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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
SOCIOLOGIA E DIREITO

AMÍLCAR CARDOSO VILAÇA DE


FREITAS

A IMPRENSA CARIOCA E A
DEMANDA POR ORDEM NO
SÉCULO XXI: ESTRESSE PARA
TODOS?

NITERÓI
2009
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E


DIREITO

AMÍLCAR CARDOSO VILAÇA DE FREITAS

A IMPRENSA CARIOCA E A DEMANDA POR ORDEM NO


SÉCULO XXI: ESTRESSE PARA TODOS?

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Sociologia e Direito da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial para a
obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e
Sociais.

Orientador: Professora Doutora Vera Malaguti de


Souza Weglinski Batista

Niterói, 2009
Freitas, Amílcar Cardoso Vilaça de
A Imprensa Carioca E A Demanda Por Ordem No
Século XXI: Estresse Para Todos?/Amílcar Cardoso Vilaça de
Freitas, UFF/ Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Direito. Niterói, 2009.
123 f.

Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais)


– Universidade Federal Fluminense, 2004.

1. Criminologia. 2. Violência. 3. Imprensa. I.


Dissertação (Mestrado). II. A Imprensa Carioca E A Demanda
Por Ordem No Século XXI: Estresse Para Todos?
AMÍLCAR CARDOSO VILAÇA DE FREITAS

A IMPRENSA CARIOCA E A DEMANDA POR ORDEM NO SÉCULO


XXI: ESTRESSE PARA TODOS?

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da


Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre
em Ciências Jurídicas e Sociais.

Aprovada em 13 de fevereiro de 2009

BANCA EXAMINADORA:

________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Vera Malaguti de Souza Weglinski Batista

________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Sylvia Moretzsohn

________________________________________________________________
Prof. Dr. Nilo Batista

Niterói, 2009
Dedicatória

Para Gabriel Menezes Sellin, na esperança de que, apesar do sobrenome de criminólogo, ele
encontre um tempo em que o assunto seja menos relevante.

Para Kátia, com Kátia e pela Kátia e todos os clichês do mundo para dizer que tudo que eu
faço é para ela.
Agradecimentos
A meus pais, sem os quais eu não teria conseguido. Não cabe aqui apenas a parte sentimental,
eles na verdade são os financiadores dessa pesquisa e de todo esse mestrado, bem como de
tudo o que eu fiz até agora. Eu só espero que essa dissertação esteja à altura deles. No mais,
minha mãe teve de ouvir cada argumento antes de ele ser propriamente formulado e meu pai
fez várias das revisões ortográficas, além de ter me escutado bastante também, o que me gera
muita gratidão e muito orgulho do ambiente intelectual no qual eles me criaram. De muitas
maneiras, esse é o fruto do trabalho deles. Agradeço muito a vocês por acreditarem em mim e
por me darem essa oportunidade e espero que eu, Amílcar, negro e crenaque capixaba, possa
fazer jus ao título que venho pedir com esse trabalho. Também a Kênia Alice, que está nessa
batalhar comigo, por me agüentar principalmente.
À Professora Doutora Márcia Barros Ferreira Rodrigues, por ter levantado a bandeira do
indiciarismo no Espírito Santo e por ter me indicado as possibilidades acadêmicas que
existiam na escola de Niterói. Nesse sentido, devo agradecer também ao Professor Mestre
Isaías Alves pelo apoio durante o processo de seleção nesse mestrado.
À Professora Doutora Vera Malaguti Batista pela orientação atenciosa; pela disponibilidade,
pela presença, pela cobrança. Além disso, por ter me ensinado a criminologia crítica que tanto
medo põe nos caretas e por acreditar com todas as suas forças na interdisciplinaridade, em sua
forma mais radical. Na realidade, eu não tenho palavras suficientes para descrever toda minha
gratidão para com a Vera. Teria que escrever um capítulo inteiro. O fato é que ela me mostrou
bandeiras sociológicas pelas quais eu tenho vontade de lutar e me mostrou que a sociologia
não pode se resumir a descrição de fatos, mas que ela é em si um fato político.
Ao Professor Doutor Nilo Batista pelas revisões e pelos apontamentos, tanto em minha
qualificação de projeto como em outros momentos. Mas, principalmente pelo entusiasmo com
que sempre se referiu a este trabalho. Também à Professora Doutora Sylvia Moretzsohn, que
teve apontamentos tão valiosos quanto os feitos pelo professor Nilo em minha qualificação, e
que também mostrou-se disponível em outras ocasiões. Não posso me esquecer de agradecer à
Professora Mestre Nadine Borges por ter feito anotações em meu trabalho durante minha
banca de qualificação e por ter lido o meu trabalho naquela época. Nadine, foi muito atencioso
da sua parte.
A todos os marxistas paranóicos, em especial a Cora Hagino, Francisco Barreto, Liliane
Souzella, minha companheira de tema e de angústia, Marina Mendonça, Rodolfo Noronha e
Shirley Souza. Um agradecimento especial tem de ser feito a Alexandre França, sem o qual a
vida em Niterói teria sido bem menos agradável para mim, além de mais difícil em inúmeros
aspectos do dia-a-dia. Parceiro, eu não teria conseguido sem você do meu lado em todos esses
momentos, em sala, nas orientações, nos churrascos, no futebol, no Maracanã... Alexandre é o
amigo mais leal e atencioso que um estudante migrante poderia ter.
A Betão, João Pedro e Taís, por suportarem minha bagunça doméstica. E a Dona Zélia e a
Tetê pela acolhida.
Por fim, à minha companheira de todas as horas, que eu amo tanto. Amor, você me deu forças
para conseguir terminar. Te amo muito, com erro de português e tudo.
RESUMO

Este é um estudo da imprensa carioca a partir do paradigma da criminologia crítica. O


trabalho se aprofunda sobre as questões que relacionam a imprensa, mercado de trabalho e
exclusão social e processos de criminalização. Analisando os Jornais O Globo e Extra
Informação, nosso objetivo foi compreender a demanda por criminalização e ordem dentro dos
referidos jornais e como essa demanda pode influenciar as políticas públicas de segurança. O
período estudado foi o começo do ano de 2007, que marca o início da administração de Sérgio
Cabral Filho a frente do governo do estado do Rio de Janeiro, tendo como marco final a
incursão policial que matou dezenove pessoas no Complexo do Alemão em junho de 2007.
Além de compreender como a demanda por ordem é feita pela imprensa, atentamos para as
diferentes formas como os dois jornais se posicionam, dado ao público alvo de cada um
pertencer a diferentes classes sociais.
SUMMARY

This is a study about the press of Rio de Janeiro coming from the paradigm of the critical
criminology. The work goes deep into issues that relate press, employment market and social
exclusion and process of criminalization. In the analysis of the newspapers O Globo and Extra
Informação – that belong to the same corporation – our goal was to comprehend the demand
for order and criminalization in the referred newspapers and how this demand might have
influenced the police policy. The period studied was the beginning of the year of 2007, that
marks the start of the administration of Sérgio Cabral Filho ahead of the state government in
Rio de Janeiro and it has as final mark the police incursion that killed nineteen people in the
Complexo do Alemão in June, 2007. Beyond understanding how the demand for order is made
by the press, we attempted to show the different ways in which the newspapers position
themselves, according to their target audience belong to different social classes.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 001

1. CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS 006


1.1. O PARADIGMA DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA 006
1.2. A CRIMINOLOGIA CRÍTICA E O CAPITALISMO TARDIO 019
1.3. A CRIMINOLOGIA CRÍTICA NA EXPLICAÇÃO DO BRASIL 034

2. A MÍDIA E A PENA 047


2.1. O FENÔMENO ESTÉTICO-ESPETACULAR 047
2.2. A CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DA VERDADE 053
2.3. MEDO E CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA MÍDIA 059
2.4. A MÍDIA E SEU PAPEL SOCIAL 063
2.5. IMPRENSA E “SEGURANÇA PÚBLICA” NO RIO DE JANEIRO APÓS
A REDEMOCRATIZAÇÃO 070

3. ENTRE O MEDO E A ESPERANÇA 078


3.1 VIGIAR E ESPALHAR MEDO – UMA ANÁLISE DE O GLOBO 078
3.1.1 Quem ataca quem? 079
3.1.2 Pobre Joãozinho – a vítima como protagonista 082
3.1.3 O desfilar sem fim de histórias triste e a busca incessante por culpados 086
3.1.4 “A Guerra do Rio” 097
3.2 – TUDO AINDA PODE MELHORAR – Uma breve análise do jornal
mais vendido do país 108

CONSIDERAÇÕES FINAIS 115

REFERÊNCIAS 118
1. OBRAS COMPLETAS E ENSAIOS 118
EPÍGRAFE

A futilidade da punição severa e o tratamento cruel


podem ser testados mais de mil vezes, mas enquanto a
sociedade não estiver apta a resolver seus problemas
sociais, a repressão, o caminho aparentemente mais
fácil será sempre bem aceita. Ela possibilita a ilusão
de segurança encobrindo os sintomas da doença social
com um sistema legal e julgamentos de valor moral.

(Otto Kirchheimer, “Punição e Estrutura Social”, p. 282)


INTRODUÇÃO
Há uma forte relação entre mecanismos de criminalização, exclusão social e disciplina para o
trabalho. A criação de um mercado capitalista teve de ser acompanhada pela criação de
mecanismos de controle social que permitissem submeter a classe trabalhadora a se enquadrar
nos esquemas de trabalho existentes, ao passo que protegesse a propriedade privada e a idéia
de venda da força de trabalho como meio de subsistência para todos aqueles que não possuem
a propriedade dos meios de produção.
Nesse processo, os mecanismos de criminalização são de importância fundamental, posto que
propiciam um meio de controle social que busca o consenso dentro da sociedade. O dogma da
pena, a necessidade de ser “duro” com os criminosos e de “defender” as vítimas têm sido
preocupações continuamente ressignificadas ao longo da história do Estado moderno
capitalista.
Atualmente, a imprensa tem um papel primordial nessa construção. Muito se fala em termos
de auxílio luxuoso da imprensa nos mecanismos de criminalização. Um dos objetivos desse
trabalho é um aprofundamento sobre a compreensão de como esse auxílio se dá. No início do
século XXI, a política de muitas maneiras tem se tornado um espetáculo. A presença na mídia
é de vital importância para os políticos. Por outro lado, em um Estado com cada vez menos
funções e em mecanismos políticos que cada vez mais escapam ao controle das pessoas, o
combate à “criminalidade” se torna uma das principais formas de comoção coletiva. Assim, o
combate ao crime é um tópico importante para a política, no seu atual estágio espetacular. Para
a constituição simbólica e material do sistema e sua presença na imprensa é de vital
importância para que ele possa ser veiculado para a população, servindo dessa forma como
gerador de dividendos eleitorais.
Caminhamos aqui no sentido de compreender primeiramente como o poder punitivo se
configura no século XXI no Brasil; num segundo momento de entender melhor o papel da
imprensa e por fim de saber como os dois jornais escolhidos – O Globo e Extra Informação –
influenciaram na política de segurança pública do atual governo estadual do Rio de Janeiro.
Partimos da perspectiva que a criminalização é uma forma, embora não a única, de justificar a
opressão de classe e veremos que os jornais estudados têm perspectivas criminalizadoras
diferentes, posto que falam para extratos sociais diferentes, embora sejam editados pelo
mesmo grupo empresarial. É, nesse sentido, uma forma de manipular as subjetividades, agindo
diretamente sobre como se sente o lugar social de cada indivíduo em nossa sociedade. Dentro
dessa conjuntura é importante resgatar a nossa matriz ibérica não apenas de pensar, mas de
sentir o mundo e a associação que se pode fazer entre o combate ao traficante de drogas e o
combate ao herege nos serão de grande valia.
O período da posse do atual governador do Rio de Janeiro é marcado por uma série de
atentados a prédios de instituições públicas, fato que levou pressão por uma definição de
política pública relativa à “segurança pública”. Outro fato de pressão foi a morte do menino
João Hélio Fernandes em fevereiro de 2007, arrastado por quilômetros por um carro em
movimento. A escolha do governo é pela criação de uma política de enfrentamento, ou seja, de
embate armado entre a polícia e traficantes. Contado dessa forma, parece um caso simples de
ação e reação. Nosso intuito aqui é compreender como essa relação é mediada. Podemos dizer
que “o poder de (in)formar da mídia ganha destacado papel no auxílio dos demais ‘poderes
constituídos’ ao elaborar significados para conceitos-chave” 1.
Na outra ponta do processo, a política de enfrentamento é uma das poucas formas de se criar
alguma comoção social, angariando simpatia de diversos setores da sociedade. Ademais, a
política de enfrentamento não resolverá o problema, porém dará a impressão de que muito tem
sido feito para solucioná-lo. Assim, permite a impressão de que falta um maior
aprofundamento dessa política pública, ou seja, um enfrentamento mais forte e mais direto,
possivelmente com menores restrições no que tange os direitos humanos. Assim, essa política
é uma forma de concentrar mais poder e de permanecer nos cargos de poder por mais tempo
(afinal, o problema ainda não teria sido resolvido e precisaria ser enfrentado com mais
vigor...).
Nesse trabalho pretendemos entender como se dá a relação entre a imprensa escrita e a
construção de políticas públicas relacionadas ao crime. Para isso, vamos analisar o
noticiamento de crimes e de políticas públicas concernentes ao crime no primeiro ano de
governo do atual Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho. Nosso
objetivo é saber qual foi a relação entre a mídia e o executivo na formação da atual política de
enfrentamento empreendida pelo governador. Para entender como se forma a compreensão a

1
WANDERLEY, Sonia Maria de Almeida Ignatiuk. A Construção do Silêncio: A Rede Globo nos projetos de
controle social e cidadania (décadas de 70/80). Dissertação de mestrado em História. Niterói: UFF, mimeo, 1995.
respeito da criminalidade em determinado tempo em determinada sociedade é preciso entender
a demanda por ordem que existe nessa mesma sociedade.
Com esse intuito, analisamos os jornais O Globo e Extra, com atenção aos editoriais, a
formação de estereótipos e às situações consideradas anormais, especialmente àquelas que
pedem uma resposta do poder público. Nosso período de estudo compreendeu os seis
primeiros meses de 2007, sendo que a amostra do Extra não pode ser completa dada a
indisponibilidade do jornal nas bibliotecas públicas. Nesse período houve uma campanha por
ordem que se refletiu, embora não possamos aqui medir a que extensão, na política pública
que estava sendo implantada – existem outros interesses e influências e a mídia não constrói
sua opinião isoladamente. Além disso, qual foi o diálogo que o jornal estabeleceu com o
público — incluindo qual foi o público que o jornal escolheu ouvir e publicar — em suas
cartas. Nosso objetivo é entender como essa política foi legitimada, mas de uma visão que não
propriamente a daqueles que a conceberam. Procuramos uma visão da política como
espetáculo, portanto, nossa fonte principal será a imprensa escrita.
O “crime”, em regra, se impõe diante de nós como o indiscutível. É uma forte matriz de
consenso, aparece como um ponto apolítico, aistórico e pacífico. Se a função do sociólogo é
conceber e utilizar ferramentas que aumentem as possibilidades heurísticas de conhecimento
da realidade social, um questionamento sobre essa suposta unanimidade que o crime causa é
necessária. Émile Durkheim, um dos primeiros importantes sociólogos, havia já dito que o
crime é “normal” e que o seu acontecimento serve para unificar as pessoas em torno da
consciência coletiva. 2 Com o passar do tempo, passou-se a questionar, como fazemos aqui, o
conceito de consciência coletiva de Durkheim. Podemos admitir que o crime una consciências,
o que não nos impede de perguntar como essas consciências se formam e se essas consciências
poderiam estar de alguma forma sendo manipuladas. O corte com a perspectiva durkheimiana
que a perspectiva marxista aqui apresentada revela é de que essa suposta consciência não paira
sobre os indivíduos, mas ela é, também, fruto de processos sociais. Michel Foucault nos
permite compreender com bastante detalhamento a formação do “normal” e compreender que
as consciências não estão sendo manipuladas no vazio 3. Elas são manipuladas dentro de um
projeto mais amplo de sociedade que se constrói. O crime e a reação ao crime se dão também
em meio a esse projeto, ou melhor, a demanda por ordem que ele traz em si.
2
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2002.
3
Ver 1.1
Em nossa sociedade, boa parte de tudo que sabemos nos é passado por meio da mídia. São
informações jornalísticas que chegam a nós e constroem
cotidianamente a nossa realidade. Com a “criminalidade” e com a “segurança pública” não é
diferente. A escolha da imprensa escrita se dá por duas razões principais: primeiramente, por
ser ela um espaço de reflexão maior, recheada de opiniões de colunistas, entrevistas de
especialistas e cartas de leitores. Em segundo lugar, porque esses dois jornais do Rio de
Janeiro pertencem ao mesmo grupo empresarial. O que os diferencia é o público alvo de cada
um deles; sendo O Globo concebido para pessoas de maior poder aquisitivo e o Extra mais
popular. Isso nos permitirá entender como o mesmo grupo empresarial pretende falar a
diferentes segmentos da sociedade e mesmo a segmentos com os quais eles não se identificam.
Mesmo imaginando que a existência de uma consciência coletiva que paire sobre nossas
cabeças seja pouco razoável, não podemos perder de vista que a compreensão da realidade
social é feita coletivamente.
Compreendemos que no período escolhido o governo do estado do Rio de Janeiro foi levado a
tomar uma posição. Não poderíamos eliminar de forma alguma o protagonismo dos agentes do
executivo estadual, o que não nos impede de constatar uma campanha por ordem na imprensa.
Mesmo com alguma arbitrariedade que toda marcação sempre traz em si, consideramos a
cobertura jornalística e a repercussão dos acontecimentos dos últimos dias de 2006 como o
início dessa campanha, bem como consideraremos a morte de dezenove pessoas pela polícia
fluminense no Complexo do Alemão no final de junho de 2007 como a afirmação da política
de enfrentamento pelo governo estadual.
Esse trabalho foi construído e dividido em três capítulos. De certa forma, já apresentamos
nossa hipótese principal: a demanda por ordem construída na mídia é influência marcante na
construção da política pública que é feita na “segurança pública” e nas práticas de polícia. E
acreditamos que mostraremos essa relação analisando a imprensa escrita no Rio de Janeiro
no período indicado.
No primeiro capítulo, vamos analisar o estudo do crime, por meio do paradigma da
criminologia crítica, tentando compreender como esse estudo pode ser útil para entender a
realidade atual brasileira.No segundo capítulo, a relação que pode ser construído entre mídia e
pena, levando em conta como a mídia influencia na construção da realidade, como esse
processo interfere nos mecanismos de criminalização em nossa sociedade e, como outros
estudos já mostraram, a interferência de campanhas por lei e ordem ajuda a construir políticas
públicas de polícia e “segurança pública”. No terceiro capítulo demonstramos como foi a
cobertura sobre o crime nos jornais escolhidos e como jornais de uma mesma empresa tem
concepções de criminalização diferente dado a público que eles pretendem atingir.
1. CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
1.1 O PARADIGMA DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA

Não se tem a intenção aqui de reconstruir todo um curso de discursos sobre a questão criminal.
Existe bibliografia 4 sobre a temática, de forma que a repetição desse tema, que escapa a nosso
objeto de pesquisa, se torna desnecessária. Tampouco se busca aqui reconstruir uma história
de autores e discursos da criminologia, embora isso seja feito em alguma medida, ainda que de
forma bastante tímida. Os autores são apresentados no intuito de fornecer uma teoria que dê
conta de interpretar o fenômeno sobre o qual nos debruçamos. Desse modo, o interesse e a
escolha pela criminologia crítica aqui se dá por sua capacidade explicativa.
Mas quais seriam os pressupostos daquilo que está se chamando aqui de criminologia crítica?
Foram Georg Rusche e Otto Kirchheimer, dois autores da escola de Frankfurt, os primeiros a
formular, já na década de 1930, a idéia de uma análise social que fizesse uma relação entre os
crimes e a questão social em uma abordagem histórica que levasse em conta a seguinte
pergunta: “Por que certos métodos de punição são adotados ou rejeitados numa dada
situação?” 5 Era a primeira formulação de um estudo que pensava a relação entre punição e
relações sociais para além da teoria penal e da tentativa de legitimação ideológica das
instituições punitivas. A pena não seria simples reverso do delito, nem conseqüência dele; era
preciso olhar para além da concepção jurídica, entender a pena para além de seus fins
declarados. Não é a pena que deve ser entendida, mas as instituições e práticas penais.
Segundo eles, “todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que
correspondem às suas relações de produção.” 6
Está assim formulada teoricamente uma relação entre pena e formas sociais de exploração e
dominação. Talvez seja esse o núcleo rígido sobre o qual a criminologia crítica se constrói,
permitindo um entendimento do crime em meio às demais relações sociais.
Rusche e Kirchheimer fizeram uma larga pesquisa sobre a relação entre criminalização e
mercado de trabalho e se valem de um princípio que pode ser entendido como uma ferramenta

4
Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito
penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. Coleção Pensamento Criminológico, nº 1. 3 Ed. Rio de Janeiro:
Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. e ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos pensamentos
criminológicos. Coleção Pensamento Criminológico, nº 15. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de
Criminologia, 2008.
5
RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. Coleção Pensamento Criminológico, nº
3. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p, 17
6
Ibidem. p. 20
analítica valiosa: os aplicadores da pena buscam um efeito inibidor, agindo sobre quem se
supõe que seja perigoso. Para eles também, a pena está sempre relacionada com as
necessidades de mão-de-obra. Dessa forma, a condição material de quem está preso deve, ao
menos em princípio, ser pior do que a condição dos estratos mais baixos da classe trabalhadora
“livre”. Se as condições da classe trabalhadora como um todo são boas e o período apresenta
mão-de-obra escassa frente às demandas por trabalho, as condições materiais dos punidos
tende a melhorar. Se a mão-de-obra é excedente, a condição tende a piorar. É preciso tratar
esse assunto um pouco mais detalhadamente.
As considerações desses autores frankfurtianos não são gratuitas e a pesquisa tem início na
reconstrução histórica de períodos anteriores ao capitalismo. Os autores mostram como que os
métodos de punição se modificam com o passar do tempo, a começar pela Idade Média
européia, período no qual a indenização e a fiança eram as penas padrões. O direito criminal,
se é que podemos chamá-lo assim, na Idade Média, servia como uma forma de preservar a
hierarquia. Era preciso pagar a dívida para expiar a culpa e, em princípio, uma reunião de
homens livres dava o preço da expiação. O objetivo como um todo era evitar a vingança
pessoal. Juntamente com a pena pecuniária, existiam também os castigos físicos,
especialmente para quem não pudesse arcar com as despesas. Com a centralização do poder
disciplinar do senhor feudal, ao longo do período, o poder penal passa a se constituir cada vez
mais como atividade do Estado: não é apenas uma forma de evitar conflitividade pessoal,
agora, o Estado toma o lugar da vítima, se ofende e exige a punição.
A grande virada que os autores demonstram, contudo está na acumulação primitiva no final da
Idade Média, no século XV. Com o esgotamento do solo, a superação da peste, o decréscimo
da colheita, o uso progressivo de terras para pastagem, acontece um acréscimo populacional,
acompanhado de uma população extranumerária, gera uma migração para as cidades — que
não possuíam estrutura para abrigar tal população. Com o acúmulo de capital, a burguesia
começa a reclamar lugar político e a reclamar leis de proteção à propriedade privada. Ela
queria um poder punitivo mais rigoroso e que, preferencialmente, pudesse ser utilizado
também contra a nobreza, especialmente para proteger sua propriedade. Mas o alvo principal
desse poder eram as classes pobres: “quanto mais empobrecidas ficavam as massas, mais
duros eram os castigos, para fins de dissuadi-los do crime.” 7 Era um sistema penal ocupado

7
Ibidem. p. 36
em destruir mão-de-obra excedente, contemplado com uma pena de morte que buscava tirar do
caminho aqueles que eram considerados perigosos. Cresce a perseguição aos judeus e às
bruxas, e as execuções públicas se constituem como grandes espetáculos. Seria equivocado,
para os autores, achar que se trata de uma mera resposta à criminalidade crescente, como
também seria insuficiente classificar o espetáculo do castigo corporal como simples exercício
de crueldade.
No século XVI, conhece-se uma mudança nos métodos de punição, enfocando o trabalho
forçado. Não é uma mudança exatamente calcada no humanitarismo, não obstante essa
justificativa haver sido utilizado por muitos de seus propositores. Para Rusche e Kirchheimer,
a nova demanda por bens de consumo, devido à constante expansão dos mercados à época,
aliado ao decréscimo populacional provocado pelas guerras religiosas, levou a uma escassez
de mão-de-obra e a uma subida nos salários reais. Os Estados portanto passam a trabalhar no
intuito de oferecer mais mão-de-obra; é incentivado o aumento da natalidade, bem como a
imigração (e proibida a emigração), incentiva-se o trabalho infantil e a educação para o
trabalho industrial. Ao mesmo tempo, proibi-se a organização dos trabalhadores, que
poderiam, devido à escassez de mão-de-obra, reivindicar salários mais altos. Muda-se a visão
sobre a mendicância e insere-se uma ética burguesa do trabalho: prosperidade deixa de ser mal
vista; generosidade com a mendicância, comum no período medieval, perde a força e constrói-
se a idéia de que qualquer indivíduo que se aplica poderia ganhar o pão de cada dia. A
desigualdade era vista como desígnio diferenciado de Deus para a vida de cada um. Assim, o
empregador torna-se moralmente mais forte para exigir de cada um a ética do trabalho. Como
a mão-de-obra era escassa, a mendicância de quem pudesse trabalhar era crime.
Os autores deixam claro que se trata de um período em que era preciso aproveitar toda e
qualquer mão-de-obra disponível, além de evitar que os salários atingissem níveis
demasiadamente altos. O sistema penal estava perfeitamente adequado a essa intenção: surgem
as casas de correção com o objetivo de transformar em força de trabalho socialmente útil
àqueles colocados como indesejáveis. Surge uma pena que confinava e obrigava ao trabalho,
com o objetivo de que, quando saísse, o indivíduo ganhasse a vida vendendo sua força de
trabalho e que procurasse voluntariamente o mercado.
A princípio, a casa de correção não tratava apenas do criminoso; podendo juntar também
vadios, crianças, prostitutas e “indesejáveis” em geral. Na Idade Média, o confinamento era
reservado apenas como forma de se garantir que o indivíduo estava presente, esperando que
ele pagasse por sua pena pecuniária ou esperasse seu julgamento. Na Idade Moderna, se torna
um princípio de punição e de disciplinamento, no qual ocupar vagas ou libertar detentos
dependia, principalmente, da necessidade de mão-de-obra. A tendência, assim, no século
XVII, é substituir pena corporal por confinamento e trabalho forçado. Além disso, pela mão-
de-obra barata que arrendava, o confinamento era bastante rentável para quem o administrasse,
o que contribui para tornar a prisão uma forma de pena padrão.
Percebe-se assim a relação que os autores constroem entre mercado e punição. De pretensões
bastante altas — e igualmente frutuosas — a obra de Rusche e Kirchheimer se alastra até os
seus dias, com considerações sobre o nazismo alemão. Contudo, escapa-nos agora fazer a
resenha de forma completa. É preciso ressaltar contudo que a burguesia revolucionária traz a
precisão das regras de uso do poder punitivo para o centro do debate, uma vez que ainda não
havia ganho o controle sobre os dispositivos de poder político. Surgem princípios como a
reserva legal (não existe crime se não houver lei que o preveja) e a proporcionalidade das
penas, e também o da intervenção mínima — são importantes contribuições dessa época.
Surgem também, ali, as garantias do processo penal. Ademais, pequenos roubos que
terminavam por ser punidos com a morte levavam a grandes distúrbios sociais por parte de
uma população que se identifica com o pequeno ladrão — o que leva autores burgueses como
Beccaria e Voltaire a reforçarem a idéia de proporcionalidade.
Para completar-se o raciocínio dos autores, é preciso que se diga que nos momentos em que a
mão-de-obra tornou-se novamente excedente, a pena deixou de ser um mecanismo para forçar
o emprego da força de trabalho e passa a ter apenas o propósito de dissuadir do crime. Assim,
condições das prisões precisam ser piores dos que as dos mais baixos estratos da classe
trabalhadora “livre”, o que, em tempos de pauperismo, significava muitas vezes expor os
prisioneiros à fome e ao frio. O trabalho dentro da prisão deixou de ser rentável, com o avanço
tecnológico do século XIX; e o trabalho dentro da prisão torna-se apenas uma forma de
tortura, como carregar pedras de um canto a outro ou mover moinhos que não funcionam.
O estudo de Rusche e Kirchheimer tem um detalhamento que aqui não se expôs em sua
totalidade. Existem nuances que variam de país para país, minúcias sobre outros tipos de pena,
como as galés e a deportação, além de uma riqueza estatística que não tratamos aqui. O que
nos interessa trazer dos autores é, em primeiro lugar, pensar o poder punitivo articulado com
as formas das relações sociais de exploração e dominação em determinada sociedade. Em
segundo lugar, a tendência histórica que eles indicam do sistema punitivo, na tentativa de
aproveitar, e mesmo criar, força de trabalho quando ela é escassa e de destruí-la quando ela é
excedente. E por fim, um último raciocínio que os autores fazem é bastante relevante à
problemática a ser desenvolvida aqui: “vemos que a taxa de criminalidade não é afetada pela
política penal, mas está intimamente dependente do desenvolvimento econômico” 8, ou seja,
punir mais, ser mais rigoroso com o “crime”, em nada diminui ou aumenta taxas de
criminalidade.
Fez-se preciso de certa forma interromper a resenha sobre a obra frankfurtiana no advento do
Iluminismo para que fosse possível analisar os argumentos de um autor francês da segunda
metade do século XX, que esmiúça a microfísica do poder disciplinar proposta nos séculos
XVIII e XIX. Em Vigiar e Punir, Michel Foucault descreve a passagem do sistema de suplício
para o encarceramento, a supressão do espetáculo punitivo e a necessidade de fazer sofrer com
discrição. O corpo deixa de ser vítima de sofrimento físico, mas de um conjunto de privações
de direitos e de prestações. Trata-se de uma mudança qualitativa e não quantitativa, de
objetivo da pena e não exatamente de sua intensidade; não de punir mais, mas de punir
melhor.
A prisão está colocada para qualificar os indivíduos, para classificar e disciplinar sua alma, de
forma que “não se destinam a sancionar a infração, mas a controlar o indivíduo, a neutralizar
sua periculosidade, a modificar suas disposições criminosas, a cessar somente após a obtenção
de tais modificações” 9. Assim, julga-se o crime e a alma, mas pune-se a alma mais do que se
expia o crime.
Esse sistema é construído sobre a base de laudos científicos, que julgam nem tanto o que o
indivíduo fez, mas o que ele pode fazer, sua periculosidade. É um poder preocupado com a
segurança. Aos juízes, somam-se uma série de peritos (psicólogos, educadores,
administradores do sistema penal), que também julgam, posto que incidem diretamente sobre a
aplicação das penas.
Para ele, trata-se de uma economia política que atua sobre os corpos. Para Foucault, estamos
diante de um sistema que busca a utilidade econômica dos corpos, ao passo que também
procura sua sujeição política. Um corpo útil, ou seja, produtivo e submisso.
8
Ibidem, p. 273
9
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 22
Ele acrescenta que é preciso renunciar a uma tradição que acredita que o saber se dá para além
dos interesses. O saber cria dispositivos de poder, que podem ser aplicados sobre o corpo, logo
se dá em meio aos interesses. Poder, para ele é composto por dispositivos que se aplicam
sobre, e não algo que se possui. A alma, então é uma tecnologia de controle dos corpos, uma
construção.
Na conjuntura da tomada de poder pela burguesia, o suplício, ato de vingança do soberano
sobre aquele que ofendeu a sua vontade — que era a fonte da norma — um ritual de terror e
afirmação de poder, da invencibilidade do soberano, precisa ser substituído por uma forma de
punir que respeite a humanidade do indivíduo. É uma forma mais comedida de punir.
Além disso, a burguesia estava bastante interessada em discriminar minuciosamente e conter
os crimes contra a propriedade. Com o desenvolvimento da produção e o aumento das
riquezas, surge uma valorização jurídica das relações de produção, acompanhada por métodos
de vigilância mais rigorosos, o que significa uma nova forma de vigiar o comportamento
cotidiano, em harmonia com as transformações ocorridas; é “uma tendência para a justiça mais
desembaraçada e mais inteligente para uma vigilância mais atenta do corpo social” 10
Essa reforma busca, mais do que qualquer humanização, regular a economia política da pena.
É uma reforma contra a distribuição mal regulada do poder; ela consiste em criar uma
vigilância mais constante, menos irada, porém mais capilarizada e mais homogênea.
A reforma tinha um alvo claro que eram as camadas populares. “De modo que a criminalidade
se fundamentava numa ilegalidade mais vasta, à qual as camadas populares estavam ligadas
como as condições de existência; e inversamente, essa ilegalidade era um fator perpétuo de
aumento da criminalidade.” 11 Essa condição punha no limite a classe operária, que se
encontrava entre a ilegalidade necessária e o crime, e, desse modo, colocava-a como local do
qual o crime poderia surgir.
O direito de punir, contudo, busca seu consenso. O direito de punir desloca-se da vingança
pessoal do soberano para a defesa da sociedade, e o infrator é um inimigo comum, um traidor,
um “monstro”. Não é difícil conceber como essa relação é praticamente uma profecia auto-
realizável: se a classe pobre está no limiar do crime, logo existe uma esperança que dela
venham a emergir os criminosos; se o criminoso é o monstro, trata-se então de esperar emergir
do meio dos pobres os monstros. Para escapar a esse processo de criminalização, é deixada à
10
Ibidem, p. 73
11
Ibidem, p. 77
classe pobre uma margem muito estreita de ação, à qual ela deveria se conformar. Esse
processo está submetido à busca pela utilidade (produtividade e submissão) que citamos
acima.
Introduz-se uma suavidade penal, econômica. O local da pena vai do corpo para o espírito, a
pena deixa de ser apenas física e passa a ser principalmente simbólica. O criminoso é aquele
que quebra o pacto social, é o anormal. O crime aparece como uma regulação científica, quase
que emanado da natureza, aparecendo como o menos arbitrário possível. A pena, por sua vez,
deve aparecer como correspondente ao crime, proporcional, de forma como que se esconda a
relação de poder.
Assim, é preciso combater maus hábitos e forçar os bons; reanimar o interesse útil e virtuoso,
reensinar. A pena tem de ser temporária, posto que reeduca. O corpo passa a ser treinado, é um
corpo útil e inteligível: “lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se
assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em
silêncio, no automatismo dos hábitos.” 12 Em outras palavras, o corpo torna-se dócil.
O corpo está sempre limitado pelo poder. No século XVIII, ele passa a ser trabalhado
detalhadamente, numa coerção sem folga, buscando a economia dos movimentos, sua eficácia.
O exercício é a única cerimônia que importa. À sujeição constante das forças do corpo que lhe
impõe uma relação de utilidade-docilidade, Foucault dá o nome de disciplinas. Nos séculos
XVII e XVIII, disciplinas se tornam fórmulas gerais de dominação.
A disciplina é o aumento do domínio de cada um sobre seu corpo; quando mais obediente,
mais útil e vice-versa. Trata-se de manipulações calculadas dos elementos do corpo, numa
anatomia política do corpo. Não foi uma descoberta súbita, mas foi realizada perante uma
multiplicidade de meios nessa nova microfísica do poder; é uma anatomia política do detalhe.
A disciplina se construiu nos espaços fechados sobre si mesmo, como colégios, quartéis,
fábricas. Era preciso dominar a força de trabalho, impedir seus inconvenientes e proteger os
meios de produção. Para isso, era preciso distribuir os indivíduos no espaço, no princípio do
quadriculamento; evitar aglomeração, circulação difusa, a vadiagem e a deserção,
estabelecendo as ausências e as presenças. Organiza-se assim um espaço analítico, um
conjunto de espaços individuais, celulares. Tudo isso se dá pelo controle da atividade, no
horário, na elaboração espacial do ato, na correlação técnica precisa entre o corpo e o gesto,

