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1. Nego Fugido: o cinema como tema
2 Nego Fugido, Brasil, 2009, 16 min. Direção Cláudio Marques e Marília Hughes. Disponível em
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momento, sua alteridade transborda e ele procede a uma subjetivação, uma
incorporação do "ser" negro. Ele incorpora a identidade do Outro.
Penso o filme como se procedesse a esse jogo de tensão entre ficção e
documento como proposição de tensionamento do campo do cinema documentário,
aproximando-se das estratégias conceituais da arte, de questionar o estatuto da
tradição do objeto de arte, de seu aspecto aurático e privativo, de sua autonomia
enquanto detentor do sentido, trazendo junto a questão do espaço público da arte
como um espaço, ou esfera pública, do dissenso, constituído pelo antagonismo, onde
os elementos se confrontam (brinquedo de nego forro fugido é abrir roda, prá mostrar
que tudo é caça e caçador ), como nas elaborações da pesquisadora de arte Rosalyn
Deutsche. Em extensão, podemos pensar essa esfera pública para além de seu
aspecto de espaço urbano, físico, senão como um espaço discursivo, próprio à
realidade dos meios de reprodutibilidade técnica (cinema / televisão / vídeo / internet),
que produzem um estado de mobilização sensória, cognitiva, ideológica e produtora
de valores (e sentidos) de mundo, para o mundo. Daí, no embate, quem irá ler em voz
alta a alforria, a carta de autonomia e de contra-sentidos?
Assim, Nego Fugido, em meu ponto de vista, articula a discussão da relação
entre Sujeito e o Objeto, o Eu e o Outro e entre Real e Representação, apontando
para a potência do cinema como construtor de sentidos, valores de mundo e revelando
seus mecanismos construtivos. Estamos no âmbito da arte política, da esfera pública
da arte, onde, penso, encontram-se as proposições do projeto Inventar com a
Diferença6, da apropriação do cinema como lugar do embate sobre os Direitos
Humanos, tema central desse projeto do qual participo como monitor e articulador de
proposições de experiências cinematográficas por parte de alunos e alunas de escolas
básicas de Vitória e Vila Velha, aqui no ES.
6 Projeto de ativação de uma cultura de cinema nas escolas básicas, com o viés da discussão
dos Direitos Humanos, por meio da exibição de filmes, contato com cinemas e cineastas e a realização
constante de exercícios de câmera e de filmes curta metragens. Realização Depto. Cinema e Vídeo da
Universidade Federal Fluminense, no qual me insiro como monitor e articulador, atuando
principalmente na Escola estadual de Ensino Fundamental e Médio Des. Carlos Xavier Paes Barreto e
na Unidade de Ensino Fundamental Guilherme Santos, da Prefeitura Municipal de Vila Velha. O projeto
que elaborei tem o nome de Inventar Mundos em Muitos, para o qual indiquei um viés conceitual que
procura investigar, pelas práticas cinematográficas, a formação identitária em um mundo capitalista e
burguês, fragmentário e mutante.
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2. Inventar com a Diferença: a questão institucional do cinema ou
máquina de criar mundos
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A longa citação que trouxe do artigo de Andrea Fraser guarda sintonia com a
linha de criticidade do projeto – objeto e motivação desse artigo. Estamos na
abordagem crítica da instituição cinematográfica, produtora das imagens de mundo
para mundos possíveis. Estamos na instituição, somos institucionais, na medida em
que fazemos parte de uma máquina que produz imagens constantemente, com a
posse de toda uma tecnologia pessoal de produção de imagens, principalmente a
difusão em larga escala dos telefones inteligentes, capazes de darem conta, assim
como o cinematógrafo dos Lumière, de toda a cadeia da realização da imagem
(produzir, editar – isto é, presentificar, o equivalente ao revelar químico e a montagem
da película – e difundir, via redes sociais).
