restrições
estabelecidas pelas platitudes da antissorte e da capacidade, se quisermos obter
conhecimento de alto nível, então é essencial que a pessoa também possua, além
disso, uma justificação para a sua crença.

DICAS

O locus classicus (do latim: “passagem/lugar clássico padrão”) para discussões


do conhecimento “animal” e do conhecimento “reflexivo” foi abordado por Sosa (1991, 2013a,
2013b).

A vantagem de ver o assunto desta maneira é que se pode fazer justiça a


ambas intuições externalistas e internalistas. Por um lado, acomodamos a intuição
externalista de que o Pintainho conta como possuidor de um conhecimento bona
fide (do latim: “de boa-fé”). Por outro lado, acomodamos a intuição internalista
de que há algo epistemicamente deficiente sobre o estatuto epistêmico da crença
do Pintainho. Afinal, nós preferiríamos possuir conhecimentos de alto nível em
25
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

vez de conhecimentos de baixo nível. Neste sentido, seria melhor ser como o
Pintainho, mas ter uma justificativa para a crença-alvo ao invés de ser como o
Pintainho e carecer de uma justificação. Talvez, então, a escolha entre externalismo
e internalismo na epistemologia não é tão rígida como parece à primeira vista.

6 A EPISTEMOLOGIA ANTISSORTE

Foi observado, anteriormente, que casos como os de tipo-Gettier e o caso


da Loteria demonstram que ter uma crença verdadeira que é formada através
da capacidade não é suficiente para garantir que uma pessoa tenha uma crença
verdadeira que não seja por uma questão de sorte, e, portanto, não é suficiente
para o conhecimento. A moral extraída disso foi que a platitude da capacidade e
da antissorte impõe exigências distintas ao conhecimento. Porém, alguém pode
perguntar se ter uma crença verdadeira não-por-sorte pode ser suficiente para o
conhecimento, no sentido de que tal crença é de sua natureza adquirida através da
capacidade e por isso satisfaz a restrição estabelecida pela platitude da capacidade.
Pois, se isso for verdade, então parece que é a platitude da antissorte, que é a platitude
epistemológica dominante, com a platitude da capacidade sendo essencialmente
apenas um produto da platitude da antissorte. Ou seja, se isso for verdade, então
se pode simplesmente entender o conhecimento como crença verdadeira não-por-
sorte, o que poderíamos chamar de uma Epistemologia Antissorte.

DICAS

Para uma discussão mais aprofundada da epistemologia antissorte e da sorte


epistêmica, ver Pritchard (2005, 2007). Verifique também o termo epistemic luck (sorte
epistêmica) no Internet Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: <http://www.iep.utm.edu/
epi-luck/>. Acesso em: 4 abril 2015. Outra obra para consulta é em Rodrigues (2013).

No entanto, simplesmente satisfazer a restrição imposta pela platitude


da antissorte não será suficiente para o conhecimento e é importante entender
o porquê. Considere o seguinte caso: Imagine um agente, vamos chamá-lo de
"Tempero", que está em uma sala e regularmente forma sua crença sobre a
temperatura da sala, olhando para o termômetro no canto. Suponha ainda que
esta é uma forma perfeitamente confiável de formar crenças sobre a temperatura
da sala, no sentido de que toda vez que ele forma uma crença desta forma a sua
crença é verdadeira. Todavia, aqui está a reviravolta. Sem o conhecimento de
Tempero, o termômetro está quebrado e está simplesmente flutuando ao acaso em
um determinado intervalo. No entanto, o fato do termômetro estar quebrado de
nenhum modo prejudica a confiabilidade da crença formada, pela simples razão
de que há alguém escondido no quarto ao lado do termostato que garante que toda
vez que o Tempero vai até o termômetro para descobrir a temperatura, a leitura do
26
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO

termômetro combina com a temperatura na sala.

O que é significativo neste caso é que a crença verdadeira de Tempero


sobre a temperatura no quarto claramente não é uma questão de sorte. Afinal
de contas, dada a existência da pessoa escondida na sala, ele está destinado a
formar uma crença verdadeira e formando-a desta maneira sua crença verdadeira
não poderia facilmente estar errada. É evidente, porém, que Tempero não tem
conhecimento deste caso, uma vez que não se pode vir a saber a temperatura de
um quarto simplesmente olhando para um termômetro quebrado (tal como não se
pode saber a hora simplesmente olhando para um relógio quebrado). Além disso,
o diagnóstico certo do porque este é o caso parece ser que a crença verdadeira de
Tempero não é de modo algum um produto de suas habilidades. Na verdade, a sua
crença é inteiramente o produto das habilidades de outra pessoa, ou seja, da pessoa
escondida na sala solícita a ajustar o termostato. Daqui resulta que não podemos
simplesmente considerar que a restrição estabelecida pela platitude da capacidade
seja percebida como uma consequência da restrição estabelecida pela platitude
da antissorte. De modo mais geral, dada a conclusão que traçamos no início de
que não poderíamos tratar a restrição estabelecida pela platitude da antissorte
como decorrente da restrição estabelecida pela platitude da capacidade, podemos
concluir que as restrições estabelecidas por essas platitudes são independentes
uma da outra em ambos os sentidos. Estamos, portanto, de volta à tese de que o
conhecimento é crença verdadeira, não por questão de sorte, e que é o produto da
capacidade.

Casos como o caso do Tempero também ilustram o porquê certo tipo de


externalismo radical sobre o conhecimento é uma posição instável. Tal ponto de vista
é chamado de confiabilismo e sustenta que não há nada mais para o conhecimento
do que a crença verdadeira formada de forma confiável (ou seja, crença verdadeira
que é formada de uma maneira que é mais susceptível de conduzir à verdade do
que a falsidade).

NOTA

O locus classicus para discussões do confiabilismo é em Alvin Goldman (1986).


Veja também o artigo de Alexander M. Luz (2006). Para um maior aprofundamento à tese de
Goldman, veja a dissertação de Rodrigues (2009).

Nesta visão, mesmo que possa ser epistemicamente vantajoso o fato de ter
justificativas para uma crença, pois as crenças justificadas são mais propensas a
serem crenças formadas de maneira confiável, estas não são essenciais, uma vez
que o que é importante é apenas que a crença seja formada de maneira confiável.
Por exemplo, esse ponto de vista, de acordo com outras propostas externalistas
sobre conhecimento, pode admitir que o Pintainho tenha conhecimento, pois a sua
crença, afinal de contas, está sendo formada de uma maneira confiável.

27
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

Observe, porém, que a crença de Tempero é também formada de um modo


altamente confiável, e ainda assim ele não conta como tendo conhecimento. O
mesmo diagnóstico do porque Tempero carece de conhecimento também explica
onde a visão confiabilista se equivoca. Não é na confiabilidade per se que estamos
interessados quando se trata de conhecimento, mas sim o tipo específico de
confiabilidade que está diretamente ligada à capacidade cognitiva do agente. É por
isso que o Pintainho pode ser considerado como tendo conhecimento, pelo menos
para o entendimento dos externalistas, enquanto que o Tempero não pode: a crença
verdadeira de Pintainho, mas não de Tempero, é o produto de suas capacidades
cognitivas confiáveis, e não simplesmente uma crença verdadeira que é confiável.

7 A EPISTEMOLOGIA DA VIRTUDE
Considerando que o confiabilismo não é atraente como uma explicação
do conhecimento, há uma visão intimamente relacionada, que mantém muito do
espírito do confiabilismo, mas que não é suscetível a alguns dos mesmos problemas.
Este ponto de vista é conhecido como a epistemologia da virtude (SOSA, 2013a).
A forma mais básica da epistemologia da virtude mantém, em essência, que o
conhecimento é uma crença verdadeira não-por-sorte, que é formada através de
habilidades cognitivas confiáveis do
​​ agente.

DICAS

Ver, por exemplo, John Greco (1999), que descreve este tipo de epistemologia
da virtude como “confiabilismo do agente”. Verifique também a dissertação de Santos (2013)
para aprofundar a reflexão da influência de Ernest Sosa na proposta de John Greco e de Linda
Zagzebski.

Interpretada desse modo, a visão responde muito diretamente às duas


platitudes que temos discutido aqui. De acordo com esta proposta, a confiabilidade
nos processos de formação de crenças do agente é importante, mas o simples fato
de que um processo é confiável não será suficiente para garantir que um agente
tenha conhecimento, mesmo que se acrescente a condição posterior de que a
crença do agente não é verdadeira por uma questão de sorte. Em vez disso, o que é
necessário é que a confiabilidade esteja diretamente relacionada com as habilidades
cognitivas do agente. Com efeito, o que esta forma de epistemologia da virtude
faz é tornar explícito o que já está implícito na platitude da capacidade, ou seja,
que quando pensamos nas habilidades de um agente como sendo conducentes de
conhecimento, já estamos pensando nelas como confiáveis (isto é, uma capacidade
cognitiva não confiável não é uma capacidade cognitiva bona fide em absoluto).

28
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO

Observamos anteriormente que os casos de tipo-Gettier e o caso da Loteria


demonstram que meramente tendo uma crença verdadeira formada através da
capacidade (confiável) não será suficiente para o conhecimento, uma vez que
não será suficiente para excluir a possibilidade de que a crença é verdadeira
apenas por uma questão de sorte. Alguns epistemólogos da virtude, no entanto,
têm argumentado que há uma maneira de lidar com este problema, que garante
que nós podemos tratar a restrição imposta pela platitude da antissorte como
simplesmente fluindo da restrição imposta pela platitude da capacidade.

De acordo com esta versão da epistemologia da virtude, o conhecimento


é para ser entendido, grosso modo, como crença verdadeira que é por causa
da capacidade cognitiva. Note que foi descartada qualquer menção da crença
verdadeira sendo não por questão de sorte. O pensamento é que, desde que a
crença verdadeira do agente é propriamente atribuível à sua capacidade cognitiva,
isto é, por causa de sua capacidade cognitiva, então isto será suficiente por si só
para eliminar qualquer solapamento do conhecimento por sorte epistêmica.

NOTA

Versões da epistemologia da virtude deste tipo podem ser encontradas em Sosa


(1991, 2012, 2013a, 2013b) e em Zagzebski (1996). Um bom artigo que introduz as contribuições
de Linda Zagzebski é o de Carvalho (2013) e de Miguel (2013).

Em face disso, a presente proposta pode parecer bastante atraente. Tome


a crença de Edmundo em relação ao tempo. Embora ele possua as capacidades
cognitivas relevantes e fiáveis, ele sabe como contar as horas, por exemplo, não
é por causa dessas habilidades que sua crença é verdadeira, mas, sim, por causa
da boa sorte que ele teve de olhar para o relógio na única vez do dia em que este
exibira o tempo certo. Ou considere a crença de Afortunado de que ele perdeu
na loteria. Mais uma vez, embora essa crença é o produto de suas habilidades
cognitivas fiáveis, ele calculou as ramificações das probabilidades de ganhar
perfeitamente, não é por causa dessas habilidades que sua crença é verdadeira,
uma vez que se ele estivesse segurando um bilhete vencedor no momento, teria
continuado a acreditar que tinha perdido.

Parece, portanto, que no final das contas não precisamos pensar na


platitude da antissorte como impondo uma restrição separada ao conhecimento,
isto é, contanto que entendamos corretamente a relação entre crença verdadeira e
a capacidade cognitiva.

Infelizmente, esta forma mais robusta da epistemologia da virtude que


dispensa uma restrição separada da antissorte ao conhecimento, embora certamente
oferecendo uma explicação muito elegante do conhecimento, não passa em uma
inspeção mais minuciosa. A razão para isso é que há casos de conhecimento onde a
crença verdadeira do agente não é por causa de sua capacidade cognitiva e há casos

29
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

em que a crença verdadeira do agente é por causa de sua habilidade cognitiva,


todavia não são casos de conhecimento.

A melhor maneira de ilustrar a primeira reivindicação é considerar


casos de conhecimento testemunhal. O que é significativo sobre o conhecimento
testemunhal é que por causa de sua dimensão social é um conhecimento que se
pode adquirir “pegando carona” nas capacidades cognitivas dos outros. Suponha,
por exemplo, que a nossa agente, vamos chamá-la de "Jeniffer", desembarca do
trem numa cidade não familiar e solicita à primeira pessoa que ela encontra por
direções. Suponha ainda que esta pessoa tem conhecimento de primeira mão
da área e comunica isso a Jeniffer, permitindo-lhe, assim, formar uma crença
verdadeira sobre onde ela precisa ir. Intuitivamente, nós diríamos que Jeniffer
conhece o caminho a percorrer. Com efeito, se não se pode adquirir conhecimento
testemunhal desta forma, então parece que nós sabemos muito menos do que
pensávamos que sabíamos. Curiosamente, no entanto, não é de modo algum
correto dizer que a crença verdadeira de Jeniffer é por causa de suas habilidades
cognitivas, ao contrário, por exemplo, ao fato de ser devido à capacidade cognitiva
de seu informante (ou pelo menos as suas capacidades cognitivas combinadas).
Assim, parece ser um caso em que o agente tem conhecimento, mesmo que tenha
uma crença verdadeira que não seja por causa de sua capacidade cognitiva.
(LACKEY, 2007).

É importante ser claro sobre a alegação que está sendo feita aqui. A tese não
é, por exemplo, que Jeniffer não está exercendo as suas capacidades cognitivas de
algum modo relevante, ou seja, este exemplo não é um contraexemplo à platitude
da capacidade (esta, na verdade, é a moral que Lackey (2007) extrai a partir deste
exemplo). Afinal, a fim de manter a intuição de que Jeniffer tem conhecimento
neste caso, temos de supor que ela de fato está exercendo uma grande quantidade
de juízo. Por um lado, seria de se esperar que ela fosse exigente sobre quem ela
pedisse direções, ou seja, se a primeira pessoa que ela encontrasse tivesse sido uma
criança pequena ou alguém que era claramente um turista, então esperaríamos
que ela encontrasse outro informante potencial. Por outro lado, seria de esperar
que Jeniffer exercesse uma discriminação quando tratasse de avaliar a verdade do
testemunho fornecido a ela pelo informante. Se este testemunho fosse claramente
falso, por exemplo, então poderíamos esperar que ela iria reconhecer isso e ignorá-
lo-ia em conformidade.

A crença de Jeniffer é, portanto, um produto de suas habilidades cognitivas.


O ponto-chave, no entanto, é que a natureza social do conhecimento testemunhal
deste tipo implica que não é por causa de suas habilidades cognitivas que sua crença
é verdadeira, e, portanto, casos como este contam contra o tipo de epistemologia
da virtude em questão.

A melhor maneira de ilustrar o segundo tipo de problema para este tipo de


epistemologia da virtude, ou seja, que há casos em que o agente tem uma crença
verdadeira que é por causa da capacidade cognitiva, mas que não é um caso de
conhecimento, é através do seguinte tipo de cenário: Suponha que o nosso agente,
vamos chamá-lo de "João", tem uma boa e clara visão de um celeiro em boas
30
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO

condições cognitivas (por exemplo, uma boa iluminação etc.), e baseado nisso forma
a crença de que existe um celeiro em sua frente. Suponha ainda que João tem muitas
habilidades cognitivas relevantes que estão trabalhando para permitir-lhe formar
essa crença e que sua crença também é verdadeira, ele está de fato olhando para
um celeiro. Aqui está a reviravolta. Imagine que, sem o conhecimento de João, ele
está em um "condado com celeiros de fachada", um condado onde todos os objetos
em forma de celeiro, exceto aquele que ele está no momento olhando, não são de
fato celeiros em absoluto, mas fachadas (talvez, por exemplo, há algum elaborado
cenário de filme faroeste). Se João estivesse olhando para uma destas falsificações,
então, ele teria formado a falsa crença de que o que ele está olhando é um celeiro,
ao invés da crença verdadeira que ele realmente formou. Será que João sabe que o
que ele está olhando é um celeiro? Certamente não. Sua crença verdadeira, afinal
de contas, é simplesmente de muita sorte para contar como conhecimento desde
que ele poderia muito facilmente ter se enganado a esse respeito. Note, no entanto,
que a verdade da crença de João, enquanto devido à sorte, parece ser por causa de
suas habilidades cognitivas, pois são estas habilidades cognitivas que o levaram a
formar uma crença verdadeira.

NOTA

Este exemplo é devido a Carl Ginet, mas apareceu pela primeira vez na imprensa
em Goldman (1976).

Podemos destacar ainda mais este ponto, observando que o tipo de sorte
epistêmica em jogo neste caso é muito diferente daquela que está em jogo nos casos
padrão de tipo-Gettier. Em casos de tipo-Gettier, como é o caso descrito acima
envolvendo Pedro, é plausível supor que a verdade da crença do agente não é por
causa de suas habilidades cognitivas, e a razão para isso é que algo se interpõe
entre a crença do agente e suas habilidades cognitivas, ainda que de tal maneira
que não impede o agente de ter uma crença verdadeira. No caso de Pedro, por
exemplo, suas habilidades cognitivas não se prendem ao alvo de sua crença, a
ovelha no campo, em absoluto, mas em vez disso são extraviadas pelo cão grande e
peludo que está de pé em frente à ovelha. Toda sorte de tipo-Gettier é desta espécie
de "intervenção".

Note, no entanto, que o tipo de sorte epistêmica em jogo no exemplo


envolvendo João não é desta espécie de intervenção. Afinal, João realmente vê um
celeiro no sentido de que suas habilidades cognitivas, de fato, o situam em contato
com o alvo de sua crença, o celeiro. Em vez disso, a sorte epistêmica em jogo aqui
é de uma variedade "ambiental", em que isto simplesmente diz respeito ao fato
de que este não é um ambiente epistemologicamente amigável, ou seja, não é um
ambiente em que as habilidades cognitivas de alguém podem facilmente permitir
que se tenha uma crença verdadeira. No entanto, é por causa da sorte epistêmica em
jogo não ser da espécie de intervenção, que parece inteiramente correto dizer que
a crença verdadeira de João é por causa de sua capacidade cognitiva, ao contrário
31
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

dos casos de tipo-Gettier, como aquele que envolve Pedro.

Daqui resulta que se pode ter uma crença verdadeira que é por causa da
capacidade cognitiva do agente e ainda faltar conhecimento. Mais uma vez, então,
descobrimos que precisamos respeitar tanto a platitude da antissorte como a
platitude da capacidade.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Perante os desafios expostos aqui, a investigação filosófica do conhecimento
nos conduz à versão menos robusta da epistemologia da virtude. Esta, ao menos
até o ponto que chegamos, é a explicação mais acertada, o conhecimento é crença
verdadeira não por questão de sorte e que é o produto de habilidades cognitivas
confiáveis do agente. Temos, assim, respondido uma das questões centrais da
epistemologia: "O que é o conhecimento?". Observe, entretanto, que deixamos
muitas questões mais centrais da epistemologia sem resposta. Por exemplo, por
que o conhecimento tem essa estrutura? Apesar de tudo, está longe de ser óbvio
porque o conhecimento deve ter estas propriedades. Uma questão relacionada a
este respeito concerne à razão pela qual nós consideramos o conhecimento como
uma noção filosófica tão importante, uma questão que podemos esperar que
nossa análise do conhecimento possa lançar alguma luz. E talvez uma questão
epistemológica ainda mais premente que não engajamos aqui é a questão de saber
se temos algum conhecimento.

No entanto, enquanto há muitas perguntas que não foram respondidas neste


tópico, a esperança é que tenhamos aprendido o suficiente sobre epistemologia
para obter um entendimento geral sobre o que envolve esta área-chave da filosofia
e, assim, fornecido uma base para futuras explorações nessa direção.

32
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico você viu que:

 Há duas platitudes sobre o conhecimento proposicional em uma perspectiva


filosófica. A platitude da antissorte, a ideia de que uma pré-condição para o
conhecimento não seja uma questão de mera sorte de que a crença de alguém na
proposição visada seja verdade. E a platitude da capacidade, a ideia de que uma
pré-condição do conhecimento é que a crença verdadeira na proposição-alvo
seja adquirida por meio de habilidade/capacidade.

 Os casos de tipo-Gettier demonstram que a simples existência de uma justificação


em favor do que você verdadeiramente acredita é insuficiente para lidar com
a restrição imposta ao conhecimento pela platitude da antissorte. Também
notamos que os casos de tipo-Gettier satisfazem a restrição ao conhecimento
imposta pela platitude da habilidade/capacidade.

 O paradoxo da loteria mostra que a força probabilística do suporte de evidências


que você tem para a sua crença em si não determina se a sua crença verdadeira
só é verdadeira por sorte, uma vez que uma força probabilística muito elevada
de apoio evidencial é consistente com a crença ser apenas por sorte verdadeira,
enquanto que uma força probabilística relativamente baixa de apoio evidencial
pode ser suficiente para garantir que a sua crença não é verdadeira sorte.

 Os externalistas defendem que o conhecimento é muitas vezes relativamente


fácil de se adquirir. Na verdade, eles muitas vezes admitem que as crianças muito
pequenas e outros animais intelectualmente sofisticados, nenhum dos quais são
susceptíveis de ter crenças que satisfaçam uma condição de justificativa, possam
ter conhecimento.

 Os internalistas afirmam que o conhecimento é muito mais difícil de se adquirir.


Observe, porém, que isto não é um ataque contra o internalismo em si mesmo,
uma vez que não é de forma alguma absurdo supor que talvez nós sabemos
muito menos do que pensamos que sabemos.

 A epistemologia da antissorte nos mostra que as restrições estabelecidas pelas


duas platitudes são independentes uma da outra em ambos os sentidos.

 O confiabilismo sustenta que não há nada mais para o conhecimento do que a


crença verdadeira formada de forma confiável (ou seja, crença verdadeira que é
formada de uma maneira que é mais susceptível de conduzir à verdade do que
a falsidade).

33
 Não é na confiabilidade per se que estamos interessados quando se trata de
conhecimento, mas sim o tipo específico de confiabilidade que está diretamente
ligada à capacidade cognitiva do agente.

 A epistemologia da virtude é uma visão intimamente relacionada, que mantém


muito do espírito do confiabilismo, mas que não é suscetível a alguns dos
mesmos problemas, e mantém, em essência, que o conhecimento é uma crença
verdadeira não-por-sorte que é formada através de habilidades cognitivas
confiáveis do
​​ agente.

 Pode-se ter uma crença verdadeira que é por causa da capacidade cognitiva
do agente e ainda faltar conhecimento. Precisamos, portanto, respeitar tanto a
platitude da antissorte e a platitude da capacidade.

34
AUTOATIVIDADE

De acordo com as discussões, apresentadas no Tópico 2, sobre o conhecimento,


qual seria a explicação mais acertada à pergunta: O que é o conhecimento?

35
36
UNIDADE 1
TÓPICO 3

A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico nosso objetivo é explorar a questão da verdade pela perspectiva
filosófica. O nosso foco será mais na abordagem analítica do tema, já que vimos,
em aspecto mais geral, a abordagem epistemológica no tópico anterior.

Vamos, primeiramente, enquadrar o problema filosófico da verdade,


para depois apresentar diversas teorias, em suas versões mainstream (correntes
principais), oferecendo exemplos e as argumentações pró e contra. As teorias que
veremos neste tópico são as teorias correspondentistas, as teorias epistêmicas, o
esquema-T e a adequação material, as teorias semânticas e as teorias deflacionistas
da verdade.

2 O QUE É O PROBLEMA FILOSÓFICO DA VERDADE?

Cada um de nós mantém várias crenças e afirma várias declarações e


proposições sobre questões mundanas, históricas, científicas e assim por diante.
Uma característica de tais crenças, declarações e proposições é que elas podem ser
verdadeiras ou falsas. (Do começo ao fim, nós nos concentraremos na verdade. Uma
sentença é falsa se, e somente se, sua negação é verdadeira.) Mas o que isso significa
exatamente para uma declaração, crença etc., ser verdadeira? Intuitivamente, a
verdade de uma declaração consiste em sua representação correta do mundo, ou
no mundo sendo o que a declaração diz que é. Como será explicado mais abaixo,
esta é uma formulação da teoria da verdade como correspondência. No entanto,
questões filosóficas imediatamente começam a surgir. Uma questão preliminar
diz respeito aos tipos de coisas que podem ser verdadeiras ou falsas: Crenças,
reivindicações, opiniões, afirmações etc.

37
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

NOTA

Às vezes, entidades não linguísticas, não proposicionais são chamadas “verdadeiras”,


por exemplo, um “verdadeiro amigo”, um “verdadeiro argentino” etc. Nós deixamos tais usos
de lado aqui neste tópico e nos concentramos na verdade aplicada às declarações, crenças
etc. Pois é este aspecto que nos permitirá introduzir melhor e de modo geral a investigação
filosófica da verdade.

Chamemos estes de portadores de verdade. (Um portador de verdade pode


ser falso, é claro.) Apesar da sua diversidade aparente, há plausivelmente dois tipos
básicos: itens linguísticos (por exemplo, declarações, frases) e proposições. Uma
proposição é o conteúdo de uma declaração, ou o conteúdo de um estado mental.
Isso nos permite dizer que as sentenças com o mesmo significado expressam a
mesma proposição e que o que você acredita ser o caso é exatamente o mesmo que
o que eu acredito.

Quais são as principais questões filosóficas aqui? Em primeiro lugar,


parece claro que a verdade importa para nós. É importante para nós saber se a
informação que ouvimos (ou aceitamos) é verdadeira ou falsa. Nós adiaremos a
tentativa de responder por que a verdade importa até a seção final deste tópico.
Uma segunda pergunta que muitas vezes provoca confusão para o estudante
neófito é: como podemos determinar se uma declaração é verdadeira ou falsa?
Existem procedimentos gerais ou critérios para determinar se uma declaração
é verdadeira ou falsa? Será que a verdade consiste em ser justificada do modo
certo? Chamemos isto de Questão Epistemológica. Esta questão não é o que os
filósofos pretendem quando discutem o problema filosófico da verdade. Em vez
disso, eles estão interessados ​​no que significa dizer, de uma crença, afirmação
ou proposição, que ela é verdadeira. Ou seja, como é que o conceito de verdade
pode ser analisado? Chamemos isto de Questão Analítica. Esta questão remonta a
Platão e Aristóteles, e anterior a eles, tem ramificações em toda a filosofia moderna,
afetando debates sobre a natureza da existência, do conhecimento, do significado,
da referência e do raciocínio válido (VIDAL; CASTRO, 2006). Em geral, a questão
epistemológica é mais difícil de responder do que a questão analítica. A maior
parte da discussão que empreenderemos a seguir concentra-se sobre a questão
analítica: o que significa "verdadeiro"?

Agora vamos esclarecer um pouco sobre o que é uma definição. A definição


de um conceito ou de uma palavra é geralmente dada ao especificar as condições
para esse conceito ou palavra aplicarem-se às coisas. Por exemplo, podemos
definir "solteiro" da seguinte forma: Uma pessoa x é solteiro se, e somente se, x é
um adulto humano masculino não casado.

Podemos também chamar isto de uma análise do conceito de ser um


solteirão. Analogamente, podemos olhar para uma definição da verdade da
seguinte forma:
38
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE

(D) A é verdadeiro se, e somente se, ... A ... em que A é um portador de


verdade, e "... A ..." indica alguma condição que A satisfaz.

A seguir, vamos avaliar uma série de propostas de definições de verdade,


cada uma listada como (D1), (D2), (D3) etc. Um ponto a ter em mente, no entanto,
é que se pode rejeitar a demanda por essa definição, ou análise da verdade, pois,
talvez a verdade seja simplesmente um conceito primitivo indefinível.

3 TEORIAS DA VERDADE COMO CORRESPONDÊNCIA


Uma teoria correspondentista começa com formulações do senso comum
do seguinte tipo: uma afirmação é verdadeira apenas se concordar com a realidade;
ou representa a realidade como ela é; ou as coisas são como diz que são; ou diz
do que é, que o é; ou designa um estado de coisas existente; ou corresponde aos
fatos (ou a um fato). Estas são, por assim dizer, locuções de correspondência, e elas
parecem ser de dois tipos principais:

NOTA

A partir de agora, nós usaremos “sse” como uma abreviação para “se, e somente
se”.

(D1) A é verdadeiro sse A diz que tal e tal é o caso, e tal e tal é o caso.

(D2) A é verdadeiro sse A corresponde a um fato.

O primeiro destes, (D1), é um descendente a partir da formulação de


Aristóteles, "dizer do que é que ele é e do que não é que ele não é, é verdadeiro"
(ARISTÓTELES, 2002, 1011b, 26-27, p. 179). Chamamos isto de a definição
clássica de correspondência. Ela é a base para a concepção semântica da verdade,
desenvolvida por Alfred Tarski (2007a). A segunda, (D2), tem uma longa história
também, e nós a chamamos de definição de correspondência ao fato. Para os
propósitos deste tópico, nós nos concentramos na (D2), embora o leitor deve ter
em mente que a (D1) é uma formulação da teoria da correspondência aceitável e
talvez preferível.

A definição de correspondência-ao-fato diz que a verdade envolve uma


relação de correspondência entre um portador de verdade e um fato. A menos
que estejamos preparados para tratar as noções de correspondência e fato como
básicos e primitivos, resta elucidá-los ainda mais. O que é um fato? Alguns autores,
mesmo autores científicos, usam a palavra "fato" para significar, grosso modo, a

39
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

"declaração aceita com base na observação". Isto não é o que queremos dizer, pois
tais declarações podem ser falsas e, portanto, não corresponderiam a nenhum fato.
Normalmente, os portadores de verdade e os fatos são tidos como tipos distintos
de entidades.

NOTA

O termo “gerador de verdade” ou “fazedores-de-verdade” (do inglês, truth maker)


tem sido sugerido para o que torna verdadeiro um portador de verdade. Notamos aqui que
existe uma teoria de fatos que identifica fatos com proposições verdadeiras. Assim, a relação
de correspondência entre proposição verdadeira e fato é a relação de identidade. Este ponto
de vista é chamado de teoria da identidade. Veja Dodd (2000) para uma defesa da teoria da
identidade. Para aprofundar as influências de Frege e as contribuições de Dodd, entre outros,
para esta teoria, veja Giarolo (2011).

Considere a declaração "Brasília está ao norte de São Paulo". Uma vez que
é verdadeira, o fato correspondente poderia ser algo como Brasília-estar-ao-norte-
de-São-Paulo. Este é um "complexo", cujos constituintes são Brasília, São Paulo,
e a relação ao-norte-de. Em linguagem moderna, tais complexos são chamados
de estado de coisas. Nem todo estado de coisas é um fato; pois alguns estados de
coisas obtêm (correspondem ao mundo atual), alguns não. (Pode-se pensar que
não há estados de coisas que não obtêm. Se assim for, os fatos são estados de
coisas, ponto).

E
IMPORTANT

Estado de coisas, conhecido também como situação, é uma forma que o atual
mundo precisa estar ordenado para fazer alguma dada proposição sobre o mundo atual ser
verdadeira. Assim, o estado das coisas seria o gerador das verdades, enquanto a proposição
seria o portador da verdade. Nesse sentido, o estado de coisas pode obter ou falhar em
obter, tornando as proposições verdadeiras ou falsas, respectivamente (TEXTOR, 2014). Para
aprofundar o tema dos fatos, como uma questão da investigação filosófica, veja Santos (2014).
Para aprofundar a compreensão de Estados de Coisas (states of affairs), verifique o termo em
Textor (2014).

Isto conduz a uma definição de "fato" como um "estado de coisas que


obtém". Então, a perspectiva da correspondência-ao-fato torna-se:

(D3) A é verdadeira sse A corresponde a um estado de coisas que obtém.

Assim, a afirmação "Brasília está ao norte de São Paulo" é verdadeira se


o estado de coisas correspondente (com os seus constituintes, Brasília, São Paulo
e ao-norte-de) obtém. Assumindo que as cidades de Brasília e São Paulo são
entidades independentes da mente, a verdade de "Brasília está ao norte de São
40
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE

Paulo" depende da realidade independente da mente. Esta é uma característica


atraente da visão por correspondência, na medida em que permite a verdade
depender da realidade independente da mente.

Se os fatos são estados de coisas que obtém, ou são o caso, o que é a


correspondência? A correspondência pode ser entendida como a "correlação
convencional" do portador de verdade e o estado de coisas (por exemplo, a
correlação convencional de sinais de luz verde e a permissão para prosseguir, a
pé ou de carro). Por exemplo, a frase "isto é um gato", que está correlacionada
com estados de coisas que envolvem a presença de um gato, na proximidade do
orador; uma declaração feita usando esta frase por um orador particular em um
determinado contexto; é verdade apenas quando tal estado de coisas obtém nas
imediações do orador. Esta perspectiva leva em conta a presença de expressões
sensíveis ao contexto, como "isso", "aqui", "eu", em atos de fala. Uma dificuldade
com este ponto de vista, no entanto, é que ele não dá nenhuma indicação de como
estados de coisas são correlacionados com reivindicações insensíveis ao contexto,
como "neutrinos carecem de massa" ou "a Revolução Francesa ocorreu em 1789".

Outro ponto de vista trata a correspondência como uma espécie de relação


"figurativa". Para ilustrar:

QUADRO 1 - RELAÇÃO FIGURATIVA DA TEORIA CORRESPONDENTISTA

Nome Predicado Nome

Portador de Verdade:
"Brasília ao-norte-de São Paulo”
[correspondência] ⇓ ⇓
Estar-ao-norte-
Estado de coisas: Brasília ⇒ ⇒ São Paulo
de
Objeto Relação Objeto

FONTE: O autor

Em certo sentido, a frase e o correspondente estado de coisas possuem a


mesma "estrutura lógica". Os nomes na sentença referem-se aos objetos no estado
de coisas (e o predicado da frase refere-se à relação constitutiva). O portador de
verdade, em certo sentido, retrata o seu estado de coisas correspondente, em
analogia com a forma como um mapa retrata, ou representa, alguma região do
território. Portadores de verdade são, portanto, representações da realidade.

Uma objeção padrão para a perspectiva da correspondência-ao-fato é


que ela leva ao ceticismo, à a doutrina de que a realidade é incognoscível (por
exemplo, talvez sejamos cérebros em cubas, mas não percebemos isso) (PUTNAM,
1992). Para evitar o ceticismo, pode-se instar que, a fim de saber um fato, é preciso
ser capaz de perceber diretamente o fato. Mas os fatos independentes da mente
parecem tão diferentes de nossos estados mentais que nunca poderíamos alcançar
esta façanha cognitiva.
41
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

Uma resposta óbvia para isso seria que a perspectiva da correspondência


é uma teoria da verdade, não do conhecimento. Ela responde à questão analítica,
e não à questão epistemológica. A segunda resposta é que, em qualquer caso,
a própria teoria da correspondência parece desempenhar nenhum papel no
argumento para a incognoscibilidade dos fatos. A objeção condena igualmente a
nossa capacidade de conhecer quaisquer objetos independentes da mente: gatos,
pedras, árvores, elétrons, cometas etc. Finalmente, note que a doutrina de que
gatos, pedras, árvores etc. (e fatos sobre Brasília e São Paulo) são independentes
da mente, não é assumida pela própria teoria da correspondência. As definições
(D2) ou (D3) não implicam que os estados de coisas são independentes da mente.
A teoria da correspondência é, portanto, logicamente neutra sobre tais questões.

Outra objeção é simplesmente que se deve repudiar completamente fatos.


Fatos, entendidos como estados de coisas que obtêm, são muito diferentes das coisas
físicas comuns: cadeiras, copos, rochas, peixes etc. Pode-se aceitar a existência das
cidades de São Paulo e de Brasília, e talvez até mesmo a relação abstrata de ao-
norte-de. Mas será que há outra entidade, Brasília-estar-ao-norte-de-São-Paulo?
Talvez, o fato falado é apenas uma maneira conveniente de discurso. Em vez de
"Eu estou ciente do fato de que p", pode-se dizer, "Estou ciente de que p". Em
vez de "isso é um fato que p", dizemos simplesmente "p". O repúdio dos fatos
não precisa implicar que não se pode fazer sentido da verdade. Por exemplo, a
concepção semântica da verdade, discutida a seguir, foi apresentada como uma
teoria da correspondência, mas evita postular fatos, ou correspondência sentença-
ao-fato.

Se o repúdio de todos os fatos é ir longe demais, talvez o repúdio de alguns


dos mais estranhos é recomendável. Pois a perspectiva da correspondência-ao-
fato requer um fato específico para cada verdade. Considere "São Paulo não está
ao norte de Brasília", o que é verdade. Se isto corresponde a um fato, deve ser
São-Paulo-não-estar-ao-norte-de-Brasília: algum tipo de fato "negativo". Existe
uma coisa dessas? Afirmações verdadeiras contendo "não" são apenas o começo
do problema, pois existem declarações compostas que contêm "ou", "e", "se-então",
"para todos", "é necessário que”, “acredita que”, e assim por diante. Quando tal
afirmação é verdadeira, há sempre um fato? Se a afirmação "Sherlock Holmes não
existe" é verdadeira, há um fato correspondente, a não-existência-de-Sherlock-
Holmes? Uma forma para contornar esse problema é assumir estados de coisas
correspondentes apenas para as sentenças mais simples (as sentenças atômicas).
Então, a verdade para as sentenças compostas (construídas a partir dessas sentenças
atômicas usando o "não", o "e" etc.) pode ser definida usando uma "definição
recursiva", semelhante ao tipo inaugurado por Tarski.

42
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE

NOTA

Há uma objeção à perspectiva correspondentista (o “Argumento do Estilingue”),


que conclui que toda verdade corresponde ao mesmo fato: o Grande Fato. O acadêmico
poderá consultar Neale (2001) para mais detalhes. Outra excelente fonte de consulta é o artigo
de Kober (2006).

4 TEORIAS EPISTÊMICAS DA VERDADE


Por volta da virada do século XX, vários autores criticaram a teoria da
correspondência e propuseram definir a verdade em termos de alguma noção de
justificação idealizada ou aceitabilidade racional idealizada. Chamaremos essas
perspectivas de teorias epistêmicas da verdade. São tentativas de analisar a noção
de verdade em termos de noções epistêmicas tais como conhecimento, crença,
aceitação, verificação, justificação e perspectiva. Uma variedade de tais concepções
pode ser classificada nas teorias verificacionistas, coerentistas, perspectivistas e
pragmáticas. Essas teorias, grosso modo, respondem à pergunta analítica (qual é o
significado de "verdadeiro"?), via uma resposta prévia à questão epistemológica.
Assim, destacamos primeiro que existem vários critérios que usamos para
selecionar quais declarações aceitar e quais rejeitar. Estes critérios envolvem
observação, raciocínio, prova matemática e assim por diante. E em segundo lugar,
propõe-se que a questão analítica seja respondida por dizer que a verdade de uma
declaração consiste da mesma atender a esses critérios. O primeiro ponto não é o
ponto de disputa aqui, uma vez que diz respeito a questões da epistemologia, não
à definição da verdade per se. O segundo ponto de fato nos interessa, pois, por que
o fato de que uma declaração atende a determinados critérios epistêmicos implica
a sua verdade? E por que a sua falha em atender esses critérios implicaria sua
falsidade?

O critério mais simples envolve a declaração ser justificada (por exemplo,


sendo apoiada por evidências observacionais). No entanto, cursos introdutórios
de epistemologia explicam que é preciso distinguir entre uma declaração sendo
verdadeira e sendo justificada até certo grau. Declarações e crenças justificadas são,
às vezes, falsas e há verdades para as quais não temos nenhuma justificação para
crer (vide Tópico 2, desta unidade). Por exemplo, não temos qualquer justificação
para crer que Platão espirrou em seu 30º aniversário, e nós também não temos
qualquer justificação para crer que ele não o fez. Mas a lógica por si só nos diz
que ou ele espirrou ou ele não espirrou. Assim, ou a proposição, ou sua negação,
é verdadeira. Portanto, há uma verdade para a qual não temos justificativa para
acreditar. Isso significa que existe uma lacuna entre a verdade e a justificação.
Assim, a definição de "A é verdade" como "A é justificado" não funciona. Mesmo
assim, podemos esperar definir a verdade em termos de critérios que envolvam
uma justificação idealizada? Há uma variedade desconcertante de tais propostas,
mas vamos nos concentrar em três:

43
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

(D4) A é verdadeiro sse A é verificável, em princípio.


(D5) A é verdadeiro sse A pertence ao sistema (de crenças) maximamente
coerente.
(D6) A é verdadeiro sse A for aceito, no limite ideal da inquirição racional,
por qualquer um que investigue.

Para usar o jargão técnico, (D4) expressa o verificacionismo sobre a


verdade; (D5) expressa a teoria da coerência da verdade, ou teoria coerentista; e
(D6) expressa o pragmatismo, ou a teoria pragmatista da verdade.

É perfeitamente razoável aceitar declarações que são justificadas, quer


por observação ou pelo raciocínio lógico matemático. Assim, "não há margarina
na geladeira" é justificada pela observação, ou seja, olhando dentro da geladeira.
"O período de um pêndulo varia com a raiz quadrada do seu comprimento" é
justificada através da realização de certas experiências. "Há infinitos números
primos" é justificada por uma prova matemática. Tais procedimentos de justificação
são exemplos de "verificação". A definição (D4) diz: A é verdadeiro apenas quando
pode ser "verificado" de tal maneira.

Tal visão, no entanto, tem problemas graves. Por exemplo, não está claro
como verificar as declarações sobre determinados temas, tais como moralidade ou
religião. O verificacionista pode considerar tais declarações como nem verdadeira
nem falsa, ou sem sentido. Também, não podemos verificar, por observação
direta, a afirmação "o período de um pêndulo varia com a raiz quadrada de sua
extensão", pois é uma generalização, e, portanto, requer indefinidamente muitos
experimentos. Além disso, algumas declarações aceitas com base na observação
são errôneas (considere a ilusão de Müller-Lyer, ver Figura 4). Além disso, essa
perspectiva implica que todas as verdades podem, em princípio, ser verificadas.
Mas talvez haja declarações, matemáticas, científicas ou históricas, que são
verdadeiras, mas que não são verificáveis, até mesmo em princípio. Por exemplo,
"Platão espirrou em seu aniversário de 30 anos". Ou isso ou a sua negação "Platão
não espirrou em seu aniversário de 30 anos" é verdade, mas ambas são verificáveis?

FIGURA 1 – ILUSÃO MÜLLER-LYER

FONTE: Flammer, 2014. Disponível em: <http://www.indiana.


edu/~ensiweb/lessons/mul.lyer.jpg>. Acesso em: 23 maio 2015.

Observe as linhas A e B, as duas possuem o mesmo comprimento, mas a A


aparenta ser mais longa que a B.

44
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE

O problema pode ser que os critérios de avaliação são muito restritivos.


Presumivelmente, a investigação racional envolve mais do que apenas observação
e raciocínio lógico direto e sensorial. Talvez as declarações que devemos aceitar,
à medida que prosseguimos no inquérito, devem formar um sistema holístico e
coerente. Assim, embora não possamos verificar diretamente a lei do pêndulo, ainda
assim é coerente com as experiências que temos feito, e com outras leis da física de
background. Então, talvez a propriedade da justificação idealizada que buscamos
é esta: ser um elemento do sistema de crenças (ou declarações) maximamente
coerente. A definição coerentista (D5) diz: uma crença (ou declaração) é verdadeira
apenas quando ela pertence a este sistema. A noção pretendida de um sistema
maximamente coerente não é meramente a de um sistema coerente completo, a
partir de lógica. (A consistência significa que para nenhuma declaração A, pode-se
provar ambos, A e não A; enquanto que completude significa que para qualquer
declaração A, qualquer um pode provar A, ou um pode provar não A). A coerência
máxima é concebida como envolvendo uma propriedade mais rica, em que todas
as várias crenças ou declarações apoiam-se mutuamente.

Em uma teoria coerentista pura, ser verdadeiro é pertencer ao sistema


maximamente coerente. A objeção padrão, de Russell (1910), é que é difícil ver
porque um sistema maximamente coerente de crenças é diferente de um conto
ficcional altamente coerente, completo e consistente. Histórias consistentes e
completas podem conter falsidades e omitir verdades. Não importa o quão
coerente o “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis possa ser,
podemos assumir suas declarações como verdadeiras? Em geral, a pertença de
uma proposição a um sistema maximamente coerente não necessita implicar a sua
verdade; e, reciprocamente, o fato de ser verdadeiro não necessita implicar a sua
pertença a um sistema maximamente coerente.

A fim de lidar com essa objeção, a coisa mais óbvia a se fazer é incluir critérios
observacionais, combinando assim a teoria da coerência com o verificacionismo. Mas
ainda existem problemas. Mesmo que meu sistema de crenças atual, condicionado
pela experiência, é tão coerente quanto possível, experiências futuras podem levar
a novas revisões. E por que o meu sistema deve ser o mesmo que o seu sistema?
De alguma forma, temos de "agregar" estes sistemas, e considerar sua evolução no
futuro, sob as diretrizes da investigação racional.

Isso motiva o pragmatismo de longo prazo, promovido por C. S. Peirce


(apud WAAL, 2007). A noção de justificação é a aceitabilidade racional no caso
limite de inquérito. A definição diz que uma proposição é verdadeira apenas
quando é aceitável no limite ideal. Mas temos qualquer razão para supor que
existe um tal limite? Será que haverá convergência, entre todos os que investigam?
Talvez nossas teorias sempre serão superadas, talvez elas sempre serão parciais e
incompletas.

Mesmo se a inquirição, gradualmente convergir para um "Consenso Científico",


pode ainda não ser o caso que, infelizmente, na realidade estamos sendo enganados
como cérebros em cubas? Não podemos simplesmente definir a realidade como sendo
o que o "Consenso Científico" diz que é no final do inquérito. Se fizermos isso,

45
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

temos de excluir, por decreto, a possibilidade de erro radical.

5 O ESQUEMA-T E A ADEQUAÇÃO MATERIAL


Definições gerais da verdade são controversas. Então, considere apenas
uma única proposição: todos os homens são mortais. O que significa dizer que
esta proposição é verdadeira? Aristóteles nos dá uma dica, uma proposição é
verdadeira exatamente se as coisas são como ela diz que são. Então, essa proposição
é verdadeira se, e somente se, todos os homens são mortais. Somos levados ao
seguinte:

1. A proposição de que todos os homens são mortais é verdadeira sse todos os


homens são mortais.

Para portadores da verdade sentenciais, um exemplo bem conhecido de


Tarski (2007b) é:

2. A sentença “a neve é branca” é verdadeira sse a neve é branca.

As sentenças (1) e (2) são chamadas de sentenças-T. Elas são "instâncias"


dos seguintes princípios esquemáticos gerais:

A proposição de que p é verdadeira sse p.


A sentença "p" é verdadeira sse p.

Estas são versões do que é conhecido como o esquema-T. (Um esquema é


um tipo de enquadre linguístico em que várias sentenças podem ser substituídas.)
Para construir uma sentença-T, podemos substituir "p" por qualquer sentença
declarativa da língua portuguesa. Há, é claro, nenhuma exigência de que esta
sentença seja verdadeira! Isso seria circular. Então, o que se segue é correto:

3. A proposição de que os porcos podem voar é verdadeira sse os porcos podem


voar.

Além disso, não há nenhuma restrição de domínio (óbvia) sobre as


sentenças que possamos substituir de forma a obter as sentenças-T. Elas podem
envolver quaisquer assuntos. Assim:

4. A frase "2 + 2 = 4" é verdadeira sse 2 + 2 = 4.


5. A frase "a tortura é sempre errada" é verdadeira sse a tortura é sempre errada.
 
As sentenças-T, (1) a (5), parecem triviais ou platitudinais. A reclamação é
que as sentenças-T não são definições gerais, da forma (D). Elas não nos dizem em
geral o que é para uma proposição ser verdadeira. Elas apenas nos dizem uma por

46
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE

uma, o que é para "a neve é ​​branca" ser verdadeira, para "os porcos podem voar"
ser verdadeira, e assim por diante.

Então, qual exatamente é o status das sentenças-T? Considere a afirmação


"porcos podem voar". Nós certamente precisamos de evidência empírica para
decidir se aceitamos ou rejeitamos esta hipótese biológica. Mas nós não precisamos
de evidência empírica para saber que esta hipótese é verdadeira se, e somente
se, os porcos puderem voar. Por isso, aceitar uma sentença-T é independente de
evidência empírica particular. Tudo o que precisamos é compreender quais são as
proposições relevantes envolvidas, bem como o conceito de verdade. Para usar o
jargão, as sentenças-T são analíticas: nós as aceitamos em virtude de compreender
os conceitos que usam. (Há, no entanto, um problema, que é o fato de que algumas
sentenças-T são falsas, por causa do "Paradoxo do Mentiroso". No entanto, pode-
se restringir o conjunto de sentenças-T, e, juntas, elas podem ser entendidas como
implicitamente definindo a verdade). Porém, uma sentença-T não é uma definição
geral, da forma (D). Em vez disso, as sentenças-T são definições parciais da verdade,
cada uma específica para um portador de verdade particular.

Suponha que queiramos construir uma definição geral da verdade, da


forma (D). Como uma definição geral proposta deve ser relacionada com as
definições parciais? Considere a seguinte definição absurda da verdade:

(D*) Uma sentença A é verdadeira sse A contém 27 letras.

Por que isso é um absurdo? A razão é que (D*) não implica as sentenças-T
correspondentes. Em outras palavras, não se pode mostrar, a partir de (D*), o que
se segue:

6. A frase "a neve é ​​branca" tem 27 letras sse a neve é ​​branca.


7. A frase "2 + 2 = 4" tem 27 letras sse 2 + 2 = 4.

E assim por diante.

Assim, uma definição da verdade proposta é considerada como "correta"


ou "adequada" quando implica as sentenças-T correspondentes. Tal definição da
verdade é chamada de adequada materialmente. Como uma aplicação, perceba
que as definições epistêmicas (D4), (D5), e (D6) não são adequadas neste sentido.

6 A CONCEPÇÃO SEMÂNTICA DA VERDADE


É possível construir definições de verdade que são adequadas
materialmente? Este foi o objetivo de Tarski em seu artigo publicado em 1935, "O
conceito de verdade nas linguagens formalizadas" (2007b, p. 64), apresentando a
concepção semântica da verdade, que ele considerava como uma versão da teoria
da correspondência (embora se de fato o permanece controverso).

47
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

NOTA

Um excelente artigo que introduz a teoria da verdade na concepção de Tarski é


Rodrigues Filho (2005).

Na concepção semântica, portadores de verdade são sentenças, entendidas


como sequências de letras. Por exemplo, "peixes nadam" é a sequência "p", "e",
"i", "x", "e", "s", "n", "a", “d”, “a”, “m”. A verdade ou a falsidade de uma sequência
de letras só faz sentido relativo a algum idioma. Por exemplo, "peixes nadam"
é verdadeiro em português, mas pode ser falso em outro idioma. Assim, as
concepções semânticas não lidam com um conceito absoluto "A é verdadeiro",
mas sim com um conceito relativo, como "A é verdadeiro em português", "A é
verdadeiro em espanhol" etc. Em geral, "A é verdadeiro em L", onde L é chamado
de a Linguagem Objeto.

A linguagem objeto pode ser uma linguagem formalizada ou pode ser


parte de uma linguagem natural, como o espanhol ou híndi. A linguagem em que
falamos sobre a linguagem objeto é permitida ser distinta da linguagem objeto, e é
chamada de metalinguagem. Na discussão abaixo a metalinguagem é o português.
Por exemplo, pode-se usar o português para falar sobre a verdade e a falsidade em
espanhol.

Citando a definição clássica de correspondência, a versão de Tarski (2007b)


do esquema T:

(T) A sentença x é verdadeira em L sse p.

Uma sentença T é construída substituindo "x" com um nome de uma


sentença, e substituindo "p" pela tradução da sentença. Por exemplo, se a linguagem
objeto é o alemão, uma possível sentença T seria:

1. A frase "Schnee ist weiss" é verdadeira em alemão sse a neve é ​​branca.

Esta sentença T pode não ser trivial ou analítica para você. Será, no entanto,
trivial ou analítica para um falante português bilíngue que também fala alemão.
Se a metalinguagem contém a linguagem objeto, vemos o efeito do que é chamado
de "descitação":

2. A frase "a neve é ​​branca" é verdadeira em português sse a neve é branca.


​​

O procedimento geral para a construção de uma definição tarskiana da


verdade é como se segue. Em primeiro lugar, especifica-se uma linguagem objeto
L, no pressuposto de que se pode traduzir de L para a metalinguagem; no próximo

48
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE

passo constrói-se, na metalinguagem, uma definição de "A é verdadeiro em L"; e,


finalmente, prova-se que esta definição é materialmente adequada.

Por exemplo, suponha que L é uma linguagem com apenas duas sentenças,
X e Y, cujas traduções são "cães ladram" e "peixes nadam". Há apenas duas sentenças
T, nomeadamente,

3. X é verdadeira em L sse os cães ladram.


4. Y é verdadeira em L sse os peixes nadam.

Uma definição materialmente adequada da verdade para L pode ser dada


como se segue:

5. A é verdadeira em L sse [(A é X e os cães ladram) ou (A é Y e os peixes nadam)].

(Você pode tentar mostrar como inferir (10) a partir de (12)).

Para linguagens objeto de qualquer interesse sério, no entanto, não se pode


fixar essas definições, uma vez que existe um número infinito de sentenças para
se lidar. Por exemplo, suponha que L contém o conectivo lógico "não" e uma frase
básica, digamos X, cuja tradução é “os cães ladram”. Então L tem um número
infinito de sentenças: X, não-X, não-não-X, não-não-não-X etc. Por isso, não se pode
fixar uma definição da verdade como (12). Em vez disso, dá-se o que é chamado de
uma definição recursiva, como segue:

6. X é verdadeira em L sse os cães ladram.


7. Não-A é verdadeira em L sse A não é verdadeira em L.

Esta definição recursiva é adequada. O método pode ser generalizado para


incluir outros conectores lógicos, tais como "e", "ou" e assim por diante.

Quando a linguagem objeto contém nomes, predicados, conectivos


e quantificadores (as frases "para todo" e "existe"), a situação se torna mais
complicada. É preciso primeiro definir dois conceitos semânticos auxiliares: de
referência (ou denotação) e de satisfação. A satisfação, grosso modo, é a relação de
um predicado, como "ama", às coisas que se aplica. Por exemplo, um par de objetos
[a, b] satisfaz o predicado "ama" se, e somente se, a ama b. A referência é a relação
semântica que mantém entre um nome e o que ele representa. Por exemplo, o
nome "Bento Prado Jr." refere-se (em português) ao próprio filósofo Bento Prado Jr.

Um ponto final. Alguém poderia pensar que o português contém seu


próprio predicado de verdade: por exemplo, um predicado que significa “é verdade
em português". No entanto, esta hipótese leva a um paradoxo, o notório Paradoxo
do Mentiroso (MORAES; ALVES, 2013). Informalmente, considere a denominada
sentença mentirosa "esta sentença não é verdade", que atribui a não verdade para
si própria. Chamemos a sentença mentirosa de “G”. O raciocínio informal leva a

49
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

uma contradição, pois G é equivalente a "G não é verdadeira". Mas o esquema T


nos diz que G é equivalente a "G é verdadeira". Então, nós concluímos que "G é
verdadeira" é equivalente a "G não é verdadeira". Uma contradição! Em suma, o
esquema T é inconsistente. Tarski (2007b) extraiu várias conclusões a partir disto,
bem como o usou para provar alguns poderosos resultados matemáticos. (Em mais
detalhe, o resultado é conhecido como o Teorema da Indefinibilidade de Tarski:
se uma linguagem consistente L é "suficientemente rica", o conceito de verdade
em L não é ele mesmo definível em L. Se a metalinguagem para L contém uma
definição da verdade em L, a metalinguagem é, em certo sentido, "mais rica" do
que a linguagem objeto.) Em particular, a conclusão de que o conceito da verdade
do senso comum é inconsistente.

Vamos nos voltar agora para algumas objeções à concepção semântica


da verdade. Uma objeção preliminar é que a concepção semântica lida com a
verdade para sentenças, e não para proposições. Mas talvez as proposições sejam
básicas, e devêssemos definir a verdade de sentenças em termos de verdade de
proposições. Por exemplo, como se segue: uma sentença é verdadeira relativa a
alguma linguagem se, e somente se, a proposição que a mesma expressa, relativa
à linguagem, é verdadeira. Isto é atraente, mas não sem problemas. O principal
problema é que não está suficientemente claro o que realmente são proposições;
alguns filósofos simplesmente as rejeitam, em favor de sentenças cuja estrutura
sintática é muito mais clara. (ARRUDA, 1980).

A segunda objeção é que Tarski mostra como definir "A é verdadeiro em


L", uma noção da verdade relativa à linguagem, mas não uma noção absoluta,
"A é verdadeiro". Assim, a noção de verdade única e unívoca se fragmentou
em conceitos aparentemente não relacionados: "verdadeiro-em-português",
"verdadeiro-em-espanhol" etc. Em resposta, note que simplesmente não faz
sentido falar de sentenças como sendo meramente verdadeiras ou falsas. Pois para
as sentenças, as suas verdades devem ser relativas a uma linguagem. Para ser mais
exato, o valor de verdade de uma sentença, uma sequência de símbolos, é relativa
a uma interpretação desses símbolos.

Uma terceira, e talvez ameaçadora, objeção diz respeito a uma lacuna.


A concepção semântica parece não explicar as noções semânticas envolvidas:
referência, satisfação e verdade. Por exemplo, a língua alemã contém o substantivo
"schnee", cuja tradução em português é "neve". Uma teoria da verdade tarskiana
para o alemão deve conter a definição parcial.

8. A palavra "schnee" refere-se, em alemão, à neve.

Este é um fato semântico sobre a língua alemã. Mas não dá qualquer


indicação quanto às razões pelas quais o substantivo "schnee" refere-se, em alemão,
à neve. Este ponto generaliza a outros conceitos semânticos. Alguém poderia
argumentar que uma teoria tarskiana deve ser estendida, adicionando uma teoria
de referência separada, que explicasse por que as expressões referem a tudo que
assim o fazem. Talvez em termos de como as expressões são usadas, as conexões

50
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE

causais entre os falantes, as expressões que eles usam e o referente das expressões.

Uma quarta objeção concerne ao fato de se os métodos semânticos tarskianos


podem ser generalizados para as linguagens naturais da vida real, que exibem uma
variedade de aspectos mal compreendidos, incluindo formas mais complicadas de
se construir sentenças, expressões sensíveis ao contexto, predicados avaliativos e
fenômenos como a ambiguidade e a vaguidade. Não se pode resumir a situação
geral facilmente, mas há uma grande quantidade de trabalhos na teoria semântica,
generalizando a abordagem de Tarski para muitos desses fenômenos. Considere
uma linguagem natural L com expressões sensíveis ao contexto, como "eu", "agora"
e "aqui". A teoria semântica é modificada como segue. A noção de verdade (em L)
é substituída pela noção de verdade (em L), relativa a certos parâmetros. Estes
parâmetros especificam o falante, o tempo e a localização de um ato de fala.

Finalmente, a concepção semântica é uma teoria da correspondência?


Isto é no mínimo controverso. O próprio Tarski (2007a) afirmou que era, e
outros o seguiram. A concepção semântica da verdade baseia-se na definição
correspondentista clássica (D1), em vez da definição correspondência-ao-fato (D2).
Assim, se a definição correspondentista clássica é uma teoria correspondentista,
então certamente assim o é a teoria de Tarski. Pois (D1) atende a intuição de
correspondência: a verdade depende de como a realidade é. O ponto de diferença
é que uma definição tarskiana da verdade não introduz fatos, e não introduz uma
relação correspondentista sentença-ao-fato.

7 O DEFLACIONISMO

A proposição “aquela neve é ​​branca” é verdadeira se, e somente se, a neve


é ​​branca. Assim, afirmar a verdade desta proposição é equivalente a afirmar a
própria proposição. Da mesma forma, alegar que "a neve é ​​branca" é verdadeiro
é equivalente a alegar que a neve é ​​branca; e assim por diante. Afirmar "A é
verdadeiro" é equivalente a afirmar A. Estas equivalências estão encapsuladas por
uma ou outra versão do esquema T. A concepção semântica tarskiana tomou uma
versão coerente do esquema T como uma condição de adequação às definições de
verdade. Mas dado que as sentenças-T são platitudes, uma sugestão interessante
é que o conceito de verdade é totalmente captado unicamente pelo esquema T.
Se estiver correto, talvez nada mais, ou pouco mais, precisa ser dito. O problema
de verdade, assim, foi deflacionado: chegamos ao deflacionismo. Se isso é certo,
a visão de que a verdade tem qualquer tipo de "natureza", exigindo uma análise
metafísica, é um erro filosófico, uma confusão.

51
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

ATENCAO

Duas formas comuns de deflacionismo são o descitacionalismo (portadores de


verdade são sentenças) e o minimalismo (portadores de verdade são proposições). Para os
nossos propósitos, eles não precisam ser claramente distinguidos. Verifique o artigo de Giarolo
(2012), o texto de Ghiraldelli Jr. (1998) ou o livro de Braida (2013, p. 162-190) para aprofundar-se
sobre as teorias deflacionárias.

As sugestões deflacionárias foram feitas por Frege, Ramsey, Ayer e


Wittgenstein. Uma versão inicial observou que, desde que "A é verdadeiro" é
equivalente a A, o predicado "verdadeiro" pode parecer redundante. No entanto,
essa conclusão seria muito rápida, uma vez que existem outros contextos em que
não é tão óbvio como poderíamos fazer para eliminar o predicado "verdadeiro",
um ponto enfatizado por ambos, Tarski e Ramsey (HAACK, 2002).

Ainda assim, as sentenças-T são platitudes analíticas sobre a verdade, e o


deflacionismo tenta explorar isso ao máximo. Enquanto não há consenso sobre o
que exatamente é o deflacionismo, além de algumas reivindicações pouco claras
de que a verdade não é uma propriedade, ou que o problema da verdade é uma
"confusão", há várias teses deflacionárias comumente defendidas. Em primeiro
lugar, que a noção de verdade é, realmente, uma noção lógica; segundo, que a única
razão para se ter um predicado de verdade em uma linguagem consiste em sua
utilidade lógica; em terceiro lugar, que a teoria da verdade é neutra em questões
de não verdades teóricas; e quarto, que o conceito de verdade não desempenha
qualquer papel essencial nas explanações. (KIRKHAM, 2003).

Para explicar a alegação de que a verdade é um conceito lógico, considere


a expressão lógica "e". Entender a expressão "e" é saber como argumentar com a
mesma. Pode-se inferir "A e B" dos dois pressupostos A e B. Pode-se inferir A a
partir de "A e B", como também pode-se inferir B. Entender "e" é apenas entender
essas regras lógicas. Além disso, com a verdade há também uma analogia. A partir
de A, pode-se inferir "A é verdadeiro"; e de "A é verdadeiro", pode-se inferir A.
Assim, há regras lógicas para o raciocínio com o predicado de verdade, e estas
parecem análogas às regras lógicas para o raciocínio com outras noções lógicas,
"e", "não", "ou" e assim por diante.

Isso nos leva à segunda alegação, relativa à utilidade lógica de um predicado


de verdade. Suponha que alguém esteja tão impressionado com o conhecimento
de João que chega a desejar endossar tudo o que o João disser. Se este alguém
tivesse um monte de tempo livre, poderia começar a afirmar a seguinte declaração
"infinitamente longa":

1. Se João diz que os pinguins gingam, então os pinguins gingam; e se João diz que
os peixes nadam, então os peixes nadam; e se João diz que plástico é comestível,
então o plástico é comestível; ... e assim por diante.
52
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE

Em certo sentido, (16) é uma "conjunção infinita" de enunciados da forma


"Se João diz que p, então p". No entanto, note que com o predicado "verdadeiro",
pode-se dizer simplesmente:

2. Tudo o que João diz é verdadeiro.

Assim, usando o predicado de verdade e as regras para o raciocínio com o


mesmo, pode-se voltar a expressar certa conjunção infinita (16) como uma única
declaração finita (17). Da mesma forma, mesmo se não soubermos o que a Maria
disse, nós ainda podemos repudiá-la, dizendo: "o que a Maria disse não é verdade".
Mesmo se nós não soubermos especificamente o que o Dalai Lama disse, podemos
indiretamente endossar suas declarações dizendo "o que quer que seja que o Dalai
Lama disse é verdade". O esquema T dá conta desta utilidade lógica do predicado
de verdade. Além disso, para que o predicado de verdade tenha esta utilidade
lógica, nada mais é necessário além do esquema T: não há necessidade de falar de
fatos, correspondência, ou noções de justificação.

A terceira alegação diz respeito à neutralidade do esquema T. Novamente,


há resultados técnicos que confirmam isso. Aceitar o esquema T não faz diferença
para o background de alguém sobre questões de não verdade teórica. Pode-se aceitar
a esquema T (mais exatamente, uma versão consistente), independentemente de
você pensar que "elétrons são entidades independentes da mente" ou se você
pensar que "os elétrons são construções lógicas a partir de dados dos sentidos". O
esquema T é, portanto, metafisicamente neutro.

A alegação deflacionária final é que, embora um predicado de verdade tenha


certa utilidade lógica, o predicado não desempenha nenhum papel explicativo
essencial que seja. A verdade é, portanto, "insubstancial", em algum sentido. Um
argumento comum para se aceitar uma teoria científica empiricamente bem-
sucedida, é que a melhor explicação para o seu sucesso empírico (ou seja, o fato
de fazer previsões verdadeiras) consiste na própria teoria ser verdadeira. Afinal,
a verdade da teoria não explica a verdade das predições? O deflacionista pode
responder, no entanto, que o uso da noção de verdade pode ser eliminado das
explicações particulares, usando o esquema T. Por exemplo, observamos a liberação
de energia quando o urânio-235 é submetido à irradiação por nêutrons. A melhor
explicação, pode-se dizer, é que a lei teórica de Einstein "E = mc2" é verdadeira. No
entanto, o fenômeno é tão facilmente explicado pela alegação mais simples que E =
mc2. Se isso é certo, não há necessidade de trazer a questão da verdade: a verdade
é dispensável em explicações científicas.

Voltemo-nos agora para algumas objeções ao deflacionismo. A maior


objeção é que o esquema T, a menos que restrito, é inconsistente. Pois nos conduz
ao Paradoxo do Mentiroso. Não está claro o que o deflacionismo tem a dizer sobre
isso. Se a consistência é procurada, algumas sentenças-T devem ser rejeitadas. O
problema de explicar quais delas não é trivial. O deflacionista pode, por outro
lado, se contentar com uma teoria inconsistente da verdade. Mas o custo é alto,
uma vez que requer revisões desagradáveis ​​na lógica. (A concepção semântica, o

53
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

que quer que seja, suas falhas ou lacunas, não é inconsistente. Era parte da intenção
de Tarski desenvolver uma teoria consistente da verdade).

O esquema T pode, de fato, ser enfraquecido (em várias maneiras), para


restaurar a consistência. A objeção agora seria que o mesmo se torna muito fraco
para oferecer uma teoria utilizável da verdade. Nós gostaríamos de poder dizer,
em geral, que:

3. Para qualquer sentença A: não-A é verdadeiro sse A não é verdadeiro.


4. Para qualquer sentença A e B: A-e-B é verdadeiro sse ambos A e B são verdadeiros.

Princípios como estes são utilizados em nosso raciocínio o tempo todo. No


entanto, uma teoria deflacionária da verdade com base no esquema T (ou uma
versão consistente) não implica as generalizações (18) e (19). Note que estes tipos
de generalizações estão sempre embutidos em uma teoria semântica da verdade
tarskiana.

Uma terceira objeção ao deflacionismo diz respeito à dimensão normativa


da verdade: crenças verdadeiras são o que nós visamos acreditar, ou o que nós
devemos acreditar. Nossas investigações cognitivas são guiadas por uma regra
normativa da seguinte forma:

5. Vise acreditar em uma proposição sse ela é verdadeira.

Pode parecer que este aspecto normativo não é representado pelo


deflacionismo. No entanto, talvez o deflacionismo pudesse responder a essa
objeção como segue. A formulação desta regra como uma única declaração é
realmente apenas um exemplo da utilidade lógica do predicado de verdade, o que
já foi explicado. A regra única, (20), é equivalente, pelo esquema T, a uma regra
esquemática, da forma:

6. Vise acreditar que p se e somente se p.

Assim, o predicado de verdade nos permite reformular a regra normativa


esquemática como uma regra normativa única. E a regra normativa esquemática
(21) não parece envolver a verdade em absoluto, pelo menos não explicitamente.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este tópico cobriu uma porção de questões, e devemos pedir desculpas que
certas tecnicalidades lógicas tenham entrado à medida que nos movemos além do
material mais básico sobre as teorias correspondentistas e as teorias epistêmicas.
No entanto, isso é praticamente inevitável, como todo o trabalho importante
na filosofia a respeito da verdade, desde a década de 1960. Infelizmente, não
discutimos os debates sobre o significado, o relativismo/racionalismo, declarações
54
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE

que possivelmente carecem valores de verdade (por exemplo, declarações morais;


declarações vagas), e eventuais revisões da lógica clássica. Nós não discutimos
o trabalho técnico (alguns dedicados a estudar os paradoxos semânticos) de
crescente relevância, em especial referentes aos debates sobre o deflacionismo,
que têm dominado a literatura filosófica recente. No entanto, esperamos que você,
acadêmico interessado, possa tomar esta introdução ampla sobre a discussão
filosófica da verdade como um ponto de partida útil para estudos posteriores.

Finalmente, voltamos à questão levantada no início, sobre o porquê a


verdade importa. O teórico correspondentista pode responder a esta questão da
seguinte forma. A verdade é importante porque a verdade envolve acordo com
a realidade, e é a realidade que nos interessa. Em geral, importa para nós se o
alimento nos nutre, ou se entes queridos estão protegidos, ou se temos segurança
à nossa volta, ou se os prospectos são bons, e assim por diante. Vários fenômenos
políticos e sociais também importam para nós. Para um físico, a natureza do mundo
físico importa. Para um historiador, os acontecimentos passados ​​importam. Em
suma, a verdade importa porque a realidade importa.

DICAS

Como leitura adicional sugerimos o livro Kirkham (2003) e o livro de Dutra (2001).
Duas peças expositivas mais curtas são Haack (2002), especialmente o capítulo 7, e Glanzberg
(2014), no Stanford Encyclopedia of Philosophy on-line (http://plato.stanford.edu/entries/truth/),
que também tem vários artigos relacionados com a verdade. Outros livros expositivos são ao
de Blackburn (2006), Putnam (1992), Davidson (2002) e Engels e Rorty (2008).

55
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico você viu que:

 Uma proposição é o conteúdo de uma declaração, ou o conteúdo de um estado


mental. Isso nos permite dizer que as sentenças com o mesmo significado
expressam a mesma proposição e que o que você acredita ser o caso é exatamente
o mesmo que o que eu acredito.

 Filósofos estão interessados ​​no que significa dizer, de uma crença, afirmação
ou proposição, que ela é verdadeira. Ou seja, como é que o conceito de verdade
pode ser analisado? Chamamos isto de “Questão Analítica”.

 A definição de um conceito ou de uma palavra é geralmente dada ao especificar


as condições para esse conceito ou palavra aplicarem-se a coisas.

 Uma teoria correspondentista começa com formulações do senso comum do


seguinte tipo: uma afirmação é verdadeira apenas se concordar com a realidade;
ou representa a realidade como ela é; ou as coisas são como diz que são; ou diz
do que é, que o é; ou designa um estado de coisas existente; ou corresponde aos
fatos (ou a um fato).

 A definição de correspondência-ao-fato diz que a verdade envolve uma relação


de correspondência entre um portador de verdade e um fato. Normalmente, os
portadores de verdade e os fatos são tidos como tipos distintos de entidades.

 Estado de coisas, conhecido também como situação, é uma forma que o atual
mundo precisa estar ordenado para fazer alguma dada proposição sobre o
mundo atual ser verdadeira. Assim, o estado das coisas seria o gerador das
verdades, enquanto a proposição seria o portador da verdade. Nesse sentido
o estado de coisas pode obter ou falhar em obter, tornando as proposições
verdadeiras ou falsas, respectivamente.

 A correspondência pode ser entendida como a “correlação convencional”


do portador de verdade e o estado de coisas. Outro ponto de vista trata a
correspondência como uma espécie de relação “figurativa”.

 Vários autores criticaram a teoria da correspondência e propuseram definir a


verdade em termos de alguma noção de justificação idealizada ou aceitabilidade
racional idealizada. Chamamos essas perspectivas de teorias epistêmicas da
verdade. São tentativas de analisar a noção de verdade em termos de noções
epistêmicas, tais como conhecimento, crença, aceitação, verificação, justificação
e perspectiva.

 A definição verificacionista diz que uma crença ou declaração é verdadeira


56
apenas quando pode ser verificada de tal maneira (observação e raciocínio
lógico direto e sensorial).

 A definição coerentista diz que uma crença ou declaração é verdadeira apenas


quando ela pertence a um sistema maximamente coerente.

 O pragmatismo de longo prazo diz que uma proposição é verdadeira apenas


quando é aceitável no limite ideal.

 Aceitar uma sentença-T é independente de evidência empírica particular. Tudo o


que precisamos é compreender quais são as proposições relevantes envolvidas,
bem como o conceito de verdade. As sentenças-T são analíticas: nós as aceitamos
em virtude de compreender os conceitos que usam.

 Uma definição da verdade proposta é considerada como “correta” ou


“adequada” quando implica as sentenças-T correspondentes. Tal definição da
verdade é chamada de adequada materialmente.

 Na concepção semântica da verdade, portadores de verdade são sentenças,


entendidas como sequências de letras. A verdade ou a falsidade de uma
sequência de letras só faz sentido relativo a algum idioma. Assim, as concepções
semânticas não lidam com um conceito absoluto “A é verdadeiro”, mas sim com
um conceito relativo.

 A concepção semântica da verdade baseia-se na definição correspondentista


clássica, em vez da definição correspondência-ao-fato. Assim, se a definição
correspondentista clássica é uma teoria correspondentista, então, certamente
assim o é a teoria de Tarski. O ponto de diferença é que uma definição tarskiana
da verdade não introduz fatos, e não introduz uma relação correspondentista
sentença-ao-fato.

 O deflacionismo alega que, dado que as sentenças-T são platitudes, uma sugestão
interessante é que o conceito de verdade é totalmente captado unicamente pelo
esquema-T. Se estiver correto, talvez nada mais, ou pouco mais, precisa ser dito.
O problema de verdade, assim, é deflacionado. Se isso é certo, a visão de que
a verdade tem qualquer tipo de “natureza”, exigindo uma análise metafísica, é
um erro filosófico – uma confusão.

 Há várias teses deflacionárias comumente defendidas. Em primeiro lugar,


que a noção de verdade é, realmente, uma noção lógica; segundo, que a única
razão para se ter um predicado de verdade em uma linguagem consiste em sua
utilidade lógica, em terceiro lugar, que a teoria da verdade é neutra em questões
de não verdades teóricas; e quarto, que o conceito de verdade não desempenha
qualquer papel essencial nas explanações.

57
AUTOATIVIDADE

Há várias definições de verdade apresentadas neste tópico. A pragmatista,


a verificacionista, a coerentista, a clássica de correspondência e a de
correspondência-ao-fato. Leia as seguintes propostas de definições de verdade:

I- A é verdadeiro sse A diz que tal e tal é o caso, e tal e tal é o caso.
II- A é verdadeiro sse A corresponde a um fato.
III- A é verdadeiro sse A é verificável, em princípio.
IV- A é verdadeiro sse A pertence ao sistema (de crenças) maximamente coerente.
V- A é verdadeiro sse A for aceito, no limite ideal da inquirição racional, por
qualquer um que investigue.

Assinale a alternativa correta:

a) ( ) As afirmações V e I são as definições pragmatista e verificacionista,


respectivamente.
b) ( ) As afirmações II e III são as definições coerentista e clássica de
correspondência, respectivamente.
c) As afirmações IV e I são as definições correspondência-ao-fato e coerentista,
respectivamente.
d) ( ) As afirmações V e III são as definições pragmatista e verificacionaista,
respectivamente.
e) ( ) As afirmações III e II são as definições pragmatista e clássica de
correspondência, respectivamente.

58
UNIDADE 1
TÓPICO 4

A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico a questão da existência aos olhos da investigação filosófica será
o nosso objetivo principal. Este tema é parte do campo da filosofia que chamamos
de Metafísica, que tem como um de seus principais ramos a ontologia.

Vamos introduzir, primeiramente, o que denominamos aqui de “enigmas da


existência”. Seis enigmas, para ser exato, questões que a filosofia deverá responder
em sua aproximação da existência. A seguir, vamos levantar questionamentos
quanto aos fundamentos da ontologia. Então, vamos nos concentrar nos enigmas
apresentados, elaborando os argumentos pró e contra a cada um destes. Primeiro
fazendo uma análise da existência, depois explorando as questões sobre os objetos
não existentes, os objetos meio-existentes, os limites da existência e as razões para
qualquer coisa existir em absoluto.

2 OS ENIGMAS DA EXISTÊNCIA
Suponha que, um dia, alguém que está no lugar certo, na hora certa e com
todo o equipamento certo é capaz de estabelecer, para além de qualquer dúvida
razoável, que sob a superfície plácida do Lago Ness esconde-se um réptil enorme e
antigo, possivelmente uma besta perigosa, com um pescoço longo. Como pode tal
descoberta ser anunciada nos jornais? Muito provavelmente uma das manchetes
seria "O Monstro do Lago Ness Existe!". Praticamente todo mundo saberia o que
isso significaria. Ou suponha que uma equipe de físicos, ponderando os mistérios
do espaço, do tempo e do universo, se depara com uma solução para algumas
dificuldades de longa data em cosmologia e publicam, em um periódico científico
reconhecido, um artigo intitulado "Mundos Paralelos existem". Mais uma vez,
este anúncio seria amplamente entendido, pelo menos por aqueles que tivessem
apreendido o conceito de mundos paralelos. Ou suponhamos que um matemático,
tendo trabalhado por décadas em um teorema matemático por muito tempo
pensado impossível de se provar (chamá-lo-emos de "Teorema de Fermat"), se
depara finalmente com uma prova. "Claro, a prova já existia esse tempo todo", ele
poderia explicar a um público animado, "É só que ninguém a tinha descoberto!".
Mais uma vez, esta observação não criaria uma perplexidade generalizada.

59
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

E
IMPORTANT

O caso não é totalmente ficcional. Uma proposição matemática chamada “Último


Teorema de Fermat”, de Pierre Fermat (1601-1665), o advogado e matemático do século XVII
que foi o primeiro a propô-lo, frustrou a prova até 1993, quando Andrew Wiles, um acadêmico
de Cambridge, ofereceu uma solução de 250 páginas que foi amplamente aceita como bem-
sucedida. Em uma entrevista, Wiles apontou que o fato de que se ninguém tinha conseguido
encontrar uma solução não significava que não havia uma. A história do teorema é contada
em Simon Singh (2014).

Parece que nós sabemos o que se quer significar por "x existe", se o "x"
em questão é o monstro de Lago Ness, um mundo paralelo, ou uma prova de
um teorema matemático. No entanto, se nós realmente sabemos do que estamos
falando, isto é realmente um tanto enigmático. Porque estamos lidando aqui com
três tipos de coisas muito diferentes, e se nos pedissem para dizer apenas o que é
que estas têm em comum, em virtude da qual podemos dizer que todas existem,
nós provavelmente ficaríamos tateando por uma resposta. Portanto, temos aqui o
primeiro enigma da existência: O que significa dizer que algo existe?

O segundo enigma é relacionado a isso, e emerge quando se considera


a variedade de itens acima: será que empregamos o mesmo sentido de "existe"
quando dizemos "a prova do teorema de Fermat existe" como quando dizemos
"o monstro do Lago Ness existe", ou "um mundo paralelo existe", ou até mesmo
"Deus existe"?

O terceiro enigma da existência envolve sua imagem especular: a não
existência. Podemos, ao que parece, de modo um tanto inteligível dizer coisas
como "Mondas era o décimo planeta do Sistema Solar" ou "A Feiticeira Branca
tornou para sempre Inverno em Nárnia". No entanto, nem Mondas nem a
Feiticeira existem, portanto, essas duas declarações não são sobre qualquer coisa
em absoluto! Como podem então ter significado, ter algum sentido? Por outro
lado, se não podemos falar significativamente sobre o que não existe, então, uma
declaração como: “O Sítio do Picapau Amarelo não existe” não pode ser ao mesmo
tempo significativa e verdadeira. Assim, o terceiro enigma da existência é como
podemos falar significativamente, ou pensar de forma coerente, sobre objetos não
existentes.

O quarto enigma diz respeito aos itens que existem em algum sentido, mas
de uma forma menos “puro sangue” que você ou eu: sombras, buracos e imagens
especulares, coisas que poderíamos chamar de objetos "meio-existentes". Nós
estamos certamente falando de algo quando falamos sobre esses itens, e podemos
dizer coisas que são verdadeiras ou falsas deles (“a sombra está ficando mais
alongada”, “aquele buraco foi preenchido”, “a imagem especular do meu rosto faz
minha pinta aparecer no lado direito”), mas será que estas são coisas, exatamente?

60
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA

O quinto enigma diz respeito aos limites de existência. Quando é que


uma pessoa passa à existência? No momento da concepção? Em algum ponto
durante o desenvolvimento do embrião? Quando começa a ser capaz de sentir?
Contemplando tais questões, poderíamos estar inclinados a pensar, não apenas
que nós não sabemos exatamente quando a pessoa passa a existir, mas que não
há nenhum fato objetivo da questão, que na verdade é indeterminado quando a
pessoa faz isso. Há alguns momentos em que definitivamente não o faz, e outros
momentos em que definitivamente o faz, mas há momentos no entremeio quando
não é nem definitivamente verdadeiro nem definitivamente falso que a pessoa
existe. A fronteira entre a existência e a não existência, ao que parece, pode ser
vaga, mas como é que vamos expressar precisamente essa ideia?

O sexto e último enigma da existência é um dos mais desconcertantes de


todos os problemas filosóficos, mas também aquele que provoca reações muito
diferentes. Para alguns, é o problema mais profundo que podemos perguntar; para
outros, não é digno de uma atenção séria. É este: Por que as coisas existem? Por
que qualquer coisa existe em absoluto? Por que não há simplesmente o nada?

No que se segue, vamos explorar, ou pelo menos dar um primeiro passo na


exploração de cada um desses enigmas.

3 SERÁ QUE A ONTOLOGIA SE ESTABELECE EM UM ERRO?

A palavra "ontologia" é usada de duas maneiras. A ontologia de uma pessoa


ou de uma teoria é apenas o catálogo de coisas que as mesmas supõem existir.
A ontologia do idealismo, por exemplo, é restrita a itens mentais; a ontologia
do materialismo, à matéria. O Idealismo diz que tudo o que existe é mental, e a
forma habitual de interpretar isso é dizer que os objetos são apenas coleções de
ideias. O Materialismo, ao contrário, diz que tudo é feito de matéria. O Idealismo,
por exemplo, foi defendido por uma série de argumentos engenhosos de George
Berkeley (1685-1753), expostos em particular em seu Tratado sobre os princípios
do conhecimento humano (1996a) e em seu Três diálogos entre Hilas e Filonous em
oposição aos céticos e ateus (1996b). O materialismo, por exemplo, foi defendido
por Thomas Hobbes (1588-1679) em seu Elementos da Filosofia (2012). Todavia,
quando falamos apenas da ontologia, ao invés de ontologia de x, queremos nos
referir ao estudo filosófico da existência. A ontologia como um estudo pergunta
que tipos de coisas existem, e hoje em dia os metafísicos percebem isso como sendo
uma questão substancial e significativa. Mas, no século XX houve uma tradição
influente de suspeita sobre esta questão e em alguns grupos esta suspeita perdura.
Então, antes de ir muito mais longe em nosso exame da natureza da existência,
devemos primeiro satisfazer-nos de que há de fato algo a ser examinado.

Considere casos em que nos perguntamos sobre o que de fato existe, que não

61
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

se destinam como questões claramente filosóficas: Existem livros na biblioteca da


faculdade? Há um rato na cozinha? Existe alguma cerveja na geladeira? É bastante
claro como devemos proceder para responder a essas perguntas: ir e ver. Outras
questões existenciais, perguntas sobre o que existe, são igualmente comuns, mas
concernem a um domínio bastante diferente: Existem números primos entre 618 e
734? Existe um ângulo obtuso neste paralelogramo? Existem quaisquer números
que não podem ser expressos em termos de dois inteiros (tais como 22 sobre 3)?
Aqui, nós não podemos "ir e ver" exatamente do mesmo modo como fizemos em
resposta ao primeiro conjunto de perguntas. Finalmente, considere os tipos de
questão que os cientistas postulam de vez em quando: Existe algum cloro nesta
amostra de gás? Há alguma partícula alfa nesta câmara de nuvens? Existe uma
conexão genética entre a cor dos olhos e a altura? Aqui, “ir e ver” pode envolver
alguns testes bastante sofisticados, assim como fundamentação teórica.

Então, quando fazemos perguntas existenciais comuns como estas, com


frequência temos em mente uma maneira particular de descobrir as respostas, e
o método de descobrir será muito diferente em casos diferentes. Agora, o fato de
que nós usamos métodos muito diferentes para descobrir a existência de livros,
ratos, cerveja, números, ângulos, gases, partículas alfa e as conexões genéticas
sugere que estamos lidando com tipos muito diferentes de fatos existenciais. O
que é para um rato existir é um assunto muito diferente do que é para um número
existir, ou para uma conexão genética existir. O fato de que as perguntas começam
da mesma maneira (“Há...?” ou “Existe...?") não implica necessariamente que, no
fundo, estejam todas envolvidas com o mesmo tipo de fato.

Naturalmente, as questões existenciais que os filósofos perguntam tendem


a ser muito mais gerais: Há objetos físicos? Existem números? Existem entidades
não observáveis? E os pressupostos aqui são, em primeiro lugar, que estas questões
têm algo em comum, todas elas concernem à natureza da realidade, e, segundo,
que as respostas às questões cotidianas e comuns não nos ajudarão a responder
essas questões filosóficas mais gerais sobre a existência. O curioso, porém, é que
se deve concluir da verdade comum de que “há um rato na cozinha”, que os
objetos físicos existem (uma vez que um rato é um paradigma de objeto físico), e
da verdade de que “existem números primos entre 618 e 734”, que há números.
E se esse tipo de inferência é aceitável (como certamente o é), então parece que,
fazendo um pouco de trabalho de detetive relacionado a um roedor, ou fazendo
matemática, podemos responder questões filosóficas.

Os ontologistas irão naturalmente protestar. Eles argumentam que a questão


postulada por eles sobre o que existe está em um nível mais profundo do que as
questões sobre ratos ou números primos: mais profundo, note, não apenas mais
geral. Mas, talvez eles estejam enganados. Ao perguntar o que realmente existe,
ou o que, em última análise existe, eles assumem que "existe" tem um significado
único, aplicável a diferentes tipos de coisa. Mas quando nos empenhamos em
responder às questões comuns, os critérios que usamos foram tão diferentes, que
há motivos para pensarmos que "existe" significa coisas diferentes, dependendo se
estamos falando de objetos físicos como ratos, ou coisas abstratas como números,
ou algo entre os dois, como quando falamos de entidades teóricas como conexões
62
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA

genéticas. Para um objeto físico existir (pode ser proposto) é necessário que
ocupe espaço. Para um número existir é necessário que seja incluível em cálculos
matemáticos. As respostas às questões comuns podem não ser sempre fáceis de
encontrar, mas elas não nos obrigam a envolver-nos em filosofia, e uma vez que
as temos respondido, então não precisamos fazer qualquer trabalho adicional
para responder às questões filosóficas. Desse modo a ontologia seria realmente
redundante.

O argumento que acabamos de dar é uma versão simplificada de um


argumento posto pelo positivista lógico Rudolf Carnap (1891-1970), em "Empirismo,
Semântica e Ontologia" (1980). Este é o artigo clássico que se propõe a solapar a
ontologia. Foi também reproduzido com algumas alterações em Paul Benacerraf e
Hilary Putnam na obra Philosohpy of Mathematics (1983, p. 241). Carnap argumenta
que existem apenas dois tipos legítimos de dúvida sobre a existência: as questões
internas, relativas à aplicabilidade de determinados tipos de conceito dentro de
um esquema conceitual (ou "enquadramento") e questões "externas", quanto à
utilidade ou à forma de adotar esse esquema conceitual. Questões ontológicas
tradicionais, para Carnap, não se encaixam em qualquer categoria e, assim, são
ilegítimas.

Para atender a esse tipo de desafio, os ontologistas precisam mostrar que há


uma noção da existência de aplicação geral, adequada para diferentes domínios,
e se ou não um candidato à existência satisfaz essa noção, não é uma questão
resolvida por qualquer quantidade de trabalho de detetive, prova matemática ou
investigação científica. Então, vamos passar para a pergunta "o que é existir?".

4 A ANÁLISE DA EXISTÊNCIA
O que gostaríamos, idealmente, é um relato informativo do que é existir.
Uma abordagem natural para esta tarefa é perguntar como nós tipicamente nos
tornamos conscientes da existência de algo, e na maioria dos casos, isso ocorre
porque este algo colide direta ou indiretamente com nós de algum modo (a
mesinha de canto quando tropeçamos nela no escuro; a primeira estrela a aparecer
no anoitecer; um parente distante que acabamos de descobrir). Portanto, a nossa
primeira explicação da existência é a seguinte:

Um objeto existe se, e somente se, ele tem efeitos.

Pode-se objetar imediatamente que os objetos inexistentes têm efeitos: A


Sofia, de seis anos de idade, está com medo do bicho-papão, por exemplo. Mas
aqui nós devemos dizer que é a ideia da Sofia do bicho-papão que tem esse efeito.
Mesmo com essa objeção inicial fora do caminho, é claro que a primeira explicação
não vai dar conta do recado. "Um objeto existe se, e somente se, ele tem efeitos”.
Efeitos sobre o quê? Sobre outras coisas, presumivelmente. Mas em primeiro lugar,
parece estranho fazer a existência de qualquer objeto logicamente dependente da

63
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

existência de outros objetos. E se houvesse apenas um objeto no mundo? Não


poderia afetar qualquer outra coisa, já que haveria mais nada que possa afetar. No
entanto, ele, com certeza, ainda existiria. Em segundo lugar, uma vez que apenas
os objetos existentes podem ser impingidos, a explicação é realmente uma versão
breve para "Um objeto existe se, e somente se, ele tem efeitos sobre outras coisas que
existem", e isso define existência em termos de existência, que é irremediavelmente
circular.

Em resposta à objeção do objeto solitário, poderíamos dizer que algo apenas


necessita ser suscetível ou capaz de afetar coisas para contar como existente:

Um objeto existe se, e somente se, é possível para o mesmo que tenha
efeitos sobre outras coisas.

Compare a observação feita pelo Estrangeiro de Eleata no diálogo sofista


de Platão (1980, p. 69):
Declaro, então, que tudo o que possui uma determinada faculdade, seja
de atuar de algum modo sobre outra coisa, seja de sofrer a influência,
embora mínima, do mais insignificante agente, mas que fosse uma
única vez, é um ser real. Minha definição para explicar os seres é que
não passam de capacidade ou força.

Assim, um objeto solitário ainda conta como existente. Mas isso ainda não
supera a objeção da circularidade, uma vez que, mesmo se os objetos que poderiam
ser afetados não existem realmente, eles devem ser possivelmente existentes. E há
outras preocupações também. Em primeiro lugar, há algo distintamente estranho
sobre a definição de uma qualidade real (existente) em termos do que é possível,
em vez de em termos do que é real. O que é a respeito da verdadeira natureza
deste objeto em virtude da qual ele pode afetar outras coisas? Segundo (e esta
preocupação também se aplica à primeira análise), se nós estamos procurando por
uma explicação da existência tão abrangente quanto possível, uma que permitiria,
ou pelo menos não excluiria automaticamente, objetos não físicos, tais como
números, então esta explicação não poderá servir. Pois os números são objetos
abstratos, não existentes no espaço e no tempo em absoluto: se eles de fato existem,
eles o fazem atemporalmente e não espacialmente.

64
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA

E
IMPORTANT

A ideia de que há coisas abstratas, para além do mundo dos sentidos, é um tema
dominante nos diálogos de Platão: ele as chama de “formas”, e elas incluem a beleza, a igualdade
e a justiça. Veja em particular os seguintes textos de Platão: A Apologia (2008a), o Fédon (2008b)
e A República (2001). Para Platão, não há conflito com o critério causal da existência, uma
vez que estas formas são fontes de conhecimento. A sugestão de que objetos abstratos são
causalmente inertes é característica de uma posição na metafísica contemporânea chamada
(talvez de um modo um pouco desviante) de “platonismo”. As Formas foram pretendidas para
explicar, entre outras coisas, o que as coisas tinham em comum, e o nome padrão para estas
propriedades compartilhadas e gerais é universais (expresso por termos como “vermelhidão”,
“redondidade” etc.). Para uma discussão sobre a indispensabilidade dos universais, consulte
Bertrand Russell, Os problemas da filosofia (2008), especialmente o capítulo 9 – “O mundo dos
Universais”. Um argumento para a existência de objetos abstratos é desenvolvido em Bob Hale
em Abstract Objects (1987), e a questão do status dos números é explorado em John Bigelow,
The Reality of Numbers (1988). Todas estas questões podem ser vistas na obra organizada por
Bruce e Barbone (2013).

Desse modo, o "somente se" da análise parece demasiado restritivo. Terceiro


(e novamente esta se aplica à primeira análise), a propriedade de ser capaz de ter
efeitos não pode ser constituinte da existência, uma vez que esta parece ser uma
questão do que um objeto faz ou poderia fazer, ao invés do que “é” para este objeto
simplesmente existir. A explicação causal fornece, na melhor das hipóteses, um
critério de existência, um teste de que apenas as coisas existentes podem passar,
mas não uma análise, algo que capta o núcleo da existência.

Vamos, então, dar uma olhada em uma abordagem bastante diferente:

Um objeto existe se, e somente se, ele tem propriedades.

Isso não exclui automaticamente objetos abstratos como números, uma


vez que "propriedades" aqui poderia incluir as propriedades matemáticas, e não
apenas as físicas. Essa abordagem também se concentra em algo que a um objeto
não poderia faltar, mesmo que este seja a única coisa existente. Ela também nos diz
que tipo de coisa é a existência. Existência, como poderíamos dizer, é o tipo mais
geral de propriedade que existe: é a propriedade de ter propriedades. Algumas
vezes é sugerido, no entanto, que a existência não é uma propriedade, mas o ponto
é, por vezes, posto em termos de linguagem: "existe" não é um predicado.

65
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

NOTA

A sugestão de que “existe” não é um predicado, ou não é um predicado “real”, é feita


por Immanuel Kant (1724-1804), na Crítica da Razão Pura (2012), numa passagem que tenta
demolir o argumento ontológico para a existência de Deus (Dialética Transcendental, livro
II, cap. III, seção 4). Relacionado a isso está a visão de Frege, apresentada no ensaio “Sobre o
conceito e objeto” (2009), de que a existência é uma propriedade de conceitos. Assim, “existem
unicórnios” significa “o conceito unicórnio é realizado”.

A razão oferecida com frequência é que, uma vez que descrevemos algo,
em termos, por exemplo, de algo ser vermelho, redondo e feito de madeira,
não acrescentamos nada à sua descrição dizendo que este algo existe. Isto não
ajuda a defini-lo mais precisamente. O que estamos dizendo, de fato, é que as
propriedades que acabamos de mencionar são todas exemplificadas (na verdade
coexemplificadas, isto é, exemplificadas pela mesma coisa). Como podemos
defender a análise contra esta objeção? Longe de ser inconsistente com o fato de
que "Pedro existe" não acrescenta nada à descrição de que “Pedro tem 180 cm de
altura, é canhoto, e está usando o perfume Paco Rabanne XS”, a análise realmente
explica isso. Porque, se a análise estiver correta, "Pedro existe" está, na verdade,
implicado por “Pedro tem 180 cm de altura...” (ou alguma outra descrição), e o que
está implicado por uma descrição não acrescenta nada a essa mesma descrição. Por
exemplo, uma vez que "a maçã é colorida" resulta de "a maçã é verde", a primeira
declaração não acrescenta nada à segunda. Entretanto, isto não nos levaria a
concluir que o ser colorido não é uma propriedade genuína.

Uma preocupação, contudo, mantém-se, e esta é que a análise é


demasiadamente permissiva. Considere um ser não existente, o Super-Homem.
Há uma abundância de propriedades que podem corretamente atribuir ao Super-
Homem: que ele é muito alto, extremamente forte, é capaz de voar etc. Então,
o Super-Homem tem propriedades. No entanto, o Super-Homem não existe!
Assim, a terceira análise acima deve estar errada. Contudo, dizer isso seria
muito precipitado. O Super-Homem não tem estas propriedades realmente: ele
é meramente representado como tendo-as. Mas então, não se segue disso que ele
tem a propriedade de ser representado como sendo muito alto etc.? Para descartar
esse problema, teríamos que modificar a análise da seguinte forma:

Um objeto existe se, e somente se, ele tem propriedades independentemente


de qualquer representação dele como tendo essas propriedades.

Objetos não existentes continuam a ser um problema. Eles são, na verdade,


o terceiro enigma da existência que precisamos discutir.

66
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA

5 OS OBJETOS NÃO EXISTENTES


Talvez atribuir propriedades a objetos ficcionais e a outras coisas não
existentes não nos compromete, absurdamente, a sua existência. Mas, se isso não
for o caso, então não é de todo óbvio como podemos falar significativamente sobre
esses objetos, pois nossa conversa seria sobre nada, em absoluto! Como pode haver
pensamento ou fala com conteúdo sobre o nada? Pode não haver uma solução
satisfatória para todos os casos, mas uma estratégia que se recomenda é que
qualquer frase da forma "A é tal e tal", onde não há qualquer A na existência,
pode ser parafraseada em termos de coisas que de fato existem, ou em termos de
propriedades. Para dar um exemplo bastante óbvio, quando dizemos "A média
de carro por habitante da Vila Xurupita é de 1,5 carros", não queremos afirmar
algo sobre uma pessoa em particular que possui 1,5 carros, mas sim afirmar algo
mais complicado, ou seja, que a divisão do número de carros possuídos pelos
habitantes da Vila Xurupita pelo número de habitantes resulta em 1,5. Somente
coisas existentes, portanto, são selecionadas.

Podemos generalizar essa estratégia? Suponha que, um dia, Ana diz: "O
descobridor da prova do último Teorema de Fermat é um gênio". Acontece que
o último Teorema de Fermat ainda não foi provado (e vamos supor, para evitar
complicações, que nunca será), assim a Ana, na verdade, não referiu a uma pessoa
existente. Para dar sentido ao que ela disse, podemos propor a seguinte paráfrase:
"Há alguém que descobriu o último Teorema de Fermat e que é um gênio". Nós
agora removemos qualquer frase que pareça como se a sua função fosse a de
referir a uma pessoa específica. Termos como "Pedro" ou "o atual coordenador
do curso de Teologia" são utilizados para selecionar uma pessoa em particular.
Mas "alguém" (tal como em, por exemplo, "há alguém nesta sala") não é usado
nesta forma. Então, o que a Ana diz, ou melhor, seu conteúdo real, é totalmente
inteligível, embora, reconhecidamente, sua declaração seja falsa. Este tratamento
de declarações, aparentemente acerca de não existentes, foi proposto por Bertrand
Russell (1872-1970), em "Da Denotação" (1978).

Mas agora, veja o que esta estratégia faz com declarações como "Otelo, o
Mouro de Veneza, suspeita infidelidade por parte de sua esposa Desdêmona", "O
Pernalonga gosta de cenouras e é muito dado a dizer ‘O que é que há velhinho?’”,
“Bento Santiago pretende atar as duas pontas da vida e resgatar na velhice a
adolescência”, “Dom Quixote perdeu a razão", e assim por diante. Estas são
declarações sobre personagens fictícios, e nós comumente iríamos tratá-las como
verdadeiras. Mas se nós as parafrasearmos da maneira que nós parafraseamos as
declarações de Ana, obtemos: "Há uma pessoa chamada ‘Otelo’, que é Mouro de
Veneza, e que suspeita infidelidade por parte de sua esposa Desdêmona", "Há um
coelho que gosta de cenouras e que é muito dado a dizer ‘O que é que há velhinho?’”
etc. Mas estas declarações, implicando como elas fazem, que os personagens em
questão realmente existem, são falsas. Assim, parece que deveríamos distinguir entre
uma declaração como a de Ana, que é claramente baseada em uma crença errônea na
existência de um indivíduo, e uma declaração que é feita reconhecidamente sobre
um personagem fictício. Este segundo tipo de declaração poderia ser considerado,

67
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

não como uma afirmação, mas como uma pretensa afirmação feita no contexto
de um jogo de fazer de conta. Assim, enquanto assistimos a uma apresentação de
Otelo, podemos fingir que o que está acontecendo no palco não é meramente uma
representação de um marido ciumento, mas um caso real de um indivíduo assim,
e deste modo fingir que estamos nos referindo a ele.

