Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
cas que configuram os intercâmbios entre identida- agridem a mulher, a criança, ou que preconizam
des culturais plurais passa, necessariamente, pela intolerância às diferenças culturais? Seria, então, o
dimensão ética. silenciar (real ou simbólico) dessas práticas cultu-
Na verdade, o momento atual se acha marca- rais justificado pela ética? Ou, ao contrário, tal si-
do por uma persistente crise de legitimidade, seja lenciar representaria um etnocentrismo inaceitável
dos critérios de justificação racional dos valores do ponto de vista multicultural e ético? Mais do que
éticos, seja dos critérios de justificação ética das mero exercício acadêmico, questões como essas es-
obras da razão (Alves, 1998). Particularmente nas tão a nos invadir, em nossos lares, com dilemas que
últimas décadas, o pensamento chamado de “pós- nos atingem em nossa vida diária, em nossos jul-
moderno”, ainda que não represente um bloco ho- gamentos e naquilo que se espera da educação e
mogêneo, anuncia a crise de um futuro glorioso, da formação docente em sociedades cada vez mais
construído pelo homem por meio da razão. É pre- multiculturais.
ciso dizer, porém, que este debate nada tem de novo. À base das interrogações acima ilustradas, a
Desde Protágoras (século V a.C.), a filosofia se in- seguinte questão emerge no debate multicultural e
terroga sobre o conhecimento e seus critérios de norteia nossas reflexões no presente trabalho: ha-
verdade e de legitimação. Dos gregos até os dias de veria a possibilidade de uma fundamentação ética
hoje, a discussão ética se faz presente. universal que ancorasse discursos e práticas multi-
Entretanto, embora ética e multiculturalismo culturais ou, ao contrário, universalismo e multicul-
estejam, separadamente, presentes nos debates edu- turalismo se excluem mutuamente?
cacionais (Canen, 1997a, 1997b, 1999; Oliveira, Como ponto de partida em nossas reflexões,
1998a, 1998b; Franco, 1999a, 1999b), bem como problematizamos a radicalização de posições ditas
apareçam em políticas curriculares nacionais (“Éti- “universalistas”, identificadas com a resposta afir-
ca e diversidade cultural” constitui-se em tema trans- mativa à possibilidade de princípios éticos univer-
versal nos Parâmetros Curriculares Nacionais — sais, em contraposição às chamadas posturas “rela-
PCN, 1997), a articulação de ambos os campos re- tivistas”, supostamente engajadas em um ceticismo
quer maior aprofundamento, para que não se come- generalizado quanto à possibilidade de quaisquer
tam, em seus nomes, atitudes e racionalizações com- princípios éticos comuns nas relações interculturais.
prometedoras da própria humanização do homem. Apontamos os limites de tal radicalização, propon-
Parece não haver dúvida, no pensamento mul- do a compreensão do “universalismo” e do “relati-
ticultural, tratarem-se de comportamentos funda- vismo” como construções discursivas, desprovidas
mentalmente antiéticos a queima de índios, o exter- de uma significação essencializada, única e consen-
mínio de identidades coletivas, a marginalização de sual, e, portanto, passíveis de reinterpretações e res-
vozes nas práticas sociais e culturais. No entanto, significações. Argumentamos que o avanço do de-
se a articulação ética-multiculturalismo seria esta- bate sobre o multiculturalismo em educação passa
belecida pela própria natureza do objeto de preo- por uma reflexão que busque ressignificar o univer-
cupações do multiculturalismo, trata-se de uma pri- salismo em face da pluralidade cultural, de forma
meira aproximação que pode enganar quanto a seus a contribuir para práticas educacionais multicul-
desdobramentos, no cotidiano da vida dos coleti- turais eticamente fundamentadas. Para desenvolver
vos culturais, das instituições e das práticas, nota- o argumento, situamos, em um primeiro momen-
damente no campo da educação e da formação do- to, paradigmas epistemológicos pelos quais o mul-
cente — foco de nossas reflexões. ticulturalismo é concebido, indicando os aspectos
Por exemplo, em um mundo plural, até que éticos envolvidos no debate que se trava entre po-
ponto a constatação e a valorização da pluralidade sições multiculturais ditas “universalistas” e “rela-
cultural implica a aceitação de práticas culturais que tivistas”. Em um segundo momento, discutimos as
concepções da ética em face desse debate, propon- Falar em multiculturalismo hoje significa to-
do caminhos para a ressignificação do universa- car em posições em um espectro que varia desde sua
lismo ético em um mundo multicultural. A tercei- rejeição total à sua defesa incontestável e apaixo-
ra parte discute possíveis desdobramentos das dis- nada. Entretanto, uma análise mais acurada dos dis-
cussões nas práticas curriculares em educação e for- cursos favoráveis ou não remete, em uma primeira
mação docente inspiradas pela articulação multi- instância, à necessidade de se buscar precisar o que
culturalismo-ética. se entende por multiculturalismo, uma vez que o
Mais do que respostas, busca-se abrir cami- termo implica vertentes e posições epistemológicas
nhos para que se avance em debates que possam diferenciadas, que levam a discursos e práticas tam-
contribuir para políticas e práticas educacionais bém diferenciadas. Nessa perspectiva, o esclareci-
comprometidas com a busca de referenciais éticos mento dos pressupostos epistemológicos que infor-
para o trabalho em sociedades multiculturais. mam as vertentes multiculturais pode revelar que,
tanto aqueles que atacam como os que defendem
Universalismo e relativismo: podem estar se apoiando em representações do mul-
tensões no pensamento multicultural ticulturalismo assentadas em pressupostos episte-
mológicos diversos, todos advogando o termo co-
A questão da diversidade, dos conflitos étni- mo definidor de seu campo de preocupações.