12
Ibidem, p. 125
precisamente colocado no tempo e no espaço, e articulando corpo e objeto. Como o corpo
resiste àquilo que não lhe é próprio, é preciso conhecê-lo; dessa forma, saber é poder. A
disciplina assim constrói quadros, prescreve manobras, impõe exercícios, organiza táticas
entre os diversos corpos úteis.
É um poder que se exerce nos detalhes do controle do corpo e baseado em uma vigilância
regular e ininterrupta. É preciso, portanto, ver o tempo todo, vigiar constantemente. É um
poder discreto, pois é silencioso, ao mesmo tempo em que é indiscreto, posto que está em toda
parte.
Todo esse sistema é baseado em uma classificação incessante, no qual punir é classificar
abaixo e recompensar é classificar acima. A arte de punir não busca nem expiação, nem
repressão; faz a comparação entre os indivíduos e remete ao conjunto e ao exemplo,
diferencia, mede as capacidades, coage a uma conformidade e define o normal e o anormal. A
igualdade jurídica pregada pela burguesia era sustentada pelos mecanismos de disciplina,
assimétricos e inigualitários. Disciplina é um dispositivo de poder a ser aplicado sobre alguém;
dentro da fábrica, ele será aplicado do patrão sobre o empregado e mostrará aí toda a utilidade
dos corpos, bem como sua submissão. A prisão, contudo, para Foucault é o local
paradigmático da disciplina, pois é sobre o indivíduo preso que pode realmente se exercer uma
vigilância que não encontrará interrupções. Dentro do controle da periculosidade, o indivíduo
deve sair da prisão disciplinado. Logo, é preciso que a administração carcerária tenha alguma
autonomia para aliviar ou aumentar as penas, ou seja, que também julgue, com seu aparato de
psicólogos, educadores e administradores supracitado.
O conceito de disciplina é completado por Foucault, em outra de suas obras, pelo conceito de
Biopoder, que estudaremos em um próximo tópico. É preciso entender que embora submissão
e utilidade dos corpos ainda são objetivos dos dispositivos de poder — ocorre uma mudança
nas formas como ele se apresenta no capitalismo tardio. Além disso, precisamos ainda retomar
o conceito de delinqüência, apresentado ainda em Vigiar e Punir, e que nos é fundamental.
Agora, no entanto, é para nós mister investigar as considerações de Dario Melossi e Massimo
Pavarini, em Cárcere e Fábrica, que nos permite articular melhor as duas obras supracitadas.
O que talvez precise que fique claro aqui é que essas três obras — Punição e Estrutura Social,
Vigiar e Punir e Cárcere e Fábrica — trabalham com uma mesma pergunta básica: como e
por que surgiu a prisão. Como a prisão não é o tema específico do trabalho ora desenvolvido,
estamos trabalhando apenas com as idéias que os autores formulam a respeito da noção de
controle social de forma mais geral. Contudo, a articulação que Melossi e Pavarini realizam
nos permite ver com facilidade os pontos de contato entre as obras de Rusche e Kirchheimer e
Foucault.
Melossi e Pavarini estão preocupados em questionar a essência do fenômeno carcerário,
entender os seus porquês, entender para que e para quem ele serve e quais os critérios que
levam o indivíduo delituoso ao cárcere. Essas perguntas remeteram os autores à busca de sua
origem para além das justificativas ideológicas.
Para eles, existe, como já mostraram os supracitados frankfurtianos, uma estreita conexão
entre o modo de produção capitalista e a origem do cárcere. Para além das já citadas
contribuições, os autores italianos relembram a obra de E. B. Pasukanis, na qual esse jurista
soviético mostra que somente numa sociedade em que as pessoas vendem seu tempo livre era
possível pensar numa equivalência entre um quantum de liberdade a ser retirado de alguém e
uma pena por um delito. 13 Para isso, era preciso que estivesse estabelecido um mercado, na
qual as pessoas estivessem acostumadas a trocar trabalho humano abstrato por dinheiro.
Em sua digressão histórica, Melossi 14, citando Marx, mostra como a acumulação primitiva de
capital ocupou-se em construir uma dissolução do mundo feudal e uma separação do
trabalhador de seus meios de subsistência. A cidade é uma multidão de desempregados, com
uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. As casas de correção surgem no norte da
Europa, no intuito de reformar seus internos pelo trabalho obrigatório e pela disciplina. Logo,
nesse segundo momento, o problema é enfrentado no sentido de se obrigar a trabalhar os que
se recusam a fazê-lo. Nesse tempo, apontam eles, a recusa ao trabalho era a única ação vista
como propriamente criminosa e as casa de correção eram utilizadas para dobrar a resistência e
para maximizar a extração de mais-valia.
Na Holanda, surgem as Rasp-huis (casas de raspagem de Pau Brasil), na primeira metade do
século XVII. É na análise dessa casa de raspagem e das casas de trabalho de forma geral, que
entendemos como os autores italianos articulam o pensamento criminalista dos frankfurtianos
e de Foucault. Segundo eles, “a função da casa de trabalho é, sem dúvida, mais complexa do

13
PASUKANIS, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989.
14
MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: As origens do sistema penitenciário (séculos
XVI – XIX). Coleção Pensamento Criminológico, nº 11. Rio de Janeiro: Revan, 2006.O livro divide-se em duas
partes, uma escrita por cada autor. Coube a Melossi a primeira, sobre as origens do cárcere no séc. XVI na
Europa e a Pavarini um estudo sobre a criação da penitenciária nos Estados Unidos do século XIX.
que simplesmente tabelar o salário livre. Ou, ao menos, pode-se dizer que este último objetivo
deve ser entendido na plenitude do seu significado, que é do controle da força de trabalho, da
educação e da domesticação desta.” 15
Assim podemos ver que as idéias de controlar a estrutura e permitir que as variações de
escassez e excedente de mão-de-obra, bem como as idéias de controlar a periculosidade da
força de trabalho — ou seja, em punir com objetivos que correspondem à estrutura social e
punir para controlar os espíritos das classes pobres — estão, desde o surgimento do cárcere
como pena na Europa, articulados. Dessa forma, a punição que cria força de trabalho ou a
destrói é a mesma que disciplina.
A composição da população interna dessas casas de raspagem, bem como das casas de
correção, era a mesma das casas de correção surgidas na Inglaterra: infratores menores,
mendigos, vagabundos. O trabalho tinha de ser árduo: tornar dócil, tornar útil e de preferência
não transferir qualquer conhecimento, de forma a minar qualquer possibilidade de resistência.
O objetivo era disciplinar para a vida laboriosa. A casa de trabalho não era exatamente um
local de produção, mas um local onde se aprende a disciplina da produção. Além disso, tem
função intimidadora para o operariado “livre”, no sentido de que é melhor aceitar as coisas
como estão no trabalho “livre” do que submeter-se ao ainda mais mal remunerado trabalho no
cárcere. É uma tentativa, dessa forma, de vencer todas as resistências à visão de mundo
burguesa, já influenciada pela reforma protestante. Assegura-se assim a supressão de todos os
impulsos em contrário. Ao mesmo tempo, é uma das instituições subalternas à fábrica, nela se
produz e se disciplina força de trabalho.
Melossi aponta que o trabalhador tende a ser conduzido ao trabalho pela coação econômica,
porém, talvez somente um estado ideal de coisas pudesse conferir essa condição à realidade. A
tendência é criar um modelo de repressão em que se utilize progressivamente menos violência,
calcado na idéia de contrato e de reciprocidade entre delito e pena. Ocorre aí uma dialética
entre o princípio da autoridade e o princípio da liberdade. O princípio da autoridade continua
sendo aplicado dentro da fábrica — como já citamos, as relações disciplinares são assimétricas
— e, para que os trabalhadores se submetam a ele, é preciso o uso da força contra aqueles que
não se submeteram por coação econômica. À interioridade do indivíduo vão somando-se as
instituições segregadoras. A opressão é tanto espiritual quanto material. Mas do que ensinar a
15
MELOSSI, Dario. A gênese da instituição carcerária moderna na Europa. In: . & PAVARINI, Massimo. op.
cit. p. 40-1
trabalhar, o objetivo é convencer a trabalhar, numa visão de mundo protestante burguesa na
qual a pobreza nada mais é do que um castigo de Deus e uma condição contra a qual devemos
lutar.
Novamente, podemos notar que assim que a mão-de-obra se torna excedente, o cárcere ganha
aspectos aterrorizadores. É preciso tentar fazer com que as condições de vida no cárcere sejam
materialmente piores que as condições de vida do pior extrato dentre os trabalhadores “livres”,
o que, devido ao pauperismo, nem sempre era tarefa fácil.
Nesse estudo os autores fazem a junção entre as teorias marxistas e a foucaultiana:
“A história da relação entre capital e trabalho, a história tout court, que é a história da
luta de classes, torna-se então a história das relações capitalistas no interior da fábrica
e, correspondentemente, da disciplina do trabalhador e de tudo que serve para criar,
manter ou subverter essa autoridade”. 16

Assim, a construção burguesa do corpo só é possível de ser entendida face à utilização do


corpo na máquina produtiva. Instituições segregadoras e suas ideologias têm sua história
guiada pela necessidade de valorização do capital; é no cárcere que se cria o laboratório
experimental da disciplina.
Uma crítica a Dario Melossi, se nos é permitido, deve ser marcada. Ele estabelece uma relação
muito estreita entre banditismo e pauperismo e usa indiscriminadamente o conceito de
criminalidade. Vejamos os seguintes trechos: “Esses desocupados, mendigos, vagabundos, que
invadiam campos e cidades se organizavam em grupos; na medida em que o grupo crescia,
aumentava a miséria e com maior número e a miséria, crescia o desespero: a mendicância se
transformava em banditismo” 17; “Nas regiões menos desenvolvidas da Europa, ainda que com
alguns anos de atraso, na medida em que aumentava o exército industrial de reserva,
aumentava o pauperismo e a criminalidade” 18 e “presença de bandos de ociosos e vagabundos,
que exprimiam, através de toda uma série de delitos típicos, tanto a necessidade de sobreviver
quanto a vontade de rebelar-se contra aquele estado de coisas” 19.
O conceito de criminalidade, por exemplo, é dado com muita facilidade por Melossi, e da
criminalidade conhecemos em regra apenas o medo e a insegurança, que tem uma infinidade
de outras fontes para além do cometimento de crimes. Em regra, o fenômeno da criminalidade
é inapreensível enquanto tal, ao menos em sua totalidade. Há de se levar em conta que boa
16
Ibidem, p. 76
17
Ibidem, p. 88
18
Ibidem, p. 92
19
Ibidem, p. 129
parte do que se conhece como criminalidade nada mais é do que criminalização dos mais
pobres ou insegurança dos mais ricos face a uma situação de desigualdade gritante.
Massimo Pavarini, na segunda parte da obra, analisa o nascimento da penitenciária nos
Estados Unidos. Para ele, apesar de uma nova abordagem do problema de controle social das
classes marginais e da busca de soluções positivas, quebrando com a herança do velho mundo,
os estadunidenses chegaram a uma conclusão de cunho personalista, que jamais abandonaram:
“se a situação econômica é efetivamente capaz de permitir o pleno emprego, a causa principal
do pauperismo só pode ser de natureza individual.” 20 Surge a divisão entre o mau pobre
(pauper) e o bom pobre (poor). O pauper é associado ideologicamente ao crime e ao vício, à
ausência de vontade e amor pelo trabalho, ao alcoolismo e à incapacidade de poupança. O
sistema caritativo que havia sido desenvolvido na época colonial entra em crise.
Uma proposta institucional surge como nova marca da política de controle social: escolas e
hospícios aparecem mostrando o internamento, a segregação numa instituição especial como
solução; religião e família deixam de ser o paradigma de controle social, posto que essas
instituições entram em crise de autoridade; era preciso criar um novo ambiente social na
instituição, no qual pudesse se praticar a cura. Surge nesse sentido a nova prisão.
As funções de controle da mão-de-obra estão presente na penitenciária: “os mecanismos
internos, as práticas penitenciárias, ficam assim oscilantes entre a prevalência das instâncias
negativas (o cárcere ‘destrutivo’, com finalidades aterrorizadoras) e das instâncias positivas (o
cárcere ‘produtivo’, com finalidades essencialmente reeducativas).” 21 Dentro dessa
perspectiva, nasce a penitenciária, propagando idéias como isolamento celular e silêncio entre
os detentos.
Na penitenciária, o criminoso-internado se identifica com o não-proprietário-internado. A
penitenciária serve para conhecer o criminoso, (na realidade, o preso); o cárcere é o
laboratório, no qual se ousa fazer o grande experimento de transformação do homem. A
penitenciária permite ver sem ser visto, uma vez que o interno é completamente visível. A
alternativa à disciplina, no caso penitenciária, é a autodestruição ou a loucura; “sua dimensão
real reproduzirá sempre e ao infinito — até nos mais restritos espaços sociais — a ordem

20
PAVARINI, Massimo. A invenção penitenciária: A experiência dos Estados Unidos. In: . & MELOSSI,
Dario. op. cit. p. 179
21
Ibidem, p. 212
social burguesa” 22 Seu objetivo é tornar o indivíduo em um proletário não perigoso, educando
o criminoso para ser um não-proprietário que respeite a propriedade, ou seja, um “proletário
socialmente não perigoso”. Cria-se um projeto utópico para toda a sociedade de disciplina
total, no qual o cárcere é o símbolo maior e projeto organizativo.
Os autores concluem dizendo que “a forma jurídica geral, que garante um sistema de direitos
igualitários, é neutralizada por uma espessa rede de poderes não igualitários.” 23 A pena é o
correlato do trabalho, período de desigualdade, de disciplina numa relação de poder
assimétrica, só que aplicada ininterruptamente.
Propositadamente, deixamos o conceito de delinqüência de Vigiar e Punir para ser
apresentado somente após discutirmos as idéias de Melossi e Pavarini, pois acreditamos que
assim ele tem maior destaque. Foucault identifica um fracasso reiterado da prisão. E toda vez
que se constata esse fracasso, se pede por uma prisão que faça exatamente as mesmas coisas
que foram propostas anteriormente. A prisão, para Foucault, acaba por se constituir numa
instituição permanentemente em revisão. Mas para que serve o fracasso da prisão?
Era preciso organizar a transgressão das leis. A penalidade aparece como um método para
gerar ilegalidades. A conflitividade social fica assim dominada pelo Estado, que é quem a
engendra. Criam-se leis e dispositivos de poder que incidem sobre as classes pobres, de forma
que o crime aparece quase como exclusividade de uma classe social.
Nessas condições seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo
mundo em nome de todo mundo; que é mais prudente reconhecer que ela é feita para
alguns e se aplica a outros; que em princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se
dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas; que, ao
contrário do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação não se reflete a
todos da mesma forma, que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de
seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra
fadada à desordem. 24

O crime cria uma ilegalidade fechada, separada e útil, como é fechada, torna-se possível
controlá-la. A delinqüência é um elemento útil para gerir e explorar ilegalidades, sendo
possível obter lucro ilícito e praticar atividades ilegais que estão controladas; ela está cercada
de todos os lados pela polícia, fadada a uma criminalidade violenta que, em regra, atinge quem
está mais próximo, ou seja, os demais indivíduos das classes pobres. A delinqüência encontra-
se fechada no circuito entre a polícia e a prisão.

22
Ibidem, p. 215
23
MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. op. cit. p. 264
24
FOUCAULT, Michel. op. cit. p. 243
Foucault mostra como à geração revolucionária na França no final do século XVIII, surge uma
geração que não tem mais condições de revolucionar, suas ilegalidades estão classificadas
como delinqüência. Podemos entender assim toda a contrapotência que possui a classificação
como delinqüente e as criminalizações em geral. No momento em que um grupo como as
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia é classificado como “narcotraficante”, ele
perde o potencial revolucionário que pretendia ter: como grupo criminoso, seu embate é com a
polícia e não com a classe dominante, o que seria o objetivo de um grupo revolucionário.
Se nos é permitido uma pequena contribuição, podemos imaginar que grande parte dos crimes
nada mais é do que uma ilegalidade que o Estado cria, num esforço contrapotencial. Afinal de
contas, em última instância, em um esforço analítico, podemos pensar que a venda de drogas
ilícitas nada mais é que o correlato da venda de drogas lícitas nas farmácias e nos bares, os
jogos ilícitos nada mais são que o correlato das loterias que o governo brasileiro organiza, o
crime contra a propriedade é o correlato ilegal da apropriação de mais-valia 25, e o assassinato,
condenável quando é realizado pelos cidadãos em geral, é prática freqüente de vários Estados,
com destaque para o Brasil. O que varia nessas situações é apenas a reação social que elas
provocam. Podemos, portanto, dizer que boa parte dos crimes quando ocorrem em nada
abalam a ordem social — vender drogas ilícitas nada tem de revolucionário, coordenar uma
banca de jogos ilegais também não. São ilegalidades criadas para que se possa gerar
delinqüência, e a delinqüência é gestada de forma a anular qualquer potencial transformador
da ordem burguesa vigente.
De forma sucinta, podemos dizer que esse é um breve enunciado dos principais preceitos da
criminologia crítica, segundo, a nossa abordagem e análise. Precisamos ainda, contudo,
entender como esses pressupostos podem ser articulados com as mudanças que o capitalismo
tardio trouxe — próximo momento — para tentar entender como pode ser pensada no Brasil
atualmente — num momento ainda posterior — para por fim entendermos o papel da
imprensa, que pretendemos analisar num segundo capítulo.

1.2 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA E O CAPITALISMO TARDIO


Um dos autores de maior relevância para a criminologia atual é o francês radicado nos Estados
Unidos Loïc Wacquant. Para Wacquant, estamos atualmente em um período no qual,

25
MARX, Karl. O Capital : Crítica da economia política. São Paulo : Abril Cultural, 1983.
politicamente, ocorre o que o autor chama de pornografia da criminalidade — trata-se de uma
série de atitudes de políticos, repetitivas e previsíveis, que representam, de uma forma
midiática e espetacular, uma devoção pessoal às forças da lei e da ordem, uma afirmação
apressada dos direitos da vítima, lamento à complacência e à lentidão do poder judiciário e a
promessa de reduzir as taxas de criminalidade. Esse processo se dá por meio de discursos
contundentes, aliados ao fato de os políticos deixarem-se fotografar diante das câmeras da
imprensa usando uniformes policiais ou em apreensões de drogas e armas.
O crime, dessa forma é retirado de seu contexto, no objetivo de saciar a fome de ordem do
eleitorado. Em Punir os Pobres 26, Wacquant mostra que nos últimos trinta anos, o sistema
carcerário estadunidense aumentou várias vezes o número de prisioneiros, contando com uma
quadriplicação entre os anos de 1975 e 1995. É preciso compreender bem a relação entre
criminalização e políticas públicas como um todo. O crescimento do Estado penal nos Estados
Unidos é um movimento simultâneo e complementar à queda sistemática e constante de todos
os programas de assistência social.
O autor destaca uma tripla função da prisão, a saber: estoca mão-de-obra excedente; impõe a
disciplina do trabalho, pois criminaliza e coíbe as estratégias de fuga ao mercado; e reafirma a
autoridade do Estado, o que o permite separar os “homens de bem” dos “não-merecedores”.
Nos diferentes países onde foi aplicada, a política de segurança tem seis traços principais: a
idéia de colocar um “ponto final” na “complacência” e atacar o crime diretamente; a
proliferação de leis e inovações burocráticas, além de dispositivos tecnológicos no sistema
penal; o discurso alarmista sobre “insegurança”, que se encontra por toda parte; o reforço ao
estigma sobre jovens pobres de minorias étnicas; a abordagem gerencial dos fluxos
carcerários; e o endurecimento da polícia e do poder judiciário, com a aceleração de processos
e o aumento da população carcerária.
Wacquant aponta que o discurso reveste-se de uma grande responsabilização individual e do
combate a qualquer análise sociológica do tema, o que é caracterizado como “desculpas
sociológicas” para a criminalidade. O que mais nos interessa, por ora, da obra desse autor
francês radicado nos Estados Unidos, é o fato de que ele percebe com bastante clareza que o
que mudou nas últimas décadas não foi tanto a criminalidade — que ele aponta como estável e

26
WACQUANT, Loïc, Punir os Pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Trad.
Sérgio Lamarão. Coleção Pensamento Criminológico, nº 6. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de
Criminologia 2007.
posteriormente declinante — mas, a visão sobre as classes despossuídas. Erodiu, nos Estados
Unidos, boa parte dos programas de assistência social, ao passo que cresceu enormemente a
instabilidade do trabalho.
Para Wacquant, trata-se de um exercício de governo para formar um novo mercado de
trabalho, desestabilizado, instável e altamente inseguro para a classe trabalhadora, o que
podemos chamar de novos dispositivos disciplinares. A idéia é que “não existe trabalho ruim”,
e que as classes trabalhadoras têm de adaptar-se a qualquer que sejam as formas que o trabalho
apresenta — sejam elas noturnas ou diurnas, fixas ou móveis. Essa nova flexibilidade exigida
envolve novas formas de controle sobre o corpo. Seu norte, contudo, continua a ser a sua
utilidade e a sua submissão.
As alternativas ao mercado de trabalho, em regra, estão criminalizadas e o trabalhador, em
especial aquele que possui menos escolaridade, é forçado a trabalhar por salários
progressivamente menores e em empregos cada vez menos tradicionais, isto é, com horários
menos regulares, em condições pouco comuns. O Estado, que abandona progressivamente as
funções sociais e de auxílio econômico, reafirma sua legitimidade por meio da “canonização”
do direito à segurança, o que leva à hipertrofia do sistema penal como um todo.
É importante notar que ao passo que o Estado como um todo retorna a uma tendência liberal,
diminuindo suas políticas em todos os sentidos e reduzindo a regulamentação sobre as
empresas em geral e adotando o laissez-faire como política básica para a economia, o Estado
passa a reprimir os mínimos movimentos das classes pobres, e para isso não se furta em gastar
grandes somas de dinheiro com o sistema carcerário, mesmo quando se propõe, em discursos,
a gastar progressivamente menos. O Estado, apesar de ter governantes que advogam a
austeridade fiscal, encontra-se hipertrofiado e esbanjador em sua área policial e penal. Para
Wacquant, “a luta contra o crime não passa de um pretexto conveniente e de uma plataforma
propícia para um redesenho mais amplo do perímetro de responsabilidade do Estado” 27.
Nos Estados Unidos, a redução do Estado nas últimas décadas, se deu principalmente sobre os
programas voltados para as populações mais pobres, com o objetivo principal de impossibilitar
a formação de uma população “preguiçosa”, que adote o welfare way of life — o estilo de vida
de assistência —, ou seja, é um mecanismo para forçar que a população mais pobre aceite
qualquer emprego, por qualquer salário.

27
WACQUANT, op. cit. p. 62
Um fator relevante nos Estados Unidos destacado por Wacquant é que a barreira racial é
extremamente forte, o que levou a formação de dois tipos de programas sociais: o welfare,
para a população mais pobre e, em grande parte, negra; e o social security, para a classe
média. O social security sofreu pequena modificação, diferentemente do welfare. A idéia era
reduzir a “dependência” que as pessoas mais pobres supostamente sentiam em relação à
assistência. Como conseqüência, a pobreza deixa de ser um problema estatal e se torna um
problema individual.
Por outro lado, o encarceramento tornou-se uma prioridade entre os governantes
estadunidenses. Hoje, estima-se que um por cento da população adulta do país esteja
encarcerado. As leis penais se endureceram na maioria dos estados, fazendo com que detentos
cumpram um tempo maior de detenção na prática e a polícia aumentou seu poder de vigilância
sobre os bairros pobres, numa aplicação penal sociogeograficamente determinada.
Para Wacquant, a partir da década de 1970, nos Estados Unidos, estabelece-se certo
revanchismo contra a população negra e uma reação aos direitos conquistados por meio dos
movimentos sociais da década anterior. Assim, nos anos 1980 e 1990, surge uma política de
restringir o Estado-providência. Criou-se um amálgama ideológico entre assistência social e
criminalidade, propondo que a assistência leva à preguiça, despertando a imoralidade e a
busca por “ganhos fáceis”, o que leva ao crime.
Nesse sentido nasce, nos Estados Unidos, uma política de segurança focalizada nos “crimes de
rua”, em especial no tráfico de entorpecentes, concentrada nos bairros pobres povoados por
hispânicos e negros. A prisão, dessa forma, aparece como uma forma de resistir aos avanços
conseguidos pelos movimentos sociais negros nos anos 1960, servindo como recurso
organizacional de captura de classes desprezíveis e indesejáveis.
A prisão vem se articular historicamente com as instituições de controle para os afro-
descendentes americanos. Para Wacquant, a escravidão estadunidense foi sucedida pelo
sistema de segregação Jim Crow — na idéia de “separados, mas iguais” — que não permitia
que negros e brancos dividissem o mesmo ambiente. Assim, havia, por exemplo, a escola para
negros e a escola para brancos. Dessa forma, os negros ficavam excluídos das melhores
escolas, seguindo nesse exemplo, que ficavam reservadas para brancos. Esse sistema, por sua
vez, foi substituído pelo gueto nos anos 1960s, uma forma de isolar e separar as populações,
de evitar, mesmo sem proibir, o contato. O gueto vem não a ser substituído, mas a ser
complementado pela prisão. Wacquant demonstra que, assim como a prisão, o gueto servia
para isolar geograficamente, estigmatizar, coagir e segregar institucionalmente determinado
grupo étnico-racial. Nos anos 1990s, quando o gueto deixou de ser suficiente para manter a
separação de casta — de conotação racial — nos Estados Unidos, acoplou-se a ele a prisão. Os
negros pobres nos Estados Unidos têm mais de 50% de chance de serem presos em algum
momento durante a sua vida e um em cada seis homens negros está excluído das listas de
votação por ter sido condenado a um crime de pena superior a um ano (felony) — mesmo
depois de ter cumprido pena.
Para além de manter o controle social sobre as classes despossuídas e sobre as minorias
étnicas, o espetáculo da segurança torna-se um fenômeno midiático e que pode render enormes
dividendos políticos:
A encenação de “Segurança” (securité, Sicherneit, seguridad) — doravante
construída em sua estreita acepção criminal, segundo a qual o crime enquanto tal foi
reduzido à simples delinqüência de rua, isto é, às torpezas das classes populares —
tem por função primeira permitir aos líderes no exercício de seus cargos ou
aspirantes a eles reafirmar, a um baixo custo, a capacidade de o Estado agir
precisamente no momento em que, abraçando os dogmas do neoliberalismo, eles
pregam, unanimemente, sua impotência em matéria econômica e social. A
canonização do “direito à segurança” é o correlato — e o tapa-sexo — do abandono
do direito ao trabalho... 28

Wacquant destaca também que a criminalidade constituiu um novo consenso entre direita e
esquerda na França e entre Republicanos e Democratas nos Estados Unidos. O aspecto
científico do qual se reveste a ideologia criminológica, composto de uma quantidade
infindável de estatística, de (pseudo)especialistas e de técnicas cada vez mais complexas e
apresentações pirotécnicas a respeito de como essas técnicas podem ser aplicadas, aplacando
assim uma suposta onda de insegurança, dão a toda a promoção da política de segurança um ar
de modernidade e de verdade.
Contudo, é importante notar como são políticas as decisões a respeito do encarceramento. O
sociólogo polonês radicado na Inglaterra Zygmunt Bauman, em seu livro Em Busca da
Política 29, logo em seu primeiro capítulo, relata o caso da liberação do pedófilo Sidney Cooke
e a cobertura jornalística do assunto. Para Bauman, a liberação do pedófilo permitia que assim
que se liberasse toda a angústia acumulada pelas incertezas sociais do dia-a-dia, como, por
exemplo, a instabilidade empregatícia. As pessoas podiam, pela primeira vez em algum tempo,

28
WACQUANT, op. cit. p. 405
29
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
expressar sua raiva contra um elemento coletivamente odiado — no caso, Sidney Cook.
Wacquant tem uma longa digressão — ainda em Punir os Pobres — sobre a pedofilia e sua
importância para o sistema penal estadunidense. O interessante, que ambos os autores
apontam, é que a pedofilia, tanto na Inglatera, quanto nos Estados Unidos, bem como em todo
o mundo ocidental, constitui um alvo fácil do medo e do ódio coletivo. Assim, como aponta
Bauman, a perseguição e a vigilância a pedófilos constroem uma possibilidade de vida
coletiva — mesmo que baseada em um medo mal canalizado e na criação de bodes
expiatórios.
Bauman avança em sua análise mostrando que se tornou, portanto, de suma importância para
políticos ingleses — e essa preocupação não é exclusiva de políticos desse país, mas de muitos
outros — sustentar um discurso rigoroso contra a criminalidade; os dividendos eleitorais são
significativos e a renúncia a esse discurso pode custar àquele que renuncia a perda de uma
eleição.
O que Bauman demonstra com clareza nessa passagem é que, grosso modo, inexistem hoje
causas que consigam efetivamente servir para a agregação coletiva. Nesse sentido, o crime, ou
melhor, a perseguição aos criminosos, serve como ponto de convergência, ao menos para parte
da população. Para Bauman, “sempre que a discórdia [é] disseminada, sem alvo definido (...) o
único avanço ou recuo possível rumo à solidariedade (...) é escolher um inimigo comum e unir
forças num ato de atrocidade comunitária contra um alvo comum” 30. Assim, o alvo é o que
une; e os sentimentos dessa união são sempre o medo, a suspeita e o ódio.
Talvez quem melhor tenha definido historicamente ao longo do tempo a construção desses
alvos, que ele nomeia de inimigos, seja o jurista argentino E. Raúl Zaffaroni. Em seu livro, O
Inimigo no Direito Penal 31, Zaffaroni faz uma digressão histórica a respeito da construção do
inimigo. Na introdução da obra, Zaffaroni delimita quatro hipóteses que ele defenderá ao
longo da obra, a saber: a) o poder punitivo tende a classificar um certo número de indivíduos
como inimigos, sendo essa uma categoria abaixo da categoria de pessoa; b) esses inimigos são
assim classificados tanto de fato como de direito; c) o inimigo é uma categoria própria do

30
BAUMAN, op. cit. p. 23
31
ZAFFARONI, Eugénio Raúl. O inimigo no direito penal. Pensamento criminológico, 14. Rio de Janeiro:
Revan, 2007.
Estado absoluto e incompatível com o Estado de direito 32; e, d) o direito penal deve limitar ou
reduzir o Estado absoluto, impedindo que o Estado de direito desapareça.
Em um diagnóstico da situação atual, Zaffaroni verifica o crescimento do poder punitivo, de
situações de emergência que se prolongam por tempo indeterminado, prorrogando situações
do Estado de exceção. Obedece-se a uma lógica de medo, como já havíamos ressaltado,
utilizando Bauman, e cancela-se a exigência de lesividade, ou seja, cria-se uma idéia de perigo
sem perigo ou de periculosidade presumida.
Encontramos, de muitos modos, um Estado que pouco pode fazer. O capital se libera dos
controles estatais e encontra-se livre de todas as formas de domesticação anteriormente
aplicadas, defrontando-se com muito poucos obstáculos à sua acumulação. O Estado
“neoliberal” é limitado e uma das poucas coisas sobre a qual ainda tem controle — embora
não absoluto — é a produção e a perseguição de inimigos, que se torna bandeira eleitoral
importante e decisiva em muitos países. Para Zaffaroni, acompanha essa situação a
comunicação völkisch (ou popularesca), que se pauta por fazer surgir na população reações
fortes baseadas nos preconceitos mais brutais, fortalecendo a criação e a perseguição de
inimigos.
A qualificação como inimigo ou ente daninho ou perigoso pode ser entendida na perda
qualitativa — e não quantitativa — de direitos, ou seja, no tratamento de indivíduos como não
pessoas. Zaffaroni aponta que a priorização da segurança como valor social nos levaria, em
última instância, à robotização, ou seja, a criação de seres humanos completamente
previsíveis. Se desconfiarmos da impossibilidade dessa linha de raciocínio, em consonância
com os autores supracitados, tenderemos a pensar que a idéia de segurança está relacionada
com outros fatores que não a segurança em si, mas ao controle social.
Em uma análise mais histórica, Zaffaroni mostra que a idéia de inimigo é pré-Moderna,
remontando a Roma da antiguidade clássica. Para ele, trata-se de ressignificações do conceito
jurídico de hostis do direito romano. O inimigo era em geral o estranho — hostis alienígena –,
o estrangeiro. Por outro lado, o Senado tinha o poder de declarar inimigos — hostis judicatus
— significando a perda de cidadania por parte de quem é assim declarado. Um ponto
importante de ser enfatizado é que não é o hostis que se declara como tal, ele como tal é
declarado pelo soberano. Nesse sentido, trata-se de uma declaração subjetiva, alimentada pelo
32
O Estado burguês, como foi sendo significado ao longo da história, foi sempre o conflito entre Estado de
Direito e Estado de polícia. Essa é uma contradição inerente.
medo que a incerteza sobre as ações dos seres humanos — em especial, devemos ressaltar
àqueles oprimidos e explorados, com maiores motivos para estarem descontentes com a ordem
vigente.
O retorno ao poder punitivo no final da Idade Média significava que o poder público iria se
apropriar do conflito, principalmente do lugar da vítima. O poder público assim tem poder de
decisão sobre o conflito e pode arbitrar a respeito de quem é perigoso e de quem não é. Pode-
se criar uma repressão penal plural, que elimina os dissidentes e autores de delitos graves,
neutraliza — ou pela própria eliminação, ou pela condenação a trabalhos forçados, ou ainda
pela incorporação ao exército — os indesejáveis — membros das classes exploradas que se
destacam pela indisciplina — e conseguem tratar como iguais os ocasionais, isto é, aqueles
que cometeram um delito leve e que pertencem às classes “invulneráveis”. A idéia de inimigo
permite essa separação, permitindo diferenciar entre infrator comum ou ocasional e o infrator
perigoso.
Assim, como o poder público substituiu Deus, entre os medievais, e assumiu o papel de punir
os pecadores, ele passa a poder definir entre bem e mal. Quando o Estado torna-se laico, há
um ressignificação e o conhecimento torna-se o bem e a ignorância o mal. Nesse sentido, todo
o aparato (pseudo)científico que Wacquant aponta é necessário para a legitimidade da
perseguição aos inimigos.
Uma das últimas mudanças históricas significativas apontadas por Zaffaroni talvez consista na
complementaridade entre cárcere e fábrica, que as revoluções burguesas impetram. Os
burgueses colocam-se a priori contra o poder absoluto, que os oprimia. Surge, portanto, na
escola clássica ideais como a proporcionalidade da pena e os direitos do homem. A prisão,
assim, toma o lugar da forca e são lançadas as possibilidade de contenção do Estado absoluto.
Aos burgueses cabia — e ainda cabe — a criação de um modelo que possibilitasse a disciplina
capitalista, não podendo, portanto, abrir-se mão de todas as possibilidades do Estado de
polícia. A idéia de inimigo e de periculosidade continua, logo, a resgatá-lo, abrindo espaço
para um poder punitivo que tende a não respeitar qualquer limite. Formaram-se dessa maneira
as relações básicas do poder punitivo, ao serem ressignificadas ao longo da modernidade.
Por um grande período que se estendeu até muito recentemente, aponta Zaffaroni, o comunista
foi o inimigo que serviu de justificativa para as medidas repressivas do Estado de polícia.
Tratava-se de um inimigo que poderia ser encontrado tanto interna, quanto externamente,
permitindo manter altos níveis de repressão. Com o fim da guerra fria e a queda do bloco
soviético, o inimigo tem de ser ressignificado para que se mantenham os índices de repressão.
Para Zaffaroni, constroem-se desse modo novos estereótipos: “o traficante era um agente que
pretendia debilitar a sociedade ocidental, o jovem que fumava maconha era o subversivo,
33
guerrilheiros eram confundidos e identificados a narcotraficantes.” Dessa forma, a droga
está para o ordenamento jurídico atual como o pecado estava para o direito canônico.
Zaffaroni indica, contudo, que a repressão não consegue, porém, refrear o uso das drogas.
Zaffaroni faz uma análise sobre a situação do conceito de inimigo pelo mundo, que nos
permite chegar a seu conceito de autoritarismo cool. Desde a década de 1980, nos EUA, a
criação do inimigo tem sido uma preocupação entre os políticos. Idéias difusas, mas confusas
como “crime organizado” ou “corrupção” foram utilizadas como norte para a criação de
inimigos, na busca de preencher o vazio que a URSS deixou.
O inimigo constitui uma categoria de periculosidade presumida — lembre-se que o inimigo
não se autodeclara, mas é declarado enquanto tal pelo Estado. Na América Latina, três quartos
dos presos ainda não foram condenados. Estão presos por medidas cautelares, segundo a
presunção de sua periculosidade. O indivíduo encontra-se preso por ser suspeito de um fato
consumado. O crime ocorreu, mas quem está preso, em três quartos dos casos, não é o
condenado por ele e sim o acusado ou suspeito. Os corpos policiais, demonstra o autor, são
bastante problemáticos, lidando com graves problemas de corrupção, com o fato de não
poderem se sindicalizar e de que, em muitos lugares, como no Brasil, estão militarizados.
Atualmente, contudo, não se pode mais criar inimigos baseados exclusivamente em questões
de gêneros, como as bruxas, ou em questões étnicas, como os judeus na Alemanha nazista, e a
velocidade das comunicações exige coisas novas constantemente, criando, nesse aspecto, uma
necessidade constante de bodes expiatórios, dentro de um aparato publicitário völkisch que se
move quase que por si mesmo. Logo, cria-se o que Zaffaroni denominou de autoritarismo
cool, baseado em convicções passageiras, modistas. Cria-se a ilusão de que se obterá mais
segurança urbana com o aumento do rigor da legislação penal, legitimando a violência policial
e procura-se um inimigo que não se define exatamente quem seria — embora, como apontou
Wacquant, ele tenha cor e classe bem definida.