Suponha, no entanto, que desejamos fazer uma declaração como "Otelo


não existe". Por um lado, a fim de dar sentido ao nome de "Otelo", temos de nos
imaginar participando (pelo menos minimamente) na ficção, a ponto de fingir
que o nome de "Otelo" na verdade nomeia alguém. Mas quando nós afirmamos a
inexistência de Otelo, temos que pisar fora da ficção, e abandonar toda a pretensão,
pois é claro que, dentro da ficção, Otelo existe. Infelizmente, uma vez que pisamos
fora da ficção, "Otelo" deixa de funcionar como um nome, e nós mais uma vez
enfrentamos o problema de fazer declarações inteligíveis sobre os não existentes.
Poderíamos, então, retroceder à primeira estratégia, que envolvia parafrasear, e
supor que "Otelo não existe" é uma abreviação para alguma declaração como "Não
há nenhuma pessoa que é chamada de 'Otelo', que é Mouro de Veneza, que suspeita
sua esposa de infidelidade etc.". O problema com isso é que é uma declaração
geral, não sobre um indivíduo específico, e a declaração "Otelo não existe" parece
ser sobre um indivíduo específico, não apenas uma afirmação geral no sentido de
não haver ninguém que deva responder a uma certa descrição.

Talvez nós podemos relacionar "Otelo não existe" ao tipo de declaração que
encontramos em críticas literárias, como "Otelo é um dos personagens trágicos
mais convincentes de Shakespeare" ou "Otelo representa um tema recorrente em
Shakespeare, aquele da natureza possessiva do amor". Neste tipo de declaração, o
status ficcional do personagem não está em questão, não são declarações que são
feitas dentro da ficção, ou que exigem qualquer pretensão, mas a referência parece
ser a um indivíduo específico. Uma abordagem para estas declarações críticas é
tratá-las como sendo sobre um objeto real, no entanto, um objeto abstrato, em vez
de um concreto. A expressão "Otelo", no contexto da crítica literária, funciona mais
como a expressão "o número dois" ou "a justiça", do que "Albert Einstein” ou "o
Coliseu de Roma". Se podemos estender este tratamento para "Otelo não existe",
então poderíamos representar o significado desta declaração como sendo que o
objeto abstrato nomeado aqui não é um objeto concreto (no sentido de que objetos
concretos fornecem o paradigma de coisas existentes).

68
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA

ATENCAO

Como já dito, o problema do significado de declarações sobre objetos não


existentes foi abordado por Bertrand Russell em Da Denotação (1978). A sugestão de Russell foi
apoiada e prorrogada por W. V. O. Quine em Sobre o que há (1980); reimpresso com alterações
em Quine, De um ponto de vista lógico (2011). É neste trabalho que Quine expressa seu famoso
slogan, “ser é ser o valor de uma variável”. As contribuições de Kant, Frege, Russell e Quine para
a compreensão da existência são todas discutidos por Williams (1981). Peter van Inwagen, em
Creatures of Fiction (1977, p. 299-308), explora a ideia de que as declarações sobre objetos
fictícios como “Otelo suspeita de Desdêmona” e declarações críticas sobre esses objetos, tais
como “Otelo é um personagem bem desenvolvido”, pode ser ​​ suscetível ao mesmo tratamento,
em termos de objetos abstratos. Vale a pena conferir o texto Entidades Ficcionais de Fiora Salis
(2013) para aprofundar o tema com os argumentos de diversos autores.

6 OS OBJETOS “MEIO-EXISTENTES”
Há um grupo de objetos que satisfazem a análise “possuidora de
propriedades” da existência, mas para os quais não estaríamos dispostos a conceder
existência plena. Talvez um nome adequado, embora paradoxal, para esses objetos,
seria objetos "meio-existentes". Buracos, sombras e reflexos se enquadram nesta
categoria. Considere um buraco, por exemplo. Ele certamente tem propriedades,
tem certas dimensões, as coisas podem cair nele ou através dele, e ele tem um local
particular em relação a outros objetos. Mas o que é isso que chamamos de buraco,
exatamente? É uma região do espaço? Não, porque, mesmo se pensarmos que o
espaço existe como um objeto em si mesmo, independentemente das coisas que
ele contém, qualquer buraco que estivermos propensos a nos deparar estaria se
movendo através do espaço (como o resultado da rotação da Terra, por exemplo).
Na medida em que ele se move, ele permanece o mesmo buraco, mas diferentes
partes do espaço irão preenchê-lo. Além disso, as regiões do espaço teriam regiões
menores como partes, mas nunca poderíamos dizer que um buraco tem buracos! E
se nós não pensarmos no espaço como um objeto em si mesmo, mas apenas como
uma rede de relações espaciais entre as coisas, então não há nenhum objeto para
identificarmos com o buraco. De qualquer maneira, então, o buraco não é o mesmo
que uma parte do espaço.

A pista de como devemos ver buracos é fornecida pelo pensamento que,


se fôssemos remover os objetos ao redor do buraco (o resto do cobertor ou um
pedaço de terra), o buraco desapareceria. Isso sugere que o buraco, embora
existente, tem uma existência dependente, ele depende da existência de outras
coisas. Mas será que depende da existência de coisas particulares? Suponha que
um muro é construído de pedras, com um buraco no meio, talvez uma entrada
para um castelo. Mas, na medida em que as pedras ao redor da entrada começam
a desintegrar-se, elas são substituídas. Finalmente, nenhuma das pedras originais
permanece, mas a forma e a localização da entrada são inalteradas. Poderíamos

69
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

imaginar depois de um tempo que as pedras são substituídas por tijolos. Desde
que o tamanho e a forma da abertura se mantenham exatamente os mesmos, esta
ainda não é a mesma entrada? Se assim for, observações semelhantes se aplicam a
outros buracos, então, parece que os buracos não dependem de objetos específicos,
mas sim de objetos que estão dispostos, arranjados, de uma certa maneira.

Sombras parecem apresentar um tipo de caso semelhante. Suponha que


lançamos uma sombra sobre uma parede por meio de um pedaço de papel. Nós,
então, colocamos outro pedaço de papel, exatamente da mesma forma e tamanho,
em cima do primeiro. Em seguida, removemos o primeiro pedaço de papel. A
sombra está agora sendo lançada pelo segundo pedaço de papel, mas é a mesma
sombra? Se assim for, então, tal como buracos, embora as sombras dependam para
a sua existência de outros objetos, elas não dependem de objetos particulares. Há,
no entanto, uma diferença entre sombras e buracos. Há uma conexão lógica, ao
invés de uma causal, entre um buraco e os objetos que o delimitam. A causa do
buraco seria a atividade dos construtores, ou escavadores, e assim por diante. Em
contraste, a sombra parece tanto logicamente quanto causalmente dependente
do objeto que a projeta. É logicamente dependente, porque uma sombra é
necessariamente uma sombra de algo, nós nunca nos deparamos com uma sombra
por sua própria conta. E é causalmente dependente, pois, para que a sombra seja
lançada, o objeto precisa bloquear a luz, que de outra forma iluminaria a área onde
a sombra está. Mas como uma conexão pode ser ambos, lógica e causal? Uma não
exclui a outra? Talvez uma maneira de resolver esse conflito aparente é dizer que
a sombra é logicamente (ao invés de causalmente) dependente de uma interação
causal entre um objeto e a luz.

O que podemos dizer sobre as reflexões no espelho? Aqui temos outra


interação de objetos com a luz, pois sem a luz não há nenhuma imagem especular.
Ao contrário de buracos e sombras, no entanto, a imagem especular é dependente
de um objeto particular. Não podemos substituir esse objeto e obter exatamente a
mesma imagem. Mas imagens especulares não são apenas os objetos dos quais são
imagens, pois elas têm propriedades diferentes e de fato incompatíveis. Nós não
mudamos de tamanho à medida que avançamos para longe de um espelho, mas as
nossas imagens espelhadas mudam de tamanho. Se você acenar com a mão direita,
a mão esquerda de sua imagem irá acenar. Além disso, ao passo que a imagem
especular desaparece se você se mover da frente do espelho, ou se a luz apagar,
você ainda permanece na existência. Por outro lado, se você está olhando para sua
imagem no espelho, você não está também olhando para si mesmo? Como pode
ser isso, se você e sua imagem não são o mesmo?

Esta é uma das questões favoritas entre aqueles que encontram a filosofia
pela primeira vez (o que não sugere que ela perca todo o interesse quando estiveres
estudando a filosofia durante anos) se uma árvore, por exemplo, continua a existir
quando ninguém a estiver olhando. Vamos dar a resposta do senso comum que,
claro, a árvore continua a existir, a sua existência não é de todo dependente de a
mesma ser percebida. É o mesmo que acontece com imagens especulares? Se você
está inclinado a dizer "não" a esta pergunta, então o resultado é outra diferença
entre essas imagens, por um lado, e os buracos e sombras por outro, e isso é que as
70
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA

imagens especulares são dependentes não apenas de outros objetos, mas também
de nossas mentes. Talvez nossas mentes sejam a verdadeira localização de tais
imagens. Se assim for, então podemos nos perguntar se elas realmente se encaixam
em nossa análise da existência.

Parece, portanto, que há objetos que não são de todo fictícios, mas são
logicamente dependentes de outros para a sua existência. Estes são, no entanto,
um grupo variado e nenhuma análise singular poderá capturar todos eles.

DICAS

Para discussões sobre o que temos chamado de “objetos meio-existentes”, leia


David Lewis e Stephanie Lewis no artigo Buracos (2010), e A descoberta da Sombra, de Roberto
Casati (2001).

7 OS LIMITES DA EXISTÊNCIA
Se o tipo de objetos que acabamos de discutir formam uma espécie de zona
crepuscular entre a existência e a não existência, os limites temporais da existência
formam outra. Quando é que uma pessoa morre? Quando o coração para de bater?
Quando o cérebro deixa de funcionar? Quando a consciência é permanentemente
perdida? Suponha que digamos: quando o cérebro deixa de funcionar. O que
marca isso, exatamente? Quando o último neurônio cessa seus disparos? Ou algum
tempo antes? Seja qual for o ponto de tomarmos como marcando o instante da
morte, descobrimos que não é um instante em absoluto, mas um processo que tem
fases diferentes, e nós temos que tomar outra decisão sobre qual estágio é o crucial.
Em outras palavras, a fronteira entre a vida e a morte é indeterminada. Isso quer
dizer, então, que a diferença entre a existência e o não existente em absoluto não é
uma questão de tudo ou nada?

Este é um exemplo de um tipo de fenômeno com o qual estamos muito


familiarizados, uma zona cinzenta onde não temos certeza o que dizer. Outra
instância deste fenômeno diz respeito a palavras como "alto". Algumas pessoas
são claramente altas, e outras não, mas desde que "alto" não é definido em termos
de qualquer altura específica, há casos intermediários onde não parece adequado
dizer que alguém é alto ou que não é alto. Considere, por exemplo, o termo
"vermelho". O sangue que corre em nossas artérias é claramente vermelho, mas há
uma escala contínua da cor vermelha, onde se funde com púrpura de um lado do
espectro, e a cor laranja do outro. Será que em algum ponto uma cor deixa de ser
uma espécie de vermelho alaranjado e se torna claramente laranja? Há casos em
que algo é apenas indeterminado.

71
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

Assim, dado que existem áreas cinzentas onde não temos certeza se uma
palavra particular (como "vida" ou "alto" ou "vermelho") deve ser aplicada, como
é que vamos explicar isso? Há três posições que poderíamos tomar. A primeira é
dizer que há realmente indeterminação do mundo, os limites entre propriedades
diferentes são vagos. Há casos em que simplesmente não há como saber se uma
pessoa é alta ou não, ou se ainda está na existência ou não. Mas faz sentido supor
que o próprio mundo é vago, ao invés de que nossos conceitos que sejam assim?
Suponha que permitamos que a indeterminação esteja no mundo. Então surge
uma consequência bastante estranha. Digamos que às quatro horas da manhã,
Pedro ainda está, muito definitivamente, vivo (embora não exatamente corado).
Às quatro e meia, ele está, muito definitivamente, morto. Em algum lugar no
entremeio há momentos em que não há como saber de fato se Pedro está vivo ou
não. Esse é um nível de indeterminação. Mas será que há, então, um ponto de corte
definitivo entre as horas em que Pedro está vivo, e as horas em que não há como
saber se ele está vivo de fato? Presumivelmente não, já que estamos assumindo os
limites da existência (ou seja, existência definitiva) como sendo vagos. Portanto,
agora há outro nível de indeterminação, onde não há como de fato saber se é o caso
de que (1) Pedro está vivo ou (2) não há como de fato saber se ele está vivo. Mas,
certamente, isso só culmina em não haver como de fato saber se Pedro está vivo.
Pois, nesse caso, deveria haver um ponto definido de corte entre o Pedro estar vivo
e o não haver como de fato saber etc. Mas se nós aceitarmos que há um limite tão
acentuado, então por que não admitir que haja uma fronteira nítida entre estar
vivo e estar morto?

A segunda posição é dizer que há um ponto definido em que se aplica


um determinado termo, mas nem sempre podemos dizer exatamente quando
este é aplicado. Uma possível recomendação ao caso da existência, a partir dessa
posição, seria o seguinte. Houve um ponto definitivo em que Pedro morreu, mas
não poderíamos dizer exatamente quando ocorreu. Em contraste, o tratamento de
"alto" desta forma seria mais implausível. Apenas considere isso: há uma altura
definitiva (um metro e noventa centímetros) onde qualquer um com essa altura ou
mais é alto, e ninguém com menos do que essa altura o é. Mas ninguém sabe qual
seria essa altura definitiva! Poderíamos perguntar: quem estabelece qual é a altura
apropriada? Parece mais razoável supor que nós sabemos tudo o que há para saber
sobre o "alto", mas não tudo o que há para saber sobre "viver". Todavia, ainda há
algo estranho sobre a sugestão de que Pedro morre em um ponto definitivo (embora
não localizável). Esperamos que a morte de Pedro esteja intimamente conectada
aos vários processos de deterioração acontecendo em seu corpo e cérebro. Mas
esses processos são inteiramente contínuos, não há mudanças súbitas e dramáticas
no estado. (Estou assumindo que Pedro morreu tranquilamente em seu sono,
ao invés de ter sua cabeça cortada por uma guilhotina). Isso não parece de todo
plausível que uma das muitas mudanças contínuas e minúsculas, não maiores ou
aparentemente mais significativas do que as mudanças que as precederam, foi,
no entanto, o ponto que marcou o momento em que Pedro faleceu. Por que este
ponto particular? O que havia de tão especial sobre ele? Ou foi a morte de Pedro
inteiramente independente das mudanças que ocorreram em seu corpo? Isso não
pode estar certo.

72
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA

As dúvidas sobre as duas primeiras abordagens podem muito bem nos


inclinar à terceira, e isto é dizer que qualquer indeterminação é devido à nossa
linguagem. Alguns conceitos são apenas insuficientemente definidos com precisão
para que sejamos capazes de identificar exatamente como eles se encaixam no
mundo. Ou melhor, eles até se encaixam, mas um tanto frouxamente. Agora isso
parece exatamente a coisa certa a se dizer sobre adjetivos como "alto". Apesar de ser
um termo de altura, "alto" não é definido em termos de alturas específicas, por isso
não é surpresa que não forneça qualquer orientação quando estamos considerando
pessoas entre, digamos, um metro e oitenta e sete centímetros e um metro e noventa
e três centímetros. Desse modo, talvez o que vale para "alto" também funcione para
"viver"? Existem diversos estados de organismos que indicam claramente a vida,
e outros, que indicam claramente a ausência de vida. Mas o significado de "viver"
não está vinculado muito especificamente a certos estados ao invés de outros,
define-se a um nível bastante elevado de generalidade. Uma vagueza semelhante
atribui-se à palavra "pessoa". Poderíamos nos perguntar, ao contemplar Pedro, se
estamos lidando com uma pessoa viva ou não. Mas "pessoa" não está tão bem
definido que nos permita sempre dizer se estamos sendo apresentados com uma
pessoa viva ou não.

Esta terceira abordagem à indeterminação pode parecer a mais razoável,


mas quando refletimos sobre o fato de que a mesma presume que o mundo em
si mesmo, e tudo o que nele existe, é inteiramente determinado, percebemos sua
implicação: que a realidade, em si, não está dividida entre os vivos e os não vivos,
ou entre pessoas e não pessoas, mas que estas distinções são, em certa medida,
meramente convencionais. E essa é uma consequência que provavelmente não
satisfaz a maioria de nós.

NOTA

Abordagens para os problemas da vagueza são discutidas em Mark Sainbury,


Paradoxes (2009), especialmente no capítulo 3. Estes incluem as ideias de indeterminação
objetiva, níveis de verdade e “supervalorização”, em que as declarações contendo predicados
vagos são substituídas por declarações mais complexas contendo somente predicados não
vagos. Um excelente artigo que expõe diversos argumentos sobre a vagueza é o de Ruffino
(2003).

73
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

8 POR QUE QUALQUER COISA EXISTE?

Por que qualquer coisa existe? Por que simplesmente não há apenas o nada?
Agora, uma resposta bastante rápida a isso é que existem alguns objetos que apenas
têm de existir, nomeadamente, objetos abstratos como números. Pois o que faz a
matemática verdadeira se não os números e suas relações? E não é a matemática
necessariamente verdadeira? Como poderia objetos meramente contingentes fazer
verdades necessárias necessariamente verdadeiras? É, naturalmente, bastante
controverso se os números e seus semelhantes satisfazem de fato a análise da
existência que sugerimos anteriormente, a saber, uma coisa tendo propriedades
independentemente de qualquer representação desta coisa como tendo estas
propriedades. Poderia pensar-se que os números não têm existência fora do
pensamento matemático. Mas deixemos essa disputa de lado e estreitemos a nossa
pergunta: dado que existem objetos contingentes, objetos que possam não ter
existido, por que há, de fato, quaisquer objetos contingentes em absoluto?

Esta questão desafiadora merece um caderno de estudos para si mesma (ou


talvez vários). Aqui só podemos olhar brevemente duas tentativas para respondê-
la. A primeira abordagem compara a questão ao lamento decepcionado do
participante de uma loteria: "Por que eu não ganhei?" Na verdade, poucas pessoas
que participam de uma loteria de fato fazem esta pergunta, simplesmente porque
ninguém que reflete sobre as chances envolvidas pode seriamente esperar ganhar
na loteria. A resposta à pergunta "por que eu não ganhei?" é que as chances de
ganhar são apenas uma em um milhão (ou qualquer outra probabilidade). Agora,
se pensamos nas formas (presumivelmente infinitas) como o universo poderia ter
sido, apenas uma delas consiste em não haver objetos contingentes. Há apenas
uma forma para não haver quaisquer objetos contingentes, não existem variações
sobre este tema específico. Mas se há um número infinito de formas, todas menos
uma delas, envolvendo algum objeto contingente, então a probabilidade de não
haver objetos contingentes é infinitamente pequena. E uma chance infinitamente
pequena é a coisa mais próxima de nenhuma chance.

Esta solução simples e muito atraente, no entanto, se assenta em dois


pressupostos que podem ser questionados. O primeiro é que qualquer forma que
o universo pudesse ter sido é intrinsecamente não mais, e não menos, provável,
do que qualquer outra forma. Somente então poderemos tomar a probabilidade
de qualquer forma específica como sendo determinada pelo número total de
universos possíveis. O segundo é que nós podemos dar o sentido da “chance”
neste contexto. Nós falamos das chances de uma moeda pousar com a cara para
cima, mas isso é contra as condições de background: que a moeda não é tendenciosa,
que o lançamento é um lançamento normal, e assim por diante. As condições em
que se joga uma moeda determina, alegamos, as chances de cair cara ou coroa.
Mas, de um número de maneiras pelas quais o universo pode ser, o que determina
qual é aquela que ele é? A mão de Deus?

Uma segunda abordagem, um pouco menos comprometedora, à pergunta


"por que simplesmente não há o nada?" é dizer que a ideia de haver nada em

74
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA E A EXISTÊNCIA

absoluto não é, em última análise, uma ideia coerente. Existem várias maneiras
em que podemos tentar estabelecer isso, mas aqui veremos uma que nos diz algo
interessante sobre o mundo. Quando dizemos algo verdadeiro sobre um objeto,
nossa afirmação se torna verdadeira por alguma característica, ou algum traço do
objeto. “Esse livro é verde” se torna verdadeira pelo livro ser de fato verde. Mas e
se tivesse dito “esse livro não é branco”? Desde que essa afirmação é verdadeira,
ela se torna verdadeira pelo o que poderíamos chamar de um traço negativo do
livro, sua “não branquidão”? Não branquidão parece ser um tipo estranho de
propriedade. Por exemplo, se eu disser, ao entrar em uma sala: “Pedro não está
aqui”. Essa afirmação é tornada verdadeira por uma ausência real na sala, a não
existência de Pedro? Mais uma vez, isso soa estranho. Um modo mais natural de
observarmos estes casos é o de supor que afirmações negativas, como “o livro não
é branco” e “Pedro não está aqui” tornam-se verdadeiras por traços positivos. É a
verdidão do livro que torna verdadeiro dizer “o livro não é branco”, pois a verdidão
(paradigmática) exclui a branquidão (paradigmática); é o fato de Pedro estar em
outro lugar que torna verdadeiro dizer “Pedro não está aqui”, estar em outro lugar
exclui estar aqui. Então, embora nós façamos declarações negativas verdadeiras,
não há quaisquer traços negativos no mundo, somente traços positivos. E qual é
a posição sobre a afirmação “não existem unicórnios”? Desde que isso signifique
que não há unicórnios em qualquer lugar, nós não podemos dizer, como o fizemos
referente a Pedro, que há unicórnios em outro lugar. Aqui, é a existência de tudo
no mundo que torna verdadeiro que não existem unicórnios, pois tudo que existe
possui traços que excluem a existência de um unicórnio. Então, para qualquer
declaração negativa ser verdadeira, algo necessita de fato existir. Mas isso significa
que a proposição “nada existe” não poderia possivelmente ser verdadeira, pois
não pode haver verdades negativas sem existir coisas, e apenas uma coisa existente
tornaria falso que nada existe.

Uma característica desta solução é que de qualquer modo nós enfrentaríamos


o problema das verdades negativas, e seria bem interessante se, ao resolver este
problema, nós também providenciássemos uma resposta ao por que existe algo
ao invés de nada. Mas, será que a abordagem que vimos às verdades negativas é
satisfatória? Considere novamente “não existem unicórnios”. A mera existência
de tudo o resto não pode ser suficiente para tornar essa afirmação verdadeira,
pois a existência de tudo o resto é na verdade compatível com o fato de haver
unicórnios. A natureza aqui pode excluir existir um unicórnio, mas ela não exclui
unicórnios em outro lugar. Então, para dar conta desta objeção nós temos que
acrescentar outro fato, que estes são “todos os objetos que existem”. Mas, não seria
isto exatamente um fato negativo, o fato de que “não há outros objetos”?

75
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico você viu que:

 A palavra “ontologia” é usada de duas maneiras. A ontologia de uma pessoa ou


de uma teoria é apenas o catálogo de coisas que as mesmas supõem existir.

 Quando falamos apenas da ontologia, ao invés de ontologia de x, queremos nos


referir ao estudo filosófico da existência. A ontologia como um estudo pergunta
que tipos de coisas existem.

 Quando fazemos perguntas existenciais comuns, com frequência temos em


mente uma maneira particular de descobrir as respostas e o método de descobrir
será muito diferente em casos diferentes.

 Os ontologistas precisam mostrar que há uma noção da existência de aplicação


geral, adequada para diferentes domínios, e se ou não um candidato à existência
satisfaz essa noção não é uma questão resolvida por métodos comuns.

 Em uma análise da existência uma primeira explicação seria que “um objeto
existe se e somente se ele tem efeitos”. Uma segunda seria, “um objeto existe
se e somente se é possível para o mesmo que tenha efeitos sobre outras coisas”.
Uma terceira seria, “um objeto existe se e somente se ele tem propriedades”.
Uma quinta explicação seria, “um objeto existe se e somente se ele tem
propriedades independentemente de qualquer representação dele como tendo
essas propriedades”.

 Talvez atribuir propriedades a objetos ficcionais e a outras coisas não existentes


não nos compromete, absurdamente, a sua existência. Mas se isso não for o caso,
então não é de todo óbvio como podemos falar significativamente sobre esses
objetos, pois nossa conversa seria sobre nada, em absoluto.

 Há um grupo de objetos que satisfazem a análise “possuidora de propriedades”


da existência, mas para os quais não estaríamos dispostos a conceder existência
plena. Talvez um nome adequado, embora paradoxal, para esses objetos seria
objetos “meio-existentes”. Buracos, sombras e reflexos se enquadram nesta
categoria.

 Parece, portanto, que há objetos que não são de todo fictícios, mas são logicamente
dependentes de outros para a sua existência. Estes são, no entanto, um grupo
variado e nenhuma análise singular poderá capturar todos eles.

 Seja qual for o ponto de tomarmos como marcando o instante da morte,


descobrimos que não é um instante em absoluto, mas um processo que tem fases
diferentes, e nós temos que tomar outra decisão sobre qual estágio é o crucial.

76
Em outras palavras, a fronteira entre a vida e a morte é indeterminada.

 Há três posições que poderíamos tomar. A primeira é dizer que há realmente


indeterminação do mundo aqui: os limites entre propriedades diferentes são
vagos. A segunda posição é dizer que há um ponto definido em que se aplica
um determinado termo, mas nem sempre podemos dizer exatamente quando
este é aplicado. A terceira é dizer que qualquer indeterminação é devido a nossa
linguagem.

 Uma resposta bastante rápida à questão de “por que simplesmente não


há apenas o nada?” é que existem alguns objetos que apenas têm de existir,
nomeadamente, objetos abstratos, como números.

 Dado que existem objetos contingentes, por que há, de fato, quaisquer objetos
contingentes em absoluto?

 Há um número infinito de formas que o universo poderia ter sido, todas menos
uma delas envolvendo algum objeto contingente, então a probabilidade de não
haver objetos contingentes é infinitamente pequena.

 Uma segunda abordagem à pergunta “por que simplesmente não há o nada?” é


dizer que a ideia de haver nada em absoluto, não é, em última análise, uma ideia
coerente.

77
AUTOATIVIDADE

Neste tópico apresentamos argumentos sobre seis enigmas da existência.


Comente sobre os objetos que o quarto enigma da existência aborda.

78
UNIDADE 1
TÓPICO 5

A FILOSOFIA DA MENTE E DA CONSCIÊNCIA

1 INTRODUÇÃO

Neste tópico vamos nos concentrar em um dos problemas centrais da


filosofia da mente e da consciência, o problema mente-corpo. A proposta será
apresentar as argumentações antigas e novas sob a perspectiva filosófica a esta
questão. Vamos expor abordagens dualistas e fisicalistas, descrevendo e dando
exemplos de suas posições, de seus pontos fortes e fracos, das argumentações a
favor e contra.

Após a exposição dessas abordagens, faremos algumas considerações


finais sobre as teorias vigentes sobre a mente e a consciência.

2 O PROBLEMA MENTE-CORPO: ANTIGO E NOVO


As mentes são coisas estranhas. Em certo sentido, nós somos nossas mentes.
Podemos perder nossos membros e ter os nossos órgãos internos substituídos,
mas desde que nossa mente permaneça intacta ainda seríamos nós. No entanto,
as mentes são difíceis de serem definidas. Elas não parecem ser parte dos nossos
corpos, da mesma forma que os nossos órgãos são. Um cirurgião poderia examinar
seu cérebro, mas será que ele poderia ver sua mente, seus pensamentos, crenças,
desejos, esperanças, intenções, percepções, sensações e sentimentos? E embora as
nossas mentes estejam claramente vinculadas aos nossos corpos, nós podemos
imaginar trocar corpos com outra pessoa, ou até mesmo não ter um corpo em
absoluto.

No passado, considerações como estas levaram muitos filósofos a manter


que nossas mentes não são coisas físicas, mas substâncias imateriais, almas, que são
completamente distintas dos nossos corpos e poderiam sobreviver à sua morte. Esta
visão é conhecida como dualismo substancial, uma vez que é a visão de que somos
feitos de duas substâncias distintas, a mente e a matéria. Também é conhecido como
dualismo cartesiano, após o filósofo do século XVII René Descartes, que estabeleceu
alguns argumentos famosos a favor desta visão. Os argumentos de Descartes a
favor do dualismo substancial podem ser encontrados em suas Meditações (2004),
nas partes II e VI, publicados pela primeira vez em latim em 1641. O dualismo

79
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

substancial pode fazer justiça a nossas intuições sobre a mente, mas também cria
um novo problema: se mentes e corpos são completamente distintos, então como
eles podem interagir entre si? Como pode um evento em uma alma imaterial, tal
como uma decisão de mover o braço, provocar mudanças em um corpo físico?
E como podem as mudanças em um corpo físico, como a estimulação dos seus
receptores de dor, causarem sensações em uma alma imaterial? Este é o problema
mente-corpo tradicional.

DICAS

Veja a obra de Cottingham (1995), ele oferece uma boa introdução aos conceitos
centrais das obras de Descartes.

Hoje em dia, pouquíssimos filósofos são dualistas substanciais. Nós agora


sabemos muito mais sobre a dependência da mente no cérebro. Sabemos como
mudanças das substâncias químicas no cérebro podem afetar nossas mentes, e
como a lesão cerebral e doenças podem danificá-la. E cientistas estão acumulando
explicações extremamente detalhadas de como o cérebro processa informações
sensoriais, armazena e acessa informações e controla movimentos, tudo isso
expresso em termos físicos e não fazendo qualquer referência à “alma”. Além disso,
apesar das reivindicações dos médiuns, não há qualquer boa evidência para a
existência de mentes desencarnadas. E, finalmente, a influência de muitas religiões,
que apoiaram a crença em uma alma imaterial, tem diminuído consideravelmente,
pelo menos na civilização ocidental. Em certo sentido, então, a maioria dos
filósofos modernos é formada por fisicalistas, eles rejeitam o dualismo substancial
e mantêm que os seres humanos são compostos simplesmente de matéria ou, mais
precisamente, de entidades básicas postuladas pela física moderna (átomos e seus
constituintes).

Será que isso significa que o problema mente-corpo está resolvido? Na


sua forma antiga, sim. Se não há nenhuma alma imaterial, então não há nenhum
enigma sobre o como ela interage com o mundo físico. Mas uma nova versão do
problema mente-corpo emergiu, que é atualmente o foco de debates vigorosos.
Para entender o problema, um pouco de background é necessário.

80
TÓPICO 5 | A FILOSOFIA DA MENTE E DA CONSCIÊNCIA

DICAS

Sugerimos a leitura inicial de obras introdutórias como Heil (2001), Maslin (2009),
Costa (2005), McGinn (2011a) ou Teixeira (2008, 1994), para começar a investigação deste
campo da filosofia da mente. Os capítulos de abertura de Chalmers (1999), Dennett (1995) e Tye
(1995) também oferecem introduções úteis à consciência, embora cada um reflete a própria
perspectiva teórica do seu autor. Há também material útil disponível na internet. Em especial,
recomenda-se a página <http://plato.stanford.edu/>. Ao pesquisar na enciclopédia pelo termo
“consciência” encontrarás uma série de excelentes artigos por pesquisadores de renome.
Devemos também mencionar o site do David Chalmers, atualmente localizado no seguinte
endereço: <http://consc.net/chalmers/>, que contém uma riqueza de material relacionado
com a mente e a consciência.

Se o dualismo substancial é falso, então estados mentais, pensamentos,


sentimentos, experiências, e assim por diante, são estados do corpo. Mas que
tipo de estados? Uma resposta comum em torno do meio do século XX foi a de
que estes são disposições comportamentais (ZILIO, 2010). Uma disposição é uma
tendência de fazer alguma coisa em determinadas circunstâncias; por exemplo, um
copo tem uma disposição para quebrar se cair. Uma disposição comportamental
é uma tendência a engajar-se em comportamentos de algum tipo. Agora, estados
mentais diferentes estão associados a diferentes disposições comportamentais.
Por exemplo, uma pessoa com um mau humor está disposta à carranca, ser
impaciente, estalar com as pessoas, e assim por diante. E na visão que estamos
considerando, quando falamos de estados mentais de uma pessoa estamos nos
referindo simplesmente a estas disposições comportamentais. Assim, segundo
essa visão, um mau humor não é uma coisa dentro de uma pessoa que a causa a
ficar de cara feia, impaciente, e estalar com as pessoas, e assim por diante; em vez
disso, é simplesmente uma disposição para fazer essas coisas. Os defensores desta
perspectiva propõem análises semelhantes a todos os outros estados mentais,
crenças, desejos, esperanças, medos, experiências, e assim por diante. Assim, por
exemplo, acreditar que vai chover em breve é ​​estar disposto a se comportar de
maneiras apropriadas à chuva esperada, fechar as janelas, recolher as roupas do
varal, e assim por diante, os detalhes variando dependendo das circunstâncias.
Assim, a mente não é uma coisa interna misteriosa, conhecida apenas por seu
possuidor, mas um padrão de disposições em aberto para que todos possam
observar. Esta visão é conhecida como behaviorismo filosófico (LOPES; ABIB,
2003). Se ela estiver correta, então os dualistas substanciais estavam fazendo o
que Gilbert Ryle chamou de um erro de categoria (RYLE, 2005). Eles pensaram
que as mentes, tal como os corpos, pertenciam à categoria das coisas (embora, das
coisas imateriais), quando na verdade elas pertencem à categoria de atividades
e disposições. Seu erro foi um pouco como o de uma pessoa que pensa que uma
universidade é um edifício especial, inclusive todas as outras estruturas em um
campus.

81
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

DICAS

Crane (2008) é uma boa introdução para o modelo de computador da mente e


do problema da representação mental, e Sellars (2008) para discussões sobre o empirismo e a
filosofia da mente.

O behaviorismo filosófico ainda tem defensores, mas há sérias objeções à


doutrina e sua popularidade diminuiu acentuadamente desde a década de 1960.
Um problema é que não é plausível estender a análise às experiências, incluindo
as percepções e as sensações corporais tais como as dores. Uma dor, ao que parece,
não é apenas uma disposição para exibir o comportamento relacionado com a dor
(encolhendo, chorando, esfregando a parte afetada, e assim por diante), mas um
estado interno que provoca o indivíduo a fazer essas coisas. Isso se reflete na visão
do senso comum de que nossos estados mentais são coisas privadas, dos quais
temos uma consciência interna, via introspecção.

Em resposta a este e outros problemas com o behaviorismo, muitos filósofos


voltaram-se para uma visão diferente, segundo a qual os estados mentais são
estados do cérebro, identificado por suas distintivas causas e efeitos, seus papéis
causais. Assim, dores são aqueles estados neurais que são causadas pela estimulação
dos receptores da dor e que tendem a causar o comportamento característico
de dor; percepções são aqueles estados que são causados pela estimulação dos
órgãos dos sentidos e que tendem a causar crenças correspondentes; e crenças são
aqueles estados de longo prazo que são causados ​​por percepções ou inferências
e que tendem a causar um comportamento apropriado. Estas perspectivas são
conhecidas como a teoria da identidade da mente (COSTA, 2005; ARMSTRONG,
1968). A teoria vem em diferentes formas, dependendo da forma como nós
concebemos os papéis causais relevantes e se nós identificamos os estados mentais
com os estados neurológicos que desempenham esses papéis causais nos seres
humanos, ou, mais amplamente, com quaisquer estados que desempenham essas
funções, independentemente da sua composição precisa. Este último ponto de
vista é conhecido como funcionalismo, e é amplamente percebido como sendo
mais plausível, já que nós queremos permitir que outras espécies, e até mesmo
alienígena, possam ter estados mentais como os nossos, apesar de ter diferente
composição neurológica. A teoria da identidade é muitas vezes combinada com
a visão de que a mente é semelhante a um computador, e de uma forma ou outra
esta é a visão dominante na filosofia contemporânea da mente (FODOR, 2011;
MORGONI, 2013).

Tal como o dualismo substancial, a teoria da identidade faz justiça à ideia


de que os estados mentais são as causas internas do comportamento, mas como
o behaviorismo não trata a mente como uma entidade não física, mantém assim
a promessa de uma explicação científica para os fenômenos mentais. No entanto,
ela ainda enfrenta problemas. Pois os estados mentais parecem ter algumas
propriedades misteriosas, que são difíceis de se explicar em termos científicos.
82
TÓPICO 5 | A FILOSOFIA DA MENTE E DA CONSCIÊNCIA

Duas em particular se destacam: o conteúdo representacional e o sentir fenomenal.

Dizer que os estados mentais têm conteúdo representacional é dizer


que eles são sobre coisas, eles representam coisas além de si mesmos, incluindo
objetos e lugares que estão distantes no espaço e no tempo, e até mesmo aqueles
que são inexistentes. Outro termo usado frequentemente para esta função é
"intencionalidade", o que significa direcionamento. Os estados mentais são
direcionados para as coisas do mundo. Mas como é que estados cerebrais adquirem
esta propriedade? Como podem os neurônios e sinapses ser sobre alguma coisa?
Claro que, num sentido, o conteúdo representacional não é de todo misterioso.
As palavras em um livro representam coisas, mas nós não pensamos nelas como
profundamente misteriosas. No entanto, é plausível pensar que as palavras derivam
seu conteúdo a partir de nós. As palavras somente significam coisas porque temos
convenções para isso, convenções que, em última análise, dependem de nossos
pensamentos. Elas possuem intencionalidade derivada. Mas os pensamentos em si
não podem derivar seu conteúdo de outros pensamentos. Eles, ao que parece, têm
intencionalidade intrínseca. E isso sim parece misterioso.

A segunda propriedade é o sentir fenomenal. Pense sobre algumas


experiências diárias, a vista de um céu claro de verão, a dor de um tornozelo
machucado, o cheiro do café, a sensação de afagar o pelo de um gato. Focalize
em como é cada uma dessas experiências, em como você sente subjetivamente,
a partir do seu interior. Cada uma tem seu próprio caráter, que é imediatamente
reconhecível, mas muito difícil de se descrever. Filósofos usam uma variedade de
termos para este aspecto da experiência, incluindo "sentir/sensação fenomenal",
"fenomenologia", "sensação qualitativa", "caráter subjetivo", "sensação crua",
"perspectiva da primeira pessoa" (da expressão “what-is-likeness” de Thomas
Nagel (2005)), e "qualia" (do plural do latim que significa "qualidades", o singular é
"quale"). Ter experiências com sensação fenomenal é central para o que chamamos
de consciência, e a palavra "consciência" é muitas vezes usada para se referir à
posse de tais experiências. Como conteúdo, a consciência parece misteriosa. Se a
teoria da identidade (mente-cérebro) está certa, então as experiências são apenas
estados cerebrais, alterações eletroquímicas nas células cerebrais, e como poderiam
tais coisas terem uma sensação interna a elas? Como um escritor expressou, como
poderia uma massa cinzenta cerebral encharcada fazer emergir a fenomenologia
“technicolor" de consciência? (MCGINN, 2011b). O filósofo australiano David
Chalmers apelidou isso de o “problema difícil” (hard problem) da consciência
(CHALMERS, 2002).

Conteúdo e consciência são o foco do novo problema mente-corpo.


Subjetivamente, sabemos que temos estados mentais com conteúdo e sensação, mas
olhando para nós mesmos a partir da perspectiva de terceira pessoa, como seres
físicos, é difícil ver como isso pode ser. O problema é explicar como um corpo físico
veio a possuir essas propriedades estranhas. É amplamente assumido que fazer isso
implicaria fornecer explicações redutivas das mesmas. Uma explicação redutiva é
aquela que explica uma propriedade em termos de propriedades no nível menor e
mais fundamental. Por exemplo, a reprodução pode ser redutivamente explicada
em termos de processos fisiológicos, celulares e genéticos mais básicos, que
83
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

podem, por sua vez, ser explicados em termos químicos e físicos. Muitos filósofos
sustentam que todas as propriedades acima do nível da física básica (a ciência
das partículas e das forças fundamentais) podem ser redutivamente explicadas.
Este ponto de vista é uma versão do que chamamos de naturalismo, e parece ser
corroborada pelo enorme sucesso que a ciência tem tido em encontrar explicações
redutivas (McDOWELL, 2013). Resolver o novo problema mente-corpo envolveria
fornecer explicações semelhantes ao conteúdo e às sensação/sentir, mostrando
como a sua existência pode ser explicada em termos de propriedades mais básicas
e menos misteriosas.

Outra maneira de expressar o novo problema mente-corpo é perguntar


se o conteúdo e a sensação são propriedades físicas. Por "propriedades físicas"
significamos propriedades que existem simplesmente em virtude dos recursos
descritos pela física básica, a distribuição subjacente de partículas e forças
subatômicas. Muitos filósofos e cientistas sustentam que a física básica (ou uma
versão totalmente desenvolvida da mesma) é uma teoria de tudo, que tudo pode
ser descrito e explicado na linguagem da física básica. Claro, nós não costumamos
descrever as coisas dessa maneira; nós usamos todos os dias conceitos não científicos
e conceitos das ciências de nível superior, tais como a biologia. Mas a ideia é que
as propriedades a que nos referimos não são realmente distintas daquelas da física
básica. Elas não são traços ou características extras do mundo, além daquelas da
física básica, mas apenas aquelas mesmas características sob diferentes disfarces.
Isso, às vezes, é expresso metaforicamente dizendo que uma vez que Deus fixou
os fatos físicos básicos, ele fixou todos os fatos; não havia mais trabalho para ele
fazer (KRIPKE, 2012). Por exemplo, eu tenho um sistema digestivo, mas isso
não é uma propriedade extra minha, para além daquelas físicas básicas. Em vez
disso, consiste em eu ter certas propriedades físicas básicas, em ter determinados
componentes físicos básicos dispostos em uma determinada maneira e que exercem
certas funções. Em uma frase amplamente utilizada, as propriedades físicas
básicas realizam aquelas biológicas de nível superior. É importante salientar que a
alegação não é que cada propriedade de nível superior possa ser identificada com
o mesmo conjunto de propriedades físicas básicas em cada instância. A maioria das
propriedades de nível superior pode ser realizada em mais de uma maneira; por
exemplo, o sistema digestivo envolve diferentes estruturas físicas em diferentes
animais. A alegação é simplesmente que cada instância de uma determinada
propriedade de nível superior realiza-se em um conjunto de propriedades físicas
básicas, talvez diferentes de caso para caso. Se usarmos o termo "propriedades
físicas" em sentido lato, para ambas as propriedades físicas básicas e propriedades
de nível superior que se realizam nas primeiras, então o ponto de vista que estamos
considerando resulta na alegação de que todas as propriedades são propriedades
físicas.

A alegação de que todas as propriedades são físicas casa-se com a afirmação


de que tudo é redutivamente explicável ​​em termos físicos básicos. Explicações
redutivas funcionam porque, quando totalmente definidas, podemos ver que não
há nada mais para a propriedade que está sendo explicada que as propriedades
citadas na explicação. O resultado é uma imagem elegante e econômica do mundo
em que todos os fenômenos complexos em torno de nós podem finalmente ser
84
TÓPICO 5 | A FILOSOFIA DA MENTE E DA CONSCIÊNCIA

descritos e explicados em termos de um pequeno número de partículas e forças


básicas. Agora podemos reformular o novo problema mente-corpo como aquele
de se o conteúdo e a sensação são exceções a esta imagem elegante, se são
propriedades não físicas, que são distintas daquelas físicas básicas subjacentes e
não explicáveis em termos destas. A visão de que elas assim o são é conhecida
como dualismo de propriedades, e contrasta com o fisicalismo de propriedade, ou
apenas o fisicalismo. (DE ATAHYDE PRATA, 2013).

DICAS

O defensor contemporâneo mais influente do dualismo de propriedade é David


Chalmers. Veja seu texto de 2002 para uma introdução rápida e sua obra de 1999 para a história
completa, incluindo uma apresentação do argumento dos zumbis. Este último trabalho é de
nível difícil em certas partes, mas Chalmers solicitamente destaca as seções mais técnicas, para
que os leitores de primeira viagem possam deixá-las para depois.

Os problemas do conteúdo e da consciência têm atraído uma enorme


quantidade de atenção dos filósofos nas últimas décadas. Dos dois, o primeiro é
amplamente sentido como sendo o mais tratável, e inúmeras explicações redutivas
do conteúdo representacional têm sido propostas. Uma delas, por exemplo, gira em
torno da noção de rastreamento (tracking). A ideia é que um aglomerado de células
cerebrais representa alguma característica ambiental, pois, em condições ideais, ele
é ativado somente quando aquela característica está presente, e, assim, acompanha
a sua presença (MIGUENS, 2003a). Desde que não há espaço aqui para considerar
ambos os temas, vamos, portanto, focar sobre a consciência, que é amplamente
sentida como aquela que representa o maior desafio para o fisicalismo.

3 O DUALISMO DE PROPRIEDADES
Um dos argumentos mais conhecidos para uma visão da consciência
dualista da propriedade é o seguinte. Se o fisicalismo da propriedade é verdadeiro,
então os fatos físicos são todos os fatos que há (um fato físico é um fato sobre
propriedades físicas). Assim, se alguém conhecesse todos os fatos físicos acerca
de uma criatura, então conheceria todos os fatos que há para saber sobre ela. No
entanto, prossegue o argumento, não é assim, já que os fatos físicos não iriam dizer
o como eram as experiências da criatura. Podemos saber tudo sobre a neurologia
de morcegos, mas nós não saberíamos como é ser um morcego, sentindo o mundo
por ecolocalização, em vez da visão (NAGEL, 2005). Assim, estes fatos não são os
físicos, portanto, o fisicalismo é falso.

A afirmação clássica deste argumento foi elaborada por Frank Jackson,
que o denominou de o argumento do conhecimento (JACKSON, 1982, 2010;
NAGEL, 2005). Jackson oferece o exemplo de Maria, que fora confinada desde o

85
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

nascimento a um quarto preto-e-branco e nunca viu cores. Maria, no entanto, fez


um estudo detalhado da neurociência da visão de cores e conhece todos os fatos
físicos sobre o assunto, até o último detalhe. No entanto, Jackson argumenta, ela
não sabe tudo sobre a visão de cores: ela não sabe como seria ver cores, e, portanto,
aprenderia algo novo sobre a visão de cores se ela tivesse que deixar seu quarto e
experienciasse cores por si mesma. Portanto, os fatos sobre a sensação fenomenal
das experiências de cores não são fatos físicos. (JACKSON, 2010; DIAS, 2005).

Uma literatura grande e complexa tem sido desenvolvida em torno deste


argumento. Existem duas linhas amplas de resposta. A primeira questiona a
premissa de que Maria não sabe como seria ver cores. Afinal, ainda estamos muito
longe de conhecer todos os fatos físicos acerca de visão de cores. Como podemos
ter certeza o que uma pessoa na situação de Maria saberia ou não saberia? (No
passado muitas pessoas pensavam que os processos orgânicos, tais como a cura
e a reprodução, nunca poderiam ser entendidos em termos puramente físicos.) A
segunda linha de resposta admite que Maria iria aprender algo ao sair do quarto,
mas nega que ela iria aprender novos fatos. Existem várias formas de desenvolver
esta resposta. Uma sugestão é que ela iria apenas adquirir novos conhecimentos
práticos, habilidades para se lembrar, imaginar, e reconhecer experiências de cores.
Outra sugestão é que ela simplesmente aprenderia novas maneiras de conceituar
fatos que já conhecia. Quando ela tiver experiências de cores por si mesma, ela
vai adquirir novos conceitos, conceitos da sensação dessas experiências, o que ela
poderá aplicar na introspecção. Assim, por exemplo, ela vai ser capaz de pensar
que a experiência de ver uma banana é "amarelada", onde "amarelada" é o conceito
da sensação de uma experiência de ver amarelo. No entanto, é compatível com
isto que as propriedades que esses conceitos se referem são físicas, e que Maria já
conhecia todos os fatos sobre eles, sob diferentes disfarces. Assim, por exemplo, ela
já sabia que as experiências de banana têm a propriedade que ela agora chama de
amarelada, embora ela conceituava este fato de forma diferente, usando conceitos
físicos (JACKSON, 2010; DIAS, 2005). Naturalmente, os defensores do argumento
do conhecimento têm réplicas a estas respostas, e o debate sobre o argumento
continua.

Um segundo argumento importante para o dualismo de propriedade é o


argumento dos zumbis (também conhecido como o argumento da conceptibilidade).
Em linhas gerais, ele se estabelece assim. Podemos claramente imaginar zumbis,
criaturas que são réplicas exatas de nós em todos os seus aspectos físicos, e que
se comportam exatamente como nós, mas cujas experiências não têm sensação
fenomenal para eles ("as luzes estão apagadas no interior", por assim dizer).
Mas se as sensações fenomenais são propriedades físicas, então não deveríamos
ser capazes de fazer isso. Se considerássemos as propriedades físicas básicas
subjacentes em detalhe veríamos que elas eram de fato suficientes para conferir
consciência, e nós não seríamos capazes de imaginar essas propriedades estarem
presentes sem a consciência. Como uma analogia, considere uma câmera. A câmera
tem a propriedade de ser capaz de gravar imagens visuais. Esta propriedade é
física, que existe em virtude da forma das lentes, a composição química do filme, e
assim por diante, e se soubéssemos o suficiente sobre essas propriedades veríamos
que elas eram suficientes para conferir o poder de gravar imagens. Daí que nós
86
TÓPICO 5 | A FILOSOFIA DA MENTE E DA CONSCIÊNCIA

não poderíamos imaginar uma "câmara zumbi", que fosse fisicamente idêntica a
um normal, mas que não pudesse gravar imagens. Se a consciência fosse física, o
mesmo deveria ocorrer com ela (MORGONI, 2013; BRUCE; BARBONE, 2013).

Novamente, há duas linhas amplas de resposta, paralelas àquelas do


argumento do conhecimento. A primeira nega que zumbis sejam claramente
imagináveis, apelando a considerações semelhantes às anteriores (se soubéssemos
todos os fatos físicos sobre a experiência, então talvez nós não fôssemos considerar
imaginável que eles devessem manter-se sem consciência). A segunda questiona se
a imaginabilidade de zumbis acarreta a falsidade do fisicalismo, com o fundamento
de que a imaginação pode nos enganar. Por exemplo, podemos imaginar Clark
Kent estando no quarto e o super-homem não, apesar de Clark Kent e o super-
homem serem uma e a mesma pessoa. Mais uma vez, os defensores do argumento
têm respostas a essas críticas, e uma literatura complexa e muitas vezes altamente
técnica tem se levantado.

Passemos agora a alguns problemas para o dualismo de propriedades. Em


primeiro lugar, pode a doutrina ser reconciliada com a perspectiva naturalista da
ciência? Como mencionamos, a ciência parece no caminho certo para desenvolver
uma imagem elegante do mundo, em que todos os fenômenos podem finalmente
ser explicados em termos de algumas partículas e forças fundamentais. Se o
dualismo da propriedade é verdadeiro, devemos rejeitar este ponto de vista e
aceitar que a consciência não é explicável cientificamente? Em resposta, dualistas
da propriedade podem argumentar que sua visão não nos obriga a rejeitar
nossa ciência fundamental atual, mas apenas expandi-la, reconhecendo novas
características e leis fundamentais. Podemos tratar as sensações fenomenais
como características fundamentais da realidade, ou, como David Chalmers (1999)
sugere, podemos manter que as sensações fenomenais existem em virtude de
propriedades “protofenomenais” mais básicas, as quais estão relacionadas, da
mesma forma que as propriedades físicas de nível superior estão relacionadas com
as propriedades físicas básicas. As novas leis fundamentais irão especificar como
essas propriedades fenomenais ou protofenomenais estão correlacionadas com as
propriedades físicas básicas. A consciência, então, seria explicável em termos desta
ciência básica expandida (MIGUENS, 2001).

Há precedentes deste expandir de nossa concepção sobre as leis e


propriedades fundamentais dessa maneira; aconteceu com o eletromagnetismo
no século XIX. No entanto, alguns escritores percebem a imagem do dualista
como deselegante e contraintuitiva. Eles argumentam que as leis correlacionando
propriedades fenomenais ou protofenomenais com as propriedades físicas básicas
seriam apêndices desajeitados para o conjunto de leis da física básica, "osciladores
nomológicos", como são chamados às vezes. ("Nomológico" significa relativo
a leis.) Além disso, as leis de correlação propostas seriam incomuns, ligando
propriedades físicas básicas extremamente complexas com sensações fenomenais
simples. Tais leis não são como qualquer outra lei fundamental, e nas palavras de
um escritor, elas têm um “cheiro estranho" (SMART, 1959).

87
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

Um segundo problema para o dualismo da propriedade diz respeito ao


papel causal da consciência. (Para as posições dualistas de propriedade sobre o
papel causal da consciência, veja o capítulo 4 de Chalmers, 1999). Parece óbvio
que a sensação fenomenal das experiências de uma pessoa pode afetar seu
comportamento. Por exemplo, a excruciante dor de dente pode causar-me a visita
ao dentista. Mas na perspectiva do dualismo da propriedade, não é claro que isso
seja correto. Porque há fortes evidências de que todos os eventos a nível físico
básico, todas as mudanças em átomos, moléculas, e assim por diante, podem ser
completamente explicados neste nível, em termos de propriedades e leis físicas
básicas. Isso se expressa dizendo que o domínio físico básico é causalmente
fechado. E se assim for, então os movimentos do nosso corpo também podem
ser explicados em termos físicos básicos, uma vez que nossos corpos são
apenas coleções de partículas físicas básicas (SEARLE, 2014). Agora, não resulta
imediatamente disso que a sensação fenomenal não tem qualquer influência
causal. Se elas são propriedades físicas, então elas terão os mesmos poderes causais
que as propriedades físicas básicas subjacentes nas quais são realizadas. Se, no
entanto, elas não são propriedades físicas, mas propriedades extras para além das
propriedades físicas elementares subjacentes, então parece que elas não podem ter
influência dentro de um mundo físico que é causalmente fechado. Se nossas ações
podem ser completamente explicadas somente em termos de propriedades físicas,
então a consciência não tem um papel a desempenhar, se ela não for física. Em
resposta, às vezes é sugerido que, mesmo que nossas ações tenham causas físicas
suficientes, elas também podem ter causas mentais adicionais, que elas podem ser
sobredeterminadas (DE FARIA; SOUZA, 2014). Mas mesmo que assim fosse, ainda
assim nunca precisaríamos apelar à consciência para explicar nossas ações, uma
vez que já teriam ocorrido de qualquer forma, graças às causas físicas por si só.

Este é claramente um problema sério para os dualistas da propriedade.


Há três opções principais abertas para eles. Uma é simplesmente aceitar que as
propriedades fenomenais são inertes. Nesta perspectiva, a consciência é apenas
um subproduto da atividade cerebral, como os gases de escape de um motor, o
qual não tem qualquer efeito sobre o comportamento. Tais propriedades são ditas
como sendo epifenomenais, e a visão de que as sensações fenomenais são deste
tipo é conhecida como epifenomenalismo (LIMA FILHO, 2010). Uma segunda
opção é desafiar a alegação de que o domínio físico básico é causalmente fechado.
Talvez novos poderes causais surgem nos cérebros de criaturas conscientes, que
vão além daqueles dos seus componentes físicos básicos e exercem uma influência
"descendente" no mundo físico. Este ponto de vista é uma forma de emergentismo,
a ideia de que propriedades e poderes causais completamente novos emergem
na medida em que a matéria é organizada em formas cada vez mais complexas.
(LESTIENNE, 2013). A terceira opção implica propor que as propriedades
fenomenais, ou versões rudimentares das mesmas, são encontradas no nível
fundamental da realidade física, nas próprias partículas físicas básicas, que as
partículas subatômicas têm uma pequena centelha de consciência. Esta é uma versão
do pampsiquismo, a visão de que tudo tem propriedades mentais. (STRAWSON et
al., 2006). Ela é compatível com a física básica e o fechamento causal, mas também
dá à consciência um papel causal, uma vez que trata as propriedades fenomenais,
ou protofenomenais, como características essenciais das entidades mencionadas
88
TÓPICO 5 | A FILOSOFIA DA MENTE E DA CONSCIÊNCIA

nas explicações causais dadas pela física básica. (MIGUENS, 2009).

Estas posições não são fáceis de serem defendidas, no entanto. Não há


suporte empírico para negar o fechamento causal. Embora os cientistas estejam
longe de compreender totalmente como o cérebro funciona, eles entendem como
as células cerebrais funcionam, o que as faz disparar, e como o seu disparo afeta
as células vizinhas. E, até agora, não há absolutamente nenhuma evidência
nestes processos de quaisquer intervenções não físicas. E o epifenomenalismo e
o pampsiquismo são perspectivas muito contraintuitivas. Para muitos filósofos
estas dificuldades constituem uma objeção decisiva ao dualismo da propriedade
(SEARLE, 1998).

4 AS ABORDAGENS FISICALISTAS

Passemos agora a algumas abordagens fisicalistas à consciência. Alguns


autores argumentam que, embora a consciência seja física, jamais a explicaremos em
termos físicos. Eles mantêm que há uma lacuna explicativa (explanatory gap) entre
os fatos físicos e os fatos da consciência, a qual nunca se fechará, talvez por causa
das limitações de nossas mentes (KAUFMANN, 1999). A maioria dos fisicalistas,
no entanto, afirma que uma explicação reducionista da consciência é possível. As
teorias mais comuns são de caráter amplamente representacionais, ou seja, elas
tentam explicar a sensação fenomenal da experiência em termos da existência
de estados mentais com determinados tipos de conteúdo representacional. Se
o conteúdo representacional pode por si só ser explicado redutivamente, então
isto nos daria uma explicação reducionista da consciência fenomenal. Claro que,
proporcionando uma explicação redutiva do conteúdo representacional, é um
grande problema em sua própria maneira, mas, como mencionado, existem várias
teorias do conteúdo em circulação, e muitos fisicalistas sentem que a redução
do problema da consciência a um problema de representação constituiria um
progresso significativo. (MIGUENS, 2003a).

As teorias representacionais da consciência dividem-se em dois tipos


gerais. De acordo com aquelas do primeiro tipo, para uma experiência ter uma
sensação fenomenal é simplesmente necessário que tenha certo tipo de conteúdo
representacional. As teorias diferem quanto aos detalhes, mas a maioria concorda
que o tipo de conteúdo relevante é o não conceitual, em que ele tem uma fineza
de conteúdos que supera em muito a nossa capacidade de conceituá-lo. (Pense,
por exemplo, em quantos tons de cor que você pode distinguir.) Assim, nesta
visão, ter uma experiência consciente de um círculo azul é simplesmente ter um
estado mental que representa a presença de um círculo azul em uma maneira não
conceitual de fineza de conteúdo. Isso não quer dizer que se deve realmente estar
percebendo um círculo azul; experiências podem representar erroneamente, como
nos casos de alucinação (ROSA, 2010). Em outras palavras, como sentimos uma
experiência é simplesmente uma questão do que ela representa, as informações
que a mesma carrega sobre o mundo. As teorias deste tipo são conhecidas como

89
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

teorias representacionais da consciência de primeira ordem, ou teorias FOR (da


sigla em inglês – first-order representational theories). (MIGUENS, 2003b).

Um argumento central para a teoria FOR é que quando nos concentramos em


como seriam nossas experiências, não estamos cientes de quaisquer características
intrínsecas das experiências em si mesmas, mas apenas das características das
coisas no mundo que elas representam. Quando nos concentramos em como é
ver um céu azul brilhante, somente estamos cientes do azulado do céu, e não de
quaisquer características intrínsecas da própria experiência. As nossas experiências
são, por assim dizer, transparentes. (HARMAN, 1990).

Os opositores objetam que muitas experiências não têm conteúdo


representacional em absoluto; elas são pura sensação fenomenal. Os exemplos
frequentemente citados são as sensações corporais, tais como dores, coceiras,
e, para dar um exemplo ligeiramente picante, orgasmos. Será que uma dor de
cabeça representa algo? Será que um orgasmo carrega informações? Os teóricos
FOR respondem que essas experiências sim, representam algo, nomeadamente
estados de nossos corpos, dano no caso de dores, outros tipos de mudanças nos
casos de coceiras e orgasmos. Um teórico FOR, por exemplo, descreve orgasmos
como "representações sensoriais de certas mudanças físicas na região genital"
(TYE, 1995, p. 118, tradução nossa). Os teóricos FOR também permitem que
essas representações tipicamente evoquem reações posteriores em nós, tais como
sentimentos de angústia ou prazer, mas eles insistem em que estas são distintas
da experiência em si e não partilham de sua sensação fenomenal. Evidências para
essa visão vêm de pacientes que tiveram uma cirurgia no cérebro para aliviar certo
tipo de dor crônica. Esses pacientes, normalmente, relatam que eles ainda sentem
a dor, mas não se importam mais. A experiência tem a mesma sensação fenomenal,
mas evoca nenhuma reação negativa. A existência de masoquismo, por exemplo,
oferece apoio adicional, experiências que outros acham desagradáveis eliciam
reações positivas ​​em masoquistas.

Em resposta, os oponentes argumentam que, mesmo que todas as


experiências tenham conteúdo representacional, isto não esgota o seu caráter
subjetivo, também estamos cientes das propriedades intrínsecas das nossas
experiências, além das propriedades das coisas que representam, ou seja, as
experiências não são completamente transparentes, como os teóricos FOR afirmam.
Há vários argumentos aqui, a maioria envolvendo casos hipotéticos, onde duas
experiências são sentidas de forma diferente enquanto representam a mesma
coisa. Uma ideia muito discutida é que as experiências visuais de duas pessoas
podem ser invertidas com relação um ao outro, de modo que, por exemplo, as
coisas amarelas produzem em um, experiência que as coisas azuis produzem no
outro, e vice-versa. Tais experiências invertidas, argumenta-se, ainda teriam o
mesmo conteúdo representacional, uma vez que indicaria a presença da mesma
cor no ambiente. Por exemplo, todas as experiências produzidas por bananas
representariam o amarelecimento, mesmo se todas elas não tiverem a mesma
sensação fenomenal. Se isto é certo, então mostraria que a sensação fenomenal não
é simplesmente uma questão de conteúdo representacional (MIGUENS, 2003a).
Novamente os teóricos FOR têm respostas, e há uma vasta literatura aqui, que está
90
TÓPICO 5 | A FILOSOFIA DA MENTE E DA CONSCIÊNCIA

entrelaçada com debates sobre a natureza do próprio conteúdo representacional.


Este debate sobre a transparência da experiência é central na literatura sobre a
consciência.

Passamos agora para o segundo grupo de teorias representacionais, que


introduzem um novo elemento. Para uma experiência ter uma sensação fenomenal,
eles afirmam, ela própria deve ser representada no interior da mente. Ou seja,
ela deve ser acompanhada de um pensamento adicional sobre a mesma ou uma
experiência da mesma, ou, pelo menos, deve estar disponível aos processos que
podem gerar um pensamento sobre ela. Sem este acompanhamento, a experiência
seria não consciente, sem qualquer sensação fenomenal. Pense, por exemplo, de
como é mover as suas pernas quando você anda. Há um sentimento para isso, que
você percebe se prestar atenção nisso, mas que normalmente não é consciente.
Assim, segundo essa visão, ter uma experiência consciente de um círculo azul
envolve dois estados representacionais, um representando a presença de um
círculo azul e outro representando ressentir a presença dessa experiência de um
círculo azul. Este último é dito ser uma representação de ordem superior, uma
representação de uma representação, e teorias deste tipo são conhecidas como
teorias de representação de ordem superior, ou teorias HOR (sigla do inglês –
higher-order representational theories). (ROSA, 2010).

Várias versões da teoria HOR têm sido propostas. O principal ponto de


desacordo entre elas diz respeito à natureza das representações de ordem superior
envolvidas. De acordo com algumas teorias, estas são de caráter perceptual,
temos um mecanismo de varredura (scanning) interno, que gera a percepção de
nossas próprias experiências. Teorias deste tipo são conhecidas como percepção
de ordem superior, ou teorias HOP (do inglês - higher-order perception). De acordo
com outras teorias, as representações de ordem superior são pensamentos; uma
experiência torna-se consciente quando temos um pensamento sobre ela. Este
pensamento não precisa ser em si um pensamento consciente; pode-se ter uma
experiência consciente sem pensar conscientemente sobre a mesma. O pensamento
de ordem superior envolvido será consciente apenas se for acompanhado por um
pensamento adicional sobre o mesmo. Teorias deste tipo são conhecidas como
pensamento de ordem superior, ou teorias HOT (do inglês – higher-order thought).
(MIGUENS, 2005; VAN GULICK, 2012).

Um problema para as teorias HOR é que, se todos os aspectos da nossa


experiência tiverem que ser re-representados para que possam ser conscientes,
então haverá uma reduplicação maciça e desperdiçável de representação mental,
que parece ser implausível. Alguns teóricos HOT respondem que não precisamos
realmente formar um pensamento de ordem superior sobre uma experiência, a fim
de que ela seja consciente, e que é simplesmente suficiente que esteja disposta para
formá-lo. Não está claro, no entanto, se uma mera disposição poderia conferir uma
sensação fenomenal de fato. Um segundo problema concerne infantes e animais
não humanos. Nós assumimos que os infantes e muitos animais têm experiências
conscientes semelhantes às nossas. Mas de acordo com a teoria HOT, a consciência
implica ter pensamentos sobre os próprios estados mentais, e isso exige a posse de
conceitos psicológicos, tais como o da experiência. A teoria HOP também parece
91
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

exigir isso, pelo menos, se as percepções de ordem superior desembocam no pensar


de ordem superior (CARRUTHERS, 2000; MIGUENS, 2005; VAN GULICK,
2012). E é improvável que os infantes e animais satisfaçam esta condição. Há
evidências de que as crianças não desenvolvem conceitos de estado mental até em
torno de três anos de idade, e, com a possível exceção de alguns primatas, animais
não parecem possuí-los também. Mas se assim for, então os infantes e a maioria
dos animais não possuem os recursos necessários para as representações mentais
de ordem superior, e, consequentemente, não têm experiências conscientes. Os
teóricos HOR divergem sobre o fato de se eles deveriam aceitar esta conclusão.

Voltamos, finalmente, para o modelo de consciência dos "rascunhos


múltiplos" (ou "fama-no-cérebro") desenvolvido por Daniel Dennett (1995).
Dennett afirma que a maioria das teorias de consciência, incluindo as fisicalistas,
implicitamente assumem que há uma "sede" no cérebro onde a informação dos
diferentes sentidos é juntada, ordenada e apresentada à percepção consciente,
um pouco como um show em um palco interior. Dennett denomina este local
de o Teatro Cartesiano, já que ele o considera como um resíduo do dualismo
substancial. Ele admite que este ponto de vista é tentador, mas argumenta que é
um tanto mal concebido. Pois, quem deveria supostamente estar assistindo ao show
interior? Isso é contrariado pela evidência empírica, a neuroanatomia não revela
qualquer estrutura para a qual toda a informação sensorial é roteada. A própria
visão de Dennett é que não existe uma única versão canônica da experiência, mas,
em vez disso, várias versões de existência, a qualquer momento, como diferentes
rascunhos de um ensaio acadêmico, cada um sujeito a contínua edição e revisão.
Experiências tornam-se conscientes, não por serem exibidas em um palco interior,
mas por alcançar um nível suficiente de influência dentro do cérebro e, em
particular, ao tornarem-se disponíveis para serem relatadas no discurso. Dennett
fala da consciência como o equivalente neural da fama ou da influência política
(FAGUNDES, 2009).

Esta visão tem afinidades com as abordagens HOR, na medida em que


identifica as experiências conscientes com aquelas que têm certos efeitos em outros
estados mentais. No entanto, a abordagem de Dennett tem um contorno mais
radical, já que ele nega a existência da sensação fenomenal no sentido tradicional.
"Quando você descarta o dualismo cartesiano", escreve ele, "você realmente deve
descartar o espetáculo que ocorreria no Teatro Cartesiano" (DENNETT, 1995, p.
147, tradução nossa). Quando falamos sobre o como é uma experiência, Dennett
argumenta, não estamos nos referindo a alguma propriedade introspectiva dela,
mas simplesmente às reações que ela evoca em nós, os seus efeitos sobre a fala,
memória, expectativas de percepção, estado emocional e outras disposições
comportamentais. Dennett usa vários cenários hipotéticos para motivar este
ponto de vista. Um destes envolve dois provadores de café, Chase e Sanborn,
cujo trabalho é garantir a consistência do gosto de uma determinada marca de
café. Ambos concordam que, apesar de o próprio café não ter mudado, eles já não
desfrutam do seu trabalho. Eles têm diferentes explicações para isso. De acordo
com Chase, o café produz a mesma experiência de sabor como sempre, mas ele já
não gosta dessa experiência. De acordo com Sanborn, algo deu errado com seus
mecanismos de percepção do sabor, e o café já não produz a mesma experiência
92
TÓPICO 5 | A FILOSOFIA DA MENTE E DA CONSCIÊNCIA

de gosto nele. (DENNETT, 1988). Agora, se houvesse um Teatro Cartesiano,


então essas explicações seriam alternativas claras, a primeira correspondendo a
uma mudança após a apresentação do gosto no Teatro, a segunda a uma mudança
antes da apresentação. No entanto, Dennett (1988) sugere que a situação não é tão
simples. Poderíamos ser capazes de decidir entre as explicações em casos extremos;
por exemplo, se Chase não consegue corretamente reidentificar outras bebidas em
testes cegos, então vamos duvidar de sua explicação. Mas, Dennett argumenta,
sempre haverá áreas cinzentas em que é impossível, mesmo em princípio, decidir
se a mudança implica uma diferença de gosto ou em reações da pessoa ao mesmo.
Nós simplesmente não podemos separar o sabor de nossas reações a ele da maneira
que Chase e Sanborn admitem. O sabor do café é constituído pelas reações que o
café desencadeia em nós, e se estas mudaram, então o gosto mudou.

Na visão de Dennett (1988), então, quando falamos sobre como são as nossas
experiências, não estamos nos referindo a algum ingrediente mental misterioso,
que nos é apresentado em um domínio interior privado; em vez disso, estamos
nos referindo apenas às atividades de nossos sistemas sensoriais e seus efeitos
complexos sobre a memória, emoção e comportamento. Assim, não é possível para
o caráter subjetivo das nossas experiências variar sem alguma mudança física, e os
zumbis e a inversão de cores não são concebíveis afinal, apesar de nossas intuições.
Essa visão, que nega que as experiências são objetos internos introspectivos, tem
afinidades com a perspectiva behaviorista descrita anteriormente. Os opositores
acusam Dennett de negar que a consciência existe, mas ele diria que está
simplesmente rejeitando uma concepção profundamente equivocada da mesma.

DICAS

Se você está interessado no estabelecimento da discussão filosófica da consciência


dentro de um contexto científico, recomendamos Teixeira (2005, 2006, 2008) e Gazzaniga,
Ivry e Mangun (2006), que são livros interdisciplinares na neurologia, psicologia e filosofia da
consciência.

93
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

5 CONCLUSÃO: UMA QUESTÃO DE PERSPECTIVA?


Onde acabamos por situar-nos com o problema mente-corpo é, em certa
medida, determinado pelo local onde começamos. Se começarmos com uma
perspectiva de primeira pessoa, enfocando em como seria, subjetivamente,
ter uma mente, então os fenômenos mentais podem parecer profundamente
enigmáticos e resistentes à explicação em termos físicos. Se começarmos a partir
de uma perspectiva de terceira pessoa, por outro lado, e vermos os seres humanos
como fenômenos naturais complexos, então provavelmente adotaríamos uma
abordagem fisicalista e poderíamos ser tentados a concordar com Dennett (1988)
em negar a existência de sensações fenomenais introspectivas. Muitos filósofos
têm a esperança em reconciliar essas perspectivas através do desenvolvimento
de uma teoria que explique os dados introspectivos em termos físicos. As teorias
FOR e HOR podem ser vistas como exemplos disso. Mas, pode ser que as duas
perspectivas não poderão ser harmonizadas, e teremos que simplesmente fazer
uma escolha entre elas. De qualquer maneira, os debates são fascinantes, e as
questões levantadas vão ao núcleo da nossa concepção de nós mesmos e de nosso
lugar no universo.

94
RESUMO DO TÓPICO 5
Neste tópico você viu que:

 No passado, muitos filósofos defendiam que nossas mentes não são coisas
físicas, mas substâncias imateriais – almas, que são completamente distintas
dos nossos corpos e poderiam sobreviver a sua morte. Esta visão é conhecida
como dualismo substancial, uma vez que é a visão de que somos feitos de duas
substâncias distintas, a mente e a matéria. Também é conhecido como dualismo
cartesiano, após o filósofo do século XVII René Descarte.

 Hoje em dia pouquíssimos filósofos são dualistas substanciais. Nós agora


sabemos muito mais sobre a dependência da mente no cérebro. Sabemos como
mudanças das substâncias químicas no cérebro podem afetar nossas mentes, e
como a lesão cerebral e doenças podem danificá-la.

 Se o dualismo substancial é falso, então estados mentais, pensamentos,


sentimentos, experiências, e assim por diante são estados do corpo. Mas que
tipo de estados? Uma resposta comum em torno do meio do século XX foi a de
que estes são disposições comportamentais.

 Em resposta aos problemas com o behaviorismo, muitos filósofos voltaram-se


para uma visão diferente, segundo a qual os estados mentais são estados do
cérebro, identificado por suas distintivas causas e efeitos, seus papéis causais.

 Tal como o dualismo substancial, a teoria da identidade faz justiça à ideia de


que os estados mentais são as causas internas do comportamento, mas como o
behaviorismo não trata a mente como uma entidade não física, mantendo assim
a promessa de uma explicação científica para os fenômenos mentais.

 Conteúdo e consciência são o foco do novo problema mente-corpo.


Subjetivamente, sabemos que temos estados mentais com conteúdo e sensação,
mas olhando para nós mesmos a partir da perspectiva de terceira pessoa, como
seres físicos, é difícil ver como isso pode ser.

 Resolver o novo problema mente-corpo envolveria fornecer explicações


semelhantes ao conteúdo e à sensação/sentir, mostrando como a sua existência
pode ser explicada em termos de propriedades mais básicas e menos misteriosas,
ou perguntar se o conteúdo e a sensação são propriedades físicas.

 A alegação de que todas as propriedades são físicas casa-se com a afirmação de


que tudo é redutivamente explicável em
​​ termos físicos básicos.

 Um dos argumentos mais conhecidos para uma visão da consciência dualista da


propriedade é o seguinte. Se o fisicalismo da propriedade é verdadeiro, então

95
os fatos físicos são todos os fatos que há. No entanto não é assim, já que os fatos
físicos não iriam dizer o como eram as experiências da criatura.

 A afirmação clássica deste argumento foi elaborada por Frank Jackson, que
o denominou de argumento do conhecimento. Um segundo argumento
importante para o dualismo de propriedade é o argumento dos zumbis.

 Alguns autores argumentam que, embora a consciência seja física, jamais


explicá-la-emos em termos físicos. Eles mantêm que há uma lacuna explicativa
(explanatory gap) entre os fatos físicos e os fatos da consciência.

 A maioria dos fisicalistas, no entanto, afirmam que uma explicação reducionista


da consciência é possível.
 As teorias representacionais da consciência dividem-se em dois tipos gerais. As
teorias representacionais da consciência de primeira ordem, ou teorias FOR, e as
teorias de representação de ordem superior, ou teorias HOR.

 O modelo de consciência dos “rascunhos múltiplos”, proposto por Dennett, é


que não existe uma única versão canônica da experiência, mas, em vez disso,
várias versões de existência, a qualquer momento, como diferentes rascunhos
de um ensaio acadêmico, cada um sujeito a contínua edição e revisão.

96
AUTOATIVIDADE

Uma resposta comum no século XX ao dualismo substancial é que os


estados mentais são disposições comportamentais. Explique o que são estas
disposições comportamentais e porque as mesmas seriam um contraponto ao
dualismo substancial.

97
98
UNIDADE 1
TÓPICO 6

A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE


PESSOAL

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos nos concentrar em outra questão central da investigação
filosófica, o self e a identidade pessoal.

A proposta será, como o fizemos nos tópicos anteriores, primeiro enquadrar


o campo de onde surgem estas questões, depois apresentar as perguntas coerentes
a uma investigação filosófica.

Então focaremos em dois temas principais, o problema self-corpo e a


questão da identidade pessoal e sua continuidade ou sua durabilidade. Para
cada um destes temas vamos descrever os argumentos filosóficos vigentes e suas
respectivas críticas ou contra-argumentos.

2 SELVES E PESSOAS
Filósofos são descritos, e descrevem-se, como quem oferece teorias do
self (o “Eu”) e da identidade pessoal. Pode-se perguntar: sobre o que são essas
teorias? Precisamos selecionar os objetos a que tais questões dizem respeito,
para que possamos, pelo menos, tentar testar as teorias. Podemos começar pela
divisão do que está no mundo em três amplas categorias, tendo em mente que
uma implicação de alguma teoria filosófica a ser considerada aqui seria que a lista
exposta é excessivamente restrita. A lista, todavia, fornece uma forma útil para a
discussão, seja qual for o resultado final.

A categoria mais ampla é aquela que poderíamos chamar de as coisas


puramente físicas. Exemplos são: a árvore em seu jardim, o ar, a terra, e assim por
diante. Poderíamos dizer que esta categoria é a categoria de coisas com propriedades
físicas e que, consideradas em si mesmas, não possuem quaisquer propriedades
psicológicas. Dentro desta categoria há uma variação enorme em tamanho, desde
as muito pequenas, as partículas subatômicas individuais, àquelas muito grandes,
um objeto como o Sol. Neste grupo, no sentido em que pretendemos, incluem-se
objetos inanimados e também as plantas e os organismos mais simples.

99
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

ATENCAO

Ao definir uma categoria de coisa em termos de suas propriedades de modo


geral, devemos ser cautelosos. Assim, considere o caderno de estudos que você está lendo.
Pensamos que poderíamos considerar este livro uma coisa física, e, portanto, algo que pertence
à primeira categoria, altamente generalista. Mas, por ser um livro, possui o que podemos chamar
de propriedades semânticas, ele diz coisas, ou contém características que dizem coisas. Dizer
coisas não é em si mesmo, em nenhum entendimento comum, uma propriedade puramente
física. Isto indica que considera-se unicamente como tendo propriedades físicas apenas na
medida em que é considerado em si mesmo. Os traços semânticos pertencem a ele em virtude
de sua relação com as pessoas que o escreveram e a linguagem que os mesmos possuem.

A segunda categoria, bem menor, compreende objetos que, naturalmente,


possuem propriedades físicas, tais como forma, tamanho e peso, mas que também
têm o que nós reconhecemos como características psicológicas, tais como as
capacidades perceptivas e, em amplo aspecto, uma capacidade para agir de modo
ambientalmente dirigido. Todavia, não possuem as capacidades psicológicas
avançadas que nós, seres humanos típicos, possuímos. Exemplos que incluímos
nesta categoria são cães, gatos e outros animais de tamanho médio e grande porte.

Finalmente, há a categoria ainda menor de criaturas, como nós. Nós


temos (ou aparentamos ter) propriedades físicas, e nós compartilhamos as
capacidades psicológicas básicas possuídas por animais comuns, mas também,
pelo menos caracteristicamente, possuímos uma série de capacidades psicológicas
consideravelmente mais avançadas, incluindo a habilidade de pensar, imaginar,
raciocinar, lembrar, desenvolver teorias e resolver problemas intelectuais.
Podemos pensar sobre objetos individuais em nosso ambiente e determinar
que tipos de objetos são. Em particular, podemos pensar em uma variedade de
maneiras sobre nós mesmos, e nos reconhecermos como criaturas exatamente com
esta capacidade, a capacidade, como poderíamos dizer, para o autoconhecimento.
É útil ter uma forma abreviada de expressar esta série ampla e vagamente
especificada de capacidades psicológicas avançadas. Vamos simplesmente chamar
esses poderes avançados de “autoconsciência”. Podemos agora dizer que quando
filósofos discutem o tema do Self e da identidade pessoal, eles estão teorizando
sobre aspectos das entidades autoconscientes.

Duas ressalvas precisam ser ditas neste momento. Podemos pensar que
sabemos que apenas nós, seres humanos, somos autoconscientes, mas devemos
ser cautelosos sobre a exclusão de todas as outras criaturas. O estudo cuidadoso de
outros animais está em sua infância. Em segundo lugar, não devemos assumir que
a terceira categoria pode ser claramente distinguida da segunda. Criaturas que
não são totalmente autoconscientes podem chegar muito próximas a isso!

De qualquer modo, embora possa ser prematuro, dada a imprecisão das


condições que o termo "autoconsciente" estabelece, há uma tentação para selecionar
um substantivo para representar as coisas que são autoconscientes. Alguns filósofos
100
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL

usam o termo "self" e por isso formulam perguntas sobre a natureza de um self ou
dos selves. Outros empregam o termo "pessoa". Vamos, a partir de agora, utilizar
os dois substantivos de modo intercambiável.

Há três aspectos desses substantivos que precisamos notar imediatamente.


O primeiro é que, como inicialmente introduzidos, eles se aplicam não a algum
tipo de objeto especial que faz parte de nós (como, talvez, por vezes, assume-se
que a palavra "self" faz), mas sim a nós, como um todo complexo. Você é um self,
assim como você é uma pessoa. Isto contrasta com o termo "mente"; você não é
uma mente, em vez disso, você tem uma mente. Falar sobre a mente é, portanto,
falar sobre alguns aspectos restritos de você.

E
IMPORTANT

Há um possível contraste entre o termo “pessoa” e o termo “self”. Não é realmente


uma questão de disputa que cada um de nós é uma pessoa. O termo “pessoa” apenas se aplica
a nós. Assim, podemos testar qualquer reivindicação sobre pessoas perguntando se a alegação
se aplica a cada um de nós. Em contraste, o termo “self” é por vezes utilizado de um modo
técnico, o que significa que não é algo automático que cada um de nós é um self. Um exemplo
de alguém que o define de tal maneira é Galen Strawson (2009). Ele diria mais ou menos
assim: vou restringir a mim mesmo ao caso humano e pressupor que se alguma coisa deve
ser tomada como um self então deve ser um sujeito de experiência e deve ser não idêntico
com um ser humano considerado como um todo. Tal definição é, naturalmente, perfeitamente
legítima, embora não estamos adotando tal uso do “mim mesmo”. Aqueles que assumem tal
posição enfrentam duas perguntas: Por que supor que há selves neste sentido? E, por que estar
interessado nessa noção?

Segundo, uma vez que você é um self é uma pessoa, podemos dizer que a
coisa que você discerne quando usa a palavra "eu" é o self ou a pessoa que você
é. Daí a pergunta: o que é um self ou uma pessoa? Pode ser formulada por você
nestas palavras: Que tipo de coisa sou eu? Que natureza eu tenho?

Em terceiro lugar, a maneira como nós introduzimos ou explicamos esses


substantivos não está supondo de modo algum que estes substantivos expressam
ou discernem o que nós somos fundamentalmente ou basicamente. Considere esta
analogia. A frase substantiva "estudantes de Filosofia (ou Teologia)" se aplica a
você e a nós que estamos estudando este material; aquele substantivo complexo
exprime certa condição à qual nos enquadramos, o que significa dizer que somos
todos estudantes de Filosofia. Mas, mesmo que você seja um estudante de Filosofia,
se alguém perguntar que tipo de coisa você é fundamentalmente? Não diríamos
"um estudante de Filosofia", provavelmente diríamos um ser humano. Isto está,

101
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

sem dúvida, ligado ao fato de que você poderia deixar de ser um estudante de
Filosofia, enquanto que, sem dúvida, permaneceria na existência. Portanto, isso
dificilmente equivaleria ao que você é fundamentalmente. Assim, embora fique
acordado que nós somos selves e pessoas, como esses termos foram interpretados,
isso não significa que nós devemos dizer que o que fundamentalmente somos é
um self ou uma pessoa. Talvez nós somos fundamentalmente um tipo diferente de
coisa que, dada a forma como nos desenvolvemos, evoluímos em selves ou pessoas.
A introdução e a aplicação a nós desses substantivos não resolvem a questão de
saber o que somos, ou que natureza fundamentalmente nós temos.

Isso conduz a uma pergunta: quando os filósofos levantam questões sobre


selves ou sobre o que eles chamam de identidade pessoal, será que estão levantando
questões sobre nós, sobre nós mesmos, as coisas que se tornaram selves e pessoas,
ou eles estão levantando questões sobre nós apenas na medida em que nós nos
qualificamos como selves e como pessoas, ou talvez, como se poderia dizer, sobre a
classe de selves e pessoas? Esta é uma questão importante, mas protelaria muito o
processo se fôssemos discutir aqui. Em vez disso, vamos afirmar dogmaticamente
que pensamos que a resposta correta é que eles estão levantando questões sobre
nós, sobre a natureza que nós fundamentalmente temos. A razão para dizer isto
é que os filósofos expressam suas respostas em reivindicações sobre si mesmos,
e também argumentam sobre a verdade das alegações sobre selves (e pessoas),
verificando se as mesmas se aplicam a si mesmos.

3 ALGUMAS PERGUNTAS
Se estamos interessados ​​em determinar a natureza de um tipo de objeto,
neste caso, o tipo de objeto que nós somos, que tipo de questões necessitam ser
levantadas? Quero me concentrar em duas questões muito básicas. Em primeiro
lugar, para qualquer tipo de coisa, uma questão relevante para estabelecer sua
natureza seria perguntar: do que esses objetos consistem? Quais são os elementos
que compõem o objeto? A forma em que esta questão é habitualmente levantada
em conexão com selves parte do pressuposto de que cada um de nós tem um
corpo, um corpo que está intimamente relacionado com ele ou ela. Concedendo
esse pressuposto, a questão fundamental é: há outras partes para mim além
do meu corpo? Chamamos essa questão de o “problema” self-corpo. Mas uma
segunda questão fundamental para perguntar ao tentar caracterizar a natureza
de uma entidade é o que é necessário ou está essencialmente envolvido em uma
coisa dessa espécie existindo ao longo do tempo, ou seja, a sua continuidade.
Este tipo de problema é com que o problema da identidade pessoal lida: o que é
necessário para coisas do tipo que somos persistir? Um aspecto da divisão é que a
segunda questão refere-se à existência ao longo do tempo, (às vezes chamada de

102
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL

uma questão diacrônica) enquanto que a primeira relaciona-se com quais partes
ou constituintes que o objeto possui a qualquer momento (às vezes chamado de
uma questão sincrônica). Não seria, naturalmente, correto estabelecer uma linha
divisória nítida entre essas duas questões. Deve haver alguma conexão entre o
que ou no que consiste um self, do que é feito, e o que é necessário para que possa
continuar a existir ao longo do tempo. No entanto, facilita dividir o debate nessas
duas questões principais.

Os filósofos têm também levantado uma terceira questão sobre os selves:


pode qualquer coisa informativa e interessante ser dita sobre as condições para
ser uma pessoa ou um self? Por exemplo, deve uma pessoa ou self ser uma coisa
física? Há limites para quais tipos de experiência alguma coisa deve ter se for uma
pessoa ou um self? Aqui, há questões interessantes e muito debatidas, mas vamos
nos limitar às duas primeiras.

DICAS

Para uma discussão aprofundada de algumas destas questões, ver Cassam (1999),
Galvão (2013) e Miguens (2001). Veja também Souza e Gomes (2005) para uma abordagem
histórica das investigações do Self.

4 O PROBLEMA SELF-CORPO

Tomemos um caso particular; chamemos a pessoa ou o self (um de nós) de


P, e chamemos o corpo de P C. Nós podemos perguntar: como é o P relacionado ao
C? A questão fundamental é: existem partes do P que não são partes do C? Há uma
série de possíveis maneiras de pensar sobre a relação entre as partes C e as partes
do P, mas eu quero apresentar o debate, pelo menos inicialmente, como entre dois
pontos de vista. O primeiro diz que não há partes do C que sejam partes do P. O
segundo diz que não há partes do P diferentes das partes do C, e, além disso, cada
parte do C é uma parte do P. A primeira perspectiva, com efeito, identifica P, o self
ou a pessoa, como algo distinto do corpo de P. A segunda perspectiva sustenta que
C é tudo o que há para P. Há, é claro, outros pontos de vista possíveis, mas vamos
ignorá-los nesta introdução.

103
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

De acordo com a primeira perspectiva, que pareceu correta para muitos


filósofos e recebeu parecer favorável em várias tradições religiosas, o P e o C são
coisas distintas. Nada do que é parte do meu corpo é parte de mim. A versão mais
famosa de tal visão é aquela defendida por Descartes. Sua visão é chamada de
Dualismo Cartesiano, em reconhecimento da sua postulação de uma dualidade
de entidades básicas; há corpos (objetos físicos) e também coisas do tipo que uma
pessoa ou um self é. A visão de Descartes (2004) é que o self é um objeto não físico
(ou substância), e o ser não físico não é espacialmente localizado. Na linguagem
religiosa, tais itens são chamados de "almas".

E
IMPORTANT

A visão dualista cartesiana é exposta por Descartes (2004) em Meditações sobre


Filosofia Primeira (comumente chamado As Meditações), especialmente a segunda e a sexta
Meditação, e em O Discurso do Método (1996), parte 5. A crítica devastadora de Arnauld (2006)
ao principal argumento de Descartes está no Fourth Set of Objections (Quarto conjunto de
Objeções), aos quais Descartes respondeu. Veja um bom comentário dessas e outras objeções
em Scribano (2007). Críticas influentes à perspectiva de Descartes são apresentadas em G. Ryle
(2005), especialmente o capítulo 1, e em Peter F. Strawson (1959), no capítulo 3, e em seu artigo
“Yo, mente y cuerpo”, contido em sua coletânea Libertad y Resentimiento (1995), nas páginas
139-150. Veja também o artigo de Faller (2011) para saber mais sobre a visão de Peter Strawson.
A oposição ao dualismo como ontologicamente perdulário é apresentado em Smart (1959).

Há alguma razão para pensar que esta visão dualista é a correta? É óbvio
que um argumento pode sustentar o dualismo apenas se, pelo menos, sustenta a
reivindicação mais fraca de que P e C não são idênticos. Então, queremos fazer a
seguinte pergunta: será que Descartes nos oferece qualquer razão para pensar que
P e C não são idênticos?

A filosofia é cheia de argumentos que pretendem demonstrar que um objeto


x e um objeto y não são a mesmíssima coisa, que não são idênticos. Tais argumentos
trabalham, tentando localizar alguma propriedade P que pode ser acordada que x
tem, mas que y não tem. Se uma tal propriedade pode ser encontrada, então parece
que x e y não podem ser a mesmíssima coisa, não podem ser idênticas, uma vez
que existe alguma diferença entre elas. O filósofo Leibniz formulou o princípio
geral no qual estamos dependendo aqui; se x e y são a única e mesmíssima coisa
(são idênticas), então não pode haver qualquer diferença entre elas. Isso às vezes
é chamado de a Lei de Leibniz (SOARES, 2003). Presumimos que ele está correto.
Será que Descartes localizou qualquer diferença de propriedades genuínas entre
P e C?

Um argumento, que às vezes é dito, que Descartes empregou, surge do


fato de que em um determinado estágio em sua investigação ele tem a certeza de

104
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL

que ele mesmo existe, mas não está certo de que o seu próprio corpo exista. Ele
não havia encontrado uma razão convincente para pensar que ele tinha um corpo.
Nesse contexto, Descartes (2004) pode ser lido como argumentando da seguinte
forma:

1. É certo que eu (P) existo.


2. Não é certo que o meu corpo (C) existe.

Portanto,

3. Não é o caso em que eu (P) seja idêntico ao meu corpo (C).

O pressuposto neste argumento é que as palavras "é certo que ... existe"
expressam uma propriedade de mim, mas algo que não é uma propriedade do
meu corpo (C). Há, portanto, uma diferença entre eles.

É mais ou menos universalmente acordado que, se Descartes (2004) de fato


desse continuidade a tal argumento, o argumento não seria válido. Considere o
seguinte caso paralelo bem conhecido. Olhando para um banco australiano sendo
roubado pelo homem da máscara de ferro, eu posso pensar:

4. É certo que o homem da máscara de ferro é aquele homem.

Mas como eu não sabia quem ele era, eu também poderia pensar:

5. Não é certo que Ned Kelly é aquele homem.

Dadas essas reivindicações, será que eu poderia legitimamente concluir


que o homem da máscara de ferro não é Ned Kelly? É óbvio que eu não poderia
concluir isso, uma vez que, de fato, ele era (ou poderia ser) Ned Kelly. Por que essa
conclusão não segue? A resposta mais simples é que "sendo certo que ... é aquele
homem" não representa uma propriedade que falta ao objeto Ned Kelly, mas que
o homem da máscara de ferro possui. Ao contrário, é que eu aceito a afirmação de
que o homem da máscara de ferro está aqui, mas eu não aceito a alegação de que
Ned Kelly está aqui. A diferença com relação a essas alegações não é uma diferença
entre o Ned Kelly e o homem da máscara de ferro. Em celebração deste erro óbvio,
tais inferências são descritas como cometendo a Falácia do Homem Mascarado,
em que a substituição de designadores idênticos numa afirmação verdadeira pode
levar a uma falsa. Outro exemplo desta falácia é dada por Jack Ritchie (2013), que
nos pede para considerar o argumento de que: 1 – eu conheço o meu pai; 2 – eu
não conheço o homem mascarado; 3 – portanto, o homem mascarado não é o meu
pai. O erro está em concluir, perante a plausibilidade de afirmar que possamos
conceber o pai existindo sem o homem mascarado, que estes seriam de fato
diferentes. É óbvio que o homem mascarado “pode” ser meu pai. Portanto, o erro
está na confusão entre as lacunas do conhecimento e as lacunas no mundo.

105
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

NOTA

Uma excelente introdução para os debates sobre o self é Armstrong (1968),


especialmente os capítulos 1-4.

Voltando ao suposto argumento de Descartes (2004), podemos ver que a


diferença entre (1), “É certo que eu (P) existo”, e (2), “Não é certo que o meu corpo
(C) existe”, vistas acima, não representa uma diferença entre eu e o meu corpo.
É, na verdade, uma diferença entre a minha atitude para com uma reivindicação
explicitamente sobre eu mesmo e a mesma alegação explicitamente sobre o meu
corpo.

Descartes (2004) tem um segundo argumento, apresentado na sexta


Meditação. A conclusão de que P não é idêntico a C, supostamente segue a partir
de dois alegados contrastes entre P e C. Os dois contrastes são:

1. P é essencialmente uma coisa pensante, ao passo que,


2. C não é essencialmente uma coisa pensante.

Além disso,

3. C é essencialmente uma coisa extensa, ao passo que,


4. P não é essencialmente uma coisa extensa.

O que essas reivindicações, que empregam a noção de características


"essenciais", querem dizer? A definição de "x é essencialmente F" e, necessariamente,
se x existe, então x é F. Uma propriedade essencial de um indivíduo é aquela
que esse indivíduo necessita ter (supondo que ele de fato exista). Parece que esta
noção é totalmente algo do senso comum. Por exemplo, é difícil supor que minha
gravata poderia, sob quaisquer circunstâncias, ter sido um número primo. Se isso
for impossível, então minha gravata não é essencialmente um número primo. Por
outro lado, minha gravata poderia ter pertencido a outra pessoa; por isso não é
essencialmente minha, embora ocorra que agora é minha. Uma vez que o termo
"propriedade essencial" seja técnico, não parece haver nada de misterioso sobre a
ideia de propriedades essenciais. Deixando de lado, no momento, se as premissas
são verdadeiras, devemos contar o argumento como válido e não falacioso?
Opiniões podem diferir aqui, mas perante o mesmo, se um objeto é essencialmente
F ou não, é uma questão da maneira que o objeto é, e não depende de como o
objeto é descrito. Se assim for, então, se um objeto x é essencialmente F e um objeto
y não é essencialmente F, então x e y não são uma e a mesma coisa.

A questão, então, é se Descartes tem boas razões para contrastar as


106
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL

propriedades essenciais de P e C. Curiosamente, as afirmações sobre C parecem


plausíveis. A fim de que C exista, este precisa ocupar espaço, e parece que C não
é essencialmente uma coisa pensante. Alguns poderiam dizer que C não é o tipo
de coisa que pensa em absoluto; no entanto, se permitirmos que C pudesse pensar
não parece que, para existir, ele necessitasse pensar. Assim, Descartes está correto
nessas duas afirmações sobre C. Em contrapartida, as duas afirmações sobre si
mesmo (sobre P) são questionáveis. Por que Descartes acha que o pensamento é
uma propriedade essencial de si mesmo? Parece óbvio que há períodos em que
ele não está pensando, por exemplo, quando ele estiver nocauteado ou estiver
dormindo profundamente. Mas certamente também parece plausível pensar
que poderia ter nascido tão danificado que ele não poderia pensar em absoluto.
Então, a reivindicação (1) acima é uma que podemos rejeitar. A reivindicação (4)
nega que Descartes tem a propriedade essencial de ser extenso. Como Descartes
saberia disso, antes de determinar sua relação com seu corpo? O raciocínio de
Descartes parece ter sido o de que ele poderia pensar claramente sobre si mesmo
e que não haveria nada que sugerisse que ele deveria ter um corpo. Mas, como
seu contemporâneo Antoine Arnauld apontou, este argumento não é convincente
(COTTINGHAM, 1995). Ele dá o exemplo de triângulos retângulos que antes de
Pitágoras tinham sido facilmente pensados por muitos, sem eles perceberem que o
teorema de Pitágoras se aplica aos mesmos. Esses triângulos são necessariamente
pitagóricos, mas ninguém havia reconhecido isto ou suspeitado antes. Como é que
Descartes sabe que não somos essencialmente encarnados/incorporados, mesmo
que nada sugere a ele que nós somos? O problema com o principal argumento de
Descartes é que as reivindicações sobre si mesmo, e, portanto, sobre os sujeitos em
geral, não são devidamente sustentadas.

Descartes tem um terceiro argumento que vale a pena considerar. Ele


apresenta o argumento em seu livro Discurso do Método (1996), na quinta parte.
Podemos representar o argumento como apoiado nas seguintes premissas:

1. Eu posso fazer F,
2. Nenhuma coisa que não tenha partes para além das partes do corpo pode fazer
F, portanto,
3. Eu não sou idêntico com o meu corpo.

A lógica deste argumento parece impecável. A questão é, novamente, se


todas as premissas são verdadeiras. Os valores para F, dos quais Descartes pensa
que as duas premissas são verdadeiras, são: engajar-se em uma conversação
e compreender a mesma; e resolver problemas em geral. É claro que podemos
entender conversações e resolver problemas, embora não possamos dar qualquer
declaração muito precisa do que somos capazes nestes aspectos. Eu, certamente,
não sou capaz de resolver todos os problemas, nem de compreender todas as
conversações. Mas é muito mais significativo perguntar por que Descartes pensou
que (2) é verdadeiro. Como, poderíamos dizer, que Descartes sabe o que os corpos
são capazes de fazer? Na medida em que Descartes revela seu pensamento parece
que ele foi guiado por um senso do que a tecnologia mais recente (de sua época)
indicava que a matéria era capaz. Esta tecnologia incluía relógios e modelos móveis

107
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

de animais. O escrutínio de tais objetos pode indicar que a matéria não é capaz de
muito, mas a pergunta óbvia deveria ter sido: por que supor que tais objetos físicos
são os únicos que podem revelar do que a matéria é capaz? Talvez, uma linha mais
plausível de pensamento que a de Descartes seria a de que nós somos capazes
de resolver problemas etc., e que aparentemente somos coextensivos com nossos
corpos, por isso alguns pedaços de matéria têm capacidades muito avançadas.
Esta linha de pensamento é em efeito uma prova da existência da extraordinária
matéria chamada de “o sistema nervoso central”.

Assumiu-se que selves ou pessoas têm corpos, mas a questão tem sido se
há qualquer razão para postular quaisquer partes aos selves além de seus corpos.
Haverá tais razões somente se houver razões para pensar que o self não é idêntico
ao corpo daquele self. Acabamos de argumentar que Descartes não nos dá nenhuma
razão para pensar que cada um de nós não é idêntico ao seu corpo. Há, no entanto,
razões do outro lado para pensar que não podemos ser idênticos a algo distinto
de nossos corpos? As razões que têm sido oferecidas pelos filósofos podem ser
divididas em duas classes. Um tipo alega que há algo incoerente sobre a teoria. O
segundo tipo alega que a teoria dualista faz sentido, mas afirma que ela apresenta
outros aspectos ruins.

