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São Paulo
2014
SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE- SES -SP COORDENADORIA DE RECURSOS
HUMANOS-CRH GRUPO DE DESENVOLVIMENTO DE RECURSOS HUMANOS-
GDRH CENTRO DE FORMAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS PARA O SUS “Dr.
Antonio Guilherme de Souza”
SECRETARIA DE ESTADO DA GESTÃO PÚBLICA FUNDAÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO ADMINISTRATIVO – FUNDAP
São Paulo
2014
“E o mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência”
(Lenine)
Jéssica Harumi Esteves: A manifestação Simbólica da Polaridade Puer-Senex: Impactos do
Mundo Contemporâneo no Fenômeno Psíquico, 2014.
Orientadora: Luciana Venturini Gutierres.
RESUMO
I.
INTRODUÇÃO
.................................................................................................................................................
1
II.
CONTRIBUIÇÕES
TEÓRICAS
-‐
A
SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA
E
O
INDIVÍDUO.
..................
5
III.
O
ARQUÉTIPO
PUER-‐ET-‐SENEX
..............................................................................................................
9
IV.
OBJETIVO
...................................................................................................................................................
14
V.
MÉTODO
......................................................................................................................................................
15
VI.
DESCRIÇÃO
E
ANÁLISE
DOS
CASOS
CLÍNICOS
................................................................................
17
CASO CLÍNICO I: A INFLAÇÃO DO PUER
.......................................................................................................................
17
CASO CLÍNICO II - A UNILATERIDADE DE SENEX
.........................................................................................................
20
VII.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
......................................................................................................................
23
VIII.
REFERÊNCIAS
........................................................................................................................................
25
ANEXO
I
.................................................................................................................................................................
27
1
I. Introdução
"O mundo no qual penetramos pelo nascimento é brutal, cruel e, ao mesmo tempo,
de uma beleza divina. Achar que a vida tem ou não sentido é uma questão de
temperamento. [...] As duas alternativas são provavelmente verdadeiras: a vida tem e
não tem sentido, ou então possui e não possui significado. Espero ansiosamente que
o sentido prevaleça e ganhe a batalha". (Jung, 1986, p.148)
"A psique não está isolada da história, e a psicologia não ocorre apenas numa
pequena sala, entre duas pessoas sentadas em duas poltronas, apartadas da cena
história. [...] E assim como a psique está situada num presente histórico, que tem por
trás raízes de mil árvores ancestrais, também a história tem uma existência
psicológica". (p.15)
"Assim como nós, indivíduos, estamos atados aos fatos de nossas histórias de casos
pessoais por aquilo que lembramos de nossas vidas pessoais, também a nossa cultura
está vivenciada na história do tempo profano. Um vício que exige cada vez mais,
cada vez mais rápido. Muito de nossa inventividade serve meramente pra fazer,
reunir e reproduzir eventos. [...] Precisamos de mais "informação", temos menos
2
Falta de tempo é uma queixa constante, mas que tempo a mais é esse que estamos
sempre reivindicando? Consideram-se diferentes formas de tempo, o cronológico,
objetivamente medido por diversos instrumentos, conhecido na Mitologia Grega através do
deus Crono; e o "tempo do inesperado, do acaso, do instante certo de se agir diante de uma
abertura, uma oportunidade" (Bernardi, 2008, p.28), tempo experimentado de maneiras
diferentes de acordo com cada indivíduo, o Kairós. Vivencia-se um descompasso
generalizado, entre os tempos, entre "consciente e inconsciente, corpo, natureza, modelo
econômico, emoções e relação eu - outro". (Hirata, 2005)
"[...] por causa de sua relação específica com o tempo como processo, este
arquétipo específico estará envolvido com o aspecto de processo de qualquer
complexo, com a juventude e a velhice, com os enigmas da lógica ou parte da
personalidade. Senex e puer estão atados à própria natureza do desenvolvimento. [...]
A psique parece ter seu próprio curso, seu próprio tempo. O senex, assim como o
puer, pode aparecer em muitos estágios e fases e influenciar qualquer complexo".
(p.22)
De uma maneira geral, Senex e Puer são associados "às figuras do jovem e velho com
suas diferentes imagens, ações, comportamentos etc.". (Monteiro, 2008, p.12) Jung afirma que
a imagem do mundo transmitida pelo inconsciente é de natureza mitológica (Jung, 1918, p.