Essa tecnologia traz possibilidades transformadoras na relação da escola –
espaço social que acolhe as práticas do projeto - com o cinema, por exemplo. E é na
instância da escola que o Inventar com a Diferença se coloca como crítica ao cinema
industrial, à sua forma historicamente hegemônica de organização da narrativa
cinematográfica, que se coloca como matriz para as mídias audiovisuais. A tal ponto
que percebemos nos trabalhos audiovisuais dos estudantes o modo narrativo
naturalista e em continuidade de tempo-espaço característico dessas mídias –
cinema, televisão, internet. O acesso mais permanente aos aparelhos digitais, sejam
as pequenas câmeras, sejam os telefones inteligentes, e a proliferação de projetos de
oficinas de cinema nas escolas, tem proporcionado um crescimento da produção de
filmes escolares, filmes simples, e ficções, documentários, animações, em iniciativas
que:
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da arte como problematização de mundo8, o desencontro entre a “perspectiva do
‘cinema como arte’” (FRESQUET, 2013:40) e a escola é patente.
Nesse ponto, o projeto Inventar com a Diferença, e a minha proposição Inventar
Mundos em Outros ocupam esse espaço de crítica, a que podemos chamar
institucional, na medida em que atravessa os processos estabelecidos do cinema e
da escola, propondo a perspectiva da experiência / experimentação do cinema, da
descoberta das máquinas das imagens de mundo. Propõe gerar um estado de cultura
de cinema na escola, o cinema como arte, a arte como um outro na escola.
Um estado de cultura de cinema refere-se à proposição de implementarmos e
consolidarmos o cinema como um campo de pesquisa e prática autônomo dentro das
escolas, como, na concepção de Alain Bergala9, um diferente no cotidiano didático,
como um outro, um estrangeiro dentro da escola, pois “leva para tal contexto algo que,
tradicionalmente não é próprio dele: a criação” (FRESQUET, 2013:40). Cinema e arte
como criação, postura de desobediência, negando-se a repetir, questionando antes
de aceitar. Cinema e arte como política de resistência e criação de alargamentos das
margens da instituição.
No viés da formação identitária, tema de ativação das ações do projeto nas
escolas capixabas, é também uma experiência de alteridade de mundo e por isso o
lugar de encontro de diferentes, da compreensão do outro, e de si, em seu direito de
existência, com seus processos identitários próprios, valores próprios. Assim, também
o cinema como um ato criativo que provoca um desmonte das relações de saber na /
da escola, de possibilitar a impregnação do cotidiano da escola pelo cinema.
É o ato de desaprender, isto é, questionar as verdades aprendidas, questioná-
las: “Desaprender é, também, fazer o esforço de conscientizar todo o vivido na
contramão, evocando o impacto histórico e emocional que teve aquela aprendizagem
que hoje deseja ser modificada” (FRESQUET, 2007:49). E reaprender, criar modos
do fazer que sejam elaborações próprias, autônomas, em dialética com as formas
8 Jacques Aumont define o cinema, em seu Dicionário Teórico e Crítico de Cinema (Campinas,
SP: Papirus, 2003, pp. 289-291), como “substituto do olhar, arte, linguagem, escrita, pensamento, ou
manifestação de afeto e simbolização do desejo”. Além, há inúmeros cineastas (alguns que são
também teóricos) e teóricos que ampliam o escopo do Cinema como arte e produção de valores. J.L.
Godard, Glauber Rocha, Eisenstein, J.C. Bernardet, Jean-Marie Straub & Danièle Huillet, [...].
9 Alain Bergala é cineasta, teórico, crítico e professor de cinema, foi conselheiro do Ministro da
Educação da França, Jack Lang, em 2.000, quando foi responsável pelo projeto de cinema nas escolas
de um programa do ministério de implantar arte na escola. Bergala escreve e formula proposições a
partir dessa experiência em A Hipótese-cinema. Pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e
fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink, Cinead-Lise-FE/UFRJ, 2011.
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hegemônicas. Criar é, nesse sentido, colocar em situação de crise os modos vigentes
de produção de sentidos de mundo.
Uso sempre a exibição / vivência de Nego Fugido (2009) nas aulas do projeto,
por que parto dele para discutir cinematógrafo e cinema como potências de crise das
institucionalidades do cinema. O filme propõe essa discussão institucional,
tensionando o cinema convencional, da encenação, entre outros motivos, por colocar
o contraste das formas ficção e documentário.
Um: o jogo de enquadramentos. O quadro inicial é da câmera dos diretores.