Quero, inicialmente, esboçar dois supostos problemas do primeiro tipo com


a abordagem dualista. O primeiro é o problema da interação causal. O problema
da interação causal é discutido em John Foster (2010a; 2010b). Em qualquer
perspectiva plausível, segundo a qual os selves tanto controlam seus corpos (e agem
com eles), quanto são afetados por ocorrências corporais (por exemplo, eles sentem
dor como resultado de lesão corporal), há interação causal entre C e P. Como, no
entanto, P não tem, de acordo com o dualismo, nenhuma parte física (e portanto
nenhuma natureza física), parece difícil entender como pode haver essa interação.
Agora, é claro que este argumento recai sobre uma implicação do dualismo que
necessita de inquérito. Mas, é muito menos claro que há quaisquer princípios
sobre a causalidade que descarte com antecedência a própria possibilidade de tal
interação. Não é o suficiente apontar que este é diferente de todos os outros casos
conhecidos de interação causal, pois novos casos podem ser possíveis.

A segunda objeção, que chamaremos de Objeção da Individuação, se


assenta em duas premissas. A primeira é que, se quisermos entender a abordagem
dualista, então precisamos entender a ideia de selves não físicos como objetos ou
entidades. Isso exigirá dar sentido à ideia de que eles podem continuar a existir ao
longo do tempo. O que, por sua vez, exigirá dar sentido à distinção entre um único
self durável e dois selves que existem em sucessão. Também envolve atribuir sentido
à possibilidade de haver dois selves distintos que são qualitativamente o mesmo. A
segunda premissa afirma que, dada a natureza não física desses selves postulados,
não há qualquer entendimento disponível. Por que, porém, esta afirmação poderia
estar correta? Dois pontos são analisados. O primeiro é que nós não temos nenhuma
concepção de como dizer qual é o caso com os selves não físicos. Há, por exemplo,
um único e durável self ou dois em rápida sucessão? Nós não podemos dizer. Em
segundo lugar, salienta-se que a nossa compreensão dessas possibilidades, por
exemplo, com cadeiras ou malas, depende essencialmente da ideia de ocupação
108
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL

do espaço. Assim, há sentido na ideia de duas malas qualitativamente idênticas,


porque elas podem ocupar espaços diferentes. Esta compreensão espacial não está
disponível com selves não físicos. No entanto, nenhum destes pontos é uma base
segura para alegar uma incoerência. A impossibilidade de saber qual possibilidade
ocorreu não significa que não possamos atribuir sentido à distinção. Isto também
não mostra qualquer ininteligibilidade que os fundamentos para a compreensão
de um contraste em um caso não estejam disponíveis em outro. Talvez outros
fundamentos estão disponíveis, ou, talvez, a conjectura é simplesmente
primitivamente inteligível.

Estas acusações supostamente eram aquelas consideradas, em certo sentido,


como a priori. Outro estilo de objeção alega não haver falhas a priori no dualismo,
mas assinala que, postular que cada um de nós é composto de algo diferente de
nossos corpos, e ainda manter que nós temos corpos, é ontologicamente mais
complexo do que manter que consistimos de nossos corpos. E ser ontologicamente
mais complexo só deve ser aceito se houver razões decisivas para introduzir tais
entidades. Até agora, não encontramos tais razões decisivas. Este estilo de objeções
apela ao que às vezes é chamado de a Navalha de Ockham, que diz que devemos
postular uma estrutura mais complexa de entidades em nossas teorias somente
se houver benefícios explicativos de fazê-lo. Este estilo de argumento tem sido
justamente popular recentemente.

Outro tipo de argumento válido de ser esboçado aqui, que pode ser tratado
como uma tentativa de mostrar que nenhuma parte C é parte de P, deriva de Hume
(2009). Ele é creditado como propondo a chamada Teoria do Feixe, ou Teoria do
Self/Eu como feixe (HACKER, 2010), segundo a qual o self consiste da sequência (ou
feixe) de experiências que esse sujeito desfruta. Desde que eventos do experienciar
não são partes do corpo, se esta afirmação está correta, o sujeito não compartilha
nenhuma parte com o seu corpo. Por que, no entanto, Hume pensa que a sua
proposta dos feixes está correta? Em uma passagem muito famosa ele defende:

De minha parte, quando eu penetro mais intimamente naquilo que


denomino meu eu [meu self], sempre deparo com uma ou outra
percepção particular [...]. Nunca apreendo a mim mesmo, em momento
algum, sem uma percepção, e nunca consigo observar nada que não
seja uma percepção. Quando minhas percepções são suprimidas por
algum tempo, como ocorre no sono profundo, durante todo esse tempo
fico insensível a mim mesmo, e pode-se dizer verdadeiramente que não
existo. (HUME, 2009, p. 284, I, 4, § 6).

Apesar de sua fama e influência, esta passagem não é muito convincente.


Em primeiro lugar, seria um erro grave inferir que o sujeito é constituído por tudo
o que é requerido ao sujeito estar ciente de si mesmo. Vamos concordar que um
sujeito não pode estar ciente de si mesmo, a menos que esteja tendo experiências.
Dificilmente conclui-se disto que o sujeito é as experiências. Isso seria como
argumentar: Eu só posso ver estes átomos se houver um microscópio, portanto
esses átomos são microscópicos. Em segundo lugar, Hume (2009) oferece uma
descrição errônea do que ele encontra na experiência. Quando ele, por exemplo,

109
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

olha em um espelho, ele vê a si mesmo, a coisa mesma que ele é. Por que devemos
aceitar que ele só observa as suas experiências, ao invés de si mesmo? Em terceiro
lugar, Hume afirma como se devêssemos concordar, que se ele não tiver nenhuma
percepção então podemos realmente afirmar que ele não existe. Isto dificilmente
parece ser verdade em absoluto. A nossa concepção de nós mesmos é de coisas que
continuam em estado de inconsciência total. O convite para que acreditemos na
teoria do feixe não é tão atraente.

NOTA

Um diagnóstico muito interessante, com conexões a Hume, da dificuldade de


pensar sobre nós mesmos é dada por T. Nagel (2004), no capítulo 4. Veja também Guzzo
(2012) para uma visão geral da teoria humeana da identidade pessoal.

Não encontramos até agora nenhuma razão para pensar que existem
quaisquer partes de P além das partes de C. É correto inferir que, provavelmente,
P e C são uma e a mesma coisa, todavia são, portanto, idênticos? A resposta, assim
cremos, é "não". Para ver como essa inferência pode estar errada, precisamos
considerar um caso intrigante que tem sido de foco central na metafísica recente.
Considere-se uma estátua de Einstein que você fez há alguns dias. Vamos chamar
essa estátua de EE (abreviação de Estátua de Einstein). Para fazer a estátua você
pegou um pedaço de argila (chamaremos de A) e a moldou (VIANA, 2010). No
momento temos EE e A. Qual é a relação entre esses objetos? Nós, inicialmente,
não temos a sensação de que eles não sejam idênticos, mas na medida em que
nós pensamos sobre eles parece que passamos a vê-los de forma diferente. Assim,
podemos dizer que EE foi criado em t (tempo específico), ao passo que A foi criado
muito antes. Também aceitamos que você pode destruir EE sem destruir A. Na
medida em que pensamos sobre eles, parece que creditamos diferentes histórias de
vida à EE e à A. Mas isso cria problemas para pensarmos neles como o mesmíssimo
item, como o único e o mesmo. Parece haver diferenças. Se concluirmos que A
não é idêntico à EE nós não pensaríamos que há algo a mais no EE do que A.
Como poderíamos dizer: EE apenas consiste em A. Uma maneira popular de
expressar esta relação é dizer que A constitui EE. Para todos os argumentos até
agora considerados, então, pode ser que C constitui P, sem ser idêntico ao P. Esta
questão é completamente instável, mas não pode ser avançada aqui. É necessário
introduzir agora o debate sobre selves (ou pessoas) ao longo do tempo.

110
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL

UNI

Um candidato elegante para a mesma relação é fornecido por Kripke (2012). Ele
nos pede para considerar uma árvore a partir da qual todos os ramos foram desbastados,
deixando apenas, podemos supor, o tronco. Qual é a relação entre o tronco e a árvore? Na
cena proposta no momento, não há partes da árvore que não sejam também parte do tronco,
mas isso significa que a árvore é o tronco? Dificilmente, porque parece haver diferenças entre
o tronco e a árvore. Por exemplo, uma vez que o desbastamento cessar a árvore consistirá em
parte das folhas, enquanto que o tronco nunca vai consistir das folhas. Esta diferença parece
significar que devemos pensar no tronco como constituindo a árvore em um período, mas
não sendo idêntico à árvore. Este debate metafísico geral pode ser rastreado pela leitura de
Wiggins (2001).

5 A IDENTIDADE PESSOAL
As coisas do tipo que somos não são, caracteristicamente, de curta duração.
Nós persistimos ao longo do tempo (comumente cerca de 70-80 anos) e assim
temos histórias. A pergunta é: podemos dizer de uma maneira informativa o
que é essencial e suficiente para a nossa persistência, para nossa durabilidade? A
maneira de pensarmos nesse problema é perceber que ele envolve três aspectos em
sua formulação. O primeiro elemento é a ideia de possíveis formas que o mundo
possa desenvolver. Suponha que P está de pé em um campo. Uma coisa que pode
acontecer é que uma bomba caia ao lado de P e o corpo de P se desintegra. Outra
possibilidade é que a bomba caia, mas não exploda, e P permanece de pé. Estas
são apenas algumas das formas possíveis em que o mundo pode desenvolver.
Mas, a segunda ideia é que algumas formas constituem a permanência de P
na existência, enquanto outras constituem a saída de P da existência. Tal como
previsto, o primeiro desenvolvimento presumivelmente resulta no cessar de
existir de P, enquanto que a segunda possibilidade resulta na permanência de P
na existência. O terceiro elemento é o objetivo de especificar de forma informativa
quais possibilidades portam criaturas como P com elas e quais não o fazem.
Estes princípios informativos sobre nossas condições de persistência às vezes são
chamados de Critérios de Identidade Pessoal (COSTA, 2002; MIGUENS, 2001;
VIANA, 2010; GALVÃO, 2013). Para que isso seja informativo, a ideia é especificar
as possibilidades de uma forma que não as escolheremos em termos do veredicto.
Nós podemos, obviamente, dizer que as possibilidades em que P sobrevive são as
que constituem a permanência de P na existência. Porém, será que podemos dizer
de forma informativa quais são estas?

111
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

DICAS

Para ter uma visão mais panorâmica sobre a questão da Identidade pessoal, veja
Galvão (2013), Miguens (2001), Viana (2007) e Bonjour e Baker (2010). Para aprofundar a leitura
sobre a identidade pessoal, leia a obra de H. Noonan (2002). Para ver questões de distinção
entre identidade e constituição, procure em J. Lowe (2002), no capítulo 4, também em D.
Wiggins (2001).

O objetivo consiste em especificar o que é essencial para a sobrevivência das


pessoas ou selves. Como podemos resolver isso? O problema é que nos casos reais
que encontramos, nos quais uma pessoa reconhecidamente sobrevive ao longo do
tempo, pode muito bem haver elementos que não são estritamente necessários para
a pessoa sobreviver. Além disso, pode haver maneiras para as pessoas sobreviverem
que são bastante incomuns, diferente de tudo o que de fato ocorre. A resposta usual
é assumir que temos uma compreensão do que é essencial para a sobrevivência
a qual podemos acessar ao sermos solicitados a considerar e dar veredictos em
casos imaginários, nos quais vários elementos, que são comumente presentes,
são excluídos e que podem ser muito diferentes de casos comuns. Imaginar tais
casos e realizar avaliações sobre eles é o que denominamos de engajamento em
experimentos mentais. Agora, pode ser que a nossa capacidade de pensar sobre
nós mesmos e acompanhar a nós mesmos ao longo do tempo não reflete um grau
ou nível de compreensão que nos permite alcançar veredictos confiáveis ​​sobre
tais casos imaginários. Se isso de fato não ocorre, precisamos de outra rota para a
essência da sobrevivência pessoal. Vamos, no entanto, desenvolver o problema da
maneira padrão para começar.

Confrontado com este problema, três direções principais de solução


têm sido tradicionalmente propostas e exploradas. Antes de comentá-las, vale
esclarecer que desde que não encontramos razões para postular partes para nós,
exceto as partes corporais, nossa classificação das principais abordagens ignora as
teorias da persistência do self que assumem que tais partes existem (por exemplo,
as teorias dualistas). Também precisamos salientar que as três categorias de
teoria que empregamos neste tópico são muito amplas e que dentro de cada uma
existem variantes que são bastante diferentes. Dito isto, a primeira destas opções
é conhecida como a Teoria Física, ou Corporal, da identidade pessoal (COSTA,
2002; DAMÁSIO, 2011; WILLIAMS, 2010). A ideia simples é que qualquer self ou
pessoa tem um corpo, que naturalmente se desenvolve ao longo do tempo. Temos,
certamente, um entendimento comum do que é para um corpo manter-se na
existência ao longo do tempo. A teoria propõe que uma pessoa P permanecerá na
existência na medida em que o objeto que é o corpo de P permanece na existência.
A ideia é que a pessoa ou o self está ligado necessariamente a esse corpo, e, além
disso, que nada mais é necessário para a pessoa sobreviver além de que aquele
corpo sobreviva.

112
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL

Tal teoria parece plausível porque, em síntese, no mundo como nós o


conhecemos, o princípio parece gerar apenas implicações verdadeiras e aceitáveis.
Por exemplo, o adulto na sua frente é a criança que você viu quase 20 anos atrás, se,
e somente se, o corpo na sua frente é o mesmo corpo como o que você viu quase 20
anos atrás. A proposta assume, certamente com razão, que nós concordamos que
um único corpo pode crescer e se desenvolver ao longo do tempo, de modo que seu
corpo sendo o mesmo não o obriga a que se pareça agora como o era. Nós temos
um entendimento comum de continuidade corporal que a teoria pressupõe. Além
disso, há algo plausível ao pensamento de que a sobrevivência da pessoa não exige
nada mais. Assim, o caráter de uma pessoa pode mudar radicalmente, tal como suas
atitudes e poderes mentais.

Nas discussões sobre a identidade pessoal esta abordagem não tem sido
popular. Qual a razão para isso? Em termos gerais, existem dois tipos de razões.
A discussão de John Locke (1999) sobre a identidade pessoal no século XVII
brilhantemente inaugurou tais argumentos, e como veremos, ele desenvolveu uma
teoria diferente em função destes. O primeiro tipo de razão é que quando se aplica o
método do experimento mental, parece haver casos imaginários, mas em princípio
possíveis, onde o melhor veredicto é que a pessoa e o corpo se separam. Podemos
dividir esses exemplos em dois casos principais. Um tipo é onde supostamente
começamos com uma pessoa e o corpo conectados, mas as coisas se desenvolvem de
tal modo que o corpo permanece, mas a pessoa não o faz. Podemos denominar estes
casos de (C e não P). O outro tipo é onde supostamente as coisas se desenvolvem de
modo que a pessoa ou o self permanece, mas o corpo não o faz. Denominamos estes
casos de (P e não C). A alegação é, então, que os experimentos mentais revelam a
possibilidade de uma dupla dissociação entre a pessoa e o corpo. Agora, há muitos
exemplos sugeridos de ambos os tipos, mas poderemos esboçar apenas alguns.

Aqui estão dois candidatos de casos (C e não P). (1) A pessoa P sofre um
terrível acidente de carro em que o cérebro de P está tão danificado que não há
nenhuma possibilidade do retorno da consciência e, a fortiori (por causa de uma
razão mais forte) nenhuma chance do retorno de qualquer funcionamento mental
mais avançado. O corpo de P, obviamente, ainda está lá. O que aconteceu com P? O
veredicto que parece razoável para muitos filósofos é que desde que o funcionamento
mental está perdido, assim também está a pessoa. Este caso simples se assemelha a
um mais complexo inventado por Shoemaker e Swinburne (1984), que ele chama de
um brain-zap, o caso em que os estados psicológicos e disposições de alguém sejam
totalmente destruídos. (2) Estamos familiarizados com o que pode ser chamado de
um cenário típico do transtorno de personalidade múltipla, ou como o denominamos
atualmente, transtorno dissociativo de identidade. A grosso modo, em t (tempo
específico) há uma pessoa P ligada a um corpo C. Pouco tempo depois, a pessoa
ligada a C nega que ele ou ela é P, tem um caráter completamente contrastante, um
conjunto distinto de memórias e opiniões etc. Então, mais tarde ocorre como se P
voltasse. Qual é a descrição correta de tais casos? Segundo alguns, o veredicto correto
é que, apesar da presença contínua de C há uma sequência de pessoas distintas.
Supondo-se que de acordo com esta explicação a pessoa anteriormente presente,
mas atualmente ausente, não está lá, temos um caso (C e não P).

113
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

NOTA

Locke (1999) antecipou tal caso no livro 2, cap. 27, seção 23, de seu Ensaio sobre
a natureza humana. Já Wilkes (1988), no capítulo 1, desenvolve um argumento em detalhe a
favor do veredicto pluralista. Veja também o artigo de Vidal (2011) para um esboço histórico
desta perspectiva mais cerebral do sujeito. Há uma excelente discussão do problema geral
sobre a identidade pessoal em John Mackie (1988) no capítulo 5, assim como apontamentos
críticos à teoria de Locke. Duas outras excelentes introduções são Harold Noonan (2003) e
Brain Garrett (1998).

E quanto aos casos (P e não C)? Aqui tem de ser suficiente o caso crucial e
muito debatido de um transplante de cérebro (SHOEMAKER; SWINBURNE, 1984;
COSTA, 2005; PARFIT, 2010; ROSS, 2010). Imagine que há uma pessoa P, com um
corpo C1, em um t (tempo específico). Pouco depois, o cérebro de P é removido de
C1 e realojado e religado noutro corpo humano, C2. A suposição normal é que os
nossos estados psicológicos, por exemplo, crenças e memórias, estão baseados no
cérebro. Eles serão, por conseguinte, deslocados transversalmente com o cérebro.
A pergunta é: o que acontece com P? Para muitos, parece óbvio que o veredicto
correto é que P vai com o cérebro. Assim, quando a pessoa no C2 acorda, ele ou
ela vai estar convicto de que eles são P, pois retêm as memórias e crenças etc.
Certamente eles dirão que são de fato P.

A principal dificuldade para a teoria física ou corporal da identidade


pessoal tem sido que parece haver possíveis dissociações entre as pessoas e seus
corpos. No entanto, Locke (1999) ficou impressionado com uma segunda linha de
pensamento. Ele propôs que a noção de uma pessoa deve ser definida da seguinte
forma: um ser pensante inteligente, que tem razão e reflexão e pode considerar-se
a si mesmo como si mesmo, isto é, a mesma coisa pensante em diferentes tempos
e lugares. Para ver em mais detalhes essa definição de Locke, verifique no Ensaio
sobre o entendimento humano, o livro 2, capítulo 27 e seção 9. O argumento de
Locke na seção 9 merece um escrutínio mais de perto. Esta definição de "pessoa"
tem sido considerada por muitos como estando nos trilhos certos. Locke, todavia,
inferiu a partir disto que para uma pessoa permanecer na existência após um
tempo “t” ela deve fixar memórias do que estava acontecendo com ela em t, as
quais um sujeito futuro pudesse recuperar. Em suas palavras, ele sugeriu que:

a identidade pessoal, isto é, a igualdade de um mesmo ser racional,


consiste unicamente na consciência; e, à medida que essa consciência
puder ser estendida para trás a qualquer ação ou pensamento, tão longe
alcançará a identidade ou aquela pessoa. Portanto, qualquer coisa que
tenha a consciência das ações presentes e passadas é a mesma pessoa a
quem elas pertencem. (LOCKE, 2010, p. 277).

Locke assim tornou a noção da memória a noção central na análise da


existência pessoal ao longo do tempo. Ele também achava que os veredictos que

114
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL

tendemos a fazer sobre os experimentos mentais podem também se encaixar com


tal análise.

A abordagem lockeana à análise da sobrevivência pessoal é marcada por


dois aspectos gerais. Em primeiro lugar, ela considera a persistência de uma
pessoa como consistindo na presença de relações psicológicas ao longo do tempo
(no caso de Locke a relação dominante era a memória). Em segundo lugar, opõe-se
à ideia de que uma pessoa está vinculada a qualquer objeto material ou substancial
(como um corpo envolvente). É claro que pode haver teorias que satisfazem estes
dois requisitos gerais e que são diferentes da teoria de Locke. Tais abordagens,
que podemos chamar de teorias neo-lockeanas, têm sido desenvolvidas. As duas
versões mais desenvolvidas são aquelas de Parfit (2010) e Shoemaker e Swinburne
(1984). Seja qual for o veredicto final sobre tais teorias, elas são claramente exemplos
brilhantes e profundos da filosofia construtiva. Elas surgem de dois problemas
gerais no modelo de Locke. O primeiro é o seu foco exclusivo na memória e sua
exigência de uma articulação muito forte de memória. Por que não formular uma
exigência de memória mais fraca? Por que concentrar-se unicamente na memória?
Os neo-lockeanos propuseram uma articulação mais fraca de memória e também
trouxeram outras articulações psicológicas ao longo do tempo para a análise, tal
como o agir sobre uma intenção prévia. Em segundo lugar, há a preocupação
de que as próprias noções psicológicas que estão sendo usadas ​​na análise da
existência pessoal pressupõem a noção de uma pessoa persistente, durável, e assim
tornam quase impossível a sua análise. A exposição clássica dessa preocupação foi
elaborada por Butler (1975). Assim, pode-se sugerir que uma criatura pode lembrar-
se de coisas apenas se ela possuir uma faculdade que, em certo sentido, registra
seu passado. Mas isso requer (ou, pelo menos, nos faz suspeitar que requer) que a
própria noção de memória repousa sobre a ideia anterior de um item persistente
com um passado, e dificilmente pode ser usada para explicá-lo (naturalmente, não
está claro que há qualquer circularidade aqui). A resposta engenhosa sugerida
pelos neo-lockeanos era tentar definir certos conceitos psicológicos artificiais que
se assemelham aos nossos normais, mas que são explicitamente definidos de tal
forma que eles não repousam em qualquer exigência de que seja a mesma pessoa
envolvida. Os termos definidos tendiam a ser expressos usando a expressão "quasi"
(quase), portanto, eles empregaram o termo “quase-memória" (SHOEMAKER,
1963; COSTA, 2002).

115
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

NOTA

Para as definições, veja Parfit (2004, 2010; ROSS, 2010). A ideia geral de tais definições
pode ser ilustrada pelo caso da memória, em conexão com o qual foi desenvolvida pela
primeira vez e tem sido amplamente discutida. A suposição é que, se um único sujeito recorda
a sua história anterior, haverá alguma forma de provável ligação causal entre a recordação e o
evento original recordado. Vamos chamar essa ligação de “L”. Esta é normalmente concebida
como o estabelecimento de um traço neural e sua reativação. Não há nenhuma razão para
que esta ligação L não deva, em alguns casos estranhos, ser transferida de um sujeito ao outro,
por exemplo, por alguma transferência minineural. A quase-memória é então concebida como
presente na medida em que um sujeito posterior esteja relacionado de modo L com uma
ocorrência anterior real. Esta relação não requer que seja o mesmo sujeito. Isso permite uma
definição psicológica, aparentemente, não circular. Claro, nem todo mundo reconhece que
este tipo de definição é satisfatório. (WIGGINS, 2001).

Com esta liberalização analítica e conceitual, o neo-lockeanismo tem


parecido atraente para muitos. Mas uma terceira alternativa tradicional atraiu
alguns. Os neo-lockeanos negaram quaisquer ligações entre pessoas e corpos ou
até mesmo partes de corpos. Por que eles pensaram isso? A resposta é que eles
aceitaram que poderia haver casos (P e não C). No entanto, o caso mais forte e mais
influente foi aquele do transplante de cérebro, e é claro que reconhecidamente tal
possibilidade não compromete alguém a negar todas as conexões entre sujeitos
e todas as partes de seus corpos, uma vez que em tais casos imaginamos que o
cérebro vai com a pessoa. Além disso, há algo muito radical sobre a proposta de
romper todos os laços entre o sujeito ou pessoa e seus corpos. A nova proposta
surgiu de que uma pessoa sobrevive na medida em que há estados psicológicos
conectados e adequados que estão embasados no mesmíssimo objeto natural de
base, que é, claro, o cérebro. De acordo com isso, uma pessoa está ligada a esse
objeto que embasa as conexões psicológicas necessárias. Alguns defensores deste
tipo de visão são John Mackie (1988), capítulo 5, Damásio (2011) e Broens e Milidoni
(2003). Uma versão especialmente interessante é proposta por T. Nagel (2004) no
capítulo 3. É importante perceber que esta proposta não afirma que a pessoa ou
o self é (idêntico ao) o cérebro. Essa sugestão é profundamente inconsistente com
a maneira como pensamos sobre nós mesmos. Por exemplo, você pensa em você
mesmo como tendo um peso e uma aparência, e de fato, com uma extensão no
espaço, bem diferente de qualquer uma destas características que o seu cérebro tem.
A teoria diz que a pessoa só pode sobreviver se os traços mentais são sustentados
por ou embasados em um objeto particular. A pessoa pode então ser considerada
como sendo a coisa total que está organizada em torno desse objeto, mas que pode
estender-se para além dele.

Não se pode dizer que há uma objeção decisiva a esta sugestão. Os neo-
lockeanos objetam que há casos (P e não C) plausíveis que revelam que o cérebro
não é essencial à sobrevivência. Também podemos ponderar sobre o porquê haveria
qualquer necessidade para o modo de embasamento de estados psicológicos (que

116
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL

ocorre ser o modo que de fato nós temos, por exemplo, a preservação em uma
única e duradoura entidade), ser o modo essencial para os selves ou pessoas em
geral.

O debate padrão sobre a identidade pessoal consistia principalmente de


intercâmbios entre pessoas que ocupavam uma dessas três posições. É claro que
estamos simplificando aqui, na maneira que temos feito até agora neste tópico,
ignorando em nossa explicação do debate posições que exigem ontologias além
corpos (e estados mentais). As noções empregadas nas análises concorrentes são,
basicamente, as dos corpos (e partes do corpo) e estados psicológicos. Um caso
foi recentemente desenvolvido para pensarmos que este conjunto de ferramentas
analíticas é excessivamente restrito. O caso começa a partir da percepção de que
onde você está, e, portanto, onde seu corpo está, parece também haver um animal,
em seu e em nosso caso, um animal da variedade humana. Que peso, se houver,
devemos dar a esse objeto ao pensar sobre nós mesmos e o que é necessário para
que possamos continuar na existência? Três pontos se destacam, uma vez que
trazemos o animal (humano) à questão.

O primeiro, podemos alcançar perguntando qual relação deve um neo-


lockeano ou um teórico do cérebro considerar como mantida entre o sujeito ou
pessoa e o animal humano? Parece que, de acordo com as suas teorias, a pessoa e
o animal humano não são idênticos. Considere brevemente a visão neo-lockeana.
Ela aceita que a pessoa pode deixar de existir, mesmo que o corpo permaneça,
desde que o funcionamento mental cesse. No entanto, se o corpo permanece e
ainda há vida, então, presumivelmente, o animal ainda está lá. Isto significa que
o animal não pode ser a pessoa ou self. De acordo com a perspectiva do cérebro, a
pessoa vai com o cérebro, ou pelo menos aquela parte do cérebro que sustenta as
conexões e funções psicológicas. É, no entanto, implausível supor que a remoção
de um cérebro não poderia deixar o animal para trás, especialmente uma vez que
pode ser possível deixar suficiente matéria neural para trás para sustentar a vida.
Assim, uma diferença entre o animal e o self emerge na concepção do cérebro.
Ambos os pontos de vista, então, implicam um contraste pessoa/animal.

Em segundo lugar, se compararmos as propriedades que atribuímos a nós
mesmos e aquelas que atribuímos ao animal humano, há uma semelhança enorme.
O animal é concebido, nasce, entra na sociedade humana, vive uma vida, e morre.
E, nós, certamente, diríamos que as mesmas coisas acontecem a nós, pessoas ou
selves. De fato, no curso da vida real, seria difícil apontar quaisquer eventuais
diferenças entre a pessoa e o animal humano, com base nas quais poderíamos
considerá-los como coisas diferentes.

Em terceiro lugar, há certamente alguma coisa que precisa ser explicada se


o contraste pessoa/animal é removido. Vamos supor que você e o animal humano
onde você está, são coisas diferentes, com diferentes requisitos para permanecer
na existência. Agora, você é, obviamente, dotado mentalmente, mas podemos
perguntar se o animal onde você está também é dotado mentalmente. Em face disto,
a resposta é que ele é dotado mentalmente. Afinal, nós pensamos que os animais,
em geral, possuem estados psicológicos: percepção, emoção, desejo, sensação etc.
117
UNIDADE 1 | FILOSOFIA GERAL E A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

Certamente o animal humano avançado não carece de tais estados, em vez disso,
parece ter estes e outros mais. Animais humanos podem raciocinar, pensar e falar.
Se assim for, então uma visão que diz que o animal é uma coisa e a pessoa ou self
é outra, parece comprometida com a presença no mesmo espaço ao mesmo tempo
de duas coisas que podem pensar, raciocinar e falar. Embora tal consequência não
constitua uma contradição, ela não representa algo que acreditávamos quando
começamos a pensar no problema. Além disso, a suposição padrão na formulação
do problema era que os selves são balizados por suas capacidades psicológicas
avançadas. Verifica-se agora que isso não pode estar certo, uma vez que existem
duas coisas (pelo menos) onde você está que possuem tais propriedades, você e o
animal. Uma nova explicação do que é uma pessoa ou self necessita ser fornecida.
Isso, às vezes, é chamado de o problema das Duas Vidas (PARFIT, 2010; ROSS,
2010; GALVÃO, 2013). Como pode haver duas vidas psicológicas onde você está?

A introdução da noção do animal no debate, com o reconhecimento da


consequência aparentemente paradoxal de adotar o contraste pessoa/animal, e o
reconhecimento adicional das semelhanças óbvias entre a pessoa e o animal, levou
à formulação de uma quarta abordagem ao problema, que tem sido rotulada de
Animalismo (GALVÃO, 2013). Esta, também levou a uma degradação da teoria do
corpo. Não é tanto que o animalismo esteja em oposição à teoria do corpo, como que
não há nenhuma atração evidente para acessar direto ao candidato corporal, exceto
por via do animal. De qualquer modo, essa abordagem propõe que nós, as pessoas
e os selves que nos interessam, são as mesmas coisas que certos animais humanos,
e por isso têm as condições para permanecer na existência de tais animais. Agora,
é um assunto de controvérsia sobre o que são estas condições, em especial no final
da vida. Será que um animal deixa de existir quando morre ou será que permanece
na existência, todavia morto? Sobre isso, podem ser tomados diferentes pontos
de vista. O que parece incontroverso, porém, é que nem a presença de estados
psicológicos, nem a existência de conexões psicológicas ao longo do tempo são
essenciais para um animal sobreviver. Se um animal permanece inteiro e vivo, ele
está lá, mesmo que tenha perdido as suas capacidades psicológicas. Daqui decorre
que, se adotarmos o animalismo devemos dizer o mesmo sobre nós mesmos.
Nossas vidas psicológicas complexas e avançadas nos permitem viver como nós
o fazemos e pensar sobre nós mesmos, mas podemos existir sem uma tal vida
mental.

DICAS

Para apresentações da visão animalista, ver Snowdon (2014), Ayers (2000) e Olson
(1997).

118
TÓPICO 6 | A FILOSOFIA, O SELF E A IDENTIDADE PESSOAL

Contra esta posição animalista as principais objeções serão do mesmo tipo


das que foram levantadas contra a perspectiva do corpo que foram esboçadas
anteriormente, e de fato os mesmos exemplos são usados. Assim, afirma-se que,
embora o animalismo pareça correto, podemos trazer contra ele a existência de
casos imaginários, embora possíveis, em que a pessoa ou o self pode se separar do
animal humano. Novamente, há dois tipos principais de alegadas dissociações,
os casos (A e não P), em que um desenvolvimento deixa o animal, mas remove a
pessoa, e os casos (P e não A), em que a pessoa permanece, mas o animal não. No
início não chegamos a esboçar uma possível resposta a este tipo de argumento,
quando foi interposto contra a teoria do corpo. O que então pode ser dito?

É claro que, se houver uma linha de resposta à perspectiva dos casos


imaginários dos quais a objeção é dependente, deverá ser contra o que é reivindicado
sobre a pessoa ou o self. Pois, nos casos imaginados há pouquíssima dúvida de
que estamos rastreando o animal corretamente. A questão crucial é: estamos
rastreando a pessoa ou o self corretamente? Existem dois lados muito difíceis,
pelo menos, para este aspecto do problema. Primeiro, quando somos tentados a
julgar um caso imaginário que envolve a remoção da pessoa ou a continuação
da pessoa, será que temos a certeza de que o que estamos inicialmente tentados
a dizer realmente representa o pensamos? Em segundo lugar, por que estamos
confiantes de que estamos em posição de julgar o que está acontecendo com a
pessoa ou o self em todos estes casos excepcionais? Considere, por exemplo, neste
ponto o primeiro caso suposto (C e não P), que também funcionaria, se é que de
fato funciona, como um caso (A e não P). Alguém está em um acidente e perde a
sua capacidade de ter estados mentais. Pensamos que a pessoa realmente deixou
de existir, ou será que realmente pensamos que isto representa um terrível acidente
que se abateu sobre a pessoa, digamos, seu avô, que está lá, mas tragicamente e
irremediavelmente ferido? Uma vez que se enfrenta o caso em um quadro realista
da mente, é difícil sentir que temos certeza o suficiente de que a pessoa tenha,
literalmente, desaparecido. O caso mais difícil e influente é o de transplantes de
cérebro. O que acontece nestes casos com a pessoa ou o self? (Para as tentativas dos
animalistas em responder a esta pergunta muito difícil, verifique Snowdon (1991,
2014), Michael Ayers (2000) e Olson (1997), capítulo 3.) Há uma grande variedade
de opções a considerar aqui, mas uma sugestão é que, assim como alguém pode
perder um órgão e doá-lo para outra pessoa, assim também se pode perder esse
órgão que sustenta a atividade mental e doá-lo para outra pessoa. Não poderia ser
esta a maneira correta de pensar sobre este caso?

A principal coisa ao considerar este problema muito difícil é não permitir a


si mesmo formar a convicção de que se sabe a direção geral de uma solução correta,
simplesmente com base em uma amostragem bastante superficial das experiências
mentais padrão. É possível que a solução para o problema do self e da identidade
pessoal seja reconhecer que somos animais autoconscientes e avançados em dotes
mentais, que convencemos a nós mesmos de que temos uma natureza diferente
da do animal. Mas se essa é uma solução defensável, estamos longe de saber se de
fato o é.

119
RESUMO DO TÓPICO 6

Neste tópico você viu que:

 Podemos fazer uma divisão do que está no mundo em três amplas categorias. A
categoria mais ampla é aquela que poderíamos chamar de as coisas puramente
físicas. A segunda categoria, bem menor, compreende objetos que possuem
propriedades físicas, mas que também têm o que nós reconhecemos como
características psicológicas, e, em amplo aspecto, uma capacidade para agir
de modo ambientalmente dirigido. Finalmente, há a categoria ainda menor,
de criaturas como nós. Nós temos propriedades físicas, e compartilhamos as
capacidades psicológicas básicas possuídas por animais comuns, mas também
possuímos uma série de capacidades psicológicas consideravelmente mais
avançadas.

 Podemos chamar essas capacidades avançadas de “autoconsciência”. Quando


filósofos discutem o tema do self e da identidade pessoal, eles estão teorizando
sobre aspectos das entidades autoconscientes.

 Você é um self, assim como você é uma pessoa. Isto contrasta com o termo
“mente”; você não é uma mente, em vez disso, você tem uma mente.

 Uma vez que você é um self e uma pessoa, podemos dizer que a coisa que você
discerne quando você usa a palavra “eu” é o self ou a pessoa que você é.

 A maneira como nós introduzimos ou explicamos esses substantivos não está


supondo de modo algum que estes substantivos expressam ou discernem o que
nós somos fundamentalmente ou basicamente.

 A forma em que esta questão é habitualmente levantada em conexão com selves


parte do pressuposto de que cada um de nós tem um corpo, um corpo que está
intimamente relacionado com ele ou ela.

 Concedendo o pressuposto do self a questão fundamental é: há outras partes para


mim além do meu corpo? Chamamos essa questão – o problema self-corpo. Uma
segunda questão é o que é necessário ou está essencialmente envolvido em uma
coisa dessa espécie existindo ao longo do tempo, ou seja, a sua continuidade.
Esta última é a questão que se refere à identidade pessoal.

 Há uma série de possíveis maneiras de pensar sobre a relação entre as partes


Corpo (C) e as partes Pessoa (P). Duas são as perspectivas analisadas. A primeira
diz que não há partes do C que sejam partes do P. A segunda diz que não há
partes do P diferentes das partes do C, e, além disso, cada parte do C é uma
parte do P.

120
 Assumiu-se que selves ou pessoas têm corpos, mas a questão tem sido se há
qualquer razão para postular quaisquer partes aos selves além de seus corpos.

 As razões que têm sido oferecidas pelos filósofos podem ser divididas em duas
classes. Um tipo alega que há algo incoerente sobre a teoria. O segundo tipo
alega que a teoria dualista faz sentido, mas afirma que ela apresenta outros
aspectos ruins.

 Podemos dizer de uma maneira informativa o que é essencial e suficiente para


a nossa persistência, para nossa durabilidade? A maneira de pensarmos nesse
problema é perceber que ele envolve três aspectos em sua formulação.

 O primeiro elemento é a ideia de possíveis formas que o mundo possa


desenvolver. A segunda ideia é que algumas formas constituem a permanência
de P na existência, enquanto outras constituem a saída de P da existência.
O terceiro elemento é o objetivo de especificar de forma informativa quais
possibilidades portam criaturas como P com elas e quais não o fazem. Estes
princípios informativos sobre nossas condições de persistência às vezes são
chamados de Critérios de Identidade Pessoal.

 Três direções principais de solução têm sido tradicionalmente propostas e


exploradas para o problema da identidade pessoal. A primeira destas opções
é conhecida como a Teoria Física, ou Corporal, da identidade pessoal. A
segunda é a abordagem de Locke, que tornou a noção da memória a noção
central na análise da existência pessoal ao longo do tempo. Esta tem variantes
contemporâneas que são as neo-lockeanas, de Profit, Shoemaker e Swinburne. A
terceira abordagem, de Damásio, John Mackie, entre outros, é que uma pessoa
sobrevive na medida em que há estados psicológicos conectados e adequados
que estão embasados no mesmíssimo objeto natural de base, que é o cérebro.

 A introdução da noção do animal no debate, com o reconhecimento da


consequência aparentemente paradoxal de adotar o contraste pessoa/animal, e
o reconhecimento adicional das semelhanças óbvias entre a pessoa e o animal,
levou à formulação de uma quarta abordagem ao problema, que tem sido
rotulada de Animalismo.

121
AUTOATIVIDADE

David Hume postula uma teoria, a Teoria do Feixe ou Teoria do Self como
feixe, para mostrar que nenhuma parte do Corpo é parte da Pessoa. Descreva
esta teoria de David Hume e os problemas encontrados na mesma.

122
UNIDADE 2

FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS
ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

Nessa unidade vamos:

• conduzir à compreensão e à caracterização da investigação filosófica da


religião;

• apresentar questões filosóficas quanto a diversidade e pluralismo religioso;

• introduzir argumentações filosóficas sobre as concepções últimas e os


argumentos da existência divina.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em seis tópicos e no final de cada um deles você
encontrará atividades que reforçarão o seu aprendizado.

TÓPICO 1 - RELIGIÃO E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO

TÓPICO 2 - A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

TÓPICO 3 - CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA

TÓPICO 4 - ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

TÓPICO 5 - ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

TÓPICO 6 - ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

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UNIDADE 2
TÓPICO 1

RELIGIÃO E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos nos concentrar na proposta de uma introdução à
investigação filosófica da Religião. Para isso, em primeiro lugar, delimitaremos,
de acordo com os nossos propósitos, o conceito de Religião, enquadrando os
elementos centrais que devem constituir tal definição.

A seguir, descreveremos o campo investigativo da Filosofia da Religião,


introduzindo um debate central entre as posições de um realismo e de um não
realismo religioso.

Vamos também sugerir leituras adicionais, e contribuir com seu


conhecimento através de UNIs, assim como nas próprias referências citadas ao
longo do texto, sobre filosofia da religião, para que possa aprofundar e ingressar
de modo mais substancial no modo de pensar filosoficamente sobre os temas
centrais da religião. Nunca esqueça de verificar as referências citadas e buscar ler o
material bibliográfico, artigos e outras obras publicadas pelos autores respectivos.

Finalmente, você poderá ver o resumo dos assuntos deste tópico e fazer a
sua autoatividade.

2 A RELIGIÃO E AS RELIGIÕES DO MUNDO


Sigmund Freud (1856-1939), o fundador da psicanálise e um dos grandes
nomes da investigação psicológica no século XX, escreveu que a religião é
comparável com uma neurose infantil (FREUD, 2014a). Se isso fosse tomado ao pé
da letra, o mundo estaria repleto de quase seis bilhões de indivíduos neuróticos.
Enquanto você lê estas palavras há, a grosso modo, mais de dois bilhões de cristãos,
consistindo de católicos romanos, protestantes e ortodoxos; há mais de um bilhão
e meio de mulçumanos, cerca de oitenta por cento dos quais são sunitas e vinte
por cento xiitas; há mais de um bilhão de hindus; aproximadamente quatrocentos
e oitenta milhões de budistas (theravada e mahayana); cerca de trezentos e cinquenta
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UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

milhões de adeptos às tradições chinesas do confucionismo e do taoísmo; mais ou


menos trezentos milhões de adeptos às tradições religiosas africanas (animismo,
xamanismo etc.); vinte e cinco milhões de sikhs (siquismo); quatorze milhões
de judeus; sete milhões de fé bahá’í; quatro milhões no jainismo, e a lista segue
(dados obtidos estão disponíveis em: <http://www.worldometers.info/world-
population/>. Acesso em: 29 jun. 2015). As tradições religiosas também não são
limitadas às regiões geográficas. As religiões ocidentais migraram ao oriente e
as religiões orientais ao ocidente. Como podemos verificar, por exemplo, países
como o Brasil, uma vez formalmente cristão, agora é um país reconhecidamente
de diversidade religiosa. Ou o caso dos Estados Unidos, e de todas as Américas, ao
menos em parte, em que milhões aderem a diversas tradições orientais e ocidentais
(ECK, 2001; KEATING, 2005; AZEVEDO, 1991). Em termos globais, as pessoas
não religiosas são claramente a minoria, formando cerca de quinze por cento da
população mundial.

Sem dúvida, a religião é praticamente onipresente no mundo humano, no


entanto, a tentativa de oferecer uma definição de religião que consiga captar tudo
o que é assumido como tal é notoriamente difícil. Central a algumas religiões está
a ideia de um deus pessoal e outras entidades espirituais, todavia, para outras
religiões não há deus ou espíritos. Algumas religiões veem a existência pessoal
eterna do indivíduo em uma vida após a morte como primordial para entender
a Realidade Última e como esta sendo muito mais importante do que a existência
terrena temporária. Outros veem o que fazemos nesta vida como fundamental, com
pouca ou nenhuma consideração ao porvir. Outras diferenças entre as religiões
abundam.

Por mais que as religiões sejam tão diversas, vários componentes parecem
ser centrais e comuns para as religiões do mundo: um sistema de crenças, a
interferência de uma realidade transcendente, atitudes humanas quanto a
preocupações últimas, tais como o significado e o propósito. Tendo em conta estes
três elementos, a asserção seguinte, talvez, capta o que a maioria assume como a
essência do conceito de religião: uma religião envolve um sistema de crenças e
práticas centradas principalmente em torno de uma realidade transcendente, quer
pessoais ou impessoais, que fornece significado e propósito último para vida.

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TÓPICO 1 | RELIGIÃO E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO

NOTA

Há muitas definições diferentes de religião na literatura. Dubitavelmente alguma


delas capta tudo sobre as religiões. Como diria Hans Jürgen Greschat: “A palavra ‘religião’
serve para especialistas de diversas disciplinas, embora nem sempre (e nem em todos os
lugares) denomine a mesma coisa. O que um termo quer dizer depende de sua definição.
O esclarecimento de seu significado, pois, deve informar o que caracteriza ‘religião’ – mas
aí está a dificuldade. Embora existam muitas definições de religião (algumas centenas,
presumivelmente) e embora novas definições sejam lançadas permanentemente, até hoje
não se chegou ao resultado esperado. Não há uma definição que não seja rejeitada por, pelo
menos, uma pessoa.” (2005, p. 20). Para uma coleção útil e visão geral de definições de religião,
veja também Taliafierro (1998) nas páginas 21-24.

Embora este Caderno de Estudos não seja um livro sobre as religiões do


mundo, o trabalho na filosofia da religião seria deficiente sem levar em consideração
a diversidade de crenças entre pelo menos as principais tradições religiosas. No
entanto, seria uma tarefa gigantesca incluir todas aquelas que são comumente
consideradas como sendo as principais religiões, por isso uma delimitação faz-se
necessária. Este processo de delimitação não foi fácil, mas vários fatores tornaram
mais manejável do que poderia ter sido.

Em primeiro lugar, desde que estamos escrevendo a partir do mundo


ocidentalizado e mais familiarizado com algumas tradições predominantes, faz
sentido enfatizá-las sobre as outras. Para alguém com um background diferente
e escrevendo a partir de um lugar diferente, outras ênfases seriam apropriadas.
Assim, a ênfase será colocada nas religiões monoteístas do judaísmo, cristianismo
e islamismo.

Historicamente, as tradições monoteístas têm incluído a crença de que


há apenas um deus. Um deus pessoal que é onisciente (tudo sabe), onipotente
(todo-poderoso) e onibenevolente (completamente bom em todos os sentidos), e,
portanto, digno de adoração. Este deus seria o criador e mantenedor do mundo.
Além disso, com frequência é feita uma distinção entre os monoteístas. Há os
teístas, que acreditam que deus é distinto do mundo, todavia ativamente envolvido
no mundo (orientando a história humana, por exemplo, e oferecendo a revelação
divina), há os deístas, que acreditam que deus é distinto do mundo e não está
envolvido ativamente no mundo e há os panenteístas, que acreditam que deus
permeia e é codependente com o mundo.

Em segundo lugar, além das tradições monoteístas, o hinduísmo e o


budismo também têm recebido mais atenção dos filósofos da religião no mundo
ocidental do que outras tradições. A escola de pensamento dentro do hinduísmo
que recebeu a maior atenção é a Advaita Vedanta ("Advaita" é um termo sânscrito
que significa "não dual", e "Vedanta" significa pertencente às escrituras hindus
chamadas de Vedas). A perspectiva de deus, ou Brahman, para aqueles adeptos
127
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

ao Advaita Vedānta, é chamada de panteísmo monista ("monismo" é do termo


grego monus que significa "um" ou "único"; "panteísmo" é do termo grego pan
que significa "todos" e theos significa "deus"). Nesta perspectiva, Brahman é tudo;
Brahman é um; Brahman é todas as coisas. Esta não é a única ou até mesmo a
forma mais proeminente do hinduísmo, há também formas teístas e politeístas
(muitos deuses) do hinduísmo, mas é a forma mais discutida dentro da filosofia da
religião, e por isso irá receber mais atenção, aqui, do que outras formas.

Em terceiro lugar, o processo dialético de apresentar argumentos para


posições, oferecer refutações a essas posições, e dar respostas às refutações (o
processo que iremos seguir neste Caderno de Estudos) tem sido parte integrante
da análise filosófica das religiões monoteístas por muitos séculos. Este também tem
sido o caso com algumas das outras tradições, incluindo o hinduísmo e o budismo.
Assim, tendo em conta estes fatores, juntamente com a tentativa de manter um
foco razoável, a ênfase principal nas páginas que se seguem será sobre as três
tradições monoteístas com alguma atenção dada ao hinduísmo e ao budismo
também. Mesmo que seja feita menção de outras tradições além destas cinco, estas
constituirão a maior parte da discussão.

3 A FILOSOFIA E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO


A filosofia da religião é atualmente um importante campo de estudo, e
a gama de temas abrangidos por ela é considerável. No entanto, o seu escopo é
bastante estreito, pois a filosofia da religião é simplesmente a reflexão filosófica
sobre as ideias religiosas. Os termos "reflexão filosófica" e "ideias religiosas"
precisam de elucidação. "A reflexão filosófica", neste contexto, inclui a análise
cuidadosa das palavras, as razões e evidências para reivindicações, hipóteses e
argumentos. Estas análises, em si mesmas, incluem questões fundamentais sobre
a natureza da realidade (metafísica) e a forma como passamos a conhecer as coisas
(epistemologia).

Em relação a essas questões fundamentais, a filosofia da religião e, de


fato, a própria filosofia tomaram novos rumos nos últimos tempos. A reflexão
filosófica sobre as ideias religiosas vem ocorrendo ao longo dos séculos, até mesmo
milênios, todavia sofreu um revés importante do início a meados do século XX
através do trabalho dos positivistas lógicos. Os positivistas lógicos sustentavam,
entre outras coisas, que para uma declaração ser verdadeira e significativa deveria
ser empiricamente verificável. Como as reivindicações religiosas eram, na maior
parte, tidas como empiricamente inverificáveis, a reflexão filosófica sobre temas
religiosos foi amplamente considerada como um esforço especioso e as ideias
religiosas foram muitas vezes tidas como sem sentido. No entanto, devido
ao trabalho de alguns dos principais filósofos que estavam respondendo ao
positivismo e defendendo a viabilidade filosófica das crenças religiosas, filósofos
como John Hick e Alvin Plantinga, na década de 1970 o campo começou a tomar
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TÓPICO 1 | RELIGIÃO E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO

um rumo significativo. Hoje, a filosofia da religião está prosperando e não é raro


ver periódicos de filosofia, antologias, e monografias dedicadas exclusivamente a
temas religiosos.

E
IMPORTANT

Positivismo Lógico (mais tarde chamado de “empirismo lógico”) é uma posição


filosófica que surgiu a partir de discussões filosóficas em 1920 por um grupo de filósofos
conhecidos como o Círculo de Viena. Os positivistas sustentaram que toda a linguagem
cognitivamente significativa é, em princípio, empiricamente ou formalmente verificável.

Com a frase "ideias religiosas" queremos referir às questões e conceitos


principais que têm sido discutidos e debatidos no interior das tradições religiosas
ao longo dos séculos, incluindo, por exemplo, a existência e a natureza de deus ou
da Realidade Última, as reivindicações de verdade conflitantes entre as diferentes
tradições religiosas, a relação entre ciência e religião, a criação, o nirvana e a
salvação, entre outros temas. É importante notar que estes não são apenas conceitos
abstratos e etéreos discutidos e debatidos entre os teólogos e filósofos da torre de
marfim. Ao contrário, são questões fundamentais na vida e pensamento daqueles
pertencentes a estas tradições vivas, tradições que têm sentido existencial profundo
e significado contínuo para grande parte da humanidade contemporânea.

A filosofia da religião tem uma história rica e diversificada. A história da


filosofia da religião tem sido um empreendimento global que pode ser demarcado
por quatro períodos históricos: o mundo antigo, o mundo medieval, o mundo
moderno e o mundo contemporâneo.

DICAS

Visite os seguintes sites para uma variedade de sociedades e revistas dedicadas


ao estudo da religião e da filosofia da religião: uma lista de periódicos internacionais <http://
users.ox.ac.uk/~worc0337/phil_topics_religion.html>; uma breve lista de livros e materiais
introdutórios por tema <http://criticanarede.com/religiao.html>; a Associação Brasileira de
Filosofia da Religião <http://abfr.org/>; O site de livros do Google, onde podes procurar pelo
tema “Filosofia da Religião” e verás várias publicações <https://books.google.com>; GT da ANPOF
de Filosofia da Religião <http://www.anpof.org/portal/index.php/pt-BR/2013-11-25-22-44-25/
grupos-de-trabalho/category-items/2-grupos-trabalho/17-filosofia-da-religiao>.

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UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

4 CRENÇAS E PRÁTICAS RELIGIOSAS

Há uma variedade de crenças mantidas pelas religiões ou por pessoas


religiosas. As religiões monoteístas, por exemplo, afirmam que existe um deus
pessoal e que deus é bom. Os budistas afirmam que as Quatro Nobres Verdades
fornecem um caminho para a iluminação. Muitos hindus afirmam que Brahman é
a única realidade. Os taoístas (também os daoístas) afirmam que o dao é o processo
fundamental da própria realidade, e assim por diante. A maioria dos adeptos
religiosos consideram as reivindicações centrais de sua religião como sendo
verdadeiras. Mas uma questão filosófica importante é saber se essas alegações
religiosas são verdadeiras ou falsas, da mesma forma que outras reivindicações,
como as científicas, são verdadeiras ou falsas. Há duas posições muito diferentes
tomadas pelos filósofos da religião no que diz respeito ao conceito de verdade no
discurso religioso: o realismo e o não realismo.

4.1 O REALISMO RELIGIOSO


Provavelmente, a grande maioria dos adeptos religiosos são realistas, ou
seja, a maioria dos adeptos religiosos afirmam que suas crenças são sobre o que
realmente existe independente dos seres humanos que estão tendo essas crenças.
Afirmações sobre deus, por exemplo, ou Brahman, ou a salvação, ou moksha
(também referido como mukti), ou a reencarnação são verdadeiras se há referentes
reais para as mesmas. Assim, para os muçulmanos, a alegação de que Alá é o único
deus verdadeiro é verdadeira se, de fato, há um ser que existe independentemente
dos enquadres conceituais ou pensamentos e crenças humanos sobre (ou práticas
relacionadas com) Alá e é identificável como Alá, o único deus verdadeiro. O
mesmo vale para os adeptos realistas das outras religiões. Eles acreditam que as
reivindicações de sua religião têm referentes reais para além das suas próprias
crenças e práticas.

NOTA

Os termos realismo e não realismo, até mesmo realismo e não realismo religioso,
têm significados diferentes dependendo de como eles são usados na ​​ literatura da filosofia da
religião. Por exemplo, o realismo religioso é por vezes considerado como sendo a visão de que
as afirmações religiosas são informativas em relação a questões não empíricas. Neste caso,
Freud não seria um realista religioso. Como você já pode notar aqui, não estamos usando a
palavra desta forma.

130
TÓPICO 1 | RELIGIÃO E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO

4.2 O NÃO REALISMO RELIGIOSO

Apesar de estarem em minoria, há também os religiosos não realistas.


Embora existam diferentes formas de não realismo religioso, em geral, os não
realistas sustentam que as afirmações religiosas não são sobre realidades que
transcendem a linguagem humana, conceitos e formas sociais. Que as reivindicações
religiosas não são sobre algo “lá fora”. As seguintes palavras de um conhecido
religioso não realista prestativamente resumem a distinção entre realismo e não
realismo:

Hoje, um realista é o tipo de pessoa que, quando seu navio cruza o


equador, olha ao mar, esperando ver uma grande linha preta através do
oceano. O realismo tenta transformar ficções culturais em fatos objetivos.
Um não realista vê todo o sistema de linhas de latitude e longitude como
um enquadre, imposto sobre a Terra por nós, que nos ajuda a definir
locais e nos orientar. Para um realista a verdade já existe pré-feita lá
fora; para um não realista somos os únicos fabricantes da verdade, e
a verdade é apenas o consenso atual entre nós. Nós já não podemos
supor que o nosso conhecimento é validado por algo totalmente extra-
humano [...]. Na religião, a mudança para o não realismo implica o
reconhecimento de que todas as ideias religiosas e éticas são humanas,
com uma história humana. Abrimos mão da velha maneira metafísica e
cosmológica de entender a crença religiosa, e traduzimos o dogma em
espiritualidade (a espiritualidade é um estilo de vida religioso). Nós
entendemos todas as doutrinas religiosas em termos práticos, como
mitos orientadores de como viver, no sentido em que Kant, Kierkegaard
e Bultmannn começaram a mapear. Nós abandonamos as ideias de
verdade objetiva e eterna, e em vez disso vemos toda a verdade como
uma improvisação humana. Devemos abandonar todas as ideias de um
mundo além, celestial ou sobrenatural. No entanto, apesar de nosso
ceticismo aparente, insistimos que a religião não realista pode funcionar
muito bem como religião, e pode entregar (uma espécie de) felicidade
eterna (CUPPIT, 2011, tradução nossa).

NOTA

Don Cupitt (1934) é o ex-reitor do Emmanuel College, Cambridge. Ele é um dos


principais religiosos não realistas e é, muitas vezes, descrito como um “teólogo radical”. Ele
escreveu mais de quarenta livros, incluindo: Depois de Deus: O Futuro da Religião (1999).

Entre os não realistas, há aqueles que são, por assim dizer, favoráveis à
religião e aqueles que não o são. Considere as palavras de Sigmund Freud:

Estas [ideias religiosas], proclamadas como ensinamentos, não


constituem precipitados da experiência ou resultados finais de
pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e

131
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na


força desses desejos (FREUD, 1974, 2.976, p. 43).

Para Freud, não há referências para as crenças religiosas sobre entidades


transcendentes, como deus, o dao, e assim por diante. Pelo contrário, a religião é
uma ilusão e crenças religiosas são apenas manifestações desta ilusão. A crença em
deus (no caso especificamente o deus judaico-cristão), por exemplo, é simplesmente
a projeção de uma imagem de Pai (FREUD, 2014; 1974).

NOTA

Sigmund Freud (1856-1939) foi um psicólogo austríaco e médico que fundou a


escola psicanalítica da psicologia. Considerado por muitos como um dos pensadores mais
influentes do século XX, ele escreveu extensivamente sobre religião, descrevendo-a como uma
ilusão e que retira a sua força a partir do fato de que ela cai nas mãos de nossos desejos
instintivos. Três dos seus livros mais importantes dedicados à religião são Totem e Tabu
(1912-1913), O Futuro de uma Ilusão (2014a), e Mal-estar na Civilização (2014b). Para um olhar
mais aprofundado da ideia materialista de Deus como a projeção psicológica veja Ludwig A.
Feuerbach (1989, 2002), que de certo modo influenciou o pensamento de Freud.

Mais recentemente, o geneticista de Oxford, Richard Dawkins (1941) e o


filósofo Daniel Dennett (1942) avançaram a noção de que uma explicação darwiniana
sobre a evolução cultural pode explicar a religião e as crenças religiosas através
da replicação de algo muito parecido com genes. Há, eles sugerem, replicadores
culturais, o que eles chamam de memes, que são unidades de transmissão ou
imitação cultural (DAWKINS, 1979; BLACKMORE, 2000). Dawkins (1979, p. 214)
diz:

Exemplos de memes são melodias, ideias, expressões, estilos de roupa,


maneiras de fazer potes ou construir arcos. Assim como os genes se
propagavam no pool gênico saltando de corpo em corpo via espermas
ou óvulos, os memes se propagam no pool memético saltando de
cérebro em cérebro por um processo que, no sentido mais amplo, pode
ser chamado de imitação. Se um cientista ouve falar ou lê a respeito de
uma ideia, ele a transmite para seus colegas e alunos. Ele a menciona em
seus artigos e palestras. Se a ideia for bem-sucedida, pode-se dizer que
ela se propaga, espalhando-se de cérebro em cérebro.

Ele inclui as seguintes crenças como memes religiosos (DAWKINS, 2007,


p. 212-213):

• Você sobreviverá à sua própria morte.


• A crença em deus é uma virtude suprema.
• A fé é uma virtude.
• Todo mundo, mesmo quem não possui crenças religiosas,

132
TÓPICO 1 | RELIGIÃO E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO

deve respeitá-las com um respeito mais automático e mais sem


questionamentos que o aceitável para qualquer outro tipo de crença.
• Há algumas coisas estranhas (tais como a Trindade, a
transubstanciação, a encarnação) que não nos cabe compreender. Nem
tente entendê-las, porque a tentativa pode destruí-las.

A crença generalizada em deus não é devido à existência real de uma tal


entidade, ou porque há boas razões para acreditar que exista. Em vez disso, as
pessoas acreditam porque o "deus-meme" se espalhou, de forma semelhante a um
vírus, em todas as populações humanas. A religião veio a ser um "subproduto
acidental, um efeito colateral de uma coisa útil" (DAWKINS, 2007, p. 200). Assim
também referente a todas as crenças religiosas, como sugere precisamente Daniel
Dennett em seu livro Quebrando o encanto: a religião como fenômeno natural
(2006).

Outros não realistas são mais favoráveis ​​à religião. Ludwig Wittgenstein
(1889-1951), por exemplo (um dos filósofos mais influentes do século XX) levou
a religião muito a sério, até mesmo ao ponto de considerar o sacerdócio. No
entanto, ele se opôs à teologia natural (a tentativa de demonstrar a existência de
deus a partir da evidência no mundo natural) e ao desenvolvimento das doutrinas
religiosas. Ele estava mais interessado no símbolo e no ritual religioso.

DICAS

Para uma interessante biografia abrangendo a vida e obra deste grande filósofo,
veja Ray Monk (1995) em sua obra Wittgenstein: O dever do Gênio.

Em seus trabalhos posteriores Wittgenstein entendeu a linguagem não


como uma estrutura fixa diretamente correspondente à forma como as coisas
realmente são, mas sim como uma atividade humana suscetível às vicissitudes da
vida e da prática humana. A linguagem não oferece uma imagem da realidade,
argumentou ele, mas é um conjunto de atividades que ele descreveu como "jogos
de linguagem". A noção deste conceito é descrita por Wittgenstein em suas
Investigações Filosóficas (1999). O termo jogo de linguagem "deve aqui salientar o
fato de que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma
de vida" (WITTGENSTEIN, 1999, 23, p. 35). Wittgenstein usa o exemplo de um
construtor para ilustrar esta ideia:

A linguagem deve servir para o entendimento de um construtor A


com um ajudante B. A executa a construção de um edifício com pedras
apropriadas; estão à mão cubos, colunas, lajotas e vigas. B passa-lhe
as pedras, e na sequência em que A precisa delas. Para esta finalidade,
servem-se de uma linguagem constituída das palavras "cubos",
"colunas", "lajotas", “vigas". A grita estas palavras; – B traz as pedras
que aprendeu a trazer ao ouvir esse chamado. (1999, 2, p. 28).

133
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

NOTA

Ludwig Wittgenstein (1889-1951) é considerado por muitos como um dos


principais filósofos do século XX. Seus dois trabalhos principais, Tractatus Logico-Philosophicus
(1968) e Investigações Filosóficas (1999) foram fundamentais no estabelecimento, primeiro, do
positivismo lógico e, segundo, da filosofia da linguagem ordinária (comum). Seu trabalho sobre
a linguagem e a religião é muito discutido e relevante para o debate realismo/não realismo.

No ensino de uma linguagem é preciso ser capaz de responder às palavras


em determinados contextos, a fala e a ação trabalham em conjunto. Em muitos
casos, portanto, o significado de uma palavra é a sua utilização na linguagem
(WITTGENSTEIN, 1999). Para Wittgenstein isto é verdade no discurso religioso,
assim como o é em outros discursos. Deste modo, ao falar de deus ou de Brahman
ou do nirvana ou do dao, os significados de tais palavras têm mais a ver com o seu
uso do que com a sua denotação (WITTGENSTEIN, 1996). Os jogos de linguagem
das religiões refletem as práticas e as formas de vida dos vários adeptos religiosos
e, portanto, reivindicações religiosas não devem ser tomadas como fornecendo
imagens literais da realidade que de alguma forma estariam além dessas atividades.
Devemos observar, no entanto, que não existe um consenso de que Wittgenstein
era um não realista. Na verdade, como ele abominava a ideia de teorias na filosofia
em geral, podemos até dizer que para o mesmo o debate realismo/não realismo
poderia muito bem ser um ponto discutível (SPICA, 2011; MICHELETTI, 2007;
ZILLES, 1994; PHILLIPS, 1993).

Religiosos não realistas que são favoráveis à religião também denunciam a


alegada falta de realismo para fornecer evidências à verdade objetiva de qualquer
religião, ou da religião em geral. Tanto referindo-se à argumentos para a existência
de Deus, ou a evidências para a inspiração divina das escrituras sagradas, por
exemplo, os não realistas sustentam que tais projetos apologéticos são fracassos
abjetos. Vamos analisar alguns argumentos a favor e contra evidências para a fé
em tópicos posteriores deste Caderno de Estudos. Mas esses não realistas estão
convencidos de que já que não há razões conclusivas para acreditar que a religião
é verdadeira (no sentido estritamente realista do termo), a melhor maneira de se
aproximar das reivindicações religiosas e crenças é vê-las através de lentes não
realistas.

Os realistas respondem a este argumento de várias maneiras. Por um lado,


alguns concordam que não há razões sólidas para acreditar que qualquer religião
é verdadeira. No entanto, eles afirmam que a mesma não exige provas.

134
TÓPICO 1 | RELIGIÃO E A FILOSOFIA DA RELIGIÃO

TUROS
ESTUDOS FU

Vamos explorar esta posição no Tópico 2, “Ciência, fé e razão”, da Unidade 3. Outros


realistas respondem, alegando que há boas razões e evidências para a fé religiosa, e vamos
explorar algumas dessas razões nos Tópicos 4, 5 e 6 (“argumentos cosmológicos”, “argumentos
teleológicos” e “argumentos ontológicos”, respectivamente) desta mesma unidade, e os Tópicos
3 e 5 (“experiência religiosa” e “o self, o corpo e a imortalidade”, respectivamente) da Unidade 3.

Outro motivo para manter a posição de um não realismo religioso é o fato


de que as reivindicações religiosas, as crenças e as práticas de fato existem dentro
de um determinado contexto social e envolvem linguagem e conceitos humanos.
Como as alegações e as atividades religiosas são sempre realizadas dentro de um
contexto humano particular, e uma vez que a mente estrutura toda a percepção
dentro desse contexto, os significados dessas reivindicações são determinados e
limitados por esse contexto. Não é preciso postular, na verdade, argumenta-se que
não se pode postular legitimamente, realidades objetivas transcendentes além da
linguagem e cognição humana. Fazer isso é simplesmente ir longe demais.

Os realistas respondem observando que, enquanto muito do que ocorre


no discurso religioso (e na prática) é de origem humana, não é preciso assumir
uma postura reducionista em que todos os significados e símbolos religiosos são
redutíveis à linguagem humana. Como já observado, alguns realistas argumentam
que há razões para crer que uma determinada religião é verdadeira, que existem
referências objetivas para suas reivindicações (BYRNE, 2003).

Temos dado espaço aqui para o não realismo, mais do que para o realismo,
tanto porque é um desenvolvimento importante na filosofia contemporânea
da religião e porque, considerando o trabalho predominante neste campo de
investigação, o restante deste Caderno de Estudos é voltado para uma perspectiva
realista.

135
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico vimos que:

• O nosso mundo é, em muitos aspectos, um mundo religioso, com cerca de 85


por cento da população afirmando alguma forma de crença religiosa.

• As religiões e suas próprias crenças são diversas. Algumas afirmam uma


divindade pessoal, outras não. Algumas acreditam em muitas divindades,
algumas apenas em uma. Algumas sustentam que a realidade última e o universo
são um só ou codependentes, outras discordam. As diferenças são multifárias.

• Há também similaridades nas religiões, como, todas as religiões incluem


crenças, ideias e práticas centradas em torno de uma realidade transcendente,
uma realidade que fornece sentido último e propósito para a vida.

• A reflexão filosófica sobre as crenças e ideias religiosas, uma atividade que está
em curso há milênios, foi submetida a um grande desafio no século passado
com as críticas dos positivistas lógicos.

• Com o declínio do positivismo na década de 1970, a filosofia da religião ressurgiu


e hoje é um campo florescente de estudo.

• Na filosofia contemporânea da religião as discussões não são apenas sobre


as diferentes crenças e práticas das várias religiões que são debatidas, mas a
questão que se torna a preocupação central é mais fundamental, é sobre o que
crenças e práticas religiosas de fato são.

• Os realistas religiosos afirmam que as crenças religiosas são acerca de realidades


transcendentes que na verdade existem para além da linguagem e estruturas
conceituais humanas.

• Alguns religiosos não realistas, como Sigmund Freud e Richard Dawkins,


sustentam que as religiões são construções humanas e as crenças religiosas são
ilusões ou talvez até mesmo delírios. Outros não realistas, como Don Cupitt e
Ludwig Wittgenstein, concordam que as religiões são sobre as práticas, crenças
e ideias humanas. No entanto eles afirmam que a religião é um empreendimento
humano significativo.

136
AUTOATIVIDADE

Duas posições antagônicas são comumente assumidas por filósofos da religião


referente ao conceito da verdade no discurso religioso. Descreva a diferença
entre as posições realistas e não realistas no discurso religioso.

137
138
UNIDADE 2 TÓPICO 2

A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos explorar o tema da diversidade religiosa e o pluralismo.
Para isso, primeiro vamos descrever, a grosso modo, o quadro da diversidade das
religiões, focando nas principais grandes religiões mundiais.

Em seguida, introduziremos a discussão central entre o “inclusivismo” e o


“exclusivismo” religioso. Em linguagem investigativa filosófica vamos apresentar
algumas objeções e respostas a estas duas posições. Como o mito da neutralidade,
a objeção da justiça e o escândalo da particularidade.

Então, introduziremos a questão do Pluralismo Religioso. Levantando dois


posicionamentos, a hipótese pluralista e o pluralismo aspectual. Para cada uma
destas posições apresentaremos objeções e respostas às mesmas.

A seguir, vamos explorar o posicionamento do Relativismo Religioso,


suas objeções e respostas a estas refutações. Então, vamos analisar a proposta de
avaliação dos sistemas religiosos, quanto à sua consistência lógica, coerência de
todo o sistema, consistência com o conhecimento em outros campos, respostas
razoáveis às questões humanas fundamentais e a plausibilidade existencial.

Por último, vamos abordar brevemente a questão da Tolerância Religiosa.


Vale novamente ressaltar para que você não esqueça de verificar as referências
citadas e buscar ler o material bibliográfico, artigos e outras obras publicadas pelos
autores respectivos.

Finalmente, você poderá ver o resumo dos assuntos deste tópico e fazer a
sua autoatividade.

139
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

2 A DIVERSIDADE DAS RELIGIÕES

Há uma pluralidade abundante e rica diversidade de religiões no mundo


contemporâneo, tanto em termos de crenças quanto em práticas religiosas, e a
globalização está criando uma consciência generalizada deste fato. Talvez não seja
surpreendente, juntamente com a pletora de diversidade religiosa, o conflito em
nome da religião também é generalizado e multifário. Das guerras religiosas aos
atos individuais de violência à agressão verbal, a discórdia entre as religiões é uma
triste realidade do passado e do presente. Em resposta, Tenzin Gyatso (o atual Dalai
Lama) sugeriu recentemente que a harmonia inter-religiosa pode ser alcançada
através do desenvolvimento de compreensão de outras tradições e pela apreciação
do valor inerente a cada uma delas (DALAI-LAMA, 2006). Acreditamos que, em
grande medida, ele está certo sobre isso. Até poderíamos sugerir que as instituições
de ensino superior oferecessem cursos sobre as religiões do mundo, promovessem
evento e simpósios, quem sabe até mesmo incluíssem em seus currículos. Na
verdade, compete a cada pessoa educada ter pelo menos uma compreensão básica
das principais religiões, pois a ignorância neste domínio tende a levar à suspeita, à
intolerância, e às vezes até mesmo à violência, enquanto que o entendimento pode
levar ao respeito, à empatia, e talvez até mesmo à confiança.

E
IMPORTANT

O Dalai Lama Tenzin Gyatso (1935-) – o décimo quarto Dalai Lama – é o líder
espiritual do povo tibetano. Os budistas tibetanos acreditam que o Dalai Lama é uma das
inúmeras encarnações do bodisatva (em sânscrito, ser iluminado) da compaixão. Tenzin
Gyatso recebeu o reconhecimento internacional, incluindo o Prêmio Nobel da Paz, por seus
esforços assíduos em favor dos direitos humanos e da paz mundial. Ele tem escrito muitos
livros importantes, incluindo: Uma ponte entre as religiões (2015), Uma ética para o Novo
Milênio (2006), e A Arte da Felicidade (2000).

Neste tópico, vamos examinar a questão de como devemos entender e


interpretar as reivindicações apresentadas pelas várias religiões. E isto é um fato,
as religiões fazem reivindicações, afirmações sobre a realidade e nosso lugar nela.
Como o filósofo da religião Keith Yandell (1999, p. 56, tradução nossa) afirma:

É claro que as religiões fazem reivindicações – se afirmassem nada, não


haveria religiões [...]. É da própria natureza de uma religião oferecer
uma explicação de nossa situação, do nosso problema, e de sua solução.
Nem todos os problemas podem surgir em qualquer situação; nem
todos os problemas tem a mesma solução. A explicação do nosso
problema depende da explicação de nossa situação; a explicação da
nossa salvação depende do que somos e do que precisamos ser salvos.
Aceitar uma religião é adotar alguma particular e conectada explicação
da situação, do problema e de sua solução.

140
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

Algumas dessas reivindicações oferecidas pelas várias religiões são


semelhantes, se não idênticas. Outras, no entanto, contradizem diretamente umas
às outras. E é geralmente as contradições que causam as maiores dificuldades
e conduzem ao conflito. Considere os seguintes pontos de vista de várias das
principais religiões do mundo em relação a uma preocupação fundamental
da religião, o objetivo soteriológico (salvação) como tipicamente entendido nas
respectivas tradições:

• Hinduísmo: o objetivo soteriológico final é o moksha, a libertação do ciclo de


morte e renascimento (samsara), e absorção no Brahman. Isto pode ser realizado
seguindo um dos três caminhos (margas): (1) a caminho do saber (jnana marga),
(2) o caminho de devoção (bhakti marga), ou (3) o caminho de ação ou das obras
(karma marga).

• Budismo: o objetivo soteriológico é o nirvana, a libertação da roda do samsara


e extinção de todos os desejos, anseios e sofrimento. Isto é realizado através
da compreensão das quatro nobres verdades e a prática da última: (1) toda a
existência é sofrimento (dukkha), (2) todo o sofrimento é causado pelo desejo
(trishna), (3) todo o sofrimento pode ser encerrado (nirvana) e (4) o caminho
para acabar com o sofrimento e atingir o nirvana é praticando o nobre caminho
óctuplo (astingika-marga) do entendimento correto, da resolução ou aspiração
correta, da linguagem ou palavra correta, da conduta correta, do modo de vida
correto, do esforço correto, do pensamento ou atenção corretos e da concentração
correta.

ATENCAO

Deve ser observado que a maioria dos leigos nas religiões hindu e budistas não
buscam o nirvana ou o moksha nesta vida; em vez disso, eles são muitas vezes fervorosamente
dedicados à obtenção de mérito para as vidas futuras e ao cumprimento dos deveres à família,
aos antepassados e à sociedade em geral.

• Judaísmo: o objetivo soteriológico é bem-aventurança com Deus, aqui e talvez


no porvir. Isto pode ser conseguido através do cumprimento dos mandamentos
divinos (mitzvot), que incluem engajar-se nas seguintes práticas (sim chat Torah
– "a alegria da Torá"): (1) a observância do Sábado, (2) a frequência regular à
sinagoga, (3) a celebração dos festivais anuais, e (4) a estrita obediência à Lei
Judaica. [Há, é claro (como acontece com cada uma dessas tradições), diferentes
ramificações do judaísmo e nem todos elas iriam aderir a estes elementos e
práticas].

• Cristianismo: o objetivo soteriológico é a transformação espiritual e passar a


eternidade com Deus no reino dos céus. Isto é realizado através da (1) graça
(charis) de Deus manifestada através de expiação de Cristo (hilasterion) do

141
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

pecado (hamartion), (2) por receber a graça divina por meio da fé (pistis) em
Cristo e os sacramentos, e (3) por seguir a lei (nomos) de Deus pelo apreço
ao dom da graça. [Os católicos romanos e os protestantes discordam sobre o
papel dos sacramentos. Para uma apresentação irênica das diferenças, consulte
Norman Geisler e Ralph Mackenzie em sua obra Roman Catholics and Evangelicals:
Agreements and Differences (1995)].

• Islã: o objetivo soteriológico é a bem-aventurança no paraíso através da submissão


às leis de Alá e pela sua misericórdia. Isso pode ser realizado seguindo os cinco
pilares: (1) a fé em Alá e seu profeta Maomé (shahada), (2) cinco orações diárias
(salah), (3) caridade (zakat), (4) jejum (sawm), e (5) a peregrinação a Meca (hajj).

Há uma série de abordagens filosóficas à diversidade religiosa,


especificamente a respeito das alegações de verdade conflitantes das várias
religiões. Uma delimitação útil pode ser adquirida a partir das obras de Joseph
Runzo (2008) e Harold Netland (2013) resumidas no Quadro 2, abaixo:

QUADRO 2 – ABORDAGENS FILOSÓFICAS À DIVERSIDADE RELIGIOSA

Ateísmo: todas as religiões são falsas; não há nenhuma religião cujas reivindicações centrais são
1
verdadeiras.
Agnosticismo: não há nenhuma maneira de determinar qual, se for o caso, das religiões é mais
2 provável de ser verdadeira, e, portanto, a melhor resposta é permanecer agnóstico sobre as
reivindicações de qualquer religião.
Relativismo religioso: enquanto cada religião pode ser considerada como "verdadeira" e "eficaz"
3 para seus adeptos, não há nenhum sentido, objetivo ou transcendente à tradição no qual podemos
falar de uma verdade religiosa.
O pluralismo religioso: em última análise, todas as religiões do mundo estão corretas, cada uma
4
oferecendo um caminho diferente e perspectiva parcial vis-à-vis à Realidade Última.
Inclusivismo Religioso: apenas uma religião do mundo é totalmente correta, mas outras religiões
5 do mundo participam ou parcialmente revelam algo da verdade da única religião correta; é possível,
no entanto, obter a salvação (ou nirvana, ou moksha etc.) através das outras religiões.
Exclusivismo religioso: uma religião mundial está correta e todas as outras estão erradas; a
6
salvação (ou nirvana, moksha etc.) só é encontrada através desta única religião.

FONTE: Joseph Runzo (2008) e Harold Netland (2013). Sintetizamos as abordagens de Runzo e
de Netland em uma só neste quadro.

142
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

TUROS
ESTUDOS FU

Análises e respostas às posições (1) e (2) serão oferecidas nos Tópicos 4 a 6 desta
unidade. Obviamente, nenhuma dessas posições é mantida pelos crentes religiosos. Neste
tópico, vamos nos concentrar nas posições de (3) a (6). A (3) e a (4) são recém-chegadas à
paisagem religiosa, e neste momento relativamente poucos adeptos religiosos, na verdade,
afirmam as mesmas. A (5) e (6), por outro lado, são amplamente sustentadas pelos crentes
religiosos de hoje, e é com essas duas abordagens mais proeminentes, que iniciaremos.

3 O INCLUSIVISMO E O EXCLUSIVISMO RELIGIOSO


Os inclusivistas e os exclusivistas religiosos (no sentido que adotamos neste
tópico) estão em acordo sobre uma série de questões relacionadas à diversidade
religiosa, incluindo a crença de que existe uma realidade objetiva para qual as
reivindicações de verdades religiosas apontam ou correspondem (SWEETMAN,
2013). Eles concordam que uma religião está, em certo sentido, mais perto da
verdade sobre assuntos de Deus, da Realidade Última e da salvação ou libertação
do que as outras religiões. (Estamos usando a frase salvação/libertação para
denotar o objetivo soteriológico das principais tradições religiosas, em vez de
especificar os vários descritores, por exemplo, a iluminação, o despertar etc.).
Como mencionado acima, a maioria dos crentes religiosos são inclusivistas ou
exclusivistas e, assim, sustentam que as crenças centrais da sua religião são mais
verdadeiras, ou aproximações mais próximas da verdade, do que as crenças
centrais de outras religiões. Eles enfatizam o fato de que as diferentes religiões
contêm em seu interior reivindicações de verdade aparentemente incompatíveis.
Por exemplo, algumas das crenças essenciais de várias das principais religiões são
resumidas no quadro abaixo:

QUADRO 3 - ALGUNS ELEMENTOS CENTRAIS DE CINCO RELIGIÕES MUNDIAIS


Hinduísmo Budismo Judaísmo Cristianismo Islã
Brahman
nirvana
(para alguns
(Realidade D e u s
Deus/Realidade h i n d u s , Y a h w e h A l á
Última – um (trinitarianismo
Última Brahman (monoteísmo) (monoteísmo)
estado de monoteísta)
é o Todo
perfeição)
impessoal)

143
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

anatman
atman (para
(não self –
a l g u n s
a ausência
O Self h i n d u s , Corpo/alma Corpo/alma Corpo/alma
de um self
atman é
ou alma
Brahman)
subsistente)
m o k s h a
O b j e t i v o n i r v a n a Presença do Eternidade com Eternidade com
(liberação) da
Soteriológico (liberação) Yahweh Deus no céu Alá no paraíso
reencarnação
Jesus – “o
Maomé –
Fundador/Messias/ Siddhartha C r i s t o ”
Sacerdotes A b r a ã o / “O Profeta”
Profetas/Sacerdotes Gautama – ( A b r a ã o /
brahmanicos Moisés ( A b r a ã o /
fundadores “O Buda” Moisés/
Moisés)
Paulo)

FONTE: Adaptado de Joseph Runzo (2001, p. 31)

Enquanto inclusivistas e exclusivistas concordam que as diferentes


tradições contêm reivindicações de verdade incompatíveis, eles discordam sobre
se essas religiões, além de sua própria, também contêm verdades fundamentais,
e se os adeptos das outras religiões podem obter a salvação/libertação. Para os
exclusivistas, a verdade fundamental é encontrada em apenas uma religião, e a
salvação/libertação também é exclusiva para aquela única e verdadeira religião. Os
inclusivistas discordam, enquanto afirmam que apenas uma religião é privilegiada,
eles atestam que outras religiões também contêm verdades importantes.
Normalmente sustentam que os religiosos que buscam verdadeiramente, de
qualquer tradição, vão, no escato (do grego, último ou fim), pelo menos, encontrar
a salvação/libertação. Os inclusivistas teístas afirmam que Deus está presente e
trabalhando nas e entre todas as religiões, mesmo que Deus se manifeste mais
claramente em uma religião. Eles sustentam que as outras religiões teístas estão
certas sobre a existência de um Deus pessoal (ao contrário de budistas, por
exemplo), mas eles não concordam com outras religiões sobre diferentes questões,
tais como os meios para alcançar a salvação/libertação. Os inclusivistas não teístas
afirmam que a Realidade Última é encontrada por buscadores da verdade de todas
as religiões do mundo, mas é mais claramente compreendida e articulada em uma
religião privilegiada (NETLAND, 2013).

DICAS

Para aprofundar as discussões sobre inclusivismo e exclusivismo religioso veja a


obra de Dupuis (2004), com o foco a partir do cristianismo. O artigo de Scott Randall Paine
(2008) clarifica e compara os termos de inclusivismo, exclusivismo e pluralismo religioso. Veja
também, especialmente o Capítulo 6, da obra “Confiança e Convivência” de Rudolf Von Sinner
(2007). O livro de Sweetman (2013), especialmente o Capítulo 8, sobre a diversidade religiosa,
explica os conceitos de inclusivismo, exclusivismo e pluralismo.

144
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

3.1 A OBJEÇÃO AO INCLUSIVISMO E AO EXCLUSIVISMO: O “MITO DA


NEUTRALIDADE”

Uma objeção de destaque para o exclusivismo e o inclusivismo religioso


é por vezes denominada de "mito da neutralidade", e que tem sido expressa de
muitas formas. A ideia básica é que não existem critérios religiosamente neutros
ou objetivos para determinar se uma religião ou visão de mundo é verdadeira e
outras falsas, ou se uma tem mais verdade ou falsidade do que a outra. Assim,
alegar que uma religião é verdadeira ou que oferece o único caminho da salvação
é inadequado e talvez até moralmente ofensivo.

Em resposta, alguns exclusivistas e inclusivistas argumentaram que não


importa se não há critérios para tal avaliação, pois as crenças religiosas não são os
tipos de coisas que deveriam ser sujeitas a uma avaliação racional e que isso talvez
reflita uma falta de fé. Este ponto de vista é conhecido como o fideísmo, e será
discutido no Tópico 2 da Unidade 3. Outros exclusivistas e inclusivistas discordam.
Eles afirmam que são justificados em afirmar que suas crenças são exclusivamente
(ou inclusivamente) verdadeiras, porque elas são garantidas, seja por evidências
da teologia natural ou por suas crenças sendo propriamente básicas (também será
discutido no tópico referido acima). Para respostas básicas apropriadas a esta
disputa consulte o texto de Plantinga (1999).

3.2 A OBJEÇÃO DA JUSTIÇA


Às vezes é argumentado que os exclusivistas estão compromissados a
uma posição que é injusta. O problema é multifacetado, mas um aspecto é que
existem bilhões de pessoas, atualmente e historicamente, completamente ignaras
das religiões para além de sua própria. Para os exclusivistas, elas são consideradas
moralmente e/ou epistemologicamente responsáveis por afirmar verdades
religiosas das quais não são sequer conscientes. Essa objeção é tipicamente feita
contra as religiões monoteístas, que incluem um julgamento final na vida após
a morte. Como, por exemplo, poderia o Deus do cristianismo (se tal Deus existe)
negar a salvação para as inúmeras pessoas que nunca ouviram falar sobre a fé cristã?
Parece injusto que Deus iria condenar as pessoas à perdição eterna simplesmente
devido à sua falta de conhecimento. E, certamente, há pessoas boas, sinceras e
dedicadas em todas as grandes religiões do mundo. Essa objeção não é tanto um
problema para os inclusivistas, pois eles não concordam que não há salvação/
libertação para aqueles que ainda não encontraram a única religião verdadeira
nesta vida. Alguns inclusivistas cristãos, por exemplo, afirmam que é a fé em Deus
como Deus se revelou para o indivíduo, bem como a obra expiatória de Cristo, que
traz a salvação, e isso poderia ocorrer nesta vida ou na vida após a morte.

145
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

DICAS

Veja, por exemplo, os argumentos de Jerry Walls, em seu livro Hell: the logic of
dammation (1992), especialmente no capítulo quatro, sobre o problema do inferno que vai
contra a existência de Deus. Outras obras que lidam com questões similares é: O problema do
sofrimento de C. S. Lewis (2006) e o artigo de Theodore Sider (2002) com a réplica de Dougherty
e Poston (2008). Referente às respostas do conhecimento médio (descritas a seguir), veja os
seguintes vídeos: Vídeo com William Craig, Onisciência e Conhecimento Médio, disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=a5ts7gzs6Nc>. Acesso em: 12 jun. 2015. E outro vídeo de
Craig, Quatro visões sobre a providência divina, disponível em: <https://vimeo.com/20376525>.
Acesso em: 12 jun. 2015. Veja também uma possível réplica à questão da justiça divina teísta
cristã (especificamente à proposta de Craig) no vídeo de Sam Harris, disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=MLkkRzEQmak>. Acesso em: 14 jun. 2015. a

Os exclusivistas ofereceram respostas à objeção da justiça. Por exemplo,


eles às vezes baseiam-se na noção de conhecimento médio (ou intermediário)
de Deus e os contrafatuais da liberdade para explicar como um Deus amoroso,
onisciente e onipotente poderia permitir que os "não alcançados" errassem o
alvo soteriológico (SWEETMAN, 2013). Como William Lane Craig argumenta
é possível que não haja pessoas que não ouviram a mensagem da salvação, que
teriam respondido com fé, se tivessem assim ouvido a mensagem (CRAIG, 1989;
2012). Outra resposta é que o nosso sentido humano da justiça não pode estar
em harmonia com o senso de justiça de Deus, pois os caminhos de Deus estão
além de nossos caminhos (ISAÍAS 55. 8-9, ACF – BÍBLIA, 1994). No entanto, outra
resposta que os exclusivistas têm oferecido é que por causa do pecado todas as
pessoas são merecedoras de julgamento e ira divina, e é somente pela graça de
Deus que qualquer um é salvo. Ele escolhe, então, para seus próprios fins, quem
vai e quem não vai receber a graça salvífica (NASH, 1994; GEISLER, 2002). Esta
resposta conduz-nos à próxima objeção.

146
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

NOTA

Contrafatuais de liberdade: proposições contrafatuais (declarações hipotéticas


no modo subjuntivo) que expressam o conteúdo de uma livre escolha. Por exemplo: “Se você
fosse para me oferecer um café amanhã, às 5h30min, enquanto discute o pluralismo religioso,
eu o aceitaria livremente”. Contrafatual, portanto, na metafísica e na lógica modal é a situação
ou evento que não aconteceu, mas poderia ter acontecido. Faz parte de um mundo possível,
em oposição ao que aconteceu, que pertence ao mundo atual.

Conhecimento médio: refere-se ao conhecimento de Deus, logicamente anterior ao decreto


de Deus para criar o mundo, e de todos os contrafatuais verdadeiros de liberdade da criatura;
isto é, o conhecimento de Deus que antecede a criação do que todas as possíveis criaturas
livres fariam em qualquer conjunto possível de circunstâncias. Pode ser chamado também de
Conhecimento Hipotético ou Conhecimento Contrafatual. É uma proposta inerente à doutrina
sobre a providência divina do jesuíta espanhol Luís de Molina (1535-1600), conhecida como
Molinismo.

3.3 O “ESCÂNDALO DA PARTICULARIDADE”


A frase "escândalo da particularidade" é geralmente aplicada à visão
cristã de que Deus se tornou humano exclusivamente em Jesus de Nazaré. Este
ponto de vista é considerado "escandaloso" porque parece incrível e até mesmo
preocupante que um evento particular e isolado, cerca de 2.000 anos atrás, seria
a maneira pela qual Deus se revelou para o mundo. Como mencionado acima, há
bilhões de devotos religiosos que não têm conhecimento do cristianismo, ou de
qualquer outra religião além da sua própria, e não sabem nada sobre o Deus dos
cristãos. E assim é com as outras religiões tomadas a partir de um ponto de vista
exclusivista. Será que devemos acreditar que apenas aqueles pertencentes a uma
religião estão certos? Será que devemos acreditar que eles, e só eles, têm a verdade
absoluta sobre Deus/ Realidade Última e sobre a salvação/libertação, enquanto
todos os outros entenderam as coisas completamente erradas? Além disso, não
seria o caso de que o ponto de vista, segundo o qual apenas uma religião oferece
o verdadeiro objetivo soteriológico, pareça ser arrogante, imperialista, e talvez até
mesmo imoral e opressor?

Uma resposta a essa objeção é que Deus, se Deus existe, poderia revelar-se
de qualquer forma que ele escolhesse. (Estamos usando o pronome masculino aqui
não porque acreditamos que Deus é masculino, e sim, porque essa é a maneira
que Deus tem sido historicamente referenciado nas religiões teístas nas quais os
pronomes pessoais são utilizados). Poderia, portanto, haver razões legítimas para
que Deus pudesse revelar-se, desta forma ou de outra. Além disso, só porque
algumas pessoas podem não estar cientes de um fato não significa que este seja
falso. Há muitos assuntos importantes sobre os quais muitas pessoas não sabem
nada. Por exemplo, muitas pessoas ainda não sabem que o vírus HIV é transmitido
de uma pessoa infectada para uma pessoa não infectada através do sangue, esperma

147
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

e secreção vaginal, pelo leite materno ou transfusão de sangue contaminado. Tal


ignorância deveria levar aqueles "sapientes" a se esforçarem com mais afinco em
comunicar a "verdade". Assim também, argumentam os exclusivistas, aqueles
"sapientes espirituais" deveriam se esforçar mais em comunicar a verdade religiosa
para aqueles que a desconhecem.

Outra resposta a esta objeção é que só porque alguém faz uma reivindicação
exclusiva não implica que ele ou ela é arrogante, imperialista, imoral ou opressivo.
Alvin Plantinga (1999), por exemplo, tem demonstrado que a realização do
exclusivismo não viola quaisquer obrigações morais ou epistêmicas. Na verdade,
aquele que argumenta que o exclusivismo é falso está, de uma maneira fundamental,
fazendo o mesmo que o exclusivista faz: uma reivindicação de tal forma que o
ponto de vista oposto é considerado falso. Assim, parece que não se pode julgar de
forma consistente o exclusivismo fundamentado nestes motivos, sem ser hipócrita.

4 O PLURALISMO RELIGIOSO
Perante as preocupações descritas acima, bem como outras, alguns negaram
o exclusivismo e foram para além do inclusivismo ao afirmar a verdade dentro das
diferentes religiões. Um jeito de fazer isso é através de pluralismo religioso, as
duas versões mais proeminentes são a hipótese pluralista e o pluralismo aspectual.
Vamos olhar para cada uma delas.

4.1 A HIPÓTESE PLURALISTA


John Hick (2005; 2007; SWEETMAN, 2013) desenvolveu uma das abordagens
mais impressionantes ao pluralismo religioso até o momento. Ele argumenta que
há uma pluralidade de caminhos para a salvação, e cada uma das grandes religiões
do mundo oferece um tal caminho. Ele nega a perspectiva (amplamente aceita
pelos ateus e outros) que a religião é apenas uma projeção humana. No entanto,
utilizando as distinções de Immanuel Kant entre o númeno (coisas como elas
realmente são, em si) e o fenômeno (as coisas como elas são experimentadas por
nós dadas as categorias de nossas mentes), Hick argumenta que as experiências e
as descrições de alguém dependem dos conceitos interpretativos através do qual
o mesmo as vê, as estruturas e as entende. Assim, enquanto alguns experienciam
e compreendem a Realidade Última, ou "o Real", em categorias teístas pessoais
(por exemplo, como Deus ou Yahweh), outros o fazem em maneiras impessoais,
panteístas (por exemplo, como nirguna Brahman). Ainda, outros experienciam e
compreendem a Realidade Última como completamente não pessoal (por exemplo,
como o nirvana ou o dao). A parábola hindu dos homens cegos e do elefante reflete
pungentemente este ponto (veja o quadro abaixo). Para Hick, em nosso tatear pelo

148
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

real, somos muito parecidos com os homens cegos, os nossos pontos de vista são
limitados por nossos conceitos aculturados.

Em sua obra monumental, An Interpretation of Religion (Uma Interpretação


da Religião), Hick (2004, p. 19, tradução nossa) utiliza estas distinções e defende a
hipótese pluralista:
que existe uma realidade última, a qual refiro como o Real [...] que é
em si transcategorial (inefável), além do alcance dos nossos sistemas
conceituais, mas cuja presença universal é humanamente experienciada
nas várias formas feitas possíveis pelos nossas sistemas conceituais-
linguísticos e nossas práticas espirituais.

NOTA

Os Homens Cegos e o Elefante: Deus é como um grande elefante cercado


por vários homens cegos. Um homem toca o rabo do elefante e pensa que é uma corda.
Outro toca o tronco e pensa que é uma cobra. Outro toca uma perna e pensa que é uma
árvore. No entanto, outro toca o lado do elefante e pensa que é uma parede. Eles estão todos
experienciando o mesmo elefante, mas de maneiras muito diferentes. O mesmo vale para
Deus e as várias religiões.

John Hick (1922-2012) assumiu várias posições acadêmicas como professor de Filosofia
da Religião e Teologia em diversas universidades, como a Claremont Graduate University, a
University of Birmingham, a Cornell University e a Cambridge University. Foi um dos principais
filósofos contemporâneos da religião e teólogos, e o mais proeminente defensor do pluralismo
religioso. Ele publicou vários livros amplamente influentes, incluindo An Interpretation of
Religion (2004), Teologia cristã e pluralismo religioso (2005), e A metáfora do deus encarnado
(2000).

As doutrinas religiosas e dogmas são importantes para Hick, mas o que é


fundamental na religião, segundo o filósofo, é a transformação pessoal que ocorre
dentro da religião. Por isso, em outro lugar, ele acrescenta que:

as grandes religiões mundiais encarnam diferentes percepções e


concepções de, e correspondentemente respostas diferentes para, o
Real dentro das principais formas variantes do ser humano; e dentro
de cada uma destas a transformação da existência humana desde o
egocentrismo ao Real-centrismo, desde os não santos aos santos, está
ocorrendo (HICK, 1985, p. 36-37, tradução nossa).

Hick utiliza várias analogias para descrever a hipótese pluralista em


relação aos diferentes aspectos da religião. Uma das mais interessantes é a
imagem do pato-coelho que Ludwig Wittgenstein (1999) usou em seu influente
trabalho intitulado Investigações Filosóficas (veja a Figura 5). Uma cultura que tem
abundância de patos, mas nenhuma familiaridade com coelhos veria este diagrama
ambíguo como sendo uma imagem de um pato. Pessoas nesta cultura não iriam
nem mesmo estar ciente da ambiguidade. Assim também com a cultura que tem

149
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

abundância de coelhos, mas nenhuma familiaridade com os patos. Pessoas nesta


cultura iriam vê-la como uma imagem de um coelho. A analogia de Hick é que
o Real inefável ("inefável" significa que a sua natureza está fora do âmbito dos
conceitos humanos) é capaz de ser experienciado, autenticamente experienciado,
nas diferentes religiões, como o Yahweh, ou como Alá, ou como Vishnu, ou como
o dao, e assim por diante, dependendo dos conceitos religiosos da pessoa através
do qual ocorrem as suas experiências individuais.

FIGURA 2 - IMAGEM PATO-COELHO USADA POR LUDWIG


WITTGENSTEIN EM SUA INFLUENTE OBRA INVESTIGAÇÕES
FILOSÓFICAS

FONTE: Wittgenstein (1999, p. 178)

Uma série de objeções foram levantadas contra a hipótese pluralista e a


visão de Hick em geral. Iremos nos concentrar em apenas duas.

4.1.1 O pluralismo é logicamente contraditório

Para Hick (2005), nenhuma religião (as grandes do mundo) é superior ou


mais verdadeira do que qualquer outra. Elas estão em pé de igualdade, na medida
em que produzem santos (pode-se argumentar que certas religiões, o satanismo,
por exemplo, não produzem santos). Todas as grandes religiões do mundo,
no entanto, incluem a noção de que elas são verdadeiras, que elas oferecem o
objetivo soteriológico certo que qualquer pessoa deve buscar e que elas oferecem
o melhor meio para alcançar esse objetivo. Então, aqui está o problema. A hipótese
pluralista parece estar acima das religiões e fazer uma afirmação exclusiva (não
pluralista) sobre o Real e a salvação/libertação, ou seja, que o Real é experimentado
validamente igual entre as várias religiões e que cada uma oferece expressões
válidas do objetivo soteriológico. Mas isso parece ser autocontraditório, pois,
ao afirmar que nenhuma posição religiosa, em referência ao Real e ao objetivo
soteriológico é superior ou mais verdadeira do que outra, Hick, na verdade, faz
exatamente isso, ele afirmou que o seu próprio ponto de vista é mais verdadeiro e
superior a todos os outros.

150
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

Em resposta, poderíamos argumentar que a hipótese pluralista é


uma metateoria, uma teoria de ordem superior sobre as religiões, em vez de
simplesmente mais uma posição religiosa entre outras e, como tal, não é suscetível
à acusação de inconsistência lógica.

4.1.2 Pluralismo leva ao ceticismo em relação ao real


A visão pluralista do Real leva a outra objeção. A posição de que as alegações
religiosas da verdade são em sua totalidade contextualmente dependentes e que
também são apenas sobre o fenômeno (ao invés do númeno), leva a um bloqueio
do conhecimento (opacidade epistêmica), que, discutivelmente, desemboca no
ceticismo ou no agnosticismo sobre o Real (D’COSTA, 1991; 2007; SWEETMAN,
2013). Se for impossível pensar ou falar sobre o Real, e se atributos pessoais como
ser bom, amoroso, poderoso, justo (ou impessoais, como não dual etc.), na verdade,
não se aplicam ao Real, uma vez que está fora do nosso campo conceitual humano,
como, então, podemos ter certeza de que o Real não é apenas uma projeção
psicológica humana ou realização de um desejo?

A resposta de Hick, em bom estilo kantiano, é que, dadas as experiências


religiosas historicamente ricas e amplas dentro das tradições de fé, devemos
postular um Real objetivo para explicar as experiências ricas e as transformações.
No entanto, o Real, como interpretado por Hick é "além caracterizações" e
"tampouco pessoal nem impessoal". Sendo assim, é possível indagar o que é que
de fato é postulado ou como tal postulado "inefável" pode levar à transformação
moral e pessoal tão essencial à posição de Hick.

DICAS

Um excelente autor para ser lido sobre a hipótese pluralista na vertente do


diálogo inter-religioso é Faustino L. C. Teixeira (1997), com inúmeros livros, artigos e vídeos
on-line. Uma análise crítica da abordagem hickinana pode ser vista na dissertação de Kleber
Machado (2008). Outras obras que devem ser analisadas e que delineiam o movimento atual
do pluralismo religioso a da chamada teologia das religiões (TdR), são Jacques Dupuis (2004,
1999), Paul Knitter (2008, 2010, 2012), Roger Haight (2003, 2009). E para uma leitura sobre a
aproximação entre teologia da libertação e pluralismo religioso, especialmente na América
Latina, leia as obras de Jose Maria Vigil (2006, 2011) e Vigil, Tomita e Barros (2005, 2008).