cos, religiosos e lingüísticos, vem suscitando inten- Em um nível mais abrangente, multicultura-
so debate em diversas instâncias da vida política, so- lismo poderia ser definido como a condição das so-
cial e acadêmica, reflexões e ações em torno de pers- ciedades caracterizadas pela pluralidade de cultu-
pectivas viáveis que abarquem a pluralidade de cul- ras, etnias, identidades, padrões culturais, socioeco-
turas, crenças e condutas — que se impõem com nômicos e culturais, abrangendo as formas pelas
suas idiossincrasias, buscam criar alternativas de quais os diversos campos do saber incorporam a
mediação para os possíveis e já constantes emba- sensibilização a esta diversidade em suas formula-
tes em torno da realidade que marca nosso fim de ções, representações e práticas. No entanto, a par-
século. Um cenário moderno, colonialista, ociden- tir dessa generalização, posturas epistemológicas
tal e predominantemente tecnológico; branco, mas- têm sido estudadas (McLaren, 1997; Grant, 1997;
culino e extremamente normatizador; homogenei- Canen, 1997a, 1997b; Moreira, 1999), que vão des-
zante e excludente. Um cenário que, segundo Bha- de a concepção de uma sociedade harmoniosa onde
bha (1998, p. 105-106), em tempos de globaliza- a diversidade cultural é trabalhada em termos exó-
ção, tem na força da estratégia discursiva da dife- ticos e folclóricos, até perspectivas mais críticas em
rença uma perspectiva histórica de conveniência que essa pluralidade é compreendida como vincula-
política, pois“reconhecer o estereótipo como um da a questões de poder, que legitimam padrões cul-
modo ambivalente de conhecimento e poder exige turais hegemônicos e excluem vozes culturais de po-
uma reação teórica e política que desafia os modos líticas e práticas sociais, incluindo educacionais.
deterministas ou funcionalistas de conceber a rela- O termo intercultural é freqüentemente utili-
ção entre o discurso e a política”. O autor acrescen- zado para definir essa posição crítica e minimizar
ta, ainda, que tal reconhecimento questionaria, so- a associação com o termo multicultural, tido como
bretudo, “as posições dogmáticas e moralistas dian- mais coadunado com posturas menos críticas. É
te do significado da opressão e da discriminação”. interessante apontar, como salienta Sodré (1999),
Nesse cenário pluricultural e multifacetado, no qual que pode haver, até mesmo, uma lógica de hege-
práticas homogeneizadoras ameaçam identidades monia político-econômica por trás de certos discur-
culturais marginalizadas do poder, emerge, com sos multiculturais, onde a dimensão mítica e comu-
força crescente, o pensamento multicultural. nitária é reconhecida, protegida e promovida des-
de que não ameace a hegemonia tecnológica. Nes- bates em torno da questão multicultural: o multi-
se tipo de discurso multicultural, segundo o referi- culturalismo poderia ser concebido em uma base de
do autor, a afirmação de uma “irredutível” alteri- sustentação universalista ou, ao contrário, os valo-
dade cultural (por nação, etnia ou religião) concorre res que se pretendem “universais” não passam de
curiosamente para a unidade dialética do mundo construções textuais e culturais e, portanto, não
arrematada pela organização capitalista, em uma poderia haver quaisquer referências para julgamen-
identidade definida a partir de categorias ocidentais tos de valor sobre padrões culturais plurais? Em
universais sob as quais se apresentam verdades. Des- outras palavras: haveria a possibilidade de pensar
sa forma, a diversidade, seja cultural ou ideológi- em necessidades universais independentemente das
ca, étnica, racial ou religiosa — enfim, a diferença identidades culturais plurais? Ou, ao contrário, uni-
—, é essencializada, é vista como um dado, um fato versal e particular são constructos incompatíveis no
social. No entanto, a utilização do termo “intercul- multiculturalismo?
tural” também esbarra em ambigüidades semelhan- Para o pensamento pós-moderno, em sua ver-
tes ao termo multicultural. Nesse sentido, mais do tente mais relativizada, as respostas às questões aci-
que termos, é a análise dos discursos e das posturas ma parecem convergir para a incompatibilidade en-
epistemológicas que têm sido por nós apontados tre o universal e o particular. Segundo Veríssimo
como cruciais para a compreensão de que multicul- (1997), nessa vertente, a promessa iluminista do
turalismo se fala, analisando suas implicações pe- equilíbrio e do progresso fundados no poder da ra-
dagógico-curriculares que vão desde a simples acei- zão e do conhecimento foi negada pelas próprias
tação da pluralidade cultural até outras que buscam condições societais da modernidade. Esse rompi-
resgatar, em currículos e práticas, vozes excluídas. mento tem sido identificado como uma crise da mo-
Nesse campo, temos argumentado em favor de dernidade, referente, também, a uma crise paradig-
uma perspectiva intercultural crítica ou multicul- mática em função do abalo sofrido pelos fundamen-
turalismo crítico (McLaren, 1997; Canen, 1997a, tos teóricos da própria modernidade, sejam eles po-
1997b, 1999; Moreira, 1999), tendo como perspec- sitivistas, cientificistas ou historicistas, incluindo os
tiva ressaltar a importância de superar uma visão elementos das teorias marxistas mais ortodoxas, le-
idealizada, folclórica e assimilacionista da plurali- vando, segundo críticos dessa vertente, ao ceticismo
dade cultural e buscar detectar e desafiar o proces- e para o surgimento de um novo irracionalismo.
so de construção das diferenças, denunciando seu Contrariando as normas do iluminismo, o pen-
vínculo com relações assimétricas de poder na so- samento “pós-moderno”, em sua versão mais rela-
ciedade. Temos, também, apontado para as contri- tivizada, vê o mundo como contingente, gratuito,
buições de aportes pós-modernos e pós-colonialis- diverso, instável, imprevisível, um conjunto de cul-
tas, que têm desafiado a essencialização de catego- turas ou interpretações desunificadas gerando um
rias como identidade e diferença, apontando para certo grau de ceticismo em relação à objetividade
seu caráter de construção e exortando à análise crí- da verdade, da história e das normas. Tanto os pres-
tica dos discursos que as constituem (Bhabha, 1998; supostos do iluminismo quanto do idealismo, pre-
Silva, 1999). sentes no cerne do pensamento moderno, são, des-
No entanto, se essas contribuições têm cola- sa forma, descartados. A queda do socialismo real
borado para desafiar a idéia de um universalismo teria posto fim à única possibilidade de alternativa
cultural estático e permanente, avançando no ca- ao modelo capitalista que avança em sua trajetória
ráter histórico, contextual e sempre inacabado da excludente. É, nesse sentido, que se declara o fim
formação das identidades e na necessidade de com- das utopias, das ideologias, da história centrada na
preender suas referências culturais em movimento, relação sujeito/objeto. Descarta-se qualquer tipo de
uma problemática tem emergido com força nos de- visão global ou metanarrativas, optando-se pela
defesa de um pensamento pragmático, com corres- pos privilegiados ocultam vantagens ao defende-
pondência imediata com o real, com o presente, com rem o ideal de uma humanidade comum.” (McLa-
o local. Há, portanto, a desconfiança de qualquer ren, 1997, p. 77).