33
ZAFFARONI, op. cit. p. 51
O autoritarismo cool tem o que Zaffaroni chama de opacidade de perversão; uma perversão
sem brilho, sem convicção, um discurso meramente publicitário, sem qualquer inspiração
acadêmica, nem a mais superficial, repleto de irracionalidade. “É uma guerra sem inimigo
definido; o único inimigo que invariavelmente reconhece é o mesmo de todo autoritarismo:
quem confronta seu discurso”. 34 Logo, trata-se de um vazio de pensamento, reflexo da
condição atual do Estado moderno, que, enfraquecido e incapaz de resolver problemas sérios
da situação social, optam por fingir que conhecem a solução e a elencar inimigos.
Pode-se, assim criar um grande movimento de deslegitimação dos direitos, especialmente se
não há um meio claro de identificação daqueles declarados como inimigos.
Quando os destinatários do tratamento diferenciado (os inimigos) são seres humanos
não claramente identificáveis ab initio (um grupo com características físicas, étnicas
ou culturais bem diferentes), e sim pessoas misturadas ao e confundidas com o resto
da população e que só uma investigação policial ou judicial pode identificar,
perguntar por um tratamento diferenciado para eles imporá interrogar-se a cerca da
possibilidade de que o Estado de direito possa limitar as garantias e as liberdades
de todos os cidadãos com o objetivo de identificar e conter os inimigos. 35

Todos podem ser o inimigo, o que leva à necessidade de se exercer um controle social
autoritário sobre toda a população, o que incorre em uma limitação generalizada da liberdade e
na prisão de inocentes. Criam-se expedientes que as forças policiais poderão utilizar
corriqueiramente, seja para crimes “comuns”, seja para vinganças pessoais, e aumenta-se a
chance de tortura. Busca-se um eficientismo penal que não se cumpre.
Podemos entender melhor essa relação de formação do inimigo quando novamente retomamos
a relação entre exclusão social e insegurança. Retomando o pensamento de Zygmunt Bauman,
agora em outra de suas obras — Vidas Desperdiçadas 36 — quando o autor apresenta o
conceito de refugo humano. Trata-se de uma população, atualmente, cada vez mais numerosa,
de excessivos ou redundantes, ou seja, de “seres humanos destituídos de formas e meios de
sobrevivência”. 37 A nova construção da ordem e o progresso econômico, movido pela
reflexividade dos projetos atuais, apresentam a novidade surgindo e ressurgindo
constantemente, desabilitando modos de “ganhar a vida”.
Para Bauman, anteriormente a modernidade ainda se espalhava pelo planeta, com áreas
inatingidas por ela, dadas como territórios em branco, como se nada existisse por lá. Contudo,
34
Ibid. p. 78
35
Ibid. p. 117
36
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
37
Ibid., p. 14
a modernidade se expandiu de tal forma que se tornou plena, ou seja, dominou todos os cantos
do planeta. Dessa forma, o refugo humano produzido pelos projetos modernos, antes escoado
para áreas que ainda não haviam sido dominadas pela modernidade, atualmente não tem mais
onde ser depositado. “Para resumir uma longa história: a nova plenitude do planeta significa,
essencialmente, uma crise aguda da indústria de remoção do refugo”. 38
Surgem assim, para ele, enormes temores relacionados à segurança, que servem como
escoadores da ansiedade individual, o que realimenta a produção do refugo humano. Bauman
aponta que existe entre os jovens hoje uma noção de redundância, muito mais forte do que a
noção de desemprego. A redundância é uma sensação de que se é extranumerário, assim,
perde-se a razão para se reivindicar a existência. O refugo, assim, não será reaproveitado e
sequer serve como reserva.
Assim, todo a classe pobre é dada — como já apontamos anteriormente discorrendo sobre o
estudo de Wacquant — como objeto de uma ajuda imerecida, suspeito de intenções
criminosas. O refugo perdeu seu lugar na sociedade, trata-se de um consumidor falho que vive
em meio a uma sociedade de consumo. A sociedade, hoje, modifica-se com tanta rapidez, que
os indivíduos vivem regras imprecisas e inconfiáveis no longo prazo. O progresso, apregoado
como a capacidade de acomodar mais pessoas, na realidade, tem sempre a necessidade de
menos.
A modernidade é, para Bauman, a transformação do mundo, isto é, a refutação do que é em
nome daquilo que poderia ser. Citando Michelangelo, que afirmava que as esculturas já
estavam prontas dentro dos blocos de mármore e cabia ao escultor apenas retirar o excesso,
Bauman apresenta a separação e destruição do supérfluo como o grande segredo comercial da
modernidade. Como, na modernidade, a produção de projetos é permanente, também o é a
produção de refugo; e quando se tratam de projetos sociais, o refugo, muitas vezes, são seres
humanos.
Nesse aspecto, as pessoas incluídas começam a pensar como se diferenciar, como estabelecer
marcas distintivas entre o refugo humano e “elas”. O Estado de Bem-Estar Social era uma
forma de reduzir incerteza, o compromisso de que os despossuídos e vulneráveis seriam
supridos em suas necessidades. Hoje, esse compromisso vem se perdendo, mesmo em países
onde o Estado de Bem-Estar Social era muito forte. Hoje, os indivíduos são obrigados a tentar

38
Ibid. p. 13
descobrir soluções biográficas para problemas sistêmicos; em outras palavras, a pobreza é um
problema exclusivamente individual.
O Estado hoje “deve procurar outras variáveis, não econômicas de vulnerabilidade e incerteza
em que possa basear sua legitimidade”. 39 Nesse aspecto, os mecanismos de criminalização do
refugo, através da construção de inimigos, servem para conferir legitimidade ao Estado. O
Estado, nesse aspecto, serve para pôr a marca distintiva entre incluídos e refugos.
Se Wacquant apontava para a desregulamentação do trabalho, Bauman aponta para a sua
desnecessidade. Não podemos passar despercebidos por essa diferença teórica entre os dois
autores. Wacquant e Bauman apresentam uma divergência teórica forte nesse aspecto. Para
Wacquant, a hipertrofia do Estado punitivo, simultânea e complementar, a atrofia do Estado
caritativo, nos EUA, e social, na Europa, foi um exercício de governo no sentido de criar as
mudanças econômicas que se pretendia. Segundo ele, “o crescimento e a glorificação
crescentes do aparato penal (...), o encolhimento da assistência social e sua conversão
paternalista no workfare nos Estados Unidos não é tanto uma resposta às mudanças
econômicas quanto um exercício de governo, voltado para produção dessas mudanças...” 40 Por
outro lado, para Bauman a existência do refugo humano é fruto dos inúmeros projetos que a
modernidade produz sem cessar, em sua rotineira reflexividade. Logo, para ele, as mudanças
são respostas dos Estados que não mais consegue ter controle sobre a produção incessante de
projetos e, conseqüentemente, de refugo humano. Isso não significa que Wacquant ignore os
aspectos econômicos, nem que Bauman seja um economicista. O que pretendemos apontar
aqui é que, devido a uma divergência teórica, aquilo que Wacquant aponta como
subproletariado, submetido a condições ultrajantes de trabalho e assalariamento, para Bauman
é dado como refugo humano, completamente supérfluo aos meios de produção atuais. Em
ambos os casos, a resposta estatal que os autores apontam é a mesma: um Estado que trata a
pobreza através de seu sistema de pena e de segurança. Assim, reforça-se a fronteira entre os
“de dentro” e os “de fora”.
Talvez um autor que nos permite apreciar a questão de uma forma diferenciada é o italiano
Alessandro De Giorgi. De Giorgi mostra como um programa como o Tolerância Zero nova-
iorquino encontra-se em meio ao abandono do modelo disciplinar clássico do capitalismo, em
meio a queda do Estado de Bem-Estar Social. Se antes podíamos pensar em separar, através
39
Ibid. p. 68
40
WACQUANT, op. cit., p. 184
do controle social, laboriosos e supérfluos, devido à precarização do emprego e a superposição
entre economia legal e economia ilegal/informal, a distinção entre as classes laboriosas e as
classes perigosas torna-se impossível. Deste modo, é preciso “neutralizar a ‘periculosidade’
das classes perigosas através de técnicas de prevenção de risco, que se articulam
principalmente sob as formas de vigilância, segregação urbana e contenção carcerária” 41.
O novo encarceramento define um espaço de contenção de excedentes. Antes e mais do que
uma morte biológica, estamos falando de uma morte biográfica, de uma ausência de vida a ser
vivida. A prisão, que para ele antes era subalterna à fábrica, fazia parte de um modelo de
controle social da sociedade disciplinar, que ruiu no final do século XX. Contudo, De Giorgi
busca entender como se dão as mudanças nas formas de controle com o advento do pós-
fordismo; a multidão pós-fordista pede um modelo do governo do excesso, o que envolve a
preocupação atual das estratégias de controle social.
É preciso que se diga que quando pensa em “pós-fordismo”, o autor está trabalhando entre “o
que não é mais” e “o que ainda não é”, ou seja, manipula mais com tendências do que
propriamente com realidades firmemente consolidadas. Fica claro, contudo, que mudanças
ocorreram: o modelo de produção fordista esgotou-se, a fábrica taylorista conhece seu fim, e o
Estado de Bem-Estar Social sofre uma revisão; o que resulta numa queda nos padrões
salariais. O capital se torna definitivamente e irremediavelmente global.
Dentro dessa conjuntura, De Giorgi destaca dois aspectos: a progressiva redução do nível de
emprego, ou seja, a drástica diminuição da demanda por trabalho vivo; bem como as
mudanças qualitativas sobre a força de trabalho e a forma como ela é explorada. Vejamos que,
para ele, convivem simultaneamente a menor necessidade por mão-de-obra, quantitativamente,
e a criação de um trabalho atípico e ocasional, fragmentário e urgente. A falta de emprego não
necessariamente significa a falta de trabalho, mas aponta para um trabalho sem garantias. Se o
desemprego deixa de ser automaticamente associado à inatividade, a ausência de emprego leva
a erodir as formas de cidadania consolidadas nas décadas de 50, 60 e 70 do século XX, que
estavam atreladas a ele; contudo, o trabalho continua se estendendo, progressivamente, para
todas as atividades do cotidiano.
Constitui-se assim um regime de excesso, sendo que “excesso significa, nesse sentido, que a
dinâmica produtiva contemporânea excede continuamente os dispositivos institucionais de
41
De GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Trad. Sérgio Lamarão. Coleção
Pensamento Criminológico, nº 11. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia 2006. p. 28
atribuição, reconhecimento e garantia da cidadania social”. 42 Trata-se de uma inadequação da
garantia de se incluir através do trabalho.
Dentro da perspectiva levantada por Antonio Negri, De Giorgi afirma que o Estado de Bem-
Estar Social tinha uma lógica disciplinar: controle dos trabalhadores e amparo ao excedente de
mão-de-obra. Porém, esses dispositivos caem por terra: “é o capital que se mostra carente com
relação a uma força de trabalho tornada flexível, nômade, móvel: a multidão.” 43 A multidão
nega o domínio do capital e a opressão atual é a negação da negação do domínio do capital.
Observe-se, portanto, que para De Giorgi, ao contrário dos demais autores supracitados, quem
se libertou foi o trabalhador e a repressão atual é uma tentativa de novamente controlá-lo.
O trabalho torna-se cada vez mais cognitivo e imaterial e se apresenta enquanto performance
comunicativa; ocorre uma diminuição da separação entre o processo de criação e a execução
de tarefas e a comunicação se torna mercadoria. O trabalho coloca-se para além da instituição
fechada e torna-se problemática a separação entre tempo de trabalho e tempo de não-trabalho.
A vida inteira se submete ao trabalho, porque o trabalho se encontra em atividades humanas
básicas e cotidianas, como pensar e se comunicar. Uma disciplina que propague a repetição e a
rigidez do método é completamente infrutífera perante esse tipo de trabalho. 44
Surge então uma cooperação comunicativa entre a classe trabalhadora que se opõe ao domínio
do capital. Tal domínio se exerce principalmente a posteriori, não se envolvendo propriamente
na organização do trabalho, mas se colocando como pura expropriação. Assim, trata-se de
uma força que se coloca externamente às formas produtivas: ela é mais puramente política do
que econômica, é uma relação de puro comando. O capital tenta controlar o excesso, que se
constitui, por um lado, num excesso positivo: é o excesso de relações de cooperação e de
potencialidades produtivas das quais ele pretende se apropriar. Existe também um excesso
negativo, ou seja, a quantidade de pessoas em dificuldade de vender a própria força de
trabalho. O controle, portanto, tende a conter a contradição da falta de emprego e cidadania,
ou seja, a contradição que é atrelar a busca pela cidadania a uma forma material que
progressivamente desaparece. Ao mesmo tempo, é um controle do excesso positivo, na

42
Ibidem, p. 69
43
Ibidem, p. 70
44
Aqui é preciso que se ressalte o aspecto tendencial dessa proposição. Ainda há muita produção industrial,
rígida e repetitiva e não se tem certa de fato se ela um dia desaparecerá por completo. O esforço de De Giorgi,
juntamente com os demais pensadores de matriz negriana, é um esforço de imaginação sobre quais os rumos do
desenvolvimento capitalista em muitos casos; e De Giorgi deixa isso claro.
possibilidade de o potencial produtivo se opor ao domínio capitalista. É um domínio do não-
saber.
Em que pese que nos pareça pouco razoável — apesar de não descartarmos de todo a
possibilidade — que se pense que a classe operária teve a primazia sobre iniciativa para as
mudanças que conformam o capitalismo tardio, que tem resultado de mais a mais em
capacidades constantes de acumulação de capital e desigualdade social, ao mesmo tempo em
que submetem todos os aspectos da vida à produção de valor, é interessante notar como De
Giorgi define o controle do excesso como um exercício em não-saber. Como os demais
autores, acredita que esse controle em nada tem a ver com a criminalidade, seu aumento ou
seu combate. Não é o crime, é o risco; trata-se de uma gestão do excesso. O cárcere não mais
disciplina, nem reinsere de forma alguma, ele administra periculosidade, contém risco e evita
o surgimento de cooperação entre a multidão.
As determinações peculiares do sujeito, que as tecnologias disciplinares pretendiam
misturar, dobrar e transformar, são substituídas por agregados estatísticos que
oferecem às agências de repressão a nova linha-guia para a seleção de população
carcerária. (...) Cada vez mais estranha à complexidade do real e incapaz de penetrar
a matéria sobre a qual exerce o domínio, ela substitui a regulação das forças sobre as
quais se desenvolve pela redução ao mínimo das potencialidades que não controla. 45

É um controle externo puro, que perdeu a capacidade de disciplinar e a capacidade de ser útil
ao capitalismo. Ele apenas reduz risco, combate uma periculosidade que não sabe qual é. Seu
objetivo é impedir a articulação da multidão, separando artificialmente excesso negativo e
excesso positivo. Está-se, para De Giorgi, diante de uma busca desesperada por vigilância total
na busca por uma destruição de subjetividades potencialmente perigosas.
As quatro visões contemporâneas em criminologia crítica que apresentamos nos dão idéia de
como se situa o debate, sem ter a menor intenção de esgotá-lo, nem de apresentá-lo em sua
totalidade. Seria por demais pretensioso para nossos propósitos aqui apresentar uma visão
própria; e acreditamos que elas apresentam contradições inconciliáveis entre si, se forem
tomadas no todo. Contudo, confiamos que todas têm um potencial explicativo da realidade sob
diferentes aspectos: seja a criação do subproletariado exposta por Wacquant, a construção do
refugo humano de Bauman, e nomeação de inimigos de Zaffaroni ou o controle do excesso de
De Giorgi. Todas nos mostram que no capitalismo tardio contemporâneo, mais do que nunca,

45
Ibidem, p. 99
a miséria é governada pelo sistema penal, com destaque maior sobre aquilo que o miserável
poderia fazer, e não sobre o que ele fez.

1.3 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA NA EXPLICAÇÃO DO BRASIL


O Brasil tem suas peculiaridades. Para Raúl Zaffaroni, como escrevemos desde uma margem
do capitalismo — o que para nós significa inscrevermos nossos problemas dentro de uma
ciência criada na Europa — para explicar a nossa realidade, estamos praticando um realismo
marginal 46. Explicar, nesse sentido, o caso brasileiro é tentar ver quais são as aplicações
possíveis dessa ciência a nossos fenômenos.
Requer-se, contudo, que sejamos enfáticos em alguns casos, nos quais a teoria nos serve de
pouca coisa, ou que exige que se pense de forma diferenciada, mesmo que para isso seja
preciso criar novos marcos teóricos. Fazemos esse pequeno alerta metodológico para
podermos dizer que nenhuma teoria que não leve em conta uma brutal desqualificação do
réu, a tal ponto que ele seja torturado ou morto sem que isso cause qualquer alarde social,
dará conta de explicar a questão criminal brasileira em sua totalidade.
Os europeus conseguiram fazer formulações nesse sentido principalmente quando trataram do
nazi-facismo da primeira metade do século XX. Dentre os europeus que escreveram sobre o
assunto, novamente precisamos tratar do francês Michel Foucault e de seu conceito de
Biopoder.
Em sua aula de 17 de Março de 1976 47, em que define o biopoder, Foucault começa por
apresentar que o conceito de raça continua sendo muito presente na constituição do Estado
moderno. Para ele, a vida é assumida pelo poder, é uma tomada de poder sobre o homem
enquanto ser vivo — a estatização do biológico. O direito sobre vida e morte acompanha a
teoria política: indivíduos entregam o direito à vida ao soberano, justamente para preservá-la.
Nos séculos XVII e XVIII, surgem técnicas de poder centradas nos corpos: organizam a
distribuição dos corpos no espaço, bem como sua visibilidade, tornam os corpos úteis,
buscando técnicas econômicas menos onerosas mediante a vigilância. É a tecnologia
disciplinar do trabalho, descrita com detalhes em Vigiar e Punir. 48.

46
ZAFFARONI, E. R. Criminologia: aproximación desde un margen. Bogotá: Temis, 1988.
47
FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de Março de 1976. In . Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. pp. 285-315.
48
Cf. 1.1
Ainda no século XVIII, surge uma outra técnica de poder que se utiliza dos dispositivos
disciplinares prévios, ou seja, não suprime a técnica disciplinar, posto que é de outro nível: se
aplica à vida dos homens, ao homem ser vivo, ao homem espécie. Surge, após a primeira
tomada de poder (disciplinar/individualizante), uma segunda tomada, massificante: a
biopolítica da espécie humana. No século XIX, surge um direito de fazer viver e de deixar
morrer.
É um aprendizado em higiene, uma medicalização da população, uma preocupação com os
seres humanos enquanto espécie; com seu meio ambiente, sua ocupação geográfica:
essencialmente, é o problema da cidade (ou a cidade enquanto problema). Surge como
personagem a noção de “população” e a população como problema político. Trata-se de
problemas que são impossíveis de ser atacados nos indivíduos, mas que podem ser encarados
coletivamente: é o reino das estatísticas, de tentar criar previdência contra o aleatório.
Seus objetivos são processos de natalidade, mortalidade e longevidade; trata as endemias, isto
é, “a natureza, a extensão, a duração a intensidade das doenças reinantes numa população” 49
Para tanto, se estabelece a regulamentação dos processos biológicos e não tanto sua disciplina,
posto que não se trata de considerar o indivíduo em seus detalhes. Destarte, o poder passa mais
a fazer viver a fazer morrer: ele aumenta a vida, controla seus acidentes. A disciplina é
centrada no corpo, enquanto a biopolítica é centrada na vida; ambas são reconfigurações do
poder soberano, um para dar conta do detalhe e outra para dar conta da massa,
respectivamente. A disciplina está a cargo das instituições, enquanto a biopolítica está a cargo
dos regulamentos. A norma vai ser um elemento de articulação entre técnicas disciplinares e
técnicas regulamentares. A essa articulação Foucault dá o nome de biopoder.
Numa realidade controlada pelo biopoder, o racismo exerce uma função importante: “como
exercer o poder da morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no
biopoder [que faz viver]? É aí, creio eu, que intervém o racismo”. 50 O racismo introduz o corte
entre o que deve viver e o que deve morrer, separando raças consideradas inferiores e raças
consideradas superiores. A cesura criada pelo racismo leva a pensar que a morte dos inferiores
serve ao melhoramento da espécie. “A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar
a vida numa sociedade de normalização.” 51

49
FOUCAULT, Michel. op. cit. p. 290
50
Ibidem, p. 304
51
Ibidem, p. 306
Foucault aponta que o racismo é plenamente desenvolvido com a colonização européia sobre a
América, que quanto mais assassino o Estado, mais racista ele deve ser. Em nossa realidade de
ex-colônia portuguesa, que se valeu largamente da escravidão africana como mão-de-obra
básica até o final do século XIX, a questão é bastante anterior à modernidade, anterior
inclusive a inculcação da disciplina para o trabalho; há, assim, um contingente populacional
afro-brasileiro pobre de enorme monta, e não é difícil associar as idéias do biopoder e da
influência do racismo sobre ele para explicar nossa realidade, especialmente se acoplarmos a
esse modelo a desqualificação que o processo de criminalização realiza, porque a polícia
fluminense mata em média mais de 100 pessoas por mês e que a maior parte dos indivíduos
não se escandaliza, nem se indigna com o fato.
Outro autor que nos interessa aqui é Giorgio Agamben, autor de Homo Sacer 52 e de Estado de
Exceção 53, entre outras obras, que utiliza em seus escritos o conceito de biopoder
foucaultiano. Na obra de Agamben, há uma importante separação entre “Povo” e “povo”, que
embora não seja proeminente na obra do autor, nos é de suma importância para relacionar o
pensamento dele com a exclusão social, e sua relação com mecanismos de criminalização,
sobre a qual estamos aqui discorrendo. Como o conceito de “Povo” e a distinção entre “povo”
e “Povo”, apresentados entre as páginas 183 e 186 de Homo Sacer, não são os principais
pontos da obra de Giorgio Agamben. Precisamos, portanto, fazer uma análise de outras de
suas idéias, que nos permitam a chegar ao ponto mencionado.
Em Homo Sacer, o primeiro resgate histórico que o autor faz é estabelecer a distinção, nas
formas de pensar da antiguidade clássica na Grécia, entre bíos e zoé. As duas palavras
apresentam sentido distinto para aquilo que a modernidade atribui unicamente à palavra
“vida”. Zoé era a vida enquanto tal, a qual é passível de ter também as plantas e os animais,
bíos, por outro lado, era a vida qualificada politicamente, que possuíam os cidadãos.
Agamben sustenta que, apesar de ter acabado a distinção vocabular, as idéias ainda são
separáveis posteriormente, tanto pela política do império romano, como pela modernidade,
embora de formas distintas. Em Roma, Agamben resgata o conceito jurídico que dá nome essa
obra — Homo Sacer. O homo sacer é um status do indivíduo que permita que ele seja
matável, — sem que o ato de sua morte seja considerado assassinato — porém insacrificável.
A vida que, por exemplo, foi oferecida aos deuses, mas que, por algum acidente de percurso
52
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
53
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
não cessou, qualifica o Homo Sacer. De fato, constitui-se, nesse caso, uma morte jurídica; em
termos da antiguidade grega, a bíos deixa de existir e o indivíduo é pura zoé. Para exemplificar
com um caso moderno, Agamben traz a idéia de morte cerebral, o indivíduo que, em algumas
legislações, morre juridicamente, apesar de continuar respirando e se alimentando. É um
exemplo claro do que ele chama de vida que não merece viver.
Diferentemente do conceito que Zaffaroni nos apresenta de hostis, aquele que é o inimigo
declarado pelo Estado, o Homo Sacer apresenta um status ainda mais falho, trata-se de uma
vida que não merece ser vivida. Como estamos pensando, em ambos os casos, de exercícios do
Estado, é preciso entender como se podia exercer as práticas de sacralização da vida, valendo-
nos do conceito de exceção soberana.
A exceção soberana é uma zona de indiferenciação entre a natureza e o direito. Para as formas
jurídicas, a exceção soberana pertence sem estar incluída, ou seja, não pode ser representada,
só podendo ser incluída na forma de exceção. Para Agamben, a exceção é fundamental ao
ordenamento jurídico, ou melhor, a exceção é fundamental para a soberania, que é
fundamental para a formação do ordenamento jurídico. A exceção, portanto, é elemento
central do direito.
Agamben define soberania e vida sacra (própria dos homini sacri) em uma relação de
oposição. Segundo ele, “soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e
sem celebrar sacrifício, e sacra, isto é, matavél e insacrificável, é a vida que foi capturada
nessa esfera.” 54
Em Estado de Exceção, Agamben vai dar prosseguimento às suas considerações sobre o tema
do estado de exceção. Continuando a relação entre um estado de exceção que pertence porém
não está incluído no ordenamento jurídico, Agamben constata que o estado de exceção é uma
prerrogativa lançada à mão por estados modernos democráticos e não pelos absolutistas. São
medidas que os governos democráticos adotam devido a necessidades, seja de guerra, seja
uma catástrofe natural, seja uma necessidade política. Com o passar do tempo, torna-se muito
mais uma técnica política do que uma medida que indique excepcionalidade.
No estado de exceção da modernidade, o poder executivo concentra todos os poderes, legisla e
julga, em nome da necessidade, ganha controle de toda a situação. O estado de exceção é, em
nosso ver, interpretando a teoria de Agamben, a forma como os estados modernos

54
AGAMBEN, Homo Sacer, p. 91
democráticos se relacionam com a exceção soberana, ou seja, é fundamental ao ordenamento
jurídico, embora não se encontre representado nele. É somente dessa forma que a democracia
pode se manter e o regime pode se afirmar e se perpetuar.
Agamben, em Homo Sacer, discute a idéia da inclusão da vida nua nos ordenamentos jurídicos
que, para ele, se dá com a declaração dos direitos do homem e do cidadão, pela revolução
burguesa na França no século XVIII. Nas palavras do próprio autor:
Se algo caracteriza, portanto, a democracia moderna em relação à clássica, é que ela
se apresenta desde o início como uma reivindicação da zoé, que ela procura
constantemente transformar a mesma vida nua em forma de vida e de encontrar, por
assim dizer, o bíos da zoé. 55

Nesse sentido, a declaração dos direitos do homem e do cidadão é um marco diferencial.


Passam a haver, para além dos direitos do cidadão enquanto ente político, mas também
englobam o homem enquanto tal. É a inserção da vida nua na política.
O conceito de vida sacra e de soberania que Agamben constrói a partir de sua pesquisa
histórico-filosófica, permite em larga medida pensar também — e Agamben não se furta de
fazê-lo — em que medida a vida sacra se apresenta na modernidade. Dessa forma, Agamben
permite uma ferramenta teórica de análise da realidade, trazendo a luz algumas questões: tais
como quais são as vidas que se encontram enquanto sacras em determinada sociedade e em
determinado contexto histórico ou como a soberania do estado democrático se coloca perante
a essas questões e, também, como as técnicas de estado de exceção são utilizadas
politicamente na modernidade, para ficarmos numa questão mais atual.
A necessidade, presente como justificativa ao estado de exceção, permite, como mostra
Agamben em Estado de Exceção, uma idéia de estado de exceção que não se desfaz; em larga
medida, estável. A idéia de segurança — ou mais precisamente, de insegurança — por
exemplo, permite que os inúmeros estados de alerta em que o governo de George W. Bush
(2001- dias atuais) mantenha nos Estados Unidos da América um estado de exceção quase que
permanente, para usarmos um exemplo do próprio Agamben. Para trazermos um exemplo
nosso, poderíamos citar todo o “estresse de guerra” repetidamente enfatizado pelo governador
do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho.
Mas há ainda de se elucidar melhor algumas premissas da perspectiva de Agamben sobre o
estado moderno que, segunda a nossa interpretação, são importantes para a compreensão da

55
ibidem, p. 17
relação entre cidadania e vida nua atualmente. No estado moderno, o nascimento marca a
entrada da vida (nua) na esfera da soberania. Como já dissemos acima, Agamben marca com a
declaração dos direitos do homem e do cidadão essa passagem e a reforça quando apresenta a
idéia de nação como correlata à de nascimento. Essa relação nos permite pensar nas diversas
relações de refugiados e prisioneiros de campos de concentração. Para Agamben é o campo
(de concentração) e não a cidade que é o paradigma de soberania moderna. Nele, vida nua fica
completamente incluída; no campo vive-se um estado de exceção permanente e generalizado,
desfaz-se completamente a distinção entre direito e fato e a vida é completamente
sacralizada. 56
Somente agora podemos chegar ao conceito que ressaltamos anteriormente e que nos é caro,
porém somente após a discussão de outros aspectos, discutidos acima, que embasam o
momento em que Agamben traz à tona tal conceito. O “povo”, ou melhor, a distinção entre
“Povo” e “povo” nos parece essencial para se entender os modelos de controle na
modernidade.
Agamben sustenta que a idéia de povo, principalmente de povo soberano traz em si uma
contradição. “Um mesmo termo denomina, assim, tanto o sujeito político constitutivo quanto a
classe que, de fato, se não de direito, é excluída da política”. 57 Agamben sustenta que o termo
tem dois significados e que o “povo” carrega a fratura biopolítica fundamental. Para ele, o que
chamamos de povo, portanto, como uma “oscilação dialética”: de um lado o “Povo”, corpo
político integral; de outro, o “povo”, como “multiplicidade fragmentária de corpos carentes e
excluídos”. Porque se é o Povo depositário único da soberania, a miséria do povo torna-se um
motivo de embaraço a ser combatido. Cabe ao Povo cuidar do povo.

Nesse sentido,
o nosso tempo nada mais é que a tentativa — implacável e metódica — de preencher
a fissura que divide o povo, eliminando radicalmente o povo dos excluídos (...) A
obsessão do desenvolvimento é tão eficaz, em nosso tempo, porque coincide com o
projeto biopolítico de produzir um povo sem fratura. 58

Assim, temos em Agamben um outro teórico reafirmando a constatação que apresentamos


aqui, sob diferentes matizes, várias vezes. Formulemo-la conforme nossa interpretação desse
56
Essa idéia nos é fundamental, posto que ela, talvez mais do que qualquer outra, nos permite criar um marco
teórico de análise das favelas brasileiras em correlação com o campo de concentração.
57
ibidem, p. 183.
58
ibidem, p. 185
autor: as decisões a respeito do poder punitivo tratam de como se pode ou como se quer tratar
o problema fundamental de como lidar com a desigualdade material e/ou étnica em uma
sociedade de supostos iguais.
Nessa problemática, a que se perguntar qual é exatamente o papel do Estado e, dentro de uma
sociedade capitalista, o que será feito com os excluídos do mercado de trabalho ou — ainda
antes de chegarmos a esses níveis — como se constituirá tal mercado de trabalho, ou em
outras palavras, como se dará a exploração do homem pelo homem. O combate ao crime é, em
geral, uma estratégia que busca o consenso social em torno de uma coação dirigida
principalmente contra as classes populares. Em regimes democrático-liberais, essa estratégia
se constitui também em um importante fator eleitoral, como já afirmamos anteriormente
citando Wacquant e Bauman 59.
A produção do consenso é importante vetor da criminalização e vamos encontrar em uma
autora brasileira uma análise que nos permite entender essa construção. Analisando a
passagem do modo de produção escravista para o capitalista no Brasil — concomitante com a
passagem da Monarquia para a República –, a historiadora Gizlene Neder mostra como o
processo de criminalização permitia que esse consenso fosse produzido e como que se torna
difícil para os trabalhadores se opor ao dogma da pena em sua totalidade.
Em Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil 60, Neder mostra que nesse período, a
polícia passa a pensar a criminalidade, e, para isso, passa a utilizar recursos técnico-
científicos. Numa análise de conjuntura da história social do direito, a autora desnuda a
relação entre o processo de ideologização que acompanha a construção do mercado de
trabalho e os processos de criminalização. Veja que nosso processo de construção do mercado
de trabalho é bastante diferente do europeu. Entre nós, a escravidão perdurou até o final do
século XIX e nosso mercado de trabalho só vai se construir após a abolição em 1888.
Analisando a conjuntura brasileira, Neder mostra que o setor cafeeiro se torna capitalista, sem
com isso perder o status de tradicional, formando oligarquias. Contudo, a abolição da
escravidão e a imigração subvencionada pedem uma nova política de regulamentação do
trabalho. Dessa maneira, podemos ver como o direito vai ganhando concretude histórica,
compreendendo a relação entre criminalização e disciplina para o trabalho. A criminalização,

59
Cf. 1.2 supra.
60
NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1995.
dessa forma, aparece, também aqui no Brasil, como figura de intimidação das classes
populares.
Os brasileiros se deparavam pela primeira vez com as bases burguesas do controle social,
como a neutralidade do Estado e a “cegueira” da justiça. Era preciso pensar como se
construiria o “nacional”, o que era uma necessidade tanto estrutural — do capitalismo —,
como simbólica — da nova república 61. Nesse período de reorganização nacional, era
necessário, no entanto, atender aos reclames urgentes da opinião pública. Acontecem as
revisões das leis civis e criminais. De pronto, surge um novo Código Penal em 1890, anterior a
Constituição e mais de 25 anos ao novo Código Civil (1916). O Código Penal combate os
“ociosos” e “vagabundos”, de forma a dar vazão ao trabalho. Ideologicamente, contudo, a
justiça ganha contornos de neutralidade, eficácia e universalidade — o que se reflete nos
rituais.
Surge, assim, uma ética do trabalho, que vinha sendo construída nesses discursos jurídicos:
“Assim, trabalho está, dentro deste processo de idealização, relacionado à honestidade, bem-
estar, dignidade, sendo que seu oposto, ociosidade, relaciona-se a afrontamento, corrupção,
depravação, suspeita.” 62 Reforça-se desse modo uma idéia de colméia humana, ou seja, uma
coletividade organizada para o trabalho.
O ponto que aqui queremos ressaltar, dentre tantos importantes na obra da referida
historiadora, é a construção do consenso que a criminalização permite. Quando analisa a
resistência que os movimentos operários propunham em seus periódicos, Neder mostra que
apesar de haver uma resistência quanto à criminalização da vadiagem, não se questionava o
dogma da pena como um todo. “O pensamento socialista, num ou noutro ponto, tangencia a
proposta dominante e reforça o processo de criminalização, mostrando-se ora reprodutor de
suas práticas ideológicas, ora incapaz de contrapor-se a elas”. 63
Outro ponto a ser abordado na obra de Neder é o de como os métodos e técnicas
criminalizantes foram apropriados para a realidade brasileira, especialmente na formação da
representação social do “malandro”. A formação do direito no Brasil, oscilante entre as
continuidades oligárquicas e as rupturas liberais-burguesas, na “idéia de avançar rumo ao

61
Neder, como Melossi e Pavarini, tem como referências clássicas as obras de Rusche e Kirchheimer e de
Foucault, cf. 1.1 supra
62
NEDER, Gizlene, op. cit. p. 52.
63
Ibid., p. 90.
progresso”, ao passo de não perder o “traço nacional”, cria no Brasil um direito paradoxal:
buscava-se um direito formalmente perfeito, porém pouco praticado, ou melhor, praticado ao
sabor das convicções — em regra racistas e permeadas por um grande desdém pelas classes
populares — dos aplicadores do Direito. Forma-se assim um direito de enunciados rigorosos e
aplicações arbitrárias.
Nesse sentido, a formação do conceito de “malandragem” é importante. A figura do
“malandro” é posta como oposta ao trabalho como valor e repudiada de uma forma geral.
Contudo, ela é importante na formação do nacional; apresenta esse caráter nacional
incivilizado. Permite assim, articular os conceitos de nação, mercado e trabalho: influencia
sobre o comportamento dos trabalhadores “livres”, pois permite o combate à ociosidade e
coloca o trabalho em relação direta com a honradez e a dignidade; permite pensar a nação em
sua busca por abandonar o ranço incivilizado e caminhar rumo ao progresso, ainda que
preservando alguns traços nacionais; e, como substitui o “capoeira”, que tinha sua identidade
no grupo, o “malandro” permite pensar o indivíduo, posto que é uma figura individualizada.
Segundo Neder, a “malandragem” nos jornais era a corporificação do mito que vinha se
construindo ao longo dos anos. Era possível perceber diferenças entre o que seria uma
“malandragem” do centro (mais especificamente, em bairros como a Lapa) — relacionada à
boemia, porém, controlada e segregada no tempo e no espaço (nas noitadas da Lapa e do
Estácio) — e uma “malandragem” dos subúrbios — de “malandros” dissimulados e
improvisadores, que usariam a esperteza para escapar ao trabalho. A “malandragem” é
inserida num espaço entre o mundo da ordem e o mundo da desordem, que compõem o caráter
nacional (entre o particular, autêntico do Brasil, e o civilizado). E o “malandro” sobreviveria
nas brechas entre a ordem e a desordem.
Para a autora, a idéia de “mercado”, tinha de ser embasada por noções de “nação” e
“indivíduo” que a legitimassem; e é na dicotomia entre nação e indivíduo que se possibilita a
construção de uma sociedade capitalista, uma vez que permite o contrato racional, rompendo
com a tradição, e a regulação pelo Estado nacional, que, supostamente, estaria acima das
classes sociais. Com essa perspectiva em vista, demonstra que boa parte da argumentação a
respeito do “caráter nacional” reforça as bases da dominação burguesa, indo desde a
construção da “malandragem” até a teoria de Roberto DaMatta a respeito do “jeitinho
brasileiro”.
Em um próximo momento, nos será relevante a respeito da obra de Neder, o fato que a
criminalização constrói um consenso moral na sociedade e paira, de certa forma, acima das
classes sociais, como se não tivesse qualquer relação com o mercado de trabalho, como se
nada tivesse de político. Além disso, o lugar social das classes pobres no Brasil será, mais do
que dito abertamente, visto e sentido. Por ora, podemos ver também que, apesar das
particularidades que lhe são próprias, na realidade social brasileira é facilmente localizável a
relação também entre criminalização e mercado de trabalho.
Outra autora que queremos destacar nesse momento é Vera Malaguti Batista. Em O Medo na
Cidade do Rio de Janeiro, Malaguti Batista afirma que “No Brasil a difusão do medo do caos
e da desordem tem sempre servido para detonar estratégias de neutralização e disciplinamento
planejado das classes empobrecidas” 64. É o medo da rebelião negra e da descida dos morros. A
autora trabalha o medo em dois tempos: na corte imperial e na contemporaneidade. Para ela, o
medo é uma estratégia simbólica, na busca pelo monopólio do exercício legítimo da violência
simbólica. É preciso entender o que o medo mostra e o que ele esconde, e como que, já no
século XIX, as técnicas de criminalização buscam punir para além do crime, conter
periculosidade. É um medo branco, é o medo da revolta, das possibilidades revolucionárias
das classes pobres, numa tentativa de incorporar excluindo: “A hipótese central deste trabalho
é de que a hegemonia conservadora na nossa formação social trabalha a difusão do medo
como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social.” 65
Trabalhando o século XIX, Malaguti Batista estuda o impacto da Revolução dos Malês, na
Bahia, na década de 1830. Foi um levante de escravos islâmicos, escravos que sabiam ler e
escrever e que se rebelaram de forma organizada: não atacaram seus senhores ou civis, mas as
forças armadas da ordem. Apesar da derrota rápida, óbvia e total, a Revolução dos Malês
serviu para disseminar o medo, tendo em vista a Revolução Haitiana. Era preciso uma
afirmação de superioridade étnica, nacional e de classe, para impedir qualquer questionamento
da ordem, para evitar que se discutisse a instituição da escravidão e suas práticas.
O medo ganha terreno no aspecto do fantástico, no fascínio que o horror exerce. A esse modo,
as batalhas pela hegemonia política se dão no nível do imaginário. Numa sociedade em que
medidas repressivas são fortemente autoritárias, o medo precisa ser desproporcional ao perigo