151
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

4.2 PLURALISMO ASPECTUAL

Uma segunda versão do pluralismo religioso tenta evitar algumas das


armadilhas filosóficas e outros óbices da hipótese pluralista. Para o pluralista
aspectual, há uma Realidade Última objetiva, e essa Realidade é cognoscível para
nós. Assim, ao contrário da hipótese pluralista, e de um modo muito não kantiano,
podemos oferecer descrições válidas do numenal – podemos "chegar" ao Real. De
fato, como filósofo e teólogo Peter Byrne mantém, cada uma das diferentes religiões
está refletindo algum aspecto do real: "os diferentes sistemas de discursos religiosos
são descritivos de uma única e mesma realidade, porque essa realidade tem vários
aspectos [...] o transcendente se manifesta de diversas maneiras" (BYRNE, 1995, p.
153, tradução nossa). Byrne usa a noção de tipos/condições naturais (natural kinds),
a fim de esclarecer a sua posição. Assim como o ouro em sua condição natural tem
uma essência não observável, bem como propriedades ou qualidades observáveis,
sendo amarelo, brilhante e duro, assim também o Real tem uma essência com
diferentes manifestações experienciadas. O Real manifesta diferentes aspectos de
si nas diferentes religiões dado aos seus esquemas conceituais, suas estruturas
religiosas, e suas práticas originais e próprias. Byrne (1995) também sustenta que
as diferentes descrições do Transcendente devem ser entendidas em metáfora e
não ao modo literal.

4.2.1 O pluralismo aspectual conduz ao sincretismo

Um alegado problema com este ponto de vista é que desde que cada uma
das religiões está apreendendo apenas um aspecto do Real, parece que se poderia
obter uma melhor compreensão da essência do Real, criando uma nova religião
sincretista, a fim de recolher mais aspectos do Real. Uma versão desta crítica é
oferecida pelo próprio John Hick (2013) nas páginas 240-249 de seu texto. Byrne
consente que:

o fato de que o pluralismo vê as tradições individuais como aspectos de


um encontro de sobreposição com a realidade singular de fato implica
que, como tradições, elas podem muito bem lucrar no compartilhamento
de ideias, espiritualidades, e assim por diante (1995, p. 200, tradução
nossa).

Entretanto, ele não acredita que isso deva levar ao sincretismo. Pode-se
argumentar, por exemplo, que cada tradição capta um aspecto do Real via os
conceitos aculturados dentro daquela tradição, e este aspecto seria perdido em
uma nova religião sincrética. Se este for o caso, cada uma das tradições religiosas
é necessária do modo como são criadas e praticadas para que os seus seguidores
religiosos possam compreender e experienciar da melhor maneira o Real.

152
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

NOTA

Tipos naturais são muitas vezes entendidos como agrupamentos que são
agrupamentos naturais. Por exemplo, os seres humanos, os cães e o ouro, são cada um exemplo
de tipos naturais. Eles são distintos das propriedades (tais como o amarelo, por exemplo, ou ter
1,80m de altura) que são possuídas pelos indivíduos dos tipos naturais. Os tipos naturais não
podem ser reduzidos às propriedades que são por eles possuídas.

4.2.2 O pluralismo aspectual conduz ao ceticismo


Um problema relacionado é que, na visão aspectual, uma vez que os
seguidores religiosos estão apenas vislumbrando o real por meio de propriedades
que são elas próprias aculturadas dentro das várias tradições, as descrições do Real
não podem ser reivindicações de conhecimento adequado sobre o Real. Assim,
ficamos reféns de um ceticismo religioso. Byrne (1995, 200-201, tradução nossa)
esclarece o problema:
Se o pluralismo é verdadeiro, então as explicações ricas, vivas, e
doutrinariamente carregadas sobre a natureza da realidade transcendente
e da salvação são tanto necessariamente quanto inevitavelmente falhas
[...] Elas são inevitavelmente falhas, pois a partir da natureza do caso,
elas não podem alegar uma verdade estrita com qualquer certeza. Isso
quer dizer que, tomado literalmente e positivamente, elas não podem
reivindicar com certeza corresponder em detalhes com a realidade a
qual se referem. O pluralista não sabe qual destas crenças detalhadas
de primeira ordem é falsa. Algumas podem ser verdade. Ele ou ela
considera que todas estas crenças são radicalmente incertas.

A resposta de Byrne é que este tipo de objeção pode ser defletido apenas
parcialmente. Ele consente que os pluralistas são "céticos mitigado". Não se pode
ter certeza de que qualquer uma das religiões de fato está certa, portanto, é melhor
reconhecer isso e ser agnóstico sobre as interpretações da religião (BYRNE, 1995).
Entretanto, as reivindicações doutrinárias fundamentais das religiões, tais como
"Jesus é o Filho de Deus", de fato possuem um aspecto cognitivo (elas vão ajudar
a formar modos de prática e experiência religiosa, por exemplo), e elas podem
até ter sucesso referencial e verdade metafórica. Mas o pluralista não pode, em
sã consciência, afirmar que as declarações doutrinais são inequivocamente e
objetivamente verdadeiras.

153
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

5 O RELATIVISMO RELIGIOSO
Uma terceira forma de responder às reivindicações de verdade conflitantes
das diferentes tradições de fé é permanecer comprometido com a verdade dos
ensinamentos religiosos de sua própria tradição enquanto que ao mesmo tempo
concordando com algumas das preocupações centrais levantadas pelo pluralismo.
Isso pode ser realizado ao postular uma visão conhecida como relativismo religioso.
Joseph Runzo, talvez seu defensor mais proeminente, apresentou uma versão do
relativismo religioso, o que ele chama de "henofideísmo", derivado do termo grego
heno (um) e do termo latino fide (fé), pela qual a correção de uma religião é relativa
à visão de mundo de sua comunidade e de seus adeptos (RUNZO, 2007).

Runzo consente que as diferentes religiões são constituídas por diferentes


experiências e conjuntos de pretensões de verdade mutuamente incompatíveis,
e que as diferentes religiões e experiências estão elas próprias enraizadas em
visões de mundo distintas, que são incompatíveis com, se não contraditórias, as
outras religiões e visões de mundo (RUNZO, 2007). Todavia, ele sustenta que
estas experiências divergentes e visões de mundo incompatíveis emergem da
pluralidade de realidades divinas fenomenais vivenciadas pelos adeptos das
religiões.

Deste ponto de vista, entende-se que visão de mundo de uma pessoa (ou
seja, a rede cognitiva total de nossos conceitos, crenças e processos de pensamento
racional inter-relacionado) determina como se compreende e se experiencia
a Realidade Última. Além disso, correspondente às diferenças de visão de
mundo, há conjuntos de verdades relativas a esquemas conceituais mutuamente
incompatíveis, entretanto, individualmente adequados. Em outras palavras,
a verdade de uma religião é determinada por sua adequação em corresponder
apropriadamente à visão de mundo da qual faz parte.

Runzo (2007) observa que o relativismo religioso tem várias vantagens


sobre a hipótese pluralista de Hick: (1) ele oferece uma melhor consideração das
crenças cognitivas reais mantidas pelos adeptos das grandes religiões do mundo,
pois afirma que cada uma das religiões está fazendo reivindicações fundamentais
verdadeiras, (2) mantém a dignidade das várias religiões, aceitando suas diferenças
como reais e significativas, e (3) não reduz o senso de realidade do Real a uma mera
"imagem" como o pluralismo involuntariamente o faz. Em vez disso, ele mantém o
Real como o objeto direto da fé religiosa.

Além disso, poderíamos acrescentar que o relativismo religioso tem várias


vantagens sobre o pluralismo aspectual: (1) ele oferece uma melhor consideração
das crenças cognitivas reais mantidas pelos adeptos das grandes religiões do
mundo, (2) não oferecer apenas uma visão parcial (aspectual), mas sim uma
descrição completa e (discutivelmente) conceitualmente adequada do Real como
professada dentro das diferentes religiões, e (3) não exige uma religião nova,
sincrética, a fim de apreender melhor a Realidade Última.

154
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

Apesar destas argumentadas vantagens sobre o pluralismo, no entanto,


também existem objeções significativas para esta versão do relativismo religioso.

5.1 UMA DESCRIÇÃO INADEQUADA DAS CRENÇAS


RELIGIOSAS REAIS

Apesar do relativismo alegar oferecer uma consideração melhor das crenças


cognitivas reais dos adeptos das religiões do que aquela oferecida pelo pluralismo,
no entanto, fica aquém destas crenças reais. Por exemplo, os adeptos muçulmanos
não têm historicamente mantido, nem os seus estudiosos e professores (imãs)
tipicamente mantêm, que Alá é o Deus verdadeiro apenas no que diz respeito à
visão de mundo do Islã. Ao contrário, para os muçulmanos a verdade de Alá,
tal como descrita no Alcorão, é tida como sendo inequívoca e objetivamente
verdadeira. Para o crente islâmico, Alá é o único e verdadeiro Deus para todos,
independentemente de qual possa ser a própria visão de mundo. O mesmo ocorre
entre as outras tradições de fé, suas crenças são normalmente entendidas como
sendo verdadeiras em um sentido objetivo e absoluto. Com efeito, os adeptos das
religiões têm sido historicamente exclusivistas ao invés de relativistas.

No entanto, pode-se responder que, simplesmente porque os adeptos


religiosos geralmente são e têm sido exclusivistas não têm nenhuma influência
sobre se eles (e nós) devemos continuar assim. Até o século passado, a maioria das
pessoas mantinham que alguma forma de espaço euclidiano refletia a verdadeira
natureza do mundo, mas isso não significa que devemos fazê-lo hoje.

5.2 O RELATIVISMO É INCOERENTE

Outra objeção é que o relativismo religioso é logicamente incoerente, uma


vez que não pode ser mantido consistentemente que a verdade é individualista,
uma posição inerente ao relativismo. Contudo, pode-se argumentar que, embora
esta é, talvez, uma avaliação justa do que é referido como "subjetivismo" (uma
posição em que a verdade é relativa a visão de mundo idiossincrática de cada
pessoa), isso não se aplica ao henofideísmo, pois na explicação dos henofideístas, a
verdade é relativizada à visão de mundo de uma cultura, em vez de individualmente
relativizada.

155
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

6 AVALIANDO OS SISTEMAS RELIGIOSOS

Como observado no início deste tópico, as religiões fazem reivindicações,


alegações de verdade, e elas fazem tais reivindicações sobre questões fundamentais
da existência humana, a Realidade Última, a vida após a morte, e assim por diante.
Como também vimos acima, existem diferentes abordagens para a compreensão
destas reivindicações de verdade feitas pelas religiões: alguns sustentam que
as reivindicações de verdade religiosas são todas falsas (ateus) ou que não há
nenhuma maneira de saber se as reivindicações religiosas são verdadeiras ou falsas
(agnósticos); outros sustentam que cada religião tem sua própria verdade, mas
que não há nenhuma verdade objetiva ou universal a respeito das reivindicações
religiosas (relativismo); outros ainda afirmam que todas as reivindicações de
verdade religiosas do mundo são verdadeiras no sentido de que os adeptos
estão entendendo e experienciando a Realidade Última através de seus próprios
conceitos aculturados (pluralismo); e ainda outros afirmam que existe apenas
uma religião verdadeira, através da qual uma pessoa pode ser salva/liberta e que
as afirmações de verdade de outras religiões são falsas (exclusivismo) ou que,
enquanto uma religião é privilegiada, em algum sentido, todas as religiões contêm
elementos importantes da verdade (inclusivismo).

Se alguém concorda com a maioria dos adeptos religiosos que as religiões


estão, de fato, fazendo reivindicações que são verdadeiras, então pode muito bem
existir certos critérios objetivos que poderiam ser utilizados na avaliação destas.
Uma forma de fazer isso implica a avaliação de sistemas religiosos, ou seja, as
religiões tidas como sistemas ​​de pensamento razoável. É claro que a prospectiva
de avaliar sistemas religiosos é controversa, mas praticamente nada de muito
significativo no discurso religioso não é assim! Abaixo, incluímos cinco critérios
de avaliação que têm sido utilizados pelos filósofos da religião e que são, sem
dúvida, objetivos e religiosamente neutros. Vamos examinar brevemente cada um
dos cinco.
QUADRO 4 - CRITÉRIO PARA AVALIAR SISTEMAS RELIGIOSOS
1. Consistência lógica As proposições fundamentais e definidoras do sistema religioso devem
ser logicamente consistentes uma com as outras e não autodestrutivas.
As proposições fundamentais e definidoras do sistema religioso
2. Coerência geral do sistema
devem ser relacionadas entre si de tal modo que elas ofereçam um
entendimento unificado do mundo e do lugar de alguém nele.
3. Consistência c o m As proposições fundamentais e definidoras do sistema religioso não
conhecimentos em outros devem contrariar conhecimentos bem estabelecidos em outros campos,
campos tais como a ciência, a história, a psicologia e a arqueologia.
4. Respostas razoáveis
O sistema religioso deve ser capaz de dar conta e explicar questões
às questões humanas
humanas fundamentais.
fundamentais

156
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

O sistema religioso deve ser suportável com base em suas próprias


5. Plausibilidade existencial crenças fundamentais e não deve requerer empréstimos de tais crenças
a partir de outro sistema religioso que o contradiz.

FONTE: Adaptado de Yandell (2007, p. 204-215; 1974), Netland (1999, p. 151-195) e Wainwright
(1998, p. 182-185)

6.1 CONSISTÊNCIA LÓGICA


Um dos critérios de avaliação que parece transcender sistemas religiosos é a
consistência lógica, e uma das leis básicas da lógica clássica é a lei da não contradição:
a declaração não pode ser verdadeira e falsa. Enquanto a incontestabilidade racional
desta lei foi expressa por milênios [por exemplo, Aristóteles faz tal afirmação em
Metafísica (2002, IV.4, 1006a 5-22, p. 145-146; XI.5, 1061b 33-1062a 19, p. 489-501)],
várias tentativas de negar o seu papel na religião têm aparecido ao longo do tempo.
Por exemplo, Gavin D'Costa observa que o Zen budismo e o Madhyamika (escola
filosófica do “Caminho do Meio”), principalmente nos escritos de Nagarjuna (séc.
II-III), são exemplos de religiões que afirmam que a consistência lógica não se aplica
às alegações de verdade religiosa. Nagarjuna, por exemplo, utilizou as regras da
lógica apenas para demonstrar porque nenhum sistema lógico em última instância
pode ser afirmado racionalmente. E os zen budistas também aceitam certas regras
da lógica para demonstrar que a satori (iluminação) transcende as concepções
lógica (D’COSTA, 1993).

No entanto, não fica claro o que se quer dizer com a afirmação de que
a realidade transcende a concepção lógica, ou que a lógica não se aplica às
reivindicações de verdade religiosas, pois, deve-se usar conceitos lógicos e
princípios racionais de pensamento até mesmo para poder compreender estas
declarações. Além disso, parece que não importando qual seja o sistema religioso
que alguém possa aderir (seja ele a escola Madhyamika ou não), ele ou ela utiliza a
razão e a lógica em praticamente todas as outras áreas da vida. Negar isso na religião
parece ser injustificado, se não incoerente. Isto é especialmente significativo em
relação às reivindicações proposicionais fundamentais e definidoras dos sistemas
religiosos. Poderia, certamente, haver desacordo sobre quais são as reivindicações
fundamentais de um determinado sistema. Mas, como vimos anteriormente,
cada um dos grandes sistemas religiosos está tentando fornecer reivindicações
proposicionais sobre a natureza do Real, a natureza do self, o objetivo soteriológico,
e os meios para a obtenção desse objetivo. Como cada uma dessas reivindicações
é geralmente considerada como sendo um aspecto não negociável do sistema, se
elas se contradizem entre si, não poderiam ser verdadeiras.

Da mesma forma, a lógica se aplica a cada uma das reivindicações


individuais dentro de um sistema religioso. Se a alegação é autodestrutiva, então
ela não pode ser verdade. Por exemplo, se uma reivindicação fundamental de um
sistema religioso é que todos os pontos de vista são, em última instância falsos,

157
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

então essa é uma reivindicação autorrefutadora (pois, ela também deve ser falsa!).
Alguns argumentaram que a escola Madhyamika do budismo afirma tal visão. Se
assim for, então seria autodestrutiva, e, portanto, falsa.

6.2 A COERÊNCIA DE TODO O SISTEMA

Não apenas deve cada uma das reivindicações fundamentais do sistema


religioso ser consistente logicamente com as outras reivindicações fundamentais
e não ser autodestrutivas, mas o sistema global deve ser coerente também. A
"coerência", neste contexto, é a ideia de que as reivindicações fundamentais devem
ter uma inter-relação e sistematização que seja clara e adequada. Nesse sentido, o
filósofo da religião William J. Wainwright (1998, p. 183, tradução nossa) assinala que
as reivindicações deveriam "integrar-se" adequadamente. Ele usa o monoteísmo e
o politeísmo para esclarecer esta posição: "O monoteísmo [...] parece mais coerente
do que politeísmos que postulam uma série de deuses, mas não explica claramente
as conexões entre eles".

6.3 A CONSISTÊNCIA COM O CONHECIMENTO EM


OUTROS CAMPOS

Outro critério importante para avaliar um sistema religioso é a sua


consistência com vários campos do conhecimento. Diversos campos importantes
são história, psicologia e as “ciências duras” (ciências físicas, ciências da vida e
ciências da Terra). Se uma reivindicação bem estabelecida proveniente de um
desses domínios contradiz uma crença religiosa fundamental, isto deve, no
mínimo, ser motivo para considerar-se a rejeição desta crença. Este fato poderá
também proporcionar um obstáculo para o sistema como um todo.

Por exemplo, se um sistema religioso afirma que Deus criou o mundo em


um perfeito estado, vários milhares de anos atrás, e que, portanto, os dinossauros
não poderiam ter realmente existido na história, a evidência sólida da arqueologia
deve ser motivo para rejeitarmos essa crença. Se a rejeição da crença não é possível
sem a rejeição do sistema como um todo, então, tanto pior para o sistema. É claro
que os adeptos de um determinado sistema religioso podem achar motivos para
continuar firmemente mantendo tal crença, a despeito de outras evidências do
contrário. A difícil tarefa, então, é determinar se a razão (ou razões) para manter a
crença são mais justificadas do que a evidência do contrário.

158
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

6.4 RESPOSTAS RAZOÁVEIS ÀS


​​ QUESTÕES HUMANAS
FUNDAMENTAIS

Um sistema religioso deve proporcionar respostas razoáveis ​​e adequadas


às questões religiosas fundamentais. Tais questões incluem: Quem sou eu? Por que
estou aqui? Qual é a natureza do Real? O que é a solução para a condição humana?
O que acontece depois da morte? E assim por diante. Se o sistema não dispõe de
respostas a tais perguntas ou as respostas não são razoáveis ​​ou são inadequadas,
isso deve ser motivo de preocupação. Sem dúvida, determinar se tais respostas
são razoáveis ou​​ não é uma tarefa fácil. Mas o processo de investigação aqui pode
ser frutífero, não obstante. Por exemplo, se a resposta à pergunta “Quem sou eu?”
acaba por ser que eu não sou um self individual substancial, mas sim um feixe de
experiências, isto levanta uma importante questão de razoabilidade e adequação.
Yandell (1999), por exemplo, oferece uma crítica filosófica da “teoria dos feixes” do
self budista nas páginas 246-259 de sua obra.

6.5 A PLAUSIBILIDADE EXISTENCIAL


Outro critério aparentemente não arbitrário para avaliar sistemas religiosos
é se o sistema pode subsistir em seus próprios termos, ou se deve tomar emprestado
ideias de outro sistema. Se alguém deve pegar emprestado, por exemplo, as
crenças centrais de outro sistema, a fim de viver uma vida significativa, então, o
seu próprio sistema (ou o que está em análise) é, provavelmente, insuficiente se
não for falso. Por exemplo, se alguém mantém a crença (amplamente aceita pelos
adeptos de certas tradições panteístas) que a dor física e o sofrimento são meras
ilusões, então ele ou ela deve viver de maneira consistente com essa crença. As
escrituras da religião Ciência Cristã, por exemplo, afirmam que "o mal é apenas
uma ilusão, e não tem nenhuma base real. O mal é uma crença falsa" (EDDY, 2001,
480, p. 23-24). Os adeptos da Ciência Cristã são ensinados a não procurar ajuda
médica, por essa razão, a dor e o mal não existem. Mas pode-se perguntar se essa
é uma visão existencialmente plausível. Se um adepto deste sistema religioso
não pudesse levar a cabo a pressão existencial de ignorar cuidados médicos, por
exemplo, pode ser motivo para ele ou ela rejeitar o sistema. Da mesma forma, se as
pessoas dentro do sistema estão "trapaceando" ao buscar secretamente assistência
médica em caso de doença, talvez, para quem estivesse analisando a crença isso
fosse motivo de rejeitá-la, ou até de rejeitar o sistema como um todo.

Outro exemplo é as reivindicações morais. Se um sistema religioso inclui


uma posição moral que não é existencialmente sustentável na vida de alguém, ela
provavelmente deve ser rejeitada. Por exemplo, se um sistema religioso inclui a
alegação de que o certo e o errado são meras ilusões, mas, em seguida, sente-se
a necessidade existencial de viver de acordo com certos valores morais, então a
reivindicação religiosa, se não o sistema como um todo, provavelmente deve ser

159
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

rejeitada.

As religiões são sistemas complexos de pensamento e de prática humana,


e as "grandes religiões do mundo" foram vividas e expressas ao longo de muitos
séculos e milênios. A complexidade das religiões faz a sua avaliação ser uma tarefa
difícil. Mas dado que essas religiões de fato se expressam em forma proposicional e
significativa, isto permite a sua avaliação razoável como sistemas de pensamento e
prática. Perante tais posicionamentos sobre a significância na forma como alguém
pensa sobre si mesmo, a natureza da Realidade Última, e a salvação/libertação,
e suas implicações diretas e indiretas para o indivíduo e os grupos, a avaliação
destes sistemas é talvez uma das atividades humanas mais importantes que se
possa imaginar.

No entanto, a avaliação de um sistema religioso levanta outra questão


importante digna de cuidadosa reflexão: a tolerância religiosa.

7 TOLERÂNCIA RELIGIOSA
Como vimos, o mundo em que vivemos está florescendo com diversas
perspectivas sobre questões religiosas fundamentais. À medida que o mundo se
torna mais globalizado, vamos continuar a crescer na consciência da riqueza e
da ampla diversidade de tradições religiosas (muitas das quais são radicalmente
diferentes das nossas). Se sustentarmos a visão de que as religiões podem ser
avaliadas, e a maioria dos pluralistas concordaria que algumas religiões são piores
do que outras (pensem na religião fundada por Marshall Applewhite, a Heaven’s
Gate, por exemplo), deve a intolerância religiosa ser o resultado disso? A resposta
a esta pergunta depende, parcialmente, do que entendemos por "tolerância" e
"intolerância". Se por "tolerância" queremos significar a afirmação que todas as
tradições são igualmente verdadeiras e por "intolerância" a negação que todas
elas são igualmente verdadeiras, então é claro que qualquer avaliação seria um
empreendimento intolerante. No entanto, se "tolerância" significa reconhecer e
respeitar as crenças e práticas dos outros, então, a avaliação e a tolerância não
necessitam estar em desacordo.

Na medida em que os encontros com "os outros" religiosos tornam-se


comuns, os conflitos concernentes a diferenças doutrinais, culturais e práticas
também aumentarão. Em resposta a este conflito, como observado no início do
tópico, Dalai Lama propõe uma harmonia inter-religiosa que aprecia o valor de
outras tradições de fé. Ele observa que um primeiro passo importante na realização
desta harmonia está no desenvolvimento de uma compreensão das outras
tradições de fé e da apreciação do valor inerente a cada uma delas. Nas próximas
décadas e séculos, se almejamos prosperar juntos como seres humanos e como
seres humanos religiosos, devemos levar a sério esta proposta. Isso significaria
avançar na tolerância, e isso envolveria aprender sobre os outros religiosos, o que
eles acreditam e o porquê, e como eles praticam suas crenças, em um genuíno

160
TÓPICO 2 | A DIVERSIDADE RELIGIOSA E O PLURALISMO

esforço de compreensão. Isto não necessita implicar uma capitulação a uma atitude
de que "todo mundo está certo", mas pode-se argumentar que ela deve se tornar
uma atitude de que “todo mundo é significativo". Afinal, quaisquer que sejam as
nossas convicções religiosas, todos nós somos homo sapiens, todos parte da grande
comunidade que chamamos de “humanidade”.

161
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico vimos que:

• Muito território foi coberto neste tópico. Começamos com uma visão geral da
crescente diversidade da paisagem religiosa global.

• Todas as grandes religiões fazem reivindicações sobre questões fundamentais


da vida e do pensamento humano, alegações sobre o self, sobre a realidade
última e o significado e os meios de salvação/libertação, entre outras. Algumas
dessas reivindicações fundamentais contradizem umas às outras, e isso levanta
a questão de como devemos filosoficamente abordar tais divergências.

• Foram examinadas seis abordagens básicas em resposta às reivindicações de


verdades conflitantes das religiões: o ateísmo, o agnosticismo, o relativismo, o
pluralismo, o inclusivismo e o exclusivismo. Como as duas primeiras abordagens
serão tratadas em outros tópicos, analisamos as últimas quatro, olhando os prós
e contras de cada uma delas.

• Consideramos a tarefa de avaliar os sistemas religiosos. Examinamos cinco


critérios para essa avaliação: a consistência lógica, a coerência do sistema global,
a consistência com o conhecimento em outros campos, as respostas razoáveis​​
às questões fundamentais do homem, e a plausibilidade existencial. Pode-se
argumentar que estes critérios são meios religiosamente neutros e objetivos
para a realização dessas avaliações.

• A tarefa de avaliar os sistemas religiosos levanta a importante questão da


tolerância religiosa, pois a avaliação, que envolve a possível conclusão de que
uma crença ou sistema de crenças é verdadeira e outra falsa, pode levar a uma
atitude de arrogância ou superioridade. Isso não precisa ser assim. A verdade e
a tolerância são conceitos distintos. Por isso, alguém poderia ser um relativista
ou pluralista intolerante tal como alguém poderia ser um exclusivista ou
inclusivista tolerante.

• Com a crescente consciência dos outros religiosos e com o aumento do


ajuntamento de pessoas de várias tradições, tornou-se cada vez mais importante
para nós sermos aprendizes religiosos, respeitando as crenças e práticas de outros
que têm visões muito diferentes da nossa. Esse é o grande desafio religioso do
século XXI.

162
AUTOATIVIDADE

Entre as posições possíveis assumidas pelos religiosos perante a diversidade


religiosa, o inclusivismo e o exclusivismo são duas posições bem comuns.
Descreva alguns pontos de concordância e alguns pontos de discordância entre
estas duas posições sobre a diversidade religiosa.

163
164
UNIDADE 2
TÓPICO 3

CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA

1 INTRODUÇÃO
No interior de todas as grandes religiões há uma crença sobre uma
realidade transcendente subjacente ao mundo físico e natural. Desde o seu início,
a filosofia da religião tem se preocupado em refletir sobre, na medida do possível,
como as religiões podem entender o que chamam de “Realidade Última”. As
várias religiões diferem em como conceituam esta realidade, especialmente
entre as religiões orientais e as ocidentais. Na religião ocidental (enquanto que
a distinção Leste/Oeste ou Oriental/Ocidental não é bem acurada, estamos
utilizando aqui para condensar a discussão), pela qual referimos principalmente
as três religiões de descendência de abraâmica, ou seja, o judaísmo, o cristianismo
e o islamismo, a Realidade Última é concebida em termos de um Deus pessoal.
Deus, nestas religiões, não é apenas pessoal, mas o criador de tudo e perfeito em
todos os aspectos. Muitas outras propriedades são atribuídas a Deus, inclusive a
onisciência, a onipotência e a imutabilidade.

Na religião oriental, e aqui estamos nos referindo principalmente ao


budismo, ao taoísmo e à escola Advaita Vedanta do Hinduísmo, a Realidade Última
é entendida de forma bastante diferente. Não é entendida como um Deus criador
e pessoal, por exemplo, mas um estado absoluto de ser. Ela não pode ser descrita
por um conjunto de atributos (tais como a onisciência ou a onipotência), pois ela
é a Realidade Absoluta indiferenciada. Os taoístas se referem a ela como dao; os
hindus se referem a ela como Brahman; para os budistas o nome varia, sunyata, por
exemplo, ou nirvana. Essas concepções diferentes de Realidade Última trazem com
elas entendimentos distintos de outras questões importantes, tais como a salvação/
libertação, a vida após a morte, o mal e o sofrimento, entre outras.

Neste tópico, incidiremos especificamente sobre estes dois amplos grupos


e suas duas concepções diferentes da Realidade Última, começando com a religião
oriental.

165
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

2 A REALIDADE ÚLTIMA: O ABSOLUTO E O VAZIO (VÁCUO)

2.1 O ABSOLUTISMO HINDU


Datando mais de cinco mil anos, o hinduísmo é uma das religiões mais
antigas da história registrada. Diferente da maioria das outras religiões, o
hinduísmo abrange muitos sistemas de crenças e visões de mundo distintas.
Existem formas teístas, politeístas, panteístas e até mesmo ateístas de hinduísmo.
Devido a essa diversidade, é impossível resumir com precisão o pensamento hindu
sobre qualquer assunto particular. Para nossos propósitos, no entanto, vamos
tomar como referência uma escola do hinduísmo que é com frequência discutida
na literatura da filosofia da religião: a Advaita Vedanta. Esta escola do hinduísmo
inclui a crença de que a Realidade Última, na verdade toda a realidade, é Brahman
e somente Brahman. Um personagem-chave defensor da Advaita Vedānta foi o
filósofo indiano Shankara do século VIII. Como ele explica, só Brahman é real, e
Brahman é desprovido de todas as distinções. (Vale a pena observar que para uma
pessoa educada no ocidente, muitos dos conceitos dos adeptos ao Advaita podem
parecer peculiar e com frequência de difícil compreensão. Obviamente, para uma
pessoa que foi educada nas tradições orientais tais como esta, perceberia certos
conceitos religiosos ocidentais igualmente estranhos e perplexos. No entanto, na
comunidade global da qual somos agora uma parte, é benéfico para nós o esforço
por compreensão e respeito mútuo, apesar de tais diferenças de crenças). Ele
descreve isto desta forma: “Brahman é a realidade, a existência única, absolutamente
independente do pensamento ou da ideia humana. Devido à ignorância de nossa
mente humana, o universo parece compor-se de diversas formas. Ele é unicamente
Brahman” (SHANKARA, 1992, p. 29).

NOTA

Shankara e o Advaita Vedanta. Shankara (788-820 EC) é o filósofo indiano mais


famoso a desenvolver a doutrina do hinduísmo Advaita Vedanta. Ele escreveu uma série de
obras, incluindo comentários sobre o Vedas (textos sagrados hindus). Existem várias escolas
do Vedanta, e aquela que ele expôs e defendeu é o sistema não dualista no qual a realidade é
somente uma e única (advaita significa “não dual” e Vedanta significa “fim dos Vedas”). Neste
ponto de vista, a Realidade Última (Brahman) é uma unidade indiferenciada, e o mundo
fenomenal multifacetado é uma ilusão (maya).

166
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA

Esta é uma forma de Absolutismo Hindu, a visão de que a Realidade


Última é o Absoluto indiferenciado. É também uma forma de monismo em que
existe apenas uma realidade. Esta realidade, Brahman, não inclui atributos, e todas
as aparentes características distintivas dentro de Brahman e entre Brahman e o
mundo são, em última instância, ilusórias. Para o adepto à escola Advaita, isto é
verdadeiro referente a todas as distinções, entre todas as coisas (aparentes), até
mesmo entre o próprio self (Atman) e Brahman.

Assim como as abelhas fazem o mel reunindo sucos de inúmeras plantas


e árvores floríferas, e como esses sucos, reduzidos a um único mel, não
sabem de que flores vieram individualmente, da mesma forma, meu
filho, todas as criaturas, quando estão incorporadas àquela Existência
única, seja no sono sem sonhos ou na morte, nada sabem a respeito do
seu estado passado ou presente, devido à ignorância que as envolve,
não sabem que estão fundidas com elas e que delas vieram. Seja o que
for que essas criaturas sejam, um leão, ou um tigre, ou um javali, ou um
verme, ou um borrachudo, ou um mosquito, elas assim permanecem
depois que voltam do sono sem sonhos. Todas elas têm seu Eu [self]
apenas nele. Isso é a verdade. Isso é a essência sutil de tudo. Isso é o Eu
[Self]. E Isso Svetaketu, ISSO ÉS TU [...] (PRABHAVANANDA, 1990, p.
46).

Às vezes é difícil para as mentes ocidentais conceber a ausência de todas


as distinções, especialmente entre si e todas as outras coisas (aparentes). Nossas
experiências implicam que somos indivíduos únicos, identidades separadas de
outras pessoas, coisas e Deus.

A questão que se coloca naturalmente é por que não estamos experienciando


essa unidade indiferenciada com Brahman? Por que acreditamos que somos
entidades separadas, únicas e individuais e que as distinções são reais? A resposta
advaitanista é que começamos em um estado não iluminado por causa dos efeitos
deletérios do maya, o que acaba nos infectando por causa do karma. Na mitologia
hindu, o maya é descrito como uma deusa divina, Mahamaya, que nos ilude.
Filósofos hindus advaitanistas tipicamente interpretam o maya como o grande véu
do Self verdadeiro e unitário.

A segunda questão, então, é como vamos superar essa ilusão? A resposta


advaitanista é que precisamos avançar para um estado iluminado, a fim de superar
o véu da ignorância cósmica. Fazemos isso por ir além da mente racional, e fazemo-
lo de forma mais eficaz através de vários caminhos ou Yogas. Os quatro Yogas
principais, geralmente reconhecidos na literatura hindu, são Karma (trabalho e
ação), Bhakti (devoção), Jnana (intelecção) e Raja (meditação). Ao envolver-nos nas
práticas físicas e mentais adequadas podemos escapar do poder ilusório de maya e,
finalmente, experienciar o moksha, a realização iluminada de que a realidade é uma
só, a multiplicidade é ilusão, e só o Absoluto indiferenciado é real. Enquanto moksha
é o objetivo, que é reconhecido no Advaita Vedanta que a verdadeira iluminação
não pode ser alcançada nesta vida. Poderá, de fato, levar muitas reencarnações
antes que o poder de maya e as influências negativas do karma, sejam expurgadas
(mais será dito sobre o karma no Tópico 5 da Unidade 3).

167
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

Enquanto o Absolutismo é uma tradição muito antiga dentro do hinduísmo,


também tem adeptos modernos, e um de seus expositores mais proeminentes nos
últimos tempos foi Bhagavan Sri Ramana Maharshi (1879-1950). Ele sustentou
que escapar do poder do véu de maya é realizado da melhor maneira pela busca
profunda no interior de nós mesmos, um método de autoinvestigação ele se referiu
como "Pensamento-Eu". Por constantemente enfocar as questões “Quem sou eu?”
e “de onde vem esse ‘eu’?” mantendo uma atenção interior no "Eu" e excluindo
todos os outros pensamentos, pode-se, eventualmente, atingir a autorrealização
que o eu individual não é nada mais do que o Atman (Self), e que Atman é Brahman.

DICAS

O ensaio de Sri Ramana, “Quem sou eu?”, pode ser encontrado em sua totalidade
em inglês, Who Am I? Disponível em: <http://advaita.com.br/wp-content/uploads/2010/08/
Who-am-I-Sadhu-Oms-Translation.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2015. Foi publicado por V. S.
Ramanan. Para ler uma breve biografia de Sri Ramana e boa parte do texto traduzido com
comentários em português, veja Niraj (2009).

Enquanto estima-se que três quartos dos intelectuais hindus afirmam


uma visão Absolutista da Realidade Última, esta nunca foi muito popular entre a
população geral de hindus (STODDART, 2004; SHARMA, 1993). No entanto, tem
sido muito influente na história do pensamento hindu.

2.2 METAFÍSICA BUDISTA


O budismo surgiu de dentro da tradição hindu na Índia aproximadamente
no século V AEC, e em relação a Realidade Última é sem dúvida mais alinhado com
a escola Advaita Vedanta do pensamento hindu. No entanto, a Realidade Última
no budismo, pelo menos em uma das principais escolas chamada Madhyamika (a
escola do "Caminho do Meio") como desenvolvida por Nagarjuna, não é nem o
Absoluto do hinduísmo, nem o Deus pessoal das religiões teístas. Pelo contrário, é
o sunyata, que é traduzido como “Vazio" ou "O Vácuo" (vacuidade).

168
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA

NOTA

Nagarjuna (c. 150-250 EC) foi um filósofo budista indiano e talvez o pensador
budista mais influente além de Siddhartha Gautama – o Buda (c. 563-483 AEC). Ele
é conhecido principalmente pelo desenvolvimento de uma visão chamada sunyata, ou vazio
(vacuidade), que unifica duas outras doutrinas budistas centrais: o “não self” e o surgimento
codependente (ou originação interdependente). Seus escritos formaram a base da escola
Madhyamika (Caminho do Meio) do Budismo. Ele escreveu muitas obras, incluindo Versos
fundamentais sobre o Caminho do Meio (Mulamadhyamakakarika), Setenta Versos sobre o
Vazio (Sunyatasaptati), e os Sessenta Versos sobre o Raciocínio (Yuktisastika). Um excelente
texto para verificar as contribuições de Nagarjuna é o de Octavio da Cunha Botelho (2014).

À primeira vista, pode parecer que o vazio e a Realidade Última são noções
contraditórias. Como pode algo real ser vazio? Mas os budistas desta escola
entendem o "ser real" como o "ser independente de outras coisas". O intelectual
budista Masao Abe (1993, p. 115, tradução nossa) esclarece:

Os budistas acreditam que para ser chamada de "substancial ou real"


uma coisa deve ser capaz de existir por si só. No entanto, se olharmos
para o universo, descobrimos que tudo o que nele existe, existe apenas
em relação à outra coisa. Um filho é um filho só em relação ao seu pai;
e um pai de forma semelhante em relação ao seu filho. Paternidade não
existe por si própria, mas apenas em relação à outra coisa. Os budistas
usam a palavra svabhava para denotar a existência por si só, ou seja,
a existência não dependente, o que somente a mesma, de acordo com
eles, qualifica a existência como verdadeira ou genuína. Mas, se tudo
no mundo depende de algo a mais para ser o que é, então, nada no
universo pode se dizer que possui svabhava ou a existência genuína/
inerente; portanto, é vazio.

Na metafísica budista, não há nenhuma "coisa" que tenha existência


independente. A realidade fundamental é de fato o vazio (vacuidade). Não há
nem Atman nem Brahman, não há nenhum self a não ser o Anatman (ou Anatta),
o “não self” (veja mais sobre isso no Tópico 5 da Unidade 3). Todas as coisas,
seja galáxias, montanhas, árvores, animais ou pessoas (incluindo você e eu) são,
na verdade, abstrações de eventos ou processos que são dependentes de outros
eventos ou processos. Mesmo que as coisas pareçam ser estáticas ou estáveis, isso
é devido à abstração das várias experiências que se tem e, em seguida, ao postular
um self substancial ou entidade estática. Mas, novamente, estes são processos. Na
realidade, tudo está em fluxo. O texto budista Anguttara Nikaya (a quarta divisão
do Sutta Pitaka), na terceira seção (nipatas), expõe isso desta forma:

Bhikkhus [monges], havendo ou não o surgimento de um Tathagata


[Buda] essa propriedade se mantém, essa regularidade do Dhamma
[Realidade], essa ordenação do Dhamma: todos os fenômenos
condicionados são impermanentes. O Tathagata desperta de forma
direta para isso, penetra isso. Despertando de forma direta e penetrando
isso, ele o explica, ensina, proclama, estabelece, revela, analisa, elucida:

169
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

todos os fenômenos condicionados são impermanentes. [...] Havendo


ou não o surgimento de um Tathagata essa propriedade se mantém
– essa regularidade do Dhamma, essa ordenação do Dhamma: todos
os fenômenos são não eu. O Tathagata desperta de forma direta para
isso, penetra isso. Despertando de forma direta e penetrando isso, ele o
explica, ensina, proclama, estabelece, revela, analisa, elucida: todos os
fenômenos são não eu (ANGUTTARA, AN III.134).

Assim, tudo o que existe o faz somente em relação a outras coisas. Além
disso, todas as coisas se originam de um nexo causal autossustentável em que cada
elo surge a partir de outro. Esta é a doutrina budista do surgimento interdependente
(pratitya-sumutpada), e é um elemento importante da metafísica budista. Tudo é
dependente e conectado às outras coisas. Nada no nexo é independente, tudo
surge de outra coisa.

Os budistas também sustentam a ideia de karma, a noção de que as ações


passadas, presentes e futuras têm efeitos sobre o ator. Esta é uma das causas no nexo
do surgimento interdependente. Por causa da ignorância (avidya) continuamos a
sentir os efeitos do karma, que nos mantém dentro do ciclo de causa e efeito, morte
e reencarnação. A maneira de fugir do mundo ilusório de permanência é explicada
por Nagarjuna como o reconhecimento da sunyata, pela tomada de consciência
do vazio, ou o Vácuo (vacuidade), ao ver que não existem substâncias finitas ou
infinitas, não há selves ou seres individuais ou permanentes e, finalmente, rompendo
a ilusão do mundo fenomênico, fugindo do ciclo de renascimento e experienciar o
nirvana, a extinção final do ego e do desejo pessoal (SMITH; NOVAK, 2010).

Tal como a reivindicação do Advaita Vedanta que o "Atman (Self) é Brahman


e Brahman é a Realidade Última indiferenciada" não é facilmente perceptível e
até mesmo contrária à experiência humana típica, assim também o é com as
doutrinas budistas do sunyata e do Anatman. Deste modo, a questão que se emerge
naturalmente é porque nós não estamos experienciando o vazio (a vacuidade),
o “não self”, e a interconectividade de todas as coisas? Por que tendemos a
acreditar que somos selves substanciais e que nós estamos separados da Realidade
Última? A resposta do budista Madhyamika é que precisamos ser iluminados a
fim de apreender corretamente essas verdades fundamentais. O caminho para a
iluminação, ou nirvana (que é um estado indescritível de felicidade suprema; a
extinção do self), é a descoberta, a compreensão e a prática das Quatro Nobres
Verdades e do Nobre Caminho Óctuplo.

QUADRO 5 - AS QUATRO NOBRES VERDADES E O NOBRE CAMINHO ÓCTUPLO


As Quatro Nobres Verdades
1 A existência do sofrimento (dukkha) – a vida é sofrimento.
2 O surgimento do sofrimento (samudaya) – a causa do sofrimento é o apego e o desejo egoísta.
A cessação do sofrimento (nirodha) – o caminho para fora do sofrimento é a cessação do apego
3
e do desejo egoísta.
A caminho da cessação (marga) – o caminho para alcançar a cessação do apego e do desejo egoísta
4
é o Nobre Caminho Óctuplo.
O Nobre Caminho Óctuplo

170
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA

Entendimento correto – entendendo as doutrinas budistas, tais como o anatman, o surgimento


1
interdependente e as Quatro Nobres Verdades.
Resolução/Aspiração correta – a resolução para renunciar ao mundo e agir com caridade para
2
com todos.
3 Linguagem/Fala correta – falando a verdade com bondade e respeito.
4 Conduta correta – agindo de acordo com os princípios morais.
5 Modo de vida correto – vivendo de uma forma que não faz mal a ninguém, nem a nada.
6 Esforço correto – tentando levar uma vida nobre e evitando uma vida ignóbil.
7 Pensamento (mindfulness) correto – atendendo aos pensamentos saudáveis; compaixão.
Meditação (concentração) correta – concentração focada no Caminho Óctuplo e na unidade de
8
toda a vida.

FONTE: O autor

3 A REALIDADE ÚLTIMA: UM DEUS PESSOAL

Enquanto os pensadores orientais, como aqueles retratados acima,


sustentam que a Realidade Última é o Absoluto indiferenciado, impessoal e negam
a existência de um ser divino substancial, a reflexão filosófica sobre a natureza de
um Deus pessoal, que às vezes é chamada de "teologia filosófica", tem sido parte
integrante do empreendimento filosófico ocidental desde a sua criação mais de
dois milênios atrás. Muitos dos primeiros filósofos gregos, por exemplo, refletiram
e escreveram sobre o divino. Nos séculos seguintes, os pensadores das religiões
ocidentais utilizaram o trabalho desses filósofos "pagãos" em sua tentativa de
compreender e articular a natureza e os atributos de Deus de dentro de suas
próprias tradições religiosas.

Mas o que se quer dizer com o termo "Deus" do ponto de vista da religião
ocidental? Para as religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo),
Deus é um ser pessoal e perfeito que criou o mundo e que tem determinadas
propriedades divinas, ou atributos, que o definem (e o separam) para além de
todos os outros seres. Isso é chamado de "teísmo", e é a perspectiva de Deus
tradicionalmente sustentada não apenas por adeptos das três grandes religiões
monoteístas, mas também por aqueles dentro de uma longa tradição hindu que,
ao contrário do Advaita Vedantins, afirmam certos atributos de Realidade Última.
Uma tal representação de Deus, ou Brahman, como ele é chamado, a partir dessa
tradição foi oferecida pelo filósofo hindu Ramanuja (c. 1017-1137 – sim, parece que
ele viveu uma vida muito longa!):

Pela palavra "Brahman" é denotado a Pessoa Suprema, que é, por


natureza inerente livre de todas as imperfeições e possui hostes de
qualidades auspiciosas que são inúmeras e de excelência incomparável.
Em todos os contextos, o termo "Brahman" é aplicado a tudo o que
possui a qualidade de grandeza, mas seu significado principal e mais
importante é aquele Ser cuja grandeza é de excelência incomparável,
tanto em sua natureza essencial e em suas outras qualidades. Somente

171
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

o Senhor de todos que é um tal Ser. Portanto, a palavra "Brahman" é


usada principalmente apenas para significá-Lo [...] (RAMANUJA, 2008,
p. 124, tradução nossa).

NOTA

Ramanuja (c. 1017-1137) foi o principal defensor de uma forma não dualista
qualificada do hinduísmo Vedanta chamado de Vishishtadvaita que inclui uma visão de
Brahman mais parecida com o monoteísmo do que o panteísmo. Ele também foi um dos
principais filósofos hindus a interpretar sistematicamente os Vedas, ou escrituras hindus, a partir
de uma perspectiva teísta, e ele argumentou a importância soteriológica (salvífica) de bhakti,
ou devoção a Deus.

Da mesma forma Anselmo (1033-1109), um filósofo cristão, teólogo e


monge, descreveu Deus desta maneira:

Deus é o que é melhor ser que não ser; existindo por si só, fez todas as
coisas do nada.
Que és portanto, Senhor Deus, <tal> que nada de maior possa ser
pensado? Mas quem és tu, senão a suma realidade sobre todas as coisas
e, existindo unicamente por si mesma, fez todas as outras coisas do
nada? Na verdade, aquilo que não é assim é algo menor do que pode ser
pensado. Mas isto não se pode pensar de ti. Pois que bem falta ao sumo
bem, pelo qual existe tudo o que é bom? Assim tu és justo, verídico, feliz
e tudo aquilo que é melhor ser do que não ser. Porque é melhor ser justo
que não justo, feliz que não feliz (2008, p. 15).

Encontramos representações paralelas em outras tradições teístas também.


A reflexão filosófica sobre Deus mudou em novas direções nos últimos tempos,
e uma discussão central nos dias de hoje tem a ver com a coerência do teísmo.
Alguns filósofos argumentam que o conceito tradicional de Deus é plausível; que
os atributos divinos, como historicamente sustentados, podem ser razoavelmente
articulados e afirmados. Outros argumentam que o teísmo é internamente
inconsistente de uma forma que Deus acaba por ser um ser logicamente impossível.
Outros argumentam que o conceito tradicional de Deus deve ser significativamente
alterado, a fim de que ele seja logicamente coerente. Ainda, outros filósofos
argumentam que, em geral o conceito de Deus é coerente, mas alguns dos atributos
clássicos necessitam de modificações. Em debates recentes sobre a coerência do
teísmo, duas preocupações têm sido centrais: a coerência lógica de cada um dos
atributos divinos considerados individualmente, e a compatibilidade lógica dos
atributos divinos tomados em conjunto. Abaixo, vamos concentrar a nossa atenção
na primeira destas preocupações.

O conceito de Deus tradicional teísta inclui um conjunto de propriedades


atribuídas a Deus, incluindo as cinco seguintes:

172
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA

QUADRO 6 - CINCO ATRIBUTOS DO CONCEITO TRADICIONAL DE DEUS

Necessidade propriedade de existir necessariamente.


Onipotência propriedade de ser perfeito no poder.
Onisciência propriedade de ser perfeito em conhecimento.
Eternidade propriedade de não ter nem começo nem fim.
Imutabilidade propriedade de ser intrinsecamente imutável.

FONTE: O autor

3.1 NECESSIDADE
Na teologia filosófica ocidental, Deus é concebido como um ser
necessariamente existente. Existir como um ser necessário significou que a
existência do ser não depende de nada, nem de ninguém; é autoexistente (o termo
em latim é "a se", por si só). Um ser necessário pode ser contrastado com um ser
contingente. Um ser contingente é um ser que pode não existir; se tal ser existe, ele
poderia muito bem não ter existido. Além disso, a existência de um ser contingente
é dependente de algo a mais; não é autoexistente. A partir de uma perspectiva
ocidental, quando examinamos o mundo, descobrimos que ele está cheio de seres
contingentes. Mesmo se olharmos para o micro (o mundo das partículas de quarks
e glúons, por exemplo), ou para macro (planetas, estrelas e galáxias), ou para as
coisas no entremeio (como plantas, pandas e pessoas), tudo o que encontramos é
contingente.

Existem diferentes maneiras de entender a existência de Deus como sendo


necessária. Por exemplo, alguns filósofos argumentam a necessidade factual de
Deus. Deste ponto de vista, uma vez que Deus de fato existe, ele não poderia ter
vindo à existência e ele nunca poderá deixar de existir. Mas há outra maneira de
compreender a existência de Deus como sendo necessária, ou seja, que a existência
de Deus é logicamente necessária. Se uma proposição é logicamente necessária,
então é impossível que ela seja falsa, e é verdadeira em todos os mundos possíveis
(veja o Uni – Notas: "Mundos Possíveis", abaixo). Se a existência de Deus é
logicamente necessária, então é verdadeiro em todos os mundos possíveis que
Deus existe, e é logicamente impossível para Deus não existir. Assim como é
logicamente impossível para cinco mais cinco igualar a doze, assim também seria
logicamente impossível para Deus não existir.

Mas é a existência de Deus logicamente necessária? Alguns filósofos


pensaram assim, mas muitos têm também discordado. Immanuel Kant, por exemplo,
foi tão longe até afirmar que não existem proposições logicamente necessárias que
incluem a existência. Veja, por exemplo, o capítulo “O ideal da razão pura” de sua
obra Crítica da Razão Pura (2001, p. 497-586). Mas um número de respostas tem
sido oferecidas à objeção de Kant (e a outras acusações relacionadas), e nas últimas
décadas a crença de que a existência de Deus é logicamente necessária tornou-

173
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

se respeitável, mais uma vez. (No momento deixaremos este tema, voltaremos a
ele no Tópico 6 desta unidade, quando examinarmos o argumento ontológico da
existência divina.)

NOTA

Mundo Possíveis: Na lógica modal moderna, um mundo possível é uma classe


especial de situações ou estados de coisas possíveis. Proposições logicamente necessárias,
tais como “cinco mais cinco iguala a dez”, existe em todos os mundos logicamente possíveis.
Um mundo é impossível se situações ou estados de coisas que o descrevem são logicamente
impossíveis. Por exemplo, não há nenhum mundo possível em que cinco mais cinco iguale a
doze.

3.2 ONIPOTÊNCIA
Outra propriedade tipicamente atribuída a Deus é a onipotência – do latim
omnis (tudo), e potens (poderosos), que é a propriedade de ser perfeito no poder.
Mas o que significa isso, ser perfeito no poder? Os filósofos ao longo dos tempos
têm se debatido com esta questão. Até mesmo o grande teólogo e filósofo cristão
Thomas Aquino (2001, p. 291, C.25 a.4, tradução nossa) labutou com ela: “Temos
que dizer: Pela regra geral todos confessam que Deus é onipotente. Mas parece
difícil determinar a razão da onipotência”.

Um entendimento comum da onipotência é que ele pode fazer qualquer


coisa que seja. Deus pode criar um mundo; Deus pode responder a oração; Deus
pode fazer milagres; e assim por diante. Mas Deus pode realmente fazer qualquer
coisa? Que tal criar círculos quadrados ou solteiros casados? E quanto a existir e
não existir simultaneamente? Que tal pecar – Deus pode pecar? Alguns filósofos
pensaram que absolutamente nada poderia limitar o poder de Deus. O filósofo
René Descartes (1596-1650), por exemplo, afirmava que Deus não é limitado por
qualquer coisa, inclusive pelas leis da lógica ou da matemática. Para Descartes,
Deus poderia tornar verdadeiro que algum objeto P tanto existisse e não existisse
ao mesmo tempo, ou que dois mais dois fosse igual a cinco.

A maioria dos filósofos não concordou com Descartes sobre este ponto e
qualificaram a afirmação "Deus pode fazer qualquer coisa que seja", com uma mais
sutil, como "Deus pode fazer tudo o que é logicamente possível" ou "Deus possui
todo o poder que é logicamente possível possuir". Alguns filósofos notaram que
a "impossibilidade metafísica" é uma noção mais rica do que a "impossibilidade
lógica". Peter Van Inwagen (2006, p. 22-23) vai ainda mais longe e argumenta que
a frase "impossibilidade lógica não é significativa”. Algo é logicamente possível se
não violar as leis básicas da lógica, como a lei da não contradição (que é aquela que

174
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA

uma proposição e seu oposto não podem ser ambas verdadeiras). Um representante
dessa visão é Richard Swinburne, e ele expressa o ponto da seguinte maneira:

Uma ação logicamente impossível não é uma ação. É o que é descrito por
uma forma de palavras que pretendem descrever uma ação, mas não
descrevem qualquer coisa que é coerente supor que poderia ser feito.
Não é nenhuma objeção à onipotência de alguém que ele não possa
fazer um círculo quadrado. Isto é porque ‘fazer um círculo quadrado’
não descreve qualquer coisa que é coerente supor que poderia ser feito
(1993, p. 153-154, tradução nossa).

NOTA

Cada uma das grandes religiões ocidentais parece afirmar a onipotência de Deus:
• Bíblia Hebraica: “Ah Senhor Deus! Eis que tu fizeste os céus e a terra com o teu grande poder,
e com o teu braço estendido; nada há que te seja demasiado difícil.” (JEREMIAS 32.17, ACF –
BÍBLIA, 1994).
• Novo Testamento: “Porque para Deus nada é impossível” (LUCAS 1:37, ACF – BÍBLIA, 1994).
• Alcorão: “Dize: Ó Deus, Soberano do poder! Tu concedes a soberania a quem Te apraz e a
retiras de quem desejas; exaltas quem queres e humilhas a Teu bel-prazer. Em Tuas mãos está
todo o Bem, porque só Tu és Onipotente.” (ALCORÃO, SURATA 3.26).

Enquanto os defensores da visão de Descartes podem não ser convencidos


com a argumentação racional contra a alegação de que Deus não é limitado pela
lógica, eles certamente não poderiam argumentar o ponto em terrenos racionais
ou lógicos. Fazê-lo seria autocontraditório e, portanto, incoerente. Além disso,
se Deus pudesse executar ações logicamente contraditórias, isto pareceria ter
consequências morais preocupantes. Por exemplo, Deus poderia quebrar suas
promessas ou mentir. A maioria dos teístas estão reticentes em afirmar que Deus
pode realizar tais ações imorais.

Dada a crença de que Deus não pode executar determinadas ações (nem
imorais, nem logicamente impossíveis, por exemplo), muitos teístas têm sustentado
a visão anselmiana tradicional da onipotência como significando poder perfeito em
vez de poder absoluto. Deste ponto de vista, o mero poder em si não é louvável,
mas o poder perfeito ou excelente o é. Uma vez que não seria um poder perfeito
ser capaz de quebrar promessas, ou mentir, ou violar contradições, mesmo que
essas ações não possam ser realizadas por Deus, Deus não deixa de ser onipotente.

175
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

3.3 ONISCIÊNCIA
Historicamente, tem sido defendido pela maioria dos teólogos que
Deus é onisciente, do latim omnis (tudo), e sciens (conhecimento). O significado
da onisciência tem sido amplamente debatido, mas uma perspectiva histórica
proeminente é que Deus é completamente perfeito em conhecimento. Deste ponto
de vista histórico, ser onisciente significa saber/conhecer todas as coisas que são
objetos próprios do conhecimento, e uma vez que apenas as proposições verdadeiras
são objetos próprios do conhecimento (apenas proposições verdadeiras podem
ser conhecidas), Deus sabe/conhece todas as proposições verdadeiras. Assim,
o conhecimento de Deus inclui todos os eventos, sejam passados, presentes ou
futuros.

No entanto tem havido desafios para essa compreensão tradicional da


onisciência. Em tempos recentes, um desafio surgiu a partir de uma análise dos
conceitos de presciência divina e livre-arbítrio humano. Se nós temos o livre-
arbítrio, em certo sentido (o que é chamado de livre-arbítrio "libertário"), então há
eventos contingentes futuros, eventos futuros que não têm que acontecer. Alguns
filósofos que acreditam que existem eventos futuros contingentes argumentam
que, uma vez que ainda não existem, e uma vez que eles não têm que acontecer,
eles não podem ser conhecidos, até mesmo por um ser onisciente. Os teístas
abertos, por exemplo, afirmam que Deus não conhece as contingências futuras.
No entanto, eles sustentam que Deus ainda é onisciente, pois ele sabe tudo o que
pode ser conhecido; ele conhece todos os eventos passados ​​e os presentes e todos
os eventos futuros que são determinadamente baseados nos eventos passados e
presentes ou podem ser deduzidos por eles.

E
IMPORTANT

Teísmo Aberto: a visão de que Deus é onisciente, mas não tem conhecimento
de determinados eventos futuros (como as ações humanas livres futuras) porque ainda não
existem e não são predeterminados, portanto eles não podem possivelmente ser conhecidos,
mesmo por um ser onisciente. Para uma defesa do Teísmo Aberto veja Hasker (1989),
especialmente o capítulo 10.

176
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA

DICAS

Um texto excelente é o de Rowe (2011), especificamente o capítulo 10,


“Predestinação, presciência divina e liberdade humana”. Disponível em: <http://dmurcho.com/
docs/presciencia.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2015. Outra leitura é “Argumentos da Impossibilidade”
de Grim (2010). Disponível em: <http://dmurcho.com/docs/impossibilidade.pdf>. Acesso em:
24 jun. 2015. Leia também o texto “Será a onisciência divina realmente incompatível com o
livre-arbítrio?” de D’Aversa (2009), para aprofundar os problemas filosóficos da presciência
divina.

Outros filósofos argumentam que Deus pode ter conhecimento de eventos


contingentes futuros. O meio pelo qual Deus poderia adquirir esse tipo de
conhecimento permanece em grande parte sem resposta, mas uma abordagem
tem sido a hipótese de dois modelos diferentes de cognição divina: um modelo
perceptualista e um modelo conceitualista. No modelo perceptualista, uma
analogia da percepção sensorial é usada para descrever o conhecimento de Deus,
na qual Deus "vê" ou "percebe" o passado, ou presente ou futuro. Nesta explicação,
se Deus está no tempo (outra questão discutível, como veremos a seguir), ele
não poderia saber o futuro, uma vez que não haveria um futuro existente para
Deus ver ou perceber. No modelo conceitualista, no entanto, Deus não adquire
conhecimento nesta maneira tipo perceptiva. Em vez disso, o conhecimento de
Deus é autossuficiente, de forma análoga à noção de ideias inatas em mentes
humanas. Deus simplesmente sabe todas as coisas: passado, presente e futuro
inatamente. Craig (2009), por exemplo, levanta este ponto nas páginas 119-143 de
seu The middle-knowledge view (A perspectiva do conhecimento-médio).

3.4 ETERNIDADE
Os teístas são praticamente unânimes em afirmar que Deus existe
eternamente, que Deus não tem começo nem fim. Mas a unanimidade termina
quando tentamos definir o "eterno". O que significa ser eterno? E qual é o
relacionamento de Deus com o tempo e o universo temporal? Podemos delinear
várias posições de destaque.

A primeira posição referente ao significado de “eterno” é defini-lo


como Atemporal. Em uma posição, Deus existe fora do tempo; Deus não tem
nem extensão temporal nem localização temporal, nenhum antes, durante ou
depois. Esta posição foi sustentada pela maioria dos grandes pensadores cristãos
clássicos, como Agostinho, Boécio, Anselmo e Tomás de Aquino, e tem seguidores
contemporâneos também, como, por exemplo, Brian Leftow (2009). Há uma série
de razões pelas quais muitos dos grandes pensadores teístas têm sustentado essa
visão de atemporalidade. Não sendo a menor delas, é que parece que esta posição

177
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

resolve o problema da presciência de Deus e o livre-arbítrio humano (ou agente).


Uma vez que Deus é atemporal, ele na verdade não está presciente dos eventos,
ele não os prevê; ele simplesmente conhece todos os eventos atemporalmente,
incluindo as ações de agentes livres.

Outra razão oferecida para afirmar a atemporalidade é esta. Se Deus é o ser


mais perfeito, como as tradições teístas afirmam, então parece evidente que Deus
teria o modo mais perfeito de existência. Intuitivamente, parece também que o
modo perfeito de existência seria atemporal ao invés de temporal. Um ser temporal,
por exemplo, estaria se movendo junto com a passagem do tempo e, portanto, não
seria capaz de experimentar toda a vida de uma só vez como um ser atemporal
faria. Na visão temporal, há episódios da vida de Deus que esvanecem, se perdem
para sempre, somente recuperáveis ​​pela memória de Deus. Tal vida temporal
transitória não é compatível com a vida de Deus, argumentam os defensores da
doutrina da atemporalidade, pois mesmo uma grande memória não é algo mais do
que uma realidade presente (LEFTOW, 2009; CRAIG, 2007, 2002).

Outro argumento em apoio à atemporalidade é baseado na teoria da


relatividade. De acordo com a teoria, o tempo e o espaço são conjugados; um
não existe sem o outro. Agora a maioria dos teístas acreditam que Deus é “não
espacial”. Se este for o caso, então, para ser coerente com a teoria da relatividade
seria necessário acreditar que Deus é não temporal (ou atemporal) também.

Uma série de ataques tem sido levantada contra a atemporalidade nas


últimas décadas. Uma objeção é que a atemporalidade restringiria o conhecimento
de Deus a apenas verdades atemporais, como "dois mais dois é igual a quatro".
Suponha, por exemplo, que é 19h00min e eu, exatamente agora, terminei de jantar.
Deus não poderia saber que eu "exatamente agora" terminaria de comer o jantar,
pois não há um "exatamente agora" para um ser atemporal. Todos os "agoras"
são eternamente presentes para tal ser. Deste ponto de vista, ao que parece, Deus
nunca poderia sequer sabe qual é a hora!

Outra objeção à visão da atemporalidade é que parece contradizer os


ensinamentos das escrituras das religiões monoteístas. Todas as narrativas da
Bíblia hebraica, do Novo Testamento e do Alcorão apontam para um Deus tendo
uma história em que Ele age e essas ações incluem referência temporal. Deus criou
o mundo (Gênesis 1.19; Atos 4.24; Surata 35.1); Deus está sustentando o mundo
(Salmos 65.9-13; Colossenses 1.17; Surata 29.60); Deus julgará o mundo (Isaías
2.4; II Coríntios 5.10; Surata 22.17); e assim por diante. Se Deus está agindo no
tempo como as tradições ensinam, a objeção é válida, então Deus deve estar no
tempo. Uma versão desta objeção pode ser vista na obra de Nelson Pike (2002),
especialmente no Capítulo 6.

A segunda posição referente ao significado de “eterno” é defini-lo como


Perene: esta é a visão de que Deus não tem começo nem fim, todavia Deus
é temporalmente estendido. Deus existe para sempre no tempo. João Duns
Escoto (1266-1308) e Guilherme de Occam (1285-1347) rejeitaram a doutrina da
atemporalidade divina. Filósofos recentes que defendem Deus como sendo
178
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA

perene incluem Nicholas Wolterstorff e Richard Swinburne. Veja, por exemplo,


Swinburne (1993), nas páginas 217-229. Há uma variedade de razões postas adiante
a favor desta posição, de Deus ser perene, além das levantadas acima em objeção
à atemporalidade. Um argumento funciona da seguinte maneira: de acordo com
a narrativa das escrituras, Deus está ativamente envolvido no mundo. Estar
envolvido ativamente no mundo traz o sentido de que Deus tem uma história com
o mundo, uma história de realização de uma sucessão de eventos, incluindo falar e
interagir com outras pessoas no mundo, mas, para termos uma história deste tipo
significaria que Deus estaria em certas relações temporais com o mundo. Portanto,
Deus deve ser temporal. Também argumenta-se que esta visão é filosoficamente
mais simples, mais clara e desprovida das dificuldades gritantes levantadas contra
a atemporalidade. Muitas das objeções à atemporalidade, como as mencionados
acima podem, de fato, ser usadas como
​​ argumentos para a visão da perenidade.

As objeções à perspectiva da perenidade incluem aquelas razões


mencionadas acima para afirmar a atemporalidade: resolver o problema da
presciência de Deus e da liberdade humana, e a atemporalidade ser o modo mais
perfeito de existência.

A terceira posição referente ao significado de “eterno” é defini-lo como


Eterno e Temporal: esta é a visão de que Deus existia, sem duração temporal, mas
na criação do universo Deus foi atraído às relações temporais (COPAN; CRAIG,
2005). Há um número crescente de filósofos que afirmam alguma forma deste ponto
de vista, e o filósofo cristão William Lane Craig publicou mais sobre o tema do que
ninguém. Ele sustenta que o apoio bíblico para a relação de Deus com o tempo é
indeciso, apoia tanto as perspectivas da atemporalidade quanto as temporais. Ele
também acredita que há boas razões teológicas e filosóficas para afirmar tanto a
atemporalidade e a temporalidade divina. Então, ao invés de manter uma com a
exclusão da outra, ele defende uma terceira via. Deus é atemporal sem o mundo
criado, mas Deus torna-se temporal com a criação (CRAIG, 2007).

Há uma série de acusações a este ponto de vista, incluindo, é claro, cada uma
das acusações citadas acima para as duas primeiras posições. Uma objeção especial
para este ponto de vista é que ele é incoerente. Alan Padgett (2013), por exemplo,
levanta este ponto, pois Deus não pode ser totalmente atemporal. A objeção segue
assim, porque Deus foi capaz de mudar até mesmo no alegado estado atemporal.
Com efeito Deus se alterou, pelo menos relacionalmente, no momento da criação.
Desde que o tempo e as mudanças são necessariamente interligados, não pode
haver um sem o outro. Assim, uma vez que Deus mudou, Deus não pode ser (não
poderia ter sido) totalmente atemporal.

179
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

3.5 IMUTABILIDADE

A doutrina tradicional da imutabilidade divina é que Deus tem a


propriedade de ser intrinsecamente imutável; é logicamente impossível para Deus
mudar em suas qualidades intrínsecas. Um argumento para esta visão é baseado
em Deus ser absolutamente perfeito. Tudo o que é absolutamente perfeito não
pode mudar, porque mudar é tornar-se melhor ou pior. Uma vez que Deus é um
ser absolutamente perfeito, não é possível para Deus mudar. Portanto, Deus é
imutável.

NOTA

Teologia processual ou do processo: também conhecida como teologia


neoclássica, a teologia do processo é escola de pensamento baseada na obra filosófica de
Alfred North Whitehead (1861-1947) e desenvolvida por Charles Hartshorne, John B. Cobb e
outros. Um princípio central do pensamento do processo é que a realidade, incluindo Deus,
não é composta de substâncias estáticas, mas sim de processos dinâmicos. O pensamento do
processo tem influenciado tanto os teólogos e filósofos cristãos quanto judeus.

Deus não é extrinsecamente imutável. Por exemplo, após o ato da criação,


Deus teve uma relação com a criação, que Deus não tinha antes da criação. Mas
a verdadeira questão é saber se Deus tem mudanças intrínsecas, alterações
na própria natureza de Deus. Alguns pensadores cristãos e judeus recentes
argumentam que as mudanças intrínsecas estão no âmago do ser de Deus. Para
esses pensadores, Deus não é uma substância, como tradicionalmente sustentado,
mas está envolvido no mundo espaço-temporal como um participante ativo, um
processo que está em ação dentro e fora do mundo. Este é o panenteísmo (termo
criado pelo pensador Christian Krause, uma síntese do teísmo e o panteísmo).
Os filósofos do processo, como são chamados, também afirmam que muitos dos
atributos históricos, que eles acreditam que são derivados da antiga filosofia grega
pagã ao invés das escrituras, não podem ser considerados plausíveis por causa de
objeções filosóficas intratáveis. Um desses atributos é a imutabilidade. O pensador
do processo Charles Hartshorne (1897-2000; pronuncia-se "Harts-horne") faz a
seguinte observação:
A objeção tradicional [...] à mudança divina foi que se um ser já
fosse perfeito, o que significa que nada melhor seria possível, então,
mudar para melhor deveria ser impossível para este ser. A suposição
despercebida aqui tem sido (por dois mil anos e mais) que faz sentido
pensar em um valor tão grande ou maravilhoso que este não poderia,
em nenhum sentido qualquer que seja, ser superado ou ultrapassado.
Como sabemos que isso até mesmo faz sentido? Em minha opinião,
não faz e é tanto uma contradição ou um mero disparate (1984, p. 7,
tradução nossa).

180
TÓPICO 3 | CONCEPÇÕES DA REALIDADE ÚLTIMA

Hartshorne e outros filósofos do processo argumentam que Deus não é um


ser estático, mas um tornar-se, um devir divino. Enquanto as qualidades abstratas
de Deus, tais como a bondade e a sabedoria, são estáveis, Deus é mutável e evolui à
medida que o mundo o faz. Deus cresce ao experienciar novas alegrias, na aquisição
de novos conhecimentos sobre eventos reais, e ao experienciar os valores criados
ao longo do tempo por agentes livres no mundo.

Há uma série de outros atributos divinos que poderiam ser explorados


também, incluindo a simplicidade, a incorporeidade, a onipresença, a ação divina
e a impassibilidade, mas os cinco atributos descritos acima fornecem pelo menos
um esboço de algumas das discussões na teologia filosófica envolvendo a natureza
e os atributos de Deus.

181
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico você viu:

• A metafísica religiosa e duas maneiras muito diferentes de entender a Realidade


Última. Por um lado, pode ser entendida como um estado de ser absoluto.

• No absolutismo hindu, por exemplo, Brahman é o Absoluto indiferenciado.


Na metafísica budista, a realidade fundamental é sunyata, ou o Vácuo (vazio,
vacuidade) um nexo causal autossustentável de processos não substanciais e
impermanentes no qual tudo é interdependente.

• A Realidade Última pode ser entendida como um Deus pessoal, tais como o
Deus das religiões teístas e abraâmicas.

• Há uma série de atributos que têm sido tradicionalmente atribuídos ao Deus do


teísmo, e observamos cinco deles: a necessidade, a onipotência, a onisciência, a
eternidade e a imutabilidade.

• Há debates sobre se os atributos divinos são logicamente consistentes e coerentes.


Se não forem, então a existência de Deus, como é tradicionalmente entendida,
seria impossível.

• É claro que alguém ainda pode ser um teísta e concordar que, pelo menos,
alguns dos atributos como tradicionalmente definidos são incoerentes. Como
vimos, os teístas abertos e os filósofos do processo assim o fazem em diferentes
graus e oferecem descrições novas em uma tentativa de evitar incoerências.
Outros argumentam que os atributos tradicionais podem ser defendidos, como
têm sido historicamente definidos.

• Se os atributos de Deus são logicamente consistentes e coerentes é uma questão


importante. Mesmo se esse for o caso, isso não quer dizer que Deus existe.

182
AUTOATIVIDADE

Quando falamos de onipotência divina, podemos estar nos referindo há


significados variados deste poder. Um modo de entender a diferença entre
estas formulações é focar em suas possíveis limitações. Descreva os possíveis
entendimentos sobre a onipotência divina baseado nas suas possíveis
limitações.

183
184
UNIDADE 2
TÓPICO 4

ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA
EXISTÊNCIA DIVINA

1 INTRODUÇÃO
Por pelo menos dois milênios filósofos têm tentado demonstrar, por
meio da razão e do argumento, que Deus existe. É claro que nem todos os teístas
concordam que a existência de Deus pode ser demonstrada através de argumento,
e alguns até mesmo concordam com a tese ateísta de que nenhuma explicação
racional da existência de Deus pode ser oferecida. Alguns teístas, porém, têm ido
tão longe a ponto de afirmar que existem meios racionais para provar que Deus
existe, enquanto outros afirmam que a existência de Deus pode ser demonstrada
de forma plausível, mas não comprovada.

Muitos argumentos foram construídos para provar, ou pelo menos, fornecer


razões à crença em Deus, e neste e nos próximos dois tópicos estaremos examinando
três deles. Neste tópico vamos trabalhar através de várias formas do argumento
cosmológico (MORELAND, 2013; CRAIG, 2001; ROWE, 2011). Cada uma das
diferentes versões do argumento cosmológico começa concentrando-se em algum
fato empírico do universo a partir do qual se segue que algo fora do universo
deve ter causado a sua existência. Suponha que, usando um exemplo de inúmeras
possibilidades, em alguma futura exploração tripulada a um planeta distante, os
astronautas descobrissem seis objetos esféricos descansando perfeitamente um
em cima do outro. Certamente, esses descobridores concluiriam que esses objetos
e sua estrutura hierárquica devem ter vindo de alguma coisa e de algum lugar,
mas eles também poderiam perguntar sobre outras coisas, como: “Qual foi a causa
da existência dessa coisa que fez com que esses objetos existissem?” E assim por
diante. Mas pode esta série de causas para as coisas continuarem indefinidamente?
Intuitivamente, parece que ela deve parar em algum lugar, deve haver alguma causa
originária. Assim, também, debatem os defensores do argumento cosmológico,
quando começamos a examinar as causas das (ou as razões para as) coisas que
existem no universo, e das quais o universo é composto, a cadeia causal deve parar
em algum lugar. Para os teístas, essa causa é Deus.

No que se segue, vamos primeiro considerar três argumentos cosmológicos


da existência de Deus, bem como várias objeções para eles. Essa demarcação
tripartite dos argumentos cosmológicos foi primeiro oferecida por William Craig
(2001) e se tornou a maneira padronizada de delimitar tais argumentos. Após esta
consideração, exploraremos uma espécie de argumento cosmológico que conclui
que Deus não existe.

185
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

NOTA

O argumento cosmológico: a partir dos termos gregos cosmos (mundo ou


universo) e logos (razão ou explicação racional). O argumento cosmológico, desenvolvido pela
primeira vez pelos antigos filósofos gregos, assume uma variedade de formas. O tema comum
entre todos eles é que, desde que há um cosmos que existe, ao invés de apenas nada, deve ter
sido causado por algo além dele.

2 O ARGUMENTO DA CONTINGÊNCIA
A pessoa que provavelmente recebeu o maior reconhecimento por oferecer
um argumento cosmológico para a existência de Deus é o monge católico, Tomás
de Aquino (1224-1274).

E
IMPORTANT

São Tomás de Aquino (1224-1274) foi um teólogo proeminente, filósofo e


apologista cristão medieval da Igreja Católica Romana. Ele escreveu muitos livros sobre uma
grande variedade de tópicos, incluindo a fé e a razão, revelação, epistemologia, ontologia, ética
e governo. Seu estilo de escrita é complexo e conciso, e muitas vezes segue o estilo da dialética
medieval. Sua obra mais influente é o seu opus magnum – o Summa Theologiae (2001) – uma
teologia sistemática maciça. São Tomás foi canonizado pela Igreja Católica em 1326.

Em sua obra a Summa Theologiae, Tomás de Aquino (2001) oferece cinco


argumentos concisos para a existência de Deus, dos quais quatro são cosmológicos
em sua natureza. Aquino não inventou os argumentos cosmológicos; eles remontam,
pelo menos tanto quanto o antigo a filósofos gregos como Platão, verifique sua
obra As Leis (2010), no livro 10, para uma versão do argumento cosmológico,
e Aristóteles, a obra Metafísica (2002), no v. 2, livro 12, e sua obra Física (2009),
v. 1. livros 7 e 8 e são mais plenamente articulados pelos pensadores medievais
judaicos, cristãos e islâmicos. Em nenhum outro lugar, no entanto, eles são tão
claramente e concisamente postos do que na obra de Tomás de Aquino, a Summa
– todos os três argumentos estão contidos em pouquíssimas páginas (2001, p.110-
113). O mais famoso dos argumentos cosmológicos de Aquino é o seu argumento
chamado de “terceira via”. Também conhecido como o argumento da contingência
ou o argumento cosmológico tomista (derivado de seu nome, Tomás de Aquino),
ele o expõe como segue:
A terceira via é a que se deduz do possível e do necessário. E diz:
Encontramos, entre as coisas, as que podem existir ou não existir,
uma vez que algumas podem ser produzidas ou destruídas, e

186
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

consequentemente é possível que existam ou que não existam. Mas


é impossível que as coisas submetidas a tal possibilidade existam
sempre, pois o que leva em si mesmo a possibilidade de não existir, em
um tempo não existiu. Se, pois, todas as coisas levam em si mesmas a
possibilidade de não existir, houve um tempo em que nada existiu. Mas
se isto é verdade, tampouco agora existiria nada, posto que o que não
existe não começa a existir, mas que por algo que já existe. Se, pois, nada
existia, é impossível que algo começasse a existir; em consequência,
nada existiria; e isto é absolutamente falso. Logo, nem todos os seres são
somente possibilidade; senão que é preciso algum ser necessário. Todo
ser necessário encontra sua necessidade em outro, ou não a tem. Por
outro lado, não é possível que nos seres necessários se busque a causa de
sua necessidade levando este proceder indefinidamente, como já ficou
provado ao tratar das causas eficientes. Portanto, é preciso admitir algo
que seja absolutamente necessário, cuja causa de sua necessidade não
esteja em outro, senão que ele seja a causa da necessidade dos demais.
O que todos chamam Deus (AQUINO, 2001, p. 112, tradução nossa).

A característica central deste argumento cosmológico é descrita no


"Argumento da contingência" no quadro abaixo.

QUADRO 7 – O ARGUMENTO DA CONTINGÊNCIA

Há coisas contingentes no mundo; isto é, há coisas (ou seres) no mundo que:


• começam a existir em algum momento;
• são causadas a existir por alguma outra coisa;
• poderiam deixar de existir, em algum momento; e
• poderiam nunca ter existido.
Mas nem todas as coisas podem ser coisas contingentes, pois nesse caso nada existiria agora
desde que o que começa a existir o faz através do que já existe (ou seja, o nada não pode
causar algo a existir).
Uma vez que existem coisas contingentes, deve haver alguma coisa não contingente ou
necessária. Ou seja, deve haver alguma coisa (ou ser) que:
• não começou a existir em algum momento;
• não é causado a existir por alguma outra coisa;
• não deixará de existir em algum momento; e
• não poderia não ter existido;
• é o que causou as coisas contingentes a existir.
Nós chamamos essa coisa necessária (ou ser) Deus.

FONTE: O autor

187
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

NOTA

Seguindo o próprio Tomás de Aquino em seus escritos posteriores, nesta forma do


argumento estamos evitando a questão do infinito temporal e centrando-nos na dependência
lógica das coisas contingentes em uma causa não contingente (ou necessária). Concordamos
com aqueles estudiosos que afirmam que enquanto Aquino se refere ao tempo nesse
argumento, esta referência é, em última análise, simplesmente um dispositivo retórico e não
uma declaração de um estado de coisas real. Para um resumo conciso e útil das primeiras
quatro vias veja Norman Geisler e Winfried Corduan (2003), nas páginas 158-160.a

Poderíamos simplificar o argumento ainda mais: 1. Se existem coisas


contingentes, então um fundamento (necessário) não contingente deve existir
para explicar a sua existência; 2. Coisas contingentes existem; 3. Portanto, um
fundamento (necessário) não contingente deve existir para explicar sua existência.

Uma vez que o argumento é válido, o que significa que se as premissas


são verdadeiras a conclusão deve seguir, a pergunta diante de nós é se ou não as
premissas são verdadeiras. Voltemos, portanto, ao quadro anterior.

A premissa 1 é amplamente sustentada: há coisas contingentes no mundo.


Por exemplo, considere o gato do meu amigo, Cheshire. O gato Cheshire começou
a existir, foi causado a existir por alguma outra coisa (principalmente seus pais),
eventualmente deixará de existir, e poderia nunca ter existido (suponha que seus
pais nunca tivessem se encontrado). Portanto, há coisas contingentes, ou seres,
no mundo. A premissa 1, então, parece razoável para acreditarmos. No entanto,
o passo seguinte no argumento, a premissa 2, não é tão intuitivamente plausível.

É o caso de que nem todas as coisas podem ser coisas contingentes?


Aquino argumenta que, se todas as coisas são contingentes, então nada poderia
vir a existir uma vez que não teria existido qualquer agência causal originária
pela qual pudesse causar qualquer coisa a existir. Existem várias formas de apoiar
este ponto. Em primeiro lugar, pode-se argumentar que nada poderia ter vindo à
existência porque, nesse caso, uma série contingente teria de ser de fato uma série
infinita, mas uma série infinita real é impossível (a noção de uma série infinita real
será discutida a seguir na seção sobre o argumento kalam). Entretanto, o próprio
Aquino não sustenta essa visão, por isso vamos ignorá-la aqui.

Em segundo lugar, independentemente de ser possível ou não uma série


causal infinita real, argumenta-se que, desde que coisas contingentes são coisas que
poderiam não existir, então elas não são coisas necessárias (ou seres necessários);
a sua existência é uma existência possível, não uma existência necessária, ela
depende de outra. Mas nem toda a existência pode ser existência possível, pois o
que é meramente possível não pode contar como o que é real. Por exemplo, se g foi
causado por f e f foi causado por e, e e foi causado por d, e assim por diante, parece

188
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

que a série é inexplicável por si só, não importa o quanto retrocedermos. Se todas
as coisas na série são contingentes (isto é, coisas dependentes de outras coisas),
parece que a soma total da série também é contingente. Uma vez que cada coisa na
série de coisas contingentes precisa de uma causa para a sua existência, como pode
a série tomada como um todo também não necessitar de uma causa?

Em um famoso debate do século XX entre o filósofo ateu Bertrand Russell


(1872-1970) e o filósofo católico Padre Frederick Copleston (1907-1994) este último
resumiu o ponto central de forma concisa:

Se somarmos chocolates, obteremos, no fim, chocolates, e não um


carneiro. Se acrescentarmos chocolates até o infinito, obteremos,
presumivelmente, um número infinito de chocolates. Se somarmos
seres contingentes até o infinito, ainda obteremos seres contingentes, e
não um ser necessário. Uma série infinita de seres contingentes será, a
meu ver, tão incapaz de se causar a si mesma como um ser contingente.
(RUSSEL, 1972, p. 108-109)

DICAS

Escute o Debate antológico promovido pela BBC em 1948. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=Bz67ogt745w>. Acesso em: 11 jul. 2015. Ou leia o debate
na íntegra no livro de Bertrand Russel “Porque não sou cristão” (1972). Outro excelente livro,
com um capítulo específico sobre os argumentos cosmológicos é Bruce e Barbone (2013) “Os
100 argumentos mais importantes da filosofia ocidental”, no Capítulo 2 deste livro, Mark Nelson
(2013), descreve elucidativamente o argumento da contingência.

Assim, como enunciado na premissa 3, parece que uma causa externa, uma
que é em si não causada e fundamenta a série contingente, é necessária para a série
(veja a Figura 3). Como veremos mais adiante, este argumento para a premissa 2 é
muito semelhante ao argumento de razão suficiente.

FIGURA 3 – A NECESSIDADE DE UMA CAUSA EXTERNA NÃO CAUSADA

FONTE: O autor

189
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

Além disso, os defensores do argumento da contingência podem discutir


que este fundamento não causado da série contingente é o que se entende por
Deus. Portanto, Deus deve existir.

Claro, nem todos concordam com esta conclusão. De modo a negar a


conclusão, no entanto, deve-se negar uma ou mais das premissas. A seguir estão
algumas das várias objeções a esta forma do argumento cosmológico.

2.1 OBJEÇÃO 1: A SÉRIE CONTINGENTE SIMPLESMENTE É

A primeira resposta é alegar de que a série causal não precisa de uma


explicação; ela simplesmente é. Esta foi uma resposta básica oferecida por
Bertrand Russell no debate observado acima. Ele argumentou que derivamos
nossa compreensão de uma causa de nossas observações sobre o que acontece no
mundo. Mas por que ir além disto? Não há nenhuma razão, sustenta ele, para ir
além de nossa experiência e supor que toda a série precisa de uma explicação.
Como ele diz: "não vejo nenhuma razão para pensar que haja qualquer causa.
Todo conceito de causa se deriva de nossa observação de coisas particulares; não
vejo razão alguma para supor que o total tenha qualquer causa [...] Eu diria que o
universo simplesmente está aí, e isso é tudo" (RUSSEL, 1972, p. 109).

Como um defensor do argumento cosmológico responderia a essa objeção?


Uma forma seria a alegação de que uma vez que cada parte da série precisa de uma
causa então a série como um todo deve precisar também de uma causa, pois a série
é nada mais do que a soma de suas partes. No entanto, isso leva à próxima objeção.

NOTA

Bertrand Arthur William Russell (1872-1970) era um matemático britânico, lógico,


filósofo e reformador social. Ele se tornou um membro do Trinity College, em Cambridge e
mais tarde em sua carreira um Docente em Filosofia. Em 1916 foi demitido de sua posição na
universidade devido ao seu agnosticismo e ao seu pacifismo. Mais tarde ele foi reintegrado, mas
recusou a oferta. Ele escreveu uma série de livros importantes, incluindo Principia Mathematica
(2001, coautoria com A. N. Whitehead) e Os Problemas da Filosofia (2008). Em 1949 ele recebeu
o Prêmio Nobel de Literatura.

190
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

2.2 OBJEÇÃO 2: A FALÁCIA DA COMPOSIÇÃO

À medida que o debate continuou, Russell acusou Copleston de cometer


uma falácia lógica, a falácia da composição. Veja como a objeção é feita: só porque
as partes de um todo têm um atributo específico (tais como ser contingente), não
segue daí que o todo também tenha esse atributo. Vários exemplos podem ser
citados para demonstrar o ponto. Por exemplo, apesar de que todas as pedras que
formam a parede de um castelo medieval sejam pequenas, não segue disso que a
parede do castelo medieval também seja pequena. Assim também com o universo,
argumenta-se, só porque cada parte que o compõe é contingente, e, portanto, em
necessidade de uma explicação causal, não segue disso que o todo é contingente e,
portanto, em necessidade de uma explicação causal.

Os defensores do argumento cosmológico respondem, argumentando que


esta analogia do castelo é defeituosa. Uma analogia mais acurada, eles mantêm, é
a seguinte: uma vez que a parede do castelo medieval é feita de pedras, a mesma
é uma parede de pedra do castelo. Ou seja, uma vez que todas as partes que
compõem esta parede do castelo são pedras, a parede como um todo é de pedra.
Assim também com o universo, uma vez que cada uma das partes que o compõe
é contingente, o conjunto deve ser contingente também. Os objetores discordam, e
o debate então gira em torno de qual tipo de analogia melhor reflete o universo e
suas partes constituintes.

2.3 OBJEÇÃO 3: EXPLICANDO AS PARTES DE UM TODO


EXPLICA O TODO EM SI MESMO
Uma objeção relacionada com a anterior é que, se as partes individuais que
formam uma coisa são todas explicadas, então, a coisa toda em si mesma é explicada
também. O historiador e filósofo escocês David Hume (1711-1776) escreveu uma
obra-prima em filosofia da religião intitulada Diálogos sobre a religião natural
(1992). Ao fazer este tipo de objeção, Hume (1992, IX, p. 123) afirma o seguinte:

Mas o todo, você diz, precisa ter uma causa. Minha resposta é que
a união dessas partes em um todo, assim como a união de várias
províncias diferentes em um reino, ou de vários membros distintos
em um corpo, realiza-se simplesmente por um ato arbitrário da mente
e não tem influência sobre a natureza das coisas. Se eu lhe tivesse
mostrado as causas particulares de cada indivíduo de uma coleção
de vinte partículas materiais, seria muito pouco razoável que você me
perguntasse, a seguir, pela causa das vinte como um todo. Pois ela já foi
suficientemente explicada ao se explicarem as causas das partes.

Hume está certamente correto que por vezes é o caso que uma explicação
sobre as partes de uma coisa explica o todo do qual as partes consistem, pelo menos
em um nível. Usando o seu próprio exemplo referindo-se a um reino particular,

191
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

uma explicação para "Por que isso é um reino?" Poderia ser "Porque há várias
províncias unidas". Mas, é claro, em outro nível esta resposta é incompleta. Pode-
se também buscar razoavelmente a causa porque as províncias foram, de fato,
unidas umas às outras para formar o reino, pois os reinos são os tipos de coisas que
envolvem a união de províncias por razões específicas. Portanto, esta analogia,
bem como a que ele usa sobre os membros de um corpo, não parecem funcionar
no modo como Hume havia imaginado.

Para que possamos afirmar que o universo como um todo não precisa de
uma causa, parece que teríamos de afirmar que os indivíduos contingentes do
qual a série consiste também não precisam de causas. Mas isso seria simplesmente
afirmar que eles não são contingentes afinal de contas. De fato, alguns sustentam a
visão de que não existem seres contingentes, e o fazem isso por várias razões. Uma
destas razões oferecidas é que os termos “contingente” e “necessário” carecem de
sentido.

2.4 OBJEÇÃO 4: QUEM CAUSOU DEUS A EXISTIR?


Pode-se objetar que, se o universo como um todo precisa de uma explicação
porque a série contingente da qual ele consiste precisa de uma explicação, então
assim também Deus precisa de uma explicação. Por outro lado, se Deus não precisa
de uma causa, então a série contingente que compõe o universo não precisa de
uma causa também.

Em resposta, os defensores do argumento concordam que a série causal


deve parar em algum lugar, deve haver uma explicação fundamentadora. No
entanto, por definição, coisas contingentes necessitam causas, ao passo que as
coisas necessárias não. Assim, por definição, Deus (como um ser necessário não
contingente) não precisa de uma causa. Isso significa que, por definição, Deus é
a causa não causada que explica a série contingente que compõe o universo. Se
Deus realmente existe ou não é uma questão separada desta resposta à objeção;
ela só está afirmando uma definição comumente aceita de Deus, e, em seguida,
observando que tal definição, de fato, fornece uma explicação fundamentadora
para a série que de outra forma seria inexplicável.

2.5 OBJEÇÃO 5: MESMO ADMITINDO A EXISTÊNCIA DE


UMA CAUSA NECESSÁRIA, ESTA CAUSA NÃO PRECISA SER
DEUS
Há um número de diferentes aspectos desta objeção, mas a essência dela é
que mesmo se admitirmos as premissas 1-3, não há nenhuma razão para acreditar
que este ser necessário é Deus, certamente não o Deus das religiões teístas. Esta é
uma séria objeção a esta forma do argumento cosmológico. Por que se deve inferir
que o ser necessário é equivalente a Deus? Talvez o ser necessário é mais semelhante
192
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

ao “Deus” de Aristóteles, um "motor imóvel" de pensamento impessoal puro.


Tal ponto de vista de Deus está muito longe daquele pessoal, envolvente sendo
oferecido pelas grandes religiões teístas.

Uma resposta a essa objeção é manter que o ser necessário exigido pelo
argumento cosmológico é melhor compreendido como o ser mais perfeito do
argumento ontológico, um exemplo de tal posição pode ser visto nas partes A605-
7 e 508-10 da “Crítica Razão Pura” de Kant (2001). Vamos examinar o argumento
ontológico no Tópico 6, mas uma dificuldade aqui, como observado por Immanuel
Kant (1704-1824), é que, se o conceito de um ser necessário é expresso em termos do
conceito de um ser mais perfeito (e o último é central para o argumento ontológico),
isto parece fazer o argumento cosmológico dependente do argumento ontológico,
e muitos têm argumentado que o argumento ontológico é deficiente.

Outra resposta a essa objeção é simplesmente conceder e admitir que


este argumento cosmológico, tomado por si só, não implica o Deus das religiões
tradicionais. Respondedores desta espécie tipicamente sustentam que ele fornece
razão para acreditar em algum tipo de Deus, e assim fornece razão para não ser
um ateu.

3 O ARGUMENTO DA RAZÃO SUFICIENTE


Uma segunda forma de argumento cosmológico é chamada de o argumento
da razão suficiente, ou o argumento cosmológico da razão suficiente. É semelhante
ao argumento da contingência, mas é baseado na premissa de que deve haver uma
razão suficiente, ou explicação (e não uma causa), para a existência de qualquer ser
contingente, assim como para o universo contingente como um todo. Os primeiros
defensores do argumento da razão suficiente foram o filósofo racionalista alemão
Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), verifique sua obra “A Monadologia” (2009)
e o filósofo Inglês Samuel Clarke (1675-1729), verifique a sua obra “A demonstration
of the being and attributes of God” (1728). O quadro abaixo mostra um modo de
declarar tal argumento.
QUADRO 8 – O ARGUMENTO RAZÃO SUFICIENTE
Todas as coisas (seres) que existem devem ter uma razão suficiente para a sua existência.
A razão suficiente para a existência de uma coisa deve estar na coisa em si ou fora da coisa.
Todas as coisas no universo são coisas para as quais a razão suficiente das mesmas se
encontram fora delas mesmas (ou seja, nada no universo fornece sua própria explicação
para a sua existência).
O universo não é nada mais do que a coleção das coisas que o compõe.
Assim, deve haver uma razão suficiente, para o universo como um todo, que se encontra
fora dele mesmo.
Não pode haver uma regressão infinita de tais razões suficientes, pois então não haveria
nenhuma explicação final das coisas.

193
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

Portanto, deve haver uma coisa (Ser) primeira autoexplicativa cuja razão suficiente para
a sua existência encontra-se em si mesma, em vez de fora de si (ou seja, um ser necessário
cuja não existência é impossível).
FONTE: O autor

Em termos simples, a essência desse argumento é que tudo o que existe no


mundo precisa de uma explicação para a sua existência, e nada no mundo fornece
uma explicação para si mesmo (incluindo o mundo como um todo). Então, deve
haver uma explicação fora dele, uma explicação que é suficiente em si mesma. E
nós chamamos essa explicação "Deus".

Uma pergunta relacionada colocada por Leibniz (2009) é esta: "Por que
existe algo em vez de nada?" Por que o universo existe, em vez de apenas nada?
Não parece razoável buscar uma explicação para sua existência? Uma analogia
pode ser útil neste momento. O filósofo Richard Taylor (1919-2003) nos pede para
imaginar que estamos caminhando por uma floresta e nos deparamos com uma
bola translúcida:

Suponha, então, que você tenha encontrado esta bola translúcida e


esteja mistificado por ela. Agora seja o que for que você pondere sobre
ela, há uma coisa que você dificilmente questionaria; nomeadamente,
que ela não apareceu lá por si só, que ela deve a sua existência a algo.
Você pode não ter a mais remota ideia de onde e como ela veio parar
lá, mas você dificilmente duvidaria de que houvesse uma explicação.
A ideia de que ela poderia ter vindo do nada, de que poderia existir
sem que haja qualquer explicação para sua existência, é uma que poucas
pessoas consideram digna de entretenimento.

Ele continua:

Isso ilustra uma crença metafísica que quase parece fazer parte da
própria razão, mesmo que apenas alguns homens pensem nisso; a crença
de que há uma explicação para a existência de qualquer coisa, alguma
razão do por que isso deve existir ao invés de não. A não existência de
algo, o que não deve ser confundida com a extinção da existência de
algo, nunca requer uma explicação; mas a existência requer. Que nunca
devesse haver qualquer bola na floresta não exige qualquer explicação
ou razão, mas que devesse haver tal bola, exige (TAYLOR , 1969, p.
100-101).

Referindo-se a alguma coisa de concreto em particular, como um taco de


beisebol ou a bola translúcida mencionada acima ou ao universo como um todo,
dada a sua existência, parece razoável pedir uma explicação para a mesma. O
defensor do argumento da razão suficiente, então, coloca o detrator na defensiva
e faz a pergunta: "Quem está sendo mais razoável, a pessoa que sustenta que há
uma razão suficiente para a existência do universo, ou a pessoa que nega isso?". À
primeira vista, a resposta parece óbvia.

Em resposta, tem havido uma série de objeções levantadas contra o

194
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

argumento de razão suficiente. Várias das objeções mencionadas acima em relação


ao argumento da contingência, por exemplo, também podem ser aplicadas a
este argumento. Nós não vamos ensaiar essas objeções aqui, mas outras foram
levantadas especificamente em relação ao argumento da razão suficiente.

3.1 OBJEÇÃO 1: NÃO HÁ NENHUMA MANEIRA DE DE


MONSTRAR QUE O PRINCÍPIO DA RAZÃO SUFICIENTE É
VERDADEIRO
De acordo com essa objeção, não há maneira de provar o princípio de
Leibniz da razão suficiente (que cada fato e declaração verdadeira tem uma razão
suficiente para o porquê é do jeito que é e não o contrário). Em primeiro lugar, não
há nenhuma evidência empírica para provar o princípio, que não se pode inferir
a partir de nossa experiência sensorial que cada fato e declaração verdadeira tem
uma razão suficiente para a maneira que é. Em segundo lugar, não é uma verdade
logicamente necessária, a sua verdade pode ser logicamente negada. Em terceiro
lugar, não é uma verdade a priori; enquanto uma série de filósofos tem acreditado
que o mesmo seja verdadeiro, outros negaram que é. Desde que a premissa 1 do
argumento é baseada neste princípio, esta objeção levanta sérias dúvidas sobre o
argumento da razão suficiente.

Uma maneira de responder a essa objeção é manter que o princípio da razão


suficiente é mais razoável de acreditar do que de negar. Pode-se, por exemplo,
argumentar que é uma crença propriamente básica (como a minha crença de que
eu existo, ou a minha crença de que há realmente um mundo externo) ou que se
pode simplesmente intuir sua verdade. Parece de fato que muitos, se não a maioria
das pessoas, acreditam que há alguma razão por que as coisas existem e não o
contrário. Pode-se, também, observar que a própria prática da ciência pressupõe
que este princípio é verdadeiro. Imagine um cenário em que um cientista, com a
intenção de encontrar a razão pela qual vinte ratos experimentais desenvolveram
em seu laboratório tumores grandes, concluir que não há nenhuma razão afinal
para tais crescimentos! É duvidoso que o cientista seria levado a sério.

É claro que essas respostas pressupõem que o princípio em si seja coerente,


mas, como veremos a seguir, alguns têm argumentado que não o é.

NOTA

Crença propriamente básica. Uma crença propriamente básica é uma crença da


qual é possível, mas insensato exigir justificação. Os exemplos incluem as crenças de que eu
existo, de que há outras mentes, e de que há um mundo externo.

195
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

3.2 OBJEÇÃO 2: O PRINCÍPIO DA RAZÃO SUFICIENTE É


INCOERENTE

De acordo com essa objeção, o princípio da razão suficiente acaba por ser
uma noção incoerente em relação à existência do universo. Veja como a objeção
se desenvolve. Ou a explicação para a existência do universo contingente está
em si mesma em necessidade de mais explicações, ou ela não está. Se ele está em
necessidade de mais explicações, então ela também é contingente, e por isso não
fornece uma explicação última (ou seja, não é uma razão suficiente) para o universo.
Por outro lado, se a explicação para a existência do universo contingente é em si
mesma uma explicação necessária, então o que explica (isto é, o universo) deve
também ser necessário. O universo teria que ser necessário, em vez de contingente,
uma vez que o que se explica por uma razão suficiente também está implicado
por ela. Portanto, se o universo está implicado por um ser necessário, então ele
também deve ser necessário. Se o universo é necessário, então ele não precisa de
uma explicação externa para sua existência.

Em resposta, os defensores do argumento da razão suficiente concedem


que a explicação para a existência do universo contingente deve-se ser ela mesma
contingente ou necessária, e eles concluem que ela deve ser necessária. No entanto,
eles não concordam com o ponto de que, desde a explicação do universo é um ser
necessário, o universo deve ser ele mesmo necessário. A razão de que não teria
de ser necessário, eles argumentam, é que se o ser necessário, ou seja, Deus, tem
livre-arbítrio, então Deus poderia ter escolhido não criar o mundo. Por isso, é
contingente, não necessário.