tipo de pensamento que tome como referência cer- Essas questões têm levado a posições que, não
tos elementos “universais”. raro, têm se radicalizado e se impermeabilizado com
Mais do que isso, busca-se apontar certos dis- relação a quaisquer esforços de busca de diálogo e
positivos lingüísticos usados tanto para afirmar e articulações entre as mesmas. Paradoxalmente, o res-
valorizar condutas universalistas quanto para de- peito às diferenças, tão caro ao multiculturalismo,
signar de forma pejorativa o “relativismo” atribuí- tem sido silenciado em embates onde as posições di-
do ao pensamento “pós-moderno”. Assim, o peso tas “universalistas” e aquelas denominadas “relati-
dos valores afirmativos do universalismo, tais como vistas” acabam por constituírem-se, elas próprias,
a tolerância, a ética, a igualdade e outros, são vis- em duas “culturas” fechadas em si mesmas, descon-
tos como dispondo de uma carga positiva e/ou sim- fiadas uma da outra e nutridas por discriminações
bólica sobre a qual fica muito difícil manifestar opi- e preconceitos com relação a seus antagonistas.
nião ou sentimento contrário. Aurélio (1998, p. 21) Gutmann (1994) oferece uma interessante ilus-
nos mostra o peso da ambigüidade que carrega, por tração dos efeitos da radicalização desse campo no
exemplo, a palavra “tolerância”. Segundo o autor, contexto da concepção de um currículo multicul-
o problema, ou, se quisermos, a dificuldade, está na tural de literatura, na Universidade de Stanford. A
identificação dos limites, na definição de um crité- luta de poder em torno da seleção cultural das obras
rio por onde distinguir o intolerável do tolerável, a serem estudadas no decorrer do referido curso
na medida em que “aquilo que se tolera é já, tam- levara à clara distinção entre as duas posições aci-
bém, um erro ou um mal, ainda que não o seja em ma delineadas, denominadas por Gutmann (1994)
grau suficiente para ser declarado intolerável”. Na multiculturalista essencialista e multiculturalista
mesma linha, Sodré (1999, p. 22) afirma que a to- desconstrucionista. Os partidários da primeira eram
lerância afigura-se como ideologia possível para a francamente contrários à introdução de obras de
consciência jurídico-liberal no interior de Estados- autores não-europeus e de autores femininos, afro-
nação fortes, mas na prática demonstra que “toda americanos, hispânicos e outros, atribuindo sua in-
a tolerância é intolerante com a intolerância dos trodução a um “esquecimento dos valores da cultu-
outros e, por isto, tem a mesma precariedade dos ra ocidental a favor de um relativismo caracteriza-
sentimentos piedosos com que os presumidamen- do pela falta de critérios” (Gutmann, 1994, p. 32).
te fortes contemplam os presumidamente fracos”. Por outro lado, os multiculturalistas desconstrucio-
Sahel (1992, p. 229) reafirma a discussão e ressal- nistas argumentavam que não existiriam obras di-
ta que “ora objetivada e marcada por um sinal ver- tas clássicas e que a exclusão de tais autores signifi-
melho, ou interiorizada e engrandecida como vir- caria “menosprezar as identidades dos membros de
tude altruísta de caridade oblativa, a tolerância faz grupos com um passado histórico de exclusão e ve-
parte da panóplia da modernidade ocidental”. dar à civilização ocidental a possibilidade de conhe-
Nesse sentido, os pressupostos éticos ou epis- cer [suas influências]” (idem). Evidencia-se, no caso
temológicos universais seriam vistos como pos- em pauta, o desacordo de ambas as partes quanto
suindo significados que transcenderiam sua ori- ao valor e ao conteúdo de um curso multicultural,
gem social, estando, dessa forma, situados em uma com polêmicas e discussões estéreis que manifesta-
dimensão “extra-social” que interessaria a quem vam o desprezo mútuo e o desrespeito pelas dife-
enuncia, em nome de valores definidos sempre nu- renças. A argumentação da referida autora ilumi-
ma relação de poder de quem os define como neces- na o reducionismo e o entricheiramento dogmático
sários (Silva, 1999). Dito de outra maneira, “gru- de ambas as posições, apontando para a necessidade
de um debate multicultural que fosse mais constru- os aspectos éticos envolvidos no confronto de cul-
tivo e que buscasse reconhecer o valor de ambas as turas, bem como nas suas representações em polí-
argumentações em esforços de diálogo e de arti- ticas e práticas culturais, torna-se tarefa urgente.
culações enriquecedoras para o curso e para o mul- Também nesse campo, as posições parecem cami-
ticulturalismo que se propugna. nhar para o confronto entre posições ditas univer-
Para além do campo estritamente epistemoló- salistas e aquelas denominadas relativistas. Auto-
gico do debate, as implicações éticas da radicaliza- res tais como Valdés (1997), por exemplo, defen-
ção de ambas as posturas se fazem sentir, não só nos dem que a adoção de uma perspectiva ética pres-
meios acadêmicos, como também em outras esfe- supõe a aceitação de princípios e regras de valida-
ras formais e não formais da educação. Em nome de universal, ressalvando, contudo, que essa acei-
de um universalismo estático, a rejeição a padrões tação não leva a nenhuma abstração inaceitável e
culturais considerados “diferentes” tem perpetra- nem a passar por alto das peculiaridades culturais
do visões etnocêntricas que impregnam currículos locais ou regionais. Propõe, nessa relação, o rechaço
e outras práticas sociais no cotidiano das relações do relativismo cultural como fonte de aceitação uni-
interculturais. Em outro trabalho (Canen, 1999), versal, bem como a negação do caráter “sacrossan-
ilustramos os desafios éticos enfrentados no desen- to” das culturas (o que implica sua constante pos-
volvimento de uma pesquisa de cunho etnográfico sibilidade de crítica e superação). No entanto, os
em um curso de formação de professores, onde me- desafios éticos referentes a quem enuncia os prin-
didas administrativas para bloquear o trabalho in- cípios universais propostos ou os aspectos a serem
tercultural crítico eram tomadas em nome de valo- “criticados” e “superados” nas diversas culturas
res supostamente “universais”. Ao mesmo tempo, não são contemplados pelo referido autor.
