Sunteți pe pagina 1din 141

Não acharás, amor,

No poço em que cais

O que na altura guardo para ti:

Um ramo de jasmins todo orvalhado,

Um beijo mais profundo que esse abismo.

Pablo Neruda (O poço)

OS LADRILHOS da fachada amarelejam ao longo do caminho para o fim.


Bordas de blusa ondulam sob o voo leve do pássaro de um sonho. A textura da
saia não permite que se determine a cor e adeja, mansa e inexaurível, tomada de
suntuosidade súbita. Os traços de seu rosto na aura de medo não se atribuem a
beleza que os transeuntes detectam. Para o fim. Ela escuta nos carros que
passam. Está escrito no arrebol entre os prédios.

É véspera do inverno e desde que chegou há uma semana faz um frio a


que não está acostumada. Disseram que o centro não estava longe. Que seguisse
a avenida até o parque e virasse à direita no semáforo. Não disseram quantos
quarteirões isso significava. Quando chegava, o ônibus passou por esta avenida. Na
frente daquele café ela o viu pela primeira vez. Um pouco antes ouvira que
falavam dele. Está doente. Bem feito, alguém disse. É um canalha. Morrerá
sozinho como sempre viveu. O fim que merece. Entao ela o seguiu de longe.
Aproximou-se quando ele deixou a mesa. Deixara cair alguma coisa. Ela abaixou-
se e apanhou a pequenina rosa.

Luzes de uma janela. Vozes de criança. Um vulto recortado contra a sala.


Ela disse aos vizinhos que o emprego estava certo. - Não precisa ir, Alice. Não
precisa ir. Você tem tudo aqui. Devia terminar a faculdade. Fazer um doutorado.
Um dia ela achará o mesmo. Um dia como sempre quando não mais for possível.

ELA NÃO FALA há dias. A última conversa foi com a moça que viajou a
seu lado. Saiu do ônibus sentindo o esforço. Seu duplo exausto passou pela
vitrine enquanto lá dentro a vendedora apanhava um par de sandálias. Parece seu
número. Tiras e ligas, do tipo que ela gosta. A atendente é bem bonita mas que
vale a beleza? Dinheiro é o que vale. Um após outro eles passam. De Darken
Pöbel a Öffner Hilo. Com um ficou na ponta dos pés e com outro deixou o
celular cair. Permitirá tudo. Pomba gemendo em círculos sobre o farelo de
tempos de um mundo inóspito mais inóspito quanto vivos os sonhos.

Ele surgiu do nada: — Aceita um café? — disse. Que moça sozinha na


cidade grande recusaria? Era gentil e muito lindo. Ensinou como se chega à casa
da moça. Ela não teria de passar a noite na rodoviária ou numa casa de acolhida.

Havia platibandas e arranjos de ramos entrelaçados nas janelas do


restaurante e todas as pessoas tinham celulares ao lado das xícaras. Para a
garçonete ficou manifesta a diferença de altura quando os viu pela janela. —
Olhe que sorriso sincero — disse para a colega que servia a mesa que dava para
a rua.

O sol da tarde nos cabelos faz de Alice uma santa aureolada. O ombro
esquerdo no lado direito do peito rígido. Não é um rapazola nem tão mais velho
como ela a princípio imaginou. O tecido da blusa lhe cai bem. O que estou
dizendo? Não o conheço.
Visto do vão dos prédios o trânsito se arrastava. Ele apanhava papéis de
bala e maços amassados no chão e colocava nas lixeirinhas. — Após o teatro a
primeira rua à esquerda. Do outro lado aparecerá uma padaria. Costuma ter
muito movimento.

Se ela quisesse mesmo procurar a casa da amiga.

Alice devolveu o sorriso franco.

Um dia ela se refugiará naquela padaria para comer sonhos em meio ao


burburinho dos bebedores de cerveja do fim de noite e operários tomando café.
Terá fãs por ali.

No momento a última coisa que quer é procurar a casa de uma moça


cujos propósitos não ficaram claros, ainda mais agora que havia conhecido o
amor de sua vida. Por isso não resistiu. Foi um beijo perfeito o primeiro sob a
lua.

PEDRO ANDREAS HOFFMANN veio do interior para São Paulo estudar


arquitetura mas logo a necessidade fez com que mudasse para Análise de
Sistemas e bem a seguir um curso técnico voltado ao desenho de móveis. Antes
de terminar os estudos já estava casado e foram passar a lua de mel na Europa e
cumprindo uma promessa levou a mulher para a Praça de São Pedro mas
naquele domingo o Papa pela primeira vez não fez a oração dominical e estava
estabelecida a primeira de muitas frustrações do casal. Em 2013, o
relacionamento estava desgastado mas nem um nem outro admitia
abertamente, na esperança de que a gráfica que ele tinha aberto viesse a mudar
as coisas, sobretudo se ela engravidasse.
Essa evolução material não se fez acompanhar de progresso espiritual ou
sequer do alívio da anedonia e logo seus corpos refletiam isso e ela, outrora
magra, tornou-se fornida e cadeiruda e ele ganhou a barriguinha típica dos
prósperos infelizes e nos dois casos os fazia tanto mais atraentes para terceiros
quanto se entediavam um ao outro.
Em junho ela viajou para sua cidade natal, vizinha à dele. Passou dois
dias e na volta esperava que o assento ao lado estivesse vago pois estava muito
cansada e queria se esticar durante aquelas quatro horas e definitivamente não
estava com paciência para conversar com estranhos. Mas a jovem que sentou ao
lado, no momento exato em que o motorista ligava o motor, imediatamente
angariou sua simpatia ao se encolher junto ao braço lateral da poltrona ao lado do
corredor, quase pedindo desculpas por estar ali. Conversaram sobre estudos e
mercado de trabalho e de passagem Sonja, a esposa de Pedro, mencionou as
confusões na capital por causa do aumento das passagens e a outra apenas
sorriu constrangida por não ter a menor ideia do que se tratava.

A VITRINE reflete a cabeça inclinada. A dor no movimento é resquício da


posição na viagem. Não é uma dor má: evoca o ombro da companheira. Alice
está agora sozinha sobre o viaduto. Ao longe o trecho de superfície do metrô.
Essa que agora eu sou, como a onda solitária que entre outras é a única que
enche e não arrebenta, orla de espuma abortada e cansada, tensa, sozinha,
carregando um mundo destruído, oh Deus — pensou ao focalizar a luz
amarelada nos ladrilhos.

Encheu os pulmões. Ajeitou a meia e se demorou no relevo escuro da


parte de trás do joelho. Como quem faz uma verificação, deslizou os dedos
mais para acima e sentiu a maciez morna. A música nos carros faz parte do
brilho metálico que se dilui no ar.

Continuou caminhando ao passar pela entrada do metrô e se despegou


da massa humana na qual quisera se integrar. Atravessou a rua com uma
corridinha quando o verde abriu. Sua sombra corria fiel a seu lado e se uniu à
sombra dos cabos elétricos, ultrapassando-os. Parou em frente à lan-house.
Entrou. As pernas doem. Está suada apesar do frio e precisa ir ao banheiro. Diz
seu nome ao pagar a hora ao atendente. O rapaz que entra em seguida escutou e
logo terá oportunidade de repetir em voz alta.
Olhou de soslaio os computadores na penumbra da sala. Tirou o livro da
bolsa. Os cantos das primeiras páginas unidos na mesma dobra. O planeta girou
e se aproximou em mapas e nomes, em números e mares. Puxou a cadeira de
modo que suas mãos se acomodassem melhor ao teclado. Por meio de dedos
treinados, acompanhando as telas com olhar amortecido e lábios compactos,
deu-se conta de que um mundo estivera em pleno andamento ao longo de sua
depressão. A respiração retornava ao normal. No prédio em frente, a primavera
caía sobre o muro. O atendente esticou o queixo e logo seus olhos obtiveram o
desejado ângulo.

Está escuro mas os usuários não percebem ou não se importam. Lado a lado
cada um olha seu monitor como se contemplasse o nascimento do mundo. A cor
no rosto de Alice vem da tela. Uma e outra vez sem virar a cabeça ele vê o perfil
de beleza e serenidade entre cortinas ruivas. O sol se pôs atrás dos prédios
laterais no reflexo d vidro escuro que os separava da rua. O som da geladeira
onde estão os refrigerantes se confundia com uma chuva que de há muito não
caía. O rapaz que a seguia se imagina com Alice pelas ruas do entorno. Chegou a
pensar num motel mas descartou a idéia. Então por que está ali — perguntou-se
sem resposta. De moças bonitas seu trabalho está cheio.

QUANDO ASSUMIU O CARGO de chefia na empresa todos os anos eleita


como a melhor para se trabalhar no País, Pablo Andreas Hoffmann tinha
realmente o melhor currículo dentre todos os candidatos. Ótimas faculdades,
mestrado, especialização. E o entrevistador percebeu ainda uma vantagem
adicional: ele sabia lidar com pessoas. Não soube isso na entrevista. Tinha
vasculhado a vida do futuro funcionário nas redes sociais. Suas namoradas e
seus livros, suas bravatas irresistíveis.
Ele não decepcionou seus empregadores. Bastou uma semana para
saberem que ia longe na carreira. Não se dava descanso. Sem qualquer
dificuldade de se passar de companheiro de happy hour ao homem que dá as
ordens. Fazer de seu apartamento um abatedouro e as lebres renascerem em
colaboradoras dedicadas de projetos no dia seguinte.
Esticava o horário de expediente em restaurantes com mulheres ou
clientes e as vezes intercalando uns e outras. Em dias inspirados praticamente
não dormia. Ontem ainda foi um desses. O lugar era um casarão dos anos 20
adaptado segundo os prédios holandeses de containeres. O proprietário tinha
ficado muito satisfeito com as soluções para o wifi e a segurança da rede e
particularmente com o uso de blocos de aço, um projeto de arquitetura
sustentável que ficou quase de graça, pois nessa época os irmãos não só ainda
se falavam mas davam sugestões no trabalho um do outro.
Pablo e sua acompanhante ficaram muito a vontade num sofá de couro
sintético alaranjado perto de uma das varandas. O atendimento foi gentil e
discreto, adoraram. Saíram pelo corredor lateral as duas e meia da manhã.
Ventava um pouco e o farfalhar da organza sob a jaqueta dialogava com os
sussurros.

UM RIO CORRE lá embaixo. Uma linha cintilante. Quando Pablo tornou a


olhar para Alice, ela via a terra girando. Continuava procurando a casa que devia
ter procurado no primeiro dia, mas não podia fazer as coisas do modo mais
simples; não ela. Talvez porque gostasse da sofisticação das frases nos livros
que amava. De como mantinham a clareza e apesar de todas as curvas
chegavam sempre ao entendimento, que é vida. Nisso, ela e a mãe concordavam.
Alguma coisa para atraí-las precisava antes de qualquer coisa ser mais que
verossímel, precisava ser verdadeiro; tinham esse objetivo comum nas direções
opostas que tomavam. A terra. Fotos de satélites em alta resolução.

A TARDE TERMINA. As árvores escurecem mas as copas refletem a luz


dos postes diante da loja. Ao sair ela pensará em igrejas contíguas brilhando na
manhã de um domingo. Os operários batiam o ponto na obra que ao lado
levantara ao longo de todo o dia uma poeira abóbora muito seca, estranho
incenso. Alice chega à casa da amiga. Sonja Tuslei. Estar ali, não na rua, mas
diante de um computador, era o tributo à sua negligência, maior que o desejo de
uma nova vida ou a vontade de encontrar um bom emprego e exercitar as
virtudes domésticas e ter um canto seguro onde ler e escrever.

Mulheres e homens movimentavam esse ser que é a multidão em hora de


rush. A música dos carros parados no sinal acelerando em falso . Quando ela
levanta a cabeça, relanceia o muro sujo de profecias. Era um bairro nobre
relativamente tranquilo, quase central, nos jardins; não era dia de feira, como
por um instante ela pensara; se fosse, poderia comer um pastel e escapar da
tontura. Apontando o muro pichado, uma mulher diz que tem medo de sair
para trabalhar nessa situação; Alice pensa que isso é passageiro. Que ali poderia
trabalhar e morar e ser feliz. Pensa na doçura do despertar antes do sol e
preparar as coisas do novo dia. Água para o café e toalhas e as roupas. Levar o
cachorro para passear. O segurança do supermercado 24 horas olhará para ela
e pensará como é bonita. Tem um casal de filhos mas definitivamente não parece,
pensará o homem.

Pablo a segue no meio do trânsito. Quanto mais caminham, mais ele


perde de vista a razão por que começou a perseguição. Às vezes ele pegava
aquele caminho, de carro, por pegar, apenas porque apreciava os ares do lugar.
Ia devagar, olhando para os lados. Uma vez aconteceu de encontrar a
cabeleireira e devolver o sorriso dela. Na cama, ele retira o tênue obstáculo. Ela
não fala. Sente-se bem com alguém que mostre o caminho. Duas horas depois,
como se nada tivesse acontecido, ele tocava seu projeto no escritório. Isso faz
uma semana. Ele entende que não se trata da mesma coisa agora.

Ao olhar para ele de esguelha, Alice pensa em Pedro. No silêncio da


madrugada ele quis em vão seu desejo satisfeito, e satisfeito sem depois, esse
depois: casa própria, cotidiano, roupas, tiquetaquear na cabeceira, cama de
casal, controle remoto partilhado, o sol nos móveis a prazo, horários, conta
conjunta e quem sabe os filhos, indubitavelmente os filhos. Ela não poderá
censurá-lo amanhã, pensava ele ao saírem do café. Ele não se declarou, não fez
promessas. Podia ter sido necessário, mas não foi. A mão sob a saia sente que
Alice está pronta.
- Então vamos — disse ele quando a garçonete se afastou.

- Vamos — disse ela.

Quando entraram no apartamento, ele tocou o interruptor e um fantasma


surgiu onde ela deveria estar. Por um segundo ele se espantou, mas em seguida
estava de novo senhor da situação. Era um homem religioso. Nossa Senhora
iluminada pela lâmpada do nicho, derramada em leite e luz nas partes em que
não havia a blusa lilás um pouco amarrotada mas ainda por dentro da saia curta
agora mais curta por conta do movimento de se abaixar para religar o velcro da
sandália. Cabelos em cataratas negras. Músculos da panturrilha perfeitamente
definidos: carne e leite, imaginará Pablo.

Um sorriso correspondido. Livros reconhecidos. Para onde ela ia?

- Eu te acompanho — disse ele.

Ela se sentiu reconfortada, mas logo se lembrou do homem que lhe


ofereceu um café e abrigo por uma noite que não se consumou, iniciada com a
luz no canto do pequeno apartamento e o movimento dela ao se abaixar para
religar o velcro da sandália. Se você quer vida, pensou ela então, aí tem.

Dentro do fusca havia uma espécie nobre de silêncio nobre que não
incomodava. Haviam passado pela ponte, estrutura sáxea correndo ao longo do
asfalto lá embaixo. Ela pensou o quanto tivera sorte. Levou a mão à parte de trás
do pescoço e abaixou os olhos e apertou-os e abriu-os de novo e, como não
tivesse sido nada, levantou o olhar para as janelas e telhados recortados de frio
azul esmaecendo, esmaecendo até a aparição de Darken Pöbel, em quem pudera
um dia confiar. Dirão o seu primeiro amor. Pode ser.

Darken... Mas qual a relação entre ele e esse salvador com quem saíra do
café direto para o apartamento? Darken. Um rapaz de bem. Ali está. O carro
descendo a rua sinuosa. Pede uma informação ao pedestre e segue. Ela olha e há
o instantâneo Devia ter o quê, uns quatorze anos? Viu quando ele parou e
tentou estacionar quase em frente ao prédio. De perto parece mais velho, mas
que importa? Rapazinhos têm de se estabelecer na vida. Melhor um homem
estabelecido com dinheiro suficiente para levar a namorada a qualquer
programa que ela invente, um restaurante, um show (e o teatro que ela adora
anda tão caro) — incluindo o motel ou, melhor ainda, o apartamento. Mais um
ou dois anos e ela seria uma mulher feita com esse tipo de necessidade que um
menino de sua idade não poderia bancar. Mesmo depois de um ano ou dois ela
ainda será menor — pensou Darken após algum tempo de contemplação. Pode
ter sido a causa da ligeira batida no carro da frente. Tomara que não tenha
amassado. É o que menos ele precisa num dia cheio de chateações. Dá-se ao
luxo de contemplar a menina numa tarde tão pálida e morna em que não se
poderia afirmar que o céu limpo estava azul ou era uma variação do branco.
Uma mulher que passa leva as mãos à barriga: é o neném chutando; outra, um
pouco mais jovem e menos bela, leva o carrinho de bebê. Darken fala sozinho. A
menina pode perceber. Quem sabe — pensou ela — não esteja justamente
falando dela e abre um sorriso que (embora estivesse mesmo) ele não chega a
ver.

Pedro era um homem alto e magro com cerca de quarenta anos, a mesma
idade de Darken quando ela o conheceu. Os cabelos lisos são castanhos e os
olhos verdes faíscam. Há uma estranha delicadeza em seu nariz grande e isso a
impressionou logo no primeiro momento. Pedirá ou terá mandado que ela
estendesse a curva da praia erma, refúgio perdido do resto do mundo. Pedirá —
não ordenará embora ela até preferisse — que surjam as rochas altas e
redondas em meio àquela tempestade. E terá tudo o que pedir e mais teria se
quisesse e sabe-se lá por que não quis. Por que em determinado momento seus
olhos se cansaram. Surgiu um horizonte descorado como o que lá fora há pouco
baixou do céu e se amassou nos lençóis para frustração e culpa. Nisso os dois
homens foram iguais embora a sequência diferisse: Darken não demorou nada e
estava de novo pronto; Pedro demonstrou com o convite que outra coisa
naquele momento não mais queria ou não podia.

-Então vamos — concorda sorrindo. - Vamos tomar alguma coisa.

Ela está, portanto, no banco do carona do carro de Pedro e no retrovisor


de Darken. Vem de um mundo desconhecido e invade com sua íris pincelada e a
luz em seus olhos o torpor acomodado do mundo ao qual ele se acostumou.
Como o quadro em que o pintor recém-desperto retratou o sonho ideal,
colocado na sala de alguém que desprezava a arte e, a partir dali, passará a viver
em função dela.

No carro. Passando pela ponte. Lembrando como Darken aparentava mais


idade. O fusca ultrapassado perigosamente por um caminhão que em seguida
sumiu na curva após a igreja em que no primeiro dia ela tomou sopa para
economizar o pouco que trouxera. Estava gelada. Ao ver com nitidez as linhas
de expressão no rosto de Pedro, pensou que era homem atraente — como se ela
pudesse saber o que é um homem atraente; como se tivesse tempo de vida para
tanto.

A curva sabe Deus para onde. Está para acontecer o inevitável e isso
basta. Ao lado de Pedro ela se dá conta de como se viciara. Justo ela, ansiosa
dos direitos do livre arbítrio. As sombras vespertinas dos prédios baixos se
desenhavam sobre o bairro operário onde ele teve a idéia de alugar o imóvel na
tarde de uma quinta-feira chuvosa. A dimensão do asfalto era discernida pelas
imperfeições onde os pneus passavam.

Eles falam pela mesma boca, Darken e Pedro. Coisas nem tão diferentes.

- Estou procurando um apartamento neste bairro. Você mora aqui há


muito tempo?

Na verdade Darken não procurava. Hoje ela sabe que ele tem essa
artimanha de sedução. Conseguiu. Não era exatamente no que ela própria estava
pensando momentos antes?

AS LUZES que refletiam nos ladrilhos a coroaram. Pablonunca viu cabelos


assim. Foi a primeira coisa que notou quando esbarraram na biblioteca. Respira
fundo e a segue mantendo distância segura, embora tentado a abandonar a
cautela e, como seu irmão, deixar que as coisas acontecessem logo ou não
acontecessem, mas logo. A marcha no asfalto ainda macio pelo sol não diminuía
ou aumentava a marcha com os ventos de anátemas.
Ele puxa o fecho do casaco e cobre a cabeça com o capuz e nesse
momento pensa que talvez não devesse, pois assim fazem os blackbloc. O ruído
dos carros significou algo quando ela se virou e pareceu olhá-lo como se
respondesse que não, não usava nada nos cabelos há uma semana. Os rapazes
encostados no carro mexem com ela, os inúteis. Pablogostaria de repreendê-los,
surrá-los, mas não. A nora que a mãe de um pedira a Deus. Que idiota! O recorte
dos prédios no crepúsculo é negro, um pouco torto, serrilhado.

Ela o vira de soslaio na lan-house. Um rapaz distinto e elegante ainda que


esteja a pé. Talvez tenha deixado o carro no mecânico. Talvez o tenha
emprestado. Mas num dia de chuva, havia cerca de um ano, ele passara quase
três horas no trânsito na volta do trabalho, e ao chegar em casa, antes de
mesmo de tomar banho e comer, fez as contas e, na ponta do lápis, concluiu
pelo transporte público.

Dobraram a esquina, Pabloe Alice, com diferença de menos de um


minuto. A saia o hipnotizava. O rosto dele é tão meigo — avalia ela pelo
retrovisor do carro estacionado. Pensando bem as roupas dele tampouco são as
melhores para esse frio intenso. E pelo jeito ele é daqui.

Cerca de meia hora depois, na escada rolante, Pabloainda estará perto. No


vagão chega a sentir o cheiro dos cabelos. As pessoas ao redor percebem seu
olhar.

Sonja passava a flanela no móvel e pensava onde a moça poderia estar.


Faz uma semana. O ônibus vencia a estrada reta mergulhando em meio às
centenárias arvores de folhas poeirentas. Ela temia que uma manifestação
bloqueasse o caminho e ficassem presas sem banheiro. Alice, imagine, nada
sabia acerca de manifestações. Era excitante ideia de ficarem sim presas em
algum hotel de beira de estrada. Mas Sonja logo esqueceu e se perdeu em seu
cansaço. Não nasceu para ser mãe, menos ainda esposa.

- Olha vou te dizer — disse a moça do ônibus. - Vim procurar um


emprego, mas meu sonho é mesmo ser dona-de-casa.
Tem gosto para tudo neste mundo. Foi o da própria Sonja um dia. Mas
hoje o cumprimento desse sonho é um sono insuportável. Os membros tremem
de cansaço. E olha que ela é uma fortaleza, a estar certo o que costumava dizer
sua mãe. Até acreditaria, não fosse pelas evidentes camadas quebradiças entre o
que ela é e o que aparenta ser. Antevê o final de seu casamento com indiferença.
Ainda estava sim cativada por aquele belo rapaz que um dia a convidou para
tomar um café na saída do shopping e que tarde agradável. Um café, a pracinha
depois e o mesmo banco por alguns dias até o primeiro e inesperado beijo e a
mão sob o casaquinho que trazia no colo. Em meio a uma conversa sobre a
situação econômica do país, o avanço tecnológico e empreendimento e o
tamanho dos danos da corrupção. O casamento assim nascido.

A igreja surgiu e a fila de convidados para os cumprimentos. O padre é o


mesmo que lhe deu a penitência. Minha filha, disse, mas sabe que diz para nada.

Há três horas os dedos do homem acompanhavam as sombras em seu


pescoço. Caminham pela tatuagem na saboneteira e seguem para os seios
detendo-se nos arrepios mais e mais rijos de um e de outro lado. Precisarei me
lembrar disso amanhã, repete para si mesmo. No meio do expediente sonhando
com a gráfica e procurando à saída o imóvel onde montar o empreendimento.
Quer manter perto o corpo de seu desejo em mãos enfim livres por esses
quadrantes, esse umbigo, esse chakra, encontrando por absoluto acaso o que já
sabia. Vire. Mais.

Pudesse saber o amanhã. Não, não queria. Importava apenas a quinta-


feira ensolarada. Ela continua olhando direto para o sol, desafiadora. Descalça
na grama rente como as unhas. Ela era bonita e forte como uma velejadora.
Estava integrada à paisagem, ao reflexo da água se volatizando na tarde. Parecia
estar ali desde sempre, como as árvores. Na presença dela, ele não vê tão nítido
— verá amanhã, no amanhã que não importa e que amanhã sequer existirá;
lembrar-se-á desse momento, do cheiro da mulher e da luz oceânica que junto
dela ele circunavegava. E lembrar-se-á de um momento anterior, a outra quinta,
junto das árvores do lago. E nas duas quintas choveu igual: uma pancada com
relâmpagos pela manhã e depois a chuvinha miúda ao longo do dia, assim como
no dia em que ela foi se confessar. Estava molhada quando entrou na igreja.

Falaram o que falaram por falar, como acontece sempre antes do sexo.
Escolhas afetivas deviam ser feitas numa pirâmide inversa, da afinidade para os
encantos, e só então chegar debaixo de um casaquinho. Sonja passa a flanela e
Pablo se aproxima. Nunca mais. Mas, se não vai vê-lo de novo, pensa num outro.
Rua afora em busca do amante morto. Do início do bairro aos primeiros brilhos
da baía, recebe os sinais. O que dependa de dinheiro não será obstáculo pois
Pedro foi generoso no divórcio.

O primeiro foi o pianista da boate. O segundo um empresário de menos


idade confessada falsamente na cama que rangia em meio a estranhas
iniciativas, tipo de coisa com que Sonja por causa do amante havia se
acostumado. Ele dirá na delegacia que a encontrou na rua sórdida e que é
possível que a tenha confundido mas não doutor, posso ter minhas taras mas
não sou um homem violento e só extrapolo quando há consentimento.

Pablo se aproximou de Alice e não sabe se o novo esbarrão foi forçado.


Quer crer que não. Que foi o destino.

- Perdoe-me — disse. Ela sorriu em resposta.

Ela não era da cidade, ele teve a certeza. Suas chances cresceram.

- Você é daqui? — perguntou.

- Não. Cheguei há uma semana.

- Ah - disse ela. Não devo me demorar, pensou. Cometer o mesmo erro de


quando cheguei — Irei agora mesmo atrás de Sonja. Então por que se demora?
Por que diz que está indo ao metrô, que tem como destino a estação tal e de lá
ainda pegará um ônibus? Por que praticamente repete o que fez quando
chegou?
- Se você permitir - diz ele - eu posso acompanhá-la. Quando chegar lá
será noite alta. A cidade pode ser perigosa à noite. Principalmente nesses dias
em que marginais se aproveitam das aglomerações.

- Do que se trata? — perguntou ela.

Ninguém sabe ao certo mas ele arrisca que é basicamente um clamor por
serviços públicos de qualidade. - Ademais — acrescentou ele — é mesmo meu
caminho. Alice lê o olhar e vê o quanto é gentil e romântico. Um passante
contempla os belos olhos da moça. O que não é prático a desaponta. Foi assim
com Raphael Pendant.

Num primeiro momento o que mais poderia uma mulher desejar? Ele
sabia conquistar. Mas, como um revolucionário (que em muitos sentidos era),
não sabia administrar a conquista. Ali está diante do pai de Alice. Submetendo-
se ao interrogatório.

- O que seu pai faz?

- Onde você estuda?

- Que faculdade vai fazer?

Como se já estivessem noivos quando sequer eram namorados e ela nem


tinha certeza de que deveriam ser. Mas o calor que sentiu quando ele se
aproximou e outro cheiro se misturou à fumaça das xícaras de café. Acaba de
saber que ele estuda Letras e pretende trabalhar numa Ong com crianças. Não
sabe a relação. Começou a perder aí o desejo. Um cara sem ambição que decerto
não sabia distinguir um Sportage de um Mitsubishi. Mas e o calor? E os lábios
umedecidos? E a intumescida carne? E a sugestão de conhecerem a parte de trás
das pedras lambidas pelo mar do parque?

Por que um cara assim se interessaria por uma menina como ela, Alice
não sabia. Nem por que ela aceitou o convite De perto Pablo não discerne nada
especial. Os cabelos ainda são lisos e brilhantes mas o olhar é banal atrás dos
óculos embaçados.

Há quanto tempo ela não se sentia assim? Estava tentando ser boa. Se ele
fosse atencioso ela não iria se aproveitar. Voltou a ser a menina sempre
disposta a ajudar um colega de classe (um colega menino de preferência) mas
não negaria ajuda a uma menina. Estava tão cansada, tão cansada.

O vagão quase voa. Comum ela se tornara, pensa ele, valerá a pena?
Num sacolejo chegaram a se tocar mas ela entendeu que era normal num metrô
em horário de rush. Ele se mantém calado concentrado em não errar. Quando
chegaram a uma estação que parecia de pequeno movimento aí ele falou.

- É aqui.

Sílabas que não se tornaram sua voz. A moça olhou em seus olhos. Ele
pensou na menina.

Ela deveria procurar trabalho. Disse que faria isso. Até o encontrar na
empresa, era o que pretendia. A luz filtrada pelos vidros escuros naquele espaço
de dia concedia a Pablo sua face mais atraente. Formado decerto. Doutor em
tecnologia ou algo assim.

- Olá. Está à procura de alguém?

- Sim. Do chefe de recursos humanos.

Pensando bem você pode servir.

Ele não pode evitar os seios onde tudo começa.

O rapaz reduz a passada. O comércio estava com as portas fechadas ou


fechando. Não era um período bom mesmo antes, ainda mais agora, por causa
dos saques. Não é um bom negócio as luzes acesas por mais uma ou duas horas,
hora-extra, sem falar da violência urbana na volta para casa. E agora o
vandalismo.

- Desconfio que as coisas tendam a piorar — disse o dono do mercado à


mulher chinesa que estava no caixa. Ela pensou como era possível piorarem. Fez
que sim.

- Quer tomar alguma coisa? — perguntou Pablo. A voz da resposta não


denunciava inquietação e ansiedade, pelo menos ele não percebeu.

- Um suco de laranja, obrigado.

O chinês desejou boa-noite. A mulher passou as caixinhas no leitor ótico.


- Débito — disse Pablo e acrescentou o número. Saíram furando as embalagens
com os canudos. Marca conhecida pela qualidade. Talvez a última refeição de
Alice, requinte concedido aos condenados.

Alta e magra e simples no vestir. Olhos grandes; atentos; perscrutadores.


Tão jovem. Não por isso nem porque bonita — algo em que ela mesma nunca
acreditou. Mas porque era irmã. Porque se fazia adorar e a adoração preencheu
a existência fadada a um final entre livros e convicções exangues. Parada
perante a estante com um deles nas mãos. Estátua de perfeição marmórea e
luminosidade. Reinava. O tomo repousa nas mãos espalmadas quando do
inadvertido olhar. É o ser esperado, a redenção. Exista. Exista pra mim. A
iluminação nas lombadas testemunha o surgimento da criatura. Um dia a ser
lembrado. Ela sai do som da página passada e o encara. O olhar não demonstra
medo mas afronta. O volume flutua sobre as palmas diáfanas. O professor
saberá seu nome num ímpeto que não lhe era comum e após o escândalo jamais
deveria ser.

Quando escutou a porta, Pedro virou a cabeça. Deixou a cortadeira e


caminhou na direção do visitante. Àquela hora não podia ser um cliente. Se bem
que alguns saibam que, por cautela, eles trabalham na gráfica de portas
fechadas.

- Olá?

Reconheceu a voz e não se deteve. Ouviu-se o estrondo da porta


pivotante. O rapaz entrou e se aproximou da mesa maior no centro da sala.
Apanhou com as duas mãos a pasta que trazia debaixo do braço.

- E aí, Raphael, o que tem para mim?

Raphael gosta da forma como Pedro o trata. Sente-se importante. Não


tem nada a oferecer de si mesmo. Poderia estar melhor de vida. No final das
contas fazia sentido o interrogatório do pai daquela namorada. Devia ter
continuado os estudos. Hoje seria um médico ou um engenheiro. Teria um
automóvel, casa própria. Um sítio.

- Aqui pode ser verde. Aqui você quer assim arredondado? - Pedro não
fala mais com o rapaz mas com a mulher que se instalara entre eles.

Ela faz de propósito. Deixa que ele entre antes. Dirigem-se a ele e ela
aparece em seguida. Sou eu quem manda. Está se acostumando. Não vê mais o
projeto estendido na mesa. Olha a moça que veio trazer café. Lembra-se de
Alice. Era o problema dela. Nunca ter trabalhado duro. Nunca ter sido a moça do
cafezinho mas sempre a moça dos filhinhos-de-papai. Que não tardaria a ser
dos próprios papais. Apertou os olhos e a viu.

- Perdoe-me — dissera Alice, quando ele descobriu o caso. - Não sou


mulher para você. Não te mereço.

Claro que não. Nem o pai merecia o filho exemplar.

- Ok — disse a que entrara. Estavam então combinados: verde e


arredondado.

Apanhou o casaco. Dobrou-o no braço esquerdo e saiu. Poder-se-ia


deduzir daquele ricto um sorriso ainda que não houvesse razão. Preciso fazer
alguma coisa, pensou. A chuva que molhou um lado do seu pescoço agora pinta
o agasalho de pequenas manchas escuras cada vez maiores. Apressa o passo
como quem tem uma direção e pressa de chegar. É assim que vê as pessoas que
passam na direção contrária. A voz e o bom-dia do mendigo não soaram como
em outros dias em que não havia qualquer determinação e decidira se acomodar
ao que viesse, sem ansiedade.

Ao virar o rosto, viu a placa do café que não conhecia e pensou que seria
uma boa ideia. Duas moedas não fariam diferença. Colocou o troco na carteira
que devolveu ao bolso lateral e seguiu por aquele caminho não habitual. Quase
outra cidade. Quase outro tempo. Está no grupo de estudantes e é quem fala
agora. O som de sua voz é firme, másculo, fascina as meninas. Conforme os
passos o afastavam, as buganvílias grenás perdiam a cor e contraste.

Foi um começo de ano como há muito tempo não se via na história


recente do País, parado em meio a notícias que não paravam. Mas as damas da
noite ainda exalavam o cheiro de infância que o noticiário em nada afeta e após
o jantar a caminhada pela praia era a notícia mais importante: havia uma praia
onde caminhar à noite.

- Eu não vou abandoná-lo — disse Alice. — Não posso te ajudar


materialmente, mas estarei sempre ao teu lado.

- Não estará, querida — respondeu o professor. Entretanto, agradeceu.

Uma vez Alice viu sua mãe no mato seco amarelado. Longe o verdor mofo
do bosque que se adivinhava na neblina. Deve ter sido uma bela mulher. Nem
tanto talvez, mas cheia de artifícios. Deve ser hereditário. Fazer alguém como
seu pai se casar. Alguma coisa ela deveria de ter. Azul. Um manequim ao ar
livre. Azul — espantalho de grife. Um vento. Um som. Se quisesse poderia ter
parado o sol naquela posição em que sua sombra não mais que borrava o
estalante chão. Foi aqui.

Ele sabia que eu era fraca, pensou a mãe. Que o arrebatamento de um


beijo ousado levaria aonde ele queria ir. Tentou resistir o quanto pode. Não
nasceu para ser mãe. Tanto fazia se acontecesse na possibilidade remota ou na
regularidade matrimonial. Pode ter sido uma coisa ou outra. Alice agora existe.