27). Este arquétipo, então, é relacionado à Mitologia Grega através de Crono (Senex) e Kairós
3
(Puer). O arquétipo tem um caráter dual, forma um par de opostos complementares que
mantém uma relação polar de negociação. Quando há uma cisão, as polaridades se
manifestam de uma maneira considerada negativa, muitas vezes até patológica. A polaridade
Senex, manifesta-se então de uma maneira rígida, com "apego à tradição, à rotina, uma visão
conservadora da vida" (Bernardi, 2008, p.43), não abrindo espaço para o novo. Puer através
de sua irresponsabilidade, impaciência e imediatismo não consegue relacionar-se com o
tempo, não se fixa a lugar nenhum e está em constante transformação.
Nosso progresso unilateral diz respeito a questões materiais e racionais deixando fora
4
de foco o irracional, o inconsciente. Sentimos o efeito dessa divisão que perpassa toda a
cultura, em um mundo no qual o espaço para reflexão é cada vez mais escasso, vivendo-se em
uma rotina automática, líquida, sem conseguir buscar e encontrar o que realmente nos faz
sentido. Deparamo-nos com uma tremenda contradição ao lidar com tantas exigências e, ao
mesmo tempo, precisar de momentos de reflexão para encontrar um modo próprio de ser,
viver e contribuir com o mundo a partir de nossa singularidade. Esta se tornou uma difícil
missão, trazendo sentimentos de insegurança, vazio e ansiedade surgindo então
funcionamentos patológicos específicos de nossa época, patologias estas que dizem respeito
as diversas possibilidades arquetípicas que ficam inconscientes e polarizadas, já que a
unilateridade que vivenciamos as impedem de emergir e serem integradas à consciência.
Neste sentido, a solidez foi substituída por uma nova ordem líquida, que por mais
volátil e fluida que fosse, foi inserida de maneira tão rígida que impossibilitou a liberdade de
escolha, deixando a sociedade tão estagnada quanto à ordem predominante nos tempos pré-
modernos. Segundo o sociólogo, os indivíduos puderam somente utilizar a liberdade para
encontrar um "nicho apropriado e ali se acomodar e adaptar: seguindo fielmente as regras e
modos de conduta identificados como corretos e apropriados para aquele lugar". (p.13) Neste
novo modo de funcionamento não há mais padrões, códigos e regras que possam ser guias
estáveis e definidos, na medida em que tendem a sofrer diversas e constantes transformações.
Surgem, assim, diversas configurações que se chocam entre si e formam contradições
conflitantes. Isto pode gerar uma angústia muito grande, já que o indivíduo é exposto a
infinitas possibilidades e que a responsabilidade pelo sucesso e pelo fracasso caem igualmente
sob ele:
"O principal cuidado diz respeito, então, à adequação - a estar "sempre pronto"; a ter
capacidade de aproveitar a oportunidade quando ela se apresentar; a desenvolver
novos desejos feitos sob medida para as novas, nunca vistas e inesperadas seduções;
e a não permitir que as necessidades estabelecidas tornem as novas sensações
dispensáveis ou restrinjam nossa capacidade de absorvê-las e experimentá-las"
(Bauman, 2001, p.90)
Partindo para um olhar direcionado à psique, Jung também critica os fundamentos que
guiaram o pensamento científico nos últimos séculos, considerando "a psicologia "racional" e
"experimental" insuficiente e estreita demais para abordar a natureza humana". (Penna, 2013,
7
"O homem tem o direito de achar sua razão bela e perfeita, mas nunca, em hipótese
alguma, ela deixará de ser apenas uma das funções espirituais possíveis, e só cobrirá
o lado dos fenômenos do mundo que lhe diz respeito. A razão, porém, é rodeada de
todos os lados pelo irracional, [...] essa irracionalidade também é uma função
psíquica, o inconsciente coletivo, enquanto a razão é essencialmente ligada ao
consciente". (Jung, 1917, p.81)
O sistema psíquico é considerado uma totalidade que abrange diversos fatores, seja de
ordem biológica, social ou espiritual, conscientes ou inconscientes. (Jung, 1946, p.11) A
perspectiva junguiana fundamenta-se em "uma visão dinâmica e sistêmica de ser e mundo, em
que as partes se relacionam de forma compensatória e complementar num todo único".