No entanto, se Deus não precisava ter criado o mundo, então citar a


sua existência não fornece uma razão suficiente para a existência do mundo. É
necessário haver uma razão porque ele escolheu fazer o mundo. Se esta é uma
razão suficiente, então Deus não poderia deixar de ter criado o mundo e sua escolha
não foi livre (em um sentido indeterminístico). Se é um fato contingente que Deus
escolheu criar este mundo, o princípio da razão suficiente não será satisfeito,
porque exige que todos os fatos contingentes tenham uma explicação suficiente.

Além disso, respondem os objetores, se Deus é o ser mais perfeito (como


os teístas tradicionais sustentam), e se um ser perfeito não criaria um universo
inferior (como os teístas tradicionais também sustentam), então Deus teve que criar
este mundo, o melhor de todos os mundos possíveis. Portanto é necessário, não
contingente. (Veja, por exemplo, William Rowe (2011), especificamente o Capítulo
2, “O Argumento Cosmológico”). E assim o debate continua.

196
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

3.3 OBJEÇÃO 3: A SUBJETIVIDADE DE UMA EXPLICAÇÃO

Outra objeção é que, mesmo supondo que cada coisa tem uma explicação
suficiente, o que constitui uma justificação satisfatória para uma pessoa pode
não ser para outra. A este respeito a visão de mundo dos indivíduos pode entrar
em jogo. Uma explicação satisfatória para um ateu de um dado fenômeno pode
ser muito diferente daquela para um teísta, ou para um panteísta, ou para um
panenteísta.

3.4 OBJEÇÃO 4: A CIÊNCIA TEM DEMONSTRADO QUE


NÃO É NECESSÁRIO HAVER RAZÕES OU EXPLICAÇÕES
PARA TODAS AS COISAS E EVENTOS

Muitos físicos e filósofos da ciência contemporânea sustentam uma


interpretação indeterminista da mecânica quântica em que certos eventos
quânticos acontecem sem qualquer causa ou razão prévia. Então, por que se deve
sustentar que o próprio universo necessita de uma razão ou explicação? Talvez
tenha simplesmente sempre existido, ou talvez tenha surgido na existência por
nenhuma razão afinal.

No entanto, nem todos concordam com esta interpretação da mecânica


quântica e alguns têm argumentado que a questão aqui é epistemológica, não
ontológica. Em outras palavras, só porque não sabemos por que um determinado
evento quântico ocorreu, isso não quer dizer que não houve razão para esse
evento. Albert Einstein (1879-1955), que foi agraciado com o prêmio Nobel por
sua contribuição à teoria quântica, por exemplo, nunca concordou com essa
interpretação. Como ele disse: "Deus não joga dados" com o universo. No entanto,
seu colega Niels Bohr (1885-1962), cofundador da (indeterminística) interpretação
de Copenhague da mecânica quântica, disse isso em resposta: “Einstein, não diga
a Deus o que fazer". Na época, cada lado desta disputa científica acusava o outro
de ter o ônus da prova. Atualmente ainda há debate, e novas evidências sugerem
avanços e mais complexidades. Stephen Hawking (1999, sem paginação, tradução
nossa), por exemplo, afirmou que “o futuro do universo não é completamente
determinado pelas leis da ciência, e seu estado atual, como pensava Laplace. Deus
ainda tem alguns truques na manga”. Entretanto Hawking (1999, sem paginação,
tradução nossa) é enfático ao posicionar-se referente à colocação de Einstein sobre
o assunto. Ele diz:

Einstein estava duplamente errado quando disse que ‘Deus não joga
dados’. Deus não só joga dados, mas Ele às vezes nos confunde jogando-
os onde ninguém os pode ver [...] o universo não se comporta de acordo
com as nossas ideias preconcebidas. Ele continua a nos surpreender.

197
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

4 O ARGUMENTO KALAM
Uma terceira forma do argumento cosmológico é referida como o argumento
kalam, o termo "kalam” é uma palavra árabe que significa “teologia especulativa".
Foi desenvolvido nos tempos medievais por dois filósofos islâmicos, al-Kindi (c.
801-c. 873) e al-Ghazali (1058-1111). O seu principal defensor nos últimos tempos é
o filósofo cristão William Lane Craig (1949-), e, ao explicar e defender o argumento
ele estabelece a estrutura mostrada na figura abaixo.

DICAS

Para uma história e defesa do argumento kalam, veja a obra de William Lane Craig,
The Kalam Cosmological Argument (2000) ou o texto de Harry Lesser (2013), que sintetiza a
proposta de Craig.

FIGURA 4 - OS DILEMAS DO ARGUMENTO KALAM

Os dilemas são óbvios. O universo teve um começo ou não o teve. Se o teve,


este começo foi causado ou não foi causado. Se ele foi causado, a causa foi pessoal
ou foi impessoal. Com base nesses dilemas, o argumento pode ser colocado na
forma lógica demonstrada no Quadro 8 “O argumento kalam”.

198
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

QUADRO 9 – O ARGUMENTO KALAM

1 Tudo que começa a existir tem uma causa para sua existência.
2 O universo começou a existir.
3 Portanto, o universo tem algum tipo de causa para sua existência.
4 A causa do universo, ou é uma causa impessoal ou um Deus pessoal.
5 A causa do universo não é impessoal.
6 Por isso, a causa do universo é um Deus pessoal.
FONTE: O autor

Como foi dito, o argumento é logicamente válido. Então, mais uma vez, a
questão importante é, são as premissas verdadeiras? A primeira premissa parece
intuitivamente óbvia. Se alguma coisa vem a ser, ou passa à existência, deve haver
algo que causou a sua existência. Historicamente, esta primeira etapa não foi muitas
vezes negada, até mesmo por aqueles que duvidaram ou negaram a existência de
Deus, pela simples razão de que os eventos físicos parecem ser rastreáveis a causas
anteriores (em teoria, se não na prática real). Mas enquanto a sua verdade pode ser
intuitiva, como observado anteriormente, tem surgido nos últimos tempos objeções
significativas para a mesma. Por exemplo, Quentin Smith (2010, p. 128), um filósofo
ateu, escreve um excelente texto argumentativo para “mostrar que esta segunda
parte ‘teísta’ [do argumento kalam] não é sólida e que há uma segunda parte ‘ateia’
sólida que mostra que o universo se causa a si mesmo”.

Um tipo diferente de objeção a esta primeira premissa é que, se tudo o que


existe tem uma causa, Deus também não precisaria de uma causa? Esta objeção
também foi discutida anteriormente. Mas observe que a alegação no argumento
kalam não é que TUDO o que existe necessita de uma causa. Em vez, é que tudo o
que começa a existir tem uma causa.

NOTA

Al-Ghazali (1058-1111) foi um destacado teólogo, filósofo e místico do islã


medieval. Ele tem sido celebrado como a “Prova do Islã” e o “Renovador da Religião”. Sua obra
mais famosa é a The incoherence of the philosophers (A Incoerência dos Filósofos), em que
ele ataca uma versão aristotélica da filosofia árabe. Neste trabalho, ele argumenta que a razão
por si só não é capaz de fornecer uma prova completa para uma visão de mundo teísta. Mas
ele não fornece um argumento de que o universo teve um começo no tempo, um argumento
kalam, pois ele sustenta que acreditar em um universo eterno é equivalente a acreditar no
ateísmo.

Na explicação padrão cristã, judaica, islâmica e hindu teísta, Deus não


começou a existir. Deus sempre existiu; Deus é a causa não causada. Então,
perguntar quem/o que causou a causa não causada é fazer uma pergunta incoerente.
Claro que se poderia opor-se a esse significado de Deus, mas o opositor pode, pelo
199
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

menos, conceder que tal significado é coerente; se é verdadeiro ou falso é uma


questão diferente.

Outras críticas da primeira premissa foram oferecidas, no entanto, a etapa


no argumento que tem sido mais contestada pelo antagonista do argumento kalam
não é a premissa 1, mas a premissa 2. Craig e outros têm sustentado que existem
argumentos filosóficos e evidências científicas que apoiam fortemente a alegação
de que o universo começou a existir. Então, vamos agora examinar evidências para
essa afirmação, bem como respostas a elas.

4.1 UM ARGUMENTO FILOSÓFICO PARA O INÍCIO DO


UNIVERSO
Existem dois principais argumentos filosóficos para a premissa de que
o universo teve um começo. Nós só temos espaço aqui para um deles, aquele
que vários filósofos consideram ser o mais plausível, que vamos chamar de “o
argumento da travessia do infinito". Este pode ser expresso em três etapas.

QUADRO 10 – O ARGUMENTO DA TRAVESSIA DO INFINITO (SUSTENTANDO A PREMISSA 2 DO


ARGUMENTO KALAM)

A série de eventos no tempo que compõe toda a história do universo é uma


1
coleção formada adicionando um membro após o outro.
Uma coleção formada adicionando um membro após o outro não pode ser um
2
infinito real.
Por conseguinte, a série de eventos no tempo que se torna toda a história do
3
universo não pode ser um infinito real.

FONTE: Adaptado de Craig (2000)

Uma vez que a série não pode ser um infinito real, deve ser finita. Sendo
finita, a série de eventos no tempo deve ter um começo. Assim, o universo deve ter
um começo.

Vamos examinar cada uma das etapas desse argumento. Em primeiro


lugar, prima facie, a etapa 1 parece ser bastante clara. Os eventos que formam toda a
história são tomados um após o outro. Eles não ocorreram todos simultaneamente,
mas foram sequencialmente ocorrendo na medida em que o tempo avançou.
Assim como os eventos que ocorreram em sua vida a partir das 08h00min desta
manhã até às 20h00min desta noite são uma coleção de eventos formados por uma
adição sucessiva (eles são um adicionados após o outro), assim também são todos
os eventos em sua vida e, de fato, todos os eventos na história. Embora, esta visão
do tempo não seja universalmente aceita, e uma objeção a esta premissa é que ela
implica uma noção errada da natureza do tempo. Sugere-se que a premissa está

200
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

pressupondo uma Teoria-A, ou série-A, do tempo, na qual há fluxo temporal real.


Mas essa visão do tempo é debatível (veja as leituras do UNI DICAS).

DICAS

Para aprofundar nas questões da filosofia e física do tempo, sugerimos a leitura dos
seguintes textos. Os capítulos Natureza do tempo, Análises adicionais do tempo, e Natureza
relativística do tempo, de Osvaldo Pessoa Jr (2014) – capítulos 7, 8 e 9, respectivamente, o
artigo A irrealidade do tempo (2014) de MacTaggart J. e MacTaggart E., e o texto de Craig (2010),
Começar a Existir. Todos estes disponíveis on-line (verifique na bibliografia deste Caderno de
Estudos para acessar os textos). Outra importante obra é o livro Uma breve história do tempo
de Hawking (2015).

A premissa 2 é geralmente a mais criticada por opositores. Antes de


analisá-la, no entanto, a frase "infinito real" precisa ser explicada brevemente. Por
definição, um infinito real é uma totalidade ou conjunto de coisas ou acontecimentos
completos em vez de indefinidos. A fim de ter clareza sobre isso, é útil contrastar
um infinito real com um infinito potencial. Um infinito potencial é um conjunto
incompleto em que ele continua indefinidamente, mas nunca alcança o ponto de
ser um infinito real. Por exemplo, você poderia começar a contar agora e continuar
para sempre. Mas você nunca iria chegar ao lugar onde você poderia parar e dizer:
"Eu finalmente terminei a contagem de um conjunto infinito real de números".

Um infinito potencial, então, é indefinido no sentido em que ganha novos


membros, à medida que se expande, mas nunca chega a um fim. Um infinito real, por
outro lado, é definido, é um conjunto completo; tem um número fixo de membros
nele. O ponto aqui é que desde que você nunca poderia alcançar um infinito real,
movendo-se de um membro após o outro (isto é, pela adição sucessiva), mas ainda
assim, aqui estamos no final do conjunto de eventos que compõem a história até
este ponto, o conjunto de eventos que compõe o passado não pode ser realmente
infinito. Assim, o conjunto de eventos que formam o passado devem ser finitos, e,
portanto, o universo deve ter um começo.

NOTA

O campo da matemática que trata de infinitos reais é chamado de “teoria dos


conjuntos”, e há um debate animado sobre se conjuntos infinitos reais existem na realidade ou
são meras ideias na mente. Para saber mais sobre a teoria dos conjuntos, consulte a monografia
de Renan Maneli Mezabarba, Uma introdução à Teoria Axiomática dos Conjuntos (2012). Veja
também a monografia de Christiano O. de Rezende Sena (2011), para aprofundar a relação do
conceito de infinito com a Teoria dos Conjuntos.

201
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

4.1.1 Objeção: as séries temporais não têm começo

Várias objeções foram oferecidas para este argumento da travessia do


infinito, e uma delas é dada por Nicholas Everitt (2004), veja as páginas 63-64.
Talvez, sugere ele, não há nenhum ponto de partida afinal para as séries temporais;
talvez a série não tenha um membro mais antigo. Nenhum regresso vicioso emerge
de tal afirmação, argumenta ele, pois assim como o futuro pode continuar para
sempre, assim também o passado poderia voltar para sempre. É apenas no assumir
um início/começo de uma série infinita que se cria o problema objecionável.

No entanto, a seguinte resposta pode ser feita. Se houvesse uma série sem
começo, seria absurdo supor que em algum momento nós poderíamos alcançar o
momento presente.

O problema aqui não é nem uma questão de não ter tempo suficiente nem
de infinitamente adicionar um membro após o outro. Pelo contrário, parece ser um
absurdo metafísico. Craig (2014, sem paginação) expressa desta forma:

De fato, a ideia de uma série sem começo terminando no presente parece


absurda. Para dar apenas uma ilustração: suponha que encontremos
um homem que afirma ter contado através da eternidade e agora está
terminando: …, -3, -2, -1,0. Poderíamos perguntar por que ele não
terminou de contar ontem ou anteontem ou no ano passado? Até lá um
tempo infinito já teria se passado, então ele já deveria ter terminado
naquele tempo. Portanto, em nenhum ponto no passado infinito
poderíamos encontrar o homem terminando sua contagem, porque
em tal ponto ele já deveria ter terminado! De fato, não importa quão
longe voltemos ao passado, nós nunca poderemos encontrar o homem
terminando a contagem, pois em qualquer ponto que o alcançarmos
ele já terá terminado. Mas se em nenhum ponto do passado podemos
encontrar ele contando [até o fim], isto contradiz a hipótese de que ele
esteve contando pela eternidade. Isto ilustra o fato de que a formação
de um infinito real por adição consecutiva é igualmente impossível se
alguém o faz até ou do infinito.

Os objetores poderiam responder argumentando que a noção de uma


série sem começo pode parecer absurda, mas o fato é muitas vezes mais estranho
que a ficção. Parece absurdo supor que o objeto físico perante mim, um teclado
de computador, é na verdade principalmente espaço vazio com inúmeras
micropartículas girando em altas taxas de velocidade. Mas, de acordo com as
nossas melhores teorias físicas, isto é precisamente o que o teclado é. Muitas outras
objeções concisamente afirmadas a este argumento filosófico contra a travessia do
infinito estão expostas nas páginas 219-224 da obra de Richard Sorabji (1983).

202
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

4.2 DUAS SUPOSTAS EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS PARA O


INÍCIO DO UNIVERSO

4.2.1 Evidência 1: a segunda lei da termodinâmica

Uma das leis mais estabelecidas da ciência hoje é a segunda lei da


termodinâmica. A entropia é fundamental para esta segunda lei, que é entendida
como sendo a medida da energia indisponível, ou distúrbio, num sistema fechado.
Um exemplo de entropia seria a medida da diminuição de energia térmica numa
brasa. À medida que a brasa arrefece, a energia na madeira dissipa-se enquanto
o calor se dispersa no ambiente circundante. De acordo com a segunda lei, a
quantidade de energia disponível em um sistema termodinâmico fechado, um
sistema no qual nenhuma nova massa ou energia é posta, diminui ao longo
do tempo. Se o universo é um sistema termodinâmico fechado, a entropia do
universo está aumentando ao longo do tempo. Para colocá-lo de forma diferente, a
quantidade de energia disponível e de ordem no universo está diminuindo ao longo
do tempo. Como tal, irá acabar por atingir um estado de equilíbrio termodinâmico
(neste caso, tal equilíbrio significaria que a temperatura se manteria constante).
Todas as estrelas quentes no universo, por exemplo, eventualmente acabariam por
se esfriar e permaneceriam estáveis ​​a uma temperatura constante, não gastando
mais energia de calor. O universo acabará por chegar a um estado de equilíbrio
termodinâmico e de desordem máxima, o que alguns se referem como a “morte
térmica" do universo (SWEETMAN, 2013). A questão, então, levantada pelos
proponentes do Kalam, é esta: “Por que o universo já não chegou a este estado de
equilíbrio termodinâmico?".

Considere a seguinte analogia. Suponha que você entra em uma sala e


vê uma xícara de café expresso posta sobre a mesa perante você. Você pondera
quanto tempo ela está posta ali e então, enquanto ninguém está olhando, você
toma um gole. Você descobre que o café ainda está quente. Você, então, concluiria
que a xícara de café estava ali por meses, semanas, ou até mesmo dias? Claro que
não. Por que não? Por causa da segunda lei da termodinâmica e da entropia; a
energia térmica no café não foi totalmente dissipada, e por isso não poderia ter
estado lá por muito tempo. Uma vez que o universo ainda está "quente" (note a
estrela quente no nosso próprio sistema solar, por exemplo, o sol), registram os
defensores do argumento kalam, ele não poderia ter existido para sempre ou ele
também já teria "esfriado" há muito tempo. Portanto, o universo não poderia ter
existido para sempre; ele deve ter um começo. Nem todos concordam com esta
conclusão, é claro.

203
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

4.2.1.1 Objeção 1: a teoria do universo oscilante escapa


ao controle da segunda lei e elimina a necessidade de
um início do universo
Alguns físicos têm argumentado que o universo poderia escapar da morte
térmica elaborando a hipótese de um ciclo de expansão e contração do universo,
conhecida como a "teoria do universo oscilante", ou pulsátil (HOLT, 2013). Neste
modelo, depois de uma expansão do universo, a gravidade, eventualmente, o
detém, provoca uma contração, e ele colapsa novamente em uma singularidade.
Após a contração e o colapso, algum mecanismo faz com que o universo exploda
em um novo universo e, então, inicia o processo de expansão mais uma vez. Uma
vez que este ciclo pode continuar indefinidamente, não há necessidade de postular
uma morte térmica final, e, portanto, não há necessidade de postular um ponto
final ou início ao universo. A evidência empírica ao longo dos últimos 50 anos
tem favorecido fortemente o modelo padrão do big bang, no entanto, e não tanto
o modelo oscilante. A evidência para o big bang tem sido tão forte, de fato, que
praticamente ninguém sustenta o modelo oscilante atualmente (HAWKING, 2015;
CRAIG, 2014).

4.2.1.2 Objeção 2: o universo é infinito, e assim a segunda


lei da termodinâmica não se aplica ao universo como um
todo

De acordo com essa objeção, o universo é infinito e, portanto, não é um sistema


termodinâmico fechado. Desde que não é um sistema deste tipo, a segunda lei não
se aplica ao próprio universo. Atualmente existe um debate entre os cosmólogos
sobre se o universo é infinito ou finito em extensão e volume espacial. No entanto,
de acordo com a cosmologia do big bang, o universo observável (a região do espaço
que qualquer observador hipotético pode ver, e que é cientificamente relevante) é
certamente finito.

4.2.2 Evidência 2: a teoria do big bang

Um segundo tipo de evidência científica oferecida para o início do universo


é a teoria do big bang. Por muitos séculos, os astrônomos e cientistas geralmente
aceitaram que o Universo era estático, que era estacionário e não em expansão,
pelo menos não em qualquer sentido significativo. No entanto, no início de 1900,
uma série de observações científicas muito importantes estavam ocorrendo e que
mudariam o velho paradigma. Uma dessas observações foi do astrônomo Vesto
Slipher (1875-1969) em 1914. Ele observou que um número de nebulosas (uma
nebulosa é uma massa difusa de gás ou poeira interestelar) foram se afastando da

204
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

Terra variando em altas taxas de velocidade. Os astrônomos da época não sabiam o


que fazer com esta descoberta observacional e seu significado passou despercebido.

Então, na década de 1920, o astrônomo Edwin Hubble (1889-1953), usando


um grande telescópio de 100 polegadas, observou que as nebulosas observadas
por Slipher eram na verdade galáxias muito além de nossa própria galáxia Via
Láctea e que elas estavam, de fato, se movendo mais longe em distância e em altas
velocidades. Veja como Hubble demonstrou esta recessão de galáxias. Ele estava
estudando a luz de galáxias distantes, e observou que as cores (cores entendidas
como comprimentos de onda de luz) emitidas por estas galáxias não se encaixavam
com os comprimentos de ondas esperadas. Em vez disso, elas se deslocaram para
a extremidade do espectro vermelho, e este desvio para o vermelho (redshift) da
luz das galáxias aumentava numa proporção direta à distância em que as galáxias
foram localizadas. Este efeito redshift observacional combinava com as concepções
teóricas que os cosmólogos já tinham sugerido, que o universo estava realmente
em expansão.

A evidência observacional de Hubble, juntamente com os postulados


teóricos, causou a grande maioria dos cosmólogos atuais a concordarem que o
universo se originou em uma singularidade infinitamente densa e que, a partir
deste início inicial, o próprio espaço se expandiu com a passagem do tempo (veja
a figura a seguir). Como o físico teórico Stephen Hawking expressa: "Quase todo
mundo agora acredita que o universo, e o próprio tempo, teve um começo no big
bang” (HAWKING; PENROSE, 1997, p. 20).

NOTA

Stephen Hawking (1942-) é Professor Lucasiano de Matemática da Universidade


de Cambridge (uma posição uma vez mantida por Sir Isaac Newton). Ele é amplamente
reconhecido como o mais físico teórico brilhante desde Einstein. Sua pesquisa centrou-se
principalmente sobre as leis básicas que governam o universo e, junto com Roger Penrose,
ele mostrou que a Teoria da Relatividade Geral de Einstein implica que o espaço e o tempo
tiveram um começo no big bang e irão acabar em buracos negros. Ele já publicou tantos
artigos acadêmicos e livros populares, incluindo o best-seller Uma Breve História do Tempo
(2015).

FIGURA 5 – A EXPANSÃO DO ESPAÇO COM A PASSAGEM DO TEMPO

FONTE: O autor
205
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

4.2.2.1 Objeção: alternativas para o big bang


Nem todos concordam com a teoria do big bang, no entanto existem outros
modelos do universo que têm sido propostos ao longo das últimas décadas, incluindo
as novas teorias da “cosmologia de branas” que introduzem multidimensões do
universo (HORVATH et al., 2007; NOVELLO, 2010). Estes modelos são atualmente
considerados protocientíficos, e talvez as próximas décadas oferecerão novos
insights sobre sua plausibilidade. Neste momento, no entanto, o modelo mais bem
estabelecido do universo, o que continua a ser mais corroborado pela evidência
científica, é a teoria tradicional do big bang. Ela não explica tudo o que precisa ser
explicado sobre o nosso universo, porém, e, como acontece com todas as teorias
científicas, pode ser bem aconselhável mantê-la provisoriamente.

4.3 A CAUSA DO UNIVERSO É UM DEUS PESSOAL?

Até agora, em nossa análise do argumento kalam, os argumentos têm focado


principalmente sobre se o universo começou a existir, e no caso afirmativo, se a sua
existência precisa de uma causa. O elemento final do argumento kalam tem a ver
com se a causa do universo é um Deus pessoal ou não.

Quais podem ser algumas das razões para sustentar que a causa do
universo é pessoal, como os proponentes do argumento Kalam mantêm? De acordo
com a cosmologia do big bang, antes do início do universo (antes em um sentido
ontológico, não temporal) não havia tempo, espaço, matéria ou energia, e, portanto,
nenhuma mudança de um estado de coisas para outro. Mas em tal estado, como
pode um primeiro evento ocorrer? Poderia surgir espontaneamente e sem uma
causa? Isto pareceria ser menos do que razoável. Outra possibilidade é que é
um evento pessoal em que um agente escolhe livremente agir. Esta é a resposta
teísta: um Deus pessoal atemporal, sem espaço, sem matéria, trouxe o universo à
existência por sua própria escolha livre. Deste ponto de vista, a decisão de Deus
de criar o universo não foi determinada por uma causa anterior. Pelo contrário,
foi um evento autocausado deliberadamente escolhido por um Deus pessoal para
uma razão (não determinativa) ou conjunto de razões (ABBAGNANO, 2007;
O’CONNOR, 2000).

A ideia de um evento de autocausado, e de forma mais ampla o que é


referido como "causação por agente" (BONJOUR; BAKER, 2010), tem seu próprio
conjunto de dificuldades, não sendo a menor delas a questão de que um evento
autocausado parece ser um evento não causado. Se assim for, postular um Deus
pessoal como a primeira causa não resolve nada.

206
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

Outra possibilidade é que não há um agente causal externo ao nosso


universo que é pessoal, mas não é Deus (pelo menos no sentido tradicional). Talvez
um ser pessoal, mas finito de fora do universo causou a singularidade big bang. No
entanto, dadas as constrições do modelo padrão do big bang, tal ser necessitaria ser
imaterial e atemporal, e estas são propriedades que os ateus consideram onerosas.

DICAS

Veja o vídeo O argumento cosmológico kalam de William Lane Craig. Disponível


em: <https://www.youtube.com/watch?v=1nHsebfA_Gs>. Acesso em: 12 jul. 2015. Assista
também à refutação deste argumento por Peter Millican, no vídeo Argumento Kalam Refutado.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=d-10EFV5u8s>. Acesso em: 12 jul. 2015.

5 UM ARGUMENTO COSMOLÓGICO PARA O ATEÍSMO

Embora o argumento kalam utilize o trabalho recente em cosmologia


do big bang como suporte científico para o início do universo, tem-se também
argumentado que a teoria do big bang é incompatível com o teísmo. O principal
defensor deste argumento cosmológico para o ateísmo é Quentin Smith (1952-), e
seu argumento pode ser apresentado na forma mostrada no quadro a seguir.

QUADRO 11 – O ARGUMENTO COSMOLÓGICO PARA O ATEÍSMO


A singularidade big bang (o ponto inicial do universo onde a curvatura do espaço torna-se, pelo
1
menos teoricamente, infinita) é o estado mais antigo do universo.
O estado mais antigo do universo é inanimado (2 segue a partir de 1 desde que a singularidade
2
envolve as condições de temperatura infinita, curvatura infinita, e densidade infinita hostis à vida).
Nenhuma lei governa a singularidade big bang e, consequentemente, não há garantia de que ela
irá emitir uma configuração de partículas que irá evoluir num universo animado (com base no
3
princípio da ignorância de Stephen Hawking em que a singularidade é inerentemente caótica
e imprevisível).
O estado mais antigo do universo não é garantido que evoluirá para um estado animado do
4
universo (implicado pelas premissas 1-3).
A premissa 4 é inconsistente com a hipótese de que Deus, a visão judaico-cristã-islâmica clássica
de Deus como criador do universo, criou o estado mais antigo do universo, pois é verdade que,
5
se Deus criou o estado mais antigo do universo, então, Deus teria assegurado que o primeiro
estado do universo evoluiria num estado animado do universo.
6 Portanto, o Deus judaico-cristão-islâmico clássico não existe (implicado pelas premissas 4-5).

FONTE: Adaptado de Quentin Smith (2010)

207
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

Para resumir o argumento, o estado imprevisível e caótico da singularidade


big bang é incompatível com o Deus criador das religiões teístas. O argumento é
logicamente válido, portanto, novamente devemos considerar se as premissas são
verdadeiras. Os teístas têm oferecido uma série de objeções a este argumento, e
vamos considerar em seguida três das principais.

5.1 OBJEÇÃO 1: A SINGULARIDADE NÃO É


ONTOLOGICAMENTE REAL
De acordo com essa objeção, a premissa 1 do argumento é falsa, pois
enquanto a explosão do big bang é tomada como sendo um evento real, a
singularidade é entendida como sendo uma ficção teórica, e, portanto, não sendo o
estado mais antigo do universo. Se a premissa 1 é falsa, o argumento ateísta entra
em colapso. Um proponente desta objeção é William Lane Craig.

[...] A singularidade não tem status ontológico positivo: à medida


em que alguém rastreia a expansão cósmica de volta no tempo, a
singularidade representa o ponto em que o universo deixa de existir.
Não faz parte do universo, mas representa o ponto em que o universo
em contratação invertido no tempo desaparece no não ser. Não houve
um primeiro instante do universo justaposto à singularidade. A série
temporal é como uma série de frações que convergem para 0 como seu
limite: 1/2, 1/4, 1/8, ..., 0. Tal como não existe uma primeira fração, assim
também não há um primeiro estado do Universo. A singularidade é,
portanto, equivalente a nada ontologicamente (CRAIG; SMITH, 1995, p.
224, tradução nossa).

Craig argumenta ainda que uma boa razão para interpretar a singularidade
como irreal é que ela é descrita como não tendo dimensões espaciais e sem duração
temporal. Como ele diz: "A singularidade tem zero dimensionalidade e existe por
nenhum período de tempo; ela é de fato um ponto matemático" (CRAIG; SMITH,
1995, p. 227, tradução nossa). Sustentar que tal ponto é real é reificar uma mera
construção matemática.

Smith contrapõe essa objeção, argumentando que não há razão para rejeitar
a realidade da singularidade; ao contrário, ele argumenta que, na cosmologia do
big bang padrão a singularidade é o término real dos caminhos espaço-temporais
convergentes dirigidos ao passado. O debate, então, gira em torno da metafísica do
tempo, do espaço e da matemática.

E
IMPORTANT

Singularidade Big Bang: um ponto hipotético no espaço-tempo onde as leis da


física deixam de funcionar e a densidade do universo e a curvatura do espaço-tempo se torna
infinita. Na maioria dos modelos big bang do universo, este é o ponto onde o tempo em si
mesmo começou.

208
TÓPICO 4 | ARGUMENTOS COSMOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

5.2 OBJEÇÃO 2: DEUS NÃO É LIMITADO POR LEIS OU PELA


FALTA DELAS PARA REALIZAR OS PROPÓSITOS DIVINOS
De acordo com essa objeção, a premissa 3 é falsa, pelo menos por duas
razões. Em primeiro lugar, poderia ser o caso de que o plano de Deus fosse de
intervir nos estágios iniciais do universo, a fim de garantir que os organismos
vivos, incluindo os seres humanos, acabariam eventualmente por evoluir. Não é,
necessariamente, um sinal de planejamento mau ou irracional da parte de Deus
fazer isso. Pode ser que, ao contrário do universo do relojoeiro postulado pelos
deístas, Deus está envolvido criativamente no universo em diferentes fases do seu
desenvolvimento. Enquanto que isto pode não ser a maneira mais eficiente para
criar um universo, argumentam os objetores, o Deus das religiões teístas não está
preocupado principalmente com a eficiência. Tal Deus não está preocupado com a
escassez de poder.

Em segundo lugar, pode ser que, ao contrário de Smith (e de Hawking),


a singularidade não é um "caldeirão de ilegalidade violento e aterrorizante"
(CRAIG; SMITH, 1995, p. 235, tradução nossa). Talvez existam leis que governam
a singularidade que ainda necessitam ser descobertas, leis que irão demonstrar
que o princípio da ignorância é falso.

Outra resposta correlata é negar a premissa 5 que Deus teria assegurado


um estado animado do universo. Não parece haver qualquer necessidade lógica ou
metafísica para Deus criar este universo acima e além de um universo inanimado,
ou para não criar qualquer universo em absoluto. No entanto, os teístas admitem
que parece sim haver alguma força existencial e possivelmente um suporte religioso
para a crença de que o Deus das principais religiões teístas iria criar organismos
vivos (especialmente racionais e morais). Mas talvez esses sentimentos são apenas
anseios antropocêntricos.

5.3 OBJEÇÃO 3: A HIPÓTESE TEÍSTA DA CRIAÇÃO É MAIS


SIMPLES E, PORTANTO, MAIS PROPENSA A SER VERDADE DO
QUE A HIPÓTESE ATEÍSTA
Essa objeção, levantada pelo filósofo Richard Swinburne (1934-) é que uma
criação divina é uma visão mais simples do que a visão ateísta, e como tal, é mais
provável que seja verdadeira (SWINBURNE, 1998). Swinburne está operando
no princípio científico de que quanto mais simples a explicação para algo, mais
provável é para esta ser verdadeira. Este princípio, juntamente com a suposição
(1) que o universo físico é uma coisa bastante complexa, e a suposição (2) que
Deus é um ser simples (simples no sentido que um ser com poder, conhecimento,
e bondade infinitos é mais simples do que um ser, ou objeto, com valores finitos),
conduz à conclusão de que uma explicação teísta para o universo é mais provável
de ser verdadeira do que aquela de um ateu.

209
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

O ateu pode responder de, pelo menos, duas maneiras. Primeiro, ele
poderia conceder o princípio da simplicidade e da suposição (2), mas negar a
suposição (1). Isto é precisamente o que Smith faz. Ele concede o princípio, mas
nega a suposição (1) pelo seguinte motivo: uma vez que a singularidade tem zero
volume espacial, zero duração temporal, e não tem valores finitos particulares para
sua densidade, "Parece razoável supor [... que] este ponto instantâneo é o objeto
físico mais simples possível" (SMITH, 1992, sem paginação). Concedendo que este
objeto simples é pelo menos tão simples quanto a hipótese teísta, é mais simples
supor que o universo começou a partir do mesmo tipo de material básico (ou seja,
coisas materiais) do que postular algum tipo adicional de material (ou seja, "coisa
divina" imaterial).

DICAS

No artigo “Um argumento cosmológico a partir do big bang para a inexistência


de Deus”, Quentin Smith (1992), levanta objeções argumentativas às propostas de Craig e
Swinburne, entre outros argumentos cosmológicos. Vale a pena conferir a tradução deste
artigo no seguinte site:
<https://rebeldiametafisica.wordpress.com/argumentos-ateologicos/>. Acesso em: 20 jul. 2015.

Uma segunda resposta que um ateu poderia oferecer é negar o princípio


da simplicidade (provavelmente não seria uma boa jogada, dado ao modo como a
ciência é realmente praticada) ou negar a suposição (2).

210
RESUMO DO TÓPICO 4

Neste tópico vimos:

• Quatro argumentos cosmológicos foram apresentados: três apoiando o teísmo e


um apoiando o ateísmo.

• O primeiro argumento, o argumento da contingência, concluiu que Deus, um


ser necessário, deve existir a fim de fazer com que as coisas contingentes no
universo existam. Cinco grandes objeções foram levantadas contra ele.

• O segundo argumento, o argumento da razão suficiente, concluiu que deve


haver uma explicação fora do universo, uma que seja suficiente em si mesma
(um ser necessário), uma vez que tudo o que existe no mundo necessita de uma
explicação para a sua existência, e nada no mundo fornece uma explicação para
si mesmo. Quatro objeções foram levantadas contra este argumento, cada uma
com o foco em algum aspecto enigmático da noção de uma razão ou explicação
suficiente.

• O terceiro argumento, o argumento kalam, concluiu que deve haver uma causa
pessoal para o universo. Ele utilizou um argumento filosófico e duas evidências
científicas para apoiar a premissa de que o universo começou a existir, e também
incluiu um argumento filosófico que este início deve ser pessoal. Quatro objeções
foram levantadas, duas para o primeiro argumento filosófico e uma para cada
uma das supostas evidências científicas. As objeções contra um início pessoal
também foram observadas.

• O quarto argumento, o argumento cosmológico para o ateísmo, concluiu que


Deus não deve existir, pois a existência de Deus é incompatível com o estado
imprevisível e caótica da singularidade big bang. Três objeções foram levantadas
contra esse argumento.

• Várias versões do argumento cosmológico foram debatidas durante séculos, e


com os recentes avanços na astronomia, na cosmologia e na astrofísica, continua
a emergir novo material para diálogos ricos e fecundos.

211
AUTOATIVIDADE

Vários argumentos cosmológicos foram formulados ao longo dos anos


para evidenciar a existência divina. Normalmente os argumentos podem
ser expostos em uma série de premissas seguidas de uma conclusão. Veja o
seguinte argumento:

1 - Tudo que começa a existir tem uma causa para sua existência.
2 - O universo começou a existir.
3 - Portanto, o universo tem algum tipo de causa para sua existência.
4 - A causa do universo, ou é uma causa impessoal ou um Deus pessoal.
5 - A causa do universo não é impessoal.
6 - Por isso, a causa do universo é um Deus pessoal.

Assinale abaixo a alternativa correta sobre qual foi o argumento descrito


acima.

a) Argumento Cosmológico para o Ateísmo.


b) Argumento da Contigência.
c) Argumento Kalam.
d) Argumento da Razão Suficiente.

212
UNIDADE 2
TÓPICO 5

ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS
DA EXISTÊNCIA DIVINA

1 INTRODUÇÃO
Como vimos no tópico anterior, os argumentos cosmológicos começam
com o fato de que há coisas existentes contingentemente no mundo e concluem
com a existência de um criador não contingente para explicar a existência dessas
coisas. Os argumentos teleológicos (ou argumentos do, ou para o design), por
outro lado, são bastante diferentes, pois eles começam com certas propriedades do
mundo e concluem com a existência de um grande arquiteto/designer do mundo,
um designer com certas propriedades mentais, tais como intenção, conhecimento e
propósito.

A origem do argumento teleológico retorna aos pensadores antigos do


Oriente e do Ocidente. Na Índia, por exemplo, o argumento foi proposto pela
escola Nyaya (100-1000 EC), que defendeu a existência de Deus com base na
ordem do mundo, ordem esta que foi comparada com artefatos e com o corpo
humano (VALLE, 1997; COLLINS, 2013). No Ocidente, o argumento pode ser
rastreado até Heráclito (c. 535-575 AEC), Platão, Aristóteles e os estoicos. Embora
o argumento continuasse a ser utilizado de vez em quando ao longo da história, o
seu renascimento ocorreu no início do século XIX, com William Paley (1743-1805),
talvez o seu defensor mais ardente.

E
IMPORTANT

Argumento teleológico: deriva dos termos gregos telos (fim ou objetivo) e logos
(razão ou explicação racional). O argumento teleológico, primeiro desenvolvido por antigos
filósofos gregos e indianos, assume uma variedade de formas. O tema comum entre todas
elas é que a ordem meios/fins que existe no mundo natural é melhor explicada por um design
intencional/proposital.

213
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

2 O ARGUMENTO DO DESÍGNIO (DESIGN) DE PALEY

O livro de William Paley, Natural Theology (Teologia Natural) (2006),


originalmente publicado em 1802, é uma defesa e explicação sustentada do
argumento do desígnio. Começa com estas palavras:

Ao atravessar uma charneca, suponha que eu choquei meu pé contra


uma rocha, e pergunto-me como a pedra foi parar lá; Eu poderia
possivelmente responder à minha curiosidade, que, por tudo o que eu
possa saber, a pedra tinha estado lá desde sempre. Absurda seria esta
resposta, ainda que por ventura não fosse fácil demonstrar que assim
o é. Mas suponha que eu tivesse encontrado um relógio no chão, no
lugar da rocha, e devesse investigar como o relógio passou a estar nesse
lugar; Eu dificilmente pensaria na resposta que eu tinha antes dado,
que, por tudo o que eu possa saber, o relógio pode sempre ter estado
lá. No entanto, por que não deveria esta resposta servir para o relógio,
bem como para a pedra? Por que não é admissível no segundo caso,
como no primeiro? Por esta razão, e por nenhuma outra, que, quando
chegamos a inspecionar o relógio, percebemos (o que não poderíamos
descobrir na pedra) que suas várias partes são enquadradas e unir
com um propósito, e. g. que elas estão assim formada e ajustadas de
modo a produzir o movimento e que o movimento assim regulado de
modo a apontar a hora do dia; que, se as diferentes partes tivessem
sido formadas diferentes da que são, de um tamanho diferente do que
elas são, ou postas de qualquer outra forma, ou em qualquer outra
ordem, do que aquela em que elas são postas, nenhum movimento
em absoluto teria sido exercido na máquina, ou nenhum movimento
que teria respondido à utilização que agora é servida por ele [...].
Sendo observado este mecanismo (que exige de fato uma análise do
instrumento e, talvez, algum conhecimento prévio do assunto, para
perceber e compreendê-lo; mas, sendo uma vez, como já dissemos,
observado e compreendido), a inferência, pensamos, é inevitável, que
o relógio deve ter tido um fabricante: que deve ter existido, em algum
momento, e em algum lugar ou outro, um artífice ou artífices que o
formaram com o propósito que posso hoje observar; que compreendeu
a sua construção, e projetou o seu uso [...]. Cada indicação de artifício,
toda a manifestação de desígnio, que existia no relógio, existe nas obras
da natureza; com a diferença, no lado da natureza, de ser maior e mais
numerosa, e num grau que excede todo cálculo (PALEY, 2006, p. 7-8, 16,
tradução nossa).

NOTA

William Paley (1743-1805) foi um teólogo inglês, filósofo e apologista cristão. Ele
se tornou um membro no Christ College de Cambridge, em 1766. Escreveu uma
série de livros, incluindo o The Principles of Moral and Political Philosophy que se tornou o
livro-texto de ética na Universidade de Cambridge. Sua obra mais famosa é a Natural History:
or evidences of the existence and attributes of the Deity, collected from the appearances of
nature (1802), o livro no qual ele apresenta sua analogia do relojoeiro. O livro Teologia Natural,
pode ser lido em espanhol na íntegra, em sua edição de 1825, no Google Books. Disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=hQVeAAAAcAAJ&hl=pt-BR&source=gbs_navlinks_s>.
Acesso em: 26 jul. 2015.

214
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

Paley está usando um argumento da analogia: uma vez que podemos inferir
um designer (arquiteto) de um artefato, como um relógio, dado o seu propósito
evidente e sua estrutura ordenada, assim também devemos inferir um grande
designer das obras da natureza, uma vez que elas são ainda maiores em termos
de sua ordem e de sua complexidade, o que ele posteriormente descreve como
“meios ordenados para fins". O argumento de Paley pode ser esboçado na forma
apresentada no quadro "O argumento do desígnio de Paley".

O argumento de Paley, é claro, não permaneceu sem ser desafiado. Algumas


das objeções mais ardentes surgiram a partir dos trabalhos de David Hume e de
Charles Darwin.

QUADRO 12 – O ARGUMENTO DO DESÍGNIO DE PALEY

Artefatos (como um relógio), com suas configurações de meios para fins, são os produtos de
1
desígnios (humanos).
2 As obras da natureza, tais como a mão humana, se assemelham a artefatos.
3 Assim, as obras da natureza são, provavelmente, os produtos de desígnio.
4 Além disso, as obras da natureza são muito maior em número e maior em complexidade.
Por isso, as obras da natureza foram, provavelmente, os produtos de um grande designer, muito
6
mais poderoso e inteligente do que um designer humano.

FONTE: O Autor

2.1 OBJEÇÕES 1-3: AS REFUTAÇÕES DE HUME


Talvez as objeções mais familiares ao argumento do desígnio de Paley
são aquelas refutações oferecidas pelo filósofo cético David Hume em seu livro,
publicado em 1779, Diálogos sobre a Religião Natural (1992). É importante notar
que embora a obra de Hume tivesse sido publicada vinte e três anos antes da obra de
Paley, por alguma razão este último não referenciou ou não levou em consideração
a obra de Hume. O que parece é que ele simplesmente não estava ciente da mesma.
De qualquer modo, uma importante refutação de Hume é que a analogia entre as
obras da natureza e os artefatos humanos não é particularmente forte. Vemos esta
refutação nas partes VI e VII dos Diálogos sobre a Religião Natural (1992). Existem
várias razões pelas quais a analogia é fraca, incluindo: (1) ao contrário de relógios,
existe apenas um universo, e, portanto, não temos outros universos para compará-
lo ou julgá-lo, e (2) em muitos aspectos o mundo (ou seja, a acumulação das obras
da natureza) não é como um artefato ou máquina humana e poderia tão facilmente
ser concebido como um grande animal ou vegetal. Como tal, ela levanta a falácia
de uma petição de princípio (petitio principii) supondo que o mesmo foi designado.

215
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

E
IMPORTANT

Petição de princípio (do latim, petitio principii). Também chamada de argumento


circular ou, em inglês, begging the question, é uma falácia informal. Neste tipo de argumento,
a conclusão que visa ser provada é utilizada como uma premissa no mesmo argumento. O
erro, portanto, não se encontra no aspecto formal do argumento, assim, a forma da inferência
não chega a ser inválida. Entretanto, as premissas não sustentam devidamente a verdade da
conclusão, podendo gerar engano.

Outra refutação é que mesmo que possamos inferir um grande designer


do universo, esse designer acaba por ser algo menos do que o Deus das religiões
teístas. Desde que efeitos semelhantes surgem de causas semelhantes, a partir de
um mundo finito não podemos inferir um designer infinito. Além disso, existem
imperfeições brutas e males consideráveis ​​no mundo. Então, se o mundo é
designado, é razoável concluir que o designer (ou designers, já que não há razão
para presumir apenas um), deve ter esses defeitos correspondentes também.

Uma terceira refutação é que só porque um universo tem a aparência de


desígnio, não se segue que é de fato projetado (HUME, 1992, parte VIII). Hume
cita como uma alternativa a hipótese de Epicuro, que propôs que o universo é
composto por um número finito de partículas que se deslocam em movimento
aleatório. Eventualmente, estas partículas vão acabar em um estado estável, e este
estado teria a aparência de desígnio, sem realmente o ser. Em outras palavras, o
universo, aparentemente projetado, pode vir a ser o resultado de mero acaso.

NOTA

David Hume (1711-1776), filósofo e historiador escocês, é amplamente reconhecido


como o filósofo mais importante a escrever em Inglês, e um dos pensadores mais importantes
na história da filosofia ocidental. Entre suas obras filosóficas mais significativas estão o Tratado
da Natureza Humana (1739-1740), Ensaios sobre o Entendimento Humano (1748), e sua obra
mais controversa, Diálogos sobre a Religião Natural (publicada postumamente, em 1779), na
qual ele ataca o argumento do desígnio. Outros textos que apresentam uma leitura de tais
refutações são os seguintes: Marcos R. da Silva (2006), Marília Cortês Ferraz (2012) e Evelise R.
T. Laux (2010). Todos disponíveis on-line. Verifique os endereços eletrônicos nas referências
bibliográficas respectivas no final deste Caderno de Estudos.

216
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

O que pode ser dito em resposta a essas refutações? Em primeiro lugar,


contrariamente à alegação de Hume, pode-se argumentar que, mesmo o mundo
sendo único, não se segue que um argumento da analogia não se pode aplicar. Se
analogias não pudessem ser aplicadas a eventos exclusivos, conclusões absurdas
viriam a seguir. Por exemplo, nunca se poderia chegar à conclusão sobre um
artefato único (digamos, descoberto a partir de um período antigo) que ele fora
projetado. Mas tais conclusões são com frequência alcançadas por arqueólogos.
Em segundo lugar, enquanto a analogia do relógio/mundo pode não ser perfeita,
ainda assim capta o ponto central: onde a finalidade, a ordem e a intenção são
evidentes, é razoável postular um designer. E as obras da natureza parecem refletir
finalidade, ordem e intenção. Trataremos deste assunto logo a seguir.

Em relação à segunda refutação, várias respostas podem ser oferecidas. Em


primeiro lugar, Hume está certo ao notar que o argumento não prova que o Deus
das religiões existe. No entanto, isso sem dúvida fornece provas de que é provável
que exista um grande designer do mundo (ou seja, um designer das obras da natureza
das quais o mundo é composto). Outros argumentos poderiam ser utilizados para
apoiar este em uma tentativa de demonstrar a existência do Deus das religiões. Em
segundo lugar, quanto ao mal e às imperfeições no mundo, pode ser respondido
que este argumento não aborda a questão da onibenevolência divina, mas sim a
questão da finalidade, da intenção e do design. Deus pode não ser capaz de criar
um mundo com seres livres que nunca cometeriam atos maus, mesmo que Deus
seja um ser onibenevolente e onipotente (FERRAZ, 2012). Veremos mais sobre esta
questão no Tópico 1, “Problemas do Mal”, da Unidade 3.

A terceira refutação de Hume, de que o mundo poderia ter surgido a partir


de um mero acaso, nos leva a uma quarta objeção ao argumento de Paley, e nos
conduz a Charles Darwin.

2.2 OBJEÇÃO 4: UMA VISÃO DARWINIANA DOS


ORGANISMOS BIOLÓGICOS
Talvez o pensador mais influente do século XIX foi Charles Darwin (1809-
1882). Em seu livro A Origem das Espécies (2009), publicado em 1859, Darwin
propôs o que se tornou uma das teorias mais significativas na história do pensamento
humano: que os organismos vivos se desenvolveram a partir de formas simples a
formas mais complexas gradualmente ao longo do tempo e através dos processos
puramente naturais e não intencionais de variação aleatória, a seleção natural e a
sobrevivência do apto. Esta é, naturalmente, a teoria da evolução de Darwin.

217
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

DICAS

Para uma apresentação clara da Teoria da Evolução leia a obra de Ernst Mayr, O
que é a evolução (2009), a obra de Mark Ridley, Evolução (2006) e a obra de Douglas Futuyama
(2009). Essas três obras apresentam não somente a história da teoria, mas as evidências em
diversas áreas da ciência e seu status atual. Um texto excelente que visa esclarecer algumas
dúvidas sobre a confusão que muitos fazem se a evolução é uma teoria ou um fato, é o
Evolução é um fato e uma teoria de Laurance Moran (1993). Disponível em: <http://www.
darwin.bio.br/?p=75>. Acesso em: 29 jul. 2015.

À primeira vista, a teoria da evolução parece soar a sentença de morte para


o argumento do desígnio de Paley, pois aqui temos o acaso e as leis da natureza, em
vez de intenção, propósito e desígnio, explicando as obras da natureza. Portanto,
não há necessidade de postular um grande designer do mundo. Veja a seguir uma
visão comum da aparente destruição de Darwin do argumento do desígnio:

Tem sido geralmente aceito (então e agora) que a doutrina da seleção


natural de Darwin efetivamente demoliu o clássico argumento do
desígnio de William Paley para a existência de Deus. Ao mostrar como
a adaptação cega e gradual poderia falsificar o projeto aparentemente
proposital que Paley [...] e outros tinham observado nos artifícios da
natureza, Darwin os privou de seu argumento da inferência analógica
que o propósito evidente a ser observado nos artifícios pelo qual os
meios e os fins estavam relacionados na natureza era necessariamente
uma função da mente (GILLESPIE, 1979, p. 83-84, tradução nossa).

Enquanto que a teoria de Darwin providenciou claramente uma alternativa


significativa para uma história grandiosa da criação sobre as obras da natureza,
pelo menos duas respostas podem ser oferecidas quanto à sua aparente força
destrutiva para o argumento do desígnio. Em primeiro lugar, como veremos a
seguir, nem todo mundo está convencido de que um relato puramente naturalista,
não intencional fornece uma explicação completa de toda a flora e a fauna que
existem no mundo natural. Em segundo lugar, mesmo tendo em conta uma visão
darwiniana total das coisas, o defensor do argumento do desígnio poderia afirmar
que este processo evolutivo é o próprio método pelo qual o designer está realizando
suas intenções e propósitos para o mundo. Um argumento semelhante a este é
levantado por F. R. Tennant (1956).

Na verdade, o próprio Darwin pode ter mantido este ponto de vista,


pelo menos em um ponto em sua carreira. No ano seguinte ao que ele publicou
A Origem das Espécies, ele disse o seguinte em duas cartas (de 22 de Maio e 26
de Novembro de 1860, respectivamente) ao biólogo de Harvard, Asa Gray [estas
cartas estão disponíveis em português na obra organizada por Burkhardt, Evans e
Pearn (2009)]:

Estou inclinado a olhar para tudo como resultado de leis designadas,


com os detalhes, seja bom ou ruim, deixados para a elaboração de que

218
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

podemos chamar de acaso [...] (DARWIN apud MARTIN, 2010, p. 162,


tradução nossa).

Eu não posso pensar que o mundo como o vemos é o resultado do


acaso; entretanto eu não posso olhar para cada coisa separada como o
resultado de um desígnio (DARWIN apud RUSE, 2008, p. 273, tradução
nossa).

No entanto, as refutações de Hume, combinadas com a explicação


evolucionista de Darwin dos organismos vivos, afundaram o argumento do
desígnio no século XIX e no início até meados do século XX (DAWKINS, 2005;
GOULD, 1993; LIMA FILHO, 2015; BRAUSTEIN, 2014; BIZZO, 2007, 2010). No
entanto, ele foi “ressuscitado” na segunda metade do século XX em uma variedade
de formas e até agora é provavelmente o argumento mais amplamente discutido
e influente para a existência de Deus. Duas das versões recentes mais importantes
são o ajuste fino (fine-tuning) e argumentos do design inteligente. Vamos primeiro
dar uma olhada no ajuste fino.

NOTA

Charles Darwin (1809-1882) foi um naturalista Inglês que é considerado um


dos pensadores mais influentes na história da civilização ocidental. Suas observações feitas
durante sua viagem de cinco anos no Beagle foram fundamentais no desenvolvimento de
sua teoria da seleção natural. Seu livro, A Origem das Espécies (1859), estabeleceu a evolução
pela descendência comum como a explicação científica central para o desenvolvimento e a
diversificação dos organismos biológicos. Em A descendência do Homem (1871), ele aplicou
sua teoria diretamente aos seres humanos. Para uma leitura excelente da biografia de Darwin
veja a obra de Desmond e Moore (2007) e assista aos documentários: Charles Darwin – a
origem das espécies (disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=0d6PyLs82S0>.
Acesso em: 30 jul. 2015) e Charles Darwin: documentário (disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=pyb3_bn_Gfs>. Acesso em: 30 jul. 2015).

3 O ARGUMENTO DO AJUSTE FINO


Alguns estudiosos que acreditam que as estruturas “meios para fins”,
aparentemente propositais no reino da biologia, podem ser totalmente explicadas
por processos evolutivos naturais, também sustentam que certos aspectos não
biológicos ou inorgânicos do universo são mais bem explicados por meio de
um designer inteligente. Alguns argumentaram que as leis fundamentais e os
parâmetros da física e as condições iniciais do universo são extraordinariamente
equilibradas, ou "ajustadas finamente", com as condições precisas e ideais para
a vida ocorrer e florescer. Robin Collins (2013), por exemplo, um dos defensores
mais importantes do argumento teleológico do ajuste fino, afirma que as condições
iniciais do universo são equilibradas no “fio de uma navalha” para a existência
da vida. Dezenas de tais parâmetros e condições foram propostos, incluindo os

219
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

seguintes, descrito por Collins (1999):

1. Se a explosão inicial do big bang diferisse em força por tão pouco quanto uma
parte em 1060, o universo teria rapidamente entrado em colapso sobre si mesmo
ou expandido rápido de mais para que as estrelas pudessem se formar. Em
ambos os casos, a vida seria impossível. (Uma precisão de uma parte em 1060
pode ser comparada ao disparar uma bala em um alvo de uma polegada no
outro lado do universo observável, vinte bilhões de anos luz de distância, e
acertar o alvo).
2. Os cálculos indicam que se a força nuclear forte, a força que une os prótons
e nêutrons juntos em um átomo, tivesse sido mais forte ou mais fraca por tão
pouco quanto cinco por cento, a vida seria impossível.
3. Cálculos feitos por Brandon Carter mostram que se a gravidade fosse mais forte
ou mais fraca por uma parte em 1040, então, as estrelas que sustentam a vida,
como o sol, não poderiam existir. Isto tornaria provavelmente a vida impossível.
4. Se o nêutron não fosse cerca de 1.001 vezes a massa do próton, todos os prótons
se deteriorariam em nêutrons ou todos os nêutrons se deteriorariam em prótons
e, assim, a vida não seria possível.
5. Se a força eletromagnética fosse ligeiramente mais forte ou mais fraca, a vida
seria impossível, por uma variedade de diferentes razões.

Muitos dos parâmetros e condições são aparentemente não relacionados e,


se assim for, isto reduz mais ainda a probabilidade de sua ocorrência por acaso. As
opções explicativas são basicamente limitadas a três: o ajuste fino dos parâmetros
e condições ocorreram por acaso, por necessidade, ou por design inteligente.

Assim, podemos esboçar um argumento teleológico do ajuste fino da


maneira mostrada no quadro abaixo.

QUADRO 13 – UM ARGUMENTO TELEOLÓGICO DO AJUSTE FINO

O ajuste fino do universo aconteceu por acaso, ou por necessidade, ou por um


1
design inteligente.
2 O ajuste fino do universo não aconteceu por acaso ou por necessidade.
3 Portanto, o ajuste fino do universo aconteceu por um design inteligente.
FONTE: O autor

220
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

3.1 AS RESPOSTAS AO ARGUMENTO DO AJUSTE FINO

Não é surpresa que vários estudiosos discordam que o design inteligente


deve ser reivindicado a fim de explicar a existência dos parâmetros "ajustados
finamente" e das condições iniciais do universo. A premissa do argumento de que
é principalmente desafiada é a segunda: O ajuste fino do universo não aconteceu
por acaso ou por necessidade. Vamos considerar três respostas proeminentes.

3.1.1 A hipótese dos muitos universos


Uma maneira de explicar o nosso universo finamente ajustado sem postular
um designer inteligente é sugerir que há um número muito grande de universos,
talvez um número infinito deles. Dado este elevado número, não é surpreendente
que, pelo menos, um deles (o nosso neste caso) inclui condições e parâmetros
iniciais que permitem a vida. Embora seja mais provável que um universo
decorrente do acaso inclua parâmetros avessos à vida, se o número de universos
é grande o suficiente, certamente alguns deles teriam exatamente os parâmetros
certos para a vida. Felizmente para nós, o nosso universo é um destes. Enquanto
escritores de ficção científica têm desfrutado de muito sucesso na criação de tais
cenários, os recentes avanços na teoria das cordas e na cosmologia inflacionária
também conduziram os estudiosos a levar a sério a noção de universos múltiplos.

Os críticos, no entanto, observam que não há atualmente nenhuma


evidência experimental em apoio das hipóteses dos muitos universos. Embora haja
algum apoio na física para a teoria das cordas e para a cosmologia inflacionária,
elas são atualmente provisórias e altamente especulativas (GREENE, 2001). Além
disso, como filósofo Robin Collins alegou, mesmo que haja um número infinito
de universos, parece que eles devem ser produzidos por algum tipo de "gerador
de muitos universos". Tal dispositivo, no entanto, necessitaria ser em si mesmo
finamente ajustado, e, portanto, na necessidade de uma explicação que conduziria
a um designer inteligente. Este argumento também é levantado por Craig (2007).
Collins (2013) argumenta que até mesmo um mecanismo simples como uma
máquina de fazer pão precisa ser bem projetada para produzir pães. Quanto mais
um fabricante de universos que produz universos finamente ajustados como o
nosso próprio.

221
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

DICAS

Assista ao vídeo de Brian Greene, O Multiverso e a Teoria de Cordas, publicado


pela TED. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=4zZnX1BOBCU>. Acesso em:
30 jul. 2015.

3.1.2 O princípio antrópico

Existem diferentes versões do princípio antrópico ("antrópico", que significa


relacionado aos seres humanos). Um excelente artigo introdutório a estas versões é
o de Comitti (2011). A versão mais difundida destas é o que os físicos John Barrow
e Frank Tipler chamam de o Princípio Antrópico Fraco (ou suave), WAP (da sigla
em inglês, Weak Anthropic Principle). Aqui está a definição que eles oferecem:

O Princípio Antrópico Fraco (WAP): Os valores observados de todas


as quantidades físicas e cosmológicas não são igualmente prováveis,
mas eles carregam valores limitados pela exigência de que existem
locais onde a vida baseada em carbono pode evoluir e pela exigência
de que o Universo seja velho o suficiente para que ele já tenha feito isso
(BARROW; TIPLER, 1988, p. 15, tradução nossa).

Eles também observam uma característica central que emerge deste


princípio:
As características básicas do Universo, incluindo propriedades tais como
a sua forma, tamanho, idade e as leis da mudança, devem ser observadas
como sendo de um tipo que permite a evolução de observadores, pois,
se a vida inteligente não evoluísse em outro universo possível, seria
óbvio que ninguém estaria perguntando sobre a razão do tamanho, da
forma, da idade observada do Universo, e assim por diante (BARROW;
TIPLER, 1988, p. 1-2).

Em outras palavras, se as leis físicas e as constantes do universo não fossem


exatamente como elas são, justamente afinadas para a vida, não estaríamos aqui
para perceber esse fato. Não haveria observadores em um universo que não tivesse
as condições necessárias para a vida. Assim, uma vez que estamos aqui para
observá-los, não devemos nos surpreender que as condições sejam exatamente
certas para a vida, mesmo que vivamos em um universo puramente naturalista.
Portanto, não há necessidade de se conjecturar um designer inteligente do universo.

Em resposta, pode-se argumentar que o nosso estar aqui para reconhecer o


ajuste fino nem nega o assombro das condições, tampouco elimina a necessidade de
uma explicação pelo design inteligente. Richard Swinburne (1979, p. 138, tradução
nossa) utiliza a seguinte analogia para demonstrar este ponto.

222
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

Suponha que um louco sequestra uma vítima e fecha-a em um quarto


com uma máquina de embaralhar cartas. A máquina embaralha dez
maços de cartas ao mesmo tempo e, em seguida, tira uma carta de
cada maço e exibe simultaneamente as dez cartas. O sequestrador diz
à vítima que ele logo irá pôr a máquina a trabalhar e ela apresentará
a primeira tirada, mas que a menos que o sorteio consista em um ás
de copas de cada maço, a máquina simultaneamente desencadeará
uma explosão que vai matar a vítima, em consequência da qual não
poderemos ver quais foram as cartas que a máquina sacou. A máquina
é então posta a trabalhar, e para assombro e alívio da vítima a máquina
apresenta um ás de copas tirado de cada maço. A vítima pensa que este
fato extraordinário precisa de uma explicação em termos da máquina
ter sido manipulada de alguma forma. Mas o sequestrador, que agora
aparece, lança dúvidas sobre esta sugestão. ‘Não é de surpreender’,
diz ele, ‘que a máquina sacou apenas ases de copas. Você não poderia
possivelmente ver qualquer outra coisa. Por que você não estaria aqui
para ver qualquer coisa, se qualquer outra carta tivesse sido sacada’.
Mas é claro que a vítima está certa e o sequestrador está errado. Há
algo extraordinariamente na necessidade de uma explicação no fato dos
dez ases serem sacados. O fato de que esta ordem em particular é uma
condição necessária do sorteio a ser percebido, em absoluto torna o que
é percebido menos extraordinário ou sem a necessidade de explicação.

O debate volta-se então sobre a questão de se essas "coincidências


antrópicas" são mais razoavelmente assumidas como sendo acidentais ou
intencionais (POLKINGHORNE, 2007; HORVATH, 2007).

3.1.3 Quem projetou o projetista?

Uma terceira resposta ao argumento do ajuste fino é que apresentar um


designer inteligente como uma explicação para o universo finamente ajustado
simplesmente move o debate um passo atrás, pois então podemos fazer a pergunta,
"Quem projetou o projetista?" Em seu já familiar diálogo sobre a religião, David
Hume (1992, IV, p. 64) levanta essa objeção:

Como, então, poderíamos nos dar por satisfeitos com relação à causa
daquele Ser que você toma como o Autor da Natureza, ou, de acordo
com seu sistema antropomórfico, daquele Mundo Ideal no qual você
encontra a origem do mundo material? Não teríamos iguais razões
para buscar a origem desse mundo ideal em outro mundo ideal, ou
princípio intelectivo? Mas, se nos detemos em algum ponto e não
avançamos mais, de que serve ter avançado até aí? Como poderíamos
nos dar por satisfeitos sem avançar in infinitum? E que satisfação, afinal,
encontraríamos nessa progressão infinita? Recordemo-nos da história
do indiano e seu elefante [o filósofo indiano disse que o mundo estava
descansando na parte traseira de um elefante, e o elefante estava
descansando na parte traseira de uma grande tartaruga, e a tartaruga na
parte traseira de algo que não sabia o quê]: ela nunca foi tão adequada
como ao presente assunto. Se o mundo material repousa sobre um
mundo ideal semelhante, este mundo ideal deve repousar sobre algum
outro, e assim indefinidamente. Seria melhor, portanto, jamais lançar os

223
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

olhos para além do mundo material presente. Ao supor que ele contém
em si mesmo o princípio de sua própria ordem, estamos, na realidade,
afirmando que ele é Deus; e quanto antes chegarmos àquele Ser Divino,
tanto melhor para nós. Quando você dá um passo além do sistema
mundano, apenas excita uma disposição inquisitiva que jamais poderá
ser satisfeita.

Em outras palavras, mesmo se pudermos explicar o ajuste fino aparente


do mundo como sendo o produto de um projetista (designer) inteligente, este
designer deve ter uma mente que é tão "finamente ajustada" quanto o mundo
natural. Assim, o designer também está na necessidade de uma explicação, do
mesmo modo o designer do designer, e assim por diante. Se entrarmos na disputa
da necessidade de uma explicação para o design aparente, este processo continua
indefinidamente. Todavia, por que adicionar hipóteses desnecessariamente?
Por que não simplesmente parar com o mundo físico? Essa argumentação, por
exemplo, é levantada por Dawkins (2005).

DICAS

Para entender as críticas de Dawkins em sua obra O Relojoeiro Cego (2005),


veja também o documentário homônimo. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=MaQRMwwtQQc>. Acesso em: 30 jul. 2015.

4 O ARGUMENTO DO DESIGN INTELIGENTE


Outra forma recente do argumento teleológico é muitas vezes referida como
o argumento do design inteligente. Este argumento está enraizado no trabalho que
está sendo feito por um grupo de filósofos, cientistas e outros que fazem parte
do Movimento do Design Inteligente. O que os membros deste grupo têm em
comum é a crença de que certos métodos de probabilidade podem ser utilizados
para determinar se um dado sistema biológico foi projetado. William Dembski,
um líder no movimento, argumenta que "demonstrando o design transcendente do
universo é uma inferência científica, e não um sonho filosófico fantástico" (2005,
p. 223, tradução nossa). Ele desenvolveu o que ele chama de um Filtro Explicativo
(Explanatory Filter) para a detecção de design. Em forma simplificada, o filtro faz
três perguntas na seguinte ordem:

1. Será que uma lei explica isso?


2. Será que o acaso explica isso?
3. Será que o design explica isso?

224
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

E
IMPORTANT

Movimento do Design Inteligente: o movimento do design inteligente começou


na década de 1980, e inclui filósofos, cientistas e outros estudiosos que consideram a visão
darwiniana de que causas naturais não dirigidas poderiam produzir toda a diversidade
e complexidade da vida como inadequada, e que propõem um programa de investigação
em que causas inteligentes se tornam a chave para o entendimento dessa diversidade e
complexidade. Personagens principais do movimento incluem Phillip Johnson, Michael Behe,
William Dembski, Paul Nelson e Stephen Meyer.

Primeiro, deve-se tentar determinar se a lei (ou seja, a regularidade/


necessidade) explica melhor um evento, objeto ou estrutura. Se um evento (vamos
usar "evento" aqui para significar um evento, objeto ou estrutura) tem uma alta
probabilidade de ocorrer, então é explicável por lei. Por exemplo, a subida da maré
do Atlântico duas vezes por dia é um evento regular, é mais bem explicável pelas
leis da natureza. No entanto, se a lei não explica um evento, então, nos voltamos ao
acaso. Por exemplo, se eu rodar uma roleta, eu uso o acaso para explicar porque a
roda parou onde parou (é claro, onde a roleta para não é na verdade uma questão
de sorte/acaso, pois há leis da natureza bem específicas que determinam onde ela
irá parar. Nós nos referimos a isso como sorte/acaso porque nós não sabemos onde,
precisamente, as leis da natureza irão causar a roleta a parar. Poderia argumentar-
se que somente em um nível quântico há o verdadeiro acaso, ou talvez que não
há acasos em absoluto). Em seguida, a fim de eliminar o acaso e concluir com o
design como a melhor explicação de um evento, Dembski aplica o que ele chama de
complexidade especificada (specified complexity), para a qual ele oferece a seguinte
descrição:

Uma única letra do alfabeto é especificada sem ser complexa (ou


seja, está de acordo com um padrão dado independentemente, mas é
simples). Uma longa sequência de letras aleatórias é complexa sem ser
especificada (ou seja, requer um conjunto de instruções complicadas
para caracterizar, mas não está em conformidade com nenhum padrão
dado independentemente). Um soneto de Shakespeare é tanto complexo
quanto especificado (Dembski, 1999, sem paginação, tradução nossa).

O algoritmo do filtro explicativo está diagramado na figura seguinte.

225
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

FIGURA 6 – O ALGORITMO DO FILTRO EXPLICATIVO

FONTE: O autor

Assim, se houver eventos, objetos ou estruturas no mundo natural que


sejam ao mesmo tempo complexos e especificados, Dembski conclui que são
melhor explicados pelo design.

Um exemplo que os defensores do design inteligente usam muitas


vezes como um caso de complexidade especificada na natureza são os sistemas
“irredutivelmente complexos". A pessoa que cunhou o termo (complexidade
irredutível) é o bioquímico Michael Behe. Behe (1997, p. 39) o define desta forma:

Por irredutivelmente complexo quero dizer um sistema único composto


por várias partes que interagem bem combinadas que contribuem
para a função básica, onde a remoção de qualquer uma das partes
faz com que o sistema efetivamente deixe de funcionar. Um sistema
irredutivelmente complexo não pode ser produzido diretamente (isto
é, melhorar continuamente a função inicial, continuando a funcionar
pelo mesmo mecanismo) por modificações suaves e sucessivas de
um sistema precursor, porque qualquer precursor de um sistema
irredutivelmente complexo, no qual está faltando uma parte, é, por
definição, não funcional. Um sistema biológico complexo, se há uma
coisa dessas, seria um poderoso desafio à evolução darwiniana.

Behe usa a analogia simples de uma ratoeira para demonstrar seu ponto.

226
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

FIGURA 7 – RATOEIRA PADRÃO

FONTE: O autor

Uma ratoeira típica consiste de um martelo, uma mola, uma barra de


proteção e uma plataforma ou base à qual todas as outras partes estão conectadas.
Cada uma dessas partes é um componente necessário para a captura do rato, e em
conjunto as partes constituem uma condição suficiente para a captura de um rato.
Se qualquer uma das partes que compõe a armadilha estivesse ausente, ela não iria
funcionar como um dispositivo de captura do rato. É, portanto, um mecanismo
complexo irredutível na medida em que não pode ser reduzido em termos de
componentes e ainda assim funcionar como uma ratoeira.

O argumento de Behe, então, é que o mundo bioquímico tem uma série


de sistemas que consistem de partes interdependentes calibradas finamente que
não funcionariam sem que cada um dos seus componentes operasse em conjunto.
Estes sistemas, sendo irredutivelmente complexos, não podem, portanto, ser
explicados pelo gradualismo e pela seleção natural da teoria da evolução. Postular
um designer para eles é uma hipótese muito melhor.

Um exemplo primário que Behe ​​usa de um sistema bioquímico


irredutivelmente complexo é o flagelo bacteriano ("flagelo" é derivado do latim
flagellum e significa um chicote ou chibata). No início de 1970, certas bactérias foram
vistas a deslocar-se ao girar seus flagelos, ou cauda tipo-chicote, que giram em altas
taxas de velocidade, alguns deles centenas de rotações por segundo. A estrutura
destas bactérias inclui o que é comparado a um motor de popa. Como indica a
figura a seguir, existe um número de componentes diferentes (cerca de quarenta
no total) que trabalham em conjunto no movimento das bactérias, incluindo um
gancho, um filamento, um estator e um rotor (TORTORA; FUNKE; CASE, 2012).

227
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

FIGURA 8 – O MOTOR DO FLAGELO BACTERIANO, UM EXEMPLO DE UM MECANISMO


"IRREDUTIVELMENTE COMPLEXO"

FONTE: Disponível em: <http://creationwiki.org/pool/images/f/fb/627px-Flagellum_base_


diagram_pt.svg.png>. Acesso em: 1º jul. 2015.

O que interessa aqui é que as quarenta partes das quais este motor flagelar
consiste aparentemente em serem organizadas exatamente assim. Se qualquer
uma delas estiver mal colocada ou ausente, o "motor" não vai funcionar. É,
portanto, um mecanismo complexo irredutível. Os defensores do argumento
do design inteligente afirmam que é mais razoável acreditar que um designer
inteligente esteve envolvido na criação de um sistema deste tipo do que o sistema
ter se desenvolvido gradualmente através de processos darwinianos naturalistas.
Pois a menos que o mecanismo é totalmente funcional, a seleção natural não teria
nenhum motivo para preservá-lo.

Behe (2007) levantou novas argumentações a favor da complexidade


irredutível no decorrer dos anos. Todavia, todas elas sofreram respostas contra-
argumentativas, por exemplo, as argumentações de Kenneth R. Miller (2002) e
Jonh H. Mcdonald (2011), o que gerou respostas de Behe (2000) e um vívido debate
que ainda continua.

Um argumento do design inteligente pode, assim, ser apresentado sob a


forma indicada no quadro seguinte.

228
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

QUADRO 14 – UM EXEMPLO DO ARGUMENTO DO DESIGN INTELIGENTE

Se houver eventos, objetos ou estruturas no mundo natural, que são complexas e especificadas,
1
então é razoável concluir que elas são o resultado de design.
Existem eventos, objetos ou estruturas no mundo natural, como sistemas moleculares
2
irredutivelmente complexos, que são ao mesmo tempo complexos e especificados.
3 Portanto, é razoável concluir que eles são o resultado de um design.

FONTE: O autor

4.1 OBJEÇÕES AO ARGUMENTO DO DESIGN INTELIGENTE


Existem inúmeras objeções ao argumento do design inteligente. Abaixo
estão duas bem significativas, a primeira focada na premissa 1 e a segunda focada
na premissa 2.

4.1.1 Objeção 1: o argumento do design inteligente


assenta-se sobre pressupostos filosóficos contenciosos, em
vez de inferência científica
Uma objeção a filtro explicativo de Dembski é que ele pressupõe que se não
houver um processo científico conhecido pelo qual se possa explicar o fenômeno
em questão, então isso é motivo suficiente para concluir que não existe tal processo.
No entanto, é uma afirmação contenciosa de que simplesmente porque um evento
é inexplicável perante as leis e os processos naturais atualmente conhecidos,
então, seria melhor explicável pelo design inteligente. Isto levanta uma série de
preocupações epistemológicas, não sendo a menor das quais que ele parece violar a
própria natureza do método científico da descoberta; ou seja, a busca de explicações
do fenômeno natural contingente em termos de princípios, leis e processos físicos.
Como um estudioso diz "acontece que identificar decisivamente uma instância de
[complexidade especificada] requer compromisso de pressupostos filosóficos que
não são eles próprios concomitantes com a prática da ciência" (O’CONNOR, 2003,
p. 69, tradução nossa).

Em resposta, pode-se argumentar que o filtro do design está proporcionando


o melhor processo de descoberta perante a evidência científica disponível e o
método mais razoável para explicar os eventos. Se uma nova evidência conduzir
a uma explicação naturalística não intencional e não proposital do evento, então
a explicação do design pode ser revogada. Claro, pode-se sustentar que todas as
explicações biológicas devem incluir explicações naturalistas não intencionais, e
não propositais. Mas fazer disso uma suposição metafísica a priori antes de examinar
a evidência pode muito bem ser viés injustificado contra a própria possibilidade
do design inteligente.
229
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

4.1.2 Objeção 2: desafios para os alegados exemplos de


complexidade irredutível

Um segundo tipo de objeção enfoca os exemplos oferecidos como sendo


irredutivelmente complexos. Um desafiante central dos exemplos de complexidade
irredutível de Behe ​​é o professor de biologia Kenneth Miller. Miller (2002, p. 75,
tradução nossa) oferece a seguinte crítica ao flagelo bacteriano como prova da
complexidade irredutível:

A evolução produz máquinas bioquímicas complexas ao copiar,


modificar e combinar proteínas previamente usadas para outras funções.
A procura de exemplos? O sistema no ensaio de Behe ​​já dá conta do
recado. Ele escreve que, na ausência de ‘praticamente qualquer uma’
de suas partes, o flagelo bacteriano ‘não funciona’. Mas adivinhem?
Um pequeno grupo de proteínas do flagelo funciona sim sem o resto
da máquina, é usado por muitas bactérias como um dispositivo para
injetar venenos em outras células. Embora a função realizada por esta
pequena parte quando funciona sozinha é diferente, do mesmo modo
pode ser influenciada pela seleção natural.

A objeção é simples. O flagelo é um caso de complexidade redutível, não de


complexidade irredutível, uma vez que, pelo menos, alguns dos seus componentes
têm uma função sem o flagelo tomado como um todo. A seleção natural poderia,
então, ter favorecido esses componentes individuais no desenvolvimento evolutivo
do flagelo; nenhuma hipótese do design inteligente é necessária e, portanto, a
analogia da ratoeira é falha. Ele continua:
Ironicamente, o próprio exemplo de Behe, a ratoeira, mostra o que
há de errado com a ideia. Tirando duas partes (o gancho e a barra de
metal), você pode não ter uma ratoeira, mas você terá uma máquina
de três partes que serve como um clipe de gravata ou clipe de papel
totalmente funcional. Se tirar a mola, você tem um chaveiro de duas
partes. O gancho de algumas ratoeiras pode ser usado como um anzol
e a base de madeira como um peso de papel [...]. O ponto, que a ciência
compreendeu a muito tempo, é que pedaços e peças de máquinas
supostamente irredutivelmente complexas podem ter diferentes, mas
ainda úteis, funções (MILLER, 2002, p. 75, tradução nossa).

Uma refutação à objeção de Miller é que enquanto há funções específicas


de proteínas individuais antes que elas formem juntas e se tornem um flagelo
bacteriano, assim como pode haver funções individuais de algumas das partes de
uma ratoeira, há ainda a dificuldade de explicar como todas as partes individuais
formaram-se em conjunto na máquina complexa tipo flagelo. Clipes, anzóis e
chaveiros não se coadunam em ratoeiras sem um plano projetado e ainda, alega-
se que as inter-relações das proteínas elementares que compõem o motor flagelar
têm superfícies que são muito menos adequadamente combinadas, se integrada de
forma aleatória, do que as partes da ratoeira. Além disso, nesse momento somente
dez por cento das quarenta partes de motor do flagelo são encontradas em outras
estruturas da célula, e assim as outras partes do sistema carecem de uma explicação
darwiniana (BEHE, 2007).

230
TÓPICO 5 | ARGUMENTOS TELEOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

Evidente que se pode responder que a observação de que não existe


nenhuma explicação naturalista atual para as inter-relações das proteínas, ou
para as outras partes do sistema, ou para a sua união, não implica que não há
nenhuma explicação. E isso nos leva de volta à objeção 1, que o argumento do
design inteligente se baseia em certos pressupostos filosóficos em vez de inferência
científica.

DICAS

Para uma crítica mais avançada do argumento do Design veja John Leslie Mackie
(1994), El Milagre del Teísmo, nas páginas 83-102. Um excelente vídeo que retrata uma batalha
jurídica que ocorreu em Dover, nos Estados Unidos, sobre o ensino da evolução e do design
inteligente é o documentário “Dia do julgamento: Design Inteligente Na Corte”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=p_YZpa5M-DY>. Acesso em: 25 jul. 2015. Veja também o
debate “Criacionismo x Evolucionismo” da SESC TV, mediado por Mario Cortella. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=53JrgU1-W78>. Acesso em: 26 jul. 2015.

231
RESUMO DO TÓPICO 5
Neste tópico vimos que:

• O argumento do desígnio teve uma história tumultuada. Tudo começou com os


antigos gregos e os povos da Índia do Vale do Indo cerca de 2.000 anos atrás,
mas atingiu o seu auge no século XIX, com William Paley. A versão de Paley do
argumento, e sua analogia do relógio, chamou a atenção generalizada.

• Através dos escritos de David Hume e a teoria revolucionária de Charles Darwin


da evolução, o argumento do desígnio ficou suspenso no ocidente por cerca de
um século.

• Nas últimas décadas, o argumento do desígnio tem experimentado uma espécie


de renascimento. Há agora uma variedade de argumentos do desígnio que são
discutidos em monografias, compêndios e periódicos acadêmicos. Um tipo
deste argumento é o ajuste fino (fine-tuning).

• Utilizando descobertas na física e da cosmologia, os defensores do argumento


“ajuste fino” afirmam que as leis fundamentais, os parâmetros da física e as
condições iniciais do universo estão finamente ajustados para a vida em nosso
universo. Eles afirmam que, dado os limites estreitos de dezenas de leis e
constantes físicas, um grande designer os explica melhor do que o faz o acaso ou
a necessidade.

• Uma variedade de explicações alternativas foi oferecida para o aparecimento do


design. Essas explicações incluem a hipótese de muitos universos e o princípio
antrópico.

• O argumento do desígnio também levanta a questão (petição de princípio) de


quem projetou o projetista e quem projetou o primeiro, e assim por diante. Por
que não basta determo-nos com o próprio universo?

• Outro tipo de argumento teleológico nos últimos tempos é o argumento do


“design inteligente”. Seus principais defensores incluem William Dembski e
Michael Behe. Eles estão propondo um programa de pesquisa em que as causas
inteligentes estejam incluídas como um componente para a compreensão da
diversidade e da complexidade da vida.

• Objeções a esse movimento são multifacetadas e incluem tanto os desafios de


suas bases teóricas, bem como à suposta evidência científica em apoio ao mesmo.

232
• Atualmente, há muita atividade acadêmica que ocorre relativas aos argumentos
do desígnio. Alguns estão convencidos de que um ou mais dos argumentos
apontam para um grande designer do cosmos; outros estão convencidos de que
eles não o fazem; e outros ainda estão indecisos. Em qualquer caso, Paley e
Hume estariam, talvez, satisfeitos de saber que seus legados sobre este tema
continuam até os nossos dias ... sem um fim à vista.

233
AUTOATIVIDADE

Vários argumentos teleológicos foram formulados ao longo dos anos para


evidenciar a existência divina. Normalmente os argumentos podem ser
expostos em uma série de premissas seguidas de uma conclusão. Veja o
seguinte argumento:

1 - Artefatos (como um relógio), com suas configurações de meios para fins,


são os produtos de desígnios (humanos).
2 - As obras da natureza, tais como a mão humana, se assemelham a artefatos.
3 - Assim, as obras da natureza são, provavelmente, os produtos de desígnio.
4 - Além disso, as obras da natureza são muito maior em número e maior em
complexidade.
5 - Por isso, as obras da natureza foram, provavelmente, os produtos de um
grande designer – muito mais poderoso e inteligente do que um designer
humano.

Assinale abaixo a alternativa correta sobre qual foi o argumento descrito acima.

a) Argumento Teleológico do Ajuste Fino.


b) Argumento do Desígnio de Paley.
c) Argumento da Razão Suficiente.
d) Argumento do Design Inteligente.

234
UNIDADE 2
TÓPICO 6

ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS
DA EXISTÊNCIA DIVINA

1 INTRODUÇÃO
Nos dois últimos tópicos examinamos os argumentos cosmológicos e
teleológicos, ambos focados em alguma característica do universo, concluíram que
Deus deve ser postulado como a explicação para estas características (argumento
cosmológico) ou que estas apontam para um designer do universo (argumento
teleológico). Estes argumentos são a posteriori, pois são baseados em premissas
que podem ser conhecidas somente pela experiência do mundo. Outro tipo de
argumento tenta demonstrar que a não existência de Deus é impossível, este é o
argumento ontológico. É bem singular entre os argumentos tradicionais para a
existência de Deus na medida em que é um argumento a priori, pois está baseado
em premissas que supostamente podem ser conhecidas independentemente da
experiência do mundo.

O argumento ontológico tem atormentado os filósofos, ateus e não teístas


igualmente, por séculos. Existem diferentes versões do argumento, e estaremos
incluindo aqui o que são, talvez, duas de suas mais fortes formulações: o argumento
clássico de Anselmo e o argumento contemporâneo de Plantinga.

E
IMPORTANT

Argumento ontológico: deriva dos termos gregos ontos (ser) e logos (narrativa
racional). O argumento ontológico, desenvolvido pela primeira vez por Santo Anselmo de
Cantuária, assume uma variedade de formas. O tema comum entre eles é que eles começam
a priori, procedendo a partir do mero conceito de Deus, e concluem que Deus deve existir.

235
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

2 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO DE ANSELMO


Um dos pensadores mais criativos da Idade Média foi Santo Anselmo de
Cantuária (1033-1109). Ele era tanto um monge devoto quanto um apologista da
ortodoxia cristã, e todos os seus escritos são centrados sobre a teologia cristã, para
explicá-la ou defendê-la. Dois de seus livros, o Monologion (1988) e o Proslogion
(2008), incluem argumentos para a existência de Deus. No primeiro trabalho, os
argumentos de Anselmo são complexos e provavelmente não muito eficazes em
convencer os outros de suas conclusões. No Proslogion ele procura:

um único argumento que não necessitasse de nenhum outro para se


demonstrar, e que bastasse por si mesmo para garantir que Deus existe
verdadeiramente, que ele é o Sumo Bem, sem nada de outra coisa
precisar, do qual todas as coisa têm necessidade para existir, e bem
existir [...] (ANSELMO, 2008, p. 7).

Anselmo desejava um argumento que não fosse falhar em convencer os


outros de sua verdade, e ele acreditava que ele tinha feito isso com o argumento
ontológico. Este argumento foi desenvolvido pela primeira vez por Anselmo no
Livro II de sua Proslogion, e alguns têm argumentado que ele apresenta diferentes
versões dele nos Livros II e III. Para os nossos propósitos, vamos concentrar-nos no
argumento, tal como apresentado no Livro II, um comentário reflexivo sobre uma
passagem do livro de Salmos do Antigo Testamento que se lê "Disse o néscio no
seu coração: Não há Deus" (SALMOS 14.1, ACF – BÍBLIA, 1994).

Assim, pois, Senhor, tu que dás a inteligência da fé, dá-me, tanto quanto
aches bem, que eu compreenda que tu existes como nós <o> acreditamos
que tu és o que nós acreditamos. Nós acreditamos, com efeito, que tu és
‘alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado’. Será que não
existe uma tal natureza, uma vez que o ‘insensato disse no seu coração:
‘Deus não existe’?’ Mas certamente este mesmo insensato, quando
ouve isto que eu digo – ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode
ser pensado’, compreende o que ouve, o que ele compreende existe
na sua inteligência, mesmo se ele não compreende que isso existe <na
realidade>. Porque uma coisa é que certa realidade esteja no intelecto,
outra é compreender que tal realidade existe. De facto, quando um
pintor pensa antes o que vai fazer, tem na inteligência o que ainda não
fez, mas de modo nenhum compreende que exista o que ainda não fez.
Pelo contrário, quando já o pintou, tem na inteligência o que já fez e
compreende que isso existe <na realidade>. Mesmo o insensato está,
pois, convicto de que ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode
ser pensado’ existe pelo menos no intelecto: porque ele compreende-o
quando o ouve, e tudo o que é compreendido existe no intelecto.
Mas, sem dúvida, ‘aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado’
não pode existir unicamente no intelecto. Se, na verdade, existe pelo
menos no intelecto, pode pensar-se que exista também na realidade, o
que é ser maior. Se, pois ‘aquilo maior do que o qual nada pode ser
pensado’ existe apenas no intelecto, então ‘aquilo mesmo maior do que
o qual nada pode ser pensado’ é ‘algo maior do que o qual algo pode ser
pensado’. Mas isto, <como é evidente>, é claramente impossível. Existe,
pois, sem a menor dúvida, ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode
ser pensado’ tanto no intelecto como na realidade (ANSELMO, 2008, p.
12).

236
TÓPICO 6 | ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

NOTA

Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109) foi um dos principais pensadores cristãos


do século XI. Ele era o arcebispo de Cantuária e se opôs às Cruzadas, enquanto mantinha
seu posto. Ele é mais conhecido hoje por seu argumento ontológico, mas seu trabalho na
teologia natural e na teologia filosófica vai bem além disso. Ele também desenvolveu outros
argumentos para a existência de Deus e escreveu sobre assuntos, tais como a natureza de Deus,
a encarnação, o livre-arbítrio, o pecado e a redenção. Seus trabalhos incluem o Monologion, o
Proslogion, e o Cur Deus homo (Por que Deus se fez homem?).

A escrita aqui é um pouco evasiva e, assim, presta-se a diferentes


interpretações (OPPY, 2007; UCKELMAN, 2013). Aqui está uma forma de explicar
o argumento:

1. Todo mundo (até mesmo o ateu) é capaz de entender pelo termo "Deus" um ser
do qual nenhum maior pudesse ser concebido.
2. Assim, um ser, do qual nenhum maior pode ser concebido, existe na mente (ou
seja, no entendimento) quando se ouve falar de tal ser.
3. Podemos conceber um ser do qual nenhum maior pode ser concebido que existe
tanto na mente e na realidade.
4. Existir na realidade é maior do que existir somente na mente.
5. Se, portanto, um ser, do qual nenhum maior pode ser concebido, existe somente
na mente e não na realidade, não é um ser do qual nenhum maior pode ser
concebido.
6. Portanto, um ser do qual nenhum maior pode ser concebido existe na realidade.

Vamos descompactar o argumento. Primeiro, a premissa 1 é bastante


simples. Não está fazendo quaisquer afirmações sobre se Deus existe ou não. Está
simplesmente alegando que qualquer pessoa racional deve ser capaz de entender
o que se quer dizer quando se define Deus como um ser do qual nenhum maior
pode ser concebido (ou seja, o maior ser que se possa imaginar). Negar que Deus
existe é negar que existe um ser do qual nenhum maior pode ser concebido. Parece
que até mesmo um ateu poderia, ao menos, conceder a Anselmo esta definição.

A segunda premissa está levantando o ponto de que em certo sentido um


ser do qual nenhum maior pode ser concebido existe na mente daquele que entende
o conceito. A fim de afirmar ou negar a existência de um ser do qual nenhum maior
pode ser concebido, é necessário entender o que é que está sendo afirmado ou
negado. Então, um ser superior do qual nenhum maior pode ser concebido existe,
pelo menos, como uma entidade mental ou um conceito, se este é afirmado ou
negado. É importante notar aqui que existem várias maneiras que as coisas podem
existir (ou, vários modos de existência):

a) na mente, mas não na realidade (exemplos incluem unicórnios, centauros,

237
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

papai-noel);
b) na realidade, mas não na mente (tal como uma estrela não descoberta);
c) tanto na mente e na realidade (como o autor deste Caderno de Estudos, Kevin
D. S. Leyser);
d) nem na mente, tampouco na realidade (como a internet em 500 AEC).

A reivindicação na premissa 2 é simplesmente que um ser do qual nenhum


maior pode ser concebido existe na mente (e, portanto, existe tanto como a ou
como c).

Na premissa 3 a alegação é que podemos entender a noção de um ser do


qual nenhum maior pode ser concebido como existindo, tanto mentalmente, quanto
na realidade (como em c). O autor deste Caderno de Estudos existe atualmente
tanto na realidade quanto em um conceito ou uma ideia na mente. Assim, também,
podemos pelo menos conceber Deus como existente na mente e na realidade (mas,
se Deus realmente existe, na realidade, é uma questão diferente neste ponto). A
premissa 4 levanta a questão de que é maior/melhor existir na realidade do que
apenas na mente. Esta é claramente uma premissa questionável, e para muitos a
solidez do argumento depende disso. Vamos explorar este ponto mais adiante,
quando examinarmos a objeção de Kant.

A quinta premissa simplesmente segue a partir da anterior. Se, é verdade
que é maior/melhor existir na realidade do que na mente, então um ser que
existe apenas na mente não seria o maior ser concebível; afirmar o contrário é
contradizer a si mesmo, pois você estaria afirmando que o maior ser possível (um
que existe na realidade) não é o maior ser possível. Portanto, somos levados a
concluir logicamente que Deus (um ser superior do qual nenhum maior pode ser
concebido) existe na realidade.

NOTA

O próprio Bertrand Russell, quando jovem, foi momentaneamente convencido


pelo argumento ontológico. Considere esta declaração: “Lembro o momento preciso, um dia
em 1894, quando eu caminhava pela Trinity Lane e vi num clarão (ou achei ter visto) que o
argumento ontológico é válido. Tinha saído para comprar uma lata de fumo; no caminho de
volta, de repente a joguei para o alto e exclamei ao pegá-la: “Uau, o argumento ontológico é
real” (2009, p. 14). Todavia, depois Russell considerou todos os argumentos ontológicos como
casos de erros de gramática.

238
TÓPICO 6 | ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

2.1 AS CRÍTICAS DO ARGUMENTO DE ANSELMO

As críticas foram levantadas contra o argumento ontológico de Anselmo


desde o seu início, mesmo entre os devotos crentes religiosos. Vamos nos concentrar
aqui em duas das críticas mais influentes.

2.1.1 A maior ilha possível


Uma das primeiras objeções ao argumento ontológico foi oferecida por um
dos monges companheiros de Anselmo, Gaunilo de Marmoutiers (c. século XI).
Gaunilo (1988) ofereceu várias objeções ao argumento, mas talvez a mais conhecida
é uma objeção baseada na analogia da maior ilha possível. Considere a ideia de uma
ilha perfeita, uma ilha que existe, mas foi perdida pela humanidade. Seguindo a
mesma estrutura que o argumento de Anselmo descrito acima, podemos construir
o seguinte:

1. Todo mundo é capaz de entender pelo termo "ilha perfeita" uma ilha da qual
nenhuma maior/melhor pode ser concebida.
2. Então, uma ilha da qual nenhuma maior/melhor pode ser concebida existe na
mente (ou seja, no entendimento), quando se ouve falar de uma tal ilha.
3. Podemos conceber uma ilha da qual nenhuma maior/melhor pode ser concebida
que existe tanto na mente e na realidade.
4. Existir na realidade é maior do que a existir somente na mente.
5. Se, portanto, uma ilha da qual nenhuma maior/melhor pode ser concebida existe
somente na mente e não na realidade, não é uma ilha da qual nenhuma maior/
melhor pode ser concebida.
6. Por isso, uma ilha da qual nenhuma maior/melhor pode ser concebida existe na
realidade.

Esta estratégia da ilha perdida de Gaunilo é chamada de um argumento


reductio ad absurdum. É uma forma de argumento em que você (1) assume uma
posição para o bem do argumento, (2) segue a estrutura do argumento e deriva
um resultado absurdo ou ridículo, e (3), em seguida, conclui que a estrutura do
argumento original deve ter sido errada, pois ela conduziu a uma conclusão
absurda. Gaunilo de Marmoutiers (1988, p. 116) conclui sua refutação desta forma:

Se, digo, essa pessoa presumisse, com semelhante raciocínio, que eu


devesse admitir a existência real daquela ilha, acreditaria que estivesse
brincando, ou não saberia distinguir qual de nós dois eu deveria julgar
mais estulto: se a mim, que prestei fé nas suas palavras, ou se a ela, caso
estivesse convencida de ter colocado sobre bases sólidas a existência da
ilha sem primeiro constatar se essa superioridade é, verdadeiramente
e sem sombra de dúvida, real, de modo que não suscite na minha
inteligência um conceito falso e incerto.

239
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

Seu ponto, obviamente, é que o argumento da ilha perfeita não prova


na verdade que tal ilha existe, seria absurdo acreditar que há uma ilha perfeita,
portanto, este argumento deve ser falho. E, uma vez que o argumento ontológico
de Anselmo segue a mesma estrutura básica, este também deve ser falho.

Anselmo oferece a sua própria resposta a Gaunilo:

Em toda confiança respondo-te que se alguém consegue encontrar-me


um ser — excetuando ‘aquele do qual não se pode pensar [conceber]
nada maior’ — existente na realidade ou apenas no pensamento, ao
qual seja possível aplicar congruentemente a minha argumentação, eu
encontrarei com certeza a Ilha Perdida e a entregarei a essa pessoa, de
modo que nunca mais há de perdê-la. Contudo, parece estar já claro que
não é possível pensar [conceber] como não existente ‘o ser do qual não
é dado pensar nada maior’, porque a sua existência alicerça-se numa
razão segura e verdadeira. Se assim não fosse, não existiria de maneira
nenhuma (ANSELMO, 1988, p. 120).

O argumento de Anselmo é que, ao contrário de um ser do qual nada maior


pode ser concebido, a maior ilha possível não é algo que se pode "descobrir" ao
seguir sua linha de raciocínio. Anselmo parece implicar aqui que ele pode conceber
uma tal ilha não existindo. Com Deus, aquilo além do qual nada maior pode ser
concebido, é impossível conceber tal ser como não existente. Mas não é assim com
a ilha perfeita.

Avaliar a resposta de Anselmo é difícil. Por um lado, não está claro


exatamente o que ele quer dizer, nesta resposta concisa, talvez simplista. Além
disso, se ele quer dizer que é possível conceber uma ilha perfeita como não
existente, não está claro o que ele quer dizer com "concebível" neste contexto. Em
qualquer caso, na avaliação da solidez da refutação de Gaunilo, muito depende do
significado da expressão concebível, e continua havendo um debate animado em
curso sobre isso. Stephen T. Davis (2003), por exemplo, argumenta que a refutação
de Gaunilo, nessa passagem, não é sólida.

2.1.2 A existência não é um predicado


Talvez a objeção mais séria ao argumento ontológico de Anselmo (pelo
menos a versão apresentada no Proslogion, livro II) foi levantada por Immanuel
Kant (1724-1804). Ele alegou que a existência não é um predicado verdadeiro/
real. Veja, por exemplo, em sua Crítica da Razão Pura (2001), a quarta seção
(Da impossibilidade de uma prova ontológica da existência de Deus). A objeção
é levantada contra a premissa 4 (juntamente com a premissa 3) no argumento
acima e pode ser enunciada da seguinte forma (esta é uma interpretação comum
da objeção de Kant): a existência não é um predicado de tal forma que é uma
propriedade que pode ser afirmada de uma coisa. Existência não acrescenta ao

240
TÓPICO 6 | ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

conceito de uma coisa; todavia, a existência é a instanciação de uma coisa.

Considere este exemplo. Suponha que você vê um gato andar na sua frente,
e que o gato porventura é preto. Quando você faz a alegação de que o gato é preto,
você está adicionando uma propriedade (pretidão) ao conceito de um gato. Há
outros gatos que não são pretos; não é essencial para o conceito de um gato que
este seja preto. Quando você alega que o gato existe, no entanto, você não está
adicionando qualquer coisa ao conceito de um gato; você só está dizendo que o
conceito de um gato é exemplificado ou instanciado. No argumento de Anselmo
ele está insinuando que a existência é um predicado que acrescenta ao conceito
de um ser do qual nada maior pode ser concebido (é maior ter a propriedade de
existente do que não tê-la). Mas, argumenta Kant, ao afirmar que algo existe não
acrescenta nada ao conceito de um tal ser (ou a qualquer outro conceito); está
apenas afirmando que o conceito é instanciado. Portanto, o argumento de Anselmo
é falho. Um excelente artigo que explora os limites desta crítica kantiana pode ser
encontrado em Xavier (2007).

Em resposta, o seguinte ponto poderia ser colocado: Eu posso conceber um


gato em particular em minha mente, considere, mais uma vez, o gato Cheshire do
meu amigo, e eu posso pensar sobre este gato. Eu posso ter a expectativa de cuidar
dele, de acariciá-lo, de alimentá-lo, e assim por diante. Mas, eu também posso
pensar em outro gato, um gato idêntico ao Cheshire em todos os aspectos, exceto
um, este gato só existe na minha mente, não na realidade; ele é um gato imaginário.
Eu nunca poderei realmente cuidar, acariciar ou alimentar este gato, pois ele só
existe em minha mente. De fato, parece que há algo maior sobre o primeiro gato,
ele realmente existe!

NOTA

Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo alemão que é amplamente considerado


como um dos pensadores mais importantes na história da filosofia ocidental. Seu trabalho na
epistemologia, metafísica, ética e estética influenciou muitos trabalhos na filosofia depois dele.
Seus livros principais incluem Crítica da Razão Pura (2001), Religião nos limites da simples razão
(1992) e Crítica da Razão Prática (2003).

Uma refutação é que a existência de Cheshire não acrescentou nada de novo


ao conceito de Cheshire; não há diferença de propriedades entre os conceitos do
Cheshire existente e do Cheshire não existente, apenas as diferentes maneiras que
eles estão relacionados com as nossas experiências. Eu posso realmente alimentar
e acariciar o Cheshire existente, mas não ao Cheshire imaginário. Todavia, isso
não implica uma nova propriedade. E se a existência não é uma propriedade, ela
não pode ser uma propriedade maior. Assim, a quarta premissa do argumento de
Anselmo é falsa, portanto o argumento falha.