Ele está calado. Seu beijo é tão ousado quanto quieto. Homem experiente,
ela te compreende. Um filho será estorvo também para você. Um dia teve vida
própria. A filha observa e admira e inveja e não inveja a mãe. A mãe (outro som)
num passo de estranha dança.

Alice escutava um piano: sua mãe tinha esse poder. Não quer porém
terminar como ela. Estavam cheios de resquícios do mato ao saírem pela trilha
de terra. A mulher nem se lembrou de passar na escola como prometera à
professora. O aproveitamento escolar da menina estava em franca decadência. O
traje de mãe se torna um vestido de chita. A mulher descalça como Alice
escondida e pensativa providenciando um borrão móvel para o chão seco e
amarelado.

Luz cortante sobre eles. Sob as árvores que parecem falar umas com as
outras. Olhem. Ficarão juntos. Haverá um final feliz. As árvores do outro lado
da rua concordam, farfalham logo acima de um olhar deliciado que atravessa o
olhar de Alice. Está mais e mais agitada. Oh calma — diz o gato sobre o muro
com um levíssimo tremor de pelos. Pablo põe o casaco sobre os ombros dela.
Você parece estar com frio — diz. Não tanto assim, mas sorriu e agradeceu. Ele
ia falar alguma outra coisa quando passou um carro zunindo. O que ia dizer?
Esquecimentos o incomodam como se significassem idade. Como se estivesse se
aproximando do momento inexorável em que se veria em situação similar à do
malfadado pai. O motorista imagina que já a viu antes. Hoje mesmo. Estava na
biblioteca. No setor de literatura francesa. O carro passou. Não deviam estar
muito longe agora.

Na padaria, Pablo cumprimenta um rapaz. No instante de sua distração


Alice já se havia adiantado e se aproximado do prédio. Sim: é esse número. Um
sorriso e o questionamento de um sorriso. Toca o botão do interfone, inclinada.
A saia acompanha o movimento puro às luzes do poste e da lua em sua pele
misturadas.

- Sim? Alice! Estava mesmo pensando em você! Onde se meteu?

São momentos em que, ao despertar, procura-se a situação do sonho e


tenta entender onde se encaixa na realidade súbita que trouxe o sol na janela.
Alice conhece Sonja. De onde?

— Estou com um amigo, ele pode subir?

Antes que Sonja respondesse, aliás já está respondendo, dizendo que


sim, claro, Pablo disse que não poderia, obrigado. Ele estava atrasado. Precisava
fazer um trabalho em casa.

Ao passar o cadeado, Pedro tenta entender o que aconteceu com seu


casamento. Em que momento aconteceu. Pensar em Sonja é pensar no que
capricho com que arruma os armários. As roupas de Pedro são triunfais paradas
nos cabides. Os cômodos sempre cheirando a talco. Caminha para casa no
silêncio que desce sobre a cidade. Passa a mercearia do chinês. O coração bate
apressado e pesado. Taquicardia? Desde quando? Cansaço provavelmente.
Estresse. Muito sono independente de quanto durma. Frio interior. Não sabia a
razão e talvez não houvesse. Passo largo e hesitante. Por que tudo termina
assim? Aquela Sonja morrera. Sua solidão é a solidão de um viúvo. Na entrada
do terminal ele vê o irmão. Não pode ser. Só um cara parecido — bem parecido.
Olha o perfil. A semelhança não desaparece, antes se acentua, e ele se deixa
levar por momentos da infância. O lago, as meninas, brincadeiras de bola e de
médico. Não pode ser ele. Ele nunca vem para esses lados.

A proprietária de uma livraria demonstrou interesse no momento que


Pablo estava em vias de uma decisão drástica. Lembra-se dela com perfeita
clareza ao deparar com o cartaz da mulher no fundo da escadaria do metrô.
Representava tudo o que sua vida não tinha. Horários. Trabalho. Renda.
Descanso. Lazer. A intenção de Nastácia era fazer dele sócio ou gerente sem
descartar o relacionamento amoroso. Num jantar que tanto poderia ser
romântico ou de negócios confessou o plano e estar apaixonada. Deixou o rapaz
tranquilo e orgulhoso. Ele chegara a temer por sua sorte. Nastácia era uma
mulher feita, experimentada. Seu zelo das coisas, uma espécie de gestão.
Acrescentou ao jantarem, enquanto passava os dedos na sobrancelha direita,
que a proposta não era caridosa. Pablo mostrara nos dias da fábrica merecer
uma chance assim. Não especificou, mas estava incluído o relacionamento no
pacote. Saindo do restaurante, as ruas eram novas para ele. Foi uma tarde
agradável.

Ela foi paciente, carinhosa. Criativa. A brincadeira com o número do


quarto. Fingir que dorme enquanto ele a despe, primeiro despe. Aceitar
radicalizações de que não gostava acordada ou não. Os olhos vendados.
Sujeitar-se a ser amarrada com meias à cama. Nastácia mostrou compromisso
com as fantasias que inspirava exceto — exceto — quando o assunto — no
depois cedo ou tarde — desviava para simplesmente ficar com ele.

Na loja, ela acaricia a lingerie. A atendente olha para ela, inequívoca, mas
ela não percebe. Os dedos no caleçon tremem.

Moça, diz a atendente, você está bem?

O vidro a reflete. Ela tapa os ouvidos com as luvas. Diz para si mesma
qual foi a última vez, mas quando chegou em casa ergueu a perna esquerda, a
sola para o teto, depois o peito do pé na panturrilha direita, como uma jovem
tímida que um dia foi. Na curva do corrimão um brilho azul torna-se referência
para os movimentos da sombra na medida em que os sons se aproximavam dos
significados das palavras murmuradas Porque está namorando. Com ninguém, é
apenas outra vida.
Ao se aproximar do reflexo ela era pura prata pronta a ser derramada nos
olhos de um recém-nascido do anseio de apaziguamento, como ela, com seus
seios apontados para quem questionasse sua. A penumbra dividiu seu rosto,
absorvendo metade.

Amanhã não mais estará aqui. Porque está namorando, mas não é mais o
bastante. O corredor vazio é branco como um túnel.

A calçada. Hidrantes. Casas. O tempo. Os lugares no tempo. Aqui


costumavam aparecer umas colegiais com suas caras rosadas. Ali havia gerânios
mas agora só asséptica pintura branca metálica quase extensão da pintura do
carro estacionado debaixo da janela. Momentos como os que ele passara com
Alice pesam agora não como arrependimento, mas — Quantas vezes pegara essa
avenida somente para ver outro horizonte! Dobrava na primeira à direita vindo
da Prudente Lins e seguia até a igreja da Perpétua Anunciação. O som do
trânsito, os transeuntes, a mensagem de normalidade.. Podia ir para casa e
quem sabe seria uma noite sem brigas. Quem sabe podiam fazer sexo como
costumavam no começo. Mas sem brigas já será ótimo. Eis seu prédio, duro e
frio nas luz do poste e da lua.

Mal Pablo e Alice viram a esquina, num ímpeto simultâneo, os lábios se


procuram. Então se introduziram numa segunda fase em que passado e
presente passaram a se confundir como a resposta de um eco. Eram umas oito
e quarenta e cinco da noite. O percurso até o apartamento é como a névoa que
se mistura à superfície de um lago do qual se ignora a profundidade.

Pablo e Alice em todas as janelas do metrô. Pablo e Alice. Pablo e Alice. -


Daqui até em casa cerca de uma hora - diz ele.

Nesse horário menos, contando a baldeação.


Pedro passa pela esquina. Vê-se no futuro afetado por suas aventuras. Há
uma semana, a moça disse que tinha dezoito anos, mas tinha mesmo?
Imaginemos que não. Imaginemos que os clientes fiquem sabendo. Pusera sua
esperança na empresa. Investimentos em tecnologia não pequenos. Só a
calandra custou 322.500,00.

A torre envelhecida empresta ares lúgubres para a Igreja de São


Sebastião. Virá à missa com Sonja no domingo. O reflexo no vidro de seu prédio
afirma que é ele quem está entrando e é, mas poderia não ser. Poderia ser um
sósia e o vidro ainda garantiria que era ele.

No hall de seu edifício Pedro se pergunta quem é aquele homem.

- Está à sua espera, senhor.

O porteiro procura na expressão do morador um sinal de que não fez mal


em deixar entrar o visitante. Os olhos de Pedro estão pesados de sono. É o que
diz quando o outro o convida para tomar uma bebida quente. Quem é?

Cai em si. Só pode ser. O namorado que Alice deixara em sua cidade no
interior. Os dois homens saem juntos.

- Não a conheço- diz Pedro ao estranho.

- Tem certeza? O nome Ananda não diz nada? Outro nome para o temor.
Não o namorado de Alice, mas o marido — o pai? — de... Ananda? Na entrada do
prédio, deixou que o outro passasse com quase uma mesura e ao defrontá-lo
sentiu-se gelar e pareceu uma boa idéia a bebida quente. Desceram um pequeno
trecho da avenida no sentido contrário das pessoas que entravam na estação e
logo estavam diante do bar e se sentaram. O estranho tinha o olhar fixo em
Pedro. Mundo brumoso que não mais revela ninfas, mas dragões.

Pelo vidro, o café está quase vazio. Menos mal no caso de uma cena. -
Amigo, dois cafés em xícaras grandes, por favor. As folhas rodopiavam e os
cacos no calçamento luziam, do outro lado da vidraça. -Linda noite, não é
mesmo? Pedro assente. Imagina o que o homem pretende, pois sabe que ele
esteve com a jovem, mas não usa isso como ameaça. Era muito mais velho do
que ela, de quem enfim se lembra. Homens muito mais velhos costumam ser
muito ciumentos. Homens-pais também. O fundo vazio das xícaras fumegava.

As pessoas que passam veem dois vultos contra um céu noturno muito
vermelho. A torre da igreja se junta ao desenho. Alguém achará que lembra uma
cena de filme daquelas que indicam passagem do tempo — um casal e a torre da
igreja, depois a cidade vista do alto, depois uma rua específica e um prédio
específico nessa rua. Subindo as escadas, a porta de um específico apartamento.
Alice se virou para o fundo da sala escura. Os papéis de Pablo estão espalhados
pela mesa. A sombra na metade de seu rosto. Ele a vê num dourado escurecido
delineado por ouro luzente. No lusco-fusco a blusa se solta aos movimentos.

À luz do abajur efeitos concêntricos se esticam até os pés, riscando um


espaço improvável. Um espelho e um relógio antigo supõem solstício e
equinócio. Alice está tensa.

- Você precisa de uma massagem - diz Pablo.

Logo amanhecerá e ciclos continuarão narrando a história de uma


existência a ser como todas, esquecida. Terá passado o êxtase e a infâmia.
Então, por favor, este quarto é adequado. Avise-me quando estiver pronta.

A mão esquerda puxa o sutiã por dentro da blusa. Melhor que


perambular pela rua? Essa habilidade das mulheres é pura mágica. Um teto
onde passar a noite. A blusa por cima da cabeça é tratada pela outra mão com
muito jeito como se não fosse para ser uma peça de roupa deixada em qualquer
lugar. Quando ela se abaixa, o olhar oculto a perde por segundos. Por segundos,
o olhar é tudo o que tem.
O fecho do meio vai para o lado esquerdo e é aberto. Não é exatamente a
acusação que Pablo se especializou em fazer ao pai? Entre dois estalidos de
elástico ela diz que está pronta. Ele tarda uns segundos e surge.

Contato gelado das mãos com a lisa barriga e resultado visível no brilho
da pele. O sorriso de Alice pode ser de cócegas ou prazer ou pode não ser nada.
Riso nervoso que ainda a acomete depois de todos esses anos. Dezenove. que
ela começou cedo. Todas começam cedo hoje em dia. Depois, onde antes o
sorriso, a mordida no lábio inferior. A cólica está passando na suspensão
perfeita da dissipação de uma dor. Os olhos apertados. Os lábios entreabertos.
Ele concede valor a cada movimento como notas de avaliação. Face pálida vívida
de quem não sofreu o bastante, mas pensa que sim. Cheiro de banho tomado.
Trouxe decerto algum perfume. Os braços cruzados sobre os seios.

- Permita-me.

Mas Pedro não pôde. Não quero mais sentir arrependimento, pensou. E
seu corpo atendeu.

Acordei no meio da noite, sufocado por tua ausência. Não importa o que
dizem, mas o que dizem carrega essa sentença. Traz teu corpo macio e o leva de
volta. Então me levanto como se alguns passos pela sala pudessem dar algum
alívio e não podem. E eu que sempre pensei que a solidão é algo abençoado.

Os escritos que me pediu, Beatrice, estão anexos; mas não fazem mais
parte de mim. Estão ligados ao vigor que me abandona.

A senhora Chiem diz que a filha não precisa ir fazer as compras. Estude e
passe de ano. Não seria nada mal se ela aprendesse um instrumento. A mãe era
formada e trabalhou fora antes de se casar. Não queria isso para Alice. Melhor é
ter um diploma e se casar com um homem de bem e viver no estrangeiro. Então
Alice foi passear para os lados do lago e no caminho viu a queimada. Por que as
pessoas fazem isso? Queria viver num mundo diferente. Mais verde e mais
justo. Viu de longe a mãe tomar o ônibus para a cidade. Não esqueça essa
imagem. Você também não quer ser igual a ela. Que o de bem signifique um
homem que possa lhe dar o que ela precisa, de outra forma como poderia
refletir sobre as coisas essenciais, como a justiça? Esse homem não tem rosto,
mas pode imagina-lo. Tal prazer não combina com nada que conhece. Escreva
um poema. Vaivém lento o bastante para favorecer o devaneio. Nessa posição
Pablo não consegue se controlar. Pergunta se ela já. Alice preferiria que ele
continuasse calado.

— Oi. Tudo bom?

— Pablo? Tudo.

— Interrompo alguma coisa?

O que ele poderia estar interrompendo, nessa pensão em que a colocou?

— Nada. Achei que você não ligaria e...

— Por que não?

Ele pergunta, mas sabe o porquê. Deixou claro. Só uma noite. Ou não? Ele
paga o lugar para que eu o deixe em paz.

— Paguei a pensão porque você não podia e lá em casa você sabe...

Silêncio primeiro. Depois: — Não daria certo, né?

— Não, não daria certo. Nunca dá esse -

— Nunca -

— Mas quero -

O que poderia ele querer? O coração dela dispara.

— Que bom que você ligou, pensei muito -

Ela na verdade nem pensara tanto.


— Queria te convidar para jantar hoje.

— Onde?

— Passo aí às oito.

— Tudo bem.

— Então até depois.

— Até. Um beijo.

Parou junto à porta na tarde de outono. Não fazia sentido estar ali, e
todavia... Colar os pedaços de um vaso cujas linhas proclamarão sempre a
ruptura. Antes teria recomeçado noutro lugar, sozinho. Agora a ideia nem chega
a se cristalizar. Até o suicídio ficou para trás. No quarto as batidas e a voz
produzem nas feições da mulher deitada uma desanimada excitação. Não
adianta, pensa. Ainda que fique tudo bem de novo, não vai durar. Ela estava
cansada como ele. Pabloentende o que aconteceu com o pai e consente em viver
a mesma situação.

Na noite em que se reencontraram. Esperou-a alguns minutos na sala da


pensão diante da TV. Oi, demorei? Ele sorriu. Claro que não. Tchau, dona
Francisca. No restaurante, embora conversem, ele olha ao redor. Como se
procurasse. E então? como foi o dia hoje? conseguiu alguma coisa? Ela diz que,
bem, talvez. Então ele a olha nos olhos, mas não escuta a própria voz com
clareza. As pessoas estão vestidas quase a rigor. Ela sempre se torna evasiva
quando se trata de trabalho. Por que ela deve aceitar a fúria do mundo
corporativo como sinônimo de subsistir? Ele mesmo se perguntava se as
secretárias que exerciam na firma a mesma função precisavam de toda aquela
estratégia de guerra em nome da subsistência e deixar lar e crianças cuidados
por empregada na prática mãe dos filhos delas. Tão absorto não percebe o
quanto ela teria gostado que ele esticasse o braço e cobrisse sua mão sobre a
mesa. Não está interessado. Por que me ligaria? O que aconteceu após
adormecerem? depois que acordaram na manhã daquela noite? Agora um
amante. Rua sem saída. Os prédios róseos . É para o outro lado. Difícil afirmar
que isso ou aquilo determinou o reencontro e mais ainda a sua conseqüência
enquanto caminhavam e após pararem num ponto onde todas as coisas
permaneceram em suspenso. Em algum lugar alguma coisa de vidro caiu e lá vai
ela para a pensão sem um único beijo. Sozinha no último trecho do percurso e
sem sequer uma carícia libidinosa de adeus. Então se pergunta o que ele quer.

Deixou para outro dia mas não pode demorar. Uma jovem como ela não
fica muito tempo sozinha. Tomará alguma coisa antes para dar coragem. Por
que ela o intimida assim? Não pode mais refugar. Como está linda! Uma rosa
vermelha no meio da mesa. Dizem perto dela era uma safra ótima. Casais à
beira do compromisso em restaurantes sofisticados parecem crianças nervosas.
Ambiente avermelhado contido no sorriso tímido com que Alice abaixa a cabeça.
Não tem roupa adequada mas se sai a contento com as que tem. Bebe do cálice
com olhos num nada à esquerda, quase acreditando. Mesmos olhos o encaram
enquanto ela fala e depois cala e sorri num mesmo ricto. A rosa e o cálice e a
luz avermelhada. Um mesmo enlevamento. O efeito do álcool, o desejo, a beleza
de uma mulher. Folga no dia seguinte. Quem sabe nova vida a partir do dia
seguinte.

Ao entrar em casa Pedro quase disse. Um sujeito muito estranho me


abordou hoje. Por pouco não disse. Iria se trair. Nem pensara nisso antes porque
precisava desabafar e antes de tudo Sonja sempre foi uma boa amiga.

Quando ele se aproxima dela, ela enlouquece. Sem perceberem estavam


no andar superior à sala de aula. Ela o puxou deixando-se pressionar. As
sombras se misturaram na parede lateral. Bons amigos também podiam. Os
colegas de classe riam uns para os outros. Finalmente ele entendeu, diz um.
Uma hora ela ia conseguir, diz outra. Meu Deus, acho que devemos casar, Sonja.
Não posso passar um único dia sem você. Não sei se é uma boa idéia, diz ela.
Íamos pôr em risco nossa amizade. Você mesmo disse isso. É eu disse — diz ele
— mas era diferente. Será diferente amanhã se nos casarmos, pensa ela. De um
modo ou de outro nunca mais será assim. Mas havia aquela parte acomodada
dentro dela. Queria pouco além de ter uma casa e ser sossegadamente feliz. Ela
deixou-se respirar na cama desfeita. Eram casados agora, com todas as
implicações que isso significa. Os aborrecimentos. O tédio. Mas ele parece
realmente feliz. Reconciliar-se com o irmão e estará realizado. Talvez queira
trabalhar comigo. Como vou disfarçar? pensa ela. Diz: O que um analista de
sistemas pode fazer numa gráfica? O que mais será preciso para que ele
descubra? Um dia estava no banho, quando Pablochegou. A última vez que se
viram. Estava no banho e disse alto que estava. Pablopreferia que não
repetissem isso. É meu irmão. Me levava aos lugares quando eu era pequeno.

Alice tem um irmão menor. Não tem certeza se falou acerca dele para
fugir do assunto ou desabafar a saudade ou as duas coisas. O prazer da
ociosidade com o caçula. A cadeirinha de dois lugares na varanda. O assovio
displicente se misturando ao canto dos sabiás segundo o chamado da espécie e
a gaiola do melro sobre eles no mesmo ritmo da cadeira de balanço vazia ao
lado. O vento suave do amanhecer também embalando como um gigante cuja
função era acalentá-los não para o sono. Para o dia inevitável e sem descanso
mesmo em se tratando de dois adolescentes de classe média duma cidade do
interior da rica província. Jonas e Alice acordavam juntos muito cedo e desciam
os degraus do andar de seus quartos um após o outro lentamente como se
cuidassem para que ninguém os ouvisse. Normalmente naquela cena fios dos
cabelos de Alice dançavam sobre sua testa não chegando a incomodar, como se
fizesse parte da canção assoviada que transportava o menino para muito longe.
Olhos entorpecidos confirmam a impressão da irmã. Em algum momento ele
tentava acompanhar o assovio mas saíam apenas sons ocos e desarmônicos.
Sopros apenas que enterneciam Alice quando olhava para ele. Outro órfão de
pai vivo sobrevivendo num mundo sem regras.
— Você está implicando com a idéia. É meu irmão.

Sonja sabia.

— Pode nos ajudar.

Ela sabia.

— Preciso contratar alguém.

Tenho um primo — disse ela — É inteligente, prestativo, honesto. É


perfeito — enfatizou.

Pedro vê uma mulher substancial e discreta recém-saída do banho,


pingando pela casa, falando. Na volta da viagem vim com uma moça — ela
acabou de sair, quer dizer nem entrou. Estava com um amigo tocou o interfone
disse que ia subir se o amigo podia vir junto mas nenhum dos dois subiu. Não
sei o que aconteceu. E agora? Ele deve falar sobre a amiga dela? contar sobre o
estranho dele? A vida é estranha, pensou ao olhar as escadas pela porta ainda
aberta. Sente-se desmaiar com o mal-estar no peito e escuta o som do trânsito
como se estivesse surgido do nada em seus ouvidos. Ouve nítido o motor do
próximo carro. Vê a nova luz da manhã na sala na hierarquia das horas. Sonja
leva os dedos à boca e quase se inclina como se o estivesse cumprimentando. A
toalha escorregando. Ele desvia os olhos. E essa sua companheira de viagem, era
bonita? Ele pensou em perguntar. Mas não saiu qualquer som de sua boca. É um
bom homem — pensou ela quando se decidiu. Provavelmente um melhor
provedor. Quando fazia faculdade ela apreciou a forma como ele abandonou os
estudos para ganhar a vida enquanto Pablopermaneceu fascinado pelas
possibilidades pessoais. Ah — suspira ela com a mão que apertou o nó
atoalhado erguida como quem implora alguma coisa a Deus com olhar
correspondente para os céus à janela.

A cidade efervescente em volta dele. O rosto da irmã, o corpo da irmã.


Lágrimas no anoitecer febril. Jonas: um ótimo aluno. A ponto de tomar coragem.
Quantas masturbações necessárias? Quantas abstenções? Sons do dia nascendo.
Os prédios no caminho para a escola. Os pontos cheios antes do seu. O dia
começa. Não há solução. É pecado. Não é natural. Numa manhã perfeita a alegria
proibida de existir. Nem cabe um bilhete. Diante do inelutável a vida sequer é
alguma coisa mas a morte sim algo a se viver. A ser criada como o túnel para a
liberdade do prisioneiro.

Será por isso que sou assim? Pelo que aconteceu a meu irmão? Faz
diferença se for? Se amo em Pedro meu castigo como poderei amar a felicidade
com ele? Uma morte entre outras a ser abafada como tantas nos subterrâneos
do metro ou nos corredores da escola. Um aluno qualquer; um irmão qualquer,
de outra espécie. Ninguém precisa dele. Até Alice tem se afastado ao perceber
que as brincadeiras estão indo longe demais. Jamais me afastarei de você.
Talvez seja fruto da culpa em seu coração que também existe no meu. Mas
precisamos superar. Precisamos viver. Preciso de você. Não me abandone. A
irmã notou que algo estava para acontecer. Na rua nas coisas que aconteciam.
Nas cores do céu um presságio. O sistema de som está dizendo que estamos
esperando o vagão à frente concluir uma manobra. A escola dirá que lamenta
pensando em formas de manter ocultos os casos ocorridos com outros alunos
sob o peso do rigor do colégio. Pelo menos a motivação de Jonas terá sido outra.
Pelo menos isso.

Luzes ruidosas em uma manhã como as outras. Como se fosse a


primeira. Um mar não distante reluzindo. Algo mudou. Igual ao resto do mundo.
Um mundo esperado para começo. Ela a seu lado. Alguém dedilha um violão
assim cedo. Como luzes à tona. A questão é que isso é demais para ele. Não é
alguém assim. Não se acostumará com apenas um amor. Em algum momento se
cansará. Finge que não pensou isso. Varre o pensamento para debaixo desse
tapete mágico que são as emoções do momento.

Quieto a contempla adormecida. Alice considerara o desempenho


perfeito e imaginou que ele devia ter um milhão de amantes. Nenhuma
diferença considerando que não o amava. Nem poderia. Não há amor no mundo.
Segurança material é segurança material e quem a provê a provê. Sem
transformação de sapos. Sexo é sexo. Que história é essa de noite de amor? Nem
foi uma noite. Sequer uma hora talvez nem meia. Estaria tudo relacionado à vida
material? Reduzido assim ao prazer? Ela sentou-se na cama. Aquele era o
mesmo homem que há poucos minutos a agarrara por detrás, as mãos fortes
apertando seus seios, a boca em seu pescoço. Calada não havia zombaria em
seu olhar. Pedro parece não acreditar. Olha-a perplexo enquanto ela diz para
irem devagar. Diz: Não quer comer alguma coisa antes? Não tenho fome — ele
respondeu. A voz era humilde. Ela se aproximou encarando-o. Pelo menos me
ofereça alguma coisa. Eles já tinham tomado o cappuccino. Vai se zangar se
ainda estou com fome? O que significava aquele olhar, ela se perguntou. Quem
era aquele homem? Por que mexia assim dentro dela?

— Por que você não se serve na cozinha?

Ele adiantou-se e passou por ela. É por aqui. Alice o deteve num abraço
por detrás, deu a volta e passou a desabotoar a camisa dele. Você é um homem
muito atraente. Não a cozinha mas o quarto. Para alguma coisa ela tão jovem
tem tanta experiência. Mas ainda será um homem sem função. Ela não o
condenava. Sequer parecia decepcionada. Por que achei graça em teus olhos? Se
você está como fome a hora é essa. Oh me perdoe. Tudo bem. Vamos sair e
comer alguma coisa. Uma coisa ela sabe: se tivesse uma renda poderia talvez
amar e então existiria amor. Um trabalho gratificante como sua escrita. Poderia
amar. Não é tão má. Vejam, está até chorando. Quando descem para que a leve à
pensão, será a primeira coisa que o porteiro notará. Os olhos vermelhos.
Primeiro imagina que tem a ver com gás lacrimogêneo. Logo descarta a hipótese.
Brigaram com certeza. Nunca esteve antes com mulheres e não soube como
tratá-la. Ou ela descobriu a homossexualidade — no caso a bissexualidade. Alice
não foi nem um pouco com a cara do homem. Não gosta de gente intrometida.
Pablosequer o viu, cumprimentou-o sem olhar. Pensava em como iria viver sem
aquela sensação percorrendo seu corpo todas as noites. Aquele bem-estar. Tudo
o que se subtende do pleno prazer sexual. Não é por isso que homem e mulher
se juntam? O porteiro não acha isso. Embora há vinte anos casado jamais sentiu
nada parecido.
O espelho do hall distribui luzes e sons.

Risos mais se escutam do que virar de páginas ou caneta em papel. Uma


cadeira vaga. De admirar que a biblioteca tenha um livro desses, mesmo em
inglês. Uma moça na cadeira da frente. Precisa se concentrar. Precisa. É o
assunto que fascina Sonja. Leis tecnológicas. A enciclopédia em sua frente
confirmava essa visão das coisas. Veio à biblioteca consultar uma de papel, das
antigas e pesadas, caras e raras. Para se chegar na mesma informação pela
internet gasta-se tempo demais com lixo. Agora vê que tudo pesados todos os
aspectos mais ou menos dá no mesmo. Que menina linda. Difícil tirar olhos
dela. Então imaginou a figura de Rheya. Após o resumo de Gravinsky, novas
teorias se multiplicam. As inovações não têm fim. Mas há um fim para o
conhecimento e, além desse limite, é o enfado da carne.

Que tipo é esse Pablo? Como qualquer homem bem adaptado ao mundo
resume a vida entre casa, trabalho e restaurantes nos dias úteis e seus finais de
semanas de presumido descanso são gastos na lascívia de pretextos que se
sustentam até o usufruto. Freqüenta o salão nobre de clubes quando de alguma
confraternização da empresa. É discreto. Suas pequenas aventuras ninguém as
nota. As maiores tampouco. Não tem opinião formada além do juízo geral e
mantém perfis em todas as redes sociais. Ali é plenamente feliz e faz questão de
que todos o saibam. Exulta quando percebe a aproximação de um ou outro
contato. Não acredita que se possa usar os dados privados exceto para
personalizar a publicidade. Acredita que tem escolha; que quem só vê TV aberta
é que não. Se a linha dos lucros continuar em queda lenta mas regular será pior
que a inconstância dos ganhos e perdas alternados a cada mês, augúrio de
inflação ou coisa pior. Bom que tem enfim um bom salário reajustado pela
mesma inflação. Há um destino pessoal ou todos estamos agregados num
mesmo link? Um destino para os países além do crescimento? para seus
habitantes individualmente? E os que não tem mais essa necessidade, como os
nórdicos? Um homem comum, enfim. Desses para quem a questão deixou de há
muito a carência mas como o administrar o excesso. No fundo concorda com o
pai. As palavras dele estão cheia de uma sabedoria em cuja eficiência todavia
não consegue crer. Balança a cabeça e seus olhos brilham esverdeados como o
alto da ponta de um mamão que acabou de ser cortada. A menina à frente, cuja
blusa azul se amarfanha em atabalhoados movimentos que acentuam a forma
dos seios e as marcas, balança a cabeça afirmativamente para a colega, vendo
com o canto olho que ele a olha enquanto espanta a dúvida de que foi injusto o
que fizeram com o velho. Jamais maltrataria qualquer criatura. Quanto mais
uma humana feminina adolescente. Pisca e entorta o corpo para o lado direito
onde apanha o outro volume sobre a mesa. Logo abandona a compaixão
incômoda e volta a pensar que a vida é um excesso mais do que se pode
administrar.

E essa Alice, quem é? Começará a descobrir naquele salão de biblioteca. A


tarde do começo de outro inverno entrando pela clarabóia e um homem maduro
(já o chamam eventualmente de velho) a observa, aliás contempla, à luz também
das lâmpadas frias recém-adquiridas na última licitação que a prefeitura
realizou antes do escândalo. É o que ela é. Existe segundo os olhos que a
contemplam, isto é adoram — não, é outra coisa, ou seria apenas o vermelho
dos lábios e é antes algo mais para a transcendência — ou seria apenas a
mistura do sol com as lâmpadas novas mas tem mais a ver com revelação. Som
de tosse e murmúrio e risos abafados para a recém-nascida Alice parece som de
seres humanos contrastando com divindades silenciosas ao redor. Mantém o
livro entre as mãos, ou melhor os dedos, as pontas dos dedos, mal tocando a
página que será virada. A página foi virada e na nova página pode descortinar a
combinação de letras que escrevem algo ainda não inteligível. Luz refletida pelo
papel quase espelho. O vestido tremula ao cair em ondas de sonho sobre o
corpo sereno porque desisti de desejar. Corpo fresco como o de Beatrice mas
ele não irá lembrar de Beatrice. É outra coisa agora. Luzes e sons de deuses que
desistem de Deus. Um anjo. Ela relanceou os olhos em volta. Ele estava ali.
Olhou o livro. Nova página. Uma viagem. Anjos livres vagam livres não porque
vagam mas porque vagam sabendo não haver destino. Os olhos estão abertos
pela primeira vez. Brilham junto ao reflexo nervoso das lâmpadas como
varandas molhadas sob a lua cheia. Pela primeira vez o mundo a seu redor.
Pessoas iluminadas pela luz em seus próprios olhos. Página nova. Seu dedo
conhecendo o toque com que a virará. Mal toca daí a alegria. Não por nada em
particular e por tudo que num segundo se deixa vislumbrar sem memória. A
linha com que o pintor finaliza seu quadro abre o tempo antes do início do
próximo. Aí está. É você. A pausa explica o movimento.

Ao segundo ou terceiro sinal de que não iria dormir mesmo, levantou-


se. Anda como quem vai ao banheiro mas passa e abre a porta rangente do
escritório. Sentou-se e diante do computador imaginou o que poderia ainda
dizer que já não houvesse dito. O frio é suficiente para que ponha o suéter com
a delicadeza de um rapaz que cobre a namorada após o amor. . Escuta a
constância dos componentes.

Sou tua amiga, ela costumava dizer. Sou tua amiga, você não está
sozinho. Não sabe quanto tempo acreditou. Tempo demais. Bastante para
chegar nessa encruzilhada. Há meses teria saúde para recomeçar. Forças de
arrumar a bagagem sem se cansar desse jeito. Não é uma encruzilhada. Não há
caminho. Mesmo para trás se fechou. Renascer é licença poética proibida.
Cinqüenta e cinco anos sem amanhã. Você não está velho, ela costumava dizer.
Você não está velho. Entrou numa idade em que são necessários cuidados. Só
isso. Um clique estranho. O computador reiniciou sozinho. Desconcentrou-o e
sentiu a coluna. Minimizava. Nunca disse a ela. Se disssse ela acharia que era
ainda menos. Ela acreditava piamente em Savone como escritor.

Caminham para pegar o metrô. Ele está fazendo isso para se livrar dela
como antes o objetivo era levá-la para casa dele. Mesmo assim disse alguma
coisa com suficiente graça para que ele abrisse um sorriso com olhos
semicerrados fixando os lábios dela. Um cara tão gentil. São todos iguais. O céu
se desbotava como se fugisse do fogo duplamente visível nos olhos que levavam
Pabloa pensar. Bonita. Culta. Inteligente. Por que uma moça assim permanece
sem trabalho? O mesmo que ela pensou há pouco. O que há de errado com o
mercado de trabalho hoje? Tinham alfinal afinidade.

Ela atravessa a rua após olhar para um e outro lado. No meio da


travessia ao se sentir segura dá-se ao luxo de quase desfilar. As mulheres são
iguais. Obedecem a vaidade misturada com sedução não importa a situação em
que estejam. Quase caricatas. Ele se consome por causa dela. A velha história.
Renovação de caminhos conhecidos e como que esquecidos embora não, não
pode ser, o que leva ao jogo é a saudade da volúpia experimentada na
adolescência e depois sob os pretextos mais diversos repetida nas contradições
do tempo embora não mas não não é jogo exceto no sentido de que a vida é um
ou que pode-se jogar apenas diletante, sem ser a vera, embora seriíssimo. O
fascínio pela mulher mais velha ao ganhar o homem idade irá se inverter até
chegar à lamentável condição de seu pai. Onde Alice entra nisso? Não tão jovem
mas com evidente experiência sem nada supor uma mulher madura. Elo algum
com a menina e muito menos com a antiga patroa. Ela agora corre. Ele já não a
vê e portanto não vê os cabelos esvoaçantes adejando negros e luzidios nem os
pés descalços ou o sapato cujo salto quebrou ficando para trás no asfalto após
ela perder o passo e claudicar mas não parar e seguir até o outro lado. À porta a
dona da pensão olha para Alice e precisa menos de um segundo para entender e
dizer a si mesma que sim é claro que entende o que está acontecendo, pobre
moça, enquanto ele num átimo vislumbrou o futuro e por medo da
responsabilidade sem convicção o rejeitou.