a bandeira de um relativismo radical pautado na Contrapondo-se à visão de Valdés (1997), au-
ausência de bases racionais para a apreciação da tores tais como Vernengo (1997) e Batalla (1997)
pluralidade de padrões culturais tem levado a uma não acreditam na possibilidade de uma fundamen-
perplexidade com relação a questões complexas que tação ética, universal, de normas morais. Compa-
emergem no cotidiano das relações interculturais, ram essa aspiração à construção de escalas axio-
tais como: o fato de se valorizar e de se compreen- lógicas que, implícita ou explicitamente, estariam
der a pluralidade cultural como constitutiva das so- hierarquizando os sistemas sociais culturalmente
ciedades e das próprias identidades individuais e co- diferentes. Para esses autores, todas as culturas são
letivas levaria a uma suspensão de quaisquer crité- legítimas, requerendo sua compreensão nos refe-
rios para se julgar práticas culturais, ainda que es- renciais culturais de origem, ainda que possam pa-
tas ferissem princípios de cidadania e de democra- recer bárbaros seus padrões e rituais aos olhos de
cia? Em outras palavras: caberia, em uma perspec- culturas diferentes.
tiva multicultural crítica, uma aceitação de padrões Concordamos com Camps (1997) em que am-
culturais que, eles próprios, propugnem discrimi- bas as posições acima delineadas são generalizan-
nações ou práticas destrutivas das diferenças? No tes. Temos argumentado, do ponto de vista do mul-
campo educacional, caberia a práticas e políticas de ticulturalismo crítico pós-modernizado, que as con-
educação multicultural o estabelecimento de limi- siderações sobre o caráter de construção das dife-
tes à aceitação de padrões ou discursos culturais que renças e de seus enunciados, bem como a ruptura
atentassem contra identidades individuais ou cole- com binarismos — preto-branco, homem-mulher,
tivas específicas? eu-outro — em prol da análise de movimentos e
Tais questões evidenciam a dimensão ética do hibridizações identitárias implica que se busque
debate, para além de seu ponto de vista estritamente romper, também, com o binarismo universalismo-
epistemológico. Conforme Olivé (1997), clarificar relativismo, universalismo-multiculturalismo, bus-
ou desonesto etc. Embora considere a existência de jetivos (uma experiência de física, por exemplo), no
princípios éticos universais (por exemplo: não ma- segundo sobre as normas que regem as relações in-
tar, não mentir, não roubar), Kant acredita que o terpessoais e no terceiro sobre ações e formas de
homem pode escolher ou não adotá-los. Se os ado- conduta individuais. Quando a pretensão dos su-
ta, torna-se um ser moral e, do contrário, não. Nessa jeitos do diálogo é chegar à verdade ou à retidão,
escolha, a disciplina (parte da educação que prepara aquele que expõe uma tese pode assegurar discur-
o indivíduo para o exercício da moralidade) tem sivamente a validade do que está dizendo. Contu-
papel fundamental: o educando pode até prescin- do, se a pretensão for de veracidade, ele deve ter
dir da instrução intelectual mas não da instrução comportamento condizente com o discurso profe-
moral: rido, já que o interlocutor só se deixará convencer
por atitudes concretas e não por palavras.
A falta de disciplina é um mal muito maior que
A ação comunicativa tem, segundo Habermas,
a falta de cultura, pois este último pode ser reparado
como suporte a linguagem, a qual confere sentido
mais tarde. Mas a selvageria não pode ser eliminada
ao existente, tornando possível ao homem conhe-
e um erro relativo à disciplina não pode ser corrigi-
cer a realidade e também agir sobre ela, modifican-
do. É possível que a educação se torne sempre melhor
do-a. Quando se converte em “ser lingüisticamente
e que cada geração, por seu lado, dê um passo a fren-
expresso” (Oliveira, 1995, p. 94), isto é, à medida
te rumo ao aperfeiçoamento da humanidade. (Kant,
que se relaciona com os outros, o indivíduo deixa
1996, p. 74)
seu mundo particular e penetra na esfera do que
Nesse breve retrospecto de algumas das prin- possui significado intersubjetivo, dando assim um
cipais vertentes do pensamento ocidental, procura- grande passo para a construção do entendimento.
mos apontar a presença marcante de um univer- A razão que fundamenta esses processos lingüísti-
salismo ético a priori. Nesse ponto, cabe uma ob- cos não é de natureza cognitivo-instrumental, mas
servação: não seria redundância falar de universa- sim de natureza comunicativa. Pautando-se nas exi-
lismo a priori, já que o universal corresponde ao gências de retidão e veracidade próprias das instân-
eterno, ao imutável, ao que vale para todos os ho- cias normativa e subjetiva, tal razão pede a quem
mens em todas as épocas? A questão, por sua vez, profere o discurso justificativas razoáveis e não de-
nos remete para a discussão acerca do que está sen- duções lógicas ou provas empíricas acerca do que
do compreendido como universal ético: trata-se de é discutido.
algo dado ou construído? Se o universal ético é visto No plano ético, a razão comunicativa baliza
como algo dado, evidentemente só pode ser conce- a construção de uma ética do discurso, a qual pos-
bido como um a priori. Contudo, se ele é tomado sui as seguintes características: é de natureza deon-
como constructo humano que leva a marca da tem- tológica, cognitivista, formal e universal. O caráter
poralidade e da historicidade, então cabe conferir- deontológico se manifesta em função da ética do
lhe o caráter de a posteriori. Nesta perspectiva si- discurso conferir importância ao dever-ser e não
tuam-se as abordagens de Habermas e Perelman, àquilo que efetivamente é. Em outras palavras, não
cujos pontos de contato e divergências passaremos importa como determinadas ações se desenvolvem
a comentar. no mundo e sim como deveriam se desenvolver.