64
MALAGUTI BATISTA, Vera. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p. 21
65
Ibidem, p. 23
real; constitui-se no Brasil, surgem fantasias absolutistas de controle social total, difundindo o
que Gizlene Neder chamou de obediência cadavérica. Tudo isso apresenta-se como
continuidade histórica em nossos dias. A grande política social da atualidade é a penal e ela
pode ser difundida pela grande mídia, que prepara os espíritos nesse sentido. O inimigo é
ressignificado, bem como o medo que ele causa, ao longo dos séculos 66; dessa forma, a “luta
contra o crime” serve para manter a força do aparelho repressivo após a redemocratização da
década de 1980. A república herdou da monarquia escravista o conteúdo de medo como temor
da insurreição negra, que a permite incluir excluindo por meio da truculência. Era preciso
garantir a submissão dos negros libertos ao trabalho, para isso se cria uma atmosfera de
suspeição generalizada, com os negros como suspeitos preferenciais.
Trata-se de um campo simbólico, na concorrência pelo uso legítimo da violência simbólica. É
preciso desvelar o que é encoberto por fetiches e compreender o espetáculo do medo, que leva
os indivíduos a ver e a sentir o lugar na ordem social. A ocupação do espaço público pelas
classes pobres causa a idéia do caos, a cidade apresenta-se metaforicamente como um jardim,
do qual se precisa controlar as ervas daninhas. Aparecem utopias urbanas retrógradas: que
imaginam que a cidade era anteriormente tranqüila, pacífica e as mudanças têm-na tornado um
lugar perigoso.
Sociedades rigidamente hierarquizadas precisam do espetáculo da morte como símbolo de lei
e ordem: “o medo da morte é a porta de entrada para políticas genocidas de controle social”. 67
O medo é um projeto estético; os conceitos estéticos têm papel importante na construção da
hegemonia ideológica, posto que media a relação entre o corpo e temas políticos tradicionais,
para apagar da memória viva as idéias radicais. O poder se instala nas minúcias e a obediência
vem do interior dos indivíduos. A estética harmoniza sujeitos economicamente antagônicos,
permitindo construir as bases da sujeição e atrelando ao corpo os imperativos do lucro.
Nesse sentido, há uma busca por pureza, como uma solução estética. Assim, é preciso
classificar, separar, isolar e aniquilar os estranhos, símbolos da impureza. A modernidade é
um novo começo permanente, está sempre criando e limpando impurezas: é um reclassificar
sem fim. Perante a insegurança atual, colocada por Bauman em suas obras, a crise atual de
identidades oferece sempre o estranho como o portador dos dejetos dessa insegurança. Nessa
esteira, os consumidores falhos são desmoralizados, isolados em guetos e criminalizados. A
66
ZAFFARONI, E. R. op. cit.
67
MALAGUTI BATISTA. op. cit. p. 53
condensação de exclusão, criminalização e brutalização impede a criação de um sentimento de
injustiça. Assim, podemos ver “o medo como uma interpretação de realidade, uma maneira de
olhar o mundo, uma estética peculiar à civilização mosaico-cristã.” 68, o espetáculo do
sofrimento aparece como expiação e a moral desliza para o prazer sádico, produz-se uma
estética.
O sistema penal brasileiro articula direito penal público e direito penal privado, de matriz
escravocrata, numa empresa genocida e de castigos corporais (tortura e mutilação); o projeto
neoliberal, de ausência de projetos educacionais ou habitacionais, expõe seus indesejáveis a
prisões sem condenação e fuzilamentos sem processo. De tal modo, o fim dos regimes
militares na América Latina é o início de regimes “democráticos” de caráter genocida, num
projeto de aniquilação física e cultural, de forma a manter intacta a estrutura de controle
social, agora, voltada contra o “crime”.
Malaguti Batista mostra como esse processo é uma continuidade histórica desde o século XIX,
no qual os projetos de higienização, medicalização da população, começam a ser firmar no Rio
de Janeiro, então capital imperial. “O que a medicina brasileira do século XIX enfrentava era
então a ameaçadora configuração de uma população negra, índia, majoritariamente mestiça, e
portanto inferiorizada, degenerada, patologizada e perigosa. Como regenerá-la?” 69 O medo é
uma forma de esquadrinhar a população urbana. O pântano se apresentava como realidade e
metáfora dos perigos dos trópicos; era o inimigo interno que destruía os habitantes. Isso
gerava uma segregação espacial de matriz sanitarista, como que para separar a cidade e o
pântano, para esconder o selvagem.
Em sua interdisciplinariedade radical, Malaguti Batista nos permite ver como se trata de uma
continuidade histórica na desqualificação do réu no Brasil:
O genocídio inicial, presente no primeiro encontro entre os dois mundos na América,
é recorrente na história do Brasil. O nosso genocídio diário, trabalhado através do
medo como meta-mercadoria, nos obriga a transcender, pela história, a política e o
imaginário no presente. O medo do caos é trabalhado a cada ameaça de chegada ao
poder das forças populares. Foi assim em 64 e em 94...[,] a difusão do medo é
mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social. 70

68
Ibidem, p. 84
69
Ibidem, p. 157
70
Ibidem, p. 51
Outro autor que destacamos aqui na criminologia crítica brasileira é Nilo Batista. Também em
uma análise da história, Batista vai buscar as matrizes ibéricas do direito penal brasileiro 71, no
propósito de entender suas particularidades e como, apesar das mudanças na legislação, a
desqualificação dos réus continua permitindo a prática da tortura e da mutilação, e permanece
como prática cotidiana por parte de nossas polícias. Esse fato “parece não interessar em nada
ao comentário jurídico-penal; mas esse desinteresse cumpre uma função importante, ao
dissimular, em ‘estilo nobre e vago’, o desconchavo ‘das práticas reais que se sucedem’.” 72
Para ele, portanto, buscar no “espírito do povo” uma vontade que mutila e mata os próprios
populares seria uma ingenuidade. Compreendendo que numa sociedade com Estado o réu
pode tornar-se inimigo, Batista propõe em sua busca histórica periodizações baseadas não na
feitura e vigências das legislações, mas atentas a quem seria o inimigo público da vez, ou seja,
como o aparato legal e o sistema punitivo se voltam para lançar sobre determinados grupos o
cancelamento de suas garantias como sujeitos. É assim que Batista parte em longa digressão
histórica que remonta à queda do Império Romano para compreender as matrizes ibéricas
desse cancelamento.
É somente compreendendo essa desqualificação do réu, essa desvalorização total da vida das
classes pobres e o projeto de controle social, que se engendra a partir dessa desqualificação,
que uma criminologia crítica pode ser feita no Brasil. Os autores que aqui elencamos e sobre
os quais demos nossa interpretação de suas teorias têm esse mérito, de contribuir para
compreender que a política de segurança pública no Brasil, grosso modo, se faz com
derramamento de sangue.
Devemos prosseguir agora na tentativa de nos aproximarmos de nosso objeto nesse trabalho: a
compreensão da demanda por pena na imprensa escrita no Rio de Janeiro. As considerações
teóricas que trouxemos nesse capítulo servem para mostrar a forma como tratamos a questão
criminal como um todo e, agora, precisamos nos acercar dos temas ligados à mídia.

71
BATISTA, Nilo. Matrizes Ibérica do Sistema Penal Brasileiro – I. Coleção Pensamento Criminológico, nº 5. 2
Ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
72
Ibidem, p. 19
2. A MÍDIA E A PENA

Os meios de comunicação de massa, principalmente a televisão são hoje


fundamentais para o exercício do poder de todo o sistema penal, seja através dos
novos seriados, seja através da fabricação da realidade para a produção de indignação
moral, seja pela fabricação do estereótipo do criminoso. 73

É preciso que as classes subalternas vejam e sintam o seu lugar na ordem social. Nesse
sentido, a produção imagética do terror ocupa lugar emergencial. A ocupação do espaço
público pelas classes pobres causa uma sensação de “caos social”, que leva a uma urgência no
controle social dessa população. Mas como a mídia toma parte nesse sistema? Vamos tentar
expor agora algumas considerações no sentido de elucidar essa problemática.

2.1 O FENÔMENO ESTÉTICO-ESPETACULAR


Para considerar de forma mais abrangente a mídia em relação às práticas de criminalização
atuais propomos aqui a construção das notícias de crimes como um fenômeno estético-
espetacular. É o resgate, bem como é também a junção, dos conceitos filosóficos de Terry
Eagleton e de Guy Debord, aplicados como ferramentas de compreensão de nosso objeto.
Veremos, num segundo momento, como esse conceito é compatível com explicações
sociológicas e de outras ciências de compreensão da mídia. Dessa forma, vamos nos
acercando de nosso objeto que está na apresentação do crime pela imprensa.
Em primeiro lugar, é preciso compreender o estudo de Eagleton em A Ideologia da Estética 74.
O objetivo do autor nesse livro é tentar encontrar na categoria de estética um acesso a questões
centrais do pensamento europeu. Ele se debruça sobre como o estético persiste teoricamente
em meio a um período histórico no qual a prática cultural encontra-se em regra destituída de
seu caráter tradicional, conformando-se com a produção generalizada de mercadorias.
Para ele, a arte ainda fala do humano e do concreto, permitindo desse modo ao espírito um
descanso face à técnica. A estética por sua vez leva a arte a um nível elaborado de disciplina
intelectual, embora mantenha sua aparência natural e espontânea. Com o advento da ascensão
burguesa, os conceitos estéticos começam a exercer papel central na ideologia dominante. A
estética assim está no novo formato da subjetividade, sendo inseparável da construção das
formas ideológicas dominantes. Ou seja, falando de arte, fala também sobre questões centrais
à luta de classes. Para Eagleton,
73
MALAGUTI BATISTA, op. cit. p. 33
74
EAGLETON, Terry. A Ideologia da Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
vivemos em sociedades cuja meta não é simplesmente combater as idéias radicais —
isso seria natural esperar — mas apagar toda a memória viva dessas idéias: criar uma
condição amnésica na qual essas noções pareçam jamais ter existido, colocá-las num
espaço para além de nossos poderes de concepção. 75

A tentativa de Eagleton é a de ligar o “corpo” enquanto idéia a temas como o Estado e a luta
de classes. A estética tem participação importante na elaboração do fetichismo da mercadoria,
porque ela também existe por si mesma, como aparenta a mercadoria, escapa portanto à
contextualização, impedindo de ver a construção histórica que há por trás de si mesma. Nesse
sentido, é para o autor o protótipo secreto da subjetividade na sociedade capitalista.
É a estética que traz para o campo filosófico a totalidade da vida sensível. “A estética
concerne a essa mais grosseira e palpável dimensão do humano que a filosofia pós-cartesiana
(...) conseguiu (...) ignorar”. 76 Permite assim uma rebelião do corpo contra o teórico. Logo, o
gosto — sentimentos e sensações — precisa ser trazido para dentro do escopo majestoso da
razão. Com isso, contudo, a razão sai de seu abstrato e corre o risco de perder seu poder
absoluto. A estética é a tentativa de fazer essa fusão.
Os elementos da representação estética resistem a ser discriminados em unidades discretas;
quanto mais “confusos” ao racional, mais claros aparecem aos sentidos: dessa maneira, a
estética pode ser entendida como “irmã” da lógica que ordena o domínio das representações de
percepção, portanto, participa ao mesmo tempo do racional e do real. Nessa junção, a estética
impede que a sensação seja completamente individual, permitindo à classe dominante que
conheça sua própria história e que possa controlar a percepção que se tem dela. É a estética
que reúne conceitos sobre a percepção em uma narrativa histórica; controla-se assim, a história
em meio ao discurso racional. Segundo o autor, “no denso remoinho de nossa vida material,
com todo o seu fluxo amorfo, certos objetos sobressaem, numa espécie de perfeição que
lembra, de certo modo, a da razão: a eles chamamos de belos.” 77 É a lógica rigorosa da
matéria ela-mesma, produzindo um consenso espontâneo que não nasce da análise: basta ver.
Dessa forma, racionaliza a vida concreta com leis que não estão gravadas nas tábuas, mas nos
corações. O poder burguês trabalha num regime estetizado, enraizado em hábitos, devoções,
sentimentos e afetos. Assim, é indissociável dos impulsos espontâneos do corpo, da
sensibilidade e dos afetos; se encontra nas minúcias da experiência concreta.

75
Ibidem, p. 11
76
Ibidem, p. 17
77
Ibidem, p. 20
Eagleton coloca que na história da humanidade separaram-se três áreas do espírito humano: o
cognitivo, o ético-político e o estético-libidinal. O estético ficou relegado a uma região
marginal, do afeto, do instintivo e do não-instrumental. A partir do momento em que a arte se
liberta da igreja, ela torna-se mercadoria e passa assim a existir apenas para si mesma.
A estética propõe reverter essa divisão de trabalho e colocar as três regiões
novamente em contato uma com as outras, mas sua generosidade tem um alto preço:
ela articulará os três discursos engolindo os outros dois. Tudo agora deve se tornar
estético. A verdade, o cognitivo, torna-se aquilo que satisfaz a mente, ou que nos
permite nos movimentar por aí de modo mais conveniente. A moral é convertida
numa questão de estilo, de prazer ou de intuição. Como viver sua vida de forma mais
adequada? — pergunta ela. Tornando a si mesmo uma obra de arte — é a resposta. 78

E a arte não consegue resistir à sua incorporação, pois trata-se de uma questão política e não
cultural; a cultura também é estetizada na sociedade de consumo. Trata-se de um fetichismo
do estilo e da superfície, num culto ao hedonismo e à técnica, na reificação do significante.
No “pós-modernismo”, o econômico penetra no reino do simbólico, o corpo libidinal é
atrelado aos imperativos do lucro: trata-se de uma ordem na qual “o valor empírico mais alto é
evidentemente o lucro” 79. A verdade perde seu sentido enquanto tal, posto que se trata de um
momento no qual o engano, a mentira, a distorção e o desvirtuamento são necessidades
estruturais e essenciais. Fatos verdadeiros podem ser politicamente explosivos. Nesse sentido,
valores tornam-se perigosamente inderiváveis, não se submetem à razão ou à argumentação.
Antes de prosseguirmos para as considerações de Debord sobre o espetáculo, para
posteriormente propormos a junção dessas duas ferramentas, é preciso que se diga que não
tratamos a obra de Eagleton aqui em sua totalidade. Não apenas porque não pretendemos aqui
resenhar toda a história da estética em diversos autores europeus da modernidade,
compreendendo a inovação e o contexto desses autores, como bastante instrutivamente fez
Eagleton, mas também porque não estamos dando vazão a todas as possibilidade
emancipatórias da estética que o autor propõe.
Guy Debord apresenta já em 1967 considerações sobre o espetáculo em nossa sociedade que
consideramos bastante apropriadas para nosso pensamento da mídia, especialmente da estética
na mídia. Para Debord, “tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação.” 80 As
imagens passam a se destacar da vida cotidiana se colocando como autonomizadas, num

78
Ibidem, p. 266
79
Ibidem, p. 270
80
DEBORD, Guy. A sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p.13.
movimento autônomo do não-vivo. Nesse sentido, o espetáculo apresenta-se como a própria
sociedade, como parte dela e como instrumento de unificação, ele concentra todo o olhar e
toda consciência. Como está separado da vida cotidiana, ele é o lugar do “olhar iludido” e da
falsa consciência. O espetáculo propõe uma relação mediada por imagem. De fato, ele é uma
visão de mundo que se objetificou. Não é apenas suplemento do mundo real, mas é o âmago
do irrealismo da sociedade real, constituindo o modelo de vida dominante.
Assim, “a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real” 81, e a verdade não passa de
nada além de um momento do que é falso. Trata-se da afirmação da aparência, ou seja, da
afirmação da vida como aparência, que se apresenta com enorme positividade, de forma
indiscutível e insolúvel. O espetáculo define as prioridades do que se conhece e sobre o que se
deve pensar — o que é bom aparece e o que aparece é bom –, seus meios são seus fins e ele
recobre toda a superfície do mundo. Para Debord, forma-se uma sociedade fundamentalmente
espetaculista e o espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo.
Debord aponta que “quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples
imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico.” 82
Ocorre a impossibilidade do diálogo, logo está impedida qualquer correção nas proposições
espetaculares, que se tornam representações independentes. Ele reproduz aqui a hierarquia
social que existe nas sociedades de classe. Logo, “o espetáculo é o discurso ininterrupto que a
ordem atual faz a respeito de si mesma” 83. Existe hoje muito mais interatividade entre meios
de comunicações e espectadores/leitores do que na década de 1960, logo precisamos apontar
para isso. Dados que obtivemos em nossa pesquisa apontam inclusive que a mídia se
especializa e a ordem cria discursos diferentes para classes diferentes. Contudo, seria
impreciso pensar inteiramente em diálogo, pois isso colocaria os dois pólos da comunicação
em igualdade. De mais a mais, acreditamos que a proposição de Debord continua válida. O
emissor conta com a reação do receptor, o que não invalida pensar que aquele hipnotize este.
O leque de escolha continua limitado e a criminalização, por exemplo, é uma grande limitação
nesse sentido, como já nos indicou Wacquant anteriormente 84: correntes políticas à parte, “lei
é lei”, como se a lei penal não fosse também uma questão política.

81
Ibidem, p. 15
82
Ibidem, p. 18
83
Ibidem, p. 20
84
CF. 1.2
É o fetichismo da pura objetividade que esconde a relação entre homens e entre classes. A
administração dessa sociedade se faz por meio da comunicação, posto que essa é uma
comunicação, em regra, unilateral. O espetáculo dispõe sobre o que se pode fazer, delimita o
campo do possível. Conserva, portanto, a inconsciência face às mudanças nas condições de
existência. É um poder separado, que se autodesenvolve em meio ao crescimento da
produtividade, do crescimento dos mercados e das máquinas que trabalham por si só.
O espetáculo produz um isolamento das multidões, reúne todos ao seu redor, mas os reúne
como separados. Para o autor, quanto mais se contempla, menos se vive. É-se levado a aceitar
imagens dominantes e entender menos as próprias necessidades e desejos. Tempo e espaço
tornam-se estranhos ao trabalho, mas o espetáculo é o mapa desse mundo. Nesse sentido, é a
fabricação concreta da alienação.O homem se vê não apenas separado das mercadorias que
produz, mas se vê separado de boa parte das vivências que ele mesmo experimenta. Sua
relação com o mundo é mediada pelo espetáculo. O fetichismo da mercadoria aqui se realiza
por completo. Nas palavras do autor, “o mundo presente e ausente que o espetáculo faz viver é
o mundo da mercadoria dominando tudo que é vivido.” 85 A mercadoria permitiu que o homem
vivesse do que ele não produz, libertando-se assim da pressão natural de ter que produzir tudo
o que consome. Contudo, os homens não conseguem se libertar das mercadorias e de seu
fetichismo. O espetáculo é um momento em que a mercadoria ocupou toda a vida social,
inclusive as horas em que ele não trabalha. “O consumidor real torna-se consumidor de
ilusões. A mercadoria é essa ilusão efetivamente real, o espetáculo é sua manifestação
geral” 86; valores de uso são explicitados e criam pseudojustificativas para uma vida falsa, na
fabricação ininterrupta de pseudonecessidades.
No capitalismo, o espetáculo é difuso e o conjunto do consumo é impossível: o consumidor
real só tem acesso a fragmentos e o conjunto das mercadorias parece ser contraditório: cada
mercadoria luta por si mesma e não reconhece as demais. É, contudo, o fetichismo da
mercadoria, mascarado na unidade irreal do espetáculo que esconde a divisão de classe: o que
o homem produz é o que o afasta da sociedade e o que constitui o poder abstrato da sociedade
constitui também sua não-liberdade concreta.
Nesse sentido, a ideologia encontra seu triunfo “se encontra legitimada na sociedade moderna
pela abstração universal e pela ditadura efetiva da ilusão, ela já não é a luta voluntarista do
85
Ibidem, p. 28
86
Ibidem, p. 33
parcelar, mas seu triunfo” 87; já não se apresenta como escolha, mas como evidência e o projeto
burguês já não está em disputa, ele é consensual. O espetáculo é a ideologia por excelência, no
empobrecimento, na sujeição e na negação da vida real, e o dinheiro se apresenta como
necessidade única.
Se em Eagleton nos damos conta de como o estético se apoderou das demais esferas do
espírito, na tentativa de apagar qualquer vestígio das explicações radicais, é Debord que nos
permite visualizar o quanto essa tentativa está ligada ao fetichismo da mercadoria e o quanto
essa visão progressivamente nos coloca diante de categorias que estão todas vinculadas ao
espetáculo. Pensamos com base em categorias do fetichismo da mercadoria. Como se isso não
bastasse, sentimos conforme essas categorias também. Por fim, o que sentimos se sobrepõe às
nossas tentativas de pensamento. Qualquer outra possibilidade de sentir é progressivamente
desqualificada e as possibilidades de pensar são desqualificadas como um todo. 88
É assim que Debord complementa sua teoria nos Comentários sobre a Sociedade do
Espetáculo, dizendo que “o indivíduo que foi marcado pelo pensamento espetacular
empobrecido, mais do que por qualquer outro elemento de sua formação, coloca-se de
antemão a serviço da ordem estabelecida, embora sua intenção subjetiva possa ser o oposto
disso.” 89
Não podemos perder de vista a noção de que estamos diante do fenômeno da criminalização.
Ele aqui pode nos servir como exemplo de como juntar essas teorias. O crime é sentido. Não
se dá na esfera do racional — cometer crime não é dado como burrice, na maioria dos casos
— mas pode se dar na esfera da moral ou do estético, dependendo de qual o tipo e de quem o
comete: variando da classe e origem étnica de quem o comete e sob a forma como ele é
apresentado, o crime pode ser dado como errado ou como repugnante. O crime será
repugnante no Brasil quando cometido por jovens pobres e negros. Sobre esse crime o
espetáculo versará repetidas vezes, até que não mais possamos pensar as categorias de crime
sem associá-las automaticamente a esse segmento da população. Logo, é um fenômeno
estético-espetacular, em toda a sua plenitude: não nos apela ao racional, mas à atração e não é
uma construção nossa; em regra, ela é midiática. Sequer os sociólogos têm clareza sobre a

87
Ibidem, p. 137
88
Acreditamos nas possibilidades de resistência. Escapa ao escopo desse trabalho, contudo, demonstrá-las. Não
se trata de pessimismo, nosso objetivo é compreender como a grande imprensa trata o crime e estamos
caminhando nessa direção.
89
DEBORD, Guy. Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo. In: . op. cit. p. 191
aferição de quantos crimes ocorrem em nossa sociedade ou como fazer para medi-los. Como
já dissemos anteriormente, o que temos da criminalidade, no mais das vezes, é o medo 90. Mas,
se sequer os estudiosos têm clareza de como medir a criminalidade, como podem as pessoas
medi-la? E se as pessoas não podem medi-la, não seria razoável argumentar que o medo tem
outras origens históricas? 91
.
2.2 A CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DA VERDADE
Sylvia Moretzsohn, em seu livro Pensando contra os fatos 92, mostra as origens do jornalismo
remontando ao século XIII, quando o interesse econômico em informações quebra o
monopólio do poder político e do poder eclesiástico como fonte de conhecimento. Ao longo
do tempo, surge uma nova mentalidade, na qual o conhecimento aparece como eixo de
compreensão do mundo. Assim, a informação e sua disseminação passam a ser tão
importantes quanto a pesquisa em si.
Séculos mais tarde surge o projeto iluminista de esclarecimento dos cidadãos, baseado no ideal
de imparcialidade, de “fatos” que “falam por si só”. Aparece assim “como se a imprensa fosse
uma instituição acima das contradições sociais, capaz de falar em nome de todos,
indistintamente, representando a sociedade contra os abusos do Estado.” 93
Segundo o projeto de Kant, o papel da imprensa seria esclarecer, ou seja, deixar que o cidadão
pense por si mesmo. Desse modo, triunfaria a razão sobre o irracionalismo e a intuição. Seria a
saída do homem de sua menoridade pela via do esclarecimento. Logo, o esclarecimento
libertaria o homem de todas as suas amarras.
Contudo, a autora já chamara atenção para o fato de que vivemos em uma sociedade
ambientada pela comunicação, mas estruturada pelo capital. Portanto, cabe a pergunta: “como
pode o pensamento crítico sobreviver apesar dos constrangimentos que configuram o quadro
opressor da indústria cultural?” 94
Aqui cotidianidade, senso comum, mediação e opinião pública se entrelaçam e a autora afirma
que é preciso levar a dialética a sério, bem como encarar o cotidiano como o local onde as

90
Cf. 1.1
91
Ver MALAGUTI BATISTA, Vera. op. cit. para uma análise mais esclarecedora sobre o medo na condução de
subjetividades.
92
MORETZSOHN, Sylvia. Pensando contra os fatos: Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico.
Rio de Janeiro: Revan, 2007.
93
Ibidem, p. 107
94
Ibidem, p.113
transformações acontecem. O homem é um ser de sua práxis. O cotidiano, para a autora, o
local no qual o indivíduo pode render-se a superficialidade dos fatos e, por vezes, a sua
irracionalidade.
O jornalismo é uma mediação ideologicamente naturalizada, apresenta uma versão dos fatos
como se fossem os fatos por si só. Para Moretzsohn, o jornalismo está entre a verdade e o
político. A política é ambígua e mutável e a função jornalística é buscar a verdade no político.
O discurso oficial, contudo, esquiva-se dessa polêmica usando ideais de imparcialidade e
objetividade, que apresenta uma ruptura entre notícia e opinião.
A imparcialidade permite propor assim a idéia de quarto poder, posto que a imprensa é dada
como um serviço público indispensável. Essa linha de pensamento não leva em conta o
processo de produção da notícia e o jornalista busca, dessa maneira, ocultar a si mesmo.
Contudo, essa ocultação é impossível, posto que, como coloca Pierre Bourdieu,
As variações, os incidentes ou os acidentes cotidianos podem estar carregados de
implicações políticas, éticas, etc. capazes de desencadear sentimentos fortes,
freqüentemente negativos, como o racismo, a xenofobia, o medo-ódio do estrangeiro,
e a simples narração, o fato de relatar, to record, como repórter, implica sempre uma
construção social da realidade capaz de exercer efeitos sociais de mobilização (ou de
desmobilização). 95

Logo, demonstra Moretzsohn, “objetividade é entendida como um compromisso com valores


sociais consensuais, de forma que os juízos de valor sejam neutralizados como a própria
expressão do bom senso” 96. Além de demonstrar que opinião e notícia são assim inseparáveis
e que portanto é impossível ao jornalista apenas informar fatos e permitir que o leitor pense
por si mesmo, Mortezsohn apresenta um outro lado dessa situação, que torna a relação
dialética: segundo ela, a reação do público tem peso. Logo, o jornalismo está ligado ao
interesse do público, o que leva a perguntas como “o que o público quer saber?” e “que
público é esse?” Não se trata aqui de imaginar que o leitor tem poderes para decidir livremente
sobre o que gostaria de ler e está portanto completamente emancipado. O fato é que o
jornalismo encontra-se em meio a um processo de construção de opinião no qual a imprensa
não é a única atriz. “O resultado é uma simplificação do próprio jornalismo, que assim se
condena ao mundo das aparências e passa a forjar uma realidade adequada aos cânones
ideológicos industriais que conformam as rotinas de produção.” 97

95
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 28
96
MORETZSOHN, Sylvia. Op. cit., p. 119
97
Ibidem, p. 134
Logo, a notícia é o inesperado passível de enquadramento e a busca é por conferir ineditismo a
situações corriqueiras. A idéia de quarto poder esbarra no fato de que essa é uma atividade
exercida por grupos privados e não é o cidadão que tem de ser esclarecido, mas o consumidor
que precisa ser satisfeito. A mídia, contudo, chega a aparecer como substituta de outras
instituições, como a polícia nas investigações, por exemplo, e o fetiche da velocidade da
informação camufla a idéia de mediação que o jornal exerce. Contudo, o ideal de que a
informação é necessária gera certa sacralização da atividade jornalística e se opõe a qualquer
restrição ao poder de informar. No entanto, o debate promovido é muito superficial e falha em
esclarecer com profundidade: “o alto grau de comunicabilidade, que evidencia uma
identificação fundamental à vida cotidiana, freqüentemente esgota-se na descrição de
situações capazes de comover o público, sem alcançar um nível de argumentação que leve a
questionar por que as coisas são como são.” 98
Em uma análise mais específica, Sonia Wanderley, em sua dissertação de mestrado 99, estuda o
jornalismo na Rede Globo – que pertence ao mesmo grupo empresarial dos jornais aqui
estudados – e mostra como no Brasil a televisão sofre a influência da entrada do capital
estrangeiro em nossa economia. Analisando o período de abertura e transição para a
democracia, ela se pergunta qual seria o grau de ruptura e de continuidade com os valores do
regime militar. Na realidade, ela constata que mesmo com a crise do Estado militar, a
preocupação principal era como seria feita a manutenção da ordem e não como se
(re)construiria a democracia. Nessa conjuntura, a pesquisadora analisa a construção do Padrão
Globo de Qualidade como formas simbólicas de inculcação de valores.
A autora privilegiou o estudo da Rede Globo porque ela surge já em meio ao contexto de
modernização conservadora que o golpe militar implantara e por ela ser a primeira emissora a
se pensar com um caráter nacional. Dentro da programação da emissora, ela privilegia o
jornalismo da emissora, que é o simulacro do real, na verdade, é a representação do real, com
ênfase para o Jornal Nacional, com especial destaque para as notícias sobre greves e sobre
bóias-frias, que mostram como a emissora constrói significados.
Para compreender essa construção histórica, Wanderley analisa a Doutrina de Segurança
Nacional, que interfere em fatores políticos, econômicos, diplomáticos e militares, centrada no
antimarxismo e no pensamento conservador católico. Com o golpe de 1964, consolida-se um
98
Ibidem, p. 153
99
WANDERLEY, Sonia maria de Almeida Ignatiuk. Op. cit.
capitalismo de Estado, e a busca por uma segurança contra “inimigos internos”, representados
em grande medida pelos comunistas. Surge um novo Leviatã, com plenos poderes para
organizar a segurança e anular pressões e antagonismos do cenário político.
O modelo econômico que se desenvolvia — envolvendo o tripé de capital local, estatal e
internacional — estava focado no desenvolvimento industrial como política fundamental.
Afastam-se do cenário as forças políticas mais atrasadas e toma o poder a tecnocracia
representando as burguesias industrial e financeira: surge o “milagre econômico”, baseado no
binômio desenvolvimento e segurança. Era preciso criar um discurso e uma imagem do Brasil
que legitimasse o Estado de coisas: a base desse discurso eram o desenvolvimento e o
crescimento econômico de dez por cento ao ano. Surge portanto a Assessoria Especial de
Relações Públicas, que tinha como veículo privilegiado de propaganda a televisão.
Com a crise econômica e a impossibilidade de crescer progressivamente como se crescera no
início dos anos 70, os militares, sem abandonar o projeto tecnocrata, começam a pensar na
abertura gradual a partir do governo do general Ernesto Geisel. A perspectiva era de manter o
controle e criar mecanismo de manutenção da ordem. A repressão não é completamente
abandonada. Somando a repressão ao arrocho salarial que se verifica no final da década, surge
a pauta do movimento operário do ABC paulista.
Com a incapacidade de fazer novamente o país crescer aos patamares do início do regime
militar, o sucessor de Geisel, general João Batista Figueiredo, inicia a busca por uma transição
para a democracia com manutenção da ordem. A mídia valoriza os líderes civis que buscam a
conciliação, como Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, evitando qualquer valorização dos
movimentos populares.
A Doutrina de Segurança Nacional, que foi veiculada desde o início desse período e que tem
suas continuidades percebidas até hoje, usava a mídia na construção do “nacional”. Implanta-
se assim um Plano Nacional de Telecomunicações, com o estabelecimento de grandes redes
nacionais de televisão; é a incorporação da política de telecomunicações à política de
segurança nacional. A Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel), fundada em 1965,
fomenta a criação de troncos televisivos interestaduais. Além disso, havia a censura, que era
uma interferência política travestida de interferência técnica. Era uma tentativa de balancear a
dura repressão com cooptação. A expansão das telecomunicações, portanto, relaciona-se com
o projeto hegemônico: “o veículo televisivo é capaz de criar novas necessidades, de construir
‘verdades’ de delinear valores que irão formar o cidadão consumidor, respondendo ao projeto
que se consolidava na época.” 100
A TV se afirma, com o tempo, também no Brasil, como importante vendedora e vira uma
importante estratégia de marketing para as empresas. Paulatinamente, a TV passa a depender
do dinheiro publicitário e a formação de valores que ela permite encontra-se controlada pela
esfera comercial. Logo, “por trás de um discurso de unidade cultural, que escamoteava as
diferenças sócio-econômicas do Brasil, encontrava-se uma proposta de modernidade cuja base
de sustentação estava no consumo.” 101 Forjam-se assim modelos de família, aspirações de
vida, hábitos e costumes, cidadania: é o controle social dentro de casa.
O grupo de comunicações Globo está desde a década de 1950 alinhado com o grande capital
internacional pela via publicitária. A Rede Globo de Televisão, de certa forma, já nasce
alinhada com o projeto tecnocrata-militar, ligada ao capital internacional através de um acordo
com a organização Time-Life. Logo, a Globo se torna um representante simbólico eficaz de
modernização, neutralidade, técnica e unidade nacional. Os poucos ruídos entre o projeto da
Globo e o dos militares foram devidamente aparados pelos aparelhos oficiais de censura.
Assim, “a Globo se institui como a melhor opção para representar e, principalmente, auxiliar,
a legitimação do projeto hegemônico que se formara após 1964, junto a amplas camadas da
população.” 102
Surge o Padrão Globo de Qualidade com o papel político e também como interesse comercial:
é o nacional como “caráter cultural” e como busca por mercado consumidor. A rede conquista
um “monopólio virtual” a partir de meados da década de 70, tendo como pilares o jornalismo e
a telenovela. A Globo se torna o veículo da afirmação do consumo dentro do projeto
conservador de modernização, gerando a associação entre participação no mercado
consumidor e garantia dos direitos civis. Tudo isso se dá num plano “nacional”, buscando
pensar uma forma que torne a programação eficaz em todas as partes, propagando o modelo de
consumo da classe média do eixo Rio-São Paulo. Essa ideologia precisa, entretanto, ser
camuflada com uma aparência de neutralidade e objetividade, como no modelo americano;
“procurava-se perseguir uma imagem na qual a técnica domasse as emoções, em que os
movimentos fossem racionalmente estudados; uma imagem sem espaço para as soluções de

100
Ibidem, p. 58
101
Ibidem, p. 62
102
Ibidem, p. 76
improviso e os constantes erros dos iniciadores da tevê brasileira; uma imagem limpa
sofisticada, contida, enxuta e asséptica.” 103
A programação infantil era o propagador do alegre e da cor como marca do novo e do
consumo, e as novelas eram a procura do realismo, dos retratos do Brasil, construídas com
base em uma forte oposição entre bem e mal, porém assentadas também na conciliação entre
outros pólos, como o urbano e o rural, o rico e o pobre, o moderno e o arcaico, sempre na
mimetização dos valores da classe média sudestina. Era a tentativa de inculcar uma
perspectiva conformista e de atribuir a muitos o sonho de poucos.
Na cobertura política, Wanderley mostra que, mesmo com a abertura política e com a
redemocratização, o jornalismo “neutro” e “objetivo” da Rede Globo continua a ouvir mais o
governo e as empresas do que aos movimentos sociais. Valendo-se de uma estética moderna e
de um jornalismo de cunho “neutro”, quase “científico”, cria-se uma estratégia que varia
“entre a recusa ao movimento e o desejo de negociar pelo alto.” 104 A pesquisadora mostra que
o silenciamento do movimento popular ocorre em regra na edição das matérias, e que o
material bruto das entrevistas em regra continha entrevistas dos operários grevistas ou dos
trabalhadores rurais — que estão no enfoque da autora –, mas que essas matérias não foram ao
ar. Em suma, “o telejornalismo da Rede Globo utiliza todo seu aparato técnico-discursivo para
descaracterizar a greve como resultante de conflitos sociais”. 105 É um informar que
despolitiza, usando a idéia de neutralidade, mas sem dar voz aos movimentos sociais,
inculcando assim a ideologia dominante. Torna o fato acessível e controla sua interpretação. É
a desvalorização dos espaços coletivos, de forma que a mobilização popular é vista como
perigosa. Trata-se de uma manipulação espetacular.
Compreendendo como a imprensa participa diretamente da construção da subjetividade,
precisamos, nos acercando progressivamente de nosso objeto, compreender como a mídia
constrói essa subjetividade utilizando a criminalidade, especialmente, o medo.