(Penna, 2013, p. 138) Partindo de uma dialética constituída pela noção de unidade e
multiplicidade, surge a ideia de totalidade dinâmica e de mecanismo compensatório de
autorregulação da psique:
"Quando a vida, por algum motivo, toma uma direção unilateral, produz-se no
inconsciente, por razões de autorregulação do organismo, um acúmulo de todos
aqueles fatores que na vida consciente não puderam ter suficiente voz nem vez".
(Jung, 1918, p.22)
"O puer inspira o brotar das coisas; o senex governa a colheita. Mas florescer e
colher dão-se intermitentemente durante toda a vida". (Hillman, 1926, p.24)
Hillman (1926) afirma que a psique está situada num presente histórico e enraizada em
núcleos arquetípicos centrais, considerados experiências mitológicas eternas, que unem os
fatos externos com um significado psicológico essencial. Para o autor, senex e puer
constituem a base psicológica do problema da história, já que são a história como "sequência
e transição, como um processo através do tempo do começo até o fim" (p.20) e também são
relacionados "ao par Pai Tempo e Jovem Eterno, temporalidade e eternidade", possibilitando
assim que o indivíduo seja lançado na história. Desta maneira, as polaridades dizem respeito
ao tempo como processo e, consequentemente, as envolvem com o processo de qualquer outro
complexo e, portanto, são conectados à própria natureza do desenvolvimento psicológico.
A relação puer-senex pode ser apreendida de diversas formas. Jung não abordou
amplamente este arquétipo, porém há em sua obra arquétipos que são associados a eles, tais
como Velho Sábio (Senex) e a Criança-Divina e o Trickster (Puer). Outros autores, como
James Hillman (1926) e Marie-Louise Von Franz (1992), o fizeram de maneira mais extensa,
apesar de explorar a temática sob óticas diferentes. Von Franz estuda o puer aeternus a partir
da relação com o complexo materno. Já Hillman o compreende através de sua polaridade
oposta, o senex, considerando-os um só arquétipo: puer-et-senex.
"O motivo da criança não representa algo que existiu no passado longínquo, mas
também algo presente; não é somente um vestígio, mas um sistema que funciona
ainda, destinado a compensar ou corrigir as unilateridades ou extravagâncias
inevitáveis da consciência. (Jung, 1940, p.164).
A imagem do Trickster também é associada ao puer, termo que pode ser traduzido
como "truque". Caracterizado por sua "tendência às travessuras astutas, em parte divertidas,
em parte malignas, sua mutabilidade, [...] sua vulnerabilidade a todo tipo de tortura e sua
proximidade da figura de um salvador" (Jung, 1954, p.256), designa heróis de contos
populares que conseguem realizar, através de sua estupidez e façanhas, alcançar objetivos
com menor esforço que os demais, com fins lícitos ou ilícitos. Para o autor, as manifestações
deste arquétipo, representado por tendências opostas no inconsciente, é um reflexo da
consciência humana indiferenciada, ou seja, inconsciente e pela sua incapacidade de
relacionar-se e não por ser uma figura má. Aproxima-se à figura de um salvador pelo fato de
ferir, já que para a psicologia junguiana através do arquétipo do curador ferido "o feridor e o
ferido cura, e o que padece repara ou remedia o sofrimento". (Jung, 1954, p.257)
Von Franz, em uma análise da obra de Saint-Exupéry "O Pequeno Príncipe", aborda o
puer aeternus em sua relação com o complexo materno. Puer aeternus é o nome aplicado a
um deus-criança, presente em Metamorphoses de Ovídio (Von Franz, 1992) e significa
"juventude eterna". Por ser diretamente associado à imagem da criança, Von Franz aproxima-
se da visão de Jung em relação ao arquétipo.
(p.44) Quando ocorre a inflação de um dos pólos, há uma gama de humores e ações
igualmente perigosos: possessão pelo senex promove a depressão, o pessimismo e dureza de
coração; possessão pelo puer traz a falta de realidade psíquica.