Para trabalhar tanto assim deve ter em casa uma mulher gastadeira. Só
Pedro sabia o quanto Sonja era simples. O quanto seu coração era generoso.
Bem verdade que houve mudanças. Desde quando e por que, não sabia. Agora
um fato novo, pensou ao olhar as gotas reluzindo nas cores do letreiro. Após
levantar a porta de ferro para a ampla sala que a lâmpada fria iluminou e deixar
o empregado entrar dois passos, não dispunha de outros argumentos para
justificar seus casos e os via se aproximando perigosamente de sua vida. Da
tranquilidade de sua vida apesar de tudo. Do amor que sentia pela esposa. Vira-
se para a rua. Ainda é noite. A massa de ar polar determinou uma noite de
tempo nublado e temperatura em declínio. Agora são 06:09h e os termômetros
registram 10.4°C. A tendência é que a temperatura caia mais. O trânsito na
avenida está fluindo como não costuma nesse horário. Por que esse rapaz
precisa ligar o rádio tão cedo e tão alto?

Há movimento na rua. Gente que começa o dia cedo como ele. Quando os
funcionários estiverem entrando no emprego que deixou na Imprensa Oficial, o
sol já estará alto caso a garoa realmente pare no meio da manhã. Tem receio de
que o tal namorado de Alice apareça. Ou o pai da Ananda. Tem receio de si
mesmo, claro. Aproveite o alerta antes que o momento passe. Nada é tão
tentador quanto a paz.

Sobre as flores bordadas em relevo na fronha fria exceto pela superfície


onde repousava a cabeça de Alice a luz não absorvida ou espalhada percorre
nos traços tranquilamente tristes sucessivos focos ondeados em seu semblante.
Chegara a chorar. Quão ridícula por nutrir tais sentimentos. Adormecendo virou
à direita em passos largos para as pernas não tão longas agora enrijecidas no
arrepio. No espelho as transformações de seu corpo dentro da camiseta que
ainda quando viver com Bianca usará para dormir. Envelhecendo. O abajur
especula sobre a imagem refletida.

Pedro adorava qualquer momento com Sonja. Se instalara no passado do


qual ela queria fugir. É que sofreu muito embora sempre tenha sido uma menina
forte, adolescente que enfrentava o mundo e mulher não tinha tempo para
perder com coisinhas de mulher. Como ele gostava de saber isso e aquilo!
Quando menstruou pela primeira vez e o que sentiu no primeiro beijo. Você
não é meio depravado?
Não se chocava mas não falava de si mesmo. Ela tampouco se mostrava
interessada em ouvir. Casal perfeito. Onde deixaram de ser? Onde estão os
quinze anos dela e dele os dezenove? Meu Deus, esse rádio! Ajoelhou-se. Acesse
e assine. Sonja, perdoe-me. O bairro foi residência e ateliê do artista. Sonja,
perdoe-me, eu Você precisa acreditar que eu te amo. Sempre te amei. Táxi com
passageiros podem usar as faixas em qualquer horário. Ajoelhou-se?
Caminhoneiros continuam bloqueando as principais rodovias do país.
Dramático demais. O presidente do Egito rejeitou o ultimato.

— Abaixe isso, por favor!

Não soaria autêntico. Precisa antes afastar-se das tentações. Por que
então está lembrando o momento em que viu Alice entre as pessoas e a chamou
para um café e seu coração se alegra ao lembrar o beijo? Segura-lhe o queixo e a
puxa para si. Seu polegar aperta-lhe a face. Intensifica-se a sombra ao longo da
maçã de seu rosto. Ele está dizendo Vamos, gostosinha? Inacreditavelmente
vulgar. O segredo. Amor camaradagem não é sensual. Em algum momento é
preciso mudar a estação. Onde ela estará agora?

Alice escuta a voz como num sonho. Eu queria que você fosse morar
comigo. Mal pode acreditar. Toque-me. Veja a minha mão perto da sua. A vida
que sonhou. O lar tornado realidade quando menos esperava. O trabalho está
mudando — pensara Pabloao conseguir seu primeiro emprego formal. Não faz
sentido duas horas gastas numa condução e o estresse que daí advém. Por que
não se permitir então amar essa mulher assim jovem experiente submissa?

Como agir agora? simplesmente aquiescer? Parecerá fácil demais. Mulher


que depois o homem não valoriza. O rosto virando lentamente. Lábios pálidos.
Olhos opacos e cabelos ressacados. Nem por isso deixa de impressionar a sua
beleza trágica e majestosa. Num movimento teatral pisca e dirige enfim o olhar
para os olhos dele. Está prestes a acontecer ou já aconteceu. Sabe Deus tudo o
que escutou a respeito. O que lhe aconselharam. Filhinha — dizia sua mãe.
Amiga — dizia a irmã de Öffner. Princesa — dizia o pai. Todos sabiam como agir
em qualquer situação. Agora você é mulher, precisa se comportar. E todo aquele
palavreado conhecido. As vozes se superpõem em seu cérebro. Ecoam. Ecoam.
Mas o que importava a qualquer deles e por que na verdade deveriam se
importar? quem dentre eles adoecerá se não der certo e quem celebrará caso
sim?

No fundo sou uma pessoa boa. Não quero enganar ninguém. Quero fazer
um homem feliz. Sou responsável. Não era pretexto quando disse que viria
procurar trabalho. Procurei. Quando encontrei Pedro tinha procurado. Na
semana depois da noite com Pablo. Em que dia deixei de sair e correr atrás?
Meus documentos estão em ordem; abri a conta no banco; tirei passaporte, caso
a oportunidade surgisse em outro país. Tentei. Por que me sentirei culpada se
encontrar um homem que cuide de mim e me dê o teto em que eu possa
trabalhar de verdade?

Retirando o olhar de Pabloela respirou fundo e relanceou os olhos para o


teto. Chorava. Embaixo da foto mais recente postou o verso. Está de perfil, sem
pose aparente. O abajur é auréola cuja luz se estende aos objetos na
penteadeira. As coisas mudam depressa. O texto ainda comove mas nada tem a
ver com seu momento. Ela não se importa porque pensa que foto e escrita só
eternizam sentimentos que passarão. No caderno à frente do notebook Alice
desvenda Pedro. Desvenda por meio de palavras novas uma bondade antiga.
Purifica num corpo campo de batalha alguém tão corrompido. Discerne nele um
outro e outra a si mesma. Valoriza a capacidade de trabalho e a dedicação que
não permite que o tempo se perca. Porém não tem o costume de ler. Chegou a
pensar quando a viu: como uma jovem com tal perfil desperdiça seu tempo com
inutilidades de intelectual. Podia por exemplo ter posto uma cor nessas faces
morbidamente pálidas. Mas o irmão, que também desdenhava a leitura, saberá
aproveitar.
Há essa possibilidade. Ela nunca soube moderar as reações durante o
sexo. Tenha sido um tapinha para que se contivesse. Sair do prédio com um leve
giro do pulso que traz o visor do relógio para diante dos olhos e então saber
que o sol está onde deveria estar. Alice silenciosa sem sombra. Num ponto mais
calmo da cidade no ouvido de Raphael soa o noticiário da hora do almoço que
Pedro não escuta. A aglomeração quando chegava era mais do que um protesto
de professores por melhores salários. Preserva orgulhoso total alheamento em
relação ao que acontece no trânsito e na cidade exceto pelo paradeiro da moça
— onde a poderia encontrar? Jamais saberei. Sei que ela. Ela. Meu pai costumava
falar esse tipo de coisa. Jamais acreditei. Tem a ver com esse calor benigno. Com
o desejo de que ela esteja bem.

Estou bem? É esse desconforto estar bem? a noite escura da alma? a


madrugada mais negra próxima do amanhecer? O suor lhe mareja no rosto e
súbito mareja dos olhos a certeza distraída. Não queria que tivesse sido assim.
Afinal ela era minha amiga, minha única amiga. Me ofereceu sua casa. Sua casa,
imagine. Suando e chorando. Pensa que ela queria apenas trabalhar e ele tinha
uma empresa. Se ele tivesse oferecido a vaga de secretária de que tanto
precisavam. Se tivesse sido generoso. E o que mais ele podia fazer senão me
seduzir? Ela era uma criança. Talvez ainda seja. Uma criança agora com uma
criança pra criar. A criança dele. A minha criança...

Pedro sentou-se na cama. Tentando discernir o que fazia parte do sonho


e o que tinha mesmo acontecido. Forçou a mente mas o sonho se esquivou.
Deixe pra lá. A luz azulada da TV mais uma vez não desligada banha o quarto
de um céu estranho também onírico. Vale a pena se angustiar assim com tão
sublime luz à janela? Essa expressão de alívio está mentindo. Sonja aprendeu a
interpretar os sinais. Ele fala.
-Oi amor, dormiu bem?

Sim, e ele? Muito bem. Em que estaria pensando? Sonhei, ele quase disse.
Mas nem se quisesse poderia dizer com certeza o que sonhara e o que era
simples recordação.

A parte em que ele abre a porta para Alice naturalmente era do sonho. O
coração dispara. Ou ela estaria mesmo ali, a amiga, a companheira de viagem?
Recentemente chegara. No mesmo dia em que a encontrou? Não. Já recusou a
idéia. Pense com clareza. As coisas que chegam desse outro mundo se originam
no temor. O olhar de Sonja inquisidor paira no quarto. Força passagem pelas
fraquezas de Pedro e esbarra em seus pensamentos. Diariamente um
pouquinho. Ele não tem a menor idéia do que ela sabe. Por que teme tanto
assim? É porque a amo e o amor começa no respeito. Então é isso. Amor.

Tudo passou. Não foi esquecido mas passou. Pode ser lembrado mas não
assusta.

Recente pesquisa diz que as pequenas empresas duram em média não


mais que dois anos. Há dois anos abrira as portas da gráfica. Sonha agora com
uma editora e por que não uma livraria?
Ali no trecho da rua por que passaram no primeiro dia lavada pela chuva
e recendendo sua infância de asfalto ele a encontra e pensa que é seu dia de
sorte. Era um dispositivo difícil no mercado. Alice uma ou duas vezes no futuro
olhará o pacote indagando o que poderia ser — ela, de quem seus pequenos
vizinhos no interior zombavam chamando de gatinha e logo emendando a razão
não ligada a beleza mas a curiosidade. Conforme foi crescendo e se tornando
moça, se perguntavam a razão de uma menina tao sem graça chamar a atenção
dos meninos mais velhos e — diziam — até de homens casados.

Naquele instante desenvolvido a partir de convicções que de súbito


ruíam, encontraram-se e foram tomar um café. Ela viu um homem belo e altivo
emergir da multidão. Faz um tempo. Agora Pablo e Alice estão estabilizados no
apartamento pequeno no subúrbio suficiente para que cada um tivesse o seu
próprio escritório com pequenas adaptações no quartinho de empregada
enquanto um filho não vinha (não pretendiam que viesse tão cedo). Um filho
será renovação que ela não pretende.

Aperta o botão do elevador com o dedo ainda molhado. Porque as coisas


acontecem até um determinado momento e há um limite para tudo incluindo a
coincidência e o desespero e felicidade e de algum modo estão mais ligados do
que se imagina, um homem a quem se ama e outro do qual depende. Resta
entender o passado como entende o futuro, alguma coisa amorfa encaixada no
dia de hoje que não o deve preencher e no fundo sequer motivar ainda que ela
possa se lembrar da virilidade dissipada e imaginar o que seria se tivesse se
consumado dentro dela. Nada relacionado a isso que o marido licitamente
poderia fazer todos os dias e entretanto mal e mal nos finais de semana. No
corredor ouviu o celular tocando dentro do escritório. Não correu mas se dirigiu
firme na direção do som. Alô? Bátegas na clarabóia.

Apesar das dificuldades o casal resistia graças a raros momentos de


encanto deslocados da rotina conjugal. Subitos sonhos que se desprendem de
onde quer que estejam e fugazmente se tornam realidade. Ainda posso pensar
que um é outro. Por que não? Que mal faço e em que transtornaria nisso a
ordem dos mundos?

Cortinas dançantes na sala de jantar. Ninguém à mesa posta. Luzes e


sombras na parede. Som de portas. A esposa descobrira o caso de Pedro com a
professora da sobrinha que um ou outro ia buscar na escola quando a mãe não
podia. Sonja disse que queria o divórcio mas pouco depois hesitava. A verdade é
que o tormento não se instala de um momento para outro. É concebido, gerado,
nasce e dura, dura e vai afetando o universo ao redor até não mais restar
consciência da vida antiga quando se admiravam e respeitavam.

Alice não faz idéia do que possa ser um presente com tais dimensões e
formato. Há algum tempo ela foi abordada na rua por um rapaz elegante e não
soube o que fazer quando ele se apresentou e disse que, se ela permitisse, iria
lhe mandar flores e alguma coisa mais. Devia ter se antecipado à empregada que
duas vezes por semana fazia a faxina e visto ela própria quem estava batendo.
Agora é tarde. Desliza pela sala com o embrulho.

Vivo e móvel o azul enquadrado na janela. Faz um ano que se casou.


Deixe-me te contar — disse para a amiga que não via desde os tempos da
infância no interior. Então:

-Eu estava na rua do metrô, próxima das escadas rolantes. Um frio de


rachar. Ele estava a meu lado no vagão e conforme as pessoas entravam ia se
aproximando. Você o conhece. Não dá para não perceber um homem assim a
seu lado, não é? - a amiga riu e o imaginou a seu lado. Melhor evitar a tentação.
Seu rosto sereno de amiga está tenso. A imagem de Pablo se dissipa enquanto
Alice continua falando.

- Cheguei a pensar em me matar mas não sabia como, não suporto dor.

Aleksándra, a amiga, estava sinceramente em suspenso. Em seu rosto,


uma expressão que Alice conhecia bem, do espelho.
- Quando passava pelos prédios e via as luzes dos apartamentos, meu
coração se apertava. Precisava de um lar. Angustiava não ter um teto sob o qual
passar a noite e paredes entre as quais pudesse me abrigar. Ele? Imagino que
estivesse todo o tempo me seguindo. Pra falar a verdade me esqueci dele. Entrei
na lan-house...

— Você não tinha nem celular?

— Não. Ainda não hoje tenho. Mas então entrei — continuou — com o
endereço da moça que veio comigo. Fui pro computador saber pelo site de
mapas onde ficava a casa. Quando descobri, já não sabia se devia mesmo ir.

- E ele ali na biblioteca todo o tempo?

- Ele ali. Provavelmente me seguia.

- Você tem sorte — diz a amiga. É um homem bom.

Perguntou-se o que era aquilo, colocou a caixa sobre a cama e desceu;


algum tempo ainda ficaria se perguntando pensando no papel de presente com
o mesmo tipo de pensamento com que descia as escadas e que a envolvia ainda
quando chegou à rua. Havia pouco pusera o vestidinho verde que ocultava suas
formas e chegou a chorar ao se olhar no espelho e ainda fungava ao abrir a
porta. Na portaria a luz perfeita iluminava a passagem de um para outro mundo
entre os quais a luz aponta para um terceiro e provavelmente o único, o do
amor sem relações humanas. E o que haveria se Deus nao tivesse criado o
homem. Assim passariam os dias, ela pensando num futuro cada vez mais
possível, o que a inquietava (porque quando o devaneio dizia respeito a coisas
improváveis de algum modo parecia mais real); sua figura passando a fazer
parte do interior da biblioteca, funcionarios a chamando pelo nome e tudo.
No final das vésperas de feriados as cidades grandes estão vazias e isso
deprime Alice sobretudo depois que começou a trabalhar no centro cultural.
Nesse outono cheio de cores e aromas por tanto tempo idealizado entendeu que
seu lugar no mundo era anunciado em cada dor de cabeça, em cada tristeza, em
todo desconforto, sobretudo pela alegria gratuita da contemplação de um pôr-
do-sol e das pessoas na rua sobretudo das pessoas na rua num pôr-do-sol
voltando do trabalho, esse descanso que se faz por merecer nos dias em que a
vida parece plena e cheia de tudo, pelo que o ócio não cabe nos dias.

No bar, olhando através da janela, Pablo pensa que ela não o amava mais,
que ela nunca o amou. Que essa é a razão de sua frieza. Mas ela o ama tanto
quanto pode amar. Passou sim a ter repulsa ao sexo. Preciso esquecer — pensou
ela, levando as mãos ao rosto num gesto de quase devoção. Quando ela ficava
assim, Pablo tomava suas mãos e as beijava em lágrimas. Tantas que em algum
momento não mais a comoveu.

Nessa noite chegando o pensamento a uma profundeza oca e sem sonhos


e o corpo sacudido por alguma coisa próxima a soluços, sentiu-se viva como um
peixe que se debate. Parecia estar escuro, pelo menos ela não via nada embora
continuasse ouvindo o movimento da rua e sentindo-se praticamente na rua,
deitada na rua. Ouviu um nome e demorou mais do que deveria para entender
que era o seu nome antes de perceber de quem era a voz.

Os irmãos conversam no bar. Olham ao longo corredor cheio de


memórias, o espelho que um é para o outro. Até do homem que um dia
apareceu no hall eles falaram.

Fizeram o pedido e Pedro seguiu o movimento dos lábios vermelhos que


mencionavam bebida alcoólica. Resistiu a perguntar desde quando. Pablo era
adulto. Tiraram os blusões ao mesmo tempo. O mais velho colocou o seu no
espaldar. O mais novo o deixou solto no colo.

- E a gráfica, como vai?


- Vai bem. - Tudo bem graças a Deus.

Depois que Pedro lembrou o incidente em que o menino Paulo estreou


um carimbo com seu nome na porta dos vizinhos fez-se um silêncio pesado.
Pablo afastou o saleiro do centro da mesa sufocando o pássaro da toalha no
justo momento em que o irmão teve o mesmo impulso.

- Esse inverno está mais frio que o normal não é?

Pablo pediu licença e foi ao banheiro. Pedro seguiu-o com o olhar e


quando a portinhola se fechou ele tornou a se perder nas lembranças. Na volta
Pablo se viu no vidro da janela em tom sobre tom. Estava ficando calvo. Sentava-
se quando percebeu que o murmúrio que pensara ter ouvido realmente ouvira e
que o irmão esperava uma resposta.

- Como? — perguntou.

Pedro repetiu. - Diga o que sabe a respeito de Sonja — os olhares se


cruzaram num ponto até então impensável. - Tenho escutado coisas — disse. -
Seja franco.

Pablo afastou o rosto num movimento imperceptível e sustentou o olhar.


- Vamos, pode me dizer.

— Do que está falando?

Pablo desliga o telefone. Tira os óculos e aperta o cenho. Diz à secretária


que desmarque o cliente das duas. A foto de Alice o observa.

- Não sei nada exceto que jamais vi amor tão grande — respondeu Pablo. -
Você tem sorte — enfatizou.

Alice procurava trabalho como as meninas esforçadas que não se


contentam com a educação formal que se estende sem fim sob as asas dos pais.
Como eu pude ser tão cruel e me aproveitar da situação?

Está bem — pensaram juntos. Deixemos disso e falemos direito de mamãe.


- Outro dia ela deixou a torneira aberta e quase inundou a casa. Outro
esqueceu o forno e mais um pouco haveria um incêndio.

- Mas isso pode acontecer com qualquer pessoa — retrucou Pedro.

— Não com tanta frequência, meu irmão. Por isso fui num médico amigo
meu e ele disse...

O avental do garçom um dia foi vermelho e um dia talvez tenha sido


lavado.

- Não preciso.

- Aceite.

- Realmente não preciso.

- Por favor aceite.

- Não, obrigado.

- Pedro, pelo amor de Deus, sei que as coisas estão difíceis.

- Como sabe?

- Estão difíceis para todo mundo.

- Você não se inclui em todo mundo?

- Tenho um salário alto, bônus, etc. Não dependo da economia mundial.

- Toque sua vida, mano. Vou me virando. Sério. É tudo uma questão de
perspectivas.

O comércio estava fechando. A voz, os irmãos não perceberam


imediatamente, era a do dono do bar. Elevou-se entre outras vozes que se
confundiam com as sombras.
— Crianças, entrem!

Os bares noturnos estão abrindo. Há movimentação também no hotel ao


lado.

- Outro café? — perguntou Pablo enquanto pedia a saideira.

O entorno do bar está tranquilo e tranquilo permaneceu apesar da


aproximação e da passagem da hora do rush. Tarde e pela primeira vez em seu
casamento, Pablo teve consciência do tempo. Talvez pelos trajes dos passantes,
talvez pela leveza das expressões e pelo gênero das conversas. Mais de nove
com certeza. Agora a posição da lua mais alta e menos brilhante dá também seu
testemunho.

O nascimento da noite.

Há algo que o incomoda acerca de explicações a que todavia sente-se


obrigado. Isso é estar casado. O limite para os anseios de vida. No apartamento
acima do bar as crianças já dormem e sonham.

— Tenho que ir agora, meu irmão. Bom te ver.

Depois que Pedro saiu, o dono do bar pediu por favor que o irmão
batesse a porta com força pois a fechava com demasiada delicadeza e nao
fechava.

O suéter aperta-lhe os seios. Naturalmente soube assim assim o provou


mas detestava ficar muito tempo nas lojas de roupas. Mas foi uma boa compra
considerando que deveria esfriar. Tornou a ver a luz pela janela e chegou mais
perto da réstia de sol. Sim: uma réstia de sol. De sol! Sim. A rua. Sufocante e
descorada. O cheiro de asfalto ao primeiro calor do dia respondendo como um
corpo de mulher a um abraço de homem após meses de esquecimento do que é
estar agasalhada.
O bloqueio fazia com que a fila de caminhões chegasse a mais de sete
quilômetros de extensão blasfema sob o sol. A poeira subia ronceira
contradizendo o asfalto com a impressão que era uma estrada de terra, áspera e
crua como uma estrada qualquer sob o sol dum meio do dia.

O motorista estava atrasado. Perdera dinheiro com os congestionamentos


na cidade e agora a carga perecível perecia. Essa gente está se aproveitando do
momento e querendo aparecer na televisão. Era ele mesmo caminhoneiro e se
sentia privilegiado por ganhar a vida em condições adversas e se sustentar
doente e sustentar a filha. A curva fez com que a menina fosse jogada para o
alto ao lado do pai descendo com um baque seco contra o assento,
avermelhando ainda mais a mancha na pele branca e arrepiada que Pablo
adorava. Ele nem usou de força mas esteve perto, numa espécie de silencioso
limite. Ele ainda não tinha dado por si em meio aos homens.

- Ai, pai, cuidado — disse ela, gaguejando a cada impulso. - Tenha


cuidado — repetiu.

Procurou se segurar enquanto os homens cresciam à frente do veículo


imparável alheio à pauta do piquete. Mal percebeu quando a cabeça bateu no
vidro ao mesmo tempo em que a pedra em sentido contrário o ultrapassou.

Foi como uma bomba, como um relâmpago. Só acordará para reconhecer


o corpo.

Na janela do hotel as cortinas crescem como velas dum barco à deriva


roçando a cama de casal. A porta se abre e a menina entra estranhamente
chorosa cortando suspiros com os sons guturais e foscos próprios dos prantos
infantis. O quarto parecia a cela de uma escrava medieval cujo senhor teria se
comprazido em conferir outra punição caso não percebesse o corte fundo na
testa macia com a qual o vermelho e o inchaço não combinavam.

— Seu pai? Como assim? O que houve?


A menina se movimentava como um fantasma. Com a visão turva dos
fantasmas, não reparou em como a palma da mão de Paolo estava ferida.
Sentiria decerto se eles fizessem o que ali foram fazer, mas não havia clima. Não
sei se algum dia eu me recuperarei disso, pensou ele. Era pai dela. Meu Deus, o
pai dela. Um ser humano e o pai dela.

Misturada à multidão, Alice pensa que se juntando às pessoas poderia


sentir como elas. Andou pela rua em frente ao beco enchendo o peito diante da
face gentil da estação. Passava por jovens de jeans e camisetas com pesadas
mochilas ou arrastando as malas com rodinhas até o meio-fio onde as puxavam.
Levou a batata frita à boca, os olhos girando e o pescoço se movendo no ritmo
pesado das botas na calçada. A voz do taxista é monótona e ela não percebe
qualquer significado nas palavras mas faz um imperceptível sinal de sim com a
cabeça

Essa voz é ainda a mesma mas logo se perderá em desejável anonimato.


Esbarra em duas pessoas antes de se sentar. O motor de um ônibus saindo
dialoga com o ribombar lento de um trem. Não vê as pessoas. Revira as coisas
na bolsa.

Embora pequena como as de hoje em dia, a máquina ainda fazia clic


como as antigas. Aos repetidos cliques ela esperou por alguém, segundo o
homem que fixara discreto o olhar em seus joelhos. De pé diante do anúncio de
uma agência de viagem azulando a parede atrás, enquadrou a menina que se
abaixava no sentido da bagagem. As pernas unidas e as mãos espalmadas na
parte interna das coxas mais escuras por efeito de meias de nylon. Mãos
brancas, quase brancas. Plenamente brancas onde a luz resvala dourando o teto
do ônibus estacionado encontra o mindinho esquerdo dobrado sobre a barra
desfiada do short cheio. Essa era a menina que o rapaz à frente destinado a ter
um lugar a seu lado durante a viagem via nos precários prelúdios de imaginação
e desejo que não necessitam de uma imagem fiel. Alice o focalizou também e
quando batia a foto teve um presságio. Outro homem, bem mais velho, surge no
visor. Braços abertos para um último abraço na namorada suspensa.. Invertido
no vidro com o horário de saída do ônibus; aéreo entre lágrimas que julgava por
ele. Que ingênuo — pensa Alice. Ou um santo.

Alice e Pedro sairam naquele dia do aeroporto....

Um homem grisalho caminha pelas redondezas. Digamos que tem uns


quarenta e poucos. Pode ser mais. Em alguns a idade como que se interrompe e
ou morrem jovens ou têm a decadência fulminante de que nem o espelho nem o
parente próximo darão qualquer alerta. Esse tipo de homem. Desencantado.
Desejoso dum último projeto que faça sentido. À procura como quem olha
letreiros na rua. Procura decerto mais que um barbeiro.

É um salão amplo envidraçado. Dessa parede vítrea ele verá Alice e um


carrinho de bebê e logo a mãe ansiosa. A seguir o som do carro de polícia não
mais longo que uma inspiração após falta de ar. Depois a mancha azul de um
passante apressado — braços luzidios balançando quase abertos: asas. O rosto
intenso interrompendo a idade.

Desce do ônibus olhando o muro de tijolos aparentes quase oculto por


florezinhas brancas que o mato alto em redor tornava exuberantes àquele sol
baixo e frio. Tomou coragem e encaminhou essa energia para a espera. Tinha
isso com ele, a diferença entre a paciência da espera e o engano do
contemporizar. Decidiu pernoitar num hotel e ir de manha pois precisava
mesmo cortar o cabelo.

A esquina da casa de telhado quase oriental. Um breve espreguiçar ao


alcance dourado daquele raio. Ela aperta os olhos e alonga os músculos do
braço muito branco e comprime os dedos dos pés ao passar diante de uma
persiana entreaberta por dedos indiscretos. Não se imagina observada. Não tem
esse instinto sempiterno das mulheres.
Esteve quase o dia todo na estação entre partidas e despedidas enquanto
ônibus após ônibus encostavam nas plataformas em complicada manobra de
contorno das pilastras e muros e outros ônibus já estacionados sob os gemidos
das portas e motores. A noite azul descia do céu revelando pálidas estrelas e
Alice se despedia dos pais pela janelinha por onde a paisagem até a casa de seus
tios a acompanharia. Foi um tempo muito bom e não deve se queixar. Também
agora é uma privilegiada. Faz o que gosta. Imagina, receber dinheiro para
trabalhar numa biblioteca! Não se importa se o marido vai encontrar a jovem
amante noutra cidade. Graças a isso pôde tirar o dia para as fotos. Terminará a
vida com ele em paz sem mais culpa. Agora se misture ao mundo. Bem vinda aa
vida.

O eco diminui dentro dela conforme a estação se esvazia. No caminho de


volta para casa outras ruas e casas passeavam na sua memória como um filme
projetado na praça e entre os carros e junto às pessoas sacudindo no metrô. É
uma criança que volta para casa após a escola e nem aqui nem ali é seu lugar.

- De onde você tirou isso de escrever uma história a partir de fotos


rasgadas? — perguntou Alexandra.

O que um homem de seus quarenta ou cinquenta anos vê quando a vê


passar pela barbearia?

Em primeiro lugar Imagina o quadro perfeito (porque é um pintor).

O barbeiro percebeu as manchas de tinta em seus dedos assim que ele


entrou. Ele não notou que o outro havia percebido na verdade nem sabia que
estavam manchados ou se sabia não fazia caso. Apenas sorriu pensando o
quanto era um velhinho simpático e como ficava bem de branco.

Sim: precisa que ela pose. Precisa tomar coragem e lhe pedir.
Olhos fechados. As mãos no rosto. Dedos finos. Unhas discretamente
tratadas. Apertou o canto dos olhos. A língua antes em seu ouvido agora luta
contra sua própria língua. As unhas discretamente tratadas cravadas nos
cabelos espessos. O prisioneiro ocupado com a blusinha branca de decote em V
e logo com a fivela do cinto em L.

Quando saia do apartamento e retorne ao hotel há de ser com a certeza


do novo emprego e do amor do patrão. Ela se recompôs sentindo-se uma fruta
que não deveria estar exposta com marcas evidentes. Não lembra em que
momento chegaram a se deitar no chão entre as canetas que caíram do copo, a
mão dele sem se dar ao trabalho de retirar a última peça, alargando o elástico.

Ondas modificam a textura da areia e tornam possível as pegadas onde


antes havia espalhamento. Os dedos dela se agarraram à estante e a alça lembra
um arreio no braço muito branco no momento em que os olhos param entre
vida e morte entre as coxas se alastrando para o cérebro. Ela balança a cabeça e
os dedos finos buscam a caneta que permanece quieta no copo. Chegara.
Fantasiando um Pedro que não conhece carregara o pensamento do homem que
deixou a cadeira de barbeiro.

A letra redonda atravessa de canto a canto a primeira foto e a janela


oscila sob o luminoso. Alaga a varanda de impensáveis matizes. Alice era um
vulto verde agora violáceo. Se Pablo tivesse ido para casa assim que saiu do bar
teria encontrado um alaranjado totem. Se eu fosse um pintor — pensou o
vizinho — teria o elemento para um quadro perfeito. O som da voz do estranho
de seus cinqüenta anos a transtornará. Ela pensará em homens maduros como o
seu primeiro deveria ter sido. Não imagina como ele a descobriu nem se
interessa em saber a razao por que deseja que pose para ele.
— Infelizmente não posso — disse, pensando em como faria. — Não, não
posso- repetiu. Dois seres unidos por projetos derradeiros. Não se aproximará
porque já está próxima. Inelutavelmente unida. Trata-se de administrar o fato
consumado.

Ela entra na sala. Quase negra. Fecha as cortinas. Negra. Senta-se. Azulada
pelo monitor passa as fotos. A determinação a inspirará caso do trabalho não se
afaste. Nasceu muito tarde. Cresceu com os que apostam na felicidade e
partilhou o deleite dos sentidos pelas mesmas redes sociais. Por volta da
vigésima foto, Pabloentra. Resolveu a meio caminho. A menina não atendia o
celular e ele achou melhor deixar como antes combinado. Por agora de novo a
taquicardia e a falta de ar e suor frio e dor no estômago. Não é nada e de nada
valerá se queixar com ela. Não pode tomar o comprimido que lhe dará
segurança. Seria a morte perfeita. Riu negro. Quando faltou energia por alguns
minutos, os dois estiveram frente a frente iluminados apenas pela lua.

A escuridão envolvia a silhueta polida de um corpo novamente


acostumado ao trabalho duro da casa num vestido leve e surrado, limpo, sem
pretensão exceto o conforto. Passos acima dos demais sons. No porta-retrato,
uma menina com roupa de balé calça as sapatilhas. A seu lado Alice sorri, o
rosto inclinado para a direita. Os olhos dele identificam o perfil pelo qual se
apaixonou. Piscam e ele se perde sob árvores que farfalhando parecem falar.
Fixado no alto das pernas que a saia xadrez revelava no movimento junto ao
interfone. Sob a janela, a mesa nua. Os vizinhos que costumam ver tudo dessa
vez não o viram entrar e por isso o silêncio é ainda maior na camada sobreposta
dos sons longínquos.

- Oi, amor.
Por que logo hoje resolveu me chamar de amor? Está inclinada, quase
decidida, decidida, a se encontrar com o pintor.

- Como foi com teu irmão?

- Como poderia ter sido?

- A que horas Na mesma em que eu estiver indo ver esse homem você vai?

Não sei como lidar com isso — pensa. Apesar de respeitar o marido, tem
esses rasgos de conhecer outros homens, como quem gosta de ficar em casa
mas não resiste a um convite sair. Para ele, ou se amava ou não. Ela discordava
calada. Agora esse elemento novo. Conhecer outro como ela. Como ele (Pablo)
não era. Assim próximas essas árvores formam alguma coisa tão familiar a
ponto de inquietar.

Esse desespero. Seu passo é claudicante e acompanha a linha da calçada


mas subitamente desgarra e invade a grama no sentido do asfalto. É um
logradouro íngreme e não daria para ver se um carro viesse em sua direção.
Lembra o dia em que com um recorte de jornal acertaram o aluguel da casa mas
tenta em vão se lembrar do que então sentia. Menos de um mês após ser pedida
em casamento. Não há ninguém além dela na rua. Seus tênis são verdes e não
está de meias e seu vestido cinza e grosso parece um uniforme. Quando ela
olhou para trás o som da respiração pesada se agitava. Aí o coração dispara e o
estranho frio faz suar. Não adiantará o que quer que faça ou diga. Pablo imagina
coisas da própria cabeça como se fossem um fato e ela não sabe como lidar com
isso.

Sonja com muito sono mantém o olhar nos prédios pontilhados de azul
claro caminhando na direção deles com a taça em uma das mãos e a garrafa na
outra como se fosse servir alguém. Está com muito sono, tem tanto a fazer e
nada fará direito por causa do sono. Sente no cristal as mãos cada dia mais
ásperas. O som dorido e insistente é o canto de um curioso pássaro entrando
pela janela, retângulo de luz que não ilumina.
Com ternura perdida sorriu ao lembrar-se de Pedro. Um moribundo que
caminha sem saber ou talvez acredite piamente num milagre. Demora-se ante as
paredes de quadros e pôsteres. Vasos e toda a tranqueira que em tese deveria
encher a casa e dar a cara de um lar. Mulher é competente nisso. Ela nunca. Não
depois de certo dia. Olha os vários pares de óculos escuros sobre o móvel como
se pudesse fazer brotar deles um novo olhar e renovados dias de sol. Com uma
empregada e com Pablo casado deve ter mais tempo livre para redescobrir o
marido. Não redescobrir o príncipe pois ele jamais será um. Mas olhe que leva
jeito. E que vigor para as coisas práticas! para o cotidiano estafante duma
pequena empresa. Fornecedores, clientes e com quem mais é preciso lidar.
Outro tipo de príncipe.