103
Ibidem, p. 97
104
Ibidem, p. 115
105
Ibidem, p. 168
2.3 MEDO E CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA MÍDIA
Gizlene Neder, em seu artigo Em Nome de Tânatos 106, analisa o sistema penitenciário no
Brasil, iniciando pelo assassinato pela polícia paulista de 111 presos no presídio de Carandiru
em 02 de Outubro de 1992. Alarmam os requintes de sadismo dos policiais que gritavam aos
presos que eles eram a morte ou que a morte havia chegado. A Polícia Militar paulista, à
época, era reconhecida como a mais violenta de todo o país e estatísticas apontavam para um
assassinato pelo polícia a cada sete horas. Para ela, trata-se de uma prática genocida:
Considerando que a seletividade do sistema penal brasileiro atinge os pobres, os
negros e os nordestinos (migrantes depauperados), na maioria jovens e do sexo
masculino, pode-se caracterizar esta prática policial de extermínio como genocida.
Trata-se de fato de um extermínio ideológico (...) [– que] implica a formulação de
um discurso justificador dessas práticas, calcado numa concepção racista e
xenofóbica de ‘limpeza social’, tão em voga nos tempos atuais. 107

O que ocorre é uma arrogância completa contra os direitos constitucionais dos pobres.
Existem, para Neder, barreiras autoritárias invisíveis, calcadas por uma retórica jurídica que
busca inculcar a descrença na Justiça no imaginário social. Nossa matriz história, baseada na
inquisição, coloca em altas figuras como a tortura, a confissão, a delação e a suspeição em
nosso imaginário. O ponto que nos interessa de forma essencial é que “nesta organização, as
classes subalternas mais que compreender, a nível da razão, foram (e seguem sendo) levadas a
ver e a sentir seu lugar na estrutura social” 108. É o controle dos sentimentos e também o
controle da circulação e das presenças pela cidade; um controle quase invisível. A banca de
jornal toma o lugar da praça pública de exposição de terror dos corpos mutilados.
Trata-se de um período de ressignificação do “inimigo interno”. Se o “temível” comunista sai
de cena, a figura do malandro é ressignificada na do traficante. Agora, a “violência” e a
“criminalidade” servem de justificativas para a repressão, produzindo assim efeitos de
intimidação e de desmobilização dos movimentos populares, ou de qualquer forma de
inconformidade com o estado de coisas.
É nesse sentido que as mudanças após a redemocratização têm apontado uma nova relação
entre medo e criminalidade. A criminóloga venezuelana Lola Aniyar de Castro mostra como

106
NEDER, Gizlene. Em nome de Tânatos: aspectos da história do sistema penitenciário no Brasil. In: .
Violência & Cidadania. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. pp. 11-34
107
NEDER, Gizlene. op. cit. p. 12 . A política de segurança pública paulista sofre enormes mudanças nos últimos
15 anos. Ao modelo genocida segue-se agora um modelo encarcerador. Se antes São Paulo era o estado que mais
matava na federação, hoje o estado mais populoso do país é o que mais prende, não só absolutamente como
também proporcionalmente.
108
Ibidem, p. 20
os mecanismos de comunicação se tornam fortes instrumentos de controle social. Para ela, as
possibilidades de comunicação são amplas e nos levam a tentar formular um discurso para
muitos, o que se transforma num trabalho no qual a ordem permanece oculta e a obediência
tem raízes subliminares. Assim, “a tecnologia massificadora parece representar o mais
aterrorizante instrumento de controle social” 109, tanto nacional como internacionalmente,
desde a mais tenra idade. A autora lembra que a maior parte das programações infantis
veiculadas na Venezuela — bem como no Brasil — são de produção estadunidense.
A preocupação da autora é com a relação entre comunicação, que para ela é poder, com a
insegurança e o delito. A publicidade, para além de tornar público os fatos, também os
representa, cria concepções para ele. O delito é a infração estereotipada, aquela que, como
citamos acima, nos causa repugnância. A insegurança, por seu turno pode ser dividida, para
Castro, entre insegurança real e sentimento de insegurança, ou seja, entre a possibilidade de
sofrermos alguma agressão e o medo que sentimos de prováveis perigos que imaginamos que
existam. Nesse contexto, a notícia é a construção da realidade; nunca apreendemos a realidade
inteiramente como ela de fato ela é, e a realidade é algo construído. A ordem social é, desse
modo, dependente dos resultados compartilhados.
Como já ponderamos anteriormente, a notícia se encontra no limiar entre a urgência em
transmitir — e transmitir antes do restante dos jornalistas — e os interesses políticos e
comerciais. Os meios impõem, como também já ressaltamos, o que conhecer e orientam
seletivamente a atenção. Na imprensa, em regra, a alta classe se encontra com ela mesma: ali
são tratados os acontecimentos da classe dirigente e da burguesia em geral. Nas matérias
dedicadas às classes pobres, são retratadas, para a autora, apenas três temáticas: sexo, esporte e
crime. Temos de incorporar mais uma temática: aquela que se refere a estratégias de
sobrevivência — em assuntos como oportunidades de emprego e concursos em geral e como
economizar domesticamente ou como comprar a preços menores. Lembramos que,
anteriormente, na análise da obra de Pierre Bourdieu supracitada, mostramos que certos fatos
são dados como despolitizados, como o esporte, os acidentes e o sexo. A incorporação do
crime a essas temáticas é a tentativa de despolitizá-lo, de jogá-lo num vazio político. O crime
contudo aparece como tragédia. Um acontecimento normal tem seu contexto, a sua história. A
tragédia, por outro lado, resume-se a ela mesma, é mítica e descontextualizada.
109
CASTRO, L. A. Meios de comunicação e insegurança social. In: . Criminologia da Libertação. Coleção
Pensamento Criminológico, nº 10.Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2005.
Para Castro, os delitos da classe rica não causam sentimento de insegurança, embora possam
ser até mais perigosos do que os da classe pobre. O poder do estereótipo permite a sensação de
que existe uma classe potencialmente “perigosa”. Os integrantes dessa classe têm de se
diferenciar dos demais, de se colocarem como disciplinados trabalhadores, respeitadores da lei
e da ordem, o que impede a solidariedade de classe. Os delitos da classe pobre são colocados
na imprensa na parte de “segurança” ou “polícia” e os da classe rica nas partes de “política” ou
“economia”. É parte de um estereótipo construído nas mentes desde a infância pelos meios de
comunicação, separando bons e maus, caubóis e mocinhos, por extensão, ricos e pobres,
construindo uma realidade maniqueísta.
A autora conclui que as notícias constroem a realidade, constroem a delinqüência baseada
sempre na tragédia, construindo assim o delinqüente, e atraem a atenção para assuntos
relacionados à insegurança. O sentimento de insegurança é associado ao estereótipo construído
do delinqüente, sempre associado às classes populares. Desse modo, desvia-se a atenção de
outros problemas e permitem-se medidas autoritárias. Estão formadas assim as referências
para entendimento do mundo quanto à chamada criminalidade.
Também nesse sentido, a já citada Sylvia Moretzsohn, em seu artigo Imprensa e
crimiologia 110, aponta a esperança, seguida de frustração que significou a cobertura midiática
da visita de Loïc Wacquant ao Brasil. Esperança porque o sociólogo foi entrevistado por
vários veículos; frustração porque a maioria deles não publicou as entrevistas. Seu discurso
opunha-se ao ronrom que a mídia em regra sedimenta e logo não foi aproveitado.
A autora aponta que a análise lógica que orienta a cobertura criminal na grande imprensa é a
disseminação do medo e de políticas públicas mais repressivas. Para ela, “tudo é exposto como
se o mundo fosse um lugar essencialmente hostil e perigoso, produzindo uma permanente
sensação de insegurança em todos os níveis.” 111 Assim, a imprensa mais alarma do que
esclarece. Mostraremos posteriormente (Cap. 3) que mesmo a grande imprensa produz
discursos que não apenas alarmam, mas que também dão esperança, quando se voltam a falar
para os pobres. A própria autora ressalta que os jornais populares se pretendem muito mais
como resolutivos dos problemas populares e como intermediadores da relação entre Estado e
leitor.

110
MORETZSOHN, Sylvia. Imprensa e Criminologia. O papel do jornalismo nas políticas de exclusão.
Disponível em: < http://www.bocc.ubi.pt/pag/moretzsohn-sylvia-imprensa-criminologia.pdf>
111
Ibidem, p. 3
Para os jornais que falam aos extratos mais abastados, a proposta contudo é falar em nome da
sociedade, mostrando-se propriamente como quarto poder. Assim, o jornal assume-se
enquanto fiscal do poder, identificado com os costumes e as aspirações da tal sociedade,
apresentando-se como um “retrato fiel da realidade” que se auto-legitima. Desse modo,
promove a distinção entre “normais” (que aceitam a ordem) e “anormais” (que delinqüem).
Logo, “diferenças de linha editorial, frequentemente tópicas ou casuísticas, se dissolvem
quando se trata de definir o inimigo.” 112 Trata-se de uma assunção acrítica do discurso oficial.
Segundo a autora, a Inquisição legou a idéia de que a infração desorganiza a ordem. A ordem
jurídica é sacralizada e o combate ao crime se apresenta no vetor do extermínio, no qual é
preciso separar os bons dos maus, numa dualidade maniqueísta. Assim, a violência pe
fetichizada, o crime despolitizado e o criminoso é tratado como menos que humano.
A autora mostra que as campanhas de transmissão do medo da violência têm importante
influência na construção da notícia, uma vez que “o processo de seleção e hierarquização dos
fatos a serem transformados em notícia implica uma intencionalidade, frequentemente não
explícita, dos responsáveis por esse trabalho.” 113 Pode-se, desse modo, produzir ondas de
crimes e as matérias que isoladamente não teriam destaque, ganha sentido em meio a essa
onda – por exemplo, após a morte do menino João Hélio, O Globo deu destaque a crimes
cometidos por menores, que anteriormente talvez não tivessem o mesmo destaque. Logo, o
poder público se posiciona reativamente. A onda de crimes assim pode ser fruto do
monitoramento da imprensa. Outra estratégia nesse sentido é informar sobre como se proteger.
A autora mostra como que no Brasil o medo da violência está associado à movimentação da
população pobre: “O morro é assim como um acidente da natureza: está ali na geografia da
cidade e de repente, sem qualquer justificativa, explode, inesperadamente, e agride a
tranqüilidade de quem passa.” 114 A violência assim também é estética e a metáfora higienista
se perpetua na tentativa de separar o puro do impuro.
As soluções apresentadas para o problema são sempre simplificadoras, seja o esporte ou a
música como solução mágica, a busca é sempre pela ascensão dentro do sistema. A favela
aparece, dessa sorte, como lócus do mal do qual alguns meninos tentam se livrar, sem se

112
Ibidem, p. 8
113
Ibidem, p. 12-3
114
Ibidem, p. 16
questionar os porque da violência na favela, nem se perguntar sobre qual é a dor que seus
moradores sentem.

2.4 A MÍDIA E SEU PAPEL SOCIAL


Em outro artigo – O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 115 – Sylvia Moretzsohn faz
uma discussão a respeito dos métodos e dos propósitos da imprensa tendo por base os fatos e a
repercussão acerca do assassinato do jornalista da Rede Globo Tim Lopes. A autora aponta
que para o público em geral, o caso sedimentou a Globo como defensora dos diretos humanos
e da cidadania, e o jornalista assassinado como mártir.
Além disso, o caso apresenta com bastante clareza uma divisão social entre cidadãos de bens e
bandidos. É essa visão que a autora apresenta ao longo dos exemplos e que pretende também
criticar. Mas para isso é preciso conhecer melhor as concepções da mídia ao longo do tempo e
sua relação com a dominação burguesa.
Atualmente, é importante compreender que a noção mais apurada seria a de mídia e não a de
imprensa, uma vez que grandes empresas combinam elementos de entretenimento e de
noticiário — seja a novela que entra na cruzada contra as drogas ou as notícias sobre crime são
dadas com a reconstituição de cenas de crime, obviamente, na versão que interessa à empresa
divulgar. A imprensa é parte de algo maior — é por essa razão que fazemos tantas
considerações sobre a televisão.
Para a autora, é importante lembrar que “a atividade jornalística é tributária de ‘esclarecer os
cidadãos’. Trata-se, portanto, de tarefa eminentemente política”. 116 Logo, as idéias de
imparcialidade e neutralidade são descartadas, pois informar é uma tarefa política.
Atualmente, a mídia vem exercendo funções que ultrapassam às suas funções e que caberiam à
polícia e à justiça. Assim, ela se justifica perante a opinião pública como um instrumento de
diminuir a distância entre o homem comum e a justiça.
O que pode parecer como uma inocente atividade de serviço para a sociedade é, como
demonstra Moretzsohn, uma contingência do capitalismo tardio: a diminuição dos Estados é
acompanhada por uma crescente participação de “empresas cidadãs” com “responsabilidade
social”. A conflitividade social é substituída nessa por essas empresas em seu exercício de

115
MORETZSOHN, Sylvia. O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã”. Discursos Sediciosos, no. 12. Revista
Instituto Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2002. PP. 297-317.
116
Ibidem, p. 293
“fazer o bem”. Por outro lado, é a propagação do dogma da pena, que aparece na estreita
relação entre mídia e sistema penal, o instrumento de mediação de todo essa conflitividade.
Assim, muitos dos programas assumem novamente a forma jurídica de solução de conflitos,
como se fossem julgamentos, apontando culpados.
A mídia roga para si, dessa forma, um status de quarto poder. No capitalismo tardio, esse
poder se exerce também no sistema penal. A mídia, em um só movimento, divulga o crime e
clama pela pena, incitando até mesmo a mobilização por mudanças nas leis, além de promover
a perseguição a indivíduos que ela apontou e julgou como criminosos.
O programa Linha Direta, como já mostramos, a começar por seu nome que indica uma linha
direta com a cidadania, é fruto dessa linhagem editorial. Nesse processo, acontecem
julgamentos pela mídia, que servem como mecanismos de desqualificação de réus, ferindo
garantias legais conquistadas historicamente.
Dentro dessa perspectiva, a autora traz à tona a discussão a respeito do uso de câmeras ocultas.
Uma vez que se enxerga enquanto quarto poder, a mídia se pensa no direito de utilizar
qualquer meio, seja lícito ou ilícito, para penetrar em qualquer lugar, em nome do “direito de
saber” do público. Porém não podemos esquecer que essa é também uma atividade política,
com o objetivo de “abrir os olhos do Estado” para o que acontece de errado “debaixo do seu
nariz”. Contudo, geralmente, essas “provas” são juridicamente muito frágeis, o que
impossibilita que elas sejam utilizadas no processo judicial. Assim, a Justiça é dada como
incompetente, pois foi incapaz de fazer valer aquilo que a mídia já havia “demonstrado”, ao
mesmo tempo em que, sumariamente, já havia encontrado os culpados.
A autora demonstra a seletividade na ação criminalizante da mídia, afirmando que “a
cobertura criminal na grande imprensa baseia-se em fundamentações de cunho positivista e se
orienta por uma lógica que se estende à cobertura dos fatos relacionados às classes populares,
servindo à disseminação do medo e à formulação e ampliação de políticas cada vez mais
repressivas de segurança pública” 117.
Nesse sentido, são apresentados fatos que demonstrariam a “crescente ousadia dos bandidos”,
e repórteres “indignados” comentam a respeito do “poder paralelo” e da “ausência do Estado”,
clamando assim por um sistema punitivo mais rígido. Devido a seu caráter seletivo, esses

117
Ibidem, p. 298
apelos tendem a separar os “cidadãos de bem” dos “criminosos”; é uma estratégia de
desqualificação de réus, permitindo e convocando que se seja mais duro com os “criminosos”.
Os mais pobres, nessa acepção, são apresentados de três maneiras: ora como cidadão de bem
em busca de um futuro melhor, ora como dignos de pena, ora como massa de manobra
potencialmente explosiva. A tal sorte, a interferência nas áreas mais pobres é no sentido de
criar os ditos “cidadãos de bem”, especialmente através do voluntariado. Em uma conjuntura
de explicações individualistas, ainda se propõe que, se a “oportunidade” não foi aproveitada, a
culpa é de quem a desperdiçou.
Por vezes, os jornais noticiam violência contra as classes populares, mas em regra as notícias
de violência são marcadamente as notícias de violência sofrida pela classe média e alta. Tem-
se a impressão, conseqüentemente, que a violência atingiu níveis insuportáveis para essa
população. No entanto, quando se noticiam as estatísticas do número de mortos, por exemplo,
não se mostra quem eram, nem onde morreram essas pessoas, e, devido a omissões como essa,
a violência sobre a classe média em regra sobressai-se a violência sobre os pobres nos
noticiários.
Cria-se assim a impressão de que a cidade está sitiada pelos bandidos. A mesma manchete,
demonstra Moretzsohn, está estampada nas capas de jornais por décadas. “O que deixa
dúvidas sobre quem está sitiando a cidade: aparentemente, a população é refém do ‘crime’,
mas quem domina a cena é um policial armado.” 118 Assim, é possível semear o pânico.
Na semana em que estoura o caso Tim Lopes, jornais como o Globo vinham dando destaque
às notícias sobre o crime, que fomentam a esfera de medo na cidade. Em meio a essa
atmosfera, Lopes havia iniciado matéria de apuração na Vila Cruzeiro, para verificar
denúncia-crime feita à Rede Globo. A autora destaca a forte repressão moral que sofre a
música funk e o tráfico de drogas — fato que é sempre analisado em sua suposta “natureza
desvirtuante” e jamais em seu contexto socioeconômico;de que jeito, o traficante é não apenas
quem vende drogas, mas aquele que quer levar a alma das nossas criancinhas.
Em meio ao desaparecimento e a posterior a confirmação da morte do jornalista referido,
começa um debate acerca dos métodos e objetivos da imprensa e do jornalismo investigativo.
No Jornal do Brasil, Fritz Utzeri acusa a chefia de jornalismo da Globo de ter arriscado a vida
de Tim Lopes sem um ter motivo. Ele acusa o jornalismo investigativo da Globo de

118
Ibidem, p. 303
voyeurismo e diz que o que se mostra, geralmente, é o que se sabe: seria interessante se o
jornalismo da Globo penetrasse com uma câmera indiscreta nas festas da zona sul e conferisse
a prático de sexo e o uso de drogas em uma delas, ou seja, além de voyeurista é também
seletivo.
Em resposta, Carlos Henrique Schroder, no Globo, diz que não se pode negociar com
bandidos e que a Globo, e a mídia em geral, não pode se omitir, relegando os crimes à sombra.
Mais enfático foi Eugênio Bucci. Bucci começa afirmando que a rigor o jornalista deveria
sempre se identificar como tal diante das fontes e que é direito delas saber que estão falando à
mídia. Contudo, ele defende que há casos em que é preciso usar de câmeras ocultas, os casos
de crime.
Em contrapartida, Janio de Freitas aponta o que se tem gerado na mídia têm sido ondas de
sensacionalismo com relação ao crime, principalmente no que diz respeito ao uso e à venda de
drogas. A morte de Tim Lopes, contudo, estava sendo encarada como um duro golpe sobre a
liberdade de imprensa e a mídia hegemônica, em especial a Rede Globo, respondia como se
fosse seu dever resistir a esse tipo de “afronta”.
A reação à morte de Tim Lopes põe às claras todos esses elementos: a seletividade da
imprensa; a idéia de que o Rio pode perder a batalha contra o tráfico, apoiada, por sua vez, em
duas dicotomias: a primeira expressa no confronto cidadãos de bem contra bandidos, e
sociedade sadia contra o “câncer social” das drogas; e a segunda na localização da imprensa
enquanto “quarto poder” e com responsabilidade sobre a denúncia de crimes, substituindo a
polícia e a justiça. A reunião desses elementos nos convoca a uma cruzada contra as drogas,
ou seja, expansão do poder punitivo.
Nesse sentido, Tim Lopes é martirizado. “Somos todos vítimas. É nesse contexto que devemos
reagir. Preste atenção leitor: Tim morreu porque era um de nós. Mas morreu por sua causa.”
— diz no Globo o jornalista Luiz Garcia, citado por Moretzsohn.
Por fim, como desfecho do caso, apresenta-se o culpado: Elias Maluco. Elias, nesse caso,
simboliza o outro lado, o lado do bandido, do traficante, do favelado, daquele que atrapalha “o
bom andamento da nossa sociedade”. Assim, é como se se justificasse todo o esforço e
inclusive a morte de Tim Lopes. Dessa forma, escapa-se da discussão a respeito dos métodos
da mídia, como o uso de câmeras ocultas, e reafirmam-se seus objetivos, disfarçam
conflitividade social em luta contra o crime.
A essa construção da imprensa impõe-se uma resposta do Estado e essa relação é melhor
elucidada por Nilo Batista. A perspectiva de Batista em Mídia e sistema penal no capitalismo
tardio 119 está pautada pelo papel que exerce a mídia em meio ao sistema penal no capitalismo
tardio. É somente compreendendo como a mídia se coloca perante as formas de produção
atuais que podemos conceber o principal conceito que o autor trás à tona nesse momento, o
conceito de executivização da mídia.
Antes, contudo, de chegarmos a esse ponto, é preciso compreender como essa relação entre
mídia e capitalismo tardio se estrutura e como isso se dá no sistema penal atual. A imprensa,
aponta Batista, sempre esteve envolvida com os projetos de dominação burgueses e serviu de
suporte para as criminalizações exercidas ao longo dos séculos pela burguesia sobre a classe
operária. Assim, o discurso defensivista-social sempre esteve presente e, ao longo dos séculos
XIX e parte do XX, a imprensa não se furtou em contemplar com admiração as teorias sobre a
inferioridade biológica dos indivíduos criminalizados.
Para Batista, a compreensão do novo papel da mídia só pode se dar em meio às mudanças das
condições econômicas. Logo, estamos diante de uma nova demanda por ordem, debitada a
uma nova configuração do mercado de trabalho. O capitalismo tardio e o projeto neoliberal
levaram ao chão parques industriais de países inteiros, causando uma onda de desemprego e
de subempregos, além da flexibilização de garantias trabalhistas que existiam anteriormente.
Portanto, “o empreendimento neoliberal precisa de um poder punitivo onipresente e
capilarizado” 120, que dê conta do controle dos ociosos do sistema.
A ligação se dá porque, como já citamos anteriormente, em meio aos mecanismos de
acumulação e centralização, as empresas de comunicação são controladas pelos mesmos
grupos que controlam o restante das empresas capitalistas. Compreendido isso, podemos
chegar ao primeiro pilar da argumentação de Batista nesse artigo, a saber: a mídia nos dias
atuais tem um compromisso com o empreendimento neoliberal.
O segundo pilar que percebemos na argumentação de Batista é que a mídia ressignificar a
idéia de pena: “O novo credo criminológico da mídia tem seu núcleo irradiador na própria

119
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos, no. 12. Revista Instituto
Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2002. PP. 271-289.
120
Ibidem, p. 272
idéia de pena: antes de mais nada, crêem na pena como rito sagrado de solução de
conflitos.” 121
Dessa forma, a argumentação parte do seguinte ponto: a mídia tem uma relação intrínseca com
o projeto neoliberal e, dentro dessa conjuntura, a mídia irradia a idéia de pena para todos os
lados, propagando a equação penal: se houve delito, tem de haver pena.
Pensando nas conseqüências dessa argumentação, podemos dizer que se houver qualquer
desgraça, houve delito (ao menos, pensa-se, alguém se omitiu) e se houve delito, tem de haver
pena. Logo, se houve desgraça, tem de haver pena. Assim, por tudo de ruim que se encontra na
sociedade, há de se encontrar um culpado e puni-lo.
A segunda conseqüência da argumentação é quase que uma conseqüência lógica da primeira.
Se para todo mal em nossa sociedade se pode encontrar um culpado para o qual se pede pena,
caberia à imprensa o papel de noticiar os delitos, de apresentar os culpados e de pedir pelas
penas. Assim, estão subvertidas várias das lógicas do processo penal, como a presunção de
inocência. Surge então o que Batista chama de dogma da criminalização provedora. “A
criminalização, assim entendida, é mais do que um ato de governo do príncipe no Estado
mínimo: é muitas vezes o único ato de governo do qual dispõe ele para administrar, da
maneira mais drástica, os próprios conflitos que criou” 122.
Batista aponta ainda que o Editorial dos jornais é o local onde normalmente se constrói e se
articula o discurso criminológico midiático, que se separa do discurso criminológico
acadêmico. Assim, permite criar uma blindagem contra as críticas ao dogma penal e ao
sistema penal atual como um todo. Por outro lado, segundo o autor, a mídia influencia o
trabalho acadêmico.
Nesse discurso, reside a contradição do sistema do capitalismo tardio; aos consumidores
plenos, são oferecidos recursos contra a institucionalização; aos consumidores falhos é
destinada sempre a criminalização. Reside aí a teoria da separação entre homens de bens e
“animais selvagens”, como cunhou um artigo do Jornal do Brasil citado pelo autor.
Batista, citando Neder, demonstra que esses discursos apontam também no sentido de um
passado pacífico, passado esse que não se verifica em qualquer lugar. É o que Neder chamou
de utopias urbanas retrógradas. Baseia-se assim o discurso criminológico na “ética da paz”,
em busca de um passado completamente imaginário. E isso deve ser feito sem se discutir o
121
Ibidem, p. 273
122
Ibidem, p. 274
sistema, as condições econômicas que engendram tal realidade: “a modernidade realizou-se
plenamente, suas promessas estão cumpridas, e se o resultado final é decepcionante, tratemos
de atenuá-lo pela caridade, pelo voluntariado, por campanhas publicitárias: mas lei é lei.” 123
A pena passa a ser vista como uma forma de compreender e de separar o mundo. Num mundo
de individualidade, apenas o indivíduo pode ser culpado por estar em uma penitenciária; logo,
ele é um indivíduo moralmente incompleto, corrompido, ou seja, ele tem algum déficit moral
intrínseco – o que lembra, em muitos aspectos, as idéias do criminoso ontológico natural,
propagadas pelo positivismo criminológico.
Os especialistas, em regra, servem de suporte para as máximas a respeito da criminalidade,
como “a impunidade aumenta o número de crimes” ou “penas altas dissuadem”. Essas
máximas são empiricamente incomprováveis. O jornal, contudo, se reserva o direito de
publicar somente aquilo que lhe interessa, e se algum especialista no assunto submete uma
opinião contra, seus argumentos não serão publicados.
Batista traz à tona a distinção entre criminalização primária e criminalização secundária, que
nos permite pensar que a criminalização se dá em dois momentos: um primeiro de feitura de
leis e um segundo de enquadramento de indivíduos como infratores dessas leis. A
criminalização secundária, lembra o autor citando Raúl Zaffaroni, permite um controle da
população, de forma seletiva, como já citamos acima.
Acompanhando o sistema tecnológico de vigilância, ainda se encontra um elemento central no
sistema penal atual: o delator. O jornalista, por vezes, cumpre esse papel: cabe a ele entrar
com a câmera escondida e denunciar o crime que seja. E apontando crimes atrás de crimes e
exigindo penas, conseqüentemente, a imprensa se furta de discutir outros assuntos, como o
desemprego. Por outro lado, ela cumpre uma função que cabe ao Estado enquanto sistema
penal: ela apura e descobre crimes, e, além disso, aponta e sentencia os criminosos. Assim
podemos falar de executivização da imprensa. Nas palavras do autor: “o importante é a direta
mobilização do sistema penal, o cumprimento de uma tarefa própria das agências executivas
do sistema penal. Sob tais circunstâncias, nas quais a mídia está não apenas pautando as
agências executivas do sistema penal, como também selecionando entre candidatos à
criminalização secundária (...), cabe falar de uma ‘executivização’ das agências de

123
Ibidem, p. 276
comunicação social do sistema penal.” 124 A imprensa assume para si a responsabilidade de
abrir os olhos do Estado para o que há de errado.
Para Batista, “o paradoxo de que a um Estado social mínimo corresponda um Estado penal
máximo conduz (...) [à] despolitização dos conflitos sociais” 125. As administrações locais
parecem pouco competentes e pouco qualificadas. As edições dos jornais, por outro lado, estão
compostas em sua maioria de notícias criminais e judiciais. A mídia hoje mistura em seus
programas, em muitos momentos, noticiário e entretenimento. No entretenimento, muitos
programas de variedade, como o Ratinho, assumem a forma judicial, apontando um conflito e
julgando um determinado caso. A mídia, portanto, está se acostumando a julgar; seus
julgamentos, em geral, interferem nas decisões policiais e judiciais. Assim, por fim, o autor
apresenta como a influência da mídia, em julgamentos quase sumários, se torna, de muitas
formas um impedimento às garantias legais de um acusado, como de preservar sua identidade
e a presunção de inocência.

2.5 IMPRENSA E “SEGURANÇA PÚBLICA” NO RIO DE JANEIRO APÓS A


REDEMOCRATIZAÇÃO
Cecilia Coimbra, em seu estudo sobre a relação entre os noticiamentos prévios e durante as
Operações Rio I e II, “pretende levantar como estão sendo produzidos, cotidianamente, alguns
aspectos da chamada ‘violência urbana’ sobre ‘as mentes e corações’ de diferentes segmentos
da população nas grandes cidades.” 126 É o discurso forjando sentimentos, na produção de
modos de viver e existir. Para a autora, a subjetividade é uma produção em meio a uma
correlação de forças; nesse sentido, ela pretende pensar como o apoio a violações de direitos
humanos é uma construção — bastante eficaz.
Segundo ela, os discursos sobre a segurança pública estavam, à época, ainda bastante
influenciados pela Doutrina de Segurança Nacional, que se voltara para as parcelas miseráveis.
A escolha dos jornais se justifica — para a autora, como para nós — porque está é uma fonte
rica, que veicula uma quantidade maior de informações sobre as notícias divulgadas. Contudo,
é preciso levar em conta que as notícias nunca se dão isoladamente, sendo necessário levar em
consideração outros meios, posto que a mídia é uma rede.

124
Ibidem, p. 281
125
Ibidem, p. 282
126
COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia
impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Oficina do Autor; Niterói: Intertexto, 2001.
A autora se pergunta quais são as implicações sobre o fato de a violência ser dada hoje como
natural e também sobre quais as implicações acadêmicas desse fato. Com essa preocupação
em mente, Coimbra se debruça sobre a mídia enquanto produtora de esquemas dominantes de
significação. A mídia nos orienta sobre o que pensar e sentir, estabelecendo modelos de como
ser e como nos relacionar. É, portanto, um dispositivo em uma sociedade de controle da
contemporaneidade, logo “enfatizam-se os valores e as virtudes da instantaneidade, da
descartabilidade, da diversificação, do planejamento e ganhos a curto prazo, da capacidade de
se movimentar com rapidez.” 127 O espetáculo, como já colocamos, com suas formas
dramáticas e sensacionalistas, produz identidades e sentimentos, numa hierarquização de
temas entre os que são de interesse público e que não são se enquadram em tal categoria. Vale-
se da dicotomia maniqueísta para a produção de emoções, que agora são marcadamente mais
fluidas. O mundo é, como já ressaltamos em outros autores, uma construção social e histórica,
que jamais cessa de ser feita. Os meios de comunicação, nesse contexto, participam dessa
construção também na hierarquização de temas, indicando aqueles que não podemos ignorar.
Além disso, domestica-se a fantasia e lhe tira o seu potencial transformador, resultando a tudo
num desejo individual e consumista. Os grandes “mal-estares” sociais só conseguem ser
sentidos quando devidamente denunciados.
A participação dos especialistas se torna um dispositivo da verdade, trazendo o discurso
iluminado, científico, que se impõe aos demais e propaga um sentimento coletivo de
impotência. Lembremos que o que não é visto, não pode ser reconhecido e dificilmente pode
ser lembrado. A mídia legitima autoridades e quem está fora do governo e/ou da academia não
tem espaço como autoridade na mídia.
Esse enquadramento nos leva à construção de uma memória oficial, que apaga o vestígio das
idéias radicais, como havia sugerido Eagleton 128. Para Coimbra, isso se dá na tentativa de
“produzir subjetividades que desconhecem, desfiguram ou distorcem os embates dos
‘vencidos’ como se estes não estivessem presentes no cenário político.” 129 Formam-se assim
zonas de sombras, silêncios, esquecimento e repressões, nas quais se encontram os
acontecimentos que se encontram fora dos mass media.