De acordo com o paradigma da ação comu- Nesse sentido, trata-se de prescrever o que é social-
nicativa proposto por Habermas, o diálogo eu-tu mente mais justo e não de justificar um dado exis-
é fundamental para promover o entendimento en- tente. O cognitivismo subsidia a prescrição do de-
tre os homens, o qual se pode dar em torno da ver- ver-ser na medida em que busca os fundamentos
dade, da retidão ou da veracidade. No primeiro racionais das normas a serem sancionadas. O for-
caso, os interlocutores discutem acerca de fatos ob- malismo diz respeito ao modo pelo qual se chega a
essas normas, ou seja, por meio das práticas argu- do gênero, não há como deixar de lado os valores
mentativas e, finalmente, o universalismo situa o pois eles fornecem as bases de qualquer princípio
dever-ser como algo referente ao homem genérico, moral. Se, por um lado, os valores variam confor-
indo além dos particularismos religiosos, étnicos, me as épocas e as culturas, são arbitrários e muitas
raciais ou de qualquer outra natureza. vezes se acham associados a crenças dogmáticas,
A ética do discurso segue os passos da ética por outro são inseparáveis da existência humana.
kantiana; contudo, enquanto esta tem por suporte Quem argumenta não é uma razão desencarnada,
uma razão centrada no sujeito, a qual estabelece a mas um ser de carne e osso que não só cultiva inú-
priori os imperativos categóricos (busca do dever- meros valores, como também os hierarquiza. A par-
ser pelo dever-ser, em detrimento de qualquer ou- tir daí, constatamos que a visão de Perelman acer-
tro objetivo),2 aquela se apóia na construção inter- ca da ética é acentuadamente ontológica, isto é, se
subjetiva, a posteriori, do dever-ser, a qual só pode preocupa com o que é, com o que acontece no mun-
ter lugar mediante processos argumentativos leva- do em termos de ações praticadas pelos homens e
dos a cabo por todos aqueles que se acham envol- não apenas com o dever-ser. Tal preocupação im-
vidos nas situações que são objeto de exame de um plica abrir mão da construção do universalismo éti-
dado discurso prático. Cabe ainda dizer que, na co? Segundo o autor, bem ao contrário:
busca do consenso ético, os interlocutores devem
A função específica da filosofia é, de fato, pro-
esforçar-se para colocar “entre parêntesis” seus va-
por à humanidade princípios de ação objetivos, ou
lores, gostos pessoais e paixões, porquanto tais fa-
seja, válidos para a vontade de todo ser razoável. Essa
tores não são passíveis de acordos racionais. Enten-
objetividade não será, nesse caso, nem conformidade
dendo que a argumentação se dirige ao homem ple-
com o objeto exterior, nem submissão às ordens de
no — e não apenas às suas faculdades racionais —,
uma autoridade qualquer: ela visa a um ideal de uni-
Perelman vê a ética como constructo que se pauta
versalidade e constitui uma tentativa de formular nor-
na difícil, mas necessária, articulação de elementos
mas e valores que se possam propor ao assentimento
formais e situações concretas de vida. O principal
de todo ser razoável. Mas propor não é impor, e é essa
elemento formal é a chamada regra de justiça: dar
distinção que urge salvaguardar a qualquer preço, se
tratamento igual a seres essencialmente semelhan-
se quer evitar os abusos a que conduz o ideal do rei-
tes. Como frisa o autor, este enunciado não se acha
filósofo, que disporia da autoridade política e da for-
sujeito a discordâncias, contudo estas prontamen-
ça do Estado para assegurar o triunfo de suas convic-
te surgem quando é preciso dar conteúdo concreto
ções, de seus valores e de suas normas. (Perelman,
à semelhança essencial entre os homens. Dito de ou-
1996, p. 199, destaques do próprio autor)
tro modo, em que se funda essa semelhança? No
fato de todos os homens serem racionais? No fato Portanto, a perspectiva perelmaniana, assim
de possuírem alma? Ou no fato de terem sido to- como a de Habermas, é a da construção de um uni-
dos condenados a ganhar o pão com o suor dos versalismo ético a posteriori, mas tal construção
próprios rostos? assume contornos mais humanos porque se afasta
Para dar curso aos processos argumentativos do caráter puramente deontológico e da omissão de
que devem discutir estas e muitas outras questões valores e de sentimentos preconizada pela ética do
discurso. Todavia, em consonância com esta últi-
2
ma, a abordagem de Perelman vislumbra o univer-
O sentimento do dever pelo dever se expressa, por
salismo ético como proposta a ser debatida por to-
exemplo, em situações do tipo: devo pagar impostos por-
que essa é uma obrigação de todo cidadão para com a co- dos quantos queiram e acreditem no diálogo, e não
letividade em que vive e não porque, não pagando, corro o na coerção, como instrumento capaz de dirimir con-
risco de sofrer sanções. flitos. É claro que esse universalismo é um telos,
uma meta que dificilmente será plenamente cum- em contraposição ao universalismo ético “absolu-
prida. Mas, justamente porque não pretende ser a to” — atrelado à racionalidade científica repositária
panacéia que irá curar todos os males da convivên- do ideal iluminista de validade universal de crité-
cia humana, tal meta é sempre repensada, caben- rios de razão — pode, a nosso ver, avançar na con-
do à educação (escolar e extra-escolar) um papel de cepção de práticas educacionais interculturais crí-
grande importância na discussão da sua viabilidade. ticas que se recusam a abandonar horizontes éticos
na formação das subjetividades. Assim sendo, tor-
Ética universal e multiculturalismo: na-se necessário também, a exemplo do que fizemos
repensando a questão na educação para o universalismo ético, ressignificar o conceito
e na formação docente de “tradição cultural”. Tendo em vista que todas
as culturas humanas se constróem entre os pólos da
Em face do que foi discutido anteriormente, conservação e da renovação, mantendo antigos va-
como trabalhar as questões éticas e multiculturais lores, hábitos, saberes, crenças e assumindo novos,
no contexto da escola? Essa indagação, sem dú- é possível dizer que as tradições culturais dos dife-
vida complexa, não tem uma resposta imediata e rentes povos sempre se transformam, de modo mais
única. Na medida em que se coloca como um con- ou menos acelerado. Se as transformações são len-
junto de políticas e práticas discursivas e não-dis- tas, existe a tendência em considerar que a cultura
cursivas que participam ativamente na formação se mantém estática, preservando-se incólume ante
de identidades culturais, a educação não se pode a passagem do tempo e da história. Talvez por isso
calar em face do contexto multicultural das socie- alguns estudiosos defendam a observação isenta de
dades onde se insere, nem em face das implicações interferência, que seria a melhor maneira de permi-
éticas de suas formulações na formação de cidadãos tir a conservação de uma dada cultura em sua pu-
críticos e participativos. reza original.