Alice geme como árvore ao vento em sua janela quando lembra. O


homem das coisas práticas que quase conheceu. Considerando o tamanho da
cidade, as casas não são tão longe uma da outra. Fecha a porta. Deixa para trás
os cachorros, os encanamentos, as fofocas, a garagem, o play, os filhos e as
mães — não cansam de tanto se amarem? De tanto sentimento familiar? Quando
bateu a porta do prédio, estava livre.

Dá uma última olhada na fachada e torna a se perguntar se valia o


aluguel. Concluiu que sim considerando a localização e o comércio. Sobre essa
casa falou com Sonja no ônibus. Acabou de amanhecer e a cidade lavada pela
chuva noturna ainda guarda o cheiro úmido de asfalto escurecido e as vidraças
estão cheias de lágrimas mais serenas que a paz dos mortos.

Não parecia uma menina. Ao contrário. Parecia estar no controle. Toda


curvas e luzes. Praticamente o chamou para a casa dela. Que tipo de casa
poderia ser? A dos pais? Um quarto de albergue? Pablo deu-se a permissão de ir
— um necessário exílio de si mesmo — e não se sentiu culpado, ainda que a
menos de duas horas estivesse pensando em como passar um tempo maior do
final de semana com Alice.

— Amor, você vai demorar?


— Ah querida olhe só que chato, apareceu um problema.

Impressiona a naturalidade da menina diante da situação. Parece feliz do


alto de seus quinze, dezesseis anos. Quem mais no mundo sorria assim? Afinal,
é um apartamento. Uma linda cobertura com vista para o mar. O apartamento
de uma amiga. Após servir um café ela pede desculpas e licença e uns trinta
minutos para fazer a lição de casa. Senta-se diante do computador e começa a
escrever consultando um livro ao lado e ignorando solenemente a presença do
homem que agora a vê segundo o reflexo da vidraça e o spot. Ele tem certeza de
que não é o primeiro. Ainda assim há a lei.

Se sou inocente perante minha consciência mas não perante a lei ainda
sou inocente?

Concede-lhe conforto a estranha familiaridade: a água que quis beber, o


ar à janela, o abajur que acendeu — tudo onde ele sabia que estaria. Até o par
de sapatilhas de balé evocavam o mais natural dos mundos.

Ela termina o trabalho e esfrega os olhos. Tira os óculos e se aproxima do


homem adormecido no sofá. Parece uma criança. Está com um de seus óculos
escuros e sorri. Quem sabe queira recuperar a visão da adolescência. Ela retira-
os delicadamente. As luzes levam a ninfa que o conduzia pelo bosque mas lhe
oferecerem outra. Lentamente aproximam-se os lábios. A pele da menina é
rosada e tem traços de acne. Os dedos se abrem sobre a camisa branca mais e
mais amarrotada. A mãos dele descem pelas costas desnudas e lisas
acompanhando um sulco e do outro se aproximando. Se a luz ainda acesa se
apagasse nesse momento não perceberiam. A última imagem que ele tem é de
uma jovem singrando soberba sobre ele, soberana e vagamente desajeitada. Um
mar pelo visto bem conhecido.
Quando ele voltava para casa sentiu a palpitação acompanhada de falta
de ar e vertigem. Tentou se lembrar se precisou do comprimido. Não. Tudo
correu naturalmente quase como uma brincadeira que ela não queria terminar.
Mas ele precisava.

- Tenho de ir — disse pensando Não deve ter sido fácil para um


caminhoneiro comprar uma casa dessas.

Ah ela entende, disse ela. E abriu um sorriso imperceptivelmente


piedoso.

Ainda com a respiração acelerada ela se detém no alto das escadas, na


saleta onde começa o corredor para os quartos. Lá embaixo alguém bate a porta
de um carro. Ela se pergunta se era mesmo a sério que planejou a fuga. Que
pretendia falar a respeito com um homem que naturalmente não estava
minimamente preocupado com nada além de si mesmo. O pai, ao contrário, a
amava. Todo aquele conforto em grande parte só chegou a ser alcançado por
causa dela. Ele pensava que queria que a filha tivesse o que a mãe não teve e
talvez por isso tenha procurado fora, longe de casa. Ela reconhece o amor
paterno e se deixa descansar nesse amor. Quase entende o que ele dissera à
irmã que falara em ir o mais depressa morar sozinha. Filha minha só sai de casa
casada. Então qual exatamente o papel da fantasia em tudo isso? Tocar e
envolver e sentir o calor que avermelha os olhos — animal alucinado atacando.
Pensa se fantasiaria assim caso tivesse um irmão mais velho. Precisa estar
preparada porque a vida se dá não entre animais enlouquecidos mas após a
transformação deles em homens de bem. Não convinha passar dos limites e
acreditar que tinha as rédeas até porque amanhã seus quinze anos terão se
transformado em trinta e quarenta e a carne despenhar-se-á e a fila andará com
essas que nem nasceram fazendo o papel que ela hoje faz.

Voltando para casa, o pensamento de estar de novo com a menina - um


pensamento do qual o homem mais velho deveria fugir como o diabo da cruz —
fará com que se enleve e imagine-os ao ar livre lá em cima na colina por
exemplo entre grandes pedras e pequenos arbustos guiando os pés jovens pela
encosta verde e a cada passo o mar se distanciando lá em baixo e o som do mar
— outros sons já não havia — longe longe longe cada vez na atmosfera de um
outro planeta.

Alice fazia algum esforço para ser merecedora do tanto amor que ele lhe
dedicava? Estará ele com algum problema que não quer contar? Não quer que eu
me preocupe. Deve ser isso. Se a menina for ao menos boa e precoce o bastante
para o confortar... É bem capaz que seja isso. Não quer que eu me preocupe. Ele
é tão diferente de Pablo, Pablo só pensa em si mesmo. O pensamento confortou
Alice da nova ausência do marido sem um aviso que justificasse possuir um
celular. Não iria dizer naturalmente que estava tendo um caso; mas podia pelo
menos dizer que está bem, que está vivo.

Pablo notou que Sonja havia emagrecido e reagia com menos fervor as
suas carícias. De todos os seus casos era aquele de que não poderia prescindir.
Pareceu-lhe razoável pedir a ela, sussurrando. Devolveria sua autoconfiança. Os
olhos dela o encaram e depois se fixam num nada adiante e novamente nele e
agora cabisbaixa ela parece cansada ao dizer que ele não precisa se esforçar
tanto.

- Está tudo bem. Vai ficar tudo bem.

Ela está distante. Magra, fria e distante. Poderiam ter se casado. Teria
sido melhor. Ela pisca e seu olhar agora se perde com tamanho desdém que
dignifica seu rosto até então apenas lascivo. É tarde. O que poderia ter sido feito
não foi e a vida pune. Parece ter sido num outro mundo que se conheceram e se
amaram e foram tão gentis um com o outro. É pouco — pensou ele quando ela
em silêncio consentiu.

Estava morrendo. Pedro assustou-se ao perceber que a velha taquicardia


do irmão tomara derradeiro caminho. Ele próprio não percebia? Como lhe dizer?
Se consolará com a idéia de que sempre teve isso desde pequeno e que você
também tem e pronto, assunto encerrado E agora, com esse problema com a
justiça, já pensou se for condenado e tiver que cumprir pena em regime
fechado? O que será da esposa caso aconteça o pior? A idade dela conta contra
agora. E a inexperiência. E não falar inglês. Mas o que ele podia fazer agora sem
causar uma grande confusão ainda maior? Ele se permitira abandoná-la à
própria sorte — que história é essa agora?

Via Alice impulsionando a roda da máquina de costura com a mão


esquerda que agora cerrada dá pequenos socos laterais à altura de seu próprio
pescoço enrijecido e doído pelas horas em que está trabalhando em fronhas
coloridas enquanto espera o marido que poderia ser ele, Pedro, se não tivesse
mantido o compromisso com Sonja, um erro, agora sabe; mas as coisas não
funcionam assim, não dá pra se manipular o destino. Se de fato o irmão
adoecer, o que restará para Alice senão algo como isso, um trabalho de
costureira noite adentro e finais de semanas incluídos? Ali está alongando o
pescoço para um e outro lado e encostando-o num e noutro ombro e pegando
repetidas vezes o celular para ver se não deixou escapar a mensagem de alguma
cliente. Sozinha e mais sozinha porque Pablo não só será ausente como é mas
nunca mais estará para o mínimo sequer. Caixa postal. Um suspiro e levanta-se.
Um banho. O pijama. A noite deixada lá fora. Voltas pela casa. A janela de novo
aberta com o sabiá. Pode ter acontecido alguma coisa.

O nevoeiro é nuvem um pouco mais alta do que na rodovia onde quase


cem carros colidiram causando tamanho engavetamento no mesmo dia em que
os importados estão mais caros para proteger a produção nacional. A fábrica do
automóvel japonês de Pedro, funcionando meio-expediente após os estragos do
tsunami, era fonte de preocupações por conta da reposição de peças. Ia ele
assim. Atento ao GPS. O rádio ligado. O braço pendente na porta. Procurando a
rua onde diziam talvez encontrasse o componente. Tenta um trajeto alternativo
quando a vê. Toda alegre e saltitante. Ali. Deixa esse cara passar.
Música na loja que acaba de abrir. A atendente acompanhando canta. O
nevoeiro se dissipa. A jovem deixa de cantar e pergunta se pode ajudar. Pode.
Nisso exatamente. Em falar com Alice de costas para Pedro. Mas o carro parou.
Por que estava tão agitada? Pelo retrovisor os olhos do homem vêem o casaco
marrom balouçando sob o coque escuro. Conhece-a melhor de costas. Conhece-
a melhor do que há um minuto atrás não imaginaria. Imóvel ali sentado. Teso e
aprisionado no mal-estar. Não tinha forças para abrir a porta do carro e chamá-
la. Mal podia respirar. A moça de costas inquieta para cá e para lá. Quando a
conheceu era um outro homem. Como se tivesse envelhecido exatamente no dia
seguinte àquele; como se passado e futuro ali tivessem se dividido.

Há um ano.

Os olhos de Alice deram com uma caixa grande e prateada que da estante
refletia como um espelho, onde podia observar cada movimento dele. Via com
alguma clareza que parecia mais velho e taciturno. amadureceu desde que ela
esteve no seu apartamento.

Pode avaliar os fatos de uma distância segura.

Ele pensa que desde aquele dia seus sentimentos acerca das coisas eram
apaixonados, inclusive no que dizia respeito a Sonja. Mesmo quando pensava
em Alice. Teria ela encontrado trabalho? Ele ainda precisava de uma assistente.
Não. Seria loucura.

Seria loucura — pensou ela — esperar ainda que ele lhe oferecesse
trabalho? Porque é evidente que faltava isso em sua vida. Uma renda. Não
depender de Pablo e tirar qualquer resquício de vínculo entre seus escritos e
subsistência. Ele mergulhou num silêncio sem vestígios e quando voltou a si ela
já não estava lá. A mão direita se abriu sobre o banco do carona ao longo do
percurso entre o Centro Cultural e o apartamento. A maciez do acolchoado e a
textura do revestimento o fascinaram como se estivesse tocando a pele de uma
mulher. A pele de Sonja. Não se tratava apenas de fidelidade, mas o som do
vento e os pés na terra. Das estações.
Duas dimensões: numa ama e noutra vive. Querer que coincidam é pedir
demais.

Ela chegou em casa após o marido. Não o vê e caminha a passos rápidos.


Entra no banheiro e fecha a porta. É um homem leal. O pai que não tive. O
patrão (bons tempos). O amigo. O amante. Nem podia alegar solidão uma vez
que nos últimos tempos ele se esmera em estar presente e disponível. E ela sabe
o quanto com os problemas da gráfica não deve ser fácil. Na verdade apenas
imagina, pois deixou há muito de se inteirar das coisas da empresa. Em outras
palavras...

— Sonja?

A luz da lâmpada inunda a lágrima.

Dá por si chorando miudinho., orvalho numa era abandonada. Fragmento


de tempo entre o flash de sua última lembrança e o novo chamado do homem.
Entreabre a porta após misturar as lágrimas com a água da torneira. Pedro está
engordando, mas esses fios brancos lhe daom muito charme. Parece ter uns
cinquenta. É a gráfica. Trabalha e engorda e envelhece.

- Estou bem — diz ela, o sorriso molhado.

Ele pergunta se ela quer que ele faça algo para comerem. É demais. Por
que está fazendo isso com ela?

- Não chore.

Ele não disse isso. Quando ele se afastou para a cozinha, ela bateu a
porta de leve. Abaixou a cabeça, respirou fundo e pensou quando e como isso
aconteceu. Por que deveria acontecer? aonde ela pretendia chegar e — Sonja
disse a si mesma que talvez tivesse sentido atração pelo irmão mais novo
mesmo antes de conhecer Pedro. Se foi ou não assim, qual a relevância?
Ela está cansada — pensou ele. O trabalho doméstico exercia sobre a
mulher um poder terapêutico. Por que abriu mão dele? Isso de trabalhar fora e
procurar emprego e isso de empregada — tudo isso vai acabar com ela.

A primavera ainda não começou mas o sabiá já está cantando


pontualmente às quatro e meia da manhã. O aposentado do final da rua garante
ao filho pelo telefone que na casa em frente à sua é às quatro, quatro e quinze
no máximo. Seja como for, esse sabiá vê o movimento começar com seu canto e
nunca se saberá se canta por causa do movimento ou se o movimento começa
por causa de seu canto. Segunda. Quando o mercado vinte e quatro horas está
fechado da meia-noite às seis ou sete para balanço. Tardou um pouco mais. Só
começou com a luz do dia. Alice notou porque foi a hora em que saiu. Ia ao
médico. Teme essa gravidez. Reza para que os indícios sejam falsos. Não está
preparada para ser mãe. Talvez nem queira ser mãe. Confunde-a agora que era
fiel e devotada não encontrar mais o êxtase dos tempos promíscuos.

Garoa. Cidade cinza. Passos molhados. As flores grenás, conforme a


senhora a quem pergunta (de onde tirara essa extroversão?) são as buganvílias
ou primaveras. O sol nasceu. Entre as pessoas por quem passa assuntos tão
inúteis quanto os ruídos de um elevador enguiçado cujos cabos ainda balançam
e roçam um no outro sem levar para cima ou para baixo. Sexta começa a
estação. Tocarão Vivaldi no boletim meteorológico como se Vivaldi fosse
comum. Como se fosse uma celebridade dessas que a internet faz nascer e a TV
embala e no dia seguinte será esquecida. As estações sem sentido do planeta
adulterado. Botinhas na calçada molhada subindo na direção do metrô a levarão
ao marido ou a momentos antes, a dias antes, ao beijo, a Pedro. Segue na
direção da manhã alta por ruelas que parecem retardar a inevitável entrada no
túnel de vento que a carrega. Peixe aos pulos reavivado pela correnteza.
Caminha como se não fosse parar. As imagens em que tropeça terminam num
murmúrio desconexo. Não haverá lágrimas nos olhos desse homem se acaso lhe
disser que será pai.

Meio-dia. O médico disse entre irônico e convicto que não há sinal de


criança. Agora é procurar um canto calmo num restaurante e enquanto come
refletir ao som do vozerio. Entre uma e outra estação do metrô a fome
aumentou. O remédio começou a fazer um efeito incômodo de cansaço e língua
pastosa. Está mole, adormecida. Trinta e cinco graus e seis. Em alguns casos é
normal — disse o médico como se tentasse acreditar. Depois deu alternativas.
Diabetes, vesícula, sabe Deus. Talvez uma causa emocional. Cadáver fresco é
mais quente. Seu corpo é sábio, mais que ela. Devia ter sido a última noite. Quis
ludibriar o destino e eis o resultado da sobrevida. Um adultério mais cedo ou
mais tarde. Não. Caminha na direção da balaustrada. Se apóia e vai girando a
cabeça no sentido do horizonte avermelhado e belo e poluído. Isso não.
Importa antes o dever que o bem-estar. Homens e mulheres estão cada vez mais
fracos à força de tecnologia, sedentarismo e medicação. Obsessão de conforto.
Nem teria ido ao médico se o bom Pablonão tivesse pago um particular. Os
médicos de convênio estavam em greve. Pagou embora não tivesse recebido
nada ainda por seu último trabalho já que ainda não o enviara ao cliente porque
os correios estavam em greve. Quando enviar ainda demorará a receber porque
a quantia é maior do que se permite para transações assim no auto-atendimento
e os bancos vão entrar em greve. Não adianta ludibriar o tempo no mundo
movido a dinheiro. O tempo não se deixa corromper. O tempo a quer assim
decadente em seu físico porque insistiu em continuar. Respira profundamente e
pisca escondendo por um átimo o entorno úmido e vermelho de seus olhos no
céu.

Diante do espelho gira o pincel de maquiagem pensando em suas


conquistas recentes sem saber se valera a pena. Observa as rugas de expressão
se formando no extremo dos olhos sob os quais o branco escurecia. Casara-se
com quem achou mais prudente e concretizara na carne o sentimento do outro
homem a quem amava. Isso não deveria fazer com que a experiência devolvesse
aos sonhos algum proveito? Deslizou a mão num último movimento róseo. Ou
seria um vício? a compulsão que satisfeita se esgota para logo se renovar do
nada e para nada? A pia gelou seu ventre quando se aproximou mais do
espelho. Achou que os lábios tinham ficado por demais vermelhos. Artificiais.
Essa não sou eu.

Na feira as cores vivíssimas. Alice chegou a pensar que havia


enlouquecido e que limões e bananas e maças contra o branco dos aventais e
acima das barracas o vultoso azul do céu primaveril fizessem parte de um
desvario contra o qual não sabia se deveria lutar ou se acomodar àquele rude
prazer visual. Tempo encapsulado no sofrimento escapando pela aceitação de
todo detalhe do destino e qualquer de suas nuances permitindo o próprio
destino não rígido mas não totalmente mutável. Carma que permite o arbítrio
como maça raspada com uma colher. Ela era uma criança.

Desculpe. Um sorriso correspondido. Ela não consegue evitar, vive


esbarrando. Isso às vezes traz coisas boas. Nem sempre. A fome aperta. O
restaurante pode bem ser o do centro cultural. Por que não? Não é tão caro e a
comida é boa. Passa a última quadra de barracas e desce pela outra entrada da
estação. Não está mais à espera de um inesperado salvador. Não acredita mais
nessa possibilidade. Encontrara repouso. Levanta-se para pegar a sobremesa.
Encontrara a paz. Saboreia o pudim e se pergunta onde foi parar a paixão nesse
processo. Se os homens se tornaram figurantes na nova etapa de sua vida onde
está o protagonista? Onde está de fato Pablo? O homem na mesa ao lado
percebe o levíssimo tremor em seus olhos. Os figurantes eu sei que estão
sempre — sempre — ao redor. Mas o que há pior do que se queixar e sobretudo
se queixar quando tudo está bem e quando pode até se dar ao luxo de repetir
um pudim saboroso sem pensar em quanto custará. Seu sorriso não tem
qualquer motivo ao se dirigir à biblioteca. Um ricto apenas. Levou o sol da tarde
ao ultrapassar a roleta e entrar no salão. Não é permitido entrar com alimentos
— disse a funcionária apontando o cartaz. Mordeu o último pedaço do chocolate
e entrou no espaço de memórias semelhantes a folhas caídas retida em labirinto
de sonhos no barulho de passos.

Apoiada na barra do metrô pelo antebraço, apanhou o telefone no bolso.


Olhou o visor com aquele olhar baldio e sem sentido com que os visores de
celular são olhados. Movimentou os lábios ao escutar com um quê devoto a voz
do outro lado e dirigir os olhos para o chão como se observasse um exército de
artrópodes manchando o mapa iluminado da linha. Logo estará diante de
Pabloque estará diante da TV e ela se sentirá culpada. Por quê? Não tem porquê.
Só culpa, culpa em retrospecto, ainda que se torne santa. É sua segunda pele, a
culpa. E Pabloum santo já. Para alguém como ela o atroz Pedro teria sido
melhor. Sai do elevador com flores nos braços entre as quais seus dedos
delgados podiam ser confundidos com hastes. Recusa-se a continuar
questionando seu relacionamento com o marido. Era seu melhor amigo e digno
de toda confiança. Se algo faltava — algo que sequer saberia nomear — ora, algo
que sequer se pode nomear, isso não existe. Não existe.

Pablo passou pelo restaurante assim que Alice saiu. o encontro. No


mesmo caixa que ela pagara o almoço com dinheiro proveniente das ideias dele,
pediu um café antes de ir para o local onde marcara A garçonete uma vez já os
vira dois juntos. Casal bonito fazem.

Pergunta-se se não está ficando sério demais. Passa pela rampa que leva à
biblioteca e segue para a rua. Vira à esquerda e entra no metrô pensando o
quanto deprime esse apego ao que não pode durar. Pensando o quanto seria
bom se não fosse proibido. Talvez o ser proibido seja a única coisa que em meio
a tudo se sustente apesar do preço a ser pago. Que pode ser perdição ou puro
tédio ou a lembrança vívida do que não se viveu. Sem esperança nem receio nem
confiança nem desespero. Nem liberdade nem a falta dela pois a cela está
aberta. A consciência disso é descoberta constrangedora denunciada pelo olhar
impudente com que Sonja sai do metrô e sob o sol se revela ao longe.

Na cama quente e desarrumada o casal está dormindo. Não. Ele está


acordado. Tenta entender. Foi não mais que um flash. Alice de costas na loja.
Silêncio que quase se pode tocar. Deixa disso. Olhe aí do seu lado. Você tem a
melhor mulher, a mais linda que um homem poderia ter, a mais — não: Sonja
anda fria, distante. Cansada, ele sabe. Por que não basta saber? Não conseguiu
evitar a comoção que fez de seu corpo uma pedra aureolada descansando no
leito dum rio fundo como alguém experimenta uma roupa cuja cor detesta.

Há quanto tempo está deitada? Talvez uma hora. Nem meia quem sabe.
Deitada satisfeita da satisfação vespertina, não é difícil imaginar o marido. Pelos
movimentos sabe que ele está acordado e pela respiração que está olhando para
o teto. Tudo o que ela vê é a noite na janela aberta. Amor — dizia Pedro nos
primeiros meses — é essencial para a gente dormir bem. Nunca será sono
suficiente para impedir as impedir as sombras do pecado. Contorna a imagem
Pablosem desfazer o espaço mútuo a que não podem renunciar, por exemplo —
pensa Pabloao descer as escadas do metrô —, como renunciei à menina. Ela hoje
faz dezessete anos. Arruma sua cama com os movimentos delicados e os olhos
perdidos e a máscara de sorriso que se tornaram típicos após a tragédia. Ele
realmente não a tem visto mas a rejeitará, se acontecer? A garçonete também
viu Pablo e Sonja. Não na lanchonete mas entrando num hotel na periferia. Na
verdade também Pablo e Sonja fazem um belo casal. Mas ele é bem mulherengo
— riu consigo mesma.

Ele não é mulherengo. Se tivesse alternativa não trairia o irmão. Por que
ela ficou com ele e não comigo — perguntava repetidamente. Ela sorria e dizia
que foi pela mesma razão que ele, mesmo se encontrando regularmente com
ela, casou-se com outra. Não sabia que era possível esse tipo de ciúme e era
mais que possível: comum. O pior dos dois mundos. Olhando para o teto Pablo
naquela tarde viu o filme de seu encontro e namoro com Alice, o que Sonja
imediatamente suspeitou e de pronto decidiu que isso não permitiria. Já se
sentia humilhada demais.

Pedro se aproxima da janela e ali se debruça respirando com alguma


dificuldade por ter subido as escadas correndo. Insere-se no retângulo verde ao
som de um latido e do chamado que a vizinha atende. Quem a quer ver o vê
antes e quase pode ver que ofega, as faces vermelhas e o peito taquicárdico. A
falta de um elevador no prédio é compensada pelo valor do aluguel o que
todavia não impede a tormenta de dívidas. O verde escurece e foge; a vizinha
aparece desbotada, irreconhecível. Estar assim — acredita ele — tem o lado bom
de atenuar os apelos extraconjugais, sobretudo num sentido que represente
algo mais do que um caso. Entorpecido percebe novamente vazia a janela de
onde a mocinha surgiu para avisar ao namorado que já estava descendo. Lá
embaixo o casal se cumprimenta com um beijinho em cada face. Passam a
caminhar pela aeração da vereda ao redor do prédio. Vivem. A vida para ele se
manifestará outra vez? O garoto impossível que enlouquecia os pais com a bola
e as meninas com as mãos bobas no play, não sabe para onde foi. Esse homem
cujo coração aos poucos se acalma. Sabe o quanto o bem-estar será efêmero
embora quase possa apalpar o alívio. Calmo até demais agora. Apático. Nem
memória nem jogos. Assaltado pela paz que retira a vontade. Fazendo tudo
diretinho e só. Os dois lá embaixo olham para cima, para algum ponto além
dele. Pensando acerca do tempo que o céu prevê para o resto do dia. Um dia
beijou a prima e se surpreendeu por ela não o ameaçar com delação. Procuram
um canto nas escadas como se tudo tivesse sido planejado. Sensação mais
próxima da alegria que o beijo consentido de Kátia, sua primeira namorada. O
que a gente sabe não irá além do que se espera que vá. Onde estão indo esses
dois? A idade dela regula com a de Alice e ele parece que poderia ser filho de
Pedro e puxa dois livros da mochila aberta e os entrega com rápidas explicações.
A mocinha agradece. Seu sorriso também evoca o de Alice.
Esse meu bondoso esposo. Beijou-o. Beijou-o pensando no outro.
Lembrando como um dia o beijou pensando em ter um lugar onde passar a
noite e quem sabe os demais dias. Passou por aquele momento, o pior ou é
agora meu Deus o que tenho agora? preciso reencontrar aquela moça que ia
postar seu último poema e que não tinha para onde ir — para ela a vida vale a
pena não para essa ela que me tornei. Pensa em Pedro e ali está ele. Preocupado
com a política econômica. Preocupado com o dólar. Preocupado com os
fornecedores. Preocupado com a entrega. Uma sirene onde ele está — onde
esteve há um ano. Tem a ver com outro assalto a caixas eletrônicos. São mais de
cem este ano. O trânsito congestionado por causa dos curiosos. Alice pensa por
que não tentou se desvencilhar. Ele não é tão forte nem ela tão frágil. Enquanto
a cortadeira eletrônica segue o compasso dos blocos de hospital Pedro pensa
que ela poderia ter gritado. Feito ou dito alguma coisa. Não foi um estupro aliás
não foi mesmo. Oi amor, enfim consegui falar contigo. Você viu? O caixa
eletrônico na loja aí do lado. Fiquei preocupada — disse Sonja ao telefone. Tão
preocupada ou nem tanto quanto Alice vendo do corredor por onde Pabloestá
entrando, mal tomando consciência do beijo da mulher, as imagens no jornal do
meio-dia. O que podia fazer? Não havia como se comunicar. Então seu amor
transbordou como uma gazela foge dos leões.

Ele perdeu um tempo enorme com contatos de rede social. Não lembrou
da hora do almoço. É solitário comer entre deliciosas mulheres fúteis e homens
sofisticadamente grosseiros. Onde encontrar Sonja? Hoje é o dia em que ela
disse teria um compromisso? Tampouco lembra se é hoje que a menina disse
estar de novo livre porque o pai ia viajar. Foi a primeira vez que falou do pai.
Quando disse que ele estava na maior parte do tempo fora pois era
caminhoneiro. Deu uma ligada para ela quando a página demorou a carregar por
conta de tantos acessos simultâneos. Ela se levantava da cama larga no quarto
feito dia. Inundado duma luz que realçava por todos os lados tanta juventude.
Caminhou colocando a camiseta sobre a calcinha, desengonçada e rosa no
equilíbrio de pato de típicas e petulantes adolescentes. Derramou café do bule
na xícara ainda bocejando e antes de atender o telefone discretamente
silencioso olhou na direção da cama ressoando discreta como um bicho. Ah. Oi.
Ele percebeu o abismo.
Ouviu sem prestar atenção nas razões por que ela hoje não podia.
Desligou e não passou pela cabeça ligar para Alice. Não lembrou de médico ou
problemas de saúde. Poderia encontrá-la para almoçar. Não pensou nisso exceto
muito mais tarde quando a noite caía e transpirava o novo projeto. Pensou para
avisar que ia chegar mais tarde. E que ela não pensasse que havia mulher
envolvida. Era trabalho mesmo. Trabalho que a sustentava. Alice não tinha do
que reclamar. Entendo. Fica tranquilo — dirá Alice e irá para a cozinha deixar a
comida pronta para quando ele chegue.

Ainda à tarde Sonja passou no cabeleireiro excitada como se tivesse


alguma coisa nova em vista. Elegante. O riso dela é o das fadas — pensou o
único homem no salão, fixado nos ruivos cabelos soltos adejando ao movimento
da cadeira giratória. Único e ela não o viu. E aí, meninas? Tudo bem? Sabem
quem eu vi? — e por aí. A tarde passou rapidamente. A chuva prevista foi um
chuvisco e os camelôs que vendiam guarda-chuva nem tiveram tempo de ganhar
algum. Gente, tanta, vultos, cores, sons. De vagões, de máquina de gráfica,
vozerio de cabeleireiro, teclado, sons de sistema. E eles. Protagonistas das suas
e de algumas outras vidas. Sabedores uns dos outros mas não todos de todos.
Num sentido misterioso em que cabe lógica rígida. E a hora do almoço e a noite
nas empresas e nas casas são o tempo que de todos precisa e de todos
prescindirá.

Há um tempo estavam sentados na suave proustiana obscuridade da


pequena sala cheirando a livros sem sentir a amenidade da tarde. Para ela fazia
frio como em qualquer obscuridade e as iluminações eram também a
sensibilidade da pele afetada pela mudança de temperatura e imune à
temperatura em si. Ele suava. Não poderia justificar o fato com algum temor
relacionado à maledicência dos vizinhos. Era calor proveniente da idade em que
menos se está imunizado contra qualquer coisa inclusive o amor impossível ou
possível num mundo que não existe e até da emoção de em Alice ter
reencontrado, não, ter encontrado a escada pela qual enfim se permite subir
entre a florescência fora de tempo só perceptível pelo cheiro da sala sempre
fechada. Partículas delineadas pelos raios da tarde prateando o bule fumegante.
Quando ela tornou a encher as xícaras, seu rosto se transmutava em quase
imperceptíveis mudanças nos olhos e rictos hesitantes entre o sorriso e o
pranto e sutis movimentos do maxilar e das maças do rosto construindo
sobranceiras estradas na terra de tardias acnes sobre nervos e músculos
detonados.

O negror do café reluziu e pareceu a ambos um sinal. Ela sabe. Não por
intuição admissível, ela sabe e está perto de ter o conforto da convicção do que
se sabe e a segurança do que se faz. À vontade como um menino tímido se
transforma no piano que domina. Eu o amo. Não como amo o filho que não
deveria amar. Mas amo. Não como o pai que não tive — até porque tive. Amo a
dor em seu olhar. Amo a pessoa com um passado que um dia eu serei. Num
tempo e lugar pouco antes inimaginável ele viu movimentos femininos em sua
casa anacrônica e as mãos de dedos compridos e cruciais atravessando em sua
frente e a sombra dos braços esfriando a luz do sol obliquo sobre seus braços
em repouso sobre a mesa.

A noite desceu áspera com fagulhas subindo de algum fogo e


desaparecendo no negror do abismo acima. Quando Alice riu gostosamente e
tapou parte do rosto, teve um irrefletido cuidado de que não precisava. Ele
indagou se tinha dito algo engraçado. Ela se apressou em negar para não
cultivar a inelutável intimidade nascida, embora tivesse rido sim porque na
noite anterior lera a passagem de Milly no mesmo Absalão que ele citou. Sabiam
as horas pelo espaçar dos transeuntes na rua mais que pelo espaçar dos
motores de carro na avenida não muito distante. Os dedos dele estão relaxados
e abertos sobre a toalha da mesa. O sol naqueles minutos antes do crepúsculo
entrando pela janela. Nem escuro nem claro nem quente nem frio. Ele então
falou mais sobre literatura e sobre a independente beleza dos textos avulsos de
Giácomo mesmo quando comparados às obras respeitadas de Joyce e não
passou pela cabeça dela que houvesse qualquer sugestão. Mas ele tinha sim uma
certa predileção por amores incomuns e a seguir mencionou Sally Seton de
alguma forma identificando-a com Alice (nesse ponto ela não mais sorria,
absorta em como também sua vida poderia ter ficado de pernas para o ar se a
situação de Sonja fosse outra. Com sorte a gente sobrevive — pensou. Estão
ambos sorrindo. É mais do que mereço — pensaram juntos.

Com o final da tarde o rosto de Alice escureceu e se avermelhou e a tênue


sombra sobre o assoalho chegou até a janela ainda aberta misturada aos livros
pelo chão nos quais subia como se fossem escadas. Se olhasse para cima
entenderia que os estalos vinham do ventilador de teto muito lento, numa
velocidade quase vietnamita. Ele volta e meia lembra de que se esquecera da
resolução de não se aproximar mais de uma moça. Ele pisca e respira fundo e ao
expirar está dizendo que não gosta de sopa e que durante toda a infância foi
obrigado a tomar sopa e por isso passou a detestar sopa, respondendo ao que
ela havia perguntado: se ele não tinha sopa em pó ou legumes para que ela
fizesse uma rapidinho. Estava ficando frio.

Mantendo-se ereto Pablo olhou mais acima. Céu acinzentando. Depois viu
o carro estacionado sob árvores, um perigo nesta cidade. Entrou e foi direto ao
fogão. A mesa da sala o duplica agora a partir do braço forte e dos músculos
realçados pela camiseta. Escuta passos no corredor sem mover a cabeça. Estão
muito próximos agora. O vulto se move à janela. Ah, você está acordada. Ao se
olharem viram um no outro muito de si mesmos. Silêncio no mundo não
significa paz. Sequer ausência de ruídos. Remorsos.

Em casa no quarto preenchido pelo outrora amado ressonar de Pedro que


agora mal pode suportar, pequenina e ousada como uma criança correndo num
parquinho, sente-se um fantasma de si mesma diante das paredes úmidas dos
fundos do prédio onde da mesma janela um dia por muito tempo vira apenas o
azul do céu. Mas como? Sinceramente o amava. Por que não pode mais sequer
partilhar o mesmo teto? Graças a ele não tinha que temer as noites ao relento
que profetizara quando a empresa de jogos eletrônicos faliu. E ali estava.
Dependendo de alguém para subsistir nesse mundo protegido das ruas bêbadas
da madrugada. A rua dos mendigos e das prostitutas e dos filhinhos-de-papai
em intermináveis baladas. Redoma contra a sordidez dos vícios também seus
um dia. Também das doenças mais ou menos corriqueiras. Protegida — pensa —
onde outros não estão. Um caso sério. Situação muito grave. Gravíssima. Abre o
fecho da maleta em que levou as roupas para ficar os três dias no hospital. O
pulôver exala um cheiro antigo, de felicidade. É grave e desesperador. Os
movimentos dela são lentos e medidos como se estivesse roubando as roupas e
o resto. Um celular. Um carregador. A carteira de couro onde estão os cartões. É
uma situação desesperadora. Não a rua. Depender de alguém. Gira a tampa do
vidro de perfume. É como se um violino tocasse. Está chorando.

