Tradução Flávio Fontenelle Loque e Loraine texto filosófico da Antiguidade greco- Oliveira. São Paulo: Loyola, 2012. 46 pp. ISBN -romana. Mais do que interpretações 978-85-15-03950-0 desta ou daquela escola filosófica da HADOT, Pierre. Elogio de Sócrates. Tradução Antiguidade, o Autor oferece-nos uma Loraine Oliveira e Flávio Fontenelle Loque. chave de leitura para a história da filoso- São Paulo: Loyola, 2012. 48 pp. ISBN 978-85- fia antiga: trata-se sempre de um modo 15-03951-7 de vida determinado, com eventuais desdobramentos teórico-discursivos, Pierre Hadot (1922-2010), eminente indissociáveis, porém, dessa escolha historiador da filosofia antiga e filósofo vivencial basilar. A essência do fenôme- francês, autor do livro O que é filosofia no da philosophia deixa-se entrever no antiga?, publicado pela coleção Leituras sentido etimológico do termo: amor à Filosóficas das Edições Loyola, acaba sabedoria. O filósofo aspira a um estado de ter mais dois títulos traduzidos de perfeição no ser e no conhecimento nessa coleção: Elogio da filosofia antiga que transcende a condição humana – a e Elogio de Sócrates. O primeiro expõe sabedoria. Ora, uma vez que não se trata o método e os objetos de ensino e pes- de um estado propriamente humano, o quisa com os quais trabalhou o Autor percurso rumo a ele pode ser apenas ao longo de sua ocupação da cátedra aproximativo. Esse progresso se dá de História do pensamento helenístico fundamentalmente através da prática e romano no prestigioso Collège de de exercícios da razão que visam à France (1982-1991), do qual recebeu o transformação de si próprio, aos quais título de Professor Emérito. O segundo Hadot denominará “exercícios espiritu- apresenta as principais características ais” e que são, sobretudo, o controle de conferidas a Sócrates por Platão em seu si e a meditação. Destarte, esse modo de Banquete que conformaram o tipo ideal vida, filosófico, consistirá no esforço de do filósofo na Antiguidade, definidor viver e pensar em conformidade com do fenômeno da philosophia como modo essa norma transcendente. de vida. Trata-se de dois livros cuja Por outro lado, a escritura de obras publicação simultânea vem a calhar. no interior dessa tradição era, de certo Embora o texto original do Elogio de modo, um epifenômeno da opção pri- Sócrates tenha precedência cronológica macial pela vida filosófica, mas cuja ao do Elogio da filosofia antiga, este é leitura não era estéril. Pelo contrário, anterior àquele na ordem do conhe- cimento, por assim dizer. Constata-se, a finalidade dessas obras, em que com efeito, no último, uma espécie pese sua ocasional aparência teórica de programa de pesquisa sobre “um e sistemática, não era instruir o leitor dos fenômenos típicos e significativos em uma doutrina, mas sim formá-lo, do mundo greco-romano” (p. 13) – a “fazendo-lhe percorrer certo itinerá- filosofia, do qual o Sócrates do Banquete rio no curso do qual ele progredirá constitui um item primordial. espiritualmente” (p. 32). Esses textos apresentam, além disso, peculiaridades Em Elogio da filosofia antiga, há duas devidas às restrições impostas pela temáticas axiais: a filosofia antiga oralidade – traço essencial da filosofia enquanto modo de vida e a noção de antiga – e das quais se utilizavam os método. A articulação entre ambas é o autores para adaptar o discurso ao nível ponto central de toda a obra, a saber, a espiritual do seu destinatário. Segundo indissociabilidade que Hadot estabelece Hadot, somente na perspectiva da ideia entre essa concepção de filosofia e a de progresso espiritual, portanto, uma
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obra filosófica da Antiguidade pode ser o Autor aborda a assimilação da figura adequadamente compreendida, a fim de de Sócrates à de Eros, que, sendo inter- que não se incorra em anacronismos mediário entre o humano e o divino, e contrassensos quando se trata de é “desejoso de atingir um nível de ser interpretá-la. O Autor encerra seu Elogio que seria aquele da perfeição divina” da filosofia antiga declarando ser possí- (p. 34). Eis a figura que forneceu à An- vel incluí-lo no gênero de discursos tiguidade o modelo do “filósofo” por ostentatórios cuja finalidade é recrutar excelência: aquele que, estando a meio ouvintes, assinalando também o que há caminho entre a ignorância estanque de insuperável na filosofia antiga. Aí, e a sabedoria absoluta, pode pôr esta pois, reside seu elogio à filosofia antiga: última como seu objeto de desejo – o Hadot sugere a seus leitores um convite que por si configura certa maneira de a essa vivência filosófica. ser e estar no mundo. Através de uma ironia amorosa, análoga à ironia do Em razão das limitações acima aludi- discurso, Sócrates incutia naqueles com das, encontra-se comumente nas obras quem conversava esse amor pela sabe- desses