Frente a essa rigidez, o novo conteúdo é assimilado por velhas atitudes e antigos
hábitos, mantendo-se assim apegado à tradição, rotina e uma visão conservadora da vida. A
maneira unilateral que a polaridade senex pode ser vivenciada aponta para a ausência do
feminino, de modo que a consciência perde o contato com a vida. Entretanto, a rigidez de
senex também pode manifestar-se de uma maneira positiva, como ponto de resistência a
mudanças que não fazem sentido (Bernardi, 2008. P.44). Já como sinônimo do arquétipo do
Velho Sábio, o aspecto de sabedoria se sobressai e, caso vivenciado de maneira unilateral, o
saber pode tornar-se arrogância.
Já em relação ao puer, Hillman (1926) afirma que este representa o espírito eterno que
é auto-suficiente e contém todas as possibilidades, é primordialmente perfeito e por isso não
necessita de desenvolvimento e relacionamentos. Transmite a sensação de que pode retornar
outra hora e recomeçar, assim não atribui importância à morte. Por conseguinte, não suporta a
espera e não compreende o que se ganha com repetição e consistência, ou seja, com o
trabalho. Busca, questiona, arrisca e impulsiona o ego, porém é o princípio que não coagula e
desintegra, pois não há espaço e paciência para reflexão:
"O aspecto puer do significado está na busca, com o dínamo do eterno "por que" da
criança, a procura, o questionamento, a busca, a aventura que pega o ego por trás e
impulsiona para frente. Todas as coisas são incertas, provisórias, passíveis de
questionamento, portanto, abrindo o caminho e levando a alma em direção a um
questionamento ainda maior”. (p.44)
inerente, num complexo que "des-relaciona", que se move depressa demais, deseja demais e
está sempre insatisfeito, na medida em que é praticamente impossível que o mundo satisfaça
as demandas do espírito. Sem relação com o senex, "transforma-se no eterno “vir-a-ser” nunca
realizado no Ser, somente possibilidades e promessas". (p.44)
Por fim, é importante ressaltar que estas atitudes e comportamentos são apenas
possibilidades, não tendo a intenção de determinar e definir tipologias, patologias e formas
estáticas, mas um modelo dinâmico com diversas possibilidades que se manifestam de acordo
com a época histórica e aspectos pessoais do indivíduo. Não são características positivas ou
negativas em si, na medida em que dependendo da situação podem trazer benefícios ou não ao
sujeito.
14
IV. Objetivo
V. Método
É importante ressaltar que, para elaboração deste trabalho foi utilizado o registro de
informações em prontuários e arquivo exclusivo do Ambulatório de Psicologia do HSPE o
que, de acordo com o Código de Ética do Conselho Federal de Psicologia (CFP) isenta da
necessidade do consentimento informado (Anexo I). Além disso, para garantir o sigilo
profissional e preservar a identidade dos pacientes em questão, os nomes dos pacientes foram
alterados.
17
F. tem 34 anos, é casado, tem dois filhos e é auxiliar administrativo. Apresentou como
queixa principal crises de ansiedade. No decorrer dos atendimentos, foi possível o início do
contato com suas queixas de maneira mais implicada, porém ainda pouco aprofundada. Era
evidente a dificuldade de F. em fazer escolhas, lidar com renúncias e o modo como
frequentemente atendia demandas do mundo externo sem conseguir refletir e agir de acordo
com as suas vontades e possibilidades, características estas frequentemente presentes na
polaridade puer, quando não há relação com o senex, e que angustiavam e desencadeavam
diversos sintomas que incomodavam o paciente.
Relações Interpessoais
No âmbito familiar, F. afirma que pais se separaram quando criança e que sua mãe foi
morar com seu padrasto logo após o divórcio. Não tinha um bom relacionamento com seu
padrasto, considerando-o controlador e alguém que sempre o impediu de ter uma relação
próxima com a mãe. Já o seu pai era muito próximo de sua irmã e sentia-se igualmente sem
espaço nessa relação. No que diz respeito às questões amorosas, F. demonstrava insatisfação e
instabilidade em relacionamentos ao longo de sua vida e também em seu casamento. Separou-
se duas vezes de sua esposa e referiu só ter reatado casamento pela falta que sentia de seus
filhos. Queixava-se que esposa era ausente, não demonstrava que o amava e não colaborava
para que tivessem uma boa convivência. Por esse motivo, caso conhecesse outra pessoa
interessante que tivesse as características que gostava (e que esposa não tinha), acreditava que
se separaria novamente, como havia acontecido anteriormente.