A filhinha de Pedro e Sonja nasceu num domingo ao som dos sinos da


igreja. A menina passou a infância tranqüila num lugar tranqüilo que só quando
era uma mocinha ficou conhecido como reduto de prédios luxuosos e amplos
condomínios. É aqui. Foi bem clara a explicação de Alice. O carro do vizinho dos
Ryeowon manobrava para entrar tangendo o poste principal da rede elétrica no
qual desbotado e majestoso em sua permanência estava o gravite M&S.

— Por favor...

Com seu passo firme herdado da mãe e um toque sensual aprendido de


Alice havia chamado a atenção do porteiro e agora o chama. Um cãozinho latiu e
rosnou para Bianca que lhe devolveu um sorriso carinhoso. O homem se
aproxima sem disfarçar quanto o impressionava tamanha beleza e elegância.
Espero que Alice não tenha exagerado na produção. Olha esse homem. Achando
decerto que sou uma perua emperiquitada.

— Sim, senhorita. É aqui do lado.

A primeira impressão causada foi de obscuridade e pouca ventilação.


Talvez por isso as plantas — pensou a menina. O advogado acreditava que era
resultado do tempo em que as janelas estiveram fechadas. Quando as abriram
porém pouco melhorou a iluminação e o ar permanecia sufocante. Mas Bianca
estava encantada com o lugar. Pensou em como seria legal receber os amigos
naquele cantinho agradável. Uma sala de estar praticamente ao ar livre. Gostou
sobretudo do sofá vermelho com almofadas fofas ainda que provavelmente
pediria ao tapeceiro que lhe fizesse um recobrimento de outra cor. De que cores
você gosta — perguntou a corretora. Gosto de verde — disse a menina.

Foram as pombas. Foi a debandada das pombas que juntas abandonaram


o telhado em frente rumo às luzes da fonte num caleidoscópio profético aos
olhos de Bianca . Que a levou à decisão de ali querer morar. Quando mais tarde
ouvir isso Alice lembrar-se-á da cena que Pedro descrevera — a filhinha
soltando-se dos pais e perseguindo as aves pela praça recortadas, menina e
pombas, contra as águas luminosas de uma fonte e o som do sino, o mesmo que
tocava enquanto ela nascia. Talvez fosse mesmo um bom presságio o das
pombas mas a esse ponto? abrir mão da renda do aluguel de inestimável valor
para os estudos dela? Nunca me queixei nem tinha do que mas por algum outro
meio a menina soube das dificuldades quando ela era bem pequena e eu a tinha
de deixar na creche. Quando Bianca abriu a porta para o advogado, segura do
que queria, sentiu um arrepio na pele. Como se tivessem depositado ali camadas
de passado e futuro — a trágica morte da mãe, a da avó, a do tio e a do pai e a
de Alice — mas sentiu também um elemento cuja textura era firme e a cor viva
como a da fonte. Doces momentos inesquecíveis. Voo num céu sem nuvens que
lhe proporcionaria a companhia de Alice como tutora. Passando ambas todos os
dias para sair de casa diante de uma treliça de glicínias.

Abriu a porta de vidro que dava para o salão interno ladeando a


enorme cozinha fria e iluminada como se tivesse num passe de mágica
aterrissado nos dias frios e secos do verão e a angústia se transforma em
tristeza. Pensamentos vadios vindos de um coração que não reconheceu logo
como seu ligava antes à beleza de Alice, na falta de lhe conhecer melhor a alma.
O que entendia ao dobrar as pernas lisas e longas e se lançar no sofá com os
cabelos se espalhando pela grande e leve almofada dum tom mais escuro que
logo repousava em seu colo e onde logo seus cotovelos repousavam, era a
ligação inexorável entre a dor e o amor, entre a tristeza e o trabalho. Seu
pensamento antes mero passatempo ocupa agora um lugar sagrado. Que bom
que você acredita — disse Alice. Que bom que você aceita.

Quando deu por si estava na ladeira do centro cultural. Faz calor


mas ela treme. Estava só. Foi mais ou menos ali que eles entraram no carro
cheirando a novo e começaram a rodar pela cidade na direção da casa dele.
Ouvindo como se os carregassem gritos e palavras de ordem misturadas a
delirantes buzinas e a um mar vulgar de murmúrios sobre a avenida que ciciava
na chuva. Ela tem receio de olhar para o lado e ver seu perfil. As conversas das
pessoas pairam e passam como entrecortadas nuvens invisíveis sem fazer
sentido. Como se gritassem com ela. Por que agiu assim? Por que se entregou
por um abrigo noturno? Naturalmente achando que na pior das hipóteses eu
deveria ter me assegurado de que isso era mesmo verdade e que se tinha de me
entregar para um estranho não deveria ficar desabrigada do mesmo jeito como
se não tivesse. Gritando comigo Por que se apaixonou? Então ela espera que a
qualquer momento as vozes se tornem a da mãe que morrera naquele ano. Pelo
tom saberá que ela desculparia qualquer coisa desde que soubesse que a filha
não passaria pelas mesmas coisas que ela passou. Mas Pedro era apenas um
homem bom, trabalhador. Nunca viu todo o dinheiro com que costumam
imaginar um empresário lida diariamente. Pedro Você. Os passos tristes
ecoando nas pedrinhas do jardim artificial ao lado do café como os de um
soldado que avança e pára a uma distância segura sabendo o que quer ao som
do pássaro do mar que cantou naquele momento como se gritasse e os outros
respondessem. Acho que são gaivotas mas não pode ser então não sei mas não
importa. Quanto tempo ficamos nos olhando sem palavras alheios ao que
estivesse em volta fixos encarando e meu corpo responde de um jeito como
nunca. Eu ia desviar o olhar eu realmente ia mas você segurou meu rosto como
se deixar meu olhar se desviar significasse me deixar partir sem cumprir a
promessa. Minhas mãos estão como que soltas no ar. O som das pedrinhas não
parou de todo embora seus passos tenham parado. Minhas mãos enfim
descansam em sua jaqueta como num porto seguro e o som dos lábios se
soltam no ar junto às vozes dos pássaros. Não estou simulando estou sim
correspondendo com todas as minhas forças. Seu rosto se inclina primeiro para
um lado depois para outro e eu peguei tipo um cacoete assim mesmo sem
qualquer sentido sozinha em geral rindo lembrando, fingindo nunca,
lembrando. Suas mãos abertas em minhas costas me aproximam e não há mais
distância segura quando sua boca se abre e se fecha sobre a minha como um
predador sobre uma presa feliz e por alguns segundos vi de novo os seus olhos
e por alguns segundos você viu de novo os meus que confessavam amor ao
receber o novo toque de seus lábios agora discretos quase santos num som
breve que já ignorava os pássaros como se buscássemos o ar antes de
mergulhar de novo. Meus braços se erguem como numa prece e o tecidos do
agasalho sussurra levando minhas mãos e os dedos que caminham sobre sua
gola como se tocassem piano ou imitassem dançarinos. Ali eu soube que você
acreditou e que para sempre acreditaria mas não podia saber mais e imaginar
além do permitido, pelo bem de minha própria alma. Os dedos em seus ombros.
Caminhando em seus ombros. Dobram-se um de cada vez e depois tornam a se
abrir sobre a textura da jaqueta que exalava o cheiro que por muito tempo para
mim seria o seu e ainda é o seu quando em momentos como agora aqui na
rampa descendo eu recordo. Esse pássaro é aquele. É aquele. O canto terminava
assim pungente enquanto eu não me soltava de sua boca com a mão direita
envolvendo seu pescoço e a esquerda pendente em seu ombro. Estou pendurada
agora como se soltá-lo significasse realmente despencar. Estou pendurada e
quente e soluçando como se chorasse e quem sabe não estivesse mesmo. Você
permite agora que eu me solte. Agora você permite que eu me solte sem cair.
Depois naquele ponto da avenida em que fica a loja de informática ela pensa
que devia ter evitado esse caminho. Duas vezes o encontrou por aqui. É possível
portanto que torne a acontecer. Nada ela desejaria mais mas ele jamais
acreditará que ela não resistiu a seu beijo o tanto que deveria porque estava
sinceramente apaixonada, pela primeira vez. Há quanto tempo a luz doura
aquele detalhe do prédio? O que existe existe entre a alma e o objeto no
corredor que liga os olhares. O sino tocou assustando as pombas pela terceira
vez. A primeira que Alice ouvia. Esse momento soaria na memória enquanto o
sino vibrasse. Você. Consequência da luz na fresta sob a porta. Do toque do
sino. Do cheiro das damas da noite. A luz que contorna a edificação
harmonizando o impossível de ser harmonizado. A nuvem iluminada e a
firmeza geométrica. Então ela atravessou o sinal descuidada e o motorista
lançou o anátema.

Nunca brigavam e raramente faziam amor. O que aconteceu? Que


palavras duras! De onde Pabloas desencavou? de onde desencavou tantas
verdades a respeito dela? Como a desnuda assim? Não a ela mas àquela que ela
foi. Não com gritos mas palavras brandas.

Mais tarde ao jantar sozinha como de costume na mesa da cozinha cuja


lâmpada falhava seguidamente enquanto ela pensava no transtorno que seria
estar em casa refém do eletricista, ouviu passos pesados nas escadas e por um
segundo esperou que ele abrisse a porta ou como não era raro tocasse a
campainha porque havia esquecido a chave. Mas os passos continuaram para o
andar de cima calcando pesadamente os degraus como se pudessem depois
jorrar vinho. Seria bebida amarga pela raiva ali contida. Não poderiam portanto
ser os passos dele pois as únicas iras de Pablose destinavam a Sonja, com quem
sempre brigava e a cada reconciliação era o amor melhor. Estavam sempre
ligadas à possibilidade de ser o pai de Bianca .

Acaba de entrar no quarto pelo corredor de luz que clareia o móvel


entrevisto e ilumina as lombadas dos livros na estante. Como sempre a primeira
coisa que fez foi abrir a janela. Dia luminoso e luminoso o perfil de Sonja contra
o dia recortado. As mãos trançadas para trás no fecho do vestido. Girou e
surgiram como se estivessem nascendo os pequeninos desejáveis seios. A
insensatez com que vinha se comportando naqueles dias após a contratação da
empregada não era naturalmente indício de leviandade. Não vale a pena
imaginar o que poderiam ter sido, esse casal impetuoso e pujante, caso não
aprisionados na normalidade. Ela escuta o que ele diz e responde qualquer
coisa, sentando-se na beira da cama. Realmente ainda é linda. Linda e calma. O
vermelho dos olhos dele e o vermelho dos lábios dela. Menos linda que Alice
mas muito mais digna. O fecho sob o pequenino colar havia resistido e ela lhe
pede que abra, por favor. Ele pergunta alguma coisa sobre aonde ela foi mas
quando os olhares se cruzam está arrependido. Não quer sugerir suspeita. É a
última coisa que poderia ter em relação a ela.

Ela estava confusa. Há pouco tempo um toque de Pedro a teria


enlouquecido. Um prazer no qual não confiava mais. Mas sim era prazer. Um
movimento que se perdia como nas sinfonias a que nos habituamos e do qual
jamais duvidaremos. Será por todo o sempre deleite apesar de todo
questionamento. Fecha a janela. Pingos de luz ainda entram pelos furinhos da
persiana como notas do vento que faz a leve cortina adquirir formas estranhas
côncavas e convexas e a transforma num implacável pastiche de exímia
dançarina oriental arfando. Luz e vento e música imaginada. A vela de um barco
importuno rumando para as férias que eles nunca tiraram. Quase não falam.
Não é um mal. Foi a melhor época da vida a que menos conversavam. Em que
nada precisava de um discurso lógico como agora. Um velho barco capaz de
atravessar mares mais tormentosos.

Quanto tempo depois de tirar a poeira dos móveis e pensar na moça, ela
viu Pablo naquela situação nova? Ele lhe dirá que ter uma empregada faz toda a
diferença para um homem sozinho. Para uma mulher também. Ela corre em sua
direção. Abraça-o. Beija-o. Quando o solta, ele ainda sente as marcas do aperto
nos braços. Solitário menino perdido. Desvia o olhar. Esses arroubos de Sonja o
incomodam. Não pretende uma vida assim intensa. A lógica do projetista
determinou um futuro calmo. Sem inquietações evitáveis. Mas está ali. Se
encontram há seis semanas mais ou menos. Cinco semanas e meia, ela sabe:
anotou em algum lugar. Ainda de pé ele recompôs a camisa com um sorriso
que era um pedido de desculpa, mas ela não notou. Na verdade também está
ajeitando o cabelo. Resta saber quem tomará a iniciativa óbvia e como. Então ela
se virou e foi para o quarto e ele a seguiu. Como se houvesse nisso uma
metáfora.

Alice imaginava um amor sublime e se deixava arrebatar. O ardor de seu


corpo correspondia à luminosidade das esferas a que era levada. Entre
requintadas árvores protegia os montes sagrados em silêncio denso, e a
memória e os projetos se dissolviam na ausência de bem-estar ou de dor. Não se
engane. O êxtase desse sonho não resistirá ao toque do telefone ou ao girar da
chave. Não se alegre. Ele chegará — se chegar — falando das promoções injustas
de algum colega. Não se transformará nesse deus crepuscular que te toca. Solta
os cabelos descendo. Arruma a mesa. Acende o fogo. Bem a tempo. A chave
estala. Pabloentra. Imagina, amor, que deram a chefia àquele idiota do... Até
religiosa ela meio que se tornou mas o odor em que a oração sobe é o mesmo da
cozinha onde parece que esse arroz queimou.

Cheiros antigos tanto acolhiam a infância renegada quanto a velhice não


mais temida. E mesmo um aroma vago de tempos anteriores a seu nascimento e
posteriores à sua partida do planeta que não teve a delicadeza de perceber que
ela não se adaptaria, retirando o convite. Pensa nisso na macia e robusta
poltrona do avião ao som de seus fones bloqueadores do redor — nave para o
mundo ideal fugidio no toque da aeromoça em seu ombro ou na turbulência que
não a assustou mas sim o passageiro ao lado. Antes do casamento não podia se
imaginar num voo para outro país a fim de ficar não mais que algumas horas e
em nome do marido fechar o contrato que ele não pôde pessoalmente. E em que
isso mudava as coisas? O avião sai da turbulência e restabelece seu murmúrio
de mar. Ela de novo adormece sem ouvir mais o choro da criança.

Foi uma viagem cansativa. Em casa torna a adormecer olhando a cortina


obediente à brisa. A luz se imiscui nas persianas fechadas através de cada
mínimo interstício. Nada restou. Plano ou esperada surpresa. Suspira na
fronteira entremundos uma prece acima da compreensão de Deus, evocando-se
como sempre naquele dia gelado e angustiante sem qualquer expectativa de
amanhã, e todavia aqui está o amanhã além de todo o esperado. Devia ser grata.
Não será o amor a paixão pela imperfeição do outro, que será necessariamente a
paixão pelo outro, pelo que é no cotidiano e não por uma fantasia de si mesma?
Homens jovens sem defeito e competentes como Pablose deixam subjugar por
seu sexo e pensam com o sexo seus pensamentos mais profundos. Depois de
longa suspensão a cortina tornou a tremular. A luz pode determinar o espaço
como nitidamente demonstra o caminho do sol na parede oposta assim como a
textura agora que o feixe molha o cortinado e desce por ele. Talvez devesse se
concentrar no conforto. Talvez devesse. No quanto o conforto até mesmo
permite seus questionamentos. Mas pensa que não haveria questionamentos se
fosse simples e alienadamente feliz. Para que servem a leitura e a escrita exceto
o saber que as coisas são ou não como deveriam sem possibilidade de mudá-
las? Que o amor não concretizado vale mais que o affaire mais intenso — que
talvez o affaire mais intenso seja o affaire não consumado. É provavelmente
uma regra do amor. Ser tanto mais verdadeiro quanto menos real. Jura ter
ouvido o lamento e o grito de júbilo da floresta em que os amores se perdem em
meio às folhas estalantes de passos renegados pelo dia e grandezas a que o
pleno despertar dará outro nome. Acorda. Entreabre os olhos. Acredita que é
sábado sem descrer da treva onírica. Se ao menos tivesse força suficiente para
esticar o braço e alcançar o celular na cabeceira... Caso esteja certa, caso seja
sábado, há uma conflito sintático a ser atenuado na monografia. Respirou fundo
para que a ordem fosse dada a seu braço. O desenho da janela ainda se
movendo. Quadricula o teto. Faz com que o livro à cabeceira se incendeie.
Colore de vermelho-escuro a mochila marrom jogada na cadeira. Sim.
Amanhece. Como mesmo aconteceu? Um professor na cantina da universidade.
Um convite. O olhar de uma jovem desconfiada. Está mudando. Gostaria que
alguém esperasse dela uma mudança. Gostaria de presentear esse alguém. Cada
vez menos Pabloé essa pessoa. Ele preferia a outra, a morta. O céu estrelado à
janela diz para ela não perder as esperanças e não se acomodar. Pega o celular e
está mesmo na hora. Refletindo se deve ou não corrigir o trabalho, talvez não,
pensa. Talvez a sintaxe viva de conflitos e o conflito demonstre o quanto está
viva. Como o sol na cortina e nos interstícios da persiana. Como em algum outra
parte da manhã o professor.

Ele não parecia interessado no que ela sentia, pelo menos não agora, e
Bianca mal sentia a insistência das carícias, imersa que estava nos seus
pensamentos. Ele se deu por vencido. Seria a terceira vez aquela tarde embora
nunca de modo completo. Bianca : estátua de moça sob a chuva do entardecer.
No corpo resquícios da segunda vez. Cansada. Nem decidira se gostava dele
tanto assim. Era um bom amigo, o melhor. Raramente se transformam em outra
coisa. A meia-luz incide ao longo da parte abaixo dos joelhos que naquela
posição crescia e brilhava. Talvez fosse melhor de novo puxar conversa. Mas
como foi — perguntou ele.

— Minha mãe chegou no mesmo ônibus que Alice. Deixou com ela o
endereço caso ela porventura precisasse de alguma coisa e era muito provável
que precisasse pois viera procurar trabalho numa cidade em que não conhecia
ninguém. Mas por uma ironia do destino conheceu meu pai também...

Quase se arrependeu de ter dito aquilo mas entendeu que não precisava.
Ele era um bom amigo. Rapaz de inteira confiança que levava a sério quando ela
falava. As coisas que contava não deviam sair do quarto mas não podia
simplesmente deixar de contar. A vida que viveu. Menor que qualquer das que
imaginou. Viveu-as ambas como uma só. Pensando no quanto os céus
quiméricos eram mais azuis do que esse à janela, pensou que não. Que a cortina
que filtra a luz também será palpável caso ela se levante. Caso aceite as cores
vívidas do sonho pela natureza febril do respirar humano, a maça firme e
vermelha que aplacar a fome será o ovo do pássaro do sonho colocado na
fruteira. E o rapaz de calça jeans áspera e camiseta cinza justa assumirá as
imagens dos rapazes de seu sono. A alça do sutiã pendia na cadeira e a blusa
escorregara até o assoalho.

A ironia maior ainda estava por vir, a coincidência maior — continuou.

— Meu tio a conheceu na rua alguns dias depois de ela ter estado com
meu pai e acabaram se casando.

Nesse ponto o interesse dele despertou. Realmente muita coincidência.


Quis saber o que aconteceu, se eles souberam um do outro na mesma época. E
se eu disser que não é tudo? Que vovô, que mal tinha contato com os filhos,
acabou se tornando o melhor amigo de Alice? que soube — ele sim antes que
todos — de tudo? Com uma frase que se constrói mais pelo desenho das
palavras e da pontuação do que pela decência da gramática, ela quer dizer
alguma coisa mais ampla e viva como o marulhar à janela azul, como os
pássaros da noite e como os pequenos insetos em torno das plantas dos vasos
da varanda, como a umidade macia das glicínias na treliça. Não. Não devia ter
falado nem o que falei. Até porque quem poderia entender? É mais do que eu
mesma consigo.

— Seu avô não é aquele professor que teve problemas na escola com uma
aluna?

Ela não irá responder toda a verdade. Omitirá o que julgue denegrir a
imagem do velho que adora. Sentada na cama, as mãos entrelaçadas pendem
entre as coxas morenas. A luz incidindo sobre a pele elástica dos joelhos
luzidios exceto pelo arroxeado de uma queda quando lavava o piso da cozinha.
Diz que o avô amava mesmo a garota e mais não digo por que não entendo
direito esse desejo dele de que ela fosse — não, não é isso

— Ele amava mesmo a menina e achava que poderiam viver uma história
de amor e cumplicidade antes de ele morrer e depois ela ainda teria toda a vida
pela frente algo assim, nunca vou conseguir expressar o que sequer consigo
captar

O assunto havia ido longe demais mas agora já disse que vovô conheceu
Alice e se deixar assim no ar aí é que ele vai mesmo pensar mal deles...
— Ele a conheceu numa biblioteca Parece que toda a família dela carrega
essa sina de conhecer Alice numa biblioteca e ficaram muito amigos.

O rapaz diz que Bianca quase não falava da mãe nem da avó. Ela
admitiu de imediato. Pensou que realmente tinha esse bloqueio. Estragaram as
vidas de seu pai e seu avô mas se uma pessoa não confiar em alguém nessa vida
e se não tiver um confidente acaba enlouquecendo. Então ela contou sobre a
separação dos avós e sobre a relação difícil do avô com os filhos e questionou o
argumento de que envergonhou os dois diante dos colegas. Para dar também
um fim à conversa que tinha ido longe demais ela disse:

— Se encontraram todos no casamento de meu tio e Isso está longe de


terminar o assunto

— Que situação constrangedora deve ter sido.

- A única situação realmente constrangedora é como minha mãe morreu.

Não iria falar mais. Subitamente viu o rosto fresco do amigo e nos olhos
dele a frescura do próprio rosto e dos próprios olhos. Eram tão jovens...

— Você me ama?

Essa menina é mesmo bem louquinha —se preocupa com isso um minuto
depois de me rejeitar?

— Me ama?

Ele não respondeu logo. O que eu posso dizer? Ela aproximou os lábios
dos lábios dele. Acho que amo apesar desse jeito amalucado dela. Ele
correspondeu de um jeito mais delicado do que de costume. Parece que ela
gosta de delicadeza; quando sou afoito me dou mal.

— Amo. Te amo de verdade.

— Bem, ela disse — Vou acreditar. Preciso. Podemos ir até o fim agora.

As aves revoluteando na varanda viveram. O ar entrou nos pulmões dele


de um jeito diferente, mais pleno, como se a respiração precisasse ser
consciente de si mesma. A brincadeira estava chegando ao final e agora ele não
sabia o que devia acontecer depois — ele, que no antes era tão eficiente. A
língua dele se tornou áspera. Precisamos de um tempo. Pelo menos de uns
minutos. Ela se afastou e sentou-se na beira da cama. Quanto mais a gente vive
menos entende as mulheres e desde pequenas. Não tinha sido por amor nem
por desejo nem por qualquer coisa relacionada ao que estava prestes a
acontecer. Ela entendeu o acaso que liga as mais importantes decisões como
uma luz na escuridão. Sim porque era uma total escuridão — pensava ela ao
olhar o crepúsculo enquadrado enquanto continuava desabotoando a blusa
branca do uniforme — um branco aromático cheirando ainda ao produto que
Alice havia usado para passar e lembrando vagamente tons amadeirados de
perfumes cuja função primeira é induzir a pessoa próxima a pensar que tinha a
ver com o cheiro doce da maconha misturando-se ao aroma de flores. Por mais
que tentasse se forçar a desviar o pensamento sempre recaía na figura materna,
em Sonja se desnudando para Pabloe se entregando ao tio, com quem terá um
contato muito pequeno mas extraordinário depois do qual não conseguirá
deixar de pensar que ela fora fruto da relação errada. A camisa finalmente
abandonou seu torso Que coisa linda em meio aos ruídos abafados do pano
lembrando uma bandeira cuja razão do hasteamento ela não compreendia mas
não dava mais para parar. Ela usa esmalte quase cinza, só agora ele percebe,
quando os dedos desengatam pelas costas o sutiã Que coisa mais linda. Ela não
desvia o rosto para ele. Não há sombra de sedução em seu comportamento,
parecendo antes que está sozinha apenas se despindo para dormir.

O professor Savone se tornou conhecido entre os universitários mais do


que por ser um homem probo e educador competente. Era o que qualquer um
sabia dele. Vejam, o Savone — diziam. Decerto — respondia um dentre os
outros — em busca de sua mais recente descoberta científica. Quem não
estudava na universidade, como Alice, tendia a acreditar. Ao procurar ela um
livro nas estantes, embora impossível deixar de admirar seu corpo nos trajes
leves, não passou pela cabeça dele o pujante o caráter provisório que toda roupa
necessariamente tem. Péssima a funcionalidade e a disposição das estantes. Ele
sentiu o sol lá fora dentro de seu peito tocado pela maciez dos dedos que
predestinados percorriam as lombadas.

Ela tentava se afastar para outro corredor. Ele a olhava sereno. Ela não
consegue simplesmente não consegue se afastar. Se houvesse alguém do lado
oposto da estante entre dois livros inclinados veria o rosto dela fresco e quieto
igualmente inclinado. Após alguns ensaios os olhos se desviam para o lado onde
sente a presença do professor. Essa pessoa do outro lado da estante não o
estaria vendo exceto pelo pestanejar e pelos rictos dela mas não saberia que
tipo de sentimento expressavam porque ela havia retirado do rosto qualquer
esboço confessional. A mão quente em seu ombro só depois na cantina
produzirá um choque de futuro. Sombra sobre sombra nas lombadas. Ela não
escutou direito mas acredita. Na história da vida dele há visões. Humilhação e
lágrimas. Inconformismo. Ela acredita que não há segunda intenção em seu
convite. Mas será ela capaz? É só uma mesa num evento literário com
estudantes do segundo grau. Mesmo assim um desafio. Quando deixaram o
balcão, Alice afinal sorriu. O professor estava realizado. Conseguira a
palestrante para antigos alunos. A sombra no espelho será iluminada quando
mãos preparadas abrirem a janela no momento devido.

A casa foi construída num terreno sombrio à prova de enchentes. O


arquiteto a encontrou pronta em sua mente ao contemplar o espaço.
Determinou naquele momento onde seria o quarto e a sala, o banheiro e o
escritório, e como as pessoas se deslocariam ali dentro. Ouvia os passos delas
como um escultor cinzela uma forma a partir de um lampejo que se modificará
com o andamento do trabalho mas manterá aquela figura original tosca e eterna
em sua imaterialidade. Um homem gordo num terno mais elegante do que seria
lícito esperar pelos demais transeuntes disse que era um belo projeto e uma
execução competente. Seu assistente, com quem foi almoçar, aquiesceu e falou
consigo mesmo. Está adquirindo contornos quase humanos. As moças que riam
alto e os rapazes que sussurravam sabem o tipo de pessoa que irá viver ali. Não
pode ser alguém que o consenso indique normalidade. Está recém pintada e
com um aspecto escuro de antiguidade. Há musgo revestindo o muro e
campânulas envolvem as ruas em sobrenatural flagrância.

Um regato passa pelo fundo da casa. O sol morno de fim de primavera se


põe e no crepúsculo as paredes rosadas se revestem de milagre quando dos
raios desviados pelas águas. O homem sai à janela e pensa que é hora. Alguns
dos gatos se enroscam em suas pernas; outros passeiam pela pia da cozinha
sem tenção. Passaram-se os tempos glamourosos e a mágoa se dissipava.
Distinguir da decadência a circunspeção que nunca coube no convívio social.
Não mais auréola de vaidades. Não mais desejo. Permaneceu a nudez da
sabedoria que se concretiza como esse tronco mal iluminado quase sem cor. Se
a morte está às portas haverá ele de retirar de sua proximidade a vida que a
jovem pode oferecer — seiva que só jovens possuem e da qual não são
conscientes. Alguém em algum momento terá de entender.

Um homem de palavra. Generoso. Perdoador. De que serviu? Na varanda


o sol atinge um momento não mais esperado. Terá de dar um jeito na bagunça.
Aposentos de moribundo no qual a probidade de outrora se esconde e onde
também a antiga loucura. Caos interior de que a casa é fiel reflexo. Amanhã ela
estará aqui. A luz que se apagou iluminou a chegada da improvável ninfa.

Debruçado na janela pensativo ouve os cães e portas e passos que se


acompanham de fragmentos de frases. Toras serradas para a construção da
torre a que se propôs. Não sabe as horas. O dia inteiro chuvoso lhe tirou as
referências da luz. Há outras. Aquela moça costuma passar ao meio-dia —
provavelmente intervalo para o almoço. Cheiro de comida permeia o ar por volta
das onze. Quando do caminhão de gás começarem a descer os botijões em
baques metálicos antecedidos pela musiqueta do falso sino, será o meio da
tarde. Janela emperrada como ele. Logo começarão os trovões e o vento e as
religiosas chuvas de verão. A tempestade é confiável. Compreendeu de modo
trágico a inutilidade das virtudes. Havia arbítrio? Cada móvel da casa vibra sob
as bátegas. Cada utensílio. Detalhes da decoração que se fez sozinha. Objetos
que se distribuíram na inconsciência desesperada quando soube que havia sido
expulso e sob que acusação.

Se tivesse dado ouvidos aos colegas e feito o mestrado e só pensado


em casamento quando sua situação financeira estivesse definida, as coisas
teriam sido diferentes. Foi quando pensou se essa realização não
comprometeria a estrutura de seu destino, aquilo em que podemos exercer
alguma escolha. Pautou a vida segundo raciocínios sensatos que não
encontravam respaldo na realidade. Verdades inverossímeis. Orgulho da nobre
determinação. Mas as coisas simplesmente acontecem. Independente de vontade
ou fé ele era levado, arrebatado — arrebatado! — uma, duas, três vezes, todos os
dias. A tibieza do hábito não prevalecia. Casou cedo. Casou para não se separar.
Na noite em que se sentaram para discutir os detalhes do divórcio era como se
ele não estivesse. Estava ali outro enquanto ele vagueava por mundos que com o
tempo se fariam familiares onde não há normalidade e a terra não é regida pela
tirania dos valores da vigília e da consciência. Mas seu coração não estava
pronto. Só à noite os arredores adquiriam a atmosfera licenciosa na proporção
inversa dos sons dos trovões que se afastavam. Saía cedo. Levava a recém-
esposa à universidade e ia para a escola e de lá para o jornal e ficava até os
exemplares serem impressos e de madrugada os vícios estavam guardados na
vizinhança de aparência inocente. Casinhas que pareciam saídas de contos de
fadas. Chegava tão cansado que caía na cama e dormia. Decerto nascera aí sua
perplexidade. A esposa passou a arranjar desculpas para se furtar ao que a
levara ao desvario de querer casar. Mais tarde ele é que pedia desculpas. A rua
terminava numa avenida larga onde no meio do quarteirão em cuja esquina se
erguia límpida a igreja mórmon entraram para oficializar o divórcio. Nascera
cedo demais e era homem. Só uma mulher e uma mulher jovem tem autoridade
de se fazer compreender num tempo assim. Melhor se for filha das redes sociais
e das manifestações de rua. Há abertas no céu. Irá então à Biblioteca. Passara-se
a tarde longa, monótona e produtiva, e ele saía do prédio quando ouviu o
sussurro do vento que o queria impedir. Ela ainda estava sentada onde esteve
toda a tarde quando o reconheceu. Uma menina de camisa branca e saia curta —
uma saia xadrez definitivamente imprópria. Ele estacou e se abaixou no aperto
de coxas e panturrilhas que não acusaram o raro movimento, ficando da altura
dela. Falou. Perguntou se ele queria mesmo ir. Claro — ela respondeu e sorriu
como a dizer que não deveria agir assim com uma mulher, mesmo tão jovem,
principalmente tão jovem. Ele entendeu. Não diria isso nunca mais. Quem sabe
ela saiba também como ele deva agir e o que dizer aos filhos.

O que pode interessar o que eu acho? Se você insiste, meu filho, acho
naturalmente que você poderia ter ajudado e dado a ela um lugar na gráfica até
porque o primo de Sonja não é uma pessoa de confiança e sequer estava
interessado no lugar e no final você teve mesmo de contratar um estranho. Deu
sorte pois Raphael é um ótimo rapaz. Mas não teria sido o mesmo com ela? Ela
também não está demonstrando o quanto é de confiança e competente em tudo
o que faz, sem falar na virtude misericordiosa com que suporta a instabilidade
emocional de seu irmão? Eu diria que não é tarde. Eu diria que se não foi tarde
para mim não pode ser para você. Eu diria que você teve essa sorte de poder se
redimir.

Naquela noite embora de verão não choveu. Decidiram de madrugada


que os filhos, os dois filhos, ficariam com a mãe — na verdade com os pais dela,
com os avós, que arcariam com as despesas. Savone não precisava se preocupar
e em tese os filhos eram o único problema para a separação. Temporária. Sim,
entendemos. Você precisa ir atrás de seus sonhos. Tudo resolvido. Ninguém
cogitou o quanto um casamento desfeito pode ser devastador na vida de um
homem em quaisquer termos. Legais, profissionais, afetivos. Sobretudo quando
se é um homem jovem alguns anos mais jovem que a média dos divorciados e
alguns anos mais velho dos que andavam à procura de emprego. Ninguém
cogitou (ou a esposa naquela noite já sabia?) o quanto vingança de ex-mulher é
funesta. Ou que seus dois filhos pudessem ser influenciados pela mãe como se
fossem garotinhos. Por vinte anos o professor esteve sem vê-los. Agora o posto
de trabalho na universidade tão arduamente conseguido lhe fora tirado. Tudo
estará porém esquecido quando estiver entrando no velório do filho, tremendo.
A jovem olhará para ele, incrédula e comovida. Mais por ele mesmo, pelo
professor, do que pelo esposo morto. Pai e filhos. Um em especial. Num dia um
tapa no rosto; noutro, a mão em seu ombro. E o beijo. Quantos há? Não apenas
o sensual. Há o que suga a vida; o que tenta calar; o que luta em silêncio.
Tantos. Tantos tapas também.

Seu pai pensaria decerto, ao saber que ele ergueu as mãos contra uma
jovem, que gerara um monstro. Monstro! Podia ouvir sua calma voz veemente
enveredando pelos labirintos da alma lacerada. Isso ele não imagina: que desde
que a reviu sem conseguir lhe falar está assim. Pungido. Lacerado. O professor
não saberá nada além de que ela se apaixonou desde o primeiro beijo. O tapa —
como furacões rebaixados a tempestade tropical — não será digno de menção.

Relutei em admitir que havia realmente algo a mais e afinal concordo.