autores antigos a reutilização doria. Na seção final, Hadot examina a de prestigiosas fórmulas já existentes, atitude ambivalente e complexa, o “ódio mas às quais eles conferiam novos sen- amoroso”, de Nietzsche em relação a tidos adequados às ideias que queriam Sócrates. Presença ambígua no pensa- exprimir. Tendo em vista a constância mento nietzschiano que tem raízes nos desse fenômeno, Hadot interessou- vários símbolos dionisíacos com que -se pela evolução dos significados ao Platão adornou Sócrates no Banquete. longo da história das ideias. Há um exemplo eminente desse procedimento Ademais, convém sublinhar a influência no Banquete de Platão, que atribuiu que o célebre livro de Ernst Bertram, nova significação à palavra philosophos, Nietzsche. Versuch einer Mythologie, de fazendo-a coincidir perfeitamente com 1918, exerceu sobre o Elogio de Sócrates, sua imagem de Sócrates. É a essa ide- cujos rastros são detectáveis em suas alização de Sócrates que Hadot dedica notas. Hadot dedicou-lhe um prefácio, seu Elogio de Sócrates. Tomando como escrito para sua segunda edição fran- fio condutor o Banquete, sobretudo o cesa1, no qual afirma que seu opúsculo elogio a Sócrates feito por Alcibíades desenvolve temas contidos no capítulo na parte final do diálogo (215a4-222b7). intitulado “Sócrates” da obra de Ber- O opúsculo é dividido em três seções tram. O Elogio de Sócrates tem estrutura intituladas “Sileno” (p. 8-26), “Eros” similar à do livro de Bertram. Cada (p. 26-39) e “Dioniso” (p. 39-48). Na capítulo traz como título um símbo- primeira, o Autor detalha o mecanismo lo que faz ver a grandiosa figura de da ironia socrática – “uma autodepre- Nietzsche. De maneira análoga, Hadot ciação fingida, que consiste, de início, escolheu três símbolos presentes no em se fazer passar exteriormente por Banquete que permitem ver claramente alguém completamente comum e os complexos traços da figura mítica de superficial” (p. 17), que, por meio do jogo de perguntas e respostas, levava seu interlocutor à consciência de nada 1 Cf. Prefácio a E. Bertram, Nietzsche. Essai de mythologie. 2ª ed. Trad. Robert Pitrou. Paris: Éditions du Félin, 1990, saber – e mostra de que maneira se pp. 5-44. Há uma tradução em inglês desse prefácio apropriaram dela Kierkegaard e Nietzs- feita por Paul Bishop: Hadot, Pierre, “Introduction to Ernst Bertram, Nietzsche: Attempt at a Mythology”, The che, explicitando os aspectos literários, Agonist 3/1 (2010), pp. 52-84. Disponível em: http:// pedagógicos e psicológicos envolvidos www.nietzschecircle.com/AGONIST/2010_03/PDFs/ nessa apropriação. Na segunda seção, AgonistMAR2010HadotEssay.pdf
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Sócrates, marcada pela estranheza, a livro cujo título em francês é Les Let- atopia, e que foram determinantes para tres grecques en Occident de Macrobe à sua presença no curso do pensamento Cassiodore, ao qual Hadot faz referência ocidental. prestando-lhe homenagem. “Lettres” não significa, nesse contexto, ‘cartas’, como Ambos os opúsculos são de interesse foi traduzida, mas ‘Letras’ no sentido inequívoco tanto para helenistas como amplo de ‘literatura’, ‘humanidades’, para o público não iniciado nas intrica- que o termo também possui. Assim, das “premissas filológicas” da filosofia em todas as ocorrências concernentes antiga. É mérito do Autor a abordagem à referida obra2, onde se lê “cartas”, de temas densos com sobriedade e leia-se “letras” – seguindo, aliás, a tra- clareza, mobilizando a curiosidade do dução (correta) de duas ocorrências de leitor e tornando-lhe a leitura aprazível. “lettres” com este sentido nas páginas 8 As notas de rodapé de Elogio de Sócrates e 10. Verifica-se, nos dois opúsculos, a e os exemplos empregados em Elogio da cortesia dos tradutores em nos assina- filosofia antiga testemunham não apenas lar, sempre que é o caso, a existência a admirável erudição de Hadot, mas de edições brasileiras ou portuguesas também e principalmente o rigor me- das obras citadas por Hadot. De resto, todológico preconizado no último: suas cumpre ressaltar que ambas as tradu- sólidas conclusões são estabelecidas a ções, fidedignas, revelam trabalho sério partir dos próprios textos, lendo-os e e esmerado. comparando-os, afastando elucubrações obscuras provenientes de aproxima- ções doutrinais arbitrárias. Pode-se Igor Mota Morici consultar com proveito um índice de FAJE nomes próprios de autores antigos e modernos, nas páginas finais do Elogio da filosofia antiga. É preciso, por fim, advertir o leitor de 2 Três na página 9, uma na pág. 10 e outra na pág. 11. Há que há um pequeno lapso de tradução ainda outros quatro casos em que o vocábulo “lettre(s)” nas páginas iniciais de Elogio da filosofia designa, e é corretamente traduzido por, “carta(s)” (nas antiga. Pierre Courcelle publicou um páginas 22, 26 e 35).