18
De uma maneira geral, F. não conseguia manter relações próximas com as pessoas
com quem convivia, nem com figuras parentais nem com a esposa. Ao referir que só retomou
o casamento por sentir falta da convivência com os filhos, demonstra uma possível
identificação com a imagem da criança, únicos que se aproximavam de maneira mais
afetuosa, de acordo com relato do paciente.
Trabalho
Sociedade Contemporânea
C. tem 36 anos, professor de educação física, casado e com dois filhos. Refere ter
procurado o serviço da Psiquiatria quando se percebeu sem paciência, irritado e sem controle
de sua força e agressividade, questões estas que se tornaram tão intensas que resultaram dois
episódios de agressão com alunos. A partir dos conflitos apresentados pelo paciente,
observou-se que C. buscava somente soluções práticas e racionais para lidar com as suas
dificuldades e parecia ter a necessidade de estar no controle das situações. Referiu que em
todas as suas crises havia pensamentos negativos e uma sensação ruim, "de morte".
Em síntese, estes são aspectos que podem ser interpretados como uma inflação do
senex que se manifesta de maneira rígida, com caráter vagaroso expresso pelo humor
deprimido, com o contato com pensamentos negativos e com a morte. Destaca-se também a
maneira que C. se irrita e se descontrola com seus alunos (crianças), representações da figura
do puer, que é intolerado justamente pelo fato de o senex estar inflado e não aceitar a
manifestação da polaridade oposta, impedindo que esta seja integrada a consciência.
Relações Interpessoais
No âmbito familiar foi criado de maneira rígida e sem uma relação afetuosa com pais.
Mora em uma casa com quintal compartilhado com a residência de seus pais e referia que,
mesmo depois do casamento, seu pai tentava controlar a sua vida. C. identifica-se com pai em
relação à necessidade de controle, na medida em que se considera controlador em relação à
sua casa, família e dinheiro. Afirma que sempre gostou de seguir regras e reconhece que
talvez tenha problema com quem não as siga, na medida em que tem dificuldade para aceitar e
entender como as pessoas podem ser tão injustas e não cumprir o que falam e que
constantemente as pessoas a sua volta incomodam-se por agir tão corretamente. Já foi
extremamente organizado no âmbito financeiro, anotando detalhadamente os gastos em um
caderno. Em relação à esposa, sabia a hora em que terminava seu expediente e, caso se
atrasasse por cinco minutos, ficava angustiado. Ao longo do tempo, pôde perceber que
imprevistos acontecem e que nem tudo aconteceria sempre da forma que costumava acontecer
e era esperada por ele, tornando-se um pouco mais flexível.
A partir de suas relações, observa-se a identificação com o pai controlador que pode
ser considerado a manifestação Saturno-Cronos de senex, o pai que tudo consome, rígido, frio
21
e distante. O paciente também demonstra a prontidão a submeter-se às regras, fato que pode
ser associado ao arquétipo do Velho Sábio.
Trabalho
Seu primeiro emprego foi como guarda civil. Nesse período os sintomas surgiram, não
tinha vontade de ir trabalhar e seus colegas percebiam que estava agressivo e irritado. Era um
ambiente com muita hierarquização e foi a partir disso que surgiram problemas de
relacionamento com um colega de cargo superior ao dele. Discordavam em diversas condutas
e a palavra do colega sempre prevalecia devido ao maior tempo na instituição. Após uma
discussão intensa e com ameaças do colega, pediu demissão e foi trabalhar na área da
educação, já que havia concluído sua graduação de educação física. Conseguiu um emprego
em escola e um centro de convivência e os sintomas retornaram. Desentendeu-se com alunos
de sete anos, não conseguiu conter agressividade.
Sociedade Contemporânea
acontecia e à constante pressa presente nas relações interpessoais, não havendo tempo para
aproveitar filhos e família devido à grande quantidade de preocupações, obrigações e
responsabilidades. Aparentava ter dificuldades para lidar com o ritmo acelerado, considerando
a necessidade de afastamento médico de sua rotina para que conseguisse se estabilizar
novamente. Trazia questões relacionadas ao dinamismo de sua grade de aulas, com
diversidade de atividades que realizava com alunos de diferentes turmas e idades (aula para
crianças pequenas e para idosos), que eram dadas em seguida sem ter um intervalo para que
ele pudesse se adaptar à nova atividade. A liquidez das relações, a aceleração e dinamismo da
rotina e constantes mudanças podem ser consideradas tendências presentes no funcionamento
puer e, devido à unilateridade em que vivenciava senex, tornou-se praticamente intolerável
viver nessa liquidez.