Não há uma separação de tempo nem de espaço. Há a vida. Um abismo de
mundos no mundo. Tantas vezes pensei o que teria a ensinar aos alunos que
eles que não soubessem e o quanto era inútil saberem o que eventualmente
desconheciam. Nada a ver com idade, personalidade, tempo ou falta de tempo e
tudo a ver não com a pregação de algum novo profeta mas com a boa e velha
vontade. Queremos que seja de um jeito ou de outro e ponto: daremos um jeito
de que assim seja. Não há o que eu possa dizer quando alguém se sinta
abandonada e recuse a presença que está ao lado à espera. Não há o que eu
possa fazer quando se acredita que houve uma substituição afetiva, mesmo
diante de um cão fiel. Para quem essas coisas façam sentido, o que pode mudar
a dor do outro estar ali para nada e se sentir como um morto? Naturalmente
não há culpados. Quase nunca há e aqui sem sombra de dúvida. Não houve uma
ação de despedida para algo novo mas reação de simples sobrevivência. Não sei
se essa sua avaliação corresponde à verdade, quero dizer, se tudo é
manipulação e falsidade etc. Prefiro que não seja porque aí haveria a
possibilidade de conhecimento de causa nessa queixa. Na verdade sequer sei se
esse seu pensamento é real ou só uma velha vontade de ferir. Difícil imaginar
que as redes sociais um dia irão se extinguir, mas é reconfortante que aquele
papel tenha se salvado do absurdo dessas mágoas. Sempre sim sempre
experiência — isso que a gente tem para usar à frente em novas situações
porque não foi usado na situação em que se a adquiriu. Resta a imagem de
cabelos emaranhados sobre o rosto, sinais estratégicos pelo corpo, sobrancelhas
sombrias sobre belos e doces olhos singelos, unhas cortadas rente na ponta dos
dedos de afresco, a um tempo realidade e fantasia, e assim não podem
decepcionar ou não decepcionar mas apenas registram um tempo de vida
protegido do abismo nos sonhos sim mas que tocaram em algum momento a
realidade e nisso escaparam da mera imaginação e se eternizaram numa
homenagem que pode ser feita a qualquer tempo enquanto houver vida e depois
do fim quem sabe ainda persista na memória da outra estação desse ano
sagrado.

Saíram. Os passos de saltos pesados toam no caminho oco da passarela


sobre a biblioteca, vinda de uma reforma que não retirou esse efeito acústico
não percebido pela maioria dos leitores, lentos para qualquer coisa além de si
mesmos. Acompanham um ao outro como violino e piano numa elegia de
câmara com um elemento de abstração percebido sem cores imaginativas
exuberantes pelas pessoas sentadas nos bancos laterais, enquanto eles avançam
entre o perfume das flores vermelhas nos canteiros de ferro recém-dispostos.

Dois passos dela para um de Savone. A atendente do guarda-volumes


observa o quanto os ombros dele e os quadris dela são largos. O andar do
homem supõe determinação. O da jovem não afeta de sensualidade. Ela quer
apenas agradar o homem sem saber a razão. Acreditando haver uma razão. O
que é tudo o que ele precisa que ela acredite para que o mal-entendido não
destrua essa oportunidade única da dor.

Passam pelos estudantes sentados no café. Ela tira da bolsa o celular e


desliga para ter o que fazer com as mãos. Ele vê algo mais que isso, uma
deferência. Entraram rente ao plástico junto à mureta, improvisado como
proteção contra a chuva. Sentaram-se à mesa com migalhas dos clientes
anteriores. Luzes acompanham os movimentos de um e de outro e logo novas
luzes nascem a partir da aproximação da garçonete que passará um pano úmido
na tampa de silicone duro e branco e recolhendo dois envelopinhos de açúcar e
um canudo amassado Estou tão cansada disso preciso sair mais cedo e falar
com aquele cara se a oferta ainda está de pé. Levando eventualmente um
lamento de trapo como giz num quadro-negro queixoso que ela fazia seu, ele
olha para Alice e fala e pergunta. São dois cafés e — Você quer comer alguma
coisa? Ela responde num tom baixo encantadoramente respeitoso. Não estava
com fome. Até estava um pouquinho mas acaba ficando enjoada ao comer entre
as refeições.

— Aqui também servem jantar, prefere?

O olhar da garçonete começou a demonstrar irritação. As refeições são


self-service — disse ela. Alice se sentia estranha, muito à vontade. Um café está
ótimo — sorriu. Olharam-se nos olhos pela primeira vez. As mãos dela são
bonitas: as unhas cortadas rente, sem esmalte. Na mesa também a cestinha dos
saches sobre a qual confiantes as vozes passavam. As mãos dele são grandes, os
dedos crispados junto à borda. Falam de recordações que podem ser
esperanças. Para o pessoal das mesas vizinhas são neta e avô. Talvez colegas de
aula, não é mais incomum como noutros tempos — pensa a senhora grisalha
duas mesas além, junto do galho da buganvília rosa. O tempo entre os
nascimentos não impede a partilha de crepúsculos. Parques. Praças. Mesas de
biblioteca. Música clássica e contemporânea. Desejo de alegria que aceita o
sofrimento e viagem que implica em viajantes e não destino. Moça muitíssimo
simpática e sensível e linda, e que inteligência. Com Beatrice essa ordem estava
denegrida e havia um vínculo hoje indesejado. As moças ao lado não incluem a
possibilidade de serem professor e aluna. Savone teria gostado de saber. Precisa
ainda acreditar que é um homem bom embora condenado.

Ele foi à janela e viu a rua molhada. Um transeunte olha para cima e se
assusta. Pensava ninguém morasse ali. Mas o telefone toca e ele atende e se
esquece do homem à janela. Com a rapidez de raciciocínio e sagacidade
necessárias para se ganhar o sustento num mundo tecnológico e competitivo em
que nem a privacidade dos presidentes está preservada, ao ouvir a voz do outro
lado sugerindo a compra do dispositivo, disse que seria melhor esperar pois
pelo tempo que foi lançado decerto está próximo da obsolência. Você sabe —
diz ele caminhando mais rápido e já fora do campo de audição de Savone — que
essas coisas nascem para morrer.

Savone lembra como Alice o abraçou ao se despedirem. Algo inusitado e


comovente. E viu os lixeiros preparando sacos para a passagem do caminhão
que ele sempre associou a um minotauro bondoso. Numa janela do prédio em
frente pichada duma sabedoria noturna e crua, a moça que sempre está ali,
sempre está ali, parece não estar olhando para ele embora ele saiba que em
alguma medida, com algum grau da visão periférica, ela está sim (e o que
achará?). O vento sopra, as copas respondem e ele se lembra dos sons da
madrugada que horrorizaram a esposa. Descargas de caixa e latidos
intermináveis do cachorro do vizinho e sobretudo as mulheres pouco e mal
vestidas falando alto na rua assuntos obscenos com palavras e gestos obscenos.
Ele ainda tentou explicar a ela que era em grande parte culpa das associações de
moradores da vizinhança nobre que para ali empurrou o albergue donde se
originou a licenciosidade. Pessoas que não tinham como voltar para as casas
distantes, na periferia, a tempo de entrar no trabalho no dia seguinte. Logo
moradores de rua. E afinal o serviço público que atendia inclusive homens de
bem do bairro. Dentre essas mulheres, algumas com quem Savone
eventualmente se unia para se certificar dos valores enraizados na carne da qual
a esposa prescindia — lembrou ele, pensando no calor do abraço de Alice e em
como ela deve ter se sentido constrangida quando veio.

Após a espera interminável a ponto de não mais se lembrar de onde


estava e a quem esperava ela está enfim ao lado dele. Seguirão juntos pisando a
pedra confiável que leva à rua. Ela entendia mais até do que ele poderia supor,
por intuição ou desespero. Era a época de sua vida em que descobriu que um
teto à noite não é tudo que se deva desejar, graças ao malogro do casamento
com Pabloe à saudade de Pedro. Conservou a aspiração do poema perfeito e o
desejo da inspiração que levasse ao poema perfeito. Algo de que se orgulhe
momentos derradeiros. Entende portanto o que ele fala — diz. Está lisonjeada
que ele a tenha notado. Sente-se rica e até feliz. Quando mais tarde lembrar
disso ele Savone se lembrará do som da persiana respondendo ao vento. Ele não
crê que tenha conhecido qualquer coisa parecida com felicidade e repete isso
para Alice. Ela responde que antes de hoje tampouco. Nenhum dos dois pensou
em romance ou sexo casual ou qualquer clichê que poderia se seguir. A moça à
vontade era a mesma Alice e o homem rejuvenescido e tranquilo era o mesmo
professor. Acreditando um no outro no momento em que a luz liquefizera-se
em cacos à beira da cerca, gelada, embora o inverno tivesse passado e
estivessem no meio do dia. Quando veio, ela não veio para que aquele roçar
casual explodisse em intimidades. Não é tampouco no que ele estava pensando
quando ela chegou mas à janela, lembrando, ele pensará a respeito.

Estão desejosos de saber do que se trata exatamente aquele encontro. Vi


você. Li o que escreve. O que acredito com a razão necessita da liberdade de
querer o querer e eu me sinto cansado e não saberia mais escrever aquilo em
que acredito. Decerto nem tempo mais terei. É possível retomar um êxtase de
onde foi interrompido? Isso se oporá a qualquer coisa ligada a bem ou mal-
estar. Um outro sofrimento que é quase ausência de sofrimento. Alice
entenderá. Em sua poesia apesar de trágica há vida e arbítrio. Da possibilidade
de ser bom segue-se a bondade. Da vontade o fazer. Na calçada manchada pela
sombra das árvores alargam imperceptivelmente os passos como se tivessem
pressa junto às varandas e vitrines. Mesinhas fora da sorveteria. Uma bicicleta
alaranjada. O vermelho do semáforo. O sol no espelho do automóvel. Toldos.
Letreiros. Na calçada em que todos os tipos de passos se misturam e
harmonizam com a trepidação dos veículos, a percussão sobe e neles se
embrenha até encontrar as batidas de um mesmo coração.

Sob um raio de luar incisivo prateando a divisão grisalha de seus cabelos,


que possivelmente faria grisalhos mesmo os cabelos mais negros de um
adolescente, ele pensa que o ser humano miserável diz respeito a não querer
verdadeiramente querer e contempla o mesmo raio escurecendo a borda não-
visível do meio-fio sentindo jovem como esse adolescente, viril, generoso, amigo
e sedutor. É preciso silêncio e solidão. Não um livro mas levantar-se após a
leitura. Ela não se sente coagida ou vítima de encantamento. As narinas
delicadas mostram a excitação da novidade. Se encantamento houvesse seria o
mesmo que a ligava às galáxias e às estrelas. O que ele guardava ela poderia
dispor.

Deitado relembra a visita sagrada nesses que são os únicos momentos


sagrados que se permite. Doces frágeis madrugadas insones. Quando ela entrou
as mãos dele suavam muito e a cabeça estava envolta na névoa da enxaqueca.
Os passos são amenos e mesmo um soalho tão sonoro reduz o som a flocos de
uma neve imaginada. Brilho andino na sala lúgubre. O cheiro dela é agora o
cheiro da casa. Ela diz que adora os kanjis. Ele hesita em dizer que não sabe o
que são kanjis.

— São esses ideogramas usados na escrita japonesa.

Ah. Os do biombo. Ele se recorda do homem que trouxe o móvel, as peças


articuladas de um branco laqueado mais luminoso que o dia agora escurecidas e
cheirando a mofo, lembrando o quanto o entregador era simpático enquanto o
homem pensava que esse ele tem cara de quem vai esconder uma mulher aí
atrás algum dia. Alice lhe dá a mão esquerda que morna na sua o leva pela luz
de outrora. O vizinho está tomando água na cozinha e escuta o murmúrio.
Imagina só o velhote com uma menina. Eles não ouvem e sobem a colina
íngreme como se fosse a coisa mais plana do mundo. Ele não deveria fazer
esforço tal. Quem está dizendo isso? Não é esforço algum. Estava feliz depois de
muito tempo. Talvez pela primeira vez na vida. Sobem e descem e correm e
riem. Ela fala. O senhor tem uma linda casa. Ele desperta. Senta-se na cama.
Levanta. Só podia mesmo ser um sonho. Ou está vivendo um sonho. Onde estará
ela agora? O professor a havia deixado onde as ruas são longas e estreitas como
um rio e todas as formas ao redor figuras amanteigadas como os bonecos que o
pai de Savone costumava lhe dar antes de subterfugir em momentos os mais
inadequados. Acordo tácito. Ficasse quietinho. Não diga à mamãe que eu
subterfugi. Foi esse tipo de exemplo que teve e olha o homem generoso que se
tornou. Na calma das madrugadas ele voltava aos lugares excelentes que teve de
abandonar.

Ao evitar olhar para ela mais ele a imagina, a pele fria e macia luzindo, e
com esses outros olhos a vê com a expressão improdutiva que caracteriza a
dúvida que não será dirimida. Ambos escapavam. Ele não mais ela sabia de que.
Ficava confuso ao pensar que afinal foi melhor assim tanto em relação à mulher
como em relação a Beatrice, foi melhor a separação precoce que uma decepção
depois que a expectativa crescesse em demasia e se frustrasse como se
frustraria decerto e ter sido expulso lhe possibilitou outros caminhos que um
dia dariam fruto. Como melhor se uma vida inteira estava desperdiçada? Sem
uma renda regular justo nessa fase da vida em que logo estaria descartado
inclusive dos trabalhos eventuais com que subsistia. Quanto a ela, sabia a quem
amava e com quem se casou e isso era praticamente tudo. Mas na vida dele
amor e casamento não eram palavras adequadas. Todavia amainou a febre de
Alice, coisa que nem Pedro em seus melhores momentos conseguiu. Vultos à
sua volta.Ela no vidro da janela e no espelho e no bule sob a lâmpada e na
própria superfície do biombo. Anjos de sonho protegendo sua nova existência
quase missionária.
Em algum momento ela sentiu que ele estava chorando. Que ele estava
chorando por dentro. Pode ter sido quando ele abriu a porta e eu vi a sala e a
janela no lado oposto. É. Foi exatamente naquele momento. Mais tarde ela
saberia que era ali que ele costumava ficar horas e horas. A casa de um homem.
A porta fechada e nenhuma implicação. Cheiro de homem, de coisas de homem,
de casa de homem. Agradeço por você ter vindo, gostaria de saber o que dizer
agora, mas não sei. Chegara a ensaiar. Alice, eu... Sabe, queria... Quando vi você
pela primeira vez... Mas há algo a dizer. Leu livros e livros e ainda no sábado
passou a tarde e um pedaço da noite na biblioteca e não descobriu. Ela
respondeu que sabia ser algo assim. Que ele estava chorando por dentro por
ainda não saber, ela sabia mas não disse. Apenas sorriu e se sentou. Ele pegou
um copo de água e colocou na frente dela. Estarei por perto quando você
descobrir. Quando realmente souber. Estarei aqui quando precisar. Ele tocou a
mão dela quando soltou o copo. Olhou nos seus olhos. Vem aqui na janela um
pouco —pediu. Debruçaram-se. O sol na vermelhidão do céu. Próximos a ponto
de sentirem a presença um do outro sem se tocarem. Ela nunca esquecerá esse
momento. Será a primeira coisa que dirá à senhora na praça. Uma vez um
professor pediu para que eu fosse em sua casa e ficamos debruçados na janela
até a noite descer dos céus. A mulher olhará para ela sem mover um músculo
dos que denotariam sua incredulidade. A casa em que ela viu uma lareira e um
biombo. Como se fosse ontem — disse ela. A mulher sorriu e disse que era uma
bela história.

Conforme a voz estão aterrissando em meio à calma teatral do ambiente


temperado ao som das turbinas. Diferente e igual entre os demais passageiros
ela procura fazer as coisas de acordo com os demais. Permita-me que eu te
ajude — diz a aeromoça. Ela sorri. Afinal não está só. Uma amiga de infância
vela por ela todo o tempo das nove horas ao longo da viagem. Quanto a ele,
chegara à cidade no dia anterior. Não fala o idioma local portanto pode se dar
ao luxo de enfim parar de estudar e trabalhar como sempre sonhou. Ajudaria o
pai. Sobre a bicicleta sente grande alegria entre as árvores do parque. A
humanidade não poderia ser assim feliz? Ela estava inquieta. Um amigo lhe
disse que tranquilidade contém felicidade. Ao telefone manuseia ansiosa sua
agenda. Uma amiga recente. No começo do inverno, nas longas noites de sua
procura lá está ele ao gélido luar perguntando e correndo ao pensar tê-la visto.

Quem está entre um lugar e outro sem ciência de como as coisas se


constroem e cristalizam, sozinho e sem esse amparo falso que são os outros, de
onde menos espera aparece a paz. Ele coloca a camisa limpa alisando-a junto ao
corpo. Estou engordando — pensa. Está enfim realmente engordando. Pensando
em como se sente aliviado por ter deixado para trás aquele relacionamento em
que juntar-se a uma moça era se juntar a toda a família dela. Está livre dessa
obrigação insensata que é não amar apenas a pessoa amada, o seu sonho, amar
e ser amado e os dois se bastarem refugiados do mundo. E trabalhará.
Trabalhará duro e saberão do que é capaz. Precisa agora comer alguma coisa.
Sanduíche com refrigerante bastará. O silêncio das noites esquecidas retomadas
na nova casa foi quebrado quando sua expressão de curiosidade se fez primeiro
espanto e logo assombro com aquele franzir de cenho e olhos arregalados
típicos de uma estirpe não acostumada a lidar com as coisas só porque as coisas
são assim porque também se pode chamar tranqüilidade o não estar pronto
para o inesperado e recebe-lo assim apaticamente. A bagagem deixa de ser
desfeita e esse outro olhar, o olhar vago com que se tenta entender a alguma
coisa insólita repentinamente acontecendo ao redor, assume-o e assume a
sombra que passou inquieta a seguir seu andar pela parede oposta.

Murros na porta. O namorado violento. Por favor, ele não deve saber que
estou em casa. A progressão das batidas repercutindo no coração dela.
Esconda-se — diz a amiga, atrás do horror de testemunha.

O rapaz está deslumbrado com a casa do tio. Da vidraça do andar dá para


ver toda a cidade ou quase. Gosta dessa hora da tarde em que a vida se amplia
em torno abrigando o tempo e o lugar como se nos pertencessem. Um anoitecer
iluminado e oriental, de calçadas limpas, diálogos chiados e prédios baixos não
distantes das praças do shopping. Que céu! Não há nada semelhante em sua
vila. Acho que a tal sala onde guardam as bicicletas é por aqui — pensa ele
enquanto imagina quanto o tio pagará de aluguel. Nesses passos torna a escutar
os mesmos gritos. Se outros no prédio estavam ouvindo, fingiram que não.

A atmosfera pacífica que o envolvia estremeceu e rígido sob as pernas


doloridas sentiu-se dobrar ao peso inevitável do hábito que é o medo, ao qual
nunca nos julgamos ligados. Seu tio o alertara para a violência da cidade grande,
o que num julgamento infeliz ele pensou que fosse uma desculpa para que não
viesse. Agora presencia e quando compreende por alto ele sabe que precisa
tomar uma decisão. O percurso pareceu eterno até perceber de onde vinham os
gritos. Gritos são rasgos na alma e talvez a protejam como o balanço de uma
palmeira impede que se parta ao vento inevitável.

Quando ele se aproximou em passos firmes e lentos o casal estava


saindo. O namorado leva a jovem para o carro arroxeando o braço alvo e entre
ameaças e juras de amor eles chegam à joalheria. Chocado e sem ação ele
percebe que ainda há alguém no apartamento e que ela está chorando. Ele devia
ter feito algo quando viu a jovem visivelmente oprimida arrastada para o
elevador. Agora tem outra chance. A professora escuta as batidas e
instintivamente ativa esse às vezes eficiente mecanismo de defesa que é o medo
mas logo entende que é outra pessoa. Desculpe — ele diz quando ela abre. É que
pareceu haver alguém ali chorando. Disse isso percebendo que era ela mesma.
Um longo suspiro após o qual se fez um pesado silêncio. O que aconteceu? Ao
longo dos perenes minutos seguintes passados numa temperatura terna e
amena que de alguma forma os escondia do frio que efetivamente fazia e se
eles mesmos não sentiam seus corpos registravam em arrepios embora muito
pudesse também ser colocado na conta de conhecidos efeitos físicos atribuídos
ao estar se apaixonando, ele usufruiu de cada detalhe da dicção dela em
entonações que lhe evocavam anjos mas não anjos quaisquer nem
paradisiacamente assexuados e sim as primeiras aparições na vida de um jovem
apenas saído da fase dos infindáveis preparativos para a inauguração tesa do
que segundo ouviram dizer estava a serviço da multiplicação dos habitantes
terrestres sem qualquer tipo de critério para o que quer que seja em relação a
esses seres.

Ela acabara de chegar. Veio de avião. Para ficar na casa da amiga. Faz
treinamento numa empresa de aviação. Mal chegara e o namorado da outra
apareceu, sabe, justamente quando ela estava me contando que precisava
descobrir um meio de se livrar dele para voltar a viver. Disse isso sem perceber
que falava de si mesma. Que precisava encontrar alguém com quem partilhar a
vida. Sentia-se insuportavelmente sozinha mas lamentava ter magoado Sonja
saindo com o marido dela, um homem tão bom. Depois dele ninguém. Chegou a
pensar que poderia perfeitamente ter incluído essas confissões no que contava
para o rapaz havia minutos um estranho e agora e agora o que exatamente, se
pergunta, decerto tem a ver com sua carência pensar assim, pensa sem
naturalmente ter a menor ideia que era mais ou menos o que ele estava
pensando, ou seja, como podia ouvir de uma desconhecida esse tipo de palavras
que nem das namoradas escutou.

O que eles farão agora? O elevador pára no andar de cima. Um toque de


campainha. Alguém fala alto lá em cima. Amor, esqueci a chave! Não: soaram
dois e três toques não estrepitosos mas até agradáveis porque não a companhia
tradicional mas o atenuador dingdong como que embrulhado para um presente
indesejado dum declarado inimigo. No segundo toque porém eles já não
escutam.

No dia em que chegou à cidade ela estava muito abatida pensando o


quanto de forças havia gasto sobrevivendo em meio a homens e mulheres e em
como dizem que isso é o normal, o que no fundo era dizer que ela era anormal.
Naquele dia devia morrer sozinha como sempre viveu. Uma mulher ainda bela
que alguns dirão ainda jovem mas com um passado e cujo futuro não
compartilhará com os contemporâneos. Caminhando com a criança pela avenida
principal da pequena cidade, irradia placidez numa outra manhã a prolongar o
inverno sobre a primavera que apenas os pássaros cedinho reconheciam mas as
plantas tímidas viravam os olhos e protelavam a eflorescência negando até
mesmo um broto como consolo à passante. Olha tudo como se nunca nada
tivesse visto. Carros. Casas. Pessoas. O céu e o sol. As árvores. Uma igreja. A
velha senhora fala sobre o quão agradável é o ar matinal no início da primavera.
Estavam sentadas no mesmo banco e a menina brincava na areia da praça. Alice
conta a história da sua vida. Pela primeira vez o fazia. As omissões que
enriqueciam a trama não eram propositais: algumas coisas esquecera; outras
não julgava relevantes. Não disse por exemplo que Bianca não era sua filha. É
uma bela história, minha filha — disse a mulher. Alice sorriu. Sempre desejou
ouvir que sua vida dava uma bela história, muito mais que escrever um poema
sobre ela.

Ao atravessar a rua, ela se deteve. Olhando-a de longe a mulher pensou o


quanto era uma linda moça. Pena que um tantinho mentirosa. Talvez nem regule
direito. Mas a beleza é inegável e até a simpatia e a sagacidade. Alice atravessou
com a mão bem pegada à mãozinha. Passará na loja e comprará o presente
pelos sete anos da menina. Sente-se estranha, quase normal. A senhora deve ter
pensado que ela não batia muito bem e decerto inventara a maior parte
daquelas coisas. Capaz. Estar na casa de um homem e dormir sob o mesmo teto
e nada acontecer. Um carro assoviou e ela riu ao pensar não ter mais idade mas
a insistência do assovio repetiu que sim e mais talvez do que quando muito
jovem. A menina perguntou Tia, por que ele está assoviando. Alice a olhou e viu
Sonja e o ônibus e a paisagem correndo à janela. Meu Deus, como o tempo
passa.

Chegou ao apartamento de Pedro e era essencialmente alívio o que a


entorpecia ali parada se vendo no espelho branca como um fantasma e logo não
mais se vendo mas a ele, sólido na frente dela, ocultando-a de si mesma e
começando a se revelar. Mais que alívio. Para sempre. Sacudiu a cabeça
imperceptivelmente ao tomar consciência da respiração de Bianca a seu lado. É
tarde — pensa. Vou perder a hora. Nunca foi santa e não é o que pediu a Deus
mas leal sim ela é. Vamos, Bianca. O metrô sempre cheio e cheio de rostos
amargos. Vida é trabalho. A rua florida supõe o sol pleno da manhã. O porteiro
lhe dirige os olhares de sempre e não abre o portão. Senhora Martha? Sou eu —
disse ao interfone. A porta se abriu. Mais que alívio — pensa, ao esperar o
elevador. Faz tanto tempo. Como o tempo passa — ainda pensava quando abriu
a porta no andar da senhora Martha Pöbel.

O senhor Pöbel entrou no prédio pois esquecera as chaves e ainda ouvia o


gemido enferrujado da dobradiça quando se deparou com a nova empregada e
as lembranças de ambos se fundiram numa mesma memória a princípio
abrasada mas logo serena. Tudo se esvazia com o tempo. Ainda assim houve
instantes em que comungaram as mesmas imagens. Uma mulher vivida agora
pensando se ele tinha sido mesmo um homem atraente e ele pensando na
tentação que foi a adolescente para o homem maduro. Ecos distantes da carne
hoje nos dois amortecida. Sangue em mornos labirintos.

Quando a viu, meu Deus — pensou — não posso mais viver assim. A
segurança material alimenta esses conflitos embora se julgue maduro e seja tido
como um exemplo de maturidade. A jovem anterior estava certa quando o
alertou vendo a situação de fora. Você é um homem bom e acabará arruinando
sua vida. Porque é o que as pessoas fazem: usufruem de sua bondade, mas
estarão a postos para acusá-lo e mulheres como eu estarão na linha de frente.
Não haverá misericórdia. Estava certa e não estava. A presença da empregada o
declarava. Alice era toda bondade e talvez estivesse até grata por ter sido
Darken e não um cafajeste que à época não saberia discernir.
O despertador tocou. A cidade azul apareceu com pontos amarelos na
janela. Parou a campainha com a mão direita azul como o quarto. Silêncio abriga
a respiração e as pombas e as mãos pousam no rosto e os dedos nos olhos em
meio a um bocejo. Movimentos pelos quais Darken pela primeira vez acordando
a seu lado se apaixonou. Como a seduzira facilmente. Ele que nunca foi bom
nesse tipo de coisa apesar das tentações, graças a Deus. Ela aproximou a face da
janela como um cãozinho temeroso de trovões cheira a chuva. À porta do
apartamento olhando a empregada ele percebe o quanto envelheceu. Mais do
que ele. Quanto deve ter sofrido. Se é que a dor envelhece. Está pensativa agora
sentada na cama. Cedera tão facilmente. Faz tanto tempo. Castidade não há
mais mas sim o sangue.

Cedeu fácil demais. Como era ingênua. Um dia mais cedo ou mais tarde
todos pensamos assim. Os maus e os bons. Todos atribuem à passagem do
tempo essa duvidosa virtude de nos tornar realistas. Entreolham-se e retornam
à mesma lembrança. Com poucas modificações foi a cena do amanhecer de hoje.
A cidade azul. O quarto azul. Alice esfregando os olhos. O que até ali era um
vício se cristalizou como virtude no fundo dessa xícara, a alma.

Depois, naquela manhã, Alice saiu de casa e entrou no azul mais claro
cada vez e de pontos amarelos menos brilhantes cada vez. Levava Bianca meio
adormecida nos braços e os passos ecoavam na calçada como um reloginho
ignorado. A cidade não é grande, mas é famosa pela qualidade de vida. Uma das
primeiras da região a ter uma creche. A tia deixa a menina com a outra tia.
Deixa, com o coração apertado. Nesse momento ela é a mãe, com todos os
direitos e todas as dores. Bianca despertou e está chorando mas Alice aprendeu
que é melhor que Gracile a acalme.

— Não, não, não chore. Mamãe virá te buscar de tardinha. Você sabe. Hoje
tem aquele papá que você gosta. Hoje a gente vai brincar de...
Uma vez Gracile imaginou uma criança dela. Esqueceu. Do jeito que era
desastrada com as próprias coisas. Um bebê: medo só de imaginar. O namorado
também deixou claro que não queria. As crianças dos outros passaram a bastar.
Encarou com valentia o último tabu. Uma mulher bonita que ama crianças mas
não quer ser mãe. Ainda jovem e nem tão desastrada, nunca mais gostou de
alguém a esse ponto. Depois soube que ele havia morrido e desistiu de formar
família. Sua família estava ali na creche.

Alice aperta o botão do interfone outra vez. Agora Martha atende e ela
entra. Depois o senhor Pöbel. Ela acha ao vê-lo que está envelhecida pois ele não
mudou nada. O que foi querido, você voltou? Esquecera as chaves do escritório.
O carro amassado. A mulher grávida. A jovem mãe. É de você que Martha fala.
De como é uma mulher virtuosa. Mãe extremada. De você, imagine. Se ela
soubesse. Mas aí está você em silêncio, virtuosa sem dúvida. Porque tenho
condições perfeitas para ser vítima de chantagem. E aqui estou em silêncio te
dizendo que sei que não fará. Está em seus olhos. O olhar de Alice está mudado.
Com ela, ele aprendeu. Quanto economizou em comprimidos e poupou em
saúde.

Pela aparência fogosa de Martha e pelas revistas femininas espalhadas


ensinando a como obter mais prazer, ele se curou. Daquela vez tenham tomado
muito vinho. Meu Deus, há quanto tempo!... Estava com a mesma roupa.
Abaixou a cabeça a cabeça no sorriso tímido. Pediu licença e foi para os fundos
do apartamento. O tempo passou e sua passagem está escrita na gola puída da
blusa de Alice e nas cores desbotadas de sua saia.

Na sexta-feira ao voltar para casa teria ao passar pela locadora reavivado


o desejo de filmes nos quais se encontra menos exigência da concentração
perdida. Passou a manhã cheia de devaneios de reencontro não por qualquer
significado maior que o homem representasse mas simplesmente pela visão do
passado nos traços de seu rosto, como um mapa. Sem pretender que tais
reflexões a levassem a algum tipo de revelação mas apenas lembrando foi aqui
nesse dia eu e depois nunca mais. A mesa da copa evoca um lago. O sol na
torneira do tanque transforma a lágrima numa gota de orvalho. De passagem
pôs água para ferver. Faltavam cheiros àquele mundo. Casa linda e asséptica
como a patroa. Abre o pote de café e aos poucos é sua casa e a sua vida.
Escapara do mundo e deixara de ser porque havia brilho nas águas desde a
velha cidade no interior e agora nessa torneira e agora nesse lago em que
poderia molhar os pés num dia de calor no qual há peixes e talvez um monstro
no mais fundo que não poderá ignorar ainda que preferisse o devaneio e não
evitar ainda que necessite mais do calor da palavra do que dessa luzente água
gelada em que talvez mais exista a sina trágica e ainda assim no desenrolar em
que aparecerá na porta do prédio exuberante perante o porteiro e quando
trocaram duas ou três frases se calaram como se tudo tivesse sido dito e
restasse apenas ver para tentar entender os motivos do que depois sucederá, a
saber, o dia de amanhã quando decidiu se dar folga e contemplar as pessoas na
rua e no metrô lotado e ouvir as conversas com uma vaga e morna expressão no
rosto onde os olhos passearão pelas mesinhas postas na rua (porque é sexta
feira), o vestido com os dois botões abertos no decote seduzindo talvez para
que os homens seduzidos lhe expliquem o porquê de tudo aquilo — se está para
sentença mais do que prazer e em alguns dias será irrelevante onde estava ou
como se sentia.

Não sabe onde e quando começou. Sabe naturalmente que não começou
num lugar ou tempo determinado mas dentro de si havia feito isso e
compactado a vida pregressa — assim, como se fosse uma criminosa — a partir
de um vago evento que mesmo imaginário não conseguia ser claro sequer para
sua mente bem como o futuro que não começa tinha seu dia marcado na
esperança sem fundamento. Subitamente de algum ponto de si mesma e de sua
trajetória houve a destruição e dos entulhos renasceu ora pássaro ora fogo ora
mulher das ruas em que andou e das casas em que entrou para zelar. O brilho
da mesa de café na cozinha. Um espelho em forma de L. Os armários luzentes
guardam irrepreensíveis louças e talheres. Com grandes olhos atentos escuta as
recomendações da senhora Martha. Não sabe mais quem foi um dia — um rosto
que se esquece ao deixar o espelho — ela própria uma casa com paredes
espelhadas. Não sabe mais exceto por eventuais referências: o primeiro amor; o
beijo abissal; o homem; o pai; a filha (que é sobrinha). O que não foi destruído
pelas tormentas é forte o bastante para servir de apoio no tempo que restar
entre o gozo e a agonia.

A porta ecoa pela casa. O casal saiu. O homem não é sequer um espectro
dos antigos anseios de conforto e posses e status e garantia de futuro com
bônus de algumas horas no presente em alguma cama ou sofá ou mais
provavelmente no banco do carona passando para o do motorista. Sequer
mantém a diferença de idade. Os tais vinte anos que na verdade nem significam
tanto assim pelo menos não enquanto, embora muito mais velho, o homem no
que interessa ainda é suficientemente ou talvez plenamente jovem mais até que
um jovem literal. Desde que solteiro mas não era mais o caso e não havia mais
caso algum. Na luz que entra há um prenúncio de tempestade que se repete em
feições no semblante de Bianca, que tem pavor delas. Um coração confrangido e
logo um choro levam Alice sobressaltada ao quarto de uma criança. Filha de
Darken, imagine. Terá saído um bom pai? Levantar-se-á à noite para dar uma
mamadeira ou ver a razão de um choro como outrora fantasiara? Caminha pelo
corredor ressonante e abre a porta e entra mas não se demora muito nada mais
que o tempo do choro parar. Deixará o jantar pronto. Deverá ser reaquecido se
vierem almoçar — diz no bilhete. Amanhã precisará faltar.