127
Ibidem, p. 35
128
Cf. 2.1
129
COIMBRA, Cecilia. op. cit., p. 51
Na contemporaneidade, os inimigos internos são outros: o suspeito é o pauperizado, a ser
evitado e mesmo eliminado, na produção de uma relação causal entre pobreza e criminalidade.
Por conseguinte, através da produção, reprodução e fortalecimento de rótulos e identidades, a
desigualdade vai se tornando mais aceitável; o “mal” é projetado numa parcela da sociedade
que “nos é externa”. Por sua vez, o criminoso é desqualificado da categoria de gente: o pobre,
assim é suspeito de não ser gente, é não-gente em potencial, pois só tem valor aquele que
consome. Coimbra mostra, como já citamos anteriormente, que a imprensa atende a interesses
comerciais e publicitários, contudo, transparece a idéia de neutralidade e objetividade,
mostrando-se ao público em geral como uma das instituições sociais mais confiáveis.
Resgatando a história brasileira desde a escravidão, a autora lembra o controle sobre as
virtualidades no Brasil — que em nosso primeiro capítulo preferimos classificar como
potência —: não se trata de punir o que se fez, mas de se controlar o que se pode fazer. A
autora mostra como a pobreza no Brasil sempre foi vista como causadora dos “vícios”, que
devem ser evitados pelos “pobres dignos” através de uma “base moral” forte. A urbanização,
dessa maneira, constrói-se como um projeto político opressor, a rua é tida como o lugar da
barbárie e surge o medo de tudo que não pode ser classificado, de todo aquele indivíduo que
não tem o endereço fixo, que não vive conforme os padrões da família burguesa estruturada.
Logo, onde falta controle, em regra, no Brasil exercido quase que exclusivamente pela polícia,
sobrariam bandidos.
Na redemocratização brasileira a produção do medo e do pânico nas classes médias se dá por
meio de uma intensa propaganda do crescimento da criminalidade, numa tentativa de
substituir o discurso da segurança nacional. Legitimam-se, dessa forma, os discursos e ações
que levam à morte os membros pauperizados de nossa sociedade.
O Exército continua na busca dos “inimigos internos” e aparece como pronto, no início da
década de 90, para interferir ou contribuir ou gerir, enfim, participar da gestão da segurança
pública na cidade do Rio de Janeiro e adjacências. Os meios de comunicação alardeiam que a
“violência” no Rio de Janeiro atingira níveis insuportáveis, dado a falta de “pulso” do governo
estadual para lidar com a “criminalidade” e à corrupção policial. O Exército, que havia
participado na proteção dos chefes de Estado presentes à Rio-92, se mostra como solução para
esse problema.
Essa construção midiática se produz em meio a um período eleitoral e tem influência direta
nas eleições de candidatos do Partido Social Democrata do Brasil (PSDB) tanto no pleito
estadual, quanto no nível federal, e na conseqüente derrota dos candidatos do Partido
Democrata Trabalhista (PDT) nessas mesmas eleições. Delimitam-se, conseqüentemente, duas
estratégias de Segurança Pública: uma valorizando uma estratégia de guerra — que teve o
apoio da mídia e saiu vitoriosa da eleição de 1994 — e outra de valorização dos Direitos
Humanos.
Quanto à intervenção do Exército, Coimbra mostra que a mídia não apenas a apóia – ela, em
grande medida, a provoca; apoiá-la é apenas uma conseqüência lógica. No mais, esse apoio,
bem como toda a ação do Exército — marcada pela tortura e execuções nas favelas cariocas
— mostra a associação que se faz entre pobreza e criminalidade. Consolidam-se assim os
mitos de que o Rio de Janeiro vive uma “guerra”, e de que as forças armadas são
incorruptíveis. A tortura é banalizada e naturalizada, não passam do que o ex-governador
Marcello Alencar chamou de deslizes ou do que o governador atual Sérgio Cabral Filho chama
de “cota de estresse”.
Vemos assim que com a redemocratização, os militares mantiveram a função de preservar, a
ordem, a segurança e a lei — necessariamente nessa ordem. Agora, busca-se um “inimigo
interno não-ideológico” e a motivação é o insuportável estado da violência que existe no Rio
de Janeiro. É uma “nova Doutrina de Segurança Nacional”, segundo a qual todos os pobres
são suspeitos de serem esse “inimigo interno”. Trata-se de uma política de extermínio de
negação de formas de sobrevivência.
Também debruçado sobre a Operação Rio, Wilson Couto Borges 130 busca mapear a produção
discursiva da grande imprensa nas ocasiões da Rio-92, e das Operações Rio I e II. Borges
entende a mídia como agente político e busca “encontrar uma produção discursiva que
legitimou, novamente, a intervenção militar” 131, ou seja, como ocorre a interferência da
imprensa no jogo de disputa das classes. Para ele, a imprensa é o lugar privilegiado para a
formação da memória coletiva e para a construção de representações sociais e como tal, tem
forjado uma “cultura do medo”. Nesse sentido, caminha para controlar as classes populares,
sendo formada pela mídia através de campanhas de lei e ordem. Borges aponta também, no

130
BORGES, Wilson Couto. Criminalidade no Rio de Janeiro: A imprensa e a (in)formação da realidade. Rio de
Janeiro: Revan, 2006.
131
Ibidem, p. 13
caso das Operações Rio, a consolidação da figura de Leonel Brizola — governador do Estado
do Rio de Janeiro por dois termos (1983-1987 e 1991-1994) — como símbolo da
pseudocriminalidade.
Para essas campanhas de lei e ordem, segundo o autor, a solução para a segurança pública
seria eliminar toda e qualquer diferença. O jornal impresso tem importante papel no jogo de
construção da memória, no passado sendo redefinido em função das lutas do presente,
buscando assim a definição do consenso, numa coesão social pela adesão afetiva. Segundo ele,
a imprensa atuou, em termos de enquadramento da memória coletiva, ora
disseminando, ora esvaziando uma ‘cultura do medo’ entre seus leitores, de modo
que produziu, a partir de suas construções retóricas, interpretações não só a cerca do
espaço público, mas, principalmente, das ações governamentais sobre o mesmo. 132

Temos assim a impressão de que a violência aumentava antes da intervenção militar e que fora
contida. Os índices de criminalidade não apontam nesse sentido: todos aumentaram durante as
Operações Rio.
Para o autor, é preciso analisar as formas de dizer, lembrando que os jornais estabelecem com
o leitor o que ele chama de contrato de leitura. É a aceitação da mediação do mundo pelo
jornal. A mídia não deixa de ser um espaço de luta de classes. Segundo ele, “com a velocidade
ditada pelo capitalismo, muda-se a forma de relacionamento entre os indivíduos. Dada a
dificuldade para a relação entre eles, busca-se uma nova forma de comunicação, a
informação”. 133 A mídia faz a mediação: a informação que temos é o recorte que ela nos dá,
sob o enfoque que ela coloca. Os media servem de cristalizadores de visões das sociedades
industriais sobre o real e o jornal tem destaque na formação da opinião
Também retomando a escravidão, Borges mostra a continuidade história que tem se mostrado
no medo da rebelião negra na cidade do Rio de Janeiro e como esse medo tem sido condutor
da subjetividade atualmente. Ocorre portanto uma associação entre missão policial e missão
civilizatória: no Brasil, tem primazia a ordem sobre a lei na construção do paradoxo que é
tentar cumprir a ambos. Para ele, “a imprecisão dos conceitos de ordem e de crime permitiu o
deslocamento de tais conceitos para enquadrar determinados movimentos sociais sempre que
as demandas desses agentes tornam-se indesejáveis para nossas elites.” 134

132
Ibidem, p. 21
133
Ibidem, p. 147
134
Ibidem, p. 44
No país, ainda segundo Borges, oscilou-se sempre entre o pólo liberal e o pólo autoritário,
criando duas estratégias distintas para os governantes: ou politizar ou policizar a “questão
social”. O governo Brizola representa uma tentativa de politizar a questão social e a resposta
midiática de lei e ordem significa uma tentativa de policizá-la. Nessa tentativa, vale-se tanto
da força quanto da sedução. É preciso atentar para o fato de que durante o segundo governo de
Brizola os índices de homicídios vinham se reduzindo, logo, a crise de segurança pública é
mais construída do que real. Para Borges, “ao produzir um real, uma verdade, um sentido
(como se fosse o real, a verdade, o único sentido), os meios de comunicação de massa apagam
da cidade as lutas, os conflitos, as contradições que fazem parte de seu cotidiano”. 135 O projeto
de Brizola, de acordo com Borges, é dado como concessão de privilégios aos pobres e de
direitos humanos ao bandidos. O legado da Doutrina de Segurança Nacional nos coloca diante
da preocupação de encontrar “inimigos internos”; a mídia, apresentando seu projeto como
único e apresentando-se como “neutra” e “objetiva”, além de “imparcial”, invalida a
construção democrática dos direitos humanos.
Trata-se agora de um conflito urbano deflagrado como se fosse guerra, na resistência ao
projeto de concessão de cidadania política às classes populares, que é incorporado mesmo por
boa parte das classes populares. O consumo é o lugar da cidadania; e a forma como o “milagre
brasileiro” foi apreendido, sobre o binômio segurança e crescimento, leva o Exército a gozar
de enorme confiabilidade entre a população brasileira. O pobre busca uma saída individual e
consumista, que impeça que ele, e somente ele, seja caracterizado como bandido.
Para Borges, “no jogo de disputas por sentido, a hegemonia acaba sendo dos meios de
comunicação, que tratam dos enunciados com características de naturalização” 136. O medo se
impõe como mercadoria nos jornais, sob um paradigma de guerra, no qual os “bandidos”
estariam cada vez mais ousados e o Estado cada vez mais permissivo. Surge a idéia de que nas
partes segregadas da cidade estaria surgindo um “Estado paralelo”.
Esse discurso, apresentado como único, imposto como mero espelho da realidade, se coloca na
despolitização e na conseqüente policização da “questão social”, aos políticos como um todo.
O governo Brizola, por entender a realidade de forma diferente, não é visto como divergente
politicamente, mas como “fraco” e “permissivo” com a “criminalidade”. Os valores burgueses
vão assim se hegemonizando pela sedução.
135
Ibidem, p. 73
136
Ibidem, p. 118, grifos nossos.
Uma última nota quanto ao trabalho de Borges, sobre o qual fizemos aqui breve resenha. O
jornal O Dia, de cunho mais popular, é o único que faz alguma menção à perspectiva
democrática em meio a essa campanha midiática por ordem e segurança pública. Ressaltamos
aqui que para falar às classes pobres é preciso alguma mudança no discurso, o que
transparecerá também em nossa pesquisa.
No mais, preferimos até aqui não tensionar entre os trabalhos de Coimbra e de Borges, apesar
das diferenças que o próprio Borges aponta. Limitaremos a dizer que os autores têm uma forte
divergência sobre a natureza da Operação Rio I e que acreditamos que Borges foi
extremamente injusto ao dizer que Coimbra não reconhece as diferenças políticas entre a
política de segurança do governador Nilo Batista — eleito como vice-governador na chapa
com Leonel Brizola, em 1990, e que assumiu o governo quando Brizola se afastou para
concorrer à presidência da República — e Marcello Alencar.

* * *

Pierre Bourdieu, em obra supracitada, destaca que os sociólogos têm dois péssimos hábitos —
entre outros, diríamos nós –: um deles sendo o de declarar que as coisas sempre foram assim;
o outro de apontar que as coisas nunca foram assim. A historiadora Gizlene Neder nos diz,
também em trabalhos já citados, que a história se faz de rupturas e continuidades. Os
sociólogos, já aponta Bourdieu, não devem perder isso de vista.
A cobertura da imprensa sobre a “criminalidade” muda com o passar dos anos, não
pretendemos dizer que seja sempre a mesma, que esteja completamente determinada pelos
interesses comerciais e, mais amplamente, burgueses. A democracia, mesmo liberal burguesa
como o ocidente a tem vivido, permite que os indivíduos lutem e que se posicionem em meio
às lutas. Às garantias democráticas, mesmo que meramente formais, podem ser lançadas à
mão em meio a essa conjuntura. Nesse sentido, nenhuma campanha por “ordem”, “segurança
pública” ou outra temática no mesmo intuito é igual a anterior. Não só porque muda a
conjuntura, mas também porque muda a estrutura.
Entretanto, não podemos perder de vista o que se encontra enquanto continuidade. Se o
cadáver desaparece da capa da maioria dos jornais ou se o linchamento passa a ser uma prática
vista negativamente 137, não quer dizer que não se esteja diante de uma campanha por ordem e
por repressão. Como já disse Michel Foucault, também em um trabalho cá citado, por vezes,
não se trata de punir mais, mas de punir melhor. Lembremos também que a política dominante
no Brasil sempre amalgamou liberalismo e tomismo e o fato de se caminhar em direção a um
dos extremos desse pêndulo não significa que o outro tenha sido abandonado por completo.
Se temos os Direitos Humanos como perspectiva de garantia de dignidade para a população
pobre, transfigure-se isso na forma efetiva que venha a se configurar, é preciso entender qual é
a demanda por ordem que se apresenta e como essa demanda interfere nas políticas de
criminalização. Se é possível construir um Estado na periferia do capitalismo que se paute por
uma política de Direitos Humanos é uma pergunta por demais ampla para o tímido escopo
desta dissertação.
Estamos aqui preocupados com mais uma campanha por ordem. Boa parte da construção da
realidade que temos é, como vimos, espetacular — se numa mediação entre os sujeitos e o
mundo real feita pela informação apresentada na forma de mercadoria, que, como tal, é
apresentada sob o seu fetiche, ou seja, desvinculada de seu produtor — e estética — não nos
apela à razão, mas nos seduz, nos atrai, ou nos causa repugnância. É na mídia que vamos
encontrá-la em grande parte. Debruçar-nos-emos sobre a imprensa escrita, pelo seu
detalhamento. Adiantamos aqui que essa campanha não se deu nas eleições, mas no início de
um governo. Governo que progressivamente se conforma a ela, posto que ela se apresenta
como única alternativa. Vamos a ela.

137
Ver RAMOS, Silvia e PAIVA, Anabela. Mídia e Segurança Pública: tendências na cobertura de criminalidade
e segurança no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007.
3. ENTRE O MEDO E A ESPERANÇA
De pronto, nos é imprescindível ressaltar uma questão. Esse estudo não tem como foco
exatamente a questão criminal ou da violência na cidade do Rio de Janeiro. Nosso foco está
em discursos sobre a criminalidade, com destaque para como esse discurso aparece na
imprensa. E nossa análise se deu sobre dois jornais: O GLOBO e o EXTRA INFORMAÇÃO.
São dois jornais pertencentes ao mesmo grupo empresarial, com duas redações que se
apresentam enquanto “redações-irmãs”, sendo que em diversas ocasiões matérias de um jornal
são reproduzidas pelo outro e por vezes até jornalistas dos diferentes jornais fazem matérias
em conjunto.
Mostraremos como ambos os jornais tem enfoques diferentes com relação à realidade social,
principalmente no que tange o enfoque emocional e não racional. Há divergências entre as
mensagens também racionalmente, mas acreditamos aqui que mesmo isso é fruto de uma
grande diferença entre as duas redações, a saber: uma está programada para propagar o medo e
outra está programada para vender a esperança. Pretendemos demonstrar, ainda, que essa
divergência afetiva está constituída devido ao público alvo para qual cada um dos jornais
pretende atingir: O Globo, propagador do medo, destinado aos setores mais abastados e o
Extra às classes médias e baixas.
Dada às limitações de tempo e de disponibilidade para a pesquisa, a análise do Extra foi
limitada a extratos do semestre em questão (o primeiro de 2007), enquanto analisamos todas
as edições de O Globo do referido período. Deixo claro que a seleção dos extratos do Extra
não nos foi facultada, foram estudadas as edições que se encontravam disponíveis na
Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro.

3.1 VIGIAR E ESPALHAR MEDO – UMA ANÁLISE DE O GLOBO


A imprensa responsável pode ser incômoda para o governante, mas é essencial por
informar, denunciar, debater e criticar, mas também por reconhecer quando
problemas importantes são resolvidos.
A imprensa é um dos instrumentos com que conta a população para saber como
anda o trabalho das autoridades no atendimento de suas necessidades. 138

Escolhemos aqui começar essa análise com uma auto-definição. Assim, podemos mostrar
como O Globo se pensa em meio à sociedade. Isso posto, não podemos deixar de ressaltar que
a definição de quais sejam os “problemas importantes” e quais seriam as “necessidades” a

138
O Globo, 26/03/2007 p.6 Editorial Sob Ataque
serem “atendidas” da qual o jornal vai tratar é algo que se dá na construção dialética entre um
jornal e seu público. Ao longo dessa análise, vamos mostrar como essa dialética se dá seções
Cartas e outros Editoriais. Comecemos, contudo, pelo primeiro dia de nossa análise.

3.1.1 Quem ataca quem?


Em sua principal manchete de capa de 1° de Janeiro de 2007, O Globo estampou que “Rio
apreensivo festeja 2007” 139. No editorial, “O Rio de Cabral”, o governador eleito, que tomaria
posse nesse mesmo dia, é chamado a responder a uma crise de respeitabilidade e de segurança,
detonada especialmente pelos ataques a delegacias e pela queima de um ônibus na qual oito
passageiros morreram. Os 19 mortos nos últimos quatro dias de 2006 vão ser a justificativa
para uma demanda por ordem e por ações de segurança por parte do novo governador. Ainda
na edição do primeiro dia de 2007, o jornal traz a manchete “Especialista sugere até estado de
defesa” 140, na qual a ocupação federal é sugerida.
A resposta é rapidamente concedida no mesmo dia pelas autoridades. Lembramos que nossa
fonte aqui continua sendo os jornais. De fato, nos interessa pouco para esse estudo apurar
como de fato se posicionou esse ou aquele político. Isso escaparia o escopo da pesquisa. É de
nosso interesse como os referidos jornais contaram essa história. Assim, ressaltamos que a
edição do dia seguinte traz a indignação tanto do Presidente da República, que declara que as
mortes do final de 2006 não são crimes comuns, mas atos terroristas, e do governador do
Estado, que elenca a Segurança Pública como uma de suas prioridades e pede apoio federal no
combate à criminalidade. O uso da “mão forte do Estado” é ressaltado, sendo utilizado
independentemente de “partidos e ideologias”. O governador reforça que o governo não se
intimidará e que vai ganhar a guerra.
Em meio a esse discurso nos chamou atenção um texto jornalístico publicado na revista Piauí,
de Yonatan Mendel, intitulado Vocabulário do Jornalismo israelense 141, no qual o autor
mostra como são noticiadas as incursões da Força de Defesa de Israel (FDI) em território
palestino. Segundo o autor, os jornalistas israelenses têm liberdade para se posicionar
contrariamente ao governo e serem críticos e ásperos em suas observações em todos os

139
O Globo, 01/01/2007 - Capa
140
Ibidem, p. 18
141
MENDEL, Yonatan. Vocabulário do Jornalismo Israelense. Revista PIAUÍ, Maio 2007. <Disponível em
http://www.revistapiaui.com.br/edicao_20/artigo_600/Vocabulario_do_jornalismo_israelense.aspx >
aspectos, porém, “quando se trata de ‘segurança’, não há tal liberdade. Só há ‘nós’ e ‘eles’, as
Forças de Defesa de Israel, FDI, e ‘o inimigo’.” 142 Trata-se não de um código de censura
escrito, mas isso está intrínseco na forma como os próprios jornalistas pensam.
A FDI nunca comete ilegalidades. A notícia se apresenta na forma “Os palestinos alegam que
a FDI...” Assim, o noticiário traz a versão oficial da FDI e a “alegação” dos palestinos. No
linguajar técnico, a FDI não mata, acontece um “assassinato dirigido”, da mesma forma que a
polícia militar fluminense não comete assassinatos, acontecem autos de resistência. Para
Mendel, a imprensa israelense nunca se questiona sobre o fato de as ações da FDI serem a
principal fonte das reações dos palestinos.
No Rio de Janeiro, no período em questão (primeiro semestre de 2007), foram cometidos 694
autos de resistência. Houve nessa mesma época o assassinado de 15 policiais militares em
serviço, segundo dados do Instituto de Segurança Pública 143. Fica a pergunta de quem está
reagindo a quem. E mais além, se cabe aos crimes do final de 2006 a alcunha de terrorismo,
qual é a causa segundo a qual esses supostos terroristas se motivam?
Não é nosso objetivo aqui responder a essas perguntas, nosso interesse é mostrar perguntas e
questionamentos que o referido jornal não faz. Por durante todo o mês de janeiro de 2007 as
edições diárias de O Globo foram elogiosas com a promessa do governador, Sérgio Cabral
Filho, de ser duro com a “bandidagem”; de não entender “bandido”, mas de combatê-los, de
trazer para o Rio de Janeiro a Força Nacional de Segurança, de construir, juntamente com os
demais governadores sudestinos um consórcio de segurança pública.
Contudo, a ênfase de O Globo não estava sobre a possibilidade de dias melhores, estava
assentada principalmente sobre as problemáticas dos dias atuais. Em janeiro de 2007, são as
vias expressas da cidade do Rio de Janeiro (a Linha Vermelha, a Linha Amarela, a Avenida
Brasil, a Avenida Perimetral e, em menor grau, o Aterro do Flamengo), o grande perigo que a
cidade passa a enfrentar. Nesse contexto, o jornal apresenta uma atmosfera de guerra, na qual
as vias expressas aparecem como campos minados no qual qualquer momento podem surgir
novas vítimas; o que afetaria em especial o turismo na cidade, já que a Linha Vermelha e a
Avenida Brasil são os caminhos que levam ao Aeroporto Internacional.

142
Ibidem, p. XX
143
Instituto de Segurança Pública, Secretaria de Segurança Pública, Governo do Estado do Rio de Janeiro,
Balanço das incidências criminais e administrativas no Estado do Rio de Janeiro (primeiro semestre de 2007)
<Disponível em: http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/Uploads/BalancoSemestral.pdf>
Assim, para o jornal, o governo assume uma postura de guerra para o jornal. Em 6 de janeiro
de 2007, as fotos da transferência de presos considerados responsáveis pelo ataques de
dezembro de 2006 é contraposta, na página seguinte com a foto do governador, no Alto do
Corcovado, sob os braços abertos da enorme estátua de Jesus Cristo, participando de uma
missa, acompanhado de sua esposa. Está colocada a imagem do cristão contrapondo-se ao
herege, resgatando a matriz medieval de nosso poder punitivo, já descrita em pormenores por
Nilo Batista em Matrizes Ibéricas do Direito Penal Brasileiro I 144. Assim, a chegada da Força
Nacional de Segurança (FSN) para patrulhar as fronteiras e de um novo esquema de segurança
para as vias expressas vão se tornando formas de aplacar o medo, numa tentativa
posteriormente conhecida como “estrangulamento”, na busca de evitar a entrada de armas e de
drogas nas favelas da capital fluminense. Vejamos essa carta publicada no dia 17 de janeiro de
2007: “No município do Rio de Janeiro existem 600 favelas. Se admitirmos que em cada uma
delas haja cerca de 50 bandidos, teremos um total de 30 mil perigosos foras-da-lei afetados
pela queda de arrecadação. (João Luiz Filgueiras Filho, do Rio de Janeiro, por e-mail)” 145 O
medo expresso pelo leitor consiste em saber também como será feito o controle dessa
população supostamente perigosa. Os leitores que escrevem e que são publicados pelo referido
jornal tem uma concepção clara, da qual decorre uma posterior demanda por ordem: pessoas
más existem e elas se encontram nas favelas da cidade. Logo, é preciso controlá-las. Segundo
outro leitor, “A solução da Força Nacional é paliativa, o câncer que se formou desde a gestão
Brizola não tem mais jeito. Tolerância zero, já! (Paulo César Mêda, do Rio de Janeiro, por e-
mail)” 146 Um outro leitor é mais enfático: “Qual o problema que afeta a segurança do Rio de
Janeiro? Os bandidos. Onde está o QG dos bandidos, onde se alojam, de onde comandam suas
ações e onde escondem e armazenam suas armas, munição e drogas? Nas favelas. Ora, se as
favelas não forem varridas e as gangues de bandidos de lá não forem desalojadas, não tem
Força Nacional que dê jeito... (Newton Bastos, do Rio de Janeiro, por e-mail)” 147
Progressivamente, torna-se mais aparente uma questão que poderia parecer secundária, mas
que se revela central, como a teoria da criminologia crítica já havia nos deixado claro 148, nessa
esfera, o controle da população pobre é fundamental. Essa é uma questão central para os

144
BATISTA, Nilo. Matrizes Ibérica do Sistema Penal Brasileiro – I. cit.
145
O Globo – 17/01/2007 p. 6
146
Idem, - 19/01/2007 p. 6
147
Idem, - 20/01/2007 p. 6
148
Cf. 1
processos de criminalização. Assim, o crime se encontra quase que exclusivamente nas favelas
e os bandidos a serem combatidos seriam os moradores das favelas, mesmo que não todos os
moradores. O tal enfoque, portanto, aparece para os leitores de O Globo como muito largo. A
Força Nacional, patrulhando as divisas estaduais, parece fazer um trabalho pouco produtivo e
mesmo abusivo contra “famílias” e “cidadãos de bem”. Está assim definido um norte de
conduta de como O Globo, em conjunto com seus leitores, definiu uma política de segurança
pública satisfatória. Em 25 de janeiro, é anunciada na capa do jornal a prisão de acusados de
incendiar um ônibus em dezembro de 2006 e internamente uma manchete se destaca “Após 11
horas de tiroteio, 5 bandidos mortos” 149. É a primeira notícia de mortos pela polícia
fluminense no Complexo do Alemão no referido período. Faltava apenas uma característica
para completar o rol das premissas da criminologia neoconservadora, mesmo com a queimada
de pessoas vivas no ônibus da Itapemirim, não havia nenhuma vítima marcante, que causasse
comoção extrema. Tragicamente, ela aparece com toda a força em Fevereiro.

3.1.2 Pobre Joãozinho – a vítima como protagonista


Antes de passarmos para a análise de como foi noticiada a morte do menino João Hélio
Fernandes Vieites, é preciso entender o que estamos chamando aqui de criminologia neo
conservadora. Talvez a descrição mais apurada desse tipo novo de sociologia seja a de David
Garland, em seu livro A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade
contemporânea 150. Em seu esforço de compreender as mudanças no comportamento com
relação ao crime nos últimos trinta anos nos EUA e no Reino Unido, Garland provavelmente
construiu a melhor descrição sobre os medos e as reações políticas conservadoras na “pós-
modernidade”, embora sua explicação, a nosso ver, exagere na importância do aumento da
taxa de criminalidade 151. Nessa obra, esse autor britânico radicado nos EUA, foca atenção a
como os atores e agências específicos ligados à questão criminal reagem às mudanças
149
O Globo – 25/01/2007 p. 12
150
GARLAND, David. A Cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Coleção
Pensamento Criminológico, nº 16. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008.
151
Na página 363, na nota 91 do capítulo 6 da obra referida, Garland diz que “Para meu propósito, uma taxa de
criminalidade ‘alta’ é aquela na qual a evitação do crime é um princípio organizacional central da vida cotidiana.”
Nosso argumento é de que, sem negarmos que as taxas podem estar objetivamente alta, o medo pode se dar com
qualquer taxa, posto que tem outros fatores – fatores para os quais o próprio autor aponta também. Ademais,
Garland aponta que a grande alta na criminalidade dá-se na década de 1950 e a mudança para um combate ao
crime “pós-moderno” se dá na década de 1980. Ele não nega que há fatores diversos que só permitiram tal
mudança nas últimas décadas do século XX, mas acreditamos que ele ponha um peso excessivo nesse aumento
objetivo do crime, que para nós, ele de fato não tem.
estruturais. Para ele, a estratégia só foi ser constituída após o estabelecimento das novas
práticas, que se adaptam progressivamente à idéia de que o crime aparece como fato normal e
regular, companheiro inevitável da modernização. Há, também, uma sensação de que a justiça
criminal do Estado de Bem-Estar Social havia falhado. O mito do Estado soberano capaz de
prover segurança é abalado, o que causa duas estratégias: a primeira é relegar o controle do
crime também a outras instituições; a segunda, que nos interessa aqui é a tentativa de reafirmar
esse mito e de aumentar a repressão.
Assim,
na seleção de respostas políticas, aquelas que mais facilmente possam ser tidas como
veementes, inteligentes e efetivas ou expressivas são as mais atraentes. Aquelas que
sejam compreendidas (pelos adversários ou pelo público) como uma retração, como
reconhecimento do fracasso ou dissociadas do sentimento público são as que
apresentam maiores inconvenientes. O problema é mais de retórica política e de
aparência do que de efetividade prática. 152

O êxito do sistema penal também é redefinido; não está mais na reabilitação, mas sim na
vigilância. E há também uma concentração grande nas conseqüências, com medidas de apoio
às vítimas, redução da insegurança e mitigação de prejuízos e danos. Dentre as novas
abordagens para o controle do crime, Garland identifica uma na qual o estudo se baseia em
diminuir o número de oportunidades para o crime e no policiamento comunitário, enquanto a
outra se baseia é a busca neoconservadora por reforçar a ordem vigente. Os dividendos
eleitorais mais óbvios e fáceis estão na segunda alternativa. Para Garland, “quanto maior o
interesse eleitoral do crime e da punição, mais os partidos (...) competirem entre si para obter a
credencial de ser duro com o crime, preocupado com a segurança pública e capaz de restaurar
a moralidade, ordem e disciplina, em face das corrosivas mudanças sociais da pós-
modernidade” 153. E acreditamos que esse seja o cálculo político feito também por Sérgio
Cabral Filho – é notório o preço político que o grupo ligado ao ex-governador Leonel Brizola
arcou com sua política de segurança pública que não se enquadrava nesse modelo, numa
acusação que um jornal como O Globo e seu conjunto de leitores jamais abandonarão.
Constituiu-se assim uma política que pune principalmente a quem não tem como reivindicar
propriamente seus direitos, porque não tem poder de mobilização política, ou seja, jovens
pobres pertencentes a minorias étnicas dos grandes centros urbanos. Assim, dá-se uma

152
Ibidem, p. 250
153
Ibidem, p. 280
satisfação a quem efetivamente tem como reivindicar e passa a impressão de que o Estado está
mantendo a ordem.
Essa política se estabelece com leis duras que não aumentam a dissuasão, um punitivismo
vigilante e de eficácia duvidosa, um retorno a certo absolutismo anti-moderno na afirmação do
poder soberano, que não se rende ao fato de que a soberania estatal é um mito. E essa política
não se mede pela eficiência, mas pelo apoio imediato, é estética e não apela ao racional, mas
ao emocional, assim, “se vale de imagens, arquétipos e ansiedades, e não de análises
cuidadosas e de descobertas científicas” 154. É um discurso politizado do inconsciente coletivo,
no qual o criminoso aparece como o anti-social de carreira e como não-humano ou, ao menos,
menos humano, mal ou perverso.
Nessa perspectiva, o Estado tende a concentrar-se nos efeitos mais do que nas causas, com
ênfase nas vítimas e nos medos. A segregação e a estigmatização penal retornam como
controle do risco e orientada a proteção pública. Já percebemos como essa política populista e
eleitoreira pede o controle das populações faveladas.
O que temos como objetivo principal na recapitulação da descrição de Garland, que
acreditamos ser largamente aplicável à política de segurança pública no Rio de Janeiro do
atual governo, é mostrar a importância da vítima enquanto fator de comoção. Surgiu nessa
política um lugar privilegiado às vítimas, que servem como fonte de legitimidade para tais
políticas, apresentando a imagem santificada da vítima sofredora. Assim, “o novo imperativo
político é que as vítimas devem ser protegidas; suas vozes devem ser ouvidas; suas memórias
devem ser honradas; suas raivas expressadas; seus medos enfrentados.” 155
Surge uma oposição incompatível entre vítima e criminosos – qualquer direito ou benefício
dado ao criminoso é visto como uma afronta à vítima. A vítima aparece como representante de
uma experiência comum, desse modo, assume-se uma busca emocional e não racional; a busca
pela identificação com a vítima, pelo pensamento de medo do tipo: “poderia ter acontecido
com você”. Numa sociedade na qual a individualização é crescente os dramas individuais têm
um poder de comoção maior do que os coletivos – no outro extremo, o crime é de
responsabilidade individual. O criminoso, especialmente no Brasil, é uma espécie de sub-
humano. Uma das cartas de O Globo, de 1° de Fevereiro de 2007 diz sobre uma prisão que
“antes de a polícia chegar, um deles apanhou de um segurança, e eu comemorei. Queria mais é
154
Ibidem, p. 285
155
Ibidem, p. 317
que ele tivesse levado um tiro. (Bárbara Machado de Albuquerque, por e-mail, do Rio de
Janeiro)” 156
Mas a comoção se torna completa quando existe uma vítima com a qual as pessoas possam se
identificar, sentir como se fosse um membro da família em potencial, de preferência uma
criança, inocente e indefesa. Em meio a uma campanha de combate às milícias e de
criminalização de líderes políticos populares que se entrelaçavam, em especial na Vila
Joazina, no dia 08 de Fevereiro O Globo deu uma pequena matéria: “Criança de 6 anos é
arrastada por ladrões de carro e morre” 157. Os jornalistas não se deram conta, no primeiro
momento da repercussão que a matéria teria. No dia 09, a matéria principal na capa de O
Globo traz essa mesma notícia, agora com o título “Barbárie contra a infância” e com o
subtítulo: “Morte de menino de 6 anos arrastado em carro roubado por bandidos causa
comoção e revolta” e segue no corpo do texto: “Nas ruas, no velório e no enterro, o clima era
de comoção e revolta. Jornalistas e policiais não contiveram o choro. (...) O secretário de
Segurança, José Mariano Beltrame, e o comandante-geral da PM, Ubiratan Ângelo, se
emocionaram e choraram. (...) Em 12 horas, mais de 2.500 e-mails pediram rigor na punição
aos bandidos.” 158
Das mais de 2.500 mensagens, 28 foram publicadas no mesmo dia, ocupando toda a sessão de
cartas dessa edição. Separamos trechos das mais punitivas delas, que reproduzimos aqui:
Direitos humanos e redução de pena por bom comportamento será o futuro destes
bandidos, enquanto a família viverá o resto da vida condenada a sofrer a irreparável
perda desta vida que estava começando. Estamos vivendo total inversão de valores.
(Gregório Miguel Madeira da Silva, por e-mail, do Rio de Janeiro).
Não pude deixar de pensar em pena de morte para pessoas que cometem tais crimes.
(Adriana Correia da Silva, por e-mail, do Rio de Janeiro).
Direitos humanos para quem é humano. Tolerância zero para os que pouco se
importam com a vida alheia (Antonio Cláudio Lima Catanheiro, via Globo Online,
do Rio de Janeiro).
Chega de arrogância de juristas e criminalistas que insistem em ignorar os anseios
mais legítimos da população. É exatamente em meio ao clamor e à indignação
popular que as transformações aconteceram. A população tem o direito, sim, de
decidir o destino de seus algozes. (Marilda Campos, por e-mail, do Rio de Janeiro).
...essa subspécie tem que morrer de qualquer maneira. (Eduardo Magalhães Mendes,
por e-mail, do Rio de Janeiro). 159

Na seqüência das edições de O Globo, dois assuntos são predominantes: por um lado, a dor da
família Fernandes Vieites, de Rosa e Elton, pais do menino João Hélio, que foi a vítima fatal
156
O Globo – 01/02/2007
157
Idem, 08/02/2007 p. 15
158
Idem, 09/02/2007 capa
159
Ibidem, p. 6
desse acontecimento, além da filha mais velha do casal. A isso, soma-se o interminável rol de
testemunhas que dizem ter alertado os assaltantes ao longo dos quilômetros pelos quais o
menino foi arrastado, de famílias que se solidarizam com a dor dos Vieites, de meninos de
idades próximas a de João Hélio que homenageiam a memória de João de alguma forma, seja
com desenhos dedicados a ele, seja com palavras, além da solidariedade prestada por outras
famílias que tiveram seus filhos assassinados no Rio de Janeiro.
Por outro lado, inicia-se uma discussão sobre como punir adequadamente os acusados,
especialmente em se tratando desse caso, uma vez que um dos acusados é menor de idade.
Abre-se um período de intensa movimentação legislativa a respeito do tema da maioridade
penal. O governador Sérgio Cabral Filho defende uma legislação penal diferenciada para cada
estado da federação e a matéria de capa do dia 10 de Fevereiro de 2007 em O Globo estampa:
“Martírio de criança reabre debate sobre leis mais duras” 160. O debate vai se desenvolver no
Congresso e como o Globo é o jornal carioca no qual a classe alta encontra-se com ela mesma,
o debate será acompanhado de perto pelo jornal. Alguns dos críticos aos quais os congressistas
terão de responder serão os familiares de João Hélio, inclusive à aparentemente muito irritada
irmã do menino, de apenas 12 anos, que escreve repetidas cartas pedindo a redução da
maioridade penal.
Assim, como Garland já havia detectado nos Estados Unidos e no Reino Unido, a vítima aqui
também se tornou um elemento central no discurso sobre o crime e, como se fosse um
especialista, é chamado a opinar sobre o plano de segurança pública e sobre a legislação penal.

3.1.3 O desfilar sem fim de histórias tristes e a busca incessante por culpados
Ademais, grosso modo, as campanhas feitas pelos jornalistas em O Globo, ou seja, as matérias
que são realimentadas nas edições seqüentes, seja com novos desdobramentos de um velho
caso, seja com novos casos que são de alguma maneira relacionados aos anteriores, dividem-
se em dois estilos: de um lado, a divulgação de notícias de crimes, que constitui o desfilar sem
fim de história tristes; de outro lado, a divulgação de notícias de atividades policiais, em
especial da Polícia Federal, no combate ao que o jornal convencionou chamar de “máfia”. As
notícias de ações da polícia nos bairros periféricos são mais episódicas, nesse período, exceto

160
Idem, 10/02/2007
no período de ocupação da Polícia Militar no Complexo do Alemão, do qual trataremos com
vagar.
Por ora, recapitularemos algumas das histórias de veiculação de notícias de crimes que
achamos que fornecem elementos para uma análise de como é feita a demanda por ordem em
O Globo.

Assalto aos Mantega


A chamada principal da capa de O Globo de 24 de Janeiro de 2007 trazia a seguinte
informação: “Reféns em assalto, Mantega e empresário não dão queixa” 161 e na página 3 a
manchete é “Assaltado, ministro não vai à polícia” 162. A história reporta um assalto na qual as
famílias do empreiteiro Victor Sandri e do ministro da fazenda Guido Mantega foram feitas
reféns.
Além das informações corriqueiras sobre um assalto a um político importante, o caso chama
atenção pela divulgação de um fato especial: o ministro Mantega não teria dado queixa. Teria
sido a polícia que dado a informações da imprensa que procurou os assaltados para confirmar
o assalto. Esse caso chama atenção para uma ressignificação do dogma da pena na atualidade;
não basta procurar culpados, é preciso fazer-se de vítima.
O ministro, assaltado em São Paulo, alegou que tinha que voltar com brevidade a Brasília e
que ainda não havia feito a denúncia, mas que logo o faria. Coube a sua esposa, Elaine
Mantega, fazer declarações à imprensa sobre o assalto. E a manchete de capa de O Globo do
dia 25 de Fevereiro estampa com ironia: “Mulher de Mantega culpa economia pela
violência” 163.
No entender de Elaine, ocorrera mais um fato de violência dado à desigualdade sócio-
econômica gritante do país. Grosso modo, a impressão que ela deixa é de que não quer fazer
alarde sobre o ocorrido. Contudo, isso é completamente inadmissível tanto para O Globo
quanto para o seu leitor padrão. Enquanto autoridades, os Mantega deveriam ter dado um
“exemplo” de espetáculo midiático de auto-vitimização, e de demanda por ordem e pena.
Para que a divergência fosse completa, Elaine Mantega declarou que os criminosos foram
“supergentis”. A secção de cartas dos leitores de O Globo traz no dia 26 de Fevereiro 16 cartas

161
O Globo – 24/02/2007, Capa
162
Ibidem, p. 3
163
Idem, 25/02/2007, Capa
de reprovação às declarações da esposa do ministro e Luiz Garcia apresenta um artigo
intitulado “Uma boa: assaltar ministros” 164. No dia 28, Élio Gaspari escreve outro artigo
reclamando da demora do ministro em registra queixa pelo assalto que sofrera. Em não se
fazerem de vítimas, os Mantega aparecem como simpatizantes aos assaltantes e quase tão
errados quanto.