Em relação aos valores presentes na sociedade atual, não concordava com a conduta
de sua esposa com seus filhos, já que quase diariamente os presenteia com bens materiais.
Percebeu que filhos se acostumaram a isso e que certa vez foi cumprimentá-los e ao invés de
responderem, perguntaram o que lhe daria de presente. Assim como no caso clínico I, há o
incômodo com a valorização do consumo e do materialismo presente na sociedade atual.
A liquidez de Bauman (2001) pode ser associada à figura puer, que representa o novo,
o futuro em potencial, a busca eterna por algo "melhor", a volatilidade, a oportunidade, a
constante mudança e a dificuldade para se fixar em algum lugar, todas essas características
presentes na sociedade "pós-moderna". Para o autor, a "pré-modernidade" apresentava-se de
maneira oposta: solidez, proibições, controle, regras e rigidez podendo, portanto, ser vista a
partir da polaridade senex. Desta forma, a solidez "pré-moderna" foi substituída pela liquidez
"pós-moderna", entretanto, a modernidade líquida demonstra sinais de falhas tão graves
quanto as que existiam antigamente. Ambos os funcionamentos são unilaterais e sem espaço
para uma integração e, consequentemente, manifestando-se de maneira problemática.
As polaridades puer e senex, quando em relação, dão sentido e significado à vida, fator
muitas vezes ausente na vida de muitas pessoas. Como ilustrado nos casos clínicos
apresentados, alguns podem simplesmente mergulhar no mar de transformações que a
sociedade atual proporciona e não conseguir parar para refletir e fazer escolhas frente a
inúmeras e tentadoras possibilidades. Outros, devido a sua rigidez, podem não encontrar
saídas criativas para lidar com a aceleração do tempo e ficar preso naquele velho hábito, não
admitindo mudanças que possam trazer benefícios. De uma forma ou de outra, a unilateridade
surge como obstáculo ao processo de individuação. Em ambos os casos, os indivíduos
vivenciavam extrema angústia e sofrimento, tornando-se assim estagnados e impedidos de
caminhar em direção ao desenvolvimento pessoal - rumo ao Self.
Von Franz (1992), ao falar sobre o comportamento dos jovens - assimilado à figura do
puer - afirma que ao lidar com situações que não consideram agradáveis e ter de fazer muitas
coisas por obrigação podem sentir que não estão participando verdadeiramente da própria
vida. A autora considera que o tédio é "um sintoma que surge quando a pessoa não consegue
viver seu potencial. [...] existem crianças e também adultos que não sabem o que fazer
consigo mesmos" (p. 99). Este é um retrato do modo que vivenciamos os tempos atuais. É
necessário, portanto, que o sentido da vida seja resgatado, muitas vezes uma difícil tarefa já
que a reflexão é apagada no automatismo do dia-a-dia, que tem a tendência a focar em ações
que proporcionam o alcance e a realização de todas as expectativas que nos são colocadas. O
espaço terapêutico pode ser uma possibilidade (e tempo) para refletir e dar significados às
essas vivências, através dos símbolos que a psique apresenta.
25
VIII. Referências
BAUMAN, Z. Ser Leve e Líquido. In: Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 7 - 22.
JUNG, C.G - Memórias, Sonhos e Reflexões. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Editora Nova
Fronteira, 1986, p.141 -150.
__________ - Prefácio à Primeira Edição (1916). In: ______. Psicologia do Inconsciente. Tradução
de Maria Luiza Appy. 21ª edição. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 9 - 10.
_________ - Ensaios sobre História Contemporânea (1946). In: ______. Aspectos do Drama
Contemporâneo. Tradução de Lucia M. E. Orth. 5a edição. Petrópolis: Vozes, 2012, p.11-12.
Anexo I
II – As pesquisas sejam feitas a partir de arquivos e banco de dados sem identificação dos
participantes.
Foram utilizados registros em prontuários dos pacientes referidos neste trabalho, além
de registros armazenados em arquivo exclusivo do Serviço de Psicologia; estes foram
analisados qualitativamente de acordo com o referencial teórico descrito no projeto.