241
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

DICAS

Para uma visão panorâmica dos argumentos de Anselmo, assim como das
objeções que foram levantadas contra o mesmo, veja o artigo de Peter Millican (2004), o
capítulo “O argumento Ontológico” de Rowe (2011) e a dissertação de Pereira (2012), todos
disponíveis on-line (verifique nas referências bibliográficas para acessar os links).

3 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO MODAL DE ALVIN


PLANTINGA
Recentemente Alvin Plantinga (1932-) desenvolveu uma versão do
argumento ontológico que utiliza a semântica da lógica modal: possibilidade,
necessidade e mundos possíveis. Um mundo possível é um mundo que é logicamente
possível (ao contrário de, digamos, um mundo que contenha contradições, como
um em que João e Maria são mais baixos do que o outro, simultaneamente, ou
que há quadrados redondos, ou que 2 + 2 = 5). Assim, ao interpretar o argumento
modalmente, Plantinga espera evitar as objeções de Kant de que a existência não
é uma propriedade real. Ele formula sua argumentação tendo em mente que um
ser maximamente excelente é aquele que é onisciente, onipotente e moralmente
perfeito em todos os mundos possíveis, seu argumento pode ser simplificado e
declarado desta forma:

1. É possível que exista um ser que seja maximamente grandioso (um ser que
podemos chamar de Deus).
2. Portanto, há um mundo possível em que um ser maximamente grandioso existe.
3. Um ser maximamente grandioso é necessariamente maximamente excelente em
todos os mundos possíveis (por definição).
4. Uma vez que um ser maximamente grandioso é necessariamente maximamente
excelente em todos os mundos possíveis, este ser é necessariamente maximamente
excelente no mundo real.
5. Portanto, um ser maximamente grandioso (ou seja, Deus) existe no mundo real.

Graham Oppy (2007) o simplifica ainda mais. Resumidamente ele diria:


Digamos que uma entidade é maximamente excelente se ela for onipotente,
onisciente e moralmente perfeita. Digamos, ainda mais, que uma entidade é
maximamente grandiosa se, e somente se, ela for maximamente excelente em todos
os mundos possíveis. Então o argumento de Plantinga seguiria a seguinte forma: 1.
É possível que exista uma entidade maximamente grandiosa; 2. (Portanto) existe
uma entidade maximamente excelente (derivado da premissa 1).

Este argumento é formalmente válido (novamente, isso significa que, se


as suas premissas são verdadeiras, a sua conclusão deve também ser verdadeira).
Mas é um argumento sólido? Ou seja, são as suas premissas verdadeiras também?

242
TÓPICO 6 | ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

O próprio Plantinga não acredita que o argumento fornece prova conclusiva de


que Deus existe, pois alguns podem negar a primeira premissa. No entanto, ele
afirma que não há nada contrário à razão ou irracional em aceitá-lo (PLANTINGA,
2012). Em um texto posterior, Self-Profile (1985), ele declarou que tinha posto o
critério para o sucesso do argumento elevado demais. E escreveu o seguinte: “o
argumento ontológico oferece fundamentos para a existência de Deus tão bons
quanto qualquer outro argumento filosófico sério oferece para qualquer conclusão
filosófica importante” (1985, p. 71, tradução nossa). Então, enquanto não estabelece
a verdade de que Deus exista, ele acredita que, pelo menos, estabelece a sua
"aceitabilidade racional".

DICAS

Para uma introdução à Lógica Modal veja Mortari (2001), especificamente no


Capítulo 18, e a dissertação de Coscarelli (2008). Gomes (2011) é um excelente artigo que
introduz o argumento ontológico modal de Plantinga. Verifique, nas referências bibliográficas
deste Caderno de Estudos, para acessar às leituras sugeridas. Para uma exposição em vídeo
sobre o argumento ontológico de Plantinga e respostas às objeções veja O Argumento
Ontológico para a Existência de Deus de Alvin Plantinga (Uma Introdução). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=pqY7gYCnBiM>. Acesso em: 21 jul. 2015; veja também
Respondendo objeções ao argumento ontológico. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=ldU_acK3clE>. Acesso em: 21 jul. 2105.

Vamos tomar as premissas, uma por vez. A primeira premissa afirma que
é possível que Deus, um ser maximamente grandioso, existe. O caso de que é
possível que tal ser exista é crucial para o argumento, e nós vamos examinar isso
mais de perto a seguir, na primeira objeção.

A premissa 2 traz para o argumento a noção de mundos possíveis.


Isto, também, é uma premissa crucial, e uma para a qual há um desacordo
generalizado. Em uma descrição de mundos possíveis deve-se observar a
semântica (semântica tem a ver com os significados dos termos e símbolos), tais
mundos não são realidades que na verdade ou literalmente existem independente
do nosso pensamento sobre eles; eles são constructos que nos ajudam a pensar
e compreender uma série de conceitos difíceis, como contrafatuais, proposições
e propriedades. Poderíamos pensar em mundos possíveis como uma grande
conjunção: a & b & c & d ... (cada conjunção individual representa uma proposição
ou alegação). Um mundo possível, então não é um outro universo, tão real quanto
o universo do qual fazemos parte. Pelo contrário, é uma descrição completa da
realidade, um conjunto completo de proposições, e existem inúmeras descrições
da realidade. Por exemplo, há um mundo possível a & b & c & d ... como indicado

243
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

acima. Mas há também um mundo possível -a & b & c & d ... ("-a" significa "não
a"), e outro a & -b & c & d ..., e ainda um outro -a & -b & c & -d ..., e assim por
diante. Uma, e apenas uma, das descrições de mundos possíveis incluirá apenas
conjunções verdadeiras e, portanto, irá retratar o mundo como ele realmente é; ou
seja, o mundo real (CRAIG, 2006).

E
IMPORTANT

Lógica Modal é um sistema de lógica que utiliza tais expressões modais como
“possivelmente” e “necessariamente”. As proposições são verdadeiras ou falsas. Às vezes, porém,
uma proposição não é apenas verdadeira, mas necessariamente verdadeira. Outras proposições
são falsas, mas possivelmente verdadeira, e outras ainda são falsas e necessariamente falsa.
Utilizando estas noções de necessidade e possibilidade, os princípios básicos da lógica modal
incluem tais alegações como “se algo é impossível, então é necessariamente falso” e “o que
é necessário é ao mesmo tempo verdadeiramente real e possível”. A lógica modal tornou-
se uma ferramenta utilizada com frequência na análise formal dos argumentos filosóficos,
especialmente na metafísica, na epistemologia e na filosofia da religião.

Não há mundo possível que contenha contradições ou que é metafisicamente


inconcebível. Por exemplo, não existe um mundo possível, onde tudo nesse
mundo é tanto circular quanto retangular ao mesmo tempo, pois ser assim seria
uma contradição. Nem há um mundo possível em que o Papa Francisco seja uma
cor, pois os seres humanos individuais não podem concebivelmente ser idênticos
a cores (claro, o Papa Francisco tem uma cor particular, e o nome "Papa Francisco"
poderia ser atribuído a qualquer cor em particular, mas esses fatos fogem do ponto).
Alegar, então, que há um mundo possível em que existe um ser maximamente
grandioso não é uma alegação de que há algum universo de "carne e sangue" onde
Deus está, mas que a proposição “um ser maximamente grandioso existe” consiste
em alguma descrição máxima da realidade.

Com a terceira premissa há simplesmente o ponto de que a definição de


um ser maximamente grandioso indica que este é necessariamente onisciente,
onipotente e moralmente perfeito em todos os mundos possíveis. Descrever um
ser maximamente grandioso como sendo algo menos de onisciente, onipotente e
moralmente perfeito é interpretar mal o significado de um ser como definido no
presente caso.

A premissa 4 também está enraizada na semântica de mundos possíveis.


Um dos mundos possíveis (ou seja, uma das descrições completas da realidade)
é o mundo real. Assim, se um ser maximamente grandioso é necessariamente
maximamente excelente em todos os mundos possíveis, este ser é necessariamente
maximamente excelente no mundo real.

244
TÓPICO 6 | ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

Finalmente, a conclusão decorre, logicamente, das anteriores: um ser


maximamente grandioso existe no mundo real.

3.1 OBJEÇÕES AO ARGUMENTO MODAL DE PLANTINGA


Uma série de objeções foram levantadas contra as versões modais do
argumento ontológico. Vamos examinar brevemente três destas.

3.1.1 Objeção 1: a existência de Deus é uma impossibilidade


lógica ou metafísica
Em relação à premissa 1, é possível que um ser maximamente grandioso
exista? Alguns acreditam que não o é, que é impossível que exista um ser
maximamente grandioso ou excelente. Por exemplo, como veremos na próxima
unidade deste Caderno de Estudos, pode-se argumentar que a presença do
mal e do sofrimento no mundo refuta, ou pelo menos conta fortemente contra,
a existência de um ser que é onisciente, onipotente e moralmente perfeito. Tem
sido argumentado que as duas proposições, “Deus existe” e “o mal existe”, são
contradições lógicas. Se isso é verdadeiro, e se o mal existe, então não há nenhum
mundo possível em que Deus exista. J. L. Mackie (2010, p. 684) faz a seguinte
afirmação:

Em sua forma mais simples, o problema é este: Deus é onipotente;


Deus é totalmente bom; e, todavia, o mal existe. Parece haver alguma
contradição entre essas três proposições, de sorte que, se quaisquer
duas delas fossem verdadeiras, a terceira seria falsa. Porém, ao mesmo
tempo, todas as três são partes essenciais da maior parte das posições
teológicas: o teólogo, assim parece, a uma só vez deve aderir e não pode
consistentemente aderir a todas as três.

Outras razões também foram oferecidas para demonstrar que simplesmente


não é possível que um ser maximamente grandioso possua as propriedades
tradicionalmente atribuídas a Deus, inclusive que tais propriedades são
internamente contraditórias (RUNDLE, 2013). Por exemplo, tem-se argumentado
que a onisciência divina contradiz a perfeição divina (a onisciência e a perfeição
são dois atributos comumente atribuídos a Deus). O argumento pode ser posto
desta forma (MICHELETTI, 2007; KENNY, 2003; GRIM, 2010):

1. Um ser perfeito não está sujeito a alterações.


2. Um ser perfeito sabe/conhece tudo.
3. Um ser que sabe/conhece tudo sempre sabe que horas são.

245
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

4. Um ser que sabe/conhece sempre qual é a hora está sujeito a alterações.


5. Um ser perfeito é, portanto, sujeito a mudanças.
6. Um ser perfeito não é, portanto, um ser perfeito.
7. Ergo, não há ser perfeito.

As respostas podem ser oferecidas, tais como que a premissa 1 é falsa. Mas
essa objeção à coerência divina, assim como outras, estão disponíveis na literatura
na tentativa de demonstrar a impossibilidade de existência de Deus.

DICAS

Veja o texto de Craig (2014) para algumas respostas às objeções. E o livro de


Michael Martin (2010) para outras objeções.

3.1.2 Objeção 2: um problema com a semântica dos


mundos possíveis

Uma questão importante no que diz respeito aos argumentos modais como
este é se a lógica modal utilizada é o tipo apropriado de lógica para possibilidades
metafísicas. Alguns argumentam que não o é (MURCHO, 2002; CID, 2010). Outro
ponto a considerar é que, enquanto nós podemos concordar que o mundo real
existe, não existe um acordo universal sobre o papel ontológico ou funcional que os
mundos possíveis devem desempenhar nas discussões metafísicas. Considere este
exemplo: Jane Austen poderia ter escrito um livro sobre a escravidão na Inglaterra
no século XVIII. Ou ela poderia ter escrito um livro sobre a Guerra de Troia. Mas
será que o fato de que ela poderia ter escrito esses livros implica que eles realmente
existem em um mundo possível? O que significaria dizer que eles assim o fazem?
Você não pode tocar esses livros; você não pode ler esses livros; você não pode até
mesmo ver esses livros. Não há nada que você possa fazer com estes livros porque
eles não são reais; eles não existem. Assim, parece estranho dizer que eles existem
em um mundo possível.

Se uma das razões para que os romances de Jane Austen sobre a escravidão
e a Guerra de Troia não existem é porque nada existe em um mundo possível, então
seria falsa a afirmação de que Deus (ou seja, um ser maximamente grandioso)
existe em um mundo possível. E se Deus não existe em um mundo possível,
então a premissa 2 do argumento de Plantinga é falsa, e o argumento é infundado
(GOMES, 2011).

246
TÓPICO 6 | ARGUMENTOS ONTOLÓGICOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

3.1.3 Objeção 3: o problema das fadas, fantasmas,


gremlins e unicórnios

Por fim, Michael Martin (1932-2015) enfatizou que o argumento modal de


Plantinga pode ser parodiado de tal forma que se você o afirmar você acaba também
afirmando a existência de criaturas míticas. Ele começa definindo a propriedade
de ser de uma fada especial como sendo uma pequena criatura da floresta com
poderes mágicos em todos os mundos possíveis. Modificando o seu argumento
para corresponder ao argumento ontológico de Plantinga como descrito acima, ele
é executado da seguinte forma (MARTIN, 1990):

1‘. É possível que uma fada especial exista.


2‘. Portanto, há um mundo possível em que existe uma fada especial.
3‘. Uma fada especial é necessariamente uma pequena criatura da floresta com
poderes
mágicos em todo mundo possível (por definição).
4‘. Desde que uma fada especial é necessariamente uma pequena criatura da
floresta com
poderes mágicos em todos os mundos possíveis, esta fada é necessariamente uma
pequena criatura da floresta com poderes mágicos no mundo real.
5‘. Por isso, uma fada especial existe no mundo real.

O argumento de Martin é que a premissa 1‘ não é mais contrária à razão


do que a premissa 1, então se nós afirmamos 1 e concluímos que 5 é racionalmente
aceitável, devemos também afirmar 1‘ e concluir que 5‘ é racionalmente aceitável.
Seguindo a mesma linha de argumentação, também temos de concluir que
fantasmas, gremlins e unicórnios especiais, assim como inúmeras outras criaturas
míticas também existem.

Em resposta, pode-se argumentar que a premissa 1‘ é claramente contrária


à razão ao passo que a premissa 1 não o é, pois não é possível que uma fada especial
exista desde que fadas são objetos presumivelmente físicos (ou essencialmente
conectadas aos objetos físicos). Mas nenhum objeto físico pode ser um ser
necessário, uma vez que é possível que não existam objetos físicos em absoluto.
Desde que o ser maximamente excelente de Plantinga não é necessariamente um
objeto físico, a objeção de Martin não se aplica ao argumento de Plantinga (DAVIS,
2003). É interessante notar que esta refutação é similar, em aspectos importantes, à
refutação de Anselmo a Gaunilo. A história de fato se repete.

247
UNIDADE 2 | FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DIVINA

NOTA

Michael Martin (1932-2015) foi um filósofo analítico, ateu e Professor Emérito da


Universidade de Boston. Seu trabalho focou, principalmente, na filosofia da religião
e publicou numerosos artigos e livros que defendem o ateísmo e respondem aos argumentos
a favor da existência de Deus. Ele escreveu Um mundo sem Deus: ensaios sobre o Ateísmo
(2010) e Atheism: a philosophical justification (1990).

248
RESUMO DO TÓPICO 6
Neste tópico vimos que:

• Duas versões do argumento ontológico foram examinadas. Em primeiro lugar,


nós analisamos o argumento de Anselmo em que se começa com a premissa de
que todos, até mesmo o ateu, são capazes de entender pelo termo “Deus” um ser
do qual nenhum maior pode ser concebido. E todos, até mesmo o ateu, podem
conceber um tal ser como existente, tanto mentalmente, quanto na realidade.
Além disso, existir na realidade é maior do que a mera existência mental. Uma
vez que seria uma contradição afirmar que o maior ser possível não existe na
realidade, mas apenas na mente (porque existir na realidade é maior do que
existir na mente), ele conclui que Deus deve existir.

• Muitos dos principais filósofos ao longo dos séculos têm interagido com a
existência de Deus, e alguns tentaram refutá-lo.

• Nós analisamos duas objeções proeminentes. A primeira foi com base na analogia
da maior ilha possível e foi desenvolvida pelo monge colega de Anselmo,
Gaunilo. Utilizando um argumento de estilo reductio ad absurdum, ele argumentou
que, se nós afirmamos o argumento ontológico de Anselmo, devemos também
afirmar que a maior ilha possível existe. Desde que esta conclusão é absurda,
assim também é a conclusão de Anselmo. A segunda objeção ao argumento de
Anselmo foi oferecida por Immanuel Kant; a saber, que a existência não é um
predicado real. Desde que a existência não acrescenta nada ao conceito de uma
coisa, e no argumento de Anselmo a existência é tratada como um predicado
real, seu argumento é falho.

• A segunda forma do argumento ontológico que nós examinamos foi o


argumento modal de Plantinga. Ele fornece uma forma válida de argumento
ontológico utilizando as noções modais de possibilidade e mundos possíveis.
Simplificando, se é possível que exista um ser maximamente grandioso (um
que é maximamente excelente em todos os mundos possíveis), então, realmente
existe um ser maximamente excelente (que é onipotente, onisciente e moralmente
perfeito). No entanto, a solidez do argumento tem sido desafiada em várias
frentes.

• Uma objeção é que a existência de Deus é logicamente ou metafisicamente


impossível. Existem várias maneiras de argumentar a impossibilidade de Deus,
incluindo que as propriedades atribuídas a um ser maximamente grandioso são
internamente contraditórias ou contradizem outras proposições que sabemos
ser verdade. Em segundo lugar, uma vez que não existe um acordo universal
sobre qual o papel que a lógica modal deve desempenhar nas discussões
metafísicas como esta, concluir que o argumento é sólido é muito precipitado.
Por fim, o argumento pode ser parodiado de tal forma que se você o afirmar você
também deverá afirmar a existência de criaturas míticas, como fadas, fantasmas
249
e gremlins.

• Dos vários argumentos para a existência de Deus, que têm sido propostos
historicamente, os argumentos ontológicos talvez tenham sido os menos
eficazes em convencer os descrentes de que o teísmo é verdadeiro. No entanto,
mais do que algumas das principais mentes da história têm sido convencidas
por pelo menos uma versão dele, seja por sua solidez ou por sua aceitabilidade
racional. Além disso, uma vez que o argumento ontológico é dedutivo, em
vez de indutivo, se for de fato sólido, ele realiza mais com somente algumas
premissas simples do que os outros argumentos realizam com um acúmulo de
evidências e considerações científicas. Assim, apesar de controverso, tem um
golpe poderoso para aqueles que se deixam convencer da sua solidez.

250
AUTOATIVIDADE

Vários argumentos ontológicos foram formulados ao longo dos anos para


evidenciar a existência divina. Normalmente os argumentos podem ser
expostos em uma série de premissas seguidas de uma conclusão. Veja o
seguinte argumento:

1 - É possível que uma fada especial exista.


2 - Portanto, há um mundo possível em que existe uma fada especial.
3 - Uma fada especial é necessariamente uma pequena criatura da floresta com
poderes mágicos em todo mundo possível (por definição).
4 - Desde que uma fada especial é necessariamente uma pequena criatura da
floresta com poderes mágicos em todos os mundos possíveis, esta fada é
necessariamente uma pequena criatura da floresta com poderes mágicos no
mundo real.
5 - Por isso, uma fada especial existe no mundo real.

Assinale a alternativa correta sobre qual foi o argumento descrito acima.

a) Argumento da Contradição entre Onisciência divina e Perfeição divina.


b) Argumento Ontológico Modal de Alvin Plantinga.
c) Argumento Ontológico de Anselmo.
d) Argumento de Michel Martin.

251
252
UNIDADE 3

PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA,


FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

Esta unidade tem por objetivos:

• descrever a aproximação filosófica aos problemas do mal;

• identificar as argumentações filosóficas quanto à relação entre ciência, fé e


razão;

• apresentar as caracterizações filosóficas da experiência religiosa;

• expor os argumentos filosóficos a respeito do self, do corpo e da


imortalidade no interior das tradições religiosas.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos e no final de cada um deles
você encontrará atividades que reforçarão o seu aprendizado.

TÓPICO 1 – PROBLEMAS DO MAL

TÓPICO 2 – CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO

TÓPICO 3 – EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

TÓPICO 4 – O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

253
254
UNIDADE 3
TÓPICO 1

PROBLEMAS DO MAL

1 INTRODUÇÃO

Onde quer que olhemos no mundo, as pessoas estão sofrendo. Nas favelas
em Calcutá, em bares na Irlanda do Norte, nas cidades costeiras do Equador, nas
igrejas em Nova York, nos campos de arroz na China, no sertão nordestino do
Brasil, em Serra Leoa na África, e a lista continua. Não há lugar onde a dor esteja
ausente, nenhum lugar onde não exista sofrimento humano e animal.

De certa forma, parece que nosso mundo ficou melhor ao longo das eras
desde o surgimento do primeiro Homo sapiens no planeta Terra. De fato, tem
havido progressos sólidos, especialmente no aproveitamento da natureza. E
grande parte da barbárie dos tempos antigos parece ter diminuído, em geral. Veja,
por exemplo, a pesquisa de Steven Pinker (2013), publicada em sua excelente obra
“Os anjos bons da nossa natureza: porque a violência diminuiu”. Mas o mundo
certamente não é uma utopia, ainda não o é, de qualquer maneira. O século XX
experimentou terríveis atrocidades humanas. Nesse século, por exemplo, perto de
meio bilhão de pessoas morreram de varíola; mais de 200 milhões de vidas foram
desperdiçadas na guerra e no democídio (RUMMEL, 1998), o assassinato de pessoas
por um governo; e cerca de doze milhões morreram de AIDS, a maioria deles nos
últimos quinze anos do século XX. As palavras do filósofo Hegel, expostas por
Marcuse, sintetizam o último século: “A história aparece, então, como o ‘patíbulo
onde foram sacrificados a felicidade dos povos, a sabedoria dos Estados, a virtude
dos indivíduos’” (MARCUSE, 2004, p. 202).

Há sempre a esperança de que um novo século trará paz, prosperidade e


erradicação de males que persistem. Mas a realidade é que esta pode muito bem
ser uma esperança inalcançável. A maioria de nós tem o desejo, “mas se tivéssemos
a capacidade de remover a perturbação do mundo”, faríamos isso num piscar de
olhos. Se tivéssemos o poder, o mal e a miséria seriam eliminados de imediato.

255
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Mas espera! Muitos acreditam que há alguém que tem não só o desejo, mas
o conhecimento e o poder para remover para sempre o mal e o sofrimento que
existem no mundo. Para a maioria dos teístas, há um Deus que existe como um
ser todo poderoso, todo conhecedor e totalmente bom. Certamente, se este tipo
de ser existe, ele/ela iria destruir o mal e o sofrimento. Então, por que persistem?
O filósofo cético David Hume reconheceu este problema e expressou isso de
forma concisa: “A Divindade quer evitar o mal, mas não é capaz disso? Então ela
é impotente. Ela é capaz, mas não quer evitá-lo? Então ela é malévola. Ela é capaz
de evitá-lo e quer evitá-lo? De onde, então, provém o mal?” (HUME, 1992, p.136).

Esta é uma versão importante do problema do mal. As raízes deste


argumento vão tão longe no passado como no antigo filósofo grego Epicuro (341-
270 AEC), e o problema tem assumido muitas formas ao longo dos séculos.

Neste tópico vamos examinar o problema do mal em algumas de suas


manifestações mais importantes, tanto o problema em si mesmo quanto as várias
respostas e soluções que têm sido oferecidas historicamente e em tempos recentes.
Antes de passar aos próprios argumentos, no entanto, vamos primeiro esboçar
algumas das questões centrais relevantes para o debate.

2 CLASSIFICANDO O MAL
Alguns termos familiares são bastante fáceis de entender, mas quase
impossíveis de definir. Tomemos a palavra "jogo", por exemplo. Como Ludwig
Wittgenstein (1999) assinalou, é virtualmente impossível definir esta palavra,
embora normalmente temos nenhum problema de escolher um jogo dentre
alguma outra atividade ou evento. (Se você duvida da dificuldade de definir
"jogo", apenas tente oferecer uma definição que inclui apenas jogos e exclui tudo
o resto). Muitas outras palavras são como esta, incluindo o termo "mal". Enquanto
que uma série de definições de "mal" foram oferecidas ao longo dos séculos,
os debates sobre como deve ser definido são intermináveis. Então, ao invés de
tentar oferecer uma definição formal, vamos usar exemplos familiares, do que é
comumente considerado como sendo males, como o nosso padrão e guia. Aqui,
então, são alguns exemplos comuns de mal: catástrofes naturais, como terremotos,
furacões e incêndios florestais em que ocorre a morte de vida inocente; intenso
sofrimento e dor, como uma criança sendo espancada até a morte por um inimigo
tribal bárbaro, ou uma mulher grávida morrendo de câncer, ou uma zebra sendo
comida viva por um leão; deficiências físicas, mentais ou emocionais, tais como
nascer com uma fenda palatina, ou ter transtorno de personalidade borderline, ou
experienciar fraqueza da vontade em um momento crucial, e assim por diante. O
mal vem em toda a variedade de formas e tamanhos. Dado este fato, os filósofos
têm classificado o mal de várias maneiras, e uma das classificações mais comuns é
a distinção entre o mal natural e o mal moral.

256
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL

2.1 O MAL NATURAL E O MAL MORAL

John Hick (2010, p. 12) oferece uma descrição muito concisa desta
distinção quando escreve: "O mal moral é o que nós, seres humanos, originamos:
pensamentos e atos cruéis, injustos e perversos. O mal natural é o mal que se origina
independentemente das ações humanas: na doença [...] terremotos, tempestades,
secas, tornados etc.". O mal moral é o tipo de mal pelo qual um agente moral
é moralmente responsável, incluindo tanto ações (tais como mentir, estuprar,
assassinar etc.) quanto traços de caráter (como a malícia, ganância, inveja e assim
por diante). O mal natural inclui os eventos pelos quais os agentes morais não são
responsáveis.

NOTA

Mal natural: o mal que resulta de fenômenos naturais e não é provocado pelo livre-
arbítrio de um agente moral. Ele inclui desastres naturais e determinadas doenças humanas.

Mal moral: o mal que resulta de um agente moral ao abusar de seu livre-arbítrio de tal forma
que o agente é condenável por ele. Ele inclui ações humanas, bem como traços de caráter.
Para uma excelente exploração dos problemas do mal, recomendamos a leitura da obra editada
por Sergio Miranda (2013), O problema do mal.

2.2 O MAL HORRENDO E GRATUITO

Enquanto estamos escrevendo este tópico, é possível que uma querida amiga
sua tenha sido diagnosticada com câncer de mama de estágio três. Imaginemos
que ela tem um marido e dois filhos pequenos e, dadas as probabilidades, ela não
tem uma grande chance de viver mais de cinco anos. Por que isso aconteceu? Por
que ela? Por que agora? O que pode ser ganho por ela passar por vários anos de
quimioterapia, dor e o terrível pensamento de deixar seu marido e filhos sem uma
esposa e mãe?

Imagine outra situação. Você está lendo, no jornal local, que uma mãe de
várias crianças foi sair de sua garagem, sem saber que a sua filha de três anos de
idade saiu de casa e caminhou atrás do veículo dela. A mãe, inadvertidamente,
atropelou a menina, matando-a no processo. Será que esses eventos não soam
sem sentido, totalmente inúteis? E se Deus, um ser onipotente (todo poderoso),
onisciente (todo conhecedor) e onibenevolente (plenamente bom) existe, por que
ele deixaria isso acontecer? Qual é o sentido disso? Estes são exemplos de mal
gratuito, injustificado, e eles são inumeráveis.

257
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Há também exemplos de um mal de um tipo diferente, o que é referido


como o mal horrendo. Estes são males terríveis que, quando experienciados por
uma pessoa, lhe dá a razão para duvidar de que sua vida, como um todo, poderá ser
percebida como sendo uma grande dádiva para ela. A filósofa da religião Marilyn
McCord Adams (2000) oferece exemplos de males horrendos, como o estupro de
uma mulher seguido do decepamento de seus braços com um machado, a morte
lenta pela fome e o ter que escolher qual de suas próprias crianças deve viver
e qual será morta por terroristas. Dois exemplos ilustres são comumente usados​​
para exemplificar o mal gratuito e horrendo, exemplos referidos como os casos
do Corço e de Sue. O caso do Corço foi oferecido por William Rowe (2011) e o
caso Sue por Bruce Russell (1996), veja a nota a seguir. O caso do Corço parece ser
gratuito, injustificado (parece não haver qualquer sentido para a sua ocorrência), e
o caso Sue parece ser horrendo (você teria que se esforçar muito para encontrar um
exemplo mais terrível de violência horrenda em que a vítima poderia legitimamente
questionar-se, dado este mal, se sua breve vida poderia ser percebida integralmente
como sendo uma grande dádiva para ela).

NOTA

O Caso do Corço (mal gratuito): suponha que em alguma floresta distante um


raio atinge uma árvore, resultando em um incêndio florestal. Uma corça está presa no fogo,
terrivelmente queimada, e encontra-se em horrível agonia durante vários dias antes da morte
aliviar seu sofrimento. Até onde podemos ver, o intenso sofrimento da jovem corça é sem
sentido. Ao contrário dos seres humanos, não se atribui livre-arbítrio aos corços, pelo que
não podemos imputar o terrível sofrimento do corço a um mau uso do livre-arbítrio. Por que
permitiria então Deus que isto acontecesse quando, se existe, podia tê-lo impedido com tanta
facilidade? Admite-se em geral que somos simplesmente incapazes de imaginar um bem
superior cuja realização dependa, sob qualquer perspectiva razoável, de Deus permitir que
aquele corço sofra terrivelmente. Tão pouco parece razoável supor que há um mal imenso
que Deus seria incapaz de impedir se não permitisse que o corço sofresse durante cinco dias.
Suponha-se que por «mal sem sentido» entendemos um mal que Deus (se existe) poderia ter
impedido sem com isso perder um bem superior ou sem ter de permitir um mal igualmente
mau ou pior. Será que o sofrimento do corço é um mal sem sentido? Seguramente que o
terrível sofrimento do animal durante esses cinco dias não parece do nosso ponto de vista
fazer qualquer sentido. Quanto a isto, o consenso é, ao que parece, quase universal. Pois
dada a onisciência e o poder absoluto de Deus, ser-lhe-ia extremamente fácil ter impedido o
incêndio ou ter impedido que o corço fosse apanhado pelas chamas. Além disso, como vimos,
é extraordinariamente difícil imaginar um bem superior cuja realização dependa, sob qualquer
perspectiva razoável, de Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente. E é igualmente
difícil imaginar um mal equivalente, ou até pior, que Deus se visse forçado a permitir caso
impedisse o sofrimento do corço. Parece, portanto, perfeitamente razoável pensar que o
sofrimento do corço é um mal sem sentido, um mal que Deus (se existe) podia impedir sem
com isso perder um bem superior ou ter de permitir um mal equivalente ou pior (ROWE, 2011,
p. 123-124).
Desde que o sofrimento intenso da jovem corça era evitável e, até onde podemos ver,
injustificado, não parece que de fato existem casos de intenso sofrimento que um ser
onipotente e onisciente poderia ter evitado sem perder, assim, algum bem maior ou permitir
algum mal igualmente ruim ou pior?

258
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL

O Caso Sue (mal horrendo): nas primeiras horas do dia de Ano Novo de 1986, uma menina foi
brutalmente espancada, estuprada e depois estrangulada em Flint, Michigan. A mãe da menina
estava morando com o namorado e um outro homem que estava desempregado, além de seus
três filhos, incluindo um bebê de nove meses de idade, filho de seu namorado. Na véspera de
Ano Novo, todos os três adultos foram beber em um bar perto da casa da mulher. O namorado,
que estava usando drogas e bebendo muito, foi convidado a se retirar do bar às 20h00min.
Depois de várias reaparições ele finalmente deixou de fato o bar cerca de 21h30min. A mulher
e o homem desempregado permaneceram no bar até as 02h00min da madrugada, ponto
em que a mulher foi para casa e o homem foi a uma festa na casa de um vizinho. Talvez por
inveja, o namorado atacou a mulher quando ela entrou na casa. Seu irmão interveio, atingindo
o namorado e deixando-o desmaiado e caído sobre uma mesa. O irmão foi embora. Mais
tarde, o namorado atacou a mulher novamente e desta vez ela o deixou inconsciente. Após
ver os filhos, ela foi para a cama. Mais tarde, a filha de cinco anos de idade, desceu as escadas
para ir ao banheiro. O homem desempregado testemunhou que quando ele voltou da festa,
às 03h45min, ele encontrou a menina de cinco anos de idade morta. No seu julgamento, o
namorado foi absolvido do crime porque seu advogado lançou dúvidas sobre a inocência do
homem desempregado. Mas a menina fora estuprada, espancada gravemente sobre a maior
parte de seu corpo, e estrangulada por um desses homens naquela noite.

Existem diferentes formas de expressar os problemas existentes, perante


males como estes e a alegada existência de um Deus onipotente, onisciente e
onibenevolente. A seguir, vamos explorar dois diferentes tipos de problemas,
teóricos e existenciais, acompanhados por várias objeções e respostas a eles.

259
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

3 PROBLEMAS TEÓRICOS DO MAL

3.1 O PROBLEMA LÓGICO DO MAL


Como o título do tópico indica, não há simplesmente um único problema do
mal, os problemas são muitos e variados. A maioria dos problemas decorrem das
seguintes duas crenças: (1) Deus – um ser onipotente, onisciente e onibenevolente
existe; e, (2) O mal – em suas múltiplas manifestações existe.

QUADRO 15 – O PROBLEMA LÓGICO DO MAL

Se Deus existe, então Deus é onipotente (todo poderoso), onisciente (todo


1
conhecedor) e onibenevolente (plenamente bom).
2 Um ser onipotente teria o poder para eliminar o mal.
3 Um ser onisciente teria o conhecimento para eliminar o mal.
4 Um ser onibenevolente teria o desejo para eliminar o mal.
5 Um ser onipotente, onisciente e onibenevolente eliminaria o mal.
6 O Mal existe.
7 Então, Deus (um ser onipotente, onisciente e onibenevolente) não existe.

FONTE: O autor

De uma forma ou de outra, parece haver uma incoerência ao afirmarmos


essas duas crenças. Uma forma do problema alega que as proposições 1 e 2 do
quadro acima, O problema lógico do mal, são logicamente inconsistente. Essa
reivindicação por si só assumiu uma variedade de formas, mas a estrutura geral
do argumento pode ser exposta da seguinte forma: Os teístas, geralmente, tentam
demonstrar que tanto a premissa 2, 4 ou 5 não são necessariamente verdadeiras.
Para a conclusão 7 decorrer logicamente a partir de premissas 1-6, cada uma delas
teria de ser verdadeira. Se uma ou mais delas é falsa, no entanto, ou se há uma boa
razão para duvidar da veracidade de uma ou mais delas, isso faz com que todo o
argumento se torne suspeito.

260
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL

DICAS

Para uma visão geral destes problemas verifique a obra de Sweetman (2013),
especialmente as páginas 91-93. Para compreender melhor as críticas e refutações ao problema
lógico do mal, veja o artigo O desafio do Deus Malévolo de Stephen Law (2010), disponível
em: <https://rebeldiametafisica.wordpress.com/tag/problema-logico-do-mal/>, e o artigo O
problema lógico do mal de James R. Beebe (2011), disponível em: <https://rebeldiametafisica.
wordpress.com/2011/06/24/o-problema-logico-do-mal/>.

3.1.1 Resposta 1 – O argumento “impossível de provar o


contrário”
Uma resposta é que o problema lógico do mal não funciona porque, para
que ele tenha sucesso, deve-se demonstrar que Deus não tem nenhuma boa razão
moral para permitir que qualquer mal em particular exista. Todavia, estabelecer
que a existência de um mal particular e a existência de Deus são incompatíveis não
pode ser realizado. Considere estas palavras de Paul Draper (2008, p. 143-144) (um
proponente do problema do mal e não aderente ao teísmo):

Para entender por que isso é assim, é crucial entender que a


incapacidade de produzir coisas como círculos quadrados que são
logicamente impossíveis de produzir ou saber declarações como 2 + 3
= 10 que são logicamente impossíveis de saber não conta como uma
falta de poder ou uma falta de conhecimento. Em outras palavras, nem
mesmo um ser todo-poderoso e todo-conhecedor pode ter mais poder
ou mais conhecimento do que é logicamente possível para um ser ter.
Suponha, então, que algo de bom, G, que vale a pena o meu sofrimento
[...] logicamente implica que eu sofra (ou que Deus me permita sofrer).
Isso certamente parece possível (epistemologicamente) [...] Tais bens
seriam conhecidos por um ser todo-conhecedor mesmo que estejam
além do nosso alcance. Além disso, se existem tais bens, então, nem
mesmo um ser todo-poderoso e todo-conhecedor poderia produzi-los
sem permitir-me sofrer e, portanto, até mesmo um ser todo-poderoso e
todo-conhecedor poderia ter uma boa razão moral para permitir o meu
sofrimento.

Podemos até imaginar casos em que algum mal possa ser necessário para
que o bem possa resultar. Por exemplo, mostrar o perdão a alguém que tenha lhe
prejudicado maldosamente e que esteja arrependido, ou mostrar coragem perante
a tortura, ambos exigem logicamente que eu estivesse ferido e torturado. Se estes
são bons exemplos não vem ao caso, pois é logicamente possível que certos bens
justificam certos males, e é impossível provar o contrário.

261
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

3.1.2 Resposta 2 – A defesa do livre-arbítrio


Na literatura sobre Deus e o mal, uma distinção é feita frequentemente entre
uma defesa e uma teodiceia. A defesa é uma resposta aos argumentos antiteístas
do mal, e seu objetivo é demonstrar que esses argumentos falham. A teodiceia é
uma tentativa de explicar por que Deus é justificado em permitir o sofrimento e
o mal. Defesas são oferecidas em resposta a uma variedade de argumentos do
mal, mas elas são tipicamente acopladas com argumentos lógicos. Vamos primeiro
examinar uma defesa proeminente e depois explorar várias teodiceias.
E
IMPORTANT

O termo Teodiceia deriva dos Ensaios de Teodiceia de Leibniz (2013), refere-se


ao conjunto de argumentos que procuram defender e justificar a crença em Deus (um ser
onipotente, onibenevolente e onisciente), perante a presença do mal no mundo.

Uma versão importante da defesa do livre-arbítrio é oferecida por Alvin


Plantinga (1990, 2012), e em forma truncada segue mais os menos assim: É possível
que Deus, mesmo sendo onipotente, não pudesse criar um mundo com seres livres
que nunca escolhessem o mal. Além disso, é possível que Deus, mesmo sendo
onibenevolente, desejasse criar um mundo que contenha o mal se a bondade moral
requeresse criaturas morais livres. Aqui está como Plantinga (2012, p. 30) expressa
a resposta em forma preliminar:

Um mundo com criaturas que são significativamente livres (e livres em


realizar mais boas ações do que más ações, como deveria ser) é mais
valioso do que um mundo que não contenha criaturas livres. Deus pode
criar criaturas livres, mas Ele não pode causar ou determinar que elas
façam apenas o que é certo. Pois, se Ele assim o faz, então elas não são
significativamente livres, afinal, elas não fazem o que é certo livremente.
Para criar criaturas capazes de boa moral, portanto, Ele deve criar
criaturas capazes de fazer o mal, e Ele não pode dar a essas criaturas
a liberdade para fazer o mal e, ao mesmo tempo impedi-las de fazê-
lo. Como se viu, infelizmente, algumas das criaturas livres que Deus
criou escolheram errado no exercício da sua liberdade; esta é a fonte do
mal moral. O fato de que criaturas livres às vezes escolhem errado, no
entanto, não conta nem contra a onipotência de Deus, tampouco contra
sua bondade; pois Ele poderia ter antecipado e evitado a ocorrência do
mal moral somente se removesse a possibilidade do bem moral.

Então, o argumento lógico do mal falha porque é, pelo menos, logicamente


possível que Deus (um ser onipotente e onibenevolente) pudesse ter criado um
mundo de criaturas livres e ainda ser incapaz de garantir que este mundo não
tivesse nenhum mal nisso. Portanto, as premissas 2 e 5 podem ser falsas, e por isso
a conclusão não segue necessariamente; o argumento é falho. Devemos também
observar que Plantinga inclui em seu argumento a possibilidade de depravação

262
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL

transmundo (transworld depravity, a afirmação de que há pelo menos um mundo


possível em que uma pessoa tem a liberdade moralmente significativa e ainda
comete pelo menos uma ação moralmente errada) como mais uma suposição a fim
de assegurar que é logicamente impossível que haja um possível mundo em que
não há mal. Assim, independentemente de qual Deus criou o mundo, uma ou mais
pessoas individuais podem ser responsáveis por realizar o mal, porque elas estão
sofrendo a depravação transmundo. Este argumento é consistente com a doutrina
cristã da Queda.

Os críticos do argumento de Plantinga, como o filósofo ateu J. L. Mackie


(2010), responderam afirmando que ele pressupõe uma visão incompatibilista
do livre-arbítrio (em que o livre-arbítrio é incompatível com o determinismo –
humano ou divino), e que uma visão compatibilista é muito mais plausível. Dada
uma noção compatibilista do livre-arbítrio, Deus poderia criar criaturas "livres"
que façam nenhum mal, porque ele poderia determinar cada uma de suas ações.
Atualmente, no entanto, a maioria dos filósofos concordam que a defesa do livre-
arbítrio derrotou o problema lógico do mal, pois mesmo que admitamos que o
compatibilismo seja verdadeiro, Plantinga oferece o argumento como apenas uma
possibilidade lógica. Enquanto que é logicamente possível que o incompatibilismo
seja verdadeiro, então a conclusão necessária do problema lógico do mal é
rebaixada.

Outro ponto a favor do problema lógico do mal é que, enquanto o
argumento de Plantinga pode ter sucesso em cortar pela raiz o ponto de que o mal
moral é incompatível com a existência de Deus, ele não aborda o problema do mal
natural, pois os males da natureza não ocorrem por escolhas de criaturas livres.
A resposta de Plantinga é sugerir que é pelo menos logicamente possível (embora
ele não está afirmando ou negando a verdade da questão) que talvez pessoas não
humanas, livres sejam responsáveis ​​pelos males naturais (por exemplo, espíritos
rebeldes ou anjos caídos). Enquanto isto for uma possibilidade lógica, a alegação
de que a existência de Deus e os males naturais são inconsistentes é refutada.

DICAS

Para uma compreensão mais aprofundada da defesa do livre-arbítrio e


sua refutação, veja o artigo A defesa do livre-arbítrio refutada e a inexistência de Deus
demonstrada de Raymond D. Bradley (2007), disponível em: <https://rebeldiametafisica.
wordpress.com/2011/07/08/a-defesa-do-livre-arbitrio-refutada-e-a-inexistencia-de-deus-
demonstrada/>.

Devido a estas e outras respostas, agora muitos aceitam que o problema


lógico do mal foi suficientemente refutado.

263
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

3.2 O PROBLEMA PROBABILÍSTICO OU EVIDENCIAL DO MAL


Enquanto o problema lógico do mal tenha sido (tal como muitos acreditam
agora), para todos os efeitos, refutado, isto não deixou o ateu de mãos vazias em
termos de um argumento contra a crença em Deus perante os fatos do mal. Um
outro tipo de argumento tenta demonstrar que a existência do mal evidencia contra
a crença racional em Deus, embora a existência de ambos não seja logicamente
inconsistente. Este argumento, também referido como o "problema probabilístico
do mal", é apresentado em muitas formas, mas a sua essência é que se o Deus do
teísmo existe, ele provavelmente não criaria um mundo como o nosso, um mundo
cheio de todo o mal horrendo e gratuito que nele encontramos. Desde que o nosso
mundo existe, tal Deus provavelmente não existe. Este tipo de argumento também
tem sido referido como "indutivo", "a posteriori" e argumento “evidencial”. Vamos
examinar outro tipo de argumento evidencial no próximo subtópico.

3.2.1 O problema probabilístico

A estrutura geral do argumento pode ser apresentada como exposto no


quadro a seguir.

Ao contrário da conclusão do problema lógico do mal, este argumento


conclui afirmando que é improvável que Deus existe, em vez de que é
necessariamente verdade que Deus não existe. Este argumento assume força
especial quando refletindo sobre as profundezas do mal que existem, como os
males aparentemente gratuitos e horrendos mencionados no início deste tópico.
Não é mais provável que Deus não existe, dada a existência desses tipos de males?

QUADRO 16 – O PROBLEMA PROBABILÍSTICO

1 Se Deus existe, então Deus é onipotente, onisciente e onibenevolente.


2 Um ser onipotente, onisciente e onibenevolente pode criar qualquer mundo possível logicamente.
Se um ser onipotente, onisciente e onibenevolente fosse criar um mundo, tal ser criaria o melhor
3
de todos os mundos possíveis.
Um ser onipotente, onisciente e onibenevolente teria o poder, o conhecimento e o desejo de evitar
4
o mal e o sofrimento no melhor de todos os mundos possíveis.
É improvável que o mundo que existe (por exemplo, nosso mundo), que está cheio de uma grande
5
quantidade de mal horrendo e gratuito, seja o melhor de todos os mundos possíveis.
6 Portanto, é improvável que Deus, um ser onipotente, onisciente e onibenevolente exista.

FONTE: Adapatdo de Plantinga (2012)

264
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL

3.2.1.1 Resposta 1 – o lapso de Leibniz

Plantinga (2012) respondeu a este argumento afirmando que ele não é


sólido, pois incorpora o que ele chama de "O Lapso de Leibniz". A objeção aqui é
que a premissa 2 é possivelmente falsa. Ao contrário da noção de Gottfried Leibniz
de que o nosso mundo é o melhor de todos os mundos possíveis (logicamente),
pode ser que Deus, embora onipotente, não seja capaz de criar simplesmente
qualquer mundo logicamente possível. Se as pessoas têm livre-arbítrio libertário,
como descrito acima, então há certos mundos que até mesmo um ser todo poderoso
não poderia criar (PLANTINGA, 1978).

Considere o seguinte exemplo. Suponha que o diretor executivo de uma


grande empresa de utilidades, vamos chamá-lo de "Pedro", é apresentado por seus
contabilistas com o fato de que a empresa está em sérias dificuldades financeiras.
Suponha ainda que em discussões com João, seu contador chefe, Pedro percebe
que ao triturar alguns documentos, e cometer algumas pequenas mentiras, ele
pode blefar sua saída da situação e convencer seus acionistas que a empresa está
excepcionalmente bem. Depois de alguns anos disto, ele supõe que tudo ficará
bem.

Agora, considere estes dois cenários: (1) se o contador tivesse apresentado


a José a oportunidade de destruir os documentos e encobrir a dívida, ele teria
aceitado a oferta, e (2) se o contador tivesse apresentado a José a oportunidade de
destruir os documentos e encobrir a dívida, ele teria rejeitado a oferta.

Agora, considere dois mundos possíveis, M e M*, que têm o José neles e
são idênticos até o ponto em que é oferecida a José a oportunidade de destruir os
documentos e encobrir a dívida. Suponha que em M ele aceita a oferta e em M*
ele não a aceita. O argumento de Plantinga, então, é que se M ou M* tornar-se real
é em parte devido a Deus e em parte a José. Dado o livre-arbítrio de José, se José
aceita a oferta de fazer errado, então Deus não poderia fazer ocorrer o cenário em
que José rejeita a oferta, Deus não poderia fazer ocorrer o M*.

Claro, aqui depende muito se aceitamos ou rejeitamos a visão libertária de


livre-arbítrio. Mas se o libertarianismo é mesmo possível, então a premissa 2 perde
a sua força, e assim também a conclusão (PLANTINGA, 2012).

265
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

3.2.1.2 Resposta 2 – Não há o melhor de todos os mundos


possíveis
A segunda resposta para o problema probabilístico do mal é que ele
pressupõe que há, de fato, um melhor de todos os mundos possíveis. No entanto, de
acordo com uma série de filósofos, não pode haver um melhor de todos os mundos
possíveis. Considere isto: para qualquer melhor de todos os mundos possíveis
imagináveis, pode-se sempre imaginar apenas mais uma coisa boa nesse mundo.
Mais uma boa maçã, por exemplo, ou mais "criaturas sencientes delirantemente
felizes" (PLANTINGA, 2012). Se este for o caso, então poderia haver um mundo
melhor do que o melhor de todos os mundos possíveis, o que seria uma alegação
impossível.

Uma resposta a essa objeção é que, embora possa ser o caso que se
poderia conceber um cenário como esse, não se segue que o mesmo poderia
(metafisicamente) acontecer. Poderia haver razões pelas quais a adição de mais
uma coisa boa não faria um mundo particular melhor do que é.

3.3 O ARGUMENTO EVIDENCIAL DE ROWE


Outro tipo de argumento evidencial que tenta evitar as críticas ao argumento
probabilístico apresentado acima foi oferecido pelo filósofo William Rowe
(2011, 2013). Vemos a seguir o seu argumento, oferecido em forma ligeiramente
modificada, exposto no quadro a seguir.

QUADRO 17 – O ARGUMENTO EVIDENCIAL DO MAL DE WILLIAM ROWE

Existem grandes quantidades de mal horrendo e gratuito que um ser onipotente, onisciente e
1 onibenevolente poderia ter evitado sem perder um bem maior ou permitir algum mal igualmente
ruim ou pior.
Um ser onipotente, onisciente e onibenevolente teria impedido os males horrendos e gratuitos
2 que existem, a menos que o ser não pudesse fazê-lo sem perder um bem maior ou permitir algum
mal igualmente ruim ou pior.
3 Portanto, um ser onipotente, onisciente e onibenevolente não existe.

FONTE: O autor

À primeira vista parece que o teísta concordaria com as duas premissas. No


entanto, uma vez que este argumento está em uma forma válida, se concordarmos
com as duas premissas, a conclusão decorre necessariamente – um ser onipotente,
onisciente e onibenevolente não existe. O que o teísta pode fazer?

266
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL

3.3.1 Objeção 1 - Limitações epistêmicas cognitivas

Uma objeção ao argumento de Rowe é que uma vez que somos seres
humanos finitos, limitados, simplesmente não estamos em uma posição epistêmica
apropriada para fazer uma avaliação legítima sobre o que um ser onisciente,
onipotente e onibenevolente poderia ou iria fazer em qualquer situação, inclusive
situações em que o mal existe. Dado as nossas óbvias limitações temporais e
espaciais, nós simplesmente não podemos justificadamente fazer julgamentos
morais sobre Deus (WYKSTRA, 2013).

3.3.2 Objeção 2 - Deus pode usar o sofrimento e o mal


para nosso bem maior

A segunda objeção é que pode muito bem não haver nenhum mal gratuito
nem horrendo como definido acima. Por exemplo, depois de descrever sua jornada
pessoal através do que lhe parecia, à primeira vista, como um mal gratuito em sua
vida e a de sua família, o filósofo John Feinberg oferece dez "usos do sofrimento",
em que um teísta cristão pode ter conforto. Não podemos delineá-los aqui, mas
eles incluem Deus permitindo a dor a fim de proporcionar uma oportunidade
para demonstrar a fé verdadeira ou genuína e promover a maturidade na vida
(FEINBERG, 2004). Pode-se objetar a isso citando os exemplos dos tipos de Ivan
Karamazov (como as crianças que são jogadas aos cães) nos quais parece evidente
que nem todos os casos de sofrimento/mal estão conectados a um bem maior. No
entanto, a resposta poderia ser dada de que, mesmo se isto for assim, de um modo
geral todo o mal/sofrimento, no final, será redimido por Deus. Marilyn McCord
Adams (2000) elabora tal ponto, utilizando uma estrutura teológica cristocêntrica
que leva a sério o Filho de Deus sofredor. Ela argumenta que há uma boa razão
para que os cristãos acreditem que Deus irá, no final, engolfar e derrotar todos os
horrores pessoais através da participação integradora nos males na relação de uma
pessoa com Deus.

3.2.3 Objeção 3 - O mal gratuito é consistente com o


teísmo
Uma terceira objeção foi proposta recentemente por adeptos do teísmo
aberto (discutido no Tópico 3 da Unidade 2). Deste ponto de vista, a existência de
um mal gratuito (e talvez horrendo) não é incompatível com o teísmo. Os teístas
abertos sustentam (como o fazem uma série de teístas tradicionais) que o livre-
arbítrio deve ser de um tipo incompatibilista, a fim de ser moralmente significativo,
e por isso é bom que Deus tenha criado seres humanos com livre-arbítrio. Mas
esta liberdade implica a possibilidade de agentes livres escolherem o bem e o mal.

267
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Nem a onipotência, tampouco a onisciência de Deus, poderia excluir a existência


do mal, até mesmo o mal gratuito, desde que a contingência real acaba por ser
uma parte do universo. Para o teísta aberto, a onisciência de Deus não inclui o
conhecimento de alguns eventos futuros, como as ações humanas livres. Assim, na
criação do universo Deus não tinha conhecimento de grande parte do mal que iria
ocorrer no futuro.

4 O PROBLEMA EXISTENCIAL DO MAL


O problema existencial do mal (que é chamado por diferentes nomes,
incluindo o "problema religioso", o "problema moral", o "problema pastoral",
o "problema psicológico" e o "problema emocional"), não é fácil de definir ou
delinear. Simplificando, é a noção de que a sensação existencial de certos tipos de
mal leva à descrença em Deus ou na crença religiosa em geral. Um exemplo pode
esclarecer o significado e o poder do problema.

Algum tempo atrás estávamos com um grupo de amigos esperando na fila


em um restaurante. Estávamos envolvidos em uma discussão teológica bastante
sofisticada (concedido, tenho amigos incomuns!) quando uma jovem em pé diante
de nós perguntou se nós estávamos falando sobre Deus. "Sim, estamos", dissemos.
"Na verdade, estamos discutindo a natureza e os atributos de Deus." "Bem," ela
disse, "Eu parei de acreditar em Deus há dois anos. Enquanto meu pai estava
sofrendo e morrendo de câncer, eu decidi que eu não podia mais acreditar em
Deus”. Enquanto ela disse essas palavras, ela se tornou emocional. Quase podíamos
sentir a sua dor enquanto as lágrimas começaram a escorrer de seu rosto em sua
agonia sobre o seu pai perdido e a dor que ele deve ter passado. Isto, sem dúvida,
é um caso claro do problema existencial do mal.

Além disso, quando se considera os males terríveis e gratuitos observados


no início deste tópico (especialmente se alguém passou pessoalmente por essas
experiências), não é nenhuma surpresa que as pessoas afirmam ser incapazes de
ver o mundo teisticamente, ser incapaz de acreditar em um Deus pessoal, e muito
menos venerá-lo e adorá-lo.

4.1 RESPOSTA
Uma resposta comum para o problema existencial do mal, de cunho
experiencial, é que o "problema" aqui não é realmente um argumento em absoluto,
e, portanto, não tem a necessidade de uma resposta lógica, racional.

Quando um indivíduo é pessoalmente confrontado com o mal e o


sofrimento significativo, a principal coisa que ela precisa não é uma resposta
lógica ou teórica, mas sim o cuidado, a simpatia e a amizade. Como Plantinga diz,
nesses momentos de dor uma pessoa não precisa de "iluminação filosófica", mas

268
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL

de “cuidado pastoral" (PLANTINGA, 2012). O filósofo e teólogo John Feinberg (


2004, p. 454) esclarece:

Pense em uma criança que sai para brincar em um playground. Em algum


momento durante a brincadeira, ela cai e machuca o joelho. Ela corre
para sua mãe para conforto. Agora, sua mãe pode fazer várias coisas. Ela
pode dizer à filha que isso aconteceu porque ela estava correndo muito
rápido e não estava olhando para onde ela estava indo. Que ela deve ter
mais cuidado da próxima vez. A mãe, se souber, pode até explicar as leis
da física e da causalidade que estavam operando para fazer com que o
machucado de sua filha seja exatamente do tamanho e da forma que é.
A mãe pode até explicar por alguns momentos sobre as lições que Deus
está tentando ensinar sua filha a partir desta experiência.

Se ela, em seguida, faz uma pausa e pede a sua filha, "Você entende,
querida?", não se surpreenda se a menina respondesse: "Sim, mamãe, mas ainda
dói!". Toda a explicação, naquele momento, não impede a sua dor. A criança não
precisa de um discurso; ela precisa de abraços e beijos de sua mãe. Haverá um
tempo para o discurso mais tarde; agora ela precisa de conforto.

5 AS TRÊS TEODICEIAS

Enquanto o cuidado pastoral pode muito bem ser um elemento importante


na resposta àqueles que experimentam dor e sofrimento, ele não faz nada para
resolver os problemas teóricos remanescentes observados acima. Existem maneiras
de realmente explicar por que Deus permitiria o mal no mundo? Há, de fato. Houve
uma série de tentativas de justificar a Deus e os caminhos de Deus dado à realidade
do mal. Tais respostas são chamadas teodiceias, e a seguir vamos examinar as três
mais importantes.

5.1 A TEODICEIA DO LIVRE-ARBÍTRIO DE AGOSTINHO


Como observado anteriormente, a teodiceia é diferente de uma defesa em
que o objetivo de uma teodiceia é justificar Deus e os caminhos de Deus dado a
existência do mal em um mundo criado por Deus, enquanto que uma defesa é uma
tentativa de demonstrar que os argumentos antiteístas do mal são malsucedidos.
Existem diferentes tipos de teodiceias, e uma das mais significativas historicamente
é aquela oferecida pelo grande teólogo e padre da Igreja, Santo Agostinho. É
referida como a teodiceia do livre-arbítrio, e expomos uma forma de delineá-la no
quadro a seguir.

269
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

QUADRO 18 – A TEODICEIA DO LIVRE-ARBÍTIRO DE AGOSTINHO

1 Deus criou o universo, e tudo nele era bom.


Algumas das criações de Deus – nomeadamente, as pessoas – foram presenteadas com a boa dádiva
da liberdade da vontade (tendo a liberdade da vontade no universo é melhor do que não tê-la,
2
uma vez que um universo moral exige isso, e um universo moral é melhor do que um universo
não moral ou amoral).
Algumas dessas pessoas criadas – primeiros anjos, e então seres humanos – escolheram livremente
3 se afastarem da bondade de Deus; ou seja, eles "pecaram" e caíram de seu estado de perfeição (por
exemplo, a "Queda" da humanidade).
4 Esta conversão da vontade, ou pecar, trouxe o mal moral e natural para o universo.
O mal, ainda que provocado por pessoas criadas, não é uma coisa ou entidade; é uma compensação
5
metafísica, ou falta ou privação, do bem (uma privatio boni).
Deus finalmente retificará o mal quando ele julgar o mundo, inaugurando o seu reino eterno com
6 aquelas pessoas que foram salvas por meio de Cristo e enviando para o inferno eterno aquelas
pessoas que são perversas e desobedientes.

FONTE: Baseado na obra O livre-arbítrio de Santo Agostinho (1995)

Esta tem sido a teodiceia mais utilizada no Ocidente desde o século V da era
comum, e ela ainda é amplamente utilizada hoje, como, por exemplo, na excelente
obra de Richard Swinburne (1998), que também tem sido amplamente criticada, a
qual traz duas objeções.

5.1.1 Objeção
Para Agostinho, Deus é totalmente soberano e não está sujeito às escolhas e
caprichos de pessoas falíveis e finitas, mas, se Deus é soberano, como é que o mal
emergiu em seu universo? Parece haver um conflito entre a defesa do livre-arbítrio
de Agostinho, de um lado, e sua visão de Deus, de outro, pois parece que Deus,
entendido desta maneira, poderia ter criado pessoas que seriam santos espirituais
e, portanto, sempre escolheriam o bem. Então, por que eles escolheram pecar?

Além disso, como poderia um ser onibenevolente criar um inferno onde


inúmeras pessoas passarão a eternidade no sofrimento e em agonia? Parece haver
um conflito aqui entre a soberania de Deus e a bondade de Deus.

270
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL

NOTA

Santo Agostinho (354-430 EC) foi um filósofo, teólogo e padre cristão da Igreja,
entre os mais influentes na história. Sua peregrinação espiritual o levou do
ceticismo como um jovem adulto até tornar-se Bispo de Hipona em seus últimos anos. Seu
trabalho sobre a liberdade humana difundiu sua carreira, e praticamente todos os filósofos
medievais de renome no Ocidente cristão interagiam com a obra de Agostinho sobre o livre-
arbítrio e questões relacionadas, tais como a presciência, predestinação e a graça divina. Suas
obras filosóficas mais importantes incluem A Cidade de Deus (1990), O Livre-Arbítrio (1995), e
sua autobiografia, Confissões (1996).

Teodiceia: a palavra “teodiceia” vem de duas palavras gregas – theos (Deus), e dikei (justiça). A
teodiceia é uma tentativa de reivindicar a bondade e justiça de Deus perante a realidade do mal.

5.2 A TEODICEIA IRINEANA OU DA “FORMAÇÃO DA ALMA”


DE HICK
Com base no trabalho de Irineu (130-202 EC), um bispo cristão primitivo,
John Hick desenvolveu uma teodiceia que está em contraste gritante com o tipo
agostiniano (SWEETMAN, 2013). Em vez de Deus criar um paraíso com seres
humanos perfeitos que então caíram em pecado, a teodiceia de Irineu narra isso
ao contrário. Deus criou pessoas boas, mas não desenvolvidas, pois a maturidade
moral requer enfrentamento de provações e dificuldades na vida. A existência
do mal, então, não é o resultado de pessoas perfeitas que escolhem pecar, mas é
um elemento necessário do processo de desenvolvimento de pessoas humanas (e
talvez outras) imaturas em seres maduros espiritual e moralmente, e o mal é uma
parte da estratégia de Deus na formação da alma. O teodiceia pode ser expressa
como exposta no quadro a seguir.

QUADRO 19 – UMA TEODICEIA IRINEANA DA FORMAÇÃO DAS ALMAS

Deus criou o mundo como um lugar bom (mas não um paraíso) para o desenvolvimento de pessoas humanas
1
tanto espiritual quanto moralmente.
Através de meios evolutivos, Deus fez emergir pessoas humanas com a liberdade de vontade e a capacidade
2
para amadurecer no amor e na bondade.
3 O mal é o resultado tanto da criação de um mundo bom de formação de almas e da escolha humana de pecar.
Ao colocar as pessoas humanas neste ambiente desafiador, através de suas próprias respostas livres, elas têm a
4 oportunidade de escolher o que é certo e bom e, portanto, crescer gradualmente em pessoas maduras (que exibem
as virtudes da paciência, coragem e generosidade, por exemplo) que Deus deseja que elas sejam.
Deus continuará a trabalhar com as pessoas humanas, mesmo na vida após a morte se necessário, permitindo-
5 lhes oportunidades para amar e escolher o bem, de tal forma que no escaton (último, fim das coisas) todos serão
levados a um relacionamento correto com Deus.

FONTE: O autor

271
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

5.2.1 Objeção

Uma série de objeções tem sido oferecida para a teodiceia da formação


de almas de Hick. Uma delas centra-se na aparente evidência contrária. Muitas
pessoas não melhoram através das dificuldades que elas enfrentam; muitas vezes
as dificuldades na vida de alguém causam o fim de sua vida em tragédia absoluta.
Uma rápida olhada no noticiário da noite, em praticamente qualquer dia, irá
fornecer uma ampla demonstração deste ponto. Um defensor da teodiceia poderia
responder que a vida presente não é tudo que existe, e Deus terá muito tempo para
trabalhar em um indivíduo que responde mal agora. Mas é claro que isso depende
de uma crença maior na vida após a morte, algo que não temos suporte probatório
empírico.

Outra objeção à teodiceia da formação de almas é que ela parece ser


uma forma bastante brutal de Deus para amadurecer as almas. Sugerir que todo
o sofrimento e a dor, todos os males horrendos, já experimentados ao longo da
história foi o resultado da grande intenção cósmica de Deus, faz Deus parecer um
pouco menos do que o ser onipotente, onisciente e onibenevolente que a maioria
dos teístas pensam que Deus é.

5.3 UMA TEODICEIA DO PROCESSO


A teologia do processo (e a filosofia) foi desenvolvida pela primeira vez por
Alfred North Whitehead (1861-1947). Ela continuou a ser desenvolvida por Charles
Hartshorne (1897-2000) e mais recentemente por John Cobb Jr. (1925-). Baseia-
se na premissa fundamental de que Deus e o mundo estão em fluxo. Enquanto
que Deus não é o mundo (isso seria panteísmo), Deus participa do mundo (isso é
panenteísmo), Deus e o mundo estão em processo juntos. Deus não só age sobre o
mundo, mas este também age sobre àquele. Todas as coisas, incluindo Deus, estão
no processo de se tornar, em vez de ser estáticos. Neste processo de tornar-se, as
entidades respondem a cada momento, fazendo escolhas, e estas escolhas são reais
e significativas; elas nunca são perdidas, mas são continuamente adicionadas à
experiência global de Deus. Deus aprende a partir de tais experiências, e, portanto,
está sempre crescendo em conhecimento e entendimento. Este ponto de vista do
conhecimento de Deus está claramente em contraste com a teologia tradicional, em
que a onisciência de Deus é eternamente completa e exaustiva.

272
TÓPICO 1 | PROBLEMAS DO MAL

Além disso, na visão do processo, a onipotência de Deus é rejeitada. O


poder de Deus não é compreendido como sendo infinito, mas limitado na medida
em que outras entidades livres, como as pessoas humanas, também tem o poder de
fazer suas próprias escolhas. Além disso, o poder de Deus é persuasivo ao invés de
coercivo; Deus não força as criaturas a fazer o bem, mas tenta atraí-las na direção
certa. Infelizmente, elas não podem ser sempre atraídas, e às vezes elas fazem as
escolhas erradas; às vezes elas fazem coisas más. Mas todas as entidades, incluindo
Deus, continuam a evoluir, e a esperança é que, eventualmente, todo o mal será
erradicado na medida em que as criaturas livres aprendam com as experiências
anteriores (suas próprias e aquelas da história) o que é em última análise bom e
certo.

Podemos delinear a teodiceia do processo como exposta no quadro a seguir.

QUADRO 20 – UMA TEODICEIA DO PROCESSO

Deus não é o criador transcendente que criou o mundo ex nihilo (do nada), mas é Deus no mundo;
1
isto é, o panenteísmo no qual tudo está em Deus, mas nem tudo é Deus.
Deus não é nem onisciente nem onipotente no sentido tradicional; O poder de Deus é compartilhado
2 com outras entidades e o conhecimento de Deus aumenta na medida em que suas experiências
aumentam.
O universo é caracterizado pela evolução, processo e mudança, alguns dos quais tem sido provocado
3
pelas escolhas livres autodeterminadas de entidades, incluindo Deus e as pessoas finitas.
Algumas das escolhas feitas por pessoas humanas são boas e algumas são más. Há a esperança de
4 que o mal continuará a ser engolfado na medida em que todas as experiências sejam sintetizadas
na própria vida consciente de Deus.

FONTE: O autor

DICAS

Para ler uma versão recente e inspiradora da teodiceia do processo baseada na


criação a partir do caos, é interessante observar a do texto de David R. Griffin (2001).

5.3.1 Objeções

Várias objeções e críticas têm sido oferecidas ao pensamento do processo


e sua respectiva teodiceia, e observaremos brevemente três delas. Em primeiro
lugar, a crítica típica do processo ao entendimento tradicional do poder divino
tem sido posta em questão. Enquanto que uma ramificação da teologia calvinista
inclui o poder de Deus como sendo exclusivo e implicando determinação soberana
absoluta de todos os eventos, certamente esta não é a única, nem mesmo a mais

273
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

comum, compreensão do poder divino. Então, essa crítica do processo está mal
colocada contra a maioria das noções tradicionais da onipotência. Por outro lado,
a crítica do processo referente à teologia tradicional que afirma o livre-arbítrio
humano e, portanto, uma limitação de alguma espécie no poder de Deus, é sem
dúvida fraca. Por exemplo, em resposta a uma teodiceia do livre-arbítrio, os
filósofos do processo alegaram que tal visão permitiria que Deus pudesse eliminar
qualquer mal particular que ocorresse orientado pela vontade livre, mas ele não
o faz. Portanto, Deus poderia parar um estuprador antes de estuprar, fazer uma
bomba terrorista não explodir, ou fazer com que um ladrão seja pego, antes de
fugir. Uma vez que Deus poderia fazer tais coisas sem interromper o livre-arbítrio,
mas não o faz, argumentam eles, Deus não é realmente bom sob esta perspectiva.
No entanto, os defensores da teodiceia do livre-arbítrio respondem argumentando
que um tipo de livre-arbítrio em que não se permite as ações de uma pessoa ser
eficaz não é verdadeiramente livre-arbítrio em absoluto. Assim, tal objeção não se
justifica.

A segunda objeção tem a ver com a negação do processo em relação à


criação ex nihilo. Na perspectiva do processo, o mundo não foi criado por Deus a
partir do nada. Existem várias explicações para a existência do mundo levantadas
pelos pensadores do processo. Todavia, uma explicação muito comum é que ele é
eterno; ele nunca começou a existir. No entanto, essa visão contradiz o modelo big
bang padrão do universo que é amplamente difundido entre os cosmólogos e os
astrônomos. É claro que o veredicto sobre esta questão ainda está em aberto (para
mais informações sobre este tema, consulte o Tópico 4 da Unidade 2).

A objeção final é que a teodiceia do processo realmente não se parece muito


com uma teodiceia. Deus é muito impotente para eliminar os males do mundo, na
medida em que Deus não tem nem o conhecimento nem o poder de, em última
análise, resolver o problema. Além disso, muitos veem o mal e o sofrimento no
mundo como cada vez pior, não melhor (Esta visão pode ser confrontada com as
pesquisas de Steven Pinker [2013] em sua obra “Os anjos bons da nossa natureza”,
na qual ele defende a tese que, pelo menos, certos tipos de mal, como a violência
física, estão sim diminuindo com o desenrolar da história humana). Enquanto que
Deus sempre faz o melhor que pode na visão do processo, mesmo assim não parece
que ele está fazendo muito, pois o mal ainda abunda. Nem parece que Deus está
melhorando em sua capacidade de evoluir um mundo melhor. Diante disso, sem a
esperança escatológica de uma eliminação definitiva do mal, a palavra "teodiceia"
aqui pode ser um termo impróprio.

DICAS

Veja o vídeo de Steven Pinker sobre a diminuição da violência, disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=wtPHieLCWrs>.
Veja também o vídeo de William Craig sobre o problema do sofrimento, disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=8o2BtYlH4Sc>.

274
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico vimos:

• Vários aspectos do problema do mal. Após descrever alguns termos e conceitos


significativos nas discussões sobre o mal, observamos que há uma série de
“problemas”, e não apenas um, e os dividimos em duas categorias: teóricas e
existenciais.

• Três problemas teóricos: lógico, probabilístico e o argumento evidencial de


Rowe. Nós examinamos cada um desses argumentos, assim como as objeções
aos mesmos e respostas para muitas destas objeções.

• A defesa do livre-arbítrio e a resposta “impossível de provar o contrário”, duas


respostas ao argumento lógico, e observamos que eles provaram eficazmente a
refutação ao argumento.

• O problema existencial do mal e vimos que, embora muitas vezes as pessoas


não creiam em Deus, devido à angústia existencial durante os momentos que
experienciam o mal, este não é um argumento por si só contra o teísmo. Assim,
o que é muitas vezes necessário em tais casos, não é argumento racional, mas
um cuidado pastoral.
o Enquanto o cuidado pastoral é muitas vezes útil e necessário, isso, obviamente,
não aborda o aspecto teórico do problema.

• Três teodiceias – tentativas de justificar Deus perante o mal no mundo: a


agostiniana, a irineana e a teodiceia do processo.

275
AUTOATIVIDADE

É possível, e por vezes necessário, classificar os sentidos do termo “mal”


para evitar problemas conceituais e para delimitar o campo de discussão e
investigação. De acordo com o texto pudemos ver pelo menos quatro tipos de
“mal”. Acerca destes quatro tipos de classificações do “mal”, associe os itens,
utilizando o código a seguir:

I – Mal Horrendo
II – Mal Gratuito
III – Mal Natural
IV – Mal Moral

( ) O mal que resulta de fenômenos da natureza e não é provocado pelo livre-


arbítrio de um agente moral.
( ) O mal que resulta de um agente moral ao abusar de seu livre-arbítrio de tal
forma que o agente é condenável por ele.
( ) O mal terrível que ao ser experienciado dá a razão ao indivíduo de duvidar
de que a sua vida tenha qualquer sentido.
( ) O mal injustificado que para a sua ocorrência não se encontra qualquer
razão e carece de total sentido.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) I, II, III, IV.
b) ( ) III, IV, I, II.
c) ( ) II, IV, III, I.
d) ( ) IV, I, III, II.

276
UNIDADE 3
TÓPICO 2

CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO

1 INTRODUÇÃO

Em um livro condenando a religião, intitulado A morte da Fé, o autor Sam


Harris (2009, p. 13) começa com um exemplo destinado a chocar o leitor:

O rapaz sobe em um ônibus que está saindo do terminal. Está de


casacão. Debaixo do casacão, leva uma bomba. Seus bolsos estão cheios
de pregos, esferas metálicas e veneno para ratos [...] O rapaz sorri. Ao
apertar um botão, ele destrói a si mesmo, o casal ao seu lado e mais vinte
pessoas no ônibus [...] Os pais do rapaz logo ficam sabendo o que lhe
aconteceu. Embora entristecidos por terem perdido um filho, sentem
um tremendo orgulho pelo seu feito. Eles sabem que o jovem foi para
o céu, preparando o caminho para eles, que seguirão mais tarde. Não
só isso – ele também mandou suas vítimas para o inferno por toda a
eternidade. É uma vitória dupla.

Harris observa que é a religião do rapaz, ou melhor, suas crenças religiosas,


que o levam a se envolver neste tipo de comportamento horroroso e devastador.
Ele passa a listar atrocidades e males promulgados por adeptos religiosos de
uma variedade de religiões ao longo dos séculos. O problema, para Harris e uma
série de outros pensadores, é que a religião (em todas as suas várias formas) é
tanto irracional quanto perigosa. A religião é baseada na fé cega, e, como tal, leva
as pessoas além dos limites da razão e ao abismo da irracionalidade da qual o
terrorismo e a violência fluem naturalmente. A fé religiosa deve ser erradicada
e substituída pela razão, Harris sustenta, e o domínio da razão manifesta na sua
melhor forma e mais elevada é a ciência. Outras obras como “Deus não é grande”
de Hitchens (2007) e “Deus um delírio” de Dawkins (2007), ressaltam o mesmo
ponto básico.

Será que esta dicotomia entre a religião e a ciência, com a aquela baseada na
fé cega subjetiva e esta baseada na razão objetiva e evidências, é correta? Podem as
crenças religiosas ser, em algum momento ao menos, racionalmente justificadas?
Será que elas devem ser racionalmente justificadas? Além disso, qual é a relação
adequada entre a ciência e a religião? Seriam elas de alguma forma compatíveis?
Há muitas vezes um confronto entre a fé e a razão, entre a religião e a ciência. Mas
deve ser assim? Estas são algumas das questões e problemas, que vamos explorar
neste tópico.

277
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

2 A RELIGIÃO E A CIÊNCIA

Tanto a ciência quanto a religião desempenham papéis fundamentais


em nosso mundo hoje. No Tópico 1 da Unidade 2 deste Caderno de Estudos,
observamos que cerca de 85 por cento da população do mundo afirma alguma
forma de crença religiosa; a religião e seus efeitos abrangem o globo. A ciência e os
efeitos da ciência também são ubíquos. Seja no centro de Londres, nas colinas do
sul do Afeganistão, ou no coração da floresta tropical brasileira, rádios, telefones
celulares, televisão por satélite e outras invenções da ciência são muitas vezes parte
da vida diária comum. É também o caso que muitas pessoas religiosas são cientistas
e que a experimentação científica às vezes é usada na religião. Durante séculos tem
havido uma relação simbiótica entre estes dois domínios. No entanto, a ciência e
a religião estão também muitas vezes em desacordo uma com a outra. A disputa
de Galileu com a Igreja Católica Romana sobre se a terra ou o sol está estacionário
é um caso memorável a ser considerado (NAESS, 2015; FINOCCHIARO, 1989).
Como devemos entender a relação entre a ciência e a religião?

Antes de examinar esta relação, vamos primeiro tentar uma breve descrição
da ciência (uma descrição da religião foi oferecida no Tópico 1 da Unidade 2):
ciência envolve a exploração, a descrição, a explicação e a previsão de ocorrências
no mundo natural que podem ser verificadas e apoiadas pela evidência empírica.
Esta descrição da ciência é derivada daquela oferecida por Carl Hempel (1981).
Como se vê, as alegações feitas por aqueles que praticam a ciência estão às vezes
em desacordo com as afirmações religiosas. Então, como a ciência e a religião se
relacionam uma com a outra? Várias opções foram propostas, e para os nossos
propósitos, vamos restringi-las a três: conflito, independência e integração. Para
explorar estas e outras opções veja a obra “Quando a Ciência encontra a Religião”
de Ian Barbour (2004).

2.1 CONFLITO
Uma maneira de compreender a relação entre a ciência e a religião é vê-las
em conflito uma com a outra. Este conflito tem sido evidente ao longo dos séculos.
Talvez o mais bem conhecido destes engajamentos tenha sido a controvérsia
criação-evolução. Este confronto foi tipificado em 1860 quando o bispo Samuel
Wilberforce (1805-1873) pediu ao biólogo Thomas Huxley (1825-1895; conhecido
como o "Buldogue de Darwin" por sua defesa da teoria da evolução) se ele alegava
descendência simiesca por meio de seu avô ou de sua avó. A resposta de Huxley
foi tão sarcástica quanto à própria interpelação, afirmando que ele seria muito
mais feliz de ter um símio como um avô do que alguém que distorce a verdade e
confunde as coisas (HUXLEY, 2009; BONE, 2003).

O que levou ao conflito é, sem dúvida, um mal entendido dos papéis e


restrições legítimas da ciência e da religião, e o mal entendido vem de dois
domínios. Por um lado estão os literalistas bíblicos que afirmam que as escrituras

278
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO

sagradas (neste caso, é a Bíblia) oferecem um relato historicamente exato da


criação do mundo, desde o próprio universo a plantas específicas, os animais e os
primeiros seres humanos. Esta história da criação, eles sustentam, conflita com a
explicação evolucionária da história da flora e da fauna. Elas não podem ser ambas
verdadeiras, e as escrituras superam a ciência. Por outro lado, estão os materialistas
científicos que concordam que a narrativa bíblica e a explicação evolucionária estão
em conflito; elas não podem ser ambas verdadeiras. Eles afirmam, no entanto, que
a evolução naturalista está correta e nenhuma história religiosa é necessária para
explicar a origem ou o desenvolvimento dos organismos vivos.

Existem inúmeros desafios para essa visão do conflito. Primeiro, o


materialismo científico (por vezes referido como o cientificismo), a visão de que a
única forma viável de aquisição de conhecimento é através do método científico e
a única realidade é a material, é muito mais um pressuposto filosófico do que uma
conclusão científica. Como, por exemplo, seguindo o método científico, pode-se
chegar à conclusão de que o método científico é a única maneira viável de adquirir
conhecimento? E como, de acordo com o método científico, pode-se saber que a
única realidade é a material? Seguindo os ditames da ciência não nos conduz a
nenhuma destas conclusões.

Em segundo lugar, muitos teólogos e pesquisadores de estudos religiosos


concluíram que as escrituras sagradas não devem ser tomadas como livros
científicos. É equivocado entendê-las como fonte, por exemplo, de informações
geológicas (se a terra tem milhares ou milhões de anos de idade), de informações
astronômicas (se o sol é estacionário ou móvel) ou de informação biológica (se os
humanos evoluíram de formas animais inferiores ou não). Junto com Galileu, esses
pensadores sustentam que Deus e a criação de Deus são revelados em ambos "o
livro da natureza" e "o livro das escrituras" – livros que não poderiam entrar em
conflito uma vez que ambos provêm de Deus. Talvez nem a ciência, tampouco a
religião pode nos fornecer um mapa completo e pleno de todos os domínios, pois
cada um tem suas próprias esferas separadas da realidade. Isto nos leva à opção
seguinte.

2.2 INDEPENDÊNCIA
Uma segunda opção para a compreensão da relação entre a ciência e a
religião é a independência; é vê-las como formas completamente independente de
pensamento e práticas que nunca entram em contato. Esse ponto de vista tende
a proporcionar um relacionamento mais irônico entre a ciência e a religião, pois
desde que elas são domínios totalmente diferentes, as mesmas nunca estão em
desacordo. Existem diferentes expressões da posição de independência, mas as
duas mais proeminentes são a neo-ortodoxia protestante e a análise linguística.
Vamos examinar brevemente cada uma por sua vez.

279
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Karl Barth (1886-1968), uma figura central no movimento neo-ortodoxo


protestante no século XX, sustentava que Deus é transcendente e incognoscível, até
que Deus proporcione uma autorrevelação. Essa revelação não ocorre através da
investigação e da descoberta científica. Pelo contrário, ela vem através da revelação
divina, uma revelação que ocorre através da iniciação do Espírito de Deus. As
escrituras podem fornecer o catalisador para este encontro divino, mas isso não
significa que elas devam ser interpretadas literalmente. Elas são registros humanos
falíveis de eventos reveladores que fornecem insights religiosos na medida em que
o Espírito se move em um indivíduo. A ciência, para Barth, fornece informações
úteis sobre o mundo empírico, mas não pode fornecer o conhecimento religioso. O
objeto de estudo destes domínios é completamente diferente, tal como são os seus
objetivos e métodos de investigação.

NOTA

Karl Barth (1886-1968) foi um teólogo reformado suíço e um dos mais influentes
pensadores cristãos protestantes do século XX. Ele desenvolveu uma “teologia da Palavra”, em
que o conhecimento e o entendimento religioso é conferido pela fé, uma fé oferecida somente
por Cristo, sob a soberania de Deus. Sua teologia é muitas vezes referida como neo-ortodoxia
pelos críticos. Ele foi um escritor prolífico, com sua magnum opus sendo os treze volumes da
Dogmática Eclesiástica (1932-1967), cuja tradução para o português está ainda em andamento.
Algumas de suas obras já traduzidas para o português são “Fé em busca de compreensão”
(2003) e “Esboço de uma dogmática” (2006).

Uma segunda maneira de expressar independência é interpretar a ciência


e a religião como linguagens diferentes que fornecem o seu próprio conjunto
exclusivo de funções. Em meados do século XX, um grupo de estudiosos, referidos
como positivistas lógicos, sustentaram que para uma reivindicação ser verdadeira
e significativa tinha que ser empiricamente verificável. As ideias religiosas, então,
passaram a ser vistas como sem sentido. Por uma série de razões o positivismo
lógico teve curta duração, mas a ênfase na análise de linguagem foi marcada por
um movimento mais tarde chamado de análise linguística ou tradição analítica
(COFFA, 2005; MARCONDES, 2004; MICHELETTI, 2007). Para os analistas
linguísticos, a linguagem religiosa e a linguagem científica têm diferentes objetivos
e funções. A função da linguagem religiosa é "recomendar um modo de vida,
eliciar um conjunto de atitudes e incentivar a fidelidade a determinados princípios
morais" (BARBOUR, 2013, p. 14). A função primária da linguagem científica, por
outro lado, é a previsão e o controle no mundo natural. A religião e a ciência têm
cada uma o seu próprio "jogo de linguagem", como alguns nomeariam, e os dois
jogos nunca podem interagir ou conflitar.

Enquanto que um benefício claro da opção da independência, em ambas as


formas acima descritas, é que ela evita a guerra hostil inerente à opção do conflito,
a mesma vem com um preço. Ian Barbour (1923-2013) descreve o custo:

280
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO

Se a ciência e a religião fossem totalmente independentes, a


possibilidade de conflito seria evitada, mas a possibilidade de um
diálogo construtivo também seria descartada. Nós não experienciamos
a vida como nitidamente dividida em compartimentos separados; nós
a experienciamos na inteireza e na interconexão antes de desenvolver
determinadas disciplinas para estudar diferentes aspectos da mesma
(BARBOUR, 2013, p. 16).

A independência assume que a religião não tem nada a dizer sobre o mundo
natural e que a ciência não faz nenhuma reivindicação cognitiva sobre o domínio
religioso. Mas isto parece ser falso. Por exemplo, as três principais religiões teístas
afirmam um evento de criação em que Deus trouxe o universo à existência, e elas
descrevem Deus como estando ativamente envolvido na ordem criada (induzindo
pragas, curando os enfermos, partindo o mar etc.). Alguns dos argumentos para a
existência de Deus também incluem fatos empíricos, como base para a crença em
um criador ou designer sobrenatural, como vimos nos Tópicos 4 e 5 da Unidade 2.
As religiões não teístas também fornecem afirmações relevantes para o universo
físico natural. Entendimentos budistas do dharma (por exemplo, a verdade ou
a realidade última) ou noções budistas e hindus do carma, são tomadas como
aspectos reais do mundo que têm efeitos físicos e causais dentro do mundo. A
ciência e a religião às vezes fazem reivindicações que entram em conflito.

Além disso, o ponto de vista da independência bifurca o mundo em


domínios diferentes e tende negar uma interpretação unificada e coerente do
que é realmente experienciado no mundo. Talvez haja uma maneira de integrar a
ciência e a religião de tal modo que os seus objetivos e métodos exclusivos sejam
respeitados e, ao mesmo tempo, ofereçam um quadro mais unificado do mundo.
Isto nos leva à nossa opção final.

2.3 INTEGRAÇÃO
Uma terceira maneira de compreender a relação entre a ciência e a religião
é aquela em que é possível alguma forma de integração entre elas (PETERS;
BENNETT, 2003; McGRATH, 2005). A abordagem de integração leva a sério
tanto os conflitos que ocorrem entre a religião e a ciência, por um lado, e o papel
singular de cada domínio, por outro. Diferentes versões da integração têm sido
apresentadas, e duas perspectivas principais serão esboçadas a seguir.

Uma tentativa de integrar a ciência e a religião é a teologia natural. A


teologia natural é a tentativa de inferir a existência de Deus a partir de evidências na
natureza, e examinamos vários argumentos que se esforçam para fazer isto mesmo
em tópicos anteriores. Como já observamos, descobertas recentes na física e outros
ramos da ciência estão fornecendo material novo para os teólogos naturais, e com
isso novos argumentos para a existência de Deus têm surgido nas últimas décadas.
Se tais argumentos são plausíveis não é motivo de preocupação aqui. Em vez disso,

281
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

o ponto é que mesmo que a teologia natural e ciências naturais tenham objetivos,
metas e métodos singulares, suas descobertas podem levá-los ao mesmo objeto.
Por exemplo, como vimos no Tópico 5 da Unidade 2, as constantes cósmicas do
universo físico podem (assim sugerem os defensores da teologia natural) apontar
para um designer inteligente do universo – um designer postulado pelas religiões
teístas. Além disso, Richard Swinburne (1934-) propôs recentemente argumentos
bayesianos (probabilísticos) para a existência de Deus e para a ressurreição de
Jesus (SWINBURNE, 1979; 2003).

Uma segunda abordagem à integração envolve aqueles que trabalham


em direção a uma síntese sistemática da religião e da ciência. A filosofia do
processo, tipicamente associada com as obras dos filósofos americanos Alfred
North Whitehead (1861-1947) e Charles Hartshorne (1897-2000), é um exemplo
da tentativa de fundir ciência e religião em um sistema metafísico abrangente e
coerente, consonante com os avanços na ciência moderna (incluindo a relatividade
e as teorias evolucionárias). Os principais proponentes atuais do pensamento do
processo são John Cobb Jr., Shubert Ogden e o David R. Griffin.

Para os pensadores do processo, as perspectivas antigas e medievais da


natureza substancial estática das coisas são substituídas por eventos dinâmicos
que seguem uma trajetória evolutiva. A caracterização primordial do pensamento
do processo é que tudo o que existe é caracterizado pelo processo. Isto é consistente
com as doutrinas budistas do surgimento interdependente e do Anatman, discutidos
no Tópico 3 da Unidade anterior, na qual não há entidades substanciais, apenas
eventos interconectados.

A perspectiva do processo sobre a divindade é aquela em que Deus também


está em processo. Os pensadores do processo rejeitam o modelo teísta clássico, no
qual Deus é imutável, simples, onipotente, onisciente, além do espaço e tempo,
e completamente transcendente. Pelo contrário, Deus é dipolar – contendo uma
natureza primordial que ordena o mundo e uma natureza consequente que
interage com o mundo e muda continuamente com ele.

A abordagem da integração oferece perspectivas animadoras para o


desenvolvimento de novas formas de se relacionar ciência e religião. Os dois
domínios parecem se sobrepor em áreas significativas, e avançar o diálogo vai
exigir o reconhecimento do papel importante de cada domínio na vida humana (e
não humana). Também será necessária humildade, pois, se a história se repetir, as
teorias científicas atuais não vão permanecer estáticas, mas continuarão a evoluir
à medida que a humanidade cresce em conhecimento sobre o vasto e esplêndido
mundo em que vivemos.

282
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO

NOTA

Alfred North Whitehead (1861-1947) foi um matemático e filósofo Inglês, fundador


do pensamento do processo moderno. Em 1929 suas Gifford Lectures foram publicadas como
Processo e Realidade (2010) – a obra que fundou a filosofia do processo. Outros trabalhos
importantes incluem “A Ciência e o Mundo Moderno” (2006) e “O conceito de natureza” (1994).
Ele também é coautor do Principia Mathematica (2001) – uma das obras centrais da lógica
moderna, com Bertrand Russell.

3 A CRENÇA RELIGIOSA E A JUSTIFICAÇÃO


Assim como existem várias maneiras de expressar a relação entre a ciência
e a religião, podemos transmitir a relação entre a fé e a razão, em duas grandes
categorias. Por um lado, estão aqueles que defendem que a razão pode e deve ser
usada para justificar ou validar a fé religiosa; podemos chamar as perspectivas
deste tipo de perspectivas de validação racional da fé e da razão. Procurar por
evidências para a existência de Deus, ou para a reencarnação ou para a vida após
a morte, ou a tentativa de justificar as crenças sobre o dharma ou o dao, são todos
exemplos de validação racional.

Por outro lado, estão aqueles que negam que a razão e a evidência devem
ser usadas para justificar ou validar a fé religiosa; podemos chamar perspectivas
deste tipo de perspectivas não evidenciais da fé e da razão. Isso não quer dizer
que os adeptos das perspectivas não racionais negam que a razão seja necessária
para entender as crenças religiosas ou praticar a fé religiosa. Em vez disso, eles
negam que manter crenças religiosas depende de ter razões ou evidências para
essas crenças serem objetivamente verdadeiras. Em tópicos anteriores examinamos
diferentes tipos de evidências que têm sido utilizadas por aqueles que afirmam a
validação racional para sustentar certas crenças religiosas (como aquela que Deus
existe). No restante deste tópico, examinaremos várias diferentes perspectivas não
evidenciais da razão e da fé.

3.1 O FIDEÍSMO
Para os fideístas (da palavra latina fides, que significa fé), usar a razão para
demonstrar ou avaliar as religiões ou crenças religiosas é sempre inadequado. A
fé não é o tipo de coisa que precisa de justificação racional, mantêm os fideístas, e
tentar provar a própria fé religiosa pode até ser uma indicação de uma falta de fé.

Talvez o fideísta mais conhecido foi o filósofo Søren Kierkegaard (1813-


1855). Kierkegaard viveu em um ambiente cristão na Dinamarca em que a obra
filosófica de G. W. F. Hegel (1770-1831) era culturalmente influente e difundida.

283
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Na narrativa hegeliana, a história do mundo se desdobra de acordo com a razão


divina e a lógica. Um slogan hegeliano muitas vezes repetido é que "o que é
racional é real, e o que é real é racional" (HEGEL, 1997, XXXVI). Este princípio foi
melhor desenvolvido na Fenomenologia do Espírito (1992). Para Hegel, a religião
cristã é uma representação mitológica deste desdobramento divino e racional, e o
cristianismo é a consciência religiosa em seu estado mais desenvolvido.

Kierkegaard viu a sua sociedade como uma em que ser cristão tornou-se,
devido à influência hegeliana e outras, simplesmente nascer na "cristandade".
Não era mais uma experiência individual de escolher viver uma vida interior
de devoção e paixão, mas sim se tornou um conjunto de crenças culturais que
alguém poderia vir a manter através de argumentos racionais e evidências. Mas,
para Kierkegaard, a verdadeira religião não é fria e calculista, regurgitando as
respostas certas para problemas lógicos e questões estereotipadas em uma forma
sistemática e impessoal. Pelo contrário, é apaixonada e obsessiva, mais semelhante
a uma relação íntima entre dois jovens amantes. Ele acreditava que não há provas
sólidas para a fé religiosa, e que, mesmo que houvesse elas seriam inúteis para
o desenvolvimento de verdadeira fé religiosa, pois a "certeza [...] se esconde na
porta da fé e ameaça devorá-la" (2013b, p. 30). Além disso, o dogma cristão, como
a crença de que um Deus infinito se tornou um ser humano finito, inclui paradoxos
que são contrários à razão e à lógica, enquanto a verdadeira fé religiosa implica
um “salto”. Um filósofo da história resume a visão de Kierkegaard sobre o assunto
desta maneira:

Deus não é homem, e o homem não é Deus. A dialética não oferece


possibilidade de salvar o abismo que os separa. Somente pode estabelecer-
se a relação pelo salto da fé, pelo ato voluntário que religa o eu mesmo
com Deus, como criatura com o criador, como indivíduo finito com o
Absoluto transcendental (COPLESTON, 1996, p. 264).

NOTA

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um filósofo idealista alemão. Ele
argumentou que a história tem uma teleologia – é o desenvolvimento racional e
a produção da Mente ou do Espírito, que ele chamou de o Absoluto. Seus trabalhos incluem
Lectures on the philosohpy of religion (1895; Lições sobre a filosofia da religião), Fenomenologia
do Espírito (1992) e Enciclopédias das Ciências Filosóficas em Compêndio (1995).

Soren Kierkegaard (1813-1855) foi um filósofo e teólogo dinamarquês e o pai do existencialismo.


Muitas vezes ele escreveu sob pseudônimos, tais como Johannes Clímaco, e argumentou que
é imprudente e equivocado tentar basear suas crenças religiosas na razão e na evidência.
Seus trabalhos principais incluem Ou-Ou (2013a), Temor e tremor (2010), e o Pós-escritos
conclusivos não científicos às migalhas filosóficas (2013b).

284
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO

Escolher a fé envolve suspender a razão; é afirmar algo mais elevado do


que a razão e fazer um compromisso de vida. Esta afirmação de compromisso
ocorre através das escolhas existenciais que um indivíduo deve fazer de uma
forma regular e talvez até mesmo constante. Em uma passagem frequentemente
citada, Kierkegaard (2013b, p. 215) coloca o ponto de modo conciso:

A fé é justamente a contradição entre a paixão infinita da interioridade


e a incerteza objetiva. Se posso apreender objetivamente Deus, então eu
não creio; mas, justamente porque eu não posso fazê-lo, por isso tenho
de crer; e se quero manter-me na fé, tenho de constantemente cuidar de
perseverar na incerteza objetiva, de modo que, na incerteza objetiva, eu
estou sobre ‘70.000 braças de água’, e contudo creio.

Kierkegaard estava vivendo e escrevendo dentro da tradição cristã, mas


fideístas podem ser encontrados em todas as grandes tradições religiosas. Por
exemplo, o termo Sradda no budismo Theravada e Mahayana é a aceitação dos
ensinamentos de Buda que vem antes de uma compreensão certa ou de um
pensamento correto. Ingressar no Caminho Óctuplo envolve um passo de fé, uma
aquiescência (sem argumentação racional ou evidência) para os ensinamentos de
Buda (DALAI-LAMA, 2006).

Uma crítica ao fideísmo é que, em uma cultura religiosamente pluralista,


como alguém poderia decidir qual a religião (ou conjunto de crenças religiosas)
à qual deve comprometer-se? Isto pode não ser um problema em uma cultura
na qual há apenas uma opção de vida religiosa. Mas o que dizer em uma cultura
religiosamente pluralista na qual existem múltiplas opções de vida? Como
alguém deve escolher? Os fideístas oferecem várias respostas. Uma delas é que as
evidências oferecidas para qualquer tradição religiosa particular são subjetivas e
difícil, se não impossível, de avaliar "de fora". Assim, a escolha deve vir do interior
de cada indivíduo. Outra resposta (esta oferecida pelo próprio Kierkegaard) é
que a razão fornece apenas conclusões aproximadas, na melhor das hipóteses,
enquanto a fé oferece paixão pessoal e certeza subjetiva (KIERKEGAARD, 2013b).
Esta certeza apaixonada, ao invés de um raciocínio frio e calculista, capta mais
precisamente a essência da fé religiosa. Quando se trata de fé, é preciso fazer uma
escolha: comprometer-se a acreditar ou não, independentemente da evidência.

3.2 WILLIAM JAMES E A VONTADE DE ACREDITAR

Outro ponto de vista da fé e da razão que é, em certos aspectos, semelhante


ao fideísmo de Kierkegaard, é aquele do filósofo e psicólogo do início do século
XX, William James (1842-1910). Em um famoso ensaio intitulado "A vontade de
Crer" (2001), James argumentou que (ao contrário da possível sugestão do título
de que se deve afirmar crenças por mero decreto da vontade), existem ocasiões em
que somos forçados a tomar uma decisão de acreditar mesmo na falta de evidência
sólida, e que em circunstâncias apropriadas essa decisão de acreditar é melhor
do que não acreditar. A fim de preparar o terreno para a visão de James, será

285
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

útil primeiro esboçar a posição para a qual ele estava respondendo, uma posição
estabelecida pelo matemático e filósofo britânico, W. K. Clifford (1845-1879).

Em um ensaio importante intitulado "A ética da crença" (2010), Clifford


defendeu que uma pessoa não deve acreditar em alguma coisa, a menos que ele ou
ela tenha uma boa evidência para a crença. Ele começa o ensaio com um exemplo.
Suponha que um armador percebe que seu navio poderá precisar de algum tipo
de reparo antes de partirem, mas ele se convence do contrário. Ele lembra que o
navio já teve muitas viagens bem-sucedidas, e que ele acredita na Providência e
no cuidado providencial de pessoas humanas. Depois de mais contemplação, ele
é capaz de remover qualquer desconfiança que ele poderia ter sobre as pessoas
envolvidas na construção original do navio, e ele se consola com o pensamento
de que eles certamente construíram seu navio bem. Tragicamente, logo após a sua
viagem começar, o navio afunda e todos perecem.

Clifford argumenta que o proprietário do navio é moralmente responsável


por esta catástrofe porque suas crenças não eram baseadas em evidências. Um
pensamento desejoso (wishful thinking) ou esperança não é suficiente; a evidência
sólida é necessária para a crença. Clifford, em seguida, oferece o seguinte princípio:
"É sempre errado, em toda parte e para todos, crer em qualquer coisa com base
em evidência insuficiente" (CLIFFORD, 2010, p. 137). Assim, na perspectiva de
Clifford, por vezes referida como evidencialismo, acreditar tem implicações morais:
é imoral acreditar sem evidências suficientes. É evidente que este princípio tem
ramificações para todas as crenças, não sendo a menor destas, as crenças religiosas.

James (1970) defende argumentos contrários aos de Clifford e a favor da


visão de que há ocasiões em que ter crenças na ausência de evidência é plenamente
justificado. Ele argumenta que há momentos na vida em que todos nós precisamos
escolher acreditar, mesmo quando há pouca, se houver, evidências disponíveis
sobre a qual basear nossas decisões. Considere o seguinte exemplo.

Suponha ... que eu estou escalando nos Alpes, e tive a má sorte de me


colocar em uma posição a partir da qual a única saída é através de um
terrível salto. Tendo nenhuma experiência semelhante, eu não tenho
nenhuma evidência de minha capacidade de realizá-lo com sucesso;
mas a esperança e a confiança em mim me faz ter certeza de que eu não
errarei o meu alvo, e preparo meus pés para executar o que, sem essas
emoções subjetivas talvez tivesse sido impossível. Mas suponhamos
que, pelo contrário, as emoções de medo e desconfiança predominam;
ou suponha que, tendo acabado de ler a Ética da Crença, eu sinto que
seria pecaminoso agir sobre uma suposição não confirmada pela
experiência anterior, - por que, então vou hesitar tanto tempo que,
finalmente, exausto e tremendo, e lançando-me em um momento de
desespero, eu perco meu ponto de apoio e caio para o abismo. Neste
caso (e é um de uma classe imensa) a parte da sabedoria claramente é
acreditar no que se deseja; pois a crença é uma das condições prévias
indispensáveis ​​para a realização de seu objeto. Há, então, casos em que
a fé cria a sua própria verificação. Acredite, e você estará certo, porque
haveis de salvar a si mesmo; duvide, e você novamente estará certo, pois
perecereis. A única diferença é que acreditar é em grande medida para a

286
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO

sua vantagem (JAMES, 1970, p. 27).

