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Lia Silveira
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caixa, fotografias em preto e branco. Todas pessoas desconhecidas. Três mulheres em uniforme de
colégio sentadas em um banco. As caras tristes não demonstravam muito prazer em estar ali, sendo
fotografadas. Num outro retrato uma moça vestida de forma ousada para aqueles dias, segura uma
sombrinha e sorri.
Deste modo iam se passando os dias, entre camisolas amareladas e livros que não se podia
ler na sala. Brincando de ser invisível, nunca ninguém poderia saber dos enigmas desvendados. Era
bom que fosse assim.
Já havia explorado quase todos os aposentos da casa. Faltava apenas o quarto dos fundos.
Este era sempre deixado para depois. Talvez porque era supostamente o mais rico, talvez porque em
algum lugar escondido já soubesse que quando chegasse ali, teria que dar por finda a procura.
12 de dezembro foi o dia escolhido para esta expedição. O natal se aproximava e a casa já
estava cheia de visitas. A primeira vista, isso poderia dificultar o acesso ao dito quarto sem ser
notada. Mas o aumentado risco de ser flagrada só incrementava a excitação. A hora era a da metade
da manhã quando alguns já saíram para o trabalho e outros estão ocupados em preparar o almoço. O
cheiro bom que vinha da cozinha denunciava que teríamos carne assada de panela. Mas agora não
era hora de pensar nos prazeres da carne, pelo menos não na da panela. Com a estratégia montada,
agora era atravessar a cozinha rastejando. Se alguém viu, ignorou imaginando ser coisa de criança.
O coração em pulos enquanto cruzava a sala tentando não fazer barulho. Vozes.
Respiração suspensa. Outra inspeção pelo cômodo, é seguro seguir. Pé ante pé e já é possível
avistar o corredor que leva ao quarto dos fundos. Transposta a porta não se consegue enxergar nada
lá dentro. O quarto não tem janelas. Mesmo de dia é de uma escuridão gutural. Mas é possível
vislumbrar os contornos da velha cama de dossel que já está ali ha tantas gerações que ninguém
nem se lembra mais quando entrou pra família. Ao seu lado um guarda-roupas de madeira vindo
dos mesmos tempos que a cama. Enorme, pesado e preto, com alças douradas, parecendo uma
imensa caixa. As duas primeiras portas eram abertas sempre que a empregada ia substituir as roupas
de cama e não guardava novidades: lençóis e toalhas sem nenhuma história para contar. Mas a
terceira porta, essa ainda não havia sido explorada e, por isso mesmo, era o alvo.
Abri a porta devagar. Um suor frio encharcava minha roupa pequena. E ali estava ela, me
olhando com aqueles olhos... Não, não era olhos, eram buracos. Seu corpo quase do mesmo
tamanho que o meu estava sentado na prateleira do meio coberto com uma fina renda cor de rosa
antiga. Tão antiga quanto os segredos que eu buscava desvendar. A pele pardacenta parecia fria ao
toque que não tive coragem de experimentar. A boca entreaberta como quem quer fazer uma
pergunta que nunca foi concluída e por isso mesmo nunca respondida. E os cabelos, ah os cabelos
brilhantes e sedosos emoldurando ali a cara da morte sem nenhum pudor! Muito tempo depois pude
me perguntar o que faziam ali aqueles cabelos vivos, mas naquela hora eu estava petrificada demais
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para poder fazer qualquer pergunta. O cheiro de carne vindo da cozinha agora tinha se transformado
num odor adocicado e enjoativo que fazia meu estômago revirar. Ao me dar conta quis correr, quis
gritar. Mas era inútil, ninguém podia me ver ou ouvir. Éramos eu e ela. A menina morta me olhava
com seus olhos de abismo como que a anunciar o fim de uma inocência nunca vivida.
Não sei o que se passou depois. Se teve almoço, quem eram as visitas, o que foi conversado
na hora do café na sala. Não lembro de nada. Só sei que depois daquele dia não brinquei mais de ser
invisível. Não consegui mais acreditar na brincadeira - e nem que quisesse: agora havia olhos por
todo lugar. Nunca mais expedições ocultas, nunca mais pacotes furtivos, nunca mais cartas
dissimuladas. Mas hoje, quando as vezes quando abro alguma porta na casa onde vivo, sinto emanar
aquele cheiro ocre e penso: a menina morta andou por aqui.