Félix Tostes
O policial civil Félix Tostes foi assassinado a tiros no final de Fevereiro de 2007. A morte de
Félix não se destaca por ser mais um caso de morte de policial. Ele era acusado de ser chefe de
uma milícia que operaria em Rio das Pedras, favela da Zona Oeste da cidade.
Tudo ao redor de Félix é examinado pelo jornal com suspeição; seja a jornalista que era dona
do carro no qual o policial foi assassinado, seja o presidente da associação de moradores de
Rio das Pedras; sejam os parentes do policial assassinado. Uma série de reportagens intitulada
“Banda Pobre” anuncia possíveis “Ligações Perigosas” a respeito da morte Félix.
O jornal referido tem como praxe a denúncia de milicianos e em diversos editoriais declarou-
os tão nefastos quanto os traficantes. Jacarepaguá é o bairro dado como “berço das milícias” e
todos os políticos da região, especialmente os que são policiais de carreira são tratados como
suspeitos de chefiarem milícias. A morte de Félix reacende essa polêmica.

Os franceses da ONG Terr’Ativa


No dia 28 de Fevereiro, em sua capa, O Globo traz a seguinte notícia: “Ex-menino de rua mata
3 franceses” 165 e a matéria interior aponta que eles foram “Vítimas de quem tentavam
salvar” 166. Além disso, as notícias dão conta de que a comunidade francesa no Brasil está
chocada e de que o crime teve repercussão também na França.
Segundo a reportagem, Társio Wilson Ramirez, ex-morador de rua e ex-cliente da
Organização Não-Governamental Terr’Ativa, teria matado e esquartejado três franceses que
trabalhavam na ONG, incluindo o casal que havia fundado a organização, Cristian Doupes e
Delphine Doyere. Társio teria tido a ajuda de outras duas pessoas que contratara. O crime se

164
Idem, 26/02/2007, Capa
165
Idem, 28/02/2007, capa
166
Ibidem, p. 11
daria porque o ex-menino de rua, que então trabalhava na organização, fizera um desfalque de
milhares de reais e agora estava sendo responsabilizado por seus superiores.
Para completar a dramaticidade do crime, o casal, apontado como mentores e protetores de
Társio durante toda a sua vida, deixa órfão um menino. O crime acontece no mesmo dia em
que o presidente de República declara que, por vezes, “a violência é questão de
sobrevivência”. Esse crime serve como o argumento contrário, pois mostra um menino que
teve “oportunidades de mudar de vida”, mas que não conseguiu “abandonar sua índole” ou,
como aparece em uma das quatorze cartas sobre a temática publicadas no dia 01° de março,
“algumas pessoas, por mais que se faça por elas, terão sempre a índole dos facínoras e a
ingratidão dos criminosos. (Ricardo Haddad, por e-mail, do Rio de Janeiro.” 167
No editorial de 02 de março, o jornal declara que “a justificativa dada pelo presidente Lula
para a violência – ‘muitas vezes é questão de sobrevivência’ – deriva de um cacoete de parte
da esquerda de relativizar tudo.” 168 Ademais, o caso revela uma forte oposição entre
civilização e barbárie, entre “franceses bonzinhos” e “ex-meninos de rua com índole de
facínoras”, o que gera mais simpatia para essas vítimas: “Ela acreditou em dar um jeito num
país que não era dela... (Nina Pinheiro, por e-mail, de Paris)” e “Aonde vamos chegar, quando
assassinamos pessoas que estão aqui para nos ajudar? (Tânia Regina dos Santos Barbosa, por
e-mail, do Rio de Janeiro)” 169

Alana/Edna Ezequiel
“Bala perdida mata menina” 170, traz a capa de O Globo de 06 de Março de 2007. Era Alana
Ezequiel de 13 anos, moradora do Morro dos Macacos, na Zona Norte. A foto da mãe de
Alana, Edna, aos prantos, é estampada na capa e nas matérias interiores. O incrível é que dois
outros meninos foram mortos na mesma operações policial, contudo, os jovens foram dados
como traficantes de drogas e suas mortes perderam qualquer relevância social.
Nesse momento os leitores de O Globo se encontram perante uma contradição e acreditamos
que uma digressão um pouco mais profunda é necessária para a sua melhor compreensão. Em

167
Idem, 01/03/2007, p. 6
168
Idem, 02/03/2007, p. 6
169
Idem, 01/03/2007, p. 6
170
Idem,06/03/2007 capa
sua obra A “Questão Social” no Brasil 171, o cientista político Gisálio Cerqueira Filho, aponta
que o discurso burguês, apesar de sempre ser uma busca de conciliação de interesses de
classes antagônicas, baseada em uma teoria de integração social, tem dois extremos: um
liberal e um autoritário. Assim, aponta o autor, ao longo da história do Brasil
Nos momentos conjunturais em que uma crise da hegemonia não se configura como
viável, o pensar e o agir das classes dominantes tendem a se aproximar, definindo a
“questão social” como uma questão eminentemente política, que se resolve na base
da conciliação, do favor recíproco, da barganha, da política enfim. Isto define a
“questão social” como uma “questão política”, não importa o tipo de política que
entra em jogo e é realizada.
Nos momentos conjunturais de aguçamento da crise de hegemonia no Brasil, a
“questão social” se define como uma questão que deve ser resolvida na base dos
aparelhos repressivos do Estado. Isto define a “questão social” como uma “questão
de polícia” que, sem deixar de ser política, passa a ser resolvida com predomínio de
uma de suas dimensões, a repressão efetiva, prática. É nesse momento crítico que o
agir das classes dirigentes revela concretamente os seus limites. 172

O neoliberalismo é a tentativa mundial de policizar a “questão social” em um período no qual


a hegemonia não está em crise. Contudo, no Brasil, ele esbarra em um entrave importante. O
neoliberalismo nos países desenvolvidos se baseia na crítica do Estado previdenciário, na
suposta dependência que ele causaria, que geraria uma “preguiça” nos clientes desse sistema.
O Brasil nunca completou o seu modelo de Estado de Bem-Estar Social. Argumentos como a
falta de serviços públicos básicos, como a educação, enquanto causas criminalidade não
podem ser inteiramente descartados mesmo nos círculos mais conservadores, como a secção
de cartas de O Globo.
Com a morte de Alana essas opiniões afloram. Não porque qualquer surto de modernidade
permita ver qualquer humanidade nos acusados de tráfico de drogas, mas a discussão se dá
sobre qual é a medida a ser adotada nas favelas em termos de política pública, se o “caveirão”
– carro blindado da polícia militar fluminense, que ao mesmo tempo em que protege os
policiais em incursões às favelas, torna mais difícil que os policiais em seu interior acertem os
tiros, o que potencializa a ocorrência de balas perdidas, como a que matou a menina Alana
Ezequiel – ou a escola.
Nas cartas dos leitores de 07 de Março de 2007, a secção “A dor de todos” traz treze cartas,
nas quais as opiniões nesse sentido se dividem: “Porque as pessoas, principalmente crianças e
mulheres, saem as ruas nesse momento (de operação policial] (...) A comunidade nessa hora

171
CERQUEIRA FILHO, Gisálio. A “Questão Social” no Brasil: crítica do discurso político. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1982.
172
Ibidem, p. 28
deveria ficar em casa. Caveirão sempre. (Maria Porto Mendonça Clark, via Globo Online, do
Rio de Janeiro)” e em outra carta: “Os pobres necessitam de educação e não de caveirão.
(Vinícius José Farias do Nascimento, por e-mail, do Rio de Janeiro)”. 173
O caso de Alana traz a possibilidade de a vítima estar em meio aos que normalmente fazem
parte do estereótipo de algozes. Reabre assim a “questão social” por meio da questão criminal.
A declaração de Edna Ezequiel, aparece no mesmo dia, 07 de março, dizem que “Quem mora
no morro não tem sonho” 174. Contudo, como já colocamos, isso não impede em nada a
desqualificação do réu enquanto humano: o traficante do morro continua sendo o monstro que
quer roubar a alma de nossas criancinhas. Edna Ezequiel, por outro lado, é elevada a categoria
de “mãe de vítima”, e nas edições seqüentes ela é fotografada ao lado de Rosa Vieites.
Entretanto, fora comoções específicas, o assassinato de jovens pobres, especialmente se
homens e negros, continua sendo noticiada como um efeito colateral de pouca proporção,
quando não é um dever da atividade policial. Vejamos essa pequena nota do dia 08 de março,
sob o título “Quatro mortos”: “Os corpos de quatro jovens foram encontrados num matagal na
Avenida Sargento de Milícias, na Pavuna, próximo à Via Dutra, na madrugada de ontem.
Segundo a polícia, as vítimas, não-identificadas, aparentando entre 17 e 25 anos, estavam
amarrados e foram mortas com tiros. Policiais civis suspeitam de que os quatro faziam parte
de uma quadrilha de assaltantes que agia na região há três meses.” 175 Esse crime não recebe
qualquer relevância e não importa a dor da mãe nesse caso, uma vez que os assassinados, antes
mesmo de serem identificados, já foram dados como suspeitos de formarem uma quadrilha.
Segundo essa lógica, é preciso “separar o joio do trigo” nas comunidades pobres.
Estabelecido assim quais os crimes são relevantes, podemos passar a um próximo momento
lógico, embora, em regra, ambos esses momentos se apresentam simultaneamente – de fato,
sua separação é fruto da nossa análise. O desfilar de casos tristes de violência urbana em O
Globo não tem fim. Nosso objetivo aqui não é mostrar todos eles, nem a maioria, mas mostrar
como eles repercutem, dado as diferentes situações. Assim, agora que há clareza de quais são
os crimes relevantes, o jornal complementa sua veiculação de notícias com a cobrança por
ordem e por pena.

173
O Globo, 07/03/2007, p. 6
174
Ibidem, p. 17
175
Idem, 08/03/2007 p. 19
Essa cobrança se dá para os três poderes, o que cria leis – para que crie leis mais duras – o que
julga – para que julgue com rigor – e o que policia – para que garanta segurança. Segundo o
editorial de 09 de março, é preciso “aumentar as penalidades e também reformar as
instituições para que a legislação seja de fato aplicada. Uma coisa não elimina a outra.” 176
Dividiremos a cobrança por pena em três acompanhamentos diferentes: o legislativo, as
operações das policias civil e federal – sempre com seu nomes interessantes – e a operação da
polícia militar no Complexo do Alemão, a começar por maio de 2007.
A principal demanda por pena discutida em O Globo no período referido é a redução da idade
penal. Desde a morte do menino João Hélio o tema ganhou destaque, uma vez que um dos
acusados era menor de idade. Porém, a temática já era discutida no jornal anteriormente. No
dia 08 de Janeiro, na página 3, o jornal publica um debate entre Luis Antonio Fleury Filho e
Antonio José Maffezoli Leite, que defendiam diferentes opiniões quanto a essa temática (esse
contrário e aquele favorável). Mas é somente após a morte de João Hélio que o jornal declara
que “como está, o ECA (Estatuto da Crinaça e do Adolescente) pune a sociedade” 177
No dia 14 de Fevereiro, a discussão atinge o Congresso Nacional e o “Senado reabre a
discussão da maioridade” 178 O presidente da República pede cautela nessa discussão e o
governador do estado do Rio de Janeiro pede legislações penais estaduais. O argumento
principal era de que um menor que comete um crime pode ser punido por apenas um tempo
máximo de três anos. A idéia de ressocialização ou de reabilitação perde muito de sua
importância. Assim, “o que nós queremos é que os infratores sejam exemplarmente punidos
por seus atos, não com o intuito reeducativo e sim como meio de se obter a real justiça para
atos bárbaros como os ocorridos recentemente” 179. É preciso ressaltar que os editorais, em
regra, foram mais comedidos do que a média das cartas de leitores que o próprio jornal
publicou nesse período.
Nessa esteira, um pacote legislativo de encarceramento em massa é proposto, com propostas
de aumento do tempo de regime fechado para quem é condenado por crime hediondo e de
punição para adultos que praticarem crimes em conjunto com menores. Congressistas de
diferentes estados e diferentes partidos, governistas e de oposição, como Aloísio Mercadante,

176
Idem, 09/03/2007 p. 6
177
Idem, 09/02/2007 p. 6
178
Idem, 14/02/2007, p. 3
179
Ibidem, p. 6
do Partido dos Trabalhadores de São Paulo, e Onyx Lorenzoni, do Democratas do Rio Grande
do Sul, aparecem na promoção desse consenso punitivo. Às vozes destoante, como da
senadora Patrícia Saboya, do Partido Democrático Trabalhista do Ceará, é reservado um
pequeno espaço, geralmente em tom de crítica ou de ironia.
Novamente, retorna a questão de politizar a questão. Em uma opinião emitida, o jornal
defende que “sem planejamento familiar e educação, a sociedade continuará a enfrentar os
efeitos sem eliminar as causas” 180. No dia 18 de Março, a principal manchete de capa diz:
“Falta 3,4 mil vagas para deter menores infratores” 181, e a matéria demonstra as péssimas
condições em que os menores infratores vivem.
Contudo, isso não se reflete, como já dissemos anteriormente, em nenhum tipo de compaixão
com criminosos. Uma carta de um leitor serve para definir bem esse sentimento. “Os bandidos
de hoje nasceram ontem nessas mesmas condições, sem carinho, sem alimento, sem escolas e
educação. (Aquino Júnior, via Globo Online, do Rio de Janeiro).” 182 Assim, segundo esse
raciocínio, existem casos perdidos, a dúvida é o que fazer com os que não se perderam ainda.
Mas não devemos perder de vista que é uma busca por equilíbrio entre politização e
policização da questão criminal. O presidente da República se mostrou contrário à redução da
idade penal e foi criticado. Teve que responder não só às críticas de leitores irados e de
editorialistas descontentes, mas às da figura central dessa nova forma de compreender a
questão criminal; a vítima. A capa de O Globo de 19 de Março traz: “Família de João critica
declarações de Lula” 183 e no interior do jornal a mãe do menino assassinado declara: “Está
tudo a favor da ‘bandidagem’, parece que eles não estão governando para o cidadão. Estão
governando para os marginais.” 184
Na esteira do assassinato do menino João Hélio, uma série de crimes cometidos por menores,
como o assassinato da avó por um menino de 12 anos e os menores que baleiam um
empresário chinês, ambos na cidade do Rio de Janeiro, ganhar relevância e se torna um
argumento positivo na demanda para a redução da idade penal. E é na busca por essa confusa
síntese entre politizar e policizar a questão criminal que o jornal vai construindo sua opinião:

180
Idem, 17/02/2007, p. 22
181
Idem, 18/03/2007, capa
182
Ibidem, p. 6
183
Idem, 19/03/2007, capa
184
Ibidem, p.8
A falta de uma política nacional séria de planejamento familiar, potencializada pelas
deficiências no sistema de ensino público e no aparelho de segurança, povoou as
cidades de jovens sem qualquer perspectiva de vida, presas fáceis da cooptação por
quadrilhas que se fortaleceram nas favelas e comunidades pobres em geral. O
desfecho desse drama está todos os dias na imprensa. 185

O tema retorna com força total com o veiculação de um vídeo que a primeira dama do estado
produziu sobre as condições de vida dos menores infratores no Instituto Padre Severino, na
Ilha do Governador, no dia 17 de Março. A resposta governamental à imprensa é dada no dia
seguinte, numa matéria com a manchete: “Perto da família, longe do crime” 186, na qual é
anunciado que as famílias de menores infratores receberam “Bolsa-família”. Segundo a
matéria, trata-se de “um sistema sob sinal de alerta” e a “falta de visitas expõe situação de
abandono”.
Nessa síntese complexa, as cartas dos leitores dos dias seguintes trazem a indignação com a
proposta: “Será que essa gente pensa que acabará com a violência gratificando os criminosos?
187
(Paulo Sérgio Rocha Serra, por e-mail, do Rio de Janeiro)” . Novamente, no dia 23 de
Março, a repercussão do caso de João Hélio se faz presente quando é anunciado que o menor
que participou do crime ficará internado por apenas três anos. Segundo a matéria, três anos
poderia ser tempo suficiente para ressocializá-lo, mas não o é para puni-lo. E a opinião que
ganha maior destaque nesse caso é novamente a do pai, que reclama do pouco tempo que o
menor ficará preso.
Os reclames quanto a maior idade penal podem ser encontrados ao longo de todo o período
estudado. Eles esporadicamente retornam. No final de abril de 2007, a discussão se reacende
no Congresso Nacional, com a posição clara do governo de manter a idade penal em 18 anos.
As opiniões de leitores se mostram divididas quanto ao assunto, mas o jornal começa a formar
sua opinião de forma mais categórica: “É tamanha a freqüência de crimes cometidos por
menores e a reincidência deles no delito que é impossível convencer a sociedade de que o
Estatuto [da Criança e do Adolescente] não termina servido de instrumento de impunidade. E,
portanto, de incentivo ao crime.” 188 A opinião, repetida por alguns leitores, é de que para um
jovem de 16 anos que cometa um crime é preciso que haja punição e não ressocialização; e em
um editorial de 15 de junho de 2007, intitulado “Sem meio termo”, o jornal marca sua posição

185
Idem, 24/02/2007, p. 6
186
Idem, 18/03/2007, p. 18
187
Idem, 20/03/2007, p. 6. Nesse dia, são 21 cartas, todas corroborando a mesma idéia.
188
Idem, 28/04/2007, p. 3
a favor da redução da maioridade penal para 16 anos em todos os casos. Essa, como muitas
das discussões que apresentamos aqui, não se limita ao período estudado por nós. Logo
imaginamos que a tentativa de reduzir a idade penal não tenha se limita e que continue até os
dias atuais. Por ora, contudo, interromperemos o debate sobre as demandas por mudanças
legislativas para nos ater a um outro lado da demanda por pena: a busca incessante por
culpados: duas campanhas durante o período estudado chamaram nossa atenção as operações
da Polícia Federal e as incursões da Polícia Militar no Complexo do Alemão. Não que essas
foram as únicas operações policiais acompanhadas.
Dentro do espetáculo midiático brasileiro do início do século XXI, as operações da Polícia
Federal constituem um caso que merece análise. Em larga medida, a Polícia Federal é
reconhecida por sua capacidade de inteligência: suas operações são planejadas por durante
meses, não envolvem a troca de tiros e geralmente prendem pessoas ricas e autoridades dos
três poderes – por vezes até, outros membros da própria Polícia Federal. Dado ao nosso
período de estudo, escolhemos o divulgação de notícias das Operações Furacão e Têmis, que
foram as mais citadas por O Globo no período referido.
No dia 14 de Abril de 2007, a chamada principal do jornal O Globo estampa: “PF desmonta
rede de corrupção com bicheiros, juízes e delegados” 189. Começa uma série de reportagens sob
o título de “A máfia oficial”, que se estende pelos próximos meses e que ocupa sete páginas
interiores da edição do dia 14, anunciando “A sexta-feira treze da corrupção” 190, com a prisão
de desembargadores e juízes acusados de vender sentenças, de policiais acusados de acobertar
criminosos, bem como dos acusados de serem seus corruptores. Segundo a reportagem, a
Operação “Furacão é apenas o primeiro passo da devassa” e busca “desarticular uma
organização criminosa que estaria infiltrada nos poderes Judiciário e Executivo do Rio” 191.
Dentre os presos na operação, ganham destaque os membros do poder Judiciário e os supostos
bicheiros presos, Turcão, Anísio e Capitão Guimarães, além do sobrinho desse, Júlio
Guimarães, chamados preferencialmente por seus apelidos. A prisão dos juízes leva à dúvida
se a Justiça condenará a seus membros. Em 18 de Abril, O Globo traz a manchete “STF
prorroga prisão de 25 suspeitos” 192. Para uma demanda punitiva alta, o Poder Judiciário

189
Idem, 14/04/2007, capa
190
Ibidem, p. 16
191
Ibidem, p. 20
192
Idem, 18/04/2007
aparece sempre como um problema: ele pode considerar acusados inocentes e liberá-los, ele
pode conceder benefícios a criminosos – geralmente, previstos por lei, como responder ao
processo em liberdade ou progressão de regime – mas, mesmo que o Poder Judiciário se insira
ele também em uma ira punitiva, ele costuma ser lento, muito mais lento do que a ação
policial. Para essa nova cultura punitiva, a acusação, devido a todos os fatores citados acima, é
de que “a polícia prende e a justiça solta”. Ou, nesse caso específico, de que a Polícia Federal
prende e o Supremo Tribunal Federal (STF) solta. A manchete principal da capa de 22 de
Abril de 2007 traz que “STF manda soltar procurador e desembargadores acusados” 193 e no
dia 24 traz: “Último juiz é solto e polêmica sobre corporativismo cresce.” 194
Na esteira da Operação Furacão, surge a Operação Têmis, que, com foco maior no estado de
São Paulo, busca investigar mais propriamente o Poder Judiciário em si. E na seqüência, surge
a cobertura da Operação Navalha, que investigou o esquema de corrupção que levou à
derrubada do então presidente do Senado Renan Calheiros. O Globo tem uma vasta busca
incessante por culpados, que extravasa as fronteiras de classe e status social. Logo, no editorial
de 27 de junho de 2007 lê-se que: “algo vai muito mal numa sociedade em que privilegiados
agem com marginais. (...) Há muito coisa fora da ordem no país, sem distinção de classe
social, ideologia e credo religioso”. 195
Contudo, a desqualificação do réu ao status de sub-humano não se dá para todas as classes
sociais. No editorial de 23 de maio de 2007, defendem-se as garantias do processo legal para
os investigados pela Polícia Federal, com o sugestivo título de “A espera da prova” e o
editorial de 12 de junho de 2007, chamado “Projeto Bem-vindo”, comenta a tentativa de
padronizar as escutas feitas em investigações e atenta para que se deve evitar os excessos
cometidos pela Polícia Federal. O fato conta até com a indignação de alguns leitores, como na
carta que diz “A nova lei do ministro deverá ser: os inimigos (vocês) podem escutar à vontade,
agora parente e amigo não pode não. (Francisco Newton Assis Figueiredo, via Globo Online,
de Niterói).” 196
A maior parcela de culpa, no entanto, não recai sobre os que se corromperam, mas sobre os
corruptores. Assim, como já fora anteriormente e como é designado, hoje com maior força, o

193
Idem, 22/04/2007, capa
194
Idem, 24/04/2007, capa
195
Idem, 27/06/2007, p. 6
196
Idem, 12/06/2007 p. 6
tráfico de drogas, o “Bicho”, ou os “Bicheiros”, é o verdadeiro câncer social que se espalha, se
infiltra nas mais altas cúpulas judiciária, executiva e legislativa e corrompe as autoridades
mais importantes. Assim, a manchete principal da capa do dia 19 de Abril traz “PF: bicho deu
R$ 1 milhão a desembargador por liminar” 197 e no seguinte: “PF acha doações do bicho para
deputados estaduais” 198. Os supostos bicheiros, Anísio, Capitão Guimarães e Turcão, ficaram
presos durante todo o período analisado – ou sua soltura não foi noticiada – e não houve um
único ministro do STF a decretar que por terem residência fixa eles poderiam responder ao
processo em liberdade. Ao mesmo tempo, esse fato não causou qualquer comoção nem a
editorialistas, nem a articulista, tampouco a leitores de O Globo.
O que podemos perceber é que o referido jornal tem uma linha editorial clara no sentido de
buscar sempre culpados, é a reafirmação diária do dogma da pena. Para tanto, as estatísticas
criminais se reproduzem, as situações de terror são dramaticizadas e a sensação de que está se
tornando muito perigoso, se não impossível, viver na cidade do Rio de Janeiro é acentuada. A
palavra impunidade é repetida seguidamente e uma rotina se perpetua todos os dias nas
páginas de O Globo: achar situações erradas e procurar os culpados por ela. A seguir, no
entanto, vamos mostrar como essa busca, no entanto, se dá de forma completamente diferente
nas operações da Polícia Militar nos bairros pobres da capital fluminense, no qual a
desqualificação jurídica do réu, que aparece como uma sub-espécie, impera. E apontaremos
para a única resposta capaz de acalmar a fúria punitiva: o genocídio das populações pobres.

3.1.4 “A Guerra do Rio”


Em seu artigo, A Política Criminal com Derramamento de Sangue, Nilo Batista aponta para o
que ele chama de “extermínio como tática de aterrorização e controle social”. Segundo ele, a
política criminal é parte da política social como um todo, sendo que ela inclui
“o desempenho concreto das agências públicas, policiais ou judiciárias, que se
encarregam da implementação cotidiana não só dos critérios diretivos enunciados ao
nível normativo, mas também daqueles outros critérios, silenciados ou negados pelo
discurso jurídico, porém legitimados socialmente pela recorrência e acatamento de
sua aplicação.” 199

Esse é um fator que não podemos perder de vista na análise da forma como se noticiaram as
incursões da Polícia Militar no Complexo do Alemão na Penha no primeiro semestre de 2007.
197
Idem, 19/04/2007, capa
198
Idem, 20/04/2007, capa
199
BATISTA, Nilo. A política social com derramamento de sangue. In: Discursos Sediciosos. pp. 77-94
A demanda por pena, ou melhor, a reclamação contra a impunidade em O Globo dá-se para
todos os estratos e classes da sociedade. Porém, a desqualificação jurídica do réu, mesmo em
contradição com o direito oficial, tornando criminosos pobres, especialmente os ligados ao
tráfico de drogas, em indivíduos com menos direitos, qualitativamente inferior, é um reflexo
da divisão de classes e uma continuidade histórica da escravidão no Brasil. Para tentarmos
entender como essa política se efetivou no Rio de Janeiro, vamos relembrar a digressão
histórica que Batista neste artigo faz a respeito da construção da política anti-drogas, de forma
a constituir a política criminal como guerra.
Segundo Batista, essa é uma política internacional, ou seja, é uma estratégia internacional
ressignificada em diferentes países e legislações penais. Podem-se perceber nessa política
criminal as marcas de uma guerra.
O autor mostra que até 1914 não se dispõe de legislação anti-drogas no Brasil. Nessa data, o
combate às drogas adere ao modele sanitário. Um apontamento faz-se precioso quanto ao
internacionalismo dessa proposta. Batista demonstra que, nesse período, os decretos nacionais
têm origem nas convenções internacionais, ou, nas palavras do autor, “nossa legislação interna
correspondente não passa de ressonância, certamente decorada com volutas do bacharelismo
tropical, porém assumida ressonância dessas convenções” 200. Desde então a política anti-
drogas é uma construção que leva em conta uma estratégia internacional. Portanto,
compreender o modelo prisional estadunidense atual ou o modelo nova-iorquino de
“tolerância zero” pode ser bastante útil para compreender a política criminal em outras partes
do mundo, como no Rio de Janeiro.
Feita essa enfatização no caráter internacional da questão, relembremos que Batista aponta
que, no modelo higienista de combate às drogas, o uso não era combatido, especialmente
quando ele era feito pelas classes altas – qualquer semelhança com a atualidade é mera
continuidade histórica – e que no pensamento e nas práticas higienistas, o viciado era visto
como um doente e que a busca por cura leva a uma junção médico-legal, de forma que a posse
de muitas substâncias não era proibida até 1932.
Ao longo do século XX, o modelo sanitarista vai sendo substituído pelo modelo bélico. Os
movimentos sociais ensejaram movimentos reacionários de segurança nacional, e em reação e
para derrotar os movimentos sociais da década de 60, surge, durante a ditadura militar, a

200
Ibidem, p. 80
Doutrina de Segurança Nacional. Essa doutrina traz o conceito de inimigo interno. O traficante
paulatinamente vai sendo enquadrado na lei de segurança nacional e em 1968 o usuário
também é criminalizado no Brasil. Ao combate às drogas soma-se o elemento religioso, dando
a impressão de que trata-se de uma “cruzada” ou de uma “guerra santa”.
Nessa conjuntura de guerra fria, Batista aponta que a generalização do contato dos jovens com
drogas foi apontada como uma “estratégia do bloco comunista para solapar as bases morais da
civilização cristã ocidental” 201. Contudo, mesmo com a queda do bloco comunista, uma
continuidade histórica desse tempo nos é cara: o enfrentamento da questão das drogas passa a
se pautar por métodos e dispositivos militares. Assim, trata-se de uma guerra, como a que se
colocou contra os comunistas, que não deveria conhecer limites.
Após a queda do bloco comunista, com o neo-liberalismo, a mudanças na modernidade e o
aumento do desemprego e da desigualdade social, surge uma demanda por repressão ainda
maior. O inimigo interno transforma-se no compatriota pobre e vale-se da “funcionalidade
mística da droga para o exercício daquele controle social penal máximo sobre as classes
marginalizadas” 202.
A proibição das drogas assim vai perdendo seu aspecto médico e torna-se uma concepção
meramente jurídica. Adota-se assim uma lógica de guerra, isto é, aniquilar para não ser
aniquilado. Progressivamente, não se lida com o criminoso, mas com o inimigo. A guerra,
aponta Batista citando Maquiavel, é a política, feita com derramamento de sangue. Na
atualidade no Brasil, a política de guerra – com derramamento de sangue – é feita contra a
população pobre.
Em todo o período analisado, é cobrada da administração estadual uma postura de guerra
contra o tráfico de droga. Em 3 de Janeiro, o editorial “Começou bem” afirma que “a
administração passada tinha o hábito de negar a dramaticidade dos problemas enfrentados pelo
estado do Rio, principalmente na segurança, talvez para fugir da sua responsabilidade diante
do enorme desafio que o país como um todo precisa enfrentar” 203. As cartas dos leitores
também dão apoio à política de combate aos “facínoras”, mesmo de leitores que se dizem não
eleitores de Sérgio Cabral Filho.

201
Ibidem, p. 87
202
Ibidem, p. 89
203
Idem, 03/01/2007, p.6
As cobranças nesse sentido são constantes, como nas cartas de 01º de Fevereiro de 2007:
“Cadê a segurança tão prometida? Será que está escondida com medo da dura realidade que é
viver no Rio de Janeiro. (Bárbara Machado Albuquerque, por e-mail do Rio de Janeiro)” e
“Governador, isso cheira mal, fica a impressão de conivência. Providências, já. ((Maurício
Karam, por e-mail, do Rio de Janeiro)”. 204
A resposta oferecida pelo governo, segundo a cobertura, é uma declaração de guerra: “O Rio é
um caso de guerra (...) O poder público tem que ganhar essa guerra.” 205 É para nós
interessante notar que o governo do estado do Rio de Janeiro teve noticiada também propostas
de descriminalização, tanto da criminalização das drogas, quanto da criminalização do aborto.
Uma manchete de 29 de Fevereiro de 2007 traz que “Sérgio Cabral defende a legalização das
drogas para conter a violência” 206 Porém, essas propostas são rechaçadas pelos editoriais e
pelas cartas de O Globo. Em 11 de Março, o editorial “Fora do Ataque”, afirma que “o
governador tem o mérito de recolocar o Rio de Janeiro nos grandes debates nacionais. Mas
precisa escolher melhor os temas.” 207 Não podemos afirmar que essa pressão tenha sido a
única, ou mesmo a decisiva sobre a implementação da política de segurança pública do atual
governo. Contudo, ela demonstra como um estrato bastante influente da sociedade se coloca
com relação à temática. O que podemos indicar é, seja porque se identifica a priori com esse
posicionamento, seja porque não deseja arcar com um enfrentamento à esse posicionamento, a
política de segurança pública do Rio de Janeiro é, em larga medida, alinhada com a demanda
por ordem conforme ela aparece em O Globo.
O editorial de 16 de Março de 2007, afirma que melhorou a sensação de segurança e que o
governo agiu “sem perder tempo”. Foi enfatizando “a receita colombiana para combater o
crime” 208, que a demanda por guerra foi sendo fortalecida. Em 28 de Março, é anunciado que
“Cabral diz que não fará acordo com bandidos” e o governador afirma que “o confronto é
necessário.” 209

204
Idem, 01/02/2007, p.6
205
Ibidem, p. 20
206
Idem, 29/02/2007, p. 15
207
Idem, 11/03/2007, p. 6
208
Idem, 23/03/2007, p.18
209
Idem, 28/03/2007, p. 16
Desde o início do governo, o governador pede a ajuda do governo federal e por diversas vezes
é anunciado em O Globo que “Cabral quer tropas nas ruas” 210. No editorial de 11 de Abril, sob
o título de “Aula Colombiana”, declara-se que os milicianos seriam inimigos tão perigosos
quanto os traficantes e que o problema é nacional e não local. As cartas dão apoio à
interferência das forças armadas na segurança pública no Rio de Janeiro: “Guerra no Haiti?
Não, guerra no Rio de Janeiro. Por que as Forças Armadas podem estar lá (Haiti) e aqui não?
(Heloisa Sampaio Marinho Soares, por e-mail, do Rio de Janeiro)” 211
O governo estadual, segundo o que se noticiou, também estava alinhado a essa forma de
pensamento: “O Rio enfrenta uma crise e reconhecemos que ele não é capaz de enfrentar
sozinho. Em todos os países, como na Colômbia, o resultado veio do trabalho conjunto - disse
Cabral.” 212 E, em meio a essa conjuntura, começam a ser noticiadas as operações da polícia no
Complexo do Alemão, na Penha. Aqui, vale ressaltar que a favela carioca, para o jornal,
jamais é um local pleno. É um local em meio a outro local, dando a clara noção de que não
deveria pertencer à paisagem da cidade. Assim, noticia-se sempre que há o Complexo do
Alemão, na Penha; a Favela Chapéu Mangueira, no Leme; o Morro dos Macacos, em Vila
Isabel e assim por diante.
No dia 2 de Maio de 2007, a chamada principal de O Globo traz um protesto contra essa
política: “Anistia: polícia do Rio põe em risco segurança nas favelas” 213. Mesmo sendo a
Organização Não-Governamental Anistia Internacional uma fonte razoavelmente conhecida e
provavelmente confiável, a notícia não pode ser construída de forma direta, ou seja, não se
pode escrever “Polícia do Rio põe em risco segurança nas favelas” sem previamente se citar a
fonte, porque essa visão de mundo não é condizente com a visão dos fatos que o jornal tem.
No dia seguinte, o jornal publica uma opinião, que transcrevemos aqui na íntegra:
A ANISTIA Internacional construiu sua credibilidade no país quando se somou ao
movimento de oposição à violência do regime militar.
É COM esse currículo que a ONG faz críticas à política de segurança pública do Rio
de Janeiro. Algumas certas, outras equivocadas.
ENTRAS ESTAS, o reparo à ação das polícias nas favelas. Essas operações
precisam ter extremo cuidado com a população civil – o que nem sempre acontece, e
precisa acontecer.