Temos argumentado que a concepção de um Tal posição, porém, é ingênua, pois sendo a
universalismo ético a posteriori busca superar a di- existência humana relacional,3 não há como impe-
cotomização universalismo-relativismo, reconhe- dir que haja hibridizações ou incorporações de as-
cendo, por um lado, como quer Silva (1999), que pectos de uma cultura por parte de outra. Assim
os “universais absolutos” constituem-se em produ- sendo, do ponto de vista da construção de um uni-
tos de práticas específicas, já que carregam em seus versalismo ético a posteriori, os procedimentos ar-
significados critérios epistemológicos de verdade ou gumentativos e dialógicos são elementos constru-
de falsidade, de razão ou irracionalidade, de justi- tores da relacionalidade e não instrumentos de im-
ça ou injustiça; por outro lado, a superação da di- posição das “verdades” das ditas culturas “avança-
cotomização se dá, também, na compreensão de que das” sobre as “pseudoverdades” das culturas ditas
o relativismo, se entendido como negação apriorís- “primitivas”.
tica da existência de quaisquer respostas racionais Portanto, a aceitação de tais procedimentos
às questões fundamentais, recai em um dogmatismo nos coloca diante de três dimensões. A primeira
exacerbado em que padrões culturais diversificados implica o reconhecimento do caráter dialógico na
são tomados como categorias estanques, apriorís- própria construção das identidades culturais. Con-
ticas, sem que se tenha qualquer referencial que per-
mita captar seus movimentos e, portanto, a possi-
bilidade de hibridizações, novas sínteses e mesmo
superações críticas. 3Como bem salientou Aristóteles (1991), o homem é
A concepção de um universalismo ético a pos- um animal político por excelência, por isso busca o inter-
teriori, fundado na racionalidade argumentativa, câmbio com seus iguais e também com seus diferentes.
forme Gutmann (1994), é na razão argumentativa, ao que entendemos por “normalidade”, mas que é,
fundada no diálogo, que se constituem valores, ati- na verdade, fruto de uma das formas culturais de
tudes que, longe de se pautarem por ideais univer- se perceber o mundo e as relações culturais.
sais apriorísticos, são regidos no campo concreto Entretanto — e aí chegamos à terceira dimen-
das experiências, em espaços e tempos definidos. são do diálogo ético que propomos —, isto também
Apoiando-se em Taylor (1994), Gutmann (1994, p. não significa aceitar acriticamente os conteúdos cul-
25) argumenta que nossa identidade individual é, turais indistintamente. Esta tem sido a mais polê-
em parte, constituída por diálogos coletivos. Em mica questão, justamente a que mobiliza questio-
outras palavras: não somos o que somos simples- namentos que se referem a critérios para julgamento
mente por aspectos essenciais apriorísticos, mas co- de limites na aceitação de padrões culturais quan-
mo fruto de articulações múltiplas, em espaços e do, por exemplo, esses contêm discursos racistas,
tempos diferenciados, permeados por diálogos cons- xenófobos ou que preconizam práticas aniquila-
tantes, desestabilizadores e reorganizadores de sín- doras do outro. Dentro de nossa argumentação, se
teses culturais diversificadas. admitimos que o diálogo é constitutivo das identi-
Dessa forma, em contraposição ao ceticismo dades em sua construção (primeira dimensão), que
ético, entendido enquanto suspensão de critérios de ele pode ser catalisador de ressignficações e mudan-
avaliação racional de discursos, o diálogo argumen- ças nas culturas (segunda dimensão), avançamos,
tativo implica o mergulho crítico sobre o conteúdo nessa terceira dimensão, na proposição de que a
cultural desses mesmos discursos, estes também en- presença do diálogo argumentativo (ou de sua pos-
tendidos como passíveis de desconstruções e refor- sibilidade de existência) seja um critério ético de
mulações. No entanto, diferentemente do univer- avaliação de discursos culturais.
salismo apriorístico defendido por autores como Nessa linha de análise, padrões culturais que
Valdés (1997), quem determina as facetas ou di- preconizam práticas silenciadoras de vozes disso-
mensões a serem ressignificadas nesses discursos cul- nantes, que exortam o aniquilamento de identida-
turais diversificados não é um sujeito moral indi- des culturais fundamentadas em etnias, culturas,
vidual, nem mesmo uma ética que se pretenda uni- religiões ou outros marcos identitários, estarão fe-
versal. É justamente o diálogo argumentativo, con- rindo o direito à existência da pluralidade cultural
textualizado nas experiências e loci de produção e ao diálogo intercultural. A educação e a forma-
cultural das diversas identidades, que será o motor ção docente não podem e não devem se eximir de
a alavancar as mudanças que resultarão em novas trabalhar essa dimensão, sob pena de, em nome de
sínteses culturais. um suposto respeito à pluralidade cultural, pro-
Incorporar essa segunda dimensão do diálogo mover atitudes de aceitação a discursos intoleran-
como catalisador de revisões e mudanças culturais tes, xenófobos, racistas ou de violência simbólica
na educação e na formação docente implica promo- ou real contra o outro.