Nele, a jovem artista está despertando de um sono/sonho, em um tempo ralentado,
nos remetendo às formulações de Jean Epstein do cinema como o “lugar de um
aprendizado específico: ele é a via de acesso para uma nova e mais verdadeira
percepção do espaço-tempo em que estamos inseridos” (XAVIER, 2008:109).
Enquanto se revira na cama, seu namorado lhe pergunta: “’tava sonhado com que,
hoje? ” Tempo de respiro e expectativa pela sua resposta. Que chega nessa
perspectiva: o cinema é sonho, fantasia ou realidade? Longa e antiga discussão.
No corte, ela começa a sua resposta. O quadro vira plano, pois que agora está
em relação com outro quadro. Um devir entre cinematógrafo e cinema. Muda-se do
quadro / plano diegético (Fig. 1.a) para outro quadro / plano (Fig. 1.b), o de uma
câmera que ela utilizará na sua abordagem do folguedo. Ela segura a câmera contra
si (num ato próprio dos atuais selfies), buscando o quadro justo para a sua interação
com o namorado, o outro artista jovem (Godard em Vento Leste: “não é uma imagem
justa. É justo uma imagem”. Essa discussão também perpassa nosso trabalho de
monitores do projeto, assim como o filme). Ajustado o quadro, tem início o plano. Em
linha diagonal, ela e o namorado tocam e cantam Perseguição, de Sérgio Ricardo e
Glauber Rocha. Do cinema-sonho, passamos ao Cinema Novo brasileiro, com o canto
crítico, ácido e libertário de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964),
já interpondo o contraste entre as duas câmeras, as duas instâncias narrativas, que
instituem o debate entre real e representação. No entanto, ela estaria passando a
descrever, com uma câmera (cinema) o suposto sonho? Voltamos ao sonhar? Ou
passamos para um “isso é um filme”?
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Estamos, assim, na tensão entre os procedimentos da transparência, quando
uma dada realidade diegética nos é entregue como natural, e a opacidade10, em que
os mecanismos de produção da imagem cinemática são explicitados, que marcam
uma histórica tensão institucional no âmbito do cinema, desde a sua natureza
industrial e mercadológica, que padroniza uma forma de espetáculo, aos possíveis
formatos das pesquisas de narrativas e outras articulações de códigos e mesmo de
exploração da própria materialidade do cinema, a película, a luminosidade e a
ausência da luz e mesmo a virtualidade no digital contemporâneo, nos processos de
contaminações entre cinema e procedimentos e meios da arte.
Fig. 1.b – sequência de fotogramas dentro do quadro da câmera portátil, que é inserido dentro da
diegese em Nego Fugido (2009). Na trilha, Perseguição, de Sérgio Ricardo e Glauber Rocha.
10 Conceitos apresentados pelo pesquisador Ismail Xavier em sua obra referência para a teoria
de cinema no Brasil, O discurso cinematográfico, Opacidade e Transparência. Rio de Janeiro: Paz &
Terra, 2008.
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representação da luta entre senhores escravocratas e o povo negro escravizado,
sintetizada no ato da fuga e da perseguição dos fugidos pelo Capitão do Mato, que
sua vez era um papel frequentemente assumido por outros negros, num outro jogo de
assimilação entre senhores e escravos, uma sobreposição de identidades. No
entanto, qual o nível de consciência dessas representações?
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momento decisivo da produção de um plano. Assim, quando atuamos com estudantes
em nossas oficinas, devemos ter em mente que:
Num caso, o fora de campo designa o que existe algures, ao lado ou à volta:
num outro, o fora de campo designa uma presença mais inquietante, de que
nem sequer se pode dizer que ela exista, mas que ela ‘insiste’ ou ‘subsiste’,
um Algures mais radical, fora do espaço e do tempo homogêneo.
(DELEUZE, Gilles, apud MIGLIORIN, 2015:132)
5. Jogos de inventar
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com sua montagem invisível e imenso aparato industrial, e o desvelamento do cinema
como construção, como imagem (e som) discursiva que tem processos e intenções
de construção de sentidos específicos e não uma verdade dada. Chamando o
Professor Ismail Xavier novamente à conversa:
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Fig. 2 – Vídeo versus cinema em Nego Fugido (2009)
Fig. 3 – Fuzil versus câmera em Nego Fugido (2009): “prá filmar, tem que ter moneys, é muito
moneys” (sic).