Sentada à escrivaninha com o coque de cabelos negros luzidios contra as


fotos iluminadas no mural ela via registros inelutáveis dos momentos com
Pedro nos passeios de bicicleta pelo parque e pelas ruas planas ao redor de
onde era possível sentir a refulgência de miríades de pontos nas águas do lago
em meio a bilhetes e contas e canhotos de entradas de cinema que ela fixava
com a paciência do novo ser herdado após os tempos maus enquanto a porta se
abria e em seguida novamente se ouvia o ruído acompanhado de um leve tremor
nos papéis pelo qual ela soube que ele trazia mais uma caixa de livros para o
apartamento batido pelo sol da manhã segurando-a com as duas mãos e se
equilibrando em um pé para amortecer a batida e juntando ao som seu próprio
gemido numa manobra que aos ouvidos de Alice soava altamente erótica. As
fotos eram vivificadas e renovadas por câmera mental muito mais confiável e
infalível como o próprio sorriso de Alice ao agradecer. Acho que são todos —
disse ele, referindo-se aos livros — só não sei onde poderemos colocar.
Prevendo que no dia seguinte uma loja de móveis bateria à porta para entregar
estantes novas — exatamente o que ele pensava ao se postar diante do
ventilador (o suor gelado lembrando seus mal-estares porém assim era
agradável entendendo além do testemunho da nova vida que eles deveriam
começar a partir daquela noite que o abismo e o paraíso estão muito mais
próximos do que se imagina) — o que será confirmado quando ela se afastar do
mural e levantar e se aproximar para se sentar ao lado dele na cama dizendo o
quanto ele cheira bem ao que naturalmente envaidecido ele projetará nas
palavras o óbvio. Estava todo suado. As mãos dela dentro da camiseta sentindo
a afirmação e melando-se e insistindo que não precisa quando ele diz que vai
tomar um banho antes, não precisa, repete, fechando a cara de brincadeira num
ar teimoso que se tornava feliz ao alcançar alguma coisa sob o moletom — ele
também levara a própria mão à paisagem anoitecida, terra a ser preparada para
a época do plantio sob os intermináveis temporais da juventude que parecem se
alongar quando a velhice se aproxima. Agora. Amanhã poderá ser tarde. Certeza
com a qual aprenderam a conviver. Um dedo ameaçando algo mais licencioso
mas se mantendo romântico em meio às risadas eu sempre achei rir nessas
horas um anticlímax e é evidente que eu não sabia nada de nada sobre essas
coisas. Sonja era a casa e Alice a tempestade não pelos fortes alicerces mas
porque era ela a flagrância da liberdade. Quem saberá amanhã se esses foram os
dias da plenitude deles atestada atestado por vizinhos como as risadas e os
gritos e os gemidos que desde a batida da porta haviam se transportado para
uma outra e imensurável e romântica (ou obscena) dimensão.
A caminho da creche Alice se deteve numa esquina esperando a
passagem de um caminhão. Nunca vira aquela casa. Nem aquela igreja. Como se
multiplicavam! A verdade que liberta não é religiosa. Soube-o por meio do
professor porque sempre o soubera. O caminho é como ruas assim dobrando
nas esquinas mais improváveis por obra da mão do trânsito ou da hora do
compromisso. De súbito eis o momento crucial até ali clandestino rebentando
como a onda que cresce demais e assim tarda para quebrar tempo proporcional
à sua grandeza ocultando o horizonte para devolvê-lo mais belo e
imponderável. O instante vivo que nasce magnífico porque indispensável ainda
que por tanto tempo sua ausência não tenha sido sentida. Faminto e primitivo e
brando. Pacificador. A revelação se dá junto ao vigor e à inocência e ao espanto
— como dizia o professor a quem o ator na capa desse DVD tanto lembra.
Gostaria mas não pode alugar o filme. Devia comprar um aparelho. Sempre
sobra um tempinho em seu dia cheio. Quem sabe um filme assim dê sentido à
morte adormecida antes que ela se alastre até o ponto em que tudo se encontre
embebido da noção mais nítida de transitoriedade. Prisão adornada — pensava,
quando o olhar do atendente da loja a fez seguir e sem perceber apressar o
passo na típica resposta inconsciente que o corpo dá a uma sensação ainda
vaga. Desejo anterior à vontade. É melhor pôr Bianca para dormir e descansar.

6. Ali onde respiram os cravos

Pedro a vê dormir naquela outra manhã. A primeira. Passou os dedos na


mecha dos cabelos de Alice tirando-os da testa sem o mais remoto sinal de
franzido como quem sonha os mais doces sonhos porque são doces os sonhos
em que não é neste mundo que se vive e num arrebatamento se trocou de
domínio. Ele a amava. Não imaginava ser possível. Descobriu nessa segunda
noite (na verdade a primeira) que precederá a mudança o que foi abandonado na
outra quando a abordou e impediu que buscasse a guarida de Sonja,
impraticável depois daquele beijo. Mas quem descobriu? Talvez o professor
Savone com o discernimento que nem seria preciso ao ouvir de um ou de outro
o episódio. Então o crepúsculo à janela se tornou agonizante e febril, o mesmo
do sonho de Alice cheirando a húmus e menina no solo fértil do desejo
apaziguado. Luz morna traceja o rosto sereno e guarda o gozo e a morte. Lábios
vaporosos e frase ininteligível. Ela começa a se espreguiçar. Ele à janela se
exercitava. Aproxima-se. Alice? Das profundezas de um mar improvável
chegaram as vozes. Ela se assusta num primeiro momento mas depois escuta
um som familiar e sorri aliviada.

Nos dias que se seguiram as vozes voltam e permanecem. Em cada


crepúsculo devolvem o sonho em extraordinária imprecisão. Acreditarei um dia
que vivi esse momento? que ouvi essas vozes? que estas lágrimas fazem
sentido? Isso ela pensou ao sair da casa de Darken e Martha. A paz encontrada
tinha a ver com o sonho e as vozes. Com Pedro e Savone. Com os gritos do
passado que acusavam o mundo e com a benignidade com que o perdoou .

Naquele dia. Quando saía da casa de Darken e Martha. Sem imaginar que
haverá uma outra noite. A caminho da creche. Em frente da locadora.
Lembrando. Com a mesma risada infantil após algum gracejo nervoso quando
ele sentia a pele da coxa e a trama muscular e ainda assim era menos óbvio e
menos rude do que ela. A marca da meia escura junto ao elástico na lateral
ainda intacta parece adquirir alguma misteriosa importância. Quando a mímica
se esgotou no silêncio a voz dela soou em meio ao pano entre as palavras, havia
ainda os risinhos carentes e contíguos, o revirar que poderia passar por
desconfiado dos olhos quando apenas pensava o que não dizia. Ela havia
permitido por conta talvez da natureza de presa e atributo de caça mas havia
permitido talvez até provocado a menos que se controlasse como nunca antes.
Pedro estava ouvindo tudo como se fosse um relatório imprescindível a que se
obrigasse. Ela nem imaginava. Quando as vozes se cruzavam cuidava sim que
também os pensamentos o fizessem, apenas isso, se cruzassem sem qualquer
relação uns com os outros, como os carros na esquina lá embaixo. Não se
olhavam mais mas ele guardara a expressão tímida e voluntariosa como quem
guarda um tesouro ainda que buscasse um thesaurus outro que justificasse
palavras e pensamentos em tamanha desconexão na velocidade das mãos agora
conhecendo a contextura da calcinha iluminada exceto pelo sulco logo
magnetizando e distribuindo tracejados negros no algodão. Correspondiam às
dobras forjadas nas meias pelo vergar rígido dos dedos dela após a curva das
próprias solas e às marcas causadas pelo morder dos próprios lábios
comprimidos. Não era necessário que houvesse nada além disso. Cumpriam
suas incumbências de acordo com os serviços informativos. Absurdo despontar
do nada qualquer coisa próxima da culpa mesmo em se tratando de uma
menina e ainda que alguém um dia pudesse dizer que ela só estava atrás do
dinheiro dele e embora ela tenha jeito de menina e ele aparente estar
estabelecido na vida. Despertaram com o movimento do tráfego e se olharam de
novo depois de horas. Um horário familiar aos dois. Uma luz familiar. Familiar
um ao outro não por qualquer relação com o passado. Ele apanhou o celular na
mesinha. Olhou a hora mas embora estivesse atrasado permaneceu quieto e
respirando com cuidado como se caso contrário a pudesse incomodar. Não
havia mais nada porém que a pudesse incomodar e caso ainda houvesse ela não
mais se importaria.

Vive nesse apartamento há dois anos e meio. Privilegiada. Escapou da


sorte infame das pessoas que trabalham muito e moram mal. Hora do dia que
anseia. Recostar a cabeça no travesseiro e relaxar. Nem sempre dormir. Ao longo
de uma noite inteira de chuva intensa em outubro como os temporais de verão e
de um frio digno do inverno, após ter dormido um sono tão leve que não
permitiu se alhear de todo do mundo lá fora e acreditar que a bátega na janela
eram sons de um sonho talvez um pesadelo que não teve tempo de se
cristalizar, acordou a primavera por ser estação de transição entre a anterior e a
seguinte as traz em si com intensidade anárquica como a do adolescente que
não sabe ser feliz por não ter as responsabilidades de um adulto ainda informe
ou infeliz por tentar manter a criança que já não existe. A respiração da menina
a seu lado acompanha os pensamentos ondulados pelo colchão. O mundo e seu
mundo se tornaram uma coisa só. A vida e a morte. A senhora Martha ao revelar
a doença de Darken e seu sofrimento permitiu uma reflexão até então interdita.
Não há culpados ainda que eu desejasse e que quisesse alguém para
responsabilizar por ter saído de casa e ter ido tão longe à procura de trabalho e
de independência mas não, não precisava desse tipo de estresse ainda tão nova
e esse tempo não volta e nem sei se gostaria que voltasse mas sei que ninguém
tem culpa por eu ter vindo e pelo tempo não voltar. A gravidade do estado da
mãe. O tanto de preocupação que causava a seu pai. Sol numa casa de praia em
que as janelas imensas estão todas abertas. O vizinho grita. A mulher devolve
com uma justificativa perfeita para agir como agiu. O vento levanta as cortinas e
na janela nasce o céu noturno. Alguém canta na rua. Depois de muito tempo
entre tantos homens a companhia de um único permitiu que ficasse enfim a sós
consigo mesma.

Ananda saiu do hospital faz sete dias e Öffner ainda não passa de uma
criança assustada. Que alívio ter ela sobrevivido. Dizem que foi um milagre. Não
sabem o que a levou àquele ato. Levantou-se. É quase de manhã mas não há
indício exceto talvez pelo eco do copo na pia e indecisos passos no corredor.
Terá ela voltado ao trabalho — imagina. Öffner? Sai e a escuridão torna-se mais
vívida e tolerável embora não menos densa. As flores lentamente tornam-se
visíveis e o aroma delas a atmosfera respirada e são as flores que ladeavam o
caminho pelo qual passaram naquele primeiro dia. Ela pergunta e ele responde
com um sorriso indulgente. Demorei? A mão toca-lhe no ombro suave e fria e
branca a não ser pelas veiazinhas azuis.

Imerso no mesmo silêncio em que sonhara, continua ali a filha do sonho


e parte mais pulsante da vigília. A divisão entre os apartamentos perde a razão
de ser quando voltam da caminhada quase ao meio-dia. Brilham os corpos sob
as camisas finas. Há uma nova suscetibilidade na ponta de sua língua. Não
esperar que a luz seja estável em seu movimento pois num momento você vai a
seu encontro e noutro se retira no sentido inverso. O mesmo movimento e a
mesma luz que não dependem dessa sucção ou desse polimento.

Um olho mágico. Posso por isso decifrar o mistério desse muro


erguido do nada pois sei o segredo e está aqui na magia de nosso contato mas
estou inquieto com a forma como seu contorno se torna fosco e a aura das
flores imerge em denso nevoeiro e se evade e eu não consigo pensar o que devo
nem dizer a palavra. Ananda, não pode partir assim e me deixar órfão outra vez.
Ananda, Ananda. Espaço e tempo se expandem. É a fuga da noite que se
transformará em realidade no apartamento vizinho. De joelhos. Ananda. Santa,
inocente. Esses dedos deveriam ser os meus a retirar santidade do ícone e essa
boca deveria ser a minha a buscar as gotas entre os bancos do templo
espargidas e tragar o poder eterno desse desvio para o azul. Um olho mágico
cruel. Os pais estão chegando. Continuam naturalmente arrasados. Soube que
havia muitos amigos na igreja mas nunca onde foram jogadas as cinzas. Não
faria a menor diferença.

Mal pisa e sim flutua sobre o tapete escurecido quando os dedos


gordinhos são guiados aos sapatos desertos brancos de fivelas prateadas. Que
recebessem com cerimônia os pés pelo sono enlanguescidos. Ao ajustarem a
meia elástica as mãos acarinham a panturrilha sob a luz que reconhece o forro
multicolorido da poltrona. Sem hesitação pisaram esses pés pela primeira vez
naquela casa. Mais tarde porém quão receosos. Dedos no velho aparelho. Unhas
que não mais se pintam. Música clássica calma envolve a criança deitada sobre a
cama. Contorno dos móveis. Silhueta dourada e cheia no espelho. O último e
casto botão sela o pacto com o dia exceto pela alça íntima que insiste antes que
chame a menina. Bianca, está na hora. Bianca, filhinha, vou fazer o café. Alonga
o pescoço. Em meio ao amanhecer do bairro onde Pedro não mais habita. A
anágua retrata uma época e lisas ondulações brilhantes acarinham as pernas.
Bolinhas multicores e linhas de pesca. Não poderia jamais — jamais! — reclamar
da sorte. Viveu por alguns meses um amor verdadeiro. Lícito! Não poderia se
queixar. E não bastasse, o professor, com quem não sabia o que tiveram.

Pedro preferia que ela não tivesse vindo mas o que poderia fazer? Cerca
de um ano depois antes a encontrou vagando na cidade à procura da amiga que
mal conhecia. Sem ter para onde ir. Agora tem. Ao menos acreditou que sim e
ali estava. Está escrito nas paredes chispadas de sombras.

Está viúva há não muito tempo e se sentia de certo modo culpada. Há não
muito tempo Pedro soube do caso da mulher mas impediu-se de qualquer
palavra de acusação e se ela mesma não tivesse pedido o divórcio ainda
estariam juntos. O homem com quem se envolveu (culpa que o próprio Pedro se
atribuía) na consumação de um sentimento antigo — seu próprio irmão —
estava morto. De resto, se alegrava em dar à ex-companheira uma vida digna.
Um sentimento verdadeiro um dia os uniu. Um dia. Hoje a porta do elevador se
abre espelhada mostrando a jovem que ao reflexo dele se uniu. Metálico som
profético. Em um ano quanta coisa aconteceu. Realmente preferia que ela não
tivesse vindo mas a beija em desespero. Alfazema não mais gardênia e um olhar
cuja experiência não se acresce de mediocridade.Como me achou aqui ou
perguntas tais são irrelevantes pois esperava teu olhar e aqui está. Não devia ter
vindo mas veio e se alegrará por ela ter vindo e pelo tempo em que ele ainda
viver estarão juntos.

Um olhar sobre ela atento. Continuou. Falou então sobre Ernesto Savone.
Ele espera que eu escreva com o corpo todo e com toda a alma. Do jeito que
segundo ele eu vivo sobre coisas em que acredita embora seu corpo não o
confirme. Não há mais tempo. Arqueou as sobrancelhas e inclinou a cabeça.
Pediu-me. Seu olhar é doce e parece saber mais de mim do que seria possível.
Digo-lhe que um dia também acreditei em algo assim. Não mais? — ele
pergunta. Não sei o que responder. Estávamos jantando. Ele acabara de pôr a
panela na mesa e se sentar. Ainda hoje ando em busca da resposta. Disse-lhe de
uma outra forma. Disse que esperava algo mais do que escrevia e vivia. Como se
ao escrever vivesse e não pudesse viver se não escrevesse mas vida no caso seria
mais que vida e do que a própria escrita. Como se ao escrever estivesse morta.
O olhar dele era atento como se eu fosse proclamar o sentido do silêncio
infinito dos universos. Mais tarde me diria que era isso mesmo. O sentido que se
procura na beleza e na arte ou dele se foge pela distração ou trabalho. O
mundo não existe. O mundo consiste das pessoas e de como elas o vêem.
Naquela noite ele chegou a ensaiar esse argumento. Naquela noite seus filhos
ainda viviam. Mencionou-os uma ou duas vezes de passagem. Mas por que
procura essas coisas em mim? Na minha sombra. No meu olhar. Ela sabe porque
assim passou a também a vê-lo e ouvi-lo. Não: nunca houve outra intenção entre
nós. Digo com isso que não havia um desejo? Havia sim um desejo, mas não
tinha relação com a atração. Com um fim definido e pelo qual em tudo nos
enganamos dizendo coisas que não visam exceto a satisfação desse desejo. O
desejo que havia, para permanecer, não devia ser satisfeito.

— Mãe, eu não entendo.

Então apesar de todo o amor ela percebeu que as diferenças precisam ser
absolutamente respeitadas e não é questão de sentimento. O amor pelo pai dela
era autêntico. Diferia em que, exatamente? Também amava sua sombra
precedida por passos igualmente amados. E o som de sua voz e os nós de seus
dedos. Mas esse amor era o amor cujo desejo para se renovar precisa morrer ao
ser satisfeito.

Os sons da manhã próxima envolvem a madrugada deitada no escuro e


não é possível divisar as estrelas mas realizará muitas coisas se não hesitar e
partir logo. Contudo o beijo na avó é indispensável. Que ela diga Vá com Deus,
sol da minha velhice. O emprego parece gratificante. Um cotidiano estimado.
Tudo vívido como uma pintura. Devem ser umas cinco e meia. Com sorte
chegará com sol ameno. Não gosta de calor. É mais incapacitante do que sua
enxaqueca. Estrada rósea ladeada de reflexos dourados, velocidade boa para
viajar e um alívio dirigir sozinha. Por isso parece tão independente: está sempre
partindo para que alguém possa fazer algum outro juízo. Não demorou nada. O
hotel parece adequado para a primeira noite. Só não esperava que o tempo fosse
virar assim. Uma trovoada. Outra. Precisa correr.

Um prédio antigo de boa aparência. Um hotel. Posso ficar a primeira


noite — pensa. Amanhã consigo uma casa. Não mais que um minuto na chuva e
ela entrou encharcada. Hum Énigme falava com o porteiro e ela chegou por trás
fazendo com que ele sentisse a umidade junto à abotoadura. Nas costas o
vestido de Beatrice está salpicado e ele vê que é por causa da sandália como
quando se anda de bicicleta numa poça. Está fazendo perguntas ao porteiro e
acha que uma pessoa educada deveria ao menos ter pedido licença. Talvez ela o
tenha feito. Ele estava distraído com a história da moça que chegaria para
trabalhar no escritório. Mais tarde quando ele via o noticiário na sala de estar
ela falou. Boa noite. Perguntou se ali costuma chover assim de repente e ele
respondeu que sim é uma característica da região. Então calaram-se.
Resolveram subir para os quartos. Os lábios dela são convincentes no silêncio
quebrado apenas pelos cabos do elevador.

Ele se encaminha para ver se realmente a chuva parou. Ela ainda não
sabia que seria seu chefe e que assim que estivesse se estabelecido sua mulher
viria também. Tudo o que sabia dele se resumia no dorso cujos músculos eram
visíveis sob a camisa e a pele queimada com que a luz da janela se chocava.
Vira-se. O beijo até então contido. Há uma fronteira que os iniciados em Beatrice
nunca passaram. Já esteve até com as pernas para cima como um bebê e assim
tocada ali perto de onde a vermelhidão arada de coçar mordidas de mosquito na
pele das coxas aparecem mais. Onde o dedo arranca sons ignotos e farpados e
provoca o transbordamento desmaiado com inaudíveis palavras de repúdio
seguidas de aperto nos olhos e mãos nos joelhos. Daí os iniciados em Beatrice
nunca passaram. Mas ela está disposta a que afinal aconteça. O que esse homem
tem de tão especial para tanto? E o que ela tem de especial? Não sabem. Ele diz
a si mesmo que prefere não saber. Que seu casamento é sólido. Que é a primeira
vez. O que não impede que o sentimento transborde limites determinados.
Apesar de insistir que ela é vulgar por ter se entregado tão facilmente. Não foi
tão facilmente. É como se houvesse camadas de entrega e resisti o tanto
legítimo em cada uma delas. Beatrice imagina a lua lá fora enquanto ele dorme.
Um dia inteiro. 24 horas. O tempo em que está ali. Parece uma eternidade. Amor
e trabalho: estrutura da vida. Um mandamento divino partilhado por toda a
terra. Coisa sagrada. Durante o café na mesa da cozinha quase caseira ela
pensará no quanto havia de luz naquela proximidade de manhã. Uma luz
avassaladora permeando sua insônia num momento em que deveria estar
entorpecida e satisfeita mas não — estava desperta e ansiosa como se em si
mesma houvesse um pouco daquela escuridão prestes a ser dissipada.

Alice digitou a senha no caixa eletrônico pensando que devia ser mais
cuidadosa ao manusear documentos na bolsa aberta. As preocupações mudam
apenas mudam nunca terminam. Uma vez sonhou que ele ressuscitara. Ainda
sóbria sua aparência era mais jovial do que nunca e a elegância aureolada pelo
cheiro de sempre. Banho tomado e hálito aromático. Lenta sublime respiração. O
tempo cura tudo e transforma o que não pode curar.

Aura luminosa contra a vidraça do banco. Busca sem saber o que a não
ser que tem a ver com vozes que se recusam a calar mesmo não sabendo o que
dizer e ainda amando o silêncio. Mulher única. Ele não percebeu logo. Aquela
por quem sempre procurou. Melhor estar só. Agora ali de novo recebe seu novo
beijo. Deveriam viver juntos, por que não? Não seria tanto tempo e a susteria
nas épocas más do futuro. Seria transformada — ou curada? — pela lembrança
do filho e pela sabedoria do pai. Ele estenderá a mão no leito de morte. Não fale
— ela dirá. Não se esforce. Mas sabe que chegou a hora. Savone vê a cena da
porta do quarto. Olha para eles e para ela. De quem precisa para sobreviver seus
últimos meses.
Pedro e Alice se reencontram. Ele divorciado; ela viúva. Beijam-se. Não se
põe mais a questão se ela devia ou não estar ali. Está e estará por quase três
anos. Durante esse tempo pouco escreverá. Vez por outra ele entrará e ela
estará diante do computador traduzindo alguma coisa para enviar antes da
noite. Ela lhe pedirá apenas mais uns minutinhos com um sorriso irresistível. Ele
responderá. Não se preocupe. Que faça de conta que ele não chegou ainda.
Contemplando o ar sério e sexy que o cabelo preso e o coque e a concentração
lhe davam. Não se esquecendo do avanço das negociações para a venda. A visão
dela ali sem preocupações materiais e portanto com tempo para a saudade que
de algum modo o eternizaria enquanto ela vivesse.

A lágrima da primeira chuva de outono no rosto da estátua. Não vou mais


chorar — pensa. Não tenho por que chorar. O homem andava ligeiramente
adiante da menina. Tiraram juntos os casacos e num baile de tecidos
esvoaçando deram um beijo. Ele colocará o agasalho na mochila e ela enrolará
as mangas compridas na cintura e tornarão a se beijar com a ousadia das mãos
livres. O trânsito está em seus pés. Um ônibus. Um caminhão. Um veículo mais
leve desses que costumava amar. O casal retomou a caminhada de mãos dadas
agora seguindo na direção do metrô. Um olha para o outro e ri e o outro devolve
o sorriso. Jamais Pabloe eu rimos na rua. Ela ergue a cabeça e deixa com o
homem à janela as luzes da cidade e as estrelas através da vidraça.

Tempos atrás queria tirar uma foto com o celular e postar na rede para
criar um significado mas agora estar ali transcende essa outra presença hirta
como o viaduto. A sombra se derrama na calçada e tinge as pedras do tênue
acinzentado que faz a curva dos seios no tremor da blusa. Movimento de pintor.
Morena como nunca foi. Deliciosa, segundo o pedestre que passa por trás. A rua
se alonga ante seus passos na descida iluminada. Depois de pegar Bianca irá
para onde, agora que os três estão mortos?
Ali. Sobre a ponte. Vi o mundo que deixava e o por vir em pouco mais de
meia-hora como quem passa fotografias de uma mão para outra. Pesquisei para
saber os passos que deveria dar para encontrar Pedro e o que diria.
Caminhamos juntos pela noite deserta. Estávamos de braços dados e eu me
sentia totalmente feliz sem sombra de tristeza pela morte de Pablo. Um homem
bom a quem seria sempre devedora. Mas eu não estava triste. Pedro pouco
falava e quando o fazia dizia coisas engraçadas, pelo menos me davam vontade
de rir, e eu estava adorando rir, rir tanto, rir com tamanho prazer. Ele estava
com a barba por fazer. Um detalhe muito para mim. Era outro homem. O mesmo
mas agora o meu amor. Também ele ria e também o riso eu não conhecia em
sua face. Tomamos refrigerantes e conversamos até cerca de meia-noite. Foi
quando ele me falou de você, Bianca. Você estava com uns dois anos. Não fique
com raiva de sua mãe. Por que uma mulher seria necessariamente perversa por
deixar a filha com o pai? Sei que ela voltaria pra você se não tivesse sido
assassinada.

Naquela manhã tomei um susto. Ouvi um barulho e não vi teu pai a meu
lado. Ele tinha caído da cama. Rimos muito de novo. Ele ficou algum tempo
estendido no assoalho e eu com a cabeça reclinada. Perguntei sobre como
descobriu meu endereço para mandar aquele tablet. Disse que não descobriu.
Que deixou com o rapaz da lan-house para que me entregasse. Tinham meu
endereço mas ele não queria que lhe dissessem. Você precisa deixar isso de lan-
house — disse um dia. Era verdade. Cansei de internet. Pelo menos da internet
como um substituto da vida. Quem sou eu para que me sigam e saibam de meus
pensamentos? se há algum que mereça não será usufruível em meio a uma
avalanche de entretenimentos obscuros e em meio a tamanha dispersão. Eu e
você caminhando agora em silêncio após a cerimônia em que nos despedimos
de Pedro. Você tem nove anos e é uma menina saudável mas logo te perderei
para as mesmas tentações que na adolescência me tragaram. A moça escuta e
sente medo da mulher que a criou. Prefere assim. O medo à apatia da sua
geração. Esse terror que impulsiona do que simplesmente estagnar.
Foi como se naquele dia tivesse sido retomado o dia em que procurava
minha companheira de viagem para me hospedar por uns dias. Meu sorriso
restaurado. Porque eu desaprendera de sorrir quando esbarrei com teu tio na
saída da biblioteca e notei que estávamos com um mesmo título nas mãos. Hoje
acho que aprendi que afinidades não levam a grande coisa nos relacionamentos.
Acontece é claro como o contrário acontece também. Cheguei a temer que se
tratasse de um tarado ou coisa assim quando ele se encostou em mim no metrô.
Olhei uma ou duas vezes e lá estava atrás de mim quando eu ia para a lan. Meu
Deus, era o que faltava... Mas não. Ele foi muito gentil. Ofereceu-se para me
acompanhar embora não quisesse subir quando sua mãe nos convidou.

Entre essa noite e o dia em que jantamos passei uma noite com um
homem que dizia me conhecer. De onde? Era um empresário que me vira entrar
na lan-house quando ele saía. Um homem charmoso calado porque quando
falava só falava em como a Grécia era apenas a ponta do iceberg e tudo iria ruir
cedo ou tarde, sobre o perigo dos crescimento econômicos acompanhados de
perspectivas desmedidas mas ninguém deixa de jogar na Bolsa por causa disso
nem de gerar a euforia dos mercados por meios artificiais ou apostar no
dinheiro como em tulipas. Que o mundo como o conhecemos podia mesmo ruir,
pensava e que bom o mais cedo possível, assim cada um se vê diante de si
mesmo e o pecado deixa de ter essa conotação despersonalizada de hoje
quando há humor de mercado e as pessoas parecem que o perderam. Bianca
pergunta se ela tornou a vê-lo, ao tal executivo, com olhos dum interesse que
Alice podia imaginar.

Albert tornou a ver Alice. Como o mundo é pequeno — pensou ao vê-la


esperar para atravessar a rua principal daquela cidade na praça em que
conversara com a mulher. Albert? — disse sua esposa. Tenha respeito diante
das crianças. É mesmo uma bela femeazinha mas olhe pra frente ou além de me
humilhar ainda pode bater num poste. Então Nastácia se arrependeu
amargamente de ter renunciado a seus princípios e feito da aventura sensual
uma brincadeira de casinha. O cotidiano tornara o atraente empresário que a
fizera perder noites e noites imaginando como o abordar intoleravelmente
enfadonho assim como ela é execrável em comparação com a mulher
deslumbrante que ele conhecera e com que se casou. E por causa da energia
gasta para tê-la — pensava ele ao escutar a voz que cortava seu olhar terno
direcionado à moça vinda da praça — estagnara na vida profissional. Olhou para
Nastácia e reconheceu o quanto ela ainda era atraente. Ela entendeu e abaixou a
cabeça ao certificar-se que no banco de trás as crianças dormiam.

Sentou-se no parapeito largo. Onde? Talvez no hospital. Lembranças da


época fugiam. Sim, no hospital. Ali ficou sabendo a verdade. Que não há uma
verdade. Não existe o ser humano fixo sobre o qual nos debruçamos — pensou.
Não sabe quanto tempo ficou ao lado de Pedro. Um relógio no corredor branco
que não leva a nenhum lugar porque as pessoas fixas não se completam mas
andam em círculos por corredores brancos agora acinzentados quase negros
pela luz apagada apenas paredes guardando o cheiro de coisas que não
apodrecem como talvez devessem mas se mantém preservadas como a dor que
um analgésico falseia. Ele perdera a virilidade mas a seu lado esteve satisfeita e
de nada sentiu falta. Claro que não é verdade. O corpo se ressentia e algo a seu
corpo faltava. Mas não a mim. E o que me faltava não era algo que pudesse
receber de outro homem. Ao se reclinar sobre ele, percebeu que o professor
havia entrado. Tudo cheira a formol. Que fim para um homem que ansiou o
aroma másculo de um amor verdadeiro escorrendo de seus dedos! É o fim dele e
também o dela cujo sangue ainda corre quente sabe Deus por que misericórdia
talvez para que discorra dessa condição num delirante poema sobre um mar
inexistente exceto pela paixão que recusa a normalidade e o costume e a
conformação ao século. O cobertor quadriculado evoca a saia que uma vez
cumpriu um papel na história deles. Ela aproxima o copo. Não há de ser nada
grave. Ele é um homem forte. Mas a desesperança a toma de assalto. O copo nos
lábios. O que será da menina? Embora determinada a crer que ele se salvaria, ela
imaginava categórica a possibilidade diante de seus olhos que conforme ia fazer
uma e outra coisa captavam os fragmentos do filme na TV. Tanto sono mas
como dormir? Marcel ligou para perguntar sobre o patrão. Um pai para ele. Ela
olhou para ele e repetiu a pergunta. Como você está, amor? Onde você está? A
enfermeira havia entrado e trocava o soro. Quando desligou, devolveu o seu
sorriso.

— Obrigado, Eña.

Não tinha mais vergonha. Nem mesmo evitou a declaração de amor no


final como na adolescência fazia com os meninos. Não pensou se havia ou não
alguma coisa em risco. Desliga o celular. Dá uma piscadela. Óculos embaçados
de sono. Mas e quanto à outra, pensou, tão casta e insegura? Uma aragem
sinuosa a sua voz. A tranquilidade esperada ao longo de uma vida. Uma donzela
para servir de amor. Fechou os olhos e não precisou esperar muito. Foi assim —
disse. O mar rumoreja em sinuosos movimentos. A voz amada. Mas e o sonho?
De repente se deram conta por que estavam ali e se fez dia. Silêncio exceto pelo
mar rumorejando. A respiração de uma pela outra. O braço a rodeava quase
atingindo o outro lado. A mão acolhedora. Uma carícia dos dedos no ombro.
Tudo o sonho contemplara. Uma mudança de atitude reflete imediatamente no
mundo. Um dia enquanto esse mesmo sol iluminar a outra sentirá na própria
pele a angulação de seus raios encentrando um chamado irrevogável. Ela se
levanta e respira fundo o ar salino e sente uma tontura que atribui aos olhos
ofuscados pelo sol. A trilha sai da areia numa vegetação rala subindo pela falda
em meio às dunas luminosas. Vai chover. Ela olha para o dedo que apontava e
concorda. Não tenho coragem de dizer tudo — pensa. Talvez não saiba o que é
tudo e se há um tudo e se tem a ver com tudo esse encontro na praia
combinado ao acordarem num sábado cheio de presságios. Nem é preciso
contar o sonho. Ou porque estão vivas no mesmo sentimento ou só porque
estão vivas. Suas versaletes ainda fazem sentido num mundo conectado. Tudo é
memória. O significado de uma flor.

Assim que chegaram ao ponto mais alto deram com o horizonte aceso do
outro lado. Não conversavam propriamente: alternavam murmúrios. Tudo ia
ficar bem apesar da lama que se pegava nos pés delas. Não imaginavam que
ainda pudesse existir um lugar assim deserto em pleno sábado. Podiam ficar
mais um pouquinho. Então sentaram sobre um se tronco sentindo vivas e
amadas. Eña e Maria sentadas num azul que não existe. Uma ao lado da outra e
abraçada à outra partilhando o sonho. Quem as visse do mar (a sereia do sonho
por exemplo) veria que a outra olhou mais além quando Eña disse como agir em
relação à opinião das pessoas. Seu vestido se quebrou à altura das coxas. Passos
na areia. Linha das ondas. Com os pés molhados elas se olham e entendem que
precisam voltar. Os perfis se sobrepõem. O olhar de Maria busca mais longe e
Eña segura sua mão e a aperta e a traz para junto do seio. Dois céus, como no
princípio. Dois mares. Uma coisa só.

O pai da menina gostava de cantar e Alice o acompanhava no violão. Um


dia estavam assim. Ela olhava os próprios dedos no braço do instrumento. Sabia
que ele estava preocupado com as contas e não a queria desassossegar mais.
Quer partilhar essa inquietação. Interrompeu a música para lhe dizer isso mas
não disse. Acabaram falando de outras coisas e rindo. Travessuras que ele e o
irmão aprontavam na infância. O quanto enlouqueciam seus avós. Seus avós: era
como se estivesse falando de um casal que tivesse sido muito feliz ou como se a
infância fizesse parte de uma outra vida e o que quer que tivesse vindo depois
não contasse mais. Mandaram vir pizza e refrigerante. Na manhã do dia
seguinte ela foi procurar a senhora Martha. Precisava ajudar Pedro de alguma
forma. Na época Martha era a diretora da escola.

Com o material de limpeza transbordando dos braços Alice caminha


sobre os tacos estalantes. O que é isso? Uma sapatilha de balé. Estranho. Olhar
lento e sereno nos óculos que deslizam para a ponta do nariz para ver por cima
o que não necessita de grau. Aconchego é o que lhe ocorre ao ver o tapete do
escritório. Um aconchego morno. Uma vida morna. Bom dia. Bom dia. Quando
ela passa ainda provoca excitação e inveja. Não está tão acabada.
Prefere chegar quando não há ainda ninguém. Dispersa-se facilmente
quando o expediente começa. Vozes. Passos. Basta. Como suportam? Sorriu
novamente ao responder outra saudação. Prepara então seu melhor semblante.
Assim. É preciso. Por algum tempo ao ouvir esse arfar molhado das folhas,
aquela sapatilha na entrada representou o apelo de outra vida. Nessa memória
ela o guarda. A chuva pergunta como é possível aos mortos incomodarem a
serenidade dos vivos e como o que passou não passa mas se desenvolve em
todas as direções. Um toque são todos os toques e todas as carícias e todo
repouso após o amor e antes fosse apenas isso, a tortura da carne, mas há o
enigma do mundo. Não pode compreender seus colegas e os interesses e
euforias das pessoas decerto por isso. Estão vivos.