ver práticas pedagógicas que levantem criticamen- Vale salientar que as três dimensões mencio-
te os aspectos dinâmicos das culturas, sua mobili- nadas estão longe de esgotar a questão da forma-
dade, suas hibridizações. Implica, também, em se ção multicultural e ética de professores e alunos. To-
distinguir as mudanças impostas por questões de davia, cabe também assinalar que, no contexto atual
poder, hegemônicas, em contraposição àquelas ne- das práticas educacionais, ainda é muito acentua-
cessárias na evolução e avaliação ética de propos- da a herança da modernidade que situa as escolas
tas. Implica superar a tendência a determinar, sob como “oficinas de homens” (conforme propôs Co-
o manto de “valores universais absolutos”, aque- mênio em sua Didática magna), ou seja, como ins-
les aspectos que, em uma ética etnocêntrica, seriam tituições que, visando aos mesmo fins, devem ho-
inaceitáveis simplesmente por não corresponderem mogeneizar o trabalho pedagógico. Dessa perspec-
tiva, o professor entra em sala de aula como se es- ainda que provisória, uma totalidade construída
tivesse se dirigindo a um aluno genérico, sem va- historicamente e sobre um terreno de diálogo.
lores, sem saberes prévios, sem hábitos adquiridos, Tal afirmação aproxima-se da defendida por
enfim, a um aluno sem rosto. Se suas turmas pos- Giroux (1993, p. 53), em que a noção de totalida-
suem diferentes identidades culturais, tal fato é pro- de é enfatizada como um dispositivo heurístico e
jetado para um plano secundário quando não sim- não somente como uma categoria ontológica. Res-
plesmente esquecido. Para um aluno genérico, nada saltamos, porém, que num mundo plural tal como
melhor que valores genéricos e abstratos (fazer o o nosso, bem como nesses novos tempos, em que
bem, ser justo, íntegro etc.) que podem ser transmi- se afirmam singularidades, esse terreno passa a ser
tidos a partir das práticas monológicas habituais. visto como arenoso, movediço e por isso mesmo
Mas, para um aluno real, que não se despe de sua mutável e capaz de incorporar e produzir continua-
identidade cultural porque se acha temporariamente mente novos significados.
sentado em uma carteira escolar, as necessidades O presente texto não se pretende livre de ques-
são outras. De que bem o professor está falando? tionamentos e de desafios. Na verdade, o horizon-
De que justiça? De que integridade? te ético universal a posteriori que fundamenta as três
A atribuição de conteúdos concretos a esses dimensões do diálogo argumentativo no multicul-
valores não pode ser entendida como processo mo- turalismo em educação, que ora propomos, passa
nológico em que o professor deposita afirmações pelo difícil equilíbrio entre nossas identidades cul-
categóricas no espírito do aluno. Ao contrário, exige turais plurais e o que nos constitui em nossa iden-
a instauração de processos dialógicos em que os tidade universal de seres humanos. Tal como um
atores da prática pedagógica agem uns sobre os ou- malabarista que se equilibra na corda bamba, tra-
tros e, dessa perspectiva, ainda que não cheguem a ta-se de um equilíbrio dinâmico, contextual, sem-
um consenso, se modificam mutuamente. Essa é a pre novo e provisório. Assim como a demasiada in-
riqueza maior de toda prática educativa, a qual na- clinação para qualquer um dos lados pode signifi-
turalmente requer a substituição dos procedimen- car a queda do malabarista, também a radicalização
tos homogeneizadores, anti-dialógicos, por outros e o dogmatismo que tem caracterizado discussões
mais alinhados ao espírito do pluralismo — que envolvendo universalismo e relativismo na ética e
pressupõe debate, polêmica, confronto entre dife- no multiculturalismo podem levar à queda do pró-
rentes visões de mundo — e não à tolerância con- prio motor que alinhava o pensamento ético e mul-
descendente para com o outro, a qual acaba por ticultural: a possibilidade de sermos plurais e, ao
manter educadores e educandos na redoma de vi- mesmo tempo, universais em nosso direito à partici-
dro das próprias intolerâncias. pação nos diálogos múltiplos que constituem nos-
sas identidades.
Conclusões Se, como educadores, aceitamos essa partici-
pação, avançamos no sentido de ver nossos alunos
A polêmica universalismo-relativismo que tem como sujeitos de seu próprio tempo, possuidores de
tensionado o campo do multiculturalismo e da éti- linguagem e constituídos pela linguagem, capazes
ca foi apresentada, no presente artigo, como cons- de nomear, criar e recriar indefinidamente a si mes-
trução e, portanto, passível de ressignificações. Isso mos e ao mundo. Quando aceitamos que esses inú-
significa dizer que, ainda que estejamos vivendo um meros alunos não são seres “sem rostos”, mas per-
momento conturbado, marcado por inúmeras rup- sonalizados pelas suas próprias falas e vozes, pelos
turas ou descontinuidades, principalmente no que seus próprios textos e contextos, talvez possamos
tange aos pressupostos paradigmáticos, defendemos estabelecer novos pactos, ainda que provisórios.
ser possível preservar alguma noção de totalidade, Nesse sentido, o papel de professoras e professores
em um cenário diverso e dialógico passa a ser, sobre- contemporâneo (Eduerj, 1998) e A escola e o ensino de ciên-
tudo, o de desvelar os diferentes processos consti- cias (Unisinos, 2000, no prelo).
tutivos das diversas formas de ver e nomear o mun- ANA CANEN é doutora em educação pela Universi-
do natural e social ao qual pertencem. A afirmação ty of Glasgow. É professora adjunta da Faculdade de Edu-
cação e pesquisadora do PROEDES, Universidade Federal
constante dessa mudança de perspectiva poderá nos
do Rio de Janeiro, onde desenvolve pesquisa sobre multi-
fazer repensar questões relacionadas à visibilidade culturalismo e educação, com apoio do CNPq.
e afirmação crescente das múltiplas culturas, tradi-
MONIQUE FRANCO é mestranda do Programa de
ções humanas e identidades.
