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Lucas Piter Alves Costa1
RESUMO
Este trabalho aborda a problemática das instâncias enunciativas do texto narrativo literário com o objetivo de
elucidar, teórica e metodologicamente, as diferenças entre autor, escritor e narrador, dentro de um quadro da
análise do discurso. Tomamos como base, sobretudo, Charaudeau (2008) e Peytard (2007 [1983]) e usamos
como exemplo as obras literárias O Quinze, de Raquel de Queiroz, Menino de Engenho, de José Lins do Rego, e O
Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos. Concluímos que numa análise da narrativa é importante distinguir as três
instâncias de sujeitos presentes no texto literário a fim de apreender os efeitos de sentido da narrativa.
ABSTRACT
This paper discusses the issue of enunciative instances of literary narrative text with the aim of elucidating,
theoretically and methodologically, the differences between author, writer and narrator, within a framework of
discourse analysis. We have based mainly Charaudeau (2008) and Peytard (2007 [1983]) and we used as
examples literary works O Quinze, by Raquel de Queiroz, Menino de Engenho, by José Lins do Rego, and O
Amanuense Belmiro, by Cyro dos Anjos. We conclude that in an analysis of the narrative is important to
distinguish three instances of subjects present in the literary text in order to understand the effects of sense of
narrative.
Considerações iniciais
Quem fala a obra? Quem faz falar na obra? E, por fim, quem fala na obra? Começamos
com três perguntas que, a princípio, parecem idênticas, mas que suscitam respostas cuja
diferenciação é o cerne deste trabalho. A tomada da fala de outrem certamente não é mais
simples de compreender, em termos discursivos, que o direito de falar, que o percurso de fala
e, por fim, que a delimitação de uma categoria, instância ou “fonte” desse falar, o tal sujeito.
Ora, mas não há um sujeito. Não há uma fonte única do sentido.
O sujeito que enxergamos no quadro teórico-metodológico da Análise do Discurso
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2 Aludimos às três fases da AD: (1) a do sujeito assujeitado a uma maquinaria discursiva que o submete a
regras específicas que delimitam o seu discurso, o seu comportamento, a sua ideologia; (2) a do sujeito
atravessado por diferentes papéis de acordo com as várias posições que ocupa no interdiscurso. Apesar da
sua dispersão, o sujeito não é livre, tal qual ocorre na fase anterior. Ele sofre coerção das inúmeras
formações discursivas que atravessam o seu dizer; (3) a do sujeito heterogêneo, clivado, dividido. Esta é a
fase atual da AD, fase em que as ideias do primado do interdiscurso e da heterogeneidade enunciativa são
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realçadas.
3A noção de posicionamento implica relacionar certos enunciados a diversas “identidades enunciativas que
se definem umas às outras” (MAINGUENEAU, 2010, p. 50) em uma relação de ampla concorrência,
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ressaltando que o objeto da AD não é o discurso isolado, mas sim o sistema de relações que faz com que os
discursos se constituam e se mantenham concomitante e reciprocamente.
Charaudeau (2006), sobre o discurso das mídias, tece considerações sobre o uso do
4Uma tradução aproximada: O lugar e o estatuto do “leitor” no conjunto “público”. Entendemos que o
público aqui possa estar significando o conjunto todo do público, não só a instância homônima que o autor
apresenta em sua topografia.
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5 Texto original: [...] comment un «auteur» réalise l’acte de «donateur» du texte au «public» qui en est le
récepteur bénéficiaire, et comment dans le public un ou des lecteurs se constituent comme tels.
6 Ergon¸ que originou o neologismo ergo-textual, é uma palavra grega que significa “trabalho”. Têm-se
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assim, com ergo-textual, o lugar e o ato de trabalhar o texto. Vale como exemplo também a palavra
“Ergonomia”: “ergon” que significa trabalho, e “nomos” que significa leis.
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7 Texto original: [...] toute image plus ou moins animiste et psychologisée [...].
8 Texto original, de onde tentamos uma tradução aproximada: [...] qui désigne à la fois un lieu du texte ou du
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[...] designa o ‘sujeito’ não definido, que, por um trabalho específico de linguagem,
organiza e constrói o texto scriptural (produto literário). O scriptor tem por função
escrever (um ato no sentido intransitivo que R. Barthes deu a esse verbo). É uma
instância distinta daquela do autor, por sublinhar e singularizar o fato de que escrever
é um trabalho de linguagem (mantendo a ambiguidade da expressão: o scriptor opera
um trabalho sobre a, na linguagem; o scriptor é ao mesmo tempo trabalhado pela
linguagem). [...] Nós dizemos ‘sujeito não definido’, porque os limites que definem o
scriptor são descontínuos e variáveis.9 (PEYTARD, 2007 [1983], web, tradução
nossa).