Imagina que o tempo irá firmar à noite mas prefere não pensar na noite.
Uma manhã assim se parece com a hora temida da volta para casa. Não pode se
dar ao luxo de uma crise noturna pois esse trabalho precisa ser entregue no dia
seguinte. Por quê? Se pudesse responder a sapatilha de balé não guardaria
aquela paixão furiosa e o carro semelhante não atrairia seu olhar. Dever nos
pingos que escorrem na janela. Não mais prazer, apenas dever.

Olhem ali a jovem mulher branca e triste a se destacar dos demais


passageiros que não a percebem. Passou a roleta ainda agora. Pela janela do
ônibus desdobram-se partes da cidade em que nunca pisou. O olhar e a
imaginação atrás daquele muro. Bichinhos na grama e gotículas nas folhas da
madrugada. Nessa praça um namoro ao entardecer. Homem vivo algum se
deleitará mais sob esse vestido e o que morreu permanecerá morto. Ainda
persistia o beijo no acamado e um pouco mais que isso à guisa de maior
conforto. Derramou muitas lágrimas depois, é bem verdade, na perseguição do
rastro de um sonho. Levaram aquele ocaso pelos anos seguintes. Significa
alguma coisa agora o lençol branco da enfermidade cujo desdobramento bem
poderia ter sido outro pelo avanço da medicina ou quem sabe pela fé. Entre os
muros e domingos na grama sob a árvore. Envelhecendo juntos. Ela encosta o
nariz no vidro e contempla a cena.

O homem entra na parada brusca. Capuz e gorro tornam todos iguais.


Tanto assim? O bilhete da passagem está na mão conhecida que a guia.
Lembranças nos dedos que apóiam o queixo à janela. Afasta a fazenda. Zunir
dos automóveis na via expressa. Não parecia deslumbrado mas estava, perante a
perícia que trazia o alívio essencial. Três amparos e o mindinho numa
importante função de fetiche. Esse mindinho. Depois do fracasso do casamento
e da morte dos adúlteros a quem amava, o crescimento impensável da empresa
que nem se podia dizer mais pequena. É você? Nem sabe se chegou a articular
as palavras. Também a morte tem um fim? O sol se derrama pelos prédios que
ladeiam o percurso. Gumes de luz sim, luzes cortantes. Um raio se alonga a
partir do final visível da avenida e os tetos dos carros tornados ouro.

Em algum momento Alice teria de tomar a frente de tudo. Cuidar dele e


da menina e do negócio. Foi o que efetivamente aconteceu num dia em que ela
olhava para o céu de outono abrigando o vôo de pardais e nuvens brancas e no
horizonte uma linha de poluição e esticou a mão para o táxi enquanto a outra
segurava Bianca e quando dentro do veiculo ela deu um jeito de ver que ligação
era aquela e viu e ouviu a voz do gerente do banco. Foi assim. Por isso — diz ela
a Aleksándra, não acredito em coincidência. Tudo está determinado. Digamos
que não existe um destino assim, sei lá, absoluto, mas tem de existir esse outro,
tipo um destino básico, ao que contingências podem ser acrescentadas ou
retiradas dependendo de nós ou dos fatos ao redor ou de como reagimos às
coisas. Pode ser — pensa a amiga, olhando para Alice com uma admiração que
só faz crescer.

Nada mais foi como antes desde o dia em que Raphael a conheceu.
Todas as coisas renasceram após a presença dela em sua vida emprestando luz
de seu olhar a cada nuance do que o cercava. Era musicista. Ele o soube-o
quando voltavam da primeira aula de dublagem. Ela o convidou a entrar na casa
de seus pais após um pequeno contato por um motivo qualquer durante o
percurso do estúdio ao bairro em que viviam. Estão sentados longe durante a
explanação do professor. Comentando a aula falam de cinema e de arte em
geral. O que realmente o levou ao curso foi o desemprego e a falta de
profissionais naquele ramo mas esqueceu isso. Contempla-a recortada pelos
cenários à janela.

O rosto dela se destaca como flor num terreno baldio. As mãos muito
alvas contrastam com o sol e os pés nas sandálias são suaves cordilheiras
enevoadas. Ele que estar em seu quarto e descobrir seus segredos. Não sei o
que é vida ou o que desejo mas sei é o sol de um sonho antigo. A fachada do
prédio é amarela. Essas linhas são os raios oblíquos. A luz viajou desde muito
longe até se chocar com o cimento. Jardim limítrofe.

Não que seja novidade mas nada é como antes pois jamais viu uma tarde
sob essa luz rósea fulgindo do arvoredo ou essas frestas atravessadas que
pulsam e erguem a imensa barra de ouro. A umidade da grama fala alguma
coisa que diz respeito a mudança e beleza. Deixa de separar e passa a ser
referência de união. Entrando os passos ecoam no vestíbulo espelhado.
Renascimento. Tantas as partes dele morrendo em Aleksándra. Ela pergunta o
que ele faz e ele diz. Trabalho em uma gráfica. Como o patrão em depressão
pelo recente divórcio disse que procurasse um outro emprego na verdade não
está trabalhando.

Ele a abraça com seus olhos com tal intensidade que a sente estremecer.
Está de costas à janela e ali bate o seu coração ligado à realidade apenas por
meio daquele corpo. Vozes. De onde? Se indagar de si mesmo dirá que os pais
dela não estão em casa. Que são empregados na cozinha. Quarto diáfano
azulado pelo filtro de cetim. Ao lado da janela esperando alguém cansado como
ele, uma cadeira de balanço de madeira nobre; na mesinha de tripé duas xícaras
de chá e um bule sobre a toalha branca de crochê. Um vaso de flores
multicoloridas. Caminhando próxima ela marca o tapete com suaves círculos.
Adianta-se até o peitoril onde findam os taques revestidos e os músculos das
pernas se colocam em descanso.

Um templo. Outro mundo. Seu perfume impregna a contemplação. Ela


apalpa o viola o sobre a cama, encostado à parede. Viração vespertina. Tremula
o cetim. Será feliz? As maiores questões da vida e do universo estão contidas
nessa resposta. Ela pega o violão e experimenta as cordas. Sou feliz quando
toco. Quer ajoelhar-se diante dela e abraçar seus joelhos remido na passagem de
mundos. Beijar-lhe os pés. Lenta língua ao longo das pernas. Beijá-la toda: no
meio dos seios, no meio do ventre, em todos os lugares. Ele vê o infinito. Escuta
o além. Ela geme no oficium de Preisner.

Distraída pelos sons que executa ela permite que ele a contemple. Um
colo tão branco. Disse que era uma família de artistas. Um pintor e um escritor e
a mãe pianista. Saberão algo? Não encontrará o essencial em uma biblioteca.
Nem em Mozart. Mas aqui há alguma coisa além. Seios cuja engenhosa
redondeza o próprio Deus será incapaz de recriar. Tremores de vestido à
aragem nas cortinas. Limite do tecido na coxa levemente pressionada onde
repousa o instrumento. Virginal melodia de apetência. Quando ela se inclina sua
sombra alcança os pés de Raphael. Subindo ao ponto.

Do lado de lá da cortina o que se vê é ainda Aleksándra distraída com a


música. Concentrada na música. De perfil inclinada para o lado. A seus pés
alguém a venera com língua e dedos. Solfejos no íngreme roseiral. A
proximidade sugerida é a divina. Ele não lembra se falou sobre amor. Decerto
não. O som da voz enche o quarto multiplicando-se pelas paredes. Permeando
os objetos em que os olhos pousavam. O som da rua invadiu o quarto
violentamente quando ele acabara de descer uma das alças. Havia chegado à
janela.
Do parapeito dava para ver a rua e Aleksándra. Olhares se cruzam em
região de silenciosos pactos e desejos sublimados. Ele desvia o olhar para a
azáfama lá embaixo. Ela sorri e inspira e instila e capta e acolhe o sentimento.
Mulheres aproveitam a temperatura para sair às compras, matizando as ruas de
creme e cinza e azul-escuro. As que voltam, de braços cruzados e ombros
encolhidos, lamentam não terem previsto o frio, em pensamentos de lã e saias
de gabardine e blusas de elegância espessa. Na galeria, frutas expostas
convidam ao suco. Aleksándra diante dele deliciosa e desejável como no ônibus.
Últimas nuvens brancas dum céu róseo caminham negras no jardim sobre a
grama úmida.

Ao lado da loja de roupas, bares e farmácias; diante da livraria, seringas


descartáveis; parado à porta do cinema o amante cujo nome a mulher lá dentro
se esqueceu. Na loja de discos cheia de rostos célebres, Aleksándra ainda
cantava a seu lado. Está decidido a declarar a sinceridade de seus sentimentos.
Antes que possa começar, ela pergunta se quer tomar um lanche. É claro.
Dirige-se à porta do quarto e pede que ele espere. Irá à cozinha um minuto.

Instantes sozinho no santuário sentado à beira da cama onde ela estava


sentada. O perfume exala promessas. Movimentos do tempo e sorriso
agradecido. Formas ainda ocultas. Quando volta e de novo fixa os olhos nos
olhos dela ele percebe que ela havia chorado enquanto ela pede que ele vá, por
favor, buscar café e pão. É logo ali em frente, se pudesse fazer essa gentileza.

Do que está falando? O que não faria por ela?

Deixou-o na porta. O elevador atendeu o movimento do dedo como um


animal doméstico se ergue a um chamado. A respiração e os cabos se misturam
às indagações e o desejo flutua serenamente nas pausas. Obscuridade do
corredor. A rua. Novos caminhos. A música convertida nos sons do trânsito e
nos gritos dos camelôs. Despertar de sonho. Mesmo triste ele se mantém em
paz e pensa que talvez o amor seja a harmonia e o estar ao lado em silêncio e o
sexo o horário de almoço: mais que objetivos carnais; menos que ideais
românticos.

Junto ao balcão a flama atravessa mundos que refletem nos olhos


temível encanto e fere com um sentido preciso que ignora a calma inútil do
cotidiano sem perigos. Jovem adorável! Mesmo escravo de insegurança mórbida
ainda assim ele aprende porque o medo é matéria prima de uma longa e doce
canção. A balconista surge e com ela uma sofreada emoção. Quase uma menina.
De tranças. Evidente a saudade: almoço de domingo com família reunida. Viveu
isso também. Os prédios em chama dourada espelham a rua em que a noite se
avizinha. A fraqueza dá idéia de desmaio.

— Deseja alguma coisa?

Pede os pães e o queijo. Trabalhadeira. Admira moças assim. Mas


Aleksándra — o que faz além de estudar e tocar? Quando perguntar saberá que
ela tem faz um trabalho voluntário com cegos e quando ele responder a mesma
pergunta ela saberá que trabalha com Pedro. Sério? O irmão de Pabloe cunhado
de Alice? Por enquanto olha para a janela e quase chora. Devo me recompor
porque se continuar um adolescente apaixonado terei o que está reservado aos
adolescentes apaixonados. Devem se perder as questões sem solução e as
coincidências no aroma de pão quente à luz do total da despesa.

De volta nas vitrines molhadas de crepúsculo e nos cartazes de filmes e


nos livros e nas flores da praça. Impregna-se em seu caminhar a primeira estrela
cuja majestade solitária povoa uma folha caída na calçada. Na sala a mesa está
posta e Aleksándra sentada em sua tristeza em meio à beleza de que não pode
fugir. A respiração suave no decote. Olha para ele ao entrar como o combinado,
sem bater. Como se, mais que um pequenino acordo, fosse um hábito. Com ele
pelo resto da vida o juízo desse olhar. Razão para levantar todos os dias. O
sinal. Não tem motivos para chorar.
O sofá junto à janela será um local propício. Servidos pela governanta.
Pernas se tocam casualmente. Ela fala algo sobre o mercado de dublagem. Deve
ser algo perspicaz mas ele não ouve porque há dedos vitoriosos. Limites e
divisas. Sombras e coxas e cabelos. Calor. Os dedos que nele se cravavam
aparecem num gesto amplo na nuvem do café. Unhas inocentes. A nuvem se
dissipa e Aleksándra aparece.

A dublagem exige mais do artista. Só a voz com para se expressar.


Respondeu ele que infelizmente, como ela mesma testemunhara, o professor
não parecia insatisfeito com seu não-reconhecimento muito bem pago. Afinal
não é o que nós próprios buscamos? Mal acabou de falar, pensou que tinha sido
grosseiro. Nunca sei o que fazer nessas horas. Tentar consertar pode ser sempre
pior. É verdade — diz ela. Tantos seriados e tantos canais de filmes na TV paga
tornaram a dublagem antes de tudo o dinheiro que move a mídia. Dinheiro. Não
há arte na mídia, não mais — é o que ela está dizendo. Estalar crocante na boca.
Queijo com gosto de infância. Inocência resgatada. Em que ela estará pensando?
Com certeza me superestima e não sei se isso é bom mas sei que me leva longe
ao meu prazer idealizado como as bandeiras falam das virtudes que os países
não têm e todavia esse status das bandeiras são a representação dos países.
Talvez eu tenha um pouco dessa que ele pensa que sou e poderei assim
continuar sonhando em ser confortada e mimada e depois disso não o rejeitarei
como é o costume mas usufruirei também do amor quando nossos dedos se
entrelaçarem no primeiro beijo. É que não existem mais arte nos dias que
correm. Apenas o negócio da arte. Bem, não é uma questão nova. De fato —
ratificou após passar o guardanapo — não existia mais o valor subjetivo do
exercício artístico. O mobiliário marrom brilhante próximo do infinito. Quanto
pode render a concepção. Veja Van Gogh. A tecnologia mudou o tipo de
reconhecimento hoje. Talvez seja uma coisa boa. Viver da arte é mais ou menos
a mesma deturpação porque a arte deve ser motivação de subsistência em si, de
sobrevivência, à parte da questão financeira. É uma pena — responde ela —
gostaria que não fosse uma regra sem exceção. Eu lhe mostrarei o meu amor. A
cama casta e fecunda. À vontade enfim em aromas de colcha. Ela reapareceu
trazendo na mão direita algo parecido com uma coleira que colocou sobre a
cômoda.

Mais tarde Raphael saberá que ela havia chorado por causa do filhote de
pastor belga que ganhara em seu aniversário — era o tema da conversa dos
empregados quando entraram, como iria ela reagir — e ele ficará sem saber da
reação de Aleksándra diante da sua declaração de seu amor. Duas semanas mais
tarde ela conseguirá uma bolsa para estudar música em Milão e ele não mais a
verá. Quando soube da noticia nos estúdios fulminado saiu da sala e tomou o
mesmo ônibus onde seu amor encontrou campo para se desenvolver ao saírem e
passarem aquele tempo juntos no primeiro dia.

Chegou ao edifício. Silêncio também quando ela o beijou no elevador.


Adeus — disse ao sair. Atrás dela os empregados levavam as malas. Eu te amo
— ele disse enfim. Silêncio. Então me espere. Ele sentiu de novo os seus lábios e
dessa vez a trouxe para junto da altivez de sua paixão. Tema para orações
futuras na ausência dela.

Alguém a chamou do lado de fora do prédio. Tenho de ir — disse ela.


Você vai me esperar?

Duas lágrimas rondam os olhos dele nos momentos em que olha o


homem que ousara pronunciar com tal desembaraço o nome com que somente
ele devia privar de intimidade. Era o pai dela. Raphael responde sua pergunta
com um beijo ambíguo entre o azul de seus olhos também prestes a se
molharem. Um pastor belga está ganindo de dor.
Ele se voltou e deu com a luz forte do dia se irradiando por tudo. A
opressão natural ante tanta luminosidade deu lugar a um elemento de paz.
Desejo de vida restituído a seu mundo desde que ela emprestou a luz de seu
olhar a cada nuança que o cercava. Todas as coisas renascem. O desemprego
passa a ser um problema que pede solução rápida não mais motivo de
depressão. Os conhecidos acharão sua mudança inacreditável. Seguiria em seu
caminho. Haverá um abrigo da noite fria. Haverá trabalho e ele será a pessoa
indicada. Uma luz no jardim bruxuleava após a partida de Aleksándra e dali se
vislumbravam os aposentos da casa que iria comprar no bairro preferido de
Aleksándra onde a névoa envolvia o prédio do estúdio de dublagem quando
saíam da aula mais tarde. Tudo fora pensado. Inclusive a localização próxima
aos melhores cinemas da cidade — caótica megalópole a que não seria
permitido englobar o destino deles num outro, coletivo, próprio dos novos
tempos. Se uniriam e se desconectariam. Porque ele a amava e ela haveria de o
amar tanto também. Sim. Eu te esperarei.

Pedro pede que Raphael abra a gráfica. Precisa fazer um pagamento.


Caminhar. Estar entre as pessoas. Tentar se adaptar. Como essa sombra se
adapta ao sol e disserta sobre a hora. À sua esquerda mistura-se ao trânsito.
Some entre as árvores da praça. Um banco envelhecido. Ele senta. Olha a foto
no celular. Que chance havia de salvar seu casamento? Se Sonja quisesse. A
cada dia fica mais evidente que não quer. Ao olhar o rosto de medo e
sofrimento vê que a jovem não percebe sua imponente beleza mais que bela
porque não apenas bela. Terá sido por isso que junto dela fracassou? Que
vergonha! Mais por sua canalhice do que pelo fracasso. Agora está tão só e ela
decerto terá encontrado alguém. Que seja. Que não tenha acontecido a ela nada
de mau. Quisera encontrá-la. Ser o amigo de que ela precisava. Por que me
transtornei àquele ponto por causa do olhar de um desconhecido que ela
provavelmente não correspondeu? Ela não precisava do carro nem da vida que
poderia lhe oferecer e não ofereceria mas de uma amizade que tampouco
ofereceu. Eu só preciso de você — pensaria Alice ainda por muito tempo e mais
ainda ao ser apresentada por Savone ao filho no velório de Pablo.
A mulher do balcão onde ficavam as chaves dos armários vê o casal
perfeito quando eles saem do café. Agora já não tem certeza. É o mesmo rapaz?
É o mesmo tipo. Mas não tem certeza. Esse de hoje tem um olhar mais franco.
Um dia ela viu a menina com Alice e seu pai e pensou que era a mãe dela, como
todos pensam. Formavam mesmo um casal muito lindo — diz Elisuki. Ele vivia
repetindo isso desde pequeno quando ia brincar na casa da amiga. Agora pelo
jeito vão brincar ainda no apartamento que ela herdou da avó, onde mora com
Alice. Ela gostava de pensar nisso realmente como brincar. Não queria como
suas amigas queimar antigas etapas que passam pelo primeiro olhar e as mãos
dadas. Rumores e visões que de súbito se descortinam fazem parte de um
caminho inocente iniciado quando ouviu os pais do outro lado da porta e não
fazia idéia do que estavam fazendo. Que ingenuidade! que paz! que agradável
agitação! Um achocolatado direto da caixinha. Quando passam pelo mercado, a
mulher no caixa olha e sussurra algo para o marido.

As aves cujo canto lembra um mantra são as de que Bianca mais gosta.
Evocam concentração e disciplina e paciência — virtudes que tão dispersa
persegue. Essa que chilreia agora ela não conhece. Assim que ouviu não gostou.
Sofisticada sonoridade sinuosa em busca de novas oitavas procura seu máximo
e não usufrui do mínimo alcançado.

Ela está com Elisuki —está sempre com ele. O mundo é outro quando
estão juntos, há uma aspiração de vida melhor e mais árdua. O sol se põe no céu
próximo e no remoto trovão há um presságio adicional. Elisuki está calado. Não
quer mais falar sobre o assunto. É desgastante. Arfam e os pés agora suados
estavam enfim aquecidos dentro dos tênis. Aí estão eles por toda a parte, os
normais, fazendo planos e se dando bem. Está esfriando. Você vai para casa?
Um sorriso em resposta. Quando voltar ali Bianca lembrará. São o lar um do
outro. Suplica. Não me abandone. No canto dos pássaros também o presságio.
Ser amada tem um preço. Não irá decidir agora mas apenas manter esse contato
com o verde até a saída. Pensará em alguma coisa. De um modo ou de outro
todas as coisas passarão. Não tem certeza de nada mas vale a pena seguir o
caminho. Está escrito no dia vacilante entre os prédios. Chegaram. Ele
prossegue.

Deitada de lado Alice ressonava e agora escuta. Pedro chegou andando


devagar tocando sua própria foto emoldurada na parede cuja cor é incomum e
produz um som igualmente raro e contínuo como se devolvesse ao apartamento
o que ouvia do resto do prédio. Por instantes ela cochilou. Passos. Respiração.
Toques. Correspondências fugidias de acordo com os movimentos no quarto
reduzidas ao sono tênue. Num dos intervalos Alice acordará. Talvez acordasse
espontaneamente mas decerto o sino ajudou. Seis horas. Demorei menos de
vinte minutos — pensou ele. Um raio enviesado perpassou morno o tecido entre
a abertura das cortinas. Violáceo agora o quarto. Você veio — ela disse.

— Como poderia não vir?

— Obrigado.

— Você está doente?

— Pareço doente?

Outra vez o sino tocou. Vibrava em sua cabeça projetando a enxaqueca


para o dia. Nada. Não é nada. Um pouco de dor de cabeça. Não está tomando
analgésico? Deixara desde que teve umas crises estranhas. Um suor gelado
gerando insuportável calor. Antes que piore precisa falar. Pedro... Chegou a
escrever uma carta. Não enviou.

Ele diz que sabia. Que a conhecia e ela não seria capaz. Mas ele teria
merecido. Parece um sonho. Com a morte do irmão e da mulher, ainda que não
estivessem felizes (antes culpados), respiravam juntos. Eram livres. Se
abraçaram e se olharam nos olhos. Vamos resistir. Vamos começar uma vida em
comum. Vamos ao centro ver se aquele apartamento ainda não foi alugado.

Estava propondo que vivessem no apartamento do primeiro encontro?


A praia pareceu mais brilhante mesmo sem sol. Dançaram molhando os
pés e se beijaram ao som das ondas. Teriam uma vida. Seria curta mas restariam
as lembranças. Alice não fará porém de uma menininha a sua vida, filha de
quem fosse. Não iria de um a outro extremo. Olhou para a menina. Não estou te
passando essa carga, meu amor. Vive tua vida.

O que acontece na imaginação tem que relação com a vida real? Criar é
quase recriar a vida. É a própria vida essa criação. Quando aos 18 anos eu queria
casar com uma menina legal a quem fosse fiel e leal, por exemplo, o quanto
havia de sonho? Muito decerto, pois jamais encontrei tal menina e a bem da
verdade nunca fui um menino assim. O tempo passou e talvez eu tenha me
aproximado daquele ideal. Bem, então ficamos assim, pensei. Atingi um objetivo
que não faz o menor sentido. Nem era totalmente isso. Uma das coisas era a
partilha desses mundos neste mundo. Não era idealizada a emoção que senti ao
ler sua primeira mensagem, nem tinha qualquer relação por mais vaga que fosse
com isso a que chamam amor, mas tocou algum nervo desse outro ser, desse tal
que não vive no mundo e portanto em tese não deveria ser atingido pelo que
nele acontece. Então por que me afetou tanto? Não sei. Posso dizer de coração
aberto e com toda sinceridade que jamais tive — nem tenho — porque não
posso, nem devo — de que mundo são esses verbos? — jamais tive nenhum
pensamento inadequado.

Tudo ficaria por aí caso não acontecessem imprevistos — isso de que


nem um mundo nem outro estão livres. Quando houve signos visíveis de uma
atração, a própria realidade se encarregou de conceder um sintoma semelhante,
como se harmonizasse desejos inconciliáveis. O que é isso? Um terceiro mundo
de que a dialética é reflexo — da tese e antítese nasce a nova situação que
deveria substituir, superando, as anteriores? Estou velho na vida real. Acabou o
tempo de tecer sonhos e está começando o de consumar projetos começados.
Mas quando procurava fincar o pé nessa realidade estável, voltaram sonhos dos
vinte anos, sem qualquer relação de minha vida hoje, sem sequer um
embasamento por vago na vida real, que merece toda minha honestidade — mas
que honestidade pode ser se não me reconheço em mim mesmo, nesse eu
estabilizado e certinho, mas naquele outro dos sonhos, naquele do terceiro
mundo que nasceu da explosão entre os dois primeiros?

É muita dor. Um impasse. Como se houvesse realmente dois em mim e


não seja isso apenas uma maneira de falar. A vista da casa real, do trabalho
real, do livro real (que é feito de não-realidades mas ainda baseadas nessa
realidade), consiste de novo dum sofrimento suportável porque baseado apenas
nessa vida que, por mais banal que seja, ainda é que tenho e decerto em alguma
medida também amo; porque distante desses sonhos que não me contentava em
ter mas queria trazer para minha pobre realidade. Não há consolo possível
porque não há razão de dor. Ou a razão está numa outra dimensão a quem não
tenho mais acesso. Não há nada contra nesta dimensão e a outra, a terceira, só
existiria da negação da realidade que não há mais. Uma vez você falou de um
alívio por meio de reavivar uma lembrança mas que só durará um certo tempo
(citando como exemplo a passagem da Liberdade é azul quando ele diz que a
viu portanto agora pode suportar mais um tempo de sua ausência. Espero fazer
melhor. Espero lembrar duma vez por todas com um prazer auto-renovável
mesmo na ausência jamais presença. Preciso aceitar isso antes de qualquer
outra coisa: não havendo presença haverá aquele mundo sem acesso pelos
meios de sempre. Haverá sonho e liberdade para viver a única vida. Tem uma
passagem de que gosto muito na Insustentável leveza de ser (não sei se está no
romance): sobre ficar com Juliete Binoche ou Lena Olin, Daniel Day-lewis
responde: Se eu tivesse duas vidas, poderia tomar uma decisão em cada uma
delas e depois comparar. Como não tenho, completo eu, tomou uma decisão e
consumou-a. Porque no fundo é isso: seja lá o que a gente decida, decidir
mesmo, ir adiante, as últimas conseqüências.

Pensarei na decisão que não tomei porque a outra vida que tinha não era
vida. E claro que pensarei na pele e nos olhos, nos lábios e na voz, nas conversas
e nos silêncios, e sobretudo no que, nesse caso, não precisaria ser aliviado uma
vez a cada determinado período de tempo, porque o tempo em comum não é
dividido ou pelo menos não deveria ser ou pelo menos nos sonhos daquele
menino de vinte anos que naturalmente não podem ser os meus. Quem sabe
para isso eu tenha existido em sua vida - a irreal, porque na normal amanhã
você será uma escritora (ou o que seja) de sucesso, realizada, e provavelmente
lembrando com certo sentimento de menosprezo ter se permitido uma vida que
não a única. Quem sabe não. E então me compreenderá ao viver a mesma
circunstância.

Lá fora a chuva murmurava. Mal tocava o vidro, como alguém se


constrange em conhecer segredos alheios. O senhor Pöbel não rebate as
acusações de que assediava a empregada. Pacientemente esperava que a mulher
se acalmasse e então ele pudesse explicar. O problema é que ela não se
acalmava. Emendando uma acusação na outra e a maioria nada tinha a ver com
assédio. Ninguém ousaria apostar naquele relacionamento porém todos foram à
cerimônia cheios de palavras boas. O casamento é importante mesmo no novo
milênio. Tenho de casar — pensava Martha antes de conhecer Darken e se
apaixonar de fato. Donde — pensava ele — não fazia o menor sentido as suas
reclamações. Inclusive quanto a ser mulherengo pois o conheceu. Em que queria
converter aquele por quem um dia se apaixonou? Ele esperou pacientemente a
oportunidade de falar de Alice. Talvez não tenha sido boa idéia a franqueza.
Numa conta simples a mulher constatou a diferença de idade entre eles e
portanto na época ela era menor e ele um homem feito. Isso é crime, meu Deus,
não poderia jamais imaginar que tenho dormido toda a minha vida do lado de
um pedófilo nojento! Darken respondeu que amava Alice sinceramente na
época. Amava-a de verdade. Eu sei exatamente o que você amava nela! —
retrucou a mulher. Por alguns instantes ele se calou e hesitou em seguir
contando a história de Alice e vá saber por que se manteve na disposição de
contar. O fato é que contou. O rosto de Martha se transformava a cada frase
como várias máscaras caindo conforme as novas revelações até chegar à última,
uma máscara cinzenta, imponderável — camada original de uma perplexidade
desiludida, a desilusão em estado puro — um estado em que se transita do que
se espera ao que essa esperança refuta e de repente sequer se sabe dizer qual
era a esperança. Ali está ele agora olhando pela janela sem nada ver o coração
disparado desalentado porque tudo o que queria era ter paz com a mulher e não
conseguia não importava o que fizesse não conseguia e a chuva ali ainda como
cúmplice de sua decepção num murmúrio, se tanto, rabiscando o vidro da
janela.
Cheiro de armários e de livros e agasalhos e jovens de banho tomado e
jovens suados de fim de tarde. Nesse cenário. Pesquisas e provas, trimestres e
descompromisso com a realidade. O vulto de Alice na voz da atendente. O que
ouvia batia com o que a colega de trabalho um dia lhe contara. Então ela soube
ou talvez tenha imaginado tão intensamente que tudo assumiu ares de verdade.
Alice era a moça que chegara do interior para procurar trabalho e logo no
primeiro dia encontrou o rapaz casado e por ele se apaixonou apesar do sexo
não consumado, por sabedoria inerente a certas mulheres: um instinto de
futuro que adiante terá sua recompensa.

Mas ela não sabia — ninguém sabia exceto a enfermeira que deveria
acompanhar Pedro ao estrangeiro. Rasgo de generosidade ciente de que estava
condenado e a filha estaria melhor com Alice. Que Alice estaria salva de todos
os seus males materiais e que poderia a partir daí ser enfim ela mesma. A partir
do momento em que fosse a responsável por Bianca, o que Sonja a cada dia
deixava transparecer que não seria. O que nem ele próprio em seu delírio
poderia supor é que aquele vôo teria seu nome na lista de passageiros mas não
sua presença na poltrona do avião.

Como o descobrira ali?

Ele mesmo dissera que esse seria o lugar deles.

Mas se passaram dois anos e para todos efeitos estava morto.

Por que fez isso?

Para ela ter um lugar como sempre sonhou. Para que pudesse escrever e
não precisasse se submeter a humilhações.

Mas não podia saber que o avião ia cair.


Não sabia. Apropriou-se do momento. De qualquer modo estava
praticamente morto mesmo. Nunca quisera fazer tratamento no exterior. O
único tratamento que precisava era interior e esse Alice providenciara para ele.

— É uma história absolutamente absurda — disse o rapaz para Bianca. —


Então você fez o caminho inverso. Primeiro foi órfã de pai e depois teve um...

Pensei que jamais seguraria sua mão novamente — pensou Alice na


cadeira do café. É como se eu estivesse redescobrindo reinventando você. Foi
cruel — pensou ele — conhecer Alice naquelas condições. Ela menor de idade e
ele casado. O tapa deveria arrefecer e não exaltar o amor que ela começava a
sentir. Ela não se comoveu ao escutar. Pela primeira vez na vida teve raiva de
Pedro. Ali dois anos depois de sua morte diante dele ressuscitado, sentiu muita
raiva.

Epílogo

A rua submergiu na névoa. Despertar assustado. Um latido. Um cão


dormindo. Passou. Tudo passa rápido. 14 de junho de 2013. Cheiro de chuva. O
olhar que se ergue encontra a abertura. Um pingo. Roupas que se pegam à pele.
Dores na região lombar. Um homem sem sombra. Falta pouco. Uma vez quando
criança. Lembra dessa fábrica. Precisa arrumar as coisas: o terminal fica perto.
Hei. A outra se assusta imperceptivelmente com o cutucão. Estamos chegando.
Não diria que é uma amiga. Uma conhecida. Companheira de viagem. O trânsito
carregado como sempre. Cartazes de um lado e do outro. Do fundo espelhado
da armação feita de luz ela se dá conta do prisma das coisas pelo qual a outra
via. Nuvens vivas. Calor de braços encostados como um sol particular. Ela
quente se solta e não cai apenas porque se apega com não mais que um toque
dos lábios grossos entre olhos que ela não podia ver o quão perdidos e
penitentes. As maçãs duras e rosadas de seu rosto pálido se destacando na
tarde e em seguida seu nariz largo ligeiramente se achatando contra a maça
apergaminhada do rosto dele e confundindo a troca com a atmosfera e as
reações metabólicas. Os lábios tocando depois os olhos que agora em mínimos
relances vê e se compadece pensando como são no fundo tristes, como são
tristes. Os sons dos lábios se aproximam o atual do próximo como uma menina
guiando seu pônei e ela aperta a gola levantada da jaqueta dele como quem se
agarra numa prancha no mar em que se sentia afogar e os lábios chegam ao
pescoço dele e retornam pelo mesmo caminho e se unem novamente aos dele e
os pássaros se misturam agora com a respiração ofegante primeiro e depois
aliviada num suspiro. Demorou em distinguir o desenho movente dos lábios da
outra mal entendendo que o movimento das pessoas e bagagens atrás delas
confirmava o som que a tirara de um mundo díspar. Alguém abre a divisória e
fala com o motorista. Aos sacolejos o ônibus encosta e o mundo pára no cheiro
do outro corpo. Está feliz e cansada. Ansiosa. Outro cachorro está latindo mas
mal dá pra ouvir por causa do motor. O azul desce um pouco e confronta os
telhados. O meio-dia a deixava deprimida. Tanta luz. Agora não. A vida não a
deixará e talvez algo mais que resistência.

- Você vai?

- Sim preciso claro.

- Posso esperar?

— Se não for incômodo.

Longe disso.

As casas passam lentamente. Marcha para a última curva. Dor antecipada


pelo afastamento inevitável da mornura do outro corpo. Fique. Venha comigo.
Alice não pode. Então o muro quase roçou na lataria. A pichação flutuava e em
cada uma lia as próprias emoções.

- Você é tão bonita — disse Sonja. Um ardil para não ser esquecida.

Abraçaram-se no ecoar dos passos pelo corredor em direção à porta


aberta.
As luzes do começo da tarde misturadas aos movimentos do terminal
assumiram formas oníricas como aquelas de onde Alice vinha. Tinha chegado.
Não desceu logo por causa do medo maior que o desejo mas havia o prazer e o
tentar prolongá-lo. Algo no ar a preenche de intensa agitação apesar de ainda
sonolenta. A vigília e o sono. Não havia culpados — pensou, esperando que
houvesse. Alguém a quem pudesse responsabilizar pela decisão de deixar a casa
à procura de trabalho noutra cidade. Não precisava desse tipo de estresse tão
cedo na vida. Mas não havia culpados. Sua existência era única e ela era
responsável por tudo. Súbito sentiu o peso insuportável da liberdade.

FIM

©2001,2006 Ricardo de Almeida Rocha

ricardrbrsp@gmail.com

Copyright by Ricardo Rocha

Texto protegido pela Lei de Propriedade Intelectual

No. 9.610 de 19 de fevereiro de 1998

Versão para eBook

Scribd.com

Issuui.com

Bookness.com

__________________

Junho 2001

eBooksBrasil

Versões para pdf e eBookLibris abril 2006

eBookLibris
© 2006 eBooksBrasil.org

@ 2010 Ricardo de Almeida Rocha

S-ar putea să vă placă și