210
Idem, 10/04/2007, p 9
211
Idem, 12/04/2007
212
Idem, 12/04/2007, p. 18
213
O Globo, 02/05/2007, capa.
MAS SUPOR que a melhor alternativa é afastar as polícias dessas comunidades
significa cometer o mesmo erro que, no passado, lançou a semente de muitos
problemas atuais. 214

Na mesma edição, o governador justifica as ações policiais com base na vontade popular: “No
que tange à presença da polícia nas comunidades, isso é o que as comunidades querem. Por
força de condições históricas, são comunidades dominadas por traficantes que são minorias
nesses locais. Estamos agindo com rigor porque as comunidades desejam isso.” 215 Veremos
num próximo momento que um jornal identificado com outro estrato populacional tende a
fazer considerações diferentes com relação a essa política de segurança pública. Por ora,
gostaríamos de ressaltar o que trazem as cartas desse mesmo dia:
“Fica comprovado que a marginalidade está desafiando e chamando para o
confronto. Desafia as autoridades na suposta certeza de que nada acontecerá. (Enorê
Roberto Nunes Rodrigues, via Globo Online, de Marica); Sem uma polícia forte,
que nos dê segurança, nada funciona em outras atividades como saúde, educação,
economia, etc. Assim, pedimos pena de morte para quem mata policiais, pois, se não
cuidarmos de quem nos protege, daqui a poucos anos ninguém vai mais querer ser
policial (Edison Linhares, por e-mail, do Rio de Janeiro); Não seriam as favelas que
põem em risco a segurança da população? (Antônio Carlos Pinheiro, via Globo
Online, de Vitória)” 216

Ao longo do mês de maio de 2007, o governo teve de responder pelos feridos por balas
perdidas, ou, como coloca o jornal, “inocentes” 217. O governador passa, portanto, a falar em
estresse de guerra. Para ele, conforme divulgaram as notícias, estar-se-ia numa situação de
guerra, o conflito ou o enfrentamento seria inevitável e todo efeito indesejado que essa ação
policial pudesse ter era classificado como estresse. A opinião é respaldada por uma carta de 6
de Maio, que diz: “Na Guerra há mortos e feridos inocentes. Não podemos nunca perder a fé e
a confiança. Temos que vencer! (Maria Elizabeth do Rio Branco de Soler, por e-mail, do Rio
de Janeiro)” 218. Nesse mesmo dia, é anunciado que “Bope [Batalhão de Operações Especiais
da Polícia Militar do Rio de Janeiro] explode casamata do tráfico na Penha” e o comandante
do referido batalhão afirma que “tráfico da Vila Cruzeiro perdeu seus alicerces”. Contudo, na

214
Idem, 03/05/2007, p. 4
215
Ibidem, p. 4
216
Ibidem, p. 6
217
Mesmo não sendo escrita por um jurista, uma dissertação de mestrado em Direito não poderia deixar de
considerar inocente todo indivíduo que ainda não tenha sido condenado, portanto as aspas sobre a terminologia
aqui se fazem bastante necessárias. Agradeço ao professor Nilo Batista por esse apontamento.
218
O Globo, 06/05/2007, p. 6
capa do dia seguinte afirma-se que “Destruição de fortaleza não põe fim a conflito na Penha” e
que “Doze moradores são baleados no dia de confrontos mais violentos.” 219
No dia 9 de Maio, uma manchete informa que “Moradores protestam contra operações
policiais” 220 na Vila Cruzeiro. Porém a informação é, no próprio corpo da matéria,
deslegitimada: “Para o coronel Marcos Jardim, que também acompanhou o protesto, a
passeata foi organizada pelo tráfico para obrigar a polícia a deixar o morro. A suspeita do
oficial foi confirmada por uma moradora da Vila Cruzeiro, que não quis se identificar.” 221
Assim, vão se criando formas de pensar e de sentir que permitem a legitimação dessa política
de enfrentamento. Talvez seja difícil precisar se determinado argumento ou terminologia foi
criada por um leitor, por um jornalista ou mesmo por um agente do Estado, que nesse caso se
alinharam na construção desse pensamento. O fato é que a circulação de informações e
opiniões em O Globo contribui positivamente nesse sentido.
No dia 11 de Maio, noticia-se que “Gravação mostra traficante mandando atingir morador” 222
e dessa forma as queixas contra a violência policial, especialmente quanto ao uso do Caveirão
são minimizadas. A partir de então, cobertura passa a se focar na construção de obstáculo que
impossibilitavam a passagem aos blindados da polícia militar e nas formas que a polícia foi
criando para removê-los.
O editorial de 16 de Maio de 2007 traz que o tráfico de drogas deve ser combatido com uma
“Ação Nacional”. Segundo ele, “a violência nas nossas grandes cidades, com toda sua carga
trágica no Rio, é forte sintoma do câncer que o narcotráfico transmite à sociedade (...) [E] não
seremos bem-sucedidos sem que toda a sociedade brasileira faça do combate às drogas e a
seus mercadores um esforço nacional” 223. Mas o enfrentamento ao tráfico de drogas, como já
mostrou Nilo Batista em A política criminal com Derramamento de Sangue, progressivamente
vem ganhando ares de guerra. Diminuir o uso ou em enfrentar o problema de saúde pública –
de dependência física e química – que usuários de droga enfrentam, é um pano de fundo que
por vezes aparece de forma até muito discreta. O foco do problema está em enfrentar a sua
ponta, o vendedor de droga, especialmente o varejista. E não apenas de enfrentá-lo, mas de
guerrear contra ele.

219
Idem, 07/05/2007, capa.
220
Idem, 09/05/2007, p. 18
221
Ibidem, p. 18
222
Idem, 11/05/2007, p 19
223
Idem, 16/05/2007, p. 6
No Brasil, esse costuma ser o jovem do sexo masculino negro e morador de favelas e bairros
periféricos, contra o qual, uma vez taxado de criminoso, toda ação pode ser feita no intuito de
fazê-lo sofrer. Assim, no dia 17 de Maio, ao lado de um editorial que cobra maior participação
do governo federal na política de segurança do Rio de Janeiro, uma carta põe as claras o
sentimento que não pode ser expresso palavras pelo governo do estado e pelo jornal: “Se o
facínora não respeita o direito alheio, por que tenho de respeitá-lo? Ele não tem direitos. Estou
farta desta lei de porcaria. (Jacqueline Cruz Gonçalves dos Santos, por e-mail, de Niterói)” 224
Não se explica direito o porquê da escolha da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão para a
ocupação policial. As matérias primeiras indicam que se tratava de uma reação à morte de dois
policiais que patrulhavam o caminho ao longo do qual o menino João Hélio Vieites foi
assassinado. Posteriormente, as notícias passam a dar conta de que o “Complexo do Alemão
[é] a fortaleza do tráfico” 225. Não poderíamos, com os dados que aqui obtivemos, constatar ou
negar se o perigo que se alardeia é real, o que escaparia em muito nossos objetivos nesse
trabalho. O que chamamos atenção é para a manipulação do medo e para a justificativa para o
ataque policial, que leva ao genocídio. Portanto, o que chamamos atenção não é para o fato de
que não houvesse um bando criminoso fortemente armado no Complexo do Alemão, o que
segundo a imprensa analisada é um fato incontestável. O planejamento da ocupação policial é
que nos parece pouco explicitado, mesmo para uma fonte que se mostrou absolutamente
favorável a essa ação; não se explica como a ação começou, tampouco porque foi a região da
Penha, dentre tantas outras a primeira a ser ocupada.
Em 25 de Maio de 2007, O Globo cede um de seus espaços para artigos para o secretário
estadual de segurança pública José Mariano Beltrame. O Globo, ao menos no período
estudado, tem por hábito dar espaço a articulistas que tenham opiniões a respeito de temas que
estejam sendo muito freqüente em suas pautas. Os articulistas, por algumas vezes, chegam a
ter opiniões contrárias às dos editoriais e há uma correlação de forças que se coloca nesse
sentido. Mesmo articulistas regulares têm a possibilidade de não estarem completamente
alinhados com a linha editorial de O Globo. Obviamente, que essa liberdade não é total e o
jornal não publica opiniões completamente contrárias às suas. Atentamos para esse fato antes
de reproduzirmos aqui um trecho do texto do secretário Beltrame, para darmos a noção de que
sua opinião de articulista é uma entre várias e que a estamos aqui reproduzindo não porque ela
224
Idem, 17/05/2007, p. 6
225
Idem, 20/05/2007, p. 26
é típica, mas porque ela sintetiza bem a manipulação do medo que o poder público fez nesse
período através da imprensa.
Sabemos que não há solução simples para o Rio, muito menos uma alternativa
“mais inteligente”. Temos ciência do risco que a população civil corre e tentamos
minimizá-lo. Mas, como gestores de segurança, nos parece inconcebível assistir
passivamente à evolução de bandos armados para a guerra, que empunham
metralhadoras antiaéreas, atiram em inocentes para proteger-se e resolvem suas
diferenças em plena luz do dia no centro da cidade – como aconteceu no Morro da
Mineira há um mês. Afinal, se estamos nesse estágio hoje, onde estaremos no
futuro? É imperioso continuar com as operações planejadas, sob pena de estarmos
compactuando com os criminosos, ao permitir que eles aumentem seu poderio,
acumulem drogas, armas e munições, e saiam a qualquer momento de seus redutos
inacessíveis para fazer novas vítimas e aterrorizar a população. 226

Atentemos para essa formulação. Sem negligenciar que possa existir um perigo real, não
podemos deixar de apontar que é o medo a tônica desse discurso. E que esse medo tem como
um pano de fundo muito claro o medo que as classes privilegiadas sentem dos pobres na
cidade do Rio de Janeiro. É o medo do que pode sair dos “redutos inacessíveis”. É como se
essa fosse outra parte da cidade, de onde pode sair o terror.

O genocídio como resposta


Não queremos questionar que o Rio de Janeiro sofra de um problema de segurança pública.
Queremos apenas extrapolar essa noção para algo maior. Segurança nada mais é do que uma
sensação. Ela depende, portanto, de como se experimenta o mundo. O perigo real tem de ser
somado à sensação de medo, sensação essa que leva em conta todos preconceitos, exageros e
distorções que o senso comum apresenta. Aqui, temos um grupo armado que se esconde numa
favela; é parte da população pobre que encontra-se fora dos controles normais da lei e da
ordem, o medo que ela desperta, continuidade histórica do medo da rebelião negra nas cidades
brasileiras, é um grande condutor de subjetividades, inclusive na condução de políticas
públicas, como a de segurança. Esse medo, dessa forma, torna-se norteador da reação policial
e, como coloca Vera Malaguti Batista, “o medo corrói a alma” 227.
No final de Maio de 2007, as notícias da ocupação policial passam a dividir espaço com
notícia de uma “Guerra do tráfico [que] leva pânico ao Leme” 228. A foto de o Globo no dia
seguinte ilustra a situação: entre dois prédios do Leme – bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro,

226
Idem, 25/05/2007, p. 7
227
MALAGUTI BATISTA, op. cit. p. 20
228
Idem, 30/05/2007, capa.
ao lado de Copacabana – vê-se a favela Chapéu Mangueira, e a manchete diz: “A espera de
um confronto” 229. A esse ponto, a ocupação na Penha começa a ser questionada e a
contradição torna-se muito evidente: será que os moradores do Leme seriam vítimas do
mesmo “estresse”?
Nesse sentido, o pêndulo entre policizar e politizar a “questão” social – como já apontara
Gisálio Cerqueira 230 – oscila novamente nos editoriais para o sentido de politizar a questão
criminal: “Mas se a ação repressiva não for combinada com a entrada progressiva de serviços
públicos, o risco é se manter a idéia de que o Estado só serve mesmo para atrapalhar a vida das
pessoas” 231, diz o Editorial de 01º de junho de 2007 sobre a ocupação policial no Complexo do
Alemão. Nessa esteira, a edição do dia 07 de Junho traz um artigo de Julita Lemgruber, no
qual a socióloga aponta que: “São impressionantes os relatos de crianças apavoradas com os
tiros, de moradores que não dormem à noite e temem sair para o trabalho, de serviços básicos
suspensos, deixando os bairros sem escola e a população sem luz e coleta de lixo. É possível
imaginar isso acontecendo num bairro ou condomínio de classe média?” 232 Ao mesmo tempo,
a contradição continua exposta e entre os dias 7 e 10 de junho o articulista regular Merval
Pereira aventa a possibilidade de que o exército brasileiro intervenha nas favelas, seguindo o
modelo de intervenção que esse mesmo exército aplica no Haiti.
Na repercussão dos tiroteios no Leme, é ouvido pela imprensa o técnico da seleção masculina
de voleibol, Bernardinho, que se mostra preocupado com a segurança das famílias dos atletas
durante os jogos Pan Americanos, que se realizaram no Rio de Janeiro em julho de 2007. Em
14 de junho, o governo estadual declara que o Rio de Janeiro tem segurança para sediar os
jogos; mesmo dia em que se anuncia a entrada de soldados da Força Nacional na ocupação no
Complexo do Alemão.
Para O Globo, a “cota de estresse” dos moradores da Penha havia chegado ao limite do
tolerável a partir do momento em que os moradores da Zona Sul, público preferencial do
jornal, passam a se preocupar com qual seria a sua “cota”. Passa-se a cobrar das autoridades
uma solução rápida para a situação. Em 15 de junho, a capa de O Globo traz que “Tráfico
desafia PM e Força Nacional” e que “os traficantes debocharam dos agentes da tropa de

229
Idem, 31/05/2007, p. 14
230
Cf. 3.1.3. Como já ressaltou o autor, policizar a questão também é uma estratégia política.
231
O Globo, 01/06/2007, p. 6
232
Idem, 07/06/2007, p. 7
elite” 233. E, em 17 de junho, declara-se que “Moradores da Vila Cruzeiro relatam a rotina de
medo em meio aos confrontos entre policiais e bandidos” e que “Violência impede alunos de
aprender” 234. Uma mudança considerável para um jornal que declarava, no início do período
de ocupação, que as manifestações contra a atividade policial eram orquestradas por
criminosos. E mesmo os leitores de O Globo começam a cobrar providências: “Quando
terminarão os confrontos nessa guerra polícia x bandido na Favela do Alemão? Já se vão mais
de 50 dias e até agora nada de útil foi produzido. (...) Será que tantos homens com os da Força
Nacional e policiais militares não conseguem vencer o banditismo? (Áldemo de Araújo Filho,
por e-mail, de Niterói)” 235
A resposta rápida que o governo estadual deu foi o genocídio. A manchete principal do dia 28
de junho de 2007 estampa que “Polícia invade Alemão e mata 19”. Dezenove; exatamente o
mesmo número de mortos dos “ataques” do final de dezembro de 2006, que levaram a
“sociedade” carioca a se alarmar com o estado de perigo em que o Rio de Janeiro havia
chegado, o governador do estado recém empossado declarar guerra aos facínoras e o
presidente da República reclamar de terrorismo no Rio de Janeiro. Oficialmente, o secretário
de segurança lamentou as mortes. Porém, o depoimento de um inspetor não identificado revela
outro sentimento: “Hoje (ontem), nós brincamos. Foi igual tiro ao pato” 236. E para que haja
clareza, foram dezenove morte e não houve divulgação de prisão alguma. Contudo, numa
lógica de guerra, se aniquila para não ser aniquilado. Logo, as mortes foram comemoradas.
Vejamos o que traz o editorial do dia 30 de junho:
Não há registro de uma ação policial no Rio de tamanha dimensão e com resultados
à primeira vista tão positivos. Espera-se que a operação inaugure um estilo de
atuação policial que não se resuma a investidas esporádicas, sempre pirotécnicas,
barulhentas e perigosas, seguidas de longos períodos de inoperância, durante os
quais os bandidos se reabastecem de armas e drogas. Pode-se comparar essa forma
de trabalho com um enxugar gelo sem fim.
O secretário de segurança, José Mariano Beltrame, nas entrevistas que concede, em
palestras e conversas, destaca a importância do trabalho de inteligência e do
planejamento na atuação da polícia. O cerco mantido no Complexo do Alemão,
seguido da operação de tomada da área na quarta-feira [27 de junho], parece ser um
exemplo positivo daquilo que todos queremos para a polícia, no figurino desenhado
pelo secretário. As drogas e armas apreendidas, as baixas entre traficantes, os
relativamente pequenos danos causados por balas perdidas, bem como o registro de
poucos policiais feridos devem ser resultado da obtenção de informações corretas

233
Idem, 15/06/2007, capa.
234
Idem, 17/06/2007, pp. 22-3
235
Idem, 25/06/2007, p. 6
236
Idem, 28/06/2007, p. 13
pelo serviço de inteligência policial, e de um planejamento bem-feito. Agora,
começa outra etapa, também importante: a de manter o terreno conquistado. 237

Esse editorial, em consonância com a linha de pensamento adotada por O Globo no período
estudado, mostra que a preocupação central é o controle da população pobre. É preciso manter
o cerco. Porém, somente as cartas dos leitores podem extravasar todo o sentimento de
vingança que um jornal não poderia expressar com palavras:
É com atitudes como esta que o Rio vai voltar a ter ordem. Quanto aos mortos e feridos,
lamento muito, mas eles facilitaram bastante por ficarem transitando no local. (José Augusto
do Amaral, por e-mail, do Rio de Janeiro); Somo reféns do medo e da insegurança, e ontem
fomos à forra. (José Magalhães Serrado, via Globo Online do Rio de Janeiro). 238
Tentamos aqui em poucas páginas expressar como foi a cobertura de O Globo sobre a questão
criminal no Rio de Janeiro no primeiro semestre de 2007. Alinhado com as tendências
internacionais de segurança pública, o jornal propaga o dogma da pena – se há algo de errado,
tem de haver um culpado – e o controle sobre a população pobre como norteadores dessa
cobertura. Vamos agora demonstrar que essa cobertura teve um viés de classe determinante e
faremos isso através da análise da “redação-irmã”, do Extra Informação, que tem por objetivo
ser vendida para pessoas de menor poder aquisitivo.

3.2 – TUDO AINDA PODE MELHORAR – Uma breve análise do jornal mais vendido do
país
“As mortes vão se acumulando, manchando de sangue cada canto deste estado. Como tijolos
feitos de uma triste realidade, um caso se sobrepõe ao outro, mas não podemos deixar que este
muro de vergonha esconda de nossos olhos a esperança em dias melhores. 239” Esse editorial
do começo de março mostra bem o posicionamento do Extra com relação não apenas à
criminalidade, mas à questão social como um todo. O Extra busca veicular que as coisas
podem ser melhores.
Infelizmente, nossa leitura do Extra não pode ser tão detalhada quanto a de O Globo, porque a
disponibilidade dos jornais nas bibliotecas públicas do Rio de Janeiro era diferente: enquanto
O Globo pode ser encontrado integralmente, o Extra está disponível esparsamente. Do período

237
Idem, 29/06/2007, p. 6
238
Ibidem, p. 6
239
Extra Informação, 05/03/2007, p. 4
definido, estão disponíveis edições do Extra de 1º a 20 de janeiro, de 21 de fevereiro a 10 de
março, de 21 de abril a 10 de maio e o mês de junho integralmente. A diferença, contudo,
entre as linhas dos dois jornais é notória.
O Extra Informação está bastante preocupado com o que chamamos aqui de estratégias de
sobrevivência. Seja anunciando concursos públicos para empregos estáveis, seja respondendo
cartas sobre como ter acesso à justiça ou exercer direitos, seja com matérias sobre como
economizar, o Extra demonstra a preocupação com a forma que o seu leitor vai administrar
seu orçamento. E essa preocupação de alguma forma se reflete na forma como o jornal noticia
os crimes ocorridos.
Na capa de 1º de janeiro de 2007, o Extra informa que “O Rio chega em 2007 com esperança
de ver a cidade mais segura, conforme promessa de Sérgio Cabral, que assume o governo
hoje” 240. Existe, também aqui uma demanda por ordem, mas a expectativa é sempre por
estabilidade. Certos aspectos da atualidade “pós-moderna”, como flexibilidade e mudanças
contínuas têm pouco apelo para o jornal: é como se a busca fosse por uma sociedade na qual
se pudesse planejar e imaginar um futuro melhor. 241
A palavra esperança é sempre utilizada, mesmo quando se trata pedir por medidas repressivas:
“Agora é esperar que ambos [o presidente e o governador] saiam do proverbial e partam para a
ação. A arma contra o crime organizado que sempre faltou ao Rio parece ter sido finalmente
sacada: a vontade política. E agora há esperança no ar.” 242 Ou em: “Se continuarmos obtendo
sucesso na demolição de antigas estruturas de corrupção, criminalidade, ilegalidade, essas
operações podem renovar nossas esperanças de um país mais justo.” 243 Não podemos dizer
que se trate, contudo, de uma politização da questão criminal – em oposição a uma policização
– como já apontara Gisálio Cerqueira. Ainda há a busca pela punição, o dogma da pena se faz
presente. O controle sobre as classes populares é que perde espaço.
E existe um outro fator importante: a cobertura de crimes aparece como puro e simples
entretenimento. Notícias como: “Ela é patricinha. E perigosa” 244 povoam o Extra. Talvez o
caso, nesse período, que tenha ganhado o maior destaque seja o que ficou conhecido como

240
Idem, 01/01/2007, capa
241
Para uma discussão mais aprofundada sobre essa temática ver SENNETT, Richard. A corrosão do caráter:
conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.
242
Extra Informação, 02/01/2007, p. 11, grifo nosso.
243
Idem, 22/04/2007, p. 4, grifo nosso.
244
Idem, 04/01/2007, capa
crime da Mega-Sena. O ex-lavrador Renné Senna, que ganhara mais de 50 milhões de reais
em um concurso da referida loteria, foi assassinado em um bar próximo a sua residência, em
Rio Bonito, RJ. O assassinato ganhou contornos de romance policial, com o questionamento
da fidelidade de sua esposa, bastante mais jovem do que ele, e da paternidade de sua única
filha, de um casamento anterior. O Globo dedicou poucas páginas ao caso, que foi destaque no
Extra. Como se estivéssemos diante de uma história cinematográfica, porém real, o Extra
convidava seus leitores a se posicionarem com relação ao crime: “No enterro do milionário,
nove entre dez pessoas apontavam a cabeleireira [a viúva] como semeadora da discórdia na
família, e a apontavam como principal suspeita do crime.” 245
O editorial do Extra, sempre sob o título de “Ataque e Defesa” vai com o passar do tempo
demonstrando que há sim, também aqui uma busca por um projeto de segurança que seja
punitivo como no dia 13 de janeiro: “Parece brincadeira de gato e rato e só deixará de ser,
efetivamente quando a PM (...) partir para um plano de segurança abrangente e mais racional.
Isso, evidentemente, está sendo gestado.” 246 Mas isso não significa que esteja tomado pelo
medo. A tentativa, aqui, é de falar às classes populares e não de temê-las, como no editorial de
14 de janeiro de 2007: “O carioca é um povo pacífico e tem na praia sua principal área de
lazer. Mas, nem por isso, o estado e o município devem descuidar. Ao contrário. Há sempre
arruaceiros e gente interessada em perturbar o lazer alheio. Situações como essa, em meio a
multidões, podem acabar em confusão.” 247 O assalto a ex-miss Brasil, Leila Schuster, talvez
seja o exemplo mais claro dessa mudança. Nas matérias publicadas em 18 e 19 de janeiro,
Leila Schuster age com naturalidade perante o fato e não se mostra uma vítima inconformada,
diz que ama a cidade do Rio de Janeiro e que não pretende se mudar, nem reforçar a própria
segurança. No entanto, não há contra ela um tom de reprovação, tampouco uma enxurrada de
cartas irritadas.
De fato, por durante a maior parte do período analisado, todas as cartas publicadas referiam-se
a acesso à Justiça ou a direitos – trabalhistas ou de consumidor – ou a reclamações específicas
para com o poder público. Separamos uma dessas cartas, que envolvem a temática da
segurança, para que sirva aqui de exemplo:
A Rua Deputado Hilton Gama, em Anchieta, não tem segurança alguma. Aliás,
Anchieta não tem segurança alguma. A 31ª DP foi demolida pelo governo

245
Idem, 09/01/2007, p. 3
246
Idem, 13/01/2007, p. 4
247
Idem, 14/01/2007, p. 4
Garotinho com promessas de construção de uma delegacia legal, mas o terreno, que
antes estava cercado e havia uma placa indicando a futura instalação, está totalmente
largado, cheio de mato e sendo utilizado para depósito de entulhos. (Alzemir Soares
de Melo, Anchieta, por e-mail).
É interessante notar que a indicação de localidade não é a cidade, mas o bairro em que a
pessoa mora. Isso indica que a preocupação referencial é a comunidade. A “criminalidade”
tenta ser impedida na forma de se evitar a oportunidade para o crime: “Abri uma chama na
Rioluz no dia 19 de fevereiro para o conserto de três postes que estão com suas lâmpadas
apagadas na Rua Professor Gabiso, em frente ao nº 311, no Maracanã, e até hoje nada foi
solucionado. Eu fui assaltada nessa rua no dia 17 deste mês às 19h30, porque ela estava um
breu! (Viviane Oliveira, Tijuca, por e-mail)” 248
Uma seção de cartas criada no Extra em Abril de 2007 permite que os leitores debatam temas
abstratamente. Algumas discussões a respeito da questão criminal são debatidas, inclusive se
os leitores aceitariam serem policiais no Rio de Janeiro ou se tem vontade de deixar o estado
por conta da violência. Os debates são geralmente direcionados e os jornalistas escolhem as
temáticas e os leitores mandam respostas sobre os temas escolhidos. A seção continua sendo
secundária em relação as cartas que buscam acesso a direitos.
Outro caso que não teve acompanhamento foi o seqüestro do ex-traficante Tuchinha da
Mangueira – alcunha de Francisco Paulo Testas Monteiro. Tuchinha teria sido seqüestrado por
policiais que estariam tentando extorqui-lo. Segundo o Extra, “Ex-chefe do tráfico da
Mangueira é levado por policiais que exigem R$ 2 milhões para libertá-lo” 249. Segundo a
visão de mundo do Extra, o “bandido” pode se regenerar e se tornar “ex-bandido”. Mostra-se
aqui também medo da polícia: “Um dos mais antigos absurdos provocados pelo caos social no
nosso estado é o medo que a população tem da própria polícia, aquela que a deveria
proteger.” 250 Numa série de reportagens do início de março, o Extra explora a temática do
menor infrator, com um detalhe: escuta as vítimas (como Elson Vieites, pai de João Hélio),
mas também ouve aos menores infratores. Segundo eles, “diferentemente do que muitos
imaginam, boa parte dos menores infratores que entra hoje no sistema sócio-educativo tem
chances reais de se recuperar” 251. O Extra preocupa-se com a recuperação, bem como em não

248
Idem, 28/02/2007, p. 4
249
Idem, 02/03/2007, p. 13
250
Idem, 03/03/2007, p. 4
251
Idem, 07/03/2007, p. 3
acusar injustamente, preocupações que passam ao largo em O Globo, especialmente se o
acusado é pobre.
No período disponível que compreende a ocupação policial no complexo do Alemão, o jornal
mostrou-se sempre preocupado com as balas perdidas. Aliás, no Extra, a ocupação, ao menos
no primeiro momento, não foi dada como um ato de inteligência, mas como um ato de
vingança. Assim, a manchete principal de 03 de Maio de 2007 traz: “Polícia caça assassino de
PMs e seis inocentes pagam o pato” 252. E no editorial:
A ocupação policial em comunidades com altos índices de violência e dominadas
pelo tráfico, mesmo necessária, se dá de maneira capenga, inconseqüente, colocando
em risco a vida de inocentes, como aqueles que ontem saíram feridos dos confrontos
entre policiais e bandidos na Cruzeiro. A política de segurança pública no Rio de
Janeiro ainda permite que os próprios agentes do estado (como os dois PMs
fuzilados) sejam alvos fáceis da bandidagem, ao mesmo tempo em que, na tentativa
de responderem à altura, transformam também em alvos os cidadãos sem relação
com o crime. 253

O editorial do dia 5 de maio, contudo, afirma que a polícia não pode recuar e que a discussão
quanto à técnica pode ser inoportuna no momento. No dia 7, entretanto, o editorial volta a
afirma que a polícia precisa de meios de combate que não coloquem em risco o cidadão sem
relação com o crime. E a manchete principal da capa da edição do dia 8 dá conta de que “Para
polícia, ação que já matou 6 e feriu 29 inocentes é um sucesso” 254. No dia 9, o editorial
condena a declaração do Coronel Marcus Jardim que afirma que o protesto dos moradores
contra a incursão policial foi organizado pelos traficantes – em oposição a O Globo, que
confirmou a informação. Em 13 de junho, um editorial afirma que “haverá uma mudança de
estratégia, que a partir de agora promete privilegiar a ocupação de modo a evitar tiroteios e,
por extensão, reduzir o número de vítimas.” 255 No dia seguinte, uma manchete de capa
anuncia que “Força Nacional humilha crianças” 256 durante revistas e no dia 18 o editorial
reclama que “o combate à violência deve ter como resultado o bem-estar da população e não a
perda de seus direitos” 257
De 19 a 24 de junho de 2007, o Extra publicou uma série de reportagens sobre policiais que
foram mortos “em defesa do Rio” durante aquele ano. Em meio a essas reportagens, um

252
Idem, 03/05/2007, capa
253
Idem, 03/05/2007, p. 4
254
Idem, 08/05/2007, capa
255
Idem, 13/06/2007, p. 4
256
Idem, 14/06/2007, capa
257
Idem, 18/06/2007, p. 4
pergunta em um editorial: “até quando a guerra nos complexos do Alemão e da Penha vai
durar?”, afinal, “perguntar não ofende” 258 No dia 24 de junho, uma entrevista do Coronel
Ubiratan Ângelo, então comandante da Polícia Militar, afirma que “Eu não posso admitir uma
caça aos meus policiais” 259
A resposta da polícia vem nos jornais do dia 28. Aparentemente, mesmo para um jornal como
o Extra, que protestou todo o tempo contra as balas perdidas, a execução de dezenove supostos
bandidos justifica toda a operação e os efeitos colaterais não passam de “estresse”: “O remédio
é amargo, mas precisa ser aplicado. Essa operação demonstrou que estávamos certos na
ocupação da favela desde o início – afirmou o secretário Beltrame.” 260 Mas novamente, o
Extra não deixa de se posicionar em prol da esperança: “que a operação no Alemão marque o
início de uma nova fase, que coloque um fim no sofrimento de tanta gente de bem, pessoas
que só querem ter a chance de mostrar seu valor.” 261
Infelizmente, nossa análise do Extra foi incompleta porque boa parte da amostra que
procurávamos não estava disponível. Contudo, foi suficiente para demonstrar como dois
jornais pertencentes ao mesmo grupo empresarial podem ter apreensões da realidade
diferentes devido ao poder aquisitivo do público que eles pretendem cativar. O que podemos
concluir é que O Globo divulga medo e o Extra propaga esperança; o primeiro fala aos
consumidores plenos, o segundo aos consumidores falhos; esse fala aos pobres, aquele fala aos
ricos.
Por fim, uma última advertência: por mais pressão que a mídia possa fazer (e faz), não
podemos deixar de apontar para o protagonismo do governante. Como demonstramos, a mídia
traz também ela diferentes visões de mundo e os governos alinham-se a elas conforme
interesse e convicção próprios. Obviamente, há um custo político a ser pago por cada escolha,
o que condiciona a ação, mas não a determina. É com essa nota que David Garland conclui seu
livro supracitado e a ele recorremos mais uma vez para também aqui concluirmos: “Os
políticos têm preferido trilhar o caminho mais fácil, optando por segregação e punição ao
invés de incutir controles sociais, de regular a vida econômica e de desenvolver políticas que

258
Idem, 20/06/2007, p. 4
259
Idem, 24/06/2007, p. 3
260
Idem, 28/06/2007, p. 14
261
Ibidem, p. 16
propiciem a inclusão e a integração sociais.” 262 Só temos a acrescentar que no Brasil o
caminho mais fácil por vezes é o genocídio.

262
GARLAND, David. op. cit. p. 427
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As idéias dentro do lugar
Em seu artigo As Idéias Fora do Lugar 263, Roberto Schwarz afirma que o liberalismo
aparecia, à realidade brasileira do século XIX como um movimento estranho: embora fosse
aceito nos círculos teóricos, não fazia qualquer sentido às práticas cotidianas. Seja pelo favor,
seja pela escravidão, a exploração do homem pelo homem atendia a outros preceitos no Brasil,
diferente dos preceitos europeus, mais avançados. Era, portanto, um desajuste inevitável e um
torcicolo natural que a elite brasileira vivia; se por um lado a escravidão era uma vergonha, o
liberalismo era impraticável e, de diferentes maneiras, em diferentes momentos da nossa
história, a ideologia do favor foi ressignificada com inúmeras justificativas, de forma a dar
sentido a nossa conformação.
Contudo, se o liberalismo envergonhou a elite brasileira, o neoliberalismo parece que adaptou-
se ao Brasil com razoável tranqüilidade. Especialmente sobre a forma de se tratar a “questão”
social, que novamente é policizada, sem que, no entanto, haja qualquer movimento de
resistência política que consiga se entender enquanto tal. Nessa conjuntura, os processos de
desqualificação jurídica dos réus pobres, ou, de forma mais sucinta como coloca Loïc
Wacquant, de punir os pobres, parecem ter encontrado no Brasil a sua vanguarda.
Em A fratura brasileira no Mundo 264, Paulo Eduardo Arantes faz uma análise de como o
pensamento em países centrais do mundo capitalista tem apontado para um processo de
brasilianização de suas sociedades. O autor aponta que o Brasil possui ao longo de sua história
um mito fundador do encontro com o futuro, de sorte que apresenta um país que seria
“condenado a dar certo”. Houve sempre no Brasil uma procissão de milagres que vinham
sempre a nos salvar. Essa esperança, de ciclos em ciclos, se tornava frustração, mas eis que
surgia um novo milagre e a esperança era ressignificada.
Hoje, esse futuro já não mais parece que chegará. O Brasil então passa a ser entendido
internacionalmente como categoria sociológica para o buraco negro da globalização. Para ele,
“na hora histórica em que o país do futuro não parece ter futuro algum, somos apontados, para
o mal ou para o bem, como o futuro do mundo” 265; é a brasilianização do mundo.

263
SCHWARZ, R. In: . Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1992.
264
ARANTES, Paulo Eduardo. A fratura brasileira no Mundo: Visões do laboratório brasileiro da mundialização.
In: . Zero à esquerda. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.
265
Ibidem, p. 30
Para melhor elucidar esse argumento, Arantes resgata o americano Michael Lind, que é um
dos que propõe a brasilianização da sociedade estadunidense. De sorte que o autor americano
identifica em ambas as sociedades uma separação das raças pela classe, uma dimensão
horizontal da guerra de classes (com as classes populares brigando entre si e não contra o
topo) e uma overclass entrincheirada, constituindo uma nação dentro da nação.
Nesse processo, a população do mundo está imobilizada e a nova classe dominante está em
estado de secessão. Ocorre, portanto, uma segunda periferização do mundo, que se dá em cada
cidade; divide-se, para tanto, o trabalho em trabalho valorizado e trabalho degredado, numa
estrutura social estratificada e segmentada. Para Arantes, “essa dualidade estrutural não
engendra dois mundos diferentes, longe disso, mas uma variedade de universos sociais, cuja
figuração espacial se caracteriza pela segregação, diversidade e hierarquia” 266. Ora, nada mais
característico do Brasil, um país onde as padarias mais caras, com seus buffets de guloseimas a
trinta reais o quilo convivem perfeitamente com catadores de lixo na calçada oposta. Não há
invisibilidade alguma, o que possuímos é uma extrema aceitação de nossa desigualdade sócio-
econômica.
Em outro país central, a França, a idéia de brasilianização também é sentida. O crescimento
econômico na França já não representa automaticamente melhoria das condições de vida da
população mais pobre, ou seja, a nova riqueza tem produzido mais pobres; desse modo,
surgem regiões industriais sinistras, zonas rurais desertificadas e subúrbios vão se
transformando em guetos.
Surge então uma espécie de Quarto Mundo – o mundo dos marginalizados – e a cidade se
apresenta como organização social que propaga dessolidarização social. Agora que, mesmo no
centro do capitalismo, o crescimento econômico já não gera automaticamente melhoria nas
condições de vida, o que diferencia um país do outro é o controle sobre sua população pobre:
se é civilizado ou se é selvagem. Contudo, é paulatinamente mais difícil diferenciar um do
outro. Provavelmente, creio, o método de genocídio policial carioca seja o selvagem e o
encarceramento em massa ianque seja o civilizado; no todo, nos parece um contra-senso falar
em métodos de exclusão civilizados...
O fato inescapável, que se confirmou em nosso estudo de caso, é que os processos de
criminalização pelo mundo, com os quais o Brasil está alinhado, estão intrinsecamente ligados

266
Ibidem, p. 40
ao controle da população pobre das cidades. O grande medo que está por traz de toda a política
de segurança pública é o da movimentação população pobre nas metrópoles pelo mundo a
fora.
Esse temor é reproduzido e explorado com toda força na imprensa que se dirige às elites.
Contudo, encontra alguns freios quando a imprensa se dirige aos grupos potencialmente
excluídos. Assim, comprovamos que o medo da “violência urbana” tem sua origem de classe
social, bem como o medo da violência policial. O posicionamento contra um ou contra outro é
assim um posicionamento também de classe. Teríamos que dizer, contudo, que o Extra
promove um avanço bastante tímido nesse sentido. Mas se coloca contra a violência policial
porque escreve àqueles que temem senti-la. Talvez um jornalismo mais crítico e com maior
identificação com as classes trabalhadoras e excluídas possa alcançar avanços maiores. Esse,
entretanto, não é o caso.
Numa entrevista a O Globo em 1º de Julho de 2007, Sérgio Cabral Filho promete que o
“estresse” não se restringiria ao Complexo do Alemão ou à Penha, mas que se espalharia por
toda a capital fluminense, inclusive para as favelas da Zona Sul carioca. O que vimos, entanto,
até o momento, é uma ocupação interminável no referido complexo. Podemos concluir, assim,
que o estresse não é e provavelmente nunca será para todos.
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. O inimigo no direito penal. Pensamento criminológico, 14. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

b) Capítulos de livros

ARANTES, Paulo Eduardo. A fratura brasileira no Mundo: Visões do laboratório brasileiro da


mundialização. In: . Zero à esquerda. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.

BACHELARD, Gaston. A noção de obstáculo epistemológico. O primeiro obestáculo: a


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Brasil. In: . Violência & Cidadania. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. pp.
11-34.

c) Artigos de periódicos

BATISTA, Nilo. A política social com derramamento de sangue. In: Discursos Sediciosos. nº
5/6 Revista Instituto Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro: Ed. Freitas Bastos, 1998. pp.
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