Para James, há consequências práticas ou pragmáticas para as nossas


crenças. E como o exemplo acima indica, por vezes é benéfico agir mesmo quando
a evidência está faltando.

Há também momentos em que há hipóteses concorrentes para se escolher.


Como é que vamos decidir, em casos como esse? James (1970) chama o decidir
entre hipóteses uma "opção", e ele delineia vários tipos:

1. Viva ou morta: uma opção viva é aquela em que ambas as hipóteses possuem
algum apelo emocional (mas não racional) para aquele que fará a escolha; uma
opção morta carece de tal apelo. Por exemplo, para muitos europeus e norte-
americanos, no século XIX, a opção, "ser um hindu ou budista," não era uma
opção viva, ao passo que "ser um cristão ou um agnóstico" era uma opção viva.
2. Forçosa ou evitável: uma opção forçosa é aquela em que ambas as hipóteses
são mutuamente exclusivas e na qual não há uma terceira possibilidade. Por
exemplo, a opção de "ler este livro ou de não lê-lo" é forçosa. Uma opção evitável
é aquela em que as duas hipóteses não envolvem tal disjunção ou dilema lógico;
por exemplo, se perguntarmos qual entre dois partidos políticos brasileiros
alguém apoia, não há nenhuma opção forçosa aqui. Pode-se apoiar a um terceiro
partido ou simplesmente ser ambivalente sobre qualquer um deles.
3. Premente ou trivial: uma opção premente é aquela na qual muita coisa depende
da decisão entre as hipóteses. Por exemplo, se a você fosse dada a oportunidade
de participar da próxima tripulação do ônibus espacial para viajar ao espaço
sideral, a sua opção seria premente; é uma oportunidade única e significativa.
Por outro lado, ser ofertado com a escolha de beber café em vez de chá, é uma
opção trivial (em algumas ocasiões, ao menos).

A opção genuína é aquela que é viva, forçosa e premente. A religião, James


(2001) sustenta, é uma opção genuína para algumas pessoas. Quando confrontadas
com uma opção genuína, mesmo estando em falta de evidências, dar um passo de
fé pode ser a melhor decisão. Desde que a evidência está em falta, nessas situações
de tomada de decisão "forçosa", sustenta ele, ao fazer esta escolha devemos usar a
nossa natureza não intelectual ou "passional". James coloca desta forma:

Nossa natureza passional não só pode, como deve, licitamente decidir-
se por uma opção entre proposições sempre que esta for uma opção
genuína que não possa, por sua natureza, ser decidida sobre bases
intelectuais; pois dizer, nessas circunstâncias: ‘Não decida, deixe a
questão em aberto’ é, por si só, uma decisão passional - assim como
decidir sim ou não - e acompanha-se do mesmo risco de perder a
verdade (JAMES, 2001, p. 22).

No que diz respeito às crenças religiosas, as apostas são, por vezes, tão
altas que o risco de se perder a verdade de fato vale a pena, mesmo que o erro
seja uma possibilidade real. Seguir a abordagem de Clifford, de acreditar somente

287
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

quando a evidência está disponível e certa, faria com que nossas vidas se tornassem
epistemologicamente estéreis e privadas da plenitude que poderiam experienciar.
James define a fé deste modo: “uma crença em algo preocupante no qual a dúvida é
ainda teoricamente possível; e enquanto o teste da crença é a vontade para agir, alguém
poderia dizer que a fé é a prontidão para agir em uma causa em que a sua questão
próspera não está certificada com antecedência” (JAMES, 1970, p. 90). Há riscos em
ambas as abordagens de Clifford e de James. Se seguirmos a Clifford, enquanto nós
poderíamos evitar de acreditar no que é falso, poríamos em risco acreditar no que
é verdadeiro e útil. James descreve a abordagem de Clifford da seguinte maneira:
"É melhor se arriscar à perda da verdade do que à chance de erro – esta é a posição
exata daquele que veta a fé" (JAMES, 2001, p. 43-44). Se seguirmos James, a escolha de
acreditar corre o risco de cair em erro sobre questões fundamentais. No entanto, ele
diz: "Se a religião for verdadeira e as evidências em prol dela ainda forem insuficientes,
não desejo, [...] ser privado de minha única chance na vida de ficar do lado vencedor"
(JAMES, 2001, p. 44-45).

E
IMPORTANT

Pondere a seguinte citação de Russell: “Podemos definir ‘fé’ como a firme crença
em algo para o qual não há nenhuma evidência. Onde há evidências, ninguém fala de ‘fé’. Nós
não falamos de fé em que dois e dois são quatro, ou que a Terra é redonda. Nós só falamos de
fé quando queremos substituir emoção por evidências. (RUSSELL, 2009, p. 34).

3.3 A APOSTA DE PASCAL


Outra forma de crença pragmática foi oferecida há algumas centenas de
anos antes pelo matemático francês Blaise Pascal (1623-1662). Pascal apresentou
uma aposta pragmática, muitas vezes referida como um argumento da aposta,
para a crença religiosa (BURKHOLDER, 2013). Usando uma análise de custo-
benefício da razoabilidade da crença em Deus, com base em um tipo de teoria da
decisão e da probabilidade, Pascal argumentou que acreditar em Deus (para ele
era o Deus cristão) é uma aposta melhor do que não acreditar.

NOTA

Blaise Pascal (1623-1662) foi um renomado matemático, físico e filósofo francês.


Depois de uma experiência mística em 1654, ele dedicou grande parte de seu
tempo e energia para a filosofia e a teologia e na defesa do cristianismo, incluindo aqui a sua
famosa aposta. Suas anotações foram recolhidas e publicadas postumamente com o título
Pensées (Pensamentos).

288
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO

‘Deus existe ou não existe’. Para que lado tenderemos? A razão não o
pode determinar: um caos infinito nos separa. Na extremidade desta
distância infinita, joga-se cara ou coroa. Em que apostareis? Pela razão,
não podereis atingir nem uma nem outra; pela razão, não podereis
defender uma ou outra. Não acuseis, pois, de falsidade os que fizeram
uma escolha, já que nada sabeis [...] mas é mister apostar. Não é algo
que dependa da vontade, já estamos inseridos nisso. Qual escolhereis?
Vejamos. Uma vez que é necessário escolher, vejamos o que menos vos
interessa. Tendes duas coisas a perder: a verdade e o bem; e duas coisas
a empenhar: vossa razão e vossa vontade, vosso conhecimento e vossa
beatitude; e vossa natureza tem que fugir de duas coisas: o erro e a
miséria. Vossa razão não se sentirá mais atingida por terdes escolhido
uma coisa de preferência a outra, pois é preciso necessariamente escolher
[...] Mas, e vossa beatitude? Pesemos o ganho e a perda escolhendo a
cruz, que é Deus. Consideremos esses dois casos: se ganhares, ganhareis
tudo; se perderes, não perdereis nada. Apostai, pois, que ele existe sem
hesitação. (PASCAL, 1999, p. 92-93).

A aposta, que Pascal desenvolve em seus Pensamentos (1999), pode ser


delineada como se segue. Há um número limitado de opções relativas à crença em
Deus:

1. Acredito em Deus e Deus existe.


2. Acredito em Deus e Deus não existe.
3. Não acredito em Deus e Deus existe.
4. Não acredito em Deus e Deus não existe.

Se você optar por acreditar em Deus e Deus existe, você tem ganho infinito.
Se você optar por acreditar em Deus e Deus não existe, você não perdeu muito,
terás uma perda finita (ou nada). Se você optar por não acreditar em Deus e Deus
existe, você não terá nenhum grande ganho, um ganho finito, e você poderá ter
uma perda infinita. Se você optar por não acreditar em Deus e Deus não existe,
você de novo não terá um grande ganho. Assim, mesmo com pouca ou nenhuma
evidência, temos razão, razão de autointeresse ou de investimento em si mesmo, de
acreditar em Deus. A nossa melhor aposta, Pascal sustenta, é acreditar. O quadro a
seguir representa a estrutura da matriz de decisão, matriz de Pascal.

QUADRO 21 – A MATRIZ DE DECISÃO DE PASCAL

I. Deus Existe II. Deus não Existe


i. Eu creio A. Ganho infinito menos perda infinita B. Perda finita
ii. Eu não creio C. Ganho finito menos perda infinita D. Ganho finito

FONTE: William Craig (2012)

Obviamente, nem todos serão convencidos pelo argumento de aposta.


Suponha, musas Pascal, alguém está em um estado de descrença e sustenta que ele
não pode ser movido para a crença, mesmo quando apresentado com a aposta, e
que evidências e provas também são insuficientes para movê-lo para um estado de
crença. O que é uma pessoa a fazer?

289
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Aprendei, porém, ao menos vossa impotência em crer, uma vez que a


razão a isso vos guia e que, contudo, não o podeis. Esforçai-vos, assim,
não para vos convencerdes pelo aumento das provas de Deus, mas pela
diminuição das vossas paixões. Desejais alcançar a fé e não conheceis o
caminho, quereis curar-vos da infidelidade e pedis o remédio: aprendei
com os que estiveram atados como vós e que apostam, agora, todos os
seus bens; são as pessoas que conhecem esse caminho que desejaríeis
seguir e que estão curadas do mal de que desejais curar-vos. Segui o
modo pelo qual começaram: fazendo tudo como se tivessem fé, tomando
água benta, mandando dizer missas etc... Naturalmente isso vos fará
crer [...] (PASCAL, 1999, p. 94).

Várias críticas foram levantadas contra a aposta de Pascal. Em primeiro


lugar, pode-se argumentar que não podemos escolher acreditar muito diretamente,
se é que em alguma coisa, e muito menos a crença em Deus. As crenças na verdade
geralmente não parecem estar dentro do nosso controle direto. Por exemplo,
suponha que lhe foi oferecido uma grande soma de dinheiro para acreditar que
um elefante cor de rosa está agora sentado ao seu lado. Consegues fazê-lo? Claro
que você pode mentir e dizer isso, mesmo que você não tenha essa crença. Mas
você pode realmente optar por acreditar? Não parece que seja assim. O mesmo
se ocorre para praticamente todas as crenças. Alguém poderia, talvez, ao tomar
uma droga psicodélica contemplar porções de imagens de elefantes cor de rosa,
e prosseguir acreditando que há um elefante cor rosa na sala. Mas isso não seria
adquirir uma crença sob o controle direto e voluntário do indivíduo.

A segunda objeção é semelhante àquela levantada anteriormente ao


fideísmo. Ou seja, como é que alguém pode decidir qual a religião, entre a
multiplicidade de religiões, em que deve apostar? Por que apostar no Deus cristão,
como Pascal propõe? Por que não apostar em Krishna, ou Alá, ou no dao, ou no
nirvana, ou em todas as anteriores? Perante as muitas opções religiosas diferentes e
singulares que existem, como é que vamos apostar? Pascal fornece poucos critérios
para fazer uma aposta informada dado o ambiente pluralista, que agora engloba
grande parte do mundo.

Em terceiro lugar, mesmo que se pudesse chegar à fé religiosa através de


uma tal aposta calculativa, será que este é um método apropriado para a aquisição
de uma fé religiosa autêntica? Parece uma forma bastante inconveniente para entrar
na relação de confiança com Deus informado pela tradição cristã, em que Pascal
se abrigou. Talvez o mesmo poderia ser dito das outras tradições de fé também.
Além disso, a aposta parece supor que o universo está estruturado ao longo de
linhas teóricas de decisão utilitárias, e tem a imperfeição adicionada de apenas
ser atraente para aqueles que estejam psicologicamente inclinados à felicidade
prazerosa e à evitação da dor, é um apelo, no mínimo estranho, se o perder e o
ganhar a vida estiver no cerne do chamado cristão para o discipulado.

290
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO

3.4 ALVIN PLANTINGA E A EPISTEMOLOGIA REFORMADA

Uma abordagem mais recente para a fé e a razão é chamada de "epistemologia


reformada" (o termo "reformado" refere-se à tradição calvinista da reforma teológica
cristã). Três de seus proponentes principais são Alvin Plantinga (1932-), Nicholas
Wolterstorff (1932-) e William Alston (1921-2009). A epistemologia reformada é não
evidencialista na medida em que afirma que a evidência não é necessária para que
a fé seja justificada. Mas ao contrário do fideísmo, seus seguidores afirmam que a
crença em Deus pode ser um empreendimento racional, apesar de uma completa
falta de evidências. Isto é, obviamente, ao contrário da abordagem evidencialista
em que é irracional acreditar em uma afirmação sem evidências. Também é
diferente do evidencialismo em que os seus adeptos estão geralmente em oposição
a uma perspectiva chamada fundacionalismo, ou fundacionismo clássico.

O fundacionalismo é a visão de que uma crença é racionalmente justificada


se ela estiver baseada em fundamentos adequados. O fundacionalismo clássico é
a visão de que todas as crenças justificadas devem ser apropriadamente básicas
ou derivadas de crenças propriamente básicas. Para o fundamentalista clássico, as
crenças propriamente básicas são aquelas que são:

• Incorrigíveis: crenças relevantes para a própria experiência de uma pessoa,


sobre as quais é virtualmente impossível estar em erro, tais como a crença de
que se está com dor ou que a pessoa parece estar vendo algo como azul, por
exemplo.
• Autoevidentes: crenças envolvendo simples verdades lógicas ou matemáticas
que, quando compreendidas, são tomadas imediatamente como sendo
verdadeiras, tal como a lei da não contradição ou que 2 + 2 = 4.
• Evidentes para os sentidos: crenças que implicam diretamente um ou mais dos
cinco sentidos, tais como a crença de que se está vendo uma grama verde ou
cheirando uma rosa fresca.

Os fundacionalistas clássicos incluem Tomás de Aquino (1225-1274),


René Descartes (1596-1650), John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776).
Enquanto que eles podem diferir no seu significado preciso, aqueles que afirmam
o fundacionalismo clássico concordam que as crenças propriamente básicas devem
incluir pelo menos dois dos três elementos mencionados acima. É importante
mencionar que o fundacionismo clássico também é revisitado por pensadores
contemporâneos, como Laurence Bonjour, Richard Fumerton e Timothy McGrew
(ETCHEVERRY, 2009).

Como Plantinga e outros demonstraram, há sérios problemas com o


fundacionalismo clássico (KETZER, 2011; SWEETMAN, 2013; MICHELETTI,
2007). Talvez a objeção mais séria é que ele parece ser autorrefutável. Considere
seus critérios para uma crença ser racional e justificada, apenas se a crença é
incorrigível ou autoevidente ou evidente aos sentidos. É esta alegação, por si só,
incorrigível, autoevidente ou evidente aos sentidos? Parece que não. Então, ela

291
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

nem mesmo cumpre seus próprios critérios de justificação racional: se alguém


afirma este ponto de vista, não o pode fazer racionalmente.

Plantinga argumenta que enquanto o fundacionalismo clássico deve ser


rejeitado, a posição fundacionalista de que as crenças racionalmente justificadas
devem ser, em última análise, baseadas em crenças propriamente básicas é
geralmente correta. Na verdade, há um debate de se a perspectiva de Plantinga
é uma forma de fundacionalismo ou uma forma de coerentismo. De qualquer
maneira, ele mesmo argumenta que o fundacionalismo que ele defende é
embasado em uma teologia reformada que contorna a necessidade de evidência
para as crenças religiosas fundamentais. Certas crenças religiosas, ele argumenta,
tais como a crença em Deus, são "propriamente básicas". Agora, é importante notar
que o que Plantinga e outros epistemólogos reformados querem dizer com uma
crença propriamente básica é diferente da compreensão clássica. Enquanto que na
visão clássica as crenças propriamente básicas são crenças que são incorrigíveis,
autoevidentes e evidentes aos sentidos, na visão da epistemologia reformada
elas são crenças que são razoavelmente e propriamente mantidas, mesmo sem
evidências. Exemplos incluem crenças mentais, crenças da memória e a atribuição
de estados mentais aos outros: (1) eu vejo um computador, (2) Eu pulei o
desjejum nesta manhã, e (3) a minha esposa está com dor. Crenças como essas são
propriamente básicas, argumenta Plantinga, pois mesmo que não se baseiam em
outras crenças, elas não são infundadas.

Embora as crenças desse tipo sejam normalmente tomadas como


básicas, seria um erro descrevê-las como infundadas. Após ter a
experiência de um certo tipo, eu acredito que eu estou percebendo uma
árvore. No caso típico eu não mantenho essa crença com base em outras
crenças; todavia, ela não é infundada. Manter esse tipo característico
de experiência [...] desempenha um papel crucial na formação daquela
crença. Assim como, também desempenha um papel crucial em sua
justificação (PLANTINGA; WOLTERSTORFF, 2004, p. 79).

Além disso, as crenças como estas acima podem ser plenamente justificadas:

Digamos que uma crença é justificada para uma pessoa em algum


momento particular se (a) ela não estiver violando quaisquer deveres
epistêmicos e, portanto, está dentro de seus direitos epistêmicos em
aceitá-la, e (b) a sua estrutura noética [isto é, a soma total das crenças
da pessoa e a forma como essas crenças estão relacionadas] não é
defeituosa em virtude de sua aceitação da mesma. Então o meu parecer
[being appeared to] nessa forma característica (juntamente com outras
circunstâncias) é o que me confere o direito de manter a crença em
questão; isso é o que me justifica em aceitá-la. Poderíamos dizer, se
quisermos, que esta experiência é o que me justifica em sustentá-la; este
é o fundamento da minha justificação, e, por extensão, o fundamento da
própria crença (PLANTINGA; WOLTERSTORFF, 2004, p. 79).

292
TÓPICO 2 | CIÊNCIA, FÉ E RAZÃO

ATENCAO

Alvin Plantinga (1932-) é Professor John A. O’Brien de Filosofia na Universidade


de Notre Dame. Ele é amplamente conhecido por seu trabalho no campo da epistemologia,
metafísica e filosofia da religião (mais especialmente sua defesa do livre-arbítrio, a sua
reformulação do argumento ontológico e epistemologia reformada). Ele tem escrito muitos
livros importantes, incluindo Deus, Liberdade e o Mal (2012), Conhecimento de Deus (2014).
Em 2004-2005, ele realizou a prestigiada Gifford Lectures na St. Andrews University intitulada
Ciência e Religião: Conflito ou Concórdia? Veja uma síntese dessa palestra no artigo de Platinga
(2011) e assista ao autor falar sobre o tema no vídeo Ciência e Religião, disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=RHUjHeHVe78>.

O próximo passo de Plantinga é alegar que a crença em Deus é semelhante às


crenças que eu vejo um computador, ou que eu pulei o desjejum, ou que estou com
dor – que também é uma crença propriamente básica. Consistente com pensadores
reformados tais como John Calvin (1509-1564), Abraham Kuyper (1837-1920) e Karl
Barth (1886-1968), Plantinga argumenta que dentro de cada mente humana racional
existe uma consciência natural da divindade. Todas as pessoas em toda parte,
sustenta ele, não importa o quão bárbaro, têm uma convicção profunda de que
Deus existe e é o seu Criador (PLANTINGA; WOLTERSTORFF, 2004). Enquanto
que o pecado (e talvez má educação) pode afetar a capacidade das pessoas de
manter a crença de que Deus existe, para muitas pessoas, especialmente muitos
judeus, cristãos, muçulmanos e hindus teístas, a crença em Deus é propriamente
básica.

A proposta de Plantinga tem sido desafiada em várias frentes. Primeiro,


se a crença no Deus cristão pode ser propriamente básica, por que não poderia
simplesmente qualquer crença estar na base da fundação noética de uma pessoa?
Isto é conhecido como a "Objeção da Grande Abóbora” (SWEETMAN, 2013),
baseada na história em quadrinhos Peanuts em que Linus acredita na Grande
Abóbora que alegadamente se manifesta aos adeptos sinceros em cada Halloween.
Na interpretação de Plantinga, o que poderia impedir a crença na Grande Abóbora
de ser propriamente básica? Sua resposta é que há uma diferença relevante entre a
crença em Deus e a crença na Grande Abóbora. O epistemólogo reformado sustenta
que há uma tendência natural em nós para ter a primeira, mas não a última crença.
Assim, uma pessoa estaria dentro de seus direitos epistêmicos ao incluir a crença
em Deus como propriamente básica, mas a partir disto não seguiria que crenças
"bizarras", como a crença na Grande Abóbora, não pudessem ser excluídas.

DICAS

Veja um trecho de um vídeo da história em quadrinhos Peanuts em que


Linus fala de sua crença na Grande Abóbora. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=rLRZWoKDb5c>.

293
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Isso conduz a uma segunda crítica. Mesmo que a crença em Deus seja
propriamente básica para algumas pessoas (os epistemólogos reformados, por
exemplo), isso não é garantia de que a crença é, de fato, verdadeira. Plantinga
admite isso. Ele expõe o fato deste modo:

Mas é [a crença cristã] verdadeira? Esta é uma pergunta muito


importante. E aqui nós passamos além da competência da filosofia,
cuja principal competência, nesta área, é de superar certas objeções,
impedâncias e obstáculos para a fé cristã. Falando por mim e, claro, não
em nome da filosofia, só posso dizer que ela, de fato, me parece ser
verdadeira, e ser a verdade maximamente importante (PLANTINGA,
2000, p. 499).

No entanto, isso não é motivo para rejeitar a interpretação do epistemólogo


reformado sobre as crenças propriamente básicas, pois enquanto não há certeza
de que tais crenças sejam verdadeiras, há ao menos certeza que se uma crença é
propriamente básica, é racional para uma pessoa mantê-la.

Isto conduz a uma terceira crítica. Para o epistemólogo reformado, uma


crença que é propriamente básica para um indivíduo pode não ser propriamente
básica para outro indivíduo. A crença em Deus pode ser propriamente básica para
um cristão; a crença no nirvana pode ser propriamente básica para um budista; a
crença no dao pode ser propriamente básica para um taoísta; a crença em Krishna
pode ser propriamente básica para um hindu; a crença em feitiços mágicos pode
ser propriamente básica para os adeptos do vodu; e assim por diante. Não há um
conjunto universal de crenças propriamente básicas; de fato, não há nenhuma
racionalidade universal. Então, será que estamos presos dentro de um determinado
sistema particular de crenças, para sempre incapazes de decidir entre os sistemas?
Ao rejeitar o evidencialismo, não há evidências disponíveis que permitam fazer
juízos avaliativos sobre as crenças ou sistemas de crenças – religiosas ou não.

A resposta de Plantinga é dupla. Primeiro, ele concorda que o uso de seu


método para determinar crenças básicas pode levar pessoas diferentes a conclusões
diferentes. Mas isso é simplesmente o modo como as coisas são no discurso filosófico.
Querer que os filósofos cheguem a um acordo sobre as questões fundamentais,
sobre qualquer assunto, pode ser pedir demais. Como a Primeira Lei de Filosofia
declara, para cada filósofo, existe um filósofo igual e oposto. Portanto, este não é
um problema para o seu método mais do que para qualquer método em filosofia.
Em segundo lugar, em seus trabalhos mais recentes, Plantinga começa a enunciar
critérios (não evidências) para determinar as crenças propriamente básicas e para
decidir se uma crença se justifica. Entrar nessa discussão, no entanto, está além
do escopo deste tópico. Muito mais poderia ser dito sobre fé e razão dentro da
epistemologia reformada, mas isso deve ser o suficiente para agora.

294
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico vimos:

• Várias relações entre a ciência e a religião, a fé e a razão.

• Três opções básicas para relacionar a ciência e a religião: conflito, independência


e integração.

• Durante séculos, a ciência e a religião estiveram em desacordo, e aqueles que


afirmam a visão do conflito percebem isso como inevitável. No entanto, para
aqueles que sustentam a perspectiva da independência, a ciência e a religião
nunca realmente entram em conflito, porque elas estão sobre domínios
completamente diferentes, que jamais se misturaram: a religião é sobre assuntos
celestiais ou espirituais; a ciência é sobre aqueles terrenos ou materiais. Mas essa
visão exige uma divisão da realidade em esferas separadas e incongruentes e
assim parece excluir uma interpretação coesa do mundo.
o Uma terceira abordagem tenta construir uma ponte entre as duas anteriores,
respeitando os papéis únicos oferecidos pela ciência e pela religião,
concomitantemente reconhecendo os conflitos potenciais que parecem ocorrer
entre elas.

• Várias opções básicas para relacionar a fé e a razão.

• Há duas abordagens muito diferentes: as perspectivas da validação racional e


da não evidencial.
1. A validação racional vê a razão e a evidência como componentes importantes
da fé religiosa. Deste ponto de vista, os argumentos para a existência de Deus,
por exemplo, podem desempenhar um papel importante não estabelecimento
ou fortalecimento da fé religiosa.
2. As perspectivas não evidenciais, por outro lado, negam que a evidência é
significativa para a crença.

• Quatro categorias básicas: o fideísmo, a vontade para acreditar de James, a


aposta de Pascal, e a epistemologia reformada.

• O fideísta sustenta que usar a razão para a avaliação de fé religiosa nunca é


apropriado.

295
• A fé religiosa não precisa de justificativa racional; a razão pode até mesmo ir
contra tal fé. Em resposta àqueles que não concordam com este ponto de vista
(chamados de evidencialistas).

• William James argumenta que há ocasiões em que acreditar sem evidências é


pragmaticamente útil. Para algumas pessoas, dar um passo de fé na religião é a
sua melhor opção.

• Blaise Pascal vai ainda um passo adiante em seu pragmatismo: a nossa melhor
aposta, ele argumenta, é acreditar em Deus. Temos muito a ganhar se optarmos
acreditar assim, e muito a perder se nós escolhermos desacreditar.

• Os epistemólogos reformados concordam com o fideísmo, que a fé religiosa


não depende de evidências, mas eles não são antirracionalistas, pois eles
também concordam que a fé religiosa pode ser um empreendimento razoável.
Eles argumentam que a crença em Deus é propriamente básica para algumas
pessoas, que acreditar em Deus, por exemplo, é tão racional para alguns como a
crença de que eles tiveram num desjejum em alguma manhã.

• As crenças são profusas e ubíquas. Algumas são vantajosas, algumas, como


vimos na abertura do tópico, são perigosas. Então, como vamos escolher
o que e quando acreditar? Talvez Joseph Runzo (2001, p. 214) sintetize da
melhor maneira: “Quando tudo estiver dito e feito, a única justificativa final
para qualquer compromisso de fé que temos é o nosso senso mais profundo
do que é valioso temperado pela experiência e uma compreensão racional das
consequências reais de aderir a esses valores”.

296
AUTOATIVIDADE

William James afirma que há consequências pragmáticas para o ato de crer,


por isso, por vezes é salutar agir mesmo quando não há evidências. Ocorre
que, nestes momentos pode haver hipóteses concorrentes para escolher, e será
necessário escolher. James classifica estas escolhas como diferentes tipos de
“opções”. Leia as afirmações abaixo, sobre estas opções, e assinale a alternativa
correta.

a) Uma opção morta é aquela em que ambas as hipóteses possuem algum apelo
emocional (mas não racional) para aquele que fará a escolha.
b) Uma opção evitável é aquela em que ambas as hipóteses são mutuamente
exclusivas e na qual não há uma terceira possibilidade.
c) Uma opção premente é aquela na qual muita coisa depende da decisão entre
as hipóteses, uma oportunidade única e significativa.
d) Uma opção forçosa é aquela em que duas hipóteses não envolvem dilemas
lógicos, ou seja, há sempre uma terceira alternativa.

297
298
UNIDADE 3
TÓPICO 3

EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

1 INTRODUÇÃO

Inúmeras pessoas afirmam ter tido uma experiência religiosa de um tipo


ou de outro. Um estudo indica que, pelo menos, trinta por cento da população
global teve tal experiência (HAY, 1990). Para alguns, essas experiências fornecem
evidências de primeira mão ou provas para a realidade do que o experienciador
(aquele que tem a experiência) acredita e talvez até para a sua religião como
um todo. Para outros, tais experiências são ilusões ou delírios, experiências
psicológicas provocadas por uma série de diferentes fatores, mas todos puramente
naturais. Neste tópico vamos explorar o significado e a diversidade da experiência
religiosa. Vamos examinar os argumentos que afirmam que a experiência religiosa
fornece justificação para as crenças religiosas, assim como as refutações a esses
argumentos. Vamos também olhar para as tentativas de oferecer explicações
puramente naturalistas da experiência religiosa.

2 A NATUREZA E A DIVERSIDADE DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Todo mundo tem experiências, e cada uma dessas experiências é exclusiva


para aquele que as têm, pois não posso experienciar suas experiências e você
não pode experienciar minhas experiências. No entanto, algumas das minhas
experiências são semelhantes às suas, e vice-versa. Por exemplo, agora estou tendo
a experiência de apreender o significado das palavras nesta frase, tal como você,
mas as chances são de que cada um teve experiências completamente diferentes do
que o outro teve. Há também aqueles que tiveram experiências que eu e você não
podemos sequer sondar, algumas religiosas, outras não. Neste tópico, nós estamos
focando na experiência religiosa. Então, o que é uma experiência religiosa?

299
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

2.1 O QUE É UMA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA?

Em um sentido amplo a experiência religiosa se refere a qualquer


experiência do sagrado dentro de um contexto religioso, incluindo os sentimentos,
as visões e as experiências místicas e numinosas religiosas (ÁVILA, 2007; PAIVA,
1998). A experiência religiosa é intensamente pessoal, e com frequência ocorre em
meio a práticas religiosas, tais como: a oração, a meditação, a adoração, cânticos
ou a prática de outros rituais religiosos. Muitas vezes essas experiências ocorrem
em uma igreja, sinagoga, mesquita, templo, mosteiro ou outro lugar sagrado. Mas
as experiências religiosas foram registradas em várias circunstâncias e locais. Há
três características gerais que são comuns ao fenômeno da experiência religiosa
(SWEETMAN, 2013; CALIMAN, 1998; LIBÂNIO, 2002):

1. Universalidade: a experiência religiosa é um fenômeno universal. Estudos e


pesquisas demonstram que uma proporção significativa da população humana,
passada e recente, inclusive no interior das sociedades altamente secularizadas,
tiveram experiências religiosas.
2. Diversidade: há uma grande diversidade de experiências religiosas e cada
experiência é, em certo sentido, única para o indivíduo que a tem. Embora haja
semelhanças entre as experiências religiosas de adeptos das várias tradições
religiosas, também há diferenças, e isso contribui para a riqueza e variedade das
experiências de todo o espectro religioso.
3. Importância: a experiência religiosa é importante em formas únicas e memoráveis,
muitas vezes resultando em uma vida transformada ou reorientada, uma
reavaliação da forma como se pensa ou se vive, ou até mesmo uma mudança de
visões de mundo.

2.2 CATEGORIAS DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Esquemas diferentes foram oferecidos para descrever e classificar os


diversos tipos de experiências religiosas. Aqui vamos utilizar uma classificação
que distingue três categorias de experiência: regenerativa, carismática e mística. A
seguinte classificação é baseada na obra de Peter Donavan (1979), particularmente
nas páginas 3-20. Nós, contudo, ignoramos sua quarta categoria, “a experiência
paranormal”, pois tais experiências não são tipicamente ou necessariamente
compreendidas como religiosas. Além desta obra também utilizamos o livro de
Richard Swinburne (1979), especialmente entre as páginas 249-253.

A experiência religiosa regenerativa é aquela em que o experienciador


sofre uma transformação de vida, uma conversão, poderíamos dizer. Nos círculos
cristãos evangélicos isto é muitas vezes referido como "nascer de novo", baseado
no livro de João no Novo Testamento em que Jesus diz: "[...] aquele que não
nascer de novo, não pode ver o reino de Deus" (BÍBLIA, 1994, João 3.3). Em outros

300
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

lugares este tipo de experiência é expresso como "experienciando a religião",


"experienciando a salvação", ou de sendo "liberto do mal" (JAMES, 1995). Por meio
de tais experiências, as pessoas muitas vezes descobrem que suas vidas mudaram,
tornando-se cheia de significado e novidade, cheia de amor, alegria e esperança.

John Hick (1922-2012), um dos filósofos da religião mais influentes dos


últimos tempos, descreve sua própria experiência de conversão religiosa:

Como estudante de direito na University College, Hull, com a idade de


dezoito anos, eu me submeti a uma poderosa conversão evangélica sob
o impacto da figura de Jesus do Novo Testamento. Durante vários dias,
eu estava em um estado de intensa agitação mental e emocional, durante
o qual eu me tornei cada vez mais consciente de uma verdade mais
elevada e uma realidade maior pressionando-me e reivindicando o meu
reconhecimento e resposta. No começo isso era altamente indesejável,
uma demanda preocupante e desafiadora para nada menos do que
uma revolução na identidade pessoal. Mas, em seguida, a alegação
perturbadora tornou-se um convite libertador. A realidade que estava
pressionando-me não era apenas impressionantemente exigente, mas
também irresistivelmente atraente e eu entrei com grande alegria e
emoção para o mundo da fé cristã [...]. Uma experiência deste tipo que
eu não posso esquecer, mesmo que tenha acontecido há 42 anos [...]
ocorreu – de todos os lugares possíveis, no deck superior de um ônibus no
meio da cidade de Hull [...]. Como todos podem estar bem conscientes,
e que podem se lembrar de um momento como este, todas as descrições
são inadequadas. Mas era como se o céu tivesse aberto e derramado luz
para baixo, me enchendo de um sentimento de alegria transbordante,
em resposta a uma imensa bondade e amor transcendente. Lembro-me
que eu não conseguia evitar ficar com um largo sorriso – sorrindo de
volta, por assim dizer, a Deus – embora se quaisquer outros passageiros
estivessem olhando, deveriam ter pensado que eu era um lunático,
sorrindo para o nada (HICK, 2014, p. 33-34).

Devemos observar que enquanto Hick não descarta a sua primeira


experiência de conversão, ele não adere mais às perspectivas evangélicas que ele
sustentava naquele tempo. Ele, nos últimos anos de sua vida referiu a si mesmo
como um crítico da teologia evangélica. Para uma expressão de sua última
perspectiva do pluralismo religioso veja a sua obra Teologia Cristã e pluralismo
religioso (2005).

DICAS

William James (1842-1910) foi um filósofo e psicólogo americano e um dos


fundadores do pragmatismo. Ele se dedicou ao exame psicológico da religião e escreveu obras
influentes sobre a experiência religiosa e o misticismo. Seus trabalhos principais incluem As
Variedades da Experiência Religiosa (1995), A vontade de crer (2001) e Pragmatismo e outros
textos (1979).

301
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Junto com a conversão e a salvação, outra faceta da experiência regenerativa


é a transformação moral. Neste caso, antes da experiência, o indivíduo pode sentir
um senso de pecado, culpa, ou a incapacidade de fazer o que ele ou ela sabe que
é moralmente apropriado. Após ter a experiência religiosa regenerativa, ele sente
que o pecado e a culpa foram removidos e uma nova visão da bondade é percebida
e procurada; uma ênfase nova ou renovada sobre os deveres morais sucede na
vida deste indivíduo. Na influente obra de William James, As Variedades da
Experiência Religiosa, ele inclui um estudo sobre as experiências regenerativas.

Nesse estudo, ele não está focado na conversão de um conjunto de


crenças religiosas para outro, mas na transformação moral; especificamente
uma transformação na qual "uma meta se torna tão estável quanto a expulsar
definitivamente seus rivais anteriores da vida do indivíduo" (JAMES, 1995, p.
191). Podemos encontrar essas experiências transformadoras em todas as grandes
tradições religiosas. O Antigo Testamento, por exemplo, contém um número
de relatos de regeneração moral pessoal (e nacional). O livro dos Salmos, por
exemplo, está cheio de tais experiências. Mais recentemente, um convertido
islâmico descreve sua experiência transformacional desta forma:

Nas páginas abençoadas do Santo Alcorão eu encontrei solução para


todos os meus problemas, satisfação para todas as minhas necessidades,
explicação para todas as minhas dúvidas. Alá me atraiu para a Sua luz
com força irresistível, e de bom grado me rendi a Ele. Tudo parecia
claro agora, tudo fez sentido para mim, e eu comecei a entender a mim
mesmo, o Universo e a Deus. Eu estava amargamente consciente de
que eu tinha sido enganado pelos meus queridos professores, e que
as suas palavras eram apenas mentiras cruéis, se eles estavam cientes
disso ou não. Todo o meu mundo foi quebrado em um instante; todos
os conceitos tiveram de ser revistos. Mas a amargura no meu coração
foi amplamente superada pela alegria inefável de ter encontrado meu
Senhor, por fim, e eu estava cheio de amor e gratidão a Ele. Eu ainda
humildemente o louvo e o bendigo por Sua Misericórdia comigo; sem
a Sua ajuda, eu teria permanecido na escuridão e na estupidez para
sempre (ISLAM apud DONAVAN, 1979, p. 18).

A segunda categoria da experiência religiosa é a experiência carismática.


Este é um tipo de experiência na qual habilidades especiais, dons ou bênçãos são
manifestas. Um dos elementos que crescem mais rapidamente na religião cristã é o
pentecostalismo e os movimentos carismático relacionados (CADERNOS CERIS,
2001).

DICAS

Uma excelente fonte de estatísticas sobre o crescimento carismático mundial é o


site: <http://www.pewforum.org/2006/10/05/pentecostal-resource-page/>. Uma outra obra de
análise das mudanças no interior do cristianismo desde uma perspectiva global é A próxima
cristandade de Jenkins (2004).

302
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

De acordo com estudos recentes, pelo menos um quarto dos dois bilhões
de cristãos do mundo são pensados ​​como sendo membros desta faceta da fé
cristã que enfatiza tais "dons do Espírito Santo", como a cura, a glossolalia (falar
em línguas), o profetizar, ter sonhos e visões. Veja, por exemplo o livro de I
Coríntios, 12.4-11 e o livro de Atos dos Apóstolos, 2.4-42 (BÍBLIA, 1994). Estes dons
carismáticos são descritos nestes livros bíblicos (que também incluem referências
ao Antigo Testamento, onde os dons carismáticos foram profetizados), mas não
estão limitados aos mais espetaculares mencionados anteriormente; eles também
incluem infusões sobrenaturais de sabedoria, de conhecimento e de fé, por exemplo.

Experiências carismáticas não se limitam à tradição judaico-cristã, no


entanto. No budismo, por exemplo, o monge é muitas vezes entendido como
sendo uma figura carismática e santa, não aquele que recebeu um dom de Deus,
mas sim alguém que tenha experienciado as bênçãos do Dharma, os ensinamentos
do Buda e os constituintes fundamentais do mundo. O hinduísmo também tem os
seus gurus e sadhus, e o Islã tem seus xeques e walis. Esses líderes espirituais são
muitas vezes vistos como possuidores de qualidades carismáticas, dons e poderes
(DONAVAN, 1979).

Uma das mais famosas experiências visionárias na tradição cristã é descrita


por Santa Teresa de Ávila (1515-1582):
Nosso Senhor estava satisfeito que eu devesse ver, por vezes, uma
visão desse tipo. Muito perto de mim [...] um anjo se manifestou em
forma humana [...] não era alto [...] porém muito belo e com um rosto
tão flamejante que se assemelhava a um daqueles anjos superiores que
parecem arder em chamas [...]. Em suas mãos vi uma grande lança de
ouro, em cuja ponta de ferro parecia haver um ponto de fogo. Tive a
sensação de que ele a cravou em meu coração várias vezes, fazendo-a
penetrar até minhas entranhas. Quando a retirou, foi como se as tivesse
retirado também deixando-me totalmente inflamada com um grande
amor por Deus. A dor foi tão forte, que me fez gemer diversas vezes. A
doçura dessa dor é tão extrema que não há como querer que termine, e a
alma não se satisfaz com nada menos que Deus. A dor não é física, mas
espiritual, embora o corpo tenha participação nisso – na verdade, uma
grande participação (ÁVILA apud SCHAMA, p. 118, 2010).

303
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

E
IMPORTANT

Pentecostais são cristãos que pertencem a denominações e igrejas pentecostais,


incluindo as Assembleias de Deus e a Igreja de Deus em Cristo. Avivamentos do tipo pentecostal
começaram em 1800 em lugares como a Inglaterra, a Índia e a Rússia, e depois migrou para os
Estados Unidos no início de 1900 (mais notavelmente a Missão da Rua Azusa em Los Angeles,
Califórnia).

Carismáticos são cristãos que quer descrevem a si mesmos como “cristãos carismáticos” (mas
não pertencem a denominações pentecostais), ou que manifestam um ou todos os chamados
dons carismáticos.

Santa Teresa de Ávila (1515-1582), também conhecida como Santa Teresa de Jesus, era uma
freira mística e carmelita espanhola. Ela tinha visões frequentes e experiências religiosas de
êxtase. Ela se tornou a primeira mulher a ser nomeada Doutora da Igreja Católica em 1970, e
é uma das três únicas mulheres a receber tal honra. Seus escritos incluem sua autobiografia,
Castelo Interior ou Moradas (2015) e O Caminho da Perfeição (2015).

O que constitui uma experiência carismática autêntica ou inautêntica,


e quem está autorizado a ter essas experiências ou autenticá-las, nem sempre é
fácil discernir, pois diferentes tradições religiosas e ramificações têm suas próprias
interpretações e avaliações dos fenômenos carismáticos. O que uma pessoa ou
grupo toma como sendo uma experiência carismática autêntica pode ser tomada
por outras pessoas dentro ou fora do grupo como não autêntica – como possessão
demoníaca, trabalho do diabo, ou meramente um hocus pocus psicológico. No
entanto, experiências carismáticas têm sido amplamente aceitas em todas as
tradições religiosas tanto historicamente quanto em tempos recentes.

Uma terceira categoria é a experiência mística que, como descrita por


James, inclui quatro características distintas (JAMES, 1995):

• Inefabilidade: a experiência não pode ser adequadamente descrita, se é que


pode em absoluto.
• Qualidade noética: o experienciador acredita que aprendeu algo importante
com a experiência.
• Transitoriedade: a experiência é temporária e o experienciador logo retorna a
um estado "normal" de espírito/mente.
• Passividade: a experiência ocorre sem decisão ou controle consciente e não pode
ser provocado meramente pela vontade.

As experiências místicas assumem diferentes formas, mas um tema comum


entre a maioria delas é a identidade ou a união com Deus na religião ocidental, ou
com a Realidade Absoluta – Brahman ou o nirvana ou o dao – na religião oriental.
Uma descrição de uma experiência mística dentro da escola Advaita Vedanta do
hinduísmo é oferecida por Shankara (788-820):

304
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Quando a mente está completamente absorvida no Ser Supremo


– o Atman, o Brahman, o Absoluto – então o mundo das aparências
desaparece. A sua existência não é mais que uma palavra vazia. [...] Não
há nem o vidente, nem o ver, nem o visto. Não há senão uma Realidade
– imutável, sem forma, e absoluta. [...] O universo não existe mais depois
de ter despertado para a consciência mais elevada no Atman eterno, que
é Brahman, desprovido de qualquer distinção ou divisão. [...] Mesmo
que sua mente é dissolvida no Brahman, ela está totalmente desperta,
livre da ignorância da vida desperta. Ela está totalmente consciente,
mas livre de qualquer desejo (SHANKARA, 1992, sem paginação).

É aqui, na experiência mística que o monismo de algumas religiões orientais


é também experienciado nas religiões teístas ocidentais. Encontramos experiências
místicas monistas descritas no judaísmo (por exemplo, O Zohar, um comentário
místico sobre a Torá, os cincos primeiros livros do Antigo Testamento), no
cristianismo (por exemplo, Meister Eckhart e São João da Cruz), e no islamismo (por
exemplo, a escola do sufismo de Ibn al-Arabi). Enquanto as três religiões ocidentais
são amplamente teístas, elas desenvolveram em seu interior ramificações monistas
de pensamento. Com relação à união com o divino, por exemplo, o místico cristão
Meister Eckhart (1260-1327) diz: "Se eu devo conhecer a Deus diretamente, devo
tornar-me completamente Ele e Ele eu; de modo que este Ele e este eu se torne e
seja somente um Eu” (ECKHART apud UNDERHILL, 2006, p. 420). Perante tal
linguagem monista audaz, não é surpreendente que tenha havido intenso debate
dentro das tradições teístas sobre se esses místicos e as ramificações místicas
deveriam ser consideradas como heréticas.

Há uma ampla gama de experiências que são classificadas como místicas.


Além das experiências de união com Deus/Realidade Absoluta observadas acima,
um outro tipo de experiência mística é o misticismo da natureza. Nesse sentido,
até mesmo um ateu pode ter uma experiência mística "religiosa".

Embora a minha ‘experiência cósmica’ fosse irracional em termos de


nossa visão acostumada do mundo, não estou satisfeito de que fosse
simplesmente uma ilusão, ou delírio. Ele me afetou de uma forma muito
real, reorientou a minha perspectiva e enriqueceu e aumentou a minha
consciência de muitas maneiras. Mas fez representar um enigma - o tipo
de enigma, não se pode tentar resolver sem tornar-se profundamente
consciente do mistério supremo da criação. Neste sentido, gostaria de
chamar a minha experiência de ‘religiosa’ (COHEN; PHIPPS, 1979, p.
173-174).

As experiências budistas de sunyata, ou vazio/vacuidade, desenvolvidas


na escola Madhyamika (Caminho do Meio) do budismo, e satori, ou iluminação,
desenvolvida na tradição Zen, também são consideradas por muitos como
experiências místicas. D. T. Suzuki (1870-1966) descreve a essência do Zen como
envolvendo satori, uma forma de olhar para a natureza das coisas e compreender
a realidade (satori significa literalmente "compreender"), que oferece um aspecto
mais fresco, mais profundo, mais satisfatório da vida. Não é facilmente alcançado,
no entanto não pode ser alcançado através do raciocínio lógico ou da explicação
cognitiva; ele deve ser experienciado diretamente (SUZUKI, 1964; SMITH; NOVAK,
2010).

305
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

NOTA

Daisetz Teitaro (D. T.) Suzuki (1870-1966) foi professor de filosofia budista na
Universidade Otani, Kyoto, e lecionou em universidades norte-americanas, incluindo Columbia
e Harvard. Ele era um dos principais proponentes do Zen Budismo no Ocidente. Seus principais
trabalhos incluem Uma Introdução ao Zen-Budismo (1964), A doutrina Zen da Não Mente
(1993), e Mística: cristã e budista (1976).

Outro tipo de experiência mística é a experiência numinosa. Rudolf Otto


(1869-1937) descreve a experiência numinosa em latim como mysterium tremendum
et fascinans, uma experiência misteriosa, tremenda e fascinante (OTTO, 2007). Ele
observa que às vezes ela vem como "uma suave maré, a invadir nosso ânimo, num
estado de espírito a pairar em profunda devoção meditativa". Ela também pode
“passar para um estado d’alma a fluir continuamente, em duradouro frêmito, até
se desvanecer, deixando a alma novamente no profano”, além disso, “pode eclodir
do fundo da alma em surtos e convulsões. Pode induzir estranhas excitações,
inebriamento, delírio, êxtase" (OTTO, 2007, p. 44-45). Ela tem tanto a sua forma
selvagem e demoníaca quanto as suas manifestações abafadas, de tremor. Durante
as experiências numinosas o indivíduo pode ser sobrecarregado e sentir um
sobreapoderamento absoluto ou um sentimento de medo e pavor. Mas ele também
pode sentir uma sedutora reverência que é bela e pura e gloriosa.

Além disso, as experiências numinosas podem ser focadas em algum


indivíduo particular, tal como Jesus ou Krishna; ou em algum objeto, como um
ícone ou uma pedra; ou pode haver nenhum objeto identificado em absoluto na
experiência, mas elas geralmente refletem um encontro com um "Outro", um self
separado ou vontade ou poder, que se impõe sobre a consciência do experienciador,
de forma inesperada e profunda.

3 A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E A JUSTIFICAÇÃO

Vimos que há uma grande variedade e diversidade de experiências


religiosas, e elas têm sido relatadas e detalhadas por numerosos adeptos religiosos
de todo o espectro religioso e ao longo do tempo. Apesar de ser uma característica
comum das tradições religiosas, permanece um problema. A experiência religiosa é
tipicamente um assunto privado. Digamos que alguém afirme ter uma experiência
em que sente que é um com o divino. Ou que alguém reivindique experienciar
que Deus ou um anjo lhe falou. O que podemos fazer com tais alegações? E se
tivéssemos uma experiência religiosa nós mesmos? Será que uma pessoa estaria
justificada em inferir a partir de uma experiência religiosa (seja a própria ou
aquela de outros) conhecimento de uma realidade objetiva que é o objeto dessa

306
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

experiência? Como William James (1995, p. 407) pergunta, "será que os estados
místicos estabelecem a verdade daqueles afetos teológicos nos quais a vida santa
tem a sua raiz?".

Além disso, poderia alguém estar enganado sobre tais experiências?


E como é que ele saberia? Alguns filósofos da religião rejeitam as experiências
religiosas como fundamento para a crença religiosa. Isso não quer dizer que
eles necessariamente negam que os indivíduos tiveram experiências religiosas
autênticas. Em vez disso, eles negam que se pode inferir apropriadamente a
partir de tais experiências que a sua causa foi Deus, ou o nirvana, ou a Realidade
Última etc., ou que o conteúdo do qual a experiência versou (se a mesma possuiu
algum conteúdo cognitivo) é verdadeiro ou se realmente existe. Com referência à
experiência religiosa fornecendo suporte para a crença em Deus, C. B. Martin (1924-
2008) faz a seguinte afirmação: "Não há testes acordados para estabelecer uma
experiência de Deus genuína e distingui-la de forma decisiva das não genuínas"
(MARTIN, 1955, p. 79). Então, ele conclui, uma experiência religiosa não pode
estabelecer a realidade objetiva do objeto perceptual da experiência; tudo o que
pode fornecer são evidências para a realidade de estados psicológicos específicos.
Mas será que isso é, de fato, tudo o que pode ser derivado da experiência religiosa?
Além disso, uma vez que praticamente todos concordam que pelo menos algumas
experiências religiosas são ilusórias, como é que vamos avaliar quais são verídicas
e que não são?

William J. Wainwright (1935-) oferece um argumento a partir da analogia


para a justificação da experiência religiosa com base na percepção sensorial que
funciona da seguinte forma. Eu experiencio uma árvore, e eu acredito que existe
uma árvore. Eu experiencio Deus, e eu acredito que Deus existe. Embora existam
diferenças entre as experiências de árvores e experiências de Deus, há semelhanças
suficientes relevantes para justificar a crença em Deus, se estamos autorizados a
ter crenças em árvore. Ambas as experiências são noéticas (isto é, ambas têm a
ver com o conteúdo da mente, incluindo crenças, desejos, valores etc.). Ambas
têm um objeto perceptual, sustenta ele, e ambas incluem estados de coisas que
podem ser conferidos ou verificados de algum modo (WAINWRIGHT, 1981).
Contudo, se as experiências religiosas de fato incluem um objeto perceptual é um
ponto, no mínimo, discutível. As experiências místicas, por exemplo, são muitas
vezes tomadas pelos místicos como sendo inefáveis. Uma experiência inefável,
por definição, não contém qualquer conteúdo cognitivo exprimível. Então, sem
dúvida, nesse caso, não poderia ser usada para fundamentar uma crença religiosa
particular. Além disso, é questionável se os procedimentos para a verificação de
uma experiência sensorial são semelhantes, em qualquer aspecto, aos de uma
experiência religiosa. Vamos olhar com mais atenção para essa objeção abaixo.

William Alston (1921-2009) desenvolveu ainda mais a linha de argumentação


de Wainwright (ALSTON, 1991; CAVALCANTI, 2010). Ele introduz a prática
doxástica (doxa é um termo grego que significa crença), a prática de formar crenças
que estão baseadas na experiência, e assinala que a experiência religiosa e a
percepção sensorial são ambas práticas doxásticas. Ele concede que os argumentos
para justificar a experiência religiosa são (não viciosamente) circulares. No entanto,
307
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

ele observa que os argumentos para justificar a confiabilidade da percepção dos


sentidos são afligidos com o mesmo problema da circularidade. Como posso
verificar se a árvore que eu experiencio na minha frente é realmente uma árvore?
Pelo uso de outros estímulos sensoriais (meus próprios ou de alguma outra
pessoa). Como eu sei que as percepções sensoriais em geral fornecem informações
confiáveis? Ao verificá-las com outras percepções sensoriais (minhas próprias
ou de alguma outra pessoa). Mas, apesar da circularidade, a confiabilidade das
percepções sensoriais raramente é questionada. Alston afirma que se as experiências
religiosas se assemelham relevantemente às outras experiências perceptivas, tais
como as percepções sensoriais (e às vezes elas assim o fazem, ele argumenta), então
as experiências religiosas devem ser nem mais, nem menos, suspeitas do que as
outras experiências perceptivas.

Na tentativa de resolver o problema a partir de uma direção diferente e


mudar o ônus da prova para o cético da veridicidade da experiência religiosa,
Richard Swinburne (1934-) introduziu um princípio da racionalidade que ele
chama de o Princípio da Credulidade. De acordo com este princípio, quando
parece (epistemicamente) a alguém que algo é o caso, então, na ausência de
considerações especiais, provavelmente assim o é (SWINBURNE, 1979). Quando
estou andando pela floresta e vejo um esquilo em uma árvore logo à minha frente,
por exemplo, eu estou justificado em acreditar que isto é, de fato, um esquilo na
árvore logo à minha frente; a menos que eu tenha razões especiais para duvidar
de minha crença neste caso. Assim também ocorre com a experiência religiosa.
Uma pessoa poderia estar enganada em acreditar que algo é da maneira como
lhe aparece, mas a menos que haja uma boa razão para desacreditar nisto, não
deveríamos fazê-lo. Swinburne alega que rejeitar esse princípio nos conduziria a
um "pântano cético" em que uma pessoa deve duvidar de tudo que não possa ser
provado dedutivamente (SWINBURNE, 1979).

NOTA

Richard Swinburne (1934-) é Professor Emérito Nolloth de Filosofia da Religião


Cristã, da Universidade de Oxford, e Membro da Academia Britânica. Ele é um filósofo da
religião expoente e um membro da Igreja Ortodoxa Oriental. Seus principais trabalhos incluem
“Será que Deus existe?” (1998), Faith and Reason (1984), e The evolution of the soul (1997).

Nem todos estão satisfeitos com o princípio de Swinburne. Michael Martin


(1932-2015), por exemplo, defende um princípio negativo da credulidade: se parece
(epistemicamente) a alguém que algo não é o caso, então provavelmente não é o
caso. A formulação exata disso seria: “Se parece (epistemicamente) a um sujeito S
que x está ausente, então provavelmente x está ausente” (MARTIN, 1990, p. 170).
Há uma abundância de indivíduos que nunca tiveram uma experiência religiosa,
mesmo que eles tenham tentado, então por que o ônus da prova deveria ser

308
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

transferido para o cético que duvida de sua veracidade? Ele observa que, embora
na vida ordinária a experiência de uma cadeira seja um bom motivo para acreditar
em uma cadeira, assim também a experiência da ausência de uma cadeira é um
bom motivo para acreditar que a cadeira está ausente (MARTIN, 1990).

Em um movimento semelhante ao Princípio da Credulidade de Swinburne,


Jerome (Yehuda) Gellman tenta demonstrar o valor evidencial da experiência
religiosa através de um princípio que ele chama de BEE (Best Explanation of
Experience), ou, Melhor Explicação da Experiência, que tem uma correspondente
STING (Strength in Number Greatness), ou Força no Número de Grandeza
(GELLMAN, 1997). A BEE é expressa desta forma:

Se uma pessoa, S, tem uma experiência, E, o que parece (fenomenalmente)


ser de um objeto particular, O, (ou de um objeto de um tipo, K), então,
mantida inalteradas todas as outras coisas [ceteris paribus], a melhor
explicação de que S teve E é que S experienciou O (ou um objeto de um
tipo, K), ao invés de outra coisa ou nada em absoluto (GELLMAN, 1997,
p. 46, grifos do original).

Tal como acontece com Princípio da Credulidade de Swinburne, a BEE é


considerada como sendo um princípio fundamental da racionalidade que rege o
discurso cotidiano racional e que conecta a experiência do indivíduo à realidade.
Como tal, a sua racionalidade é independente de argumentações adicionais; ela
não precisa de nenhuma prova adicional.

Assim, a STING é expressa da seguinte forma:


Se uma pessoa, S, tem uma experiência, E, que parece (fenomenalmente)
ser de um objeto em particular, O, (ou de um objeto de um tipo, K),
então a nossa crença de que S experienciou O (ou um objeto de um tipo
K) seja a melhor explicação (mantida inalteradas todas as outras coisas) de
E, é fortalecida em proporção do número de experiências que existem
de O e em proporção da variabilidade de circunstâncias em que tais
experiências ocorrem (GELLMAN, 1997, p. 52-53, grifos do original).

Em outras palavras, quanto mais as pessoas têm um tipo particular de


experiência religiosa, mais forte é o caso para que a mesma seja verídica. Utilizando
a BEE e a STING, Gellman argumenta que o grande número de experiências de
Deus fornece garantia, ou seja, justificativa para a manutenção de certas crenças
sobre Deus (tais como a que Deus é amoroso).

No próximo subtópico vamos examinar vários desafios para a experiência


religiosa como justificativa para as crenças religiosas. Neste ponto, vale a pena
mencionar que alguns percebem a tentativa de buscar justificação para as
crenças religiosas a partir da experiência religiosa, como uma forma que enfatiza
inapropriadamente o aspecto cognitivo de tal experiência. Considere o budismo.
Para o adepto budista, um objetivo primário é o de ser liberto de um estado de
desejo e sofrimento e atingir o nirvana, o não self ou o vazio/vacuidade. O budista,
em última análise, não busca o conhecimento sobre, ou a evidência/prova para, a

309
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

existência de Deus ou da Realidade Última ou do nirvana. Em vez disso, ele está


buscando a extinção do self e de seus processos cognitivos respectivos. Isso não
quer dizer que os budistas não podem usar as experiências religiosas individuais
ou cumulativas dentro de sua tradição para validar suas crenças religiosas, mas
que tais experiências são direcionadas principalmente à libertação, não à cognição.

4 DESAFIOS À EXPERIÊNCIA RELIGIOSA COMO JUSTIFICAÇÃO


PARA AS CRENÇAS RELIGIOSAS
Então, pode-se argumentar que a experiência religiosa fornece justificação
para as crenças religiosas. Mas também existem argumentos que contestam este
ponto. Vamos primeiro olhar para três destes argumentos e, em seguida, explorar
as explicações naturalistas da experiência religiosa.

4.1 A FALTA DE VERIFICABILIDADE


Um argumento contra a reivindicação de que a experiência religiosa fornece
justificação para crenças religiosas é que tais experiências não são verificáveis ​​(elas
não são verificáveis ​​como outros tipos de experiências). Compare uma experiência
religiosa com alguma outra experiência perceptiva, vendo um cisne negro, por
exemplo. Se alguém afirma ver um cisne negro em seu quintal, é fácil o suficiente
verificar. Outras percepções podem ser usadas para verificar se a afirmação é
verdadeira ou não: outros podem vê-lo, podem pegá-lo, ou talvez eles possam ser
mordidos por ele. Mas o que dizer quando alguém afirma ter uma experiência
religiosa? Como pode este tipo de reivindicação ser verificada? Parece que não
pode. Assim, argumenta-se que a experiência religiosa não pode justificar crenças
religiosas. C. B. Martin (1959) argumenta que as experiências religiosas não
oferecem justificação para as crenças religiosas, pois elas não podem ser verificadas
como outras experiências perceptuais.

Nessa discussão, uma distinção deve ser feita entre os relatórios psicológicos
em primeira pessoa, tais como "parece que estou vendo um cisne negro", com
experiências perceptivas, tais como "Eu vejo um cisne negro". Com este último
tipo de experiência uma pessoa pode estar enganada. Eu pensei que era um cisne
negro, mas acabou por ser um ganso marrom do Canadá. Com o primeiro tipo de
experiência uma pessoa não pode estar enganada. Mesmo que acabou por ser um
ganso marrom do Canadá, a alegação de que "parece que estou vendo um cisne
negro" não deixa de ser verdadeira. Esses tipos de relatórios privados de primeira
pessoa são sobre os acontecimentos que ocorrem na própria mente do indivíduo e
são referidos como experiências incorrigíveis, enquanto eu possa estar enganado
sobre o que eu vejo, eu não posso estar equivocado de que parece-me estar vendo
o que eu vejo.

310
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

A questão torna-se, então, se as experiências religiosas são corrigíveis ou


incorrigíveis. Se elas são incorrigíveis, como alguns críticos afirmam, então, o
experienciador não pode estar enganado sobre elas. No entanto, nesse caso, elas
são experiências privadas, meramente subjetivas, e assim não fornecem evidência
objetiva ou justificativa por ser sobre uma realidade fora da mente da pessoa tendo
a experiência.

NOTA

A alegação de qualquer religião ou seita particular de ter a verdade completa ou


final desses assuntos [da veracidade da experiência religiosa] parece-me ser demasiado ridículo
para valer a pena um momento de consideração. Mas o extremo oposto sustentando que toda
a experiência religiosa da humanidade é um gigantesco sistema de pura ilusão me parece ser
quase (contudo não completamente) improvável (BROAD, 2014).

4.2 REIVINDICAÇÕES CONFLITANTES NO INTERIOR DA


VARIEDADE DAS EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS

Outra objeção é que as experiências religiosas são muito divergentes,


conflitantes e mesmo contraditórias. Como observamos acima, ao longo dos séculos
os crentes religiosos tiveram vários tipos de experiências religiosas, e muitas delas
são manifestamente incompatíveis umas com as outras. A experiência Advaita
Vedanta de que toda a realidade é uma, e indiferenciada, por exemplo, contradiz a
experiência islâmica de que Alá é o único Deus verdadeiro, uma realidade divina
que existe como um ser separado da pessoa tendo a experiência. Será que essa
inconsistência não conta contra a confiabilidade das experiências? Será que essas
experiências não invalidam ou cancelam uma a outra?

William Alston (1991), por exemplo, responde diretamente a esta objeção,


que ele denomina “o problema da diversidade religiosa”. Para expor uma resposta
mais ampla aqui, é importante distinguir entre o estar tendo e descrevendo uma
experiência religiosa, por um lado, com a própria explicação daquela experiência,
por outro. Uma pessoa pode ser justificada em sua alegação de que ela teve uma
experiência do que parecia ser o amor e o perdão de Deus. Isso pode de fato ser
uma experiência perceptiva verídica, mas, para, em seguida, prosseguir e explicar
a experiência invocando a existência de Deus pode muito bem ser um passo
inválido, uma inferência mal fundamentada a partir da experiência subjetiva para
a realidade objetiva do objeto apresentacional.

Uma analogia pode ajudar neste momento. Suponha que ao testemunhar


um acidente de trânsito eu afirme ter visto um carro vermelho que atropelou o

311
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

pedestre, enquanto um outro observador afirma ter visto que um caminhão


marrom atropelou a pessoa. Nós dois tivemos experiências perceptivas do acidente.
No entanto, se eu prosseguir para explicar a morte do indivíduo que foi atingido
invocando a realidade do carro vermelho, eu poderia estar enganado. O mesmo
acontece com a pessoa que invoca a existência do caminhão marrom. O ponto é
este: embora ambos possamos estar enganados com relação as nossas descrições
da causa da morte do indivíduo (suponha que na verdade tenha sido uma minivan
azul que atingiu o pedestre), isto não conta necessariamente contra a realidade do
conteúdo fundamental das experiências. Neste caso, houve um veículo que esteve
envolvido no acidente, mesmo que os dois observadores estivessem enganados em
suas descrições do objeto experienciado.

Até aqui tudo bem, digamos. Contudo o que dizer sobre as experiências
que são totalmente contraditórias, tais como aquelas do advaita vedanta e do
muçulmano descritas acima? Não são elas tão inconsistentes que chegam a
anular-se mutuamente? Além disso, não é o caso de que os adeptos religiosos
têm experiências que tendem a estar em conformidade com as suas próprias
perspectivas religiosas? Os muçulmanos têm experiências de Alá; os cristãos têm
experiências de Jesus; os budistas têm experiências do não self; e assim por diante,
certo? Isto nos conduz para a próxima objeção.

4.3 A OBJEÇÃO DA CIRCULARIDADE


Uma terceira objeção à alegação de que a experiência religiosa fornece
justificativa para a crença religiosa é que essa justificação é circular: depende de
pressupostos que não são autoevidentes para todos e ainda assim são utilizados
como controles ou limitações para a experiência. Assim, parece que a maioria das
experiências religiosas refletem as crenças e valores pertinentes à religião, ou à
visão de mundo, do experienciador. Um hindu politeísta vivendo em Calcutá
acredita que há muitos deuses que vigiam e protegem aqueles que são dedicados
a eles, e por isso, quando seu amigo diz ter experienciado a presença e o amor do
Senhor Vishnu (ou quando ele tem uma tal experiência por si mesmo), ele a toma
como sendo verídica e como refletindo a verdadeira natureza das coisas. Assim
também ocorre com as experiências em outras religiões: os experienciadores estão
tendo experiências em concordância com o que eles já acreditam.

Em resposta, as restrições religiosas ou de visão de mundo pode não ser


tão comprometedoras para os indivíduos como alguns afirmam. Há, por exemplo,
vários relatos de adeptos de uma religião que têm experiências religiosas que são
estranhas à própria crença religiosa dos indivíduos e ainda que não são incomuns
entre aqueles de outra religião. Às vezes, essas experiências podem até mesmo ser
a causa de uma mudança de suas crenças religiosas e identidade (JAMES, 1995;
COTTINGHAM, 2008).

312
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Talvez haja uma melhor maneira de compreender e explicar a experiência


religiosa. Talvez haja uma explicação científica que demonstra que as experiências
religiosas não são verídicas, mas antes ilusões ou até mesmo delírios. Vamos nos
ater, a seguir, em duas dessas explicações.

5 AS EXPLICAÇÕES CIENTÍFICAS DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA


Alguns sustentam a visão de que as explicações científicas das experiências
religiosas desacreditam as mesmas, ou demonstram que as mesmas sejam não
verídicas ou até mesmo delirantes. Mas será que isso é possível? Existem dois tipos
de explicações científicas naturais da experiência religiosa, vamos considerá-las. A
primeira, introduzida por Sigmund Freud, é uma explicação psicológica.

5.1 UMA COMPREENSÃO PSICOLÓGICA DA EXPERIÊNCIA


RELIGIOSA

Há muitas explicações psicológicas diferentes da experiência religiosa.


Uma das mais conhecidas foi oferecida por Sigmund Freud (1856-1939). Freud
argumentou que os sentimentos de desamparo e medo na infância fomentam
um desejo de proteção paternal amorosa. Este desejo, ou anseio por uma figura
protetora segue para a vida adulta e exige um ser maior, mais poderoso do que
um pai humano. Dois outros desejos são proeminentes: a substanciação da justiça
universal e uma continuação da nossa própria existência após a morte. Estes
desejos juntos são satisfeitos através da ilusão da providência divina. É importante
observar aqui, que ao sustentar que as experiências religiosas são ilusões, Freud
não está alegando que as mesmas sejam necessariamente falsas. Na verdade, ele
está oferecendo uma perspectiva psicológica da experiência religiosa como sendo
uma realização de desejos humanos (FREUD, 2014).

A hipótese da realização do desejo da experiência religiosa (e da religião


em geral) de Freud foi dirigida principalmente à religião teísta na qual um pai
celestial substituiu um provedor e sustentador terreno, mas pode aplicar-se a todas
as religiões e experiências religiosas: elas são projeções psicológicas que satisfazem
determinadas necessidades e anseios humanos fundamentais, nada mais do que
isso.

Uma resposta a esta conclusão de uma hipótese psicológica ou explicação


da experiência religiosa é que pode muito bem ser verdade que alguém tenha uma
experiência religiosa (ou crença) que é causada por certas necessidades e desejos.
Mas e daí? Isso não refuta o conteúdo da experiência (ou da crença). Suponha, por
exemplo, que alguém acredita na existência de um Deus pessoal e poderoso por

313
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

causa de uma profunda necessidade de um Pai celestial. Isso prova que um Deus
pessoal e poderoso não existe? Certamente não. Além disso, pode ser que um tal
Deus pessoal e poderoso utiliza a relação familiar como ferramenta pedagógica
para ensinar as pessoas sobre a natureza de Deus. Na verdade, isto é precisamente
o que muitos judeus, cristãos e muçulmanos realmente acreditam e como eles
interpretam as passagens em suas escrituras sagradas que se referem a Deus como
Pai, amigo etc. Um mesmo tipo de resposta poderia ser desenvolvido com respeito
às outras religiões também.

NOTA

Sigmund Freud (1856-1939) foi um neurologista austríaco, psicólogo e o fundador


da psicanálise. Ele é muitas vezes considerado um dos pensadores mais influentes do século
XX. Seus principais trabalhos incluem O Futuro de uma Ilusão (2014), Totem e Tabu (2012), e
Moisés e o Monoteísmo (1996).

5.2 UM ENTENDIMENTO NEUROCIENTÍFICO DA EXPERIÊNCIA


RELIGIOSA

Os recentes avanços na neurociência têm dado origem à visão de que a


experiência religiosa pode ser o resultado de causas puramente neurofisiológicas
e, portanto, são, em última instância, ilusórias. John Hick (2006), no capítulo sete
de sua obra, delineia cinco exemplos derivados de pesquisas recentes que cobrem
a gama de tipos de experiências religiosas:

1. As crises epilépticas e a estimulação do lóbulo frontal pelo Capacete de Persinger


– ou “Capacete de Deus” – [um estimulador magnético transcraniano] causam
visões religiosas.
2. Psicotrópicos causam várias formas de experiências religiosas.
3. A consciência "pura", a consciência do Vazio, a Vacuidade, o sunyata, é causado
pela consciência contínua após o corte de todo input perceptual.
4. O senso de unidade com toda a realidade é causado pelo encerramento da
consciência dos limites corporais do indivíduo.
5. A sensação da presença de Deus ou de outros seres sobrenaturais é causada por
uma divisão do sistema do self (self-system) em dois, uma metade vendo a outra
metade como uma entidade distinta.

314
TÓPICO 3 | EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

DICAS

Veja um vídeo da pesquisa do Dr. Persinger e seu “Capacete de Deus”, disponível


em: <https://www.youtube.com/watch?v=ExHNRg6FA28>.

A pesquisa que atualmente está sendo feita sobre o cérebro humano


demonstra que pode ser possível identificar os correlatos neurais da experiência
religiosa, talvez de todos os tipos de experiências religiosas. Alguns tiram a
conclusão que isso prova que o conteúdo da experiência é falso, ou que o conteúdo,
ou objeto, de tal experiência não existe. Mesmo se pudermos demonstrar que
existem explicações neurocientíficas (ou outras explicações naturais) para as
experiências religiosas, podemos tirar tais conclusões? Parece que não. William
Wainwright explica o porquê:

Muitos filósofos pensam que uma experiência de X é verídica somente


se X é uma de suas causas. Assim, uma experiência visual de minha
mesa é uma percepção da minha mesa apenas se a mesa causa a minha
experiência. Suponha, então, que uma explicação natural cientificamente
adequada da experiência religiosa é descoberta. Será que isso significa
que (1) Deus ou alguma outra entidade sobrenatural não é a sua causa
ou, pelo menos, que (2) não há nenhuma razão para pensar que uma
entidade sobrenatural é a sua causa? Não poderia significar isso. Os
teístas clássicos acreditam que as explicações cientificamente adequadas
podem ser fornecidas para a maioria dos fenômenos naturais. Mas
eles também acreditam que esses fenômenos são imediatamente
fundamentados na atividade causal de Deus. Assim, uma explicação
científica adequada da experiência religiosa não iria mostrar que Deus
não é sua causa. Nem mostraria que a atividade causal de Deus não é
necessária para a sua ocorrência. (WAINWRIGHT, 1999, p. 133).

Além disso, se alguém aborda a questão de saber se a experiência religiosa


pode justificar a crença religiosa a partir de uma visão naturalista (ou ateísta) do
mundo, a gama de possíveis respostas vai ser bem diferente da pessoa que se
aproxima de uma visão religiosa do mundo. Como Ninian Smart (1978, p. 124)
observou:

Claro, se a pessoa já decidiu em sua própria mente que o universo não


tem nenhuma fonte transcendente e nenhum aspecto transcendente a
ele, que a única realidade é o cosmos observável, então, sem dúvida,
será mais fácil pensar que a religião [e experiência religiosa] surge de
impulsos psicológicos, entre outros.

Finalmente, pode haver razões independentes para se acreditar na


existência de Deus ou na Realidade Absoluta e para acreditar que esta realidade é
a causa fundamental da experiência religiosa.
315
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico vimos:

• Seja qual for a sua causa, as experiências religiosas têm sido uma parte do tecido
das tradições religiosas desde os seus primeiros desenvolvimentos. Elas se
apresentam em toda a variedade de formas.

• As experiências religiosas têm várias características em comum: elas são


universais, diversas e importantes na vida do experienciador, muitas vezes
resultando em uma vida moralmente ou espiritualmente transformada.

• Uma questão importante que surge da experiência religiosa é se este tipo de


fenômeno pode justificar as crenças religiosas. Uma série de tentativas foram
feitas para demonstrar que ela pode, e examinamos várias delas: dois argumentos
da analogia baseados na percepção sensorial, o Princípio da Credulidade, e o
BEE e STING.

• Há também desafios importantes para a alegação de que a experiência religiosa


pode justificar a crença religiosa, e nós examinamos três destes.
1. Em primeiro lugar, pode-se argumentar que as experiências religiosas não são
verificáveis, ou conferíveis, assim como outros tipos de experiências.
2. Em segundo lugar, as reivindicações conflitantes das diversas experiências
(conflitos tanto dentro como fora das tradições religiosas) podem anular-se
mutuamente.
3. E em terceiro lugar foi a objeção da circularidade em que se argumenta que
a justificação para a crença religiosa depende de pressupostos que não são
autoevidentes para todos e ainda que são posteriormente utilizados como
controles ou limitações sobre a experiência.

• Duas explicações científicas da experiência religiosa: a psicológica e


neurocientífica. De acordo com a visão psicológica de Freud, certos sentimentos
de proteção são satisfeitos através da ilusão da Providência divina: a pessoa
projeta a existência de Deus ou da Realidade Absoluta.

• Mais recentemente, os avanços da neurociência têm demonstrado que a


experiência religiosa pode ser o resultado de causas neurofisiológicas. Como
tal, alguns concluem que as experiências religiosas são, em última instância,
ilusórias ou meros delírios.

• De qualquer perspectiva elas são estudadas ou experienciadas, talvez por causa


de suas manifestações incomuns e às vezes bizarras, as experiências religiosas
continuam a captar a atenção dos crentes religiosos e dos céticos igualmente, e
eles estão propensos a continuar por um tempo muito longo a fazer isto.

316
AUTOATIVIDADE

William James sugere que a experiência mística deve incluir quatro


características distintas. Leia as afirmações abaixo sobre estas características e
assinale a alternativa correta:

a) A inefabilidade refere-se à experiência temporária e ao pronto retorno do


experienciador a um estado “normal” da mente.
b) A passividade refere-se ao fato de que a experiência não pode ser
adequadamente descrita, se é que pode em absoluto.
c) A qualidade noética refere-se ao fato de que o experienciador acredita que
aprendeu algo importante com a experiência.
d) A transitoriedade refere-se ao fato de que a experiência ocorre sem decisão
ou controle consciente e não pode ser provocado meramente pela vontade.

317
318
UNIDADE 3
TÓPICO 4

O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

1 INTRODUÇÃO

Todas as grandes tradições religiosas oferecem esperança para satisfazer


os anseios fundamentais da humanidade, desejos de paz, realização e felicidade
real e contínua. Mas é claro que tais anseios não são muitas vezes satisfeitos nesta
vida, então as religiões oferecem uma solução: enquanto os nossos anseios mais
profundos não podem ser realizados no aqui e agora, eles ultimamente serão. Esta
vida não é o fim; vamos continuar a existir (em algum sentido) além da morte.

Essa afirmação suscita uma série de perguntas. Será que realmente


continuamos a sobreviver depois que morremos, ou será que a morte é o fim da
nossa existência consciente? Que tipos de evidências existem para tal crença, se
houver? Se realmente sobrevivemos à morte, como será esta experiência, e o que é
que de fato sobrevive? Será que os nossos pensamentos, crenças e memórias serão
como o são agora, ou tudo irá mudar? Será que eu reconhecerei minha família e
meus amigos na vida após a morte, ou será que todos nós seremos transformados
além do reconhecimento? Se já pensastes sobre a vida após a morte, estes são os tipos
de perguntas que provavelmente você já ponderou. Como nós as respondemos é
em grande parte determinado por nossa visão de mundo ou tradição religiosa.

Enquanto cada uma das religiões do mundo fornece uma resposta positiva
à questão de saber se há uma existência continuada após a morte, as respostas
fornecidas por elas são bastante diferentes. Antes de explorar algumas das questões
centrais que circundam a vida após a morte, é importante, primeiro, aprofundar
a questão do que é o self (o eu) e do que consiste a identidade pessoal, pois nossas
respostas a estas questões irão influenciar significativamente a nossa compreensão
de como nós vemos a vida após a morte.

319
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

2 CONCEPÇÕES DO SELF (DO EU)

Existem várias concepções do self que foram mantidas historicamente, no


Oriente e no Ocidente. Veja, por exemplo, a figura a seguir, que ilustra um esquema
das concepções de ser humano e sua constituição no Ocidente.

FIGURA 9 - UM ESQUEMA BÁSICO DAS CONCEPÇÕES DE SER HUMANO E SUA CONSTITUIÇÃO

FONTE: P. M. S. Hacker (2010, p. 38)

Para os nossos propósitos, e devido à limitação de espaço aqui, podemos


delinear quatro das mais importantes concepções da seguinte maneira:

1. Dualismo
2. Materialismo
3. Panteísmo Monista
4. A doutrina budista do Não Self

320
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

Vamos examinar brevemente cada um.

2.1 O DUALISMO
Historicamente houve uma variedade de concepções do self, e no Ocidente
o dualismo tem sido a concepção mais amplamente aceita entre todas elas. Em uma
das principais explicações dualistas, uma pessoa é composta por duas substâncias,
uma substância material (o corpo) e uma substância imaterial ou mental (a alma
ou a mente). René Descartes (1596-1650) é talvez o defensor mais amplamente
reconhecido do dualismo substancial, ou dualismo da mente-corpo (DESCARTES,
2002; MARQUES, 1993). Em sua explicação, a alma é uma substância sem extensão
(não espacial), e é contrastada com o corpo, uma substância extensa (espacial). A
alma e o corpo (de alguma forma) se relacionam entre si, mas como uma substância
imaterial pode interagir com uma substância física é um mistério, um mistério que
tem sido muitas vezes criticado severamente como o problema do “fantasma na
máquina”. O filósofo britânico Gilbert Ryle (2005) foi o primeiro a usar o termo
“fantasma na máquina” como uma descrição pejorativa do dualismo de substância
de René Descartes.

Outra forma de dualismo é a visão tomista (derivada do trabalho de Tomás


de Aquino, 1225-1274), em que a alma é entendida como sendo uma estrutura
complexa que mantém sob controle vários estados mentais (tais como sentimentos,
pensamentos e sensações), capacidades e estruturas. Nessa explicação, a alma
enquanto imaterial, é o que anima, unifica e desenvolve as funções biológicas
do corpo físico. É fonte da vida de um indivíduo, bem como o seu princípio de
ordenação (HACKER, 2010).

De uma forma ou de outra, muitos adeptos das religiões ocidentais foram


dualistas como a Bíblia hebraica, o Novo Testamento e o Alcorão parecem, em
uma leitura simples, pelo menos, afirmar a realidade do corpo e da alma. Vale
aqui ressaltar, que essa afirmação é uma generalização, que pode muito bem
fazer vistas grossas a uma rica variedade de perspectivas sobre o assunto nestas
tradições. Especialmente quando falamos do entendimento judaico sobre o self,
como apresentado nas Escrituras hebraicas (GILMAN, 2000; SOARES, 2008).

Muitos dos principais filósofos ocidentais, como Platão, Tomás de Aquino


e Descartes, também sustentaram alguma forma de dualismo (VAZ, 2004; REALE,
2002). No Oriente também existem concepções hindus em que é sustentado uma
distinção entre a alma individual (atman) e a matéria física (prakriti) que compõe o
corpo (SMITH; SCOSS, 2007). Além disso, a maioria dos dualistas, tanto religiosos
e não religiosos, afirmam a vida após a morte. Para alguns, a imortalidade envolve
um estado encarnado/incorporado, e as perspectivas judaicas, cristãs e islâmicas da
ressurreição do corpo são exemplos disso. Para outros, a vida após a morte envolve
ser reencarnado em outra existência física, talvez como um animal ou outra pessoa.
Ainda para outros dualistas, a vida após a morte é a existência desencarnada onde

321
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

a alma é para sempre separada de qualquer futura existência física.

Uma série de argumentos tem sido formulados em defesa do dualismo,


incluindo o seguinte. Em primeiro lugar, há a distinção entre eventos físicos por
um lado, e os eventos mentais por outro. Considere o seu pensamento sobre o
Brasil. Será que esse pensamento tem um peso, uma forma, um cheiro ou um gosto?
Parece não ser o tipo de coisa que pode ser descrito em termos da física, química
ou da biologia. Mas o evento cerebral que está relacionado com o seu pensamento
do Brasil é o tipo de coisa que é descrito em termos de física, química e biologia.
Portanto, os eventos mentais e eventos cerebrais não são idênticos; um é físico
e o outro não, eles são duas coisas separadas (SWINBURNE, 1997). O dualista
argumenta que essa distinção entre coisas físicas e mentais é mais plausivelmente
explicada dentro do enquadre dualista. Devemos observar aqui, que os eventos
mentais podem tanto sobrevir ou ser epifenomenais aos eventos físicos de modo
que assim evitariam o dualismo de substância. É, ao menos, discutível que mesmo
se os eventos mentais possuam poder causal sobre os eventos físicos, isso poderia
ser explicado no interior de uma posição dualista de propriedade.

Em segundo lugar, e relacionado com o primeiro, é o que é chamado de


o Argumento do Conhecimento. O que segue é uma história bem conhecida pelo
filósofo Frank Jackson que se destina a demonstrar o cerne do argumento:

Maria é uma cientista brilhante que, por alguma razão, é obrigada a


investigar o mundo a partir de uma sala a preto e branco através de um
monitor de televisão a preto e branco. Especializa-se na neurofisiologia
da visão e adquire, suponhamos, toda a informação física que há para
obter sobre o que se passa quando vemos tomates maduros, ou o céu,
e usamos termos como «vermelho», «azul» etc. Descobre, por exemplo,
justamente que combinações de comprimento de onda a partir do céu
estimulam a retina e exatamente como isto produz através do sistema
nervoso central a contração das cordas vocais e a expulsão de ar dos
pulmões que resulta na elocução da frase «O céu é azul». [...] O que
acontecerá quando libertarem Maria da sua sala a preto e branco ou lhe
derem um monitor de televisão a cores? Aprenderá ela algo ou não?
Parece simplesmente óbvio que aprenderá algo acerca do mundo e
a experiência visual que temos dele. Mas então é inegável que o seu
conhecimento anterior era incompleto. Mas ela tinha toda a informação
física. Logo, há mais para ter do que isso e o fisicalismo [a doutrina de
que tudo o que existe pode ser completamente descrito em termos de
informação física] é falso (JACKSON, 1982, p. 208).

NOTA

Veja também outro artigo de F. C. Jackson (2013), no qual ele amplia a discussão
vista acima. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Jackson-Mary-nao-sabia-1.
pdf>.

322
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

Uma vez que existem diferentes tipos de experiências (objetivas e subjetivas)


e diferentes tipos de informação (física e não física) que uma pessoa pode ter, há
uma diferença entre o físico e o mental. Assim, o argumento continua, alguma
forma de dualismo faz mais sentido do que o materialismo como uma explicação
geral do self. Devemos aqui observar que o argumento do conhecimento tenta
estabelecer que a experiência consciente inclui propriedades não físicas. Não é,
assim, um argumento a favor do dualismo de substância, mas sim um argumento
contra a posição fisicalista que postula somente propriedades físicas.

Um terceiro argumento oferecido em defesa do dualismo vem da


identidade pessoal (SWEETMAN, 2013; BONJOUR; BAKER, 2010). Considere o
seguinte cenário. Suponha que você levou seu automóvel à oficina. O mecânico
lhe diz que há uma série de problemas com o mesmo e que ele vai precisar uma
semana para consertá-lo. Agora, suponha que quando você volta uma semana
depois, você descobre que ele substituiu cada parte do automóvel com uma nova
peça: a lataria, os pneus e rodas, os parafusos ... tudo (um empreendimento caro,
com certeza)! Será que isso ainda seria o mesmo automóvel que você trouxe
uma semana antes? Parece evidente que não seria o mesmo. Por uma questão
de fato, pode-se argumentar que, mesmo que apenas uma parte houvesse sido
substituída, não seria literalmente o mesmo automóvel; seria semelhante, mas
não idêntico. Assim, quando se trata de objetos como carros, uma mudança de
partes (e especialmente partes essenciais) muda a identidade do objeto. Mas o
que dizer de pessoas? É a mesma coisa para nós? Se as nossas "peças" mudarem,
ainda seremos a mesma pessoa? Em certo sentido, todas as nossas peças mudaram
desde a infância (todas, ou pelo menos a maioria das células no corpo humano são
regeneradas/substituídas a cada sete anos), mas não somos ainda a mesma pessoa?
Aquela pessoa em suas fotos de infância não é a mesma pessoa que você é agora?
Os dualistas de substância argumentam que mantemos a identidade absoluta
através da mudança, porque a nossa essência, nossa alma substancial imaterial,
permanece a mesma através da mudança corporal.

Os materialistas têm várias respostas a este argumento. Uma resposta é


concordar com o dualista que a identidade pessoal não é constituída pelas partes
físicas de uma pessoa, mas sim por suas memórias ou estados psicológicos. Mesmas
memórias ou estados psicológicos, igual mesma pessoa. Outra resposta é discordar
com o dualista, afirmando que a identidade pessoal é constituída pelas partes
materiais que compõem um indivíduo, mas acrescentar que essas partes não são o
corpo como um todo, mas certas partes fundamentais. Por exemplo, a identidade
pessoal pode ser constituída por uma parte do cérebro ou o sistema nervoso central,
uma parte que não muda ao longo do tempo, mas literalmente permanece a mesma
(é discutível se de fato existem tais partes). Ou talvez a identidade pessoal consiste
em uma certa continuidade de partes que permanecem interligadas ao longo do
tempo. Por exemplo, apesar de que muitas (talvez a maioria!) das partes do meu
automóvel tenham sido substituídas por meu mecânico ao longo dos últimos
cinco anos, ainda é o mesmo veículo. E sua identidade é a mesma por causa da
continuidade e interconexão de muitas de suas partes.

323
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

2.2 O MATERIALISMO

A ideia de que não há nenhum aspecto imaterial do self, nenhuma alma


ou mente imaterial, não foi uma perspectiva proeminente historicamente, pelo
menos no Ocidente, no entanto, nos últimos dois séculos, tem sido sustentada por
um número considerável de pessoas, especialmente entre aqueles que circulam
ambientes acadêmicos. Uma série de argumentos é oferecida para apoiar a visão
materialista do self, sendo um deles que não parece haver nenhuma razão para
acreditar que as pessoas humanas são nada mais do que a matéria da qual são
constituídas. O filósofo Paul Churchland (2004, p. 21) expressa a sua opinião de
forma concisa:

O ponto importante sobre a história evolutiva padrão é que a espécie


humana e todas as suas características são o resultado inteiramente
físico de um processo puramente físico [...]. Se esta é a explicação
correta de nossas origens, então não parece haver nem necessidade,
nem espaço para atender quaisquer substâncias ou propriedades não
físicas em nossa explicação teórica de nós mesmos. Nós somos criaturas
materiais. E devemos aprender a viver com esse fato.

Outros argumentos têm sido oferecidos para apoiar a visão materialista, e


a maioria deles depende da alegação de que um cérebro físico é necessário para
uma mente que funcione. Em uma perspectiva materialista, chamada de teoria
da identidade, todas as propriedades mentais são idênticas às propriedades
físicas do cérebro. A mente é apenas a atividade do cérebro, e por isso não há
necessidade de postular alguma mente ou alma imaterial adicional para dar conta
da razão, emoção, vontade ou consciência. Grande parte das evidências em apoio
a essa visão vem da dependência neural aparente dos fenômenos mentais. Por
exemplo, narcóticos, álcool e outras drogas afetam suas habilidades mentais,
assim como várias doenças cerebrais. Isso faz sentido se a mente é a atividade do
cérebro, mas não é assim, argumenta-se, se a mente é uma substância imaterial
separada. Os dualistas respondem alegando que existe uma ligação causal entre
estados cerebrais e estados mentais, mas a partir disto, eles sustentam, não segue
necessariamente que os estados mentais são idênticos aos estados cerebrais. Os
teóricos da identidade respondem que não há necessidade de adicionar uma
substância adicional, quando os dados podem ser explicados apenas com uma
(CHURCHLAND, 2004).

Por uma série de razões que não caberiam aqui, a teoria da identidade
tem estado em declínio nos últimos anos. Outra perspectiva materialista tem se
tornado proeminente e é, provavelmente, a visão dominante hoje entre os filósofos
da mente e cientistas cognitivos. Este ponto de vista é chamado de funcionalismo
(COSTA, 2005; FONTANELLA, 2013). Os funcionalistas sustentam (tal como
fazem os dualistas) que é impossível identificar determinados estados mentais
com determinados estados cerebrais. No entanto, é possível caracterizar os estados
mentais por referência ao comportamento. Na explicação funcionalista, a mente
é como uma caixa-preta e pode ser explicada em termos de inputs (entradas) e
outputs (saídas). Considere esta analogia. Eu não sei como este computador em

324
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

que estou escrevendo funciona; Estou totalmente não familiarizado com as suas
estruturas internas, peças e seu funcionamento interno. No entanto, eu não preciso
saber de tais informações. O que conta é que, dados certos inputs, certos outputs
ocorrem. Quando eu teclei a letra "m", por exemplo, um “m” aparece na tela. Para
mim, o computador é uma caixa-preta.

FIGURA 10 – A MENTE COMO UMA CAIXA-PRETA

FONTE: O autor

Além disso, as funções computacionais podem ocorrer em diferentes meios.


Os primeiros computadores eram feitos a partir de materiais que eram muito
diferentes do que eles são feitos hoje, e as suas estruturas internas e externas eram
bastante diferentes também. No entanto, podiam realizar muitos dos mesmos
cálculos que os computadores modernos realizam (tais como a adição de 2 + 2). Na
explicação funcionalista, a mente é uma caixa-preta, é como um computador vivo.
Nas pessoas humanas, os processos computacionais são plenamente realizados
em estruturas materiais, como eles o são em computadores, e assim não há
necessidade de postular entidades não materiais complementares (tais como uma
mente imaterial ou a alma) para explicá-los.

Para alguns materialistas não há vida após a morte. Uma vez que o corpo
físico morre, a pessoa morre para sempre. Para outros materialistas, a vida após
a morte é uma possibilidade real. Os materialistas cristãos recentes, por exemplo,
afirmam que haverá vida após a morte, quando Deus trouxer o corpo de volta à
vida no escaton. Vamos examinar a possibilidade da ressurreição depois.

2.3 O PANTEÍSMO MONISTA


Outra perspectiva do self, que é mantida principalmente por aqueles da escola
Advaita Vedanta do Hinduísmo, é o panteísmo monista, "monismo" (a realidade
é um todo unificado, não existem distinções das coisas); e "panteísmo" (tudo é
divino). De acordo com a Advaita Vedanta, a realidade última (que é normalmente
referida como "Brahman") é indiferenciada e além de todas as qualidades, incluindo
a pessoalidade. O universo flui do Brahman, cuja própria natureza inclui o maya, um
aspecto ilusório do qual a diferenciação e a individualidade aparente emergiram.
A personalidade individual é uma ilusão, no entanto, e um produto do maya.
O verdadeiro self, ou Atman, é, na realidade, o Brahman. Isso se reflete na frase
Vedanta bem conhecida: "Isso és Tu." (NIRAJ, 2009; SHANKARA, 1992).

Quando se alcança finalmente a iluminação, ou o moksha, escapa-se das


325
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

garras desta grande ilusão e torna-se consciente de seu verdadeiro Self como o
Brahman indiferenciado. Uma símile que às vezes é usada aqui é que o Brahman é
como o Espaço e os selves individuais são como espaços em jarros. Quando os jarros
são destruídos o espaço nos jarros mescla-se de volta no Espaço. A iluminação
rompe aberto os jarros e a identidade individual em última análise é vista como
sendo absorvida no Brahman indiferenciado. Shankara (1992, verso 288) expressa
isso da seguinte forma: “Como se une o espaço dentro da jarra (rompendo-a) com o
espaço infinito, assim unindo ao jiva [sem divisão] com Brahman [o Self supremo]”.
Entretanto, alcançar o moksha é uma tarefa árdua, e para o Vedanta o processo pelo
qual se alcança o mesmo envolve livrar-se, através de muito esforço, dos efeitos
negativos do carma, tipicamente através de uma sucessão de reencarnações.

DICAS

Uma jarra, ainda que seja uma modificação da argila, não é diferente dela. Em
qualquer parte, a jarra em essência é argila. Então, por que denominá-la jarra? É uma coisa
fictícia, é um nome de fantasia. A realidade é o próprio barro. Ninguém pode demonstrar que
a essência da jarra é algo diferente da argila (da qual é feita). Portanto, a jarra foi imaginada
meramente pela ilusão; seu componente, a argila, é a realidade básica. Do mesmo modo, o
universo inteiro, sendo o efeito do real Brahman, em essência não é nada mais que Aquele.
A realidade do universo é Brahman, fora do qual não há outra existência. Se alguém diz,
“este é” (que o universo tem sua existência particular), está ainda sob a ilusão e está falando
incoerentemente, como aquele que fala dormindo (SHANKARA, 1992, versos 28-30).

2.4 O NÃO SELF

Por uma série de razões os budistas não estão satisfeitos com os dualistas,
materialistas, e com a perspectiva hindu do self. Nós vimos no Tópico 3, da Unidade
2, a doutrina budista do Anatman (não self). Esta perspectiva é baseada na metafísica
budista na qual não há nenhuma "coisa" que tenha existência independente; não
existem substâncias individuais. Similar à perspectiva Advaita observada acima,
uma verdade central de uma escola do Budismo, a escola Mahayana, é que o self
individual não existe e nossa crença de que ele exista é apenas uma ilusão. Mas
ao contrário da visão Advaita, existem várias experiências, desejos, sentimentos e
anseios que são reais e estão em fluxo contínuo.

No entanto, não existe um self do qual são constituintes. A seguinte


explicação dos ensinamentos de Buda sobre o assunto é encontrada em seu
segundo discurso, em que ele apresenta o princípio de anatta (não self, ou não eu)
para o grupo de cinco bhikkhus (monges), no sermão intitulado "As Características
do Não Eu" no sutta Anatta-lakkhana do Canon Pali (escrituras budistas):

326
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

A forma, bhikkhus [monges], é não eu. Pois, bhikkhus, se a forma fosse


o eu, essa forma não conduziria ao sofrimento e seria possível obter
da forma: ‘Que a minha forma seja assim; que a minha forma não seja
assim.’ Mas porque a forma é não eu, a forma conduz ao sofrimento e
não é possível obter da forma: ‘Que a minha forma seja assim; que a
minha forma não seja assim.’
A sensação é não eu... A percepção é não eu... As formações volitivas
são não eu...
A consciência é não eu. Pois, bhikkhus, se a consciência fosse o eu,
essa consciência não conduziria ao sofrimento e seria possível obter
da consciência: ‘Que a minha consciência seja assim; que a minha
consciência não seja assim.’ Mas porque a consciência é não eu, a
consciência conduz ao sofrimento e não é possível obter da consciência:
‘Que a minha consciência seja assim; que a minha consciência não seja
assim.’
Portanto, bhikkhus, qualquer forma [corpo ou consciência, ou sensação,
ou percepção etc.] quer seja do passado, futuro ou presente, interna ou
externa; grosseira ou sutil; inferior ou superior, próxima ou distante:
toda forma [corpo ou consciência, ou sensação, ou percepção etc.] deve
ser vista como na verdade é, com correta sabedoria: ‘Isso não é meu, isso
não sou eu, isso não é o meu eu.’ (SAMYUTTA, 2014, sem paginação).

Uma velha analogia indiana sobre um coche (carruagem) é frequentemente


citada em relação à perspectiva do não self (não eu). Um coche não é os raios das
rodas, ou as rodas, ou a moldura, ou o eixo; não é nenhuma das partes individuais.
Também não é as partes individuais tomadas em conjunto. No entanto, também
não é algo além das partes. Ele acaba por ser apenas o som da palavra "coche".
Assim também é com os selves individuais (VALLE, 1997).

Os budistas admitem que apreender o ensino de não self não pode ser fácil;
também aqui pode muito bem requerer livrar-se, através de muito esforço, dos
efeitos negativos do carma e múltiplas reencarnações para chegar a esta realização.
Portanto, temos quatro concepções distintas do self, e cada uma delas oferece
perspectivas únicas sobre a morte e a vida após a morte. Para o materialista, a vida
após a morte é possível se o corpo puder ser ressuscitado dos mortos ou de alguma
forma ser reconstituído. Para o dualista, a morte física não é necessariamente o fim
do self também, pois a alma pode muito bem continuar a existir após a morte, seja
encarnada ou desencarnada. Para as concepções panteístas hindu e o não self budista,
a reencarnação e o carma são de fundamental importância para compreender o que
acontece depois que o corpo morre. Vamos comentar a seguir sobre a reencarnação
e o carma.

3 A REENCARNAÇÃO E O CARMA

Há semelhanças interessantes entre as religiões do Oriente e do Ocidente


a respeito da morte e da vida após a morte. Por exemplo, ambas oferecem uma
esperança eterna no além-túmulo, esperança para ultimamente satisfazer (ou,
como veremos a seguir, extinguir) os anseios experienciados nesta vida. Mas
também há diferenças significativas entre elas. Talvez a diferença mais marcante

327
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

seja a crença generalizada entre aqueles do Oriente no carma e na reencarnação.

Em suas formulações populares, a reencarnação é a visão de que o self


consciente transmigra de um corpo físico para outro logo após a morte. Cada ser
humano já viveu vidas anteriores, talvez como um ser humano ou, talvez, como
um outro tipo de organismo, tal como um animal. Algumas pessoas alegam ter
lembranças de experiências de vidas anteriores. Por exemplo, há o famoso caso de
um menino indiano chamado Parmod Sharma. Enquanto um jovem rapaz, Parmod
começou lembrar detalhes específicos sobre sua vida como um homem chamado
Parmanand. Ele disse à sua mãe que ela não precisa mais cozinhar refeições para
ele porque ele tinha uma esposa em Moradabad (uma cidade a cerca de 90 milhas
de distância da casa de Parmod). Ele, então, começou a falar sobre muitos dos
detalhes de sua vida como um empresário que possuía várias lojas, até mesmo
oferecendo os nomes de empresas, incluindo uma loja de biscoitos e refrigerantes
chamada "Mohan Brothers", e descreveu detalhes sobre sua esposa e família. Ele
não só alegou estar casado, mas que ele tinha cinco filhos, quatro meninos e uma
menina!

A história de Parmod se difundiu, e, eventualmente, chegou aos ouvidos de


uma família em Moradabad que corroborava com suas descrições perfeitamente.
Acontece que a família possuía uma loja de biscoitos chamada "Mohan Brothers" e
um dos irmãos donos da loja, Parmanand, morreu 18 meses antes do nascimento
de Parmod. Parmanand deixou uma viúva e cinco filhos, quatro meninos e uma
menina. Esta história e milhares de outras como ela, têm sido investigadas e
muitas delas publicadas (TUCKER, 2007; GREYSON, 2007). Enquanto algumas
delas acabam por ser explicáveis por criptomnésia, ou memórias ocultas, muitas
delas não o são.

A reencarnação é uma doutrina essencial para hindus e budistas. Mas


pode-se perguntar como a reencarnação faz sentido dentro de uma visão budista
do não self. Na verdade, há muito debate entre os estudiosos budistas sobre este
assunto (TENDAM, 1993). Uma das respostas mais influentes é que com a morte
da consciência (ou a dissolução dos skandhas – eventos mentais ou feixes), uma
nova consciência surge, na perspectiva budista Mahayana, há cinco skandhas, que
constituem o que nós frequentemente chamamos de “ego”. Isso é chamado de
"renascimento", um termo que capta melhor o significado do evento do que o termo
"reencarnação". Esta nova consciência não é idêntica à anterior, mas também não é
completamente diferente dela. Existe uma ligação causal entre elas na medida em
que elas formam uma parte do mesmo continuum causal. Para muitos budistas, a
razão para a crença generalizada em um self individual é a ignorância (avidya). A
fim de ultrapassar a ignorância e experienciar a iluminação, ou o nirvana, é preciso
entender este ensino do não self, bem como aquele das Quatro Nobres Verdades e
do Nobre Caminho Óctuplo descritos no Tópico 3, da Unidade 2.