A noção de lector, por sua vez, proposta por Peytard (2007 [1983]) casa perfeitamente
com a ideia de leitor-possível de Charaudeau (2008) e ainda com a de leitor-modelo, de Eco
(1979), pois é também o próprio texto que delimita o seu leitor, através de componentes em
sua superfície textual que podem apontar para uma realidade extratextual. Eco (1979) elenca
alguns exemplos esclarecedores desse processo, como a escolha de uma língua, de um tipo de
conhecimento, de gênero, etc. Sendo assim, por um lado, “o autor pressupõe, mas, por outro,
institui a competência do próprio Leitor-Modelo.” (ECO, 1979, p. 40).
Para nós, a figura do leitor-possível surge no interior daquilo que Maingueneau
(2006) chamou de cena englobante: o tipo de discurso com o qual o sujeito se depara antes de
tudo, no caso, o discurso literário. Ainda assim, a cena englobante não é o suficiente para
especificar o leitor-possível, uma vez que a instituição tem diversos gêneros discursivos.
Sendo assim, o leitor-possível surge ainda no interior de uma cena genérica.
No entanto, mesmo situado na instituição literária da época e tomado pela cena
genérica de um romance, o leitor pode ainda ser definido pelo próprio conteúdo textual do
9 O texto original: désigne le « sujet » non défini, qui, par un travail spécifique du langage, organise et
construit le texte scriptural (produit littéraire). Le scripteur a pour fonction d'écrire (un acte au sens
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intransitif que R. Barthes donne à ce verbe). Instance distinguée de celle de l'auteur, pour souligner et
singulariser ce fait qu'écrire est un travail du langage (en maintenant l'ambiguïté de l'expression : le
scripteur opère un travail sur, dans le langage ; le scripteur est en même temps travaillé par le langage). [...]
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Nous disons « sujet non défini », parce que les limites qui définissent le scripteur sont discontinues et
variables.
[A] instância do narrador é primordial. É importante notar que ela é de tipo textual, ou
seja, não marcada senão no texto e ao nível do papel que ela assume. [...] Não menos
importante é distinguir narrador de scriptor: o primeiro conceito refere a uma
instância totalmente e unicamente marcável no texto onde ela desempenha seu
papel na instauração da narrativa; o segundo refere a um ato, um trabalho de um
sujeito que escreve, de pena à mão. Os traços scriptorais, instância textual, designam
este que no texto se sobressai à marca do trabalho do scriptor.10 (PEYTARD, 2007
[1983], web, tradução nossa).
Por isso, não parece viável, no estudo de uma narrativa de ficção, atribuir aos dêiticos
10 Texto original: [L]'instance du narrateur est primordiale. Il est important de noter qu'elle est de type
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textuel, c'est-à-dire, n'est repérable que dans le texte et au niveau du rôle qu'elle y assume. [...] Il est non
moins important de distinguer narrateur de scripteur : le premier concept réfère à une instance totalement et
uniquement repérable dans le texte où elle joue son rôle dans l'instauration du récit ; le second réfère à un
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acte, un travail d'un sujet qui écrit, plu-me à la main. Les traces scriptorales, instance textuelle, désignant ce
qui dans le texte ressortit à la marque du travail du scripteur.
Se nos fosse dada a capacidade de ler a mente dos nossos semelhantes ou daqueles
seres de papel11 de cuja história pretendemos narrar, deparar-nos-íamos com uma série de
imagens e impressões diárias e simultâneas que, não raro, nos seriam impossíveis de narrar,
pelo menos se tentássemos não ser arbitrários quanto a sua ordem, logo, quanto aos seus
valores na narrativa. Em outros termos, o “caminho percorrido pela consciência é completado,
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por vezes, muito mais rapidamente do que a linguagem é capaz de reproduzir, pressupondo-
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11Para Brait (1993) o personagem não existe fora das palavras – o problema é, antes de tudo, linguístico,
pois trata-se de seres de papel.
forma, mas também na ideologia. Os verbos na voz do narrador são marcados no pretérito,
mas a ausência do narrador como personagem permite ao leitor ter a sensação de que a
12Toda e qualquer representação de tempo em um romance será sempre uma ilusão de “acabamento e
continuidade, de presença e presente” (MENDILOW, 1972, p. 70).
Considerações finais
A diferença básica no foco narrativo desses três romances é que em O Quinze temos
um autor-escritor que escreve uma história sobre a seca de 1915 narrada por ele mesmo. Em
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Menino de Engenho temos um autor-escritor que escreve uma história sobre um menino de
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engenho narrada por Carlos. Em O Amanuense temos um autor-escritor que escreve uma
história de um funcionário público que escreve e narra sua história. O movimento que
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