Três: nessa sequência, a partir dela, dentro dela, temos vários elementos para
discutir o cinema como potência discursiva, quando se faz a transformação do
cinematógrafo dos Lumière em Cinema, quando a câmera, desde suas distâncias dos
objetos (as alturas ou escalas de planos), ganha diferentes pontos de vista, ângulos e
movimentos, articulados pela montagem em espaços-tempos específicos, quando o
quadro (a imagem) vira plano (unidade fílmica):
É a partir da noção de plano, como unidade fílmica de base, que podemos falar de
“linguagem cinematográfica”. [...] Antes de aparecer, de durar um tempo e
desaparecer, na tela, pelo efeito da passagem, à razão de 24 por segundo, de todos
os fotogramas que a compõem, foi preciso que essa imagem, seja ela o quer for,
tenha primeiro sido enquadradano olho da câmera, assim fixado segundo certos
limites espaciais, em superfície e em profundidade, filmado, em movimento ou não,
segundo certos limites de tempo, depois montado com outras imagens, no rolo de
película. (BONITZER, 2007:02).
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Assim, a discussão dessa realidade fílmica é feita, nas oficinas do Inventar com
a Diferença, na aplicação dos diferentes dispositivos de sua metodologia, com os
quais apreendemos e nos apropriamos desse poder de construir planos constituídos
de imagens e sons. Perceber os sinais de mundo e potencializá-los em planos
fílmicos, em narrativas diversas, experimentadas. Com os dispositivos, que são
conjuntos de regras que incitam uma situação de onde extraímos imagens e
sonoridades, aprendemos os códigos, e com eles desenvolvemos projetos de
linguagem. O que é real ou representação, qual o estatuto de cada um? Como nosso
real, desde as subjetivações às objetivações, é representação ou realidade física?
Na intensidade do jogo de submissão de Nego Fugido, o artista não entende o
valor da representação, o corpo como máquina de trabalho e configuração de mundos
possíveis dentro do conflito da História de Senhores feudais e escravidões. Oferece
apenas cinco centavos à “nega” (sic)11, figura de submissão do escravo fugido e
apreendido. É obrigado a experimentar essa representação, vira também “nega” (Fig.
4) e, imergindo na experiência, processa essa outra subjetivação, em extrema
alteridade.
11 O uso desse termo, no filme, carrega uma alta energia de denúncia de diferentes formas de
opressão.
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O rapaz olha para a sua namorada em busca de um olhar que o confirme, o valide.
Ainda seria ele mesmo? Ou, o que é ser algo, alguém? Como se dá a relação de
construção de identidades no mundo?
A conclusão do artigo da artista Andrea Fraser indica uma postura que está
subjacente ao projeto Inventar com a Diferença, na medida em que se propõe uma
crise dos valores do cinema hegemônico, sem, no entanto, perder de vista a condição
de que estamos, professores, alunos, monitores-cineastas, festivais de filmes de
escola, internet e telefones espertos, parte de uma máquina que intermedia a
produção de mundos aparentes. Eduardo Coutinho, um de nossos principais
documentaristas e criadores, disse certa vez sobre o seu trabalho: “Eu quero as
aparências! Esse é o lugar em que o cinema me interessa” (COUTINHO, 2008, apud
MIGLIORIN, 2015: 134), apontando que é o cinema um campo de intensa política de
produção de sinais de mundo, para o mundo e modos de mundos.
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Nesse artigo, busquei conectar os campos teóricos da arte e do cinema como
um campo de lutas políticas de enfrentamento das máquinas com outras máquinas,
dentro da fábrica das aparências de mundo, nos posicionando dentro dela. Inventar
com a Diferença é colocar o cinema dentro do cotidiano da escola como arte e como
proposição de criação, interferência nos ciclos institucionais da sociedade.
7. Referências:
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_______________. O dispositivo como estratégia narrativa. Revista Acadêmica
de Cinema. Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá. 2005. Disponível em
http://www.estacio.br/graduacao/cinema/digitagrama/numero3/cmigliorin.asp
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico. São Paulo: Paz & Terra. 2008.
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