A reencarnação é geralmente relacionada com a doutrina do carma, a


ideia de que nós colhemos as consequências boas e más de nossas ações, quer
nesta vida ou em outra. Aqueles que afirmam a reencarnação e o carma muitas
vezes apontam para a dificuldade que percebem na perspectiva Ocidental: parece
328
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

extremamente injusto que uma criança possa nascer saudável em uma amável
família rica, enquanto outra criança possa nascer doente em um ambiente pobre e
cruel. Se existe um Deus Criador que trouxe estas duas pessoas ao mundo, tal Deus
parece ter falta de amor e ser injusto. No entanto, se as duas crianças estiverem
colhendo as consequências das ações que realizaram em vidas anteriores, isso
parece fornecer uma justificativa para as desigualdades. O efeito do próprio carma
determina as circunstâncias da nossa vida presente e futuras; nós colhemos o que
semeamos.

FIGURA 11 – A LEI CÁRMICA DA CAUSA E EFEITO

As letras a, b, c etc., representam as circunstâncias da vida


de um indivíduo particular; as setas representam o fluxo causal das
circunstâncias da vida prévia de um indivíduo à sua próxima vida.

FONTE: O autor

Outra razão, por vezes, oferecida para a crença na reencarnação é que


muitas pessoas afirmam ter experienciado uma vida anterior, e às vezes elas podem
até mesmo documentar eventos que ocorreram centenas ou milhares de anos antes
de seu nascimento (TUCKER, 2007; TENDAM, 1993). Até mesmo as experiências
comuns de déjà vu são citadas como evidência da reencarnação.

Uma série de acusações também foram levantadas contra a reencarnação.


Por um lado, será que isso realmente oferece uma explicação plausível para as
desigualdades encontradas nesta vida? De acordo com a lei cármica da causa e
efeito, as minhas atuais circunstâncias de vida são explicadas por minhas ações em
uma vida anterior. E minhas circunstâncias da vida naquela vida são explicadas
pelas minhas circunstâncias da vida em uma vida anterior a mesma. E assim por
diante indefinidamente. Portanto, a solução que se esperava sobre as desigualdades
parece nunca chegar a um fim; ela acaba sendo relegada para um passado infinito.
Além disso, será que realmente parece ser justo que, uma pessoa que tenha vivido
uma vida longa morre e reencarna, ela deva começar tudo de novo como um bebê
com sua maturidade, experiências de vida, sabedoria e memórias completamente
ausentes?

Então nós examinamos quatro visões do self. Na perspectiva materialista,


uma pessoa é a matéria física da qual ele ou ela é composta. Por esse ponto de
vista, a vida após a morte seria possível se a matéria fosse de alguma forma trazida
de volta à vida (na teoria de identidade) ou se os processos mentais do cérebro de
alguma forma fossem transferidos para um meio diferente após a morte (na teoria
funcionalista). Para o dualista, a vida após a morte poderia envolver uma existência
encarnada ou desencarnada, e nós vamos examinar os argumentos a favor e
contra essas possibilidades logo a seguir. A reencarnação e o carma tipicamente

329
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

acompanham as perspectivas panteísta e do não self. Em ambas as explicações há


vida após a morte, mas a vida após a morte envolve uma série de reencarnações e
uma transformação radical do que o indivíduo se entende como ser: divino para o
panteísta ou uma não substancialidade impermanente para o budista.

4 ARGUMENTOS PARA A IMORTALIDADE


Há uma série de argumentos apresentados por aqueles que acreditam na
imortalidade. (O termo “imortalidade”, enquanto que literalmente significa “não
morrer”, é tipicamente usado em referência a almas imortais. Entretanto, usamos os
termos “imortalidade” e “vida após a morte” intercambiavelmente neste tópico.) A
seguir, nos limitamos em nosso exame a quatro destes.

4.1 EXPERIÊNCIAS DE QUASE MORTE


O primeiro argumento que examinaremos é baseado nas experiências de
quase morte (EQM) que tem sido alegadamente experienciadas por muitas pessoas.
Raymond Moody Jr. (2004), por exemplo, examina mais de cem casos de pessoas
que experienciaram “morte clínica” e foram subsequentemente reavivadas. Outra
leitura interessante é o relato autobiográfico da experiência de vida após a morte
de um famoso ateísta, A. J. Ayer (1988). As EQM são padrões comuns de eventos
associados com a morte iminente. Eles incluem uma infinidade de sensações como
o medo, a serenidade, a presença de luz, viajar através de um túnel, uma maior
consciência espiritual, deixar o corpo e olhar para baixo vendo o próprio corpo, e
encontrar-se com outras pessoas ou seres sobrenaturais.

Surpreendentemente, praticamente todo mundo que teve uma EQM


concluiu que há vida após a morte com base no que eles viram ou sentiram
(HABERMAS; MORELAND, 2004). É claro que essas experiências podem ser
ilusões, delírios ou alucinações, mas os seguintes elementos das experiências
apoiam a sua veracidade:

1. São amplamente experienciadas por pessoas de diversas origens e sistemas de


crenças.
2. Existem características comuns às experiências.
3. As experiências são por vezes bastante específicas com informações de outra
forma indisponíveis para as pessoas (tais como localizar objetos na sala durante a
cirurgia, que não estavam presentes, enquanto o paciente estava vivo/consciente,
descrevendo um evento em outro local que ocorreu durante a cirurgia etc.).

Além das EQM, muitas pessoas têm descrito ter outros tipos de experiências
fora do corpo (EFC), que incluem a reencarnação e a projeção astral. Enquanto a

330
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

evidência para as EQM e as EFC não sejam conclusivas, tais experiências fornecem
alguma justificativa para a crença em uma alma que é separada do corpo. Se a alma
existe e pode ser separada do corpo, então a vida após a morte é uma inferência
razoável.

4.2 RESSURREIÇÃO

Algumas religiões, mais notavelmente o judaísmo e o cristianismo, incluem


a crença de que nossos corpos físicos, no escaton, serão ressuscitados dentre os
mortos. Na explicação cristã histórica, uma ressurreição corporal já ocorreu: o caso
de Jesus de Nazaré (além desta, na bíblia cristã há outros nove casos de ressurreição
registrados, entretanto, o mais icônico é o de Jesus de Nazaré). A páscoa, é claro,
é a celebração cristã deste evento único. O apóstolo Paulo, na verdade, usa a
ressurreição de Jesus como evidência para a nossa própria ressurreição corporal
futura (BÍBLIA, 1994, I Coríntios 15.12-23).

Há muito debate na literatura recente na filosofia da religião e estudos


bíblicos sobre o significado e a evidência para a ressurreição de Jesus. Muitos
estudiosos da Bíblia, tanto aqueles que acreditam que Jesus ressuscitou dos mortos
e aqueles que não acreditam assim, concordam com a seguinte:

1. Jesus morreu na cruz e foi colocado em um túmulo.


2. O corpo de Jesus desapareceu do túmulo logo após sua morte (ou, pelo menos,
os discípulos acreditaram nisso).
3. Os discípulos de Jesus acreditavam que ele ressuscitou dos mortos e apareceu e
falou com eles.
4. Os principais líderes judeus, incluindo Saulo de Tarso (que se tornou o apóstolo
Paulo) e o irmão de Jesus, Tiago, foram convertidos à crença e adoração de Jesus
logo após a sua morte.

A questão torna-se então o que melhor explica estes dados. Gary Habermas,
Stephen Davis e William Lane Craig são notáveis ​​estudiosos que argumentam
que a literal ressurreição corporal de Jesus oferece a melhor explicação dos fatos
históricos. Michael Martin, Antony Flew e Robert Price são notáveis ​​estudiosos que
argumentam que uma abordagem naturalista fornece a melhor explicação para
os fatos históricos sobre o corpo de Jesus após a sua morte. Eles afirmam que há
explicações razoáveis, não milagrosas para o surgimento da crença na ressurreição
de Jesus após a sua morte, e por isso não há razão para afirmar uma explicação
sobrenatural.

331
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

O debate sobre a ressurreição continua, mas uma conclusão sólida à qual


podemos chegar é esta: se houver razões para crer que Jesus ressuscitou dos mortos
(e isso é muito contestado), então isso poderia fornecer evidências para a vida após
a morte.

NOTA

Minhas recentes experiências [quase morte] ligeiramente enfraqueceram minha


convicção de que minha morte genuína, que ocorrerá muito em breve, será o fim de mim,
embora eu continue a ter a esperança de que ela será. Elas não enfraqueceram a minha
convicção de que não há nenhum deus. Espero que minha permanência em ser um ateu irá
acalmar a ansiedade de meus colegas apoiadores da Humanist Association, e da Rationalist
Press, e da South Place Ethical Society (AYER, 1988, p. 39).

4.3 A NATUREZA DE DEUS


Para a maioria dos teístas, em todo o espectro religioso, incluindo as
grandiosas figuras históricas como Tomás de Aquino (1225-1274), Avicena (980-
1037) e Madhva (1238-1317), Deus é entendido como sendo infinitamente bom,
amoroso, sábio e justo. Como tal, Deus não é o tipo de ser que criaria seres humanos
com os anseios e aspirações que todos nós temos, tais como a vida após a morte,
por um lado, e, em seguida, deixá-los-ia ficar eternamente insatisfeitos, por outro.
Assim, prossegue o argumento, podemos ter a certeza de que haverá vida depois
desta vida; Deus fará com que seja assim. Além disso, se você ama alguém, você
não quer que eles deixem de existir. Uma vez que Deus nos ama com um amor
perfeito, ele não iria querer que deixássemos de existir. Portanto, Deus irá garantir
a nossa existência eterna.

Estas garantias, é claro, não são tão certas como poderíamos esperar que
elas fossem. Porque, como veremos a seguir, mesmo se Deus existisse, pode haver
boas razões para que um deus amoroso, justo e onibenevolente não desejasse que
vivêssemos indefinidamente.

NOTA

Sri Madhvacarya, também conhecido como Madhva (1238-1317) foi o fundador


do Dvaita ou a escola dualista da filosofia hindu Vedanta. Ele acreditava e argumentava que os
textos canônicos Vedanta (as escrituras sagradas hindus, incluindo os Vedas e os Bhagavadgita)
ensinam que há uma diferença real, fundamental entre o self (Atman) e a realidade última
(Brahman). Isso está em contraste com a escola Advaita Vedanta em que o Atman é identificado
com Brahman.

332
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

4.4 A NATUREZA DA ALMA

Ambos os filósofos antigos e modernos têm argumentado a favor da


imortalidade com base na natureza indestrutível da alma. Platão (428-347 AEC),
por exemplo, em seu livro Fédon (2008) argumenta que, se praticarmos a filosofia
do modo certo podemos ficar alegres em face da morte, pois a alma de quem
pratica a filosofia corretamente é imortal uma vez que é pura e simples (ou seja,
não tem partes) e é de um tipo divino. Como tal, não poderia ser dispersa ou
destruída. Mais recentemente, J. M. E. McTaggart (1866-1925) também ofereceu
um argumento para a imortalidade da alma com base em sua simplicidade
(McTAGGART, 1906). Ele argumenta que a alma é imortal, provavelmente, uma vez
que: 1) ela não é constituída por partes separáveis, e assim não pode ser destruída
por uma separação de suas partes (tal como os objetos materiais são destruídos); e
2) ela provavelmente não pode ser aniquilada já que não há evidências de que algo
de fato para sempre estaria aniquilado (até mesmo objetos materiais não deixam
simplesmente de existir).

No entanto, mesmo que seja o caso que tenhamos uma alma imaterial que
não consiste de partes, pode-se perguntar por que ela não poderia simplesmente
deixar de existir com a morte do corpo? Talvez como um campo magnético que é
destruído com a destruição do ímã ou de sua fonte, de modo que também a alma
poderia ser destruída com a destruição do corpo.

5 ARGUMENTOS CONTRA A IMORTALIDADE


Há também uma série de argumentos contra a imortalidade, e vamos
considerar três deles.

5.1 A DEPENDÊNCIA DA CONSCIÊNCIA NO CÉREBRO


Um dos argumentos centrais contra a imortalidade pode ser exposto desta
forma:

1. Para que um ser humano seja imortal, o self humano individual deve sobreviver
à morte física.
2. Ser um self humano individual implica ser (capaz de ser) consciente.
3. Para um self humano individual ser consciente, ele ou ela precisa de um cérebro
físico vivo.
4. Mas o cérebro físico morre quando o corpo físico morre.
5. Portanto, o self humano individual morre quando o corpo morre.
6. Por isso, um ser humano não pode ser imortal.

333
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

A premissa principal em questão para os nossos propósitos é a 3, e vários


tipos de evidências são citadas em seu suporte. Em primeiro lugar, e como vimos
anteriormente neste tópico, uma vez que drogas e doenças cerebrais afetam as
habilidades mentais e a consciência, isto fornece forte evidência empírica de que
a atividade cerebral e a consciência dependem do cérebro (ou são idênticas ao
funcionamento do cérebro). Da mesma forma, danos cerebrais também afetam
a consciência e as capacidades mentais. Além disso, várias habilidades mentais
são localizáveis ​​no cérebro. Por exemplo, o córtex pré-frontal é a área do cérebro
em que ocorrem as operações da consciência, pensamento, aprendizagem e a
imaginação. Tomados em conjunto, estes fatos oferecem um forte suporte que para
um self humano individual estar/ser consciente, ele ou ela precisa de um cérebro
físico vivo. Desde que as pessoas mortas não possuem um cérebro físico vivo, não
pode haver vida consciente após a morte.

Uma resposta a este argumento é que, embora ter um cérebro físico vivo
e funcional possa ser uma condição suficiente para a consciência, não é uma
condição necessária. Vários dualistas, por exemplo, afirmam que a alma continua
a existir em um estado consciente, mesmo após a morte do corpo (SWINBURNE,
1997). Outra resposta é concordar que os selves humanos individuais necessitam
de um cérebro físico vivo para estar/ser conscientes, e que não estarão/serão
conscientes após a morte do corpo (a não ser, digamos, que Deus lhes dê um novo
corpo). No entanto, eles estarão/serão novamente conscientes quando eles forem
ressuscitados corporalmente dos mortos (como mencionado acima, a ressurreição
corporal é uma visão judaica e cristã comum).

5.2 A IDENTIDADE PESSOAL


Outro argumento contra a vida após a morte direcionado aos dualistas
tem a ver com a identidade pessoal. Se as almas continuarem a existir em um
estado desencarnado, incorporal após a morte do corpo físico, então o que poderia
identificá-los como entidades únicas e individuais? Eu posso identificar o meu
amigo João como o indivíduo único que é apontando para ele, ou descrevendo
suas características físicas, ou talvez observando a maneira como ele se comporta
quando está em determinadas situações. Mas se o João não tivesse um corpo físico,
como ele poderia ser identificado como João? Como ele poderia ser distinguido de,
digamos, os meus outros amigos Pedro, Cristiano e Patrícia? O que lhe faria ser a
pessoa única que ele era quando encarnado?

Um dualista poderia responder alegando que mesmo se não fosse possível


para alguém identificar uma alma sem o corpo, ou distinguir uma alma de outra,
não segue disso que tais almas desencarnadas não poderiam existir. Embora possa
haver um problema epistêmico (conhecimento), não segue disso que exista um
problema ontológico (ser). Além disso, uma vez que muitos monoteístas acreditam
que a imortalidade será incorporada/encarnada, poderia ser o corpo ressuscitado
que constituiria o critério para a re-identificação após a morte (a partir de uma

334
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

perspectiva externa, de terceira pessoa), enquanto a alma imaterial constituiria o


critério da sobrevivência (desde uma perspectiva interna, de primeira pessoa).

5.3 A MISÉRIA ETERNA


Um argumento final contra a vida após a morte não implica uma visão
materialista do self como fazem aqueles acima. Este argumento pode ser utilizado
por materialistas ou dualistas, por teístas, panteístas ou ateus. O argumento
é executado da mesma forma. Mesmo tendo em conta a existência de um Deus
amoroso, gentil e gracioso, a existência post-mortem pode não ser desejável; na
verdade, pode ser chata ou tediosa ou até mesmo extremamente horrível. A este
respeito Grace Jantzen (1984, p. 34-35) faz a seguinte observação:

Um paraíso de delícias sensuais se tornaria chato, seria, a longo prazo,


inútil e totalmente insatisfatório. Podemos, talvez, imaginar formas de
fazer uma longa festa significativa; nós, afinal de contas, lidamos com
longas ocasiões sociais terrestres, escolhendo interessantes parceiros
de conversação, e fazendo as ocasiões de jantar não apenas ser sobre
comida e bebida, mas também para estimular a discussão e para dar
e receber o valor da amizade que se estende para além da cessação do
jantar. Mas se a festa literalmente nunca chegar ao fim, se não houvesse
progresso possível ao prazer sensual do paraíso para qualquer coisa
mais significativa, então podemos muito bem desejar, como Elina
Macropolis, terminar todo o negócio e destruir o elixir da juventude.

Assim, a vida eterna poderia muito bem ser chata, sem sentido e
insatisfatória. O céu poderia ser o inferno.

Enquanto que Jantzen não argumenta que não há vida após a morte, ela
argumentar que a mesma não pode ser inferida a partir da afirmação de que Deus
é amor. Ela continua:

Os teólogos cristãos reconhecem cada vez mais que não é o caso de que
toda a terra, cada prímula, cada ave canora, todas as galáxias de todos
os céus, existem para o benefício da humanidade somente. No entanto, é
verdade que Deus trouxe à existência todas estas coisas e se deleita nelas;
então também é verdade que algumas das coisas nas quais Ele se deleita
perecerão para sempre [...]. Assim como o que é moralmente valioso é
valioso por seu próprio bem e não pela recompensa que ele pode trazer,
assim também confiar em Deus, se vale a pena em absoluto, vale a pena,
mesmo que não possa continuar para sempre. Um relacionamento com
outro ser humano não se torna inútil só porque em algum momento isso
vai acabar com a morte de um dos parceiros; por que se deveria pensar
que um relacionamento com Deus seria inútil se um dia ele também
deverá acabar? (JANTZEN, 1984, p. 41-43).

Então, deleites sensuais eternos não seriam apropriados para nós. Como
poderia uma vida interminável ser para que pudesse ser verdadeiramente e
335
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

eternamente agradável, algo que nós desejaríamos para sempre? Talvez não haja
nenhuma resposta. Talvez Emily Dickinson (2008, p. 59 – poema 1741) acertou ao
dizer: "Que nunca mais virá de novo; é o que faz doce a vida". Talvez até mesmo
se Deus nos deu uma alma, não há uma vida após a morte interminável, pois seria
apenas muito miserável.

Charles Taliaferro responde ao argumento de Jantzen, fazendo uma


distinção entre um bem fechado no tempo (time-enclosed good), que ele define como
"qualquer bom projeto, coisa, evento, estado ou processo que seja bom, mas que
seu bom valor não é preservado se for temporalmente ilimitado em extensão" (por
exemplo, comer uma refeição saborosa), e um bem não fechado no tempo, que
ele define como “qualquer bom projeto, evento, estado ou processo que é bom e
que seu bom valor não é perdido se for temporalmente ilimitado em extensão"
(TALIAFERRO, 1990, p. 370-371). Ele alega que para uma vida após a morte ser
verdadeiramente boa, esta não pode consistir de um bem singular fechado no
tempo. Mas não há nenhuma razão para acreditar que uma vida após a morte não
possa incluir uma variedade indefinida de bens fechados no tempo, assim como de
bens não fechados no tempo. Se Deus é onisciente e onipotente, parece que Deus
certamente poderia criar um número indefinido de tais bens. Taliaferro argumenta
ainda que, se temos razão para acreditar que Deus nos ama profundamente, então
temos razão para acreditar que Deus irá preservar nossas vidas, especialmente
desde que como pessoas nós possuímos um valor que não se esgota ao longo do
tempo.

336
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

LEITURA COMPLEMENTAR

A POSSIBILIDADE DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Alguns problemas centrais da filosofia da religião têm a vantagem,


relativamente a problemas de outras áreas da filosofia, de ser imediatamente
compreensíveis para qualquer pessoa. É fácil compreender em que consiste o
problema da existência de Deus, por exemplo: será que Deus existe? Mas pensa-
se por vezes que nunca iremos saber se Deus existe ou não, invocando-se até
Immanuel Kant (1724-1804), como se este importante filósofo tivesse descoberto
que não se pode saber se Deus existe ou não, mais ou menos como um cientista
descobre o ADN ou a composição química da água.

Ao longo da nossa escolaridade e estudo individual habituamo-nos a


compreender resultados científicos, cuja paternidade ou maternidade é atribuída
a este ou àquele cientista ou intelectual. Transferindo esta atitude para a filosofia,
encara-se Kant, ou outro filósofo, não como alguém que apresentou teorias e
argumentos que devemos analisar e discutir de maneira cuidadosa, mas antes
como uma espécie de cientista, que provou qualquer coisa mais ou menos
definitivamente. Assim, se Kant declarou que o problema da existência de Deus
é insusceptível de ser resolvido (pela razão teórica), isso é imprudentemente
considerado um resultado definitivo da filosofia, um pouco como a descoberta que
um cientista pode fazer de quantas luas tem Júpiter. O resultado desta atitude é
afastar a atenção dos problemas centrais da filosofia da religião, como a existência
de Deus. Fixa-se então a atenção sobre problemas de sociologia da religião,
história das religiões, psicologia e hermenêutica das religiões etc. sobre tudo o que
é susceptível de ser estudado empiricamente, recorrendo aos métodos aprovados
pela ciência.

Uma breve reflexão, contudo, mostra a instabilidade teórica desta posição.


Se não se pode saber que Deus existe nem que não existe, como sabemos que não
se pode saber? Será a teoria do conhecimento de Kant mais plausível do que as
posições de outros filósofos, tanto antigos como contemporâneos, que defendem
que Deus existe ou que não existe? Poderá parecer-nos que sim, sobretudo se
desconhecermos a bibliografia da área; mas tal como o desconhecimento da lei não
iliba o prevaricador, também o desconhecimento da bibliografia não fundamenta
aquele que a ignora.

Imagine-se alguém que, nomeadamente por ser um cientista, está


habituado a distinguir cuidadosamente as opiniões descuidadas que as pessoas
têm sobre biologia, por exemplo, de opiniões fundamentadas no conhecimento da
bibliografia relevante. Essa mesma pessoa pode considerar que, no que respeita
à filosofia, as coisas são diferentes, sendo desnecessário conhecer a bibliografia
relevante. Só aceitaria a ilegitimidade de ter opiniões descuidadas, que ignoram
a bibliografia, sobre filosofia da religião, epistemologia ou metafísica se nessa
bibliografia se encontrasse o gênero de resultados que se encontra na bibliografia

337
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

científica.

Contudo, esta posição assenta numa confusão. Mesmo que em filosofia


não tenhamos o gênero de resultados que temos na ciência, temos outro tipo
de resultados: alternativas teóricas sofisticadas cuidadosamente pensadas,
argumentos rigorosamente explorados, distinções e análises clarificadoras. Se
ignorarmos a bibliografia relevante, estaremos a fazer filosofia outra vez como os
primeiros filósofos faziam, repetindo-lhes os passos, o que é desavisado porque
podemos fazer melhor do que eles fizeram se partirmos das suas investigações.

Não se deve confundir progresso com resultados. O progresso cognitivo


numa área não depende exclusivamente do gênero de resultados que há nas
ciências. Podemos saber muito, e muito sofisticadamente, sobre um problema,
sem saber resolvê-lo, caso em que temos progresso sem resultados. Recusar ler
a bibliografia filosófica relevante por esta não apresentar resultados é recusar o
progresso filosófico, entretanto alcançado. Ironicamente, se todos os cientistas se
tivessem recusado a estudar a bibliografia da sua área antes de esta apresentar
resultados, nenhuns resultados teriam sido alcançados.

Há duas maneiras comuns de argumentar a favor da ideia de que o


problema filosófico da existência ou inexistência de Deus é insolúvel, pelo que
deve ser abandonado, e nenhuma é plausível. No primeiro caso, argumenta-se que
só podemos saber o que podemos saber pela experiência; dado que não podemos
saber pela experiência que Deus existe, segue-se que não podemos saber se Deus
existe. No segundo, defende-se que os argumentos a favor e contra a existência de
Deus se anulam mutuamente.

O primeiro argumento enfrenta a seguinte dificuldade: a ideia de que


só podemos conhecer o que podemos conhecer pela experiência não pode ser
conhecida ou sustentada pela experiência. Nenhuma experiência laboratorial, por
exemplo, permite determinar que só podemos conhecer o que podemos conhecer
pela experiência. Para estabelecer esta tese é necessário argumentar filosoficamente,
e uma parte importante dessa argumentação não será baseada na experiência. Por
exemplo, pode-se argumentar que todo o conhecimento implica justificação, e
que a única justificação disponível é empírica. Mas o próprio princípio de que
o conhecimento implica justificação não é algo que se conheça pela experiência,
nem pela experiência se conhece a ideia de que só há justificações empíricas, na
verdade, a experiência parece até mostrar-nos o contrário, pois os matemáticos não
recorrem à experiência para estabelecer os seus resultados, que estão entre os mais
sólidos resultados de sempre da empresa cognitiva humana.

Isto significa que a ideia de que só podemos saber o que podemos saber
pela experiência é, se não incoerente, pelo menos teoricamente instável, pois, se
for verdadeira, parece que não podemos saber que é verdadeira. Uma saída para
esta dificuldade é sublinhar, como Kant, a diferença entre saber ou conhecer algo,
por um lado, e pensar algo ou levantar conjecturas, por outro. Assim, podemos
argumentar que a nossa posição, pelos seus próprios critérios, não pode obviamente
ser conhecida, porque não pode ser conhecida pela experiência; no entanto, pode
338
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

ser pensada ou conjecturada. Um problema desta resposta é tornar aparentemente


a posição original arbitrária. Pois se a posição original pode ser conjecturada com
densidade suficiente para em função dela se recusar a possibilidade de saber
se Deus existe ou não, então também podemos conjecturar que Deus existe (ou
que não existe), apesar de reconhecermos que essa é uma mera conjectura, e não
conhecimento propriamente dito.

Quanto ao segundo argumento, enfrenta a seguinte dificuldade: para os


argumentos a favor e contra a existência de Deus se anularem mutuamente não
basta contá-los, ou apresentar objecções a cada um dos argumentos a favor ou
contra a existência de Deus, é preciso mais. Nomeadamente, duas coisas, pelo
menos: primeiro, é preciso mostrar que os argumentos a favor e contra a existência
de Deus são rigorosamente de igual força; segundo, que  quaisquer  argumentos
concebíveis contra ou a favor da existência de Deus terão sempre os seus opostos,
e de força rigorosamente igual. Ora, mostrar qualquer uma destas duas coisas é
cognitivamente mais exigente do que argumentar apenas que Deus existe ou que
não existe. Além disso, se todos os argumentos a favor e contra a existência de
Deus se anulam porque não têm base experimental, então também os argumentos
a favor dessa mesma posição se anulam perante os argumentos da posição rival,
pois também aqui não há base experimental.

Além disso, é defensável que ambos os argumentos confundem o


problema da existência de Deus com o problema de  saber  se Deus existe. A
diferença torna-se clara se pensarmos em extraterrestres. Neste caso, é óbvio que
há uma grande diferença entre saber se existem e existirem efetivamente ou não.
Podemos facilmente imaginar cenários em que os extraterrestres existem, mas, por
não quererem dar-se a conhecer ou porque, querendo, não podem fazê-lo por se
encontrarem demasiado longe de nós, não podemos saber da sua existência. Mas
da impossibilidade de saber que os extraterrestres existem não se segue que não
existem, apesar de ser verdade que se não existirem extraterrestres se segue que
não podemos saber que existem. No que respeita a Deus, mesmo que tivéssemos
razões para pensar que não podemos saber se existe, isso não constitui em si razões
para pensar nem que Deus não existe nem que a própria existência de Deus é
irrelevante. Mesmo sem saber se Deus existe, podemos querer pensar na hipótese
de que existe ou que não existe, e, caso exista, que gênero de características poderá
ou não poderá ter.

Ambos os argumentos são, pois, improcedentes, pelo menos sem


reformulações cuidadosas. Mas as ideias subjacentes a estes argumentos
desempenham o seu papel habitual: fazem parar de pensar e de investigar ainda
antes de se dar os primeiros passos.

Metafísica, epistemologia e lógica

A filosofia da religião ocupa-se de problemas metafísicos, epistemológicos


e lógicos suscitados pelas religiões. Esta é uma caracterização razoavelmente
neutra da filosofia da religião, mas para compreendê-la é necessário saber o que se

339
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

entende em filosofia por problemas metafísicos, epistemológicos e lógicos.

O problema intuitivamente óbvio da existência de Deus, por exemplo, é


metafísico. Um problema filosófico é metafísico quando diz respeito aos aspectos
mais gerais da realidade, e não quando diz respeito ao oculto ou ao misterioso,
como popularmente se pensa, nem quando diz respeito ao que não pode ser
conhecido pela experiência. A ontologia é a subdisciplina da metafísica que
procura estabelecer as categorias mais gerais da existência. Isto implica discutir
se há realmente números, por exemplo, ou proposições, ou se estas são meras
projeções mentais dos seres humanos. Num certo sentido, todos os problemas
são metafísicos, porque todos os problemas são sobre a realidade (incluindo os
problemas sobre o conhecimento da realidade, pois tal conhecimento é também
parte da realidade). Mas é óbvio que não consideramos que um físico está a fazer
metafísica ao teorizar sobre átomos, por exemplo. A razão é que consideramos que
pertencem à província da metafísica apenas aqueles problemas fundacionais sobre
a realidade que não são susceptíveis de estudo científico (ou seja, experimental ou
matemático).

Ao passo que a metafísica se ocupa de problemas fundacionais sobre


a realidade, a epistemologia ocupa-se de problemas fundacionais sobre o
conhecimento e outros fenômenos cognitivos centrais, como a crença e a fé. Por
isso, chama-se “teoria do conhecimento” à epistemologia.

Usa-se por vezes o termo “epistemologia” para falar exclusivamente de


filosofia da ciência. A generalidade dos autores não faz tal coisa, porque a filosofia
da ciência em si não trata apenas de problemas epistemológicos suscitados pelas
ciências, mas também de problemas lógicos (como o problema da indução) e
metafísicos (como o problema da existência ou inexistência de entidades científicas
postuladas, mas nunca diretamente observadas, como os quarks).

O estudo filosófico do conhecimento, da crença e da fé difere do estudo


científico, psicológico ou sociológico destes mesmos fenômenos. Em sociologia
pode-se perguntar, por exemplo, em que condições sociais determinadas teorias,
científicas, por exemplo, são vistas como verdadeiras; em psicologia pode-se
perguntar que tipo de processamento cognitivo ocorre quando se raciocina
com base na experiência, por oposição ao que ocorre quando se raciocina
matematicamente apenas; mas em epistemologia pergunta-se, por exemplo, se
sabemos o que pensamos saber, em que condições há conhecimento genuíno, o
que é afinal o conhecimento em si, o que é a fé e se esta é epistemicamente íntegra.

A lógica é uma disciplina transdisciplinar, no sentido em que usa recursos


matemáticos, linguísticos e filosóficos, e é também uma disciplina que tem
aplicações em áreas diversas, como a filosofia, a computação e a matemática. O
objeto central de estudo da lógica é a argumentação e o raciocínio, não estudando
os aspectos psicológicos, retóricos, históricos ou sociológicos da argumentação e
do raciocínio, mas antes os aspectos relevantes para a coerência da argumentação
e do raciocínio. “Central” porque a lógica acaba por se interessar pela estrutura da
linguagem, seja ou não argumentativa. Por exemplo, em lógica queremos saber se
340
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

a frase “O atual rei de França é careca” é uma expressão puramente quantificada,


como “Há cidades bonitas”, ou uma expressão denotativa, como “Asdrúbal é
bonito”.

Os argumentos e os raciocínios têm, simultaneamente, aspectos em


comum e aspectos diferentes. Tanto num caso como no outro se trata de articular
informações para delas extrair conclusões; a diferença é que num argumento se
pretende persuadir alguém, ao passo que num raciocínio estamos apenas a tentar
obter conclusões a partir de informações.

Em filosofia da religião estuda-se problemas de carácter lógico suscitados


pelas religiões; mas não se estuda o tipo de problemas que se estuda na lógica
propriamente dita. Um problema de carácter lógico não é do interesse da própria
lógica se depender fortemente de conceitos que pertencem a outras áreas que não
a lógica. É o que acontece no caso do problema do mal, em filosofia da religião.
Este é um problema de carácter lógico, no sentido em que se trata de saber se as
seguintes afirmações são consistentes entre si:

• Deus é onipotente, onisciente e sumamente bom.


• O mal gratuito existe.

Um conjunto de afirmações é consistente quando todas podem ser


simultaneamente verdadeiras. Aquilo a que em filosofia da religião se chama
“o problema do mal” é, então, o seguinte: a existência de mal gratuito parece
incompatível com um Deus que pode impedir o mal porque é onipotente, que sabe
que o mal existe e sabe como o impedir porque é onisciente, e que quer impedi-lo
porque é sumamente bom. Fala-se de mal gratuito porque alguns males não são
gratuitos, mas antes meios para bens maiores, por exemplo, o mal de sofrer as
dores de uma intervenção cirúrgica é um meio para o bem maior de ficar saudável.
Distingue-se também o mal moral do mal natural. O mal moral resulta da atividade
humana, como é o caso dos roubos ou homicídios; o mal natural não resulta da
atividade humana, como é o caso dos terremotos, das secas ou da maior parte das
doenças. Pelo menos à primeira vista, é mais difícil responder ao problema do mal
natural do que ao problema do mal moral.

O problema do mal tem um caráter lógico, porque é um problema de


consistência entre afirmações e a consistência é um conceito lógico; mas não é um
problema da lógica porque depende crucialmente de conceitos extra lógicos, como
o conceito de mal, de Deus, de onipotência, de onisciência e de suma bondade. E
cada um destes conceitos levanta igualmente problemas lógicos que são estudados
em filosofia da religião e não em lógica, tratando-se de saber se, por exemplo, é
possível articular coerentemente os conceitos de onipotência ou de onisciência.

As distinções entre problemas metafísicos, epistemológicos e lógicos


não devem ser entendidas como se fossem estanques, claras e inequívocas. Os
problemas lógicos, por exemplo, são metafísicos ou epistêmicos, dizem respeito
ao que pode ou não existir na realidade (poderá existir um ser onipotente?) ou

341
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

ao que podemos ou não concluir (será que da existência do mal gratuito se pode
concluir que Deus não existe?); e, como deveria ser evidente, todos os problemas
epistêmicos dizem respeito a um determinado aspecto da realidade: a atividade
cognitiva de agentes capazes de ter estados cognitivos sofisticados. Em todo o
caso, é importante distinguir, ao abordar um dado problema, os seus aspectos
metafísicos, epistemológicos e lógicos.

Epistemologia

Conhecimento, crença e fé são conceitos distintos. Definir rigorosamente


o conhecimento é um dos problemas em aberto da epistemologia, mas algumas
distinções cruciais podem ser dadas como razoavelmente seguras.

Quando se fala de crença em filosofia não se tem em mente apenas


a crença religiosa, caso em que esta última expressão seria um pleonasmo.
Por  crença  entende-se em filosofia qualquer representação, susceptível de ser
verdadeira ou falsa, que um agente cognitivo faz de seja o que for. As crenças
podem ser muito sofisticadas ou muitíssimo elementares: temos crenças sobre
a natureza dos átomos, mas também sobre a localização dos nossos joelhos. As
opiniões são crenças razoavelmente sofisticadas e articuladas; crianças de seis
anos, por exemplo, podem ter crenças fortes sobre o que gostam ou não de comer,
mas não têm opiniões políticas ou outras. O termo crença é usado em filosofia no
sentido em que muitos filósofos gregos usavam o termo δοξα (doxa). Já o termo fé é
usado em filosofia no sentido do termo grego πιστις (pistis) e do termo latino fides.

Podemos distinguir três tipos de conhecimento ou saber (as duas palavras
são usadas como aproximadamente sinônimas):

1. Conhecimento proposicional ou de verdades (saber que).


2. Conhecimento por contato; e
3. Saber fazer.

O conhecimento proposicional é o que temos quando “sabemos que”:


sabemos que Lisboa é uma cidade portuguesa, que Marte é um planeta deserto e
que a água é H2O. O objeto de conhecimento, neste caso, é uma verdade ou uma
proposição. (A noção de proposição será esclarecida em seguida).

O conhecimento por contato é o que temos quando sabemos algo diretamente,


ainda que não tenhamos conhecimento de verdades claramente articuladas sobre
isso: conhecemos Londres por contato quando visitamos Londres, mas só temos
conhecimento por descrição de Londres (conhecimento proposicional ou de
verdades) se nunca visitarmos a cidade, mas sabemos várias coisas sobre Londres.
Também temos conhecimento por contato de nós mesmos, apesar de muitas vezes
ser bastante difícil articular o que sabemos realmente de nós mesmos: “Quando
olho para mim, não me percebo”, escreveu Álvaro de Campos.

342
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

Finalmente, o saber fazer é o que sabemos quando sabemos fazer algo,


como andar de bicicleta, raciocinar coerentemente ou pintar um quadro. O saber
fazer, ou conhecimento como habilidade ou competência não parece reduzir-se
ao conhecimento proposicional ou de verdades, e parece marcadamente distinto
deste: podemos saber muitas coisas sobre bicicletas e não saber andar de bicicleta,
e podemos saber andar de bicicleta sabendo quase nada sobre bicicletas (também
é argumentável que se pode saber muitas coisas sobre filosofia sem saber fazer
filosofia).

O conhecimento é factivo, o que provoca por vezes confusões desnecessárias.


Quando se diz que no tempo de Ptolomeu se sabia que a Terra estava imóvel e
agora se sabe que a Terra não está imóvel, vive-se em plena confusão conceptual.
Se a Terra está imóvel, nós hoje não podemos realmente saber que se move, apenas
podemos considerar erradamente que sabemos isso. E se a Terra sempre se moveu,
ninguém pôde algum dia saber que estava imóvel, apesar de muitas pessoas
poderem ter tido essa crença falsa.

O conceito de fatividade não é exclusivamente filosófico: é também


linguístico, dizendo respeito ao tipo de pressuposições associadas a certos
termos e às suas regras de funcionamento. As definições rigorosas de fatividade,
infatividade e contrafatividade são as seguintes, sendo x uma pessoa qualquer, V
um verbo e p uma afirmação ou proposição:

• Um verbo V é factivo se, e só se, “x V que p” implica p.


• Um verbo V é infactivo (ou não factivo) se, e só se, “x V que p” não implica p.
• Um verbo V é contrafactivo se, e só se, “x V que p” implica a negação de p.

Por exemplo, o verbo  ver é factivo porque se o Asdrúbal vê que está a


chover, então está a chover. Claro que o Asdrúbal pode acreditar erradamente que
está a ver chover quando na realidade está a sonhar ou a ter uma alucinação ou a
confundir a água de rega com chuva, mas em nenhum desses casos está realmente
a ver que está a chover. O mesmo acontece com o conhecimento: Asdrúbal só pode
saber que há vida em Marte se houver vida em Marte; se não houver vida em
Marte, pode acreditar muito firmemente que há vida em Marte, mas não pode
saber tal coisa.

Ao contrário do conhecimento, a crença não é factiva, mas também


não é contrafactiva, pois tanto podemos ter crenças verdadeiras como falsas.
Não são somente os verbos que são factivos: advérbios, adjetivos e quaisquer
modificadores ou operadores podem ser ou não factivos. Pseudo- é contrafactivo
porque, se Asdrúbal for um pseudopintor, não é um pintor. Fingir é aparentemente
contrafactivo, mas de fato é apenas infactivo, pois uma pessoa pode estar a fingir
que é rica acreditando que é pobre quando, sem o saber, lhe saiu ontem a loteria.

Em suma, ao passo que a crença não é factiva, o conhecimento é factivo.


Insistir na fatividade do conhecimento por oposição à infatividade da crença
pode parecer um exagero de exatidão, mas trata-se apenas de rigor conceptual

343
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

elementar. Tal como em física a massa não é esparguete, e a nenhuma pessoa


culta ocorre tratar esse conceito como se fosse tal coisa, também o conceito de
conhecimento é factivo e é escusado insistir que é possível saber que a Terra está
imóvel não estando a Terra imóvel.

Não adianta também argumentar que há um conceito de conhecimento


que não é factivo, diferente do conceito filosófico, sendo esse o conceito que as
pessoas sem formação filosófica adequada usam, pois seria como argumentar que
na verdade há um conceito de massa, diferente do conceito físico, sendo esse o
conceito que as pessoas que não sabem física usam quando falam de pedras a
cair e de carros em movimento. Com certeza que tanto num caso como no outro
esses conceitos populares são usados pelas pessoas, mas se estamos realmente
interessados em estudar o conhecimento ou a massa, temos de abandonar essas
noções, que só produzem confusão.

Todo o conhecimento proposicional, assim como a crença, é uma relação


entre uma pessoa que conhece e uma proposição ou verdade conhecida. Portanto,
quando não havia pessoas ou outros agentes cognitivos, não podia haver
conhecimento proposicional, ainda que existissem árvores e pedras e planetas e
átomos disponíveis para serem conhecidos caso existissem agentes cognitivos. E
é também óbvio que sem agentes cognitivos não havia conhecimento por contato
nem saber fazer.

Por  proposição  entende-se geralmente o que é expresso por uma frase


verdadeira ou falsa. A frase “Está calor” exprime a proposição de que está calor
em Ouro Preto no dia 1º de Março de 2009, mas exprime outra proposição se for
proferida noutro dia ou noutro local. Portanto, a mesma frase pode exprimir
diferentes proposições. E diferentes frases podem exprimir a mesma proposição:
“A neve é branca” e “Snow is white” exprimem ambas a proposição de que a neve
é branca.

As frases são inequivocamente entidades espaço-temporais, um certo


conjunto de sons articulados num dado intervalo de tempo ou um certo conjunto
de traços inscritos num papel. Mas as proposições não são inequivocamente
entidades espaço-temporais. Isso porque as proposições não se confundem com
os pensamentos, no sentido psicológico do termo, enquanto ocorrências físicas
num cérebro. Quando penso que está a chover e outra pessoa pensa o mesmo,
o meu pensamento enquanto ocorrência física no meu cérebro é diferente do
pensamento dela enquanto ocorrência física no seu cérebro; mas ambos estamos
a pensar, num certo sentido, o mesmo pensamento, ou seja, estamos a pensar na
mesma proposição. A existência de proposições não é pacífica: alguns filósofos
consideram que não existem tais coisas, sendo forçados então a explicar o que há
de comum entre várias frases ou pensamentos que exprimem o mesmo (a via mais
óbvia é insistir que tudo o que há de comum nas várias frases e pensamentos que
dizem que a neve é branca é representarem a neve como branca).

Que há pelo menos três tipos centrais de conhecimento (proposicional,


por contato e saber fazer), que o conhecimento é factivo e a crença não, e que o
344
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

conhecimento e a crença proposicionais são relações entre pessoas e proposições


são aspectos elementares dos conceitos de conhecimento e de crença. Contudo, é
muito difícil saber precisamente o que é o conhecimento, com o mesmo tipo de
precisão com que sabemos o que é a massa em física. O problema da definição
de conhecimento é muitíssimo difícil, precisamente por se tratar de um conceito
muito básico. Apesar disso, é comum aceitar que há três condições necessárias
para o conhecimento proposicional, ainda que não sejam suficientes: para que algo
seja conhecimento proposicional é preciso que seja 1) uma crença, 2) verdadeira 3)
e justificada.

Efetivamente, se concebemos a crença como qualquer representação,


susceptível de ser verdadeira ou falsa, que uma pessoa faz da realidade, certamente
que todo o conhecimento proposicional é uma crença, porque é uma representação
da realidade: saber que Londres é uma cidade é uma representação da realidade.
E dado que o conhecimento é factivo, segue-se que só podemos saber algo se
isso for verdade. Esta segunda condição separa o conhecimento da crença, pois
podemos evidentemente ter crenças falsas. A terceira condição, a justificação, é a
mais problemática e, ao mesmo tempo, a mais frutuosa filosoficamente.

Para haver conhecimento não basta haver crença verdadeira, porque


podemos ter crenças verdadeiras por sorte, e certamente que isso não é conhecimento.
Por exemplo, imagine-se que tenho a crença de que são 16h55min porque olhei
para o relógio, e imagine-se que realmente sejam 16h55min. Acontece que, sem eu
saber, o meu relógio avariou-se e está parado, mas, por coincidência, olhei para
ele quando era 16h55min. Não parece razoável dizer que sei que são 16h55min
horas, apesar de ter essa crença e de isso ser verdade, não parece razoável, porque
a minha justificação para essa crença não é adequada. Não é adequada porque não
é fidedigna: a mesmíssima justificação exatamente produziria uma crença falsa,
apenas meia hora antes ou depois, e não uma crença verdadeira. Assim, apesar de
ser razoável pensar que todo o conhecimento é uma crença verdadeira justificada,
parece razoável que nem toda a crença verdadeira justificada seja conhecimento.

A noção de justificação é crucial para o conhecimento. Para um agente


saber realmente algo tem de ter uma crença verdadeira adequadamente justificada
sobre isso. Saber exatamente o que distingue uma justificação adequada de uma
justificação inadequada é um problema filosófico em aberto, como tantos outros.
Contudo, podemos avançar na compreensão da justificação sem nos embrenharmos
nos seus aspectos mais complexos. Uma alternativa que poderemos querer evitar
é conceber a justificação de um modo tão forte que implique a verdade, excluindo
por isso a possibilidade de se ter uma justificação adequada a favor de uma crença
falsa.

Um exemplo ilustrativo do que está em causa é o seguinte: Cláudio Ptolomeu


(100-170 d.C.) tinha a crença de que a Terra estava imóvel, girando todo o restante
do universo em seu torno. Imagine-se, contudo, que Ptolomeu não tinha essa
crença por ser cognitivamente preguiçoso, preconceituoso ou hipócrita: formou
essa crença cuidadosamente, analisando dados e fazendo observações. Se isto for
verdade, então é razoável afirmar que Ptolomeu tinha uma justificação adequada
345
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

para a sua crença, que, contudo, era falsa. Ptolomeu teve azar epistêmico: estava
numa situação epistêmica em que não podia saber que a sua crença era falsa e que
os dados em que se apoiava eram enganadores. O mesmo acontece a um detetive,
por exemplo, que investiga um crime: pode ficar convencido de que o criminoso
foi o Vilaça, não por preguiça, preconceito ou hipocrisia, mas por azar epistêmico:
todas as pistas apontam, por azar, para o Vilaça, mas não foi ele realmente o
criminoso.

Assim, seja qual for a nossa noção sofisticada de justificação, é defensável


que tem de permitir casos em que um agente tem justificação para acreditar em
falsidades. Daí que ter uma crença justificada seja defensavelmente uma condição
necessária para saber algo, mas não suficiente. Se aceitarmos um conceito de
justificação que permita a existência de crenças falsas justificadas, como parece
plausível, é natural passar a dar atenção aos procedimentos epistêmicos e até
ao caráter epistêmico da própria pessoa. Repensemos nos exemplos acima de
Ptolomeu e do detetive: não estaremos dispostos a dizer que as suas crenças estão
justificadas se as formaram ao acaso, sem darem atenção aos indícios disponíveis,
por preguiça ou preconceito, ou cometendo erros grosseiros de raciocínio ou de
análise dos indícios disponíveis. Na verdade, nesse caso, diremos até que as suas
crenças não tinham justificação, mesmo que fossem verdadeiras. Assim, o conceito
de virtude epistêmica torna-se rapidamente central em epistemologia.

Uma perspectiva inicialmente plausível é defender que uma crença está


justificada, ainda que seja falsa, desde que quem tem essa crença tenha sido
epistemicamente virtuoso, ao invés de ser preconceituoso, tendencioso, preguiçoso
ou pura e simplesmente falho de raciocínio. Nesta perspectiva, a justificação
adequada não é primariamente uma propriedade das crenças, mas antes das
atitudes epistêmicas das pessoas; só derivadamente a justificação adequada é uma
propriedade das crenças. Esta abordagem deu origem à chamada epistemologia
das virtudes, que ao analisar o problema central da justificação epistêmica põe
a ênfase no carácter epistemicamente virtuoso ou não das pessoas, e não nas
propriedades intrínsecas da justificação.

Uma vantagem desta abordagem é o seu particularismo. Dada a complexidade


da realidade, é argumentável que não é possível estabelecer condições gerais,
aplicáveis a qualquer caso, do que constitui ou não uma justificação adequada.
Aristóteles (384-322 a.C.) considerava que não poderíamos ter uma teoria moral
que nos dissesse, por si, o que é correto fazer em cada caso, sendo antes importante
esclarecer o que é uma pessoa virtuosa; a ação correta é então o que, em cada caso,
a pessoa virtuosa decide fazer. A epistemologia das virtudes pode ser entendida
do mesmo modo: em vez de tentarmos em vão estabelecer condições necessárias
e suficientes do que constitui uma justificação adequada, tentaremos estabelecer
algumas virtudes epistêmicas; compete depois à pessoa epistemicamente virtuosa
dizer-nos, em cada caso, que procedimentos investigativos devemos adaptar, em
função do contexto e do que estamos a tentar descobrir.

A justificação e a racionalidade são conceitos sutilmente relacionados,


apesar de diferentes. Ter uma crença injustificada, à qual nos apegamos firmemente,
346
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

rejeitando que seja posta em causa, é ser irracional; e justificar cuidadosamente as


nossas crenças, estando dispostos a revê-las e a abandoná-las, é parte integrante do
que é ser racional.

Finalmente, note-se que qualquer concepção excessivamente restritiva


da justificação é implausível, porque tornaria a maior parte das nossas crenças
injustificadas. Caso se considerasse que só é racional o agente que souber justificar
cientificamente todas as suas crenças, seriam irracionais quase todas as crenças
das pessoas, incluindo as crenças científicas dos cientistas. Isto porque ninguém
dispõe do tempo nem das energias nem das competências para analisar e testar
cientificamente todas as suas crenças. A maior parte das pessoas tem a crença de
que a água é H2O, que Marte é um planeta desértico ou que ocorreu a segunda
guerra mundial, sem ter justificações adequadas para estas crenças, na maior parte
dos casos, limitamo-nos a aceitar o testemunho de outras pessoas, nomeadamente
os cientistas. Uma maneira errada de acusar os crentes religiosos de albergarem
crenças irracionais é argumentar que são incapazes de justificar as suas crenças
religiosas, pois, nesse caso, todas as pessoas seriam irracionais porque são
incapazes de justificar as suas crenças químicas, físicas, astronômicas, históricas
ou até quotidianas. E se o testemunho dos cientistas é suficiente para justificar
crenças, o testemunho dos livros sagrados e dos profetas também o será, a menos
que encontremos diferenças relevantes.

Uma análise da fé

O que é exatamente a fé? Mesmo que não possamos responder a esta


pergunta apresentando condições necessárias e suficientes, é iluminante ter pelo
menos uma caracterização razoavelmente precisa da fé. Sem essa compreensão, a
análise da epistemologia da fé poderá ser desadequada, exigindo-lhe, por exemplo,
padrões epistemológicos desadequados à sua natureza.

Há pelo menos duas concepções cruciais de fé: a objetal e a fenomenológica.


A objetal é a ideia de que a fé é apenas uma crença fenomenologicamente como
as outras, cuja diferença reside exclusivamente no seu objeto. A crença de que
ontem foi domingo, por exemplo, só diferiria da fé numa divindade porque a
primeira tem por objeto uma banalidade e a segunda uma divindade. A concepção
fenomenológica é a ideia de que a fé é uma crença diferente das outras não apenas
por ter um objeto diferente, mas também por envolver atitudes diferentes por
parte da pessoa. Segundo esta concepção, a fé numa dada divindade é diferente da
crença de que ontem foi domingo não apenas por ter uma divindade por objeto,
mas por envolver reverência, testemunho, entrega, mistério e outras atitudes
próprias da fé. Exploremos cada uma destas concepções.

Se a concepção objetal de fé for verdadeira, ter fé em Deus é como ter


outra crença qualquer: esta crença estará justificada ou não do mesmo modo que
qualquer outra crença. Se houver razões para pensar que é irracional acreditar em
algo sem provas, será irracional ter fé em deuses sem provas.

347
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Há dois argumentos centrais contra a concepção objetal de fé. Em primeiro


lugar, não parece fazer jus à experiência da fé que os crentes religiosos efetivamente
têm, e que a concepção fenomenológica destaca. A fé não parece ser para quem
tem uma crença como qualquer outra, mesmo que a comparemos com crenças
muitíssimo importantes e valiosas, como a crença de que os nossos filhos nos
amam. Além de mais intensa, parece mais valiosa.

Em resposta a esta objecção podemos argumentar que as diferenças entre a


fé e as outras crenças resultam precisamente da natureza do objeto da crença. Sendo
a fé uma crença que tem por objeto divindades, é natural que, por isso mesmo, as
atitudes associadas à fé sejam adequadamente diferentes das atitudes associadas
a qualquer outro tipo de crença. Mas as atitudes associadas a uma crença não são
constitutivas dessa crença.

A segunda objeção é mais promissora: se a fé fosse como qualquer outra


crença, teria de ser possível uma pessoa ter fé na existência de uma divindade
depois de saber que essa divindade existe. Na verdade, depois de uma pessoa
reconhecer que uma divindade existe, teria de lhe ser  impossível  não ter fé na
sua existência, tal como é defensavelmente impossível que não acreditemos que a
neve é branca quando sabemos que a neve é branca. Contudo, parece implausível
defender sequer que é possível ter fé que uma divindade existe depois de sabermos
que existe, e mais implausível ainda defender que saber que uma divindade existe
implica ter fé nessa divindade. Isto porque a fé é o gênero de atitude que se tem
perante o que se desconhece: antes de uma intervenção cirúrgica delicada, uma
pessoa pode ter fé de que tudo irá correr bem, mas não pode ter fé de que tudo
correu bem depois de tudo ter corrido bem. No entanto, há efetivamente um
sentido em que se pode ter fé no que se conhece, no sentido de se ter confiança
nisso.

Assim, podemos rejeitar a objeção acima distinguindo dois sentidos de fé: a


fé como crença proposicional e a fé como confiança. Há um sentido no qual não só
temos fé em alguém ou algo mesmo sabendo que isso existe como só é racional ter
fé nesse alguém ou algo se acreditarmos que existe. Por exemplo, uma pessoa só
pode ter fé no amor dos seus filhos se acreditar que tem filhos. Fé, neste contexto,
quer dizer confiança: ter fé em alguém ou em algo é confiar nessa pessoa ou nesse
algo. Nesta acepção, todos temos fé diariamente em muitas coisas, na gravidade,
por exemplo, no poder nutritivo do que comemos e na medicina, porque todos
confiamos nessas coisas. Mas é possível ter fé no sentido da crença proposicional
sem ter fé no sentido da confiança: uma pessoa pode saber que o primeiro-ministro
existe, mas não confiar nele. Na Bíblia afirma-se: “Tu crês que há um só Deus?
Fazes bem. Também o creem os demônios, mas enchem-se de terror” (Tiago, 2:19),
o que poderá significar que os demônios acreditam que Deus existe, mas não
confiam nele.

A componente da confiança é sem dúvida uma das mais importantes da


fé. Mas a perspectiva objetal sobre a natureza da fé não se lhe adequa muito bem,
pois, nessa perspectiva, só o objeto da fé a distingue de outras crenças, e não as
atitudes do agente. Ora, a confiança é precisamente uma atitude particular que
348
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

podemos ter perante objetos diferentes. E ainda que objetos diferentes possam
alterar a fenomenologia da confiança, é argumentável que há algo de comum
a todas ou, pelo menos, à maioria das atitudes de confiança; seria esse aspecto
fenomenológico da confiança que a caracterizaria, e não o objeto da confiança.
Em conclusão, tentar defender a perspectiva objetal da fé socorrendo-se de uma
acepção de fé que a aproxima da confiança tem um efeito contrário ao pretendido,
pois conduz-nos à perspectiva fenomenológica da natureza da fé.

Acresce que apesar de a confiança ser um componente importante da fé, não


é nem poderia ser a única. Parece impossível ou irracional ter confiança em algo e
não acreditar pelo menos na possibilidade de isso existir. Podemos, evidentemente,
ter confiança em algo que não sabemos se existe, mas gostaríamos que existisse,
pois nesse caso a nossa confiança é condicional. Por exemplo, um náufrago pode
não saber se o desaparecimento do seu veleiro foi registado, mas ter a esperança que
o tenha sido e confiar que, nesse caso, os serviços de emergência náutica acabarão
por salvá-lo. Mas é impossível ou irracional o náufrago confiar que os serviços de
emergência náutica acabarão por salvá-lo se souber que o desaparecimento do seu
veleiro não foi registado. Ou seja, a confiança parece envolver uma componente
proposicional, pelo menos quando não estamos em contato com o objeto da
confiança e quando não se trata de um saber fazer. Logo, ainda que a confiança
seja uma componente importante da fé, é defensável que tem de haver nesta uma
componente proposicional: quem tem fé numa dada divindade tem de acreditar
que essa divindade existe ou, pelo menos, desejar que exista ou ter esperança que
exista, e em qualquer destes casos estamos perante atitudes proposicionais. Esta é
a designação que se dá a qualquer atitude que tenha por objeto uma proposição:
recear que esteja a chover, ter medo de perder o comboio ou ter a esperança de
chegar a horas são atitudes que têm como objeto, respectivamente, as proposições
expressas pelas frases “Está a chover”, “Vou perder o comboio” e “Chegarei a
horas”.

É ilusório pensar que a perspectiva objetal da fé fica vindicada se admitirmos


que a fé tem, necessariamente, um componente proposicional. Na verdade,
a perspectiva fenomenológica de fé não está comprometida com a exclusão da
componente proposicional da fé: limita-se a sustentar que não é apenas a diferença
de objeto que caracteriza a fé, mas também e, sobretudo, a atitude do agente. Nada
na concepção fenomenológica de fé a impede de aceitar que a atitude do agente é
uma atitude proposicional.

A concepção fenomenológica de fé

Passemos então à análise da concepção fenomenológica de fé. Deste ponto


de vista, a fé não é como qualquer outra crença, diferindo apenas quanto ao objeto;
ao invés, além da diferença de objeto, envolve aspectos que as outras crenças
não envolvem. Um desses aspectos é a força da convicção: a fé exibe a força da
convicção do conhecimento, apesar de não ser conhecimento (ou, pelo menos, não
é como os outros conhecimentos comuns, como o conhecimento de que a água
é H2O, por exemplo; exploraremos já em seguida a ideia de que a fé é um tipo

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UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

especial de conhecimento). E por não ser conhecimento, a fé é, nesse aspecto, como


a mera crença. Portanto, deste ponto de vista, a fé é como o conhecimento num
aspecto e como a mera crença noutro. Assim, a fé não é apenas uma crença que
tem por objeto um certo tipo de entidades: é uma crença que tem características
próprias, que a distinguem de muitas outras crenças, ou mesmo de todas.

Comparar a força da convicção da fé com a força da convicção associada


ao conhecimento é esclarecedor. Efetivamente, quando sabemos algo, temos
uma forte adesão psicológica ao conteúdo do nosso conhecimento, bastante mais
forte do que quando temos uma mera crença, ainda que parcialmente justificada.
Quando acredito meramente que a Joana está na praia porque me disseram, a força
da minha convicção é muitíssimo menor do que quando sei que ela está lá porque
acabei de vê-la.

Contudo, será a fé como o conhecimento em todos os aspectos, caso em que


a fé seria conhecimento? Podemos defender que a fé é conhecimento, mas um tipo
diferente de conhecimento, ou defender que a fé não é conhecimento, apesar de ser
fenomenologicamente como o conhecimento no que respeita a força da convicção.

A primeira coisa a fazer quando se defende que a fé é conhecimento é


esclarecer de que gênero de conhecimento se trata: proposicional, saber fazer ou
por contato. Defender que a fé é conhecimento proposicional implica defender que
só há fé quando há justificação, pois só há conhecimento proposicional quando há
justificação. No caso da fé, a justificação seria a revelação: a ideia de que Deus se deu
a conhecer a algumas pessoas especiais, que depois transmitiram por testemunho
essa ocorrência. Um argumento contra esta perspectiva é que, se fosse verdadeira,
quase nenhuma pessoa religiosa teria de fato fé, só a teriam aqueles teólogos e
filósofos que sabem justificar adequadamente a sua crença numa divindade. A
maior parte das pessoas que acredita no Deus cristão, por exemplo, pouco ou nada
sabem sobre os supostos testemunhos da revelação que sustentariam a sua fé.
Como isto é implausível, a perspectiva seria falsa.

Este argumento, contudo, não é convincente, pois ignora uma diferença


entre haver justificação e o agente do conhecimento ou da crença em causa conseguir
articular essa justificação. Por exemplo, uma criança forma a crença de que tem
uma maçã em cima da mesa ao vê-la lá; a justificação da sua crença é muitíssimo
mais sofisticada do que o mero “Vi-a lá” que ela é capaz de articular, pois envolve
coisas como condições normais de luz e o funcionamento correto do seu aparato
visual e cognitivo. Parece excessivo exigir que um agente tenha de conseguir
articular uma justificação adequada das suas crenças para estas poderem constituir
conhecimento proposicional, dado que, na sua maior parte, as pessoas têm grande
dificuldade em fazer tal coisa. (Contudo, podemos insistir que as pessoas quase
nada sabem, na sua maior parte, vivendo apenas com base em meras crenças).
Uma alternativa é então aceitar que um agente tem conhecimento proposicional
desde que tenha uma crença verdadeira que se pode justificar adequadamente,
ainda que ele mesmo não o saiba fazer ou não o tenha efetivamente feito. Chama-
se externismo a esta posição sobre a justificação, e internismo à posição oposta.

350
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

Aplicando esta distinção à fé, poder-se-ia então insistir que as pessoas só


podem ter realmente fé numa divindade caso seja possível justificar tal crença,
ainda que elas mesmas sejam incapazes de fazê-lo. Ter fé numa divindade
seria, assim, análogo a muitas outras crenças que somos incapazes de justificar
adequadamente, mas que pensamos que outros seres humanos sabem justificar
adequadamente. Por exemplo, na sua maior parte, as pessoas são incapazes de
justificar adequadamente a crença na cosmologia do Big Bang, pois não têm os
conhecimentos nem os recursos necessários para justificar esta teoria: limitam-se,
por isso, a transferir para os especialistas relevantes à tarefa da justificação.

Esta perspectiva implica que, caso não exista justificação adequada para
crer numa divindade, ninguém teve jamais fé nessa divindade, apesar de ter
pensado que a tinha. Note-se que isto é compatível com a diversidade de religiões
e de divindades; pois apesar de as diversas divindades que são objeto de fé
em diferentes religiões serem incompossíveis (ou seja, não são conjuntamente
possíveis: não podem existir todas simultaneamente), é perfeitamente possível
que existam justificações adequadas para as crenças religiosas nessas divindades.
Recorde-se que podemos defender que a justificação não é factiva, o que significa
que diferentes pessoas em diferentes contextos epistêmicos podem ter justificação
adequada para crer em divindades diferentes e incompossíveis.

Contudo, a perspectiva que estamos a explorar não defende apenas que só


há fé quando há justificação: defende também que a fé é factiva, pois defende que a
fé é conhecimento, ou um tipo de conhecimento. E é isto que torna esta concepção
implausível, pois significaria que caso a única divindade que realmente existe
seja Diana, por mais genuína que fosse a fé dos antigos egípcios no deus Rá, por
exemplo, ou dos atuais cristãos em Deus, nenhuma dessas pessoas tinha realmente
fé, apenas acreditava erradamente que a tinha. Isto parece excessivo: quem tem
fé numa divindade que, sem ela o saber, não existe, não parece ter uma fé menos
genuína do que quem tem fé numa divindade que realmente existe. Assim, a fé, ao
contrário do conhecimento, não parece factiva.

Uma saída para esta dificuldade seria sustentar que a fé é um tipo diferente
de conhecimento, que não envolve factividade. Mas isto seria presumivelmente
um mero jogo de palavras, dado que conhecimento infactivo não é conhecimento,
em qualquer acepção relevante do termo: é mera crença (que pode até estar
justificada).

Dado que tanto o conhecimento proposicional como o conhecimento por


contato são factivos, o mesmo argumento se aplica para refutar a ideia de que a fé
poderia ser conhecimento por contato: aceitar que a fé é conhecimento por contato
implica a tese implausível de que a maior parte da humanidade ao longo da maior
parte da história não teve realmente fé, apesar de pensar que a tinha.

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UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Testemunho e risco epistêmico

Note-se, contudo, que há pelo menos um aspecto crucial que o conhecimento


por contato partilha com a fé. No conhecimento por contato não há apenas uma
forte convicção acompanhada muitas vezes de uma incapacidade para articular
uma justificação adequada, isto também acontece no conhecimento proposicional.
Um traço central do conhecimento por contato que o distingue do proposicional é
o aspecto pessoal, subjetivo ou testemunhal: quando conhecemos algo por contato
não se trata apenas de sermos muitas vezes incapazes de articular uma justificação
adequada desse conhecimento; há aparentemente um aspecto fenomenológico
irredutível a qualquer justificação cuidadosamente articulada.

Este aspecto do conhecimento por contato envolve o que se chama qualia: a


qualidade interna da experiência. É este aspecto do conhecimento por contato que
está em causa nos famosos artigos “Como é Ser um Morcego?”, de Thomas Nagel,
e “O que Mary Não Sabia”, de Frank Jackson.

No primeiro caso, Nagel faz notar que temos muito conhecimento


proposicional sobre a ecolocalização usada pelos morcegos, e usamo-la também
em navios, recorrendo a radares: um sinal sonoro é enviado e o tempo decorrido
entre o seu envio e o eco devolvido permite determinar a distância e parcialmente
a forma do que se encontra na direção relevante. Contudo, argumenta Nagel, num
certo sentido não podemos saber como é percepcionar objetos dessa maneira, não
sabemos como é a experiência interna da ecolocalização: não sabemos como é ser
um morcego.

No exemplo de Jackson, imagina-se uma neurocientista da cor, a Maria,


que tem um conhecimento proposicional exaustivo do mecanismo da visão de
cores que ocorre nos seres humanos. Contudo, nunca viu cores porque viveu
sempre num quarto a preto e branco. (Será também preciso imaginar que tinha
uma doença da pele que a tornava completamente branca, que o seu cabelo era
completamente preto, que não podia ficar menstruada, porque nesse caso veria
a cor do seu sangue etc., o que torna tudo isto uma fantasia filosófica, mas que
serve corretamente aos seus propósitos.) Um dia, a Maria pôde finalmente sair
do seu quarto e viu uma rosa vermelha ou um pôr do sol radioso. Apesar de ter
um conhecimento proposicional exaustivo do processamento visual e cognitivo
das cores, havia algo que a Maria não sabia, pois parece óbvio que há algo que ela
aprendeu quando viu a rosa ou o pôr do sol. O conhecimento que não tinha era o
conhecimento por contato, o conhecimento íntimo, subjetivo ou testemunhal do
que é ver cores.

Este aspecto testemunhal do conhecimento por contato parece crucial na


fenomenologia da fé. Ter fé numa divindade é talvez mais do que ter uma convicção
forte na sua existência: é ter como que um contato íntimo com essa divindade; é ter
uma experiência defensavelmente irredutível a todo o conhecimento proposicional.
Contudo, levar a sério a ideia de que a fé é conhecimento por contato implica, uma
vez mais porque o conhecimento é factivo, que a maior parte da humanidade ao
longo da maior parte da história não teve experiência da fé genuína, mas apenas
352
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

a ilusão de que a teve, dado que as muitas divindades que foram objeto de fé ao
longo da história humana são incompossíveis.

Não é, pois, plausível que a fé seja conhecimento proposicional nem por


contato. Contudo, é inegável que há algo na fenomenologia da fé irredutível às
crenças proposicionais, pelo simples fato de que toda a atitude proposicional tem
uma fenomenologia própria, irredutível às crenças proposicionais. Por exemplo,
ter medo de dragões tem uma fenomenologia própria, diferente de ter a esperança
de haver dragões, que não depende do objeto, mas sim da própria atitude. Assim,
ter fé terá sem dúvida uma fenomenologia distinta, mas não implica de modo
algum que tenha de existir a divindade que é objeto da fé. A impressão subjetiva
do conhecimento por contato, testemunhal e subjetivo que se associa à fé pode
ser independente da existência da divindade que é objeto da fé em causa: pode
ser uma peculiaridade da atitude. A peculiaridade da fé, uma vez mais, é não ser
fenomenologicamente como uma mera crença, como as muitas crenças que temos
e a que não damos muita importância: a fé é uma crença considerada e sentida
como muitíssimo importante pelos crentes.

Uma objeção imaginativa a esta última ideia insiste que, apesar de


historicamente a fé ter sido considerada e sentida como muitíssimo importante
pelos crentes, poderia não o ser. Podemos imaginar pessoas que têm fé numa
divindade menor, digamos, com poucos poderes ou com poderes limitados, e que
intervém apenas em trivialidades do quotidiano, como nunca deixar uma pessoa
esquecer-se de fechar a tampa do vaso sanitário, por exemplo. Estas pessoas teriam
uma fé banal, digamos, neste tipo de divindade menor, precisamente por ser uma
divindade menor. Esta objeção insiste na conexão entre o objeto da fé e a atitude
do crente: a ideia é que a atitude de extrema importância associada à fé resulta da
natureza da divindade que é objeto da fé.

A resposta a esta objeção é a seguinte: do mesmo modo que ter medo de


escorregar quando neva é diferente de ter medo quando um leão corre na nossa
direção, porque os objetos do medo são diferentes, persistindo, todavia, algo
em comum (caso contrário não seria medo), também a fé será inevitavelmente
influenciada pela natureza do objeto da fé. Quem tiver fé numa divindade menor,
terá presumivelmente uma fé diferente de quem tiver fé numa divindade onipotente,
mas algo em comum terá de haver em ambos os casos para que sejam ambos fé.
E apesar de ser evidentemente possível imaginar cenários em que já duvidamos
se estamos perante fé ou perante uma mera crença banal e quotidiana, o objetivo
da nossa investigação é a fé que de fato as pessoas têm, e não a que conseguimos
imaginar, mas que depois nem sabemos bem se é ainda fé ou outra atitude. Ora,
nas manifestações conhecidas de fé, esta não é uma crença banal, como as outras
crenças quotidianas; é uma crença a que o próprio crente dá extrema importância.

Afastadas as hipóteses de que a fé seja conhecimento proposicional ou


conhecimento por contato, resta ver se poderá ser um saber fazer. Esta ideia
também não é plausível, pois saber fazer algo, como andar de bicicleta, envolve
uma atividade, mas não necessariamente uma atitude, ao passo que ter fé numa
divindade envolve necessariamente um tipo de atitude, mas pode ou não envolver
353
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

uma atividade. É certamente verdade que os crentes religiosos consideram que o


seu modo de vida é profundamente afetado pela sua fé, mas não parece verdade
que esse modo de vida constitua a fé. Uma vida dedicada à bondade e a aliviar
o sofrimento alheio pode coincidir exteriormente com uma vida religiosa; mas
muitos ateus escolhem esse gênero de vida, sem terem, portanto, qualquer atitude
análoga à atitude de uma pessoa de fé. Por outro lado, mesmo que todas as pessoas
de fé desenvolvam um tipo de atividades, estas parecem consequência da sua fé,
não constituindo a fé em si.

Podemos então concluir preliminarmente que a fé não é conhecimento,


nomeadamente porque a fé é infactiva e o conhecimento é factivo. Mas
esta não é a única razão. Mesmo que a fé implicasse conhecimento, nunca
poderia  ser  conhecimento, constitutivamente, dada a diferença entre as
fenomenologias da fé e do conhecimento. Vimos que a fé se assemelha ao
conhecimento proposicional por envolver uma forte convicção, e que se assemelha
ao conhecimento por contato por envolver um aspecto testemunhal. Mas noutros
aspectos a fé é profundamente diferente desses tipos de conhecimento.

Para ver por que, considere-se o que aconteceria se uma divindade se


manifestasse inequivocamente junto dos seres humanos. Alguns ateus, perante
tal manifestação, passariam evidentemente a acreditar que essa divindade existe,
precisamente porque passariam a saber que existe. Mas teriam fé? Poderiam ganhar
fé no sentido de terem confiança na divindade, se soubessem que essa divindade
estaria a zelar por eles, sendo sumamente boa e sumamente poderosa. Contudo,
alguns aspectos que parecem constitutivos da fenomenologia da fé poderiam não
se manifestar, tornando implausível afirmar que esses ateus passaram a ter fé. Os
sentimentos de reverência, ligação profunda, êxtase e mistério que parecem estar
associados à fé poderiam perfeitamente estar ausentes das atitudes epistêmicas
desses ateus relativamente a essa divindade. Parece, por isso, conceptualmente
possível saber que uma divindade existe sem ter fé na sua existência (mesmo que
nela se tenha fé, no mero sentido da confiança).

Søren Kierkegaard (1813-1855) foi um dos filósofos que mais claramente


sublinhou este aspecto da fé, que a torna incompatível com o conhecimento e,
por isso, com as provas, argumentos ou justificações. Este aspecto da fé parece
corresponder à desvalorização, por parte de alguns crentes, dos intrincados
argumentos filosóficos a favor e contra a existência de Deus. Talvez isso ocorra por
considerarem, como Kierkegaard, que a fé é precisamente o gênero de confiança
ou convicção profunda que se tem numa divindade quando não temos provas da
sua existência: “Em nome de quem se procura a prova? A fé não precisa dela. Sim,
tem de encará-la como inimiga. Mas quando a fé começa a ter vergonha, como
uma rapariga para quem o amor deixa de ser suficiente, que secretamente tem
vergonha do seu namorado e tem por isso de confirmar junto de outros que ele
é realmente notável, quando a fé vacila e começa a perder a sua paixão, então a
prova torna-se necessária para parecer respeitável da perspectiva do descrente.
“[…] Sem risco não há fé. A fé é precisamente a contradição entre a paixão infinita
da interioridade e a incerteza objetiva. Se posso compreender Deus objetivamente,
não acredito; mas porque não posso conhecer Deus objetivamente, tenho de ter
354
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

fé; e se for firme na fé, tenho de estar constantemente determinado a agarrar-me à


incerteza objetiva, para permanecer sobre as profundezas do oceano, sobre setenta
mil braças de água, e continuar a acreditar”. Søren Kierkegaard,  Pós-Escrito
Anticientífico Final (1846), retirado de Concluding Unscientific Postscript, de Søren
Kierkegaard (Princeton: Princeton University Press, 1992).

Kierkegaard considera a fé incompatível com o conhecimento, por este


último implicar a justificação, ao passo que a fé implica o risco epistêmico. Podemos
fazer uma analogia com o que ocorre quando encontramos um desconhecido e o
ajudamos, sem ter provas da sua probidade, descobrindo mais tarde com gosto
que ele nos procurou para nos restituir o dinheiro emprestado, por exemplo, ou
para nos manifestar a sua gratidão. Esta analogia permite compreender o tipo de
valor que é possível ver na fé quando esta é concebida como crença injustificada
ou sem provas. Num certo sentido, tem mais valor confiar num desconhecido,
sem provas da sua probidade, do que confiar nele quando temos essas provas.
Confiar nele quando temos essas provas não envolve qualquer risco, nem é um
gesto particularmente generoso da nossa parte. Kierkegaard parece defender algo
análogo relativamente à fé: se procuramos provas da existência da divindade, é
porque de algum modo não queremos arriscar ter fé na sua existência; mas se
tivermos provas de que essa divindade existe, a fé parece não poder ter lugar,
tal como nada arriscamos ao ajudar uma pessoa quando sabemos que ela nos
recompensará. Será realmente defensável o risco epistêmico de crer no que não
temos provas que existe? William James argumenta que sim.

Aposta momentosa

James sublinha que em alguns casos as nossas crenças são motivadoras: um


desportista ganha em acreditar que consegue obter um resultado; um estudante
ganha em acreditar que conseguirá bons resultados num exame difícil. Nestes
casos, precisamos acreditar sem provas, de maneira a ter motivação para tentar:
não faria sentido treinar ou estudar se não confiássemos na possibilidade de obter
os resultados desejados, ainda que não tenhamos realmente provas de que os
conseguiremos obter. Será a fé análoga a este gênero de casos? Tratar-se-ia nesse
caso de ter confiança em algo que não sabemos bem se ocorrerá ou se existe. A fé
ficaria assim mais próxima da esperança.

Sem dúvida que este tipo de crença motivadora e sem grandes provas
existe. É difícil imaginar como seria a nossa vida sem elas. Mas não é claro que este
fato acerca da nossa vida cognitiva tenha relevância para a legitimidade da fé sem
provas, ao contrário do que James parecia pensar. Vejamos dois argumentos contra
a posição de James.

Em primeiro lugar, as crenças motivadoras só são racionais porque têm


efeitos causais: se um estudante acreditar que com o seu esforço irá conseguir
obter um certo resultado, isso tem o efeito causal de lhe dar mais ânimo, o que
contribui para obter o resultado desejado. Mas no caso da crença religiosa não há
qualquer nexo causal, nem pode haver, entre a força da convicção e a existência

355
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

ou inexistência de divindades: estas não existem ou deixam de existir consoante as


pessoas estão mais ou menos fortemente convictas da sua existência.

Em segundo lugar, é irracional ter confiança quando a possibilidade de


realização do que se almeja é demasiado improvável. Uma pessoa em risco de
morte pode ganhar em ter confiança que conseguirá ser bem-sucedida num salto
difícil que poderá salvar a sua vida, se o salto que tem de dar for de, digamos,
um metro e meio. Mas, se for de dez metros, nenhuma confiança lhe dará energia
suficiente para conseguir salvar-se. O mesmo ocorre todos os finais de semestre
com demasiados estudantes: não estudaram ao longo do semestre e depois vão
fazer os exames cheios de confiança que, naquele momento, algo de mágico
ocorra e subitamente sejam capazes de responder a perguntas sobre matérias
que desconhecem quase por completo: o resultado inevitável, apesar de tanta
confiança, é a reprovação. E esses estudantes teriam ganho mais em reconhecer
a verdade da situação, ficando em casa tranquilamente. Portanto, este gênero de
confiança na ausência de provas só pode ter relevância caso não estejamos perante
uma impossibilidade ou quase impossibilidade.

Blaise Pascal (1623-1662), contudo, ficou famoso por defender que, bem
vistas as coisas, temos tudo a ganhar e nada a perder em apostar na existência de
Deus. Chama-se aposta de Pascal ao seu argumento, que pertence à mesma família
da posição de James: trata-se de dizer que, na ausência de provas a favor ou contra
a existência de Deus, temos um argumento a favor da crença sem essas provas.

No caso da versão de Pascal, a ideia é fazer uma matriz para revelar as


quatro combinações possíveis que resultam de se acreditar ou não e de Deus existir
ou não:

1. Caso não acreditemos e Deus não exista, nada de especial ganhamos. Apenas
não perdemos tempo, por exemplo, em rituais religiosos.
2. Caso não acreditemos e Deus exista, perdemos a possibilidade do paraíso, o que
é terrível.
3. Caso acreditemos e Deus não exista, nada de especial perdemos. Apenas
perdemos tempo, por exemplo, em rituais religiosos.
4. Caso acreditemos e Deus exista, ganhamos o paraíso, o que é maravilhoso.

Portanto, continua o argumento, é irracional não escolher acreditar. Porque


se acreditarmos, o pior que pode acontecer é termos perdido tempo; e podemos
ganhar o paraíso. Mas se não acreditarmos, o melhor que pode acontecer é não
termos perdido tempo; e podemos perder o paraíso.

Este gênero de argumento pode ser visto como desprezível por muitos
crentes. Pois o seu efeito é retirar à fé o elemento de risco epistêmico que
Kierkegaard considerava importante: a fé torna-se o mero resultado do calculismo
egoísta, e não uma atitude de risco epistêmico que nos dá confiança perante a
“incerteza objetiva”.

356
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

O pior do argumento, contudo, é precisar admitir pressupostos pouco


razoáveis sobre Deus. Por que razão haveria Deus de castigar quem não acredita
que ele existe precisamente por falta de provas? E por que razão haveria Deus de
recompensar com o paraíso o calculista? A ideia de que ter fé é em si importante
porque Deus castiga quem não a tem é praticamente indefensável. Se Deus
for sumamente bom e sábio, não pode ser o gênero de ser que exige dos seres
humanos crenças arbitrárias; pelo contrário, será o gênero de ser que exige que os
seres humanos sejam virtuosos, e ser epistemicamente virtuoso parece incluir não
acreditar sem provas.

O defensor da aposta de Pascal pode responder que não temos de ter


uma concepção primitiva de um Deus castigador: podemos entender a própria
vida do crente, com a graça da fé, como uma dádiva de imenso valor, e a vida do
descrente como um deserto espiritual que ninguém quererá viver. Assim, apostar
em Deus faz sentido não porque a divindade recompense a credulidade e castigue
a racionalidade, mas antes porque a própria vida sem fé em Deus é um martírio,
ao passo que uma vida com fé em Deus é graciosa e compensadora.

William James tem em mente algo como esta caracterização da vida de fé.
Antes de analisarmos brevemente as suas ideias, importa esclarecer as seguintes
diferenças:

1. Acreditar que Deus existe.


2. Não acreditar que Deus existe.
3. Acreditar que Deus não existe.

Confunde-se por vezes 2 com 3. 2 é mais fraco do que 3, no sentido em que


3 implica 2, mas 2 não implica 3: quem acredita que Deus não existe, não acredita
que Deus existe, mas quem não acredita que Deus existe pode não acreditar que
Deus não existe. Suspender o juízo quanto à existência de Deus é rejeitar 1 e 3: é o
que faz o agnóstico. O crente, claro, aceita 1 e rejeita as outras; o ateu aceita 3, o que
implica aceitar 2, e rejeita 1. Estas relações lógicas dizem respeito a qualquer crença,
e não especificamente à crença de que Deus existe. A maior parte das pessoas,
por exemplo, nem acredita que existem extraterrestres nem que não existem
extraterrestres; considera as duas hipóteses interessantes e até momentosas, mas
limita-se a suspender o juízo.

Esta atitude de suspensão do juízo na ausência de provas é precisamente o


que propõe um indiciarista, como Clifford. Na verdade, é o gênero de atitude que
temos relativamente às mais diversas matérias. James, todavia, discorda. Do seu
ponto de vista, é legítimo crer em Deus, quando a sua existência é intelectualmente
indecidível, desde que a opção pela crença seja viva, forçosa e momentosa.

Uma opção é viva quando não é uma mera hipótese intelectual vaga, mas
antes algo que realmente nos importa: supostamente, para quem se debate com a
questão de Deus, a hipótese de acreditar ou não é para ela uma opção viva. Essa
mesma pessoa pode não se debater com a questão de acreditar ou não em Apolo,

357
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

por exemplo. Uma opção é forçosa quando não tomar partido é o mesmo que
tomar partido. Suspender a crença quanto à existência de Deus tem o mesmo efeito
que não acreditar na existência de Deus, pensa James. Finalmente, uma opção é
momentosa quando é de extrema importância, e não uma questão trivial.

James argumenta então que, reunidas estas condições, é epistemicamente


legítimo acreditar sem provas, quando a questão é intelectualmente indecidível.
A razão é que não o fazer priva-nos de algo importante, uma vida religiosa, a
perspectiva de uma vida eterna, sem nada de importante nos dar em troca, exceto a
garantia de não crer em falsidades. O argumento de James pertence, pois, à mesma
família da aposta de Pascal; mas em vez de se basear diretamente na ideia de que,
sob a hipótese de Deus existir, os descrentes ou os agnósticos serão enviados para
o inferno, indo os crentes para o paraíso, permite dar ênfase ao ganho que o crente
tem nesta vida. A ideia torna-se mais vívida se imaginarmos casos em que uma
mentira piedosa poderá salvar alguém de sofrimento inconsequente: por exemplo,
uma mãe a quem, no leito de morte, se oculta a tragédia do seu filho que acaba de
falecer de acidente.

Contudo, o argumento de James enfrenta uma dificuldade relacionada. É


verdade que não dependemos de uma concepção brutal de um Deus que quer
ser objeto de culto na ausência de provas da sua existência, castigando quem
suspender o juízo. Mas estamos perante uma concepção provinciana da vida
humana, como se uma vida humana plenamente realizada só pudesse ocorrer na
presença da fé. Pelo contrário, muitos artistas, cientistas, filósofos e filantropos
viveram vidas preenchidas e felizes, sem qualquer crença em divindades. Para
essas pessoas, a questão de haver ou não divindades poderá ser intelectualmente
interessante, mas nenhuma consequência prática tem para qualquer lado. Isto
porque nenhuma pessoa genuinamente boa pode acreditar que Deus, se existir, é
um ser malévolo, que castiga quem nele não acredita, ainda que essa pessoa tenha
uma vida virtuosa, sob todos os aspectos.

A ideia de que uma vida virtuosa não é possível sem crer em divindades
é uma manifestação de provincianismo, ou de um mau íntimo: alguém que só
não trapaceia, mente, rouba e mata por ter medo de ser castigado na outra vida.
Kant, que era religioso, considerava que uma ação feita com vista à recompensa
ou com medo do castigo não é moralmente correta, ainda que exteriormente o
pareça. E não é preciso invocar Kant para compreender que quem não mata o seu
semelhante por medo do inferno e não por respeitá-lo, não é o gênero de pessoa
que queiramos ter por semelhante.

James poderia aceitar que é possível ter uma vida compensadora e virtuosa
sem qualquer crença religiosa, mas insistir que uma vida religiosa permite a
qualquer pessoa, por mais culturalmente carenciada que seja, o gênero de vida
compensadora que um artista ou cientista pode ter. A vida religiosa colocaria ao
alcance de qualquer pessoa o gênero de vida compensadora a que, de outro modo,
só alguns poderiam almejar.

358
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

A ideia de que a religião permite às pessoas culturalmente mais carenciadas


ter uma vida mais compensadora do que de outro modo teriam é plausível. Tal
como é plausível que a religião pode oferecer conforto emocional a pessoas cujas
vidas são desagradáveis em quase todos os aspectos. Contudo, este gênero de
argumentação não é particularmente promissor, pois não só implicaria que a
religião seria apenas um paliativo para o infortúnio, como tornaria difícil explicar
a fé de pessoas muitíssimo cultas, como cientistas, filósofos, artistas ou outros
intelectuais. A verdade é que tanto se encontra pessoas descrentes e crentes entre
os cultos como entre os incultos; e a verdade é que a vida religiosa tanto oferece
conforto emocional como opressão.

James precisa defender que a crença na existência de divindades é forçosa.


Mas ou é forçosa porque se concebe Deus como um ser castigador, como Pascal,
e nesse caso aplica-se-lhe o mesmo contra-argumento; ou o é porque se tem
uma concepção provinciana, e historicamente falsa, do que é uma vida humana
generosa, bem-aventurada, virtuosa e realizada, considerando erradamente que
sem a crença em Deus esse tipo de vida não é possível. Em qualquer caso, não temos
razão para pensar que a opção entre crer ou não em Deus é forçosa. Suspender o
juízo por falta de provas só é equivalente a não crer quando a consequência de
ambas é aproximadamente igual. Mas as duas opções só são equivalentes caso
um Deus ciumento castigue quem nele não crê, ou caso nenhuma vida humana
agnóstica ou ateia possa ser plena e digna. Quem rejeitar estas duas hipóteses,
rejeita a ideia de James de que a opção da crença é forçosa. Poderá até aceitar que é
uma questão momentosa, que nos dispomos a estudar e discutir com sobriedade,
como estudamos e discutimos a cura do cancro, sem que tenhamos de acreditar
sem provas.

Podemos insistir na ideia original de James concedendo que é perfeitamente


possível ter uma vida humana digna e realizada sem crer em Deus; mas sublinhar
que, mesmo assim, acrescentar a crença religiosa a uma vida humana que já é digna
e realizada sob todos os outros aspectos é fazer algo de importância superlativa.
Uma vida humana digna em todos os outros aspectos, mas a que se acrescenta
a crença religiosa, é uma vida ainda mais digna e rica, adquirindo uma textura
e dimensão que nenhuma vida de agnóstico pode ter. Neste sentido, portanto, é
forçosa a opção entre crer ou não em Deus.

Concedendo que a opção é forçosa neste sentido, o problema é que agora o


agnóstico ou o ateu têm uma resposta demasiado fácil. Podem responder que só é
forçosa a decisão de ter ou não uma vida de crente religioso porque ou é verdade
ou não é verdade que Deus existe. O que torna forçosa a opção é que se Deus existir,
vivemos na verdade se formos crentes, e a verdade é de importância primordial
para seres como nós. Uma vida de crente não pode ser uma coisa boa por ser
boa apenas internamente, isto é, por fazer o crente sentir-se melhor. Isso torna de
tal modo subjetiva a crença religiosa que faz dela uma opção não momentosa, mas
mesquinha, ainda que seja forçosa: trata-se de escolher o que me faz sentir bem,
como quem escolhe os sapatos mais confortáveis, e não o que é superlativamente
real e importante. Para que a minha escolha seja superlativamente importante
não pode ser apenas uma escolha do que me faz sentir bem. Tem de ser também
359
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

uma escolha do que me conecta com uma realidade de superlativa importância


— recorde-se que o sentido do étimo da palavra religião é religação. É mesquinho
escolher uma vida religiosa pressupondo que a existência ou inexistência dessa
realidade de superlativa importância é irrelevante porque tudo o que conta é
que me sinta bem. Escolher ou não escolher uma vida religiosa só é de suprema
importância porque isso me abre ou não a uma realidade de suprema importância.

Assim, a ideia é que, precisamente por prezar a verdade, o ser humano não
deve aderir sem provas, sobretudo quando se trata de matérias de importância
superlativa. É verdade que muitas vezes temos de assumir riscos epistêmicos,
mas estes casos só são razoáveis quando há uma relação causal entre a crença e
o que dela resulta: cremos, sem grandes provas, que somos capazes de fazer um
curso universitário, e isso motiva-nos de tal modo que contribui para o sucesso dos
nossos estudos. No que respeita a Deus, não há tal relação causal: crer em Deus não
o faz existir magicamente. O único poder causal dessa crença diz respeito à nossa
vida, e não é óbvio que, sob a hipótese de Deus não existir, uma vida de crente seja
realmente melhor do que uma vida virtuosa e realizada, aberta à possibilidade de
existir Deus, mas que não a aceita sem provas.

Assim, o argumento de James implica que a questão da existência ou


inexistência de Deus tem prioridade sobre a opção de crer ou não. Optar pela
crença no caso de Deus não existir é tão grave quanto optar pela descrença caso
Deus exista, e precisamente pela mesma razão: porque em ambos os casos a
crença é falsa. A nossa melhor atenção cognitiva deve, assim, dirigir-se para os
argumentos a favor e contra a existência de Deus, porque é isso que é decisivo;
e sem argumentos suficientes para um ou outro lado, a opção epistemicamente
virtuosa é suspender o juízo e continuar a investigar.

James enfrenta outra dificuldade. Uma opção é forçosa quando não tomar
partido é, na prática, a mesma coisa que tomar partido. O problema é que não é
fácil encontrar casos neutros de opções forçosas. Um caso de uma opção forçosa
é alguém dar-nos um prazo de dois dias para decidir comprar ou não uma casa,
por exemplo. Mas estamos indecisos e deixamos passar o prazo. A indecisão, neste
caso, é equivalente à decisão de não comprar a casa. O problema deste tipo de
exemplo é que só se aplica ao Deus mesquinho referido. Pois seria como se Deus
nos desse nesta vida a oportunidade de optar sem provas pela crença, acabando-se
o prazo quando morremos. Pelo contrário, um Deus razoável consideraria sensato
que não decidíssemos tão momentosa questão sem provas fortes; e se só na outra
vida tais provas surgissem, essa seria a altura para crer na sua existência.

Este tipo de argumento põe em causa frontalmente a ideia central do


fideísmo de que é virtuoso crer sem provas. O fideísta poderia rejeitar o argumento
por essa razão. Mas isto seria confundir as coisas. O argumento conclui que não há
virtude em crer sem provas, pois é isso mesmo que estamos a discutir. Se o fideísta
discorda desta conclusão, tem de mostrar o que há de errado com o argumento
apresentado, e não apenas insistir que esta conclusão contraria a sua ideia de que
é virtuoso crer sem provas.

360
TÓPICO 4 | O SELF, O CORPO E A IMORTALIDADE

Acresce que a ideia de que crer sem provas é virtuoso poderá ser uma
forma subtil de impor a crença religiosa, um pouco como jogar um jogo viciado
em que se sair caras ganho eu, se sair coroas perdes tu. Pois se alguém declarar
que algo existe, fica a dever-nos evidentemente algumas provas, sobretudo se
for algo momentoso e não uma trivialidade. Se essa pessoa declarar que não tem
provas, mas que é bom acreditar sem provas nisso que ela diz que existe porque
nessa circunstância coisas maravilhosas irão acontecer-nos, está a trapacear-nos.
O que lhe pedimos, muito razoavelmente, foram provas. A sua resposta, muito
insensatamente, foi uma ameaça. Perante a incerteza da vida humana, sobretudo
onde os níveis de bem-estar são muitíssimo baixos (por falta de cuidados de
saúde, proteção no emprego, recursos econômicos adequados etc.), este gênero
de resposta torna a aposta de Pascal muito vívida: nada se tem a perder e pode-
se ganhar muito em crer sem provas. Mas o preço a pagar, como vimos, é uma
concepção de uma divindade brutal. Concepção que é difícil crer que uma pessoa
genuinamente boa e epistemicamente virtuosa possa aceitar.

Voltemos ao aspecto forçoso da opção quanto à crença na existência de


Deus. É iluminante pensar noutros casos em que a opção é forçosa. Por exemplo,
não sabemos se conseguiremos realmente salvar uma criança que acaba de cair no
rio; mas não decidir tentar é igual a decidir não tentar. Por isso, a virtude exige
que tentemos. Mas pensemos melhor no que está oculto neste tipo de exemplo.
Não seria uma exigência de a virtude decidir tentar se fosse impossível ou quase
impossível salvá-la; e ainda menos se ao tentar fosse inevitável ou quase inevitável
que nós mesmos pereceríamos, privando assim os nossos filhos do apoio que lhes
devemos. Isto significa que quando se pressupõe que crer ou não em Deus é uma
opção forçosa é porque se aceita duas coisas, e James só explicitou uma delas: aceita-
se que a questão é intelectualmente indecidível, mas aceita-se também que o preço
por acreditar não é demasiado elevado. Ora, não podemos em rigor pressupor que
crer é melhor, exista ou não Deus, do que não crer. Clifford argumenta que crer na
ausência de provas é sempre pior, porque contribui para a crendice, e a crendice
tem inevitavelmente, e a longo prazo, más consequências. Este argumento, que é
crucial para a posição de Clifford, nunca é enfrentado por James, que se limita a
pressupor que crer em Deus é sempre melhor do que não crer.

James argumenta, com alguma plausibilidade inicial, que a posição de


Clifford nos afasta da verdade, por estar demasiado preocupado com o erro.
Compara Clifford a um general que, por querer provas cabais da vitória antes
de enviar as suas tropas, nunca ganha qualquer batalha, porque nunca envia as
suas tropas. A ideia é que por vezes é preciso aceitar o risco epistêmico. Clifford
concorda com a ideia, mas rejeita que o risco epistêmico implique crença sem
provas: apenas implica que, quando é necessário agir sem certezas, devemos agir
em função do que é mais provável.

O problema é que nada disso se aplica à crença em Deus. Esta crença


não é urgente: não temos de decidir, aqui e agora, crer ou não crer em Deus:
podemos perfeitamente continuar à procura. É o que fazemos com muitas outras

361
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

crenças momentosas: queremos saber o que poderá curar uma doença grave, por
exemplo, e é extremamente difícil decidir. Mas se pararmos de tentar decidir
porque consideramos virtuoso o risco epistêmico de apostar numa das hipóteses
sem provas, não estamos a contribuir para a descoberta da verdade, mas antes a
dificultá-la. Se o que realmente nos interessa é saber se Deus existe ou não, e isso
qualquer crente terá de aceitar, a menos que tenha uma concepção de tal modo
subjetiva da crença que torne irrelevante a existência de Deus, não é uma boa ideia
decidir de antemão e sem provas que existe. Se Deus realmente existir, acertamos
na verdade por sorte apenas, o que não constitui conhecimento, privamo-nos
assim de conhecer uma verdade de superlativa importância. Se não existir, fomos
crédulos e impedimos a descoberta de que não existe. Assim, a acusação central
que James faz a Clifford, que está tão preocupado em evitar o erro que não permite
acertar na verdade, aplica-se facilmente a James, que parece ter pensado que tudo
o que conta no que respeita à verdade é acertar nela, ainda que por acaso, e não
conhecê-la. [...]

FONTE: MURCHO, Desidério. Fé, epistemologia e virtude. In: MURCHO, Desidério (Org.). A ética
da crença. Trad. de Vítor Guerreiro. Lisboa: Bizâncio, 2010. Disponível em: <http://criticanarede.
com/feevirtude.html>. Acesso em: 12 set. 2015.

362
RESUMO DO TÓPICO 4

Neste tópico vimos:

• As diferentes concepções do self e da vida após a morte.

• Primeiramente focamos em quatro concepções singulares do self: o dualismo, o


materialismo, o panteísmo monista, e a doutrina budista do não self.
1. Para o materialista, a vida após a morte, se é que tal vida existe, implicaria a
existência continuada (ou a existência reconstituída) do corpo físico individual.
2. Para o dualista, a vida após a morte poderia envolver uma existência encarnada
ou desencarnada e o indivíduo existiria na vida após a morte como a mesma
pessoa porque ele ou ela tem a mesma alma.
3. Para as perspectivas do monismo panteísta e do não self, a reencarnação
e o carma desempenham um papel fundamental tanto nesta vida quanto na
próxima. Para o panteísta o self é a realidade última e indiferenciada. No entanto,
pode-se demorar muitas vidas para chegar a essa realização.
4. Para o adepto da perspectiva do não self, não existe o self substancial, e (tal
como acontece com o panteísta) pode demorar muitas reencarnações para
finalmente e totalmente se reconhecer esta verdade fundamental.

• Os argumentos a favor e contra a imortalidade pessoal. Primeiro voltamos nosso


olhar para vários argumentos a favor da imortalidade: as experiências de quase
morte, a ressurreição, a natureza de Deus e a natureza da alma.

• Embora existam evidências para a imortalidade, nenhuma delas oferece provas


conclusivas. Nós, então, voltamos o olhar para vários argumentos contra a
imortalidade: a dependência da consciência no cérebro, a identidade pessoal e
a miséria eterna. As evidências contra a imortalidade são impressionantes, mas
aqui também elas não são conclusivas.

• Quem somos e o que nos acontece após a morte são questões perenes que os
seres humanos têm ponderado por milênios. Refletir sobre essas questões irá,
sem dúvida, continuar a ser uma parte da experiência intelectual humana nesta
vida e, talvez, até mesmo além.

363
UNIDADE 3 | PERSPECTIVA FILOSÓFICA: CIÊNCIA, FÉ E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

AUTOATIVIDADE

Neste tópico pudemos ver pelo menos quatro concepções do self que foram
mantidas no Ocidente e no Oriente. Leia as afirmações abaixo sobre estas
diferentes posições e assinale a alternativa correta.

a) Na perspectiva materialista a pessoa é composta por duas substâncias. Uma


delas seria material, referindo-se ao corpo e ao seu aspecto espacial. A outra
seria imaterial, referindo-se à mente e ao seu aspecto não espacial.
b) Na posição do panteísmo monista a pessoa só possuiria um tipo de substância,
aquela material. O self imaterial não passaria de uma invenção da linguagem,
ou um recurso ontológico desnecessário. Nesta perspectiva a explicação
funcionalista é característica.
c) Na posição dualista o self seria uma realidade unificada com a própria
realidade última. Esta seria indiferenciada e além de todas as qualidades,
inclusive a pessoalidade. Sendo assim a personalidade individual é uma
ilusão.
d) Na posição do não self, própria do budismo, não haveria nenhuma coisa que
tenha existência independente, substâncias individuais. Todavia, para além
da crença ilusória do self individual, essa posição sustenta que existem várias
experiências, desejos, sentimentos e anseios que são reais e estão em fluxo
contínuo.

364
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