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Quando entendemos as produções culturais Rio de Janeiro. É professora do Instituto Nacional de Edu-
escolares não como produtos das “oficinas de ho- cação de Surdos, onde coordena a pesquisa de reformulação
mens”, meras representações de uma realidade e curricular.
conhecimento previamente estabelecidos e sim co-
mo um processo constituído a partir de interações Referências bibliográficas
sociais e lingüísticas de diferentes sujeitos em dife-
rentes locais, abrimos um novo leque de proble- ALVES, J. L., (1998). Ética e democracia: que relação? In:
matizações. ALVES, J. L. (org.). Ética e o futuro da democracia. Lis-
Tais problematizações apontam para a neces- boa: Colibri.
sidade de práticas discursivas e não discursivas que ARISTÓTELES, (1991). A política. São Paulo: Martins Fon-
sensibilizem educadores e futuros educadores para tes.
processos de produção das diferenças, bem como AURÉLIO, D. P., (1998). O intolerável do ponto de vista
para a rejeição de uma ética universal etnocêntrica, da razão tolerante. In: ALVES, J. L. (org.). Ética e o fu-
turo da democracia. Lisboa: Colibri.
desmascarando seu caráter de construção. Da mes-
ma forma, apontam para a relevância da promoção BHABHA, H., (1998). O local da cultura. Belo Horizonte:
UFMG.
de pesquisas e reflexões críticas sobre discursos cur-
riculares que falem da ética e do multiculturalismo, BATALLA, G. B., (1997). Implicaciones éticas del sistema
de control cultural. In: OLIVÉ, L. (org.). Ética y diver-
de forma a detectar em que medida universalismos
sidad cultural. México: Fondo de Cultura Económica/
absolutos, apriorísticos, os estão invadindo.
Universidade Autónoma de México.
Foram aqui discutidos, portanto, caminhos
CABRAL, F. S., (1998). Pluralismo e consenso: o debate
possíveis para o trabalho educativo que se quer mul-
ético na democracia. In: ALVES, J. L. (org.). Ética e o
ticultural e que também acredita em um vocabulá- futuro da democracia. Lisboa: Colibri.
rio ético comum capaz de balizar as práticas peda-
CAMPS, V., (1997). El derecho a la diferencia. In: OLIVÉ,
gógicas e a formação das futuras gerações, buscan- L. (org.). Ética y diversidad cultural. México: Fondo de
do não repetir etnocentrismos ou cair no vale-tudo Cultura Económica/Universidade Autónoma de México.
da barbárie e da violência. CANEN, A., (1997a). Competência pedagógica e plura-
lidade cultural: eixo na formação de professores? Cader-
nos de Pesquisa, nº 102, p. 89-107.
__________, (1997b). Formação de professores: diálogo das
RENATO JOSÉ DE OLIVEIRA é doutor em educa- diferenças. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em
ção pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janei- Educação, v. 5, nº 17, p. 477-494.
ro. É professor adjunto da Faculdade de Educação da Uni- __________, (1999). The challenges of conducting na ethno-
versidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq. graphic case study of a United Kingdom Teacher Educa-
Foi organizador, juntamente com Attico Ignacio Chassot tion Institution. Journal of Teacher Education, v. 50, nº
(professor doutor da Unisinos), do livro Ciência, ética e cul- 1, p. 50-56.
tura na educação (Unisinos, 1998) e autor dos livros Uto-
pia e razão: pensando a formação ético-política do homem
FRANCO, M., (1999a). Currículo e emancipação. In: TAYLOR, C. (org.)., (1994). Multiculturalismo: examinan-
SKLIAR, C. (org.). Atualidade da educação bilíngüe para do a política de reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget.
surdos. Porto Alegre: Mediação. VALDÉS, E. G., (1997). El problema ético de las minorias
__________, (1999b). Escola inclusiva: caminhos da norma étnicas. In: OLIVÉ, L. (org.). Ética y diversidad cultural.
ou da individuação? In: ROBERT, C. (org.). O direito México: Fondo de Cultura Económica/Universidad Na-
do deficiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris. cional Autónoma de México.
GIROUX, H. A., (1993). O pós-moderno e o discurso da VERÍSSIMO, M. R., (1997). Pós-modernidade e iluminis-
crítica educacional. In: SILVA, T. T. da (org.). Teoria mo: crítica à sociologia modernista. Educação & Filo-
educacional crítica em tempos pós-modernos. Porto Ale- sofia, v. 11, nº 21/22, p. 164.
gre: Artes Médicas. VERNENGO, R. J., (1997). El relativismo cultural desde
GRANT, N., (1997). Some problems of identity and edu- la moral y el derecho. In: OLIVÉ, L. (org.). Ética y diver-
cation: a comparative examination of multicultural edu- sidad cultural. México: Fondo de Cultura Económica/
cation. Comparative Education, v. 33, nº 1, p. 9-28. Universidad Nacional Autónoma de México.
GUTMANN, (1994). Introdução. In: TAYLOR, C. (org.).
Multiculturalismo: examinando a política de reconheci-
mento. Lisboa: Instituto Piaget.
KANT, I., (1996). Refléxions sur l’éducation. Paris: J. Vrin.
__________, (1997). Crítica da razão prática. Lisboa: Edi-
ções Setenta.
McLAREN, P., (1997). Multiculturalismo crítico. São Paulo:
Cortez.
MOREIRA, A. F., (1999). Multiculturalismo, currículo e
formação de professores. In:. MOREIRA, A. F. B, (org.).
Currículo: políticas e práticas. São Paulo: Papirus.
OLIVÉ, L., (1997). Introducción. In: OLIVÉ, L. (org.). Ética
y diversidad cultural. México: Fondo de Cultura Eco-
nómica/Universidad Nacional Autónoma de México.
OLIVEIRA, M. A., (1995). Ética e práxis histórica. São
Paulo: Ática.
__________, (1998a). Reflexões sobre a técnica, a ética e a
educação no mundo de hoje. In: CHASSOT, A.; OLIVEI-
RA, R. J. (orgs.). Ciência, ética e cultura na educação. São
Leopoldo: Vale do Rio dos Sinos.
__________, (1998b). Utopia e razão. Rio de Janeiro: UERJ.
PEGORARO, O. A., (1997). Ética e seus paradigmas. In:
HÜLNE, L. (org.). Ética. Rio de Janeiro: Uapê.
PERELMAN, C., (1996). Ética e direito. São Paulo: Mar-
tins Fontes.
SAHEL, C., (1992). A tolerância: por um humanismo he-
rético. São Paulo: L&PM. Série Éticas.
SILVA, T. T., (1999). Comunicação oral. Palestra Currículo
e Estudos Culturais. Rio de Janeiro: Faculdade de Edu-
cação, UFRJ, 8 jun.
SODRÉ, M., (1999). Claros e escuros: identidade, povo e
mídia no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes.