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ANAIS DO VII CONGRESSO BRASILEIRO

DE DIREITO URBANÍSTICO
Direito Urbanístico e Justiça Urbana:
cidade, democracia e inclusão social

Organização
Henrique Botelho Frota
Nelson Saule Junior

INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO URBANÍSTICO – IBDU

Gestão 2011-2013 Gestão 2014-2015

Presidente Presidente
Nelson Saule Junior Daniela Campos Libório
Vice-Presidente Vice-Presidente
Daniela Campos Libório Betânia de Moraes Alfonsin
Tesoureiro Tesoureira
Fernando Guilherme Stacy Natalie Torres da Silva
Bruno Filho Diretora Administrativa
Diretora Administrativa Ligia Maria Silva
Ellade Laurinda Piva Imparato Melo de Casimiro
Diretor Administrativo Diretor Administrativo
Henrique Botelho Frota Leandro Franklin Gorsdorf
Secretária Executiva Secretário Executivo
Rosane de Almeida Tierno Henrique Botelho Frota
S256 Saule Junior, Nelson, Org. ; Frota, Henrique Botelho, Org.
Anais do 7o Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico: direi-
to urbanístico e justiça urbana: cidade, democracia e inclusão social. / Or-
ganizado por Nelson Saule Junior e Henrique Botelho Frota. São Pau-
lo: IBDU, 2016.

2216 p.
ISBN 9788568957028

1. Direito Urbanístico 2. Democracia 3. Inclusão Social I. Títu-


lo II. Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico

CDD 349
CDU 34:711.4

Editoração eletrônica: Everton Viana ( CE 01799 DG )


Sumário

A FORMAÇÃO DO DIREITO URBANÍSTICO


PARA ALÉM DA UNIVERSIDADE
Ângela Amaral
Rosângela da Silva Lima 29

A IMPORTÂNCIA DO DIREITO URBANÍSTICO


NA FORMAÇÃO DOS FUTUROS PROFISSIONAIS
QUE ATUAM NA ÁREA JURÍDICA
Elaine Adelina Pagani 45

ANÁLISE BIBLIOMÉTRICA SOBRE A PRODUÇÃO ACADêMICA


BRASILEIRA REFERENTE AO ESTATUTO DA CIDADE
Ana Carolina Guilherme Coêlho 61

ASSESSORIA JURÍDICA UNIVERSITÁRIA E MOVIMENTOS


DE MORADIA: A OCUPAÇÃO MARGARIDA MARIA ALVES
Carmen Añon Brasolin
Carolina Gomes Domingues
Eugênio Mesquita Higgins Azevedo dos Santos 75

COPA LEGAL É COPA QUE RESPEITA OS DIREITOS


HUMANOS: UMA ExPERIêNCIA DE PESQUISA, ExTENSÃO
E CAPACITAÇÃO COLETIVA EM DIREITO URBANÍSTICO
NO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE
Betânia Alfonsin
Bruno Nunes Siufi
Fernanda Peixoto Goldenfum
Geórgia de Macedo Garcia
Giani Camargo Cazanova
Joana Prates Garcia Scorza
Juliane Angélica Palharini
Raquel Marramon
Roberta Andrade
Viviane Guimarães Oliveira 99

ExCLUSÃO URBANA, (IN) SEGURANÇA DA


POSSE E DIREITO À MORADIA: REFLExõES A PARTIR
DO ESTUDO DE CASO DE “TODOS OS SANTOS”,
PAÇO DO LUMIAR, MARANHÃO
Nathália Castro da Silva 125

ExTENSÃO UNIVERSITÁRIA EM DEFESA DO DIREITO À


CIDADE E À MORADIA EM PORTO ALEGRE: A ExPERIêNCIA
DO GRUPO DE ASSESSORIA POPULAR DO SAJU-UFRGS
Alexsander Rafael de Borba
Augusto Sperb Machado
Estêfani Favaron Pereira
Felipe Moralles e Moraes
Janine Garcia dos Santos
João Baptista Alvares Rosito
Lívia Machado Costa
Lívia Zanatta Ribeiro
Mariana Motta Vivian
Sara Judy Christie de Olives 147

O DIREITO URBANÍSTICO NO ENSINO JURÍDICO:


UMA ANÁLISE DE SUA IMPORTÂNCIA E DE SEU
TRATAMENTO NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS
Anny Gresielly S. Grangeiro Sampaio
Samira Macêdo Pinheiro de Amorim 169
POSSE E PROPRIEDADE NA AFIRMAÇÃO DO DIREITO
À CIDADE: UMA METODOLOGIA DE PESQUISA FUNDIÁRIA
APLICADA AO MORRO DA PROVIDêNCIA (RJ)
Rosangela Lunardelli Cavallazzi
Tatiana Cotta Gonçalves Pereira 185

PROJETO “LUTAS: FORMAÇÃO E ASSESSORIA EM DIREITOS


HUMANOS” E EMANCIPAÇÃO LOCAL NA OCUPAÇÃO DO
ESPAÇO PÚBLICO: TRAJETÓRIA DE UM PROJETO DE ExTENSÃO
DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA
Miguel Etinger de Araujo Junior
Deíse Camargo Maito
Erika Juliana Dmitruk 209

QUANDO O ENSINO JURÍDICO SE


TRANSFORMA EM ExTENSÃO: ExPERIêNCIAS
COM O DIREITO URBANÍSTICO NA UNEB
Jamile Silva Silveira
Bruno Barbosa Heim 233

A APARENTE SEGURANÇA DA POSSE E


A NECESSIDADE DE REINVESTIMENTO NA
HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL EM RECIFE
Caroline Gonçalves dos Santos
Flávio Antonio Miranda de Souza
Vinícius Albuquerque Fulgêncio 245

A APLICABILIDADE DOS INSTRUMENTOS JURÍDICOS PARA


A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DA VILA ACABA MUNDO
Júlia Dinardi Alves Pinto
Marcos Bernardes Rosa
Tays Natalia Gomes 271
A CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA
E AS INTERVENÇõES URBANAS EM FAVELAS DE BELO HORIZONTE
Cleide Aparecida Nepomuceno 291

A LEGITIMAÇÃO DA POSSE ExTRAJUDICIAL DA LEI 11.977/2009


É UM NOVO CAMINHO PARA A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA?
Pedro Teixeira Pinos Greco 307

A LUTA PELO DIREITO À MORADIA DA VILA SÃO PEDRO


A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA ENQUANTO POLÍTICA
DE ACESSO A TERRA URBANIZADA
Cristiano Muller
Karla Fabrícia Moroso S. de Azevedo
Viviane Florindo Borges 327

A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA COMO GARANTIA


DE MORADIA E DE MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO
Luciana Bedeschi 347

A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE INTERESSE SOCIAL COMO


INSTRUMENTE DE REALIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA ATRAVÉS DO DIREITO FUNDAMENTAL DE MORADIA
Juliano Junqueira de Faria
Maraluce Maria Custódio 371

A VALORIZAÇÃO DA POSSE E A REGULARIZAÇÃO


FUNDIÁRIA DE TERRAS DEVOLUTAS MINEIRAS
Virginia Junqueira Rugani Brandão 397

ASPECTOS REGISTRAIS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA


Bruce Leal do Nascimento
Emelin Sousa do Espírito Santo
Josilene Barbosa Aboim
Luana Nunes Bandeira Alves
Maurício Leal Dias 411

COMPETêNCIA MUNICIPAL EM
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
Camilla Zuquim Tangerino
Carlos Alberto Jorge Leão da Silva
Inaiê del Castillo Andrade Neves
Maurício Leal Dias 433

O ATIVISMO DO PODER JUDICIÁRIO E DO TRIBUNAL


DE CONTAS DA UNIÃO NA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
DA COMUNIDADE DO HORTO FLORESTAL/RJ
Rafael da Mota Mendonça
Mariana Gomes Peixoto Medeiros
Juliana Thomas Kazan 453

OBSTÁCULOS NA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA


DOS CONJUNTOS HABITACIONAIS DE INTERESSE SOCIAL
Francisca Leiko Saito
Vera Maria Leme Alvarenga 477

OS DEZ ANOS DA VIGêNCIA DO ESTATUTO DA


CIDADE NO PROCESSO DIALÉTICO DA PRÁxIS
DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA
João Aparecido Bazolli 497

PERSPECTIVAS E IMPASSES PARA


REGULAMENTAÇÃO DA ZEIS Nº 114 - CENTRO
HISTÓRICO DE SALVADOR/BA
Aparecida Netto Teixeira
Elisamara de Oliveira Emiliano 523
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM SALVADOR
(2002-2012): AVANÇOS E RETROCESSOS
Angela Gordilho Souza
Adriana Nogueira Vieira Lima 547

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM TERRAS


PARTICULARES: DESAFIOS À EFETIVAÇÃO DA
USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVA URBANA
Luana Xavier Pinto Coelho
Isabella Madruga Cunha 567

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA PLENA: INOVAÇõES


LEGISLATIVAS EM MATÉRIA DE USUCAPIÃO
Soraya Santos Lopes 587

TERRITÓRIOS DE POVOS E COMUNIDADES


TRADICIONAIS E POLÍTICA URBANA
Bruno Barbosa Heim 611

A DIALÉTICA ENTRE A REGULARIZAÇÃO


FUNDIÁRIA E O ALUGUEL NAS ÁREAS PÚBLICAS
MUNICIPAIS OBJETO DE CONCESSÃO
Candelaria Maria Reyes Garcia
Ellade Imparato 633

A PROTEÇÃO AO DIREITO DE POSSE


NOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS
Kristal Moreira Gouveia 647

CARTOGRAFIA SOCIOJURÍDICA DOS CONFLITOS URBANOS:


O CASO DA COMUNIDADE DANDARA, EM BELO HORIZONTE
Maria Tereza Fonseca Dias
Isabella Gonçalves Miranda
Fúlvio Alvarenga Sampaio
Alba Moreira Salles
Ananda Martins Carvalho
Arthur Rodolpho de Paiva Castro
Isabella Aparecida Ferreira da Costa
Julia Dinardi Alves Pinto
Marcos Bernardes Rosa
Tays Natália Gomes 671

CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS: PODER JUDICIÁRIO


E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL NO BRASIL
Giovanna Bonilha Milano 697

ESTADO, DIREITO E A POLÍTICA URBANA


Tiago Gonçalves da Silva 717

MEDIAÇÃO COMO PRÁTICA DE TRANSFORMAÇÃO


DOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS
Antonio Rafael Marchezan Ferreira 739

O DIREITO À MORADIA NO CAPITALISMO


PERIFÉRICO: ANÁLISE DO CASO DA COMUNIDADE
VINHAIS VELHO – SÃO LUÍS/MA
Mariana Rodrigues Viana
Ruan Didier Bruzaca 763

O INADIMPLEMENTO NA PRESTAÇÃO DO DIREITO


À MORADIA E A LEGITIMIDADE DA OCUPAÇÃO:
O CASO DO CIRCO-ESCOLA EM SÃO PAULO
Marcelo Eibs Cafrune 783
PROTEÇÃO POSSESSÓRIA COLETIVA PASSIVA: A NECESSÁRIA
REVISÃO DA TUTELA PROCESSUAL DA POSSE PARA SOLUÇÃO
DE CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS
Thaís Aranda Barrozo 801

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIAS EM
ÁREAS DE CONFLITO POSSESSÓRIO
Cleide Aparecida Nepomuceno 821

A IMPORTÂNCIA DA TRANSVERSALIDADE NO ESTUDO DE


IMPACTO DE VIZINHANÇA – EIV/RIV: O ExEMPLO DE CUIABÁ
Marcel Alexandre Lopes
Tatiana Monteiro Costa e Silva 841

A OUTORGA ONEROSA E A CONCESSÃO DE POTENCIAL


CONSTRUTIVO: UMA LEITURA A PARTIR DO CASO DO
ESTÁDIO DO CLUBE ATLÉTICO PARANAENSE
André Thomazoni Pessoa Silva
Andrei Toshio Hayashi
Felipe Klein Gussoli
Galanni Dorado de Oliveira 859

A TRANSFERêNCIA DO DIREITO DE CONSTRUIR


COMO ALTERNATIVA PARA REGULARIZAÇÃO
FUNDIÁRIA EM PARAISÓPOLIS – SÃO PAULO
Natália Romano Soares 881

A UTILIZAÇÃO DO CONCEITO DE “VALOR JUSTO” COMO


DEFINIDO PELO INTERNATIONAL VALUATION STANDARDS – IVS
NA DETERMINAÇÃO DA INDENIZAÇÃO JUSTA EM PROCESSOS
DE DESAPROPRIAÇÃO DE BENS IMÓVEIS
Emilio Haddad
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Cacilda Lopes dos Santos 891

APLICAÇÃO DO INSTRUMENTO URBANÍSTICO - OPERAÇÃO


URBANA CONSORCIADA - À REALIZAÇÃO DAS OBRAS PARA
A COPA DO MUNDO DE 2014: O CASO DE PORTO ALEGRE – RS
Fernanda Peixoto Goldenfum 905

CONSIDERAÇõES CRÍTICAS SOBRE AS


ZONAS ESPECIAIS DE INTERESSE SOCIAL
Cíntia de Freitas Melo
Luiz Fernando Vasconcelos de Freitas 931

DIMENSÃO SOCIAL E JURÍDICA DA POLÍTICA


URBANA NO CENTRO DE SÃO PAULO NA
CONTEMPORANEIDADE (2006-2012)
Afonso Soares de Oliveira Sobrinho 943

DOS VAZIOS URBANOS À FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE:


PERCURSOS DA SOCIOESPACIALIZAÇÃO DA CIDADE ATRAVÉS
DOS INSTRUMENTOS DE PARCELAMENTO, EDIFICAÇÃO E
UTILIZAÇÃO DO SOLO NO MUNICÍPIO DE PORTO VELHO
Diogo Henrique Costa Fonseca
Daniela Pacheco Rodrigues Fonseca 957

ENTRE REGULARIZAR E REMOVER: ANÁLISE


CRÍTICA DA (IN)ADEQUAÇÃO JURÍDICA DO INSTITUTO DA
DESAPROPRIAÇÃO EM CASOS DE REMOÇõES FORÇADAS
Talita de Fátima Pereira Furtado Montezuma 981

ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA:


DESAFIOS PARA SUA REGULAMENTAÇÃO
FRENTE AO CASO DE SÃO PAULO
Angela Seixas Pilotto
Paula Freire Santoro
José Carlos de Freitas 1005

ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA


E VINCULAÇÃO DO PODER PÚBLICO
Rayanna Brito
Edson Ricardo Saleme 1031

GESTÃO DE CIDADES: INSTRUMENTOS CONTEMPORÂNEOS


E A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA URBANA
João Aparecido Bazolli 1045

NOVAS PERSPECTIVAS PARA O PARCELAMENTO,


EDIFICAÇÃO E UTILIZAÇÃO COMPULSÓRIOS (PEUC):
O CASO DE SÃO BERNARDO DO CAMPO (SP)
Claudia Virginia Cabral de Souza
Fernando Guilherme Bruno Filho
Mauricio de Castro Gazola
Wagner Membribes Bossi 1069

O “DEIxA COMO ESTÁ, PARA VER COMO FICA”: LICENCIAMENTO


URBANÍSTICO, PODER DE POLÍCIA E A SUPREMACIA DO
INTERESSE SOCIAL NA ExECUÇÃO DA POLÍTICA URBANA
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino 1091

PERVERSÃO DE INSTRUMENTOS URBANÍSTICOS


EM PROL DOS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS:
O FINANCIAMENTO DAS OBRAS NA ARENA DA BAIxADA
Júlia A. Franzoni
Rosangela M. Luft 1119
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS


DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL
Edson Ricardo Saleme
Silmara Veiga 1147

A EFETIVAÇÃO DO DIREITO AO LAZER NA CIDADE DE BELÉM


Luana Nunes Bandeira Alves 1163

A TÉCNICA DISCIPLINAR DA INFORMALIDADE NO


CENTRO DE SÃO PAULO NA CONTEMPORANEIDADE (2006-2012)
Afonso Soares de Oliveira Sobrinho 1175

AS FAVELAS E O DIREITO À CIDADE: HISTÓRICO DE


NEGAÇÃO EPERSPECTIVAS PARA IMPLEMENTAÇÃO FUTURA
Tarcyla Fidalgo Ribeiro 1189

DIREITO À CIDADE, ESTADO E DIREITO: PRÁTICAS INSURGENTES


E O CASO NOVA COSTEIRA (SÃO JOSÉ DOS PINHAIS –PR)
Glaucia Pereira do Nascimento
Leandro Franklin Gorsdorf
Luana Paz Dornelles Silva
Luisa Winter Pereira
Marina Carvalho Sella
Paulo Henrique Piá de Andrade 1203

DIREITOS E DEFEITOS NA SALVAGUADA DO


MBIEBNTE URBANO TOMBADO: UM ESTUDO SOBRE A
LUTA PELA MORADIA NA AREA URBANA PATRIMONIAL
Lysie Reis 1223

ENTRE A UNIFORMIZAÇÃO E O MULTICULTURALISMO:


O PROGRAMA VILA VIVA À LUZ DO RECONHECIMENTO
Ananda Martins Carvalho
Fábio André Diniz Merladet
Isabella Gonçalves Miranda
Lívia Bastos Lages
Thaís Lopes Santana Isaías 1249

IMÓVEIS OCIOSOS NA IMPLEMENTAÇÃO


DE POLÍTICAS HABITACIONAIS PARA IDOSOS
Luzia Cristina Antoniossi Monteiro
Marisa Silvana Zazzetta
José Francisco 1269

MEIO AMBIENTE, LEGISLAÇÃO, PATRIMÔNIO


HISTÓRICO E CULTURAL: UM ESTUDO SOBRE DANOS
DA CIDADE VELHA E ENTORNO – BELÉM PARÁ
Sandra Regina Alves Teixeira 1291

MOVIMENTOS SOCIAIS, ASSESSORIA


JURÍDICA POPULAR E DIREITO À CIDADE
Linda Maria de Pontes Gondim
Kauhana Hellen de Sousa Moreira 1313

O DIREITO À CIDADE E À JUSTIÇA AMBIENTAL


INTERFACES E POSSÍVEIS CONTRIBUIÇõES DA
EDUCAÇÃO AMBIENTAL DE TENDêNCIA CRÍTICA
Miguel Etinger de Araujo Junior
Luciana Aranda Barrozo 1329

O DIREITO À CIDADE E O FENÔMENO DA VIOLêNCIA URBANA


FORMULAÇõES TEÓRICAS EM PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR
Petrus Rodrigues Cabral
Sâmara Iris de Lima Santos
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Orientadores: Luciano Nascimento Silva


Xisto Serafim de Santana de Souza Junior 1345

O DIREITO À CIDADE ENCLAUSURADO EM


CONDOMÍNIOS FECHADOS: A ANÁLISE DO
PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA NO
MUNICÍPIO DE JOÃO PESSOA
Phillipe Cupertino Salloum e Silva
Maria Luiza Alencar Mayer Feitosa 1367

O PAPEL DA LEGISLAÇÃO COMO


INSTRUMENTO DE REGULAÇÃO URBANÍSTICA
Luiz Alberto Souza 1389

O RETROCESSO DO DIREITO À MORADIA


ADEQUADA EM PORTO ALEGRE/RS: UM
ESTUDO SOBRE A VILA CHOCOLATÃO
Giani Camargo Cazanova 1409

PARA QUEM PROJETAMOS? UMA


DISCUSSÃO SOBRE O DIREITO A CIDADE
A PARTIR DO PLANO PARA BRASÍLIA
Viviane Manzione Rubio 1433

PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CULTURAL: DIREITO À CIDADE?
Maria Cristina Rocha Simão 1455

TAC: GARANTIA DO DIREITO À CIDADE?


Thaís de Miranda Rebouças
Glória Cecília dos Santos Figueiredo 1471
ATIVISMO DIGITAL: PARA ALÉM DA
PARTICIPAÇÃO EM ESPAÇOS INSTITUCIONALIZADOS
Sandra Marília Maia Nunes 1493

DA LUTA POR UM PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO


À CIDADE-SEDE DA COPA: REFLExõES SOBRE A LUTA
COLETIVA PELO DIREITO À CIDADE EM FORTALEZA
Valéria Pinheiro 1515

ExPERIêNCIAS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NAS


CONTRADIÇõES DE UM ENSAIO DEMOCRÁTICO: MESAS TÉCNICAS
DE ÁGUA E COMITêS DE TERRA URBANA NA VENEZUELA
Flávio Higuchi Hirao 1529

GRUPOS DE TRABALHO DE APOIO À PRODUÇÃO SOCIAL DA


MORADIA - INTRODUÇÃO DE UM NOVO MODELO DEMOCRÁTICO
E PARTICIPATIVO NA GESTÃO DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO
Cristiane Siggea Benedetto 1549

NOVAS FORMAS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR


Jacqueline Custódio 1565

ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: PARTICIPAÇÃO


POPULAR EFETIVA NO PLANEJAMENTO URBANO
Ana Beatriz Oliveira Reis
Frederico Augusto d’Avila Riani 1583

OS DESAFIOS DA POLÍTICA HABITACIONAL


BRASILEIRA, A PARTIR DO ESTUDO DO CONSELHO
MUNICIPAL DE HABITAÇÃO DE BELO HORIZONTE
Maria Tereza Fonseca Dias
Stéfane Rabelo Pereira da Costa 1597
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

PARA LEVAR A SÉRIO A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA:


DIAGNÓSTICO DOS ENTRAVES DA PARTICIPAÇÃO POPULAR
NA GESTÃO DEMOCRÁTICA DA CIDADE
Wilson Levy 1625

PARTICIPAÇÃO E COOPTAÇÃO NOS


CONSELHOS DE POLÍTICA URBANA DO MUNICÍPIO
DE CAMPOS DOS GOYTACAZES - RJ
Rodrigo Anido Lira
Ludmila Gonçalves da Matta 1639

PARTICIPAÇÃO POPULAR E JUDICIALIZAÇÃO


DE CONFLITOS AMBIENTAIS EM ARACAJU-SE
Sarah Lúcia Alves França
Vera Lúcia F. Rezende 1657

PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NO ESTATUTO DA CIDADE:


UMA REAVALIAÇÃO DO CONTEÚDO DO INSTITUTO
Pedro Henrique Ramos Prado Vasques 1679

PLANEJAMENTO URBANO: UMA VISÃO CÉTICA SOBRE


O PENSAMENTO ABISSAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Frederico Garcia Guimarães
Marinella Machado Araújo 1705

REFLExõES SOBRE O CONSELHO MUNICIPAL DA


CIDADE DE CURITIBA: DILEMAS E DESAFIOS DA PARTICIPAÇÃO
DEMOCRÁTICA NA CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA URBANA
Andréa Luiza Curralinho Braga
Clarice Metzner
Leandro Franklin Gosrdorf 1729
A INFLUêNCIA DO COEFICIENTE DE APROVEITAMENTO:
A ExPERIêNCIA DE BELO HORIZONTE
Jane Aparecida Gonçalves das Neves
Paola Moraes de Miranda 1753

APONTAMENTOS INICIAIS SOBRE A REVISÃO DA


LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA DO MUNICÍPIO DO RIO
DE JANEIRO: NOVA LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO
Juliana da Silva Hereda
Madalena Alves dos Santos 1773

CONDOMÍNIOS FECHADOS DE LUxO: ENTRE O


ILEGAL E O PERMISSIVO, A CAMINHO DE UMA ANTICIDADE
Juliana Campos de Oliveira
Rafaela Campos de Oliveira 1791

DISPENSA DE RESERVA DE ÁREA INSTITUCIONAL EM


PROJETOS DE LOTEAMENTO: O CASO DO PROJETO DE
LEI COMPLEMENTAR 13/2012 NO MUNICÍPIO DE PIRACICABA-SP
Roberto Braga
Denise Helena Baldisseri 1817

O ESTATUTO DA CIDADE E A (IN)EFICÁCIA DO


PLANEJAMENTO PARTICIPATIVO. UMA NECESSÁRIA
RELEITURA DOS INSTRUMENTOS DE PARTICIPAÇÃO
POPULAR NOS PLANOS DIRETORES BRASILEIROS
João Telmo de Oliveira Filho
Carla Portal Vasconcellos 1829

PLANO DIRETOR – CRÍTICA HISTÓRICA


E PROPOSTA DE RECONSTRUÇÃO
Tiago Alves de Figueirêdo 1843
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

QUANDO O PLANEJAMENTO URBANO CONSPIRA


CONTRA A CIDADE: UMA AVALIAÇÃO ATRAVÉS DA
RECENTE PRODUÇÃO IMOBILIÁRIA DE MARINGÁ
Beatriz Fleury e Silva 1865

A ExPERIêNCIA DAS COMPENSAÇõES URBANÍSTICAS EM


CURITIBA PARA A PROTEÇÃO DE ÁREAS VERDES E BENS
CULTURAIS: PONDERAÇõES ACERCA DOS PRINCÍPIOS DA
IGUALDADE E DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Daniel Gaio 1887

A PROBLEMÁTICA DAS INUNDAÇõES E O


PAPEL DO ESTADO ENQUANTO PRODUTOR DO
ESPAÇO URBANO: ANÁLISE DO CASO DE ITAJAÍ/SC
Suzane Concatto
Sérgio Torres Moraes 1897

A REDUÇÃO DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA


FRENTE AO PRINCÍPIO DA SUSTENTABILIDADE URBANA: NOVOS
DESAFIOS PARA A ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Angela Cassia Costaldello
Karin Kässmayer 1911

A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA PELA CONCRETIZAÇÃO DO SISTEMA
URBANÍSTICO-AMBIENTAL
SUSTENTÁVEL
Alessandra Bagno F. R. de Almeida
Marinella Machado Araújo 1929

ÁREAS DE RISCO OCUPADAS POR ASSENTAMENTOS


INFORMAIS: CONFLITO ENTRE ENFRENTAMENTO DE
RISCOS AMBIENTAIS E AFIRMAÇÃO DO DIREITO À MORADIA
Julia Azevedo Moretti 1951

ANALISE DOS INVESTIMENTOS DO PAC EM HABITAÇÃO


E URBANIZAÇÃO NA CIDADE DE BELÉM DO PARÁ
Ariel Maia Gomes
Shaula Colares 1977

APPs URBANAS A LUZ DO NOVO CÓDIGO FLORESTAL


Christiane Helen Godinho Costa
Ruth de Lima Matos
Maurício Leal Dias 1991

DIREITO AOS PARQUES PÚBLICOS COMO UM DIREITO


AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO
NAS CIDADES: O CONTExTO DE SALVADOR-BA
Rafaela Campos de Oliveira
Juliana Campos de Oliveira 2003

DIREITO DO SANEAMENTO AMBIENTAL E CONTROLE


SOCIAL: ExPERIêNCIA DA CONFERENCIA DAS CIDADES
Maurício L. Dias
Jessyca I. N. dos Santos
Christiane H. G. Costa 2025

FAMILIA PARANAENSE: RESGATE SOCIAL PLENO DE FAMILIAS


EM ASSENTAMENTOS PRECÁRIOS NO ESTADO DO PARANÁ
Jurandir Guatassara Boeira
Isabella Soares Nacimento
Mariana Bettega Braunert
Guilherme Machado Willemann 2035
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

POR UM DIREITO DO ORDENAMENTO TERRITORIAL:


ELEMENTOS PRELIMINARES PARA UM MODELO INTEGRADO
DE DIREITO URBANO-AMBIENTAL
Luciano de Faria Brasil 2053

A PLENA EFETIVIDADE DO SISTEMA NACIONAL DE HABITAÇÂO


DE INTERESSE SOCIAL (SNHIS): AVANÇOS E OBSTÁCULOS
Soraya Santos Lopes 2067

LIMITES E POSSIBILIDADES DE SISTEMAS DE


POLÍTICAS PÚBLICAS: UMA ANÁLISE SOBRE O SNHIS
Renata Gomes da Silva 2091

O ESTATUTO DA METRÓPOLE COMO


SISTEMA ABSTRATO MODERNO
Wagner Barboza Rufino
Tatiana Cotta Gonçalves Pereira 2105

PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GESTÃO METROPOLITANA:


BREVES COMENTÁRIOS AO MODELO BRASILEIRO
Pedro Henrique Ramos Prado Vasques 2129

A DUALIDADE PRESENTE ENTRE O ATUAL


DESAFIO DE MOBILIDADE URBANA NO BRASIL E
ATUAIS POLÍTICAS ADOTADAS PELO PODER PÚBLICO
Arthur Nasciutti Prudente
Juliana Lima Mafia 2153

DIREITO À CIDADE E À MOBILIDADE PROJETO


CAMINHO ESCOLAR DO PARAISÓPOLIS (SÃO PAULO)
Irene Quintáns Pintos 2167
MOBILIDADE URBANA E CIDADE SUSTENTÁVEIS:
UMA PROPOSTA PARA O TRANSPORTE SOLIDÁRIO
Frederico Garcia Guimarães
Cintia D´Vale Souto Maior Filizzola 2179

REGIME JURÍDICO DO TRANSPORTE


CICLOVIÁRIO: CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO
DA MOBILIDADE URBANA SUSTENTÁVEL
Luciano de Faria Brasil 2201
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Apresentação

O Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) é uma


associação civil de âmbito nacional constituída por juristas, urbanistas,
pesquisadores, estudantes, profissionais e militantes sociais que atuam
na temática urbana. Dentre os objetivos do Instituto, destacam-se: reunir
especialistas em estudos urbanos de diferentes ramos disciplinares na-
cionais e internacionais; desenvolver pesquisas que servirão de apoio a
políticas governamentais na área urbanística; promover congressos, cur-
sos, palestras, encontros, seminários multidisciplinares, bem como editar
e publicar estudos e pareceres técnicos periódicos que envolvam a área
de direito urbanístico e planejamento urbano; e promover a consolidação
da disciplina do Direito Urbanístico nas faculdades públicas e particulares.
Desde a sua constituição, o IBDU tem realizado pesquisas, cursos e
capacitações, seminários e, como ponto alto, os Congressos Brasileiros de
Direito Urbanístico, que são dedicados ao debate do Direito e das políticas
públicas urbanas, bem como à apresentação e discussão de pesquisas
científicas sobre temas atuais e relevantes.
No ano de 2013, entre os dias 11 e 13 de novembro, tivemos o grande
prazer de realizar o 7O Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico
na cidade de São Paulo. Sob o tema “Direito Urbanístico e Justiça
Urbana: cidade, democracia e inclusão social”, o congresso teve
como mote central a discussão sobre os desafios do Direito Urbanístico
após vinte e cinco anos de promulgação da Constituição Federal de
1988, em especial aqueles relacionados à efetivação da justiça social e
dos direitos humanos nas cidades brasileiras.

25
O Brasil é um país eminentemente urbano, com 84% da população vi-
vendo nas cidades, a maioria em situação de precariedade e informalidade.
Esse quadro também é composto por graves problemas de mobilidade e
acessibilidade, pela segregação social e pela negação ou fragilidade dos
processos de participação democrática no planejamento e gestão das ci-
dades. Esse diagnóstico social contraria o sistema normativo que, desde
1988, vem sendo aperfeiçoado em matéria de Direito Urbanístico.
A questão se torna ainda mais urgente na medida em que o país tem
sediado megaeventos responsáveis por grandes remoções que atingem
o direito à moradia adequada de centenas de milhares de famílias. Com
isso, é preciso pensar em vias que respondam aos graves problemas do
desenvolvimento urbano, voltado a assegurar a distribuição universal,
democrática e sustentável de bens e serviços, gerando riquezas e opor-
tunidades aos seus cidadãos sem violação de direitos.
Realizado na cidade de São Paulo, uma das megalópoles que sim-
boliza as contradições da urbanização brasileira, o 7o Congresso Bra-
sileiro de Direito Urbanístico objetivou impulsionar discussões sobre a
efetividade dos instrumentos jus-urbanísticos derivados da Constituição
Federal e de diplomas normativos como o Estatuto da Cidade e as di-
versas leis que dispõem sobre a promoção do Direito à Cidade.
Assim, a presente publicação reúne os trabalhos de destaque apresen-
tados, conforme seleção da Comissão Científica. As temáticas abordadas
nesta obra foram divididas em dez grandes temas, a saber: 1) Experiências
de ensino, pesquisa e extensão em Direito Urbanístico; 2) Regularização
Fundiária; 3) Conflitos Fundiários Urbanos; 4) Aplicabilidade dos Instru-
mentos de Política Urbana; 5) Direito à Cidade, reconhecimento e práticas
políticas e sociais urbanas; 6) Democracia participativa e planejamento
urbano; 7) Plano Diretor e Planejamento Urbano; 8) Desenvolvimento
Urbano e Questões Socioambientais; 9) Construção de Sistema Nacional
de Desenvolvimento Urbano; e 10) Mobilidade Urbana.
Anais do 7º Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Pelo empenho e compromisso, agradecemos a toda a Comissão Cientí-


fica, composta pelos eminentes professores Adriana Nogueira Lima, Alex
Ferreira Magalhães, Betânia Alfonsin, Daniela Campos Libório Di Sarno,
Fernanda Costa, Fernando Bruno Filho, Henrique Botelho Frota, Ligia Melo
de Casimiro, Marinella Machado Araujo, Maurício Leal Dias, Nelson Saule
Júnior, Vanesca Buzelato Prestes e Wilson Levy Braga da Silva Neto.
Desejamos que os trabalhos aqui reunidos possam contribuir ainda
mais para o desenvolvimento de um pensamento crítico voltado à justiça
social nas cidades brasileiras.

Nelson Saule Junior


Henrique Botelho Frota
Coordenadores da Comissão Científica
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A Formação do Direito
Urbanístico Para Além
da Universidade

Ângela Amaral1
Rosângela da Silva Lima2

1 INTRODUÇÃO

A formação do direito urbanístico acontece no encontro dos conhe-


cimentos e na troca de experiências entre os sujeitos. Com a formação do
direito urbanístico para além da universidade, contribui-se para a formação
de novas pessoas, lideranças e comunidades e amplia-se capacidade de
mobilizar forças sociais na luta pelo direito à cidade.
A luta histórica para imprimir alterações na divisão social do traba-
lho, do conhecimento e do poder podem ser simultâneos e articuladas
experiências mais amplas de formação, ação direta e conquistas, com
pequenas e significativas iniciativas que podem contribuir neste processo.
Grupos, pessoas e instituições de maneiras muitas vezes conflituosas
conseguem constituir experiências importantes que podem se multiplicar
e se fortalecer.
O legado de Paulo Freire, como o de outros estudiosos, contribuiu para
iluminar possibilidades e caminhos de conhecimento e intervenção social,
de produção e difusão de conhecimentos no campo da garantia de direitos
e da construção de sociedades mais justas e melhores.
Segundo Pontual (1994), é fundamentalmente a partir da concepção de

1 Arquiteta e Urbanista, mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Consultora do Instituto
Polis (angelaamaral@terra.com.br).
2 Arquiteta e Urbanista, mestre em Sociologia Urbana pela PUC-SP, Assessora Técnica de Política Urbana da Assembleia Legislativa
de São Paulo (rosangela.rosas@gmail.com).

29
Antônio Gramsci que se desenvolve uma série de contribuições na direção
de uma visão ampliada do Estado. Com relação à sociedade civil, Gramsci
opera uma mudança fundamental em relação à formulação de Marx. Sem
perder de vista a ideia de que as condições materiais são determinantes,
em última instância, das relações sociais, Gramsci desloca a sociedade
civil para o âmbito da superestrutura (níveis político, jurídico e cultural),
que em conjunto com a sociedade política constituiria o Estado.O obje-
tivo deste artigo é refletir sobre as dinâmicas do curso de regularização
fundiária realizado na Assembleia Legislativa de São Paulo, em setembro
de 2011, com o intuito de capacitar lideranças para aplicação da Lei Es-
tadual n° 13.579/09, que delimitou a Área de Proteção e Recuperação de
Mananciais da Bacia Hidrográfica do Reservatório Billings (APRM-B), e da
Lei Estadual 12.233/06, que instituiu a Área de Proteção e Recuperação
dos Mananciais da Bacia Hidrográfica do Guarapiranga.
O curso desenvolveu conteúdos e dinâmicas do processo de construção
e aplicação dos marcos regulatórios e da implementação de regularização
fundiária e urbanística e também tratou com destaque dos impasses e
desafios na aplicação da nova legislação estadual de proteção e recupe-
ração dos mananciais nos processos de regularização fundiária da Região
Metropolitana de São Paulo.
Segundo Alvin (2010), as novas legislações de proteção e recuperação
com ênfase na questão dos mananciais das sub-bacias Guarapiranga e
Billings disciplinam a aplicação de novos instrumentos de planejamento
e gestão ambiental que abrangem conceitos contemporâneos quanto à
flexibilização de normas, compensação ambiental e recuperação ambiental
urbana, os quais têm como base arranjos institucionais inovadores.
A lei n° 13.579/09 é considerada uma vitória histórica na luta pelo
direito à regularização fundiária. Sua aprovação contou com a partici-
pação dos moradores do entorno da represa, sendo que a presença da
população nas quatro audiências públicas realizadas nos municípios de
Diadema, São Bernardo do Campo, bairro Cantinho do Céu na zona sul
de São Paulo e na Assembleia Legislativa de São Paulo foram fundamen-

30
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

tais para a elaboração da emenda aglutinadora, com anuência de quinze


líderes partidários e aprovação por unanimidade dos deputados estaduais,
objetivando garantir a regularização fundiária das moradias existentes e
enfatizando também a importância de se equacionar as presentes ocupa-
ções da área por outros meios que não sejam as remoções das famílias,
mas que envolvam pactos entre todos os atores e a redefinição de novos
rumos para a realidade posta.
Para elaborar o curso, os professores partiram de uma perspectiva
emancipadora, crítica e transformadora da realidade social que favore-
cesse o processo de “empoderamento” (protagonismo social e político);
que refletisse criticamente a realidade violadora dos direitos e permitisse
ampliar a participação política; que abordasse as dimensões ética, sócio
psicológica e jurídico-política, promovendo o conhecimento de direitos;
e que estimulasse o diálogo entre o saber acadêmico e o saber popular
sobre o tema.
Com o projeto de capacitação de lideranças comunitárias, pretendeu-
-se, assim, ampliar a discussão do curso de direito urbanístico além da
universidade, uma experiência pedagógica única na ALESP.
O curso estruturou-se em seis módulos: (i) introdução à regularização
fundiária; (ii) instrumentos jurídicos da regularização fundiária; (iii) im-
passes e desafios da nova legislação estadual de proteção e recuperação
dos mananciais para regularização fundiária da Região Metropolitana; (iv)
regularização de assentamentos informais: o grande desafio dos governos
e da sociedade; (v) questões comuns a todos os processos de regulari-
zação fundiária (vi) regularização fundiária de interesse social em áreas
de mananciais, com o objetivo específico de equacionar os problemas
relativos à degradação dos mananciais, principalmente em relação às
ocupações irregulares.
O diálogo entre técnica e experiência de luta foi o tom ideal para o su-
cesso do curso. As avaliações apresentadas pelos participantes indicaram
um significativo avanço na compreensão do direito urbanístico, na luta
contra os despejos forçados, no entendimento das diretrizes das leis da

31
Billings e da Guarapiranga, na identificação dos limites e possibilidades
de ampliação do acesso à terra urbanizada.

2 REFLEXÕES SOBRE DEMOCRACIA E CAPACITAÇÃO

A teoria da democracia participativa abordada por Jean Jacques Rousse-


au (1712-1778) afirma que, se os indivíduos são iguais e livres, então eles
não podem ser governados por ninguém mais se não por eles próprios.
No ideal da política descrito na sua clássica obra O Contrato Social,
todos os cidadãos deveriam participar das decisões relativas a assuntos de
interesse geral e as conclusões seriam estabelecidas por consenso. Para
Rousseau, tal sistema só funcionaria sob condições muito especiais de
equidade social e autonomia econômica. As ideias de Rousseau influen-
ciaram a reflexão moderna acerca da democracia participativa, sobretudo
na sua abordagem comunitarista e assembleista.
Segundo Avritzer (2007), a partir de meados dos anos 1970 teve início
no Brasil o que se convencionou chamar “sociedade civil autônoma e de-
mocrática”, em virtude de diferentes fenômenos: crescimento exponencial
das associações civis, em especial associações comunitárias; reavaliação
da noção de direitos; defesa da autonomia organizacional em relação ao
Estado; valorização de demandas e de negociação com o Estado em busca
de soluções que contemplassem de fato o interesse público, com reper-
cussão também nas instituições, modificando a natureza da ciência, da
técnica e do direito. Nessa época, eram restritos os canais de manifestação
popular e o poder estava nos centros técnicos burocráticos da máquina do
Estado, subordinado a exigências da racionalidade econômica.
Até os anos 1980, no Brasil, marcado pela Ditadura Militar, houve re-
dução significativa da participação social, em virtude das formas verticais
de organização política, concentração do poder na propriedade da terra e
proliferação do clientelismo no interior do sistema político. No processo
da Constituinte, diversos movimentos populares se articularam entre si
e com outros setores como os profissionais e acadêmicos, fortaleceram

32
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

suas lutas e reivindicações que incluíram a participação popular institu-


cionalizada no Estado. A Constituição de 1988 reconheceu e consolidou
amplo espaço para as práticas participativas, retomando-se, por exemplo,
a discussão da reforma urbana reprimida pelo golpe militar.
L.C.de Queiroz Ribeiro (1986, p46-66) afirma:

A Reforma urbana trata-se de uma nova ética social (entendida


enquanto valores básicos que devem orientar a vida na cidade).
Esta ética pretende politizar a discussão sobre a cidade e ao mes-
mo tempo servir de plataforma política aos movimentos sociais
urbanos fornecendo um horizonte que ultrapasse as questões
locais e específicas. A ética [...] se compõe de dois elementos:
o primeiro deve ser condenação das práticas econômicas que
tornam a cidade um objeto de lucro; [...] por outro lado, acesso
à cidade deve ser um direito de ir e vir à cidade, sem que seja
necessário pagar um tributo aqueles que mercantilizam o solo
urbano [...].

A luta pela apropriação do espaço urbano tem se configurado como


marca dos movimentos sociais. Segundo Lefebvre (2008), na sociedade
onde a riqueza se traduz como acumulação de mercadoria, consoante
Marx, o espaço torna-se instrumental nos marcos das relações sociais. As
estratégias são desenvolvidas para o enfrentamento e disputa pelo espaço.
Os instrumentos podem ser utilizados para dispersar a classe operária,
organizar fluxos diversos, subordinar o espaço ao poder, controlar e reger
tecnocraticamente a sociedade inteira para manutenção das relações de
produção capitalista.
Para Lefebvre (2008), “excluir do urbano grupos, classes, indivíduos
implica também excluí-los da civilização, até mesmo da sociedade”. O
direito à cidade legitima a recusa de se afastar da realidade urbana por
mecanismos de segregação.
Nos termos da Carta de Princípios do II Fórum Nacional de Reforma
Urbana, realizado em 1989, “o direito à cidadania é entendido em sua
dimensão política de participação ampla dos habitantes das cidades na
condução de seus destinos, assim como o direito de acesso às condições
de vida urbana digna e ao usufruto de um espaço culturalmente rico e
diversificado.” (apud BASSUL, 2005 , p41)

33
Para Celso Daniel (1982), é na linguagem dos direitos que a defesa
de interesses se faz audível e reconhecível na dimensão pública da vida
social, o papel fundamental da esfera pública no sistema democrático, no
âmbito da relação público-privado, sendo o papel da esfera pública uma
referência para a conquista do processo democrático e para a disputa
de novos direitos de cidadania. Segundo Celso Daniel (2002), o sistema
democrático e o modo de produção capitalista são duas dinâmicas dis-
tintas, contraditórias, com muitos pontos de contato que se estabelecem
no mundo ocidental. Elas são, por um lado, a constituição do modo de
produção capitalista e, por outro, a constituição do Estado-nação moder-
no, que abre espaço para a emergência do próprio sistema democrático,
entendido aqui, evidentemente, não como regime político, mas como
sistema social. Já a composição do modo de produção capitalista, se
nutre do Estado-nação sob diferentes regimes políticos, seja ditatorial,
seja democrático: “o sistema democrático tem sido utilizado pelo capital,
pelo movimento do capital, para sua reprodução ao longo de todos esses
séculos” (DANIEL, 2002)
Nesse caminho, as questões do direito urbanístico e as reflexões ur-
banísticas saíram dos círculos técnicos e especializados e passaram para
domínio público; a agenda participativa alavancou a necessidade do
conhecimento para a instrumentalização da disputa, conforme Lefebvre
(2008). Nesse contexto, o curso sob enfoque teve como objetivo principal
abordar instrumentos importantes para o empoderamento das lideranças
comunitárias, que no cotidiano lutam para garantir o direito à cidade.
A proposta do ILP representa os novos movimentos sociais para a
democracia participativa de base, ressaltando a noção de direitos como
construção coletiva, a luta para politizar as relações do cotidiano, diferen-
ciando-se dos movimentos voltados para a conquista do poder do Estado.
Pode-se dizer tratar de uma tentativa de construção de uma nova cultura
política para o desenvolvimento dos espaços urbanos, perfilando uma
nova forma de lidar com o poder.
Ao percorrer a leitura de Gramsci (1994), emerge o pensamento de

34
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

que é preciso educar os trabalhadores para encorajar o despontar de


intelectuais dentro da classe trabalhadora, para que a transformação da
sociedade capitalista se dê através da revolução da classe trabalhadora.
Surge a perspectiva educacional do partido, que, para Gramsci, é funda-
mental na formação de intelectuais que proporcionem consistência à luta
pelos interesses da classe trabalhadora.
Surge um novo perfil de intelectuais orgânicos, vinculados às estruturas
produtivas em diferentes níveis hierárquicos de atuações, com capacidade
de argumentação. Esses novos intelectuais fariam do espaço público seu
palco e da sociedade civil seu público alvo; seriam eles os responsáveis
em retransmitirem as ideologias dos grupos que representam às grandes
camadas da população, ou seja, à massa. É nesse sentido que se pode
pensar o líder comunitário como agente responsável em organizar as
lutas e demandas dos moradores das áreas ocupadas.
Assim sendo, para Gramsci (1994), o Estado ampliado é a soma da
sociedade civil (hegemonia) e da sociedade política (coerção). A grande
contribuição de Gramsci para a luta política relaciona-se à possibilidade
apontada por ele de que as classes subalternas, por meio de suas organi-
zações, podem travar no interior dos aparelhos privados de hegemonia
a luta pela construção de uma contra-hegemonia antes mesmo de se
tornarem classes no poder. Isto coloca no centro da discussão de qual-
quer projeto de emancipação das classes populares a ideia do necessário
fortalecimento da sociedade civil e da sua compreensão como terreno
privilegiado da luta político-cultural. O Estado deixa de ser interpretado
como representante unitário monolítico, em que as decisões políticas estão
centradas exclusivamente nas mãos do Poder Executivo, desconsiderando-
-se outros agentes, e passa a ser analisado como um “campo de forças”
onde se travam as disputas em torno da hegemonia e da dominação de
acordo com os interesses de cada classe social fundamental.
Daniel (1994, p. 23) assim se refere ao direito de participação como
elemento indispensável à mudança das relações entre Estado e Sociedade
e à ampliação das formas de exercício da democracia:

35
Não se trata de restringir a idéia de democracia apenas ao plano
do regime político em sentido restrito, ou às chamadas regras do
jogo, mas compreendê-la como constitutiva de um sistema social,
buscando sua presença ou ausência nas formas de sociabilidade
e de organização do trabalho, bem como nas modalidades de
relação do Estado com a Sociedade – âmbito no qual a extensão
dos direitos demanda a conquista do direito à participação da
sociedade na gestão pública, ultrapassando a mera democracia
representativa.

A importância da formação da população permeia a questão da garantia


dos direitos, a participação social deve pressupor um grupo de pessoas
heterogêneo o suficiente para que o Estado e a Sociedade Civil sejam
representados e possam estabelecer um pacto.

3 O CURSO DO ILP – O PROCESSO


PARTICIPATIVO COMO PROCESSO PEDAGóGICO

Os processos de mobilização social da década de 80 destacaram-se


como fortes articulações entre ações e o saber constituído nos espaços
da formação formal, com destaque para algumas universidades, organi-
zações e lutas populares, possibilitando a construção de novas leituras e
novas propostas que contribuíram para alterar os caminhos das nossas
cidades e da sociedade.
O reconhecimento do protagonismo dos grupos sociais e indivíduos foi
efetivado tanto na Constituição Federal de 1988, que ampliou as formas
de participação direta nas decisões de interesse público, como em nível
internacional, por exemplo, em Istambul, em 1997, no encontro promovido
pela ONU para discutir os problemas do habitat.
Entretanto os mecanismos previstos nem sempre conseguem responder
às novas demandas colocadas pela dinâmica social. As legislações nos
últimos anos têm ampliado as regras que obrigam entidades públicas a
disponibilizarem informações com transparência, mas essas regras ainda
não são aplicadas na maior parte do país. O acesso à educação por pes-
soas de baixa renda também aumentou significativamente, mas para dar

36
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

conta dessa realidade, essas pessoas consomem boa parte de seu tempo
na batalha diária de deslocamentos absurdos, uma vez que o problema
da mobilidade só piorou nos últimos anos.
Durante considerável tempo, ONGs e universidades têm mostrado forte
atuação em atividades de formação não formal, por meio de projetos de
extensão e laboratórios, entre outros meios, garantindo a abordagem
de temas sociais em publicações e objetos de pesquisa, sem assegurar,
entretanto, a troca de informação e os espaços de formação para os que
militam no dia a dia com as decorrências práticas dessas questões.
As iniciativas viabilizadas merecem destaque e avaliação, procurando-
-se analisar sua contribuição, seu potencial e a sua possibilidade de re-
produção em outros espaços semelhantes.
Em setembro de 2011, a proposta de assessores técnicos parlamenta-
res foi acolhida e realizou-se pelo Instituto do Legislativo Paulista – ILP,
o “Curso de Capacitação para Lideranças: Regularização Fundiária de
Assentamentos Informais em Áreas Urbanas na Assembléia Legislativa
do Estado de São Paulo”.
O Instituto do Legislativo Paulista (ILP) foi criado pela Resolução nº
821, de 14 de dezembro de 2001. É um centro multidisciplinar de estudos,
capacitação e políticas públicas. Além de cumprir sua finalidade primeira,
a de subsidiar os trabalhos parlamentares e ações legislativas na área de
políticas públicas, o ILP oferece diversos cursos gratuitos que são abertos
ao público3.
Os cursos realizados até aquele momento estiveram mais voltados ao
apoio das atividades exercidas no âmbito da Assembleia Legislativa e,
desse modo, o curso proposto com foco na formação de lideranças sociais
relacionadas ao tema em questão teve caráter inovador e experimental.
O curso foi gratuito e realizado no auditório do Instituto, sediado na As-
sembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
O curso teve como objetivos gerais: (i) capacitar e potencializar li-

3 Cf. informações disponíveis no sitehttp://www.al.sp.gov.br/assembleia/instituto-do-legislativo/: >.


Acesso em: data 18-07-2013

37
deranças comunitárias na identificação dos limites e possibilidades de
ampliação do acesso à terra urbanizada; (ii) propiciar aos participantes
maior clareza sobre conceitos legais e instrumentos urbanísticos de
planejamento que possibilitem a promoção do direito à moradia social
integrado ao desenvolvimento urbano; (iii) divulgar o conhecimento e a
compreensão do Estatuto da Cidade; (iv) abordar os passos fundamentais
da regularização fundiária com base em experiências recentes desenvol-
vidas no estado de São Paulo.
Delimitou-se como púbico alvo do curso as lideranças comunitárias
e assessorias comprometidas com o tema, que tenham a compreensão
do problema e consigam operar as ferramentas para implementação de
processos de regularização fundiária.
Sendo assim, participaram do curso 65 pessoas, moradores de diversas
cidades do Estado e de diferentes regiões do município de São Paulo. Entre
estes, profissionais de Arquitetura e Direito, estagiários, sendo, contudo,
a maior parte lideranças comunitárias vinculadas aos mais diferentes
partidos ou independentes, com a preocupação maior de entender me-
lhor a dinâmica da regularização com vistas à intervenção concreta em
situações existentes.
Parcela expressiva dos participantes constituiu-se de militantes da área,
mas havia também pessoas de outras áreas de militância, como Saúde e
Educação, que estavam se deparando no cotidiano com problemas rela-
tivos à regularização fundiária e que se inscreveram com a expectativa
de buscar subsídios para os processos em andamento em seus locais de
moradia e de militância.
Compreendidos na faixa etária entre 22 e 66 anos de idade, a formação
e atuação profissional dos participantes também mostrou-se bastante
variada, registrando-se: eletricista, comerciante, estudante, funcionário
público, educador popular, auxiliar administrativo, motorista, vendedor,
professor, assessor técnico parlamentar, líder de produção, sociólogo,
arquiteto, advogado, cabeleireira e manicure, dona de casa, fotógrafo,
corretor imobiliário.

38
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Tal diversidade exigiu esforço na forma de organização e apresentação


do curso e a avaliação realizada pelos participantes indicou demanda
por sua continuidade, envolvendo sugestão de importantes melhorias de
formatação, já que entre os participantes também se identificaram lide-
ranças de comunidades ameaçadas por despejos forçados ou sofrendo
reintegração de posse.
Aspecto marcante do curso foi a troca e o diálogo com antigos mili-
tantes e outros experientes atuantes da luta pela regularização fundiária,
cuja atuação foi fundamental na reconstrução do processo histórico e no
relato de vivências concretas que passaram a ser referência para os demais.
Apresentaram documentos históricos, filmes que eles mesmos haviam
produzido durante processos de reintegração de posse e de resistência,
mostrando o ponto de vista das lideranças e dos agentes comunitários,
entre outros elementos bastante enriquecedores.
Assim o curso favoreceu não apenas a transmissão do conhecimento
sistematizado sobre a legislação, das ferramentas constituídas ao longo
dos últimos anos e das experiências bem sucedidas, mas também de-
monstrou como na prática a atuação das pessoas que estão em situação
de irregularidade urbanística e fundiária tem sido significativa no processo
de construção de novas possibilidades e conquistas.
O saber se consubstancia com a articulação de diversas iniciativas
e ações, de diferentes setores e segmentos sociais, onde os sujeitos
principais têm sido as pessoas que efetivamente vivem a situação de
vulnerabilidade fundiária.
Outro fator positivo residiu no fato de que a maioria do público, as
lideranças sociais, vinculava-se a parlamentares de diferentes grupos po-
líticos, de modo que o espaço de discussão e de preocupação era de outra
ordem e assim o debate pôde fluir num ótimo patamar. O mais importante
naquele momento era entender a legislação, os processos, os agentes, e
as experiências de regularização, sendo que os interesses convergiam,
refletindo inclusive nas discussões internas da Assembleia.
Uma das professoras apresentou em slide uma escritura pública e

39
apontou detalhes significativos para os alunos, trazendo conhecimento
relevante ao público que muitas vezes reivindica o documento desconhe-
cendo por completo o seu teor ou conteúdo, pois nunca teve acesso ao
mesmo. Outra material importante para este público foi a possibilidade
de ter em slides um LEPAC (Levantamento Planialtimétrico Cadastral),
documento que permite conhecer o tamanho da área; a localização da
área na cidade; a localização e dimensões das ruas e vielas; a localização
e tamanho dos lotes; a existência e localização de infraestrutura – redes
de abastecimento de água e energia elétrica, redes de drenagem, redes de
coleta de esgoto; a existência de equipamentos públicos dentro da área
(escolas, creches, praças, áreas de lazer, etc.); é também a partir do LEPAC
que se pode elaborar o plano de urbanização e regularização desenvolvido
pela comissão de moradores.
É interessante destacar a maneira como as pessoas souberam do cur-
so. Muitos receberam a informação através de assessores parlamentares,
mas parcela expressiva do público foi informada por notícia na internet e
comentário de conhecidos nos locais de trabalho e moradia.
Merece igualmente destaque a avaliação do curso: a maioria se ma-
nifestou satisfeita, solicitou sua continuidade, ampliação de tempo e de
temas. Entre os conteúdos solicitados foram mencionados os instrumentos
jurídicos para os casos de despejos forçados. Solicitou-se a ampliação e
o aprimoramento do material entregue; notou-se a expectativa de sair
do curso com um guia com orientações aos envolvidos em projetos de
desenvolvimento urbano contendo informações qualificadas sobre como
garantir o respeito ao direito à moradia adequada na implementação dos
projetos urbanos e na implementação das leis específicas dos mananciais
de São Paulo.
Discutiu-se com professores e alunos a viabilidade da manutenção do
curso no ano seguinte, com a proposta de manter a turma e avançar no
conteúdo, bem como de abrir novas turmas.
Após a finalização do curso foram preparados arquivos digitais com
todo o material produzido e utilizado entretanto não foi possível sua dis-

40
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

tribuição em razão da descontinuidade do curso e de outras dificuldades.


Com alternância da mesa diretora da Assembleia Legislativa a cada
dois anos, o quadro de cargos comissionados tem alta rotatividade, o que
compromete a manutenção de projetos como este.
Decorridos quase dois anos, os alunos até a presente data aguardam
a continuidade do curso, de tempos em tempos ainda entram em contato
com o Instituto para obter informações a respeito.
A atual direção do ILP discute a formulação de novas palestras e cur-
sos para lideranças com o objetivo de ampliar o entendimento sobre os
planos diretores, bem como para capacitação e entendimento dos dados
demográficos do IBGE.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da Constituição de 1988, muito se avançou nas questões re-


lativas ao princípio da função social da propriedade, evidente em muitos
projetos de lei que, sobretudo, têm gerado renovação e também resistên-
cias de setores conservadores.
O Estatuto da Cidade é um dos muitos institutos do Direito Urbanís-
tico que reconhece e garante a função social da propriedade, referido
diploma legal vem se consolidando e sendo reconhecido com seriedade
Na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo foram aprovadas as
leis específicas de proteção e recuperação dos mananciais das sub-bacias
Guarapiranga e Billings, enfocando o direito à regularização fundiária das
construções existentes.
Considerando que os ambientes de universidades e ONGs para a capa-
citação não formal não são suficientes para garantir o acesso dos atores
sociais ou envolvido os mesmos no processo de diálogo e troca sobre as
questões sociais e o parlamento pode colocar na sua pauta atividades
que contribuam com os processos democráticos , conforme defendeu
Celso Daniel a esfera publica tem papel fundamental e é uma referência
para conquista do processo democrático e para disputa de novos direitos

41
e cidadania, com o direito de participação indispensável à mudanças das
relações entre Estado e Sociedade e à ampliação das formas de exercício
da democracia. Em setembro de 2011, mediante proposta de assessores
técnicos parlamentares, foi acolhido e realizado pelo Instituto do Legis-
lativo Paulista o “Curso de Capacitação para Lideranças: Regularização
Fundiária de Assentamentos Informais em Áreas Urbanas “. com desta-
que para a aplicação das leis específicas de proteção e recuperação dos
mananciais das sub-bacias Guarapiranga e Billings.
Pensando em Rousseau os indivíduos são iguais e livres, e somente
são governados por eles próprios, todos os cidadãos deveriam participar
das decisões relativas a assuntos de interesse geral, a democracia parti-
cipativa aborda tal reflexão.
Em Gramsci (1994) encontramos o pensamento que é preciso educar
os trabalhadores para proporcionar consistência à luta pelos interesses
da classe trabalhadora.
O curso desenvolveu conteúdos e dinâmicas para tratar dos impasses
e desafios na aplicação da nova legislação estadual de proteção e recupe-
ração dos mananciais nos processos de regularização fundiária da Região
Metropolitana de São Paulo, com o objetivo de contribuir para a formação
de lideranças comunitárias.
O grande desafio das lideranças comunitárias é assegurar a implemen-
tação da lei com participação popular, recuperando a qualidade das águas
dos mananciais e garantindo o modelo de ocupação socialmente justo,
com qualidade urbana e ambiental, com um ambiente ecologicamente
equilibrado em uma cidade para todos.
A falta de capacitação continuada das lideranças comunitárias dificulta
o processo de aprendizado e de desenvolvimento do projeto inicial de
empoderamento das mesmas quanto aos conteúdos de direito urbanístico.
Na prática, apesar de bem sucedido o curso em análise, a mudança da
mesa diretora na Assembleia Legislativa acarreta alterações substanciais
na composição dos cargos comissionados da Casa Legislativa, o que
muitas vezes dificulta a continuidade de projetos como este em análise.

42
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Decorridos dois anos da iniciativa do curso de regularização fundiária em


apreço, o Instituto Legislativo anunciou o curso “Planos diretores e cidades
sustentáveis” para lideranças comunitárias.

REFERÊNCIAS

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desafios da nova legislação estadual de proteção e recuperação dos mananciais na
Região Metropolitana de São Paulo. In BÓGUS L.; RAPOSO I.; PASTERNAK S.(org).
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Popular nos governos locais.São Paulo.Revista Pólis, n 14.São Paulo, Instituto
Pólis,1994.pp.63-68

43
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A Importância do Direito Urbanístico


na formação dos futuros profissionais
que atuação na área Jurídica

Elaine Adelina Pagani1

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo visa demonstrar a importância que o Direito Urba-


nístico apresenta em face do crescente desenvolvimento da sociedade,
que até a década de 30 contava com uma economia essencialmente rural,
e a partir de então passou a ser essencialmente urbana. Esse fenômeno
contribuiu para que as pessoas migrassem do campo para a cidade, mas a
cidade não estava preparada para receber esse contingente populacional,
que acabou por se instalar na periferia mal ou não servida pelos serviços
públicos e equipamentos materiais e culturais necessários ao desenvol-
vimento digno do cidadão.
A maioria das grandes cidades brasileiras cresceu a margem da lei,
devido a migração da população do campo para a cidade em busca de me-
lhores condições de vida, portanto populações de baixo poder aquisitivo,
aliado ao fato de que o direito urbano e a legislação urbanística brasileira
somente despertaram a atenção dos estudiosos a partir da crescente ur-
banização nos anos 60. Assim, a cidade que deve ser um espaço social,
palco de experiências humanas, exclui os seus cidadãos porque não tem
condições de abrigá-los, fazendo que muitos moradores não tenham
acesso aos espaços e serviços públicos, educação, cultura, transporte,
moradia digna. Contudo, é bom ressaltar que a cidade e a transformação
dela é resultado dos que nela vivem, inclusive, da parcela da população

1 Mestre em Direito pela PUCRS. Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Cenecista Nossa Senhora dos
Anjos – FACENSA. Presidente da Comissão Especial de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano da OAB/RS.

45
excluída a qual também contribui para a formação e a transformação da
cidade. “O cidadão se faz fazendo sua cidade.” (01)
Diante da constante mutação social e do panorama de desigualdades
sociais, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, e a regulamentação do seu artigo 182 pela Lei n° 10.257, de
10.07.2001, denominada Estatuto da Cidade, trazendo para a sociedade
e a academia a necessidade de inclusão e discussão desse novo, atual e
promissor campo do Direito – o Direito Urbanístico. Nesse contexto, o Di-
reito Urbano constitui-se numa das áreas do Direito Público que mais tem
crescido, especialmente, após 2001, com o advento do Estatuto da Cidade,
deixando de ser um tema citado apenas entre uma minoria de profissionais
da área do Direito, passando a fazer parte do cotidiano de profissionais
ligados a arquitetura e urbanismo, engenharia, sociologia, economia,
estatísticas e administração pública das três esferas, entre outros, além
da população em geral, por meio de ONG’s, Associações e movimentos
populares, quando da necessária intervenção do espaço urbano e a aplica-
ção do ordenamento jurídico urbanístico. Com efeito, o urbanismo deixou
de ser uma atividade estético-funcional das cidades limitada a técnica de
engenharia ou da arquitetura para abarcar o princípio da função social e
ambiental da propriedade e a sua nova conformação legal.
Por essa razão, torna-se fundamental a necessidade das Instituições
de Ensino Superior – IES – atentarem para a importância da inclusão do
Direito Urbanístico, em caráter obrigatório, nos currículos de seus cursos.
Entretanto, como o objetivo deste trabalho é tratar sobre a importância
que o Direito Urbanístico apresenta na formação dos futuros profissionais
que atuarão na área jurídica passa-se abordar o ensino jurídico.

2 ENSINO JURÍDICO

O curso de Graduação em Direito tem a função de formação inicial no


processo de educação permanente e continuada própria do mundo do
trabalho, tendo em vista formar profissionais hábeis, competentes e capa-

46
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

zes de atenderam as demandas profissionais exigidas pela sociedade. As


faculdades de Direito têm um importante papel no processo de produção
do conhecimento e formação dos profissionais que atuarão na sociedade,
assim, num mundo globalizado o ensino superior não é mais uma opção,
mas sim uma necessidade fundamental para o desenvolvimento do cidadão
e do País. A universidade é um agente ativo que ao cumprir o seu papel,
desenvolvimento da cultura, educação e arte, (re)criação do conhecimento,
inovação da ciência e da tecnologia e integração social, gera efeito positivo
na sociedade. Nesse sentido, as Instituições de Ensino Superior devem
estar atentas e inseridas na dinâmica social, a fim de realizarem a função
de formação de profissionais aptos a atuarem na sociedade. Nessa esteira,
os cursos de graduação devem contemplar em seus currículos algumas
disciplinas que proporcionem aos alunos a interação com as necessidades
locais e regionais. Deste modo, e em consonância com o propósito deste
trabalho, entende-se que a inclusão da disciplina de Direito Urbanístico
nas estruturas curriculares dos cursos de Direito no Brasil, é de suma
importância, pois oportunizará a formação de profissionais reflexivos,
críticos e responsáveis com o processo de urbanificação, eis que munidos
do conhecimento necessário para a gestão do meio urbano.

2.1 Diretrizes curriculares para os cursos jurídicos brasileiros

Antes de passar ao tratamento do ensino jurídico, faz-se necessário


uma abordagem sobre o Sistema de Ensino brasileiro. O Sistema Educa-
cional Brasileiro é regido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB
– Lei n° 9394, de 20 de dezembro de 1996 – que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional que se desenvolve, predominantemente por
meio do ensino, em instituições próprias, na forma do §1° do Art. 1° da
referida lei. Na forma do §2° do Art. 1° da LDB, a educação escolar deverá
vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social, assim, o ensino supe-
rior em nível de graduação tem a função de formação inicial no processo de
educação permanente e continuada própria do mundo do trabalho, tendo

47
em vista formar profissionais hábeis, competentes capazes de atenderam
as demandas profissionais exigidas pela sociedade.
A LDB, no Art. 21, dispõe acerca dos níveis e modalidades de educação
e ensino compondo-se da educação infantil, ensino fundamental, ensino
médio e a educação superior. Em relação à educação superior, dispõem
os Art. 43 a 57. Estabelece o Art. 53, II da LDB que são asseguradas às
universidades fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas
as diretrizes gerais pertinentes, o que interpretando significa que, desde
que a universidade contemple em sua grade curricular os conteúdos obri-
gatórios fixados nas Resoluções que instituem as Diretrizes Curriculares
Nacionais do respectivo curso de Graduação, terá autonomia para inserir
outros conjuntos de conhecimentos de outras áreas do saber. Assim, o
curso superior de graduação, observadas as Diretrizes Curriculares Na-
cionais pertinentes ao curso, terá a sua imagem retratada através do seu
projeto pedagógico o qual deve contemplar a formação do profissional
com formação humanística, técnico-científica e prática que lhe dê con-
dições à compreensão da complexidade do fenômeno social, urbano,
jurídico estabelecendo a necessária interdisciplinaridade num contexto
de transformações sociais.
Em consonância com a LDB, seguem as Resoluções aprovadas pelo
Conselho Nacional de Educação que estabelecem as Diretrizes Curriculares
específicas de cada curso. As resoluções determinam quais são os conteú-
dos (conjuntos de conjunto de conhecimentos ou área do conhecimento)
obrigatórios na grade curricular do curso de graduação correspondente
a resolução, todavia, ao delinearem o perfil do egresso e as habilidades
e competências que o futuro profissional deverá apresentar permite que
o projeto pedagógico do curso insira outras áreas do conhecimento que
integrem o saber acadêmico proporcionando a interdisciplinaridade.
Os cursos jurídicos brasileiros devem se orientar segundo a normativa
da Resolução CNE/CES n° 9, de 29 de setembro de 2004 a qual institui as
Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito para
sua organização curricular. Com base no Art. 5° da referida Resolução,

48
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

a organização do curso de Graduação em Direito deve levar em conta o


contexto local e a sua inserção social, geográfica e política. Portanto, os
cursos jurídicos devem incluir em sua estrutura curricular disciplinas que
além do enfoque dogmático, privilegiem conhecimentos a partir das obser-
vações oriundas das constantes mudanças sociais. Com efeito, a disciplina
de Direito Urbanístico contempla perfeitamente o estudo das atividades
destinadas ao planejamento e a gestão do solo urbano nas suas mais
diversas etapas, tendo como fio condutor a sustentabilidade da cidade.
.
3 O DIREITO URBANO COMO OBJETO DE
PESqUISA E A DISCIPLINA DE DIREITO URBANÍSTICO

Para se conceituar “pesquisa” é necessário saber qual a área do co-


nhecimento humano e o objeto da pesquisa que se pretende investigar.
Segundo Maria de Andrade Marconi e Eva Lakatos (14) pesquisa é “... um
procedimento formal, com método de pensamento reflexivo, que requer
um tratamento científico e se constitui no caminho para conhecer a rea-
lidade ou para se descobrir verdades parciais.”
Indaga-se então se o Direito Urbanístico pode ser um objeto de pes-
quisa? A resposta é afirmativa, o Direito Urbano pode ser um excelente
objeto de pesquisa, pois o Direito, considerando o critério utilizado pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES
enquadra-se no bloco de carreiras das ciências humanas e sociais, e esta
é uma área onde a pesquisa tem fundamental importância na busca de
soluções acerca de problemas de interesse público.
Tendo em vista que o Direito Urbanístico é um assunto de fundamental
importância, não somente para o operador do direito, mas também para
outros profissionais envolvidos com o processo de urbanização, con-
forme já exposto neste trabalho, a pesquisa pode ser desenvolvida com
caráter interdisciplinar, multidisciplinar e transdisciplinar (15) envolvendo
os profissionais das diversas áreas do conhecimento, a saber: ciências
biológicas e saúde, ciências exata e da terra, ciências sociais e aplicadas

49
e engenharias e tecnologias na busca multidisciplinar, para o atendi-
mento da demanda de soluções de interesses coletivos. Neste contexto,
a pesquisa pode proporcionar o incentivo a reflexão sobre os diferentes
aportes disciplinares e metodológicos que definem o urbanismo, abordar
as contribuições dos diferentes saberes para desafios que se impõe para
o urbanismo, entre tantos outros problemas que podem ser selecionados,
definidos e diferenciados para a pesquisa futura.
A partir da investigação científica é possível estabelecer trocas e
transversalidade disciplinares que oportunizam o dialogo entre os pes-
quisadores favorecendo a análise e interpretação dos dados de forma
crítico-reflexiva e a formulação de novas estratégias de gestão urbano-
-ambiental, pois ainda há muitos problemas e obstáculos para a efetiva
materialização dos princípios e dispositivos constitucionais e legais
sobre a matéria.
O Direito Urbanístico está intimamente ligado à área do Direito, ainda
que a grande maioria das Instituições de Ensino Superior do país não o in-
clua em seus currículos de graduação, e aquelas que o incluem o fazem de
forma eletiva ou optativa. Talvez, tal procedimento possa ser resultado do
desconhecimento de que o Direito Urbano é um ramo autônomo do Direito.
Credita-se também a falta de atenção para com o Direito do Urbanismo
como disciplina nos currículos no ensino superior de graduação como
consequência por ser um direito recente. O Direito Urbanístico, apesar das
esparsas e remotas origens no Direito brasileiro, somente consagrou-se
como um importante conteúdo jurídico a partir da Constituição Federal
de 1988 e, mais precisamente, com o Estatuto da Cidade.
Convém ressaltar que o Direito Urbanístico como disciplina no ensino
superior em nível de pós-graduação não é recente, apesar de ainda ser
escassa a oferta de cursos na área do direito urbanístico no País. Segun-
doToshio Mukai, em 1976 foi criada a disciplina de Direito Urbanístico nos
curso de pós-graduação da Faculdade de Direito da USP, sob a regência
do professor José Afonso da Silva, e que mais tarde, 1981, como fruto
deste curso foi publicada a primeira obra de sistematização em matéria
urbanística brasileira.

50
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Conforme exposto acima, além do Direito Urbanístico estar ligado à


área do Direito, ele está ligado também em outros campos do conheci-
mento como a arquitetura e urbanismo, engenharia, sociologia, economia,
estatísticas e administração, entre outros, todavia, na maioria das Insti-
tuições de Ensino Superior – IES – falta a sua inclusão na grade curricular
da graduação respectiva.
O Direito Urbanístico como um conteúdo (conjunto de conhecimentos
da área de Direito do urbanismo), permite na organização da grade cur-
ricular do curso a sua inclusão como disciplina específica (por exemplo:
Direito do Urbanismo, Instrumentos de Planejamento e Gestão Urbana),
ou uma disciplina que contemple outro conteúdo (aqui vale lembrar o
Direito Administrativo) ou como tema transversal. Para todas as hipóteses
devem ser observadas a extensão e abrangência da disciplina no contexto
do curso, a carga horária e o público acadêmico alvo, haja vista que a dis-
ciplina poderá versar sob determinados enfoques relevantes para o curso
em questão. Com efeito, o Direito Urbano como disciplina deve objetivar o
propósito de alcançar o conhecimento e a capacitação dos acadêmicos na
interpretação da legislação urbanística em vigor; estudar e discutir casos
práticos de aplicação da legislação urbanística; identificar as necessidades
presentes e futuras dos meios urbanos e rurais, pondo em evidencia as
oportunidades, os desafios, as condicionantes e as ameaças ao seu de-
senvolvimento sustentado; gerir e avaliar os efeitos e as implicações das
transformações urbanísticas.
A partir do reconhecimento do Direito Urbanístico como disciplina e
da sua inclusão nos currículos de graduação que fazem parte da formação
dos futuros profissionais que laborarão na gestão urbana, será possível
estabelecer a necessária interdisciplinaridade que é o caminho para a
atualização de teorias, metodologias e pesquisas. Um campo do conheci-
mento isolado, a exemplo do Direito ou da Arquitetura, não tem condições
de dar andamento às constantes pesquisas que o urbanismo e o Direito
Urbanístico demandam. Ainda que no ensino superior de graduação, os
cursos estejam obrigados a seguirem as Diretrizes curriculares nacional

51
determinadas pelo Ministério da Educação (MEC), é fomentada a inter-
disciplinaridade, a pesquisa e a extensão, de maneira que as Instituições
de Ensino Superior devem definir o perfil dos egressos preconizando a
relação articulada do conhecimento, das habilidades e das competências
na formação de profissionais aptos para a atuação na sua área de forma-
ção, mas com competências intelectuais que reflitam a heterogeneidade
das demandas sociais.
O Direito Urbanístico, também denominado Direito Urbano ou Direito
do Urbanismo (07) constitui-se num dos ramos do Direito Público, que
mais tem crescido no Brasil nas últimas décadas, em virtude do processo
de urbanização e o reconhecimento de sua importância na sociedade,
especialmente após a promulgação da Constituição da República Fede-
rativa do Brasil de 1988 e da regulamentação de seu artigo 182 e 183 pela
Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade. Nesse sentido,
Nelson Saule Júnior sustenta que “A Constituição de 1988 contribuiu em
muito para superar as dificuldades existentes de construção de grupo de
normas e institutos próprios do direito urbanístico.” (08)
O direito urbanístico é um ramo do Direito Público com origem do
Direito Administrativo, que ainda necessita ter declarada a sua indepen-
dência como direito autônomo. Mas isso não significa que, se declarado
como ramo autônomo deixe de integrar a ordem jurídica estatal nas ações
promotoras das políticas urbanas em defesa do direito a cidade. A defesa
em tornar o direito urbano como um direito autônomo consiste em ter o
mesmo os seus princípios e normas jurídico-orientadoras sistematizados.
Ë o que, alias, bem observou Nelson Saule Júnior (09) ao dizer que:

O fato do direito urbanístico ter por objeto a interpretação e a


sistematização das normas e princípios reguladores da atividade
urbanística exige a elaboração de institutos e figuras jurídicas
próprias. O estabelecimento de um sistema de normas próprias
de maneira alguma significa que o direito urbanístico seja inde-
pendente e não integre a ordem jurídica balizadora das ações
e intervenções do Estado para exercer a função pública de pro-
mover a política urbana

52
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

As complicações provenientes da urbanização fazem com que as nor-


mas reguladoras do Direito Urbano também se tornem mais complexas,
então surgindo a necessidade de ser declarada a autonomia do Direito
Urbanístico, nesse sentido José Afonso da Silva (10) dispõe que:

A convivência urbana pressupõe regras especiais, que a ordenem.


Compreende-se que, inicialmente, essas regras tenham surgido
com base nos costumes, e só mais tarde se tornaram regras do Di-
reito legislado. Eram regras simples, referentes aos aspectos mais
primários da urbanificação, como o arruamento e o alinhamento.
Assim tinha que ser, porque também as cidades eram simples. À
medida que estas ficaram mais complicadas, também as normas
urbanísticas adquirem complexidade, até chegar à formação de
unidade institucional, que sabe até adquirir autonomia, formando
um ramo autônomo do Direito.

Oportuno ressaltar também que, com a promulgação do Estatuto da


Cidade – Lei n° 10.257/2001, vieram disposições legais que tratam de
forma ampla as questões atinentes às cidades, sendo determinado que os
planos diretores de desenvolvimento dos municípios devem contemplar
o desenvolvimento urbano local levando em consideração os aspectos
econômico-financeiros, sociais e ambientais. Nesse sentido, de acordo
com o artigo 225 da Constituição Federal de 1988, o meio-ambiente natural
deve ser preservado e é requisito essencial a ser observado no conjunto
das legislações que compõem a ordem jurídico urbanística. (11) Com
efeito, podemos constatar que a legislação urbanística deve contemplar
dois tipos de meio-ambiente: o natural e o construído. Assim, em relação
ao meio-ambiente natural há que se observar a conservação ecológica
equilibrada com um direito de todos e um dever de todos em zelar por
ele. Em relação ao meio-ambiente construído, a legislação deve prever
a forma de ordenação dos espaços urbanos visando a construção de ci-
dades sustentáveis, acessíveis, redistributivas e em consonância com a
preservação do meio-ambiente natural.

53
4 A IMPORTâNCIA DA INCLUSÃO DA DISCIPLINA DE
DIREITO URBANÍSTICO NA ESTRUTURA CURRICULAR DOS
CURSOS JURÍDICOS: UMA RENOVAÇÃO DE VELhOS PARADIGMAS

Longe da realidade que se desenha no horizonte, ainda é minoria os


cursos de Direito no Brasil que contemplam em suas bases curriculares a
disciplina de Direito Urbanístico. Levando-se em consideração que, hoje
em dia, todo e qualquer projeto referente a urbanismo requer estudos e
levantamentos técnicos que envolvem os mais diversos profissionais,
torna-se acertado afirmar que o resultado de um trabalho eficiente e eficaz
que repercutirá na sociedade, somente será possível com a conjugação
interdisciplinar destes profissionais, inclusive os profissionais da área ju-
rídica. Com efeito, não se perquire a formação de um “superprofissional”
que tem um conhecimento global e pleno de todas as áreas do conheci-
mento e que é capaz de realizar todo o trabalho sozinho, até porque esta
hipótese é improvável. De outra banda, a ausência da disciplina de Direito
Urbano nos cursos jurídicos oportuniza a formação de profissionais des-
preparados para lidarem com as questões concretas ligadas a disciplina do
espaço urbano. A própria doutrina já é unânime em afirmar que o Direito
do Urbanismo é uma ciência de natureza eminentemente interdisciplinar.
Nesse sentido, Marcelo Lopes de Souza (18) sustenta que para a superação
dos entraves do conhecimento dos profissionais acerca de determinados
assuntos que norteiam o seu trabalho é a complementação da formação
profissional, senão vejamos:

O modo mais razoável de se minimizarem os efeitos do condicio-


namento imposto pelo fracionamento disciplinar parece residir,
com efeito, não na tentativa de transformação de um saber
generalista por vocação em um privilégio de pretensos especia-
listas, mas na complementação da formação dos profissionais
(arquitetos e cientistas sociais) envolvidos, ao mesmo tempo
em que lhes incute uma visão crítica a propósito da divisão do
trabalho acadêmico em vigor e se lhes desperta a consciência
para a relevância do diálogo interdisciplinar.

Daí a necessidade da inclusão e implementação da disciplina do direito

54
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

urbanístico no âmbito do ensino jurídico, eis que o processo de urbanismo


faz parte, em algum momento, da atividade profissional.
Devido a importância que o Direito do Urbanismo adquiriu ao longo
das últimas décadas, em especial, após a promulgação do Estatuto da
Cidade, e considerando que o processo de urbanização tem tratamento
legal específico, não pode o Direito Urbanístico ficar à margem das grades
curriculares do ensino jurídico. Os ensinamentos do sistema urbanístico
bem como os instrumentos legais que ele proporciona são de extrema
necessidade para os futuros profissionais que forem desempenhar suas
atividades profissionais.
O Brasil que é um país com alto índice de urbanização vem enfren-
tando sérios problemas nas cidades devido a questão das cidades serem
excludentes e não sustentáveis, por isso, a questão urbanística assume
relevante importância no contexto social, o que exige dos profissionais
do Direito conhecimentos especializados acerca de toda a legislação e
doutrina referente à solução desses problemas, contribuindo assim para
a justiça social. Dentre as conseqüências advindas dos problemas acima
relatados podemos destacar o aumento de construções e loteamentos
irregulares ou clandestinos, o crescimento das favelas nas periferias das
cidades de médio e grande porte, e a tensão social e violência cada vez
mais marcante no meio urbano.
Faz-se importante incluir nas grades curriculares dos cursos de gra-
duação de Direito a disciplina de Direito Urbanístico para demonstrar e
alertar que não há falta de legislação para implementar o processo de
urbanístico, mas sim a falta de vontade das políticas públicas de aplicarem
a lei na solução ou amenização dos problemas urbanos. Nesse sentido,
destacamos o Artigo 4º, do Estatuto da Cidade que dispõe acerca dos
instrumentos da política urbana. Desta forma, é urgente a necessidade de
inclusão do direito urbano nos currículos dos cursos de Direito, exaustiva-
mente expostos no decorrer deste trabalho, para formar cidadãos que tenha
conhecimento da legislação e seus instrumentos legais de aplicabilidade
para mudar esses desequilíbrios econômicos e sociais, através da aplicação

55
de uma legislação imparcial e efetiva, que corrija as distorções existentes
na política urbana, o que consequentemente irá surtir benéficos reflexos
na sociedade como um todo. Nesse sentido, os profissionais especialistas
em Direito Urbano têm a tarefa de analisar a aplicabilidade e a viabilidade
dos diversos instrumentos legais para a formulação e implementação de
políticas urbanas, sobretudo pelos municípios, ampliando as condições
de gestão democrática das cidades, propondo soluções jurídico-políticas
objetivando alcançar uma melhor qualidade de vida nas cidades, que é a
essência do urbanismo. As questões referentes ao urbanismo devem ser
tratadas, planejadas e articuladas não somente no aspecto físico, mas
também sob o aspecto social, econômico, político e jurídico, daí ser um
campo de conhecimento que se faz necessário a atuação de diferentes
profissionais, numa abordagem derivada de diversos campos do conhe-
cimento relacionados ao planejamento urbano e a urbanização.
Faz-se necessário, diante da ampliação das demandas e conflitos que
a sociedade moderna vive, encontrar novas soluções desatreladas dos
velhos paradigmas, pois as formulas antigas de solução para os novos
conflitos urbanos tornam inócuas.

5 CONCLUSÕES

A ordem jurídica urbanística brasileira passou a estar presente de forma


constante na pauta das discussões urbanas nas últimas décadas devido a
crescente urbanização das cidades aliada a promulgação da Constituição
Federal de 1988 e a Lei Federal n° 10.257, de 10 de julho de 2001, surgindo
a premência das Instituições de Ensino Superior incluírem em seus currí-
culos o conteúdo de Direito Urbano, em especial para os cursos de Direito.
Assim, ao chegar ao final desta investigação, não podemos dizer que
se chegou ao no fim da pesquisa, pois é um tema que comporta uma
investigação contínua em face de sua ligação com a constante mutação
social. Todavia, convém finalizar com algumas conclusões.
A urbanização é um fenômeno moderno que gera problemas sociais

56
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

que o urbanismo é capaz de resolver mediante a ordenação das cidades


com a localização de serviços públicos, habitação e transporte.
O Direito Urbano, Direito Urbanístico ou Direito do Urbanismo é um
ramo do Direito Público com autonomia, regime jurídico próprio e com
nomenclatura própria, voltado para a realização e aplicação de princí-
pios próprios.
O ensino jurídico deve abranger o estudo do Direito Urbano como forma
de despertar para a necessidade do desenvolvimento do ser humano como
parte integrante do planeta e perceber o papel do Direito nos processos
de urbanificação.
É de fundamental importância e necessária a inclusão do conteúdo de
Direito Urbanístico no âmbito do ensino jurídico a fim de estes profissionais
possam ter o conhecimento e a capacitação na interpretação e aplicação
da legislação urbanística em vigor, identificar as necessidades presentes
e futuras dos meios urbanos e rurais, pondo em evidência as oportunida-
des, os desafios, as condicionantes e as ameaças ao seu desenvolvimento
sustentado, bem como, gerir e avaliar os efeitos e as implicações das
transformações urbanísticas, entre outras atribuições.
Como sugestão para a efetiva inclusão do Direito Urbanístico nos cur-
rículos dos cursos de graduação de Direito, recomendamos à Secretaria
Executiva deste VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico e ao Ins-
tituto Brasileiro de Direito Urbanístico o envio de proposta neste sentido
ao Ministério de Educação/Conselho Nacional de Educação.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Manoele, 2004.
FALEIROS, Vicente de Paula. Metodologia do diagnóstico social. Brasília: Co-
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LAKATOS, Eva Maria. MARCONI, Marina de Andrade. Técnicas de pesquisa: pla-
nejamento e execução de pesquisas, amostragens e técnicas de pesquisas,
elaboração, análise e interpretação de dados. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.

57
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Editora Ariel, 1975.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1997.
MUKAI. Toshio. Direito Urbano-Ambiental Brasileiro. 2ª edição revista, atua-
lizada e ampliada. São Paulo: Dialética, 2002.
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Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sérgio
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tuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001). Coordenadores,
Adilson Abreu Dallari, Sérgio Ferraz. São Paulo: Malheiros, 2002.
YOUSSEF, Alexandre. Políticas públicas e juventude. In: Juventude, cultura e
cidadania, comunicações do Iser, ano 21, Edição Especial, 2002, p. 177.

NOTAS

(01) YOUSSEF, Alexandre. Políticas públicas e juventude. In: Juventude, cultura e cidadania, comunicações
do Iser, ano 21, Edição Especial, 2002, p. 177.
(02) LAKATOS, Eva Maria. MARCONI, Marina de Andrade. Técnicas de pesquisa: planejamento e execução
de pesquisas, amostragens e técnicas de pesquisas, elaboração, análise e interpretação de dados.
5ª ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 15-16.
(03) Bastante interessante é a crítica que Marcelo Lopes de Souza citando Japiassu (1976) expõem por ser
pertinente pesquisa no direito urbanístico, “Muito se clama por interdisciplinaridade na pesquisa científica
contemporânea, mas o que mais se vê, na melhor das hipóteses, é pluridisciplinaridade (justaposição de co-
nhecimentos disciplinares diversos, agrupados de modo a evidenciar as relações entre eles: cooperação sem
coordenação) ou, mesmo, uma mera multidisciplinaridade (conhecimentos disciplinares diversos veiculados sem
que haja uma cooperação entre os especialistas). A verdadeira interdisciplinaridade pressupõe uma cooperação
intensa e coordenada, sobre a base de uma finalidade (e de uma problemática) comum”. Ainda, continua o
autor, “Quanto ao planejamento e à gestão urbanos, eles são, como já se encareceu, ciência social e aplicada
e, como tal, devem ser interdisciplinares por excelência. Mais ainda que a análise, ou diagnóstico – vale dizer,
a pesquisa empírica básica –, a pesquisa social aplicada, com a qual se busca explicitamente contribuir para a

58
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

superação de fenômenos tidos como problemáticos e negativos, demanda intensa e coordenada cooperação
entre saberes disciplinares variados. A necessidade de diálogo, de aprendizado mútuo e de superação de
fronteiras artificiais fica ainda mais evidente quando se trata de pensar para além da problemática, buscando
refletir também sobre as soluções – ou, como já brincou alguém, sobre a “solucionática”.” SOUZA, Marcelo
Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2002. p. 100.
(04) Boa parte dos autores franceses tratam o direito urbanístico como direito do urbanismo, denotando tratar-
-se de uma disciplina jurídica do urbanismo.
(05) SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Consti-
tucional da Política Urbana. Aplicação e eficácia do Plano diretor. Editora Fabris: Porto Alegre, 1997. p. 82.
(06) SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Consti-
tucional da Política Urbana. Aplicação e eficácia do Plano diretor. Editora Fabris: Porto Alegre, 1997. p. 83.
(07) SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 4° ed. Revista e atualizada. São Paulo: Malheiros,
2006. p. 51-52.
(08) Nesse sentido Toshio Mukai, “Neste momento, nunca é demais chamar a atenção para o fato de que o
urbanismo, especialmente em países mais adiantados, se ocupa não mais do arranjo físico territorial das ci-
dades, mas abrange, quantitativamente, um espaço maior (o território todo, englobando o meio rural e o meio
urbano) e, qualitativamente, todos os aspectos relativos à qualidade do meio ambiente, que há de ser o mais
saudável possível.” MUKAI. Toshio. Direito Urbano-Ambiental Brasileiro. 2ª edição revista, atualizada e
ampliada. São Paulo: Dialética, 2002. p. 53.
(09) SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão
urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 102.

59
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Análise bibliométrica sobre


a produção acadêmica brasileira
referente ao Estatuto da Cidade

Ana Carolina Guilherme Coêlho1

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho contempla uma análise quantitativa e qualitativa


acerca das produções acadêmicas de dissertações e teses nas Universida-
des Brasileiras. O tema eleito para a pesquisa, Estatuto da Cidade, destaca-
-se por sua relevância uma vez que sua abordagem científica, ligando-a a
sua necessidade de entendimento e execução, é bastante recente.
Em sede de observação da evolução histórica da problemática do di-
reito como elemento facilitador e necessário ante a reforma urbana e de
moradia no Brasil, conforme cita Edésio Fernandes (2008), a legislação e
a intervenção do Estado na questão urbana também deduz a elaboração
de normativas legais que orientem os setores envolvidos na questão para
resolução do problema.
O Direito Urbano no Brasil tem sua origem desde os primeiros ali-
nhamentos de Portugal através das ordenações Filipinas. Ao longo desse
tempo, até a sua definitiva inscrição como marco legal dentro da Carta
Constitucional de 1988, o direito urbano foi paulatinamente tratado nos
assuntos que concerniam às questões de construção, saneamento e vi-
zinhança. (FRANÇA, http://www.ibdu.org.br/imagens/20_ANOS_.PDF).
Durante a passagem do século xIx para o século xx, a questão da ur-
banização das cidades brasileiras começa a saltar, denotando seu caráter

1 Mestranda no Programa de Estudos Urbanos e Regionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista REUNI. E-mail:
carolgcoelho@yahoo.com.br.

61
emergencial de estudo e arregimento dentro das nuances de políticas pú-
blicas. Desta forma, segundo aponta o CENSO 2010 do IBGE, havia quase
191 milhões de pessoas no Brasil, sendo que, desse valor universal, 160
milhões de pessoas são urbanas e 29 milhões rurais, valores que, percen-
tualmente, mostram que em 2010, no Brasil 84% da população é urbana,
demonstrando, então, o avultoso problema em regularizar, fiscalizar e
normatizar a questão.
Desta forma, diante os dados acima narrados, o Estado incluiu na
Constituição Federal de 1988, atribuindo ao de direito urbanístico como
matéria de competência da União para legislar sobre. Assim, percebe-se
que tal ramo do direito é alavancado como tema de interesse nacional,
porquanto incluído, de maneira enfática, dentro das disposições legais do
Estado brasileiro, voltando novamente a aparecer em tal documento legal
nos artigos 182 e 183, artigos esses mais específicos quanto à necessidade
da existência de instrumentos jurídicos específicos para tratar sobre a
cidade, seu desenvolvimento e a urbanização.
Conforme cita José Afonso da Silva (1995), o direito urbano mostra-se
de suma importância para o entendimento da questão urbana brasileira,
bem como sobre o desenvolvimento das cidades no momento em que ele
traça as principais diretrizes legais para a execução de políticas de Estado
e interferências particulares no que toca ao solo, principalmente quando
este está fincando em área urbana.
Portanto, a partir da necessidade prática e por imposição legal, o Estado
viu-se obrigado a legislar em matéria de direito urbanístico, elaborando
e promulgando, no ano de 2001, a Lei 10.257 de 2001, chamada de Esta-
tuto da Cidade. O Estatuto da Cidade apresenta-se como uma norma de
observância nacional voltada para regularizar a questão da moradia e do
acesso e uso do solo por meio de mecanismos jurídicos.
O plano diretor, tão em voga nos últimos tempos, por exigir que os
municípios tracem metas e fiscalizem suas outorgas de construção e uso
do solo, é um nítido exemplo de uma novidade trazida à baila pelo Esta-
tuto da Cidade. Então, clara é a precisão que este instrumento de reforma

62
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

urbana voltado à regulamentação das cidades e do direito à moradia ganha


frente ao universo acadêmico, por refletir o âmbito teórico e de estudos
conclusivos acerca do tema para a ciência.
Para proceder com a análise metodológica sobre os trabalhos que con-
tém o Estatuto da Cidade como objeto de pesquisa, a Autora utilizou-se da
ferramenta BDTD (Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações),
disponível para consulta por meio da página eletrônica SIGAA da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Norte. Além da ferramenta de busca
acima, para complementar a análise de dados que não estão integralmente
disponíveis na BDTD, a plataforma Lattes do CNPq também foi de suma
relevância, pois através da busca pelo autor ou orientador, se teve acesso
aos temas de pesquisas.
O intuito da realização da presente pesquisa está na premente neces-
sidade de se conhecer a produção acadêmica brasileira sobre o tema em
comento, uma vez que diante dos resultados obtidos, poderá se elaborar
um panorama geral dos estudos científicos que se dedicam à análise do
Estatuto da Cidade, sendo este um subitem do Direito Urbano, mecanismo
este do entendimento da Cidade e da Questão Urbana.
A possibilidade de tal averiguação realizar-se por análises bibliomé-
tricas de produções acadêmicas está respaldada no campo científico,
porquanto admita tal via de pesquisa, já que essa mostra, de forma clara
e com grande confiabilidade, o universo de produções e temas abordados
na atualidade acerca da temática escolhida pelo autor.
De acordo com Hall (2011) os estudos infométricos e biblimétricos
são grande marcos para o estudo de temas científicos, sendo o primeiro
o estudo quantitativo das informações científicas e o segundo o estudo
qualitativo destas informações. Como procedimento metodológico para a
elaboração do presente estudo, a Autora recorreu à análise de filtros atra-
vés da ferramenta de pesquisa do BDTD, num primeiro momento fazendo
a busca através do assunto, ou palavra-chave, “Estatuto da Cidade”, em um
segundo momento procedendo com a leitura dos resumos dos trabalhos
mostrados e por fim, com a leitura completa dos trabalhos, destacando,

63
assim, os seguintes aspectos: 1) Título; 2) Autor; 3) Ano; 4) Instituição;
5) Região; 6) Tipo (se dissertação de mestrado ou tese de doutorado e 7)
Área do Conhecimento.
Segundo Estivals (1985) “as medidas que se referem aos objetivos,
fenômenos ou fatos, as relações ou leis, assim, o que deve ser estimado
em uma pesquisa bibliométrica é a ‘flutuação do interesse coletivo sobre
a matéria”. Assim, com a plausibilidade de se executar o estudo bibliomé-
trico em relação ao tema de interesse da Autora, desvenda-se o universo
de produções, o que reflete o interesse da comunidade acadêmica em
abordar o Estatuto da Cidade.
Por fim, o escopo do presente trabalho finca na análise de produções de
dissertações e teses sobre o direito urbano, a cidade urbana, assuntos estes
concretizados no Estatuto da Cidade, por meio de ferramentas virtuais de
publicações de trabalhos acadêmicos de universidades brasileiras e quais
as características pormenorizadas de tais publicações, no recorte temporal
de 2001, data de promulgação do Estatuto da Cidade, até o corrente ano.

2 A CIDADE, O DIREITO URBANÍSTICO E O ESTATUTO DA CIDADE

A cidade elucida desmembramentos teóricos que muitas vezes não se


traduzem em realidades palpáveis ou perceptíveis. O conceito que o termo
denota é abrangente, a depender do enfoque que o locutor lhe queira dar.
Na sociologia urbana, a cidade e o campo sempre foram territórios
de embates em busca de conceituações que elucidassem a contenda
que existem entre os universos paradoxos e interdependentes que são.
Entrementes, tal qual a cidade e o campo, espaços territoriais formados
por características extensivas não só ao aspecto físico, mas que envolve
interfaces de comportamento social, o próprio conceito também se mostra
subjetivo. Eis que, como cita Lefebvre (2006, p. 69)

se se denomina com isso uma confusão generalizada, com o


campo se perdendo no seio da cidade, com a cidade absorvendo o
campo e perdendo-se nele, esta confusão pode ser teoricamente
contestada, e a teoria refuta toda estratégia baseada nesta con-
cepção do tecido urbano.

64
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Portanto, diante da afirmação de que essencialmente a discussão


deve-se pautar não pelo consenso de termos entre campo e cidade, mas
sim de como esse campo e essa cidade agora se apresentam, a questão
urbana, pois, torna-se o marco inicial da análise.
A urbanização dos centros populacionais, bem como das áreas con-
cebidas por rurais, ganham novos aspectos ao demonstrarem uma ne-
cessidade premente de readequação social a essa nova estruturação do
espaço geográfico, bem como do modo de vida, incluindo aqui a menção do
grande fluxo imigratório percebido no Brasil durante o século xx, em que
as populações abandonaram um estilo de vida agrário para dedicarem-se
ao urbano capitalista, modificando toda paisagem da cidade e do campo.
Com essa mudança, o Estado precisa readequar-se ao modus vivendi
de sua população, uma vez que problemas que outrora eram prioritários
na agenda pública, tornam-se, agora, obsoletos. Tal qual ocorreu com o
aumento da densidade populacional nos centros urbanos, nas cidades
e a diminuição, consequentemente, nas áreas rurais, a arquitetura das
cidades passou a ser veloz e paulatinamente modificada em nome da
nova forma de vida.
Com isso, o surgimento de territórios domiciliares nos centros urbanos
que se encontravam á margem de legalização aumentou, chegando a um
ponto crítico que não poderia mais ser ignorado pelo Estado, pelo Governo
e pelas agendas políticas.
O ápice da preocupação Estatal com tal demanda em prol de regularizar
e fiscalizar essa nova configuração de cidade e da dinâmica urbana novel
foi com a inclusão de artigos legais na Constituição de 1988, o que refletira,
pois, a preocupação em resolver as pendências e as futuras querelas em
relação à habitação, à estrutura da cidade e a legalização da moradia, da
utilização e gozo do solo urbano.
A partir da exigência constitucional da presença de normas infracons-
titucionais que regularizassem as lacunas existentes quanto a legislação
específica para a questão urbana, o Estatuto da Cidade foi inicialmente
esboçado, desde a promulgação da constituição, sendo definitivamente

65
inserida no ano de 2001, após sua aprovação final.
Conforme se observa na leitura da Lei Maior em comento, ver-se que
a política urbana ganhou um capítulo especifico, embora contenha em
si apenas dois artigos, quais sejam 182 e 183. Porém, mesmo diante da
defasagem em normatizar essa discussão, o Estado exprime a necessidade
de elaboração de uma lei especifica para tratar pormenorizadamente do
assunto, quando diz, no caput do artigo 182 (BRASIL):

A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder


Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei,
tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
(grifos nossos)

Assim, a partir dessa narrativa histórica, entra em cena a Lei 10.257/01,


que disporá em assimilar as principais questões urbanas pertinentes
ao contexto brasileiro, bem como sinalizando os mecanismos jurídicos
específicos a serem utilizados pelos gestores e operadores, para dirimir
conflitos e solucionar impasses sociais.
Desta feita, premente se mostra a importância do estudo e entendi-
mento do Estatuto da Cidade para todas as áreas do conhecimento que
busquem, seja por qual nuance for, elaborar uma análise detida sobre as
cidades, as áreas urbanas e as dinâmicas sociais. Então, justifica-se, pois,
o reconhecimento de pesquisas acadêmicas sobre o tema para que assim,
se possa ter uma noção panorâmica de quais áreas estão se dedicando
no estudo do tema, bem como sob qual perspectiva o assunto é tratado.

3 DA ANáLISE BIBLIOMéTRICA

Para a realização do presente estudo, a abordagem que se pretende dar


para o recorte é de utilizar como filtro a BDTD (Biblioteca Digital Brasileira
de Teses e Dissertações), usando o campo Assunto como parâmetro de
localização de trabalhos acadêmicos de pós-graduação que tratem, especi-
ficamente, do termo “Estatuto da Cidade”, no recorte temporal de 2001 até

66
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

2013, justificando-se a escolha em virtude de ser em 2001 a promulgação


do Estatuto da Cidade que vige até o presente momento.
Com a dita busca, encontrou-se inicialmente 36 (trinta e seis) resultados
de trabalhos os quais trazem em seu assunto o termo pesquisado. Após
essa fase inicial, proceder-se-á com o detalhamento dos 36 trabalhos de
acordo com os seguintes subitens: 1) Título; 2) Autor; 3) Ano; 4) Instituição;
5) Região; 6) Tipo (se dissertação de mestrado ou tese de doutorado e 7)
Área do Conhecimento.
Conforme a tabela abaixo se percebe que os assuntos (que sugerem
diretamente a palavra chave do campo de investigação ao qual o autor se
dedica) e autores são variados envolvendo a chave de pesquisa. Vejamos.

quadro 1: Autores e Títulos encontrados

67
De acordo com as informações acima tabuladas, o Estatuto da Cidade
está presente no campo dos assuntos de todos os trabalhos mencionados,
e, em grande parte, serve como aporte teórico para análise qualitativa de
estudos de caso e para entendimento generalizado na área de concen-
tração do autor.

68
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Seguindo na mesma abordagem, com fulcro nos dados disponibilizados


pela BDTD, salta aos olhos que paulatinamente os trabalhos monográficos
estão se debruçando sobre o tema de cidades, urbanização, pelo viés do
Estatuto da Cidade, pois, de acordo com o gráfico abaixo, perceber-se-á
a publicação de trabalhos anualmente desde 2004 até 2012, não havendo
nenhuma lacuna nesse ínterim.

Figura 1: Publicações por ano

De acordo com a análise, os números demonstram que a maior produ-


ção acadêmica em que no assunto estava presente o estatuto da cidade
foi entre 2007 e 2011, sendo o ápice em 2007 com 7 trabalhos, entre dis-
sertações e teses, publicados no Brasil cujo assunto aborda, entre outros,
o Estatuto da Cidade, o que sugere um aumento gradual de interesse dos
alunos de pós-graduação em estudar o tema proposto.
Outro ponto investigado pela Autora foi as instituições de ensino das
quais provinham os trabalhos analisados. Como resultado, viu-se que as
instituições de ensino superior que tem alunos publicando estudos acerca
do estatuto da cidade são oriundas das regiões Nordeste, Sudeste, Sul e
apenas uma do Centro-Oeste (Brasília), denotando que são essas entidades
de ensino que mais incentivam grupos de estudo ou abordagem teórica no
campo de investigação. Abaixo, segue a tabela discriminando os números
de produções monográficas de cada instituição encontrada.

69
quadro 2: Publicações por instituição

Portanto, visualiza-se que a Universidade de São Paulo- USP, a Pon-


tifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC/SP e a Universidade de
Brasília- UnB são as três únicas, de um universo de 17 instituições en-
contradas que tem mais trabalhos publicados, até a presente data, cujo
assunto abranja o Estatuto da Cidade.
Nesse diapasão, analisou-se também as regiões de origem das Univer-
sidades e, portanto, das pesquisas. Chama atenção a ausência de Centros
de Pesquisa da região Norte. Vejamos os resultados pelo gráfico, elaborado
pela Autora a partir dos dados obtidos:

70
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Figura 2: Publicações por região

Em posse dos dados, traçando um paralelo entre as universidades


pesquisadas e as regiões de interesse de estudo dos alunos, é notório o
interesse, em ambos os aspectos, pela abordagem do estatuto da cidade
e sua dinâmica urbana na região Sudeste, bem como podemos inferir que
é nessa mesma região que possui universidades que mais se debruçam
sob essa ótica de estudo acadêmico.
O penúltimo dado submetida à investigação foi descobrir qual era o
nível de pós-graduação que mais publicava trabalhos sobre o tema: se
dissertação de mestrado ou tese de doutorado. No total de 36 trabalhos
encontrados na ferramenta de busca do BDTD, sete são teses de douto-
ramento e vinte e nove trabalhos são fruto de dissertações de mestrado,
como mostra a figura 3:

71
Figura 3: Tipologia das publicações

Por fim, em sede de último dado analisado e tabulado, por considerar a


Autora um dos mais relevantes para sua pesquisa, está quais as áreas de
conhecimento que acolhem o estatuto da cidade com um enfoque teórico.
Para a pesquisa, se analisou individualmente as monografias apresenta-
das e destacou-se qual era o departamento ou curso do qual provinha o
trabalho. Eis os resultados:

Figura 4: áreas de conhecimento

72
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Amparada nos dados acima, a Autora pode avultar a hipótese da mul-


tidisciplinaridade da Lei do Estatuto da Cidade, enquanto são bastante
diversificadas as áreas de conhecimento, pois em um universo global de
36 trabalhos, 9 cursos aparecem como origem de publicação.
Entrementes, mais inequívoco ainda se mostra a importância que tem
o Estatuto da Cidade para a área de Direito e Arquitetura e Urbanismo,
sendo os dois cursos (cabe aqui ressaltar que cursos de instituições diferen-
tes) que mais tem trabalhos publicados na área. Ou seja, há, claramente,
uma interdisciplinariedade que perpassa o tema abordado, mostrando
sua importância e necessidade de entendimento sob enfoques diferentes
e complementares.

4 CONCLUSÃO

Tomando por base os conhecimentos teóricos e análise de dados acima


delineadas, percebe-se que o presente estudo ganha relevância em estudar,
minuciosamente, quais os trabalhos de pós-graduação, no recorte das uni-
versidade brasileiras, que se dedicam a um assunto de suma importância
para quem almeja entender a legislação brasileira pertinente a reforma
urbana, melhoria da qualidade de vida nas cidades e uso e apropriação
do solo em área urbana, qual seja o Estatuto da Cidade.
Com esse estudo, pudemos comprovar a hipótese de que ainda poucos
autores se interessam em estudar o Estatuto da Cidade, quando, a partir
da busca pela ferramenta da Biblioteca Nacional Digital –BDTD, 36 traba-
lhos foram localizados contendo o termo “Estatuto da Cidade” presente
no assunto ou como palavra chave.
De extrema importância também foi constatar a interdisciplinaridade
do tema, pois as áreas de conhecimento de mais produzem são Direito e
Arquitetura e Urbanismo, demonstrando a clara necessidade do enfoque
do assunto sob essas duas égides e sua íntima correlação.
Por fim, sugere-se a continuidade na busca do aprofundamento do
conhecimento sobre a cidade urbana e a relevância do Estatuto da Cidade

73
como mecanismo de intervenção das partes interessadas na pacificação
dos conflitos ora existentes nessa seara, prevendo-se que, no aprofun-
damento do assunto e aumento dos números de publicações, pode-se
afirmar a categórica sabedoria dos pesquisadores sobre a legislação
urbana do Brasil.

REFERÊNCIAS

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_________. A Cidade COM-FUSA. A mão inoxidável do mercado e a produção da
estrutura urbana nas grandes metrópoles latino-americanas. Revista Brasileira de
Estudos Urbanos e Regionais, v. 9, nº2, 2007.
ARANTES, O.; MARICATO, E.; VAINER, C. A cidade do pensamento único. Desman-
chando consensos. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
BAUMAN, Z. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BIBLIOTECA DIGITAL BRASILEIRA DE TESES E DISSERTAÇõES. DISPONÍVEL EM
www.bdtd.ibict.br, acessado de 15 a 20 de janeiro de 2013.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Bra-
sília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, dispõe sobre o Estatuto da Cidade.
Diário Oficial da União. Brasília, 2001.
CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO-
CNPq. Plataforma Lattes. Acessado em 09 de agosto de 2013.
FERNANDES, E. Do Código Civil ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre a
trajetória do Direito Urbanístico no Brasil. In: VALENÇA, M. de M. (Organização).
Cidade (i)legal. Rio de Janeiro: Mauad, 2008.
FONSECA, E. N. (organização). OTLET, P.; ESTIVALS, R.; ZOLTOWSKI, V.; GARFIELD,
E. Bibliometria: teoria e prática. São Paulo: Cutrix, 1986.
IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010. São
Paulo, 2010.
LEFEBVRE, Henry. O direito da Cidade. 4 ed. São Paulo: Centauro, 2006.

74
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ASSESSORIA JURÍDICA UNIVERSITÁRIA


E MOVIMENTOS DE MORADIA: A OCUPAÇÃO
MARGARIDA MARIA ALVES

Carmen Añon Brasolin


Carolina Gomes Domingues
Eugênio Mesquita Higgins Azevedo dos Santos 1

1 INTRODUÇÃO E MéTODO

Para melhor compreensão das reflexões propostas neste artigo, apre-


sentaremos de início uma breve reconstrução histórica do quadro habita-
cional excludente no Brasil, a fim de contextualizar o panorama atual da
produção e especulação imobiliária na cidade de São Paulo. A descrição
dos problemas enfrentados pela população de baixa renda, relativos à falta
de acesso à moradia adequada, especialmente no centro da cidade, virá
acompanhada da apresentação das práticas do movimento de moradia
na luta pela efetivação desse direito. Acreditamos que a exposição dos
conflitos em jogo na construção da política habitacional da cidade, que
envolvem e permeiam a experiência de assessoria jurídica que será aqui
apresentada, é fundamental para a compreensão do papel da ocupação
Margarida Maria Alves na disputa pelo direito à moradia adequada.
Em seguida será apresentado o aporte teórico sobre o qual o SAJU-USP
se apoia para orientar sua atuação enquanto grupo de extensão univer-
sitária nos moldes da assessoria jurídica universitária popular (AJUP).
Com a apresentação de nossos pressupostos queremos deixar claro que
a presente reflexão busca aprofundar a nossa práxis, como momento

1 Militantes do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da Faculdade de Direito da USP. Os e-mails são, respectivamente,
carmembrasolin@gmail.com; carolinagdomingues@gmail.com e eugenio.santo@gmail.com.

75
privilegiado da reflexão-ação dos estudantes envolvidos na assessoria
jurídica universitária popular. Buscamos, assim, produzir conhecimento
junto aos movimentos sociais para a transformação da realidade, da qual
o mundo acadêmico, em regra, se distancia - incluindo a Universidade,
de onde partimos.
A seguir, passaremos à exposição da experiência da ocupação Mar-
garida Maria Alves, apresentando sua história, seus resultados, seus
limites e suas potencialidades. Para isso, buscaremos reconstruir os fatos
e identificar os pontos críticos de sua trajetória. Com base nesse relato,
por fim, serão feitas proposições críticas sobre as decisões políticas que
desfavoreceram a conquista da moradia neste conflito, bem como alguns
apontamentos relativos às perspectivas da ação política do movimento de
moradia, cuja luta é essencial para a efetivação dos direitos.

2 O qUADRO hABITACIONAL EXCLUDENTE

As cidades brasileiras registram na configuração de sua topografia


urbana as marcas de uma sociedade profundamente desigual. A geografia
construída dos centros urbanos corresponde, invariavelmente, às típicas
hierarquias sociais de um país pertencente à periferia do capitalismo: a
nítida segregação espacial que marca seu espaço urbano expressa e traduz
o largo processo histórico de concentração de propriedade e de renda.
Trata-se de um padrão de cidade onde as distâncias sociais estão topogra-
ficamente inscritas. Seu espaço é hierarquizado e as regras que o organi-
zam “são basicamente padrões de diferenciação social e de separação”2.
O processo de urbanização das maiores cidades do país foi caracte-
rizado pelo afluxo de enormes contingentes populacionais atraídos pela
oferta de empregos. Milton Santos aponta que de 1940 a 1980 a população
urbana nacional passa de 26,35% do total para 68,86%. No final desse perí-
odo, aproximadamente 40 milhões de pessoas (33,6% da população) havia
migrado do local de origem. Somente entre 1970 e 1980 incorpora-se à

2 CALDEIRA, 2000, p. 211.

76
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

população urbana mais de 30 milhões de novos habitantes. Em 1960 havia


no Brasil duas cidades com mais de 1 milhão de habitantes: São Paulo e
Rio de Janeiro. Em 1970 havia cinco, em 1980 dez e em 1990 doze 3.
O ímpeto da crescente indústria nacional, especialmente a partir da era
Vargas, esteve na base desse gigantesco processo de migração do campo
para as cidades. A partir de 1930 o Estado adota uma forte política de in-
centivo à industrialização, sem, contudo, interferir significativamente nos
interesses da burguesia agroexportadora. Desse modo, apesar da perda da
hegemonia política dessa classe, o Estado populista evitou uma reforma
agrária, mantendo intacta a estrutura fundiária do país. De acordo com
João Whitaker Ferreira,

o desequilíbrio no acesso à propriedade fundiária, que refletia


a intensa divisão econômica e social do país, iria reproduzir-se
sistematicamente a cada novo estágio do nosso desenvolvimento.
Na transição da economia agroexportadora para a da industria-
lização incipiente, (...) a tomada de hegemonia das forças polí-
ticas liberais e industrializantes não alterou a forma com que as
cidades produziam a segregação socioespacial desde o período
anterior. (MOTISUKE e FERREIRA, 2007, p.38)

O surto industrializante iniciado na década de 1950, por sua vez,


exacerbou esse cenário: a industrialização extremamente rápida pela
qual passou o país nesse período deve-se à instalação de empresas mul-
tinacionais interessadas na possibilidade de utilização de mão de obra
barata, de modo a aumentar suas taxas de lucratividade. Consolidou-se
assim o padrão de acesso dificultado à terra urbana e, consequentemente,
a tendência à forte segregação socioespacial, ficando a população pobre
concentrada, de um modo geral, nos bairros operários do anel periférico:
de uma “industrialização de baixos salários” surge uma “urbanização de
baixos salários” 4. Essa vinda de multinacionais, ainda nas palavras de
João Whitaker Ferreira,

ocorreu sem a ampliação de um mercado interno significativo,

3 SANTOS, 1993, p. 74.


4 As expressões são de Ermínia Maricato. Vide, por exemplo, MARICATO, 2000.

77
sem a generalização de um nível mínimo de renda para a classe
trabalhadora (...). Aqui, a industrialização dos anos 1950 em
diante se dá justamente condicionada à manutenção dos baixos
salários, em um processo – do subdesenvolvimento – já ampla-
mente discutido por muitos intérpretes da formação nacional:
Rui Mauro Marini observou a ‘superexploração dos trabalhadores
periféricos’, Maria da Conceição Tavares identificou a ‘moderni-
zação conservadora’, Florestan Fernandes o ‘desenvolvimento
do subdesenvolvimento’. (MOTISUKE e FERREIRA, 2007, p. 40)

Como ensina Florestan Fernandes, esse período, que se estende até o


final da ditadura militar, expressa a opção feita pela burguesia nacional
de associar-se com os interesses de expansão do capital internacional, em
detrimento da construção de um modelo de desenvolvimento econômico
mais justo 5. Assim, em 1964 foram criados o Banco Nacional da Habita-
ção (BNH) e o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), inaugurando uma
etapa da política habitacional e urbana que significou um aprofundamento
das tendências existentes. Isso porque o BNH e o SFH se dirigiam a um
mercado restrito: as camadas de rendas médias e altas, para as quais foi
destinado cerca de 90% a 95% dos lançamentos do mercado imobiliário
formal, até 1982 6.
Nos anos 1980 e 1990, a dinâmica perversa desse processo de cres-
cimento urbano que exclui do mercado legal grande parte da população
permaneceu inalterada. Conforme argumenta Ermínia Maricato,

para dar uma ideia das dimensões do problema basta lembrar que
entre 1995 e 1999 houve um crescimento de aproximadamente
4,4 milhões de domicílios no Brasil, enquanto que uma estimativa
mostra que apenas 700.00 moradia, aproximadamente, foram
produzidas pelo mercado (IC, 2000). (MARICATO, 2000, p. 156)

O processo de urbanização do país, portanto, impôs à camada pobre de


trabalhadores a precarização da moradia. Nesse quadro, as formas de que
a população excluída do mercado lançou mão para se prover de habitação
foram, fundamentalmente, a favela e o cortiço. Assim, o problema de falta

5 OLIVEIRA, 2003.
6 A informação consta em MARICATO, 1988, p. 3.

78
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de acesso à habitação adequada está historicamente ligado ao próprio


modelo de crescimento econômico nacional, e não pode ser separado
da questão do acesso à propriedade da terra. O problema habitacional
no país é um problema estrutural: o acelerado processo de crescimento
econômico caracterizado pela grande concentração de renda – modelo
resultante do próprio processo de inserção do país na ordem capitalista
internacional – reproduziu-se com as mesmas características em relação
ao espaço urbano, imprimindo suas feições a ele. De um país desigual
surgem cidades desiguais. Trabalhadores explorados são também, afinal,
moradores espoliados.

2.1 A luta pela moradia no centro de São Paulo

O centro de São Paulo7, apesar de ser um dinâmico polo comercial que


mantém expressiva oferta de empregos, tem um dos mais baixos índices
habitacionais da cidade. Segundo os dados do IBGE, os distritos da Sé e da
República8 são os locais de maior concentração de empregos da cidade,
com 1371 e 1004 empregos por hectare 9. Apesar disso, como mostra a
comparação entre os censos de 1980 e 2000, ambas as regiões tiveram
decréscimo em suas taxas de densidade: 39% e 22%, respectivamente.
Em relação às demandas por habitação, a região se caracteriza pela
vacância de numerosos imóveis. Segundo o dossiê elaborado pela Asso-
ciação Centro Vivo, aproximadamente 10% do número total de domicílios
vazios na cidade se localiza na área central, o que representa mais de 40
mil residências vagas 10.

7 Conforme a definição adotada pelo poder público municipal na recente proposta da PPP habitacional, o centro da cidade é composto
pelos distritos da Sé, República, Santa Cecília, Consolação, Bom Retiro, Pari, Belém, Brás, Mooca, Cambuci, Liberdade e Bela Vista.
8 Utilizamos dados relativos a esses distritos porque é no subdistrito da Sé que fica a ocupação Margarida Maria Alves, motivo deste artigo.
9 SILVA, 2000, p. 26.
10 Dossiê Centro Vivo, 2007.

79
Tabela 1: Domicílios vagos nos distritos Sé e República

Fonte: IBGE, 2001 11

O significativo número de domicílios vazios se explica pela dinâmica


perversa do mercado imobiliário paulista, restrito e excludente. De um
lado, diversos terrenos e edificações permanecem abandonados, violando
abertamente a função social da propriedade urbana – assegurada pela
Constituição Federal de 1988, bem como pelos dispositivos do Estatuto
da Cidade -, à espera da valorização imobiliária da região, que é palco
de significativos investimentos públicos em equipamentos culturais, que
devem servir como ‘âncora’ para o processo de revalorização imobiliária
12
. De outro, os imóveis disponíveis no mercado imobiliário formal podem
ser negociados somente a preços altos, impensáveis para a população de
baixa renda. A esse respeito afirma Ermínia Maricato:

Na metrópole paulistana, se considerarmos que apenas as fa-


mílias que ganham 12 salários mínimos de renda ou mais tem
acesso ao financiamento residencial privado, concluímos que
mais de 60% da população estão fora do mercado. Não é por outro
motivo que as formas ilegais de moradia são quantitativamente
mais importantes que o mercado legal. Para essa população
excluída do mercado legal é que se reproduzem as formas de
provisão habitacional como os cortiços de aluguéis, as favelas e
os loteamentos ilegais, já que a promoção pública não chega a
impactar o mercado devido à baixa oferta de moradias resultantes
das políticas sociais. (MARICATO, 2000, p. 157)

11 Apud HABITARE, 2004, p. 5.


12 É nesse processo que se insere, por exemplo, o caso da Vila Itororó, junto à qual o SAJU-USP atuou por vários anos. Os moradores
da Vila foram removidos no início de 2013 pelo Poder Público, que deseja construir no local um centro cultural. O SAJU-USP apresentou
no V Congresso do IBDU, em 2008, reflexões sobre a situação da Vila, nos artigos “Vila Itororó: direito à cultura como ameaça ao direito
à moradia?” e “A experiência do SAJU-USP na Vila Itororó: assistência e assessoria podem caminhar juntas?”. Ambos os textos estão
disponíveis nos anais do Congresso, no endereço http://ibdu.org.br/eficiente/repositorio/Projetos-de-Pesquisa/congressos-e-seminarios/
anais-v-congresso-de-direito-urban%C3%ADstico-manaus-2008/194.pdf. Último acesso em 29/07/2013.

80
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

É neste cenário de desigualdade que emergem os principais movimen-


tos populares de reivindicação por moradia adequada. Os movimentos so-
ciais urbanos que reivindicam moradia no centro de São Paulo tem origem
nos anos 1980, a partir das lutas de moradores de cortiços. É, entretanto,
ao longo da década de 1990 que as lutas dos movimentos ganham força
e visibilidade: a segunda metade da década caracteriza-se pelo início das
ocupações pelos movimentos sociais de imóveis vazios como forma es-
tratégica de luta. O primeiro movimento a surgir foi a União para a Luta
de Cortiços (ULC), fundado em 1991.
Questões internas ao ULC geraram divisões que resultaram na constru-
ção de novos movimentos: a primeira, em 1993, gerou o Fórum de Cortiços
e Sem-Teto; a segunda, em 1997, gerou o Movimento de Moradia do Cen-
tro (MMC). Também devido a questões internas ao movimento, acontece
outra divisão, mas agora dentro do Fórum de Cortiços e Sem-teto, dando
origem, em 1998, ao Movimento dos Trabalhadores Sem-teto da Região
Central (MTSTRC) e, em 2000, o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC).
Em 2003, foi criado o Movimento de moradia região centro (MMRC) a
partir de famílias que antes eram ligadas ao MMC 13
, ao lado do qual o
SAJU-USP atuou na Ocupação Margarida Maria Alves.
A ocupação Margarida Maria Alves localiza-se no bairro da Luz,
onde, como consequência do abandono por parte do poder público e
do desinteresse do mercado imobiliário, o preço do solo urbano passou
por um largo processo de desvalorização. Dessa forma, nas palavras de
José Marinho Nery Jr, urbanista da Secretaria Municipal de Planejamento
(SEMPLA) em 2010:

A habitação existente [nos bairros da Luz e de Santa Ifigênia] é


povoada totalmente por pessoas muito pobres, em cortiços. Esses
cortiços deveriam ser alvo de melhorias através de instrumentos
urbanísticos, por que as condições em que essas pessoas pobres
vivem são péssimas. O problema é relacionado ao atendimen-
to habitacional. A região precisaria de um instrumento mais
adequado, um que estimulasse uma política habitacional para
justamente fazer com que ela seja ocupada no período noturno.
(SOUZA, 2011, p.140)

13 Conforme NEUHOLD, 2009.

81
Para essa região o poder público tem um projeto de “revitalização”:
trata-se de um projeto que “se iniciou na década de 1970 e ficou pairan-
do na história da política urbana de São Paulo desde então. O projeto foi
abandonado e retomado diversas vezes, em cada momento com um novo
formato até alcançar este, que quer ser definitivo” 14. O urbanista refere-
-se ao Projeto Nova Luz, que era a exata expressão da política urbanística
desenvolvida pelo poder público, que desconsidera todas as possíveis
alternativas à resolução do problema da miséria extrema no centro da
cidade, ao optar pela completa substituição do padrão de vida no bairro.
O prédio ocupado pela ocupação Margarida Maria Alves funcionava, in-
clusive, como a secretaria executiva do projeto Nova Luz.

Essa área não é uma área morta, para ‘revitalizar’, é uma área que
possui problemas de funcionamento. Parece-nos que a definição
do problema no bairro da Santa Ifigênia (...) desconsideraram a
vida que lá existe, como se os mais pobres – prostitutas, camelôs,
encortiçados, desempregados e catadores de lixo – não existis-
sem. Estariam mortos, de acordo com essa perspectiva. A vida
presente é a vida de pessoas pobres, que justamente ocupam
alguns pontos da região porque ela não era mais alvo do interes-
se do mercado imobiliário. As edificações existentes perderam
preço e se tornaram espaço para abrigar exatamente quem não
possui condições financeiras para participar do mercado, ou
que participa dele com relações muito informais ou irregulares.
(SOUZA, 2011, p. 140)

3 OS PRESSUPOSTOS TEóRICOS DA AJUP

O SAJU-USP é um grupo auto-organizado formado por estudantes de


direito que busca, nos moldes da extensão universitária popular e a partir
da atuação junto aos movimentos de moradia do centro de São Paulo, aliar
o ensino e a pesquisa acadêmicos ao conhecimento popular. Enquanto
a extensão tradicional carrega um forte elemento de “responsabilidade
social da universidade” 15
- e no ensino superior jurídico se manifesta na

14 SOUZA, 2011, p. 141.


15 BOAVENTURA apud FURMANN, 2006, p. 45. “(...) que se traduziu na crítica do isolamento da universidade, na torre de marfim
insensível aos problemas do mundo contemporâneo, apesar de sobre eles ter acumulado conhecimentos sofisticados e certamente
utilizáveis na sua resolução”.

82
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

forma dos escritórios-modelos de prática jurídica -, a extensão popular


surge como contestação desse molde de “via de mão única”, no qual o
saber universitário, “superior” e “capaz”, é aplicado sobre a sociedade,
objeto passivo e distante do meio acadêmico. A extensão popular reivin-
dica um modelo “via de mão dupla” pois considera que o conhecimento
científico e o conhecimento popular possuem igual valor. Desse modo,
procura fazer com que o saber popular entre na universidade, de modo a
conjugar os dois saberes e erradicar a dicotomia sociedade-universidade. É
evidente, portanto, a intenção de democratizar a universidade pela prática
da extensão popular 16.
Assim, em contraposição ao estilo apático do “escritório-modelo”
surge no ensino superior jurídico o aporte teórico e prático da Assessoria
Jurídica Universitária Popular (AJUP), que define nosso modo de atuação.
As diferenças metodológicas entre assistência jurídica e assessoria jurí-
dica são muitas. A assistência ratifica a ordem capitalista, na medida em
que não se compromete com alterações na situação social dos assistidos,
mas apenas com a resolução individual dos casos 17
; já a assessoria ju-
rídica se caracteriza fundamentalmente pela opção político-ideológica
de luta pela democracia material por meio da atuação conjunta com os
sujeitos oprimidos.
Os princípios apresentados a seguir18 resumem os valores das AJUPs, e
revelam seu principal conteúdo teórico: o método de educação popular de
Paulo Freire. Para além da resolução do problema do oprimido, de forma
bancária e anti-dialógica, o “agir” ajupiano baseia-se na “ação dialógica”,
revolucionária. Essa forma de agir tem como pressuposto a “co-laboração,
a união, a organização e a síntese cultural”, em contraposição a ação
anti-dialógica que pressupõe “conquista, dividir para manter a opressão,
manipulação e a invasão cultural” 19.

16 Sobre o debate da extensão, conferir MIRANDA, 2010.


17 FURMANN, 2006, p.69.
18 Nesse trabalho, nos guiaremos pela definição principiológica apresentada pelo SAJUP-UFPR em 2003, durante uma oficina de
capacitação.
19 FREIRE, 1987, p. 67.

83
3.1 Princípios AJUPianos

Conforme ensina Ivan Furmann (2003), quatro princípios norteiam a


atuação dos assessores universitários: a superação do individualismo e pre-
ferência pelo coletivo; a participação comunitária e acadêmica horizontais
para conscientização, de modo a negar o paternalismo e a subordinação;
a construção de um direito crítico, que se contraponha ao o dogmatismo
e ao positivismo jurídicos e a presentificação, que nega o absenteísmo.
A superação do individualismo é o primeiro princípio. Com ele, busca-
-se fazer a leitura da realidade em conjunto com o assessorado, de forma
coletiva e totalizante. Isso significa enfrentar, por exemplo, os problemas
de moradia não como um problema especial daquele específico movi-
mento, ou individualizar os casos dos participantes do movimento, mas
perceber que os problemas são coletivizados por outros movimentos de
moradia da cidade, e que fazem parte do todo social.
Por isso, é necessário o entendimento do contexto político em que
a cidade está inserida, quais são os sujeitos que promovem mudanças
privatizantes na cidade e quais são os aliados que estão na resistên-
cia desse processo, e dentre esses, quais são os que compartilham do
mesmo horizonte que o nosso. Nesse sentido, é que temos a “união” e
a “organização” da ação dialógica inscritos como princípios ajupianos:
perceber a luta social como necessariamente coletiva, devendo ser en-
frentada em comunhão.
O segundo princípio é a negação do paternalismo que os métodos
tradicionais de assistência jurídica promovem. A assessoria jurídica se
vale de pressupostos da educação popular freiriana, que tem como prin-
cípio a horizontalidade de saberes. Dessa forma, o saber universitário-
-científico e o saber popular-vivido podem ser igualmente valorizados. A
postura paternalista se limita a aplicar o saber técnico para a solução do
caso, subordinando o assistido; a postura horizontalista conjuga o saber
técnico com saber dotado de saberes de vida, a ponto de se auto-anular
– deixar de ser necessário, em função da conscientização e emancipação
do sujeito oprimido.

84
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Dessa forma, busca-se a “co-laboração” e a “síntese cultural” com o


movimento popular, por meio da troca de saberes. Na medida em que o
sujeito ajupiano detém as possibilidades jurídicas em seu horizonte, o mi-
litante do movimento de moradia conhece a materialidade de se realizar
uma ocupação em determinado momento, contrariando as expectativas
do “sagrado direito à propriedade”. 20
O terceiro princípio é a prática e reflexão no sentido de criticar o dog-
matismo e o positivismo jurídico. Esse princípio abarca desde a litigância
estratégica com os assessorados para garantir posições táticas no judi-
ciário por meio do instrumento processual até a reflexão crítica sobre o
direito na academia.
Esse princípio resguarda dois grandes valores ajupianos. O primeiro é
a possibilidade do uso tático do direito como meio para conquistar ganhos
materiais e como tema-gerador da educação popular para a crítica do
direito, do Estado e da sociedade. O segundo é a interação do estudante
com a Universidade e o meio acadêmico em geral – uma forma de efetivar
a segunda via do saber e da prática popular na extensão universitária -,
efetivando a comunicação entre sociedade e universidade 21.
Enfim, por presentificação entende-se a percepção do estudante como
sujeito presente não só como técnico universitário do direito, mas como
humano que compartilha valores e percepção de mundo do assessorado.
É negar a postura de distanciamento trazida pelo papel social que ocupa
(estudante universitário, por exemplo) com intuito de efetivamente estar
ao lado do movimento popular a ponto de lutar pelo mesmo objetivo e
pensando com a mesma carga axiológica, percebendo-se como parte
dos conflitos sociais. Retomando a comunhão na luta, citada no primeiro
princípio, a presentificação é a ação de se tornar parte na luta popular,
de escolher o lado do oprimido. Esclarecendo, finalmente: a assessoria
jurídica é escolha política, para além dos métodos diferentes da assistência.

20 Wolkmer designa o pluralismo jurídico como sendo “a multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço sócio-
-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais,
materiais e culturais”. WOLKMER, 2001, p. 219.
21 Conferir FREIRE, 1968.

85
4 DIREITO à MORADIA E A LUTA DA
OCUPAÇÃO MARGARIDA MARIA ALVES

4.1. “Enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito”

Este lema traduz a história da luta pela efetivação do direito à mora-


dia, previsto no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 e amplamente
assegurado pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001). Surgida
por ação espontânea e/ou organizada de grupos sem terra e sem teto,
ocupar já é prática tradicional em diversos momentos sociais urbanos:
sua intenção é a de, por meio da entrada e permanência em um terreno
ou imóvel ocioso, denunciar o descumprimento da função social da pro-
priedade e reivindicar políticas habitacionais para a população de baixa
renda. No ano de 2013, a prefeitura de São Paulo registrou 47 imóveis
ocupados apenas no centro da cidade 22.
Ocupar é tática do movimento de moradia que, além de fornecer às
famílias habitação provisória até que haja atendimento habitacional 23
,
vem acompanhada de propostas de reciclagem dos prédios, construção
de moradias populares e efetivação de outras políticas habitacionais. É
também pela compreensão de que o direito à moradia não se restringe a
um teto e quatro paredes, mas se refere ao direito de toda pessoa de ter
um lar e uma comunidade seguros para viver em paz, com dignidade e
saúde física e mental que se faz necessária essa pressão dos movimentos
sociais. Segundo a relatoria da ONU para o direito à moradia adequada,
o direito à moradia deve incluir: segurança da posse; disponibilidade de
serviços, infraestrutura e equipamentos urbanos; custo acessível, habita-
bilidade; localização adequada; adequação cultural e não discriminação
e priorização de grupos vulneráveis 24.

22 De acordo com o noticiado em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/07/1315769-palco-de-clipe-dos-racionais-pre-


dio-invadido-sera-moradia-popular.shtml. Último acesso no dia 24/07/2013.
23 Exceção feita às ‘ocupações relâmpago’, que, com o intuito de apenas pressionar o poder público, são intencionalmente desocu-
padas após pouco tempo.
24 De acordo com a definição da relatoria especial da ONU para o direito à moradia adequada. Vide http://direitoamoradia.org/?page_
id=46&lang=pt. Acessado em 29/07/2013.

86
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

É na luta pela efetivação deste direito que surgiu a ocupação Margarida


Maria Alves: em ação articulada pelo Movimento de Moradia da Região
Centro (MMRC), no dia 7 de Janeiro de 2013, famílias ocuparam o prédio
da Rua General Couto de Magalhães, na região da Santa Ifigênia, em São
Paulo 25. Posteriormente, o imóvel foi ocupado por famílias do movimento
Instituto de Lutas Sociais (ILS) e do movimento Unificação das Lutas de
Cortiços (ULC). O alvo era um imóvel de propriedade do município, que
funcionava como secretaria do projeto Nova Luz da gestão anterior de Gil-
berto Kassab (PSD), que visava a “revitalização” da área central da cidade.
O objetivo da ocupação era de pressionar a nova gestão de Fernando
Haddad (PT) para a construção de moradia popular no centro, usando para
isso o simbólico prédio sede de um projeto que contrariava as reivindi-
cações dos movimentos de moradia. Ainda mais simbólica tornou-se a
ocupação pelo fato de que a gestão Kassab prometeu ceder o terreno ao
Instituto Lula para a construção do Memorial da Democracia 26
. Assim,
desde o início já se instalou o diálogo com a prefeitura, que demonstrou
interesse na rápida desocupação do prédio para sua demolição. O conflito
de interesses é claro e encontrou nas palavras do coordenador do MMRC
sua exata expressão: “Não concordamos que primeiro o Lula tenha o
memorial dele e depois venha a moradia popular... Só saímos daqui com
moradia para todas as famílias” 27.
Pelo histórico de apoio do movimento de moradia ao Partido dos Tra-
balhadores (PT) em São Paulo e pelas promessas de campanha do prefeito
Fernando Haddad dirigidas para as reivindicações dos movimentos, as
negociações da Ocupação Margarida Maria Alves ocorreram tanto em
conversas individuais entre os líderes da ocupação e representantes do
poder público, quanto em reuniões amplas do movimento de moradia

25 Conforme veiculado nos endereços: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2013-01-07/grupos-de-sem-teto-ocupam-predios-


-na-regiao-central-de-sao-paulo.html e http://www.youtube.com/watch?v=yJ63Es6tyq0. Último acesso em 25/07/2013.
26 “O Instituto Lula diz que assumirá todos os custos da construção do museu e ressalta que o terreno será cedido pela prefeitura
por meio de concessão administrativa – isto é, sem transferência de posse”. Vide http://noticias.r7.com/brasil/noticias/instituto-
lula-confirma-construcao-de-museu-na-nova-luz-20120202.html e http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2012/05/vereadores-
aprovam-em-definitivo-concessao-de-terreno-a-instituto-lula. Acessado em 25/07/2013.
27 Conforme notícia veiculada pelo Jornal Luzilândia, disponível no sítio http://www.jornaldeluzilandia.com.br/txt.php?id=22296.
Último acesso em 29/07/2013.

87
com a Secretaria de Habitação. O contato inicial da nova gestão com o
movimento de moradia foi ainda tensionado pelo desacordo relativo à
indicação de José Floriano como Secretário de Habitação, por indicação
do Partido Progressita (PP).

4.2. A consolidação da ocupação e a articulação da luta

A consolidação da ocupação ocorreu paulatinamente, pela organização


de seus moradores em mutirões de retirada dos entulhos que obstruíam o
prédio, liberando diversos apartamentos, e com a chamada de colaborado-
res pelos líderes do movimento, como nós do SAJU USP pela proximidade
com o coordenador do MMRC. A primeira mobilização ocorreu contra o
corte da energia elétrica no prédio e a ostensiva presença da Guarda Civil
Metropolitana (GCM) que, com o suposto objetivo de preservar o prédio,
mantinha permanentemente uma viatura em frente a ocupação, chegando
a impedir a retirada de lixo e até a entrada e saída dos moradores. O ato
obteve resultados: o movimento conseguiu a retirada da GCM da porta
do prédio e uma reunião com a Secretaria de Habitação para resolver do
problema da luz, que foi religada poucos dias depois.
A partir de então, além de acompanhar os líderes em reuniões com o
poder público, o SAJU-USP, por acreditar que a mobilização popular tem,
para além da função de trazer a tona os problemas relativos à falta de
moradia, dando visibilidade às demandas populares, o mérito de mobilizar
e conscientizar - em um largo processo pedagógico - seus integrantes
durante o processo de luta política por direitos, buscou incentivar a orga-
nização e o empoderamento dos moradores. Assim, inicialmente, o SAJU
promoveu algumas reuniões para se aproximar dos moradores, passou a
participar das assembleias mensais do movimento e a se envolver com as
atividades desenvolvidas no prédio, como a exibição de filmes no térreo e
as refeições comunitárias. Em pouco tempo surgiu um pequeno jornal da
ocupação, intitulado “Palo Seco”, que publicava as mobilizações feitas e
convidava para as próximas; ocorreu também a nomeação da ocupação

88
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

em homenagem à militante paraibana Margarida Maria Alves, defensora


dos direitos dos trabalhadores rurais 28.
Porém, o grau de proximidade e envolvimento do grupo era tímido
e, com o objetivo de pensar em um projeto mais consistente de atuação
junto à ocupação, decidimos realizar um grande censo com as moradoras
e moradores, a fim de identificar o perfil, as necessidades e os interesses
gerais. As questões levantadas mostraram a realidade dos ocupantes,
que já era esperada: poucos com ensino médio completo, a maior parte
compondo núcleos familiares, ocupando postos de trabalho precariza-
dos, sem emprego fixo ou desempregados, ninguém com remuneração
acima de três salários mínimos, usuários dos serviços públicos de saúde
e educação básica, antigos moradores de regiões periféricas da cidade
ou de outros estados, alguns que estiveram em situação de rua, usuários
em longos períodos de transporte público todos os dias, a grande maioria
ocupando um prédio pela primeira vez, sendo também o primeiro contato
com movimento social.
Esta breve caracterização esclarece o motivo que leva à prática política
da ocupação de prédios vazios: a falta de alternativa habitacional a que a
classe trabalhadora está submetida, do que resulta não apenas a negação
do direito à moradia, mas também de outros direitos correlatos como o
acesso à educação, a creches, a unidades de saúde básica, a aparelhos
de lazer, a transporte público e a saneamento básico. Todos os ocupantes
moravam anteriormente de aluguel ou em moradias precárias do centro
da cidade, como cortiços, ou em regiões bem afastadas, o que, em todos
os casos, representava uma quantia insustentável face ao orçamento da
família, que enfrentava o dilema de pagar o aluguel ou ter dinheiro sufi-
ciente para alimentação.
Embora nada nestes dados seja novidade, a situação da Ocupação
Margarida Maria Alves é um exemplo de como o direito à moradia se
entrelaça em relação interdependente com diversos outros direitos. Sua
breve história sinaliza a importância de a classe trabalhadora reivindicar

28 Sobre a vida de Margarida Maria Alves: http://www.mst.org.br/node/10399. Acesso em: 27/07/2013.

89
uma moradia na região central de São Paulo: ainda que a ocupação não
signifique uma moradia definitiva ou mesmo adequada, já que as condições
estruturais do prédio eram ruins, os moradores obtiveram condições de
vida melhores. As melhorias vêm com a proximidade do local de trabalho,
com a oferta de transporte público integrada, com os equipamentos de
saúde - tão escassos na periferia (principalmente os mais específicos, como
de saúde da mulher e do idoso) -, com a proximidade de creches e escolas
estaduais para as crianças, com possibilidade de uso de equipamentos de
lazer e até com a maior garantia da integridade física, uma vez longe da
típica violência policial nas comunidades periféricas.

4.3. O projeto de mobilização e a


escola popular Margarida Maria Alves

O SAJU atuou na ocupação com o objetivo de fortalecer a luta pelo


acesso a esses direitos, contribuindo para a permanência das famílias no
prédio até que houvesse o atendimento habitacional definitivo. Por acredi-
tarmos na importância da mobilização política, o grupo buscou aprofundar
o caráter pedagógico desta luta, em um processo de troca de saberes e
de conscientização mútua. Nosso objetivo foi o de refletir criticamente,
junto com os moradores e a partir da luta concreta do movimento, sobre
sua experiência concreta de negação do direito à moradia. Assim, em
parceria com o movimento organizamos uma escola popular dentro do
espaço da ocupação, que funcionou como uma escola de alfabetização de
adultos, composta por moradores da Ocupação Margarida Maria Alves, da
Ocupação Mauá, e por funcionárias da Pinacoteca, que se aproximaram
desta articulação de professores e estudantes voluntários.
O SAJU passou a realizar às sextas feiras, no espaço desta escola, ro-
das de discussão nos moldes da educação popular, partindo de temáticas
do movimento ou do cotidiano da ocupação. As discussões abarcavam
reflexões sobre a organização do espaço da cidade, a falta de participa-
ção popular nas decisões políticas, o desinteresse do poder público pela

90
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

população pobre, o funcionamento da estrutura estatal e as dificuldades


enfrentadas pela ocupação em ver sua demanda atendida. Como a maioria
dos participantes da escola eram mulheres, mostrou-se também neces-
sário realizar o debate de gênero, que se imbricava nas diversas outras
temáticas. Para melhor aproveitamento do momento de aprendizado de
todos, educadores-educandos e educandos-educadores, buscamos utili-
zar diversos meios de debate, como vídeos, filmes, notícias, elaboração
de cartazes.
Este processo pedagógico foi muito bem recebido pelos moradores,
apesar da dificuldade da participação, já que as aulas eram sempre à noi-
te, após exaustivas jornadas de trabalho e por vezes no mesmo horário
reservado para a realização de tarefas domésticas. A melhor compreensão
de como funciona o próprio movimento de moradia em que se inserem,
de quais são os interesses do mercado imobiliário e das construtoras e
de quem está por trás das dificuldades do acesso à moradia empoderou
a luta da ocupação ao contribuir para a desmistificação da realidade que
os oprime, evidenciando a necessidade de ação transformadora por parte
dos moradores e engajando-os ao movimento.
Para o grupo, significou o constante desafio de conciliar, como es-
tudantes, os conhecimentos jurídico-dogmáticos relativos ao direito à
moradia com a realidade da ocupação, o que nos aproximou do saber
popular, com a perspectiva de que, nas palavras de Ivan Furmann, o di-
reito possa “servir para retirar o véu da dominação social, desmascarar a
sociedade e auxiliar a conscientização da classe oprimida”, expondo suas
contradições e revelando sua realidade política, “desenvolvendo no povo
brasileiro algo que lhe é estranho, a experiência democrática através do
diálogo político” 29.

29 FURMANN, 2005.

91
4.4. Os limites do acesso à habitação
digna e a luta dos movimentos de moradia

Durante todo o tempo de ocupação, a proposta por parte da prefeitura


limitou-se a cadastrar as famílias indicadas pelos movimentos na Secre-
taria de Habitação, por meio de um arrolamento, que é posteriormente
utilizado para inscrição em programas habitacionais. Visto que, na prática,
o tempo de espera pelo atendimento definitivo após a inscrição no pro-
grama habitacional é de quatro ou cinco anos, o arrolamento não abarca
as necessidades habitacionais dos ocupantes, que são imediatas.
Porém, depois de um princípio de incêndio em um dos quartos da
ocupação, causado intencionalmente após um caso de violência domés-
tica contra uma moradora, a prefeitura decidiu se utilizar do incidente
para impressionar e pressionar as famílias. Os danos causados pelo fogo
foram mínimos, atingindo apenas alguns móveis, tendo sido controlado
pelos próprios moradores. Apesar de factualmente não ter ocorrido ne-
nhum dano estrutural, o poder público alegou que o laudo técnico feito
pelo engenheiro na vistoria condenava o prédio, impossibilitando que as
famílias nele permanecessem, demandando sua desocupação imediata
com a contrapartida de um ‘auxílio’ de 900 reais (também conhecido como
“cheque-despejo”) para cada família e abrigo em albergue por alguns dias.
Nas assembleias dos moradores, desde muito antes das negociações
de remoção formais, já se discutia entre as famílias a alternativa que a
prefeitura costuma oferecer ao movimento: cheque despejo, parceria social
(auxílio de 300 reais para aluguel) e albergue. Em oficinas, os próprios
moradores enxergavam essas alternativas com grandes ressalvas, já que
de forma alguma garantiam o acesso à moradia, além de dividir a luta do
movimento, expulsando cada morador para um canto da cidade. Assim,
quando do episódio do incêndio, mesmo sob forte pressão externa, a
decisão dos moradores foi por ficar no prédio e rejeitar a proposta de al-
bergue e cheque despejo. Um ato foi marcado já para a semana seguinte,
reivindicando a permanência das famílias e repudiando a política habita-

92
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

cional baseada em cheques despejo e albergues, cobrando da prefeitura


as prometidas habitações populares no centro.
O ato gerou grande repercussão na mídia30, contando com o apoio de
diversos coletivos, como a UMM (União dos Movimentos de Moradia) e
o MPL (Movimento Passe Livre), o que resultou em novas negociações e
a proposta final da prefeitura de oferecer programas de “parceria social”
para 80 famílias dos movimentos ocupantes. Ou seja, o pagamento de 300
reais por 30 meses, com possibilidade de renovação, até o momento do
atendimento habitacional definitivo, política oriunda da gestão passada que
falhou no seu propósito, alvo de críticas e controvérsias 31. A avaliação dos
movimentos foi positiva; a oferta foi tomada como uma conquista já que
a gestão atual não concedia mais a “parceria social” por inchar os gastos
financeiros do município. Além disso, outras comunidades e localidades
sofrem também com desocupação por localizarem-se em área de risco
ou risco iminente, e poderiam passar a usufruir do precedente aberto pela
prefeitura, cuja política se restringia aos “cheques-despejo”, depositando
toda a solução para o problema na promessa de campanha de construção
de 55 mil moradias em São Paulo 32.
A ocupação Margarida Maria Alves chega, após 6 meses de luta, a
seu fim. A conjuntura da política habitacional da cidade mostra-se desfa-
vorável ao à atuação do movimento em sua luta pelo acesso à moradia
digna. Apesar de os moradores não desejarem desocupar o prédio e de a
prefeitura nunca ter apresentado o laudo técnico que condenava o prédio,
as famílias sairão em agosto. O desafio será mantê-las próxima ao movi-
mento, já que a perspectiva é de que elas retornem às regiões periféricas
e à moradias precárias.

30 Algumas páginas online que veicularam o ato são:http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/sp-ato-por-moradia-defende-ocupacao-


-de-predio-doado-para-instituto-lula,74f05a963f4af310VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html, e http://saopaulo.mpl.org.br/2013/07/09/
informes-dos-atos-da-ultima-semana/. Acesso em : 24/07/2013.
31 Para a polêmica relativa ao bolsa-aluguel: http://redeextremosul.wordpress.com/2011/05/19/conjuntura-sobre-o-bolsa-aluguel/.
Acesso em: 28/07/2013.
32 Conforme promessa de campanha de Fernando Haddad: http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/node/18964. Acesso em: 28/07/2013.

93
5 REFLEXÕES SOBRE OS LIMITES DO ACESSO à MORADIA
DIGNA E SOBRE A LUTA DOS MOVIMENTOS DE MORADIA

“Tanta casa sem gente tanta gente sem casa”

É dever do Poder Público efetivar o direito fundamental à moradia,


não podendo se abster, tampouco dar ensejo à sua violação. Portanto,
é imprescindível que a prefeitura, ao realizar uma remoção, ofereça al-
ternativas habitacionais capazes de assegurar a manutenção do direito
à moradia adequada. No caso da ocupação Margarida Maria Alves, por
exemplo, outras possibilidades jurídicas poderiam ter sido levadas em
consideração, como a concessão de uso para fins de moradia, a autori-
zação de uso para fins de moradia, a concessão de direito real de uso e a
locação social, mecanismos previstos pelo artigo 5º do decreto municipal
48.832/2007, aplicável ao caso. Ignorando todas as possibilidades de
regularização do prédio e da área, a prefeitura tampouco apresentou o
laudo técnico que supostamente caracterizaria o risco da ocupação, na
contramão das orientações sobre os casos de remoção.
Os movimentos de moradia apontam críticas e propostas para a política
urbana e habitacional de São Paulo, que atualmente se mostra insusten-
tável, muito longe tanto da efetivação da legislação em vigor quanto da
resolução das demandas por habitação. Diversos mecanismos jurídicos
considerados progressistas advindos com o Estatuto da Cidade ainda não
foram implementados, como o IPTU progressivo, e os que foram são alvo
de intensas críticas, como a demarcação das ZEIS 3 (Zona Especial de
Interesse Social), no âmbito do Plano Diretor Estratégico, cujo objetivo
seria o de priorizar o acesso à moradia para a população de baixa renda na
região central, por meio da construção de Habitação de Interesse Social.
Entretanto, o critério utilizado para a definição de quais famílias serão
atendidas, qual seja, o do valor da renda mensal, não corresponde à faixa
econômica em que majoritariamente se encaixam aqueles que compõem
o movimento. A maior parte das famílias da ocupação Margarida Maria

94
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Alves, por exemplo, tem renda entre 0 e 3 salários mínimos, faixa em


geral não atendida pelos projetos de habitação popular, do que decorre
a preocupação de que as atuais propostas de construção de moradia no
centro não atendam aos interesses dos movimentos populares.
Assim, as exigências do movimento incluem a redefinição e a efetiva-
ção de projetos de construção de habitação de fato popular, a adoção de
mecanismos que viabilizem e promovam a autogestão, e a reformulação
da proposta do poder público de construir habitações no centro para a
população de baixa renda por meio de parcerias público privada 33
. As
demandas convergem no sentido da qualificação das políticas públicas
de moradia, que não devem limitar-se na “entrega de unidades”, mas que
devem concretizar o direito à moradia adequada.
Os movimentos de moradia, por catalizarem demandas concretas
e urgentes, inerentes à vida cotidiana de seus integrantes, são agentes
políticos essenciais ao processo de construção democrática da cidade e
devem ter suas reivindicações ouvidas. O poder público deve acolher suas
propostas e instituí-las, garantindo a participação organizada dos setores
populares nesse processo. Nesse sentido, os espaços de participação
popular, como os Conselhos Gestores das ZEIS (frequentemente alijados
do processo decisório), representam a forma mais efetiva de garantir a
articulação entre os interesses levantados pela mobilização popular e os
planos do poder público.
Apesar da existência de uma série de garantias legais, os rumos da
política habitacional da cidade depende quase exclusivamente dos inter-
esses políticos e econômicos das gestões municipais. Esta não tem força
ou interesse de barrar a influência da especulação imobiliária, das con-
strutoras e empreiteiras. Nesse quadro, a luta política dos movimentos de
moradia é a melhor alternativa para a população pobre que ver efetivados
os seus direitos. Ao pressionar o poder público a organização popular é

33 As críticas dos movimentos de moradia à forma como tem sido conduzida a proposta são muitas, e incluem a crítica à indefinição
sobre a execução da desapropriação e à falta de participação popular por meio dos Conselhos Gestores das ZEIS 3. A Carta Aberta
“Questões para a PPP da ‘Casa Paulista’ para o centro de São Paulo” pode ser acessada no endereço http://raquelrolnik.wordpress.
com/2013/04/22/os-perigos-da-anunciada-parceria-publico-privada-de-habitacao-no-centro-de-sao-paulo/. Último acesso em 29/07/2013.

95
capaz de obter resultados concretos que não viriam sem ela.
Nessa perspectiva, acreditamos que é importante articular o conheci-
mento universitário com a luta dos movimentos sociais populares. Projetos
como o da escola popular, que possibilitam tanto a alfabetização quanto a
formação política de seus membros, são essenciais para que o movimento
cumpra com o papel de mobilizar sua base, transformando o horizonte
político dos envolvidos no sentido de lutar de modo qualificado para obter
ganhos concretos. Na perspectiva do SAJU, é necessário criar centros de
referência na formação dos militantes do movimento de moradia, com
escolas populares que possibilitem também a formação de lideranças.
Como estudantes universitários acreditamos que é essencial resta-
belecer a ligação entre o conhecimento acadêmico e o saber popular,
de tal modo que o primeiro se construa a serviço deste. Nesse sentido, é
necessário incentivar projetos que fortaleçam os movimentos sociais e
contribuam para sua luta política, como é o caso das assessorias, sejam
elas jurídicas, de arquitetura, de engenharia ou de assistência social.
Projetos de extensão popular que atuem diretamente com movimentos
sociais democratizam a universidade pública, aproximando-a de sua
verdadeira função social.

REFERÊNCIAS

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tro de São Paulo: propostas e reivindicações para políticas públicas. São Paulo, 2007.
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______. Novas tendências da extensão universitária em Direito. Da assistência jurídica à
assessoria jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 627. Disponível em: <http://

96
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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Convênio MCT/DINEP/FVA–HABITARE 2004. Disponível em: < http://reabilita.pcc.
usp.br/Textos_tecnicos/Relatorio_Tecnico_Parcial.pdf >. Acesso em: 30 jul. 2013.
MARICATO, Ermínia. A cidade é um grande negócio. Teoria e Debate n° 03, junho
de 1988. Disponível em: < http://www.teoriaedebate.org.br/materias/sociedade/
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M. e CYMBALISTA, Renato (orgs.). Planos Diretores Municipais: novos conceitos de
planejamento territorial. São Paulo: Annablume, 2007.
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de São Paulo. 165 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – FFLCH, USP, 2009.
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SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.
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bHab FAUUSP, 2000. Disponível em: <http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/
biblioteca/textos/silva_habitacaocentro.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2013.
SOUZA, Felipe Francisco de. A Batalha pelo Centro de São Paulo: Santa Ifigênia,
Concessão Urbanística e Projeto Nova Luz. São Paulo: Paulo’s Editora, 2011.
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico – fundamentos de uma nova cultura
no direito. São Paulo: AlfaOmega, 2001.

97
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Copa legal é Copa que respeita os direitos


humanos: uma experiência de pesquisa,
extensão e capacit(ação) coletiva em Direito
Urbanístico no município de Porto Alegre*.
Betânia Alfonsin1
Bruno Nunes Siufi2
Fernanda Peixoto Goldenfum3
Geórgia de Macedo Garcia4
Giani Camargo Cazanova5
Joana Prates Garcia Scorza6
Juliane Angélica Palharini7
Raquel Marramon8
Roberta Andrade9
Viviane Guimarães Oliveira10

1 INTRODUÇÃO

Desde que o Estatuto da Cidade foi promulgado, em 2001, um dos


maiores desafios para que a lei que regulamenta a política urbana no
Brasil alcance efetividade diz respeito à difusão do conteúdo da nova
ordem jurídico-urbanística junto aos gestores públicos, aos operadores
jurídicos e ao conjunto da população11. A falta de informação retarda a

1 Betânia Alfonsin é professora da Faculdade de Direito da FMP. Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão
em Direito Urbanístico da FMP e Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. betania@via-rs.net
2 Bruno Nunes Siufi é Estudante de Graduação em Direito na FMP. Funcionário do Banco do Estado do Rio
Grande do Sul (Banrisul). brunosiufi@yahoo.com.br
3 Fernanda Peixoto Goldenfum é Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. Pós-graduanda em
Direito Público-Direito Municipal pela FMP/ESDM. fernandagoldenfum@hotmail.com
4Geórgia de Macedo Garcia é estudante de Graduação em Direito pela FMP. georgiademacedog@hotmail.com
5 Giani Camargo Cazanova é Bacharela em Direito pela FMP. Pós-graduanda em Direito Municipal pela Escola
Superior de Direito Municipal (ESDM). Integrante do SAJU/UFRGS. giani.cazanova@gmail.com.
6 Joana Prates Garcia Scorza é Bacharela em Direito pela FMP. jogscorza@yahoo.com.br
7 Juliane Angelica Palharini é Bacharela em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela ULBRA-
-RS. Estudante de graduação em Direito pela FMP. j.aprs@hotmail.com
8 Raquel Marramon é Bacharela em Psicologia pela UFCSPA. Estudante de graduação em Direito pela FMP.:
raquelmarramon@gmail.com
9 Roberta Andrade é estudante de Graduação em Direito pela FMP. betasandrade@gmail.com
10 Viviane Guimarães de Oliveira é Bacharela em Direito pela FMP. Estudante do PROPUR - UFRGS.
viviane.direitourbanistico@gmail.com

11 A propósito, ver FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. A construção do Direito Urbanístico Brasilei-
ro: desafios, histórias, disputas e atores. In: Coletânea de Legislação Urbanística: normas internacionais,
constitucionais e legislação ordinária. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 14.

99
construção de políticas urbanas e uma jurisprudência mais avançada em
matéria de conflitos fundiários urbanos e que reconheça, de fato, efeitos
jurídicos concretos às funções sociais da cidade e da propriedade. Neste
contexto, assume centralidade como tarefa para garantir a consolidação
do Direito Urbanístico no Brasil, o ensino jurídico, bem como as atividades
acadêmicas de pesquisa e extensão nesta área.
Constatada a necessidade de incidir na formação dos futuros opera-
dores jurídicos, a Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do
Ministério Público - FMP, incluiu na matriz curricular do Curso de Direito
a disciplina de Direito Urbanístico, desde o ano de 2007. A fim de integrar
a essa formação as dimensões de pesquisa e extensão, indispensáveis a
uma Instituição de Ensino Superior12, foi fundado o Grupo de Pesquisa e
Extensão em Direito Urbanístico da FMP, no ano de 2009.
Trabalhando com o método de estudo de caso, a primeira atividade
desenvolvida pelo grupo, ainda em 2009, foi a análise da alienação de
uma passagem de pedestres na zona sul de Porto Alegre, em um caso
que envolvia várias irregularidades ofensivas às diretrizes do Estatuto da
Cidade, ao Código Civil e à Lei de Licitações. O bem público situava-se
em um loteamento antigo da cidade, de alto valor paisagístico e cultural
para o bairro e havia sido vendido sem consulta prévia à população, sem
demonstração do interesse público, sem licitação e a autorização legislati-
va era genérica, sem qualquer especificidade. Depois de investigar o caso
e constatar a sua gravidade, o Grupo elaborou um dossiê e encaminhou
ao Ministério Público do Meio Ambiente e do Patrimônio Público, tendo
logrado a abertura de um inquérito civil a partir da referida denúncia. No
curso do inquérito civil foram realizadas audiências públicas no local, pelas
quais se constatou a contrariedade da população moradora do bairro com
aquela alienação, bem como averiguou-se que mais de 150 passagens de
pedestres estavam sendo preparadas para fins de alienação no município.
A relevância do trabalho desenvolvido pelo grupo na ocasião ficou clara

12 Ver artigo 207 da Constituição Federal.

100
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

quando foi determinada pelo Ministério Público a suspensão de tais alie-


nações pelo município. O caso foi objeto de um Termo de Ajustamento
de Conduta e todos os casos de alienação de passagens de pedestres
pretendidas pelo município na Vila Assunção serão avaliados caso a caso
por um grupo de técnicos com a participação da comunidade.
A reflexão sobre o caso da Vila Assunção fez com que o grupo passasse
a pesquisar o tema da privatização do espaço público e suas conexões
com o esvaziamento das instâncias tradicionais da esfera pública em Porto
Alegre a partir do ano de 2005, tais como o Conselho do Orçamento Parti-
cipativo, os Fóruns Regionais de Planejamento e os Conselhos Setoriais13.
Essa pesquisa coincidiu com a aceleração dos preparativos da cidade para
a Copa de 2014, acentuando a relevância social de tal estudo.
No ano de 2011, então, o Grupo de Direito Urbanístico inicia um novo
estudo de caso, chamado “Impactos urbanísticos, ambientais, sociais e
jurídicos da Copa de 2014 em Porto Alegre”, buscando avaliar o processo
de preparação da Copa no município, à luz das diretrizes contidas no artigo
2º do Estatuto da Cidade. Tal pesquisa constatou que a maior parte das
diretrizes preconizadas pelo Estatuto da Cidade para a Política Urbana
das cidades brasileiras foi solenemente ignorada durante a realização das
obras preparatórias à Copa, não apenas em Porto Alegre, mas em todas as
capitais brasileiras que sediarão jogos oficiais. A investigação foi publicada
pelo Grupo em dois artigos nos anais do Congresso Comemorativo aos dez
anos do Estatuto da Cidade, realizado em Porto Alegre no ano de 201114.
A partir de 2012, o Grupo passa a pensar em partilhar o conhecimento
produzido através desta pesquisa e surge a ideia de organizar um curso
de capacitação a respeito do tema, a ser oferecido a lideranças comuni-

13 Ver, a propósito: ALFONSIN, Betânia et al. Desconstituição da esfera pública, abandono e privatização do
espaço público em Porto Alegre: tendências hegemônicas e resistências contra-hegemônicas. Revista Ma-
gister de Direito Ambiental e Urbanístico. Caderno Direito do Patrimônio Cultural. Porto Alegre: Magister,
2005- , Bimestral. V. 32, p. 74.
14 ALFONSIN, Betânia et al. A copa de 2014 e a política urbana preconizada pelo Estatuto da Cidade: um estudo
dos impactos sociais e ambientais em Porto Alegre. In Anais do II Congresso de Direito Urbano Ambiental
– Congresso Comemorativo aos dez anos do Estatuto da Cidade. Porto Alegre: Exclamação, 2011, p. 109.
ALFONSIN, Betânia et al. Impactos urbanísticos e econômicos da Copa de 2014 em Porto Alegre à luz do Es-
tatuto da Cidade. In Anais do II Congresso de Direito Urbano Ambiental – Congresso Comemorativo aos dez
anos do Estatuto da Cidade. Porto Alegre: Exclamação, 2011, p. 127.

101
tárias de Porto Alegre. Depois de conquistar o apoio institucional da FMP,
o Grupo passou a organizar tal curso, com uma metodologia capaz de
potencializar seu efeito multiplicador. É o que passamos a relatar .

2 METODOLOGIA

Após a observação da conjuntura social e política de Porto Alegre,


foram identificados, inicialmente, alguns temas15 que estavam em pauta
nas discussões realizadas na cidade sobre a Copa do Mundo de 2014. Pos-
teriormente, foram contatados representantes de movimentos sociais para
verificar se as temáticas abordadas eram de seus interesses, bem como se
seriam de utilidade prática para a militância. Assim, após a reflexão com
os atores políticos, reuniram-se os temas em sete eixos.
A partir desse contato, observou-se que, na cidade, emergiam novas
formas de militância social que não ocupavam os espaços tradicionais de
representação. Esses novos atores organizam-se em meio virtual levan-
tando as temáticas acerca do meio ambiente, da ocupação dos espaços
públicos, do patrimônio cultural, da mobilidade urbana. Para participar
dos encontros de capacitação, foram convidados movimentos/coleti-
vos/instituições que tivessem representatividade e participação ativa na
construção da cidade.16 O nome escolhido para o curso foi “Encontros de
Capacit(ação) Coletiva para a Copa do Mundo de 2014”, posteriormente

15 Megaeventos Esportivos: Impactos e Legados da Copa de 2014; Direito à Cidade, à Moradia e à Regulari-
zação Fundiária; Transparência e Democratização da Gestão Pública; Instrumentos de Defesa dos Direitos
Fundamentais; Direito à Acessibilidade; Direito à Mobilidade Urbana; Impactos Ambientais e Alteração da
Legislação Urbanística.
16 Enviaram representantes os seguintes movimentos/coletivos/instituições: Associação dos Geógrafos Brasi-
leiros (AGB); Associação Comunitária do Centro Histórico; Região de Planejamento 7; Associação de Amigos e
Moradores do Jardim Universitário (AAMJU); Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN);
Associação de Amigos e Moradores da Vinte e Quatro de Maio e Adjacências (AMIVI) Coletivo Catarse; Coletivo
Quantas Copas por uma Copa?; Blog Chega de Demolir Porto Alegre; Movimento Morro Santa Teresa; Coletivo
Defesa Pública da Alegria; Quilombo do Sopapo; Movimento das Pessoas com Deficiência; ONG Centro de
Direitos Econômicos e Sociais (CDES); ONG CIDADE; ONG ACESSO – Cidadania e Direitos Humanos; Instituto
de Pesquisa Direito e Movimentos Sociais (IPDMS); Observatório das Metrópoles; Programa de Planejamento
Urbano da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PROPUR/UFRGS); Grupo
de Assessoria Popular do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (GAP/SAJU-UFRGS); Grupo de Assessoria Justiça Popular do Serviço de Assessoria Jurídica Universi-
tária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (GAJUP/SAJU-UFRGS); Defensoria Pública do Estado do
Rio Grande do Sul.

102
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

acrescido de um nome mais chamativo, “COPA LEGAL É COPA QUE RES-


PEITA OS DIREITOS HUMANOS”. Demonstra-se que o objetivo primordial
foi a concretização de um projeto de capacitação de multiplicadores de
conhecimento ligado à cultura dos direitos humanos, um patrimônio ju-
rídico irrenunciável, ainda que em tempos de Copa do Mundo.
Ao todo, foram realizados seis encontros quinzenais. Tal proposta
objetivou uma dinâmica menos desgastante e uma natural incorporação
à rotina dos participantes. Cada encontro começou com uma fala exposi-
tiva de aproximadamente quarenta e cinco minutos que tinha por intuito
fomentar o debate. Em seguida, foi aberto o espaço para intervenção
com falas individuais limitadas a três minutos para oportunizar a todos a
manifestação. Os encontros marcaram-se pela informalidade e horizonta-
lidade. Assim, não se desenvolveram no tradicional modelo de pergunta-
-resposta, uma vez que o palestrante não estava na condição de detentor
do conhecimento, e sim, de provocador do debate-diálogo. Logo, como
qualquer outro participante, fazia perguntas/intervenções que eram res-
pondidas/complementadas pelos próprios integrantes dos encontros. Um
aspecto da horizontalidade é que qualquer participante do curso poderia
dar a sua contribuição, com base em suas experiências, especialmente,
as de militância. Acredita-se que haveria condições por parte de todos
para “dar uma aula”, pois há muito conhecimento acumulado, além de
haver um consenso entre a Comissão Organizadora de que aqueles que
expõem suas ideias, consequentemente, aprendem. Já uma demonstração
da informalidade existente nos encontros do Curso de Capacit(ação) foi a
organização de uma recepção, anterior ao início da exposição realizada
pelo palestrante-convidado, na forma de um coffee-break, momento em
que havia uma confraternização entre os participantes, militantes que
compartilhavam experiências.
Um fato interessante foi a concretização da possibilidade de uma
atuação em parceria com o CATARSE, o qual caracteriza-se por ser um
coletivo de mídia alternativa17. Tal coletivo foi convidado enquanto um

17 Disponível em: <http://coletivocatarse.com.br/home/>. Acesso em 06 de agosto de 2013.

103
ator político e como detentor de um compromisso social, em virtude da
possível disponibilização on-line da realização do curso. Este ator político
aceitou a proposta da realização de uma parceria, comprometendo-se a
realizar o registro dos encontros, permitindo que o material pudesse ser
utilizado, futuramente, nas comunidades, especialmente àquelas em que
seus moradores são atingidos pelas obras realizadas em nome da Copa do
Mundo de 2014, bem como possibilitando uma maior difusão do debate,
concretizando um diálogo extra-academia. Adotou-se a utilização de um
chat simultâneo com o intuito de dar abertura a um debate em meio virtual,
concomitante à realização/exibição dos encontros.
No decorrer da elaboração do Curso de Capacit(ação), bem como
durante a disponibilização do ambiente para a realização dos encontros,
os objetivos traçados foram reafirmados e aprimorados. Inicialmente, a
realização de eventos desta natureza baseia-se na responsabilidade social
da FMP, enquanto instituição de ensino superior. Outra base para sustentar
a realização dos encontros é a crença na função social do conhecimento,
em outras palavras, o conhecimento acumulado não deve permanecer
concentrado na Academia, e sim, ter uma finalidade social. Buscou-se,
portanto, partilhar com as comunidades e cidadãos atingidos pelas obras
para “receber” a Copa do Mundo de 2014, o conjunto de informações
produzidas no Ciclo de Encontros. Também, acredita-se que deve haver
multiplicadores de conhecimento: a partir da troca de saberes, os partici-
pantes poderiam compartilhar suas experiências em suas comunidades,
multiplicando, assim, o conhecimento construído. Apresenta-se, então,
uma síntese dos debates realizados durante o ciclo.

3 MEGAEVENTOS ESPORTIVOS: I
MPACTOS E LEGADOS DA COPA DE 2014

A importância e magnitude da Copa são inquestionáveis, embora o


legado para os países-sede sejam discutíveis. Cabe destacar que Porto
Alegre sediará alguns jogos nos dias 15 ,18 ,22 ,25 e 30 de julho de 2014.

104
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

No encontro de abertura com a presença da palestrante Betânia Alfon-


sin18 o tema debatido foi “Os Impactos e Legados da Copa do Mundo de
2014”. Os megaeventos esportivos acarretam uma série de impactos para
os países e as cidades-sede, que vão muito além da reforma e ampliação
de estádios para receber os jogos. Constata-se, sem maior esforço, im-
pactos urbanísticos, ambientais, sociais, econômicos, jurídicos, culturais
e simbólicos (intangíveis). Todos estes impactos serão objeto de análise
neste texto, já que foram tema de diferentes encontros, nos quais foram
abordados os efeitos negativos que a Copa impõe à cidade e a sua po-
pulação como: a legislação brasileira que está sendo alterada de forma
altamente questionável; diversas obras viárias que ofendem os planos
diretores das cidades; valorização imobiliária sem recuperação para a
coletividade; geração de resíduos; violação do direito à moradia adequa-
da (despejos em massa); condições precárias na geração de empregos;
sobrecarga de infraestrutura, energia, água e esgotos; desvalorização do
patrimônio histórico e cultural do país.
Verificou-se a importância da troca de experiências vivenciadas pela
comunidade. Ouviu-se relatos de descaso do poder público com os mora-
dores das áreas atingidas pelas obras, a falta de respeito com os cidadãos
que estão protegendo o patrimônio ambiental e cultural da cidade, a falta
de participação popular na tomada de decisões. A assistência judiciária
oferecida às pessoas prejudicadas pelas obras de ampliação das aveni-
das da capital também foi um dos pontos questionados pela palestrante.
Segundo relatos, as desapropriações ocorreram de forma violenta19com
propostas indenizatórias pífias20 e desumanas, desrespeitando a consti-
tuição brasileira.
A conclusão que se obtém é que o poder público ofende os cidadãos
brasileiros ao dar prioridade ao caderno de encargos da Federação In-

18 Betânia Alfonsin é professora da Faculdade de Direito da FMP. Coordenadora do Grupo de Pesquisa e


Extensão em Direito Urbanístico da FMP e Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.
19 Disponível em http://www.espn.com.br/noticia/313783_desapropriacao-para-a-copa-faxina-social-em-terras-gauchas Acesso
em 15 de março de 2013.
20 Disponível em http://racismoambiental.net.br/2013/03/onu-critica-brasil-por-desapropriacoes-para-copa-e-olimpiada/ Acesso
em 12 de abril de 2013.

105
ternacional de Futebol (FIFA) relegando a uma agenda secundária tudo
aquilo que atenderia ao verdadeiro interesse público, como é o exem-
plo mais nobre, o atendimento aos direitos fundamentais expressos na
Constituição Federal. Um momento de felicidade, lazer e comemoração
se tornou uma mancha na história de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul
e do Brasil, com direitos dos cidadãos brasileiros sendo violados com a
submissa cumplicidade do poder público.

4 DIREITO à MORADIA, à CIDADE


E à REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA.

Observando a conjuntura social e política de Porto Alegre, constatou-


-se que o Direito à Moradia era uma pauta constante nas discussões que
ocorriam sobre a Copa de 2014. Este tema emergia bastante relacionado
ao Direito à Cidade e à Regularização Fundiária. Por este motivo, no se-
gundo encontro de Capacit(ação) Coletiva, esteve presente o Dr. Jacques
Alfonsin21 que, na condição de palestrante, realizou uma exposição inicial
sobre o tema Direito à Moradia, à Cidade e à Regularização Fundiária.
A política urbana existente antes da Constituição de 1988 pensava
a habitação como um problema meramente quantitativo. Dessa forma,
para abrigar as populações de baixa renda fixadas nas áreas centrais e
valorizadas da cidade, propunha a construção de unidades habitacionais
nas regiões periféricas do município. Esse paradigma guiado pelo lema
“remover para promover” foi rompido com a inauguração do capítulo Da
Política Urbana, composto pelos artigos 182 e 183 da Carta Constitucio-
nal, que colocou a moradia no centro do debate da política urbana22. A
Porto Alegre da década de 90 alinhou-se às novas diretrizes adotadas,
tornando-se um dos municípios com legislação urbanística mais avan-
çada. A Lei Orgânica do Município, em seu artigo 208, trouxe a possibi-

21 Jacques Alfonsin é advogado popular e coordenador da ACESSO - cidadania e direitos humanos.


22 ALFONSIN, Betânia. Da invisibilidade à regularização fundiária: a trajetória legal da moradia de baixa renda
em Porto Alegre – século xx. Dissertação de mestrado no Programa de Pós Graduação em Planejamento
Urbano e Regional. Porto Alegre: UFRGS, 2000, p.16.

106
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

lidade de regularização das moradias autoconstruídas no próprio tecido


intraurbano da cidade, garantindo à população pobre o direito ao centro
e aos bens oferecidos por ele. A expressão “sem remoção” é significativa,
pois indica que as regularizações devem ser realizadas no próprio local
ocupado, rompendo, portanto com a prática de expulsão dos pobres para
as áreas menos valorizadas da cidade23. Logo, o direito à moradia passa
ser o direito à cidade e à cidadania24.
Com a promessa de trazer ao país investimentos, empregos, desen-
volvimento, a Copa do Mundo trouxe a flexibilização da legislação e, por
consequência, de alguns direitos que haviam sido conquistados. Dentre
estes, está o direito à moradia adequada previsto na normativa nacional25,
estadual26, municipal27, bem como ratificado pelo Brasil em documentos
internacionais28. Conforme estudo realizado pelo Instituto Políticas Alter-
nativas para o Cone Sul, já há como legado da Copa 170 mil remoções
forçadas por todo país29, dentre as quais, aproximadamente 9 mil ocorre-
ram e estão previstas para ocorrer em Porto Alegre30. Na capital gaúcha,
entre as comunidades atingidas pela Copa estão as Vilas Cruzeiro, Cristal,
Nazaré, Dique, Chocolatão, a Ocupação 20 de Novembro. Essas comu-
nidades têm apresentado fortes críticas aos projetos de reassentamento
impostos, bem como às soluções apresentadas pela municipalidade que
mostraram-se inadequadas às realidades das famílias, tais como o aluguel

23 ALFONSIN, Betânia. Da invisibilidade à regularização fundiária: a trajetória legal da moradia de baixa renda
em Porto Alegre – século xx. Dissertação de mestrado no Programa de Pós Graduação em Planejamento
Urbano e Regional. Porto Alegre: UFRGS, 2000, p.147-149
24 ALFONSIN, Betânia. Da invisibilidade à regularização fundiária: a trajetória legal da moradia de baixa ren-
da em Porto Alegre. In: FERNANDES, E.; _____(Org.) A Lei e a ilegalidade na produção do espaço urbano. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003, p. 170.
25 Conforme o previsto no art. 182 e art. 183 da Constituição Federal; no Estatuto da Cidade; na Medida Pro-
visória 2.220/2001; na Lei 11.977/2009.
26 Conforme o previsto no art. 174, § 1°, I, II e III; art. 176, II, III, V, Ix, da Constituição do Estado do Rio Grande
do Sul.
27 Conforme o previsto no art.158; art.201, §1° e 2°§; art.208, da Lei Orgânica de Porto Alegre.
28 Dentre estes, destacamos: a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discri-
minação Racial (1965); o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966); a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver
(1976); a Agenda Habitat (1996).
29 INSTITUTO POLÍTICAS ALTERNATIVAS PARA O CONE SUL. Na sombra dos megaeventos esportivos. Rio
de Janeiro, 2012, p. 35. Disponível em: http://www.br.boell.org/web/51-1439.html. Acesso em 06 de agosto de 2013.
30 Dado mencionado pelo cientista político Sérgio Baierle, consultor da ONG Cidade, na “Apresentação sobre
os impactos das obras da Copa 2014”. Disponível em:http://comitepopularcopapoa2014.blogspot.com.br/p/
documentos.html. Acesso em: 06 de agosto de 2013.

107
social e o bônus moradia.3132 Embora tenham sido retiradas de seu local
original, desrespeitando o artigo 208 da Lei Orgânica Municipal, outras
ainda resistem à cidade de exceção33. Assim, elas exercem, como bem
apontou Jacques Alfonsin, o direito de resistência, pois “quando a con-
tradição entre as leis e medidas jurídicas do Estado se torna de tal modo
insuportável que outro remédio não há senão o de considerar tais leis e
medidas como injustas, arbitrárias e, por isso, legitimadora do direito de
resistência individual e coletivo”34.
Por fim, como destacou um dos atores políticos presentes no encon-
tro, o direito à moradia adequada é um direito fundamental, logo deveria
ser prioridade diante de qualquer obra de infraestrutura. Assim, quando
o Poder Público refere-se à “negociação” para tratar sobre a questão da
moradia, é possível verificar o quanto esse direito humano fundamental
está sendo negligenciado.

5 TRANSPARÊNCIA E DEMOCRATIZAÇÃO DA GESTÃO PÚBLICA

A abordagem para o tema da Transparência e Democratização da


Gestão Pública no evento de Capacit(ação) Coletiva para a Copa de 2014
pautou-se em críticas à atual conjuntura político-social e às formas de par-
ticipação popular na gestão pública. Para aproximação do tema contou-se
com a colaboração do cientista político Sérgio Baierle35. A discussão partiu
do relato sobre a construção dos círculos institucionais, como o Orçamento
Participativo, ONGs, Organizações Comunitárias, enquanto canais para a
concretização das aspirações cidadãs. Segundo Baierle, ocorre uma crise

31 Ver, a propósito, carta entregue ao Comitê Popular da Copa ao Prefeito José Fortunati, em 04/07/2013.
Disponível em: http://comitepopularcopapoa2014.blogspot.com.br/2013/07/movimentos-elaboram-carta-ao-prefeito-e.html. Acesso
em 29de julho de 2013.
32 Cabe destacar as manifestações ocorridas com intuito de questionar os efeitos da Copa sobre a cidade.
Disponível em: http://comitepopularcopapoa2014.blogspot.com.br/2013/06/centenas-ocupamlargo-em-porto-alegre. html; http://
comitepopularcopapoa2014.blogspot.com.br/2013/07/movimentos-sociais-e-moradores-da.html. Acesso em 06 de agosto de 2013.
33 Conceito desenvolvido por Carlos Vainer. Ver, a propósito, a entrevista concedida à Escola Politécnica de
Saúde Venâncio (EPSJV). Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Entrevista&Num=21. Acesso em
29 de julho de 2013. .
34 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Coimbra: Gradiva Publicações Ltda, p.14.
35 Sérgio Baierle é cientista político e membro do conselho diretor da ONG CIDADE – Centro de Assessoria
e Estudos Urbanos.

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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nesses movimentos urbanos, lenta, mas progressiva, em um paradigma


que poderia ser denominado de a “longa marcha da democracia brasileira”.
Ainda que com a intenção de melhoria na qualidade democrática, muitos
vícios começam a surgir, como a terceirização comunitária de políticas
públicas e o surgimento de verdadeiras “oligarquias comunitárias”.
Sobrevêm da articulação desses movimentos uma nova proposta de
atuação, que implanta através da participação popular, um novo meio
de normatizar econômica, política e socialmente os interesses cidadãos.
Baierle comenta que, neste paradigma de avanço continuado, vagaro-
samente se esboça uma disputa por hegemonia na qual alguns setores
conquistam o monopólio da representação, num processo que têm por
vezes expropriado a tutela de direitos. Em Porto Alegre, exemplificati-
vamente, citamos o caso da Vila Dique, na qual as famílias realocadas,
tiveram denegados pela justiça seus direitos de uma moradia de tamanho
adequado mesmo sem a devida discussão com a comunidade, pois um
acordo prévio à remoção, entre a Associação de Moradores e Prefeitura,
estabelecia o tamanho das unidades para reassentamento; inviabilizando
acordo em outro sentido.
O Estatuto da Cidade em seu artigo 2º, inciso II, preconiza a gestão
democrática da política urbana através de novos modelos de gestão, que
podem ser discutidos nos diversos setores da sociedade e onde o cidadão
de simples espectador torna-se protagonista desse processo. No entanto,
percebemos um novo paradigma articulado no cenário atual, que se en-
carrega progressivamente de excluir os movimentos urbanos populares em
prol de um estado de exceção, em que os bilhões de Reais empreendidos
às obras da Copa privilegiam determinados interesses econômicos. E como
resultado o planejamento urbano enfrenta um colapso.

6 INSTRUMENTOS DE DEFESA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O encontro que abordou o tema “Instrumentos de defesa dos direitos


fundamentais” teve como convidada a Defensora Pública Adriana Sche-

109
fer do Nascimento36. Enfatizou-se que a atuação da Defensoria é não só
judicial, como também extrajudicial, o que, em muitos casos, tendo em
vista principalmente a necessidade de uma resposta célere à situação, se
mostra mais eficaz.
Apresentadas informações sobre o funcionamento do órgão, a pa-
lestrante destacou a atuação da Comissão de Monitoramento da Copa37.
Tal Comissão surgiu a partir da percepção de que muitas demandas
atendidas pelo Núcleo de Defesa Agrária e Moradia da Defensoria Públi-
ca relacionavam-se à Copa do Mundo, cabe ressaltar que a maior parte
destas demandas eram relacionadas à remoção forçada. Notou-se, então,
a importância e a necessidade de a Defensoria inteirar-se dos fatos e da
veracidade das informações que chegavam ao Núcleo, a fim de mediar os
casos e, por conseguinte, evitar demandas ainda maiores em 2014. Além
disso, a atuação da Comissão na Vila Tronco foi apresentada como um
exemplo de trabalho. Neste caso, diante da observação de que se tratavam
especificamente de remoções, a mediação apresentou-se como a solução
mais efetiva e rápida para as famílias envolvidas.
Percebeu-se, ainda, que um dos grandes problemas locais era a falta
de informações prestadas à comunidade atingida. No caso da comunida-
de da Vila Tronco, uma “sobreviolação” de direitos humanos ocorre, já
que os processos de tomada de decisão são muito pouco transparentes.
Quando procura o Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB),
órgão responsável pela relocalização das famílias atingidas pela obra
viárias, a população recebe informações parciais, reduzindo o escopo de
escolhas que cada uma das famílias teria, no caso, para sua relocalização.
Neste ponto, a busca extrajudicial de dados com os entes envolvidos e o
contato com a população mostrou-se, de fato, resolutivo. Além disso, ao
se requisitar informações para o poder público, se está pressionando a
própria Administração a aumentar sua eficiência e transparência, apre-

36 Adriana Schefer do Nascimento é Defensora Pública do Estado do Rio Grande do Sul, onde coordena o
Núcleo de Defesa Agrária e Moradia (NUDEAM). É membro da Comissão de Monitoramento dos Efeitos da
Copa e Megaeventos da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul.
37 Conferir sítio: http://www.dpe.rs.gov.br/site/noticias.php?id=1610. Acesso em16 de agosto de 2013

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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sentando soluções e esclarecimentos, o que favorece ainda mais a solução


extrajudicial das questões.
Ficou demonstrada, assim, como esta prática mostra-se mais adequada
aos casos relacionados à questão da moradia, em especial quando envolve
grandes eventos como a Copa do Mundo. Também se destaca o papel da
Defensoria Pública tanto na atuação junto à comunidade da Vila Tronco,
como também nas recentes mobilizações sociais, em que o órgão esteve
acompanhando os protestos, visando evitar o abuso de poder da Brigada
Militar e garantir os direitos dos manifestantes38. Por fim, fica demonstrado
que a proximidade da Defensoria Pública da realidade, seu contato com a
população e a valorização de técnicas alternativas de solução de conflitos
tem viabilizado a mediação e evitado a judicialização de muitos casos.

7 DIREITO à ACESSIBILIDADE

A cada encontro do Grupo, ficava mais claro que o tema do direito à


acessibilidade estava distante da agenda social da Copa, sendo apenas
analisado por poucos setores sociais, isto é, entende-se haver uma omis-
são por parte do Poder Público e da iniciativa privada em relação a este
tema. O Encontro que abordou o tema do direito à acessibilidade iniciou-se
com uma exposição do palestrante Doutor Mauro Luis Silva de Souza39.
Em momento posterior, oportunizou-se a abertura de um debate entre os
participantes, acerca do tema apresentado.
A exposição se iniciou com a demonstração do conceito de acessibi-
lidade, o qual se faz presente na Lei 10.098/2000 que estabelece normas
gerais e critérios básicos para oportunizar a acessibilidade às pessoas
com deficiência ou com mobilidade reduzida, em seu artigo 2º , inciso I,
conforme transcrição literal:

Possibilidade e condição de alcance para utilização, com segu-


rança e autonomia, dos espaços, mobiliários e equipamentos

38 Disponível em: http://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=17719. Acesso em 14 de agosto de 2013.


39 Promotor de Justiça atuando na Promotoria Especializada dos Direitos Humanos em Porto Alegre. Presidente
da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Professor da Faculdade de Direito da FMP.

111
urbanos, das edificações, dos transportes e dos sistemas e meios
de comunicação, por pessoas portadoras de deficiência ou com
mobilidade reduzida.

Um fato observado pelo palestrante foi que, com base neste conceito
de acessibilidade, houve a possibilidade de que o Governo brasileiro fir-
masse o compromisso de internalizar as normas contidas na Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a qual foi
regulamentada no Brasil através do Decreto 6949/2009. Tal Convenção foi
recepcionada em nossa legislação com força de Emenda Constitucional,
respeitando os requisitos contidos no artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal
de 1988. Sintetizando, a Emenda tem caráter de norma constitucional, ou
seja, o direito à acessibilidade possui status constitucional.
Um caso discutido foi uma ação judicial proposta por uma pessoa com
deficiência física, usuária de cadeiras de rodas, a qual pleiteava o direito
à acessibilidade à arena esportiva do Sport Club Internacional, local onde
ocorrerão os jogos do Mundial de 2014. Este indivíduo sentiu-se violado
em sua dignidade, pois o local é de difícil acesso, tendo que se deslocar
de um lado do estádio a outro, a fim de poder assistir aos jogos, além de
o local determinado ao uso de usuários de cadeiras de rodas permanecer
na altura do gramado, bem como haver uma barreira de concreto que
impossibilitava a sua visão do campo de futebol. Não havia uma cober-
tura, fazendo com que a pessoa com deficiência física ficasse sujeita aos
efeitos climáticos, exemplificando, à ocorrência de chuva. Um aspecto
relevante é que o local ofertado aos usuários de cadeiras de rodas, no
estádio, contém metragens menores às exigidas pelas normas internacio-
nais. Tal intermediação ocorreu através da Defensoria Pública do Estado
do Rio Grande do Sul, a qual está tentando garantir o direito ao lazer e à
dignidade a este cidadão, além do direito à acessibilidade.
Uma exigência da FIFA, existente no Caderno de Encargos40 desta

40 Disponível em: http://www.fifa.com/mm/document/tournament/competition/football-stadiums-technical-recommendations-and-


-requeriments-en-8211.pdf. Acesso em: 24 de julho de 2013.

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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

entidade, é que a quantidade mínima de lugares reservados nos está-


dios às pessoas com deficiência e com mobilidade reduzida encontre-se
entre 0,5% a 1% da capacidade total do estádio, fato que se situa aquém
do exigido pela lei brasileira de acessibilidade, a saber, 4%, consoante o
Decreto 5.296/2004. Já às pessoas com deficiência visual, a FIFA realizou
a exigência de que os assentos destinados aos deficientes visuais deverão
estar próximos ao local onde estará situada a Imprensa, com o intuito de
que tais indivíduos possam ouvir a transcrição dos jogos. A FIFA omitiu
tratamento às demais pessoas com deficiência, exemplificativamente, aos
deficientes sensoriais (os deficientes auditivos).
Este caso apontado é apenas para demonstrar que a FIFA, uma enti-
dade privada, ao estabelecer metragens menores às exigidas pelas nor-
mas internacionais, está violando o direito à acessibilidade, um direito
das pessoas com deficiência, sendo este ampliado a outras pessoas que
possuem mobilidade reduzida, total ou parcial, permanente ou provisó-
ria. No Caderno de Encargos da Entidade, consta que um especialista em
acessibilidade deverá ser consultado a fim de determinar projetos para o
estádio garantir que haja o cumprimento dos padrões internacionalmente
aceitos, exigência que parece não estar sendo observada.

8 DIREITO à MOBILIDADE URBANA

Nas últimas semanas, o país tem acompanhado diversas manifestações


populares que começaram pautadas pela questão das tarifas do transporte
público e trazendo para o centro do debate político nacional a questão
da mobilidade urbana, que, segundo a lei 12.587/2012, em seu artigo 4º,
inciso II, é a “condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e
cargas no espaço urbano”. De acordo com dados do Governo Federal41, os
investimentos em mobilidade urbana para a Copa de 2014 em Porto Alegre
estão orçados em cerca de R$ 922 milhões. É possível verificar que estes
investimentos não estão sendo acompanhados de consulta à população,

41 Conferir sítio: http://www.copa2014.gov.br/pt-br/sedes/portoalegre/mobilidade. Acesso em 29 de julho de 2013.

113
ocasionando diversas remoções forçadas, além de significativos impactos
ambientais conforme exposto ao longo do presente artigo.
No encontro sobre este tema, esteve presente como palestrante o
Vereador Marcelo Sgarbossa42. Sgarbosssa apresentou projetos de revi-
talização de cidades como Seul, Lisboa e Nova Iorque em que diversas
áreas, anteriormente destinadas para o trânsito de veículos, foram trans-
formadas em parques e áreas de lazer, em contraponto com o que está
ocorrendo em Porto Alegre. O debate acerca da mobilidade urbana está
tão presente neste momento que a Câmara de Vereadores do Porto Alegre
foi ocupada por manifestantes - em grande parte jovens - devido à rejeição
pela maioria dos parlamentares por maior transparência nas contas de
transporte coletivo. A mobilidade urbana no Brasil é fortemente marcada
pela lógica do transporte individual de passageiros, como se o carro fosse
o único modal possível para viabilizar o transporte. Além de esse modelo
ter sido fortemente incentivado por políticas públicas e pela estratégia
de sucessivos governos para as cidades brasileiras, a indústria automo-
bílistica incentiva este desejo de consumo, visto que o automóvel é uma
mercadoria que experimenta inovações tecnológicas a cada lançamento
de um novo produto no mercado. Os congestionamentos cotidianamente
enfrentados pela totalidade das capitais brasileiras demonstram a falência
desse paradigma, que, além de individualista, é oneroso e insustentável
em uma perspectiva ecológica. Mesmo assim, é inegável a opção do go-
verno brasileiro em reforçar este modelo com as obras viárias introduzidas
na Matriz de Responsabilidades para a Copa de 201443.
É fundamental que busquemos compreender a conjuntura para que
possamos trabalhar por uma cidade que seja voltada para as pessoas,
para que os direitos de cidadania sejam respeitados seguindo a afirmativa
de Harvey de que:

42 Marcelo Sgarbossa é advogado e cicloativista. Especialista em Direitos Humanos. Mestre em Análise de


Políticas Públicas pela Universidade de Turim (Itália). Doutorando em Direito pela UFRGS. Conselheiro da
Comissão de Direitos Humanos da OAB/RS. Vereador de Porto Alegre.
43 Íntegra das obras incluídas na Matriz de Responsabilidades da Copa de 2014 no Brasil disponível em:
<http://www.copa2014.gov.br/pt-br/brasilecopa/sobreacopa/matriz-responsabilidades> Acesso em: 02 de
agosto de 2013.

114
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

[...] o direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de


ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós
mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo, e
não individual, já que essa transformação depende do exercício de
um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização44.

A cidade é palco de lutas. O levante da juventude, ao contrário dos


que o procuram compreender como um movimento que busca se afastar
da política, na verdade, é atestado da necessidade de uma nova política
no Brasil, do aprofundamento da democracia para além dos limites da
democracia representativa. Há uma exigência por controle social das ta-
rifas, por abertura de planilhas do transporte coletivo, por retomada dos
espaços públicos, por direito à cidade.

9 IMPACTOS AMBIENTAIS E ALTERAÇÕES


DA LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA

O último encontro do curso teve como tema os “Impactos Ambientais


e Alterações da Legislação Urbanística” e como palestrante convidada
a Dra. Annelise Steigleder45, uma das responsáveis pelo ajuizamento de
ação civil pública contra o Município de Porto Alegre para garantir a im-
plantação do Parque Gasômetro.
Atendo-se ao fato de que o meio ambiente é uma das maiores preocu-
pações mundiais atuais e tendo em vista a realização das obras “impres-
cindíveis” para a Copa e os legados que deixarão, não houve dúvidas que
o referido tema deveria estar presente no calendário do curso.
O caso do corte das árvores na região do projetado Parque Gasômetro
marcou história na cidade, considerando não apenas a forte atuação contra
este ato pelos cidadãos, que lutaram até o último instante acampando no
local para proteger as árvores, como também do Ministério Público, que

44 HARVEY, David. O direito à cidade. In: <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-82/tribuna-livre-da-


luta-de-classes/o-direito-a-cidade>. Acesso em: 29 julho 2013.
45 Annelise Steigleder é promotora da Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre/
RS. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

115
ingressou com ação civil pública na tentativa de barrar o corte das mesmas
entre a futura rótula da Avenida Edvaldo Pereira Paiva e a rótula Cuias.46
As alegações e motivações foram diversas. Cabe destacar primeiramen-
te a ilegalidade da iniciativa municipal, tendo em vista que está previsto
no Plano Diretor que a área é destinada à criação do Parque Gasômetro.
Além disso, uma vez consumada a obra, o parque perderia não só uma
significativa massa vegetal, como também uma boa parte de sua extensão
e de sua característica paisagística. O ato de cortar árvores nativas para
fazer vias expressas é inaceitável.
Infelizmente, a 22ª Câmara Cívil do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, por unanimidade, autorizou o corte das 115 árvores47. Os desembar-
gadores Maria Isabel de Azevedo Souza e Marco Aurélio Heinz seguiram o
voto do relator da matéria, desembargador Carlos Eduardo Zietlow Duro,
que reformou sua própria decisão anterior, na qual, em caráter liminar,
havia suspendido o corte dos vegetais em 19 de abril.
A permissão para retirar as árvores da região do Gasômetro demons-
tra a capacidade devastadora deste evento, demonstrando que os três
poderes estão aproveitando-se da oportunidade da Copa para viabilizar
interesses nem sempre coincidentes com as necessidades da população.
A legislação brasileira é violada para privilegiar um espetáculo esportivo e
seus patrocinadores oficiais. As decisões referentes aos impactos ambien-
tais nas estruturas das cidades já foram tomadas sem o questionamento
necessário para avaliar os benefícios ou malefícios. Mais do que nunca,
percebe-se que os compromissos assumidos com a FIFA através do “Ca-
derno de Encargos” estão não só acima das políticas sociais brasileiras,
como a saúde e a moradia, como também, há uma flagrante violação da
legislação local, como foi o caso demonstrado pela desconsideração do
Plano Diretor de Porto Alegre.

46 Ver, por exemplo, o vídeo gravado pelo Coletivo Aura “Quantas copas por uma copa?”, disponível em http://
vimeo.com/67835242. Acesso em 31/07/2013.
47 Agravo de Instrumento nº 70054203187

116
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

10 CONCLUSÃO

O balanço da experiência de extensão e pesquisa realizada através do


Copa legal é Copa que respeita os direitos humanos deve ser feito em um
duplo viés, que considere (i) em que medida os objetivos metodológicos
traçados pelo Grupo de Direito Urbanístico foram atingidos e, (ii), que no-
vos conhecimentos foram produzidos através desta experiência, ou seja, é
necessário avaliar se os Encontros de Capacit(ação) Coletiva para a Copa
de 2014 foram capazes de elevar o patamar de conhecimento disponível
para a análise dos impactos urbanísticos, ambientais, sociais e jurídicos
sobre o exercício dos direitos fundamentais48 em Porto Alegre.
Em uma perspectiva metodológica, pode-se dizer que os encontros
conseguiram reunir atores de diferentes movimentos sociais, estabele-
cendo uma troca de saberes bastante fértil entre representantes das co-
munidades e movimentos com a “academia”. Os debates sobre cada um
dos temas-chave aqui apresentados, lograram ser um espaço democrático
de partilha e (re)construção de conhecimento, já que o tempo dedicado
às intervenções dos participantes foi sempre tão privilegiado quanto a
exposição do palestrante convidado. A fala de cada um/a sempre foi
valorizada na busca do aprofundamento da reflexão coletiva e a riqueza
do diálogo estabelecido durante os encontros é, sem dúvida, um legado
importante do Ciclo de capacitação.
Uma questão conjuntural foi altamente significativa para o sucesso do
Ciclo de Encontros de Capacitação coletiva. Quando o projeto começou,
às vésperas da Copa das Confederações49, a desesperança tomava conta
da maior parte dos atores, tanto que foi necessário um grande esforço de
mobilização para reunir representantes dos vários movimentos e garantir

48 A expressão direitos fundamentais, aqui, é utilizada ancorada no conceito materialmente aberto de direitos
fundamentais, tais como apresentados por Ingo Sarlet, ou seja, abrangendo além dos direitos elencados no art.
5º da Constituição Federal, “direitos materialmente fundamentais não escritos (no sentido de não expressa-
mente postitivados), bem como de direitos fundamentais constantes em outras partes do texto constitucional
e nos tratados internacionais”. Ver SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria
geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 86.
49 A copa das Confederações foi realizada no Brasil entre 15 e 30 de junho de 2013.

117
a pluralidade e representatividade que pretendíamos para dar início ao
Ciclo. Um sentimento de impotência e inércia parecia dominar a socieda-
de, até que uma indignação acumulada emergiu fortemente nas ruas de
todo o Brasil, nas manifestações populares de junho e julho de 2013. O
temor inicial dos organizadores de que tal fato pudesse acarretar o esva-
ziamento progressivo dos encontros esvaneceu-se quando percebeu-se
que a reivindicação das ruas coincidia em grande medida, com a agenda
de reflexão proposta pelo projeto.
Entende-se que o Ciclo cumpriu com um papel importante na capaci-
tação dos atores, estabelecendo uma dialética entre a ação realizada nas
ruas por muitos dos participantes em sua militância social e a reflexão
teórica realizada durante os encontros de capacitação. Da mesma forma,
observou-se em várias palestras que as pessoas atingidas por problemas
reais estavam vivenciando violações concretas a seus direitos humanos e
tiveram a oportunidade, não apenas, de compartilhar a experiência, mas
também, de receber orientações capazes de solucionar o problema, bem
como de organizar o encaminhamento de suas questões junto a órgãos
como a Defensoria Pública ou o Ministério Público. Exemplificativamente,
uma representante da Vila Tronco contou o caso familiar de violação do
direito à moradia e saiu do Encontro com o compromisso de ser atendida
pela Defensoria Pública; uma pessoa com deficiência física usuária de ca-
deira de rodas que lutava por acessibilidade no Estádio Beira-Rio e já tinha
seu caso encaminhado pela Defensoria Pública, levou a notícia também ao
Ministério Público dos Direitos Humanos que se comprometeu a acompa-
nhar o caso; e, finalmente, representantes do Movimento “Quantas copas
por uma copa?”, indignados/as com os projetos para a orla, aproveitaram
a presença da promotora Annelise Steigleder para agendar um encontro
com a Promotoria do Meio Ambiente para a qual levarão um dossiê com
documentos contendo fatos novos sobre as irregularidades nos projetos
de revitalização da orla do Guaíba. O objetivo de apoiar ações de advocacy
visando promover o respeito aos Direitos Humanos durante a preparação

118
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da Copa, portanto, parece ter sido atingido. A Responsabilidade Social da


FMP, enquanto instituição de ensino superior foi, neste sentido, plena-
mente cumprida nesta inovadora atividade de Extensão.
No que diz respeito ao conteúdo desenvolvido durante o curso, pode-
-se dizer que apesar de estar centrado em temas chave relacionados aos
impactos da Copa de 2014 em Porto Alegre, não há dúvida alguma que
os participantes foram capacitados de forma a adquirir conhecimentos
e competências relacionadas ao Direito Urbanístico no Brasil. A própria
metodologia adotada pelos encontros favoreceu esse processo, já que o
processo de preparação da cidade para a realização da Copa de 2014 foi
analisado sempre à luz dos direitos fundamentais, do Estatuto da Cidade
e dos documentos internacionais garantidores de direitos humanos dos
quais o Brasil é signatário. Nesse sentido, é evidente que uma ampla divul-
gação da pauta da Reforma Urbana permeou o ciclo de encontros de forma
transversal, ampliando o patamar de conhecimento que os participantes
do curso possuíam sobre esse tema.
Também é preciso sublinhar que o conhecimento que se produziu ao
longo do curso de capacitação demonstra que a prioridade dada pelos
governos às obras da Copa, em detrimento de outras políticas sociais,
teve efeitos altamente perversos nas cidades brasileiras que sediarão o
evento. Tal fato não passou despercebido pela população, como as ma-
nifestações populares de junho de 2013, de norte a sul do país, deixaram
claro. Exigir nas ruas transporte público de qualidade e acessível, moradia
digna, serviços públicos de saúde e educação universais, bem como ética
na política e uma gestão pública democrática, já representa um importante
amadurecimento político da população brasileira, especialmente quando
essa pauta se combina ao rechaço à realização de um megaevento es-
portivo a qualquer preço. Confia-se que o curso de capacitação coletiva
sobre a Copa de 2014 desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa e Extensão em
Direito Urbanístico da FMP na cidade de Porto Alegre tenha contribuído
para um novo salto de consciência de seus participantes, através do qual

119
o direito à cidade sustentável50 passe a ser compreendido como um direito
coletivo e uma bandeira capaz de unificar as diferentes lutas sociais que
atualmente pululam no país e reivindicam, em última instância, o direito
de viver em uma cidade mais justa, acessível, democrática e sustentável.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. In: <http://

50 O Estatuto da Cidade (lei 10.257/01), em seu artigo, 2º, inciso I, preconiza, como uma diretriz da política
urbana brasileira a “garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho
e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.

120
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*Todos/as os/as autores/as são membros do Grupo de Pesquisa e Extensão em Direito Urbanístico da Facul-
dade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP.

123
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Exclusão urbana, (in) segurança da


posse e direito à moradia: reflexões a
partir do estudo de caso de “Todos os
Santos”, Paço do Lumiar, Maranhão

Nathália Castro da Silva1

1 PAÇO DO LUMIAR E “TODOS OS SANTOS”:


ENTRE O PLANO DIRETOR E A IRREGULARIDADE FUNDIÁRIA

Com uma área de 1.410,015 km², a Ilha de São Luís constitui o espaço
de maior aglomeração urbana do estado do Maranhão, composto pelos
municípios de São Luís, Paço do Lumiar, São José de Ribamar e Raposa.
De acordo com Juarez Diniz,

Centrados em um território insular, os municípios de São Luís,


Paço do Lumiar, São José de Ribamar e Raposa embora politica-
mente independentes, constituem uma área contínua na qual se
desenvolve o maior fluxo de relações político-administrativas do
Estado, figurando nas últimas décadas, como cenário de significa-
tivas mudanças, quer na organização de seu espaço físico, quer
no arranjo de suas estruturas socioeconômicas [...].2

O atual processo de conformação do aglomerado urbano da Ilha,


vinculado ao aumento populacional e a sérios problemas de ocupação
do solo urbano, inseriu contemporaneamente o município de Paço do
Lumiar no âmbito das discussões nacionais sobre desenvolvimento e
expansão urbana.

1 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Assessora jurídica do Ministério Público
do Estado do Maranhão. E-mail: nathcastros@hotmail.com
2 DINIZ, Juarez Soares. As condições e contradições no espaço urbano de São Luís (MA): traços periféricos.
Disponível em: <http://www.nucleohumanidades.ufma.br/pastas/CHR/2007_1/juarez_diniz_v5_n1.pdf>.
Acesso em: 12 ago. 2012, p. 03.

125
Localizado no litoral norte do Maranhão, com uma área de 125 km²,
Paço do Lumiar representa o foco espacial deste estudo. Atualmente com
105.121 habitantes, o município, apesar de ter um bom desenvolvimento
da agricultura e da pesca, tem no setor de serviços seu grande potencial
econômico3. Entretanto, é marcado por um elevado nível de desigualdade
econômica e social, uma vez que apresenta, de acordo com o Censo 2010,
42,45% de incidência de pobreza e um IDH de 0,727.
Com a Constituição de 1988, a busca por um planejamento urbano
eficaz ganha importância constitucional, recebendo tratamento norma-
tivo em capítulo específico (Da Política Urbana – Cap. II, do Título VII,
CF). Essa medida se refletiu de modo concreto no âmbito municipal, com
a afirmação do plano diretor como o instrumento básico da política de
desenvolvimento e expansão urbana das cidades.
Mais do que definidor de normas técnicas referentes ao ordenamento
urbano, o plano diretor é um instrumento político de gestão democrática
da cidade. Por ser ferramenta básica que condensa normas técnicas e
de gestão, o art. 182 da Carta Magna estabeleceu que o plano diretor é
instrumento obrigatório a ser implementado nos municípios com mais de
20.000 (vinte mil) habitantes. Apesar dessa obrigatoriedade, o constituinte
não fixou um prazo nem forma de cumprimento da norma. Tal obscuridade
somente veio a ser sanada com o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001),
que regulamentou o dispositivo constitucional.
De acordo o art. 41 da Lei Federal 10.257/01, o plano diretor se tornou
instrumento obrigatório da política urbana nas seguintes hipóteses:

Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades:


I – com mais de vinte mil habitantes;
II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações ur-
banas;
III – onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os ins-
trumentos previstos no§ 4odo art. 182 da Constituição Federal;
IV – integrantes de áreas de especial interesse turístico;

3 De acordo com dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o setor de
serviços gera para o município de Paço do Lumiar uma receita avaliada em 14.866.394 reais, enquanto que o
setor da agropecuária gera 4.065.451 e o setor da indústria produz 3.929.251 reais.

126
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

V – inseridas na área de influência de empreendimentos ou ati-


vidades com significativo impacto ambiental de âmbito regional
ou nacional.
VI – incluídas no cadastro nacional de Municípios com áreas
suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto,
inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos
correlatos.4

Com o advento do Estatuto da Cidade, as situações de obrigatorieda-


de para a criação de planos diretores ampliaram-se, representando um
reconhecimento público do alto grau de expansão urbana que as cidades
brasileiras tiveram nos últimos anos.
A partir da Constituição de 1988 e da Lei nº 10.257/01, o instrumento
do plano diretor precisou ser abarcado no planejamento urbano de inú-
meros municípios brasileiros. Através da Lei Municipal nº 335/2006, foi
instituído o Plano Diretor de Paço do Lumiar. Composto por oito títulos,
dispõe sobre diretrizes gerais, macropolítica do meio ambiente natural e
edificado – e de seus instrumentos, macropolítica da infraestrutura social
e econômica, e macropolítica de planejamento e gestão democrática.
Este plano diretor elenca como objetivo maior ordenar a cidade, as-
segurar o cumprimento da função social desta e da propriedade urbana e
rural, na busca do bem-estar dos habitantes (art. 2º). Para o cumprimento
efetivo da função social da cidade e da propriedade urbana e rural, o
Plano Diretor estabelece uma série de diretrizes fundamentais, quais
sejam as principais:

Art. 3º. I – Direito a uma cidade sustentável, através do


direito à terra urbana e rural, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infraestrutura urbana e rural, à saúde, à edu-
cação, aos transportes e serviços públicos, ao trabalho e
renda justa, à cultura e ao lazer;
IV – previsão na legislação de parcelamento do solo para permitir
a redução dos custos da construção e aumentar a oferta de lotes
e unidades habitacionais;
V – regularização fundiária e urbanização de áreas ocu-
padas por população de baixa renda mediante o esta-

4 BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da
Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial
da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 04 de setembro de 2001.

127
belecimento de normas especiais de urbanização, uso e
ocupação do solo e da edificação, sob a ótica da situação
socioeconômica da população;
VII – adequação dos diferentes instrumentos de política econô-
mica, tributária, financeira e dos gastos públicos para o cumpri-
mento dos objetivos do desenvolvimento urbano;
x – acesso aos espaços, equipamentos e serviços públicos para
todos os cidadãos, especialmente aos portadores de necessidades
especiais;5 (grifou-se)

Em Paço do Lumiar, para que a cidade cumpra sua função social, é fun-
damental que haja o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à
qualidade de vida, à justiça social, ao acesso universal dos direitos sociais
e ao desenvolvimento econômico. É função social também do município
garantir elementos que conduzam a uma gestão democrática da cidade,
com a abertura de espaços para a participação dos habitantes nas decisões
públicas e com a universalização de direitos sociais.
Um dos pilares deste Plano Diretor refere-se à definição do conteúdo
da função social da propriedade urbana e rural. O Estatuto da Cidade (art.
39) destinou o preenchimento deste conteúdo aos planos diretores, uma
vez que é no âmbito municipal que podem ser analisadas com maior
eficiência as singularidades da estrutura fundiária local. Desse modo, o
direito de propriedade pode-se transformar no direito à propriedade, isto
é, passa a ser definido em virtude de uma função socialmente orientada.
Sendo assim, no que toca à propriedade urbana, estabelece o Plano
Diretor:

Art. 5º - A propriedade urbana cumpre sua função social ao aten-


der, no mínimo, a compatibilidade do uso da propriedade com:
I – a infraestrutura, equipamentos e serviços públicos disponíveis;
II – a preservação da qualidade do meio ambiente urbano e rural;
III – a segurança, bem estar, educação e saúde de seus usuários.6

Diante da gama de diretrizes elencadas pelo Plano Diretor e da inovação

5 PAÇO DO LUMIAR. Lei nº 335 de 09 de outubro de 2006. Dispõe sobre o Plano Diretor de Paço do Lumiar e
dá outras providências. Paço do Lumiar, MA, 2006.

6 Id. 2006.

128
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da Constituição Federal ao inserir o princípio da função social da proprie-


dade, esperava-se ao menos uma consistência maior do conteúdo desta
função em relação à propriedade urbana de Paço. A norma basicamente
trata de requisitos formais mínimos a serem respeitados pela propriedade
privada. Não faz referência alguma a importância da posse, não contri-
buindo, portanto, para a defesa fundamental do direito à moradia.
Em contrapartida, quanto à política habitacional do município, o art.
14 do Plano define seus objetivos, a saber: identificar o déficit habitacional
do município e promover a sua redução, promover o acesso à moradia
digna à população de baixa renda e a melhoria de qualidade das habitações
classificadas como de interesse social.
Apesar do ponto de incoerência exposto acima, existe uma série de
direitos afirmados e assegurados no Plano Diretor de Paço do Lumiar,
seguindo a linha de outros planos diretores existentes pelo país. O que se
espera, minimamente, é que haja vontade política em garantir a concretude
de tais normas. Entretanto, existe um impasse em torno da efetividade do
instrumento, em âmbito geral.
O dilema diz respeito aos interesses conflitantes das partes que pactuam
para a construção de um plano diretor. De um lado, temos a população
em massa, composta majoritariamente por moradores de baixa renda e
minorias, que sentem de perto as consequências da expansão desenfreada
do espaço urbano. Expansão esta, gerada pela outra parte do pacto, a elite
econômica brasileira, representada principalmente pelo setor empresarial
imobiliário. Sobre este impasse, coloca Linda Gondim,

É preciso ter em conta que tal compromisso implica concessões


cujos custos são concretos e imediatos, enquanto seus benefícios
são hipotéticos e remotos. Para aceitar fazer concessões, é pre-
ciso, em primeiro lugar, que os pactuantes estejam convictos de
que suas chances de vitória num eventual conflito seriam remotas
e, em segundo, acreditem que um acordo evitaria males maiores
do que as perdas imediatas. 7

7 GONDIM, Linda M.P. O plano diretor como instrumento de um pacto social urbano: quem põe o guizo no
gato? Disponível em: < http://revistas.fee.tche.br/index.php/ensaios/article/viewFile/1781/2152>. Acesso
em: 10 ago. 2012, p.03.

129
Como aborda a autora adiante, dificilmente os agentes ligados aos
grandes empreendimentos imobiliários, vão permitir a inviabilidade de
seus projetos, que visam à lucratividade da propriedade privada do solo
urbano e a apropriação de certos serviços públicos. Todavia, para fechar
o compromisso social, que é a construção de um plano diretor com as
diversas partes envolvidas nesse processo, é necessário que ao menos
no plano teórico – aquele que consta no papel – sejam feitas concessões
visando estabelecer uma negociação, pois existe um longo processo para
a concretização das normas, que não é seguro, geralmente não tem prazo
e não segue a ordem aparente.
No que se refere à efetividade dos planos diretores, a realidade de Paço
do Lumiar não difere das grandes cidades brasileiras. Em seu próprio Pla-
no Diretor, há o reconhecimento da situação de irregularidade fundiária
por que passa o município, com a definição de vinte e oito áreas urbanas
como zonas especiais de interesse social8.
A grande quantidade de áreas que precisam de regularização fundiária
determinadas no Plano Diretor é apenas uma parte do conjunto de inúme-
ras comunidades que passam por problemas semelhantes no município.
Em relação à sua conformação urbanística,

Percebe-se que há uma enorme concentração de investimentos


imobiliários pelo mercado hegemônico nas glebas litorâneas,
enquanto grande parte da cidade se constrói de maneira infor-
mal e precária. A estratégia diz respeito à construção de ilhas de
modernidade cercadas por gigantes áreas de não-cidade.Nesta
senda, os problemas da segregação espacial, da degradação
do meio ambiente, da crise habitacional e do acesso informal
à moradia e à cidade têm se mostrado presentes na realidade
maranhense. Paço do Lumiar não destoa no cenário da Ilha de
São Luís. No município de, aproximadamente, 100 mil habi-
tantes é muito débil o número daqueles que têm sua situação
habitacional regularizada. Não bastasse a insegurança jurídica
da circunstância, a ameaça constante de despejos forçados que
inúmeras comunidades sofrem ainda se agrava devido a pres-
sões do mercado imobiliário, dada a proximidade com a capital.

8 De acordo com o Plano Diretor, as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS são porções do território
destinadas, prioritariamente, à recuperação urbanística, à regularização fundiária e produção de Habitações
de Interesse Social – HIS ou do Mercado Popular - HMP, incluindo a recuperação de imóveis degradados, a
provisão de equipamentos sociais e culturais, espaços públicos, serviço e comércio de caráter local.

130
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Grande parte de seu território se apresenta como extensão da


área litorânea de São Luís e tem sido visada para a construção
de condomínios de luxo.9

Esse contexto de irregularidade fundiária não passou despercebido


pelas instâncias do Poder Público local. Em 25 de março de 2010, foi
realizada uma audiência pública sobre áreas em risco de ação judicial e
reintegração de posse em Paço do Lumiar. O compromisso principal esta-
belecido foi a formação de um grupo de trabalho presidido pela Prefeitura
Municipal de Paço do Lumiar com parceria do Ministério das Cidades,
OAB/MA, Secretaria Estadual de Direitos Humanos, Defensoria Pública
do Maranhão (DPE/MA) e da União, e com as comunidades, para a cons-
trução de um plano e de projetos de regularização fundiária sustentáveis
no município. Tal medida expressa a necessidade iminente de regularizar
o espaço urbano de Paço do Lumiar.
Em virtude deste cenário, no dia 10 de abril de 2010, diversas comu-
nidades constituíram o Fórum das Comunidades Ameaçadas de Despejos
Forçados de Paço do Lumiar. Este fórum atualmente conta com a partici-
pação de mais de trinta comunidades, aglutinadas em torno do processo
de ocupação e regularização fundiária do espaço urbano municipal.
Diante da omissão do poder público local e da situação de conflito
possessório vivido por diversas comunidades da região, em 10 de agosto
de 2011 foi realizada, na Assembleia Legislativa do Maranhão, a Audiência
Pública intitulada “Os direitos fundamentais das comunidades e a questão
fundiária na ilha de São Luís”. Esta propôs uma ampla discussão com as
comunidades e as autoridades envolvidas sobre a questão fundiária, em
busca de soluções que assegurassem o amplo direito à moradia.
A situação de Paço do Lumiar pôde ser exposta na ocasião através da
participação de inúmeras comunidades, como Cajueiro, Eugênio Pereira,

9 EVERTON, Carlos José Penha; LINHARES, Paulo César Corrêa; SILVA, Nathália Castro da. Assessoria Jurídica
Universitária Popular e o Direito à moradia: a experiência do NAJUP “Negro Cosme” na comunidade “Lote-
amento Todos os Santos”. In: Por uma visão crítica e interdisciplinar do Direito: revista do SAJU v.07 n. 02.
Coord. Augusto Jaeger Junior et al. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012, p. 13.

131
Todos os Santos, Menino Gabriel, Vila Cafeteira, entre outras.
Para que se possa entender substancialmente o cenário da luta pelo
direito à moradia e à cidade, que diversas comunidades compartilham
de modo semelhante, faz-se necessário apresentar um recorte territorial
mais específico, em que também esta pesquisa se insere: a comunidade
Todos os Santos.
A comunidade, localizada à margem esquerda da Estrada de Rodagem
que vai do Maracajá ao Olho D’água, no município de Paço do Lumiar,
compreende uma área de aproximadamente 140.710,00 m²10. “Todos os
Santos” nasceu enquanto comunidade através de uma ocupação realiza-
da por mais de 150 (cento e cinquenta) famílias em outubro de 2007, na
referida área. Esta ocupação deu origem a um litígio judicial (processo nº
1063/2007, 2ª Vara da Comarca de Paço do Lumiar) entre o conjunto de
moradores e o empresário Douglas Ferreira de Pinho, sócio-proprietário
da empresa imobiliária Setran Empreendimentos Ltda, que se apresentou
como proprietário da citada terra.
O processo judicial em destaque iniciou-se com o ajuizamento de uma
ação de reintegração de posse por Douglas Pinho em face dos moradores/
ocupantes da área em questão. O autor alegou ser proprietário e possuidor
da terra há mais de cinco anos, tendo-a adquirido de PENA BRANCA DO
MARANHÃO S/A AVICULTURA, através de Escritura Pública de Compra e
Venda lavrada em 23 de abril de 2002. Expôs ainda que tentou, de forma
amigável, retomar a área, porém sem sucesso.
Apesar de ter utilizado um instrumento processual eminentemente
possessório, o direito de propriedade foi fundamento majoritário em seu
argumento de defesa da posse, bem como o tratamento desta como apên-
dice daquele direito, como se instituto autônomo não fosse.
Em 12 de dezembro de 2007, após a oitiva de testemunhas e de uma
das partes, foi expedida a decisão, pela juíza titular da 2ª Vara da Comarca
de Paço do Lumiar à época, em favor do requerente.
Em contraposição, a DPE/MA, em 22 de abril de 2008, representando

10 Dados provenientes do Processo nº 1063/2007, que tramita na 2ª Vara da Comarca de Paço do Lumiar.

132
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

os moradores/ocupantes da área, interpôs agravo de instrumento objeti-


vando garantir a suspensão dos efeitos da decisão que deferiu a liminar de
reintegração de posse, autorizando a permanência dos ocupantes na área
sob litígio. Visou ainda que, sendo provido o agravo, fosse reconhecida a
nulidade de todos os atos processuais, a partir da audiência de justificação
prévia, uma vez que os ocupantes réus não foram regularmente citados.
A Defensoria elencou que o terreno em questão trata-se, na verdade,
de um loteamento clandestino e irregular, já que não houve um apro-
veitamento adequado da propriedade, uma vez que o Agravado foi de-
nunciado pelo Ministério Público Federal perante a Comarca de Paço do
Lumiar (Inquérito Civil nº 002/2005) por ter dado início a loteamento ou
desmembramento do solo para fins urbanos, sem autorização do órgão
público competente, e por veicular publicamente afirmação falsa sobre a
legalidade do loteamento, conforme os arts. 50, I e III, c/c § único, I c/c
art. 51, da Lei nº 6.766/79.
Soma-se a isto o fato de que a área foi utilizada pelos ocupantes com
o único fito de garantir o direito à subsistência, expressão da dignidade
da pessoa humana e do direito à vida, já que a moradia é um direito
fundamental sem o qual os demais direitos basilares do ser humano não
podem ser exercidos.
Assim, em caráter definitivo, em 24 de julho de 2008, a 3ª Câmara Cí-
vel do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, manifesta-se sobre o
caso, expedindo o acórdão que conhece do recurso e lhe dá provimento,
para anular o processo a partir da audiência de justificação prévia, aí se
incluindo a decisão concessiva liminar reintegratória, por ausência de
citação do réu para acompanhar o ato de justificação.

2 EXPERIÊNCIAS DE ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR: INSEGURANÇA DA


POSSE COMO REALIDADE DA COMUNIDADE “TODOS OS SANTOS”

Neste ponto, cabe explicitar o modo de contato da pesquisadora com


a realidade fundiária de Paço do Lumiar. Durante o período da graduação

133
em Direito, foi integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária
Popular – NAJUP “Negro Cosme”. De acordo com o seu projeto de extensão,

O Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP)


“Negro Cosme” existe formalmente desde 2000, data na qual foi
aprovado pela Assembleia Departamental de Direito da Univer-
sidade Federal do Maranhão, o que atesta a existência do grupo
perante a instituição. […] O Núcleo atua com uma postura ino-
vadora na extensão em Direito, substituindo o trabalho de assis-
tência judiciária (pura e simples, que se resume ao ajuizamento
de ações), pelo trabalho de educação popular em direitos
humanos, fortalecendo o protagonismo popular como forma
de libertação social. 11

De acordo com Celso Campilongo12, o trabalho da assessoria jurí-


dica popular apresenta-se, no campo da extensão universitária, como
um serviço legal inovador. Aprofundando-se teoricamente, Luiz Otávio
Ribas explicita:

Dessa forma, pode-se aproximar de um conceito de “assessoria


jurídica popular”, que seria uma prática jurídica insurgente desen-
volvida por advogados, professores ou estudantes de direito, entre
outros, voltada para a realização de ações de acesso à justiça e/
ou educação popular em direitos humanos, organização comuni-
tária e participação popular de grupos ou movimentos sociais. 13

Nesse sentido, é importante fazer o recorte político que caracteriza e


distingue o trabalho da assessoria jurídica popular dos demais trabalhos
extensionistas:

Queremos demarcar que a distinção, o corte que põe em lados


opostos o que têm chamado de Assistência Jurídica e Assessoria
Jurídica Popular ou Serviços Legais Tradicionais e Serviços Legais
Inovadores é o aprofundamento do conteúdo político e da refle-
xão exercitada pelo estudante ou profissional do Direito sobre
seu papel no mundo. Ambos fazem-se presentes no trabalho da
Assessoria Jurídica Popular. Mais do que isso, ao realizar este
exercício, ao reconhecer-se enquanto sujeito político, o assessor

11 COSME, Najup Negro. Projeto de extensão universitária “Pés no Chão”. Pró – Reitoria de Extensão da Uni-
versidade Federal do Maranhão. São Luís, 2011, p. 02.
12 CAMPILONGO, Celso; PRESSBURGER, Miguel. Discutindo a assessoria popular. Rio de Janeiro: AJUP/FASE,
jun. 1991. Coleção “seminários”, n. 15.
13 RIBAS, Luiz Otávio. Acesso à justiça e educação popular. Caderno de Textos do xII Encontro da Rede
Nacional de Assessorias Jurídicas Universitárias. Teresina: EDUFPI, 2010, p.29.

134
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

jurídico militante faz uma opção: pelo trabalhador explorado, pelo


desempregado, pelo camponês, pela mulher, pela criança, pelos
homossexuais, pelos índios. Pelo povo. Faz uma opção pelos
setores calados, subalternizados pelas formas hegemônicas de
produção do econômico, do social e do político.14

Essa opção feita pela assessoria jurídica popular reflete a sua compre-
ensão política frente à conjuntura social no atual Estado Democrático de
Direito no país15. Graças a essa aparência sólida de garantidor de direitos,
de promotor da participação cidadã do povo, o Estado Democrático, em
sua essência, claramente é excludente, uma vez que grande parte da
população sequer tem suporte básico de direitos que a permita exercer
conscientemente seu papel político e, assim, ter condições de mudar as
condições socialmente impostas.
Nessa medida, o Direito, como parte integrante dessa superestrutura
estatal, não vem se posicionando de modo diverso. Apesar do pretenso
discurso de neutralidade, o Direito historicamente se mostra desfavorável
às demandas das camadas sociais menos favorecidas, mantendo assim a
vigente ordem de desigualdade social.
Assim expõe Antônio Alberto Machado:

Numa sociedade capitalista, naturalmente estratificada, a pauta


ideológica das classes que figuram no topo da hierarquia social
necessita ao menos da aparência de legalidade para lograr o
consenso legitimador. E essa, digamos, aura de legalidade, é
perseguida por intermédio do discurso dogmático que apresenta,
retoricamente, a lei como instância desideologizada, indiferente
aos interesses políticos desta ou daquela classe. 16

Neste campo de disputas, para compreender a prática das assessorias


jurídicas populares, é relevante trazer à exposição as categorias emanci-

14 LIMA, Thiago Arruda Queiroz. A assessoria jurídica popular como aprofundamento (e opção) do conteúdo
político do serviço jurídico. Disponível em: < http://www.urca.br/ered2008/CDAnais/pdf/SD1_files/Thia-
go_ARRUDA.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2012, p-02-03.
15 Para Gomes Canotilho, um Estado de Direito pressupõe a sujeição do poder a princípios e regras jurídicas,
garantindo às pessoas e cidadãos liberdade, igualdade e segurança. Mas, por outro lado, o Estado Constitucional
é também um Estado Democrático. A legitimidade do domínio político e a legitimação do exercício do poder
radicam na soberania popular e na vontade popular. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito.
Coleção Cadernos Democráticos. Lisboa: Gradiva, 1999, p. 31.
16 MACHADO. Antônio Alberto. Ministério Público – Democracia e Ensino Jurídico. Belo Horizonte: Editora
Del Rey, 2000, p. 41.

135
patórias no seio do Direito, elencadas por Edmundo Lima de Arruda Junior:

Em seu pensamento, as lutas por emancipação social travadas na


instância jurídica abrangem os campos da legalidade relida, da
legalidade sonegada e da legalidade negada. A legalidade relida
diz respeito às batalhas interpretativas no sentido de criar, dentro
do próprio sistema jurídico, sentidos para as normas vigentes,
denunciando, assim, o esgotamento do paradigma legal tradicio-
nal. A legalidade sonegada seria relativa à busca pela efetividade
dos instrumentos normativos vigentes, constitucionais ou infra-
constitucionais, desde que contenham um núcleo emancipatório.
E a legalidade negada concerne ao reconhecimento de práticas
insurgentes enquanto legítimas constituintes de direitos e à
atuação próxima aos movimentos sociais, no sentido de validar
suas demandas jurídicas pautadas no reconhecimento das sub-
jetividades e necessidades fundamentais.17

Embora esteja mais próxima do âmbito da legalidade negada, o NAJUP


não negligencia as demais categorias, já que de acordo com Juary Chagas
(2011), o Direito pode e deve ser utilizado como meio de instrumento
para proteger a classe trabalhadora, os indigentes e as minorias contra
as investidas do poderio econômico dominante. Entretanto, cabe àqueles
compreenderem que o Direito, em sua essência, não tem condições de
conduzir a uma transformação definitiva da sociedade, justamente por
servir como um dos braços hegemônicos de dominação.
Após a exposição dos elementos e análises políticas que balizam as
práticas das assessorias jurídicas populares, cabe refletir sobre a atuação
local do NAJUP.
Entre o início de 2011 até os dias atuais, o NAJUP organiza suas ativi-
dades em torno do projeto de extensão “Pés no Chão”, cadastrado na Pró-
-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Maranhão. Englobando
um conjunto de oficinas temáticas referentes ao direito à moradia, direito
à cidade, organização popular e acesso à justiça, além de trabalhar na
perspectiva de resistência popular junto ao povo, este projeto nasce em
um contexto de intenso protagonismo comunitário.
Como já dito, o município de Paço do Lumiar possui uma realidade

17 EVERTON; LINHARES; SILVA; 2012 apud ARRUDA JUNIOR 1997, p. 67.

136
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

latente de insegurança da posse em várias comunidades. Tais problemas


vieram à tona em novembro de 2009, conforme exposto no Projeto “Pés
no Chão”:

Neste contexto, em 18 de novembro de 2009, uma reintegração


de posse ocorrida na antiga comunidade Bob Kennedy, na qual
45 famílias foram privadas do direito a uma habitação digna por
terem suas casas derrubadas, se tornou emblemática no quadro
dos conflitos fundiários urbanos do município de Paço do Lumiar.
A história da mãe Gillene Souza que deixou a comunidade dias
antes para dar a luz Gabriel e, ao retornar, encontrou sua casa
destruída por tratores, rebatizou a comunidade com o nome de
‘Menino Gabriel’ e foi o gérmen da mobilização de um conjunto
de entidades e comunidades em todo o estado do Maranhão.18

A partir deste conflito e de inúmeros outros surgidos na Ilha, em 2010,


um conjunto de entidades de defesa dos Direitos Humanos organizou-se
em defesa do direito à moradia e à cidade, criando o Fórum de Combate
aos Despejos Forçados. Este Fórum agrega as seguintes entidades/grupos:
Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA, Núcleo do Direito à Moradia
(DPE/MA), NAJUP “Negro Cosme”, Comissão Pastoral da Terra/MA, União
Estadual por Moradia Popular/MA, Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra/MA. Além destas, a força popular deu-se através da participação
do Fórum das Comunidades Ameaçadas de Despejos Forçados de Paço do
Lumiar, além da integração de outras comunidades independentes da Ilha.
Assim, à medida que o NAJUP se inseriu nesta organização, foi possível
ter um contato real com diversas comunidades ameaçadas de despejos
forçados. Visando realizar um trabalho de organização popular mais foca-
lizado em alguma comunidade, “Todos os Santos” se destacou por haver
uma liderança bem articulada, na pessoa da senhora Carmosina Leite e,
em contraposição, por perceber a maior parte da comunidade pouco ativa,
mesmo com a iminência de despejo forçado da área.
Destarte, objetivando construir junto aos moradores um trabalho con-
sistente de articulação, de protagonismo popular, de reconhecimento e
luta por direitos fundamentais é que o NAJUP organizou sua atuação ex-

18 Id., 2011, p. 13.

137
tensionista em torno desta comunidade através do Projeto “Pés no chão”.
As problemáticas surgidas desenvolveram-se para além da questão
processual anteriormente apresentada. Desde o início de seu trabalho,
em 2011, o NAJUP percebe a gama de aviltamento de direitos que sofrem
os moradores:

No caso de “Todos os Santos”, além do que diz respeito ao direito


à moradia e ao direito à cidade – que são temas geradores das
discussões – foi observado um déficit muito grande de concreção
de outros direitos sociais, tal como saneamento básico, transporte
público, educação formal básica.
Neste sentido, muitos dos encontros tidos com a comunidade
foram dedicados a discussões sobre o total descaso do poder
público para com a falta de abastecimento de água e as possíveis
soluções que a própria comunidade poderia viabilizar para o pro-
blema. Durante este momento, o amadurecimento das discussões
foi fundamental para que a comunidade não realizasse acordo
com um futuro candidato a Prefeito do município, o qual realizou
visitas à comunidade constrangendo os moradores a tê-lo como
candidato. Por decisão autônoma, apesar de não unânime, a
comunidade reconheceu as contradições da proposta que a ela
se avultava e a recusou. 19

Ademais, foi possível perceber uma falta de união entre parte dos
moradores, uma vez que os mais antigos, que se estabeleceram na área
através da compra do loteamento irregular da SETRAN, preferem não se
relacionar com outros moradores, a quem denominam de “invasores”,
dificultando assim a luta coletiva pelo direito à moradia e à cidade, que
envolve a comunidade como um todo.
Por volta dos meses de maio e junho de 2011, a comunidade começou
a ser assediada pela Imobiliária MASA que, através de ameaças de des-
pejo forçado, reivindicava a titularidade de parte da área para si, visando
construir um empreendimento imobiliário denominado “Cidade Verde”,
vinculado ao Programa “Minha Casa Minha Vida”, do Governo Federal.
Este assédio reiterado aos moradores culminou em uma ação
truculenta em 10 de junho de 2011, na qual foi realizado um despejo
parcial na comunidade, com a derrubada de três casas, pertencentes

19 Id., 2012, p-15-16.

138
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

às senhoras Maria Natália Carvalho, Conceição Maria Lima dos Santos


e Cristiane Sousa. Também foram destruídas as áreas de plantação
dos moradores João Batista Mendonça Farias e Luis Carlos Pereira
Marques. Tal ação não chegou a ser mais nociva em virtude da rápida
intervenção em defesa da comunidade, implementada pelo NAJUP,
em parceria com a DPE/MA e com os próprios moradores. Ressalta-se
que tal ação violenta deu-se ilegalmente, com a presença de tratores
e policiais armados vestidos à paisana20.
Como o “Cidade Verde” é um projeto imobiliário financiado pela Caixa
Econômica Federal, por ser vinculado ao Programa Minha Casa Minha
Vida, não seria interessante para a empresa que o terreno de construção
do projeto fosse objeto de litígio judicial. Sendo esta informação de conhe-
cimento público e tencionando dialogar uma solução finalizar o impasse
travado entre moradores e a construtora, estabeleceu-se uma negociação
entre as partes, mediada pelo Centro Comunitário “Mulheres em Ação” –
CECOMA, NAJUP, DPE/MA, Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA
e União Estadual por Moradia Popular/MA.
Através desta negociação, foi possível a assinatura de um Termo de
Ajustamento de Conduta – TAC, tendo como partes, de um lado, a DPE/
MA, e do outro a MASA – Imobiliária, Construção, Incorporação e Hote-
laria Ltda, primeira compromissária. Como segundo compromissário se
apresentou o CECOMA. Já como intervenientes do TAC, apresentaram-
-se, a Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA, a União Estadual por
Moradia Popular/MA e o NAJUP “Negro Cosme”.
O TAC estabeleceu como objetivo fundamental, de acordo com sua
cláusula primeira, a delimitação da linha limítrofe entre a área denominada
“Loteamento Cidade Verde”, localizada em Paço do Lumiar, e a comuni-
dade “Todos os Santos”, bem como detalhar o procedimento de reparação
dos danos sofridos por moradores da área pela ação da empresa citada,

20 O vídeo intitulado como “Conflito de Terras em Paço do Lumiar/MA”, que mostra a tentativa ilegal de des-
pejo levada a cabo pela construtora em 10/06/2011, pode ser acessado virtualmente. Disponível em: <www.
youtube.com/watch?v=EZJl0M5hMD0> Acesso em: 01.07.2011.

139
mediante o cumprimento de obrigações estipuladas e assumidas pelos
compromissários e anuentes. A empresa se comprometeu a reconstruir
as três casas que foram derrubadas e a indenizar dois moradores que
tiveram suas áreas de roça destruídas.
Como forma de compensação pelos danos morais coletivos sofridos
pela comunidade, a empresa também se empenhou na construção de
um poço com caixa d’água e bomba (projeto aprovado pelo Serviço Au-
tônomo de Água e Esgoto – SAAE/ Paço do Lumiar), a ser utilizado por
toda a comunidade. Ainda como reparação, a empresa comprometeu-se
a construir a sede social do CECOMA, em alvenaria.
Após o transcorrer do prazo de seis meses estabelecido no TAC,
encontram-se devidamente cumpridas as obrigações imputadas à MASA.
Para além desta intervenção pontual de construção coletiva do TAC, o
trabalho de assessoria jurídica popular continua ser realizado em “Todos os
Santos”, seja através da realização de oficinas que contemplam a questão
da moradia – que ainda não foi assegurada efetivamente– seja através
de trabalho de base, estimulando o protagonismo dos moradores para
se reconheçam enquanto sujeitos ativos da luta pelo direito à moradia, à
cidade e por tantos outros direitos básicos seus.

3 REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E PERSPECTIVAS DE EFETIVAÇÃO DO


DIREITO À MORADIA PARA A COMUNIDADE “TODOS OS SANTOS”

Diversos elementos caracterizam hoje “Todos os Santos” como uma


comunidade urbana consolidada. Com cerca de 300 famílias, em 2012, ela
completou cinco anos de efetiva posse na terra. Neste período, “Todos os
Santos” foi aos poucos adquirindo infraestrutura urbana, importante para
o seu processo de consolidação.
A comunidade possui rede pública de energia elétrica a cobrir as resi-
dências ali existentes, incluindo a iluminação nas vias públicas, pleiteada
em 2008, através do Programa Federal “Luz para Todos”. Possui um sistema
de abastecimento de água, conquistado através do TAC referido anterior-

140
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mente. Tal sistema é composto de um poço com caixa d’água e bomba,


e canos de transmissão para as residências. Este sistema foi constituído
pela empresa MASA, com auxílio do Serviço de Abastecimento de Água e
Esgoto (SAAE) de Paço do Lumiar. Além destes equipamentos, percebe-se
o aumento no número de construção de casas de alvenaria, de pequenos
comércios, a construção de uma igreja, plantações.
É importante ressaltar a presença de um centro comunitário consolida-
do e registrado, o Centro Comunitário “Mulheres em Ação” – CECOMA, que
possui um papel fundamental de articulação dentro de “Todos os Santos”,
na medida em que é espaço de diálogo local, de promoção de assembleias,
de mobilização política e que vem construindo junto aos moradores uma
luta significativa no que concerne ao direito à moradia, com conquistas
notáveis, como o TAC já citado. Ademais, verifica-se que a própria Prefei-
tura Municipal reconhece a existência da comunidade consolidada, já que
destina para os moradores da área benefícios públicos, como a instalação
de melhorias sanitárias nas residências.
Estes dados denotam a significativa modificação que ocorreu na loca-
lidade ao longo desses cinco anos, permitindo a sua solidez e reconheci-
mento público enquanto comunidade estabelecida.
No que toca à seara jurídica, a questão apresenta-se mais comple-
xa. Como já dito, o direito à moradia abrange um complexo de deveres
prestacionais, positivos e negativos. Um de seus elementos essenciais é a
segurança jurídica da posse, que permite ao indivíduo a garantia mínima
de um “teto” para sobreviver.
Pela análise do cenário já explanado, a perspectiva de regularização
fundiária da comunidade concentra-se em torno de um instrumento
urbanístico nascido com o novo Código Civil de 2002, a desapropriação
judicial indireta. Este instituto está previsto no §4º do art. 1.228 do Código
Civil, a saber:

§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel


reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e
de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de
pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou sepa-

141
radamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse
social e econômico relevante.21

Esta modalidade de desapropriação comporta diversos requisitos: o


imóvel deve consistir em “extensa área”; a posse deve ser ininterrupta e
de boa fé; deve ter mais de cinco anos; a área deve ter um “considerável
número de pessoas” e possuir uma série de obras/serviços construídos
pelas pessoas que ocupam a área, denotando assim uma relevância social
e econômica.
Alguns destes requisitos tratam-se, em verdade, de conceitos jurídi-
cos indeterminados, que vincularão a concretização do instituto a uma
construção jurisprudencial, pois caberá ao magistrado um juízo de valo-
ração acerca do conteúdo destes conceitos, dependendo, sem dúvida, da
tensão gerada e da ponderação realizada entre a função social da posse
e o direito de propriedade22.
Neste sentido, a desapropriação judicial indireta, para ser plena e pro-
duzir efeitos jurídicos, necessita transmitir uma contrapartida pecuniária
ao titular da propriedade privada, que será concretizada através de uma
indenização. O §5º do art. 1.228 do Código Civil expõe que, no caso da
desapropriação judicial indireta, o juiz fixará a justa indenização ao pro-
prietário. E que pago o preço, valerá a sentença como título para o registro
do imóvel, em nome dos possuidores.
Tratando-se de uma ocupação constituída basicamente de moradores
de baixa renda, cabe uma reflexão acerca de como se dará a devida inde-
nização. Em análise sobre a questão, expressa Nelson Rosenvald:

A resposta para a primeira questão admite duas opções: os


próprios possuidores ou o Poder Público. Buscando o que seria
razoável dentro do contexto da norma, é possível admitir ambas
as soluções, na medida em que certas variáveis se descortinam.

21 BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10. 406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil. Brasília, DF, 10 de janeiro de 2002.
22 A expressão “conceito jurídico indeterminado” significa a vaguidade semântica existente em certa norma
com a finalidade de que ela, a norma, permaneça, ao ser aplicada, sempre atual e correspondente aos an-
seios da sociedade nos vários momentos históricos em que a lei é interpretada e aplicada. (ABREU, Frederico
do Valle. Conceito jurídico indeterminado, interpretação da lei, processo e suposto poder discricionário do
magistrado. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6674>. Acesso em: 24 maio 2007)

142
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A primeira situação seria aquela em que uma coletividade de


pessoas com condições econômicas precárias ocupam uma gleba
abandonada pelo proprietário, deferindo moradia e cumprindo
a função social da posse. Se estes possuidores forem responsa-
bilizados pelo pagamento, a lei estaria criando uma espécie de
usucapião coletiva onerosa, na qual haveria sérias dúvidas sobre
a capacidade financeira e o desejo dos possuidores em arcar com
os pesados custos do pagamento ao proprietário.23

Nessa linha, descortina-se o Enunciado nº 308 do Conselho de Justiça


Federal:

A justa indenização devida ao proprietário em caso de desapro-


priação judicial (art. 1.228, §5º) somente deverá ser suportada
pela Administração Pública no contexto das políticas urbanas
de reforma urbana ou agrária, em se tratando de possuidores de
baixa renda e desde que tenha havido intervenção daquela nos
termos da lei processual. Não sendo os possuidores de baixa
renda, aplica-se a orientação do Enunciado 84 da I jornada de
direito civil.24

O Enunciado 84 explicita que a defesa fundiária com origem no direito


de aquisição com base somente no interesse social deve ser indenizável
pelos próprios responsáveis ao titular da propriedade. Isto é, em situa-
ções em que grupos de indivíduos com certo poder aquisitivo realizam
obras, serviços e melhoramentos em uma área, não se confundindo com
a ocupação realizada por grupo de pessoas em um nível de pobreza que
necessita daquela terra para assegurar seu direito à moradia.
A questão referente à indenização da terra é um dos elementos que
diferencia o instituto da desapropriação judicial indireta da usucapião
especial urbana, prevista no art. 9º do Estatuto da Cidade.
Em casos de assentamentos urbanos pobres, que necessitam da terra
para a moradia e geração de renda, é cabível a concretização dos dois
institutos, mas na desapropriação judicial indireta o Estado pode arcar
com o ônus da indenização. Já no caso da usucapião urbana, a posse

23 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009,
p. 43.

24 Enunciado 308. Conselho da Justiça Federal. Brasília, 2010.

143
transforma-se em propriedade a título gratuito.
Outro elemento que diferencia os dois institutos é que a usucapião não
exige boa-fé dos ocupantes como a desapropriação indireta. Todavia, re-
quer que no lastro temporal de cinco anos não haja oposição à ocupação,
isto é, que não tenha litígio causado por terceiro referente à titularidade
da terra. Este último elemento não é exigido na desapropriação indireta.
No caso em tela, a comunidade “Todos os Santos” preenche todos os
requisitos que garantem a concretização da desapropriação judicial indi-
reta da área, a saber: um considerável número de pessoas tem a posse de
uma extensa área por mais de cinco anos, ininterruptamente, de boa-fé
e nesta realizou obras e serviços social e economicamente relevantes.
Ademais, em consonância com a Lei nº 11.977/09, que dispõe sobre o
Programa Federal “Minha Casa Minha Vida” e sobre a regularização fundi-
ária de assentamentos urbanos, a citada ocupação pode ser considerada
como área urbana consolidada, uma vez que possui abastecimento de
água potável e distribuição de energia elétrica, como dispõe o art. 47 da
citada legislação:

Art. 47. Para efeitos da regularização fundiária de assentamentos


urbanos, consideram-se:
II – área urbana consolidada: parcela da área urbana com densida-
de demográfica superior a 50 (cinquenta) habitantes por hectare
e malha viária implantada e que tenha, no mínimo, 2 (dois) dos
seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados:
a) drenagem de águas pluviais urbanas;
b) esgotamento sanitário;
c) abastecimento de água potável;
d) distribuição de energia elétrica; ou
e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos;25

No que toca à seara processual, expressa Nelson Rosenvald:

A defesa fundada no direito de aquisição com base no interesse


social será suscitada pelos réus da ação reivindicatória. Para que
ocorra a possibilidade da desapropriação judicial (CC, art. 1.228,
§§ 4º e 5º), é necessário, além da presença dos pressupostos

25 BRASIL. Presidência da República. Lei nº 11.977 de 07 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha
Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. Diário
Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 07 de julho de 2009.

144
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

legais, que haja intenção das partes na sua realização, sendo


importante considerar que os possuidores talvez não tenham a
pretensão de pagar o eventual preço fixado nem de adquirir a
propriedade do respectivo imóvel. Dai a necessidade de pedido
expresso nesse sentido, ou mesmo de conciliação realizada no
curso do respectivo processo reivindicatório. Cuida-se de alega-
ção em sede de defesa, na qual os possuidores efetuam pedido
contraposto, deduzindo pretensão em sede de contestação, o
que provocará o alargamento do processo, pois a sentença será
formalmente uma, porém materialmente dúplice. A decisão
produzirá coisa julgada em favor da coletividade que deduzir a
pretensão expropriatória. 26

Assim, o pedido de desapropriação indireta não pode ser gerar uma


ação autônoma, mas sim surgir em sede de contestação àquela decisão
de reintegração de posse prolatada em 2007 contra a comunidade “Todos
os Santos”.
Por todas as razões expostas, a perspectiva concreta de regularização
fundiária da comunidade “Todos os Santos” e de efetivação do direito à
moradia, dá-se com a implementação da desapropriação judicial indireta
para a referida área. Desapropriação que só pôde ser vislumbrada como
possibilidade real para a comunidade a partir da força que esta desem-
penhou em se manter na posse ao longo destes cinco anos, defendendo
o seu direito à moradia e buscando garantir o mínimo de outros direitos,
tão fundamentais quanto à moradia, para conseguirem sobreviver.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado


Federal, 1988.
_______. Presidência da República. Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001. Regulamenta
os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política
urbana e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil. Brasília, DF, 04 de setembro de 2001.
_______. Presidência da República. Lei nº 10. 406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.
Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 10 de janeiro de 2002.

26 Id., 2009, p. 48.

145
_______. Presidência da República. Lei nº 11.977 de 07 de julho de 2009. Dispõe
sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária
de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei no 3.365, de
21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de
dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e
a Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências.
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146
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Extensão universitária em defesa do


direito à cidade e à moradia em Porto Alegre:
a experiência do grupo de assessoria
popular do SAJU-UFRGS
Alexsander Rafael de Borba1
Augusto Sperb Machado2
Estêfani Favaron Pereira3
Felipe Moralles e Moraes4
Janine Garcia dos Santos5
João Baptista Alvares Rosito6
Lívia Machado Costa7
Lívia Zanatta Ribeiro8
Mariana Motta Vivian9
Sara Judy Christie de Olives10

1 INTRODUÇÃO

Este texto busca apresentar a experiência do Grupo de Assessoria


Popular (GAP), integrante do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária
(SAJU) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em ações
de extensão no campo do direito à cidade e à moradia e refletir sobre a

1 Estudante de graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS. Membro do GAP. E-mail: alexsan-
der_rafael@hotmail.com
2 Estudante de graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS. Membro do GAP. E-mail: augusto@
machados.org
3 Estudante de graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. Membro do GAP. E-mail: efavaron@
hotmail.com
4 Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS. Estudante de graduação de Filosofia pela UFRGS.
Membro do GAP. E-mail: felipe.moralles@gmail.com
5 Estudante de graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS. Membro do GAP. E-mail: janine_gar-
cia@hotmail.com
6 Graduado em Jornalismo pela PUCRS. Mestre em Antropologia Social pela UFRGS. Estudante de graduação
em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS. Membro do GAP. E-mail: joao.rosito@gmail.com
7 Estudante de Relações Internacionais pela UFRGS. Membro do GAP. E-mail: innocent_state@hotmail.com
8 Estudante de graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS. Membro do GAP. E-mail: zr.livia@
gmail.com
9 Estudante de graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS. Membro do GAP. E-mail: marianavi-
vian@live.com
10 Estudante de graduação em Gestão em Políticas Públicas pela UFRN. Membro do GAP. E-mail: sara_judy@
hotmail.com

147
prática extensionista como integrante do tripé universitário. A partir do
relato de três ações do grupo, sustenta-se que a extensão universitária
pode configurar-se como espaço de interação entre a universidade e a
sociedade, como meio de conhecimento da realidade social por parte dos
alunos e como instrumento de luta pela efetivação dos direitos humanos,
especialmente o direito à cidade e à moradia.
Os serviços jurídicos gratuitos universitários costumam integrar as
faculdades de direito como espaço de iniciação dos estudantes à prática
forense. Em geral, focam-se na oferta de assistência judiciária gratuita
destinada à população de baixa renda e constituem-se, muitas vezes, em
alternativas viáveis e de qualidade aos serviços ofertados pelas Defenso-
rias Públicas. Este tipo de atuação insere-se no tripé acadêmico ensino-
-pesquisa-graduação como disponibilização de um conhecimento gestado
na universidade à comunidade, sob forma de um serviço. Em geral, está
presente em outras unidades acadêmicas que não apenas as faculdades
de direito, como nas faculdades de medicina, odontologia e arquitetura,
áreas em que a “prática” tem destaque fático e simbólico nos currículos
e no imaginário dos cursos.
Existe, porém, diferenças de concepção e prática, de acordo com o
entendimento sobre extensão universitária. Sabe-se que as diversas pos-
sibilidades de ações em extensão comportam desde cursos destinados
ao público em geral, passam pela oferta de serviços especializados em
atendimento gratuito e chegam a práticas concebidas a partir de uma ideia
de engajamento político com o objetivo de mobilização por efetivação de
direitos.
As experiências do GAP apresentadas neste texto retratam um tipo de
prática extensionista entendida como prática política de mobilização pela
efetivação de direitos. O grupo insere-se no Serviço de Assessoria Jurídica
Universitária da Faculdade de Direito da Universidade Federal, fundado
em 1950, e, atualmente, um dos maiores e mais antigos programas de
extensão da universidade. Com 63 anos de existência, o SAJU atravessou
diferentes momentos históricos do ensino jurídico e teve, em seu formato,

148
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o reflexo das conjunturas políticas do país, o que se pode perceber nas


configurações institucionais do programa ao longo desses anos.
Com o objetivo de refletir sobre a prática extensionista do grupo no
campo do direito à cidade e à moradia, entendendo-a como espaço de
interação entre a universidade e a sociedade, de conhecimento da reali-
dade social por parte dos alunos e de luta e mobilização pela afirmação
de direitos, serão apresentadas as atuações do grupo em três contextos.
Antes, serão contextualizadas a criação e consolidação do SAJU e do GAP
na extensão universitária.

2 O SERVIÇO DE ASSESSORIA
JURÍDICA UNIVERSITáRIA DA UFRGS

O Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS (SAJU) foi


fundado em setembro de 195011 como projeto dos estudantes do Centro
Acadêmico André da Rocha e, atualmente, é um programa de extensão
da Faculdade de Direito, vinculado a Pró-Reitoria de Extensão (PRORExT)
da UFRGS. O SAJU conta com aproximadamente 250 membros divididos
em 17 grupos temáticos e, apesar de ter surgido na faculdade de Direito,
é um projeto multidisciplinar que agrega estudantes de vários cursos e
profissionais de várias áreas.
O objetivo do projeto, descrito em seu estatuto12, é: “proporcionar aos
necessitados o acesso à justiça e a defesa dos direitos humanos, bem
como o estudo do Direito sob um viés crítico” 13
. Além disso, também
possui como características principais a autonomia dos grupos jurídicos

11 O SAJU-RS e SAJU-BA são os serviços de assessoria jurídica universitária popular pioneiros no Brasil.
12 O estatuto do SAJU foi redigido em 2000 pelos estudantes e prevê os princípios, a forma de organização e
o funcionamento da instituição.
13 ESTATUTO DO SAJU. Disponível em <http://www.ufrgs.br/saju/sobre-o-saju/estatuto>. Acesso em:
25/07/2013. Art. 2o.

149
e a desvinculação a atividades de representação estudantil clássica14.
Como projeto de extensão, faz parte do tripé acadêmico conjuntamente
com o ensino e a pesquisa e caracteriza-se como extensão popular, na me-
dida em que proporciona a aproximação entre o ambiente acadêmico e a
sociedade, principalmente a seus segmentos mais vulneráveis socialmente.
O projeto passou por vários momentos ao longo da sua história, atuan-
do desde uma perspectiva assistencialista - nos anos 50 alterou a nomen-
clatura de “Serviço de Assistência Judiciária” para “Serviço de Assistência
Jurídica”- até a mudança na década de 80 para o referencial da assessoria
jurídica universitária popular (AJUP)15, momento em que alterou a sigla
para “Serviço de Assessoria Jurídica Universitária”. A mudança do termo
é justificada por Ivan Furmann16:

Apesar da palavra ‘Assessoria’ em sentido comum ser quase


sinônima da palavra ‘Assistência’, foi ela escolhida para simbo-
lizar uma metodologia inovadora de extensão. A escolha busca
suprimir um significado político contrário às propostas de índole
‘assistencialista’. A postura política da Assessoria, por surgir no
espaço discursivo dos movimentos populares, é um postura de
contestação e não de caridade.

A assessoria jurídica universitária popular compreende que o acesso


à justiça não significa apenas a tutela judicial das demandas sociais, mas
também uma atuação em educação popular fora da Universidade, numa
tentativa de desmistificação do conhecimento restrito ao mundo acadêmi-

14 Art. 2o. O SAJU tem por fundamentos:


I - o compromisso para com o social;
II - o espírito democrático;
III - a desvinculação a atividades políticas;
IV - a autonomia dos Grupos Jurídicos;
V - a justiça;
VI - a fraternidade;
VII - a igualdade;
VIII - a cooperação
15 Alguns de seus referenciais teóricos são: José Geraldo de Souza Junior, Paulo Freire, Roberto Lyra Flho,
Jacques Alfonsin, Celso Fernando Campilongo e Boaventura de Sousa Santos.
16 FURMANN, IVAN. Novas Tendências da Extensão Universitária em Direito: da Assistência Jurídica à As-
sessoria Jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 627, 27 mar. 2005 . Disponível em: <http://jus.com.br/
artigos/6481>. Acesso em: 25 jul. 2013.

150
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

co17. Sendo uma AJUP, o serviço compõe a Rede Nacional de Assessorias


Jurídicas Universitárias Populares (RENAJU), a qual agrega outros núcleos
do Brasil que atuam sob o mesmo viés teórico- metodológico e que pro-
põem uma prática insurgente através do Direito.
Em 1997 ocorre a institucionalização do SAJU, e o projeto passa a ser
formalmente vinculado a Pró-Reitoria de Extensão Universitária (PRO-
RExT). Atualmente, o serviço trabalha em temáticas como direito cível,
direito trabalhista, direito de família, direito do consumidor, direito penal,
direitos sexuais e de gênero, defesa a adolescentes selecionados pelo
sistema penal juvenil, direito à moradia e à cidade, direito de imigrantes
e refugiados, luta antimanicomial e mediação de conflitos.

3 GRUPO DE ASSESSORIA POPULAR:


EXTENSÃO EM DIREITO à CIDADE E à MORADIA

O Grupo de Assessoria Popular (GAP) é um dos núcleos do Serviço de


Assessoria Jurídica Universitária. Foi criado por estudantes da Faculdade de
Direito da UFRGS no ano de 2000 para trabalhar com demandas coletivas
de regularização fundiária e direito à moradia na cidade de Porto Alegre e
consolidou-se formalmente como atividade extensionista ao cadastrar o
projeto Consolidando a Cidadania na Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS.
A criação do grupo coincidiu com a nova base legal de garantia do
direito à moradia e à cidade, o Estatuto da Cidade, Lei 10.257 de 2001,
legislação que auxiliou, ao criar novos regimes jurídicos de acesso a terra,
na fundamentação jurídica para muitos casos de regularização fundiária
de ocupações irregulares em terras públicas. Cita-se o caso paradigmático
da Vila São Pedro18, comunidade há mais de 30 anos assentada em terras
do Governo do Estado do Rio Grande do Sul que logrou, acompanhada

17 Alguns grupos do SAJU realizam oficinas sobre a temática do grupo e informação em direitos humanos nas
comunidades populares assistidas ou em outros locais como escolas e EJAs de Porto Alegre.

18 O caso da Vila São Pedro consta no site do Ministério das Cidades como exemplo em regularização fun-
diária. Encontra-se disponível em: <http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNPU/Biblioteca/
RegularizacaoFundiaria/Experiencia_Regularizacao_Porto_Alegre.pdf, acesso em: 20/07/2013.

151
pelo GAP, via acordo judicial a Concessão de Uso Especial para fins de
Moradia Coletiva.
A partir de 2003 o grupo atualizou formalmente o projeto para Abrigando
a Cidadania, o qual permanece até hoje. Atualmente, o objetivo geral do
projeto é contribuir para a capacitação, orientação e fortalecimento dos
moradores de áreas irregulares de ocupação habitacional para que eles
possam se reconhecer como agentes de transformação de suas realidades
e entender que esse mesmo contexto também influencia na sua formação
como sujeito social. Entende-se que essa conscientização e a mobilização
comunitária são ferramentas potencializadoras para efetivar a garantia
Constitucional de moradia adequada. Para os estudantes extensionistas,
forma-se o conhecimento através do estudo e aprofundamento teórico-
-político sobre o tema e da prática engajada com a realidade social que
proporcionam uma experiência de contato com situações concretas de
violações de direitos fundamentais, contribuindo na formação acadêmica
de qualquer profissão.
O método de trabalho desde o início da concepção do grupo foi a
assessoria jurídica universitária popular (AJUP), alinhando-se às concep-
ções introduzidas ao SAJU na década de 80. Tal prática está voltada para
a promoção do acesso à justiça às populações vítimas da desigualdade
social, buscando a garantia de efetivação dos direitos humanos através
de mecanismos jurídicos, políticos, educativos e outros. Nesse sentido,
ao buscar uma definição da Assessoria Jurídica Popular, referiu Luis
Otávio Ribas19:

A assessoria jurídica popular, amplamente concebida, consiste


no trabalho desenvolvido por advogados populares, estudantes,
educadores, militantes dos direitos humanos em geral, entre
outros; de assistência, orientação jurídica e/ou educação po-
pular com movimentos sociais; com o objetivo de viabilizar um
diálogo sobre os principais problemas enfrentados pelo povo
para a realização de direitos fundamentais para uma vida com
dignidade, e a sua efetivação.

19 RIBAS, Luis Otávio. Assessoria Jurídica Popular Universitária. Captura Críptica: direito, política e atualidade,
Florianópolis, v. 1, n. 1, p.249-250, dez. 2008.

152
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Dentre as bases referencias da AJUP utilizada pelo grupo, destaca-


-se ainda a dialética da troca freireana20, através da qual realiza-se uma
relação de troca horizontal entre assessores e assistidos, sendo ambos
sujeitos do processo de conscientização crítica e transformadora. Tendo
a assessoria jurídica popular, desta forma, como método para a interação
universidade-sociedade, tal projeto tem como escopo propiciar o desen-
volvimento de soluções que impulsionem a reforma urbana, buscando
efetivar os direitos humanos à moradia adequada e à cidade sustentável.
Em sua formação, o grupo conta com estudantes das áreas do direito,
filosofia, relações internacionais e políticas públicas, prezando sempre pela
interdisciplinaridade de seus membros. Sua composição, ainda, soma-se
a rede de parcerias firmada com outros grupos de atuação da área, com-
postos também por profissionais que contribuem para a concretização de
suas ações. Nessa seara, importante salientar que o grupo compõe o Fórum
Estadual de Reforma Urbana do Rio Grande do Sul21, espaço de debates
e construções de ações a nível estadual no que se refere à garantia dos
direitos sociais dentro do espectro do direito à cidade.
Nessa perspectiva de atuação em rede, refere Jacques Távora Alfonsin22:

Isso, por si só, já coloca a assessoria jurídica popular integrando


um processo mais amplo de atuação junto ao povo, do qual
fazem parte atividades culturais, educativas, pedagógicas, não
raro promovidas por outros grupos populares que não os even-
tualmente por ela assistidos, e por outras assessorias. O objeto
de sua prestação de serviço, assim, além da sua abrangência
própria, se insere numa interdisciplinaridade de atividades da
qual ela é, apenas, uma parte.

As atividades do GAP também se pautam pelo diálogo com a univer-


sidade, sendo que em 2010 o grupo realizou uma oficina no 5º Congresso
Brasileiro de Extensão Universitária (CBEU) que foi criada para que: “os

20 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
21 FÓRUM ESTADUAL DE REFORMA URBANA. Disponível em: < http://reformaurbanars.blogspot.com.br/>.
Acesso em: 18/07/2013.
22 ALFONSIN, Jacques Távora. Assessoria jurídica popular. Breve apontamento sobre sua necessidade, limites
e perspectivas. In: IV ENCONTRO INTERNACIONAL DE DIREITO ALTERNATIVO. Direito e direitos: Democracia,
Constituição e Multiculturalismo. 1998, Florianópolis.

153
participantes pudessem refletir em uma perspectiva crítica, didática e di-
vertida sobre o modelo de cidade que temos atualmente, entendendo as
correlações de poder e interesses vivenciados no nosso contexto social”23.
O jogo simulava uma gestão administrativa municipal em que os
jogadores fariam o papel dos gestores da cidade- GAPilândia- e enfrenta-
riam problemas reais do meio urbano relacionados a temática de direito
à cidade, tais como: acesso à terra, regularização fundiária e acesso a
serviços públicos fundamentais como rede de abastecimento de água,
esgoto e transporte.
Cada grupo de participantes recebia uma quantia em dinheiro para
investir com autonomia no orçamento na cidade- que a cada rodada
apresentava uma série de problemas a serem resolvidos pelo gestor.
Todas as escolhas gerariam consequências pré-determinadas pelo grupo
que produziu o jogo, sendo que algumas eram benéficas para a cidade.
Assim a experiência foi descrita pelos integrantes do GAP24:

Os participantes podiam escolher o modelo de cidade que


consideravam melhor, optando, por exemplo, por concentrar
serviços no Centro, crendo que dessa maneira o acesso seria
razoavelmente fácil para toda a população. Poderiam ainda optar
por disponibilizar um maior número de linhas de ônibus ou de
metrô, na esperança de que a facilidade de mobilidade atenuasse
as dificuldades da população. [...] Enfim, a maneira pela qual
construir uma cidade saudável e de prover acesso ao direito à
moradia e à cidade era restringida apenas pelo entendimento
dos participantes e pela verba que recebiam.

Desta forma, a oficina propiciou o debate acerca do direito ao aces-


so a serviço básicos na cidade de forma a garantir os direitos humanos
fundamentais da população. A consciência sobre o direito à moradia e à
cidade ainda é incipiente para algumas parcelas da população, mesmo
sendo direitos constitucionalmente garantidos25, e para outros, o modelo
de cidade que se quer reflete uma escolha política neoliberal de forma a
reforçar exclusões sociais.

23 PETERS, Antonia et al. O jogo da cidade. Revista do SAJU: para uma visão crítica e interdisciplinar do direito,
Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 130-131, dez. 2011.
24 Ibid.,p. 133-134.
25 O direito à moradia é um direito social consagrado no art. 6º da Constituição Federal, bem como há, na
Carta Magna, um capítulo específico destinado à política urbana.

154
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Sabe-se que há muito a avançar em termos de políticas públicas, sejam


as habitacionais ou outras, que não reforcem os serviços públicos como
mercadoria, mas como direitos. Dessa forma, o GAP pensa a suas ações
de forma a conscientizar a população sobre seus direitos como ferramenta
para a emancipação popular. A seguir, apresentam-se três experiências de
atuação do GAP: a atuação do grupo junto a duas comunidades de Porto
Alegre e a participação na 5ª Conferência das Cidades.

3.1 Vila São Pedro: uma experiência em regularização fundiária

A Vila São Pedro está localizada na Av. Ipiranga, bairro Partenon de


Porto Alegre, área altamente valorizada pelo mercado imobiliário na capital
gaúcha. A terra no local é de propriedade do Estado do Rio Grande do Sul
e constitui parte da área destinada à construção do Hospital Psiquiátrico
São Pedro, inaugurado em 1884. As primeiras ocupações no local pelas
famílias de baixa renda datam de 1973 e após 40 anos persiste a ocupa-
ção irregular da área, destacando-se o perfil de pobreza socioeconômica
e precárias condições habitacionais dos seus moradores, sendo a área
enquadrada como aglomerado subnormal pelo CENSO de 201026.
Em 2003 o GAP-SAJU em parceria com a ONG internacional Centro
pelo Direito à Moradia Contra o Despejo (COHRE- Center on Housing Rights
and Evictions) iniciou o assessoramento jurídico popular da comunidade.
O escritório do Programa das Américas da ONG COHRE em Porto Alegre,
ligada ao Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU)27, contribuiu com
as ações extensionistas do GAP-SAJU para o trabalho na Vila São Pedro.
A atuação do GAP desde sua criação teve como referencial teórico-
-metodológico as obras de Celso Fernandes Campilongo, Jacques Távora
Alfonsin, José Geraldo de Sousa Junior, Paulo Freire e Clodóvis Boff em

26 Segundo o IBGE o aglomerado subnormal “É um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habi-
tacionais (barracos,casas etc.) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo
ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em
geral, de forma desordenada e densa”. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/
censo2010/aglomerados_subnormais/agsn2010.pdf
27 Blog do FNRU, disponível em: < http://www.forumreformaurbana.org.br/>. Acesso em: 26/07/2013.

155
Como trabalhar com o povo e a partir dos ensinamentos destes o grupo
definiu que: “a ação central do Abrigando a Cidadania não poderia ser
outra senão a educação popular”28. O método utilizado pelo grupo na
época era o de pesquisa-ação, ou seja, sobrepor o momento investigativo
com o momento participativo. A investigação tratava-se do estudo por
parte do grupo e a ação se dava por meio de oficinas de capacitação nas
quais, através de dinâmicas interativas, se fazia uma comparação entre
a realidade da comunidade e a situação a que se queria chegar como
ponto de partida para o traçado das metas e estratégias para alcançar o
resultado pretendido29.
Tal envolvimento comunitário é fundamental na perspectiva da asses-
soria jurídica popular, pois se entende que somente a partir da conscienti-
zação coletiva, da desmistificação do conhecimento do qual o advogado
seria o detentor, é possível a emancipação social. Trata-se de uma forma
insurgente de se atuar através do Direito, quebrando o paradigma da
relação cliente e advogado, de forma a garantir o acesso à justiça a po-
pulações à margem na sociedade e do sistema jurídico. Como explica a
ex-integrante do GAP Carolina Vestena30:

Esta construção se faz coletivamente adotando uma metodologia


de certa forma inovadora, que chama os sujeitos ao diálogo e
troca de experiências sobre o mundo. Quando se fala em ser-
viço legal inovador, na verdade afirma-se uma atuação dentro
da epistemologia freiriana, de ruptura, de desconstrução das
tradicionais práticas depositárias.

Além da contribuição a sociedade, é uma experiência de grande valor


para os estudantes da Universidade, que através da ação extensionista
procuram suprir as falhas do ensino jurídico dogmático, de linguagem

28 KONZEN, Lucas e BERNI, Paulo. Direito na 1ª pessoa do plural: fazendo extensão nas vilas de Porto Ale-
gre. Revista do SAJU: para uma visão crítica e interdisciplinar do direito / Serviço de Assessoria Jurídica
Universitária da Faculdade de Direito da UFRGS. Edição especial, nº 5. Porto Alegre: Faculdade de Direito
da UFRGS, 2006, p. 131.
29 Ibid.,p. 131.
30 VESTENA, Carolina Alves. Limites e perspectivas de interação comunitária: reflexões do projeto Abrigando
a Cidadania. Revista do SAJU: para uma visão crítica e interdisciplinar do direito, Porto Alegre, vol. 6, nº1.
p.107, 2010.

156
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

técnica e de visão monodisciplinar do fenômeno jurídico. O GAP desde a


sua criação é composto por estudantes de diversas áreas do conhecimento,
por entender que a visão e o diálogo interdisciplinar são essenciais para
atender as demandas por justiça social.
Assim, por meio do trabalho realizado pelo COHRE, protocolou-se
em 2002 o pedido administrativo da Concessão de Uso Especial para fins
de Moradia- CUEM31, e passados três anos da inércia do poder executivo
em relação ao pedido protocolado, ajuizou-se numa parceria do SAJU e
do COHRE em nome da Associação de Moradores da São Pedro Ação de
Concessão de Uso Especial para fins de Moradia em face do Estado do Rio
Grande do Sul. Salienta-se que esta ação resultou de um esforço coletivo
que envolveu a comunidade da Vila São Pedro organizada através de um
Comitê Gestor, a Associação de Moradores da Vila São Pedro, bem como
envolveu outros atores sociais e jurídicos, como o GAP-SAJU, o CDES, a
Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e a Câmara de Vereadores
de Porto Alegre.
Durante todo este processo, o grupo de trabalho definiu estratégias de
mobilização, informação, formação, incidência e de instrumentalização.
Destaca-se nessas atividades a produção coletiva do projeto urbanístico
e arquitetônico para a Vila São Pedro e do cadastro socioeconômico que
serviu de base para a ação judicial. A estratégia de incidência, como ex-
plicam os integrantes do COHRE: “teve por objetivo sensibilizar gestores
públicos estaduais e municipais, bem como a sociedade sobre a pauta da
vila São Pedro.”32
Em 2010 foi assinado acordo judicial que deu fim a ação judicial e con-
cedeu a CUEM coletiva aos moradores da São Pedro. No entanto, com a
transferência do escritório do COHRE na América Latina de Porto Alegre

31 O advento do Estatuto da Cidade e da Medida Provisória 2.220, ambos de 2001, reconheceram o direito
à moradia das famílias ocupantes de áreas públicas, permitindo a essas famílias reivindicar seu direito judi-
cialmente, caso o proprietário da área não fornecesse administrativamente a denominada Concessão de Uso
Especial para Fins de Moradia – CUEM.
32 MULLER, Cristiano; DE AZEVEDO, Karla Fabrícia Moroso S; BORGES, Viviane Florindo. A luta pelo direito
à moradia da Vila São Pedro- a regularização fundiária enquanto política de acesso a terra urbanizada. II
Congresso Internacional: Sustentabilidade e Habitação de Interesse Social, Porto Alegre, maio 2012.

157
para Bogotá na Colômbia, os trabalhos desenvolvidos por aquela ONG
foram retomados pelo CDES (Centro de Direitos Econômicos e Sociais) e
novamente pelo GAP-SAJU.
Atualmente, luta-se pelo registro público da CUEM, bem como pela
regularização urbanística da área. As atividades retomadas consistem em:
mobilização e encontros na comunidade, reuniões com o poder público e
utilização do espaço da V Conferência Estadual das Cidades para divulga-
ção da situação fundiária das comunidades irregulares em Porto Alegre.
Percebe-se novamente o uso das mesmas estratégias bem sucedidas em
2006: mobilização da comunidade através da criação do Grupo de Tra-
balho da São Pedro, incidência no poder público com a oitiva por parte
do Governo do Estado dos moradores e líderes comunitários, informação
da comunidade através de reedição de um jornal de circulação interna e
reuniões entre o GT, o GAP-SAJU e o CDES.
Entende-se que a luta da comunidade já trouxe avanços ao garantir a
posse coletiva da área, mas resta imprescindível para a garantia do direito à
moradia e mudança da condição de aglomerado subnormal a urbanização
e construção das unidades habitacionais no local.

3.2 Vila Dique: um caso de remoção e violação de direito


a serviços públicos fundamentais

A Vila Dique surgiu aproximadamente em 1957, pois não consta em


levantamento aerofotográfico de 1956, mas já aparece num mapa de
núcleo de vilas irregulares em 1958.33 Oficialmente chama-se Vila San-
tíssima Trindade e localizou-se inicialmente junto a Rua Taim, próxima à
Av. Sertório e atrás do Aeroporto Salgado Filho. O nome popular de Vila
Dique decorre da sua localização entre dois diques, que servem para evi-
tar inundações na Região Norte de Porto Alegre. Os moradores advieram
principalmente de regiões de colonização alemã, atraidos pelos empregos

33 MORAES, Aldovan de Oliveira. Poder público municipal e habitação de interesse social em Porto
Alegre. Vol. II. 7. ed. [s. ed.]: Porto Alegre, 2011.

158
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

em fábricas da caixas de madeira e papelão.


Durante a Ditadura Militar, mais precisamente em 1975, a vila foi objeto
de remoção. Porém, estima-se que novas ocupações da área ocorreram
no mesmo ano, pois constam em mapa de vilas irregulares de 1980 e em
levantamento aerofotográfico de 1982.34 Em 1990, a Vila Dique foi palco da
inauguração do primeiro galpão de reciclagem de Porto Alegre, pelo então
Prefeito Olívio Dutra, já que muitos habitantes mantêm como atividade
econômica a triagem de resíduos e venda de materiais recicláveis. A Vila
Dique expande-se gradualmente ao longo da então chamada Av. Dique
e atinge seu limite máximo, a BR-290 (Free Way), em 1998, totalizando
cerca de 1300 famílias.
Em 2006, sucederam novas tentativas de remoção, em razão da ne-
cessidade de ampliação do aeroporto. Essas remoções começaram a se
concretizar no final de 2009, com a alocação de famílias ao Complexo
Habitacional Porto Novo, na Av. Bernardino Silveira Amorim, no Bairro
Sarandi, distante em cerca de 4.5km. As remoções continuaram nos anos
seguintes. Atualmente, a maior parte dos antigos moradores da “Velha
Dique” moram no Complexo Habitacional Porto Novo, chamado então
popularmente “Nova Dique”. O terreno da Nova Dique pertence ao Mu-
nicípio, onde se habita por meio de Concessão de Direito Real de Uso.
Previa-se a extinção da Velha Dique em 2011. Entretanto, a empresa
responsável pela construção das 1.476 unidades habitacionais (1.256 para
moradores da Vila Dique, 125 da Vila Morada do Sol, 95 da Vila Keddie)
teve contrato extinto, quando faltavam cerca de 500 unidades. Assim,
há ainda os que não foram contemplados com as novas casas e moram
em meio aos escombros da antiga comunidade. Em 2012, anunciou-se a
construção das casas faltantes, por meio do programa Minha Casa, Minha
Vida. Muitas pessoas acabaram acampando nas imediações do complexo
habitacional e fizeram reivindicações pelas novas edificações, das quais
participamos. Em meados de junho de 2013, reiniciaram-se as obras.
A ação do GAP junto à comunidade começou mesmo em julho de 2012,

34 Ibid.

159
quando uma reunião foi convocada por uma líder comunitária, presidente
do grupo de mães, e por uma professora da UFRGS, que desenvolve um
projeto de memórias da comunidade. Os relatos trouxeram um amplo
espectro de problemas, desde questões pessoais, como a separação de
corpos de um casal e a perda da moradia, até denúncias de favorecimen-
tos políticos nas concessões. Interessou-nos sobretudo as violações de
direitos à moradia e à cidade dos moradores, como as falhas construtivas
das moradias, o não acesso aos contratos de concessão de uso, e a au-
sência do serviço de entrega de correspondência particular nos domicílios
da região, não obstante a regular cobrança de luz, água e a contribuição
social. Tem-se, portanto, de um lado, moradias com vícios construtivos
e sem a devida documentação que lesam o direito à moradia e colocam
a população em risco; de outro, a não prestação de um serviço público
essencial pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, a reforçar a his-
tória discriminação de comunidades populares na cidade de Porto Alegre.

3.2.1 Problema com a Entrega de Correspondência

Por meio do portal “Fale com Os Correios”, noticiamos a reclamação


dos moradores da Avenida Bernardino Silveira Amorim, 1915 – Complexo
Porto Novo – Nova Vila Dique – Bairro Rubem Berta – Porto Alegre/RS;
CEP: 91160-001, em razão do não recebimento de suas correspondências.
A resposta obtida foi: “Informamos que o endereço indicado trata-se de
área sem entrega, não contemplada com a entrega diária de carteiros. Os
moradores desta área devem retirar suas correspondências no Centro de
Distribuição Sarandi, localizado na Rua Engenheiro Ubatuba de Farias,
296.” A exigência de percorrerem cinco quilômetros de distância para
poder receber suas cartas não pode ser considerada verdadeira solução,
uma vez que os moradores ou trabalham longe de casa e não tem disponi-
bilidade de seu horário comercial, ou são idosos e apresentam dificuldade
de locomoção.
Ao interrogarmos a Secretaria de Planejamento Municipal fomos infor-

160
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mados de que, se a Vila Dique possui instalações de água, as ruas já teriam


nome, para que o Departamento Municipal de Águas e Esgotos (DMAE)
pudesse abastecê-los. Contudo, as ruas para o cadastro de CEP podem
não ser as mesmas utilizadas pelo DMAE. Pelo contrário, para o cadastro
de CEP, as ruas necessitariam da nomeação pela Câmara Municipal, que
sobre isso legisla. Após a promulgação da lei, ela seria enviada para a
Secretaria de Planejamento Municipal (SPM), que faria então o cadastro
dos nomes e envia uma cópia da lei para os correios. Somente então os
correios criariam o CEP.
A legislação municipal prevê que a denominação de logradouros
irregulares, destinada à orientação dos serviços públicos implantados
na área, depende apenas de manifestação favorável da comunidade,
expressa através de votação, abaixo-assinado ou qualquer outro meio
capaz de expressar a vontade da maioria dos moradores do logradouro a
ser denominado (art. 7 da LC 320/94).35 De regra, bastaria a escolha dos
nomes das ruas e um comprovante de residência para se iniciar, através
da Câmara, o processo legislativo. Assim, organizamos uma assembleia
de moradores na Nova Dique para a escolha democrática dos nomes dos
logradouros, bem como para recolhimento da documentação necessária.
A assembleia teve êxito: muitos compareceram e saímos tanto com as
preferências dos moradores, quanto com os comprovantes de residência.
Entretanto, ao nos reunirmos com a Comissão de Direitos Humanos da
Câmara Municipal, para tratar das questões da Vila Dique, foi-nos infor-
mado que o projeto deve observar alguns requisitos legais de resolução
da Mesa da Câmara.36 Algumas dessas ruas, se não todas, não estariam
cadastradas como logradouros na SPM, o que demandaria não só a assem-
bleia e os documentos recolhidos, mas também a assinatura da maioria
dos moradores para colocar como anexo ao projeto de lei. Portanto, não
são poucos os obstáculos que o GAP tem enfrentado para solucionar, junto

35 PORTO ALEGRE. Câmara Municipal. Lei Complementar n. 320/94. Disponível: <www.camarapoa.rs.gov.


br/biblioteca/integrais/LC320Atualizadaat%C3%A9LC692.htm>. Acesso: 26/07/2013.
36 PORTO ALEGRE. Câmara Municipal. Memorando Circular n.009/01. Disponível: <www.camarapoa.
rs.gov.br/biblioteca/integrais/Circ_09_01.ht>. Acesso: 26/07/2013.

161
com os moradores, a falta de correspondência.
Esses entraves são de difícil superação, pois são várias as ruas e muitas
as casas para recolhimento da assinatura dos moradores. Assim, o grupo
vem articulando lideranças comunitárias que auxiliem na empreitada. Um
obstáculo a ser superado são os grupos de interesse antagônicos existentes
na comunidade, em parte pela vinculação de alguns líderes comunitários
a partidos políticos, em parte por desentendimentos pessoais entre esses
líderes. Atualmente buscamos estabelecer uma ponte entre as lideranças
com a ajuda de membros do Fórum Estadual de Reforma Urbana (FERU).
Nesse meio tempo, chegou-nos a informação ainda de que a Defensoria
Pública da União tem abordado o tema da falta de entrega da correspon-
dência em outras comunidades de Porto Alegre. Desse modo, enviamos
um ofício direitos humanos e tutela coletiva para viabilizar a atuação da
instituição também em relação à Vila Dique. Portanto, o grupo pretende,
além de seguir a via administrativa de nomeação dos logradouros, tam-
bém abrir uma via judicial para obrigar a Empresa Brasileira de Correios
e Telégrafos à prestação do serviço público essencial à comunidade da
Vila Dique.

3.2.2 Problema do Acesso aos Contratos

A Concessão de Direito Real de Uso em Porto Alegre foi regulamentada


após forte mobilização de populações moradoras de áreas públicas, com
objetivo de legalizar a permanência de famílias habitantes de terrenos
municipais. Com o tempo, os contratos de concessão tornaram-se gran-
de instrumento de regularização fundiária.37 O terreno destinado à Nova
Dique pertence, notadamente, ao município, vinculado, por meio desse
instrumento, à moradia. Não conseguimos, é verdade, a autorização para
distribuirmos os contratos para os moradores. Eles permanecem nas mãos
do Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB), que exige o reco-

37 ALFONSIN, Betânia Moraes. Urbanizador social: emergência de um novo paradigma para a democratização
do acesso à terra em Porto Alegre. Revista do SAJU, n.5, 2006, p.76 ss.

162
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

lhimento individual por cada morador, o que raramente acontece. Porém,


organizamos uma assembleia para o esclarecimento dos direitos e deveres
envolvidos na Concessão do Direito Real de Uso e para a distribuição de
alguns modelos escritos.
Na oficina, explicamos que o contrato tem validade de 30 anos, pror-
rogáveis sempre que necessário por igual período. Como se destina à ha-
bitação de pessoas de baixa renda, prevê-se a inalienabilidade do imóvel
a terceiros, sob pena de resolução em favor do DEMHAB. Ressalva-se
apenas o direito de herança. Não obstante, esclarecemos que as vendas
permanecem comuns na prática, e a autarquia municipal as tolera, expe-
dindo novo contrato em nome do adquirente, desde que ele seja pessoa
carente. Foi-nos questionada as cobranças mensalmente. Explicamos
então que consiste numa contraprestação mensal obrigatória de 5% a
7,5% do salário mínimo, conforme a renda familiar (art. 13 do Decreto
10.789/93).38 Na prática, explicamos que o inadimplemento não gera a
extinção da concessão como previsto. Assim, muitas pessoas deixam de
pagar, em razão da falta de condições, sem perder a moradia. Não obs-
tante, recomendamos o pagamento, pois ele serve de garantia do direito
de posse das casas, em vez de sujeitar os moradores a mera boa vontade
de certo departamento municipal.

3.2.3 Problema com as construções

As obras de construção das unidades habitacionais da Nova Vila Dique


previstas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) utilizaram re-
cursos da União transferidos ao Município de Porto Alegre por intermédio
do Ministério das Cidades, representado pela Caixa Econômica Federal.
A concepção do projeto foi muito bem feita, por prever praças, escola,
posto de saúde, novo centro de triagem, espaço comunitário, unidades
comerciais, unidades habitacionais adaptadas para cadeirantes, etc., o

38 PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. Decreto 10.789/93. Disponível: < www2.portoalegre.rs.gov.br/


netahtml/sirel/atos/Decreto%2010789>. Acesso: 26.07.2013.

163
que lhe rendeu inclusive um prêmio recentemente (Selo de Mérito 2013 -
Relevância Social). Porém, em auditoria feita pelo Tribunal de Contas da
União, avaliou-se a execução das obras de construção das habitações na
Nova Dique e constataram-se muitas falhas graves na execução do projeto.
Elas poderiam ter gerado a interdição da obra, o que não ocorreu devido
ao estágio avançado na execução (97% concluída) ao tempo da auditoria.39
As deficiências construtivas foram sentidas imediatamente pelos
moradores. Ao receberem as casas, deparavam-se com pisos quebrados,
canos estourados e paredes rachadas. Assim, muitos tiverem de gastar
suas economias, senão sacar seu FGTS, para tornar os espaços habitáveis.
O GAP ainda estuda um meio de compensar essas perdas, o que ocorre-
ria provavelmente por meio de uma ação civil pública contra a empresa
outrora licitada.

3.3 A Conferência Nacional das Cidades

O GAP busca dialogar e promover ações articuladas com as populações


em situação de violação, bem como com os movimentos de atuação da
área, e também com todas as esferas de poderes públicos que viabilizam
de diferentes formas a concretização destes. Nessa seara, sua participação
na Conferência das Cidades no ano de 2013 proporcionou um envolvi-
mento do grupo enquanto entidade acadêmica junto a inúmeras pautas
da população de Porto Alegre no que tange ao direito à cidade.
A Conferência das Cidades, criada pelo Ministério das Cidades 40,
caracteriza-se enquanto espaço de diálogo entre governos e sociedade
civil e intenta contribuir para o avanço das políticas públicas de desenvol-
vimento urbano, bem como fortalecer a participação cidadã na construção
de pautas prioritárias, servindo de instrumental para tanto. Em sua quinta
edição, este ano, apresentou-se com o lema “Quem muda a cidade somos
nós: Reforma Urbana já!”.

39 BRASIL. Tribunal de Contas da União. Relatório de Levantamento de Auditoria n. 000.291/2010-


2. Rel. Marcos Bemquerer Costa. Disponível: <http://dc310.4shared.com/doc/suWfuZxQ/preview.html>.
Acesso: 26.07.2013.
40 O Regimento Interno e a Resolução Normativa da 5ª Conferência encontram-se disponíveis em: <www.
cidades.gov.br/5conferencia/legislacao/regimento.html>. Acesso em: 26/07/2013.

164
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A participação na etapa municipal iniciou-se com a preparação da Con-


ferência, da qual o SAJU juntamente com outras entidades, movimentos
sociais e poder público municipal fizeram parte. Representando o SAJU,
participaram o Grupo de Assessoria Popular e o Grupo de Assessoria Justiça
Popular (GAJUP), grupo este que também lida com o direito à moradia,
demarcando a prática colaborativa entre os grupos do núcleo extensio-
nista. O espaço de preparação do evento consolidou-se, então, a partir de
uma representação plural, o que gerou uma ampliação de perspectivas,
experiências e saberes na construção do mesmo.
O texto base produzido pela comissão preparatória dividiu-se em quatro
eixos principais, que serviram de ponto de partida para as discussões tidas
na Conferência. Foram estes: controle social efetivo, gestão democrática
da cidade e participação popular no Conselho Municipal das Cidades;
impacto das obras da Copa do Mundo 2014; função social da propriedade,
regularização fundiária e acesso à terra, conflitos fundiários em Porto
Alegre; transversalidades das políticas urbanas de Porto Alegre.
O direito à cidade não se esgota na academia, e é por isso que o grupo,
enquanto projeto extensionista, propõe-se a ampliar suas atuações através
de um envolvimento político com o tema. É nesse sentido que se atribui
relevância a participação na Conferência das Cidades, hoje um dos únicos
espaços de discussão das problemáticas da cidade de Porto Alegre e de
elaboração de propostas advindas da sua população.
Para a etapa estadual, o GAP está em processo de mobilização, junto
a outras entidades, das comunidades de Porto Alegre localizadas em re-
giões de propriedade do Estado, em situação de Regularização Fundiária.
Intenta-se, com isto, dar visibilidade aos moradores em suas diferentes
situações de violações a direitos fundamentais, bem como fomentar a
participação efetiva destes no debate de sua cidade e gerar o comprome-
timento do poder público para com estas populações, fazendo-se cumprir
e utilizar os instrumentos de garantia à moradia digna e de provimento
ao acesso à cidade.

165
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O GAP e suas ações inserem-se na concepção de extensão que prioriza


a interação com a sociedade, o conhecimento da realidade social e a mo-
bilização pela efetivação de direitos. A partir das experiências relatadas,
intenta demonstrar que tais questões envolvem uma complexidade e uma
gama de atuações que necessitam desenvolver-se em parceria com outros
atores sociais da área.
A formação dos estudantes, nesse processo, revela-se primordial para
a qualidade de suas práticas. Assim, buscam-se preencher as lacunas exis-
tentes na grade curricular da graduação em Direito através da participação
em espaços de aprendizado em direitos humanos, bem como através da
troca com o saber popular. Nesse sentido, o engajamento político na luta
pela efetivação do direito à moradia e à cidade também se faz necessário
na busca pela concretização de seus ideais.
Por fim, ressalta a relevância da constante reflexão crítica, não apenas
ao direito posto e ensinado em sala de aula, mas também às suas pró-
prias práticas extensionistas na busca por justiça social. É a partir destas
compreensões que se torna possível uma atuação distante das práticas
de dominação que demarcam historicamente a sociedade.

REFERÊNCIAS

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para a democratização do acesso à terra em Porto Alegre. Revista do SAJU, n.5, 2006.
ALFONSIN, Jacques Távora. Assessoria jurídica popular. Breve apontamento sobre
sua necessidade, limites e perspectivas. In: IV ENCONTRO INTERNACIONAL DE
DIREITO
ALTERNATIVO. Direito e direitos: Democracia, Constituição e Multiculturalismo.
1998, Florianópolis.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Relatório de Levantamento de Audito-
ria n. 000.291/2010-2. Rel. Marcos Bemquerer Costa. Disponível em: <http://
dc310.4shared.com/doc/suWfuZxQ/preview.html>. Acesso em: 26/07/2013.

166
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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tensão nas vilas de Porto Alegre. Revista do SAJU: para uma visão crítica e
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PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. Decreto 10.789/93. Disponível: < www2.
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VESTENA, Carolina Alves. Limites e perspectivas de interação comunitária: refle-
xões do projeto Abrigando a Cidadania. Revista do SAJU: para uma visão crítica
e interdisciplinar do direito, Porto Alegre, vol. 6, n. 1. p.105- 128, 2010.

168
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O direito urbanístico no ensino jurídico:


uma análise de sua importância e de
seu tratamento nos currículos jurídicos

Anny Gresielly S. Grangeiro Sampaio1


Samira Macêdo Pinheiro de Amorim2

INTRODUÇÃO

Em 11 de agosto de 1827 foram criados os primeiros cursos jurídi-


cos no Brasil e um século após já se falava que as Faculdades de Direito
do País haviam se tornado “fábricas de bacharéis”, em alusão à criação
indiscriminada de novas faculdades e ao aumento das vagas no referido
curso sem o necessário controle de qualidade.
A crise no ensino jurídico brasileiro, então, não é originária dos tempos
atuais; pelo contrário, em maior ou menor intensidade ela tem sido objeto
de preocupação da sociedade desde 1927, no sentido de buscar melhorar
a qualidade do ensino jurídico.
A Ordem dos Advogados do Brasil tem se debruçado sobre o tema do
ensino jurídico em todas as suas conferências, desde a I Conferência Na-
cional da Ordem dos Advogados do Brasil, em 1958, sempre na perspectiva
de contribuir para a melhor formação dos profissionais da área jurídica.
Mais recentemente, discute-se sobre a necessidade de se estabelecer
um novo marco regulatório para o ensino jurídico brasileiro e diversas
audiências públicas vêm sendo realizadas pela OAB, buscando ouvir a
comunidade acadêmica e levantar dados para subsidiar o referido marco.

1 Mestranda em Ordem Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Universidade Federal do Ceará –
UFC. Advogada. grangeiro.adv@gmail.com
2 Mestranda em Ordem Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Universidade Federal do Ceará –
UFC. Advogada. samiramacedop@gmail.com

169
Dentre os diversos pontos debatidos está a formação de profissionais
com foco na sustentabilidade e adoção de uma perspectiva humanista do
Direito, pelo que o momento atual do ensino jurídico está propício à dis-
cussão sobre o conteúdo das grades curriculares das Faculdades de Direito.
Neste artigo avalia-se a importância do estudo do Direito Urbanístico
nas instituições de ensino jurídico, por entender-se que ele pode, e muito,
contribuir para a formação de profissionais mais voltados à sustentabili-
dade do desenvolvimento das cidades e à perseguição do bem-estar do
homem inserido na coletividade.
Além disso, analisa-se o tratamento direcionado a essa matéria nos
currículos jurídicos, através do estudo das diretrizes curriculares e, por
fim, realiza-se uma pesquisa para avaliar esse tratamento nas grades
curriculares das instituições de ensino superior do Ceará que possuem
curso de Direito reconhecidos pelo Ministério da Educação.
Para o desenvolvimento do trabalho, utilizou-se pesquisa bibliográ-
fica, pesquisa em sítios eletrônicos atualizados, pesquisa detalhada da
legislação constitucional e infraconstitucional que tratam sobre o tema
proposto, além de pesquisa para estudo comparado - através de entre-
vista com coordenadores dos cursos e de dados dos sítios eletrônicos
oficiais - do tratamento dedicado ao Direito Urbanístico nas instituições
de ensino superior do Ceará que possuem o curso de Direito reconhecido
pelo Ministério da Educação.

1 A AUTONOMIA E A IMPORTâNCIA
DO DIREITO URBANÍSTICO NO ENSINO JURÍDICO

A concepção moderna de urbanismo transcende a estética e passa a


ter um cunho social, tendo como objetivo o bem-estar do homem. O ur-
banismo, então, não se restringe a alinhamentos, pavimentações, bancos
etc., mas relaciona-se à melhoria das condições de vida do homem no
contexto urbano e busca garantir a vida digna dos homens juntamente
com o bom desenvolvimento da cidade.

170
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Para Hely Lopes Meirelles3 urbanismo é:

[...] o conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os


espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições
de vida ao homem na comunidade. Entendam-se por espaços
habitáveis todas as áreas em que o homem exerce coletivamente
qualquer das quatro funções sociais: habitação, trabalho, circu-
lação, recreação.

A atividade urbanística é, pois, uma função do Poder Público, que


atua visando à ordenação dos espaços habitáveis e a sistematização do
território.4 A relação do urbanismo com o Direito é inevitável, já que por
meio do exercício dessa função pública são promovidas restrições à pro-
priedade pública e privada, o que, num Estado Democrático de Direito, só
é possível se respeitado o princípio da legalidade.
Tem-se, assim, o Direito Urbanístico que, em sentido objetivo, é o con-
junto de preceitos de ordem pública dos quais se valem os entes políticos
para ordenar os espaços habitáveis, proporcionando melhores condições
de vida ao homem na comunidade.
Enquanto ciência, o Direito Urbanístico é “o ramo do direito público
que tem por objeto expor, interpretar e sistematizar as normas e princípios
disciplinadores dos espaços habitáveis.”5
Partindo do conceito acima exposto, o Direito Urbanístico possui au-
tonomia, pois possui objeto (ordenamento dos espaços habitáveis e siste-
matização do território); princípios (função social da cidade, supremacia
do Direito Público sobre o Direito Privado na interpretação das regras do
Estatuto da Cidade, dentre outros); institutos jurídicos (o planejamento
urbanístico, o parcelamento do solo urbano, a ocupação do solo, o zone-
amento, o loteamento, o desmembramento, o direito de superfície, direito
de preempção, índices urbanísticos etc.); e leis específicas próprios (Lei
10.257/2001 – normas gerais de direito urbanístico –; normas suplemen-
tares estaduais e normas municipais, v.g. Plano Diretor).

3 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva. 2003, p. 491.
4 SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 34.
5 Ibid. p. 50.

171
É nesse sentido que Edésio Fernandes6 defende a autonomia do Direito
Urbanístico, dispondo ainda que:

Como objeto, o Direito Urbanístico visa a promover o controle


jurídico do desenvolvimento urbano, isto é, dos vários processos
de uso, ocupação, parcelamento e gestão do solo nas cidades. A
urbanização intensiva foi certamente o fenómeno socioeconómi-
co mais significativo do século xx, tendo provocado mudanças
drásticas de todas as ordens. O impacto desse processo na ordem
jurídica não pode ser mais ignorado.

A autonomia do Direito Urbanístico é também defendida por, Celso


Antônio Bandeira de Mello7, Georges Louis Hage Humbert8 e Édis Milaré9,
o qual defende:

Já foi dito que o Direito Urbanístico é o ramo da ciência do Di-


reito, que tem por objeto o estudo e concretização nas normas
regras e princípios, que visam à ordenação as cidades. Já o Direito
Ambiental, pode ser conceituado como o complexo de princípios
e normas coercitivas reguladoras das atividades humanas que,
direta ou indiretamente, possam afetar a sanidade do ambiente
em sua dimensão global, visando à sua sustentabilidade para as
presentes e futuras gerações.

É bem verdade que a autonomia desse ramo do Direito ainda é con-


testada por alguns estudiosos do tema. José Afonso da Silva destaca forte
tendência dos doutrinadores a considerar o Direito Urbanístico como parte
do Direito Administrativo, citando como exemplos Virgilio Testa, Italo di
Lorenzo, Eduardo García de Enterría e Luciano Parejo Alfonso, Antônio
Carceller Fernández, José Luís Laso Martínez, Fernando Alvez Correia,
dentre outros.10
No Brasil, José Afonso da Silva11 e Toshio Mukai12 consideram que o

6 FERNANDES, Edésio. Do Código Civil ao Estatuto da Cidade algumas notas sobre a trajetória do Direito Urba-
nístico no Brasil. Revista URBANA, Caracas, v. 7, n. 30, jan. 2002. Disponível em: <http://www2.scielo.org.
ve/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0798-05232002000100004&lng=es&nrm=iso>. Acesso em: 16 ago. 2013.
7 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo.18. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
8 HUMBERT, Georges Louis Hage. Direito Urbanístico e função socioambiental da propriedade imóvel
urbana. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
9 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 109
10 SILVA. op. cit., p. 40
11 SILVA, op. cit., p. 44.
12 MUKAI, Toshio. Direito urbano e ambiental. 3.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 30

172
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Direito Urbanístico é uma disciplina de síntese, expressão cunhada por José


Afonso da Silva com base nos ensinamentos de Carlos Mouchet, que reco-
nhecia no Direito Urbanístico uma nova disciplina, que somava elementos
do direito constitucional, administrativo, municipal, civil e financeiro.
Apesar de não serem defensores da autonomia do Direito Urbanístico,
ambos – José Afonso da Silva e Toshio Mukai – reconhecem o potencial
da disciplina em tornar-se autônoma devido ao desenvolvimento de suas
normas. Admitem, inclusive, a existência de uma série de instituições e
institutos próprios desse ramo do Direito no ordenamento jurídico brasi-
leiro, como o planejamento urbanístico, o parcelamento do solo urbano,
a ocupação do solo, o zoneamento, o loteamento, o desmembramento,
direito de superfície, direito de preempção, índices urbanísticos etc.
A maior relutância no reconhecimento da autonomia do Direito Urba-
nístico se deve à larga utilização de institutos e princípios de outros ramos
do Direito, como o Direito Administrativo, Constitucional e Tributário, bem
como à pouca sistematização de suas normas, o que não propiciaria o
desenvolvimento de institutos, princípios e diretrizes próprios.
Em razão disso, nas palavras de Edésio Fernandes, muitos juristas
restringem o Direito Urbanístico a uma perspectiva do Direito Administra-
tivo ou como um sub-ramo do Direito Ambiental, enquanto “as cidades e
seus problemas crescem assustadoramente, e a despeito do fato de que
milhares de leis urbanísticas têm sido aprovadas em níveis de governo
desde a década de 1930”.13
Discorda-se do posicionamento dos juristas que negam autonomia ao
Direito Urbanístico, pois, como já exposto no presente artigo, esse ramo do
Direito possui objeto, princípios, institutos e leis próprios. A interdiscipli-
naridade, que é tão clara no Direito Urbanístico, e, infelizmente, ocultada
no ensino de tantos outros ramos do Direito, não constitui empecilho ao
reconhecimento de sua autonomia.
Relembre-se que a realização da interdisciplinariedade é um dos
elementos estruturais do projeto pedagógico do curso de graduação em

13 FERNANDES, op.cit.

173
Direito, conforme determina a Resolução CNE/CES nº 09/2004 (diretrizes
curriculares nacionais do curso de graduação em Direito).
Ademais, a Constituição Federal destacou a autonomia do Direito
Urbanístico no artigo 24, inciso I, ao tratar da competência para legislar
sobre esse ramo do Direito: “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao
Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito tributário,
financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; [...]”
A Lei Magna, inclusive, possui capítulo exclusivamente destinado a
tratar da política urbana, sendo pioneira na definição de um conceito
para a função social da propriedade. Isto porque, apesar de a função
social da propriedade ter sido inserida no texto constitucional desde
a Constituição de 1934, somente com a promulgação da Constituição
Federal de 1988 estabeleceu-se um conteúdo para esse princípio (artigo
182, parágrafo segundo).
Regulamentando as disposições constitucionais acerca da política ur-
bana foi editado o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), que concentrou
as normas gerais sobre Direito Urbanístico, além de possibilitar maior
unidade às normas municipais, pelo estabelecimento de diretrizes gerais,
o que permitiu uma melhor compreensão desse ramo do Direito.
Ainda, com o Estatuto da Cidade foram incorporados novos institutos
ao Direito Urbanístico – transferência do direito de construir, outorga
onerosa do direito de construir, operações urbanas consorciadas etc. – o
que veio a reforçar a autonomia desse ramo do Direito.
Uma vez reconhecida a autonomia desse ramo do Direito e tendo-se
exposto a relevância de seu objeto para a persecução do bem-estar do
homem na comunidade, bem como diante da inseparável relação diaria-
mente travada entre homem e cidade, fica clara a importância da matéria
de Direito Urbanístico no ensino jurídico, que, numa visão crítica, busca a
formação de profissionais aptos a atuar diante das diversas necessidades
da comunidade em que estão inseridos e servir de instrumento para as
necessárias mudanças sociais.

174
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

2 AS DIRETRIZES CURRICULARES E
O ENSINO DE DIREITO URBANÍSTICO

Para a análise do ensino jurídico de direito urbanístico, é indispensável


a apreciação do seu tratamento nos currículos jurídicos, o que interfere
diretamente na formação e atuação dos operadores de direito, inclusive
na defesa dos direitos dos habitantes da cidade.
O termo currilucum, conforme Mossini14, significa caminho, trajeto,
percurso e foi aplicado pela primeira vez nos meios educacionais no século
xVI, porém seu significado foi se alterando ao longo do tempo.
Considera-se, pois, o currículo como um mecanismo de estipular um
trajeto para se atingir o objetivo do curso, que possuiu, no Brasil, diversos
momentos históricos. Esses momentos históricos iniciam-se com o surgi-
mento dos cursos de Direito no País, em que existia um currículo único, o
qual era caracterizado pela obrigatoriedade de todos os cursos de Direito
seguirem o mesmo currículo, pré-determinado e rígido, sendo válido para
todo o território nacional. 15
O atual momento histórico dos currículos jurídicos no Brasil baseia-se
na resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) e da Câmara de
Educação Superior (CES) nº 9, de 29 de setembro de 2004, que se distancia
da rigidez dos currículos únicos e institui as diretrizes curriculares nacio-
nais do curso de graduação em direito.
Nesse sentido, a Resolução traz conteúdo mais flexível, traçando ape-
nas orientações a serem observadas obrigatoriamente pelas instituições
de ensino superior de Direito na elaboração de seus currículos, permitindo
adequações às necessidades regionais.
A resolução CNE/CES nº 09/04, no seu art. 5º prevê três eixos de for-
mação, quais sejam, o eixo de formação fundamental, o eixo de formação
profissional e o eixo de formação prática, que serão contemplados obri-

14 MOSSINI, Daniela Emmerich de Souza. Ensino Jurídico: história, currículo e interdisciplinariedade. 2010.
249 f. Tese (Doutorado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 118.
15 LINHARES, Mônica Tereza Mansur. Educação, currículo e diretrizes curriculares no curso de Direito:
um estudo de caso. 2009. 505 f. Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2009, p. 270.

175
gatoriamente, como se extrai do termo “deverá” presente na norma, no
Projeto Pedagógico e na organização curricular das instituições de ensino
superior de Direito.

Art. 5º O curso de graduação em Direito deverá contemplar, em


seu Projeto Pedagógico e em sua Organização Curricular, conte-
údos e atividades que atendam aos seguintes eixos interligados
de formação:
I - Eixo de Formação Fundamental, tem por objetivo integrar o
estudante no campo, estabelecendo as relações do Direito com
outras áreas do saber, abrangendo dentre outros, estudos que
envolvam conteúdos essenciais sobre Antropologia, Ciência Polí-
tica, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia.
II - Eixo de Formação Profissional, abrangendo, além do enfo-
que dogmático, o conhecimento e a aplicação, observadas as
peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer natu-
reza, estudados sistematicamente e contextualizados segundo
a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças
sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações
internacionais, incluindo-se necessariamente, dentre outros con-
dizentes com o projeto pedagógico, conteúdos essenciais sobre
Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário,
Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Traba-
lho, Direito Internacional e Direito Processual; e
III - Eixo de Formação Prática, objetiva a integração entre a
prática e os conteúdos teóricos desenvolvidos nos demais Ei-
xos, especialmente nas atividades relacionadas com o Estágio
Curricular Supervisionado, Trabalho de Curso e Atividades
Complementares.

O art. 2º da Resolução CNE/CES nº 09/2004 estabelece que a orga-


nização dos cursos de graduação em Direito deve observar as diretrizes
curriculares nacionais e se expressa através do projeto pedagógico de
cada instituição, que deve conter: o perfil do formando; as competências e
habilidades; os conteúdos curriculares; o estágio curricular supervisionado;
as atividades complementares; o sistema de avaliação; o trabalho de curso
como componente curricular obrigatório do curso; o regime acadêmico
de ofertas; e a duração do curso.
Esclarece-se que a resolução traz a necessidade de que constem nos
projetos pedagógicos os conteúdos curriculares, que se distinguem de
disciplinas. Conteúdo é a matéria e disciplina é o continente. Da mesma
forma acontece no art. 5º da Resolução, que traz conteúdos essenciais
(matérias) e não disciplinas.

176
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Assim, a matéria pode estar integralmente contida em uma disciplina,


ou pode estar desdobrada em várias disciplinas.16 Logo, os conteúdos
curriculares devem estar presentes no projeto pedagógico e estar em
consonância com o art. 5º da Resolução.
Verifica-se, no entanto, que a necessidade de as instituições observarem
o art. 5º da Resolução em nada beneficia ou obriga o ensino de Direito
Urbanístico, já que ele não está previsto expressamente em nenhum dos
eixos de formação.
Nesse sentido, não é obrigatória a criação da disciplina de direito ur-
banístico, como não o é para nenhuma disciplina, pois a resolução trata
de matérias e não de disciplinas obrigatórias. Todavia, ao contrário do
que acontece com as matérias de Direito Constitucional, Direito Adminis-
trativo, Direito Tributário, entre outras, que devem obrigatoriamente ser
observadas na grade curricular dos cursos de Direito, seja em disciplina
própria ou em disciplina que abranja seu conteúdo, não há a imposição
de que se trate da matéria de Direito Urbanístico durante o curso, nem
mesmo no programa de outra disciplina.
Contudo, embora não haja a obrigatoriedade, percebe-se que os currí-
culos, assim como a educação, tem caráter dinâmico, devendo acompa-
nhar as constantes mudanças, elementos e necessidades sociais. Em razão
dessa dinamicidade é que há a flexibilidade das diretrizes curriculares.
O Direito Urbanístico é uma disciplina que atende às necessidades
atuais de regularização dos solos urbanos habitáveis, que surgem com a
urbanização, processo de aumento desproporcional da população urbana
frente à população rural, que, no Brasil,ocorreu de maneira descontrolada
e sem planejamento.
Várias consequências decorrem da urbanização descontrolada e sem
planejamento do País, que são facilmente visualizadas nas grandes cidades
brasileiras, problemas como habitações irregulares, falta de mobilidade
social e de saneamento básico, entre outros, que ultrapassam as questões
de paisagem e estética urbana e tornam-se questões relacionadas à qua-

16 LINHARES, op. cit., p. 325.

177
lidade de vida dos cidadãos e sustentabilidade das cidades.
Tudo isso fundamenta a necessidade de interferência estatal com o
objetivo de ordenar os espaços habitáveis17, utilizando essencialmente
os institutos que compõem o Direito Urbanístico.
Contudo, indaga-se com que eficiência serão utilizados e debatidos
esses institutos caso os operadores de direito não tenham formação ade-
quada nesse assunto e não sejam estimulados à pesquisa na área, que,
como exposto no capítulo anterior, possui todos os fundamentos de uma
disciplina autônoma, passível de estudo, ensino e pesquisa autônomos,
embora utilizando-se da interdisciplinariedade, presente em todas as
demais disciplinas.
Nesse sentido, a pesquisa no âmbito do Direito Urbanístico enfrenta
restrições em razão do pouco desenvolvimento do ensino dessa matéria,
isso porque há uma intrínseca relação entre o ensino, a pesquisa e a ex-
tensão, disposta no art. 207 da Constituição Federal de 1988 e no art. 2º,
§1º, VIII da Resolução CNE/CES nº 9/2004, que implica em uma interde-
pendência entre eles. Dessa maneira, a ausência do ensino, desestimula
a pesquisa e a atuação dos profissionais do Direito nessa área jurídica.
Diante do exposto, considera-se que a pesquisa em Direito Urbanís-
tico e a própria ciência pode ser estimulada, desenvolvida e incentivada
através do oferecimento de disciplina própria do tema. Contudo, não se
pode torná-la uma disciplina necessariamente obrigatória nas grades cur-
riculares, até mesmo em coerência com as diretrizes curriculares e com a
autonomia curricular das instituições de ensino superior.
O que se almeja é a conscientização da dinamicidade dos currículos
jurídicos - que devem se adaptar aos contextos sociais - e da atual impor-
tância do Direito Urbanístico para assegurar direitos como o da moradia
adequada, do meio ambiente equilibrado, da mobilidade social, entre
outros, que estão diretamente relacionados com o ambiente urbano e
com a qualidade de vida dos cidadãos.
Soma-se a isso à percepção de que os operadores de direito são os

17 SILVA, op. cit., p. 34.

178
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

instrumentos de mudança social, indispensáveis à realização prática de


direitos abstratamente previstos em dispositivos legais, como dispõe
Machado18:

Este (jurista atual) não deve tão-somente saber manejar um co-


nhecimento de natureza estritamente normativa e um punhado
de técnicas processuais que não questionam suas próprias fina-
lidades; precisa, antes de tudo, (a) realizar a crítica permanente
dos valores predominantes no contexto social onde opera seu
saber/fazer, e, além disso; (b) realizar uma contínua adaptação
de sua técnica a esses valores da sociedade; (c) assumindo com-
promissos com o meio social em que atua.

Diante do exposto, conclui-se que, ainda que em caráter optativo,


as instituições de ensino superior devem se adaptar à realidade e as
necessidades sociais e oferecer a disciplina de Direito Urbanístico, além
de promover debates sobre a matéria, de modo a familiarizar os futuros
operadores com a disciplina, estimulando a busca por conhecimento,
incrementando, desse modo, o ensino e a pesquisa nessa área, como um
compromisso com o meio social.

3 A disciplina de Direito Urbanístico nos currículos jurídicos das


faculdades do Estado do Ceará

Diante da importância do ensino de Direito Urbanístico e considerando


o tratamento legal dado à disciplina nas diretrizes curriculares, buscou-se
uma análise prática de como tem se desenvolvido o seu ensino, através
de uma pesquisa das grades curriculares das instituições de ensino supe-
rior com curso de Direito reconhecido pelo MEC, o que pressupõe nível
mínimo de qualidade. Diante da limitação quanto à extensão do trabalho,
limitamo-nos às instituições do Estado do Ceará.
Para isso, analisou-se a grade curricular do curso de Direito de cada
instituição, através de pesquisa em seus sítios eletrônicos ou através de
entrevistas com os coordenadores do curso.

18 MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 151.

179
O Estado do Ceará possui atualmente dezenove instituições de ensino
superior que possuem o curso de Direito reconhecido pelo MEC, quais
sejam, o Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS), o Centro Universi-
tário Estácio do Ceará (FIC), a Faculdade Católica Rainha do Sertão (FCRS),
a Faculdade Cearense (FAC), a Faculdade de Ciências Aplicadas Doutor
Leão Sampaio (FLS), a Faculdade de Ensino e Cultura do Ceará (FAECE), a
Faculdade de Fortaleza (FAFOR), a Faculdade do Vale de Jaguaribe (FVJ), a
Faculdade Farias Brito (FFB), a Faculdade Integrada Grande Fortaleza (FGF),
a Faculdade Luciano Feijão (FLF), a Faculdade Metropolitana da Grande
Fortaleza (FAMETRO), a Faculdade Nordeste (FANOR), a Faculdade Paraíso
do Ceará (FAP), a Faculdade Sete de Setembro (FA7), a Universidade de
Fortaleza (UNIFOR), a Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA), a
Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Universidade do Cariri (URCA).
Constatou-se na pesquisa que três tratamentos são direcionados à
matéria de Direito Urbanístico nas dezenove referidas faculdades, quais
sejam, algumas delas trazem a matéria em uma disciplina própria obri-
gatória, outras trazem a matéria em disciplina própria em caráter eletivo,
ou seja, sem a obrigatoriedade, e outras não dispõem de uma disciplina
intitulada de Direito Urbanístico, mas possuem disciplinas com alguns
conteúdos similares a essa disciplina, como o Direito Ambiental, o Direito
da Cidade ou o Direito Municipal.
Dentre as instituições submetidas à pesquisa, seis delas, quais sejam,
a Faculdade Cearense (FAC), a Faculdade de Ciências Aplicadas Doutor
Leão Sampaio (FLS), a Faculdade do Vale de Jaguaribe (FVJ), a Universidade
do Cariri (URCA), a Faculdade Nordeste (FANOR) e a Faculdade Luciano
Feijão não possuem a disciplina exclusiva para Direito Urbanístico, nem
mesmo como optativa. Entretanto verificou-se que todas elas possuem
disciplinas como Direito Ambiental ou Direito Municipal que, de alguma
maneira, limitadamente abordam aspectos do Direito Urbanístico. No caso
da Faculdade Nordeste, por exemplo, é oferecida a disciplina de Direito
das Cidades, abrangendo o Direito Urbanístico e o Direito Ambiental. Da
mesma forma, a Faculdade Luciano Feijão oferta em caráter obrigatório

180
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

a disciplina de Direito das Cidades.


Dez das instituições, por sua vez, possuem a disciplina de Direito
Urbanístico em caráter eletivo, ou seja, não é obrigatoriamente cursada
pelos alunos. Só cursa tal disciplina quem assim desejar e optar. É o caso
do o Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS), do Centro Universitário
Estácio do Ceará (FIC), da Faculdade Católica Rainha do Sertão (FCRS),
da Faculdade Farias Brito (FFB), da Faculdade Integrada Grande Fortaleza
(FGF), da Faculdade Metropolitana da Grande Fortaleza (FAMETRO), da
Faculdade Paraíso do Ceará (FAP), da Universidade de Fortaleza (UNIFOR),
da Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA) e da Universidade
Federal do Ceará (UFC).
Por fim, três das faculdades possuem a disciplina de Direito Urbanístico
como obrigatória em suas grades curriculares, são elas: a Faculdade de
Ensino e Cultura do Ceará (FAECE), a Faculdade de Fortaleza (FAFOR) e
a Faculdade Sete de Setembro (FA7).
Com os dados, constata-se uma atual tendência positiva do ensino do
Direito Urbanístico nos cursos de graduação em Direito, já que treze das
dezenove faculdades trazem em suas grades curriculares a disciplina.
Dentre essas, a maioria a oferece em caráter eletivo, o que já supre a ne-
cessidade mínima de ensino dessa matéria, embora, diante da relevância
da disciplina para a realidade social na qual estão inseridos os alunos, seja
desejável a promoção de frequentes debates sobre o assunto, estimulando,
assim, uma maior procura dos alunos pela disciplina.
Por outro lado, como resultado do debate da autonomia ou não do
Direito Urbanístico, verifica-se que algumas faculdades, a minoria das
pesquisadas, não oferecem a disciplina de Direito Urbanístico em suas
grades curriculares.
Nada impede, porém, que algumas de suas matérias sejam abordadas
no ensino de outros ramos do direito como no Direito Ambiental, conside-
rando os vários pontos de intercessão entre eles, apesar de tal tratamento
mostrar-se insuficiente ao estudo das questões mais relevantes afetas ao
Direito Urbanístico, na medida em que gera uma análise restrita e não

181
valoriza a autonomia da matéria em um contexto histórico e social que,
como já destacado, impele estudos mais aprofundados.

CONCLUSÃO

Um dos aspectos da chamada crise do ensino jurídico é a crise operacio-


nal, que abrange as crises curricular, didático-pedagógica e administrativa
e é objeto de constantes debates.
Quanto à crise curricular, um dos questionamentos que sempre exis-
tiu, e sempre deve existir, em razão das mudanças sociais - que devem
ser acompanhadas pela ciência jurídica - é o que deve ser ensinado nos
cursos jurídicos. Esse questionamento foi abordado ao longo do trabalho,
com direcionamento específico à necessidade ou não do ensino jurídico
de Direito Urbanístico.
Embora não esteja elencado entre os conteúdos obrigatórios a serem
oferecidos pelos cursos jurídicos de graduação, o Direito Urbanístico é
uma ciência com elementos que lhe confere autonomia, adquirindo cada
vez mais relevância diante da urbanização e da necessária intervenção
estatal nesse processo para a garantia do direito à cidade com todos di-
reitos daí decorrentes.
Diante do exposto e considerando o caráter dinâmico dos currículos
jurídicos, os quais devem adaptar-se às peculiaridades sociais, temporais,
históricas e regionais, contempla-se a importância do ensino jurídico de
Direito Urbanístico, seja com a oferta da disciplina em caráter obriga-
tório ou em caráter eletivo. No último caso, imprescindível que se faça
uma divulgação da abrangência, conteúdo e importância da matéria,
vez que o desconhecimento ainda é um empecilho ao desenvolvimento
dessa ciência.
Com incremento do ensino jurídico de Direito Urbanístico, as pesqui-
sas e a evolução desse ramo do Direito tendem a crescer e adquirir mais
qualidade. Da mesma forma, espera-se o aumento do número de profis-
sionais aptos a atuar nessa área e o aperfeiçoamento de suas formações,

182
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

especialmente com a adoção da postura crítica e reflexiva necessária à


persecução de um dos principais objetivos desse ramo do Direito, que é
assegurar o Direito à Cidade, respeitando-se a sua função social e a dig-
nidade de seus habitantes.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº. 9, de 29 de setembro de 2004.


Institui as diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em Direito e
dá outras providências. Disponível em: <http://www.udesc.br/arquivos/id_sub-
menu/83/resolucao_2004_9_ces.pdf> Acesso em: 30 jun. 2013.
FERNANDES, Edésio. Do Código Civil ao Estatuto da Cidade algumas notas
sobre a trajetória do Direito Urbanístico no Brasil. Revista URBANA, Cara-
cas, v. 7, n. 30, jan. 2002. Disponível em: <http://www2.scielo.org.ve/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0798-05232002000100004&lng=es&nrm=iso>. Acesso
em: 16 ago. 2013.
HUMBERT, Georges Louis Hage. Direito Urbanístico e função socioambiental
da propriedade imóvel urbana. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2.ed. São Paulo:
Atlas, 2009.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Editora Sa-
raiva. 2003.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 18. ed. São
Paulo: Malheiros, 2005.
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
MOSSINI, Daniela Emmerich de Souza. Ensino Jurídico: história, currículo e
interdisciplinariedade. 2010. 249 f. Tese (Doutorado em Educação) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
MUKAI, Toshio. Direito urbano e ambiental. 3.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2006.
LINHARES, Mônica Tereza Mansur. Educação, currículo e diretrizes curricu-
lares no curso de Direito: um estudo de caso. 2009. 505 f. Tese (Doutorado em
Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.
SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro. 4.ed. São Paulo: Malheiros,
2006.

183
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Posse e propriedade na afirmação do


direito à cidade: uma metodologia de
pesquisa fundiária aplicada ao Morro
da Providência (RJ)

Rosangela Lunardelli Cavallazzi1


Tatiana Cotta Gonçalves Pereira2

1 JUSTIFICATIVA DA ESCOLhA PELA LINhA OFICINA

A pertinência do trabalho ora proposto na Oficina 1: “Experiências


de ensino, pesquisa e extensão em Direito Urbanístico” , linha Direito
Urbanístico em defesa dos habitantes da cidade pode ser fundamentada
segundo duas escalas.
No que tange à escala da experiência de pesquisa no campo do direito
urbanístico, onde o estudo prioriza o Estatuto da Cidade e a Legitimação
de Posse trazida pela Lei 11.977/09 como microssistemas na compreensão
dos conflitos inerentes às questões urbanas, permitindo a construção de
metodologia de pesquisa fundiária, contribuindo de forma relevante para
trabalhos acadêmicos e para o campo do Direito Urbanístico brasileiro.
No que diz respeito à escala de defesa dos direitos dos moradores da
cidade, o estudo se desenvolve com ênfase no reconhecimento da posse
como realidade que efetiva o direito à moradia nas favelas, especialmente
no que tange ao reconhecimento da posse ad usucapionem como forma
de propriedade, ao reconhecer os altos níveis de vulnerabilidade dos

1 Doutora e Mestre em Direito. Pós-doutora (Pós-Doutorado na Ecole Doctorale Villes et Environnement


– Universite Paris 8). Professora e pesquisadora da UFRJ e PUC/Rio. Líder do Grupo de Pesquisa Direito e Ur-
banismo do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Bolsista Produtividade do CNPq. cavallazzi@uol.com.br.
2 Mestre em Direito da Cidade (UERJ), Doutoranda em Sociologia e Direito (UFF). Professora de Direito DO
Departamento de Ciências Jurídicas da UFRRJ (Seropédica), pesquisadora do LADU (PROURB/FAU/UFRJ).
tatianacotta75@gmail.com

185
possuidores em razão da tutela de direitos difusos e alcançando a insti-
tucionalização de direitos.

2 PREMISSAS DO CAMPO

2.1 Premissas metodológicas

A escolha e construção da metodologia adequada para a realização


da pesquisa jurídica e urbanística implica no necessário levantamento
das possibilidades metodológicas presentes nos campos do direito e do
urbanismo, principalmente na capacidade de produção de sentido do
pesquisador na qualidade de intérprete.
Os métodos de interpretação da lei “[...] constituem um conjunto de
princípios e conceitos que funcionam como diretrizes retóricas, cujo caráter
científico é alcançado através do senso comum teórico”3.
O senso comum teórico encaminha o conceito dos métodos interpre-
tativos como técnicas rigorosas que permitem alcançar o conhecimento
científico do direito positivo4. Este “paradigma” referencia toda a produção
e conservação teórica dogmática. Na verdade, o ato interpretativo pode
ser considerado, segundo Warat (1979), como produto do convencimen-
to jurídico5.
Os distintos métodos da hermenêutica jurídica elaboram fórmulas
de significação assim, por exemplo a) o método exegético (Bonnecase,
Proudhon) - apelo ao espírito do legislador; b) método histórico (Savigny)
- apelo ao espírito do povo, apelo à necessidade; c) método comparativo
(Ihering) - análise de outros sistemas jurídicos; d) método dogmático - ex-
plicitação dos componentes sistemáticos e lógicos do direito positivo; e)
método do positivismo sociológico (Duguit) - análise sistêmica dos fatos;

3 Warat, L. A. Mitos da Interpretação da Lei. 1979 Define o senso comum teórico como uma montagem
de noções, representações - imagens - saberes, presentes nas diversas praticas jurídicas, que governam os da-
dos da realidade, assegurando a reprodução dos valores e práticas predominantes. Constitui um agregado
de normas que disciplinam ideologicamente o trabalho dos juristas.
4 Warat, L. A. (1979), op. cit, p. 75
5 Warat, L. A. (1979), op. cit, p. 31.

186
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

f) método do positivismo fático (Cohen e Alf Ross) - lingüística a partir


dos contextos de uso; g) método empírico-dialético da Escola Egológica
(Cossio) - compreensão valorativa da conduta através da análise empírico-
-dialética; h) método tópico - retórico (Viehweg) produção de conclusões
dialéticas a partir dos lugares.
Os métodos de interpretação cumprem uma função mítica6, pois
podem ser considerados uniformizados como lugares ideológicos7, fór-
mulas para produzir sentidos.
Em virtude destes papéis realizados pelos métodos de interpretação,
Warat (1979) conclui que eles podem ser indistintamente utilizados8.
Torna-se essencial para a produção de sentido no processo de constru-
ção do objeto do conhecimento a compatibilidade entre método e tipo de
problema que venha a ser alvo da interpretação.
Nessa perspectiva, a escolha do método no caminho científico, espe-
cialmente no caminho científico, não pode ficar restrita aos métodos da
hermenêutica jurídica. Nessa perspectiva, dois métodos foram priorizados:
o do caso-referência e o do diálogo das fontes.
O método do diálogo das fontes adotado em razão da natureza do
campo do Direito Urbanístico – direito difuso. O Diálogo das Fontes en-
controu sua primeira tradução no Brasil com Claudia Lima Marques9, no
campo do Direito do Consumidor.
Já o estudo de caso-referência constitui o método adotado por uma das
autoras desde 1993, quando em sua tese10 de doutorado, foi necessário
enfrentar as dificuldades e dilemas do método do estudo de caso para a
pesquisa do campo jurídico no que tange a demonstração dos estudos e
casos exemplares e demonstrativos da tese desenvolvida. A adoção do

6 Neste papel eles cumprem funções, tais como: 1) função mítica da consolidação das crenças jurídicas;
2) função redefinitória enquanto podem ser utilizados como um "relato despido de sua função explicativa,
embora mantenham a aparência e gerem a ilusão de funcionar como tal"
7 “Os lugares ideológicos são fórmulas para reconhecer nos diferentes discursos a mesma voz ética”. Warat,
L. A. (1979), op. cit., p. 66.
8 Warat, L. A. (1979), op. cit, p. 67.
9 MARQUES, C. L. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
10 CAVALLAZZI, R. L. O Plano da Plasticidade na Teoria Contratual. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro.
UFRJ,1993.

187
método estudo de caso, embora apropriado, exigia análise integral do
caso escolhido e, mais ainda, trazia em seu bojo a implícita abordagem do
sociólogo, não necessariamente imprescindível à demonstração da tese no
plano jurídico. Tornou-se uma exigência em virtude da complexidade da
pesquisa e, principalmente em razão da tradição dos métodos da herme-
nêutica jurídica, encontrar um procedimento mais suave, mas ao mesmo
tempo, suficientemente pertinente e estruturado para a demonstração das
práticas sociais inerentes ao quadro conceitual construído no campo no
campo do Direito Urbanístico.

2.2 Premissas epistemológicas

O Direito Urbanístico tem sua institucionalização com a Constituição


Federal de 1988, ganhando espaços no debate nacional sobre a Reforma
Urbana. Sua consolidação se dá com o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01),
que constitui seu microssistema11. Outras normas também vêm sendo
editadas ao longo dos anos, trazendo novos instrumentos jurídicos, po-
dendo-se destacar a Medida Provisória 2.220/01, que trata da concessão
especial para fins de moradia em imóveis públicos, a Lei 11.481/07, que
trata do mesmo tema no âmbito da União, a Lei 11.977/09, que estabelece
a legitimação de posse e a usucapião administrativa, além do processo
de revisão da Lei 6766/79, através do Projeto de Lei nº 3.057/00 sobre
parcelamento para fins urbanos e regularização fundiária sustentável em
áreas urbanas.
Toda essa estrutura normativa do campo do Direito Urbanístico como
espaço jurídico privilegiado integra tutela efetiva do direito à cidade e suas
funções sociais, conforme estabelece o art.182 da Constituição Federal.
Assim, é no reconhecimento do direito à cidade como direito humano
fundamental, como eixo articulado de direitos sociais que podemos vis-
lumbrar a carta de identidade do Direito Urbanístico.

11 À exemplo do microssistema do Código Defesa do Consumidor, o Estatuto da Cidade constitui um corpo


de normas específicas e prioritárias a serem adotadas no processo de qualificação das relações jurídicas
entre desiguais.

188
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Ao compreender a cidade como uma aglomeração de pessoas hete-


rogêneas dividindo o mesmo espaço, com pluralidade de etnias, credos,
culturas, preferências políticas, Lefebvre (2006) vai afirmar que essa é a
maior característica da cidade industrial, e que, portanto, essa cidade se
constitui como arena de diversos conflitos, de lutas pelo seu uso. A vida
comunitária de certa forma acirra os contrastes, embora não impeça o
apego de todos a ela e nem a contribuição ativa para a beleza da obra.12
Hoje, na sociedade de serviços com a cidade standard, as lutas urbanas
reforçam o sentimento de pertencimento dos citadinos.
É a partir desse enfoque que compreendemos o direito à cidade, “[...]
não à cidade arcaica mas à vida urbana, à centralidade renovada, aos lo-
cais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que
permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais, etc.”13 Portanto,
em nossa leitura entendemos, como premissa, o direito à cidade tal qual
colocado por Lefebvre, ou seja, um direito construído dialeticamente, que
“se forma enquanto se procura”14, que nasce das lutas cotidianas pelo uso
e apropriação do espaço urbano, da realidade social em suas contradições
vividas.
Em termos especificamente jurídicos, sem pretensões de engessa-
mento, reconhecendo a possibilidade histórica da incorporação de novos
direitos, optamos por compreender o direito à cidade como aquele que
realiza suas funções sociais, na medida exata em que viabiliza eficácia
social aos direitos sociais, como um feixe, ou seja, de forma articulada,
concretizando a vida digna. Assim,

Consideramos o direito à cidade, expressão do direito à digni-


dade da pessoa humana, o núcleo de um sistema composto por
um feixe de direitos que inclui o direito à moradia – implícita a

12 “A cidade tem uma história; ela é a obra de uma história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que
realizam essa obra nas condições históricas.” (2006:46/47). Interessante é que Lefebvre trabalha o tempo todo
a cidade dentro da dicotomia obra (uso) e produto (troca), chegando a dizer que ela foi, historicamente, mais
obra do que produto, o que se modifica no quadro do capitalismo, ainda mais se pensarmos no século xxI,
quando a cidade é em si mercadoria.
13 LEFEBVRE, H. O Direito à Cidade, 2006, p.143
14 (LEFEBVRE, 2006: apresentação). Essa ideia é defendida por Lefebvre acerca da sociedade urbana, mas
como adepto do método dialético, é possível transportarmos tal afirmativa para a compreensão do filósofo
francês acerca do direito à cidade, uma vez que não podemos “fechar” tal perspectiva.

189
regularização fundiária –, à educação, ao trabalho, à saúde, aos
serviços públicos – implícito o saneamento –, ao lazer, à seguran-
ça, ao transporte público, à preservação do patrimônio cultural,
histórico e paisagístico, ao meio ambiente natural e construído
equilibrado – implícita a garantia do direito às cidades sustentá-
veis como direito humano na categoria dos interesses difusos.
(CAVALLAZZI, 2007, p. 56)

2.3 Premissas teóricas

Numa perspectiva estritamente jurídica, a principal característica


da favela é justamente a ilegalidade da ocupação da terra em relação à
moradia. O ordenamento jurídico brasileiro estabelece os direitos reais,
que são aqueles em que há “poder imediato da pessoa sobre a coisa, que se
exerce erga omnes” (GOMES, 1996, p.2), sendo o principal deles o direito
à propriedade privada. Portanto, como não é possível viver fora do solo, a
aquisição da propriedade privada15 é a forma legal e segura de garantir um
pedaço de chão para viver ou produzir na sociedade capitalista brasileira.
Deve-se ressaltar, contudo, que a partir da Lei de Terras de 1850,
adotou-se como modo de aquisição legal prioritário da propriedade pri-
vada o contrato de compra e venda (ato inter vivos), através de dois atos:
o primeiro com a Escritura Pública de Compra e Venda e pagamento do
ITBI, e em segundo momento o registro de tal Escritura no devido Regis-
tro Geral de Imóveis (RGI). Quem consegue trilhar todo esse caminho se
torna proprietário do bem, com eficácia erga omnes, ou seja, trata-se de
um direito que se opõe a qualquer um, todos devendo respeitar tal situ-
ação jurídica, valendo lembrar que esse direito em regra é exercido em
oposição, via de regra, a não proprietários.
Em contraposição, talvez por herança, já que em um curto período
vigorou um regime de posse livre no Brasil (1822/1850)16, a posse também
é um direito. Pelo novo Código Civil, “considera-se possuidor todo aquele
que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à

15 Vide Lei 601 de 1850 (Lei de Terras).


16 Não exatamente como uma opção legislativa, mas, ao contrário, por ausência de norma que regulamentasse
o acesso à propriedade (ROCHA et al, 2010, p.62), que se consagrava como direito fundamental absoluto na
Constituição de 1824.

190
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

propriedade.” (art.1196). A posse é, na verdade, a relação de fato da pessoa


com a coisa e por isso se configura como uma situação concreta que produz
efeitos jurídicos. Os moradores de favela são considerados possuidores,
pois não detêm o registro da propriedade da terra em que vivem, mas,
ao construírem suas casas em terrenos de terceiros, exteriorizando atos
como se donos fossem, demonstram domínio sobre a terra, configurando
a possibilidade, atendidos os requisitos constitucionais e legais (art.183 da
Constituição Federal) de adquirir a propriedade do solo, declarada através
da ação de usucapião (arts. 941 a 945 do Código de Processo Civil).
Assim, enfatizamos que o fato dos moradores de favelas não possuírem
um título de propriedade registrado no Registro Geral de Imóveis abso-
lutamente significa que eles não tenham direitos – e, inclusive, algumas
situações de irregularidades se equiparam a de moradores em loteamentos
irregulares ou clandestinos17. Defendemos que tanto a posse ad usucapio-
nem quanto outras situações de aquisição da propriedade privada (como
escritura pública sem registro no RGI; inventários não concluídos; ausência
do registro da cadeia sucessória da propriedade, ou de desmembramento
de gleba maior) não conduzem necessariamente à ilegalidade da proprie-
dade da terra, mas, no máximo, à mera irregularidade. Afirmamos com isso
que, em nosso olhar, se trata de situação jurídica incompleta (ato jurídico
não perfeito, muitas vezes), mas geradora de direitos. Nesse sentido, temos
afirmado se tratar de direito de propriedade lato sensu, pois todas essas
situações “irregulares” são situações constituídas como proprietárias,
a exemplo de outras hipóteses de propriedade privada e tuteladas pelo
ordenamento, faltando apenas a formalidade de uma declaração, seja
judicial, seja extrajudicial.
E, observando a realidade brasileira, compreendendo que a apropriação

17 Loteamento é espécie de parcelamento do solo, que pode se dar das seguintes maneiras:

Parcelamento regular é parcelamento aprovado, registrado e devidamente executado (ou implantado), em


conformidade com a lei e com as licenças expedidas.
Parcelamento clandestino é parcelamento não aprovado, oculto à Administração Pública. Parcelamento
irregular é parcelamento aprovado, mas não registrado, ou ainda que registrado, com falha na implantação.
(AMADEI e AMADEI, 2012, p.14)

191
real do espaço se dá simbolicamente através de leis e regras que legitimam
ou não tal apropriação, temos como fato inconteste a inadequação de
diversas situações fundiárias, ou seja, não há eficácia social, no sentido
do reconhecimento do critério da legitimidade, da norma jurídica, espe-
cialmente daquela definida pelo art. 1.245 do novo Código Civil18, segundo
a qual “só é dono quem registra”.
Portanto, nosso trabalho de pesquisa no campo (mediante o caso
- referencia) parte do reconhecimento de que a posse ad usucapionem
é propriedade, conforme a melhor doutrina, já que tendo o possuidor
atingido os requisitos adquire a propriedade, direito que pode, inclusive,
ser argumentado em eventual defesa. Assim, nos parece extremamente
equivocado não reconhecer o direito dos moradores de favelas, sob o ponto
de vista legal, como proprietários da terra em que construíram suas casas.
Esse não reconhecimento constitui uma série de implicações jurídicas
e sociais, sendo a mais grave delas o que se denomina de “insegurança na
posse”. Essa insegurança é traduzida no medo do morador de ser obrigado
a sair de sua moradia, pois embora o ordenamento reconheça a posse
como um direito, a propriedade (devidamente transcrita no Registro Geral
de Imóveis) é tratada como um direito maior, inclusive segundo o senso
comum, em grande medida em razão das normas relativas à ocupação
e propriedade da terra estabelecidas desde o início do processo de colo-
nização19. E assim explica-se o fato dos possuidores estarem vulneráveis
a despejos, seja por uma ação judicial do proprietário, seja por algum
programa do Poder Público (de regularização fundiária ou remoção).
Portanto, na tentativa de instrumentalizar moradores de favelas na
defesa de sua posse ad usucapionem, entendemos que o melhor cami-
nho, no processo de reconhecimento pleno dos direitos do possuidor,
a fim de promoção da segurança jurídica, seria priorizar o plano da
propriedade e através da ação de usucapião ver declarada e registrada
a propriedade privada.

18 “Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.§
1o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.”
19 Na época colonial, inclusive a posse é crime, o que acontece também no advento da Lei de Terras (1850).

192
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

3 APRESENTAÇÃO DO CASO-REFERÊNCIA

3.1 A ocupação do Morro da Providência

Muitos autores afirmam que o Morro da Providência é a primeira favela


do país20, tendo o substantivo favela surgido a partir dos primórdios de
sua ocupação, quando ocorreu a mudança de seu nome, passando a se
chamar Morro da Favella:

A maior parte dos comentaristas apresenta duas razões para essa


mudança de nome: 1ª) a planta favella, que dera seu nome ao
Morro da Favella – situado no município de Monte Santo no Esta-
do da Bahia – ser também encontrada na vegetação que recobria
o morro da Providência; e 2ª) a feroz resistência dos combatentes
entrincheirados nesse morro baiano da Favella, durante a guerra
de Canudos, ter retardado a vitória final do exército da República,
e a tomada dessa posição representando uma virada decisiva da
batalha. VALLADARES (2005, p.29)

Há também outra hipótese para a ocupação do morro:

A Inspetoria de Higiene Pública, associada aos médicos e contan-


do ainda com o interesse policial, vai fechar ou mesmo demolir
muitas destas precárias habitações. A mais famosa delas, o
popular Cabeça de Porco, ficava exatamente no sopé do morro
da Providência. Assim, há indícios de que em 1893 “logo após a
destruição do Cabeça de Porco, (...) um de seus proprietários, dono
também de terrenos na encosta, autorizou a ocupação da mesma,
cobrando dos antigos inquilinos o direito de ali construírem case-
bres” (ABREU, 1994, p. 37).

Cabe esclarecer, entretanto, que embora vislumbremos um posse mais


do que centenária, há partes do morro da Providência que foram objeto
de intervenção pública visando a implementação de política urbana, prin-
cipalmente as ruas de acesso, sendo possível observar esse fato através

20 Esta afirmação parece ser bem comum a todos os que tratam do tema, mas estudiosos respeitados, como
ABREU (1994), VALLADARES (2005), BARBOSA (MENDES, 2005) vão relatar a existência simultânea de diversas
ocupações na cidade, como o morro de Santo Antônio, a Mangueira e a Quinta do Caju.

193
de diversos PAAs e PALs21 elaborados pela Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro, bem como por relato de CARDOSO et al (1987, pp.76-77):

No final da década de 1850, por ocasião da implantação da


estrada de ferro, os morros da Providência, na encosta voltada
para a planície, e o da Formiga já eram ocupados por um número
considerável de moradores. Essa ocupação tornara-se possível
devido à abertura de duas vias de acesso - o caminho da Formiga
(atual rua Ebroíno Uruguai) e rua da Providência (atual Rêgo Barros) -
e as melhorias efetuadas principalmente pelos proprietários de
pedreiras.

Assim, conforme já destacamos:

[...] a ocupação do entorno do morro é autorizada e planejada


pelo Poder Público e se configura como legal [...], começando
em meados do século xIx. Esta ocupação formal (no sentido de
aquisição do terreno e de autorização para construir) está muito
relacionada ao desenvolvimento das atividades portuárias, à
exploração das bicas, à presença da Estrada de Ferro e das pe-
dreiras que marcam a paisagem do morro. Provavelmente são os
trabalhadores envolvidos nestas atividades econômicas que vão
morar por ali. (GUIMARÃES; PEREIRA, 2012, p. 155)

3.2 Breve relato dos Projetos de


Política Pública de Intervenção na área

A zona portuária do Rio de Janeiro – onde se insere o Morro da Pro-


vidência – sofreu algumas intervenções no século xx, sendo destaque
as políticas do prefeito Pereira Passos (1902-1906) que terminaram por
esvaziar essa região em detrimento do desenvolvimento de outras áreas
da cidade.
Com relação ao morro em si, temos em 1987 a definição de um períme-
tro como Área de Preservação Ambiental (APA), criada pela Lei municipal

21 PAA (Projeto Aprovado de Alinhamento) – Define o traçado dos logradouros, separando o espaço públi-
co das parcelas privadas ou de outros bens públicos. PAL (Projeto Aprovado de Loteamento) – Projeto de
parcelamento da terra, podendo ser efetuado através de Loteamento ou Desmembramento ou através de
Remembramento – neste projeto são identificados os lotes e suas dimensões. Ambos são projetos elaborados
e aprovados por técnicos da Prefeitura Municipal e estão disponíveis na Secretaria Municipal de Urbanismo
(SMU). Para referências completas sugerimos a leitura de GUIMARÃES, I.B.B. ; PEREIRA, T. C. G., 2012, p.160.

194
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

971/87, regulamentada pelo Decreto nº 7351/88, que ficou conhecida


como Projeto SAGAS, pois abrange os bairros portuários da Saúde, Gamboa
e Santo Cristo. Esse projeto visava regulamentar a preservação urbana
da região, conforme na época é reconhecida na afirmação “atualmente
a maioria dos sobrados antigos abriga atividades impróprias, particular-
mente estacionamento e armazenamento”. (SAMPAIO, 2010).
Com o Plano Decenal da Cidade do Rio de Janeiro, instituído pela Lei
Complementar n.° 16 de 1992, foi criada a Área de Proteção do Ambiente
Cultural – APAC, com o objetivo de proteger as áreas com características
ambientais e urbanas de notável interesse para a identidade cultural da
cidade, dentre elas está a favela aqui estudada (SOARES; MOREIRA, 2007).
Em 2005, a Prefeitura inaugurou o projeto Favela-Bairro no Morro da
Providência, programa cujo objetivo era integrar a favela à cidade, dando-
-lhe características de bairro. Na Providência, diversas obras de urbaniza-
ção e infraestrutura foram feitas, sobretudo na área da Gamboa. Diversas
edificações foram restauradas, inclusive no âmbito de um projeto que
visava transformar a favela numa espécie de “museu vivo”, batizado como
Museu a céu aberto. As intervenções a partir de 2000 foram respaldadas
pela definição do Morro da Providência como Área de Especial Interesse
Social (AEIS) através da Lei nº 2976 de 11/01/2000.
Em 2010 é inaugurada a Unidade de Polícia Pacificadora. A instalação
da UPP se coaduna com o processo de requalificação da zona portuária
da cidade, a Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha.
Embora não seja nosso objeto, é necessário registrar que essa OUC é
o primeiro projeto pensado para a área a sair da esfera do planejamento,
sendo executado pela concessionária Porto Novo. No perímetro dessa
intervenção está a área do Morro da Providência, que recebe intervenções
a partir do Programa Morar Carioca, conforme já ressaltamos:

No que diz respeito às intervenções urbanísticas no Morro


da Providência, o projeto prevê melhorias na infraestrutura,
recuperando redes de água e esgoto, na acessibilidade e nas
condições de salubridade, através de remoções para promoção
de desadensamento. Os cinco principais eixos das obras são:
ampliação da largura das vias internas da favela, construção de

195
um teleférico ligando o Morro da Providência à Estação Central
do Brasil e a Gamboa, o plano inclinado, remoção de habitações
em área de risco e construção de novas moradias, além das obras
de infraestrutura e pavimentação que já estão sendo realizadas
nas partes baixas e proximidades do morro (p. ex. na rua Ebroino
Uruguai e na rua Barão da Gamboa).
(GUIMARÃES, I.B.B. ; PEREIRA, T. C. G., 2012, ps.165/166)

Nessa intervenção planejada, a proposta inicial previa a remoção de


oitocentas moradias, sem, contudo prévio e necessário processo demo-
crático com a comunidade, pois a forma como os moradores ficavam
sabendo dessas intenções era arbitrária e abusiva, sem observância do
devido processo legal22, e também sem levar em conta a propriedade
do solo23. O resultado tem sido um processo cruel de ressignificação e
de gentrificação do Morro da Providência. Portanto, a adoção de uma
metodologia que reforçasse o direito dos possuidores, ganha sentido jus-
tamente em razão desses fatos; uma metodologia que os reconhecesse
como proprietários lato sensu, buscando, ao mesmo tempo, reconstruir
toda a cadeia de sucessão da propriedade do morro, a fim de verificar o
abandono da mesma.24 Nosso objetivo é instrumentalizar os moradores
com documentos e informação qualificada, que os façam ter garantida sua
permanência na terra ou, quando forem removidos, que sejam reconheci-
dos como proprietários, integrando os processos de desapropriação, com
justa e prévia indenização em dinheiro, o que, afinal, é direito fundamental.

22 “[...] os técnicos da Prefeitura chegam sem crachá ou uniforme e não dizem qual seu objetivo; perguntam
quantas pessoas moram ali, fotografam, cadastram (alguns moradores achavam que o cadastro era para o
programa Bolsa Família) e quando o morador repara, sua casa foi marcada com a sigla SMH e um número,
que não sabem o que significa.” (PEREIRA; RIBEIRO, 2012)
23 Chegou-se ao absurdo do Prefeito editar o Decreto 34522/11 que traz as “diretrizes para a demolição
de edificações e relocação de moradores em assentamentos populares”, ressaltando a possibilidade de sua
aplicação a situações de emergência, “tais como incêndios, enchentes, desabamentos e despejos” (grifos
nossos). Esse Decreto define o procedimento para a demolição, as alternativas que os moradores têm, e traz
um formulário e uma tabela que indicam os valores máximos a serem pagos de indenização por conta dos
materiais e condições de conservação das casas (benfeitorias). Como já afirmamos esse “Decreto, portanto,
reforça a vulnerabilidade não só dos moradores da Providência mas de todos os moradores de assentamentos
urbanos informais na cidade do Rio de Janeiro, pois ao dispor sobre possibilidades de remoção e demolição
de casas o faz desconsiderando o valor da terra, os laços construídos na comunidade e estabelece o despejo
como uma situação de emergência, o que é absurdo.” (PEREIRA; RIBEIRO, 2012)
24 O que é causa de perda da propriedade, conforme art.1275, II do novo Código Civil.

196
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

4 PROPOSTA METODOLóGICA

Nossa metodologia é desenvolvida com a premissa da necessária


tutela jurídica do direito à moradia, segundo a tese do reconhecimento
institucional da posse. Foi adotada uma pesquisa fundiária em dois planos.
A primeira no plano institucional da propriedade stricto sensu da terra,
priorizando o Registro de Imóveis; a segunda no plano instituinte da pro-
priedade lato sensu e da posse, seu histórico e modos de ocupação. Logo,
o processo da pesquisa do plano institucional incluiu diversos momentos.
Inicialmente, a identificação do imóvel a ser investigado: o nome da
rua e o número da casa do morador. Com o endereço, é possível tentar
identificar o proprietário do imóvel através de uma certidão de ônus re-
ais no Registro Geral de Imóveis (RGI) competente. Esse caminho óbvio,
contudo, nem sempre é fácil de ser concretizado na prática. Isto porque
dependendo do tempo de existência da favela, já aconteceram tantos
“parcelamentos” (feitos pelos próprios moradores, sem nenhum tipo
de registro) que é muito provável que os números das casas existentes
não estejam registrados no RGI (às vezes nem a rua está registrada na
Prefeitura). Assim, podemos observar duas situações. A primeira, a ideal:
encontrar de imediato o proprietário do imóvel através da certidão emitida
pelo cartório, encerrando a pesquisa da propriedade fundiária; a segunda,
quando a certidão simplesmente apresenta como resultado “nada consta”
em relação ao referido imóvel. Se for esse o caso, costumamos adotar
dois procedimentos em sequência: primeiro é preciso realizar a consulta
à Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) a fim de levantar os PAAs e
PALs, pois são esses documentos oficiais que nos mostram como e quando
as ruas foram alinhadas pelo poder público e como os proprietários par-
celaram o solo, identificando no último PAL o lote que designa a área do
imóvel investigado. De posse deste número (PAL e seus lotes) retornamos
ao RGI para solicitar uma certidão histórica do lote que interessa naquele
PAL. Mesmo assim, o PAL pode não ter sido registrado e novamente a
certidão declarar “nada consta”. Outra possibilidade é escolher alguns

197
números de casas que aparecem no último PAA da rua e solicitar certidões
de ônus reais. Pode ter resultados positivos.
Por fim, sem qualquer resposta positiva, ou se o objetivo for a constru-
ção de toda a cadeia sucessória da propriedade do imóvel, é preciso buscar
no 1º RGI25 uma certidão “desde a fundação”26 do imóvel; buscar no Arquivo
Nacional e municipal as escrituras públicas antigas, ou eventualmente,
no setor de situação enfitêutica na Prefeitura,ou no Serviço de Patrimônio
da União, no caso de terras públicas ou em que haja divisão dominial.
No âmbito da posse, o ideal é entrevistar moradores antigos para que
contem suas histórias de chegada à favela, e muitas vezes a Associação
de Moradores funciona como um “cartório” local, com registro de trans-
ferência de bens entre possuidores. Esses relatos e documentos ajudam
a construir a história da formação da comunidade.
Levantados esses dados, começamos a trabalhar com imagens:
identificamos o perímetro pesquisado no google maps e outros recursos
tecnológicos para em seguida “desenhar” as informações constantes nos
documentos (RGI, PAAs e PALs),27 confrontando-as e tentando compre-
ender se e como o que foi planejado efetivamente se concretizou. Assim,
construindo uma visão jurídico-urbanística integrada.

5 APLICAÇÃO DA METODOLOGIA

No final da década de 1850, as encostas do morro da Providência,


voltadas para a planície já eram ocupadas por moradores, ocupação pos-
sibilitada pela abertura de duas vias de acesso (atuais Ebroino Uruguai
e Rego Barros). Do outro lado, na parte da Gamboa, o mesmo também

25 No caso da cidade do rio de Janeiro é o 1º RGI que detém o registro de todas as propriedades imóveis
antes de 1920.
26 Fundação do RGI ressalte-se.
27 O LADU (Laboratório de Direito e Urbanismo), grupo de pesquisa vinculado ao PROURB/FAU/UFRJ, vinculado
ao Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, coordenado pela primeira autora, tem como integrantes, além
de juristas, arquitetos e urbanistas, que pesquisam segundo uma abordagem interdisciplinar estabelecendo o
diálogo entre o direito e o urbanismo.

198
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ocorria, embora aquela área tivesse usos “sujos”28.


A partir do levantamento e análise que fizemos dos PAAs e dos PALs
da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, e das certidões emitidas pelo
2º RGI foi possível observar que o acesso ao Morro pela rua Barão da
Gamboa, entrada 21 está registrado, e, assim, optamos por esse recorte
espacial29, conforme pode ser visto na imagem abaixo:

Imagem 01: Área de estudo (Rua Barão da Gamboa, entrada 21).


Fonte: <Google Maps>. Acesso em: 14 agosto de 2013.

O registro da propriedade levantado através de certidão histórica30


aponta como último proprietário José Dias da Silva, que em 1956 adquiriu do
Espólio de Júlio Máximo de Serra Pinto e Ermelinda de Serra Pinto; e estes ad-
quiriram em 1927 de Margarida Máximo de Serpa Pinto e Espólio de Antonio
de Serpa Pinto Júnior. Infelizmente não conseguimos nenhuma informação

28 Nessa área se localizavam depósitos e armazéns, um grande mercado de comércio de escravos e também
o cemitério para os negros que morriam nas viagens ou no próprio mercado.
29 Era preciso eleger um lugar específico no morro, pois se trata de ocupação antiga, numa área com 3.443
moradores em 930 domicílios, excluídos desse cômputo a comunidade da Pedra Lisa, com 221 moradores
em 53 moradias e a Moreira Pinto, com 282 pessoas em 66 domicílios. (fonte: Instituto Pereira Passos/PMRJ)
30 A certidão histórica do local registra toda a cadeia sucessória da propriedade desde a fundação do 2º RGI
(de 27 de outubro de 1927 a 15 de junho de 2012).

199
anterior a essa. A certidão do 1º RGI não apresentou nova informação
(“nada consta”) e a pesquisa realizada no Arquivo Nacional também não
resultou frutífera. O interessante é que esse registro diz respeito a uma
área com 23.600m², e não faz menção a nenhum tipo de lote ou PAL na
mesma, o que indica que não houve parcelamento registrado do solo após
1956. A certidão nomeia ainda os proprietários de imóveis confrontantes,
inclusive nos fundos do imóvel, o que nos demonstra que toda essa área
era ocupada tinha proprietários com registro, e não posseiros. O desenho
feito a partir das informações contidas na certidão foi o seguinte:

Desenho 01: Imóvel sito à Rua Barão da Gamboa, 21, conforme o último registro no 2ºRegistro Geral do
Imóvel. Matrícula 86.812.
Fonte: LADU/PROURB/FAU/UFRJ.

200
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Observando o desenho do registro e o espaço realmente construído,


foi possível observar que o PAL 37.092, de 1988, constitui um desenho
bastante assemelhado ao descrito no registro, mostrando a entrada do
morro como servidão e dividindo a área em dois lotes.

Imagem 02: PAL 37092


Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro

Sobrepusemos o PAL 37092 com as informações do RGI (desenho 01),


que resultou no desenho 02. Salvo pequenas diferenças, podemos afirmar
que ambos os documentos dizem respeito à mesma área, sendo que o
primeiro apresenta um desmembramento do terreno em dois lotes e um
recuo do alinhamento do terreno à Rua Barão da Gamboa de 48,92m².
Nossa hipótese é que esse PAL é um projeto de desmembramento do
lote registrado e nele consta como proprietário a Organização Rubens
Berardo S/A, sendo a família Serpa Pinto proprietária de terreno vizinho.
Esse desmembramento não foi registrado, é certo, e nos parece que essa
empresa pode ter comprado de José Dias da Silva através de uma escri-

201
tura de compra e venda não registrada, mas reconhecida pelo Município
à época por ocasião da elaboração do PAL como um justo título. Assim,
a Organização Rubens Berardo S/A seria a última proprietária irregular
do imóvel sito a Rua Barão da Gamboa, 21.

Desenho 02: Sobreposição gráfica do Desenho 01 e do redesenho do PAL 37092.


Fonte: LADU/PROURB/FAU/UFRJ.

Com relação ao histórico da posse na área tivemos duas fontes igual-


mente importantes: o depoimento de D. Lúcia Oliveira da Silva, residente
na casa 17 da entrada 2131, quinta geração de sua família no morro da
Providência, seus netos a sétima; e o livro escrito por Sonia Zylberberg
em 1992, um livro oficial da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, numa
coleção intitulada Memórias das Favelas. D. Lúcia afirma que seu bisavô,
Joaquim Pereira Paradinha, português, comprou um lote na área por volta
de 1850. E, de fato, nesse livro, Zylberberg coloca o barracão do Paradinha
como uma das principais referências da área e como um dos primeiros

31 Endereço informal, claro, mas constante nas contas de luz e no carnê de IPTU.

202
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

barracos construídos. Nossas hipóteses aqui são: 1. o senhor Joaquim


Pereira Paradinha pode ter comprado um lote que não foi regularizado,
ou cujo registro perdeu-se no tempo, tendo em vista que a Lei de Terras
data de 1850 e o 1º Ofício de Registro de Imóveis do Rio de Janeiro é de
186532; ou 2. O bisavô de D. Lúcia detinha era a posse do lote e legitimou-a
nos moldes estabelecidos pela Lei de Terras. O fato é que o carnê de IPTU
pago por D. Lúcia traz como endereço Rua Barão da Gamboa, 21, casa 17
e o nome de seu bisavô na capa, está identificado como proprietário (e
não “destinatário”, que é o comum quando se trata de possuidor).
Em termos de desenho, o que mais se aproxima da real ocupação da
entrada 21 é o do PAA 8188, que prevê a abertura de uma travessa, e tem
em seu desenho uma espécie de loteamento, casas sobrepostas, parecendo
comprovar a ocupação do morro à época (1964). Nossa hipótese aqui é
que essa ocupação parece ser oriunda da aquisição de lotes privados em
um loteamento que acabou não se regularizando.

Imagem 03: PAA 8188


Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro

32 A Lei 601, de 18 de setembro de 1850 estabelecia a obrigação de registrar as terras possuídas perante os
vigários das paróquias (Registros do Vigário). A verdade é que “(...)no Brasil o sistema de propriedade territorial
estava em completa balbúrdia e quase que em parte alguma se podia dizer com certeza se o solo era particular
ou público” (SILVA, 2008 apud ROCHA et al, 2010, p.62)

203
Embora haja clara referência a casas, quando desenhadas na forma real
de ocupação da área elas não são precisas, ou seja, a partir deste desenho
verificamos que o PAA 8188 foi morfologicamente modificado. Além desse
fato também foi observado que a casa de D. Lúcia, nossa principal fonte,
não se encontrava no perímetro pesquisado (desenho 03).

Desenho 03: Redesenho do PAA 8188 e a casa de D. Lúcia em vermelho.


Fonte: LADU/PROURB/FAU/UFRJ.

Com esse “quebra-cabeças” para montar, observamos, através do


cotejamento entre o PAL 37092 e PAA 8188 que o número 21 do primeiro
é referenciado como número 19 no segundo, e que não inclui na planta
as casas dos moradores – exceto a edificação nº 21, a qual consta como
“a demolir”. Nossa hipótese aqui é que provavelmente D. Lúcia mora no
que era número 19, mesmo porque o alargamento projetado no PAL 37092
não corresponde à atual configuração do espaço construído da área.

6 CONCLUSÃO

Escolhemos investigar a situação fundiária do morro Providência na


expectativa de instrumentalizar juridicamente os moradores na defesa de
seus direitos à moradia e à propriedade, inclusive por considerarmos o

204
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

processo de regularização fundiária como um direito subjetivo deles. Nesse


sentido, desenvolvemos uma metodologia que busca em registros imobili-
ários, plantas oficiais e depoimentos sobre o passado de uma comunidade
a fim de reconstruir importante tempo da história jurídico-urbanística,
empoderando os moradores de conhecimento acerca dessa história e de
seus direitos, auxiliando-os nas suas lutas pelo direito à cidade.
Esse trabalho, contudo, é muito árduo, sendo às vezes inexequível.
No caso-referência aqui adotado, por se tratar de uma ocupação muito
antiga, datada do século xIx, foi muito difícil encontrar a cadeia suces-
sória de proprietários nos Registros Gerais de Imóveis ou nos Arquivos
Públicos. Ao desenhar o que estava registrado e sobrepor com desenhos
planejados e autorizados para a área pesquisada foi possível observar
sensíveis diferenças. Isto demonstra que o planejamento institucional da
ocupação do morro naquele espaço ocorreu em paralelo à ocupação de
fato por parte dos moradores.
Assim, é possível afirmar que quando o ordenamento jurídico e o
próprio Poder Público criam institutos distintos para quem compra um
pedaço de terra seguindo todos os procedimentos (propriedade privada)
por caminhos diversos (posse), criam não apenas categorias que levam a
direitos e tratamentos distintos, mas a uma percepção da realidade que
muitas vezes não pode ser identificada através de documentos oficiais.
Essa realidade afastada da norma e do planejamento urbanístico acaba
por produzir uma situação ainda maior de vulnerabilidade aos possuidores.
Embora seja cada vez mais forte a proteção da posse em termos legais,
ainda falta muito para que essa situação jurídica seja respeitada pelo
Poder Público. A verdade é que toda vez que se pensa em reconfigurar
determinada área, o espaço dos possuidores é o primeiro a ser objeto de
remoção planejada, pois em caso de indenização o valor será apenas o
da casa, e não o da terra.
Mas a interpretação da norma que esconde direitos legítimos também
ocorre porque os próprios possuidores se veem apenas como possuidores,
“sem direitos”. O desconhecimento de seus verdadeiros direitos sobre a

205
terra que ocupam – no caso da Providência há mais de um século – os torna
vítimas de um discurso que não reconhece sua verdadeira condição: a de
proprietários lato sensu, ou por sua posse ad usucapionem, ou pela mera
ausência de efetivação de registro da alienação da propriedade, o que é
extremamente dificultado pelo procedimento jurídico imposto, conforme a
pesquisa mostrou, e que resulta numa realidade completamente apartada
do rigor das instituições, num círculo vicioso.
Portanto, é preciso considerar a necessidade do reconhecimento de
um conceito ampliado de direito à propriedade, que chamamos aqui de
propriedade lato sensu. Não é possível definir o proprietário apenas pelo
registro, mesmo porque diversas pesquisas apontam para uma história
fundiária no país em que os registros são confusos e injustos, quando não
fraudados. E, principalmente, porque a própria norma reconhece diversas
situações jurídicas válidas de aquisição da propriedade, como do nosso
caso-referência. Acreditamos que esse entendimento poderá reduzir as
diversas formas de vulnerabilidade, inclusive a simbólica, em diferentes
espaços, em diferentes projetos e concretizar o direito à cidade para todos.

REFERÊNCIAS

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favelas no Rio de Janeiro. Espaço e Debates, São Paulo, v. 14, n. 37, 1994. pp. 34-46.
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solo urbano em todos os seus aspectos (loteamento e desmembramento).
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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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Depoimentos: Maurício de A. ABREU, Milton TEIxEIRA, Rachel COUTINHO, GUTA,
Marília BARBOSA, Susane WORCMAN e Haroldo COSTA. Rio de Janeiro: Tríplice
Produções, 2005. 1 Video (DVD), 52 min. Colorido/pb. son.
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à espacial: as transformações dos Morros da Conceição e da Providência
no contexto do Porto Maravilha. In: II Encontro Nacional de Pós Graduação e
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207
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Projeto “Lutas: Formação e Assessoria em


Direitos Humanos” e Emancipação Local na
Ocupação do Espaço Público: Trajetória de
um Projeto de Extensão da Universidade
Estadual de Londrina

Miguel Etinger de Araujo Junior1


Deíse Camargo Maito2
Erika Juliana Dmitruk3

INTRODUÇÃO

O presente estudo analisa os conflitos urbanísticos enfrentados pela


comunidade do Jardim Igapó da Cidade de Londrina, a primeira comuni-
dade que o projeto integrado de pesquisa e extensão “Lutas: formação e
assessoria em direitos humanos” atuou, bem como a trajetória do projeto
de extensão, que muito se desenvolveu com o contato comunitário.
A partir de uma denúncia recebida por uma liderança daquela comu-
nidade o projeto tomou conhecimento de alterações que foram realizadas
na Praça Pedro Pezzarini, localizada no mesmo bairro. Essas alterações

1 Professor Adjunto dos cursos de Graduação e Mestrado em Direito da UEL – Universidade Estadual de Lon-
drina. Doutor em Direito da Cidade. Colaborador e Coordenador temporário do Projeto Integrado de Extensão
e Pesquisa LUTAS: Formação E Assessoria Em Direitos Humanos; Universidade Estadual de Londrina; E-mail:
miguel.etinger@gmail.com.
2 Acadêmica do Quarto Ano do Curso de Direito, bolsista de iniciação científica pela Fundação Araucária
de Apoio à Ciência e Tecnologia do projeto de pesquisa Direito à Moradia: Aplicabilidade e Efetividade Dos
Instrumentos Jurídicos na Região Metropolitana De Londrina/PR e colaboradora no projeto de pesquisa e
extensão: Lutas: formação e assessoria em Direitos Humanos; Universidade Estadual de Londrina; E-mail:
dcmaito@gmail.com;
3 Professora assistente de Direito Penal e Processo Penal na Universidade Estadual de Londrina. Especialista
em Filosofia Política e Jurídica pela Universidade Estadual de Londrina e mestre em Teoria e Filosofia do Direito
pela Universidade Federal de Santa Catarina.

209
consistiam na construção de uma cancha de bocha4 e outra cancha de
malha5 além da existente, bem como passarelas e canteiros de flores em
local antes utilizado pelas mães e crianças para a recreação, alterações
essas feitas sem a oitiva da comunidade. Ademais, quando as informações
referentes a essa reforma eram solicitadas, o poder público não a fornecia.
Em um segundo momento, ainda que pese a não solução do conflito
anterior, surge um novo problema: um projeto de construção de uma
quadra poliesportiva na mesma praça, projeto esse não precedido de
consulta popular. Além disso, quando os moradores das adjacências da
praça requisitavam junto aos órgãos públicos o acesso a esse projeto, ele
era negado.
Em ambos os casos, referentes ao mesmo bem público, foi possível
observar que, além de não haver participação popular na escolha do que
seria feito com esse patrimônio da coletividade, informações referentes
a ele foram negadas pela administração pública quando solicitadas pela
comunidade. Sabe-se que o acesso à informação é indispensável para
que se alcance qualquer participação popular e, sua falta faz com que a
população esteja totalmente alheia às decisões concernentes a ela. Além
disso, nesses processos houve também a não observância da Gestão De-
mocrática da Cidade, instituto de direito urbanístico que será analisado
no presente estudo.

1 CONFLITOS URBANOS DA PRAÇA PEDRO PEZZARINI

Estudantes de Direito da Universidade Estadual de Londrina, partici-


pantes do projeto de ensino e extensão “Lutas: formação e assessoria em
direitos humanos”, vem, há algum tempo, estabelecendo contato com a
comunidade do bairro Jardim Igapó. Nesse bairro há uma grande praça,

4 Bocha ou boccia é um esporte praticado sobretudo por idosos, que consiste em lançar bolas situando-as mais
perto possível de uma marcação. Para esse esporte, é necessária uma cancha de 26,50 m de comprimento,
4m de largura e altura de 30cm.
5 Malha é outro esporte também praticado predominantemente por idosos, no qual se lançam discos de metal
em direção a um pino com a intenção de derrubá-lo ou deixar a malha o mais próximo possível deste pino.
Para o esporte é necessário um campo retangular, com 36 metros de comprimento e 2,50 metros de largura.

210
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

que os moradores das adjacências sempre frequentam, o que a torna ponto


de encontro e, consequentemente, formadora de uma identidade local.
A praça, por ser grande e plural, sempre abarcou todos os segmentos
da população: o campo de futebol existente nela é usado pelos homens
aos finais de semana e era utilizado também pelas crianças da escola Ma-
estro Andrea Nuzzi para a prática de Educação Física e outras atividades
escolares. Uma cancha de malha era utilizada pelos idosos e, ao lado dessa
construção, havia um gramado destinado às mães com suas crianças, local
esse sombreado e longe das ruas, portanto seguro aos infantes.
No entanto, o espaço seguro e sombreado antes destinado às mulheres
com seus filhos pequenos foi totalmente transformado com a ampliação
dos campos de malha, construção um campo de bocha, mesinhas para a
prática de jogos como xadrez e baralho, passarelas e canteiros de flores.
Indignada com essa exclusão, uma líder comunitária foi à busca de
informações sobre a obra feita e buscou também ser ouvida, a fim de
que um segmento inteiro de uma comunidade não fosse ignorado. Tudo
começou com uma notificação na Secretaria Municipal do Meio Ambiente
acerca da construção irregular de uma cancha de malha na praça, o que
resultou no posterior embargo da obra por ser construída sem projeto
algum. No entanto, mesmo com o embargo a obra não cessou.
O poder público municipal foi provocado desde então, porém a solicita-
ção de voz e participação restou ignorada. Foram protocolizados diversos
pedidos em vários órgãos municipais da cidade de Londrina, quais sejam:
Secretaria Municipal de Obras, Companhia Municipal de Trânsito e Urba-
nização (CMTU), Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Fundação de Es-
portes de Londrina. Além disso, cartas e abaixo-assinados foram entregues
ao prefeito de Londrina da época e a dois vereadores, declarações foram
prestadas no Conselho Tutelar, na 20ª Promotoria de Justiça da Comarca
de Londrina, no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça
dos Direitos Constitucionais de Curitiba, e uma moção de repúdio foi
apresentada no VIII Encontro Estadual de Educadores Negros do Paraná,
tudo isso em busca da participação nas decisões que lhe dizem respeito.

211
Outro episódio de exclusão deve ser mencionado: certa vez, em come-
moração ao Dia da Árvore, crianças da Escola Municipal Maestro Andrea
Nuzzi foram levadas até a praça para que fizessem atividades culturais
e de cidadania. Porém, visto que a praça estava em reforma, foram im-
pedidas por uma moradora de ocuparem o espaço, até que a CMTU e a
Guarda Municipal de Londrina chegaram, de forma a reprimir e intimidar
as pessoas que participariam das atividades. Percebe-se que as pessoas
ali presentes estiveram diante do cerceamento do direito de locomoção,
e os alunos, da educação e cultura.
No decorrer do tempo, o cenário político de Londrina mudou total-
mente. Aquela gestão, comandada na pessoa do seu prefeito, Homero
Barbosa Neto, teve seu mandato cassado em 30/07/2012, devido a várias
investigações acerca da prática de crimes contra a Administração Pública.
Após este fato, mais dois prefeitos passaram pela administração da cidade
e, com as eleições realizadas em 2012, foi possível a entrada de uma nova
administração municipal, e esperava-se que com essa renovação, talvez
uma gestão participativa e baseada no acesso à informação fosse possível.
Porém, a participação popular nas decisões que dizem respeito ao bem
público permanece como um direito a ser conquistado.
A escola Maestro Andrea Nuzzi, localizada em frente à praça, con-
forme dito anteriormente, não possui espaço suficiente para a prática de
educação física. Dessa forma, fazia-se necessário utilizar a praça para
tanto. Porém, após os episódios de exclusão da própria escola no uso
daquele bem público, a escola deixou de utilizá-lo, pois a diretoria temia
represálias da administração pública municipal.
A escola, no ano de 2013, recebeu verbas que deveriam ser destinadas à
construção de uma quadra poliesportiva, do Fundo Nacional de Educação,
sendo que essa quadra não caberia no espaço físico da escola. E, por a
praça ser um bem pertencente ao município e a escola ser municipal, de
forma deliberada e sem consulta prévia à população, foi escolhida como
local para a construção da quadra.
A direção da escola, juntamente com a Secretaria Municipal da Edu-

212
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

cação, convocou uma assembleia com os pais dos alunos para informar
sobre a construção da quadra no referido bem público. Ocorre que essa
assembleia foi realizada somente com os pais de alunos, que não são
necessariamente os moradores e frequentadores da praça. Além disso,
pelo acesso à ata da assembleia ocorrida em 26 de abril de 2013 na escola,
percebeu-se que o motivo da assembleia era somente informar os pais
dos alunos acerca da construção da quadra. O projeto já estava aprova-
do, a verba já estava destinada e o local definido. Alguns moradores do
bairro, sabendo dessa assembleia por meio de pais de alunos da escola,
compareceram a ela, a fim de questionarem a reforma e obterem maiores
informações. Esses moradores não foram atendidos e a única informação
que obtiveram foi que a quadra seria construída na praça e que ela não
afetaria o campo de bocha e malha. Tiveram acesso também a um mapa
confeccionado pela arquiteta responsável pelo projeto, mapa esse sem
escalas, portanto, não se permitia saber as reais dimensões da quadra.
É importante ressaltar que, essa mesma assembleia, sem participação
popular, foi utilizada pelo poder público como anuência da comunidade
para a implementação do projeto.
Assim, inconformada com a imprecisão das informações obtidas, pois
não eram suficientes para saber qual espaço da praça seria alterado, bem
como a impossibilidade de diálogo, a população foi aos órgãos públicos
em busca dessas informações. Primeiramente, fizeram um pedido na se-
cretaria de educação, pedido esse sem protocolo e intitulado como “barrar
construção de quadra”. É importante observar que a comunidade, em
um primeiro momento, buscava obter informações sobre o projeto, para
discuti-lo, deliberar sobre ele e, quem sabe, procurar outro local para a
construção da obra. A secretaria não ofereceu qualquer resposta. Após
isso, foram na gerência de serviços de informações da prefeitura muni-
cipal, onde também não obtiveram reposta. Além disso, foram à Central
de Atendimento ao Cidadão do Ministério Público, buscando que essa

213
instituição intermediasse o diálogo, bem como o acesso às informações6.
Por último, os moradores fizeram requerimentos formais à Prefeitura
Municipal de Londrina e à Câmara Municipal de Vereadores7 de Londrina,
pedindo a realização de audiências públicas a fim de debater a questão e
ter acesso às informações que dizem respeito à obra que será construída
na praça. No entanto, em um primeiro momento, a prefeitura municipal
negou qualquer diálogo, e a questão também foi negligenciada pelos
vereadores. Em um segundo momento, procurou-se outros vereadores
para o mesmo fim, sendo que esses últimos assumiram a demanda e
conseguiram marcar uma audiência pública para a discussão do assunto.
Na audiência pública, além do acesso às informações que tanto pediram
em órgãos públicos, a população pode deliberar sobre o projeto e discuti-
-lo com as autoridades públicas. Dessa forma, após longos debates, foi
possível suspender o projeto, para que ele possa ser discutido e, somente
após isso, implementado.

2 O PROJETO “LUTAS: FORMAÇÃO E ASSESSORIA


EM DIREITOS hUMANOS” E SUA ATUAÇÃO

A trajetória do projeto de extensão muitas vezes coincidiu com a traje-


tória do conflito com o qual ele lida. Portanto, para este estudo, o conflito
e o projeto serão abordados de forma conjunta.
O projeto extensionista, antes de o ser, era um subprojeto denominado
“O papel do advogado nos movimentos sociais” inserido em um projeto de
pesquisa em ensino, denominado “Carreiras Jurídicas em Loco”. O objetivo
desse último projeto era estudar as carreiras jurídicas e os cargos privativos
de bacharéis em direito, realizando visitas em órgãos públicos bem como
estreitando a relação entre teoria e prática das profissões jurídicas. Está
cadastrado sob nº 00167 na UEL – Universidade Estadual de Londrina.

6 06/05/2013 – Protocolo sem número na Secretaria da Educação, intitulado como “Termo de Declarações”
referente a “barrar construção de quadra” e Protocolo 0078.13.001390-3 na Central de Atendimento ao Cidadão
do Ministério Público do Paraná. 07/05/2013 - Protocolo do Processo 42311/2013 na Gerência de Serviços
de Informações da Prefeitura Municipal de Londrina.
7 13/05/2013 - Protocolo 1056 de Pedido de Audiência Pública na Câmara Municipal de Londrina.

214
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Teve início em 17/05/2011 e possui previsão de término em 30/04/2014.


Inúmeros professores fizeram suas propostas de trabalho e inseriram-se
na metodologia definida. No subprojeto “O papel do advogado nos movi-
mentos sociais” o objetivo tornou-se apresentar aos alunos a formação te-
órica e prática de advogados militantes em direitos humanos residentes na
cidade de Londrina/PR e suas relações com os movimentos desta região.
O substrato teórico desde o início e até a atualidade, consiste numa
visão crítica do Direito, forjada na perspectiva marxista da análise deste
e do Estado, a partir de trabalhos realizados na Universidade de Brasília
- UnB com as obras que formam a coleção Direito Achado na Rua e em
textos do professor Roberto Lyra Filho, bem como na metodologia de edu-
cação popular de Paulo Freire. O grupo foi formado por uma professora
orientadora e alunos de Direito da Universidade Estadual de Londrina.
Após diversas leituras e discussões em grupo, o projeto de ensino não
queria somente estudar, mas colocar o conhecimento em prática, visto que
o próprio conhecimento adquirido instigava à prática. Assim, em agosto
de 2011 o projeto foi procurado pela liderança comunitária, conforme
mencionado anteriormente.
Percebendo a discriminação ocorrida na reforma da praça, a repressão
às atividades escolares e o descaso no fornecimento de informações, o
projeto de ensino buscou entender o porquê disso e realizar algumas ações.
A liderança comunitária foi ouvida diversas vezes pela professora e
alunos, o que resultou no memorial aqui contado. Com isso em mãos, o
primeiro passo foi buscar reafirmar as raízes dos moradores do bairro
e sua relação com a praça, através de entrevistas filmadas, nas quais
os moradores contavam sua história no bairro e a relação com aquele
bem público.
Além dessa identificação dos moradores com suas próprias histórias,
os protocolos e processos abertos nos órgãos administrativos munici-
pais foram constantemente exigidos, não só mais pela liderança, mas
pelos alunos.
Certo dia, o projeto de ensino deparou-se com uma oportunidade única:

215
uma conversa com o então prefeito, na Escola Municipal Maestro Pedro
Nuzzi, através de uma atividade que o então governo municipal fazia nos
bairros da cidade: atender a população local pra ouvi-la. O atendimento
iniciava-se às 6h da manhã, e alguns alunos do projeto lá foram a fim de
obter do prefeito esclarecimentos sobre o projeto de reforma da praça.
Em conversa com o prefeito, assessores e secretários, os estudantes
puderam perceber que, os administradores consideravam que não havia
problema algum naquele bem público e que a população fora ouvida para
a realização das primeiras reformas Em verdade, o que o projeto de ensino
procurou ouvir o segmento excluído da comunidade: as mulheres, algumas
crianças, a escola, representada por uma professora e moradores antigos.
Em unanimidade, foi verificada a exclusão da população em qualquer
debate acerca da reforma da praça.
Após a oitiva desses segmentos excluídos, teve-se motivação para o
presente trabalho e a pretensão garantir a participação popular. Porém,
além de verificar as circunstâncias fáticas, os alunos buscaram entender
as circunstâncias jurídicas da mudança da praça. Foram novamente aos
órgãos governamentais na busca de respostas e buscaram até mesmo ver
algum registro da participação popular alegada pelos administradores. No
entanto, o projeto de ensino não conseguiu acesso a documento algum
que provasse o alegado, e, conseguiram tão somente a autorização e o
termo de convênio pelos quais a reforma foi realizada.
Paralelamente a esses fatos, a líder comunitária requisitou providências
junto ao Ministério Público do Estado do Paraná da Comarca de Londrina,
através da 24ª Promotoria de Justiça – Promotoria de Direitos e Garantias
Constitucionais. A Promotoria, portanto, iniciou um processo administrati-
vo para apurar o caso. O projeto de ensino participou de forma ativa desse
processo, participando das reuniões bem como ajudando a moradora a
atuar no processo através de petições e juntada de documentos.
No Ministério Público, em 26/04/2012, foi feita a primeira reunião para
apurar as irregularidades. Na reunião, estiveram presentes dois integran-
tes da CMTU, representantes do projeto de ensino e a líder comunitária.

216
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Nessa oportunidade, os problemas foram ditos e ficou acordado que o


Ministério Público solicitaria dos órgãos da prefeitura o envio dos projetos
de revitalização da praça e dos processos de participação popular, aguar-
daria encaminhamento por parte da comunidade e dos alunos do projeto
de ensino, ofícios retratando as ações da Guarda Municipal e analisaria a
possibilidade de realização de audiência pública com a comunidade para
falar sobre a praça.
No mesmo órgão, em 09/06/2012 foi feita uma segunda reunião, na
qual estiveram presentes quatro pessoas da comunidade, representantes
do projeto de ensino, um estudante de jornalismo da UEL, um advogado da
Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, uma
professora de pedagogia da UEL e dois militantes de Direitos Humanos.
Devido à divergência entre os próprios membros da comunidade quanto
à participação das mudanças feitas na praça, ficou decidido que um órgão
municipal realizaria uma pesquisa junto aos moradores para eles se po-
sicionarem acerca das mudanças ocorridas e do projeto de revitalização
na ocasião apresentado por ele.
A pesquisa realizada entrevistou 105 moradores, um de cada domicí-
lio, na qual a comunidade, por maioria (95 contra 8, em média) aprovou
as mudanças feitas, bem como pedia por novas revitalizações. Em face
dessa pesquisa, o Ministério Público encerrou o procedimento e arquivou
o processo.
No entanto, o projeto de ensino, ao solicitar e analisar a pesquisa feita,
concluiu que as perguntas foram feitas de forma direcionada, levando a
população a responder se concordava com a atividade praticada pelos
idosos (malha, bocha, etc), ao invés de perguntar se a reforma trouxe
melhoras ou pioras no bem público. Dessa forma, tendo consciência de
que o problema não acabara, o projeto de ensino decidiu resolver esse
problema de forma alternativa, sem acionar órgãos públicos.
A partir dessa pesquisa, o projeto pensou juntamente em quais seriam
as causas dessas respostas dos questionários. Concluiu-se que as pesso-
as talvez não mais usassem a praça, devido ao episódio com a Guarda

217
Municipal e a falta de espaço para todos os seguimentos da população.
Considerando isso, o projeto elaborou um evento de recreação para ser
realizado junto com a população no bem público.
Inúmeras reuniões foram feitas entre o grupo e com a comunidade para
decidir no que a atividade iria consistir e qual dia seria realizada. Após
isso, decidiu-se que o evento seria em 04/11/2012 e que uma gincana para
as crianças seria a atividade principal, com atividades paralelas para os
adultos. Antes da realização do evento, fez-se uma ampla divulgação nas
escolas do bairro, igreja e comércios para contar com a ajuda e presença
de vários segmentos da população.
O evento foi muito proveitoso e atingiu os objetivos aos quais se propôs.
A praça foi lotada pelos moradores e foi possível fazer uma interação entre
os idosos – que ocuparam somente uma quadra daquelas construídas – e o
restante da população, que ocupou a parte sombreada restante e parte da
área construída. Com isso, buscou-se criar um sentimento na população de
que aquele bem era de todos e por isso, deveria ser amplamente utilizado.
Naquela ocasião, o projeto de ensino soube que algumas pessoas es-
tavam interessadas em montar uma associação de moradores do Bairro
Jardim Igapó. Esse fato coincidiu também com a vontade dos alunos e da
professora orientadora a formar uma AJUP – Assessoria Jurídica Universi-
tária Popular, modelo de assessoria jurídica fundada nas visões de Paulo
Freire, que tem a educação popular e a emancipação social como norte,
de forma a agregar a formação teórica e prática dos alunos direcionada
para o atendimento de demandas sociais coletivas.
Interessante salientar que, mesmo sem que houvesse uma comunicação
prévia entre os alunos e a professora, ambos começaram a redigir um pro-
jeto de extensão que visasse justamente isso. Devido a maior experiência
e maior conhecimento de como se elabora um projeto, a professora ter-
minou de escrever primeiro e os apresentou aos alunos que, por sua vez,
sugeriram algumas alterações. Essas alterações foram feitas e o projeto
integrado de pesquisa e extensão foi criado, em consonância com uma
Assessoria Jurídica Popular.

218
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Com a criação do novo projeto, novos membros sugiram, principalmen-


te após a realização do “I Congresso de Direito Vivo”, evento organizado
pelo projeto e realizado na UEL que teve como finalidade maior inserir
a discussão do direito crítico na Universidade. É válido mencionar a vi-
sibilidade que o projeto alcançou, dentro e fora da universidade devido
ao congresso, que contou com palestras relacionadas a Teoria Crítica do
Direito, Direito à Moradia e Assessoria Jurídica Popular.
Após o congresso, que contou também com a participação da lideran-
ça comunitária do bairro trabalhado, teve-se conhecimento do problema
relacionado à quadra poliesportiva. Neste segundo momento, haja vista
que muitos moradores já sabiam da construção da quadra e já estavam
em busca de informações, o projeto atuou no sentido de agrega-los, para
que, de forma conjunta, portanto mais eficaz, pudessem exigir informações
e medidas por parte do poder público. Além disso, o projeto ajudou-os
a redigir os documentos a serem entregues nos órgãos públicos, pois se
sabe que, infelizmente, a burocracia e formalidade ainda imperam.
Com os requerimentos realizados nos órgãos públicos e a insistência
da comunidade, agora atuando de forma conjunta, conseguiu-se a rea-
lização da audiência pública para a discussão do projeto e fornecimento
de informações sobre ele. Haja vista que o projeto da obra foi suspenso
temporariamente, o Lutas tem acompanhado o processo juntamente à
Câmara dos Vereadores de Londrina.
Paralelamente a essas ações, o projeto de extensão está elaborando um
curso de formação de associação de moradores, para que a comunidade
possa agir de forma independente.

3 PRINCÍPIOS DE DIREITO URBANÍSTICO


APLICADOS AO CASO CONCRETO

No caso estudado foi possível identificar institutos pertencentes e


relacionados ao direito urbanístico que foram totalmente esquecidos na
reforma e construção das quadras de bocha e maia e em relação ao pro-

219
jeto de construção da quadra, mas que o projeto de extensão procurou,
através de suas ações, fazerem valer.

3.1 Direito ao acesso à informação relativa


a bens públicos de uso comum do povo

Conforme dispõe o artigo 99 do Código Civil8, praças são bens públicos,


de uso comum e domínio público. A praça, como bem de uso comum, é
um bem inalienável, imprescritível e insuscetível de servidão, assim como
os rios, mares, estradas e ruas, que por sua própria natureza de bem, não
possuem um valor patrimonial, estão destinados a atingir fins públicos,
ou seja, o interesse coletivo.
A autora Maria Sylvia Zanella Di Pietro9 considera “bens de uso co-
mum do povo aqueles que, por determinação legal ou por sua própria
natureza, podem ser utilizados por todos em igualdade de condições,
sem necessidade de consentimento individualizado por parte da Ad-
ministração.”. Além disso, a autora considera que bens de uso comum
são destinados à coletividade e os de domínio público são aqueles que
podem ser usados indistintamente pelas pessoas, sendo locais abertos
à utilização pública, que adquirem o caráter de comunidade, de uso
coletivo, de fruição própria do povo.
Já o autor Celso Antônio Bandeira de Mello10 considera bens públicos
como os bens pertencentes às pessoas jurídicas de Direito Público interno
e os utilizados por estas para a prestação de qualquer serviço público.
Dentro dessa classificação, uma praça é um bem de uso comum, ou seja,
destinado ao uso indistinto de toda e qualquer pessoa.
Quanto à utilização dos bens de uso comum, ela deve ser livremente
usada por todos, porém, isso pode levar a um conflito de interesses, como
no caso em estudo. Assim, como o próprio nome indica, os bens de uso

8 Brasil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm > Acesso em 05/05/13
9 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Edição. São Paulo: Atlas, 2007. p. 632.
10 DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 25ª Edição. São Paulo: Malheiros,
2008. P. 898.

220
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

comum devem ser utilizados indistintamente por quaisquer sujeitos, em


concorrência igualitária e harmoniosa com os demais, de acordo com o
destino do bem e condições que não lhe causem um uso indevido.
Dessa forma, tendo em vista que esses bens são destinados a todas
as pessoas, as informações relativas a ele devem ser acessíveis a toda
população, haja vista que não há a possibilidade de individualizar quem
são seus destinatários. Dessa forma, faz-se necessário que as informações
relativas a ele não sejam somente fornecidas quando solicitadas, mas
públicas de uma forma geral.
Nos episódios em estudo, a falta de informação levou à falta de
participação popular nas questões que dizem respeito às pessoas des-
tinatárias de determinado bem público e permitiu que os governantes
dessem a destinação que bem quisessem a ele. Além disso, a constante
negação de informações permitiu com que as obras e projetos tivessem
continuidade, sem que a população pudesse fazer reivindicações base-
adas nas informações.
Sabe-se que a informação é também pressuposto para o exercício de
direitos, pois, para que se possa reivindicar algo, necessário é que se te-
nha prévia informação sobre o objeto da reivindicação. Todas as pessoas
devem ter o direito de saber as características de modalidades de obra,
atividade ou desenvolvimento que se pretende fazer e que possa afetar,
prejudicar ou alterar um bem público, alterações essas que afetam todos
os usuários daquele determinado bem. Assim, a informação não pode ser
negada, principalmente quando claramente existirem interesses legítimos
coletivos. O Estado deve se mostrar como principal garantidor de que essa
informação seja realmente pública e não ser um óbice à sua obtenção,
como verificado no caso.
O art. 5º, xxxIII da Constituição Federal11, prevê o direito a receber
dos órgãos públicos informações de interesse pessoal, coletivo ou geral
do administrado, prevendo sua prestação dentro do prazo da lei, sob pena

11BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da


União. Brasília/DF, 05 de julho de 1988. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm> Acesso em 05/05/13.

221
de responsabilidade, protegendo também as informações imprescindíveis
à segurança da sociedade e do Estado.
Já o inciso xxxIV do art. 5º garante o direito de petição e certidão a
qualquer órgão público, independentemente do pagamento de taxas. Além
disso, o art. 37, § 3º prevê o acesso à informação como forma participação
dos usuários na administração pública, dispositivo regulamentado pela
Lei 8.429/92 – Lei de Improbidade Administrativa e Lei 12.527/11 – Lei
de Acesso à Informação – LAI.
Mesmo com a existência de leis e previsões constitucionais garantidoras
do acesso à informação, foi possível observar seu não cumprimento no
caso concreto. Além disso, no episódio, vários preceitos constitucionais
foram lesados, principalmente o princípio da primazia do interesse público
sobre o privado e o princípio da publicidade.
Em relação à informação, o projeto de extensão Lutas todo momento a
buscou, seja na forma de exigência dos protocolos abertos, seja na aber-
tura de novos e na feitura de petições para solicitar maiores informações
sobre o bem público. Além disso, houve orientações à comunidade, no
sentido de sempre fazerem requerimentos formais, por escrito aos órgãos
públicos, de forma que eles pudessem ser exigidos posteriormente.
Deve-se observar também a contribuição que a Lei de Acesso à Infor-
mação trouxe ao caso concreto. Antes da promulgação da lei, o acesso à
informação não ocorreu de forma alguma. Muitos pedidos foram feitos e
exigidos posteriormente, sem uma resposta efetiva. Vale salientar tam-
bém que, antes da promulgação da LAI, não havia serviços orientados
ao fornecimento de informações ao cidadão e nem um procedimento
administrativo orientado especificamente ao fornecimento de informação
a quem o requeresse.
Já em relação ao episódio da quadra poliesportiva a lei já havia sido
promulgada e, apesar de em um primeiro plano ela não ser observada,
pode-se concluir que ela trouxe algumas contribuições e permitiu que
mecanismos antes não observados pudessem ser aplicados, tais como o

222
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

serviço de fornecimento de informações, previsto no art. 9, I da LAI12 e


a própria realização da audiência pública, prevista no art. 9, II da LAI13.
Em um primeiro momento, observou-se que as informações referentes
à Praça Pedro Pezzarini nunca estiveram à disposição da população, pois,
ao contrário do que era esperado, quando solicitados foram negadas. A
pesar de a Administração Pública municipal de Londrina já ter o serviço de
informação ao cidadão com a Gerência de Serviço de Informações, esse
órgão não foi efetivo para prestar a informação dentro do prazo deter-
minado, conforme preceitua o art. 11 da LAI14 e sequer foram fornecidas
as negativas de acesso dentro do prazo estipulado pela lei, conforme
preceituam os art. 14 e art. 15.
Interessante nesse caso é analisar a atitude da comunidade perante
a negativa de acesso às informações. Sabe-se que, apesar de a lei estar
vigente, ela não é totalmente acessível à população. Apesar de a prefei-
tura de Londrina já contar com um serviço de informações, o procedi-
mento que o cidadão e o órgão devem seguir para requerer e fornecer
a informação não são públicos. Dessa forma, o cidadão, perante a não
prestação da informação no prazo legal, não encontra alternativas para
suprir essa necessidade.
Dessa forma, alguns integrantes da comunidade, mesmo com o des-
conhecimento da lei, fizeram algo nela previsto: o pedido de audiência
pública, previsto no art. 9, II da lei. Sabe-se que na lei é dito que o órgão
público, per si, deve fazer audiências e consultas populares, porém, in casu,
foi necessário seu pedido para o órgão público. Observa-se que, mesmo
sendo dever do órgão detentor da informação promover a audiência
pública, que nesse caso seria a Prefeitura Municipal, essa audiência, por
questões políticas, somente foi obtida por meio da câmara dos vereadores

12 ______. BRASIL. Congresso Nacional. Lei n.º 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a
informações previsto no inciso xxxIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Con-
stituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de
2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Disponível em <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm> Acesso em 05/05/2013.
13 Id., Ibid.
14 Id., Ibid.

223
de Londrina, e, mesmo assim, depois de vários pedidos e negociações,
sendo que os alunos do projeto ajudaram também na formulação dos
pedidos de audiência.
Nessa audiência, representantes do poder executivo municipal tiveram
de fornecer todas as informações antes requeridas pela comunidade e, os
representantes dessa última puderam discutir a obra que seria implantada
na comunidade. Após a apresentação de todas as informações necessárias,
a comunidade foi vitoriosa, pois a obra foi suspensa por prazo indetermi-
nado. Agora, com os questionamentos da comunidade, o poder público
irá analisar a viabilidade da obra.
Dessa forma, pode-se concluir que, a pesar de uma audiência pública
ter sido realizada, e a comunidade poder participar de forma ativa desse
processo, observa-se que ainda se está longe de uma gestão participativa
e baseada no acesso à informação. O acesso à informação necessária não
foi deferido de pronto e, para que ele pudesse ser conseguido, um longo
caminho foi percorrido, que não o estabelecido pela lei.
Pode-se concluir que a realização adequada do direito à informação
não é autônoma, pois depende da conjugação de outros direitos, o da
transparência e, principalmente o da participação, estando esse último
intimamente ligado com a Gestão Democrática da Cidade.

3.2. Gestão democrática da cidade

O princípio da gestão democrática da cidade encontra base no art. 1º,


parágrafo único da Constituição Federal15, que permite o exercício direto
do poder emanado do povo, nos termos determinados pela Constituição.
A Carta Magna, em seu art. 29, xII, prevê a cooperação no planejamento
municipal, uma forma de participação direta. Com essa permissiva cons-
titucional, foi criado o Estatuto da Cidade - Lei n. 10.257/2001, que tem
como a gestão democrática uma de suas diretrizes.

15 BRASIL, 1988, op. cit.

224
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Para Caramuru Afonso 16, a Gestão Democrática da Cidade, prevista no


art. 2º, II do Estatuto da Cidade, é uma clara forma de participação direta
da população no governo da cidade, sem intermediação de representantes.
Além da previsão do art. 2º, II, como uma regra geral de implementação
da política urbana, o capítulo IV da Lei 10.257/01, denominado Estatuto
da Cidade17, é totalmente dedicado à gestão democrática da cidade, sendo
que o art. 43 especifica como ela se dará:

Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão


ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:
I – órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional,
estadual e municipal;
II – debates, audiências e consultas públicas;
III – conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis
nacional, estadual e municipal;
IV – iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano;

Logo, a gestão democrática da cidade implica na participação dos seus


cidadãos e habitantes nas funções de direção, planejamento, controle e
avaliação das políticas urbanas, garantido assim, quando implementadas,
a cidade para todos os cidadãos.
De acordo com Caramuru Afonso18, no art. 43, I, o Estatuto impõe que
os órgãos de política urbana sejam colegiados, portanto, tendo compo-
nentes da administração pública e cidadãos escolhidos pela população.
Vale lembrar que essa previsão se dá em todas as esferas da federação,
no sentido de gerenciar a política urbana. Quanto à previsão de debates e
audiências públicas – art. 43, II – o Estatuto impõe que isso deve ocorrer no
processo de elaboração, acompanhamento e controle da polícia urbana,
sendo que essas práticas devem estar previstas também no plano diretor.
O mesmo autor, ao explicar o art. 43, III, diz que as conferências sobre
assuntos de interesse urbano são obrigatórias em todos os entes da fe-

16 FRANCISCO, Caramuru Afonso. Estatuto da Cidade Comentado. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. p. 40
17 BRASIL. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em < http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm > Acesso em 05/05/13
18 FRANCISCO, Op. cit. p. 266 - 267

225
deração. As conferências seriam debates realizados no mundo técnico e
acadêmico, mas abertas à população, com vistas a trazer o conhecimento
científico à elaboração da política urbana. Já no art. 43, IV, do Estatuto
prevê não só a iniciativa de lei que é prevista constitucionalmente, mas a
apresentação de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.
Vale salientar que a Lei 10.257/2001 não é uma lei autoaplicável, sua
efetividade depende da aprovação do Plano diretor. É este que, desdo-
brado em leis, regulamentos e normas administrativas, interferirá na vida
cotidiana dos cidadãos. De acordo com o art. 40, § 4º e seus incisos19, os
Poderes Legislativo e Executivo tem o encargo de garantir a participação
da comunidade e a transparência na elaboração e implementação do Plano
diretor. É nessa participação popular do Plano diretor que se dá também
a gestão democrática da cidade, pois o plano garante que a população
decida, diretamente, o que vai querer para si.
Segundo Hely Lopes Meirelles20, o Plano diretor deve ser a aspiração
da população local para a definição dos objetivos de cada município e, por
isso mesmo, tem supremacia sobre os outros instrumentos administra-
tivos do município. Além disso, é um instrumento norteador dos futuros
empreendimentos da prefeitura, para o atendimento das necessidades da
comunidade, a exemplo de locais e custos a serem feitas obras públicas.
Devido ao fato de o Plano diretor dever ser a aspiração da própria po-
pulação, ele é um instrumento para a efetivação da gestão democrática
da cidade na qual a União, os Estados e Municípios deverão se atentar
para que suas decisões estejam voltadas a uma filosofia de transparência
e cooperação. Segundo o artigo 2º, em seu inciso II o Estatuto da Cidade21
traz, respectivamente, as diretrizes da formação e o âmbito dessa gestão:
“participação da população e de associações representativas” e “na for-
mulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos”.
Vistos todas essas previsões constitucionais e mecanismos legais ga-

19 BRASIL, 2001, Op. cit.


20 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 16ª Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
p. 550.
21 BRASIL, 2001, Op. cit.

226
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

rantidores da gestão democrática da cidade, é necessário analisar a efetivi-


dade deles. Para Renato Saboya22, muitas vezes, há dominação disfarçada
de participação. Projetos pré-aprovados são submetidos à votação, para
que a população pense que decidiu algo. Ademais, horários inadequados
para as audiências públicas, utilização de vocabulário excessivamente
técnico, tempo insuficiente para resolução dos problemas e até mesmo
um consenso forçado são táticas de alguns governantes para distanciar
a população de seu plano diretor, portanto, da Democracia.
Os alunos do projeto de pesquisa, na ocasião da conversa com os
administradores públicos municipais puderam perceber essa dominação
disfarçada de participação. Primeiramente, o horário marcado para a
conversa com a população foi totalmente inadequado: seis horas da ma-
nhã. É sabido que nesse horário muitos trabalhadores estão acordando,
quando não já estão no trabalho ou a caminho dele. Além disso, o tempo
de conversa com o prefeito era demasiadamente reduzido: 5 minutos por
pessoa, quando sozinha na sala, e, no caso de mais pessoas, o tempo era
somente dobrado, não importando o número de pessoas.
Ademais, a conversa consistiu em somente ouvir e debater os proble-
mas, sem respostas consistentes às indagações, e os administradores,
apesar dos estudantes mostrarem a evidência de exclusão de toda uma
parcela da população, afirmavam sempre que houve consulta prévia, sem
que provassem isso. Por outro lado, o mais importante nunca foi feito
pela administração pública: a efetiva participação popular, por meio dos
mecanismos previstos no Estatuto da Cidade. Ocorre que o simples aten-
dimento à população foi uma prática com viés assistencialista, totalmente
divergente do conceito de participação popular.
Já no segundo momento, com o governo da administração pública
municipal trocado, em que pese as várias tentativas infrutíferas de diálogo,
conseguiu-se realizar uma audiência pública por intermédio da Câmara
Municipal dos Vereadores. Esse foi o ápice que conseguiu-se alcançar da

22 SABOYA, Renato. Gestão democrática ou democracia maquiada? Urbanidades. Florianópolis. Dis-


ponível em <http://urbanidades.arq.br/2008/06/gestao-democraetica-ou-democracia-maquiada/> Acesso
em 05/05/13

227
Gestão Democrática da Cidade, que continuará sendo buscada sempre.
A Gestão Democrática da Cidade sempre foi buscada pelo projeto em
todos os episódios. O debate promovido entre a população e a própria cons-
cientização que ela teve sobre o bem público foi exemplo disso. Ademais,
a própria busca na realização da audiência pública, um dos instrumentos
da Gestão Democrática da Cidade se fez também bastante presente.
Por fim, mesmo que a participação no primeiro episódio não foi pos-
sível, a comunidade, conjuntamente com o projeto, foi vitoriosa na reali-
zação da audiência pública – algo, infelizmente, raro em nossa cidade – e
em suas implicações práticas que, além da suspensão do projeto da obra
se conseguiu um debate democrático do bem que é de todos. Espera-se
que, com essa prática, se inicie uma cultura de participação popular, de
forma a implantar e fazer valer a Gestão Democrática da Cidade.

3.3 Associação de Moradores – Uma Busca Democrática

Como dito anteriormente, o projeto de extensão está trabalhando no


sentido de elaborar um curso para formação de associação de morado-
res. Esse curso, composto por quatro módulos de formação, visa passar
à comunidade a importância de se formar uma associação de moradores
e explicar, passo a passo, como ela funciona.
A ideia de se fazer um curso que visa incentivar a comunidade a
associar-se surgiu do fato de percebermos que, no início dos conflitos,
havia muitos moradores atuando de forma individual e desarticulada, o
que fazia com que as informações obtidas ficassem esparsas e muitos
pedidos feitos em vão. Além disso, a pressão popular, muitas vezes, é
indispensável para que um direito se concretize e, sendo uma associação
composta por várias pessoas, é possível conseguir essa concretização e
proteção de direitos.
Por outro lado, uma associação de moradores pode ser muito útil a
uma comunidade. Primeiramente, ela é um fator de agregação, união e
convivência da comunidade e, através dela, laços são criados na busca

228
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

pelo bem coletivo. Ademais, por ela ser uma organização social sem
fins lucrativos, permite que uma atuação sem pressões externas e de
forma independente.
Além disso, o Estatuto da Cidade23, em seu art. 2º, II, prevê a participação
de associações representativas comunitárias na formulação, execução e
acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento
urbano, como diretriz de política urbana. Há a previsão também de sua
atuação na elaboração do plano diretor da cidade, de acordo com o art.
40, § 4º, I, sendo também um dos mecanismos de controle dos organismos
gestores de regiões metropolitanas, assim previsto no art. 45 que trata da
gestão democrática da cidade.
Por conseguinte, de acordo com o art. 5º da Lei 7.347/8524, uma associa-
ção constituída a mais de um ano e que tenha como finalidade proteção “ao
meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência
ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”, é
parte legítima para propor Ação Civil Pública, ação de responsabilidade
por danos morais e patrimoniais causados à coletividade. Dessa forma,
imagina-se que, caso ocorra qualquer novo incidente no local que cause
dano à comunidade, com a associação de moradores, constituída a mais
de um ano, eles terão à sua disposição uma ferramenta jurídica eficaz.
Outro poder atribuído a uma associação de moradores, além do cuidado
com a comunidade e reivindicação de direitos coletivos dos moradores, é
a legitimidade para a proposição de usucapião especial coletiva urbana,
prevista no art. 10 do Estatuto da Cidade25. Dessa forma, percebe-se que
uma associação de moradores é uma ferramenta democrática muito útil
na persecução de direitos, daí nasce a importância do curso.
O curso, conforme mencionado, está dividido em quatro módulos. O
primeiro consiste no diagnóstico da comunidade e introdução ao curso.

23 BRASIL, 2001, op. cit.


24 BRASIL. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por
danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,
turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l7347orig.htm > Acesso em 05/05/2013
25 BRASIL, 2001. Op. cit.

229
Através dele, os alunos do projeto de extensão farão um maior contato
com a comunidade, de forma que não sejam vistos como desconhecidos
que impõem seu conhecimento, mas parte da comunidade que também
visa o bem comum. Além disso, a introdução permite que os moradores
se identifiquem com o curso e a metodologia aplicada, que é a educação
popular emancipadora proposta por Paulo Freire26.
O segundo módulo objetiva explicar o que é uma associação de mo-
radores e quais suas finalidades. Nele, serão explicados os motivos de
se criar uma associação e qual sua utilidade. O terceiro módulo explica,
passo a passo, todos os requisitos formais necessários para se montar uma
associação. Por fim, o quarto módulo informa os locais que os moradores
podem recorrer caso tenham problemas e os canais pelos quais pode-se
conversar com o poder público.
Assim, busca-se com esse curso, a consolidação do acesso à infor-
mação e a Gestão Democrática da Cidade, mas que, dessa vez, isso seja
buscado pelos moradores de forma independente e articulada.

4 CONCLUSÃO

Apesar de a trajetória do projeto e dos problemas da comunidade do


Jardim Igapó muitas vezes se coincidirem, na verdade, o que se busca
com o curso de formação de associação de moradores é a atuação inde-
pendente e autônoma da comunidade, de forma a não mais necessitar de
auxílio do projeto. Essa independência é divisora de águas entre políticas
assistencialistas e ações emancipadoras. Enquanto a primeira visa que
os assistidos fiquem dependentes dos detentores do poder e do conheci-
mento, a segunda busca que os sujeitos, conscientes de si mesmos e da
realidade, possam atuar sozinhos e assim transformarem a realidade. Isso
é essencial para que os sujeitos realmente exerçam seus direitos.
Dessa forma, quando o projeto deixar a comunidade, mas na certeza de

26 C.f. FREIRE, Paulo. A Pedagogia do Oprimido. Disponível em < http://portal.mda.gov.br/portal/saf/


arquivos/view/ater/livros/Pedagogia_do_Oprimido.pdf> Acesso em 05/05/13

230
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

que estão aptos para fazerem suas próprias reivindicações e unidos para
a atuação conjunta, outras comunidades terão a oportunidade de fazerem
o curso. Assim, esse curso será utilizado como forma de emancipação de
comunidades, sejam elas em situação de vulnerabilidade social, sejam
elas em situação de conflitos, conforme a do Jardim Igapó.
Além disso, com esse curso, será possível a capacitação de pessoas para
a formação de diversas organizações sociais, não somente associações
de moradores, haja vista que, às vezes, essa não será a necessidade de
determinada população. O curso poderá ser utilizado, por exemplo, para a
formação de associações de mulheres, de catadores de lixo, dentre muitas
outras que visam promover o bem de uma determinada comunidade. Com
esse curso, irá se buscar a emancipação e organização social, de forma
que a sociedade possa atuar de forma mais consciente, sobretudo aqueles
indivíduos que tem seus direitos sempre negados.
Assim, em que pese a não solução do conflito inicial que levou o pro-
jeto de extensão a atuar na comunidade, espera-se que ela, unida, possa
resolver seus problemas e fazer valer sempre seu direito ao acesso à
informação, bem como garantir a Gestão Democrática da Cidade. Como
visto, a associação de moradores é um instrumento eficaz na gestão e, é
através da formação desse instrumento que o projeto de extensão buscará
uma sociedade que atente para uma democracia participativa.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de


1988. Diário Oficial da União. Brasília/DF, 05 de julho de 1988.
______. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de
responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens
e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras
providências.
______. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis
aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato,
cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional

231
e dá outras providências.
_______. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e
183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá
outras providências.
______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.
______. BRASIL. Congresso Nacional. Lei n.º 12.527, de 18 de novembro de
2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso xxxIII do art. 5o, no inciso
II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no
8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005,
e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.
DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 25ª Edição.
São Paulo: Malheiros, 2008.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Edição. São Paulo:
Atlas, 2007.
FRANCISCO, Caramuru Afonso. Estatuto da Cidade Comentado. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2001.
FREIRE, Paulo. A Pedagogia do Oprimido. Disponível em < http://portal.mda.
gov.br/portal/saf/arquivos/view/ater/livros/Pedagogia_do_Oprimido.pdf> Acesso
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 16ª Edição. São Paulo:
Malheiros Editores, 2008.
SABOYA, Renato. “Gestão democrática ou democracia maquiada?” Urbanidades.
Florianópolis. Disponível em <http://urbanidades.arq.br/2008/06/gestao-demo-
craetica-ou-democracia-maquiada/> Acesso em 05/05/13

232
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Quando o ensino jurídico se


transforma em extensão: experiências
com o Direito Urbanístico na UNEB

Jamile Silva Silveira1


Bruno Barbosa Heim2

1 INTRODUÇÃO

O espaço educacional pode propiciar, por excelência, a reflexão crítica


sobre as diferentes concepções de mundo existentes na sociedade contem-
porânea. A Universidade, produtora do saber científico, deve possibilitar
ferramentas necessárias para a leitura crítica de mundo dos sujeitos que
a constroem, preservando a indissociabilidade entre a prática do ensino,
pesquisa e extensão. Esses pressupostos deveriam ser o principal pilar
que norteia a prática docente.
Sendo assim, o texto que o leitor tem em mãos é fruto de reflexões de
práticas docentes, do curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), onde é ministrada a disciplina Direito Urbanístico. As experiências
vivenciadas por discentes e docente se ancoram em tecer o elo entre o
ensino e aprendizagem na sala de aula com iniciativas extensionistas, que
interrogam a realidade da região do município de Paulo Afonso.
Paulo Afonso, município onde a UNEB-Campus VIII se localiza, será
apresentado, brevemente, para uma compreensão do seu cenário social,
político e cultural. Um dos pontos que direcionam esse trabalho é: Como
o ensino do Direito Urbanístico pode contribuir para a compreensão da
questão urbana em Paulo Afonso?

1 Mestre em História Social e Graduada em Historia. Professora em regime de Dedicação Exclusiva da Univer-
sidade do Estado da Bahia. Ministra a disciplina de Direito em Movimentos Sociais. Email: jamissil@gmail.com
2 Mestrando em Ecologia Humana, Especialista em Direito Público e Graduado em Direito. Professor da Uni-
versidade do Estado da Bahia. Ministra a disciplina de Direito Urbanístico. Email: brunoheimadv@gmail.com

233
2 PAULO AFONSO, URBE DE MÚLTIPLAS IDENTIDADES

O povoamento da região de Paulo Afonso ocorreu de maneira efetiva


por volta do século xVII, no período nominado Ciclo do Gado, com os
criadores que estabeleceram mais de 500 currais no interior da Bahia3.
Através da decorrente concentração de terras e a formação de latifúndios
o povoamento no sertão se consolidou, inclusive com o transporte de
negros para a função de vaqueiros. Aliado ao movimento dos latifúndios
de gado ocorreu a ação das missões da igreja católica, em especial da
ordem jesuíta e caçadores de escravos, para a catequização de índios,
formação de aldeamentos e captura de índios que poderiam ser vendidos
nas fazendas.
A região também foi palco de movimentos messiânicos e do cangaço.
Os penitentes e flagelados, fruto de práticas disseminadas com as pro-
cissões pelo catolicismo, se estabeleceram na mentalidade do sertanejo
e culminaram com a criação de Irmandades e Confrarias religiosas. Em
meio à pobreza e opressão, a promessa de igualdade e dignidade de todos
perante à Deus ganha espaço entre os grupos subalternos4.
Fruto dessa política de povoamento do sertão, baseada na perspectiva
ainda colonizadora, os habitantes iniciais deste território foram pratica-
mente dizimados. As nações indígenas remanescentes ao processo, dentre
elas os Pankararé, Tuxá, Kiriri e Kaimbé, que até hoje vivenciam embates
com posseiros pela demarcação e regularização de terras tradicionais. A
partir de conflitos e massacres impetrados por uma lógica de dominação
- política, econômica e cultural – foram construídas no imaginário social
as figuras do vaqueiro, cangaceiro, coronéis, do sertanejo e homem forte
do sertão que resistem as adversidades do clima e do trabalho.

3 DIOCESE DE PAULO AFONSO: Caracterização, problemas e metas pastorais. In: Cadernos Diocesanos.
N. 1, set/1985. p. 08.
4 O termo foi usado pelo teórico italiano Antonio Gramsci ao estudar os movimentos populares italianos ao
longo da história que antecedeu o fascismo. O uso de grupos subalternos passou a ser usado para abrigar,
de maneira ampliada, o conjunto de sujeitos que, coletivamente, estão dispersos na sociedade civil por não
conseguirem agregar suas demandas e projetos numa só classe. É justamente esta dispersão que lhes confere
o caráter de subalternidade.

234
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Assim, pode ser compreendido com maior lucidez o contexto de im-


plantação das hidroelétricas e a formação da cidade de Paulo Afonso. A
memória histórica reproduzida sobre Paulo Afonso e região é a elaborada
pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), que trata de sua
própria existência como um marco do progresso nordestino e brasileiro.
Fundada em 1945, a CHESF foi responsável por uma série de transforma-
ções, ligadas tanto às questões econômicas e energéticas como também
ao reordenamento espacial e demográfico das regiões que compõem as
áreas de tangência das barragens. No que diz respeito ao último aspecto,
a história oficial da CHESF silencia e restringe o protagonismo histórico
regional aos gestores e à própria instituição.
Para além dos grupos sociais com o anseio de melhorar suas condições
de vida através do trabalho na CHESF, advindos de outras localidades, a
população local também foi composta na formação de Paulo Afonso por
protagonistas externos a esse processo, oriundos desta “história anterior”.
Essa região foi “a que mais recebeu migrantes, notadamente nos períodos
das obras, que deram origem ao complexo hidrelétrico entre 1949 e 1982”.5
A lógica espacial na localidade foi demarcada pela CHESF, que dividiu,
com cerca de arame farpado e depois um muro de pedras, de um lado
o que chamava de “acampamento” da empresa e do outro as moradias6
da população que se aglomerava em torno do “acampamento”. Essa se-
gregação social, cultural e de classe, também estava presente dentro do
acampamento, onde as moradias, locais de lazer e educacionais, eram
divididos de acordo com sua função dentro da empresa, como o exemplo
do Clube dos Engenheiros, ou Clube de Paulo Afonso (CPA) e o Clube dos
Operários de Paulo Afonso (COPA).
A Vila Poty cresceu e se transformou em um grande bairro que beirava
os muros do acampamento Chesf. Através de um intenso processo de
lutas sociais e reivindicações, o muro (chamado de muro da vergonha)

5 REIS, Roberto Ricardo do Amaral. Paulo Afonso e o Sertão Baiano: Sua geografia e seu povo. Paulo Afonso:
Fonte Viva, 2004. p. 223.
6 Estas moradias faziam parte da “vila poty”, conhecida pelas casas construídas com os sacos do cimento da
marca Poty, reutilizados, após a construção da barragem.

235
foi derrubado. O crescimento da cidade fora do acampamento, a cidade
até então ilegal, passa a ser legalizada com o crescimento desordenado e
sem planejamento. Este processo de crescimento desigual acompanha a
dinâmica da urbanização brasileira, pois, segundo Maricato:

O Brasil, como os demais países da América Latina, apresentou


intenso processo de urbanização, especialmente na segunda
metade do século xx. [...] Trata-se de um gigantesco movimen-
to de construção de cidade, necessário para o assentamento
residencial dessa população bem como de suas necessidades
de trabalho, abastecimento, transportes, saúde, energia, água,
etc. Ainda que o rumo tomado pelo crescimento urbano não
tenha respondido satisfatoriamente a todas essas necessidades,
o território foi ocupado e foram construídas as condições para
viver nesse espaço.7

Após esse processo, os grupos sociais da cidade de Paulo Afonso


foram modificando o espaço urbano local, reforçando as segregações e
desigualdades, aos sujeitos a que esse espaço sempre foi negado durante
o período de ocupação, instalação e consolidação dos projetos da CHESF.

3 ENSINO DO DIREITO URBANÍSTICO

O ato de ensinar pressupõe o envolvimento de atores que aprendem


uns com os outros. Segundo Paulo Freire, “ensinar não é transferir co-
nhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito criador
dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado”.8 Um apre-
ende com o outro, sendo o discente peça fundamental para existência do
docente. Possibilitar a construção da leitura crítica de mundo construída
em sala coletivamente deve ser sempre um dos objetivos do professor.
Assim, o exercício de relacionar os conteúdos, selecionados para o
debate em sala de aula, com a sociedade (cidade, práticas sociais, cultu-
rais e sujeitos) onde os universitários estão inseridos é fundamental para
a reflexão crítica e sincera dos instrumentos do Direito Urbanístico frente
a realidade concreta.

7 MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 16.
8 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996. p. 23.

236
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A universidade pública, crítica e democrática tem por papel funda-


mental a ser por excelência local de produção de conhecimento científico.
Debater nesse espaço os problemas da cidade é, ao mesmo tempo, refletir
sobre o papel da instituição como produtora/reprodutora desses mesmos
problemas sociais. Sobre essa relação, Paula defende que:

A crise da cidade hoje é, no essencial, uma das sínteses possí-


veis da crise da modernidade, de suas virtualidades e promessas
emancipatórias. Tomado pelo capital, tanto a modernidade como
os seus melhores frutos – a cidade, a universidade – foram desfigu-
rados pela imposição da lógica do lucro, pela vitória do interesse
individual, pela desconstituição das perspectivas de solidariedade
e pela desvalorização da diversidade cultural.9

Neste contexto, é um desafio rediscutir nesse ambiente universitário,


aspectos da memória e historia local, identificando realidades existentes,
onde as cidades, legal e ilegal, convivem no cenário atual. No caso de
Paulo Afonso, além das particularidades apresentadas em tópico anterior,
pode-se somar que trata de um município emancipado no ano de 1958,
ainda recente se comparado a outros da Bahia.
Visando essas questões, a disciplina de Direito Urbanístico da UNEB
tem por finalidade discutir: Formação urbana no Brasil; Nova ordem
jurídica-urbanística; Função social da propriedade; Planejamento urbano;
Regularização fundiária; e Patrimônio cultural.
O curso é ministrado em aulas expositivas e seminários com incentivo
à participação do aluno com questionamentos, discussão e nas pesquisas
para levantar dados sobre o direcionamento dos conteúdos abordados. A
avaliação é de forma processual tendo como principal foco a participação,
contribuição e mudança do conhecimento vivenciada por cada um.
Entre as atividades de cunho extensionistas já realizadas nas discipli-
nas de direito urbanístico encontram-se: exposição fotográfica durante o
“II Seminário Sobre Meio Ambiente: do trabalho e construído – olhares
do direito”; ministrar o seminário “Direito dos povos de terreiro: o direito

9 PAULA, João Antônio de. A cidade e a universidade. In: BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (Org.). As Cidades
da Cidade. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p. 49-50.

237
urbanístico em face dos terreiros” para os povos de terreiro do Município
de Paulo Afonso; e elaborar Nota Técnica sobre a alteração do Plano
Diretor Municipal.

4 OLhARES DO DIREITO: EXPOSIÇÃO FOTOGRáFICA

Os discentes foram desafiados a organizar o evento, “II Seminário


Sobre o Meio Ambiente: do trabalho e construído - Olhares do Direito”,
entre 17 e 19 de julho de 2013, em conjunto com a disciplina de Direito
do Trabalho, quando ocorreram as palestras “Interações entre Direito do
Trabalho e Direito à Cidade no ambiente urbano” e “Memórias da Cidade
de Paulo Afonso”.
Na oportunidade ocorreu exposição fotográfica com registros fotográ-
ficos de autoria dos discentes das disciplinas Direito Urbanístico e Direito
do Trabalho. Eles retrataram situações problema da cidade, apresentando
em resumo expandido a situação retratada e como o direito, em especial
o direito urbanístico, pode ser utilizado para solucionar a questão.
Foram identificados em pesquisa de campo e apresentados na mostra
fotográfica “situações problema”, que podem servir como diagnóstico
inicial sobre a localidade. Questões como: acessibilidade, saneamento
básico, descumprimento da função social da propriedade, loteamentos
clandestinos, vazios urbanos, transporte, dentre outros.
Sabe-se que:

A dificuldade de construir uma proposta urbanística nos governos


municipais democráticos, que se elegeram após o fim da dita-
dura, em 1988 (ou mesmo antes, em 1984), mostra que estamos
despreparados para o tema, enquanto profissionais que deveriam
informar governos e sociedade sobre possíveis alternativas e
suas conseqüências. 10

Assim, o processo de pesquisa que resulta a apresentação dessas


temáticas problematizadas em forma de texto e imagem, inicia a inquie-

10 MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 49.

238
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

tação entre os estudantes sobre a necessidade de um plano, um projeto


urbanístico para a cidade, incluindo todos os sujeito e suas particularidades
que a habitam.
Abaixo são apresentadas imagens do evento, onde se observa a ex-
posição fotográfica, em painéis onde foram exibidas as fotos e resumos
expandidos, produzidos individualmente pelos discentes da disciplina
Direito Urbanístico. Os discentes participaram ativamente da dinâmica de
organização do espaço físico, inscrição e divulgação da atividade.

Figura 1 - Abertura da Exposição Fotográfica


Fonte: Arquivo pessoal

Figura 2: Inscrição para Exposição Fotográfica


Fonte: Arquivo pessoal

239
5 DIREITO URBANÍSTICO EM FACE DOS TERREIROS

O seminário “Direito dos Povos de Terreiro: direito urbanístico em face


dos terreiros” teve por tema esta comunidade tradicional ignorada nas
políticas públicas, cujos parcos direitos assegurados são constantemen-
te violados. Seu objetivo foi orientar os ialorixás e babalorixás, líderes
religiosos de religiões afro-brasileiras sobre os direitos assegurados no
ordenamento jurídico pátrio, relacionados ao direito urbanístico, para
que estes sujeitos possam exigir do poder público medidas concretas em
seu benefício.

O patrimônio simbólico do negro brasileiro afirmou-se no Brasil


como território político-mítico-religioso, para sua transmissão e
preservação. Perdida a antiga dimensão do poder guerreiro, ficou
para os membros de uma civilização desprovida de território
físico a possibilidade de reterritorializar na diáspora através de
um patrimônio simbólico consubstanciado no saber vinculado
ao culto dos muitos deuses, a institucionalização das festas, das
dramatizações dançadas e das formas musicais.11

Esses sujeitos históricos, com práticas culturais que acentuam sua


identidade, também são os membros dos mais de 40 terreiros da cidade
de Paulo Afonso. Os discentes da disciplina tiveram contato com terreiros
da cidade através de visitas de campo, onde puderam conhecer o espaço
físico destes templos e conversar com ialorixás/babalorixás sobre a religão
afro-brasileira, ouvindo suas histórias, ritos e mitos. Muitos discentes, ao
falar a estes povos sobre a necessidade de compreender os seus direitos,
se inquietaram ao escutar, de muitos, a afirmação: “nunca tivemos direito
a nada”.
Em seguida revisaram literatura científica sobre os temas selecionados,
realizaram pesquisa em órgãos públicos locais e preparam apresentação,
que foi anteriormente exposta ao docente da disciplina. Um dos cuidados
apontados para a apresentação aos povos de terreiro foi o uso de termos

11 ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: Legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São
Paulo: FAPESP, 2003. p. 65.

240
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

técnicos jurídicos inteligíveis para sujeitos alheios ao campo jurídico, caso


contrário não ocorreria a socialização de conhecimento, pois as palestras
careceriam de destinatários.
Os discentes da disciplina direito urbanístico apresentaram palestras
sobre a legalização da situação fundiária de terreiros em áreas públicas
e particulares, tombamento e reconhecimento de imunidade tributária.
Segundo Ahmed:

[...] falar em cidades e direito à cidade, significa articular habi-


tantes e seus direitos à porção território com seus usos espaciais,
físicos e simbólicos.
Dispor hoje sobre cultura, exercícios de direitos culturais, política
cultural, diz respeito ao estudo a à visualização dos mecanismos
de apropriação simbólica e usurpação de espaços e dominação
de territórios.12

Nessa articulação, que o autor se refere, sobre os habitantes e seus


direitos, que os povos vieram e participaram de forma ativa nas apresen-
tações, tendo um primeiro espaço para expor suas inquietações e dúvidas,
como ilustra a imagem abaixo.

Figura 3: Abertura do Evento Direito dos Povos de Terreiro


Fonte: Arquivo pessoal

12 AHMED, Flávio. Cultura e Espaço Urbano no Direito das Cidades. In: COUTINHO, Ronaldo e BONIZZATO,
Luigi. Direito da Cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 86.

241
7 NOTA TéCNICA SOBRE A
MODIFICAÇÃO DO PLANO DIRETOR

Um exemplo problematizado foi a Lei n. 1.212/11, de autoria da Câmara


de Vereadores do município de Paulo Afonso, cujo conteúdo se resume
à alteração de dispositivos de Lei n. 905/00, o Plano Diretor de Desen-
volvimento Urbano e Ambiental, em especial no tocante à verticalização
de determinadas zonas da cidade, que passaram de três a sete gabaritos.
Em semestre pretérito os discentes da disciplina produziram, em ativi-
dades de grupo, notas técnicas sobre esta modificação do Plano Diretor,
dando caráter prático aos conteúdo socializado em sala de aula e contri-
buindo para a fiscalização da política urbana desenvolvida pelo Município.
As pesquisas apontaram que: o plano diretor do município de Paulo
Afonso, aprovado antes do Estatuto da Cidade não sofreu revisão, como
determinam os artigos 40, §3º e 50 do Estado, o que torna o plano sem
vigência. Neste sentido, se o plano diretor não possui vigência, qualquer
alteração introduzida neste, ainda que válida, não teria possibilidade de
entrar em vigência.
Mas não foi só, constataram-se vícios formais na elaboração e apro-
vação da lei que alterou o plano, como: ausência de estudos técnicos que
embasassem o planejamento urbano; ausência de profissional legalmente
habilitado para promover o planejamento; vício de iniciativa e ausência
de participação social.
A nota técnica n. 01/2013 NPJ-UNEB, Campus VIII, Paulo Afonso-BA foi
apresentada em reunião ordinária do Conselho de Meio Ambiente e gerou
uma indicação ao prefeito para revisão do plano diretor municipal, além
de ter motivado reunião da Secretaria de Planejamento do Município com
o Colegiado de Direito da Universidade para tratar do assunto.

242
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

8 CONCLUSÃO

O ensino jurídico carece de revisão didática e metodológica, pois, em


alguns aspectos, não dialoga com a sociedade que é o espaço fundamental
para efetivação e produção de direitos. O docente do Direito Urbanístico
tem ferramentas necessárias para promover essa interação, unificando
as esferas do ensino, pesquisa e extensão, no ambiente acadêmico ou em
áreas da cidade que necessitem de projetos de intervenção.
A cultura acadêmica é a que restringe a formação acadêmica na re-
produção de conteúdos de manuais nos cursos de Direito. Pensar além
desse ensino tradicional é estimular a criticidade, possibilitando a criação
dos múltiplos olhares na história contemporânea, constituindo assim, não
meros sujeitos limitados, mas leitores de mundo.

REFERÊNCIAS

AHMED, Flávio. Cultura e Espaço Urbano no Direito das Cidades. In: COUTINHO,
Ronaldo e BONIZZATO, Luigi. Direito da Cidade: novas concepções sobre as
relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183
da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras
providências. Disponível em:<www.planalto.gov.br/legislacao>. Acesso em: 20
ago 2013.
DANTAS, Andréa Medeiros. Linguagem jurídica e acesso à Justiça. Jus Navigandi,
Teresina, ano 17, n 3111, 7 jan. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/arti-
gos/20812>. Acesso em: 30 ago. 2013.
DIOCESE DE PAULO AFONSO: Caracterização, problemas e metas pastorais. In:
Cadernos Diocesanos. N. 1, set/1985.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.

243
MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Rio de
Janeiro: Vozes, 2001.
PAULA, João Antônio de. A cidade e a universidade. In: BRANDÃO, Carlos Antônio
Leite (Org.). As Cidades da Cidade. Belo Horizonte: UFMG, 2006
REIS, Roberto Ricardo do Amaral. Paulo Afonso e o Sertão Baiano: Sua geografia
e seu povo. Paulo Afonso: Fonte Viva, 2004.
ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: Legislação, política urbana e territórios na
cidade de São Paulo. São Paulo: FAPESP, 2003
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA. Departamento de Educação, Campus
VIII. Núcleo de Prática Jurídica. Nota Técnica. n. 01/2013. NPJ-UNEB, Campus VIII,
Paulo Afonso-BA.

244
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A aparente segurança da posse e


a necessidade de reinvestimento na
habitação de interesse social em Recife

Caroline Gonçalves dos Santos1


Flávio Antonio Miranda de Souza2
Vinícius Albuquerque Fulgêncio3

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta os resultados de um estudo realizadoatravés-


doLatin American Housing Network (LAHN) sobre a renovação de assen-
tamentos irregulares consolidados em nove países da América Latina por
meio de estudos de casos de onze cidades. O LAHN é coordenado pelo
professor Peter Ward (Universityof Texas) e conta com pesquisadores
de várias universidades, incluindo-se Universityof Texas, Universidade
Federal de Pernambuco, Universidad de Buenos Aires, Universidad de
Guadalajara, entre outras.
A pesquisa em rede parte do pressuposto de que durante a década
de 1970, o principal objetivo dos estudos de assentamentos irregulares
na América Latina, e em outras cidades de países em desenvolvimento,
era determinar sua natureza e a dinâmica do seu desenvolvimento com
o objetivo de mudar o paradigma da forma como esses assentamentos
eram vistos e tratados.
As investigações dessa época levantaram evidências no sentido de que
os assentamentos irregulares não eram um fenômeno esporádico, mas

1 Mestre em Desenvolvimento Urbano, Universidade Federal de Pernambuco, Doutoranda em Desenvolvimento


urbano, santoscarolineg@yahoo.com.br
2 Doutor em Planejamento Urbano, Universidade Federal de Pernambuco, Professor Associado 3, fdesouza67@
gmail.com
3 Bacharel em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Pernambuco,Mestrando em Desenvolvimento
Urbano, vinicius.vaf@gmail.com

245
sim estrutural. Entendeu-se que a irregularidade era uma resposta dos
pobres ante a incapacidade dos governos e do mercado formal de oferecer
solo para moradia a preços acessíveis e em quantidades suficientes para
responder à rápida e crescente urbanização.
Como consequência da falta de entendimento dos governos sobre os
processos de urbanização, durante a década de 1970, os assentamentos
irregulares já ocupavam entre 25% e 50% da superfície urbanizada de
muitas cidades latino-americanas, africanas e asiáticas. Desde então essas
percentagens mundiais se mantêm, apesar dos registros de variações por
cidades e regiões do mundo. Sem dúvida o número de pessoas que os
habita tem aumentado constantemente. Com base nas informações das
Nações Unidas, estima-se que em 2020 o número de pessoas que habi-
tarão em assentamentos irregulares seja de 1500 milhões4. Isto significa
que os assentamentos irregulares consolidados aumentarão também na
medida em que o tempo passa. A diferença é que a problemática dos
assentamentos irregulares criados recentemente é conhecida e existem
esforços mundiais para intervir, mesmo que modestamente5, o que não
acontece em assentamentos irregulares consolidados. Isto se deve princi-
palmente porque se supõe que os assentamentos irregulares antigos, por
estarem fisicamente incorporado à cidade e possuírem infraestrutura, já
não apresentam mais problemas.
Entende-se que estes estudos contribuirão de maneira substancial à
geração de conhecimento científico sobre a temática da moradia dirigida
à população de baixa renda. Seus resultados se articulam com os debates
sobre a organização dos domicílios, as “estratégias de sobrevivência” e
o impacto que tem as mudanças econômicas na moradia e no assenta-
mento. Mais especificamente, esta investigação oferece conhecimentos
úteis para o desenho de políticas para a renovação das casas e dos as-
sentamentos irregulares antigos, agora consolidados pós-regularização
fundiária e urbanística.

4 Durand-Lasserve et al, 2002.


5 UN-Habitat, 2000.

246
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O presente artigo se dedica a revelar os resultados observados e anali-


sados especificamente na cidade do Recife. A cidade do Recife é referência
nas discussões e na luta pela moradia no cenário brasileiro, sendo uma
das pioneiras no reconhecimento da cidade informal e na proposição de
regularização urbanística e fundiária. E, por isso, possui numerosos casos
de práticas de intervenções estatais em áreas pobres, o que nos possibilita
analisar as demandas atuais dessas áreas pós-intervenção estatal.

1. AS GERAÇÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS


hABITACIONAIS COM ÊNFASE NA LEGALIZAÇÃO
DE POSSE E URBANIZAÇÃO DA áREA

Em termos gerais, a partir da década de 1970 é possível identificar duas


gerações de políticas habitacionais impulsionadas em países em desen-
volvimento por organizações multinacionais, como o Banco Mundial6. A
primeira foi o “Projeto Urbano” que veio substituir a política de desalo-
jamento, destruição de assentamentos irregulares, como consequência
do avanço da mobilização social pelo reconhecimento do direito social
à moradia. Políticas públicas mais positivas começaram a oferecer apoio
ao processo de ocupação irregular do solo; tornou-se mais convencional
e aceitável levar adiante projetos e canalizar recursos para a admissão
de serviços e infraestrutura, além de regularizar a posse da terra. Pos-
teriormente o trabalho comparativo entrou em análises mais amplas,
relacionando a irregularidade com a política social e o planejamento, que
contribuíram para um melhor entendimento do contexto político, no qual
decisões sobre a política de moradia são tomadas7.
A partir do final da década de 1980, surgiu uma segunda geração de
políticas públicas a “Gestão Urbana”, desta vez buscando reforçar as insti-
tuições locais e a capacidade governamental para instrumentar ações que
puderam ser sustentáveis a longo prazo. Isto requeria uma gestão urbana

6 Ward, 2005; UNCHS, 1997.


7 Gilbert e Ward, 1985.

247
mais eficiente, redução ou remoção e cobrança dos custos de dotação
de serviços e infraestrutura os assentamentos irregularese regularizar a
posse da terra, muitas vez contando com isto, e com o apoio de agências
econômicas multinacionais como o Banco Interamericano de Desenvol-
vimento. O importante é que essa segunda geração de políticas públicas
se apresenta em um momento em que se incentiva a sustentabilidade
fiscal, a colaboração do setor público com o privado para realizar projetos
conjuntos, o apego ao planejamento urbano etc. Estas duas gerações de
políticas públicas formavam as bases da política habitacional a partir da
década de 1970 até hoje.
Apesar de significativos avanços conquistados na segunda metade
do século xx, agora é urgentemente necessária uma nova fase de in-
vestigação. Os primeiros assentamentos irregulares são agora urbani-
zações populares que se encontram no interior das metrópoles, por isso
é imperioso explorar qual o impacto nestas áreas devido à pressão na
mudança do uso do solo como resultado da globalização (deslocamen-
to), da reestruturação econômica (migração), da transição demográfica
(envelhecimento), da inevitável deterioração da habitação depois de anos
de uso intensivo e do relativo esquecimento em que se encontram por
parte das políticas públicas.
Depois de décadas de trabalho individual, familiar e comunitário, as
moradias e os próprios assentamentos têm se transformado substancial-
mente. A maioria conta com todos os serviços, ruas pavimentadas, casas
finalizadas com materiais permanentes, e possuem dois e até três pisos.
Mas argumenta-se aqui, que apesar de sua aparente integração espacial e
física, estes assentamentos requerem atenção e apoio de políticas públicas
para sua renovação.
Durante os últimos 20-50 anos, a composição social dos assentamen-
tos e domicílios também têm mudado significativamente. A densidade
da população tem aumentado, os usos do solo e a posse da terra têm se
diversificado. Quando muitos dos residentes pioneiros permanecem em
suas casas originais, a estrutura e tamanho do domicílio ou grupo social

248
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

que o habita já não corresponde com a transformação que tem sofrido a


moradia ao longo dos anos. Inclusive, tem se levantado que estas áreas
residenciais representam um nicho de moradia para alguns dos grupos
mais vulneráveis, como são os domicílios encabeçados por mulheres,
pessoas da “terceira idade” e outros que fazem parte dos chamados “novos
pobres”. Todos eles cada dia mais excluídos da economia e dos apoios de
bem-estar públicos e privados8. Em suma, além de apresentar problemas
de construção, estas casas são anacrônicas, uma vez que não suprem as
necessidades do espaço requerido atualmente por seus ocupantes9.
Com base no exposto, segue-se a análise do estudo de caso da cidade
do Recife.

2. O ESTUDO DE CASO DA CIDADE DO RECIFE

A cidade do Recife vivencia as consequências dos problemas rela-


cionados à carência de moradias desde meados do século xIx. Cortada
por vários rios, contava com extensa área de terrenos alagadiços, que
significaram por vários anos obstáculos à expansão urbana e serviram à
ocupação majoritária da população de baixa renda, através de construções
insalubres, chamadas de mocambos (Figura 1).

Figura 1 – Mocambos em Santo Amaro, Recife/PE.


Fonte: Museu da cidade do Recife, s/d.

8 Larr, 2004.
9 Ward et al, 2011.

249
O número de mocambos do final do século xIx para início do século xx
cresceu vertiginosamente, Souza10 aponta que em recenseamento realiza-
do em 1923, das 39.026 habitações recenseadas, 51,1% eram identificadas
como mocambos. Assim, em 1939, em face da expansão da cidade, bem
como do número de mocambos, foi criada a Liga Social Contra o Mocam-
bo, um programa de demolição de moradias consideradas inadequadas
e reassentamento dos moradores de mocambos para casas populares.
No entanto, Relatórios da Liga Social Contra o Mocambo11 indicam
que, entre os anos de 1939 e 1945, foram demolidos 14.597 mocambos
e somente 6.173 unidades novas foram construídas. Inúmeras famílias
ficaram sem casa depois dessas ações de cunho “social”.
Outras iniciativas em paralelo e em nível federal foram sendo imple-
mentadas ao longo da primeira metade do século xx, mas sempre sob
o viés da produção de novas habitações e tentativas de erradicação dos
assentamentos ocupados irregularmente.
Como salientado anteriormente a partir da década de 1970 começaram
a surgir iniciativas que reconhecia como viável a solução de moradia ado-
tada pelo pobre, sob um discurso de que o governo proveria a população
de baixa renda oportunidades de desenvolvimento para que a mesma
pudesse dar manutenção a sua moradia, ou seja, garantiria o empodera-
mento dos pobres.
Como resultados dessas políticas observa-se que a população de baixa
renda alcançou acesso ao abrigo e a serviços básicos. Em alguns casos,
antes mesmo da entrega de títulos, ou seja, da garantia e segurança da
posse, foram adicionados quartos ou um segundo pavimento, o que indica
o investimento na habitação em dados momentos. No entanto, as opor-
tunidades de desenvolvimento parecem não ter resistido ou estão abaixo
das expectativas face às necessidades dessa população, já que se verifica
uma aparente descontinuidade de manutenção à moradia.
É importante salientar,como exposto por De Souza12, que a sensação

10 Souza, 2004.
11 Relatórios da Liga Social Contra o Mocambo, 1942.
12 De Souza, 1998.

250
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de seguridade da posse das populações é frequentemente influenciada


por outros fatores, inclusive psicológicos e as ameaças de despejo ou de
remoção, bem como as ameaças pessoais, entre membros familiares, po-
dem influenciar na redução do potencial de reinvestimento pelas famílias,
limitando assim o processo de consolidação, mais do que a ausência da
garantia da posse através do título.
A questão que se coloca para discussão neste artigo é que as áreas
consolidadas e regularizadas voltam a apresentar determinadas carên-
cias que demandam novas políticas públicas habitacionais voltadas à
reconsolidação e re-regularização desses assentamentos. Carências estas,
como já mencionado, decorrentes da pressão na mudança do uso do solo
como resultado do deslocamento da área na relação centro-periferia; da
reestruturação econômica, transição demográfica pelo envelhecimento
e sucessão de títulos e da inevitável deterioração da habitação depois de
anos de intensivo uso.
De modo que se discute o porquê das pessoas não continuarem inves-
tindo em suas moradias apesar da seguridade de posse, materializada na
distribuição de títulos há quase duas décadas. Além disso, que demandas
recentes vêm se impondo nessas áreas.
Para esta investigação, foram analisados dois assentamentos habita-
cionais para a baixa renda na cidade do Recife, que foram alvos de inter-
venções estatais em várias escalas, conferindo título aos moradores ao
término do processo, além de infraestrutura e serviços básicos, sendo eles:
Coronel Fabriciano–de ocupação originalmente irregular datada
da década de 1970, e localizada no bairro da Imbiribeira, foi instituída
como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) em 1988 e foi o primeiro
assentamento da cidade a ter tido sua regularização jurídico-fundiária e o
processo de urbanização concluído. E, juntamente às ZEIS, Greve Geral,
Vila do Vintém e Vila da União compõem as únicas áreas nesta situação13.
A regularização fundiária se deu através do instrumento de Concessão
de Direito Real de Uso (CDRU) na forma condominial, gratuito e por um

13 Silva, 2009.

251
prazo de 50 anos, renovável por igual período, desde que seja acordado
entre as partes.
Para a regularização urbanística, o plano determinou a remoção provi-
sória de toda a população para que as casas pudessem ser reconstruídas,
bem como para a implantação do esgotamento sanitário, da drenagem e
a pavimentação das ruas. Os lotes foram redesenhados e demarcados pela
prefeitura, tomando como base a média de 70 m², sendo 7m de frente e
10m de fundo, à exceção dos lotes de esquina.
Desse modo, a ZEIS Coronel Fabriciano foi totalmente regularizada
entre os anos de 1994 e 1995 e, em 1996, todos os 86 títulos registrados
em cartório já haviam sido entregues às famílias14.
Brasília Teimosa – sua ocupação data de 1947, numa área conhecida
como Areal Novo, hoje bairro de Brasília Teimosa. É um caso bastante
emblemático, alvo de disputas de interesse público e privado, sob forte
pressão e especulação imobiliária, em virtude da sua localização à orla
marítima e fluvial. Bastante importante na mudança de postura em direção
à consolidação, regularização e urbanização, com a institucionalização das
ZEIS. Possui em torno de 1.791 imóveis regularizados com os instrumentos
de Doação e CDRU, mas o processo de legalização ficou paralisado por
anos, sendo retomado em 2005 com a revigoração do contrato de Cessão
de Aforamento que se encontra em andamento15.
O caso de Brasília Teimosa, que esbarra em alguns obstáculos, inclusive
políticos, incita atenção para um fator levantado em discussão de De Souza
(2004), de que os recursos têm sido disponibilizados para a melhoria das
áreas quase independente da finalização do processo de regularização
fundiária, o que atrai bastante a população. A legalização fundiária tem se
dado em períodos longos, que chegam a durar mais de 15 anos, enquanto
as melhorias físicas nas ZEIS acontecem quase imediatamente depois
de completado o plano urbanístico e aprovado seu orçamento, fator que
descaracteriza o processo.

14 Silva, 2005.
15 Atlas Municipal do Desenvolvimento Humano no Recife, 2005 e Silva, 2009.

252
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Hoje, as inúmeras invasões e ocupações de outrora, sejam ZEIS ou


não, estão, na sua maioria, de alguma forma consolidadas, melhoraram
materiais construtivos, ampliaram cômodos ou, ao menos, garantiram sua
permanência na determinada localidade. No entanto, estão reapresentando
carências relacionadas a questões sociais, legais e aspectos construtivos.
Diante disso, ressalta-se a importância de compreender quais são
essas as demandas contemporâneas, identificando possíveis fatores que
interferem na efetiva manutenção de condições satisfatórias de habitação.

2.1 Demandas recentes e investimentos


na moradia pela população de baixa renda

Nos meses de junho e julho de 2010 foram aplicadas 45 entrevistas


semiestruturadas nos assentamentos de baixa renda: 23 em Brasília Tei-
mosa e 22 em Coronel Fabriciano, com questões versando sobre:aorigem
da moradia, situação física, situação legal, demandas recentes e investi-
mentos para manutenção.
Quanto à origem da moradia, embora tenham sido identificados casos
significativos de invasão, na maioria das situações a propriedade foi ad-
quirida através da compra de ditos proprietários anteriores e, em Coronel
Fabriciano, duas famílias afirmaram ter comprado de invasores anteriores.
O caso da herança, que apareceu com pelo menos um caso em cada
área, já confirma a tendência do início da mudança de geração e a suces-
são dos direitos adquiridos, que será enfocado quando da abordagem dos
aspectos legais (Tabela 1).

253
Tabela 1 – Formas de aquisição do lote

Mesmo diante da aparente consolidação, que pode ser apreendida


num primeiro olhar, como o objetivo é identificar possíveis demandas por
políticas de reconsolidação, procurou-se aprofundar essa observação. Foi
questionado aos próprios moradores sobre sua visão acerca da situação
física da sua moradia. Pediu-se para que eles apontassem se havia pro-
blemas e o que planejavam fazer para solucionar (Tabela 2).

Tabela 2 – Condições físicas das moradias visitadas por área.

Em Brasília Teimosa, 17 dos 22 entrevistados válidos, afirmaram ter


problemas como goteira, umidade e/ou rachadura, o que é um percentual
bastante elevado (77,3%), e indica a deterioração dos materiais construti-
vos. Essa questão voltará a ser analisada sob o olhar do pesquisador mais
adiante. Além disso, desse total de 17 casos, 6 dizem não planejar fazer

254
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nada para melhorar essa questão por impossibilidade financeira.


Em Coronel Fabriciano, já há um indicativo do mesmo problema: 11 do
total de 20 afirmaram ter problemas de goteira, umidade e/ou rachadura.
E a tendência é se agravar, pois, dos 11, apenas 5 pensam em reparar o
problema, os demais também afirmam não ter condições financeiras para
tal investimento.
Também em Coronel Fabriciano é significativa a insatisfação quanto
à forma que está construída a casa, mesmo não sendo a maioria dos
casos. As pessoas foram ampliando suas casas, conforme as demandas
do arranjo domiciliar, mas hoje consideram que alguns cômodos ficaram
apertados com relação a outros.
Observa-se, portanto, um processo de deterioração, natural em virtude
do tempo e das transformações que ocorrem nas áreas, mas que pode vir
a comprometer o grau de consolidação, uma vez que parte da população
sinaliza não haver condições de investir para reverter tal situação.
Além da situação física, foi analisada também a situação jurídica da pro-
priedade (Tabela3). As questões legais que incidem sobre essas áreas, no
que envolve questões de herança, sucessão e testamento são as mesmas
de qualquer outra área. No entanto, nos casos de regularização fundiária,
tem-se orientado a colocação do título em nome do cônjuge feminino ou
no nome dos dois cônjuges, pois se acredita que a mulher dificilmente
venderia a sua moradia por seu perfil de guerreira em defesa da família.

255
Tabela 3 – Dados sobre a propriedade atual e instrumentos que a legitimam por área.

Mesmo assim, como se pôde ver na tabela 3, dentre os que afirmaram


ter título de propriedade, a maioria disse que o título está em nome de
apenas um dos cônjuges e frequentemente do homem.
Outra situação observada é que a pessoa que aparece na escritura
nem sempre continua sendo o dono, na maior parte dos casos, porque já
faleceu. Quando questionados porque não mudaram o título ainda, ora
afirmam não ter dinheiro para isso, ora afirmam não haver necessidade
para tal, haja vista que a casa ficou para herdeiros ou cônjuge vivo.
Assim como na maior parte do país, nenhuma das famílias entrevista-
das tem ou fez testamento. Alguns apontam que ao menos tem deixado
indicações de quem fica com a casa. A própria legislação brasileira, dife-
rentemente de outros países, termina por influenciar esse posicionamento,
uma vez que garante a sucessão legítima, em razão do parentesco, de
pelo menos 50% do bem, caso o proprietário tivesse deixado testamento
manifestando sua vontade de deixar bens a outros que não parentes.
Perguntados sobre por qual motivo acreditam que as pessoas não fazem
testamento, a maioria diz ser porque termina por causar disputas entre
os familiares. Alguns dizem ainda que são pobres e não têm o que deixar.

256
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Maria, 73 anos, moradora de Coronel Fabriciano há 32 anos, revela sua


preocupação com relação à posse da casa, pois embora ela esteja na área
desde a invasão e tenha vivenciado todo o processo de consolidação, o
título de posse está em nome do seu filho que faleceu recentemente, e havia
acabado de registrar um filho que, segundo ela, não era dele. Ela afirma
que antes de morrer, seu filho teria escrito a próprio punho, por sobre o
título de propriedade, seu desejo de que a casa ficasse para a mãe – no
caso ela – e seu filho, mas como nada foi registrado em cartório, não tem
validade. Nessas circunstâncias, ela teme ser expulsa futuramente pelo
herdeiro legítimo. Apesar disso, na época da visita, sua moradia estava
em obra para subdivisão a fim de servir de residência a sua outra filha,
irmã do proprietário falecido.
A dificuldade em estabelecer e manter processos regulares, legais e
formais, com relação à moradia, parece ser ainda um dos principais pro-
blemas nas áreas, mesmo em Coronel Fabriciano, ZEIS totalmente regu-
larizada. Sabe-se, porém, que essa situação não é característica apenas
de áreas pobres, mas se agrava nessas áreas pela fragilidade do acesso
de informações e pelas próprias demandas geralmente urgentes.
Ward et al.16 propõem que o conceito adotado para a titularidade seja
o de familyproperty, ou seja, a propriedade seja em nome da família como
um todo, o que não é fácil pela constante alteração do ciclo de vida familiar
e filhos fora do casamento, e que não deveriam ficar de fora dos direitos
da habitação, segundo a legislação brasileira pertinente. Mas facilitaria
e garantiria a sucessão de maneira ainda mais segura. Colocam também
que, no México, tem-se adotado programas para incentivar a realização
do testamento, como: Setembro – mês do testamento; Testamento a baixo
custo para a baixa renda mexicana; e Novembro: regularize sua proprie-
dade. Experiências que podem ser adotadas no Brasil.
Além disso, deve-se salientar que a família tradicional vem sofrendo
diversas alterações. De tal maneira que os papéis desempenhados por
seus integrantes estão frequentemente em transição. Em dado momento,

16 Ward et al, 2011.

257
é a mulher que trabalha fora de casa; em outro, é o homem; quando não,
os dois passam o dia fora. Há também os casos de divórcio, pais soltei-
ros e tantos outros. Além disso, principalmente nos lares pobres, outras
pessoas têm aparecido para compor o domicílio, a saber: os irmãos, os
cônjuges dos filhos, os netos e até mesmo um amigo, tornando-se assim,
essa instituição, cada vez mais heterogênea e demandando por novas
formas de serem tratadas.
Outro ponto analisado nas áreas de estudo tomou com base um dos
princípios do discurso regularização urbanística e fundiária em favor da
melhoria qualitativa das áreas já ocupadas, em que se ressalta a impor-
tância de dotar as áreas de redes de infraestrutura e conferir acesso aos
serviços básicos. Sabe-se que inúmeras áreas na cidade do Recife são ainda
carentes dessas melhorias, mas como o foco deste estudo está voltado
a áreas que foram alvo de ações de intervenções para conferir soluções
nesse sentido, entendeu-se a necessidade e importância de conhecer a
qualidade desses serviços a partir da satisfação dos moradores.
Quando questionada a qualidade e regularidade dos serviços, os mo-
radores deveriam classificar em bom, satisfatório ou ruim. Desse modo,
os dados foram sintetizados na Tabela 4 a seguir, agrupando os que
consideraram o serviço bom ou satisfatório entre o percentual satisfeito
com o mesmo.
Além de questionada a qualidade do serviço, foi perguntada à popu-
lação, caso pudesse solicitar alguns serviços, quais seriam. Os resultados
surpreenderam um pouco, pois muitos dos serviços alvos de reclamações
não foram solicitados pelos entrevistados na oportunidade colocada.

258
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Tabela 4 – Demonstrativo de satisfação dos moradores com os serviços oferecidos por área.

A área que demonstra maior satisfação com os serviços ofertados é


Coronel Fabriciano, onde a porcentagem mais baixa é 70% e se refere ao
esgotamento sanitário. O sistema de esgotamento sanitário foi entregue
recentemente, em 2009, na forma condominial, em toda a área de Coronel
Fabriciano, mas a população de algumas ruas tem se queixado da qualidade
do serviço, uma vez que afirma que vem transbordando em algumas ruas.
Essa forma condominial traz a ideia do viver em comunidade, e de que
todos precisam zelar para o bem viver comum, de modo que um problema
em uma das casas traz transtornos para toda a comunidade. Além disso,
reclamam que o calçamento realizado após as obras de saneamento não
tem suportado o trânsito local de carros, apresentando danos.
Porém, dessas 6 pessoas que se disseram insatisfeitas do total de 22
entrevistadas, apenas 2 solicitaram o serviço, quando perguntada se gos-
taria de solicitar serviços para sua área.
O serviço de esgotamento volta a ser bastante reclamado também em
Brasília Teimosa. A situação foi noticiada no jornal Diário de Pernambuco.
Na ocasião, o presidente do Conselho dos Moradores, Wilson Lapa, denun-
ciou que, em média, 18 ruas do bairro estariam enfrentando problemas
com esgotamento a céu aberto na porta das residências17.

17 AMARAL, 2010. Moradores de Brasília Teimosa sofrem com esgotos a céu aberto – Diário de Pernambuco.

259
Moradores contam que já foram feitas várias denúncias ao Ministério
Público, e que algumas obras foram feitas, mas que até então o proble-
ma não foi resolvido de forma efetiva. No entanto novamente quando
questionada a população quais serviços solicitaria, apenas 7 dos 14 que
reclamaram do serviço optaram por solicitar esgotamento sanitário.
Dentre os serviços que apresentam maior percentual de satisfação
nas áreas estudadas, destaque para a coleta de lixo, com quase 100% de
aprovação, e o abastecimento de energia elétrica. Nas duas áreas, a po-
pulação é quase unânime em destacar a frequência com que é realizada
a coleta de lixo, pelo menos três vezes por semana. Ressalta-se que, com
os projetos de urbanização, o acesso desse serviço foi facilitado.
Em Brasília Teimosa, mesmo não sendo a maioria da população entre-
vistada, há uma significativa insatisfação com os serviços de drenagem,
iluminação pública e transporte público. Segundo moradores, há apenas
duas linhas que circulam no bairro, e em grandes intervalos temporais.
Ambas se direcionam ao centro da cidade: uma vai até os bairros de Santo
Antônio e São José e a outra vai até a Av. Conde da Boa Vista.
Consultando a página na internet da Grande Recife Consórcio de Trans-
porte, confirma-se que há apenas 2 ônibus da linha 014 Brasília (Conde da
Boa vista) e 1 ônibus da linha 018 Brasília Teimosa. O que, como já pontua
a população, não atende as suas demandas. Do total de 10 que reclamam
do serviço, 6 gostariam de solicitar melhorias no acesso.
Por fim, coloca-se que os serviços de abastecimento de água e policia-
mento obtiveram praticamente os mesmos percentuais de satisfação nas
duas áreas. Com reclamações comuns sobre a falta de água constante,
problema que era comum a toda a cidade do Recife e vem sendo solucio-
nado, através do abastecimento pelo reservatório de Pirapama.
Por fim, sobre o policiamento, as reclamações estiveram voltadas a
demora de viaturas em chegar às ocorrências.
Como se pôde observar, o alcance aos serviços e à infraestrutura já se
deu, mas a população demanda ainda por melhor qualidade, regularidade
e mais amplo acesso desses serviços oferecidos para que, de fato, tenham
e mantenham as condições adequadas de moradia.

260
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Mesmo identificando problemas e situações insatisfatórias na escala


da casa e da rua, do ponto de vista dos moradores, percebeu-se que a
maioria dos entrevistados pretende permanecer na sua localidade, sendo
Brasília Teimosa a que alcança a maior porcentagem da população (Ta-
bela5). A vantagem locacional e a forte especulação imobiliária justificam
bem esse resultado.

Tabela 5 – Dados relacionados às expectativas dos moradores em relação à área e à moradia.

Tomando como base ainda as expectativas da população, investigou-se


quem considerava que poderia melhorar as condições físicas da casa. Em
Coronel Fabriciano, obteve-se a maior porcentagem, 80% (16 do total de
20 que responderam a esta pergunta) afirmam que sim, embora, desses,
65% de fato dizem planejar fazer melhorias. Dos 7 que dizem não planejar,
6 afirmam não ter condições financeiras no momento para assumir as
prestações decorrentes das melhorias e apenas 1 diz ser porque a casa
não precisa.
Já em Brasília Teimosa o percentual é o mesmo, tanto para os que dizem
ter condições quanto para os que planejam, 42,9%. Dos 12 entrevistados,
do total de 21 casos válidos, que afirmaram que não planejam e não têm
condições de fazer melhorias, apenas 1 justifica que a casa não precisa,
9 dizem não ter condições financeiras satisfatórias para arcar com as
despesas e 2 optaram por não responder.
As intenções dos moradores que pensam em realizar melhorias são
variadas, abrangem desde pequenos reparos de pintura, troca de telhas,
pequenas reformas e até construção de mais um pavimento em busca de
mais espaço.
Sobre outros possíveis apoios, financeiros ou não, através de esferas

261
estatais ou organizações comunitárias para reforma e/ou reparos na casa,
a população das duas áreas estudadas dizem que não contam com ajuda
de ninguém, a não ser deles mesmos e, no máximo, de parentes próxi-
mos. No entanto, quando questionados sobre esse mesmo tipo de apoio
relacionado às melhorias na área, eles citam o suporte das associações de
moradores e autoridades municipais, a esfera imediatamente reconhecida
para atuar no provimento de serviços básicos e infraestrutura da cidade.
Em Brasília Teimosa, 13 do total de 21 casos válidos, dizem pedir ajuda
a sua associação, 6 dizem recorrer às autoridades municipais e 2 dizem
que eles mesmos buscam resolver os problemas. Por sua vez, em Coronel
Fabriciano, a maioria (13 do total de 20) busca as autoridades municipais
para alcançar melhorias, 6 recorrem à associação de moradores e apenas
1 diz não contar com a ajuda de ninguém, só dele mesmo. Essa opção em
ir direto às autoridades municipais antes da associação corrobora com a
revelação de descontentamento de alguns moradores com a composição
atual da associação, segundo eles, pouco atuante.
Diante de toda essa expectativa com relação à área e à casa, investigou-
-se também se está havendo venda de casas nas áreas e quais os valores
estão sendo praticados (Tabela 6).

Tabela 6 – Percepção e estimativa de valor de venda das casas em cada área.

A área com a casa vendida pelo maior valor, de conhecimento dentre


os entrevistados, foi em Brasília Teimosa, 150 mil reais, localizada na orla
marítima. Quando questionados se poderiam identificar o novo morador
(o comprador) para uma possível entrevista, os entrevistados afirmaram
que a casa está fechada desde a venda, o que confirma, assim, as notícias
que vêm sendo veiculadas sobre a supervalorização dos lotes na área e

262
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

levanta a suposição de que o novo comprador possa estar fazendo reser-


va de estoque de terra para especulação ou aguardando modificações na
legislação das ZEIS para que possa estabelecer outros tipos de empreen-
dimentos na localidade.
Passadas algumas décadas desde a origem de cada área, o medo de
expulsão hoje se tem reduzido, 29,8% dos moradores, nas duas áreas,
disseram já ter pensado que poderiam ser expulsos, o maior número de
casos foi identificado em Brasília Teimosa, 8 do total de 20 – mas desses,
3 disseram ser porque ouviram falar dessa possibilidade, outros justifica-
ram temer a disputa entre familiares e 2 pontuam o grande interesse e
pressão do mercado imobiliário. Em Coronel Fabriciano, 5 entrevistados
de 20 dizem pensar que podem ser expulsos, ou porque acreditam que
a prefeitura pode ordenar, já que o terreno pertence a ela, ou por desen-
tendimento entre herdeiros.
Alguns moradores colocaram, inclusive, que não temem ser expulsos,
pois teriam direito à indenização pelo tempo de moradia e investimen-
tos na área. Mas em virtude de outras experiências na cidade do Recife,
sabe-se que, se houver rumores de retirada das famílias, mesmo que sob
indenização, a população envolvida tende a se organizar e lutar pela sua
permanência, como aconteceu em Coronel Fabriciano, em Brasília Tei-
mosa, além de outras áreas, outrora.
Por fim buscou-se analisar a situação física da moradia do ponto de
vista técnico do pesquisador. As Figuras 2 e 3 demonstram o grau de con-
solidação atual dessas áreas, que se revelam como grande conquista face
aos problemas relacionados à moradia na cidade do Recife.

263
Figura 2 – Rua Albacora, em Brasília Teimosa, em contínua consolidação.
Fonte: Acervo pessoal, 2010.

Figura 3 – Grau de consolidação na Rua 18 de dezembro, em Coronel Fabriciano.


Fonte: Acervo pessoal, 2010.

Embora a média do grau de consolidação nas duas áreas represente


condições satisfatórias de moradia, há de se salientar a tendência à dete-
rioração dos materiais empregados, ainda que adequados à função que
exercem. Identificou-se em Brasília Teimosa, em 58,8% dos casos, que o
grau de consolidação classifica-se como transitório, que são os casos em
que se adotam materiais de melhor qualidade e estão em bom estado de
conservação, mas faltam acabamentos ou começam a apresentar pro-
blemas. Em Coronel Fabriciano a porcentagem foi semelhante, 57,9% dos

264
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

casos, o que provoca a reflexão de que, em um futuro próximo, essas áreas


demandarão por novos investimentos para reconsolidação, uma vez que
muitos moradores dizem não ter condições financeiras para realização
das melhorias e manutenção necessária, como foi visto anteriormente.
Esta preocupação é ainda maior no que tange Coronel Fabriciano, na
medida em que este assentamento recebeu investimentos estatais, inclu-
sive para a construção das próprias moradias.
Sabe-se que, independentemente da faixa de renda e da origem da
moradia, se irregular ou regular, a habitação precisa de manutenção, e
depois de algum tempo, precisa de reparos mais significativos. O que se
ressalta neste artigo é que essas áreas têm recebido ou receberam inves-
timentos habitacionais importantes, mas sua população tem encontrado
dificuldades em manter essa habitação, seja pelo baixo poder aquisitivo,
seja pela composição familiar que adquiriu mais pessoas e intensificou
o uso da moradia.
Além disso, verificou-se a fragilidade atual quanto à questão da ti-
tularidade, uma vez que a sucessão da posse não vem sendo registrada
e atualizada junto aos cartórios. Embora não se verifique, na fala dos
moradores, maior relação entre a falta de investimento e a fragilidade da
titularidade, uma vez que nem sempre um fator esteve atrelado ao outro,
quando foi afirmado que eles já investiam na moradia, independente de
terem sido entregues os títulos de posse. Contudo, entende-se que a atu-
alização do registro facilitaria o controle urbano do poder público, bem
como conferiria mais segurança ao atual proprietário e, se necessário,
aos seus futuros herdeiros.
No que se refere ao quesito para além da casa, como a relação com a
rua e o assentamento como um todo, a população entrevistada já se coloca
insatisfeita com a regularidade e qualidade de serviços como abastecimen-
to de água, de iluminação pública, de transporte público e reclamam da
falta ainda de esgotamento sanitário adequado, de obras de drenagem e
de outras opções de conexão com a cidade por meio do transporte público,
mesmo estando situadas aparentemente em meio as áreas centralizadas

265
da rede urbana da cidade, citando inclusive o “abandono” dos setores
públicos que por ora estiveram mais próximo do importante processo de
intervenção vivenciado.
Ou seja, observa-se que aparecem novas demandas oriundas de mu-
danças no arranjo familiar, condições econômicas dos familiares, novas
dinâmicas na relação com a cidade, mas velhas demandas relacionadas
ainda a qualidade e regularidade de acesso a serviços e infraestrutura
permanecem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como apontado por De Souza18, as ameaças de despejo ou de remo-


ção, incluindo ameaças pessoais, entre membros familiares, influenciam
mais na redução do potencial de reinvestimento pelas famílias, limitando
assim o processo de consolidação, do que a ausência da garantia de posse
através do título.
No entanto, como se observou neste estudo, atualmente o medo de
expulsão nas áreas estudadas é consideravelmente reduzido e, quando
existe, decorre do grande interesse pelo mercado imobiliário na área,
como em Brasília Teimosa, e/ou da preocupação com disputas familiares.
Ainda assim, boa parte da população tem a consciência que, em caso de
necessidade de remoção, elas deverão ser indenizadas pelo investimento
na construção. De modo que, neste caso, a falta de investimentos por parte
de algumas famílias relaciona-se a outros fatores, sendo o mais percep-
tível a falta de poupança por parte dos moradores, uma vez que a renda
tem sido empregada para sustento da família. Supõe-se que a essa falta
de poupança decorre da ausência de programas de geração de emprego
e renda nas intervenções empregadas nas respectivas áreas, como era
almejado pelos defensores do processo de regularização fundiária.
Assim, verifica-se uma tendência a uma possível demanda futura de
investimentos para recuperação das condições da moradia, ou seja, re-

18 De Souza, 1998.

266
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

consolidação física da unidade habitacional, justificada pelos seguintes


motivos observados através das análises desenvolvidas: uso intensivo da
moradia; rearranjo domiciliar, no qual a família nuclear foi acrescida por
outros parentes, ou agregados, que quando não compartilham a mesma
casa, compartilham o lote; ausência de apoios para investimentos, além
da já citada falta de poupança; e a própria transição demográfica, com
envelhecimento da unidade habitacional e dos moradores, havendo troca
inclusive de gerações e de interesses.
Em suma, é possível englobar as principais demandas por parte da
população apontadas a seguir em três escalas, quais sejam:
Microescala: demandas relativas a casa
Acesso à expertise para projeto de ampliação e reforma;
Acesso a crédito para aquisição de materiais de construção;
Acesso a apoio jurídico para regularização da ampliação ou reforma
empreendida;
Acesso a informações sobre tratamento de questões jurídicas, como
herança, sucessão e testamento e a soluções mais práticas para o perfil
dessa população de baixa renda.
Mesoescala: demandas relativas à rua
Ampliação de acesso aos serviços básicos, como saneamento e trans-
porte público;
Melhoria na qualidade e na regularidade dos serviços fornecidos, tais
como: iluminação pública; abastecimento de água, esgotamento sanitário,
drenagem, transporte público;
Acesso a apoio técnico e a crédito para ligação do esgotamento da
rua para as moradias
Macroescala: demandas relativas ao assentamento
Dotação de equipamentos públicos na própria área, como: creches,
escolas, postos de saúde, postos policiais;
Acesso a áreas livres de lazer.
Haja vista as novas irregularidades percebidas, o processo de regula-
rização fundiária parece não ter fim. No entanto, Mesmo diante de vários

267
fatores que impõem dificuldades à concretização de todo o processo de
legalização e urbanização, reconhece-se que as políticas de regularização
fundiária incidem sobre o problema da habitação, se não solucionando,
amenizando-o.
Conclui-se que é necessário diminuir o estoque de habitações infor-
mais, mas aponta-se que esses assentamentos necessitam também de
políticas públicas habitacionais que lidem com questões atuais da mora-
dia, considerando aspectos não tangíveis como sucessão e herança, além
de aspectos tangíveis, como acesso a crédito, materiais de construção,
expertises, entre outros.
Embora se compreenda que ainda há assentamentos, recentes ou não,
que demandam pelas primeiras e mais básicas intervenções do Estado, que
possibilitem ao menos condições de acessibilidade a sua área, entende-
-se também que o Estado precisa manter políticas habitacionais voltadas
ao pós-intervenção, com a finalidade, inclusive, de não se perder os altos
custos dos investimentos em urbanização e regularização.

REFERÊNCIAS

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Recife, 2005. CD-ROM.
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268
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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269
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A aplicabilidade dos instrumentos


jurídicos para a regularização fundiária
da Vila Acaba Mundo

Júlia Dinardi Alves Pinto¹


Marcos Bernardes Rosa²
Tays Natalia Gomes³

1. APRESENTAÇÃO

Entendendo a cidade capitalista como a expressão territorial da so-


cialização contraditória das forças produtivas, enxergamos nas favelas
brasileiras sua face mais marcante. Soma-se a esse processo o modelo
excludente de urbanização brasileira, combinada à processos históricos
de omissão por parte do Estado em garantir o direito fundamental à mo-
radia. Em Belo Horizonte, esse modelo foi agravado pela característica da
cidade ter sido pensada para ser uma cidade capital, sede administrativa
do Estado de Minas Gerais. Assim, os trabalhadores que a construíram, se
viram alijados da cidade em construção, sendo submetidos a ocupações
precárias no entorno dessa cidade.
Esse processo, comum às favelas belo-horizontinas, também se deu na
Vila Acaba Mundo. Essa comunidade, localizada na zona Sul da cidade,
começou a se formar na década de 1940, composta por trabalhadores
da mineração localizada na Serra do Curral. A localização remota e as
dificuldades decorrentes da precariedade da ocupação, explicam o nome
da comunidade.

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista do Programa Pólos de Cidadania
da Faculdade de Direito da UFMG. juliadinardi@gmail.com.
2 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista do Programa Pólos de Cidadania
da Faculdade de Direito da UFMG. markinrosa@gmail.com.
3 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista do Programa Pólos de Cidadania
da Faculdade de Direito da UFMG. taysnatalia@gmail.com.

271
Com o crescimento da cidade, o vetor Sul se portou como área de
expansão para uma classe média-alta que hoje abriga os lotes mais va-
lorizados do município. No correr dessa expansão, grande parte da vila
foi removida, e hoje as 350 habitações (1.400 pessoas) se encontram em
um espaço bastante reduzido do original na Zona Sul. A ocupação se deu
principalmente em terrenos cujos proprietários não exerciam a posse,
ora entregues à especulação imobiliária. Atualmente, é alvo do processo
de gentrificacão social, por meio da pressão que os bairros vizinhos de
alto padrão, promovem. Na esteira da informalidade, os moradores estão
submetidos principalmente à insegurança da posse, assombrados pela
ameaça de despejo.
Apesar da caracterização da posse ser inquestionável, haja visto o
lapso temporal de mais de sessenta anos decorrente e a despeito de haver
vários instrumentos jurídicos para a regularização fundiária, a situação
de informalidade persiste. Desde a década de oitenta, houve tentativas
de regularização, por meio de decretos municipais, de declaração de que
a Vila se encontra em uma ZEIS, Zona Especial de Interesse Social, o que
facilitaria a regularização.
É nesse contexto que se inicia a atuação do programa Pólos de Cida-
dania na Vila Acaba Mundo. Com a intenção de mobilizar a comunidade
através do fortalecimento dos seus meios de associação e organização
e efetivar, com ajuda de parcerias, a regularização fundiária da área. O
Programa, em suas atividades, baseia-se nos referenciais metodológicos
da pesquisa-ação onde ação e pesquisa em campo são definidas de forma
participativa e continuada. As etapas da pesquisa participativa e da ação
comunitária se retroalimentam, sendo sempre a atuação do programa
informada pelas percepções e análises realizadas pelos integrantes do
Pólos e a comunidade. Várias técnicas de planejamento e sistematização
das prioridades são utilizadas nesses espaços de convergência. A defini-
ção das prioridades ocorre em espaços de diálogo entre a comunidade e
o programa, tais como oficinas, assembleias, reuniões e debates.

272
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A atuação do Programa tem como objetivo geral fortalecer o proces-


so de mobilização social na comunidade. Por meio da metodologia da
pesquisa-ação, buscamos atuar em conjunto com os moradores a fim de
fortalecer os laços sociais presentes na comunidade bem como suas lutas
externas, sobretudo no tocante do direito à moradia e da regularização
fundiária. Também aparecem como atividades do Programa: participar
das reuniões que ocorrem na comunidade; promover a realização de
oficinas com os moradores e os líderes comunitários a fim de fortalecer
as interações entre eles; promover a realização de assembleias sobre
a questão fundiária; fortalecer a associação de moradores; auxiliar no
ingresso dos devidos instrumentos jurídicos para promoção da regu-
larização fundiária da Vila; estabelecer uma cooperação com órgãos
públicos (Defensoria Pública, Ministério Público, etc.); estabelecer um
diálogo entre a Vila e outras comunidades da cidade que tenham em
comum a luta pelo direito à moradia;
Em 2008, O Programa Pólos fez um diagnóstico juntamente com a
população da Vila Acaba Mundo no qual foi detectado que o principal
problema enfrentado pela comunidade: a necessidade de regularização
fundiária. A partir daí, foi desenvolvido um plano de ação envolvendo os
diversos atores que atuavam na Vila, como a Associação de Moradores e
os projetos sociais. O fortalecimento das redes de apoio foi uma das pri-
meiras etapas do projeto de implementação das ações. O Programa Pólos
atuou em conjunto com as demais entidades na criação do FEMAM, fórum
de entidades que atuam na Vila com fins de inclusão social.
Neste trabalho, buscaremos elencar as possibilidades de regularização
fundiária, apresentando os instrumentos disponíveis na legislação.

2. POSSIBLIDADES DE REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA

2.1. O Decreto Legislativo nº. 13.519/2009 e a Ação Civil Pública


nº. 0409295-33.2013.8.13.0024

273
Em meados da década de 1980, a pressão exercida pela opinião pública
pela regularização da Vila Acaba Mundo fez com que a Prefeitura Muni-
cipal de Belo Horizonte, por meio do seu Poder Executivo, decretasse a
desapropriação da área de toda vila para fins de interesse social, tratava-se
do o Decreto 4845/1984. Esse decreto declarou - juntamente com outras
favelas - a Vila Acaba Mundo como área de urbanização específica de
interesse social, caracterizada como Setor Especial – 4 (SE – 4), posterior-
mente declarada pela Lei Municipal 7166/1996 como Zona Especial de
Interesse Social – ZEIS, sendo, assim, definitivamente reconhecida pelo
Estado como “aglomeração de baixa renda consolidada e com necessidade
premente de regularização fundiária e urbanização.” Entretanto, a referida
declaração de interesse social caducou face ao transcurso do prazo de
02 (dois) anos sem que o Município de Belo Horizonte implementasse a
devida expropriação para o aproveitamento adequado da área, nos ter-
mos propostos pelo Decreto. Mais uma vez prevaleceu a histórica inércia
estatal, da Prefeitura de Belo Horizonte e do Estado de Minas Gerais, na
execução de políticas públicas em favor da população carente, notada-
mente em matéria de habitação, implicando no adiamento da melhoria da
condição de vida de centenas de famílias pobres, compostas por adultos,
idosos, homens, mulheres e crianças.
Anos mais tarde, em 2008 foi realizada uma audiência pública na Câ-
mara Municipal de Belo Horizonte, na qual de Belo Horizonte, na qual foi
discutida o Projeto de Lei 795/2008, que foi aprovado com unanimidade
em 15.12.2008. O referido projeto legislativo foi um resultado da crescen-
te preocupação com os destinos da Vila Acaba Mundo - cada vez mais
pressionada pela sanha arrecadatória do setor imobiliário e de alguns
proprietários, em um cenário de supervalorização imobiliária e escassez
de terrenos aptos para a construção civil – e tinha o escopo de declarar de
utilidade pública e interesse social para fins de desapropriação dos imóveis
em proveito da comunidade, viabilizando-se, assim, sua regularização
fundiária e o tão sonhado fim da constante intranqüilidade suportada
por tantas famílias pobres, sem contar a facilitação ao acesso a serviços
públicos essenciais de água e energia elétrica.

274
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Contudo, o Município de Belo Horizonte, por meio do seu Prefeito,


no primeiro dia de sua gestão, no ano de 2009, malgrado ciente da gra-
vidade do contexto social que permeia a Vila em questão, preferiu vetar
o projeto, sob a justificativa de que a expropriação de toda a área seria
demasiadamente onerosa para o erário municipal. Diante disso, os mo-
radores se uniram às entidades e instituições que atuam na comunidade
para reivindicar, mais uma vez, a solução definitiva para os problemas
fundiários da Vila Acaba Mundo. Desse modo, após inúmeras reuniões
mantidas com vereadores e representantes da Prefeitura e da Companhia
Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte – URBEL, restou acertado
que, não obstante a expedição do veto, seria expedido Decreto Municipal
(Decreto 13519/2009) declarando como área de utilidade pública para fins
de desapropriação, nos termos do Decreto-Lei 3.365/1942, 19 (dezenove)
lotes da Vila, correspondentes a moradias de 71 (setenta e uma) famílias
que sofriam (e ainda sofrem) iminente perigo de despejo por conta de li-
tígios judiciais decorrentes do manejo de ações por alguns “proprietários
‘registrais’” de lotes abandonados há décadas por estes últimos na região.
Estava selado, assim, o reconhecimento pelo Chefe do Executivo muni-
cipal da legitimidade do pleito reivindicado pelos moradores e diversos
apoiadores da Vila Acaba Mundo, desapropriando os 19 (dezenove) lotes
de maior conflituosidade fundiária da Vila Acaba Mundo.
Após publicado referido Decreto Municipal 13.519/2009, as lideran-
ças comunitárias da Vila Acaba Mundo continuaram mobilizadas para
garantir a efetivação do processo expropriatório. No entanto, apesar das
inúmeras tentativas da comunidade e das entidades envolvidas para im-
pulsionar o réu municipal a iniciar os procedimentos de desapropriação e
regularização da localidade, este, após quase 03 (três) anos da aprovação
de referida norma, mantém-se inexplicavelmente inerte, não adotando
quaisquer providências em relação à situação. Diante disso a Defensoria
Pública do Estado de Minas Gerais, em parceria com o Programa Pólos
de Cidadania, ingressou com uma Ação Civil Pública (Autos nº. 0409295-
33.2013.8.13.0024) em face dos governos Estadual e Municipal a fim de

275
reivindicar o imediato cumprimento do referido Decreto, tendo em vista
que o mesmo caduca após 4 anos de sua publicação, ou seja, no próxi-
mo ano de 2014. A ação foi ajuizada em 27/02/2013 e encontra-se em
tramitação na Terceira Vara da Fazenda Estadual do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais. Até o presente momento, não houve nenhuma decisão
quanto a matéria, houve apenas uma discussão quanto à competência. O
Estado declinou a competência de julgar para o Município, alegando que
o processo deve ser encaminhado às Varas da Fazenda Municipal, tendo
em vista tratar-se de Decreto Municipal.

2.2. O Usucapião Especial

Por ser a Vila Acaba Mundo uma ocupação espontânea que data da
década de 1940, a regularização da área por meio do usucapião especial
é a melhor alternativa vislumbrada. O usucapião deve ser interpretado a
partir de princípios e previsões constitucionais como a da moradia e da
função social da propriedade (SCHAFER, 2006). A proposta do usucapião
especial coletivo é diferente de qualquer outro tipo de usucapião pois além
de requerer a aquisição da propriedade para os possuidores, requer a ur-
banização da área. O diferencial entre o usucapião individual e o coletivo
é que o primeiro visa a regularização da situação fundiária do indivíduo
enquanto o segundo tem como finalidade não só “regularizar, mas permitir
a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda, alterando
o perfil socialmente indesejável de determinados núcleos habitacionais
urbanos” (LOUREIRO, 2006, p. 89). Como a Vila Acaba Mundo é fragilizada
socialmente e irregular, a urbanização é essencial.
O usucapião é uma forma originária de aquisição da propriedade,
legalmente dada ao possuidor que ocupa áreas sem sofrer oposição,
pelo prazo fixado em lei, correspondente a cinco anos (BRASIL, 2002).
Fundamenta-se no reconhecimento de que o direito de uso é suficiente
para que o direito à moradia seja garantido pela aquisição da propriedade.
Portanto, valoriza a segurança da posse. O usucapião especial urbano parte

276
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da premissa de que a titularidade da propriedade deve ser reconhecida


para que a regularização fundiária seja promovida e o direito à moradia
seja concretizado. O usucapião urbano está disposto no art. 183 da Cons-
tituição Federal, cuja letra diz:

Art. 183: Aquele que possuir como sua área urbana de até duzen-
tos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterrupta-
mente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário
de outro imóvel urbano ou rural.

A previsão de ingresso do usucapião na forma coletiva no Estatuto da


Cidade, que data de 2001, não acarreta em maior gravame para proprie-
tários, já que o usucapião especial urbano está previsto na Constituição
Federal desde 1988 e a modalidade coletiva apenas acrescenta à anterior,
a possibilidade de urbanização de núcleos habitacionais degradados
(LOUREIRO, 2006). O art. 9º do Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, re-
gulamenta a previsão constitucional quanto ao usucapião especial. Tal
artigo, no seu inciso 2º, afirma ser o usucapião especial um direito que
não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
As principais vantagens do usucapião coletivo são a economia pro-
cessual, pois é necessário um único processo para a resolução de vários
conflitos urbanísticos, e a proposta de urbanização, que consiste em uma
segunda etapa do processo. Há também economia de tempo, os processos
são mais breves e dispõem de menos recursos (não é necessária a demar-
cação de todos os terrenos e intimação de todos os vizinhos de cada lote,
mas apenas da área total objeto da ação). A implementação viária e da
infra-estrutura da região são facilitadas, já que todo o terreno é usucapido,
não havendo a necessidade de futuras desapropriações para a passagem
de vias e outros benefícios.
O deferimento do usucapião não está subordinado ao prévio preen-
chimento de requisitos urbanísticos, nem obediência ao Plano Diretor. “A
aquisição originária do domínio e a finalidade primordial de regularização
fundiária do instituto desvinculam-no das rígidas regras da Lei do Parce-

277
lamento do Solo e de Planos Diretores” (LOUREIRO, 2006, p.91). Pensar
de outra forma esvazia o instituto e nega efetividade ao art. 183 da Cons-
tituição Federal, pois a maioria dos núcleos habitacionais ocupados por
pessoas de baixa renda não cumprem as regras urbanísticas. regularização
fundiária promovida pelo usucapião coletivo pressupõe a elaboração de
projeto de urbanização da área usucapida. Desse modo, deverá ser feito
um planejamento quanto à localização das vielas e áreas comuns, que
poderão ser destinadas ao Poder Público municipal, em acordo celebrado
em juízo conforme o plano de urbanização apresentado ao juiz na forma
de uma planta contendo memorial descritivo com a divisão dos lotes entre
os possuidores (BRASIL, 2002).
O memorial descritivo é essencial para explicitação ao juiz da configu-
ração da área objeto de usucapião. O memorial deve conter a descrição
da situação de fato das áreas comuns e dos espaços ocupados individu-
almente (BRASIL, 2002). É papel do Município realizar as intervenções de
urbanização na área objeto de usucapião para inseri-la na cidade legal e
regular. O envolvimento do Poder Público Municipal é derivado da com-
petência comum de promover a melhoria das condições habitacionais,
de saneamento básico, de combater a pobreza e os fatores de marginali-
zação social promovendo a integração social dos setores desfavorecidos
(BRASIL, 2002).A sentença final do processo de usucapião tem natureza
declaratória, declara o domínio individual ou coletivo sobre o imóvel. A
sentença que reconhecer o domínio valerá como título para o registro de
imóveis, nos termos da segunda parte do artigo 13.
O usucapião especial de imóvel urbano pode ser invocado como maté-
ria de defesa (art. 13, Estatuto da Cidade). A arguição de usucapião como
defesa sempre foi admitida, porém a decisão nesse caso não servia como
título para a transcrição do registro imobiliário, apenas declarava o direito
do réu ingressar com ação de usucapião coletivo. Duas são as hipóteses
possíveis de interpretação nesse caso. Uma delas é a de que realmente a
sentença simplesmente declara a possibilidade do usucapião e cabe ao
réu requerer o mesmo em uma nova ação observando todos os preceitos

278
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

legais. O fundamento desse modo de resolver a questão é infringência do


devido processo legal. Outra forma de interpretação é entender que se
foi alegado usucapião como defesa, devem ser chamados para participar
da ação todos os interessados que eventualmente seriam citados caso o
usucapião fosse proposto a parte. Essa opção tende a atrasar mais a ma-
nifestação jurisdicional sorbre a controvérsia, em prejuízo da economia
processual.

Requisitos do Usucapião

2.2.1.1. A área ocupada deve ser privada

Apenas as áreas de propriedade privada podem ser objeto de usucapião.


O artigo 183, § 3º da Constituição Federal dispõe que os imóveis públicos
não serão adquiridos por usucapião. Caso uma área pública seja ocupada
outros instrumentos de regularização fundiária e segurança da posse de-
vem ser utilizados, como a concessão especial de uso para fins de moradia.
2.2.1.2. Não ter a propriedade de nenhum imóvel
Um dos requisitos do usucapião coletivo é a não existência de outro
imóvel sob o nome do requerente. Esse requisito traduz a ideia central do
usucapião especial urbano: efetivar o direito à moradia. Caso o requerente
da ação seja dono de um ou mais imóveis, não necessitará de usucapir
uma área para nela residir, pois poderá residir em outro local sobre o qual
já exerça a propriedade. Sob essa mesma ótica, uma pessoa não pode ser
beneficiada mais de uma vez pelo usucapião especial urbano.
2.2.1.3 Posse contínua, direta, mansa, pacífica, com ânimo de dono e
incontestada pelo período de cinco anos, devendo haver, construída no
local uma residência
Não é exigido justo título e boa-fé no caso da usucapião especial
urbana, como é feito na usucapião ordinária. O título de domínio será
conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do
estado civil. O que se exige é a posse contínua, direta, mansa, pacífica,

279
com ânimo de dono e incontestada pelo período de cinco anos, devendo
haver, construída no local uma residência, ainda que muito simples.
É necessária a presença de uma moradia no local objeto da ação, pois
o usucapião especial urbano visa garantir o direito à moradia e exige que
o requerente tenha estabelecido residência na área há no mínimo cinco
anos. A posse nesse caso é direta, afinal, se o interessado habita no local,
necessariamente exerce a posse direta. O herdeiro legítimo continua, de
pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel
por ocasião da abertura da sucessão (§ 3, artigo 9º do Estatuto da Cidade).
Preenchidos todos os requisitos, inclusive o prazo mínimo, a contestação
da posse pelo proprietário legal não anula o preenchimento dos mesmos.

2.2.1.4 Ocupação de áreas urbanas com mais


de duzentos e cinquenta metros quadrados

Quando a ação é proposta coletivamente, deve-se observar o art. 10


do Estatuto de Cidade que afirma:

Art.10: as áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta


metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para
sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição,
onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada
possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente,
desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel
urbano ou rural.

Ao mencionar a lei a impossibilidade de identificação dos limites


entre os terrenos, tal impossibilidade deve ser interpretada no sentido de
facilitar a usucapião em locais de muita densidade populacional, o que
condiz com a realidade de muitas cidades brasileiras. O reconhecimento
da propriedade no usucapião coletivo depende da existência de composse.
Os efeitos jurídicos para a posse exercida por uma única pessoa são os
mesmos para os casos de posse coletiva (BRASIL, 2002).
A composse se configura nas áreas urbanas caracterizadas como fave-
las, onde existem espaços físicos ocupados por meio de regras informais

280
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de uso do solo e nos quais a própria comunidade convencione sobre os


locais de passagem, as escolas, as igrejas, as vielas, locais de lavagem de
roupa, depósito de lixo, etc. (BRASIL, 2002).
No caso do usucapião individual o imóvel objeto da ação não deve
ter mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, enquanto no caso
coletivo a área ocupada pode ser maior que duzentos e cinquenta metros
quadrados, afinal, a soma das posses individuais pode superar esse limite
imposto ao usucapião individual. Ocorre que, a fração ideal determinada
pelo condomínio não pode corresponder a área maior do que a anterior-
mente citada, já que a ação em questão visa atender a pessoas de baixa
renda (LOUREIRO, 2006).

2.2.1.5. O imóvel deve ser utilizado para a moradia

A previsão do usucapião especial diz respeito à efetivação do direito


social à moradia e por essa razão o imóvel objeto de usucapião especial
deve ser utilizado para a moradia do possuidor ou de sua família.
Ocorre que na Vila Acaba Mundo existem vários imóveis que são uti-
lizados para fins comerciais. Os pontos comerciais que ficam junto das
residências serão objeto da ação junto com as mesmas, porém, aqueles
que são independentes não podem ser objeto do usucapião especial urbano
para fins de moradia, mesmo sendo o estabelecimento comercial útil para
a vida comunitária (FERRAZ, 2006).

2.2.1.6 Os autores envolvidos devem ser pessoas de baixa renda

O universo de pessoas beneficiadas com a possibilidade de ingresso


de ação de usucapião coletivo deve ser composto por pessoas de baixa
renda. Respectivo termo é vago e cabe ao juiz interpretar, caso a caso, se
aquele que pediu a aquisição da propriedade não tem condições de por
negócio oneroso, adquirir imóvel para a sua moradia (LOUREIRO, 2006).

281
2.2.1.7. Legitimidade Ativa

O artigo 12 do Estatuto da Cidade determina quem são as partes legí-


timas para propositura de ação de usucapião especial urbano. São elas: o
possuidor isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente;
os possuidores, em estado de composse; e a associação de moradores da
comunidade, regularmente constituída, com personalidade jurídica, desde
que explicitamente autorizada pelos representados.
No caso da ação proposta na modalidade coletiva, a legitimação tam-
bém deve ser coletiva. Sendo assim, a possibilidade de propositura da ação
pela associação de moradores possibilita maior interação e participação
da comunidade (FERRAZ, 2006), além de facilitar o processo de mobili-
zação social, afinal as associações possuem legitimidade nos locais que
representam. A substituição processual gerada pela propositura da ação
através da Associação de Moradores (legitimação extraoriginária) requer
autorização dos representados pois conforme o at. 6º do CPC ninguém
poderá pleitear em nome próprio direito alheio, salvo quando autorizado
em lei (SCHAFER, 2006).
Essa foi a modalidade escolhida para propositura da ação de usucapião
coletivo a respeito da Vila Acaba Mundo. Desse modo, a Associação dos
Moradores da Vila Acaba Mundo foi orientada a modificar o seu estatuto
para que pudesse ser legitimada enquanto parte autora no usucapião co-
letivo. Para tanto, foram feitas reuniões na comunidade para esclarecer
a importância da representação da Associação e para orientar o proce-
dimento adequado paraa modificação do estatuto. O Programa Pólos
acompanhou as assembleias e todo o trâmite realizado pela Associação.
O Ministério Público deve intervir, como fiscal da lei, nas ações de
usucapião especial urbano, conforme §1º do artigo 12 do Estatuto da
Cidade. A não intervenção prevista em respectivo preceito legal implica
em nulidade. O Ministério Público deve verificar se todas as condições
da ação estão sendo cumpridas, sem contestar o direito do requerente.

282
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

2.3. A concessão de Uso Especial

Para além dos lotes privados, parte das moradias da Vila Acaba Mundo
esta inserida em área pública, que no projeto seria destinada a contrução
de vias. Para as famílias que moram nesses espaços, e não são poucas, há
uma solução: a concessão de uso especial para fins de moradia.
É possível questionar: e porque não a usucapião para todos? A Cons-
tituição proíbe, no §3º do artigo 183, a utilização da usucapião para a
regularização de terrenos públicos. No entanto, estabelece no §1º desse
mesmo artigo que a concessão de uso pode ser concedida, desde que
atenda aos mesmos requisitos. Transcrito abaixo:
§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao
homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
A concessão de uso é uma faculdade do poder público, o qual deve
buscar áreas nas quais ela possa ser aplicada. Contudo, o que tem visto
é um verdadeiro descaso da administração pública que, ao contrário do
que propõe o estatuto da cidade e a constituição federal, têm retirado as
famílias de suas moradias para abrir avenidas, construir parques e tantas
desculpas mais, mesmo aquelas consolidadas há mais de 50 anos.
Diferentemente da usucapião, a concessão de uso especial para fins
de moradia não concede ao ocupante a propriedade do bem, que perma-
nece em poder da administração pública. O que se adquire é o título de
concessão de uso, isto é, a concessão do direito de usar o bem. Com ela,
portanto, têm-se assegurada a segurança da posse, tão demandada na
Vila Acaba Mundo que, como já destacado, tem na falta dela um de seus
maiores problemas, já que se trata de área muito valorizada.
Para obtê-la, o cidadão deve fazer o pedido da concessão diretamente
à administração pública, por meio de procedimento administrativo. Caso
não seja aprovado, resta o direito recorrer ao judiciário. Após longo pro-
cesso, que inclui recursos de ambas as partes (administração pública e
morador requerente), o juiz é que irá decidir se aquela família terá o direito
à concessão. E, se aprovado, não cabe mais à administração qualquer

283
discricionariedade: ela é obrigada a dar o título de uso.
A concessão de uso é um direito real e, como tal, tem eficácia erga
omnes. Isto é, é oponível a terceiros e não somente ao concedente, que
tem como título um contrato entre o Poder Público e o ocupante da área
pública. Ressalta- se que, obtida ou pelo meio administrativo ou pela
sentença do juiz, a concessão deverá ser levada no Cartório de Registro
de Imóveis para que tenha eficácia.
Os requisitos da Concessão de uso são os mesmos da Usucapião: ocu-
pação ininterrupta há mais de 5 anos, terreno de até 250m², fins de moradia
e não possuir outro imóvel. Da mesma forma, se aplica perfeitamente à
situação dos ocupantes da Vila Acaba Mundo, que ali estão, incontesta-
velmente, há mais de 50 anos. Essa regulamentação é feita na Medida
Provisória 2220, de 2001, cujo primeiro parágrafo vem transcrito abaixo:

Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por


cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e
cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área
urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o
direito à concessão de uso especial para fins de moradia em re-
lação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou
concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.

O direito à concessão só pode ser conferido uma única vez a cada be-
neficiário, e é gratuito. Cumpre ressaltar que essa gratuidade diz respeito
ao direito de usar o terreno, e não a obras de urbanização e melhoras
que completam a regularização fundiária. Segundo Betânia de Morais
Alfonsin (ALFONSIN, 2002), “é interessante que os ocupantes contribuam
financeiramente, junto à administração pública, para essas melhorias,
pois “a regularização fundiária é um processo que só logra êxito quando
conta com ativa participação da comunidade beneficiária do projeto.”
Nesse sentido, destaca-se a concessão de uso como uma das etapas da
regularização fundiária, que só se completa com a urbanização da área e
regularização, por meio dos instrumentos adequados, das áreas privadas
da comunidade do Acaba Mundo.

284
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Assim como na modalidade da usucapião especial, a concessão de uso


tem a modalidade coletiva, aplicada quando não for possível identificar os
terrenos de cada possuidor, como é o caso da comunidade em questão.
As casas são muito próximas, sendo que grande parte delas compartilha
do mesmo corredor e porta de entrada, o que não permite estabelecer os
limites de cada terreno e faz da modalidade coletiva da concessão a mais
ideal. Cumpre transcrever o artigo:

Art. 2o Nos imóveis de que trata o art. 1o, com mais de duzentos
e cinqüenta metros quadrados, que, até 30 de junho de 2001,
estavam ocupados por população de baixa renda para sua mo-
radia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde
não for possível identificar os terrenos ocupados por possuidor,
a concessão de uso especial para fins de moradia será conferida
de forma coletiva, desde que os possuidores não sejam proprie-
tários ou concessionários, a qualquer título, de outro imóvel
urbano ou rural.

Destaca-se que, nessa modalidade, o possuidor pode acrescentar ao


tempo de sua posse a posse do seu antecessor, sendo as duas contínuas,
o que facilita bem o processo. A partir da concessão também serão for-
mados condomínios, no entanto, ao invés de serem co-proprietários, os
moradores serão co-usuários. Dentro dos condomínios, cada possuidor
terá igual fração ideal de terreno, independentemente do tamanho do
terreno de que cada um ocupe, a não que eles estabeleçam acordo al-
ternativo entre si. Mesmo neste caso, cada lote atribuído não poderá ter
fração superior a 250m².
Mesmo que o poder público queira destinar a área do Acaba mundo
para obras públicas, ele tem a faculdade de atribuir a concessão de uso
para outro imóvel, de preferência próximo à comunidade em questão. Isso
acontece, porque a medida provisória 2220 traz uma grande inovação:

Art. 5o É facultado ao Poder Público assegurar o exercício do direito


de que tratam os arts. 1o e 2o em outro local na hipótese de ocupação
de imóvel:

285
I - de uso comum do povo;
II - destinado a projeto de urbanização;
III - de interesse da defesa nacional, da preservação
ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais;
IV - reservado à construção de represas e obras con-
gêneres; ou
V - situado em via de comunicação.

Por último, cumpre trazer uma problemática ainda não levantada,


que é a presença de estabelecimentos comercias, os quais não podem
ser contemplados nem pela usucapião, nem pela concessão de uso, que
exigem o fim moradia. Contudo, a medida provisória traz uma interessante
solução para estes casos: Autorização de uso. Esse instrumento traz os
mesmos requisitos de tempo de ocupação, dimensão de terreno e área
urbana, acrescentada a finalidade comercial. E ainda, traz os mesmos
benefícios obtidos pela concessão de uso: gratuidade, posse do antecessor
e exercício do direito em outro local.
Conclui-se como totalmente possível, senão obrigatória, a regulariza-
ção da Vila Acaba Mundo, facilmente executada a partir dos instrumentos
supramencionados.

2.4 A Demarcação Urbanística

Há, ainda, outros instrumentos muito interessantes de regularização


fundiária que se aplicam à Vila Acaba Mundo, que são a demarcação ur-
banística e a legitimação de posse, um complementar ao outro.
A demarcação urbanística, inserida na regularização fundiária de inte-
resse social, é um procedimento administrativo no qual a administração
pública delimita área ocupada para fins habitacionais, sejam eles públicos
ou privados, definindo seus limites, área, localização e confrontantes,
com o objetivo de identificar quais são os ocupantes e qual a natureza e
o tempo de cada posse.
A demarcação só pode ser feita pelo poder público, isto é, pela União,
pelos Estados, pelo município e pelo distrito federal, assim como suas
secretarias. Em terras públicas, cada ente poderá fazer a demarcação de

286
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

terras dentro de seu próprio domínio. No caso da comunidade em questão,


acredita-se que o ente mais adequado a realizar a regularização fundiária é
a Prefeitura de Belo Horizonte, mais especificamente a Companhia Urbani-
zadora – URBEL. No entanto, esta tem-se negado a realizar a demarcação
urbanística na Vila Acaba Mundo.
A demarcação urbanística deve vir acompanhada da legitimação de
posse, instrumento que, também executado pelo poder público, confere
ao ocupante o reconhecimento da posse do imóvel objeto de demarcação
urbanística, constituindo, assim, fator determinante de segurança da posse.
A legitimação de posse somente poderá ser concedida a moradores
cadastrados pelo poder público que não sejam concessionários, foreiros
ou proprietários de outro imóvel, urbano ou rural; ocupem lote com área
inferior a 250m² e não tenham sido beneficiados anteriormente por outra
legitimação de posse. Não sendo possível identificar os terrenos ocupa-
dos por cada família, aplica-se a legitimação de posse de forma coletiva,
estabelecendo-se uma fração ideal não superior a essa dimensão.
É muito importante destacar que a demarcação urbanística e a legiti-
mação de posse não implicam a alteração de domínio dos imóveis sobre
os quais incidirem. Este somente irá se processar com a conversão da
legitimação de posse em propriedade após 5 anos de seu registro, se-
guindo a mesma lógica da usucapião. Explico: após 5 anos do registro de
legitimação de posse, o interessado tem o direito de requerer ao oficial de
registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade,
sem a necessidade de qualquer procedimento administrativo ou judicial.
Para tanto, dita o §1º do artigo 60 da Lei 11.977/ 2009, mais co-
nhecida como Programa Minha Casa Minha Vida, que o adquirente
deverá apresentar:

I – certidões do cartório distribuidor demonstrando a inexistência


de ações em andamento que versem sobre a posse ou a proprie-
dade do imóvel;
II – declaração de que não possui outro imóvel urbano ou rural;
III – declaração de que o imóvel é utilizado para sua moradia ou
de sua família; e
IV – declaração de que não teve reconhecido anteriormente o
direito à usucapião de imóveis em áreas urbanas.

287
Ressalta-se que os instrumentos analisados só se aplicam a ocupa-
ções já consolidadas e nas quais não haja oposição dos proprietários dos
imóveis. Dessa forma, ela não pode ser feita na totalidade da Vila Acaba
Mundo, pois parte dela é objeto de ação de reintegração de posse. No
entanto, há ainda uma grande área cujos lotes não foram reivindicados
pelos proprietários oficiais, estão consolidadas e ocupadas por população
de baixa renda, o que torna a demarcação urbanística instrumento ade-
quado para a regularização de grande parte da comunidade.
Em resumo, a demarcação urbanística e a legitimação de posse, em
sucessão, se mostram muito interessantes para a Vila Acaba Mundo,
pois, além de grande parte desta atender a todos os requisitos, geram
a segurança da posse daquelas famílias e implicam, posteriormente, a
propriedade por meio da usucapião.

3. CONCLUSÃO:

Diante do exposto neste trabalho, é perceptível que a Regularização


Fundiária da Vila Acaba Mundo não só é possível, como pode ser efetivada
por diferentes instrumentos jurídicos. O que se nota é a falta de interesse
político do Poder Público, sobretudo municipal, para efetivação do direito
à propriedade em favor dos moradores que vivem ali há anos. Isso porque,
como já foi dito, a Vila localiza-se em uma região extremamente rica da
capital mineira, entre os bairros nobres do Sion e Mangabeiras.
Além disso, há um projeto de uma grande construtora, que pretende a
construção de um luxuoso empreendimento imobiliário atrás da Vila. No-
tadamente é perceptível que o capital imobiliário é a razão desse descaso
do poder público. Todavia, a Vila é uma comunidade mobilizada nessa
luta em prol do direito à moradia e já conquistou vitórias ao longo de sua
luta, como o Decreto de desapropriação dos 19 lotes. A mobilização social
e a cônscia de cada morador individualmente do seu papel na luta pelo
reconhecimento da legitimidade da posse que cada um exerce sobre sua
moradia é fundamental na luta do Acaba Mundo pela sobrevivência entre
os arranha-céus do Sion e as mansões do Mangabeiras.

288
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

BRASIL, Constituição da República Federal/1988.


BRASIL, Estatuto da Cidade. Lei 10.257/2001.
BRASIL, Lei Federal 11.977/2009.
BRASIL, Medida Provisória 2220/2001.
BRASIL, Ministério das Cidades. Regularização Fundiária Urbana: como aplicar a Lei
Federal nº 11.977/2009 - Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de habitação
e Secretaria Nacional de Programas Urbanos. Brasília, 2010.
ALFONSIN, Betânia de Morais. Concessão de uso especial para fins de moradia:
garantindo a função social da propriedade pública. Livro: OSÓRIO, Letícia Marques.
Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as cidades brasi-
leiras. Porto Alegre/2002. Editor Sergio Antonio Fabris.
FERNANDES, Edésio (org.) Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da
Cidade: Diretrizes, Instrumentos e Processos de Gestão. Belo Horizonte: Editora
Fórum, 2006, pp. 83 a 110.
FERRAZ, Sérgio. Usucapião Especial In.: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio
(org.) Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001). São Paulo:
Malheiros, 2006.
LOUREIRO, Francisco. Usucapião Coletivo e Habitação Popular In.: ALFONSIN, Be-
tânia; FERNANDE, Edésio (org.) Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto
da Cidade: Diretrizes, Instrumentos e Processos de Gestão. Belo Horizonte: Editora
Fórum, 2006, pp. 83 a 110.
OSÓRIO, Letícia Marques. Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspec-
tivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre. Editor Sergio Antonio Fabris, 2002.
SCHAFER, Gilberto. Usucapião Especial Urbana: da Constituição ao Estatuto da
Cidade. In: ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (org.) Direito à Moradia e
Segurança da Posse no Estatuto da Cidade: Diretrizes, Instrumentos e Processos
de Gestão. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006, pp. 111-130.

289
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A Concessão de uso especial para fins


de moradia e as intervenções urbanas
em favelas de Belo Horizonte

Cleide Aparecida Nepomuceno1

INTRODUÇÃO

A precariedade das moradias urbanas nas grandes metrópoles


brasileiras é um problema visível, mas esse deficit qualitativo pode ser
melhorado por meio de políticas públicas de regularização fundiária, ins-
trumentalizadas, em seu aspecto jurídico, dentre outros, pela concessão de
uso especial para fins de moradia –CUEM- prevista na Medida Provisória
2220/20012, quando a área for pública. A Defensoria Pública de Minas
Gerais tem observado que as intervenções urbanas em Vilas e Favelas
pelo Município de Belo Horizonte têm acarretado, para uma minoria de
moradores, insegurança em relação à posse em razão do pagamento de
indenizações pelo desapossamento que englobam apenas as benfeitorias3,
justamente por falta de reconhecimento, por parte do Município, da carac-
terização da CUEM, importando em violação do direito à moradia digna.

REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA E
áREAS OBJETO DE REGULARIZAÇÃO

A regularização fundiária é mecanismo de melhoria habitacional para


assentamentos com déficit qualitativo, ou seja, para aglomerações urbanas

1 Defensora Pública em Minas Gerais, titular da Defensoria Especializada em Direitos Humanos, Coletivos e So-
cioambientais, pós-graduada em direito urbanístico pela Puc – Minas . cleide.nepomuceno@defensoria.mg.gov.br
2 BRASIL. Medida provisória nº 2220, de 4 de setembro de2001. Diário Oficial (da) União, Poder Executivo,
Brasília, DF, 5 de set.2001 (Edição extra). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/2220.
htm Acesso em 15 de julho de 2013.
3 Nesse sentido consultar: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&app=urbe
l&tax=8178&pg=5580&taxp=0&

291
caracterizadas pela carência de infraestrutura como pavimentação de
ruas, drenagem pluvial, esgotamento sanitário, legalização dos serviços
públicos de água e luz, direito a um endereço e também a instrumentos
que proporcionem segurança da posse por meio de sua titulação. Essa
política pública abrange o aspecto jurídico compreendido por mecanismos
que transformem a posse em domínio ou que importem em algum título
que a legitime, e o aspecto urbano de transformação do espaço ocupado,
conforme conceito previsto nos artigos 46 e 47, VII da Lei 11.977/2009.
São alvo dessas políticas públicas as Vilas ou Favelas, que além dos
aspectos acima também possuem em comum o forte adensamento e
ausência, em regra, de planejamento prévio em sua formação. Para Fer-
nandes (1998, p.133) entende-se por Favelas:

Favelas são assentamentos humanos que resultam de invasão


de áreas públicas e de particulares; o que define juridicamente as
favelas de outras formas de ocupação precária do solo comuns
no Brasil, tais como loteamentos “clandestinos” e “ irregulares”,
é o fato de que os favelados não têm qualquer forma de título de
posse ou propriedade:4.

A doutrina distingue as Vila ou Favelas dos loteamentos clandestinos


ou irregulares, que também podem ser alvo de regularização fundiária.
Segundo Osório (2006)5, entende-se por loteamento clandestino lotes
que nunca foram apresentados às autoridades legais e que só poderão se
regularizar através de normas especiais, e, lotes irregulares aqueles que
foram vendidos faltando uma condição legal.
A Lei Federal 6.766/766 disciplina o parcelamento do solo em duas
modalidades: loteamento e desmembramento. O loteamento significa a
divisão de uma gleba em lotes destinados à edificação e implica a abertura

4 FERNANDES, Edésio. Direito do urbanismo: entre a cidade “legal” e a cidade “ilegal”. In: FERNANDES, Edésio
(Org.). Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 133.
5 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à Moradia Adequada na América Latina. In: ALFONSIN, Betânia et al
(Org.). Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Editora Fórum,
2006. p. 17-39.

6 BRASIL. Lei 6766, de 19 de dezembro de 1979 . Diário Oficial (da) União, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 de
dez.1979. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6766.htm .Acesso em 15 de julho de 2013.

292
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de vias de circulação, logradouros públicos ou prolongamento e modifica-


ção e ampliação das vias existentes (§1º, artigo 2º). O desmembramento
se difere do loteamento apenas pelo aproveitamento do sistema viário
existente, desde que não implique em abertura de novas vias.
O loteador é responsável pela implantação da infraestrutura, aprovação
do projeto de loteamento ou desmembramento e seu registro no Cartório
de Registro do Imóvel e posteriormente, estará autorizado a comercia-
lizar os lotes (artigo 37). Entende-se por infraestrutura soluções para o
escoamento de águas pluviais, redes de esgoto, abastecimento de água,
energia elétrica publica e domiciliar e vias de circulação. Se porventura
o loteador não cumprir com todos os requisitos do loteamento, inclusive
seu registro, e vender os lotes, o Município (artigo 40) poderá regularizar
o loteamento e tentar se ressarcir contra o empreendedor dos prejuízos.
O Superior Tribunal de Justiça tem entendido nesse caso que há um de-
ver da municipalidade, pois ao Município cabe zelar pelo ordenamento
territorial urbano7.
A literatura distingue as Favelas dos loteamentos clandestinos ou
irregulares, tendo em vista o surgimento e a situação jurídica deles, mas,
a julgar pelas características físicas de precariedade e carência de infra-
estrutura urbana, poder-se-ia considerar que todos, em muitos casos, são
áreas favelizadas latu sensu, e que algumas dessas Favelas se originaram
de loteamentos clandestinos ou irregulares onde pessoas pobres e traba-
lhadoras pagaram pela terra sem registro, infraestrutura e ignorada pelo
Poder Público e outras, de ocupação espontânea.
Registra-se também que para efeito do direito público subjetivo à regu-
larização fundiária o artigo 46 da Lei 11.977 de 20098 e o artigo 2º, inciso
Ix do estatuto da cidade não fazem distinção entre aqueles que pagaram

7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 131.697/SP, 2ªTurma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j.
07.04.2005, DJ de13.06.2005,p.158; REsp n. 124.714-SP, relator Ministro Peçanha Martins, DJ de 25.9.2000;
REsp n. 259.982-SP, relator Ministro Franciulli Netto, DJ de 27/9/2004; REsp 292.846/SP, Rel. Min. Humberto
Gomesde Barros, DJ 15.04.2002
8 BRASIL. Lei 11977, de 07 de julho de 2009. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 8 de jul.
de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm. Acesso
em 15de julho de2013.

293
ou não pela terra, cuja posse está consolidada no tempo. Nos dois casos,
a melhoria da situação habitacional deve ser conteúdo de políticas pú-
blicas em prol desta parcela da sociedade em nome do direito à cidade
sustentáveis e a seus benefícios9.
A Fundação João Pinheiro10 utiliza-se de outro termo para se referir às
habitações carentes em sua pesquisa periódica sobre a situação habitacio-
nal brasileira, baseada nas informações da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios – PNAD, elaborada e divulgada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE. Ela adota a expressão aglomerado subnor-
mal quando se refere às moradias inadequadas, valendo-se da definição
do IBGE segundo a qual:

Aglomerado Subnormal: segundo definição do IBGE, é o conjunto


constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais (barracos,
casas etc.) ocupando ou tendo ocupado, até período recente,
terreno de propriedade alheia (pública ou particular), dispostas,
em geral, de forma desordenada e
densa, e carentes, em sua maioria, de serviços públicos essen-
ciais 11(FJP, 2007).

A Lei 11.977/2009 utiliza o termo assentamento irregular ou in-


formal referindo-se aos locais que ainda não foram alvos de regula-
rização fundiária.
O termo favela é carregado de uma estigmatização, que associa o
morador ao bandido ou à figura do invasor, o que além de generalizante
não compreende o processo de formação histórico das Favelas, fruto da
ausência de políticas públicas para que o trabalhador pobre tivesse acesso
a uma moradia previamente infraestruturada.
A expressão adotada pelo IBGE sugere uma dicotomia em relação
à normalidade que seria a prévia titulação das moradias, mediante seu
registro no cartório de registro de imóvel, e precedida do prévio parcela-

9 NEPOMUCENO, Cleide. As favelas e o direito à cidade. Revista ADEP. Belo Horizonte, Ano I, nº 2, p. 19-
20- mai de 2012
10 Fundação João Pinheiro Centro de Estudos Políticos e Sociais. Déficit Habitacional no Brasil. Belo
Horizonte: 2007 Disponível em www.fjp.gov.br Acesso em 5 de maio de 2013
11 Fundação João Pinheiro Centro de Estudos Políticos e Sociais. Déficit Habitacional no Brasil. Belo
Horizonte: 2007

294
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mento do solo, conforme Lei 6.766/79, mas também não é das melhores.
O surgimento espontâneo das unidades habitacionais informais ou irregu-
lares pode ser considerado modo plenamente normal dentro do contexto
socioeconômico em que elas surgiram.
Apesar da mencionada visão estigmatiszante da favela, destaca-se a
existência de um movimento de valorização da favela, seja nas músicas
ou pela mídia independente12, razão pela qual adotar-se-á o termo favela
ou assentamentos irregulares ao longo do texto como expressões sinôni-
mas, ressaltando o enfoque no surgimento de Favelas em áreas públicas,
de forma espontânea, posto que, em regra, não foram precedidas de
um loteamento, que, no caso, além de clandestino ou irregular, seriam,
tratando-se de área pública, completamente ilegal.

A concessão especial de uso para fins de moradia – CUEM

A situação jurídica dos assentamentos irregulares varia de acordo com


a natureza jurídica da terra onde está situado, se pública ou privada, se a
posse é conflituosa ou pacífica, pelo tempo da ocupação e origem da posse,
ou seja, se foi precedida de um parcelamento clandestino ou irregular ou
se originou de ocupação espontânea e sem origem em negócio jurídico
de compra e venda entre o ocupante e o loteador.
É objeto de análise deste ensaio a posse mansa, pacífica e ininterrupta,
em terras públicas municipais há mais de 5 anos completos, antes de 30
de junho de 2001, que se enquadram nos requisitos previstos para a ca-
racterização da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia, CUEM,
contidos na Medida Provisória 2220/2001.
Segundo a interpretação do mencionado diploma legal, a concessão
de uso especial para fins de moradia é um direito público subjetivo
do possuidor do bem13, que deve ser reconhecido, uma vez presentes

12 Dos quais se destacam em Belo Horizonte: ONG Favela é isso ái. Disponível em: <http:// www.favelaeis-
soai.com.br>. Acesso em: 5 de maio de 2013.
13 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Atualização de Eurico de Andrade Azevedo, Délcio
Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. 35 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 536.

295
os requisitos indicados no art. 1° da Medida Provisória n° 2.220, de 4 de
setembro de 2001:
A vigência da Medida Provisória foi prorrogada indefinidamente
pelo art. 2° da Emenda Constitucional n° 32, de 11 de setembro
de 2001, segundo a qual: as medidas provisórias editadas em data
anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida
provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva
do Congresso Nacional. (Constituição Federal de 1988).
Se por um lado é direito do ocupante à declaração da CUEM, por outro
é dever do poder público a outorga do título de concessão, que tem
natureza de uma atividade vinculada da Administração Pública, “para
o fim de reconhecer ao ocupante o direito subjetivo à concessão para
moradia.” (CARVALHO FILHO, 2010, p.1285) 14
A outorga do título exige o prévio requerimento administrativo e no
caso de indeferimento é que caberia a manifestação do Poder Judiciário,
mediante a devida provocação, cuja sentença teria a natureza declaratória
(art. 6° da Medida Provisória), entretanto, pelo princípio do amplo acesso
à Justiça (artigo 5º, xxV da CR) a Defensoria Pública tem argüido em sede
de defesa de ações reivindicatórias ou possessórias este direito em favor
dos moradores de áreas públicas que se enquadram no caso, sem prévio
requerimento administrativo.
São duas as espécies de concessão de uso especial para fins de mora-
dia, a concessão individual e coletiva, tal como previsto para a usucapião,
cujos requisitos estão previstos nos artigos 1º e 2º, abaixo transcritos:

Art. 1º Aquele que, até 30 de junho de 2001, possui como seu, por
cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e
cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área
urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem
o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em
relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário
ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou
rural. (BRASIL, 2004)

14 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23 ed. revista, ampliada e
atualizada até 31/12/2009. 2a tiragem. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010. p. 1285.

296
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Art. 2º Nos imóveis de que trata o art. 1º, com mais de duzentos
e cinqüenta metros quadrados, que, até 30 de junho de 2001,
estavam ocupados por população de baixa renda para sua mo-
radia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde
não for possível identificar os terrenos ocupados por possuidor, a
concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de
forma coletiva, desde que os possuidores não sejam proprietários
ou concessionários, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou
rural. (BRASIL, 2004)

A concessão de uso especial para o fim de moradia, assim como a


usucapião, tem fundamento legal no §3º,do artigo 183 da Constituição
Federal e seu alicerce no princípio da função social da moradia, uma
vez que esse instrumento privilegia o uso em detrimento da propriedade
meramente formal ou registraria e proporciona a segurança da posse por
meio de sua titulação.
Apesar do §2º do artigo 183 da Constituição Federal afirmar que os bens
públicos não são suscetíveis de usucapião, a interpretação da Constitui-
ção Federal permite aferir a constitucionalidade da Medida Provisória em
questão como uma forma excepcional de promover o direito à moradia
em favor de ocupantes de terras públicas dando significado ao valor da
dignidade humana e à função social da propriedade. Vanêsca Buzelato
Prestes (2006, p. 207)15 também interpreta o artigo 183 da mesma forma:

O caput do artigo não se refere à propriedade pública ou pri-


vada. Dentro do contexto em que se situa –política urbana em
cumprimento às funções sociais da cidade – e na hipótese de
inexistência do §3º, o art.183, em tese, pode ser aplicado tanto
a imóveis privados quanto aos públicos. Para os possuidores de
imóveis privados que fizessem jus ao direito o título a ser con-
cedido seria de domínio, e para aqueles que estivessem em área
pública a concessão de uso, a teor do que dispõe o §1º do mesmo
artigo. A existência do §3º neste artigo reforça o entendimento de
que nos imóveis públicos não há o direito ao título de domínio.
Porém, a sua inserção na constituição Federal não afasta a possi-
bilidade da concessão de uso estabelecida pelo caput e pelo §1º.
Isto porque o caput não faz a diferença entre imóveis públicos e

15 PRESTES, Vanêsca Buzelato. A concessão Especial para fins de Moradia na Constituição Federal e no Estatuto
da Cidade – da Constitucionalidade da Medida Provisória nº 2220 de 04 de Setembro de 2001. In: Direito à
Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade, Betânia Alfonsin e Edésio Ferandes (Org). Editora
Fórum, Belo Horizonte: 2006. p. 207.

297
privados e a explicitação contida no parágrafo somente reforça
o entendimento de que o comando do artigo atinge a ambas as
categorias de propriedade.

A concessão de uso especial para fins de moradia foi vetada no texto


do Estatuto da Cidade, mas prevista posteriormente na Medida Provisória,
porém, limitada no tempo, pois o texto prevê o reconhecimento do direito
público subjetivo apenas àquelas ocupações cujo aniversario de 5 anos
ou mais estaria completo até 30 de junho de 2001.
O Código Civil também faz referência à concessão de uso especial para
fins de moradia como direito real (artigo 1225, inciso xI, do Código Civil,
com redação atribuída pela Lei11481/2007), garantia que pode ser esten-
dida para todos os fins de direito, como garantia em hipoteca, sucessão.
Apesar da expressa previsão legal o reconhecimento deste direito tem
encontrado obstáculos junto ao Município de Belo Horizonte.

A CUEM NO MUNICÍPIO DE BELO hORIZONTE

O Município de Belo Horizonte tem promovido intervenções urbanas


em Vilas e Favelas de Belo Horizonte, cuja política ou programa é co-
nhecido por Vila Viva. Segundo a sociedade de economia mista, URBEL,
responsável pela execução da política, “O Vila Viva engloba obras de
saneamento, remoção de famílias, construção de unidades habitacionais,
erradicação de áreas de risco, reestruturação do sistema viário, urbani-
zação de becos, implantação de parques e equipamentos para a prática
de esportes e lazer.16”
A despeito das melhorias proporcionadas à parte da sociedade e até
mesmo para alguns moradores do local, dar-se-á destaque, neste artigo,
a um aspecto do programa que tem provocado insatisfação nos munícipes
que procuraram os serviços da Defensoria Pública: a indenização das ben-

16 BELO HORIZONTE (Prefeitura). Urbel Vila Rica: Integração das Vilas à cidade. Disponível em: <http://
portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&app=urbel&tax=8178&pg=5580&taxp=0&. >
Acesso em: 10 de jun de 2013.

298
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

feitorias com exclusão do pagamento da posse, ou seja, do lote onde elas


estão edificadas. Essas pessoas, cujas moradias tiveram de ser removidas
em função de área de risco ou em função da realização de obras públicas
no local para reestruturação do sistema viário, não foram reassentadas na
própria Vila nas unidades habitacionais verticais edificadas, seja porque
não foram selecionadas ou porque não fizeram essa opção.
Esses moradores receberam do Município apenas uma indenização
pelas benfeitorias o que significa para a Defensoria Pública o não reconhe-
cimento do direito deles à regularização fundiária que importa no direito
à segurança da posse na própria Vila, ponto central do direito à moradia,
conforme sustenta Letícia Marques Osório (2006, p.35) :

A segurança da posse é um ponto central do direito à moradia e


à terra pois sem ela – independentemente se formal ou informal
– o direito à moradia vai estar em permanente ameaça, e o risco
de despejo ou deslocamento forçado será sempre iminente. A
segurança da posse, por se tratar de elemento central do direito
humano à moradia, deve ser assegurada a todos, com igualdade
e sem discriminação, abrangendo todos os indivíduos e famílias
independentemente de idade, status econômico, grupo ou outra
afiliação e status.17

Apesar de o programa Vila Viva prever a disponibilidade de unidades


habitacionais aos moradores desapossados ou uma indenização das ben-
feitorias para aqueles que não recebem os apartamentos, a ausência de
indenização da posse representa uma ameaça para aqueles que não se
enquadram no perfil de apartamento ou não são para tanto selecionados.
A opção dos apartamentos não é adequada para aqueles que possuem
animais de estimação, que vivem de coleta de material reciclável ou que
possuem moradia de uso misto, ou seja, residência e atividade comercial
ou ainda famílias muito numerosas, pois os apartamentos possuem cerca
de 60 metros quadrados com, no máximo, três quartos.
Frisa-se que o pagamento das indenizações não é suficiente para
aquisição de outra unidade habitacional na mesma Vila, já que recebem

17 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à Moradia Adequada na América Latina. In. ALFONSIN, Betânia et al (Org.).
Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 35

299
o valor apenas das benfeitorias e se forem comprar outra terão de pagar
pelas benfeitorias e pela posse de outro terreno ou residência, como pode
ser verificado pelo documentário “Uma avenida em meu quintal” produzido
pelo Programa de Extensão Pólos Reprodutores de Cidadania da UFMG e
dirigido por Frederico Triani e Samira Motta.18.
A Defensoria Pública ajuizou ações individuais em favor daqueles que
receberam o valor da indenização das benfeitorias reclamando o direito
ao reconhecimento da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia,
quando o Município reconhecia a sua titularidade da área desapossada ou,
na ausência de prova documental sobre a titularidade da área, pedindo a
indenização da posse, já que se trata de Favelas consolidadas no tempo
há mais de 20 anos, sem qualquer litígio possessório, mas os processos
ainda não foram julgados19.
A Defensoria Pública defende que os moradores de favelas possuem
direito público subjetivo à regularização fundiária, com fundamento legal
no artigo 46 e Lei 11977/2009 e que este direito importa no reconheci-
mento da posse como expressão do direito humano à moradia. Sustenta
ainda que a posse é direito autônomo e independente da propriedade e
como tal deve ser respeitado.
O pedido de indenização da posse tem fundamento ainda na Instrução
Normativa nº 16 de 2011 do Ministério das Cidades publicada no Diário
Oficial da União no dia 18 de março de 201120, que serve de orientação
para que as obras realizadas com recursos federais, como Pró-Moradia,
PPI – Projetos Priorioritários de Investimentos e Programas de Habitação
de Interesse Social, Urbanização de Assentamentos Precários – UAP,
sigam suas recomendações, dentre elas a que define o conceito de in-

18 Uma avenida em meu quintal. Direção de Frederico Triani e Samira Motta. Produção: Programa de Extensão
Pólos Reprodutores de Cidadania. UFMG. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=rlxKVtikzPw>,
Acesso em: 05 de jun de 2013.
19 Processos: 2283833032011.8130024; 2769039172011.8.130024; 02043244420128130024;
1844478512011.8.130024; 0817939652011.8.130024; 020480931820118130024; 2043296802010.8.13.0024;
1056279602012.8.13.0024; 1844494052011.8.130024; 3295817720118130024; 1844486282011.8.13.0024.
20 BRASIL. Instrução Normativa nº 16 de 2011 do Ministério das Cidades publicada no Diário Oficial da União
no dia 18 de março de 2011. Disponível em : https://www.legisweb.com.br/legislacao/?legislacao=78986
Acesso em11 de junho de 2013.

300
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

denização em seu anexo I, item 5 sobre regularização e urbanização de


assentamentos precários:

(....)
5.1.12 Indenização de Benfeitorias: valor correspondente aos
custos relacionados à indenização de investimentos realizados
pelos beneficiários finais, sem possibilidade de serem aproveita-
dos em função do projeto ou de exigências legais,
5.1.12.1 Considera-se para o cálculo do valor mínimo de indeni-
zação o montante necessário à recomposição do valor real do
imóvel originário, seus bens materiais e imateriais, incluindo a
posse do terreno, o uso do solo, sua exploração econômica e as
potencialidades sociais imanentes ao direito de moradia digna.

Apesar da insistência da Defensoria Pública e do programa Vila Viva


contar com recursos federais21, e das ações ajuizadas, ainda sem julga-
mento definitivo de mérito, o Município insiste em não indenizar a posse,
alegando que não há instrumentos legais para tanto.
A advogada Liana Portilho Mattos22 em artigo titulado Concessão de Uso
Especial para Fins de Moradia: Um Caso Concreto relata que, em 2003, os
moradores de Viadutos ao longo da Via Expressa em Belo Horizonte e do
Viaduto localizado na Avenida Silva Lobo, apoiados pelo Programa Pólos
Reprodutores de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG, a Pastoral
de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte e o Escritório de Integração
do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Puc Minas, formularam
pedido administrativo ao Município de Belo Horizonte pedindo o reconhe-
cimento da CUEM, mas o Município não respondeu. Apesar do silêncio,
a advogada relata que os moradores, com o mencionado apoio técnico,
acabaram por ceder à pressão do Município em abandonar o local, mas
foram encaminhados para um programa de aluguel social. Ela conclui que
o Poder Público não teve respeito a uma situação jurídica consolidada,
no caso, aquisição da concessão de uso especial para fins de moradia.

21 BELO HORIZONTE (Prefeitura). Urbel Vila Rica: Integração das Vilas à cidade. Disponível em: <http://
portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&app=urbel&tax=8178&pg=5580&taxp=0&. >
Acesso em: 10 de jun de 2013.
22 MATTOS, Liana Portilho. Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia: um Caso Concreto. In: ALFONSIN,
Betânia, FERANDES, Edésio (Org) . Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade.
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006.

301
O mesmo desrespeito se repete com o programa Vila Viva, implantado a
partir de 2005.
O pagamento de uma indenização somente pelas benfeitorias é inca-
paz de permitir ao morador desapossado a compra de uma outra unidade
habitacional na própria favela, obrigando-o a residir em outra mais dis-
tante, na maioria das vezes na região metropolitana. Este fato chamou a
atenção dos movimentos populares, conforme manifesto divulgado em
mídia independente.23
O não reconhecimento por parte do Município do direito dos mora-
dores de área pública municipal onde foi erigido uma Favela importa em
um discurso distorcido da nova ordem jurídica urbana, que compreende
a Constituição Federal, o Estatuto das Cidades, a Lei 119777/2009 e a
Medida Provisória 2220/2001, onde um dos pilares é o direito à cidades
sustentáveis nas quais o direito à moradia deve ser assegurado.
A segurança da posse é conteúdo do direito à moradia, conforme
Comentário Geral nº 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Cul-
turais das Nações Unidas24, órgão das Nações Unidas para o controle dos
tratados em matéria de Direitos Humanos. O Comentário analisa o artigo
11 do pacto, o Comitê afirma:

Segurança da posse. A posse toma uma variedade de formas(...).


Independente do tipo de posse, todas as pessoas deveriam pos-
suir um grau de sua segurança, o qual garanta proteção legal
contra despejos forçados,pressões incômodas e outras ameaças.
Estados-partes deveriam, consequentemente, tomar medidas
imediatas com o objetivo de conferir segurança jurídica de posse
sobre pessoas e domicílios em que falta proteção, em consulta
real com pessoas e grupos afetados e também condição mínima
de dignidade humana, pois despejos forçados violam o direito
humano à moradia, à segurança nas relações sociais de trabalho,
de estudo e ainda fragilizam os laços de afeto e solidariedade
entre a vizinhança.

23 PROGRAMA Vila-Rica ou Vila-morta? Belo Horizonte. Set de 2008. Disponível em: <http://brasil.indymedia.
org/media/2008/10//429698.pdf>. Acesso em: 10 de jun de 2013.
24 COMENTÁRIO GERAL Nº4, do Comitê das NaçõesUnidades de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
FERNANDES, Edésio e ALFONSIN, Betânia (Coordenadores) Coletânea de Legislação Urbanística. Belo
Horizonte: Editora Fórum, 2010.

302
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A remoção ou desapropriação de casas em Vilas e Favelas, por qualquer


motivo, como risco de desabamento ou obras públicas, deve ser prece-
dida da justa indenização como em qualquer outro lugar da cidade. Isso
implica no pagamento de indenização prévia à saída do morador e justa,
que compreenda o valor da terra nua (posse) e o valor das edificações
(benfeitorias), cujo montante deve ser suficiente para aquisição de outro
imóvel melhor ou similar, sempre que não for possível ao Poder Público
promover o reassentamento, ou seja, a realocação da família em outro
imóvel na mesma região, sem risco construtivo, obviamente.
Não é juridicamente admissível que o morador de favela não seja
destinatário do comando constitucional contido no artigo 182, §3º da
Constituição Federal que garante a prévia e justa indenização mediante a
desapropriação, só por ausência da formalização, ou seja, da propriedade
do imóvel que não foi por ele obtida em razão de um processo de urba-
nização excludente que lhe reservou a pobreza, relegando-o à margem
da sociedade.
A ausência de titularidade do imóvel por parte do morador de favela não
pode servir de subterfúgio para o não pagamento de uma indenização em
relação à posse, principalmente quando a área for de propriedade pública
municipal em face do direito dos moradores à regularização fundiária
que, em seu aspecto jurídico, pode ser, neste caso, resolvido por meio do
reconhecimento do próprio ente público da concessão de uso especial
para fins de moradia em favor dos moradores. Interpretação contrária
retira todo o conteúdo do disposto na Medida Provisória 2220/2001 e no
contido no artigo 46 e 47 da Lei 11977/2009 que regulamenta a regula-
rização fundiária.

303
CONCLUSÃO

A política de regularização fundiária do Município de Belo Horizonte


é executada por uma sociedade de economia mista denominada URBEL.
Um dos principais programas por ela desenvolvido com a capitação de
recursos federais é conhecido por Programa Vila Viva, modelo de inter-
venção urbanística integrada em vilas e favelas, conforme informações
do sítio do Município25.
Apesar de o programa ter obtido reconhecimento no país, segundo
informações do Município, e ser visível algumas melhorias urbanas, não
se pode deixar de mencionar que alguns moradores foram desapossados
de suas moradias, recebendo em troca apenas uma indenização pelas
benfeitorias, insuficiente para aquisição de outra melhor ou em condições
parecidas no mesmo local, em razão do Município de Belo Horizonte não
reconhecer o direito destes moradores à concessão de uso especial para
fins de moradia, prevista na Medida Provisória 2220/2001, conforme casos
que aportaram na Defensoria Pública de Minas Gerais.
O não reconhecimento de direito com previsão constitucional e legal
por parte do Município é atitude completamente distorcida daquela es-
perada por quem deve ser responsável pelo desenvolvimento urbano e
pela construção de cidades sustentáveis onde o direito a um teto (moradia
adequada) é um dos pilares.
Alguns moradores de Favelas em Belo Horizonte, desapossados de
suas casas edificadas há mais de 15 anos em terras públicas municipais,
receberam em troca indenização somente das benfeitorias, pois não lhes
foram reconhecidos o direito à regularização fundiária instrumentalizada
pela concessão de uso especial para fins de moradia prevista na Medida
Provisória 2220/2001.
O estigma do favelado como invasor não pode servir de subterfúgio
para o não reconhecimento de direitos em face do ordenamento legal vi-

25 BELO HORIZONTE (Prefeitura). Uma cidade melhor para todos. Disponível em: <http://portalpbh.pbh.
gov.br/pbh/ecp/contents.do?evento=conteudo&idConteudo=15885&chPlc=15885&&pIdPlc=&app=salanotic
ias>. Acesso em: 10 de jun de 2013.

304
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

gente que visa construir cidades humanizadas que superem a segregação


espacial dos pobres. A Defensoria Pública espera que o Poder Judiciário
tenha maior sensibilidade no julgamento dos pleitos de declaração do
direito público subjetivo à concessão de uso para fins de moradia nos
caso que foram ajuizados.

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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23 ed.
revista, ampliada e atualizada até 31/12/2009. 2a tiragem. Rio de Janeiro: Lúmen
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COMENTÁRIO GERAL Nº4, do Comitê das NaçõesUnidades de Direitos Econômicos,
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Atualização de Eurico
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Stanley Rocha (Org). Estudos Avançados da Posse e dos Direitos Reais. Belo
Horizonte: Del Rey, 2010. p.276-300

306
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A Legitimação da posse extrajudicial da


Lei 11.977/2009 é um novo caminho
para a regularização fundiária?

Pedro Teixeira Pinos Greco1

I. CONSIDERAÇÕES INTRODUTóRIAS

Precisamos expor, antes de adentrar diretamente o tema, o pensa-


mento do Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro Marco Aurélio Bezerra de Melo2 (informação verbal), ao qual nos
filiamos, de que o objeto de estudo aqui apresentado não se trata de uma
modalidade de usucapião, porque é na verdade uma forma de legitimação
da posse. O legislador, equivocadamente, criou uma legitimação da posse
e no final do seu procedimento colocou um requisito temporal que só é
encontrado nas formas de usucapião. Dessa forma, esse instituto não deve
ser chamado de usucapião administrativa ou extrajudicial como parte da
doutrina vem fazendo.
Pautados nesse raciocínio entendemos que há a inauguração de um
novo caminho para um antigo instituto que foi introduzido no Brasil pela
Lei de Terras de 1850. Esse novo instituto se soma a outros instrumentos
de regularização fundiária existente no país que o Professor Melhim Namen
Chalub3 discrimina de forma não exaustiva:

A regularização se faz usualmente mediante concessão de direito


real de uso, aforamento gratuito ou doação do poder público,
quando situados esses aglomerados em terras públicas, ou

1 Advogado recém formado pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ – pedrotpgreco@hotmail.com e gre-
cotpedro@gmail.com
2 Entrevista dada ao autor no dia 31 de julho de 2013.
3 CHALUB, Melhin Namem. O grande teste da usucapião administrativa. In CASTRO, Paulo Rabello de.
Galo Cantou! A conquista da propriedade pelos moradores do Cantagalo. Rio de Janeiro: Record:2011. p. 202

307
mediante ação judicial de usucapião ou de desapropriação com
finalidade específica, quando em terras particulares.

Em que pese o interessante fim teleológico da Lei 11.977/2009, não


cairemos no sebastianismo, como parte da doutrina tem feito, de creditar a
esse novo instituto a remediação de todos os problemas enfrentados pela
regularização fundiária. Conforme o Professor Edésio Fernandes4 adverte
isso é totalmente inadequado, pois novas políticas, programas, projetos e
institutos precisam saber que:

Leva muitos anos para implementar um programa de regula-


rização totalmente integrado, especialmente se houver litígios
jurídicos e legais envolvidos […] Dada à diversidade das situações
existentes, não há nenhuma resposta automática, mágica ou
simplista, ou soluções que sirvam para todos os casos.

Portanto, buscaremos olhar objetivamente fundamentado não em


“achismos”, mas em dados empíricos e opiniões doutrinárias. Em suma,
serão detalhadas as possíveis discussões em torno da matéria e as even-
tuais críticas em relação a esse novo instituto, para que fique flagrante o
direito de moradores de favelas, loteamentos e assentamentos assemelha-
dos de obterem a correta legitimação de sua posse, conferindo segurança
jurídica ao exercício dessas.

II. A DESJUDICIALIZAÇÃO E A CARTORIALIZAÇÃO

O poder Judiciário, descrito por Montesquieu5 em sua obra mais fa-


mosa “Do Espírito das Leis” como a mera “boca da lei” que sugere que os
juízes deveriam ter pouca ou nenhuma margem de discricionariedade na
interpretação e aplicação das leis, se transformou muito desde o tempo
desse jus filósofo.
Nos dias atuais o Judiciário acaba tendo uma posição ativa e criadora,

4 FERNANDES, Edésio. Regularização de Assentamentos Informais na América Latina. Lincoln Institute


of Land Policy. 2011, p. 27
5 MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis. Brasil Editora. 1999, p. 27.

308
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

judicializando as funções típicas dos outros poderes, forçando estes a


cumprirem os direitos que garantam o mínimo existencial à população
brasileira, o que ficou conhecido como a “judicialização da vida”.
Apenas a título ilustrativo para retratar esse fenômeno, vale a pena
mencionar o Recurso Especial 1.185.474/SC de Relatoria do Ministro
Humberto Martins da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça jul-
gado unanimemente em 20/04/2010 e publicado em 29/04/2010. Nesses
dizeres percebemos que fica claro como os juízes vêm atuando de forma
a garantir os preceitos fundamentais expressos na Constituição:

A realização dos Direitos Fundamentais não é opção do go-


vernante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode
ser encarada como tema que depende unicamente da vontade
política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à
dignidade humana não podem ser limitados em razão da
escassez quando esta é fruto das escolhas do adminis-
trador. (grifo nosso)

Ademais, há um sólido fortalecimento do “ativismo judicial” que conso-


ante o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Roberto Barroso6 é uma
participação intensa e ampla do Judiciário em casos não contemplados
explicitamente pela Constituição transbordando, assim, as balizas cons-
titucionais em prol da coletividade.
Como consequência natural desse processo de fortalecimento do Judi-
ciário que teve como marco a nova Constituição, a população gradativa-
mente se voltou para esse Poder para buscar a solução de seus problemas
jurídicos já que ele gozava e ainda usufrui de notável prestígio constitu-
cional, legal e político, inclusive sendo autorizado a inovar juridicamente
conforme a doutrina constitucionalista mais progressiva desde que para
beneficiar o interesse público primário.
Isso implicou aumento sensível de demandas, deixando esse Poder
refém de seu próprio gigantismo, passando este a ter dificuldades para
manejar tantos litígios, originando a tão famosa e discutida morosidade
do Judiciário.

6 BARROSO, Luis Roberto. A judicialização, o ativismo judicial e legitimidade democrática. 2008, p. 06

309
Como alternativa para melhorar esse quadro surge o fenômeno de saída
do Judiciário. Logo, apresentam-se, outros palcos para a composição de
conflitos e dentre eles o cartório aparece de forma relevante (artigo 57,
§ 9º da Lei 11.977).
Quanto a esse espaço para compor litígios pode-se mencionar as suas
recentes atribuições de forma exemplificativa: a) o reconhecimento da
paternidade extrajudicialmente, b) o processamento extrajudicial da re-
tificação de área de imóveis urbanos e rurais, c) a execução extrajudicial
na alienação fiduciária de imóveis, d) o registro tardio, e) a separação e o
divórcio extrajudiciais, f) inventário extrajudicial e mais recentemente a
g) legitimação da posse extrajudicial na forma da Lei 11.977/2009.
Essa fuga do Judiciário é conhecida como desjudicialização que é gêne-
ro que tem como espécie a cartorialização. Nessa perspectiva, o magistrado
Fluminense Marco Aurélio Bezerra de Melo7 conceitua a desjudicialização:

O fenômeno da desjudicialização das relações jurídicas pode ser


compreendido como uma prática jurídica em que se busca um
mecanismo exógeno ao Poder Judiciário, a fim de ser ver alcan-
çado um resultado efetivo do direito sem a intervenção direta da
atividade jurisdicional.

Na questão urbanística, temos como expoente máximo desse pro-


cesso a legitimação da posse extrajudicial que se vale dos dispositivos,
mormente, da Política Urbana da Constituição, do Estatuto da Cidade, e
da Lei 11.977/2009, sobretudo em seu artigo 48, IV(“estímulo à resolução
extrajudicial de conflitos”) para ampliar o acesso à legitimação da posse.
Sobre esse assunto Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo8 já
prevendo a urgência de medidas mais céleres escreveu em 2008, portanto,
antes da promulgação da Lei 11.977/2009, que:

[…] talvez seja possível imaginar um procedimento ad-


ministrativo mais efetivo para o reconhecimento da
propriedade sem a inevitabilidade da apreciação judicial,

7 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Legitimação da Posse dos Imóveis Urbanos e o Direito à Moradia.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 142
8 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Legitimação da Posse dos Imóveis Urbanos e o Direito à Moradia.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 136

310
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

atendendo aos ditames da Constituição e do Estatuto da Cidade


de proporcionar a regularização das posses em favelas acompa-
nhada da devida urbanização da área (grifo nosso)

O Professor Melhim Namem Chalub9 complementa esse ideário ao


afirmar que:
No contexto da ordem urbanística popular, a desjudicialização,
além de contribuir para aliviar uma sobrecarga desnecessaria-
mente imposta ao judiciário, constitui importante instrumento
de realização da função social da propriedade.

Assim, a desjudicialização e a cartorialização podem contribuir dire-


tamente para a construção de um novo Judiciário, em razão do desloca-
mento de vários processos, desde que fundados em direitos disponíveis,
para um ou outro palco viável. Possibilita-se, desse modo, que o juiz se
ocupe de questões que efetivamente justifiquem a atuação da autoridade
judiciária, sendo consenso doutrinário que essa via alternativa não fere
o direito fundamental e cláusula pétrea da inafastabilidade jurisdicional
(artigo 5º, xxxV da Constituição da República), uma vez que havendo
qualquer problema o Judiciário poderá atuar no feito para evitar qualquer
alegação de inconstitucionalidade ou ilegalidade.
A despeito de haver uma tendência em elogiar a atuação dos car-
tórios é necessário perguntar se os cartórios estariam preparados para
desempenhar essa função, que antes cabia ao Judiciário. Inclinamo-nos
em afirmar que os cartórios poderiam desempenhá-la, uma vez que os
oficiais de registro de imóveis são profissionais capacitados e aprovados
em processo seletivo de difícil aprovação tendo eles, normalmente, va-
lorosa experiência no tema. Por conseguinte, esse seria senão o melhor,
em nossa opinião, mas um bom órgão para essa tarefa; também concorda
com essa posição o Juiz do Estado do Rio de Janeiro Eduardo Telles10 e
as advogadas Roberta Athayde11 (informação verbal) e Mariana Trotta12
(informação verbal).

9 CHALUB, Melhin Namem. O grande teste da usucapião administrativa. In CASTRO, Paulo Rabello de.
Galo Cantou! A conquista da propriedade pelos moradores do Cantagalo. Rio de Janeiro: Record:2011. p. 212.
10 Entrevista dada ao autor no dia 08 de agosto de 2013.
11 Entrevista dada ao autor no dia 21 de maio de 2013.
12 Entrevista dada ao autor no dia 12 de julho de 2013.

311
III – A LEGITIMAÇÃO DA POSSE
EXTRAJUDICIAL DA LEI 11.977/2009

No que pertine ao procedimento em si, a princípio, faz-se o cadas-


tramento sócio econômico das pessoas que moram nas casas que pas-
sarão pelo procedimento da legitimação de posse extrajudicial da Lei
11.977/2009 (nesse mesmo traçado caminhou o artigo 233 do Plano Diretor
Carioca de 2011: “A regularização fundiária compreenderá: elaboração do
cadastro socioeconômico e de lotes e edificações para regularização fundiária
e lançamento no cadastro imobiliário do Município”); recolhem-se os docu-
mentos pertinentes desses moradores, faz-se a pesquisa fundiária para se
descobrir de quem é a área, se ela tem matrícula no cartório, se pertence
a vários ou a apenas um proprietário e qual será a área que restará para
o proprietário caso a sua terra venha a ser usucapida.
Segundo a inteligência do artigo 50 da Lei 11.977 não só o particular,
individual ou coletivamente, bem como cooperativas habitacionais, as-
sociações de moradores, fundações, organizações sociais, organizações
da sociedade civil de interesse público, além do Poder Público em todos
os seus níveis da Administração Direta podem iniciar a legitimação da
posse extrajudicial.
Não obstante, a boa intenção do legislador, de acordo com a servidora
da Secretaria Municipal de Habitação (SMH) da municipalidade Carioca
Angélica Pullig13 (informação verbal), na prática, até agora, essa lista di-
latada de legitimados ativos se resume basicamente às Prefeituras com
acesso aos recursos da União e mesmo assim somente aquelas com
Secretarias de Habitação e Urbanismo bem aparelhadas e com pessoal
treinado conseguem iniciar esse procedimento.
Apesar dessas linhas de financiamento federais, a pergunta “quem
paga a conta?” ainda se mostra um ponto capital, pois esse processo
de regularização é muito caro e prolongado, não sendo recomendado
que a única fonte de renda seja somente a União sob pena de termos

13 Entrevista dada ao autor no dia 21 de agosto de 2012.

312
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

legitimações iniciadas sem um término definitivo. Dessa maneira, para


garantir maior independência à legitimação da posse extrajudicial temos
posição que se coaduna com a do Professor Edésio Fernandes14: “Na
ausência de qualquer contribuição financeira dos moradores, é improvável
que as políticas de regularização alcancem a escala necessária para tornar
os programas sustentáveis”.
Em vista disso, a Lei 11.977/2009 nesse ponto já se mostra desatuali-
zada, podendo recair sobre ela críticas por se omitir nesse ponto de não
prever formas outras de financiamento ou de não tratar explicitamente
do auxílio dos próprios moradores no adimplemento da regularização,
enquanto ela não chega ao fim.
Quanto ao procedimento, se possível deverá ser instruído com todo o
material que corrobore a tese da legitimação da posse extrajudicial, assim,
caso seja exequível deve-se apresentar planta e memorial descritivo que
individualize a área e a indicação das ruas, ruelas, logradouros, praças e
outras áreas das cercanias. Sobre esse assunto o Professor Melhim Namem
Chalub15 defende que mesmo que a Lei 11.977/2009 não preveja é, segundo
ele, natural e até desejável que o Poder Público, no caso o Município ou o
Distrito Federal quando ocorrer nessa localidade à obrigação de elaborar
também a planta.
Com o auto de demarcação pronto instruído com as plantas e me-
moriais, será remetido ao cartório, onde correrá todo o procedimento de
legitimação da posse. Cabe ao oficial de registro nesse processo: a) inserir
na matrícula da área em processo de usucapião administrativa que nessa
área pesa esse gravame, b) em seguida notificar o eventual proprietário da
área pessoalmente se for conhecida a sua identidade, se não for notória
ele será citado por edital, que é a forma que seus vizinhos e possíveis
terceiros interessados são citados.
O prazo para o proprietário da terra se manifestar nos moldes do artigo

14 FERNANDES, Edésio. Regularização de Assentamentos Informais na América Latina. Lincoln Institute


of Land Policy. 2011, p. 25
15 CHALUB, Melhin Namem. O grande teste da usucapião administrativa. In CASTRO, Paulo Rabello de.
Galo Cantou! A conquista da propriedade pelos moradores do Cantagalo. Rio de Janeiro: Record:2011. p. 205

313
57 § § 2º e 3º da Lei 11.977/2009 e o artigo 7º, VI da Portaria nº 207/2011
da Corregedoria Geral de Justiça do TJERJ, que esmiuçou o tema no Rio de
Janeiro, será de 15 (quinze) dias, sendo essa notificação pessoal conforme
o artigo 57 § 1º da Lei e dos artigos 4º § 3° e 5º §1º daquela Portaria. Como
se nota não há nenhuma afronta ao devido processo legal, contraditório e
ampla defesa, pois todas essas cláusulas pétreas são plenamente obser-
vadas. Sobre esses prazo achamos que o legislador foi muito feliz, pois
confere maior celeridade ao processo e valoriza a posse do possuidor.
Vemos com bons a atitude da Secretaria Municipal de Habitação do
Rio de Janeiro que tem guiado esse projeto na pessoa da municipalidade
Carioca de buscar áreas em que é certo que o Poder Público, seja ele em
qualquer esfera, e o proprietário não se pronunciarão de acordo com a
fala da servidora Angélica Pullig16 (informação verbal). Isso é justamente
para evitar que o procedimento se arraste no cartório, evitando-se assim
a tão criticada morosidade que não mais seria judicial, mas cartorária.
Após os Entes Públicos e o proprietário não impugnarem o feito, mes-
mo após a legal citação, deverá ser feita a averbação da demarcação nas
linhas do artigo 51 da Lei 11.977/2009 e dos artigos 6º e 7º da Portaria
do nº 207/2011 da CGJ do TJERJ sendo feito o parcelamento do solo nos
moldes da Lei 6.766/1979 e o registro do imóvel com a entrega do título
aos ocupantes cadastrados. Segundo os artigos 48, V e 58 § 2º da Lei
11.977/2009 a concessão do título será dada preferencialmente à mulher.
Essa última previsão poderia estar sujeita a censura acadêmica em
vista que confere uma prerrogativa a mulher, no entanto, concordando
com a proteção da mulher dada pela Lei 11.430/2006 (Lei Maria da Pe-
nha) e no foro privilegiado da mulher no artigo 100, I do CPC, o nosso
posicionamento que segue a linha do Professor Edésio Fernandes17 e do
Juiz Estadual do Rio de Janeiro Eduardo Telles18 (informação verbal) que
aqui não há uma discriminação odiosa e preconceituosa, ambas proibidas

16 Entrevista dada ao autor no dia 21 de agosto de 2012.


17 FERNANDES, Edésio. Regularização de Assentamentos Informais na América Latina. Lincoln Institute
of Land Policy. 2011, p. 406.
18 Entrevista dada ao autor no dia 08 de agosto de 2013.

314
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

pela Constituição, mas a afirmação do princípio da igualdade material


(artigo 5º, caput da CR).
Outro ponto digno de nota foi a previsão do artigo 56 § § 2º e 3º da Lei
11.977/2009 que determina a notificação do Ente ou Entidade Pública em
30 (trinta) dias para se manifestar, omitindo-se, o feito prosseguirá para
a etapa seguinte de entrega do título de posse para o morador, desde que
o possuidor fique 5 (cinco) anos ininterruptamente, terá o seu título con-
volado em propriedade, artigos 47, VII e 60, Lei 11.977/2009.
Compartilhamos da visão do Desembargador Marco Aurélio Bezerra de
Melo19 (informação verbal), da advogada Roberta Athayde20 (informação
verbal), da advogada Mariana Trotta21 (informação verbal), do Defensor
Público do Estado do Rio de Janeiro Valter Elísio22 (informação verbal), e
de um dos líderes dos moradores da Rocinha José Martins de Oliveira23
(informação verbal), que esse requisito temporal de cinco anos no final do
procedimento é totalmente descabido, pois mistura a legitimação da posse
com a usucapião não conferindo celeridade nem efetividade ao instituto
que buscava exatamente esses dois itens.
Há aqui um claro conservadorismo do Legislativo no que tange a
posse e propriedade, pois sem dúvida nesse assunto andaria melhor o
legislador se ele tivesse suprimido esse prazo. A argumentação de que a
ausência desse prazo de 5 (cinco) anos pegaria o proprietário de surpresa
não se sustenta, porque a ele já foi dada a chance de se manifestar em
momento anterior.
Desde o auto de demarcação a harmonia com o meio ambiente eco-
logicamente equilibrado na forma do artigo 225 da Constituição e do
artigo 48, II, da Lei 11.977 deve ser observada, sob pela de remoção das
famílias que moram nessas áreas, segundo a servidora Angélica Pullig24
(informação verbal) que representa a municipalidade Carioca.

19 Entrevista dada ao autor no dia 31 de julho de 2013.


20 Entrevista dada ao autor no dia 21 de maio de 2013.
21 Entrevista dada ao autor no dia 12 de julho de 2013.
22 Entrevista dada ao autor no dia 06 de agosto de 2013.
23 Entrevista dada ao autor no dia 08 de novembro de 2012.
24 Entrevista dada ao autor no dia 21 de agosto de 2012.

315
Ousamos discordar de tal visão, pois, acreditamos que: a) O próprio
artigo. 54 §§ 1º, 2º e 3º da Lei 11.977/2009 admite a ocupação de áreas
de preservação permanente (APP) desde que motivada e desde que haja
consolidação da ocupação; b) A Resolução/CONAMA nº 369/2006 que
define os casos excepcionais em que é possível a autorização para a su-
pressão ou redução de áreas verdes que estejam em APP, estando nesse
contexto incluídas as ocupações informais; e c) A Constituição do Estado
do Rio de Janeiro de 1989 que, já avançada para o seu tempo, na sua
redação original, prevê em seu artigo 271 que a criação de unidades de
conservação ambientais será seguida dos procedimentos necessários a
regularização fundiária.
Podemos elencar também a jurisprudência da Terceira Turma do STJ
que por unanimidade julgou em 07/05/2007 e publicou em 18/06/2007
o AgRg na MC nº 12.594/RJ de Relatoria do Ministro Ari Pargendler que
o direito à moradia pode superar o direito ao meio ambiente, in verbis:

PROCESSO CIVIL. INTERDITO PROIBITÓRIO. MEDIDA LIMINAR.


Estando em conflito o direito à preservação ambiental e o direito
à moradia dos ocupantes da área, é acertada a decisão que, num
primeiro momento, o do exame da medida liminar, protegeu o
direito à posse de quem tem habitação no local.

No entanto, esse caso, mesmo que não seja a jurisprudência domi-


nante no Superior Tribunal de Justiça, serve para demonstrar que a pon-
deração entre dois direitos fundamentais (direito à moradia x direito ao
meio ambiente) não pende apenas para um lado, podendo haver, como é
natural que aconteça, com direitos fundamentais de nível constitucional
a sua ponderação, não havendo, portanto, nesse debate uma posição
fossilizada e absoluta.
Sobre essa discussão da relatividade desses dois direitos o Tribunal
Pleno do Supremo Tribunal Federal no RMS nº 23.452/RJ de Relatoria do
Ministro Celso de Mello por unanimidade julgou no dia 16/09/1999 e
publicou no dia 12/05/2000 o acordão:

OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TêM CARÁTER

316
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ABSOLUTO. O estatuto constitucional das liberdades públicas,


ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e consi-
derado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas
incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a
proteger a integridade do interesse social e, de outro, a
assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois
nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detri-
mento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos
e garantias de terceiros. (grifo nosso)

Em relação ao procedimento da Lei 11.977 cabe aqui a crítica da advo-


gada Roberta Athayde25, com a qual nos harmonizamos, de que o artigo
58, caput tem uma primeira fase extremamente rápida e outra fase que fica
em estado letárgico esperando a elaboração, registro do parcelamento do
solo para conferir a propriedade.
Em síntese, quanto ao procedimento para ilustrá-lo de forma esque-
mática podemos listar o seguinte encadeamento: a) Faz-se o cadastro das
famílias que vivem em condições informais; b) recolhem-se documentos
que atestem essa condição de hipossuficiência; c) estuda-se o local físico
em que elas serão assentadas levantando-se quem é o proprietário; d)
definem-se seus limites, área, localização e confrontantes, elaboram-se
as plantas, fazem-se os estudos geo-urbanísticos; e) notifica-se o Poder
Público em 30 dias para se pronunciar; f) caso o proprietário e o Poder
Público, apesar de notificados, se omitam, entra-se com o pedido junto ao
cartório competente na área para efetuar a averbação na matrícula sendo
dado ao morador o título de posse; g) passados 5 anos de posse tranquila
esse título de posse convola-se em título de propriedade para o morador.
Apenas se por algum motivo não se observar os 5 (cinco) anos ou se
o possuidor legitimado abandonar a terra, não haverá a conversão de
posse em propriedade. Assim, é necessário que se faça uma averbação
para extinguir o título de legitimação, conforme dispõem o artigo 60-A
da Lei 11.977/2009.
Não podemos nos furtar de criticar a postura do SMH, conforme de-

25 ATHAYDE, Roberta Bernardi. A evolução do conceito de regularização fundiária: O Estatuto da


Cidade à Lei 11.977/2009. Anais do “1º Seminário Fluminense de Direito Urbanístico”. Organizado por
Alex Magalhães e Rafael Soares Gonçalves. Rio de Janeiro. 2011, p. 10

317
poimento da servidora Angélica Pullig26 (informação verbal) de não incluir
no processo da legitimação da posse casas que estejam, segundo ela, em
condições frágeis de habitabilidade, pois, a Prefeitura não poderia segundo
ela regularizar o ilegal.
Posicionamo-nos na esteira do Professor Alex Magalhães27 (informação
verbal) e do arquiteto Ricardo Corrêa28 (informação verbal) de que o SMH
não pode extrapolar os ditames da Lei, endurecendo-a e dificultando o
acesso àqueles que estão em situação precária quanto a sua situação fun-
diária. A legitimação da posse não pode ser confundida como o “Habite-se”
que será dado depois sendo obrigação do Poder Público no que expõe o
artigo 23, xI da Constituição da República melhorar e reurbanizar essa área
para garantir a dignidade dessas famílias que moram nessas condições.
Importantíssimo destacar que esse procedimento é destinado predo-
minantemente à população de baixa renda (artigo 47, VII, 11.977/2009),
somente beneficiando aqueles que não sejam concessionários, foreiros
ou proprietários de outro imóvel urbano ou rural e que, além disso, não
tenham já utilizado outras formas de legitimação de posse (artigo 59 §
1º, I e II, Lei 11.977/2009). Pensamos que essa iniciativa do legislador
foi boa, pois além de guardar simetria com o regramento do artigo 183,
caput, in fine, da Constituição garante maior e melhor distribuição das
terras urbanas.
Em conclusão, todo esse procedimento da legitimação da posse extra-
judicial tende a ser mais rápido, havendo previsão de que todo o proce-
dimento dure em média 8 (oito) anos, de acordo com a servidora da SMH
Angélica Pullig29 (informação verbal).
É preciso analisar um caso até o final para que se confirme essa previ-
são da Secretária Municipal de Habitação Carioca. Contudo, pode se falar
desde já que essa média está relativamente alta para o que se esperava
desse instituto. Desse modo, não seria exagerado criticar esse prazo,

26 Entrevista dada ao autor no dia 21 de agosto de 2012


27 Entrevista dada ao autor no dia 31 de julho de 2013.
28 Entrevista dada ao autor no dia 14 de agosto de 2013.
29 Entrevista dada ao autor no dia 21 de agosto de 2012.

318
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

pelo menos na teoria, quanto a sua duração razoável que não atende aos
preceitos mínimos da efetividade e celeridade.

IV. APRESENTAÇÃO DOS CASOS REFERÊNCIA

No Rio de Janeiro, a legitimação de posse extrajudicial vem sendo


utilizada em duas áreas da cidade. Na Rocinha, mais especificamente no
bairro Barcelos, e no loteamento Santa Clara em Guaratiba. A escolha
dessas localidades não foi à toa e se deve ao fato de o auto de demarca-
ção de ambas estar pronto, o que facilitou muito o início do processo de
regularização. Outras áreas como as Favelas do Areal (Guaratiba), João
Lopes (Realengo) e no Complexo do Alemão (Penha), de acordo com a
servidora Angélica Pullig da Secretaria Municipal de Habitação da Prefei-
tura Carioca30 (informação verbal), também estão sendo estudadas como
futuros espaços de aplicação desse instituto. Além de o servidor do ITERJ
Luiz Cláudio31 ter afirmado que esse procedimento já está sendo viabilizado
no Vidigal e na Baixada Fluminense.
Quanto a Rocinha vale algumas considerações iniciais, nas décadas de
40 e 50 essa favela teve uma grande expansão de construções, principal-
mente devido à grande imigração de pessoas vindas do norte e nordeste
do país. Em 1960 houve um segundo surto de expansão, dessa vez mais
concentrado na parte plana da favela (bairro Barcelos). E foi justamente
nessa região plana da Rocinha, o Barcelos em que se utilizou pela primeira
vez o instituto da legitimação da posse extrajudicial no Rio de Janeiro.
Nessa última localidade plana da favela, a Companhia Christo Redentor
detinha a propriedade da terra e nas décadas de 50 e 60, efetuou várias
promessas de compra e venda e desse primeiro negócio jurídico não se fez
o registro no cartório. Em seguida, os adquirentes fizeram vários pequenos
lotes e venderam novamente para terceiros, não havendo escritura dessa
primeira venda, tampouco das posteriores.

30 Entrevista dada ao autor no dia 21 de agosto de 2012.


31 Entrevista dada ao autor no dia 07 de agosto de 2013.

319
Desse fato, nas palavras da advogada Roberta Athayde32 (informação
verbal), que atuou diretamente na regularização do Barcelos, surgiu um
descompasso fundiário entre o que está no cartório e o que se observa na
prática. Como consequência desse longo período de dissonância, ficava
difícil ou quase impossível se reconstituir a cadeia sucessória de compra
e venda de propriedades e lotes, o que trazia óbices para o ajuizamento
das demandas de adjudicação compulsória.
Nessa área os lotes são bem definidos, existe clara urbanização e o
desenvolvimento ocorreu em cima de uma área particular. Além de a
municipalidade carioca, com a Lei nº 3.351 de 28/12/2001, ter alçado a
Rocinha à condição de AEIS (Área de Especial Interesse Social) ou ZEIS
(Zona de Especial Interesse Social), o que muito facilita a regularização
fundiária, pois sua constituição é condição para inclusão do assentamento
no programa de regularização.
Essas características levaram a Fundação Bento Rubião no começo
dos anos 2000 em concordância com os moradores, a patrocinar várias
demandas de usucapião judicial para os moradores que não possuíssem
a promessa de compra e venda devidamente registrada.
A estratégia dessa instituição se mostra perspicaz porque mesmo que
muitos desses moradores tenham, inclusive, adquirido o terreno, quase
todos não regularizaram a situação no cartório, sendo, de fato, a saída
mais sábia alegar a usucapião em vez de tentar montar toda a cadeia de
compra e venda. Em adição a isso a Fundação também andou bem ao
evitar o manejo da usucapião coletiva (artigo 10 Lei 10.257/2001), recém
criada e de árida aplicação, já que poucos juízes e promotores a conhe-
ciam, além de demandar uma situação fática homogênea das moradias,
o que não se encontrava na região.
Escolhido o plano de ação o primeiro desafio foi lidar com a notável
morosidade judiciária para decidir, dentro de uma duração razoável do
processo, e com as inúmeras decisões e sentenças contraditórias que
vinham dos magistrados Fluminenses, o que atrapalhava a efetividade

32 Entrevista dada ao autor no dia 21 de maio de 2013

320
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da regularização, uma vez que às vezes áreas vizinhas de igual natureza


jurídica tinham decisões diametralmente opostas.
Em complementação a isso, essas ações estavam padecendo de alguns
entraves cartoriais e processuais. Quanto a esses problemas a advogada
Roberta Athayde33 (informação verbal) pontua que não havendo individu-
alização das moradias no cartório, que ainda entendia a região como uma
grande propriedade cuja dona ainda era a Companhia Christo Redentor.
Por suposto, sem a individualização conforme essa advogada não há
sentença favorável, uma vez que não há individualização da demanda,
não havendo alternativa aos juízes senão extinguir o feito sem resolução
do mérito, por falta de um dos pressupostos processuais de validade da
demanda. Devido a esses fatos muitas demandas judiciais fracassaram.
No transcorrer dessas ações surgiu a Lei 11.977/2009, que, aparente-
mente, facilita o caminho, porque, não é exigido passar pelo Judiciário o
que, em teoria, concederá maior celeridade à devida legitimação da posse
desses moradores. Para tratar do tema foi concebido o Provimento nº 65
da Corregedoria Geral de Justiça do TJRJ/2009 participando da idealiza-
ção desse ato normativo o ITERJ, a Secretaria Municipal de Habitação, a
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Fundação Bento Ru-
bião, o Ministério das Cidades, os oficiais de registro do Rio de Janeiro e
a Corregedoria do TJRJ.
Cabe aqui observação feita pela advogada Mariana Trotta34 (informa-
ção verbal) corroborada pelo arquiteto da Fundação Bento Rubião Ricar-
do Corrêa35 com a qual concordamos, que forte no princípio da gestão
democrática prevista no Estatuto da Cidade, esse provimento padece
de falta de participação da sociedade civil que poderia ser muito bem
representada pelas associações de moradores das favelas, loteamentos
e assentamentos assemelhados que estão sendo alvo desse instituto ou
até mesmo pela Federação das Favelas do Estado do Rio de Janeiro. Outra
observação interessante, com a qual também estamos de acordo, foi feita

33 Entrevista dada ao autor no dia 21 de maio de 2013.


34 Entrevista dada ao autor no dia 12 de julho de 2013.
35 Entrevista dada ao autor no dia 14 de agosto de 2013.

321
pelo Juiz Eduardo Telles36 (informação verbal) de que o Ministério Público
Estadual deveria estar presente nesse provimento explicitamente porque
a sua função constitucional é de fiscalizar a fiel aplicação da lei, portanto,
não poderia estar de fora dessa força tarefa.
Ademais, outro dado que merece ser destacado, é a opinião de José
Martins de Oliveira37 (informação verbal), membro da Fundação Bento
Rubião e da Associação de Moradores do Bairro Barcelos, e uma das mais
antigas e conhecidas lideranças comunitárias da Rocinha de que a legiti-
mação extrajudicial da posse seria inadequada para áreas consolidadas
como a Rocinha (Barcelos), sendo somente viável em áreas de ocupações
recentes como o loteamento Santa Clara, que será abordado em seguida,
devido a menor complexidade jurídico-social encontrada nessas áreas.
Em contrapartida, na visão do Desembargador do TJERJ Marco Aurélio
Bezerra de Melo38 (informação verbal) e da advogada Mariana Trotta39
(informação verbal), nos locais em que há uma ocupação consolidada
há décadas, como no caso da Rocinha, não haverá impugnação ao feito,
porque a situação já está consolidada podendo o processo tramitar mais
facilmente, sem um contencioso que atrasaria a legitimação da posse.
Quanto a essa questão precisamos de mais matéria-prima para nos
posicionar, tendo em vista que ambos os lados têm argumentos atraentes
a seu favor. Destarte, ainda precisamos observar o trâmite das atuais legi-
timações em andamento, para vislumbrar qual dos dois lados terá razão.
A outra área onde se desenvolve a legitimação da posse extrajudicial
é o Loteamento Santa Clara em Guaratiba, processo este que começou
em maio de 2012. Nessa localidade, o loteador vendeu os lotes, mas não
concluiu o processo de implantação do loteamento e abandonou por
completo a área fracionada. Assim, os moradores requereram a inscrição
Núcleo de Regularização de Loteamentos da Prefeitura, em virtude de ser
um loteamento irregular (artigo 47 da Lei 11.977/2009), para que houvesse

36 Entrevista dada ao autor no dia 08 de agosto de 2013.


37 Entrevista dada ao autor no dia 08 de novembro de 2012.
38 Palestra proferida no Centro Cultural da Justiça Federal/RJ (CCJF) no dia 03/07/2013
39 Entrevista dada ao autor no dia 12 de julho de 2013.

322
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

a intervenção no loteamento nos moldes do artigo 40 da Lei 6.766/1979.


Nesse caso, a municipalidade do Rio de Janeiro, conhecendo a Lei
11.977/2009 e já com a experiência em curso na Rocinha, preferiu não
fazer a pesquisa, que, teoricamente, segundo a primeira Lei citada, deve-
ria ser feita para descobrir toda a cadeia sucessória, o que despenderia
muito tempo e recursos para se valer de um atalho proporcionado pelo
artigo 71 da Lei 11.977/2009 para chegar até a titulação da posse desses
moradores. Importante diferenciar que essa é a primeira experiência em
loteamento, diferentemente da outra que acontece em favela.
Em resumo, espera-se que a legitimação da posse extrajudicial da Lei
11.977/2009 traga mais efetividade à regularização fundiária, porque não
se precisaria requerer a tutela jurisdicional, economizando tempo no caso
do Bairro Barcelos e do loteamento Santa Clara.

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, até bem pouco tempo atrás, a regularização fundiária ainda


pareceria estar renegada ao segundo plano tanto nos bancos acadêmicos
quanto na prática e na política. Parece que esse cenário teve uma leve
mudança, mas ainda é pouco para a dimensão do problema do nosso país
que engloba milhares, ou quiçá milhões de pessoas. Cidadãos estes que
normalmente são de baixa renda e que parecem gozar, assim como os
seus problemas, de uma quase completa invisibilidade.
Todavia, a advogada Roberta Athayde40 sustenta que um interessante
movimento se formou no sentido de não compreender apenas essa ma-
téria como jurídica, mas interdisciplinar, dando maior importância a esse
assunto não só pelo Direito, mas por outras cadeiras também. Infere-se
que para se resolver problemas multitemáticos é preciso:

40 ATHAYDE, Roberta Bernardi. A evolução do conceito de regularização fundiária: O Estatuto da


Cidade à Lei 11.977/2009. Anais do “1º Seminário Fluminense de Direito Urbanístico”. Organizado por
Alex Magalhães e Rafael Soares Gonçalves. Rio de Janeiro. 2011, p. 12

323
uma maior compreensão do papel da dimensão social na regu-
larização fundiária, pois este tem sido subavaliado. A atuação
dos assistentes sociais e sociólogos precisa e deve ir além do
que lhe tem sido atribuído […] Faz-se necessário a absorção
por parte destas comunidades a compreensão do que significa
ser cidadão, entender o valor do patrimônio e a importância da
proteção ambiental, além disto, há a necessidade de projetos
educacionais e de geração de renda, assim poderemos alcançar
a sustentabilidade da regularização fundiária.

Voltando agora para o aspecto jurídico, pode se afirmar que a Lei


11.977/2009 reafirmou a legitimação da posse. Conquanto esse conceito
não seja novo parece que a ele nunca foi dado à devida significância e
com essa “novidade” surgiu um novo instituto (que não é propriamente
revolucionário, já que apenas une o conceito secular da legitimação da
posse com o trâmite do registro de imóveis conhecido há séculos).
Para os olhos dos mais preocupados com o grave problema da questão
fundiária, em nosso país, esse instituto parece tímido, diante da tradição
brasileira que vê a propriedade como absoluta inspirada no período roma-
no de que esta serve apenas para os usos e desmandos do proprietário,
porém, para outros estes entusiastas da questão fundiária esse instituto
é um grande avanço simbólico.
Entretanto, essa ferramenta não se propõe e também não deve ser vista
como a resolução de todos os problemas fundiários urbanos, notadamente
em virtude do pouco tempo de vigência da Lei 11.977/2009 e da extrema
complexidade para se chegar ao fim de um processo de regularização
fundiária. A resposta para essa situação fática tipicamente brasileira é ter
vários institutos à disposição e aplicar aquele que se mostrar mais célere
e efetivo ao caso concreto.
Para fechar o nosso texto é preciso que voltemos ao nosso título:“A
Legitimação da Posse Extrajudicial da Lei 11.977/2009 é um novo Caminho
para a Regularização Fundiária?” Hoje com os elementos de pesquisa a
nosso dispor não podemos responder de maneira adequada essa tese, sob
pena de cairmos em um raciocínio falacioso. O transcorrer do tempo será
o senhor para determinar se essa questão será respondida positivamente

324
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ou se teremos mais um instituto “letra morta” em nosso ordenamento.


Não torcemos pela realização desse último cenário, mas vemos que
para que isso não aconteça devem os juízes, os oficiais de registro, os
gestores públicos, os advogados, os defensores públicos, os promotores,
os sociólogos e os assistentes sociais, pavimentar essa rua ainda esbura-
cada com várias dúvidas ainda a serem preenchidas.
Fechamos o nosso texto com uma citação de Montesquieu41 ideó-
logo que ajudou a inspirar a Revolução Francesa e que também pode
nos instigar a debater mais o tema e quem sabe mudar a atual figura da
questão fundiária no Brasil: “não se deve nunca esgotar de tal modo um
assunto, que não se deixe ao leitor nada a fazer. Não se trata de fazer ler,
mas de fazer pensar”.

VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

ATHAYDE, Roberta Bernardi. A evolução do conceito de regularização fun-


diária: O Estatuto da Cidade à Lei 11.977/2009. Anais do “1º Seminário Flu-
minense de Direito Urbanístico”. Organizado por Alex Magalhães e Rafael Soares
Gonçalves. Rio de Janeiro. 2011.
BARROSO, Luis Roberto. A judicialização, o ativismo judicial e legitimidade
democrática. 2008.
CHALUB, Melhin Namem. O grande teste da usucapião administrativa. In CASTRO,
Paulo Rabello de. Galo Cantou! A conquista da propriedade pelos moradores
do Cantagalo. Rio de Janeiro: Record, 2011.
FERNANDES, Edésio. Regularização de Assentamentos Informais na América
Latina. Lincoln Institute of Land Policy, 2011.
MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Legitimação da Posse dos Imóveis Urbanos
e o Direito à Moradia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis. Brasil Editora, 1999.

41 MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis. Brasil Editora. 1999, p. 88.

325
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A luta pelo direito à moradia


da Vila São Pedro a regularização
fundiária enquanto política

Cristiano Muller1
Karla Fabrícia Moroso S. de Azevedo2
Viviane Florindo Borges3

1. INTRODUÇÃO

No Brasil existem atualmente 84,35% da população residindo em cida-


des. Embora não exista uma apreciação segura do número de domicílios
e famílias em assentamentos informais, das mais diferentes tipologias,
dados trabalhados a partir do Censo de 2010 apontam a existência de
6.329 aglomerados subnormais¹ no Brasil, onde residem 6% da população
brasileira em 5,6% dos domicílios particulares ocupados. Fala-se aqui de
mais de 11 milhões de pessoas que utilizam como moradia, habitações
localizadas em áreas precárias, sem acesso à infraestrutura básica, que não
possuem a documentação legal que garanta seu direito à moradia e nem
mesmo tem reconhecido a sua posse, e que se encontram espacialmente
e socialmente excluídas da cidade.
Esta realidade já é conhecida e vem se agravando nas últimas decadas.
Ainda na decada de 80 a realidade das cidades brasileiras impulsionou a
discussão que levou à instauração da “função social da cidade e da pro-
priedade” no processo de produção das cidades. Como resultado deste
debate, a Constituição Brasileira incluiu um capítulo específico sobre a

1 Advogado, Doutor em Direitos Humanos e Diretor Executivo do Centro de Direitos Econômicos e Sociais – CDES;
2 Arquiteta e Urbanista, Especialista em Direitos Humanos e Pesquisadora do Centro de Direitos Econômicos
e Sociais – CDES;
3 Assistente Social, Mestre em Geografia Urbana e Colaboradora do Centro de Direitos Econômicos e Sociais
– CDEE;

327
política urbana com uma série de instrumentos para a garantia do direito
à cidade², para o cumprimento da função social da propriedade e para a
democratização da gestão urbana. Mais de uma década depois em 2001,
é aprovada lei federal que trata da regulamentação desta política urbana
prevista na Constituição Federal: O Estatuto da Cidade. Nesta lei estão
expressos os conceitos e os instrumentos que visam a transformação das
cidades brasileiras em cidades mais sustentáveis, justas e democráticas.
Uma das políticas previstas no bojo desta nova ordem jurídico-urbana,
subsidiada a partir de discussões internacionais do direito à cidade e ga-
rantida pela Constituição Federal a partir de 1988, é a política de regulari-
zação fundiária³. Para tanto a nova normativa oferece instrumentos legais,
urbanísticos e de gestão que visam retirar da informalidade, camadas da
população que até então estavam invisíveis na sociedade. Na esteira desta
nova ordem jurídico-urbana constitucional, cria-se em 2005 o Ministério
das Cidades e com ele a proposta de promover políticas púbicas urbanas
articuladas por meio de programas governamentais, incluindo a unificação
orçamentária, que mais tarde reflete-se na disponibilização de recursos
financeiros para projetos urbanos e habitacionais articulados à política em
implementação. Partindo-se de uma perspectiva programática, a política
habitacional enfoca, em um primeiro momento, a regularização fundiária
a partir de dois movimentos complementares e simultâneos que tinham
por objetivo atacar o problema da produção informal da cidade: o primeiro
de caráter curativo, com o objetivo de atender o passivo, regularizando
os assentamentos informais consolidados, removendo e gerenciando os
riscos e reconhecendo o direito à moradia das famílias dos assentamentos
informais; o segundo de caráter preventivo cujo objetivo foi o de evitar
a formação de novos assentamentos precários e novas ocupações pre-
datórias. Desenha-se assim uma política pública, com marco normativo
na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade, que se implementa de
forma descentralizada, respeitando a autonomia municipal e a participação
cidadã na concepção, execução e fiscalização das ações. Neste contexto
normativo, aborda-se o caso da Vila São Pedro, cujo processo de regula-

328
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

rização fundiária foi impulsionado pelo Poder Público Estadual antes da


aprovação do Estatuto da Cidade, e retomado à luz da nova normativa
jurídico-urbana pela comunidade da Vila São Pedro, apoiada pelas orga-
nizações da sociedade civil.
A nova ordem jurídico-urbana brasileira propõe uma nova e abrangente
compreensão sobre a informalidade fundiária de assentamentos urba-
nos, refletindo outro olhar sobre o processos de regularização fundiária.
Destaca-se que o termo “regularização” não é utilizado de forma homo-
gênea pelos municípios brasileiros. Em muitos casos refere-se apenas à
urbanização de áreas informais com ações que visam à implantação de
infraestrutura e prestação de serviços públicos. Em outros casos, o termo
é utilizado apenas para as ações que visam legalizar as posses das áreas
ocupadas informalmente. Poucas experiências combinam estas duas
dimensões do processo de regularização fundiária e associam a essas
intervenções a necessidade da participação social como instrumento que
possibilite a garantia do acesso à cidade para as famílias em situação de
irregularidade e vulnerabilidade social. Sem a participação e envolvimento
efetivo das famílias não se diminui a desigualdade social, pois toda a in-
tervenção que legaliza e urbaniza a terra não ampara a família, trazendo
para a formalidade apenas o “lote”. Desta forma entende-se regularização
fundiária como:

Um processo conduzido em parceria pelo Poder Público e popula-


ção beneficiária, envolvendo as dimensões jurídicas, urbanísticas
e sociais de uma intervenção que, prioritariamente objetiva le-
galizar a permanência de moradores de áreas urbanas ocupadas
irregularmente para fins de moradia e, promover a melhoria no
ambiente urbano e na qualidade de vida do assentamento, bem
como incentivar o pleno exercício da cidadania pela comunidade
sujeito do projeto4 (Centro pelo Direito à Moradia Contra Despe-
jos - COHRE, 2008).

Enquanto política pública, a regularização fundiária deve ser compre-


endida a partir do desenvolvimento e articulação de três dimensões de
intervenção: a regularização jurídica dos lotes; a melhoria/qualificação
do ambiente urbano, e; o desenvolvimento social.

329
Mesmo diante de um quadro normativo favorável e de uma gama de
recursos direcionados à regularização fundiária, são relevantes os obs-
táculos encontrados. Esses obstáculos pautam-se, especialmente nas
visões burocráticas e ideológicas que defendem o uso social da terra e
da propriedade urbana presentes, ainda hoje, nas ações de urbanistas
e operadores do direito. No campo do planejamento urbano tem-se a
“necessidade de criar sobre o papel em branco” que impõe um “modelo
pronto” que não tem, via de regra relação nenhuma com a realidade a ser
modificada e que desconsidera o olhar dos moradores e as relações que
estabelecem com a cidade a partir do lugar que moram. No campo jurídico
a falta de um olhar que integre a necessidade da moradia adequada (com
segurança da posse superando a informalidade), a propriedade urbana e
os direitos socias (que são direitos coletivos) emperram, desconstituem
e algumas vezes destróem processos sociais de luta pelo uso social da
terra. Sem dúvidas os despejos coletivos são a materialização desta visão.
Com o intuito de contribuir para a reflexão da política de regularização
fundiária, apresentamos relato do processo de regularização fundiária da
Vila São Pedro, compreendendo que as experiências vividas pelos morado-
res da Vila São Pedro podem auxiliar outras comunidade no fortalecimento
do protagonismo para a condução de suas lutas pela terra urbanizada,
propondo ainda provocar os operadores do direito, os urbanistas e os
gestores públicos a ampliarem o leque de possibilidades e parcerias para
a execução da regularização fundiária em assentamentos informais. As-
sim, o estudo será apresentado em dois momentos, tendo como marco
temporal, a alteração normativa advinda com o Estatuto da Cidade e a
consequente alternância no protagonismo para a condução do processo
de regularização fundiária pela comunidade.

2. A VILA SÃO PEDRO

A história de ocupação da vila São Pedro está relacionada com a


construção e surgimento ao final do século xIx do Hospital Psiquiátrico

330
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

São Pedro (HPSP), equipamento e importante referência para o desenvol-


vimento urbano da região sudeste de Porto Alegre. O HPSP é inaugurado
em 1884, destinado a abrigar “doentes mentais” da Santa Casa e da Cadeia
Civil. Sua construção, nesta época estava fora dos limites urbanos da ci-
dade, em uma região onde as terras eram na sua maioria de propriedade
do Estado do Rio Grande do Sul.
Neste mesmo período as intervenções urbanas de Porto Alegre, dentro
da lógica progressista de desenvolvimento impulsionada pela industria-
lização do país visavam a “higienização” da cidade onde o Plano Geral
de Melhoramentos (1914) regulamentava estas ações. Ações estas que
invisibilizava a pobreza no centro da cidade, optando por ignorá-la ou
escondê-la. Os pobres que moravam no centro da cidade moravam em
sub-habitações como cortiços e malocas. Os planejadores urbanos da
época, através dos seus planos reguladores, projetavam na área ocupada
por estas pessoas, jardins, praças, parques ou equipamentos como se a
terra não estivesse sendo ocupada.
Na década de 60 a população de Porto Alegre já havia crescido 60%,
quando comparada àquela existente no início dos anos 50, e este cres-
cimento atingia as áreas de ocupação irregular e informal, que mesmo
assim ficaram de fora das estratégias previstas no Plano Diretor de 1959,
o qual trabalhou apenas nas áreas centrais da cidade, deixando de fora
as periferias. Neste período a área ocupada pelo HPSP, que antes estava
completamente isolada do perímetro urbano da cidade, agora já esta sendo
envolvida pelas ocupações, no atual bairro conhecido como Partenon.
A ocupação da área lindeira ao HPSP, iniciada por volta de 1973 e
conhecida como “Vila do Cachorro Sentado”, nos seus primeiros oito
anos (1981) já possuiam aproximadamente 150 famílias. Segundo Claudia
Fonseca, os ocupantes da Vila nesta época eram “alguns migrantes rurais
recentes, cuja maioria da população já mora na zona urbana há muito
tempo” (FONSECA, 2000, p. 16). Conforme estudo etnográfico no livro
“Família, fofoca e honra” as famílias moradoras da comunidade neste
período era composta por:

331
Os homens adultos, analfabetos na sua maioria, são mestiços
de origem italiana, açoriana, alemã, polonesa, mas principal-
mente afro-brasileira; ganham a vida como papeleiros, guardas-
-noturnos, biscateiros e operários intermitentes da construção
civil. As mulheres, quando trabalham, são faxineiras. Alguns dos
jovens completam suas rendas como roubo e as mulheres, de to-
das as idades, praticam a mendicância (FONSECA, 2000, p. 17).

Os moradores ocupantes primeiros da comunidade inserem-se na dinâ-


mica da sociedade capitalista, pois correspondem a uma comunidade que
não se insere socialmente a partir do trabalho formal, representado pela
inadequação, ou servindo como exército de reserva para a indústria. Assim,
a Vila do Cachorro Sentado caracterizou-se ao longo da sua formação em
um núcleo segregado pelos grupos dominantes moradores do entorno, não
só pela condição socioeconomica, mas também pela precariedade habi-
tacional, uma vez que os domícilios em geral eram formados por uma ou
duas peças, onde residem crianças e adultos. Esses aspectos refletem para
Fonseca “uma condenação moral por parte do mundo exterior perseguindo
os moradores em numerosas situações cotidianas” (FONSECA, 2000, p.
16). Condenação moral expressa diretamente no nome da comunidade,
conhecida como “Cachorro Sentado”5.
Com quase 40 anos de existência a comunidade, atualmente, de-
nominada de Vila São Pedro, consolidou-se como um assentamento
informal com famílias em situação de vulnerabilidade social, econômica
e precariedade habitacional. A consolidação da área enquanto território
de moradia deve-se num primeiro momento a um aglomerado de famílias
que em 1981 eram de 150 domicílios com aproximadamente 750 pessoas,
em 2006 a comunidade era composta de 280 domícilios totalizando 1026
moradores (COHRE, 2006), e segundo o Censo 2010 atualmente há 151
domicílios, totalizando 542 pessoas na comunidade.
Os Censos de 2000 e 2010 referem-se à comunidade enquanto aglo-
merado subnormal. Caracterizado para além da condição de precariedade
habitacional, esse tipo de assentamento informal também apresentam
condições de pobreza socioeconômica. Neste caso, sobre a Vila São
Pedro podemos verificar, por meio do levantamento socioeconômico

332
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

realizado pelo Centro pelo Direito à Moradia Contra Despejos (COHRE)


em 2006, uma comunidade constituída por homens (47%) e mulheres
(53%), com uma composição etária bastante concentrada dos 15 aos 40
anos, representando 45% dos moradores. Os dados referentes à idade nos
mostram que a Vila é uma comunidade de adultos jovens, com somente
2% de pessoas acima de 65 anos, caracterizando a população na faixa
etária economicamente ativa, tanto para o mundo do trabalho como na
construção de suas relações. Sobre dados de renda dos responsáveis pelo
domicílio identificou-se que 70% destes são mulheres “chefes de família” 6,
na faixa etária entre 22 a 60 anos, destas 59% com escolaridade de ensino
fundamental incompleto, deste universo de 70% mulheres responsáveis
pelos domicílios, 15% não possuem renda, sobrevivendo do auxílio da rede
primária e ou socioassistencial e/ou da medicância; 30% trabalhadoras
informais e 25% são trabalhadores com vínculo empregatício.
Há uma relação direta entre a condição precária de moradia e situação
de pobreza de renda nas comunidades, a correlação destas duas dimensões
da pobreza é expressa por Ermínia Mariacato, por meio da dificuldade de
acesso aos serviços e infraestrutura urbanos (transporte precário, sane-
amento deficiente, drenagem inexistente, dificuldade de abastecimento,
difícil acesso aos serviços de saúde, educação e creches, maior expo-
sição à ocorrência de enchentes e desmoronamentos, etc.). Somam-
se menores oportunidades de emprego (particularmente do emprego
formal), menores oportunidades de profissionalização, maior exposição
à violência (marginal ou policial), discriminação racial, discriminação
contra mulheres e crianças, difícil acesso à justiça oficial, difícil acesso
ao lazer. A lista é interminável (MARICATO, 1996). Assim, identificamos ao
longo da existencia da comunidade que a população enfrenta um processo
de pouca mobilidade diante a perspectiva de serem “benenficiários dos
direitos” introduzidos pelo processo de urbanização na cidade.

333
3. VILA SÃO PEDRO: CONSTRUINDO CIDADANIA A
PARTIR DO PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA

O processo de regularização fundiária da vila São Pedro nasce junto


com a ocupação da área, e tem momentos distintos ao longo dos mais
de 30 anos de luta e intervenções de ordem pública e social. O advento
do Estatuto da Cidade tem impacto importante nesse processo. Essa
normativa traz um elenco de instrumentos jurídicos e urbanísticos que
possibilitam outras formas de intervir no quadro da irregularidade urbana
através da normatização e, principalmente indução das formas de uso e
ocupação do solo, da incorporação de novas estratégias de gestão que
reconhecem e envolvem o cidadão e as comunidades e da ampliação das
possibilidades de regularização das posses urbanas. Assim, partindo-se
desses pressupostos, organiza-se o processo de regularização fundiária
da vila São Pedro em dois momentos que tem como marco temporal o
advento do Estatuto da Cidade em 2001.

3.1 Da ocupação ao projeto Morada São Pedro

Este primeiro momento, anterior ao Estatuto da Cidade, as interven-


ções foram impulsionadas pelo poder público estadual e municipal sendo
a primeira ação concreta em direção a regularização a expedição, pelo
Estado do Rio Grande do Sul, de termos de permissão de uso em benefício
de diversas famílias moradoras da vila em 1992. No entanto estes termos
não garantiam de fato a posse das famílias, por se tratar de instrumen-
tos jurídicos precários, ao mesmo tempo em que estavam descolados
de obras de urbanização e infraestrutura. Neste primeiro período, tanto
recursos como instrumentos voltados a regularização fundiária eram
escassos, e neste contexto um dos espaços que se mostra acessível para
as demandas comunitárias em Porto Alegre é o Orçamento Participativo.
Porém, as questões relacionadas a dominialidade da área impossibilitou
a comunidade a acessar esses recursos.

334
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Em 1999 a política habitacional do Estado ganha espaço na estrutura


institucional através da criação da Secretaria Estadual de Habitação -
SEHAB, que dentre as suas linhas de ação pautou a regularização fundiaria,
constituindo departamento e programa governamental com essa finalida-
de. A partir desta estrutura institucional foi implementado o Projeto Morada
São Pedro. No âmbito deste projeto a regularização fundiária passa a ser
trabalhada de forma interdisciplinar, com enfoque jurídico, urbano e social,
mas ainda carente de recursos e de instrumentos normativos que dessem
conta da complexidade dos processos de regularização fundiária. Dentre as
possibilidades da epoca foram realizadas ações visando a qualificação da
área e das famílias como a topografia e o cadastramento socioeconômico.
Partindo-se de um enfoque mais global de “acesso à cidade” foi iniciado
processo de elaboração de projeto urbanístico que envolvia além da vila
São Pedro, os demais elementos do entorno da vila: Hospital Psquiátrico
São Pedro, Vila Salvador França e o Instituto Psiquiátrico Forense. Mui-
tos foram os embates do Estado, enquanto promotor do processo, para
viablizar a regularização fundária da Vila São Pedro: implementação de
ações de diferentes Secretárias de Estado de forma coordenada; a desins-
titucionalização do HPSP e a inserção dos seus ex-internos na sociedade
e na cidade materializado nas moradias construidas em conjunto com
as da vila São Pedro; o papel do HPSP enquanto equipamento urbano e
patrimônio histórico cultural do Estado e a sua revitalização; a inserção
socio-territorial das famílias da vila São Pedro e a pressão imobiliária na
área tendo em vista sua localização em região de alto valor comercial.

335
FIGURA 1 – Localização da Vila São Pedro. Fonte: COHRE (2006).

FIGURA 2: Vila São Pedro – Ocupação e inicio do processo de urbanização. Fonte: COHRE (2006)

Neste contexto de disputa urbana, destaca-se como importante avanço


desta etapa do processo o gravame de AEIS – Área Especial de Interesse
Social - na Vila São Pedro, visto que protegeu o território, principalmente
dos interesses de mercado, reafirmando o uso social da terra e o cumpri-
mento da função social da propriedade. O gravame ocorreu de forma con-
junta com outras áreas estaduais ocupadas para fins de moradia, ficando
pendente a sua regulamentação (definição do regime urbanístico), que
decorre do projeto urbanístico. Ocorre que em 2002, após a entrega das
primeiras 30 unidades habitacionais7 as obras de urbanização, bem como

336
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

processo de regularização fundiária foram paralizados. Esta paralização,


que tem como marco a troca do governo estadual, deixou mais de 250
famílias a espera da unidade habitacional e uma comunidade inteira na
sombra das especulações de mercado, ou seja: ameaçadas de despejo.

3.2 A retomada do processo de


regularização fundiária: novos protagonistas

Com a troca na administração estadual (proprietário da gleba), a con-


sequente alteração nos rumos da política habitacional e a paralização das
obras de urbanização sob o argumento da falta de recursos, as famílias
passaram a ter na “segurança da posse” sua principal demanda mesmo
vivendo em condições de habitabilidade precárias. Mesmo sob o enten-
dimento de que a regularização fundiária é um processo que deve ser
trabalhado de forma interdisciplinar, a ausência do Estado, traduzida na
falta de ações e de uma política clara sobre a regularização fundiária e as
ameaças de despejo postas pelos interesses convergentes do mercado e do
Governo do Estado, comunidade e parceiros viram a necessidade de focar
suas ações na segurança da posse visando a permanência das famílias
na área. Nesse sentido, as novas bases legais, e seus instrumentos foram
determinantes para a implementação dessa estratégia. O advento do Es-
tatuto da Cidade e da Medida Provisório 2.220, ambas de 2001 passaram a
reconhecer o direito à moradia das famílias moradoras de áreas públicas,
permitindo à essas famílias reinvidicar de forma administrativa ou judicial
esse direito caso o proprietário da área não forneça de forma pacifica a
denominada Concessão de Uso Especial para fins de Moradia – CUEM.
Partindo-se desta premissa legal, em 2002 a Associação de Moradores
da Vila São Pedro, legalmente assistida pelo COHRE – Centro pelo Direito
à Moradia Contra Despejos protocolou pedido administrativo de CUEM
em conjunto com outras comunidades que faziam parte do Programa
Estadual de Regularização Fundiária. Passados 3 anos deste protocolo, e
frente a ausência de resposta do Estado do Rio Grande do Sul com rela-

337
ção ao pedido protocolado, a Associação de Moradores da Vila São Pedro
ajuizou Ação contra o Estado do Rio Grande Sul solicitando a CUEM de
forma Coletiva. Uma ação inovadora visto que as bases legais eram re-
centes (2001) e que não foram detectados precedentes deste tipo de Ação
Judicial, ainda mais de forma “coletiva”.
Esta ação da comunidade da Vila São Pedro, visando a garantia do seu
Direito à Moradia, foi resultado de um processo coletivo, compartilhado
entre diversos atores públicos e privados que atuaram, inicialmente pela
mobilização e informação da comunidade visando instrumentaliza-la
para o enfrentamento jurídico e político da disputa territorial. Assim foram
atores importantes desta caminhada: a comunidade da Vila São Pedro,
organizada através de um Comitê Gestor composto por representantes
da Associação de Moradores e por lideranças comunitárias, o Centro pelo
Dirieto à Moradia contra Despejos - COHRE, o Serviço de Assesoria Jurí-
dica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – SAJU/
UFRGS, o Ministério das Cidades, a Assembléia Legislativa do Estado e a
Camara de Vereadores do município de Porto Alegre.
É importante destacar que disputas desta envergadura, que colocam
em cheque conceitos formatados e subvertem a lógica de mercado his-
tóricamente posta, propondo-se a tratar a questão da terra e da moradia
por uma perspectiva de direito e não mais de mercadoria, necessitam
diferentes estratégias de intervenção, sendo a judicialização uma delas.
Assim a judicialização do processo de regualrização fundiária da Vila São
Pedro, foi conduzida de forma articulada à estratégias de mobilização, de
formação e informação, de incidência e de instrumentalização:
Estratégia de Mobilização: esta estratégia teve por objetivo mobilizar
a comunidade para o enfrentamento do processo de regularização fun-
diária e fortalecer a coletividade visto que a ação judicial previa a CUEM
de forma coletiva, e que este trata-se do primeiro passo para a efetivação
do direito à cidade e à moradia que no caso da Vila São Pedro vai além
da CUEM, pois a comunidade necessita também de intervenções fisicas
para qualificação do espaço e das moradias. Foram ações vinculadas

338
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

á essa estratégia: a constituição de um Comitê Gestor, a realização de


reuniões sistemáticas (A) e o desenvolvimento de dois projetos visando o
fortalecimento comunitário, um denominado “ Minha Vila Fotografo Eu”
(C), onde a fotografia foi a ferramenta de mobilização e outro chamado de
“Construção Coletiva de um Espaço Comunitário” (B), onde a ferramenta
de mobilização foi a construção de uma estrutura Geodésica no terreno
destinado para a comunidade desenvolver suas atividades comunitárias.

FIGURA 3: Estratégias de Mobilização. Fonte: COHRE (2006)

Estratégia de (in)formação: Esta estratégia teve por objetivo formar a


comunidade sobre direitos humanos, direito à moradia e sobre as questões
tecnicas que envolveram o processo de regularização fundiária. Também
teve ações voltadas à informação sobre os temas tecnicos relevantes do
processo e seus avanços no tempo. Foram ações desta estratégia: a ela-
boração e distribuição de Folhetim Informativo da Regularização Fundi-
ária e oficinas juridicas e urbanas visando a formação / capacitação dos
moradores da vila São Pedro;
Estratégia de Instrumentalização: Esta estratégia teve por objetivo
instrumentalizar, através de peças tecnicas, o processo de regularização
fundiária e a ação judicial da CUEM em conjunto com a comunidade. A
partir desta estratégia foram elaborados os seguintes documentos: ca-
dastro socioeconômico e proposta de projeto urbanístico e arquitetônico
para a Vila São Pedro. Para a construção de uma proposta urbanística
e arquitetônica foram realizadas oficinas temáticas (A) e promovidas
visitas em empreendimentos de HIS na cidade de Porto Alegre (B). O ca-
dastro socioeconômico subsidiou a ação judicial e o projeto urbanístico

339
foi apresentado ao Ministério Público como proposta alternativa àquela
desenvolvida pelo Estado sem a participação da comunidade.

FIGURA 4: Projeto urbanístico prioposto pela comunidade. Fonte: COHRE (2006)

FIGURA 5: Oficina o espaço que temos: COHRE (2006)

Estratégia de Incidência: esta estratégia teve por objetivo sencibilizar


gestores públicos estaduais e municipais, bem como a sociedade sobre a
pauta da vila São Pedro. Ela foi fundamental para o andamento da ação
judicial e para o resguardo do direito à moradia das familias. As ações de
incidência foram definidas pontualmente ao longo do processo de regualri-

340
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

zação fundiária de acordo com as demandas e necessidade apontadas pelo


própio processo, como por exemplo: garantir voz perante o Governo do
Estado; barrar ações arbitrárias do Estado na comunidade, e; sensibilizar
o poder judiciário sobre a urgência das demandas da comunidade. Assim,
foram ações de incidência: a denúcia na midia (foi realizada repostagem
na TVE sobre a situação da Vila São Pedro), a realização de Audiências
Públicas no legisltivo municipal e estadual, o protocolo de pedidos e de-
núncias junto ao Ministério Público Estadual e a articulação da comunidade
da vila São Pedro com outras comunidades com pauta semelhante, como
a Vila São Judas Tadeu e Vila Salvador França.
Em 2008, decorridos 3 anos o ajuizamento da ação da Vila São Pedro,
o judiciário chamou a primeira Audiência e ouviu as partes, seus relatos
e testemunhas, onde o encaminhamento dado foi a de uma mesa de
negociação para definir o “objeto” da diputa, visto que não havia acordo
quanto a área a ser concedida (tamanho e delimitações). Destaca-se que
desde o inicio do processo a comunidade demanda a área toda, a qual
é composto pela área ocupada pelas famílias, a área que foi urbanizada
em 2002 e a parte da frente que é ocupada por revendas clandestinas de
automóveis que ali se estabeleceram sem nunca pagar nada aos cofres
públicos. Esses terrenos, que fazem frente para a Av. Ipiranga são estra-
tégicos para a regularização fundiária (em especial sob o aspecto urba-
nístico) sob o ponto de vista da garantia do “direito à cidade” para a vila
São Pedro. Aberta a mesa de negociação, em 2008, decorreram mais 2
anos de intensos embates e disputas, encontros e tensionamentos, para
que em maio de 2010 fosse assinado o Acordo que deu fim a Ação Judicial
(interesse do Estado) e que viabilizou a Concessão de Usos Especial para
fins de Moradia para a vila São Pedro, primeiro passo para a efetivação
do direito à moradia: com a terra garantida, a comunidade lutará agora
pelas obras de urbanização e pelas moradias.

341
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: OS DESAFIOS DO PROCESSO
DE REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA, DA VILA SÃO PEDRO
PARA EFETIVAÇÃO DO DIREITO A MORADIA.

Não há dúvidas que a vila São Pedro se beneficiou dos avanços nor-
mativos e de investimentos das últimas décadas relacionadas à regula-
rização fundiária. A comunidade também logrou avanços significativos
em termos de cidadania, pois, a compreensão da comunidade de que a
questão da moradia ou da “efetivação do direito à moradia” transcende a
“casa”, articulada aos novos instrumentos disponibilizados pelo Estatuto
da Cidade e a necessidade de mapear parceiros, desencadeou uma ação
em rede que ao mesmo tempo em que fortaleceu a luta da regularização
fundiária construiu cidadania, tornando-se também ação estratégica de
incidência pela regularização fundiária através da CUEM.
Por outro lado, é fato que há muito a se fazer naquela comunidade para
que se efetive o “direito à moradia” das famílias que lá residem. O processo
vivido pela comunidade da vila São Pedro, coloca como primeiro desafio
da regularização fundiária, os limites da instituição pública enquanto
promotora de processos desta envergadura que exigem ações de Estado,
e não de Governo para serem efetivas. Também, registra a comunidade
como protagonista e promotora das ações que defendem seus interesses
(que são coletivos) e aponta ações de mobilização, de capacitação, de
informação e de fomento à organização comunitária como eixos estru-
turais do processo, e um desafio para a comunidade e seus parceiros. As
paralisações do processo refletido especialmente na não finalização das
obras, a demora nas respostas do poder executivo e judiciário, a ausência
do poder público (enquanto Estado) na comunidade, o não cumprimento de
acordos legais8 e de compromissos políticos são variáveis que fomentam
a desmobilização e a desarticulação da comunidade.
Também está posto o desafio de atuar de forma articulada em processos
de regularização fundiária, tanto do ponto de vista técnico, como do ponto
de vista estratégico. Tecnicamente, o processo da vila São Pedro iniciou

342
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sob uma perspectiva interdisciplinar (jurídica, urbana e social), quando


impulsionada pelo poder público, mas a falta de garantias e a ameaça
de despejo forçou uma atuação focada nos aspectos jurídicos (garantir a
posse). Complementarmente cabe também destacar os desafios no campo
registral. Passados dois anos da outorga da CUEM pelo estado do RS aos
moradores da vila São Pedro, ainda não se efetivou seu registro público.
Sem dúvidas processos deste tipo, com base legal recente e ainda pouco
utilizada acabam por esbarrar nos procedimentos padrões, ainda não
adequados ou regulamentados. No caso da Vila São Pedro está pendente
para o Registro, o desmembramento da área concedida do todo maior que
agrega ainda o HPSP, a parte urbanizada da vila e a parte ocupada pelas
revendas de automóveis. Sobre esse ponto há de se destacar a fragmen-
tação da área visando atender quesitos legais. Urbanisticamente interessa
para a cidade e para a comunidade que o território ocupado pela vila São
Pedro seja compreendido e trabalhado na sua totalidade: parte ocupada,
parte urbanizada e áreas que fazem frente para a Ipiranga. Tem-se aqui
o desafio da ação técnica integrada.
Por fim, cabe destacar o grande e atual desafio da comunidade da
Vila São Pedro para efetivar seu direito à moradia, que é o da retomada
das obras de urbanização e de construção das moradias. O Estado do Rio
Grande do Sul, a partir de uma mudança de governo, assumiu o compro-
misso pela retomada das obras. Contudo ainda carece da definição de
uma Política de Regularização Fundiária para o Estado. Questões como a
posse coletiva, a participação efetiva e o protagonismo comunitário não
podem ser deixados à margem do processo de regularização fundiária da
vila São Pedro, pois são elementos fundamentais para a sustentabilidade
do processo no tempo (permanência das famílias na área regularizada) e
no espaço (área de interesse social). Num contexto de supervalorização
imobiliária, onde um dos desafios está no acesso dos menos favorecidos a
terra urbanizada, o reconhecimento da posse coletiva através da CUEM é
um grande avanço e deve se estender aos projetos de urbanização da vila,
os quais devem primar pelo uso social e coletivo da terra. A regularização

343
fundiária pela propriedade individual inserido no atual modelo de desenvol-
vimento não garante o direito à moradia e a inserção socioeconômica das
famílias à cidade, servindo apenas aos interesses do mercado. A moradia
é um direito a ser garantido pelo estado brasileiro, não é mercadoria, e
por assim deve ser entendido enquanto política de Estado para o acesso
à terra urbanizada com interface direta com a política territorial e com
a política habitacional, e sendo assim deve, no âmbito do ordenamento
jurídico urbano brasileiro, integrar o Plano Diretor (instrumento de gestão
territorial) e o Plano Local de Habitação de Interesse Social (instrumento
de gestão da política de habitação de interesse social).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

ALFONSIN, Betânia de Moraes. Da invisibilidade à regularização fundiária: a tra-


jetória legal da moradia de baixa renda em Porto Alegre – século xx. (Dissertação
de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional),
Porto Alegre: UFRGS. 2000.
FONSECA, Claudia. Família , fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e
violência em grupos populares. Porto Alegre. Editora da UFRGS, 2000.
MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigual-
dade e violência. São Paulo, Editora HUCITEC, 1996.
CENTRO PELO DIREITO À MORADIA CONTRA DESPEJOS (COHRE). Direito à Mo-
radia: para conhecer e fazer valer. Porto Alegre, 2008. Cartilha.
________. Relatório Etapa III do Projeto Urbanização, Regularização e Integração de
Assentamentos Precários Vila São Pedro/Porto Alegre, 2006.

NOTAS

1
Segundo o IBGE Aglomerado Subnormal é É um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habita-
cionais (barracos,casas etc.) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo
ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em
geral, de forma desordenada e densa”.
2
O direito à cidade é definido como o usufruto equitativo das cidades, visando o desenvolvimento sustentável
através de alternativas e de novas formas de pensar a gestão do solo urbano de forma a potencializar o in-
teresse social na apropriação da terra fazendo com que a cidade cumpra sua função social e que se produza
de forma democrática, justa, eqüitativa e sustentável. Isto posto, pressupõe-se o exercício pleno e universal
da vida, ou seja o exercício de todos os direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos, inerentes ao
ser humano, previstos na normativa nacional e pelos pactos e tratados internacionais. Carta Mundial pelo

344
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Direito à Cidade (2005).


3
“A regularização fundiária é importante no caminho da garantia efetiva do Direito à Cidade, já que nas últimas
décadas se observa uma complexificação da segregação sócio-espacial, em um fenômeno no qual os pobres
passaram a ocupar também os interstícios da cidade formal e das regiões de alta renda, inclusive tendo em
vista a busca de oportunidades de emprego e rendimentos, evidentemente mais abundantes nestas regiões
da cidade. A possibilidade de regularizar as ocupações localizadas no tecido intra-urbano da cidade (às vezes
existentes há décadas) é uma garantia à população pobre de que ela também terá “Direito ao Centro” e aos
bens oferecidos por este mesmo centro”. ALFONSIN, Betânia de Moraes. 2000.
4
Definição proposta pelo Centro pela Moradia Contra Despejos COHRE (2008) a partir do conceito definido
por Betânia de Moraes Alfonsin.
5
Uns dizem que o nome foi dado por um “burguês” que, ao não conseguir recrutar trabalhadores entre os
homens aparentemente ociosos, sentados à entrada da vila, teria dito: — “O quê! Só tem cachorro sentado por
aqui?”. Segundo outros, morreu um cachorro à entrada da vila e o pessoal foi tão negligente que “o cadáver
ali ficou sentado ali umas duas semanas” até ser removido (FONSECA, 2000).
6
Segundo Fonseca (2000) a partir de diversos autores o termo “família chefiada por mulher” tem sido em-
pregado para designar unidades domésticas de mulheres sem marido, ou, havendo marido, aquelas onde
são maiores: o número de consangüíneos matrilaterais, a renda da mulher, ou, simplesmente, a influência
feminina nas redes afetivas da ajuda mútua.
7
O Projeto previa a construção de 277 unidades habitacionais.
8
Em 2002 foi assinado um TAC – Termo de Ajustamento de Conduta – que responsabilizava o Estado do RS,
obrigando-o a realizar as ações que tinham por objetivo a regularização fundaria das vilas São Pedro e Salvador
França sob pena de multa, o qual nunca foi cumprido.

345
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A regularização fundiária
como garantia de moradia e
de meio ambiente equilibrado

Luciana Bedeschi 1

INTRODUÇÃO: O contexto histórico da irregularidade e da


informalidade dos assentamentos habitacionais nas cidades

No Brasil a segregação social no uso e ocupação do solo para fins


de moradia e trabalho teve origem no Império, com a Lei 601/1850, ga-
nhou força na República; e, com o Código de 1916, marcou a formação
da cidade capitalista
As favelas especialmente, símbolo da desigualdade na cidade, surgem
no final do século xIx e hoje estão presentes em 80% das cidades brasi-
leiras. Elas marcam a fuga do cortiço, do aluguel exorbitante e a falta de
condições de fixação no campo.
Mas há outros fatores que acirraram a informalidade e a segregação
dentro da cidade, refiro-me à legislação urbanística, promotora de ex-
clusão territorial na forma de planejamento urbano, que reiteradamente
definiu territórios dentro e fora da lei, configurando regiões de cidadania
plena e regiões de cidadania limitada. A estes fatores de segregação
somam-se os processos de renovação dos centros urbanos que sobrevém
para e simultaneamente promover valorizações imobiliárias, e que também
vão contribuir para o aumento do valor do aluguel e a gentrificação, na
forma de exclusão da população local. Este movimento, típico do sistema
capitalista, empurra populações para as periferias das cidades e muitas

1 Doutoranda em Planejamento e Gestão do Território na Universidade Federal do ABC. Graduada em Direito


pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (1997) e Mestra em Direito Público pela Pon-
tifícia Universidade Católica de São Paulo (2012). É vice coordenadora na organização não governamental
Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

347
vezes para áreas impróprias à ocupação para fins de moradia. Deste modo,
a ocupação em áreas de proteção permanente passam a ser o refúgio da
população desassistida.
Desprezadas pelo mercado imobiliário as áreas de proteção perma-
nente localizadas em perímetros urbanos foram gradativamente ocupadas
por favelas e por loteamentos informais e irregulares. Da parte do Poder
Público, remover as moradias em áreas protegidas significa o dever de
garantir o direito à moradia em lugar seguro, mas como as políticas habi-
tacionais são insuficientes, tolerar, à própria sorte, é uma opção política
adotada em muitos casos.
Em vista deste quadro, entre tanto outros problemas da urbaniza-
ção brasileira, foi iniciado no início da década de 1960, fortalecido na
década de 1980 - um amplo movimento de reforma urbana disposto ao
enfrentamento da situação degradante da habitação caracterizada pela
irregularidade urbana e a exposição ao risco, resultando, inicialmente, em
mudanças pontuais na legislação, culminando, nos anos seguintes, em
importantes mudanças nas normas gerais, que geraram novos direitos à
população moradora destas áreas irregulares e informais, seja a partir de
implantação de infraestrutura necessária para o conforto e a contenção
de riscos, seja pelo reconhecimento do direito, possibilidade de titulação
e proteção jurídica da moradia.

A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE


NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A expressão “meio ambiente” foi trazida ao Direito Constitucional


Brasileiro pela Constituição Federal de 1988. Na Assembleia Constituinte
de 1988 foi colocada a questão do meio ambiente a partir da mobilização
social, que promoveu seminários em diversas capitais brasileiras - já que o
debate em torno da escassez dos recursos naturais era latente no país. Esta
mobilização da sociedade civil é também marca do sociambientalismo
brasileiro nascido na segunda metade dos anos 1980, período da rede-

348
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mocratização do país, fruto de articulações entre os movimentos sociais


e o movimento ambientalista - mais antigo -, e ao que se deve a inclusão
no texto constitucional dos direitos de povos indígenas, de comunidades
quilombolas e de suas manifestações culturais.
O meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida, cuja proteção se impõe ao
Poder Público e à coletividade no sentido de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações, logo, é que se constitui numa importante
inovação eis que é o bem ambiental, tratado como valor difuso, imaterial ou
material que serve de objeto nas relações jurídicas de natureza ambiental.
A Constituição Federal de 1988 ao mesmo tempo em que anuncia “todos
têm direito” cria direito subjetivo, ou seja, este direito é individual e geral
ao mesmo tempo2, como de interesse difuso, sua proteção é difusa. Estes
aspectos são parte do bem ambiental material nas cidades: material no
sentido da preservação da qualidade dos recursos ambientais disponíveis;
e, imaterial, no sentido da consciência de bem-estar, que atinge todos os
habitantes das cidades sem fazer distinção de classes e ideologias.

O DIREITO à CIDADE E à MORADIA


NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O momento da Assembleia Nacional Constituinte também marcou a


mobilização de um conjunto de entidades, associações de classe, orga-
nizações não governamentais e movimentos populares que produziram
uma emenda popular subscrita por cerca de 131.000 eleitores.3Inobstante
as demais intervenções dos diversos setores interessados, o pleno de-
senvolvimento das funções sociais da cidade foi então introduzido como
direito fundamental dirigente da política urbana, no caput do artigo 182
da Constituição Federal.

2 Neste sentido, MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2011.p. 133.
3 A emenda popular da reforma urbana propunha um conjunto de princípios, regras e instrumentos destinados
à institucionalização e promoção do direito à cidade. Conforme SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas perspectivas
do Direito Urbanístico Brasileiro: ordenamento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do
Plano Diretor. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. p. 30-31.

349
Contudo, a trajetória do direito à cidade remete à decada de 1960,
quando as primeiras ideias sobre o direito à cidade como um direito hu-
mano começam a ser desenvolvidas, inicialmente na França, a partir das
formulações de Henri Lefebvre, para quem o direito à cidade (não a cidade
arcaica, mas a centralidade), em relação aos trabalhadores, encontrava-
-se em formação assim como o Direito do Trabalho, como luta coletiva
e emancipação,4 e no Brasil, com as lutas sociais pela reforma urbana
iniciadas na mesma década, que reivindicavam reformas estruturais no
trato das questões fundiárias brasileiras. Em decorrência do regime militar
que afundou o Brasil numa ditadura militar que durou de 1964 a 1986,
estes temas não puderam ser colocados ampla e publicamente em debate,
reaparecendo com força na Assembleia Constituinte.
Esta experiência brasileira, de institucionalizar uma ideia política de
cidade inclusiva, foi decisiva para a inclusão do direito à cidade em Fó-
runs em Conferências Internacionais, dos quais se destacam o Tratado
“Por Cidades, Vilas e Povoados, Justos, Democráticos e Sustentáveis”,
elaborado para a Conferência da Sociedade Civil Sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento durante a Conferência das Nações Unidas Sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, a ECO 92; e os
temas da Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos,
Habitat-II, realizada em Istambul em 1996:”Adequada Habitação Para To-
dos” e o “Desenvolvimento de Assentamentos Humanos em um Mundo
em Urbanização”. Esta última Conferência, além de ser um espaço para a
construção do direito à cidade em âmbito internacional, ainda reconheceu
o direito à moradia como um direito humano, influenciando no Brasil para
a promulgação da Emenda Constitucional 26 de 2000, que inclui o direito
à moradia aos direitos sociais.5
Carta Mundial pelo Direito à Cidade6, publicada em 2004, define o direito

4 LEFEBVRE, Henri. Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2001. p. 139.


5 SAULE JÚNIOR, Nelson. Direito Urbanístico: vias jurídicas das políticas urbanas.Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 2007. p. 36.
6 A Carta Mundial pelo Direito à Cidade origina-se no Fórum Social das Américas, realizada em Quito, 2004,
e é fruto da organização de um conjunto de movimentos populares, organizações não governamentais, asso-
ciações profissionais, fóruns e redes nacionais e internacionais da sociedade civil.

350
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

à cidade como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios da


sustentabilidade e da justiça social, compreendendo o direito coletivo dos
habitantes das cidades em especial dos grupos vulneráveis e desfavoreci-
dos, conferindo-lhes legitimidade de ação e de organização, baseado nos
usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito
a um padrão de vida adequado.
Quanto ao direito fundamental à moradia, este foi inserido na Cons-
tituição Federal, no Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”,
Capítulo II: “Dos Direitos Sociais”, da Constituição Federal de 1988. É a
edição da Emenda Constitucional nº 26/2000, que incluiu a moradia no
rol dos direitos sociais fundamentais, dispostos no artigo 6º da Consti-
tuição Federal. O direito coletivo à moradia revela-se inicialmente como
direito e garantia dos trabalhadores e como disposição para construção de
melhoria das moradias, segundo artigos 7, inciso IV e 23, inciso Ix. Este
direito coletivo à moradia vai densificar com a publicação do Estatuto da
Cidade, reconhecendo o direito à moradia de forma coletiva aos moradores
de assentamentos informais localizados em áreas públicas e particulares
e estabelecendo garantias para o exercício coletivo destes direitos, nas
formas dos instrumentos da Concessão de Direito Real de Uso, da Con-
cessão de Uso Especial para Fins de Moradia, e na Usucapião Coletiva.
Em âmbito internacional, a moradia é um direito humano reconhecido,
protegido e tem como fundamento o direito a toda pessoa manter um
nível adequado de vida, com dignidade, segundo o artigo xxV da Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos. Como direito subjetivo, legitima a
pretensão do seu titular, individualmente, protegendo-o no caso de uma
restrição. No contexto objetivo, este direito fundamental representa uma
garantia social coletiva, o que implica proibir restrições à sua eficácia, e
promover ações estatais que fomentem sua realização.

OS ENCONTROS E DESENCONTROS DA LEGISLAÇÃO


DE PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE E DA LEGISLAÇÃO
URBANÍSTICA NO âMBITO DA REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA

Embora constituam disciplinas jurídicas distintas, cada qual com seus

351
institutos e princípios próprios, existe forte interação entre os pressupos-
tos do Direito Ambiental e do Direito Urbanístico, uma vez que ambos
os direitos influenciam as condições de cumprimento da função social
da propriedade.
As agendas internacionais buscaram conciliar interesses ambientais
e urbanísticos. Assim como a Agenda 217, a Agenda Habitat8 converge
no sentido de que a proteção ambiental e a promoção da moradia são
conteúdo do desenvolvimento sustentável, por isso devem ser aplicadas
conjuntamente.
Mas se as agendas buscam um tom conciliatório, cabe saber o quanto
a legislação brasileira converge em direitos. Partindo de uma retrospectiva
da legislação brasileira verifica-se que se as normas ambientais, conceitos
e deveres relativos ao meio ambiente são novidade na Constituição de
1988, contudo, as primeiras políticas de proteção ao meio ambiente foram
sancionadas na década de 1930. Naquele período os objetivos eram o de-
senvolvimento e a manutenção da propriedade e dos meios de produção.
Neste momento político, conhecido como “Segunda República”, surgem as
primeiras respostas às inquietações e manifestações contra a exploração
predatória dos recursos naturais. São deste período, portanto, o conjunto
de decretos voltados à proteção e gestão dos recursos naturais que com-
preendem o Primeiro Código Florestal de 1934, o Código de Mineração e
o Código de Águas.
A Política Nacional do Meio Ambiente9, implantada em meio a um pro-
cesso de redemocratização do país, representa uma pequena mudança de
orientação no rumo das políticas ambientais ao integrar em seus objetivos
a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental. A cria-

7 A Agenda 21, como resultado da Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento - ECO-92, é o
compromisso assumido por cada país considerando os diversos setores da sociedade em refletir de forma local
e global como poderão contribuir para solução de problemas socioambientais. Em 1997, na Rio+5, a agenda
é revista. Em 2000, na 55ª Assembleia das Nações Unidas foi adotada nova agenda, denominada Metas de
Desenvolvimento do Milênio, que prioriza as políticas globais para erradicação da pobreza e da fome.
8 A agenda Habitat resulta da Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos - Habitat II,
realizada na Cidade de Istambul em junho de 1996.
9 BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins
e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências.

352
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ção dos Sistemas Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) e do Conselho


Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) respondeu às demandas dos am-
bientalistas e estes órgãos foram implementados para estruturar a política
do meio ambiente, entretanto, as ações de integração dos diversos órgãos
que compõem o SISNAMA não foram previstas e não foram estabelecidas
quaisquer diretrizes para favorecer esta integração. A criação do CONA-
MA é representativa e caracteriza-se como a maior inovação trazida pela
Lei nº 6.983/1981 por favorecer a participação da sociedade civil. Com o
tempo, o CONAMA ganhou importância pelo conjunto de Resoluções que
dispõem sobre a política do Meio Ambiente.
Também, e em síntese, é oportuno lembrar as medidas de proteção ao
Meio Ambiente contidas na legislação urbanística, para perceber como
estas medidas interferem na regularização fundiária de interesse social.
É deste período a publicação da Lei federal nº 6.766/1979, que foi san-
cionada para disciplinar o parcelamento do solo, não sua regularização.
Em matéria ambiental destacou-se ao proibir o parcelamento em terre-
nos inseridos em áreas de preservação ecológica e estabelecendo faixa
non eadificandi de 15 metros de cada lado ao longo de águas correntes e
dormentes, quando o Código Florestal, vigente à época, previa uma faixa
de 5 metros.
Adiante, 11 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988,
o Estatuto da Cidade, Lei federal nº 10.257/2001, vai estabelecer como
diretrizes gerais de política urbana a garantia do direito às cidades sus-
tentáveis, a proteção, a preservação e a recuperação do meio ambiente
natural e construído, a regularização fundiária e a urbanização de áreas
ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de
normas especiais de urbanização, consideradas a situação socioeconô-
mica da população e as normas ambientais; e a ordenação e controle de
uso do solo como forma de evitar a deterioração de áreas urbanizadas e
a poluição e a degradação ambiental.
Mas até este ponto, a possibilidade legal de regularização integrada e
de interesse social de loteamentos irregulares e informais com incidências

353
ambientais caracterizadas pelas ocupações de faixas de áreas de preser-
vação permanente era praticamente inexistente, inobstante o respeito ao
direito à moradia das populações vivendo nestas áreas, que foi inserido na
Medida Provisória nº 2.220/2001, dispondo ao Poder Público assegurar o
exercício do direito da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia
se o imóvel cuja concessão requerida estiver sobre área de preservação
ambiental e proteção de ecossistemas naturais.
Em 2006 foi publicada a Resolução CONAMA nº 369, produzida a partir
de um acordo entre ambientalistas e urbanistas. A CONAMA nº 369 dispõe
sobre a regularização fundiária de interesse social, em seção denominada
“Da regularização fundiária sustentável em área urbana”, que estabelece
o conceito de ocupação consolidada.
Mas a Lei federal nº 11.977/2009 também trouxe disposições para a
interação entre a legislação urbanística e ambiental e a solução para os
assentamentos consolidados em áreas de proteção permanente. Inicial-
mente, ao dispor sobre o procedimento de regularização fundiária esta
lei atribui dimensão à proteção ambiental às medidas de regularização,
e vincula ao plano de regularização fundiária as medidas necessárias à
sustentabilidade urbanística, social e ambiental da área ocupada, incluindo
compensações ambientais.
Poupadas as diferenças conceituais e de marco temporal existentes
entre os dois regramentos, verifica-se que no tocante ao estabelecimen-
to de plano ambiental para implantação de regularização fundiária, a
Resolução CONAMA nº 369 e a Lei federal nº 11.977/2009 têm o mesmo
entendimento, ou seja, de que os aspectos da área e as medidas ambientais
devem compor o plano de regularização fundiária.
Contudo, a Resolução CONAMA nº 369 não acumula experiências de
aplicação. Neste sentido, é difícil fazer, ainda que em síntese, uma compa-
ração entre a resolução CONAMA e a lei federal, mas quando então a Lei
federal nº 11.977/2009 promove a simplificação do processo de aprovação
da regularização fundiária de interesse social ao reunir no mesmo proce-
dimento o licenciamento urbanístico e ambiental, no âmbito municipal,

354
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

porém estabelecendo que o Município tenha Conselho de Meio Ambiente


e Órgão Ambiental capacitado, em consonância à Política Nacional de
Meio Ambiente, verifica-se que ela supre uma carência imposta pela
CONAMA que advém da indefinição sobre a competência para autorizar
a intervenção em áreas de preservação permanente.
Logo, em virtude da publicação da Lei federal nº 11.977/2009, verifica-
-se que na regularização fundiária de interesse social é a norma geral,
estabelecida pelo seu artigo 54, que deve ser aplicada. E nem há que se
falar sobre conflito de disposições. E mesmo que fosse, como critério de
solução aplicáveis para as questões de antinomia levantadas em virtude da
possibilidade de intervenção nas APP com finalidade de promover a regu-
larização fundiária de interesse social, é importante verificar que: enquanto
i) critério hierárquico, a Lei federal nº 11.977/2009 está no mesmo grau de
hierarquia do Código Florestal10 e em hierarquia superior às resoluções
do CONAMA; ii) aplicado critério cronológico, a Lei federal nº 11.977/2009
é cronologicamente mais recente que a Lei federal nº 6.766/1979 e a
derroga no tocante à regularização fundiária de assentamentos em áreas
urbanas; e, finalmente, iii) quanto ao critério da especialidade, a Lei fede-
ral nº 11.977/2009 trata com especialidade a regularização fundiária de
interesse social de assentamentos em áreas urbanas, e cria regra especial
para admitir, com critérios, a regularização fundiária de interesse social em
áreas de preservação permanente ocupadas até 31 de dezembro de 2007.
Portanto, os instrumentos disponíveis hoje para a regularização fundi-
ária em APPs são os estudos ambientais, que devem compor os Planos de
Regularização Fundiária, outros instrumentos podem e devem ser orga-
nizados pelos Municípios como garantia da recuperação de áreas verdes,
das ações de educação ambiental e de demais ações sanitárias que podem
de fato, promover a melhoria ambiental das áreas de preservação perma-
nente em perímetros urbanos. Logo, a dimensão da proteção ambiental

10 Veja Lei federal 12.651/2012, especialmente o artigo 64 que “Na regularização fundiária de interesse social
dos assentamentos inseridos em área urbana de ocupação consolidada e que ocupam Áreas de Preservação Per-
manente, a regularização ambiental será admitida por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária,
na forma da Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009”.

355
em áreas urbanas deve ser vista com mais cautela pelo Poder Público e
população em geral. Cada vez mais a dimensão ambiental e sua proteção
tendem a ocupar mais espaços na legislação urbanística, nas políticas
públicas e no modo de vida nas cidades, um exemplo é a inserção sempre
que possível da expressão sustentabilidade na nova legislação, políticas,
diretrizes e práticas.

DIREITOS FUNDAMENTAIS, GARANTIAS E


DIRETRIZES APLICáVEIS à REGULARIZAÇÃO
FUNDIáRIA DE INTERESSE SOCIAL

A compreensão de direitos fundamentais na ordem jurídica brasileira


pressupõe a observação dos fundamentos dispostos no artigo 1º da Cons-
tituição Federal de 1988: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa
humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo
político. Cabe também observar os objetivos fundamentais da República,
disciplinados no artigo 3º da Constituição Federal, e que se constituem em
construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento
social, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais, e promover o bem de todos, sem preconceitos de ori-
gem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A chamada dos fundamentos e objetivos interessa ao objetivo deste
artigo porque os instrumentos da regularização fundiária, ao serem regu-
lamentados e aplicados pelo Poder Público, atendem aos direitos funda-
mentais: a) individuais e coletivos, pela garantia da moradia adequada ao
coletivo, e individualmente por cada morador; e d) difusos caracterizados
pelo pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, garantia de
bem-estar de seus habitantes e cumprimento da função social da proprie-
dade e da cidade.
As garantias visam, como o nome promete, densificar direitos. Embora
não sejam tão nítidas as linhas que separam direitos e garantias, há ver-
bos que podem enunciar garantias, ou seja, tanto reconhece um direito
que o garante.

356
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Para um conceito mais amplo de garantia constitucional, adverte José


Afonso da Silva, estariam os “meios predispostos para assegurar a ob-
servância, e, portanto, a conservação, de um determinado ordenamento
constitucional”.11
A garantia, portanto, pode ser entendida como a densificação, a cor-
porização de um direito. Contudo, há a distinção entre direito e garantia,
sendo bem um e meio outro. Seguindo na lição de José Afonso da Silva:
“as garantias constitucionais são também direitos, não como outorga de
um bem e vantagem em si, mas direitos instrumentais, porque destinados
a tutelar um direito principal”.12
Por um recorte entre direitos, garantias e diretrizes, papel e função de
cada um, consequentemente sua aplicação, uma vez que o tema central
deste artigo é defender a regularização fundiária como diretriz de recu-
peração de áreas de proteção permanentes, é oportuno, na busca de um
conceito de diretriz, mencionar Patrícia Helena Massa-Arzabe, que, ao
estudar a dimensão jurídica das políticas públicas, expõe que:

[...] o legislador pátrio de políticas sociais utiliza de maneira


geral a expressão “diretriz” para estabelecer parâmetros de
operacionalização da política, como a descentralização político
administrativa, a participação da sociedade civil organizada, por
meio dos conselhos, na formulação das políticas e no controle
das ações, a primazia da responsabilidade do Estado na condu-
ção da política.

Neste sentido enquanto as diretrizes atribuem os eixos operacionais de


atuação, os princípios conferem o estado de coisas com que esta atuação
deve se dar, seguindo a autora,

A estatuição de princípios e diretrizes em textos normativos


tem evidente finalidade de vinculação dos órgãos dos poderes
públicos à sua observância, assim como a vinculação de sua atu-
ação aos órgãos e instâncias controladoras, com a incorporação
destes princípios e diretrizes nas ações e burocracias estatais, de
sorte que os objetivos visados pelas políticas sociais possam se
concretizar.13

11 Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 187- 188.
12 Ibid., p. 417.
13 Dimensão jurídica das políticas públicas. In: BUCCI, Maria Paula Dallari. (Org.). Políticas públicas: reflexões
sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 65.

357
Vale trazer também, para o entendimento do papel das diretrizes, o
comentário de Maria Paula Dallari Bucci, que, ao produzir um conceito
válido de política pública em Direito, apresenta à diretriz o seguinte papel:

Poder-se-ia dizer que as políticas públicas atuam de forma com-


plementar, preenchendo os espaços normativos e concretizando
os princípios e regras, com vistas aos objetivos determinados.
Caberia, então, encontrar lugar (ou melhorar os seus contor-
nos) para uma categoria jurídico-formal, situada provavelmente
abaixo das normas constitucionais e acima ou ao lado das
infraconstitucionais. Por este raciocínio, as políticas públicas
corresponderiam, no plano jurídico, a diretrizes, normas de um
tipo especial, na medida em que romperiam as amarras dos
atributos de generalidade e abstração - que extremam as normas
dos atos jurídicos, esses sempre concretos -, para dispor sobre
matérias contingentes.14

Portanto, toma-se a diretriz como meio, direção, estratégia, procedi-


mento, indicação e instrução de ação concreta no sentido da construção de
políticas públicas, mas que também não afasta a finalidade, neste sentido,
para garantia de direitos fundamentais. A partir deste ponto, os direitos,
garantias e diretrizes a seguir mencionados devem ser observados na
aplicação da legislação urbanística e ambiental que estabelecem a regu-
larização fundiária de interesse social em áreas de proteção permanente,
consequentemente à proteção do direito à moradia.
A regularização fundiária de interesse social como diretriz de proteção
e recuperação de áreas de preservação permanente
A regularização fundiária e de interesse social é diretriz de desenvolvi-
mento das funções da cidade e da propriedade urbana, conforme dispõe o
Estatuto da Cidade, e é instrumento de garantia do direito social à moradia
e ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como prevê a
Lei federal nº 11.977/2009, isso porque, além do direito à moradia, tam-
bém o meio ambiente na cidade é observado como questão emergente,
sendo-lhe garantidos instrumentos de proteção.
Os comandos que prenunciam a regularização fundiária como diretriz

14 Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 26.

358
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de garantia de cidades sustentáveis, consubstanciados na Constituição


Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade, articulam todo o discurso sobre
o conceito e conteúdo deste instituto e sua eficácia como instrumento de
gestão integrada entre o ambiente e a cidade, uma vez que se trata de
produto de discussão destas duas disciplinas que vem amadurecendo desde
a proposta de lei de parcelamento do solo15, estas garantias em nada se
opõem aos mandamentos fundamentais da proteção do meio ambiente,
e nem mesmo contra os princípios da função social da propriedade e da
cidade, porque estabelecem um programa de instrumentos para defesa e
integração daqueles direitos fundamentais.
Estes comandos relativos à regularização fundiária estão inseridos
na Lei federal nº 10.257/2001, Estatuto da Cidade, cujos objetivos, como
dispostos no artigo 2º, já tratam que

[...] a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvol-


vimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana
mediante as seguintes diretrizes gerais:
I - garantia do direito às cidades sustentáveis entendido como o
direito à terra urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao
trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
[...] xIV- regularização fundiária e urbanização de áreas ocupa-
das por população de baixa renda mediante o estabelecimento
de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e
edificação, consideradas a situação socioeconômica da popula-
ção e as normas ambientais.

Enquanto programa, a regularização fundiária também prenuncia


ações multidisciplinares de grande importância para a proteção do meio
ambiente quando a Lei federal 11.977/2009 define o conteúdo de projeto,
como definido no seu artigo 51:

O projeto de regularização fundiária deverá definir, no mínimo,


os seguintes elementos:

I - as áreas ou lotes a serem regularizados e, se houver neces-


sidade, as edificações que serão relocadas;

15 Como exposto, trata-se do projeto de lei que se encontra em tramitação no Congresso Nacional sob nº
3057/2000. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposic
ao=19039>

359
II - as vias de circulação existentes ou projetadas e, se possível,
as outras áreas destinadas a uso público;
III - as medidas necessárias para a promoção da sustentabilidade
urbanística, social e ambiental da áreas ocupada, incluindo as
compensações urbanísticas e ambientais previstas em lei.

Adiante a lei irá disciplinar o necessário licenciamento ambiental


podendo ser realizado pelo Município ou subsidiariamente pelo Estado,
artigo 53, § 1º, e a realização de estudo técnico de intervenção e melhoria
das condições ambientais em relação à ocupação, artigo 54, § 2º, sendo
conteúdo mínimo:

I - Caracterização da situação ambiental da área a ser regula-


rizada;
II - Especificação dos sistemas de saneamento básico;
III - Proposição de intervenções para o controle de riscos geo-
técnicos e de inundações;
IV - Recuperação de áreas degradadas e daquelas não passíveis
de regularização;
V - Comprovação da melhoria das condições de sustentabilidade
urbano-ambiental, considerados o uso adequado dos recursos
hídricos e a proteção das unidades de conservação, quando for
o caso;
VI - Comprovação da melhoria da habitabilidade dos moradores
propiciada pela regularização proposta; e
VII - Garantia de acesso público às praias e aos corpos d’água,
quando for o caso.

Não resta dúvida de que o estudo que compõe o projeto de regulariza-


ção fundiária como conteúdo do licenciamento, assim como as medidas
de compensação que eventualmente podem ser previstas, pautam-se nos
princípios mais importantes relativos à proteção do meio ambiente: os
princípios da precaução e da prevenção, o princípio do desenvolvimento
sustentável, e os princípios da informação e da participação.
Estes princípios e instrumentos que buscam o estado de equilíbrio do
meio ambiente não estão descolados dos mandamentos de defesa ao
direito à moradia e às funções sociais da cidade, na verdade são parte de
um mesmo programa, cuja eficácia não pode ser desprezada, uma vez
que se constituem como garantias de efetividade de direitos.
Logo, o que falar sobre estas diretrizes de políticas públicas, se elas

360
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

não forem verdadeiras salvaguardas de direitos socioambientais, o mesmo


podendo dizer dos instrumentos de gestão? Estas diretrizes e instrumentos
citados são salvaguardas de direitos fundamentais (à moradia e ao meio
ambiente), que se articulam, com outros direitos fundamentais conexos
(à saúde, à educação, ao lazer, à segurança), por isso a defesa, de que tais
diretrizes e instrumentos devem ter o tratamento de garantia de direitos
fundamentais, cuja função é assegurar que na regularização fundiária de
interesse social em áreas de preservação permanente estes assentamentos
sejam incorporados à cidade legal, contribuindo para a proteção do meio
ambiente ecologicamente equilibrado na medida em que os instrumentos
previstos sejam aplicados
Deste modo, diante dos novos instrumentos de regularização fundiária
de interesse social, os assentamentos antes excluídos do debate da regu-
larização fundiária, estarão incluídos em vista destes novos instrumentos
que os tornarão incorporados à cidade legal. Portanto, o que não se pode
contar, e nem se espera, é que a implantação de programas e instrumen-
tos contidos na referida Lei federal nº 11.977/2009 venham a restringir
estes direitos fundamentais com a proposição de condições e restrições
ao conteúdo dos direitos fundamentais.
Para assegurar este estado de coisas, maior importância deverá ter o
Plano Diretor Municipal, que, segundo Edésio Fernandes16:

[...] deve ser compreendido não apenas como um instrumento


de gestão urbana e ambiental, mas sobretudo como o processo
compreensivo e participativo no qual pode se dar o enfrentamento
dos diversos conflitos existentes acerca do uso e ocupação do
solo urbano e de seus recursos.

Diante deste quadro, para o autor:

[...] falar em Direito Urbanístico e em Direito Ambiental no Brasil


hoje significa falar não somente nas normas legais em vigor, mas
também na qualidade política do processo de produção dessas
leis, nas condições e obstáculos para seu cumprimento efetivo,

16 Impacto socioambiental em áreas urbanas sob a perspectiva jurídica. In: MENDONÇA, Francisco. (Coord.).
Impactos socioambientais urbanos. Curitiba: UFPR, 2004. p. 117.

361
e na dinâmica do processo sociojurídico de produção da ilegali-
dade. É papel de todos - dos setores estatal, privado, comunitário
e voluntário, bem como do Ministério Público - juntar forças
não dividir, para assim enfrentar as graves questões ambientais
urbanas, sobretudo de forma a dar suporte à ação dos governos
municipais comprometidos com a promoção da reforma urbana.

O que se quer defender é que as prescrições estabelecidas pelas dire-


trizes legais não são meros aconselhamentos. Diretrizes têm legitimidade
e eficácia no sentido de gerar responsabilidades e deveres em favor da
garantia do direito à moradia, do direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, eis que estabelecem meios e direcionam programas de atu-
ação. Estas políticas contêm em seu núcleo o fundamento da dignidade
humana e estão a abranger as dimensões: física, com a urbanização e o
saneamento do risco social e ambiental, que experimenta não só a co-
munidade interessada como também todo seu entorno; e jurídica, equi-
valente à titulação jurídica do lote e a segurança da moradia, seja pela
concessão, seja pela propriedade. Esta é a contribuição para a proteção
do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA COMO


GARANTIA DE DIREITO FUNDAMENTAL à MORADIA

Para entender a regularização fundiária de interesse social como ga-


rantia de direito fundamental, é necessário entender que as garantias de
direito, como exposto, constituem-se em instituições e procedimentos
sem os quais direitos fundamentais não podem ser exercidos, portanto
as garantias são conexas aos direitos fundamentais.
A regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por popu-
lação de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de
urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação
socioeconômica da população e as normas ambientais, é uma diretriz do
inciso xIV do artigo 2º do Estatuto da Cidade. O objetivo deste instituto
é promover o direito à moradia e o direito a cidades sustentáveis, ambos
inequivocamente direitos fundamentais.

362
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Não é demais lembrar que o dispositivo do parágrafo 2º do artigo 5º


da Constituição Federal estabelece que: “Os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos prin-
cípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”.
Verificado o sentido das diretrizes contidas no Estatuto da Cidade, não
há como não reconhecer que as diretrizes coadunam garantias gerais no
sentido de normas especiais, que dispõem meio para realização de direitos
e objetivos definidos pela política pública. E, se a política pública à qual
nos referimos tem por objetivo a realização de direitos fundamentais, não
há como afastar a estreita relação entre diretriz e garantia, o que faz com
que a diretriz incorpore efeito de garantia de direito.
Portanto, se havia algum paradoxo caracterizado pelos embates entre
as questões ambientais e urbanísticas, ao menos quanto à regularização
fundiária de interesse social, que impedia a articulação de políticas urba-
nísticas e ambientais, este suposto paradoxo não tem mais razão de existir,
em vista da garantia de proteção de direitos fundamentais presentes no
mesmo programa nas cidades e que, portanto, não se restringem.17
Os instrumentos destas garantias são, desde logo, a legislação, as
diretrizes e programas que asseguram os instrumentos da regularização
fundiária de interesse social e os instrumentos que asseguram, neste
mesmo programa, as medidas de proteção ambiental e recuperação das
áreas de preservação permanente.
José Afonso da Silva ao discorrer sobre garantias de direitos sociais
fundamentais, cria entendimento que pode ser estendidos ao tema deste
trabalho, neste sentido:

17 Neste sentido, vale citar a produção de Resoluções CONAMA, produzidas a partir de 2009, que visa pro-
mover a educação ambiental e também se atém ao licenciamento ambiental de novos empreendimentos
destinados à construção de habitações de interesse social. A Resolução nº 412 de 2009, que estabelece critério
e diretrizes para o licenciamento ambiental de novos empreendimentos de HIS; a Resolução nº 422 de 2010,
que estabelece diretrizes para ações de educação socioambiental conforme a Lei federal nº 9.795/1999 e a
Resolução nº 429 de 2011.

363
Diz-se que o núcleo central dos direitos sociais é constituído pelo
direito do trabalho (conjunto dos direitos dos trabalhadores) e
pelo direito de seguridade social. Em torno deles, gravitam outros
direitos sociais, como o direito à saúde, o direito de previdência
social, o de assistência social, o direito à educação, o direito ao
meio ambiente sadio. A Constituição tentou preordenar meios
de tornar eficazes esses direitos, prevendo, p. ex., fonte de
recursos para a seguridade social, com aplicação obrigatória
nas ações e serviços de saúde e as prestações previdenciárias e
assistenciais (arts. 194 a 195), assim como a reserva de recursos
orçamentários para a educação (art. 212). Aos direitos culturais,
impõem-se ao Estado dar-lhe apoio, incentivos e proteção (art.
215). Para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente,
o §1º do art. 225 define vários procedimentos, incluindo estudo
prévio do impacto ambiental, a que se dará publicidade, no caso
de instalação de obras e serviços causadores de degradação ao
meio ambiente, assim como estatui meio de atuação repressiva
de natureza penal, administrativa e civil (art. 225, §3º). São ainda
modulações cuja eficácia própria só a experiência vai confirmar.18

Este entendimento há que ser aplicado aos direitos relativos à moradia


adequada, sobretudo e em vista da produção de garantias que se observa
desde a Constituição Federal de 1988, pois se o direito à moradia em meio
ambiente equilibrado nas cidades encontrava limitações à sua eficácia,
ante a ausência de programas, a atual legislação ambiental-urbanística
se dispôs a discipliná-los na forma de programas aptos a garantir os di-
reitos constitucionais relativos à moradia, ao meio ambiente equilibrado
e à cidade.

CONCLUSÃO

Foi exposto, muito brevemente, o histórico do parcelamento do solo e


os principais aspectos da irregularidade e informalidade em cidades brasi-
leiras, assim como os conflitos, para entender a evolução da regularização
fundiária de interesse social como garantia do direito fundamental à mo-
radia. Demonstrou-se, no tocante à regularização de áreas de preservação
permanente, ser fundamental que os planos de regularização fundiária de
interesse social, quando incidirem sobre área de proteção permanente,

18 Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 467.

364
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

tenham seus estudos ambientais e suas medidas de mitigação imple-


mentados, e que estas medidas possam estar munidas de informações
de qualidade ambiental e indicadores de sustentabilidade que poderão
orientar os Planos Diretores. Chegar neste ponto será um grande passo
em garantia de moradia e cidades sustentáveis.
A inovação da Lei federal nº 11.977/2009 é o estabelecimento de di-
retrizes e instrumentos de regularização fundiária de interesse social em
áreas de preservação permanente, já ocupadas por população de baixa
renda. Neste sentido, este trabalho buscou defender que a regularização
fundiária de interesse social é uma garantia de direito à moradia e também
uma diretriz de proteção de recuperação de áreas de proteção permanente.

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368
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

<http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/moradia-
-adequada/declaracoes/declaracao-de-istambul-sobre-assentamentos-humanos>.
Acesso em: 20 mar. 2012.

UNIVERSIDADE SÃO PAULO. Declaração de Estocolmo sobre o ambiente huma-


no - 1972. Publicada pela Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente
humano em junho de 1972. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Meio-Ambiente/declaracao-de-
-estocolmo-sobre-o-ambiente-humano.html>. Acesso em: 14 de agosto de 2013.

UNIVERSIDADE SÃO PAULO. Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
e Desenvolvimento - ECO-92 ou RIO-92. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Agenda-21/capitulo-01-con-
ferencia-das-nacoes-unidas-sobre-o-meio-ambiente-e-desenvolvimento.html>.
Acesso em14 de agosto de 2013.

369
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A regularização fundiária de interesse


social como instrumente de realização
da dignidade da pessoa humana através
do direito fundamental de moradia
Juliano Junqueira de Faria1
Maraluce Maria Custódio2

1 INTRODUÇÃO

O constante e contínuo aumento da população urbana no Brasil tem


trazido, inegavelmente, um problema para as cidades: a irregular ocupação
do solo urbano.
Nesse contexto, não há como evitar a ocupação realizada por população
de baixa renda, muitas das vezes em aglomerados urbanos, especialmente
quando não há um planejamento urbano efetivado pelo poder público com
a fiscalização e a realização de atos para o real cumprimento do plano
diretor e diretrizes urbanas necessárias à garantia do meio ambiente
urbano adequado.
A título de ilustração, tem-se que os resultados do último Censo Demo-
gráfico (2010) divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
tica – IBGE, demonstram que o Brasil possui uma população residente de
190.755.799 (cento e noventa milhões, setecentos e cinquenta e cinco mil
e setecentos e noventa e nove) habitantes, dos quais 160.925.804 (cento
e sessenta milhões, novecentos e vinte e cinco mil e oitocentos e quatro)
habitantes vivem em áreas urbanas3.

1 Mestre em Direito Privado pela PUC Minas; Especialista em Direito de Empresa pelo Instituto de Educação
Continuada da PUC Minas; Especialista em Direito Processual Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério
Público de Minas Gerais. Professor de Direito Civil do Centro Universitário Newton (Belo Horizonte – MG) –
email: jjdefaria@gmail.com
2 Doutora em Geografia pela UFMG em cotutela com a Université d’Avignon (França) Mestre em Direito Cons-
titucional pela UFMG e Mestre em Direito Ambiental pela Universidad Internacional de Andalucía (Espanha) e
Professora de Direito Ambiental do Centro Universitário Newton (Belo Horizonte – MG) – email: maralucem@
hotmail.com
3 Informação disponível no endereço eletrônico <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_da_populacao/caracteris-
ticas_da_populacao_tab_pdf.shtm> Acesso em 05 mai. 2013.

371
O IBGE identificou, ainda, que, no Brasil, existem 6.329 (seis mil, tre-
zentos e vinte e nove) aglomerados subnormais, assim entendidos aqueles
representados por favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas,
ressacas, mocambos, palafitas, entre outros assentamentos irregulares4,
dos quais 3.954 (três mil, novecentos e cinquenta e quatro) encontram-
-se situados nos centros urbanos do Sudeste do país, principal destino da
população de baixa renda que busca uma vida melhor.
Nesses aglomerados subnormais, residem 11.425.644 (onze mi-
lhões, quatrocentos e vinte e cinco mil e seiscentos e quarenta e
quatro) habitantes.
Os números se apresentam com extraordinária relevância para aqueles
que lidam com o Direito, pois é sabido que a ocupação nos aglomerados
subnormais normalmente se mostra irregular, não conferindo ao possuidor
qualquer título que legitime sua situação jurídica.
Nessa esteira, ganha relevância o instituto da regularização fundiária
de áreas urbanas, estabelecido como diretriz do Estatuto da Cidade, e
regulado pela Lei Federal 11977/09, demonstrando o conhecimento e
preocupação do legislador com o crescimento desordenado dos centros
urbanos e com a proteção dos direitos dos indivíduos à uma vida mais
digna. Por isso estabelece o direito a moradia e é voltado à regularizar
e conceder títulos de propriedade na forma da lei, àquelas pessoas que
ocupam terras urbanas irregularmente.
Assim, pretende-se com este artigo compreender e fazer uma breve
análise do instrumento da regularização fundiária em especial a de inte-
resse social demonstrando que este faz cumprir o direito fundamental,
e fundamento da Federação Brasileira, da dignidade da pessoa humana
garantindo o direito social fundamental à moradia.
Neste contexto, será usada a perspectiva de Immanuel Kant de digni-
dade da pessoa humana. Demonstrando que esta foi usada para criar a
interpretação deste princípio, tanto no plano internacional, configurado

4 Informação disponível no endereço eletrônico <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/


censo2010/aglomerados_subnormais/default_aglomerados_subnormais.shtm> Acesso em 05 mai. 2013.

372
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

pela Declaração Universal de Direito Humanos, quanto na Constituição


Brasileira de 1988 – CF/88.
Tal estudo será realizado pelo método dedutivo, utilizando a técnica
bibliográfica. E pretende ao final demonstrar que o Estado Brasileiro vem
tentando efetivar os objetivos buscados na CF/88, através dos instrumen-
tos urbanísticos.
Para tanto, analisar-se-á inicialmente o conceito de dignidade da pessoa
humana e sua configuração legal tanto internacional quanto brasileira,
bem como sua interligação com o direito de moradia, que também é
preceito constitucional. E apresentar-se-á como o Estado Brasileiro vem
compreendendo a configuração da regularização fundiária. Para por fim
evidenciar como esta realiza a proteção da dignidade da pessoa humana
através do direito efetivo à moradia.

2 DIREITO à MORADIA COMO UM DOS


EFETIVADORES DA DIGNIDADE DA PESSOA hUMANA

2.1 O Princípio da Dignidade da Pessoa humana

A República Federativa do Brasil tem como fundamento o princípio


da dignidade da pessoa humana, conforme estabelecido na CF/88 5
em seu artigo 1º, inciso II: “Art. 1º A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana”. Além do mesmo
constituir como objetivo fundamental em seu artigo 3º, incisos III e IV,
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil: [...] III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; [...] IV - promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras

5 MEDAUAR, Odete (org.). Coletânea de Legislação Ambiental. 11ªed.rev.ampl.atual.São Paulo: RT, 2012, p.23

373
formas de discriminação.”6 Pontos centrais para garantir uma real dig-
nidade do ser humano.
Tal princípio, dotado da qualidade de norma constitucional, não deve
ser entendido apenas como verdade fundamental a orientar a interpretação
do sistema do direito. Deve, sim, ser entendido como norma jurídica em
geral, produzindo determinados efeitos que haverão de ser garantidos,
mesmo que coativamente, pela ordem jurídica.
Já se afirmou que “dignidade da pessoa humana é uma locução tão
vaga, tão metafísica, que embora carregue em si forte carga espiritual,
não tem qualquer valia jurídica”7 Tal entendimento, entretanto, não deve
prevalecer. Necessário é que se determine o significado da dignidade da
pessoa humana, a fim de que se possam determinar os efeitos pretendidos
pela norma.
Segundo Antônio Junqueira de Azevedo8, a utilização da expressão
“dignidade da pessoa humana” no mundo do direito é fato histórico re-
cente. O autor anota que a expressão em causa surgiu pela primeira vez9,
no contexto em que hoje está sendo usada, em 1945, no preâmbulo da
Carta das Nações Unidas10.

6 MEDAUAR, Odete (org.). Coletânea de Legislação Ambiental. 11ªed.rev.ampl.atual.São Paulo: RT, 2012,
p.23.
7 BARROSO, Luís Roberto. O Direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibi-
lidades da constituição brasileira. 6.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.296.
8 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. Revista Trimestral
de Direito Civil, Rio de Janeiro, v.9, p.3-24, jan/mar. 2002.
9 A respeito das várias previsões legislativas acerca da dignidade da pessoa humana, ver: NOBRE JÚNIOR,
Edílson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista de Direito Adminis-
trativo, Rio de Janeiro, v.219, p.237-251, jan-mar. 2000.
10 A Carta das Nações Unidas foi assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, após o término da Con-
ferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, entrando em vigor a 24 de outubro daquele
mesmo ano. Assim consta do preâmbulo de referida carta: “Nós, os povos das nações unidas, resolvidos a
preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe
sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e
no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes
e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados
e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores
condições de vida dentro de uma liberdade ampla. E para tais fins, praticar a tolerância e viver em paz, uns
com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e
a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não
ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e
social de todos os povos, resolvemos conjugar nossos esforços para a consecução desses objetivos. Em vista
disso, nossos respectivos Governos, por intermédio de representantes reunidos na cidade de São Francisco,
depois de exibirem seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma, concordaram com a
presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será
conhecida pelo nome de Nações Unidas”.

374
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Não obstante, é consenso teórico no mundo atual o valor essencial do


ser humano, que deve ser reconhecido como centro e fim do direito. Nos
dizeres de Ana Paula de Barcellos11

ainda que tal consenso se restrinja muitas vezes apenas ao dis-


curso ou que essa expressão, por demais genérica, seja capaz
de agasalhar concepções as mais diversas – eventualmente
contraditórias –, o fato é que a dignidade da pessoa humana, o
valor do homem como um fim em si mesmo, é hoje um axioma
da civilização ocidental, e talvez a única ideologia remanescente.

E é em Kant que se deve buscar as bases para a concepção da digni-


dade. Para Kant12, o ser humano é dotado de dignidade enquanto tal, ou
seja, enquanto ser humano.
Thomas Hill, citado por Gláucia Correa Retamozo Barcelos Alves13
(2002, p.221), afirma que “a doutrina kantiana da dignidade da pessoa
humana se inscreve na tradição cristã que atribui a cada ser humano um
valor primordial, independentemente de seu mérito individual e de sua
posição social”.
Kant, na busca de justificação e demonstração do imperativo categóri-
co, assevera que o Homem e, de uma maneira geral, todo o ser racional,
existe como fim em si mesmo, e não como meio arbitrário desta ou da-
quela vontade. Dessa forma, em todas as ações, tanto nas que se dirigem
ao homem mesmo, como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele
sempre há de ser considerado como fim.
Segundo Kant14

os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa von-


tade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais,
apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam
coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas,
porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos,

11 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da dig-
nidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.103.
12 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução Paulo Quintela. Lisboa:
Edições 70, 2002.
13 ALVES, Gláucia Correa Retamozo Barcelos. Sobre a dignidade da pessoa. In: COSTA, Judith Martins (Coord.).
A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.221.
14 Idem, p.68

375
quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples
meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio
(e é um objeto de respeito). Estes não são portanto meros fins
subjectivos cuja existência tenha para nós um valor como efeito
de nossa acção, mas sim fins objectivos, quer dizer coisas cuja
existência é em si mesma um fim, e um fim tal que se não pode
pôr nenhum outro em seu lugar em relação ao qual essas coisas
servissem apenas como meios; porque de outro modo nada em
parte alguma se encontraria que tivesse valor absoluto; mas se
todo o valor fosse condicional, e por conseguinte contigente, em
parte alguma se poderia encontrar um princípio prático supremo
para a razão.

Para Kant15, os seres racionais se mantêm relacionados por meio de


leis comuns o que caracteriza o que convencionou chamar de reino. Nesse
reino ou, conforme quer Maria Celina Bodin de Moraes16 ,mundo social,
existem duas categorias de valores: o preço e a dignidade.
Segundo Kant17

no reino dos fins, tudo tem ou um preço, ou uma dignidade. Quan-


do uma coisa tem preço, pode-se pôr em vez dela outra como
equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço,
e portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade.

Além disso, considera Kant18 “aquilo, porém que constitui a condição


só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem
somente um valor relativo, isto é um preço, mas um valor íntimo, isto é
dignidade”.
Isso nos leva a concluir que, a dignidade caracteriza o ser humano
como ser racional, dotado de vontade, e que, deva ser considerado como
fim em si mesmo, jamais podendo ser considerado como meio para a
consecução de fins outros.
Comunga-se das lições de Maria Celina Bodin de Moraes19, para quem
o preço manifesta um valor exterior, ou seja, de mercado, representando

15 Idem.
16 MOARES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos
danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003
17 Idem, p.77
18 Ibdem
19 Idem, p.81

376
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

interesses particulares, enquanto que a dignidade representa um valor


interior e de interesse geral.
Lembrando Kant20, tem-se que somente as coisas que possuam preço
podem ser substituídas por outras equivalentes. O ser humano, ao con-
trário, por ser dotado de dignidade, não admite substituição. Não pode
ser considerado mercadoria ou mero instrumento para a realização de
fins outros.
A concepção da dignidade como um valor absoluto faz com que o ser
humano seja considerado o fim último a ser alcançado, exatamente por
ser humano. Nada mais do que isso. Tanto particulares, quanto o próprio
Estado, devem pautar as suas ações pelo respeito a essa condição.
Nas palavras de Ana Paula de Barcellos21

o homem é um fim em si mesmo – e não uma função do Estado,


da sociedade ou da nação – dispondo de uma dignidade ontoló-
gica. O Direito e o Estado é que deverão estar organizados em
benefício dos indivíduos.

E a dignidade, como tal, não admite qualificações. O ser humano deve


ter a sua dignidade promovida e aquele deve ser respeitado como indi-
viduo em si e que é um fim em si mesmo e não um meio. Isso faz com
que a dignidade de uma pessoa independa de seu status social, do cargo
que ocupa, da sua popularidade, de sua utilidade para outros22. Torna-se
impossível a afirmativa de que um ser humano possua mais dignidade do
que outro. Aquele que tem dignidade não tem preço e, por não possuir
preço, não pode ser mensurado23.
No século xx, a Segunda Guerra Mundial é apontada como momento

20 Idem.
21 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da dignidade da
pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p107.
22 Gláucia Retamozo Alves (2002, p. 215-218) fala da concepção hobbesiana de pessoa, para quem esta
última seria definida em razão de seu papel social, o que atualmente poderia ser denominado de “identidade
estatutária”. Segundo Alves, essa forma de se conceber a pessoa apresenta forte resquício medieval, já que
a pessoa é vista como um ator social. Além do mais, “atenta contra a dignidade humana, à medida em que
impede o homem de se desenvolver na sua plenitude, como que amputando sua dimensão íntima, sua iden-
tidade pessoal, que é substituída pela identidade estatutária”.
23 ALVES, Gláucia Correa Retamozo Barcelos. Sobre a dignidade da pessoa. In: COSTA, Judith Martins (Coord.).
A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. P. 213-229.

377
especialmente marcante no que tange à concepção da dignidade da pessoa
humana. O nazismo revela os horrores a que eram levados seres humanos
e trouxe como política de governo assumida e defendida o extermínio de
milhares de pessoas como se essas não possuíssem nenhum valor em si.
Como vítimas, tem se principal exemplo dos judeus.
Hanna Arendt24 observa o tratamento dispensado aos judeus, donde se
verifica o desprezo ao ser humano em si. Ao apresentar o julgamento de
Adolf Eichmann, acusado de cometer crimes contra o povo judeu, crimes
contra a humanidade e crimes de guerra durante o período do regime
nazista e principalmente durante o período da 2ª Guerra Mundial, Hanna
Arendt lembra o episódio ocorrido no outono de 1941, seis meses depois
de a Alemanha ter ocupado a parte sérvia da Iugoslávia. Segundo afirma25,

o Exército vinha sendo infernizado pela guerra de guerrilha


desde então, e as autoridades militares decidiram resolver dois
problemas de um só golpe, fuzilando cem judeus e ciganos para
cada soldado alemão morto. Sem dúvida nem os judeus nem os
ciganos eram guerrilheiros, mas, nas palavras do funcionário
civil do governo militar, um certo Staatsrat Harald Turner, ‘os
judeus já estavam ali no campo [mesmo]; afinal, eles também
são sérvios, e, além disso, têm de desaparecer’.

É no contexto do pós- 2ª guerra que se consagra a dignidade da pessoa


humana nos vários ordenamentos jurídicos. Diversos países introduziram
em suas Constituições a dignidade da pessoa humana como fundamento
do Estado que se criava ou recriava26.
Tomemos de exemplo as Constituições27 Italiana, Alemã e Portuguesa,
como lembrado por Antônio Junqueira de Azevedo28.
A Constituição italiana de 1947 expressa em seu artigo 3º, 1ª parte:

24 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Ed. Com-
panhia das Letras, 1999. 344p
25 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Ed. Com-
panhia das Letras, 1999, p.34
26 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da dig-
nidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 327p.
27 Os textos originais das constituições de diversos países, dentre os quais os aqui mencionados, podem ser acessados através do
endereço eletrônico <https://www.planalto.gov.br/legisla.htm>.
28 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. Revista Tri-
mestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v.9, p.3-24, jan/mar. 2002, p.4

378
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais


perante a lei sem distinção de sexo, raça, língua, religião, opinião
política e condições pessoais e sociais.29

A Constituição alemã de 1949 estabelece em seu artigo 1.1:

A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é


obrigação de todo o poder público30.

Por fim, a Constituição portuguesa de 1976, que prevê em seus artigos


1º e 13, 1ª alínea:

Art. 1º. Portugal é uma República soberana, baseada na digni-


dade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na
construção de uma sociedade livre, justa e solidária. [...]
Art. 13. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são
iguais perante a lei.

Ademais de todo o exposto é necessário a referência à Declaração


Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Resolução 217 A (III)
da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, que
faz referência à dignidade do homem em várias oportunidades:

Preâmbulo
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a
todos os membros da família humana e de seus direitos iguais
e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz
no mundo,[...]
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na
Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e
no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens
e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e
melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, [...]
Artigo I Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade
e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em
relação umas às outras com espírito de fraternidade. [...]
Artigo XXII Toda pessoa, como membro da sociedade, tem
direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional,
pela cooperação internacional e de acordo com a organização e

29 Idem
30

379
recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e cul-
turais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento
da sua personalidade.[...]
Artigo XXIII 1.Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre es-
colha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e
à proteção contra o desemprego.
2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual re-
muneração por igual trabalho.
3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração
justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família,
uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se
acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar
para proteção de seus interesses.31

Demonstrando que a teoria kantiana sobre o principio da dignidade


da pessoa humana - do ser humano ser um fim em si mesmo, foi adotada
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos como pela CF/88.
Daí porque a impossibilidade de se pretender que seja o ser humano um
instrumento a serviço do Estado. Àquele devem ser asseguradas condições
de uma vida digna. A busca da realização desse estado de coisas, ou seja,
da realização da dignidade, deve ser alçada à prioridade, seja do próprio
Estado, seja de particulares. E ter moradia é uma questão básica para
garantir esta dignidade, dai a necessidade de efetivação real de tal direito.

2.2 O Direito Social à Moradia

O direito à moradia tornou-se direito constitucionalmente protegido


com a Emenda Constitucional de nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que
alterou a redação de seu art. 6º.
Preocupado com tal ponto o Estatuto da Cidade já possibilitava uma
serie de instrumentos para garantia deste direito. Dentre estes o que se
destaca é o a regularização fundiária, especialmente a de interesse social.
Este instrumento foi regulamentado pela lei 11977/09. Demonstrando,
claramente, a vontade do poder publico em cumprir sua função de garan-

31 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇõES UNIDAS. Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945.
Disponível em <http://www.onu-brasil.org.br/documentos_carta.php> Acesso em 10 dez. 2005.

380
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

tidor do Direito à Moradia e por extensão da dignidade da pessoa humana.


Tem-se, portanto, a moradia como um direito fundamental de cunho
social, juntamente com a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, etc.
Muito mais que um direito de todo e qualquer cidadão, passa a moradia
a ser uma importante diretriz a orientar o Poder Público para implemen-
tação de políticas aptas a assegurarem esse direito.
Na verdade, não era a moradia alheia à Constituição da República
brasileira anteriormente à publicação da Emenda Constitucional 26.
A carta magna com ela já se preocupava. Veja-se, a título de exemplo,
os textos de seu artigo 7º, inciso IV e artigo 23, Ix:

Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros
que visem à melhoria de sua condição social.[...]
IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de
atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com mora-
dia, alimentação, educação saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e
previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder
aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
[..]
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Fe-
deral e dos Municípios:[...]

Ix – promover programas de construção de moradias e a melhoria


das condições habitacionais e de saneamento básico”.32

Deve o poder público, por isso mesmo, pautar-se nos mandamentos


constitucionais. É dever do Estado, possibilitar condições mínimas de
moradia a toda população, possibilitando a ela um teto, um porto segu-
ro, onde possa estabelecer e manter condições, mesmo que mínimas, de
uma vida digna.

32 MEDAUAR, Odete (org.). Coletânea de Legislação Ambiental. 11ªed.rev.ampl.atual.São Paulo: RT, 2012.

381
3 A Regularização Fundiária

A Regularização Fundiária aparece no Estatuto da cidade como uma


diretriz da politica urbana e se encontra configurada no artigo 2º inciso
xIV. In verbis

Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvi-


mento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante
as seguintes diretrizes gerais: [...]

xIV - regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas


por população de baixa renda mediante o estabelecimento de
normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edi-
ficação, consideradas a situação socioeconômica da população
e as normas ambientais”.33

E sua regulamentação esta prevista entre os artigos 46 e 60 da Lei


11.977/09, que defini a mesma em seu artigo 46:

A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídi-


cas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização
de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de
modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvi-
mento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado.34

Admite a legislação 2 (duas) modalidades de Regularização Fundiária:


1) Regularização Fundiária de Interesse Social e 2) Regularização Fundiária
de Interesse Específico.
A Regularização Fundiária de Interesse Social é destinada a assenta-
mentos irregulares ocupados por população de baixa renda, nos casos em
que a área esteja ocupada, de forma mansa e pacífica, há pelo menos 5
(cinco) anos, naqueles em que os imóveis a serem regularizados estejam

33 Idem, p.469
34 BRASIL. Lei 11.977, de 07 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida –
PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/L11977compilado.htm> Acesso em 5 mai. 2013.

382
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

situados em Zona Especial de Interesse Social - ZEIS35 ou nos em que a


área seja da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e
declarada de interesse para implantação de projetos de regularização
fundiária de interesse social.
Por sua vez, a Regularização Fundiária de Interesse Específico é aquela
existente quando não caracterizado o interesse social necessário à Regu-
larização Fundiária de Interesse Social.
O procedimento de Regularização Fundiária pode ser pretendido por
seus beneficiários, individual ou coletivamente e por cooperativas habi-
tacionais, associações de moradores, fundações, organizações sociais,
organizações da sociedade civil de interesse público ou outras associações
civis que tenham por finalidade atividades nas áreas de desenvolvimento
urbano ou regularização fundiária, atribuindo-se aos legitimados o poder
de promover todos os atos necessários à regularização fundiária, inclusive
os atos de registro. Por óbvio, não se exclui a possibilidade de o poder
público atuar de ofício.
Exige-se, entretanto, que haja um conhecimento prévio de informações
sobre a demarcação do imóvel de domínio público ou privado, seus limi-
tes, área, localização e confrontantes, bem como sobre seus ocupantes
e suas posses.
Para tanto, poderá valer-se a Administração Pública do procedimento
da Demarcação Urbanística, definida pela Lei 11/977/09 como o procedi-
mento administrativo pelo qual o poder público, no âmbito da regulariza-
ção fundiária de interesse social, demarca imóvel de domínio público ou
privado, definindo seus limites, área, localização e confrontantes, com a
finalidade de identificar seus ocupantes e qualificar a natureza e o tempo
das respectivas posses.

35 Parcela de área urbana instituída pelo Plano Diretor ou definida por outra lei municipal, destinada predo-
minantemente à moradia de população de baixa renda e sujeita a regras específicas de parcelamento, uso e
ocupação do solo.

383
3.1 Regularização Fundiária de Interesse Social

A Regularização Fundiária de Interesse Social depende da análise e da


aprovação36, pelo Município ou pelo Distrito Federal, do Projeto de Regu-
larização Fundiária, que deverá definir, ao menos, a) as áreas ou lotes a
serem regularizados e, se houver necessidade, as edificações que serão
relocadas; b) as vias de circulação existentes ou projetadas e, se possível,
as outras áreas destinadas a uso público; c) as medidas necessárias para
a promoção da sustentabilidade urbanística, social e ambiental da área
ocupada, incluindo as compensações urbanísticas e ambientais previstas
em lei; d) as condições para promover a segurança da população em si-
tuações de risco, considerado o disposto no parágrafo único do art. 3º da
Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979; e e) as medidas previstas para
adequação da infraestrutura básica, considerando, também, as caracterís-
ticas da ocupação e da área ocupada para definir parâmetros urbanísticos
e ambientais específicos, além de identificar os lotes, as vias de circulação
e as áreas destinadas a uso público.
Ocorre que o Projeto deve ser precedido da Demarcação Urbanística
que, uma vez elaborada deverá ser levada pelo Município ao Registro de
Imóveis. Antecipadamente, entretanto, o Município deverá notificar os
órgãos responsáveis pela administração patrimonial dos demais entes
federados, para que se manifestem, no prazo de 30 (trinta) dias quanto: I
- à anuência ou oposição ao procedimento, na hipótese de a área a ser
demarcada abranger imóvel público; II - aos limites definidos no auto de
demarcação urbanística, na hipótese de a área a ser demarcada confron-
tar com imóvel público; e III - à eventual titularidade pública da área, na
hipótese de inexistência de registro anterior ou de impossibilidade de iden-
tificação dos proprietários em razão de imprecisão dos registros existentes.

36 Segundo a Lei 11.977/09, a aprovação exigida corresponde ao licenciamento urbanístico do projeto de


regularização fundiária de interesse social, bem como ao licenciamento ambiental, se o Município tiver
conselho de meio ambiente e órgão ambiental capacitado. E, caso o projeto abranja área de Unidade de Pre-
servação de Uso Sustentável (assim entendida aquela cujo objetivo básico é compatibilizara a conservação
da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais), será exigida também a anuência
do órgão gestor da unidade.

384
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Na hipótese de ser dado prosseguimento ao procedimento de Regula-


rização Fundiária, o Município enviará o Auto de Demarcação Urbanística
ao Cartório de Registro de Imóveis, que deverá proceder às buscas para
identificação do proprietário da área a ser regularizada e de matrículas
ou transcrições que a tenham por objeto.
Na sequencia, o Oficial do Registro de Imóveis deverá notificar o pro-
prietário e os confrontantes da área demarcada, pessoalmente ou pelo
correio, com aviso de recebimento, ou, ainda, por solicitação ao oficial de
registro de títulos e documentos da comarca da situação do imóvel ou do
domicílio de quem deva recebê-la, para, querendo, apresentarem impugna-
ção à averbação da demarcação urbanística, no prazo de 15 (quinze) dias.
Também o poder público responsável pela regularização deverá no-
tificar, por edital, eventuais interessados, bem como o proprietário e os
confrontantes da área demarcada, se estes não forem localizados nos
endereços constantes do registro de imóveis ou naqueles fornecidos pelo
poder público para notificação.
Decorrido o prazo da notificação, sem impugnação, a demarcação
urbanística será averbada nas matrículas dos imóveis atingidos pela
demarcação urbanística. Havendo impugnação, o oficial do registro de
imóveis deverá notificar o poder público para que se manifeste no prazo
de 60 (sessenta) dias, quando poderá propor a alteração do auto de de-
marcação urbanística ou adotar qualquer outra medida que possa afastar
a oposição do proprietário ou dos confrontantes à regularização da área
ocupada. Caso haja impugnação apenas em relação à parcela da área
objeto do auto de demarcação urbanística, o procedimento seguirá em
relação à parcela não impugnada. Não havendo acordo, a demarcação
urbanística será encerrada em relação à área impugnada.
A partir da averbação do auto de demarcação urbanística, o poder
público deverá elaborar o Projeto de Regularização Urbanística e sub-
meter o parcelamento dele decorrente a registro. Com o registro do
parcelamento, o poder público concederá título de Legitimação de Posse
aos ocupantes cadastrados.

385
A Legitimação de Posse, entendida como ato do poder público desti-
nado a conferir título de reconhecimento de posse de imóvel objeto de
demarcação urbanística, com a identificação do ocupante e do tempo e
natureza da posse, será concedida preferencialmente em nome da mulher
e registrado na matrícula do imóvel, como determina o §2º do artigo 58
da Lei 11.97/09 embora, a nosso viso, soe inconstitucional a regra por
violação o princípio da igualdade.
Devidamente registrada, a Legitimação de Posse constitui direito em
favor do detentor da posse direta para fins de moradia, razão pela qual
também será concedida ao coproprietário da gleba, titular de cotas ou
frações ideais, devidamente cadastrado pelo poder público, desde que
exerça seu direito de propriedade em um lote individualizado e identificado
no parcelamento registrado.
Entretanto, a Legitimação de Posse somente poderá ser concedida aos
moradores cadastrados pelo poder público, desde que a) não sejam con-
cessionários, foreiros ou proprietários de outro imóvel urbano ou rural e b)
não sejam beneficiários de legitimação de posse concedida anteriormente.
Também, não será concedido Legitimação de Posse aos ocupantes a
serem realocados em razão da implementação do projeto de regularização
fundiária de interesse social, devendo o poder público assegurar-lhes o
direito à moradia.
Como visto, a legitimação de posse constitui ato de reconhecimento
pelo poder público da posse do ocupante do imóvel objeto da demarca-
ção urbanística. Por essa razão, a Lei 11.977/09 prevê a possibilidade
que a posse assim reconhecida seja convertida em propriedade, através
do procedimento de usucapião administrativa, contemplado pela lei na
forma seguinte:

Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exerci-


da anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse,
após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial
de registro de imóveis a conversão desse título em registro de
propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos
termos do art. 183 da Constituição Federal.
§ 1o Para requerer a conversão prevista no caput, o adquirente

386
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

deverá apresentar:
I – certidões do cartório distribuidor demonstrando a inexistência
de ações em andamento que versem sobre a posse ou a proprie-
dade do imóvel;
II – declaração de que não possui outro imóvel urbano ou rural;
III – declaração de que o imóvel é utilizado para sua moradia ou
de sua família; e
IV – declaração de que não teve reconhecido anteriormente o
direito à usucapião de imóveis em áreas urbanas.
§ 2o As certidões previstas no inciso I do § 1o serão relativas à
totalidade da área e serão fornecidas pelo poder público.
§ 3o No caso de área urbana de mais de 250m² (duzentos e
cinquenta metros quadrados), o prazo para requerimento da
conversão do título de legitimação de posse em propriedade
será o estabelecido na legislação pertinente sobre usucapião.37

De toda sorte, como a usucapião, em qualquer das suas formas, exige


posse contínua, poderá o título de Legitimação de Posse ser extinto pelo
poder público emitente quando constatado que o beneficiário não está
na posse do imóvel e não houve registro de cessão de direitos.
Portanto, verifica-se tratar de instrumento que garante a titulação do
possuidor, inclusive com formalização da propriedade (direito real por
excelência), em favor do ocupante de baixa renda.
E, exatamente porque o instituto objetiva preservar os interesses de
pessoas de baixa renda, é que a Lei 11.977/09 atribui ao poder público,
diretamente ou por meio de seus concessionários ou permissionários de
serviços públicos, a implantação do sistema viário e da infraestrutura
básica (vias de circulação; escoamento das águas pluviais; rede para o
abastecimento de água potável; e soluções para o esgotamento sanitário
e para a energia elétrica domiciliar) ainda que o poder público tenha
sido provocado à sua realização, bem como estabelece que não serão
cobradas custas e emolumentos para o registro do auto de demarcação
urbanística, do título de legitimação e de sua conversão em título de
propriedade e dos parcelamentos oriundos da regularização fundiária
de interesse social

37 BRASIL. Lei 11.977, de 07 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida –
PMCMV Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/L11977compilado.
htm> Acesso em 5 mai. 2013.

387
Como se vê, a regularização fundiária aqui apresentada, que pode
culminar com a titulação da propriedade, busca vincular o homem ao
solo urbano já ocupado, garantindo o direito social à moradia. Ao mes-
mo tempo, busca a regularização fundiária assegurar e implementar a
função social da propriedade.

3.2 A Função Social da Propriedade

Tradicionalmente, a propriedade tem sido estudada sob seu aspecto


estrutural e sob o seu aspecto funcional.
Símbolo maior do individualismo burguês, a propriedade é apresentada
pelo ordenamento jurídico infraconstitucional de forma analítica. A lei
não define o direito de propriedade. Entretanto, afirma que o proprietário
tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de revê-la do
poder de quem injustamente a possua. Ensina Gustavo Tepedino38 que as
faculdades de usar, gozar e dispor da coisa são expressão do elemento
interno ou econômico39 do domínio, enquanto que o poder de reaver, ou
seja, o poder de afastar as ingerências alheias ao direito de propriedade,
integra o seu elemento externo ou jurídico. O conjunto dos elementos
interno e externo compõe o aspecto estrutural do direito de propriedade.
O Código Civil brasileiro em vigor, assim como o revogado Código Civil
de 1916, não fez qualquer referência expressa à função social da proprie-
dade, estando a sua previsão primeira inserta no texto da Constituição da
República de 1988 (artigo 5º, incisos xxII e xxIII).
O aspecto funcional, que não integra a estrutura40 do direito de proprie-
dade, representa a sua ideologia. Trata do aspecto dinâmico do direito de
propriedade, o papel que o direito de propriedade desempenha nas relações
sociais. A propriedade sempre exerceu uma função na sociedade, seja

38 TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas
de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar: 2001. p. 267-291
39 “É através dessas faculdades que o titular da propriedade pode obter as vantagens econômicas decorrentes
da situação proprietária”. (GONDINHO, 2001, p. 140)
40 Contra essa orientação tem-se André Pinto da Rocha Osorio Gondinho (2000) e José Afonso da Silva (1997),
para quem a função social integra a própria estrutura do direito de propriedade.

388
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

como expansão da inteligência humana, seja como objeto da supremacia


do capital sobre o trabalho, seja como instrumento para construção de
uma sociedade mais justa e solidária.
A função da propriedade, entretanto, torna-se social, a partir do mo-
mento em que o ordenamento reconheceu que o exercício da propriedade
deveria ser protegido não no interesse do seu titular, mas no interesse
coletivo da sociedade41. A propriedade é assegurada como direito funda-
mental, desde que atendida a sua função social. Uma nova hermenêutica
impõe-se, posto que não se pode vislumbrar a proteção ao direito de
propriedade se os demais princípios e garantias fundamentais previstos
na Constituição não estão sendo assegurados.
Referindo-se à Constituição da República de 1988, Gustavo Tepedino
(2001, p. 272) afirma que “o texto inovou de forma provavelmente sem
precedentes, no sentido de funcionalizar a propriedade aos valores sociais
e existenciais”. Assim, tem-se que a situação proprietária-patrimonial deve
conviver ao lado de situações jurídicas existenciais. Somente o convívio
harmônico é que outorga ao titular do direito real a proteção jurídica que
se fizer necessária.
O constituinte de 1988 procedeu clara opção pelos valores existenciais
que exprimem a ideia de dignidade da pessoa humana, em superação ao
individualismo marcante no ordenamento anterior a ela. Passa-se, assim,
a exigir que os valores patrimoniais adequem-se à nova realidade, pois a
pessoa prevalece sobre qualquer coisa.
A nova concepção de propriedade que a ordem constitucional im-
põe traduz um poder-dever. O proprietário não pode mais exercer seu
direito de forma absoluta, violentando o interesse social, porque deverá
compatibilizá-lo com a função social. Portanto, a propriedade vincula-se

41 Comungamos do entendimento de César Fiuza (2004), para quem a propriedade constitui uma relação
jurídica dinâmica, na qual se vislumbra direitos e deveres, tanto do titular quanto dos não titulares. Dessa
forma, a função social da propriedade apresenta-se como fundamento dos direitos dos não titulares e dos
deveres do titular do direito real. Retira-se, assim, a atenção da figura do proprietário, para se afirmar que
também os não titulares possuem direitos. Nunca é demais lembrar que, a todo momento, conforme enunciado
legal (artigo 1.228 do Código Civil em vigor e artigo 524 da lei revogada), chama-se a atenção somente para
os poderes do proprietário.

389
a um direito de uso, gozo e disposição que deve ser exercido, atendendo
sua destinação sócio-econômica, ou seja, sua função social.
Assim entende Teodoro Adriano Zanardi42, para quem

A concepção oitocentista do direito de propriedade, que estava


insculpida no Código Civil de 1916, não encontra guarida no sis-
tema jurídico pátrio, pois, como já visto nos capítulos anteriores,
a Constituição Federal de 1988 trouxe princípios que incidem
diretamente sobre o direito de propriedade. Trouxe, ainda, dis-
positivos que prevêem essa incidência. Tais princípios também
foram incorporados pelo Código Civil de 2002, bem como pelo
Estatuto da Cidade de 2001 e já estavam previstos no Estatuto
da Terra de 1964.

A função social da propriedade tem um conteúdo preestabelecido no


Título I da Constituição. Jamais devem ser relegados a dignidade da pessoa
humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento
nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das
desigualdades sociais e regionais, a promoção do bem de todos sem pre-
conceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação, como fundamentos e objetivos da República Federativa
do Brasil43
Nesse sentido, conclui-se que “o conteúdo da função social da pro-
priedade é informado pela própria Constituição, que tem na dignidade da
pessoa humana regra basilar”44.
A propriedade, portanto, não mais é absoluta em todos os seus termos.
Não mais é

aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos confins


são definidos externamente, ou, de qualquer modo, em caráter
predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa
demarcação, o proprietário teria espaço livre para suas atividades
e para a emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação

42 ZANARDI, Teodoro Adriano. Propriedade e posse sob a perspectiva da função social. 2003. 135f.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, p.100.
43 TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas
de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar: 2001. p. 267-291
44 GONDINHO, André Pinto da Rocha Osorio. Direitos Reais e Autonomia da Vontade: o princípio da
tipicidade dos direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.413.

390
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros


de interesses extrapatrimoniais, os quais vão ser regulados no
âmbito da relação jurídica de propriedade.45

Com a Constituição de 1988, os interesses patrimoniais do proprietá-


rio restaram submetidos aos princípios fundamentais do ordenamento
(artigos 1º, 3º e 5º).

A disciplina da propriedade constitucional, a rigor, apresenta-se


dirigida precipuamente à compatibilidade da situação jurídica
de propriedade com situações não proprietárias. De tal compa-
tibilidade deriva o preciso conteúdo da propriedade, inserta na
relação concreta.46

Não se trata de limitação ao direito de propriedade ou de esvaziamento


de seu conteúdo. O direito de propriedade, embora concebido e tutelado
sob a égide da função social, continua outorgando a seu titular as prerro-
gativas de usar, gozar, fruir e dispor da coisa, bem como revê-la de quem
injustamente a possua. Entretanto, esse seu direito deve compatibilizar-
-se com situações jurídicas existenciais47, não proprietárias, para que seja
objeto de proteção jurídica.

Para o titular do direito de propriedade, a função social assume


uma valência de princípio geral. A sua autonomia para exercer as
faculdades inerentes ao domínio não corresponde a um livre ar-
bítrio. O proprietário, através de seus atos e atividades, não pode
perseguir fins anti-sociais ou não sociais, como também, para ter
garantida a tutela jurídica ao seu direito, deve proceder conforme
à razão pela qual o direito de propriedade lhe é tutelado. Em
outras palavras, deve proceder de forma a promover os valores
fundamentais da República esculpidos no texto constitucional.48

45 TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas
de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar: 2001. p. 280
46 Idem, p.286
47 O Código Civil em vigor (Lei 10.406/2002), muito embora não tenha se referido expressamente à função social
da propriedade, inovou na legislação infraconstitucional, determinando que a propriedade deve ser exercida
em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais, e de modo que sejam preservados, conforme
determinado por lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico
e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Esse o texto do §1º do artigo 1.228. Ao nosso ver,
o legislador apresentou-se tímido ao enunciar o interesse social no trato da propriedade. Poderia ter sido mais
ousado, fazendo expressa referência à função social da propriedade e à necessidade de sua compatibilização
com situação jurídicas existenciais, respeitada a dignidade da pessoa humana.
48 GONDINHO, André Pinto da Rocha Osorio. Direitos Reais e Autonomia da Vontade: o princípio da
tipicidade dos direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.148

391
A situação jurídica real (patrimonial por excelência), portanto, mesmo
modelada pela autonomia da vontade, deve estar compatibilizada com a
tutela constitucional dos valores da função social da propriedade e, via
de consequência, com os valores de uma situação jurídica existencial.
Dessa forma, a função social da propriedade49 deve estar harmoniza-
da com a autonomia da vontade, a fim de que a modelação da situação
jurídica real ocorra no direito de forma legítima.
O projeto constitucional exige que se conceba a relação entre a
Constituição e a legislação infraconstitucional de forma que a primeira
apresente-se como fundamento interpretativo da segunda, o que obriga
a uma leitura dos institutos do direito civil à luz da Constituição, e não
inversamente50 51.
Daí porque concluímos seguindo o entendimento de André da Rocha
Osorio Gondinho52 para quem a modelação dos tipos reais pela autonomia
da vontade

deve abranger a tutela constitucional da iniciativa privada e


da propriedade, de modo que a intervenção da autonomia da
vontade no âmbito da modelação de situações jurídicas reais
se submeta aos princípios constitucionais, fazendo incidir, nas
relações privadas de direito real, os valores existenciais e sociais
situados no vértice do ordenamento.

Assim, temos que a intervenção da autonomia da vontade da mo-


delação dos tipos de natureza real deve compatibilizar-se não somente
com os limites modulares do próprio tipo, traçados pelo legislador que o
descreveu mas, também, com as normas de ordem pública que permeiam
o nosso ordenamento e, principalmente, com o princípio constitucional
da função social da propriedade que exige que a situação real conviva

49 E aqui se pode falar em função social da situação real, posto que a propriedade é o direito real por excelência,
dela derivando os demais direitos reais possíveis.
50 Não é possível, portanto, que se promova, no que concerne à propriedade, uma leitura da Constituição
à luz do Código Civil. Exige-se, sim, que o Código Civil seja lido à luz da Constituição, para que se consiga
compreender os caracteres, conteúdos e extensão do tipo proprietário.
51 TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de
Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar: 2001, p.276.
52 Idem, p.138.

392
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

em harmonia com valores existenciais, não patrimoniais, e que são ex-


pressão da dignidade da pessoa humana, fundamento maior da República
Federativa do Brasil.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, o inchaço populacional das cidades, verificado ao longo


dos tempos, se fez em boa medida com a informalidade na ocupação do
solo, em boas medidas.
Ocorre que o Estado Brasileiro, definido como Estado Democrático
de Direito, fez-se sob o princípio da dignidade da pessoa humana, que
determina que o ser humano há de ser percebido e tratado como um fim
em si mesmo, razão pela qual exige-se que sejam pensados mecanismos
capazes de proteger essa dignidade, mas, também, promovê-la.
A Lei Ordinária Federal nº 11.977/09, ao prever os procedimentos de
Regularização Fundiária, contemplou mecanismo de legitimar a situação
jurídica do cidadão que ocupa o solo urbano.
E ao assim fazer, a Lei Federal nº 11.977/09 acaba por contemplar
um mecanismo capaz de realizar a dignidade da pessoa humana pois,
garante a regularização de ocupações urbanas irregulares, titularizando
os ocupantes.
Sem sombra de dúvidas, ao assim permitir, a Lei Federal 11.977/09
favorece a dignidade da pessoa humana, pois permite uma legítima vin-
culação do ocupante ao solo urbano, que poderá dar a ele uma legítima
finalidade, inclusive para fins de moradia, o que também acaba por sig-
nificar o respeito à função social da propriedade.
Em última e não técnica palavra, trata-se de instrumento capaz de pos-
sibilitar uma efetiva melhora de condições de vida da população, embora
tenhamos o entendimento de que a imediata realização do procedimento
de regularização fundiária exija melhores considerações, que fogem ao
âmbito do presente trabalho, dadas a impossibilidade da Administração
Pública de atender, em tese, a todas as demandas e exigências que lhe
são impostas.

393
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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A valorização da posse e a
regularização fundiária de
terras devolutas mineiras

Virginia Junqueira Rugani Brandão1

INTRODUÇÃO

A regularização fundiária plena abrange a regularização jurídica


(dominial), urbanística e ambiental das áreas situadas tanto na zona rural
como na zona urbana. Assim, em breves palavras, os lotes, os sítios e as
fazendas devem estar adequados à legislação federal, estadual e municipal,
dotados da infraestrutura necessária à vida digna e do documento formal
que proteja a propriedade ou a posse do titular do direito, respeitando o
meio ambiente em sua volta, bem como as limitações urbanísticas. Além
disso, chama-se atenção para a dimensão sócio-econômica da regulari-
zação fundiária, que deve atentar para a integração dos assentamentos
informais ao conjunto da cidade, de forma sustentável.2
A regularização fundiária plena, assim, está em completa consonância
ao princípio da função social que todo imóvel deve cumprir, garantindo o
direito à moradia digna, a subsistência do trabalhador rural, dentre outros.
Não obstante os variados instrumentos de regularização fundiária dis-
postos, principalmente, em leis federais, a realidade mineira demonstra
que grande parte da população, principalmente nas cidades do interior,
habita locais irregulares, de maneira que a informalidade tornou-se a
regra, ao invés da exceção.

1 Bacharel em Direito. Pesquisadora/extensionista do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas – NUJUP. Assessora


jurídica do ITER/MG. vrugani@gmail.com.
2 Idéias debatidas no âmbito do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas – NUJUP, no GT Função Social da Pro-
priedade, em 2012.

397
O presente artigo pretende chamar a atenção para a regularização
fundiária de terras devolutas do Estado de Minas Gerais, no que tange a
irregularidade dominial, a saber, quando o possuidor ocupa essas terras
devolutas sem qualquer título formal que lhe dê garantia jurídica sobre a
posse exercida.
Admite-se assim, que as terras devolutas estaduais também são alvo
da irregularidade fundiária. Aliás, a dificuldade em catalogar todas as
áreas devolutas existentes no âmbito estatal corrobora com essa situação.
Há de se atentar, porém, para o fato de que, uma vez identificada a terra
devoluta, a regularização fundiária é uma de suas principais destinações,
nos termos da Lei Mineira 11020/1993.
Quanto à conceituação de terras devolutas sabe-se que, segundo o Có-
digo Civil de 2002, as terras devolutas estão incluídas na categoria dos bens
públicos disponíveis. De modo geral, costuma-se dizer que elas tiveram
sua origem na extinção do regime de concessão de capitanias, quando as
terras foram devolvidas ao patrimônio da Coroa Portuguesa. Contudo, o
conceito ideal vai um pouco mais além. Terras devolutas são aquelas que
pertencem ao Estado pelo simples fato de que não foram desmembradas
do patrimônio público por um título legítimo, dada a origem pública da
propriedade fundiária no Brasil, e que não estão afetadas a um uso público.
A lei mineira, por meio do art. 2º, §1º do Decreto 34.801/1993 escla-
rece o que vem a ser considerado título legítimo, ressalvado que nesse
rol, incluem-se ainda, as propriedades ocupadas pelos remanescentes das
comunidades dos quilombos:

Consideram-se títulos legítimos aqueles que, segundo a lei civil,


seja apto para transferir o domínio, entendendo-se, também,
como tais, os títulos de sesmarias, expedidos pelo Governo,
desde que não incursos em comisso; sesmarias não confirma-
das, mas revalidadas de acordo com a Lei n. 601, de 1850; as
escrituras particulares de compra e venda ou doação, desde que
o pagamento do ‘Imposto de Siza’ – Alvará de 3 de julho de 1809
– tenha sido realizado antes da publicação do Decreto n, 1318
de 1854; legitimação das posses, de acordo com as legislações
de terras; bem como as terras inscritas no registro Torrens e de-

398
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

cisões judiciais sobre terras, transitadas em julgado, com efeito


constitutivo de direitos.3

Com efeito, a Lei Federal n. 601, de 1850, “editada com o propósito de


dar disciplina à caótica situação fundiária brasileira, foi a primeira lei a
tratar sobre as terras devolutas em um plano sistêmico, sendo base para
o instituto fundiário do Brasil até os dias atuais”.4

Art. 3º São terras devolutas:


§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico
nacional, provincial, ou municipal.
§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qual-
quer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras
concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em
commisso por falta do cumprimento das condições de medição,
confirmação e cultura.
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras
concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso,
forem revalidadas por esta Lei.
§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de
não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.5

Apenas em 1891, com a promulgação da segunda Constituição brasi-


leira, que as terras devolutas foram transferidas aos Estados-membros,
respeitando os limites territoriais de cada ente estatal.
Finalmente, a vigente carta magna de 1988, além de determinar a
compatibilização de terras devolutas com a política agrícola e com o plano
de reforma agrária, declara como bens dos Estados, as terras devolutas
não pertencentes à União que, por sua vez, são aquelas indispensáveis à
defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias
federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei.
Assim, em Minas Gerais, desde 2001, cabe à autarquia denominada
Instituto de Terras de Minas Gerais promover a regularização jurídica
das terras devolutas urbanas e rurais, nos moldes da Constituição Es-

3 MINAS GERAIS, Decreto 34.801/1993. Disponível em< http://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/


completa/completa.html?tipo=DEC&num=34801&comp=&ano=1993> Acesso em: 18 ago 2013.
4 ARAÚJO M. M. et al. Relatório de Pesquisa GT Função Social da Propriedade. Belo Horizonte, Ana
Paula Costa Melo, 2013,p. 12.
5 BRASIL, Lei 601/1850. Disponível em<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm>
Acesso em 18 ago 2013.

399
tadual Mineira e das Leis Estaduais 7373/1978 e 11020/1993.
Nesse contexto, o presente trabalho busca trazer à baila da regulari-
zação fundiária de terras devolutas mineiras a valorização do instituto da
posse, como instrumento hábil a fornecer segurança jurídica e dinamici-
dade na efetivação da regularização, numa perspectiva de regularização
fundiária plena, que enalteça o princípio da dignidade humana,em con-
trapartida à utilização massiva do instituto da propriedade.
Para tanto, o artigo mostra, de maneira crítica, a incidência do institu-
to da posse no programa de regularização fundiária de terras devolutas
mineiras, abordando os argumentos contrários à utilização singular do
instituto da posse em tais casos. Após, desenvolve-se o entendimento
acerca da função social da posse de terras públicas e seus benefícios à
regularização fundiária. Ao final, a conclusão vislumbra uma evolução
na política pública brasileira de modo geral, a caminho da valorização do
instituto da posse, e o seu préstimo à execução da regularização fundiária
de terras devolutas.

2 - qUAL A RELEVâNCIA CONFERIDA


à POSSE NA POLÍTICA DE REGULARIZAÇÃO DE
TERRAS DEVOLUTAS MINEIRAS?

A posse é um instituto sempre presente na regularização fundiária de


terras devolutas mineiras, haja vista que a devolutividade da terra implica,
necessariamente, na propriedade estatal cujo domínio não é exercido de
modo fático, o que permite que as pessoas tomem posse do local, de ma-
neira originária ou derivada, sem saber que se trata de propriedade estatal.
Um dos motivos dessa situação é a falta de registro das terras devolutas
estaduais no Cartório de Registro de Imóveis. Para se proceder a abertura
de matrícula em nome do Estado de Minas Gerais, seria necessário, primei-
ramente, abrir um processo discriminatório, que pode ser administrativo
ou judicial e, após extremar as terras devolutas das demais, arrecada-se
a área e abre-se a matrícula no cartório competente.

400
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Isso é possível, porque a propriedade das terras devolutas é do Estado-


-membro não em decorrência do registro, mas em decorrência de lei, mais
especificamente no art. 26, IV da Constituição Federal de 1988.
No âmbito do Estado de Minas Gerais, a legislação infraconstitucio-
nal que trata da regularização das terras devolutas, se restringe apenas
à regularização jurídica, não obstante o comando do caput art. 246 da
Constituição Mineira de 1989:
Art. 246 – O Poder Público adotará instrumentos para efetivar o direito
de todos à moradia, em condições dignas, mediante políticas habitacionais
que considerem as peculiaridades regionais e garantam a participação da
sociedade civil.6
Tendo em vista que não existe usucapião de bens públicos, essa re-
gularização se dá por meio de processos administrativos específicos que
visam legitimar a posse ou a propriedade das ocupações irregulares nas
terras devolutas. A própria Constituição Estadual de Minas Gerais aponta
para a legitimação por meio de outorga de título de domínio ou de con-
cessão de uso.
O rito processual é diferenciado conforme a área devoluta se encontre
em zona urbana ou rural, havendo ainda requisitos legais diferentes no
que concernem as zonas urbanas e as zonas de expansão urbana. Ainda
sim, esses processos guardam algumas semelhanças, como por exemplo,
a posse pacífica e de boa fé como requisito imprescindível à legitimação
da posse ou do domínio dos ocupantes, bem como as formas de disponi-
bilização das terras devolutas aos possuidores.
A Lei Estadual 7373/78, que dispõe sobre a legitimação de terras de-
volutas do estado em zona urbana e de expansão urbana, aponta apenas
uma forma de regularização jurídica, que é a legitimação de domínio, ou
seja, a transferência da propriedade estatal para o ocupante. A posse, que
deve ser exercida de modo contínuo e pacífico, figura apenas como um
dos requisitos para essa legitimação.

6 MINAS GERAIS, Constituição Estadual 1989. Disponível em < http://www.almg.gov.br/consulte/legisla-


cao/completa/completa.html?tipo=CON&num=1989&comp=&ano=1989> Acesso em: 18 ago 2013.

401
Já a Lei Estadual 11020/93, regulamentada pelo Decreto 34.801/93,
dispõe de maneira geral sobre as terras públicas e devolutas estaduais,
com ênfase maior às terras devolutas rurais, e prevê que a regularização
jurídica dar-se-á por meio da alienação ou concessão, que se procedem de
quatro formas diferentes, a saber, concessão gratuita de domínio; alienação
por preferência; legitimação de posse; e concessão de direito real de uso.
Os dois primeiros instrumentos referem-se à legitimação de domínio,
enquanto os dois últimos regularizam a posse do ocupante, mantendo, a
priori, a propriedade estatal daquelas terras devolutas.
A Lei 11020/93 faz referência ainda à reserva de área devoluta, utili-
zada quando o caso concreto não se enquadra nos requisitos legais das
formas de disponibilização acima delineadas. Contudo, esse instrumento,
que efetivamente transfere apenas a posse da terra devoluta por meio de
decreto do Governador, está restrito a órgãos ou entidades interessadas
que desenvolvam na área atividade de interesse público previsto no Plano
Mineiro de Desenvolvimento Integrado, de maneira a restringir sua utili-
zação no que tange a regularização fundiária.

2.1 – A legitimação da posse

A origem do instituto da legitimação da posse está na Lei de Terras


brasileira, datada de 1850, e, desde aquela época, objetivava regularizar
a situação jurídica das ocupações das terras devolutas que se deram em
razão da extinção das sesmarias.
Esse instrumento tipicamente brasileiro consiste na exaração de ato
administrativo, através do qual o Poder Público reconhece ao posseiro
que exerça posse mansa, pacífica e contínua, desempenhando na terra
seu trabalho ou moradia, o domínio pleno formal.7
Dessa forma, percebe-se que apesar do instituto ser denominado de
legitimação da posse, ele consiste na realidade em uma forma de aliena-
ção da terra devoluta. 8

7 STEFANINI, 1978 apud MARQUES, B. F. Direito Agrário Brasileiro. São Paulo, Atlas, 2012. P. 87.
8 MATOS NETO, 1988 apud Ibid., p. 88.

402
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Isso ocorre porque, segundo a lei mineira, ao possuidor que preencha


determinados requisitos legais, é concedida uma licença de ocupação, um
documento provisório que representa um título de posse válido por um
prazo determinado de no mínimo quatro anos, findo o qual o ocupante
terá preferência para aquisição da propriedade da área. Ademais, essa
licença é intransferível inter-vivos, inegociável e impenhorável, com o
intuito de, mais do que proteger, manter o beneficiário na posse da terra,
antes de conferir-lhe a propriedade.
Um ponto interessante é o direito conferido por lei ao beneficiário com
licença de ocupação de obter crédito rural. Contudo, como a propriedade
continua pertencendo ao estado, e a posse conferida temporariamente é
inegociável, é improvável que as instituições financeiras aceitem o imóvel
como garantia hipotecária ou suas criações como garantia pignoratícia.9
Percebe-se assim, que a política mineira utiliza do instituto da posse
apenas como requisito para aquisição do domínio da terra.

2.2 - A concessão de direito real de uso

De maneira geral, a concessão de direito real de uso, como o próprio


nome sugere, gera direito real oponível a terceiros e possibilita a utilização
de bens públicos pelo particular, por tempo certo ou indeterminado. O ato
de outorga desse instrumento estabelece uma destinação específica de
interesse social, a fim de assegurar a função social do imóvel, e admite
transferência inter-vivos ou causa-mortis.
Já a concessão de direito real de uso de que trata a lei mineira tem
caráter mais restritivo, pois é fornecida por tempo certo de até 10 anos,
em sede de direito nominal e intransferível, exceto causa-mortis. Durante
esse período, o concessionário pode fruir plenamente do terreno para
fins específicos de uso e cultivo da terra, estabelecidos no instrumento de
concessão, respondendo por encargos civis, administrativos e tributários
que incidirem sobre o imóvel.

9 Ibid., p. 90.

403
Decorrido o prazo e comprovadas as condições estabelecidas no ins-
trumento de concessão, ao concessionário será outorgado título de pro-
priedade após o pagamento do valor da terra, acrescido dos emolumentos.
Assim, esse instrumento típico de garantia da posse é transformado
em requisito para aquisição de domínio da terra devoluta mineira.

3 - OS ARGUMENTOS CONTRáRIOS
à VALORIZAÇÃO DO INSTITUTO DA POSSE

Como verificado no capítulo anterior, a legislação mineira, não obstante


contemplar instrumentos relativos à posse na regularização jurídica das
terras devolutas, tende a valorizar a propriedade ao conferir provisoriedade
aos títulos de posse, como se a posse não fosse segura o suficiente para
garantir a permanência do possuidor no local.
A ideologia dessa política advém da noção popular de que “só é dono
quem registra”, já que a propriedade e outros direitos reais referentes a
bens imóveis só são oponíveis erga omnes quando o título que lhes deu
origem é registrado no cartório competente.
Ademais, o procedimento de regularização fundiária concretiza seus
objetivos quando os títulos concedidos aos beneficiários do programa são
registrados. Sem o registro, os beneficiários não podem provar que detém
o direito real de uso ou a propriedade do imóvel que ocupam. Portanto,
para que tivesse segurança jurídica, a posse também teria que ser regis-
trada, tal qual a propriedade, de maneira que seria irracional despender
o mesmo trabalho para conseguir apenas a posse da área.
Os adeptos dessa corrente antiga de pensamento acreditam que a
garantia da posse funciona como um paliativo até que se transfira a pro-
priedade, que dá acesso ao crédito bancário, sana conflitos, possibilita
o reconhecimento de direitos sociopolíticos e evita o risco de expulsão
pela ação do mercado imobiliário, por mudanças políticas que quebrem o
pacto sociopolítico gerador da percepção de segurança de posse, ou pela
pressão do crime organizado.10

10 FERNANDES. E. (Coord). Regularização da Terra e Moradia: o que é e como complementar. Dispo-


nível em < www.polis.org.br/uploads/949/949.pdf> Acesso em: 18 ago 2013. p. 23.

404
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Segundo esse entendimento, já que a regularização fundiária corres-


ponde à filosofia de fixação do homem à terra, o titulo de propriedade
tem grande significado para o posseiro nos aspectos jurídico, econômico,
social e político. A propriedade gera ao seu titular segurança jurídica,
melhoria de vida, status de proprietário, maior consumo, nova disposi-
ção para o trabalho e maior produtividade, gerando maior lucro para a
economia do país.11
Entretanto, ao estudar leis federais como o Estatuto da Cidade e a Lei
11977/09, à luz da Constituição Federal de 1988, é notável a exponencial
valorização da posse como garantidora do direito à moradia, de maneira
que o pensamento que centraliza a propriedade como única solução para
a regularização fundiária mostra-se equivocado, e inadequado às neces-
sidades dinâmicas e variadas dos casos concretos.
A referida legislação federal prevê variados instrumentos de regu-
larização fundiária que privilegiam a posse com segurança, como a
concessão de uso especial para fins de moradia individual ou coletiva e
o direito de superfície.
Aliás, a título de exemplo, no que tange a consecução de financiamento
para construção ou reforma da casa de um possuidor, o governo estadual
de minas gerais, por meio da Secretaria de Estado de Desenvolvimento
Regional e Política Urbana, oferece acesso ao Fundo Nacional de Habitação
de Interesse Social (FNHIS) pelos municípios, para ser usado com esse fim.

4 - A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE NA


REGULARIZAÇÃO DAS TERRAS DEVOLUTAS

Segundo o aclamado autor José dos Santos Carvalho Filho, o que se


pretende com a função social é “erradicar algumas deformidades existentes
na sociedade, nas quais o interesse egoístico do indivíduo põe em risco
os interesses coletivos”.12

11 MATOS NETO, 1988 apud Marques, 2012, p. 92.


12 CARVALHO FILHO, 2011, apud ARAÚJO, 2013, p. 9.

405
A partir dessa conceituação, a doutrina majoritária entende que o
aspecto social já está ínsito aos bens públicos, de modo que somente
por serem propriedade de pessoas jurídicas de direito público tais bens já
teriam cumprido implicitamente os requisitos de atendimento à função
social da propriedade.13
Entretanto, esse entendimento não guarda razão. Afinal, as terras
devolutas são de propriedade pública, e não recebem qualquer afetação
formal. Se não fossem os possuidores ocupando a área para sua moradia
ou seu sustento, as mesmas restariam completamente abandonadas, o
que, certamente, contraria o princípio da função social.
Aliás, percebe-se que é a posse a verdadeira concretizadora desse
princípio, por ser ela a expressão fática da propriedade. Na realidade, a
tendência atual é direcionar o papel e a missão do instituto da posse pe-
rante a coletividade, buscando solidariedade e bem comum.

Neste contexto, não há porque restringir à função social ape-


nas à propriedade, mas também a qualquer direito subjetivo,
especialmente por ser fato social de extrema importante para a
construção da dignidade da pessoa humana, suprindo as neces-
sidades básicas do homem.14

E ainda, ao escrever sobre a concessão do direito real de uso como


instrumento de regularização fundiária, Betânia Alfonsin15 retrata as
consequências do abandono de imóveis urbanos pelos poderes públicos
responsáveis pela sua utilização, demonstrando que a propriedade pública,
quando não cumpre função social, reveste-se de óbice à concretização do
direito fundamental de moradia digna e regularizada.
Na verdade, ao proceder à regularização fundiária das terras devolutas,
o Poder Público está promovendo a função social da posse, pois permite,
de maneira legítima, que os possuidores ali morem, trabalhem, produzem.
Com efeito, a posse é o instituto que permite a utilização fática do

13 Ibid., p. 9.
14 PIRES, C. T. O aspecto simbólico da função social da posse frente às exigências legais para
recebimento da indenização por desapropriação: uma crítica à discrepância entre a lei e o caso
concreto. 2011. Anais do CONPEDI. p. 11766.
15 ALFONSIN, 2001, apud ARAÚJO, 2013, P. 9.

406
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

imóvel, gerando os benefícios da função social, não a propriedade.


Logo, a regularização fundiária não deve ser reduzida à propriedade. A
posse constitui instrumento dinâmico e eficaz, possuindo tanta segurança
quanto a propriedade quando proveniente de título legítimo. Isso porque,
a propriedade não mais possui o caráter absoluto e exclusivo de outrora,
sendo inclusive, derrubada pela posse nas ações de usucapião.
As políticas de regularização fundiária nascem como um imperativo
ético e jurídico do princípio da dignidade humana e devem compreender
a dimensão da regularização jurídica, com a promoção da segurança da
posse, a fim de que os possuidores possam usufruir plenamente seus
direitos sem o risco da remoção involuntária.
Nesse ínterim, destaca-se que, apesar da propriedade manter-se com
o estado, o mesmo não está autorizado a suprimir a posse do beneficiário
por uma simples mudança de postura política, ou ainda, baseado na pura
e simples supremacia do interesse público sobre o privado.
Na realidade, a doutrina administrativista já vislumbra ponderações
acerca desse princípio que não pode ser havido como postulado expli-
cativo de todas as ações do Poder Público, sendo descrito separada ou
contrapostamente aos interesses privados.16
De fato, o termo “supremacia do interesse público” seria melhor subs-
tituído pela expressão (interesse coletivo em equilíbrio com o interesse
particular)17, e esse equilíbrio atua como garantia tanto para os possuidores
quanto para os proprietários.
A valorização do instituto da posse trás os seguintes efeitos benéficos
ao bem comum:

a) ao se colocar a dignidade da pessoa humana no plano civil-


-constitucional, é possível servir-se da posse para programas
de acesso à moradia digna e de erradicação da pobreza; b) a
posse passa a ser vista também como instrumento de afirma-
ção da cidadania e não apenas como meio de defesa; c) nova

16 ÁVILA, H. B. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular in O Direito


Público em Tempos de Crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre, Livraria
do Advogado, 1999. P. 126-127.
17 Aula de Direito Administrativo III, ministrada pelo Prof. Dr. Fernando Horta Tavares, no 2º semestre de
2012 na PUC MINAS.

407
percepção de “melhor posse”para aquela que cumprir função
social, independentemente da forma do título do apossamento;
d) arrefecimento das práticas de grilagem junto aos cartórios
brasileiros, pois entre o título e a função social que se der ao
imóvel, prevalecerá o último; e) vedação total de que se discuta
o direito de propriedade em demandas que tenham como causa
de pedir a posse18.

Assim, a transferência de propriedade é rígida e burocrática enquanto


a transferência da posse pode ser mais vantajosa, porque oferece uma
gama maior de instrumentos, a melhor se adequar ao caso concreto. Vê-
-se, então, que a posse investida de função social, oferece real serventia
para a regularização fundiária das terras devolutas.

CONCLUSÃO

Apesar dos vários instrumentos previstos em leis federais, a posse não


é o instituto preferido do Estado de Minas Gerais na promoção da regula-
rização jurídica das terras devolutas, sempre fazendo papel de requisito
para a conquista da propriedade.
É certo que a propriedade não deixou de ser o cerne do ordenamento
jurídico brasileiro, mas a posse vem ganhando cada vez mais destaque
e proteção, porque se reconhece que a posse é o instituto efetivador da
função social dos bens imóveis.
Diante da assustadora realidade de irregularidade fundiária, percebe-
-se que os programas de regularização baseados na legalização através
de títulos de propriedade não têm sido bem sucedidos.
A partir disso, muitas normas urbanísticas, ambientais e fundiárias
foram editadas, na tentativa de minimizar os efeitos dessa irregularidade,
por meio da majoração da segurança da posse, tendo como marco his-
tórico o Estatuto da Cidade. Assim, a valorização da posse é um preceito
que coaduna com a política nacional atual.
Com efeito, instrumentos jurídicos e urbanísticos que reconheçam

18 ALBURQUEQUE, 2002, apud MELO, M. A. B. Legitimação de posse: dos imóveis urbanos e o direito
à moradia. Rio de janeiro, Lumen Juris, 2008.

408
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

a diversidade das formas de uso e ocupação do solo, e que protejam o


possuidor contra o deslocamento forçado irão garantir a posse segura.
A forte tendência dos mineiros em utilizar o instituto da propriedade na
regularização fundiária, é consequência da antiga mentalidade de planejar
de forma setorial, como se a transferência da propriedade, por si só, fosse
consectário lógico da dignidade humana.
Há de se atentar que a regularização fundiária plena, que articula a
regularização jurídica com outras políticas públicas numa perspectiva
de planejamento integrado, é ferramenta importante na promoção da
cidadania.
Nesse sentido, a Lei Federal 11.977/09 serve de marco elogiável, ao
prever a cooperação das políticas públicas dos três níveis de governo, com
auxílio da iniciativa privada, com o objetivo de ampliar o acesso demo-
crático a terra, em especial, pela população de baixa renda, assegurado
o nível de habitabilidade; de articular políticas de habitação, saneamento
básico, meio ambiente, mobilidade urbana, sempre visando sustentabili-
dade, integração social e geração de emprego.
Assim, tendo em vista que a legislação mineira colacionada neste
trabalho data de 1978 e 1993, é nítida a necessidade de revisão, a fim de
adequá-la à atual política pública nacional. Isso porque, as diretrizes da
política de destinação de terras públicas devolutas no Estado de Minas
Gerais, dentre elas a regularização fundiária, serão mais bem atingidas se
em consonância com as novas possibilidades de instrumentos jurídicos
de gestão e de uso das terras públicas, previstos no ordenamento jurídico
brasileiro corrente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

3 MINAS GERAIS, Decreto 34.801/1993. Disponível em< http://www.almg.gov.


br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=DEC&num=34801&comp=
&ano=1993> Acesso em: 18 ago 2013.
4 ARAÚJO M. M. et al. Relatório de Pesquisa GT Função Social da Propriedade.
Belo Horizonte, Ana Paula Costa Melo, 2013.

409
5 BRASIL, Lei 601/1850. Disponível em<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Leis/L0601-1850.htm> Acesso em 18 ago 2013.
6 MINAS GERAIS, Constituição Estadual 1989. Disponível em < http://www.
almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=CON&num=1989
&comp=&ano=1989> Acesso em: 18 ago 2013.
7 MARQUES, B. F. Direito Agrário Brasileiro. São Paulo, Atlas, 2012.
10 FERNANDES. E. (Coord). Regularização da Terra e Moradia: o que é e
como complementar. Disponível em < www.polis.org.br/uploads/949/949.pdf>
Acesso em: 18 ago 2013.
14 PIRES, C. T. O aspecto simbólico da função social da posse frente às exi-
gências legais para recebimento da indenização por desapropriação: uma
crítica à discrepância entre a lei e o caso concreto. 2011. Anais do CONPEDI.
16 ÁVILA, H. B. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular in O Direito Público em Tempos de Crise: estudos em homenagem
a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1999.
18 MELO, M. A. B. Legitimação de posse: dos imóveis urbanos e o direito à
moradia. Rio de janeiro, Lumen Juris, 2008.

410
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Aspectos registrais
da regularização fundiária

Bruce Leal do Nascimento1∗


Emelin Sousa do Espírito Santo2∗∗
Josilene Barbosa Aboim3∗∗∗
Luana Nunes Bandeira Alves4∗∗∗∗
Maurício Leal Dias5∗∗∗∗∗

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo visa abordar aspectos da regularização fundiária


voltada aos registros fundiários, sobretudo ao que tange aos procedimen-
tos, aspectos gerais e aos instrumentos da Concessão Especial para Fins
de Moradia (CUEM) e Concessão do Direito Real de Uso (CDRU).
Como é cediço, no Estado Brasileiro vigora o princípio da dignidade
da pessoa humana, que determina que o cidadão há de ser percebido e
tratado como um fim em si mesmo, sendo justamente por essa caracte-
rística principiológica do Estado brasileiro, que a regularização fundiária
se faz necessária, tendo em vista que é por meio desta, que ocupantes de
solos urbanos regularizam a sua situação jurídica bem como recebem o
título de posse comprovando tal situação fática.

1∗ Graduando em Direito pela Universidade Federal do Pará, Bolsista do Programa de Capacitação em Re-
gularização Fundiária de Interesse Social na Região Metropolitana de Belém (PROExT/MEC/SESu); e-mail:
bruce_leal@hotmail.com.
∗∗
2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará, estagiária do Ministério Público Estadual, atuando
na Terceira Promotoria Criminal; e-mail: emelinsouza@hotmail.com.
∗∗∗
3 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará, Bolsista do Programa de Capacitação em Re-
gularização Fundiária de Interesse Social na Região Metropolitana de Belém (PROExT/MEC/SESu); e-mail:
josilene.aboim@gmail.com.
∗∗∗∗
4 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará, Bolsista do Programa de Capacitação em
Regularização Fundiária de Interesse Social na Região Metropolitana de Belém (PROExT/MEC/SESu); e-mail:
luananunes_bandeira@hotmail.com.
∗∗∗∗∗
5 Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará,
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará, Advogado e Consultor Jurídico especializado
em Direito Urbanístico e Ambiental; e-mail: mlealdias@gmail.com.

411
Deve-se compreender que a moradia é um direito fundamental e, por
isso, deve ser compromisso de todos os países que ratificam os tratados
internacionais protetores dos direitos humanos a sua efetivação através
de políticas públicas. Nesse sentido, a efetivação desse direito social traz
à baila condições básicas, mas primordiais para ocupantes de áreas irre-
gulares, tal como a segurança jurídica da posse.
A regularização fundiária de interesse social é implementada por meio
de instrumentos expressamente previstos na Lei nº 10.257, sendo que
desses instrumentos serão abordados a CUEM e a CDRU. É através desses
institutos que se viabiliza alcançar a regularização fundiária de interesse
social, garantindo-se moradia ao ser humano para desenvolvimento de
sua dignidade.

2. REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA DE
INTERESSE SOCIAL COMO EFETIVAÇÃO
DO DIREITO hUMANO à MORADIA

O direito à moradia foi reconhecido e declarado como uma função social


da cidade em 1933, no Congresso Internacional de Arquitetura Moderna,
na cidade de Atenas. Neste momento foi produzido o texto da “Carta de
Atenas” que em seu art. 77 dispunha sobre as funções sociais da cidade.
Posteriormente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
positivou a moradia enquanto um direito humano em seu art. xxV, in verbis:

1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegu-


rar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação,
vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais
indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego,
doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência fora de seu controle. (grifos nossos).

Nesse contexto, foi aprovado, em 1966, o Pacto Internacional dos


Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que entrou em vigor em 1976 e
em seu art. 11 dispôs que os países partes deveriam assegurar a todos os
cidadãos um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive

412
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

quanto à moradia digna, conforme verificamos abaixo do seguinte trecho


de tal dispositivo: “os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o
direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua
família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequada, assim
como uma melhoria contínua de suas condições de vida”.
O Pacto de San José da Costa Rica, ratificado e promulgado pelo Brasil,
através do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 19926, garante o direito
à propriedade privada, em seu art. 21, o que, no entanto, deve ser inter-
pretado em correlação com o princípio do interesse social da propriedade.
Além destes marcos históricos, teóricos e jurídicos já destacados,
existem diversos outros que promoveram avanços no debate acerca do
direito fundamental à moradia adequada, tal qual se depreende do excerto
a seguir:

Ainda sobre a postura internacional, tem-se importantes con-


ferências internacionais que debateram o tema, expedindo ao
final desses eventos declarações sobre os deveres no tocante
à promoção de tal direito. Grifamos a Convenção Internacional
sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial
em 1965; a Convenção Internacional de Proteção dos Direito de
todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de sua Família, em
1977; a “Estratégia Global para Moradia no ano 2000, adotada
em 1988; a Cúpula Mundial em favor de Crianças e Adolescentes,
ocorrida no ano de 1990, em Nova York; a Conferência Mundial
sobre os Direitos Humanos, ocorrida no ano de 1993, em Viena,
afirmando que os direitos humanos são universais, indivisíveis,
interdependentes e inter-relacionados; a Conferência Interna-
cional sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, em 1994;
a Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social, em Copenha-
gue, em 1995; e também a Quarta Conferência Mundial sobre a
Mulher, em Beijing 19957.

Ainda, segundo Melo8, para a Organização das Nações Unidas, a mo-


radia é um direito humano e, por isso, deve ser compromisso de todos
os países que ratificam os tratados internacionais protetores dos direitos

6 Ler sobre o assunto em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 12


ago. 2013.

7 MELO, Lígia. Direito à moradia no Brasil. Política Urbana e Acesso por meio da Regularização
Fundiária. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 35
8 Op. cit. p. 36.

413
humanos a sua efetivação através de políticas públicas.
No âmbito nacional este direito somente foi expressamente garantido,
pela Constituição Federal de 1988, com o advento da Emenda Constitu-
cional nº 269, de 14 de fevereiro de 2000, quando então foi positivado no
rol dos direitos sociais, sendo direito de toda coletividade e poder-dever
do Estado a garantia, defesa e promoção do acesso à moradia adequada
a todos os cidadãos. Assim, de acordo com o art. 21, xx, da CF/88, cabe
à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive
quanto à habitação; bem como, conforme disposto no art. 23, Ix, cabe
à União, Estados, Distrito Federal e Municípios promoverem programas
para construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais.
Para complementar, no que diz respeito à ampla concepção do direito à
moradia adequada, há um capítulo constitucional especialmente reser-
vado à temática, intitulado “Política Urbana”, contendo os arts. 182 e 183
da Constituição; bem como pode-se também fazer uma interpretação
sistemática de todos os dispositivos diretamente relacionados ao direito à
moradia com o art. 225 da Carta Magna que estabelece o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Nesse sentido, a efetivação desse direito social traz à baila as seguintes
condições:
Segurança jurídica da posse;
Disponibilidade de serviços, materiais, benefícios e infraestrutura,
tais como acesso à água potável, energia, iluminação, instalações
sanitárias, serviços de emergência;
Gastos suportáveis que inclui a possibilidade de satisfação das
suas necessidades básicas acessíveis ao seu proporcional nível
de renda;
Habitabilidade, o que inclui proteção contra o frio, umidade,
chuva, contra fatores que possam prejudicar a saúde e fazer
proliferar doenças.
Acessibilidade, significando dizer que todo ser humano deve ter
acesso à moradia e aqueles que não possam por si só acessar tal
direito tenham à sua disposição condições e recursos para seu
pleno acesso. Cabe, ainda dar prioridade aos grupos de pessoas
consideradas em maior desvantagem tais como idosos, porta-
dores de necessidades especiais, crianças, vítimas de desastres

9 Ler sobre o assunto em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc26.htm.


Acesso em: 10 ago. 2013.

414
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

naturais, pessoas que vivem em áreas de risco. Tal vocábulo re-


comenda que políticas públicas elejam como prioritária a questão
da moradia, tornando-a acessível adequadamente a todos que
dela necessitem;
Localização que possibilite o acesso a emprego, escolas, postos
de saúde, áreas de lazer, creches e os demais serviços essenciais;
Adequação cultural, respeitando a identidade cultural daqueles
que vão habitar ou ali já habitam, a ser garantida por medidas
que envolvam a proteção contra o retrocesso do direito, o esta-
belecimento prioritário de uma política habitacional para grupos
vulneráveis que vise à integração plena e a sua manutenção à
cidade formal10.

Assim, o Estado Brasileiro, como Estado Democrático de Direito assen-


tou-se sob o princípio da dignidade da pessoa humana, que determina que
o ser humano há de ser percebido e tratado como um fim em si mesmo,
razão pela qual exige-se que sejam pensados mecanismos capazes de
proteger e promover essa dignidade.
É justamente por essa característica principiológica do Estado brasi-
leiro, que a regularização fundiária se faz necessária, tendo em vista que
é por meio desta, que ocupantes de solos urbanos irregulares validam a
sua situação jurídica bem como recebem o título de posse.
A regularização fundiária de interesse social emerge na discussão
dessa efetivação por ser o instrumento adequado à realização desse
direito social, uma vez que de nada basta a positivação, a formalização,
se isto não for seguido de políticas públicas, sendo importante ressaltar
que a regularização fundiária é de interesse social porque é voltada ao
cumprimento do direito à moradia e se destina a garantia ao acesso a
uma moradia digna aos cidadãos que, em razão do modelo de desenvol-
vimento excludente, vivem em locais socioambientalmente vulneráveis
que constituem a cidade ilegal e informal.
O marco legal da política habitacional e, em especial, da regularização
fundiária de interesse social é a Lei nº 11.977/2009, que institui investimen-
tos para essa seara, trata da regulamentação da regularização fundiária

10 Ibidem. p. 38.

415
e em seu art. 46 consta o conceito desse processo11.
Como se vê, a regularização fundiária aqui apresentada, que deve culmi-
nar com a titulação da propriedade, busca vincular o homem ao solo urbano
já ocupado, garantindo o direito social à moradia. Nesse sentido, conforme
ressaltam Edésio Fernandes e Betânia Alfonsin12, há de se haver esforços
conjuntos para se simplificar a titulação, uniformizando e barateando ao
máximo seus procedimentos, como forma de ampliá-la o máximo possível,
já que o registro público é imprescindível para a garantia da segurança jurí-
dica da posse ao cidadão que busca ter acesso à moradia digna e firmar-se
em um lugar.
Os instrumentos de regularização fundiária estão previstos no art. 4º, V, no
Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257), que sistematiza uma série de institutos de
planejamento, tributários, políticos e jurídicos, os quais deverão ser utilizados
pelos entes federativos a fim de enfrentar as diversas irregularidades fundiárias.
Esse tipo de regularização está bem delimitada nos referidos tex-
tos normativos e se trata de um conjunto de procedimentos de ordem
jurídica, urbanística, ambiental e social que objetiva à regularização
de assentamentos informais e à titulação de seus possuidores, sendo
necessário o atendimento aos critérios específicos delimitados pelo art.
3º, §3º da referida lei.
A regularização fundiária de interesse social é implementada por meio
de instrumentos expressamente previstos na Lei nº 10.257. Esses instru-
mentos são: a Usucapião Especial Urbano, a Concessão de Uso Especial
para fins de Moradia e a Concessão de Direito Real de Uso, sendo, então,
através desses institutos que se viabiliza a moradia digna conforme ob-

11 Art. 46. A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e
sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a
garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Lei nº. 11.977, de 7 de julho de 2009 que dispõe sobre
o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em
áreas urbanas; altera o Decreto-Lei nº. 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de
1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a
Medida Provisória nº. 2.196-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências.
12 ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio. Coletânea de legislação urbanística: normas internacionais,
constitucionais e legislação ordinária. ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Coord.). Belo Horizonte:
Fórum, 2010. p. 23.

416
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

jetiva o procedimento de regularização.


Dentre os diferentes instrumentos, relacionaremos a regularização de
interesse social especificamente a dois destes, quais sejam, a Concessão
Especial para Fins de Moradia (CUEM) e a Concessão de Direito Real de
Uso (CDRU).
Assim, nos imóveis em que não for possível aplicar o instituto da
usucapião, em razão da justiça social e do princípio da função social da
propriedade, a CUEM precisou estar expressamente prevista no ordena-
mento jurídico pátrio, através da Medida Provisória nº 2.220/2001, para
que seja possível a regularização de ocupações em áreas públicas que
tenham ocorrido até o dia 30 de junho de 2001. A CUEM é prevista como
instrumento jurídico e político no artigo 4º, V, a, da Lei nº 11.977/2009,
sendo expressa de forma individual e coletiva.
A CDRU é o instrumento mais antigo da regularização fundiária, sendo
previsto no Decreto-Lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967 e, diferente-
mente da CUEM, pode ser utilizado em áreas públicas e privadas. Se trata
de um contrato administrativo firmado entre a Administração Pública e os
ocupantes, sendo registrado em cartório, segundo o art. 167, I, da Lei nº
6.015/73. Assim como a CUEM, poderá ser firmado de forma individual ou
coletiva. Por fim, somente é aplicado nos casos em que não for possível
a implementação da CUEM.
Embora exista uma consolidada legislação em âmbito internacional e
nacional, ainda há muitas áreas em situação de vulnerabilidade, necessi-
tando a realização da regularização de seus lotes.
Ademais, ainda ocorrem diversas outras formas de violação do
direito humano à moradia, como, por exemplo, despejos forçados,
remoções e reintegrações dos imóveis ocupados por cidadãos em as-
sentamentos informais.
Nesse sentido, além da regularização, que é um passo de extrema im-
portância para o fortalecimento da cidadania, é necessária também a ma-
nutenção dessas áreas. É preciso que se urbanize, mas que se crie geração
de renda da população, que se fortaleça o aspecto socioeconômico dessas

417
pessoas, para que haja sustentabilidade do processo ora implementado.

3. CONCEPÇÕES GERAIS SOBRE O REGISTRO DE IMóVEIS

O principal objetivo da titulação e do registro de imóveis é a publicidade


que advém desse ato, que gera segurança e eficácia a todos os atos jurí-
dicos realizados concernentes à propriedade e à posse, sendo necessária
devido o direito real de propriedade ser oponível erga omnes, onde, para
serem reconhecidos, devem ser comunicados a todos os membros da
sociedade, nos afirmando Luiz Guilherme Loureiro13 que:

O registro de Imóveis, portanto, é a instituição jurídica organiza-


da pelo Estado que proclama oficialmente as situações jurídicas
relativas à propriedade de imóveis e suas modificações. Pela
publicidade registral se exteriorizam, de forma contínua e orga-
nizada, as situações jurídicas de natureza real, a fim de que seja
assegurada a sua eficácia perante todos os demais membros da
sociedade.

A seguir, o autor afirma que a publicidade registral possui um triplo


aspecto, qual seja, de o registro ser público por ser uma atividade perten-
cente ao Estado; sendo assegurado a todos os membros da sociedade; e
possuindo finalidade de garantir segurança, autenticidade e eficácia na
relação entre as pessoas. Essa segurança jurídica, como já ressaltamos,
garante que o possuidor de determinado imóvel possa exercer seus direitos
reais que estão garantidos por meio de um instrumento técnico, o registro
de seu imóvel, que possui presunção de veracidade, ou seja, a presunção
de que os dados que constam no registro são verdadeiros.
O registro de imóveis possui efeito constitutivo, ressaltando-se que to-
dos os imóveis particulares devem possuir sua devida inscrição, segundo o
princípio da obrigatoriedade do registro, sendo realizado na circunscrição
em que o imóvel estiver localizado, em livro próprio e folha específica
para o imóvel, onde serão feitas todas as anotações a ele atinentes, como:

13 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 203.

418
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

alienações, hipotecas, e etc., que visam exteriorizar a situação fática desse


bem, como se observa da leitura do art. 231, I, da Lei nº 6.015/1973 (Lei
de Registros Públicos) que afirma em cada folha do registro “será lançada a
matrícula do imóvel e no espaço restante e no verso, serão lançados por ordem cronológica
e em forma narrativa, os registros e averbações dos atos pertinentes ao imóvel matriculado”.

4. OS ASPECTOS REGISTRAIS DOS


INSTRUMENTOS PARA A EFETIVAÇÃO DA
REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA: A CUEM E O CDRU

4.1. A Concessão de Uso Especial para fins de Moradia (CUEM)

Disposta como um direito real no rol taxativo do artigo 1.225 do Código


Civil pátrio e regulamentada pela Medida Provisória nº 2.220/01, a Con-
cessão de Uso Especial para fins de Moradia (CUEM) hoje se traduz como
um dos instrumentos mais eficazes da política pública urbana quando se
trata de regularização fundiária.
Explica-se melhor: a CUEM, que poderá ser individual ou coletiva, é uma
alternativa que visa reconhecer a posse, o direito à moradia, às famílias
vulneráveis que atendam aos requisitos legais. Esse instrumento busca
efetivar a função social da propriedade, constitucionalmente assegurada,
nas terras públicas14 através da emissão de títulos de uso da terra.
Ademais, sendo as disposições da CUEM um direito subjetivo, é imposto
ao Estado o dever ex-lege de regularizar a posse de terras15. Dessa forma,
sendo uma obrigação estatal, há três alternativas para que o título de

14 Morreti ressalta ainda que para que os programas de regularização fundiária contemplem as especificidades
de cada local, bem como para que haja uma gestão democrática e participativa - objetivos da política pública
urbana, deverá haver a articulação entre os diversos órgãos públicos, entre o poder público e a população.
Acentua-se, ademais, que os projetos de pesquisa, ensino e extensão nas Universidades se tem apresentado
como meio eficaz para interligar o poder público, o saber, e a comunidade vulnerável que necessita da regu-
larização das suas terras. MORETI, Julia Azevedo. A Concessão de Uso Especial para fins de Moradia
como Instrumento de Regularização Fundiária em áreas da União. Disponível em: <http://www.ibdu.
org.br/imagens/aconcessaodeusoespecialparafinsdemoradia.pdf>. Acesso em 17 ago. 2013.
15 BORBA, Tereza; AGUIAR, Carlos. Regularização fundiária e procedimentos administrativos. p. 200.

419
concessão seja emitido, gratuitamente16, no Registro Público no Cartório
de Imóveis: através de uma iniciativa própria do Poder Público, por reque-
rimento dos interessados na seara administrativa ou ainda pela via judicial.
Ressalta-se que através da Medida Provisória nº 2.220/01, a CUEM se
tornou um instrumento de regularização de áreas que também não foram
frutos de irregularidades, assim afirma Betânia Alfonsin que17:

Aqui se garantiu a possibilidade de utilizar o instrumento da


concessão de uso especial para fins de moradia naqueles casos
em que a forma de ocupação dos imóveis públicos não se deu de
forma irregular, pelo contrário, deu-se regularmente, através de
inscrição nos órgãos habitacionais competentes”18 Dessa forma,
ampliaram-se as opções do legislador em garantir àqueles que
tem o exercício regular da posse e que preenchem os requisitos
da Concessão especial de uso para fins de moradia tornando
assim, o morador titular de direito real oponível.

Nesse sentido, seja na esfera judicial ou na administrativa, são legiti-


mados ativamente para requerer a CUEM apenas um ou todos os conces-
sionários, não sendo exigida a comprovação de casamento, o que é um
avanço normativo, uma vez que, hodiernamente as famílias que residem
em terras públicas são, na sua grande maioria, informais. Quando se trata
de CUEM coletiva, as associações e cooperativas legalmente constituídas
também são legitimas para requerer a celebração do contrato em estudo.
Outrossim, como dito alhures, é exigido do futuro concessionário o
preenchimento das seguintes condições: residir em imóvel com até 250
m² situado em área urbana, utilizado para fins de moradia; inexistência
de outra propriedade, urbana ou rural, ou outra concessão em nome
do(s) interessado(s); além de estar na posse, contínua e sem oposição,

16 § 1o do artigo 1º da Medida Provisória nº. 2.220/01: A concessão de uso especial para fins de moradia
será conferida de forma gratuita ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
(grifos nossos)
17 ALFONSIN, Betânia. Da Concessa o de Uso Especial in Estatuto da Cidade Comentado. Liana Portilho
Mattos (org.). Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 421.

18 ALFONSIN, Betânia. “Da concessão de uso especial” in Estatuto da Cidade Comentado Liana Portilho Mattos
(org.). Belo Horizonte, Mandamentos, 2002. págs. 409-431.

420
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

desde 30 de junho de 199619.


Contudo, caso ultrapasse os 250 m² e não seja possível individualizar
os terrenos possuídos pelos moradores poderá ser requerida a CUEM co-
letiva, com a ressalva de que a fração atribuída à cada núcleo familiar não
ultrapasse a metragem da CUEM individual. Dessa forma, na concessão
independerá da dimensão do terreno que cada família ocupar de fato, sen-
do permitido o acordo escrito no caso de frações diferenciadas, conforme
assegura o §2º, do artigo 5º da Instrução Normativa nº 2 da SPU, em 2007.
Isto posto, para instruir o requerimento administrativo, vejamos o teor
de alguns dispositivos da Instrução Normativa nº 02 de 2007 da Secretaria
de Patrimônio da União (SPU):

Art. 10. O requerente deverá indicar dados de qualificação pesso-


al, apresentando os originais e cópia dos seguintes documentos:
cartão de CPF, Carteira de Identidade ou outro documento com
validade para identificação civil, e certidão de casamento, se
aplicável.
Parágrafo único. A ausência justificada dos originais de qualquer
um dos documentos de identificação não obstará o reconheci-
mento do direito à moradia de que trata esta Instrução Normativa,
desde que seja comprovada a autenticidade de outra forma.
Art. 11. Para o fim de comprovação do preenchimento dos requi-
sitos previstos nos arts. 1º e 2º, da Medida Provisória nº 2.220, de
2001, o processo será instruído com os seguintes documentos:
I - para comprovação do domínio da União: matrícula em cartório
de registro de imóvel - CRI, termo de incorporação, demarcação
de LPM e/ou LMEO, decreto de desapropriação, auto de demarca-
ção, discriminação administrativa, comprovação da inexistência
de ação judicial que tenha por objeto a dominialidade da União;
II - para comprovação do tamanho do imóvel: planta de situação
do imóvel, croqui, memorial descritivo ou certidão a ser fornecida
pelo Poder Público Municipal, na forma do § 2º, art. 6º da Medida
Provisória nº 2.220, de 2001, que ateste, também, as especifica-
ções técnicas do imóvel;
III - para comprovação do tempo de posse: fotos aéreas, cadas-
tros municipais, estaduais ou federais; matérias jornalísticas;
publicações; estudos acadêmicos; boletos de cobrança emitidos
por concessionárias de serviços públicos; correspondência ou
recibo com indicação do endereço; registro escolar; carteira de
vacinação; documento de entrega de mercadorias entre outros

19 É o que prevê o artigo 1º da Medida Provisória nº. 2.220 de 2001: Aquele que, até 30 de junho de 2001,
possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros qua-
drados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o
direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não
seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.

421
que contenha indicação de data e localização;
IV - para comprovação de inexistência de oposição: declaração do
possuidor no corpo do requerimento que dá início ao processo;
certidão da GRPU atestando inexistir reclamação administrativa
ou ação possessória em relação à área no período aquisitivo;
V - não ser proprietário ou concessionário de outro imóvel urbano
ou rural: declaração de próprio punho feita pelo possuidor em
seu requerimento inicial; e
VI - localização em área urbana para fins de moradia: certidão
expedida pela prefeitura, atestando tratar-se de área urbana,
indicando o uso do solo previsto em lei municipal e o uso efeti-
vamente constatado.

Por fim, quando não é realizada a expedição do título de concessão ou


quando não há uma resposta ao requerimento administrativo no prazo
de 12 meses, os concessionários poderão recorrer ao Judiciário, frente
à omissão estatal. É o que assegura o artigo 6º da Medida Provisória nº.
2.220/01, vejamos:

Art. 6o O título de concessão de uso especial para fins


de moradia será obtido pela via administrativa perante o
órgão competente da Administração Pública ou, em caso
de recusa ou omissão deste, pela via judicial.
§ 1o A Administração Pública terá o prazo máximo de doze
meses para decidir o pedido, contado da data de seu protocolo.
(grifos nossos)

À posteriori, vencido o trâmite processual e preenchidos os requisitos


estabelecidos, o magistrado declarará a CUEM20 através de “uma sentença
declaratória ou mandamental, nesse caso, impondo ao Poder Estatal uma
obrigação de fazer, sujeito à multa em caso de retardo no cumprimento
da sentença”21.
Assim, o concessionário deverá se dirigir ao Cartório de Registro de
Imóveis e apresentar o título conferido por via administrativa ou por
via judicial mediante sentença para que seja registrado no Cartório de
Registro de Imóveis. A partir de então, como a terra ainda permanece
pública, para que não haja a possibilidade de que o Poder Público extinga

20 §3º, do artigo 6º da Medida Provisória nº. 2.220/01: Em caso de ação judicial, a concessão de uso especial
para fins de moradia será declarada pelo juiz, mediante sentença.
21 BORBA, Tereza; AGUIAR, Carlos. Ibidem. p. 215.

422
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o contrato, o concessionário deverá observar o teor do art. 8º da Medida


Provisória nº 2.220:

Art. 8o O direito à concessão de uso especial para fins de moradia


extingue-se no caso de:
I - o concessionário dar ao imóvel destinação diversa da moradia
para si ou para sua família; ou
II - o concessionário adquirir a propriedade ou a concessão de
uso de outro imóvel urbano ou rural.
Parágrafo único. A extinção de que trata este artigo será averbada
no cartório de registro de imóveis, por meio de declaração do
Poder Público concedente.

Contudo, considerando o baixo nível de instrução da população vulne-


rável, coadunado com o desconhecimento de legalizar a posse da terra,
alguns desses documentos comprobatórios do artigo 11 da Medida Pro-
visória em estudo deverão ser relativizados, tendo em vista a dificuldade
em acessá-los ou reuni-los, considerando também as bases axiológicas
do direito à moradia, existem diversas experiências que deverão ser apli-
cadas em todo o Brasil.
A exemplo, a 1ª Vara de Registros da Capital de São Paulo editou uma
Ordem de Serviço (nº 01 de 2013) que, na prática, e não apenas teorica-
mente, apresentou um avanço no acesso aos títulos de concessão para a
população ocupante de terras públicas. Vejamos a parte do teor do mesmo:

Ordem de serviço nº 1/ 2003 - 1ª VRPSP, (D.O.E. de 08.04.2003)

Os doutores Venício Antonio de Paula Salles, Tânia Mara Ahualli


e José Henrique Fortes Muniz Júnior, Juízes de Direito que res-
pondem pela 1a Vara de Registros Públicos da capital, no uso de
suas atribuições legais e na forma da lei.
Considerando a extrema importância atribuída pelo legislador
constituinte à ação de usucapião, que foi eleita como um dos
mecanismos mais importantes para a pacificação e estabilidade
social, conquanto seja a propriedade um dos suportes da própria
cidadania; considerando que invariavelmente as ações de usu-
capião têm tramitação lenta e onerosa em face das dificuldades
para a localização e citação dos titulares dos imóveis confinantes
e confrontantes, de forma que qualquer aperfeiçoamento pode
alavancar uma redução de custos e viabilizar, de forma mais
ampla, este fundamental meio de conquista da propriedade;
considerando, finalmente, a necessidade de fixação de
regras práticas para a regularização fundiária de ocupa-

423
ções consolidadas.
Resolvem: [...] 5. Para a regularização das áreas públi-
cas desafetadas legalmente, em atenção aos termos da
Medida Provisória n 2.220/01, deverá a Municipalidade
apresentar a planta da área, extraída de levantamento to-
pográfico ou aerofotogramétrico, em atenção aos padrões
registrais, diretamente junto ao respectivo Registro, que
providenciará a abertura da matrícula da área integral;
6. O Oficial do Registro de Imóveis deverá proceder a exame
de qualificação, analisando eventual interferência da descrição
da área sobre outras áreas registradas; 7. Nos casos em que a
área pública confrontar com particular, este deverá ser citado
diretamente ou pela via postal, em regular procedimento junto a
esta 1a VRP; 7.1. A citação poderá ser dispensada, se aos autos
forem apresentadas “cartas de anuências” dos confrontantes, que
expressamente venham a declarar conhecimento e concordância
com a descrição constante do levantamento técnico22.

Esta ordem, sem dúvida, se apresenta como um salto e um exemplo


de como o Poder Público pode relativizar ou, ainda, encontrar outros me-
canismos para efetivar a regularização Fundiária ao não exigir, conforme
aduz Patrícia de Menezes, outro procedimento senão a simples visita do
registrador imobiliário na abertura de matrícula de áreas passíveis de
regularização através da CUEM.
Outrossim, a necessidade do integral acesso à moradia, frente aos inte-
resses particulares é tão urgente que o Instituto do Registro Imobiliário do
Brasil (IRIB), emitiu a recomendação nº 01 de 2013, com o seguinte teor:

Atendendo à deliberação plenária da Comissão do Pensamento


Registral Imobiliário e de Assuntos Legislativos do IRIB – CPRI/
IRIB (BE 4.243), em reunião de 9/3/2013, e alinhado com os
compromissos assumidos com o Conselho Nacional de Justiça (BE
4.244), em audiência ocorrida em 13/3/2013, o Instituto de Re-
gistro Imobiliário do Brasil (IRIB) recomenda aos Oficiais de
Registro de Imóveis do Brasil que participem do esforço nacional
pela Regularização Fundiária, instrumento de relevância ímpar,
apto a conferir dignidade a significativa parcela da população
brasileira, conferindo-lhes o constitucional direito à propriedade;
a promover avanços ambientais e urbanísticos; e a impulsionar
o crescimento do mercado imobiliário. (grifos nossos)

22 Texto consta na dissertação de Cardoso. CARDOSO, Patrícia de Menezes. Democratização do acesso à


propriedade pública no Brasil: função social e regularização fundiária. Disponível em <http://patri-
moniodetodos.gov.br/olhares-sobre-o-patrimonio-de-todos-2/material-recebido/Dissertacao%20Mestrado%20-
-%20Patricia%20Cardoso.pdf>. Acesso em 28 ago. 2013.

424
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Por fim, considerando a importância da celebração da CUEM entre o


concessionário e o Poder Público, reconhecendo a legitimidade da posse
daqueles que buscam a efetivação da função social da propriedade, é de
imensurável necessidade um esforço coletivo, inclusive, como ressaltado
nas linhas anteriores, dos Cartórios de Registro de Imóveis para que todos
sejam inseridos à chamada Cidade Legal, legitimando a efetiva participação
popular na tomada de decisões, bem como o salutar planejamento urbano.
Com relação à relevância dessa titulação, Nelson Saule Junior afirma
que “com a adoção da concessão de uso, a propriedade urbana fica mantida
sob o domínio do Poder Público, como meio de assegurar a manutenção
da área para a finalidade social de moradia”23 Portanto, a concessão de
uso não constitui transferência de domínio isso não significa, no entanto,
que não há segurança jurídica da posse.
Os componentes do direito à moradia da Agenda Habitat24 e de acordo
com os comentários do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Cul-
turais sobre o direito à moradia adequada são quatro: disponibilidade de
serviços e de infraestrutura urbana; o custo acessível; habitabilidade, ou
seja, existência de condições físicas e de salubridade adequadas; a aces-
sibilidade; adequação cultural; e a segurança jurídica da posse.
Esse último componente deve ser entendido como a ausência de amea-
ças de desalojamento forçado e em se tratando de área pública a CUEM é o
instrumento que garante a segurança jurídica sem transferir a propriedade

4.2 – A Concessão do Direito Real de Uso (CDRU)

Tal instituto, possui origem no Código Civil de 1916, onde, nos arts.
742 e 745, falava-se do Uso e sua fruição, quando as necessidades pes-

23 SAULE JUNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre, Sergio
Antonio Fabris Editor, 2004. p. 126.
24 A Agenda Habitat é um plano de ação global adotado pela comunidade internacional na Conferência Habitat
2, realizada em Istambul, Turquia, em 1996. A Agenda é um plataforma de princípios que devem se traduzir
em práticas. As atividades desenvolvidas no âmbito do Habitat contribuem para o objetivo global das Nações
Unidas de reduzir a pobreza e promover o desenvolvimento sustentável dentro de um contexto em que o mun-
do que avança aceleradamente para a urbanização. http://comciencia.br/reportangens/cidades/cid04.htm.

425
soais do usuário e de sua família assim exigirem, sendo que em 1967,
com o Decreto-Lei nº 271, previu-se sua ampliação, sendo limitado até o
âmbito familiar, para particulares e pessoas jurídicas em hipóteses não
previstas nos dispositivos retromencionados do até então Código Civil.
Seu objetivo é regularizar áreas favelizadas, onde, na maioria das vezes,
por serem áreas públicas, não podem ser objeto de usucapião, como na
lição de Alfonsin25 que nos afirma que a CDRU permite “a destinação de
terrenos públicos para o assentamento da população de baixa renda, ou
para legalizar sua permanência em áreas que já se encontram ocupadas”.
Possui caráter mais amplo que a CUEM, permitindo que o bem público
seja utilizado pelo particular, tendo-se em vista um interesse social, para
fruição e não apenas para uso, podendo ter diversas utilidades, como em
sua destinação rural, para plantações.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, foi criado um capítulo
sobre a política urbana e inserido no art. 183, § 1º disposição de que “o
título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos,
independentemente do estado civil”. O art. 48 da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade)
estabelece que os contratos de CDRU possuem caráter de escritura pública e garantia real
para contratos de financiamento habitacional.
A CDRU ocorre por tempo determinado (inexistindo limite temporal preestabelecido
para a sua concessão), pode ser renovável, gratuita ou onerosa e ter destinação específica.
O Poder Público pode revoga-la caso a pessoa beneficiada pelo instituto dê destinação
diversa do que foi pactuado, sendo que tais características estão contidas no art. 7º do
Decreto Lei nº 271/1967. Outro ponto relevante é que na maioria das vezes, para haver a
concessão, é necessário desafetação da área pública, o que deve ser feito por lei específica,
que defina todas as características da concessão, podendo, inclusive, ser gravada como
Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), necessitando de processo licitatório, em forma
de concorrência, e ainda pode ser constituída por instrumento público ou termo adminis-
trativo. A Concessão do Direito Real de Uso também pode se dar de forma
coletiva, tornando seu procedimento de regularização mais célere, onde

25 ALFONSIN, Betânia. Políticas de regularização fundiária: justificação, impactos e sustentabilidade,


p. 195-267 in FERNANDES, Edésio (Org.). Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte:
Del Rey, 2001. p. 222.

426
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

a gleba pretendida para uso receberá um só título e cada morador terá o


direito de uso de uma fração dela.
Importa frisar que a Concessão do Direito Real de Uso deve estar de
acordo com o preceito geral contido no art. 48, da Lei nº 11.977/2009, no
capítulo que trata da regularização fundiária de assentamentos urbanos,
estabelecendo que a regularização fundiária deve observar tais princípios:
ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda,
com prioridade para sua permanência na área ocupada, assegurados o
nível adequado de habitabilidade e a melhoria das condições de susten-
tabilidade urbanística, social e ambiental; articulação com as políticas
setoriais de habitação, de meio ambiente, de saneamento básico e de
mobilidade urbana, nos diferentes níveis de governo e com as iniciativas
públicas e privadas, voltadas à integração social e à geração de emprego
e renda; participação dos interessados em todas as etapas do processo de
regularização; estímulo à resolução extrajudicial de conflitos; e concessão
do título preferencialmente para a mulher.
Aqui também se deve aplicar o disposto na Lei nº 6.766/1979, que em
seu art. 18 estabelece que, aprovado o loteamento ou desmembramento, o
loteador deverá submetê-lo ao registro imobiliário dentro de 180 dias, sob
pena de caducidade da aprovação, acompanhado de: título de propriedade
do imóvel ou certidão da matrícula; histórico dos títulos de propriedade
do imóvel, abrangendo os últimos 20 anos, acompanhados dos respec-
tivos comprovantes; certidões negativas de tributos federais, estaduais e
municipais incidentes sobre o imóvel, de ações reais referentes ao imóvel,
pelo período de 10 anos, de ações penais com respeito ao crime contra o
patrimônio e contra a Administração Pública; certidões dos cartórios de
protestos de títulos, em nome do loteador, pelo período de 10 anos; de
ações pessoais relativas ao loteador, pelo período de 10 anos; de ônus
reais relativos ao imóvel; de ações penais contra o loteador, pelo período
de 10 anos; cópia do ato de aprovação do loteamento e comprovante do
termo de verificação pela Prefeitura Municipal ou pelo Distrito Federal, da
execução das obras exigidas por legislação municipal, que incluirão, no

427
mínimo, a execução das vias de circulação do loteamento, demarcação
dos lotes, quadras e logradouros e das obras de escoamento das águas
pluviais ou da aprovação de um cronograma, com a duração máxima de
04 anos, acompanhado de competente instrumento de garantia para a
execução das obras; exemplar do contrato padrão de promessa de ven-
da, ou de cessão ou de promessa de cessão; declaração do cônjuge do
requerente de que consente no registro do loteamento.
Quantos aos direitos e deveres do concessionário da CDRU, este,
desde a inscrição da concessão, fruirá plenamente do imóvel para os fins
estabelecidos no contrato e responderá por todos os encargos civis, ad-
ministrativos e tributários que venham a incidir sobre ele e suas rendas.
Sua transmissão se dá por ato inter vivos ou por sucessão legítima ou
testamentária, registrando-se a transferência. Já sua extinção ocorre se
antes de seu prazo final concessionário der ao imóvel destinação diversa da
estabelecida no contrato ou termo administrativo ou descumprir cláusula
resolutória convencionada, como em cláusula que impeça sua alienação;
a extinção da concessão de direito real de uso, conforme o art. 167, II, 29
da Lei nº 6.015/1973, deve ser averbada no Registro de Imóveis.
A Instrução Normativa nº 48/2012 do Ministro de Estado das Cidades,
no item 4.1.2.2 assegura, na titulação por CDRU, financiamento de material de
construção, obras e serviços de edificação da unidade habitacional em terreno de terceiros.
No Estado do Pará, a CDRU está regulamentada em alguns pontos pelo
Instituto de Terras do Pará (ITERPA), que em sua Instrução Normativa nº
3/2010, art. 4º, § 1º, afirma que nos projetos estaduais de assentamentos
sustentáveis e extrativistas serão assinados contratos de concessão de direito real de
uso com cláusulas de inalterabilidade da destinação do imóvel tal como declarada no ato
normativo de criação, cujo desrespeito implicará na reversão do imóvel ao patrimônio do
Estado, independentemente de notificação judicial ou extrajudicial, sem qualquer direito
à indenização em favor de seus descumpridores.
Posteriormente, em seu art. 6º, é explicitado o que são Projetos Estaduais de Assenta-
mentos Sustentáveis (PEAS), sendo áreas trabalhadas em regime de economia familiar que
utilizem racionalmente os recursos naturais existentes, cumprindo a função socioeconômica

428
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da terra. E no art. 7º ressalta que os contratos de CDRU serão assinados com a unidade
familiar e expedidos: em nome da mulher e do homem, obrigatoriamente,
quando casados ou convivendo em regime de união estável; em nome dos
conviventes, havendo união homoafetiva e; preferencialmente em nome
da mulher, nos demais casos.
Já com relação aos Projetos de Assentamento Estadual Agroextrativista
(PEAEx), é explicitado no art. 9º da Instrução Normativa que os mesmos
se destinam à populações que ocupem áreas dotadas de riquezas extra-
tivas e pratiquem prioritariamente a exploração sustentável dos recursos
naturais voltada para a subsistência e, complementarmente, se dediquem
à agricultura familiar de subsistência, outras atividades de baixo impacto
ambiental e à criação de animais de pequeno porte.
Em seguida, tal legislação relata uma série de procedimentos para ter
a concessão, aduzindo em seu art. 28 que os projetos serão criados após
concessão de licença prévia; que após a publicação da Portaria de criação
dos projetos estaduais de assentamento, a Coordenação de Documentação
e Informação Fundiária, providenciará a imediata emissão dos contratos
de concessão de direito real de uso (art. 31); que o contrato, devidamente
assinado e registrado no cartório de Registros de Imóveis, será entregue
aos assentados, e a outra via será arquivada em livro próprio do ITERPA
(art. 32).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modelo de desenvolvimento urbano implementado nos países


sul-americanos, especificamente no Brasil, gerou consequências nos
diversos espaços ocupados pela população, em especial nas cidades que
atualmente representam os maiores aglomerados humanos existentes,
se comparados aos espaços rurais que existem em menor número e com
menor contingente populacional.
A urbanização desenfreada, sem planejamento nem controle se perfaz
através da desigualdade social exacerbada pela, nem sempre visível, bar-

429
reira existente entre a cidade legal e a ilegal. Na primeira os moradores são
beneficiados por todos os bens e serviços possíveis, disponibilizados pelo
Estado ou, quando não, pelo próprio investimento do mercado imobiliário
que cada vez mais tem tomado os espaços urbanos, fortificando-os com
os “condomínios fechados”; na segunda os cidadãos habitam espaços
inadequados à concepção de moradia digna insculpida nos mais variados
dispositivos legais, em esfera nacional e internacional, violando todos
esses dispositivos legais que garantem o direito à moradia enquanto um
direito humano, conforme expomos.
Nesse contexto, é dever do Estado promover políticas públicas eficazes
e multidisciplinares (englobando os aspectos jurídicos, econômicos, ur-
banísticos e sociais) para efetivar a regularização dos assentos informais
que crescem nos grandes centros urbanos do país. Assim, a regularização
fundiária desponta como um instrumento primordial para promover não
somente a regularização dessas terras, mas principalmente a cidadania
e a justiça social onde se faz necessário.
Os instrumentos da política urbana, em especial a Concessão de Uso
Especial para fins de Moradia e Concessão de Direito Real de Uso, são
procedimentos administrativos legais que devem ser vistos como soluções
jurídico-políticas positivas na compatibilização entre a segurança jurídica
individual da posse e o reconhecimento de todos os direitos decorrentes
do acesso à moradia digna.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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Comentado. Liana Portilho Mattos (org.). Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
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tentabilidade, p. 195-267 in FERNANDES, Edésio (Org.). Direito urbanístico e
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432
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Competência municipal
em regularização fundiária

Camilla Zuquim Tangerino1


Carlos Alberto Jorge Leão da Silva2
Inaiê del Castillo Andrade Neves3
Maurício Leal Dias4

1. INTRODUÇÃO

O processo de urbanização ocorrido no Brasil, especialmente no


decorrer do século xx, foi constituído de forma intensiva, segregadora
e desordenada, tendo como fator agravante a significativa migração de
pessoas do campo para as cidades, em busca de melhores condições de
vida e de trabalho. Esse movimento possui como uma de suas principais
consequências a proliferação de processos informais de desenvolvimento
urbano5, culminando no surgimento de favelas, cortiços, loteamentos
clandestinos, conjuntos habitacionais irregulares e ocupações informais
e ilegais de modo geral.
Por mais que a ilegalidade urbana também esteja relacionada, em
alguns casos, aos grupos sociais mais abastados, como quando se trata
de condomínios fechados ou loteamentos irregulares onde predomina a

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará. Bolsista do Programa de Capacitação para Im-
plementação de Regularização Fundiária de Interesse Social na Região Metropolitana de Belém. MEC/SESU
- PROExT 2013. E-mail: cztangerino@hotmail.com.
2 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Pará. Bolsista do Programa de Capacitação para Im-
plementação de Regularização Fundiária de Interesse Social na Região Metropolitana de Belém. MEC/SESU
- PROExT 2013. E-mail: carlos_jls@hotmail.com.
3 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará. Bolsista do Programa de Capacitação para Im-
plementação de Regularização Fundiária de Interesse Social na Região Metropolitana de Belém. MEC/SESU
- PROExT 2013. E-mail: inaiedelcastillo@yahoo.com.br.
4 Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará, Pro-
fessor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará, Advogado e Consultor Jurídico especializado
em Direito Urbanístico e Ambiental. E-mail: mlealdias@ufpa.com.
5FERNANDES, 2007.

433
classe média-alta, a informalidade urbana está intrínseca e majoritaria-
mente atrelada às classes mais baixas da sociedade. Essas, por não se-
rem privilegiadas pelo mercado imobiliário predominantemente elitista e
devido à insuficiência de políticas habitacionais dirigidas às mesmas, em
face do expressivo déficit habitacional em nosso país, acabam recaindo
na ilegalidade urbana e na consequente segregação socioespacial.
Nesse contexto, o processo de regularização fundiária surge como uma
alternativa viável ao poder público no sentido de combater a irregularidade
e de minimizar essa segregação construída historicamente no Brasil, por
meio de uma política integrada que vise não apenas ao reconhecimento
da posse aos ocupantes das áreas de intervenção (segurança jurídica),
mas que sobretudo promova uma “integração socioespacial dos assen-
tamentos informais.”6
Diante disso, o meio mais eficaz para tal objetivo encontrado pelo le-
gislador brasileiro foi ampliar a competência municipal nessa seara, visto
que, apesar de gerais, os problemas habitacionais apresentam especifici-
dades em cada contexto social e urbano, sendo necessário para tanto uma
atuação do poder público local condizente com as circunstâncias próprias
de manifestação da informalidade urbana em seu território.
Nesse sentido, com o advento da Constituição Federal de 1988 houve
um fortalecimento do sistema federativo brasileiro e a consagração de
uma nova fisionomia conferida ao Município, sendo elevado a um pata-
mar de igualdade em relação aos demais entes (União, Estados e Distrito
Federal) no âmbito interno, o que não ocorria anteriormente. O ente
municipal passou, pois, a ser dotado de autonomia, conforme disposto
no caput do artigo 18 da Carta Magna, caracterizada pela capacidade de
auto-organização, autogoverno, autolegislação e autoadministração, com
fulcro nos incisos do artigo 30 da CF/88.
Outra característica do sistema federativo brasileiro atual é repartição
de competências nos âmbitos legislativo e administrativo entre os entes
da federação, cabendo à União tratar das matérias de interesse nacional,

6 FERNANDES, op. cit., p. 25.

434
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

aos Estados tratar dos assuntos em escala regional e aos Municípios cuidar
das matérias de interesse local, sendo a legislação quanto a esses temas
sua competência exclusiva, segundo o artigo 30, I, da Constituição.
Isso se aplica, também, às competências comuns entre os entes da fe-
deração, devendo cada um atuar no seu âmbito de interesse. E o artigo 23,
inciso Ix, da Carta Magna dispõe justamente acerca do direito à moradia
digna como tema de competência compartilhada entre todos os entes,
cabendo aos mesmos “promover programas de construção de moradias
e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”. Cabe
ainda ao poder público em todas as esferas “combater as causas da po-
breza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos
setores desfavorecidos”, conforme estabelece o inciso x do mesmo artigo.
Diante do exposto, percebe-se que houve, a partir da Constituição de
1988, uma valorização do ente municipal no ordenamento jurídico brasilei-
ro, mormente no que se refere ao trato da matéria urbana e habitacional em
seu território, tendo no processo de regularização fundiária (em especial, a
de interesse social) um dos principais meios de democratização do acesso
à moradia, sendo esse um direito social constante no artigo 6º da Carta
Magna desde o ano 2000, com o advento da Emenda Constitucional nº 26.
É importante, então, fazer uma breve exposição do que seja esse pro-
cesso de regularização fundiária para que se possa chegar ao escopo deste
artigo: analisar a competência do município no processo de regularização
fundiária sob os aspectos constitucional e infraconstitucional, tendo em
vista que houve uma expansão da competência municipal nessa seara
com a promulgação, em 2001, do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01)
e, posteriormente, em 2009, da Lei n° 11.977/09, a qual dispõe acerca do
Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e da regularização fundiária
de assentamentos localizados em áreas urbanas.

435
2. REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA: CONCEITO

Uma das inovações trazidas pela Lei n° 11.977/09 foi a conceituação


da regularização fundiária tomada em sentido amplo, em seu artigo 46,
segundo o qual:

Art. 46. A regularização fundiária consiste no conjunto de me-


didas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à
regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus
ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno
desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Outra inovação relevante desse dispositivo legal foi a diferenciação en-


tre a regularização fundiária de interesse social e a regularização fundiária
de interesse específico. A primeira é regulada no artigo 47, inciso VII, da
Lei e se aplica a assentamentos irregulares ocupados, predominantemente,
por população de baixa renda, em que a garantia do direito constitucional
à moradia justifica a aplicação de instrumentos e de condições especiais
para promovê-la. Pode essa regularização ocorrer em três hipóteses,
constantes nas alíneas desse inciso: no caso de ocupação da área de
forma mansa e pacífica, há, pelo menos, cinco anos; de imóveis situados
em ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social, previstas no plano diretor);
ou de áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
declaradas de interesse para implantação de projetos de regularização
fundiária de interesse social.
Já a regularização de interesse específico, conforme o inciso VIII do
artigo 47, ocorre nos assentamentos irregulares não enquadrados nos
requisitos de interesse social. Geralmente o interesse específico ocorre nos
bairros e loteamentos irregulares e/ou ilegais formados por população de
média e alta renda, onde não se justifica aplicar condições especiais para
a regularização, mas esta se torna necessária em obediência ao princípio
da função social da propriedade (art. 5º, xxIII, da CF/88 e outros) e da
cidade (artigo 182, caput, da CF/88).
Essa delimitação legal é relevante tendo em vista que, segundo pesqui-

436
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sa de Betânia Alfonsin realizada em 1996 e publicada em 1997, o termo


“regularização fundiária” vinha sendo utilizado nos diversos municípios
com sentidos diferentes, muitas vezes se referindo a intervenções públi-
cas isoladas7. Durante a pesquisa realizada por Alfonsin, constatou-se
o predomínio de três visões sobre a regularização fundiária, cada uma
privilegiando um aspecto diferente: a primeira entendia a regularização
fundiária apenas como regularização jurídica dos lotes, a segunda como
a necessidade de urbanização do assentamento irregular (regularização
física), e a terceira a interpretava como mera regularização urbanística
(conformação da legislação à realidade urbana).
Todavia, essa visão compartimentada compromete sobremaneira as
funções primordiais do processo de regularização fundiária: reverter a
informalidade nociva que atinge a população que vive em situação de
risco8 e proporcionar a integração desses assentamentos à cidade formal,
tendo em vista que a simples titulação do lote ao ocupante não promove a
melhoria de suas condições de vida, em sua maioria insalubres. Por outro
lado apenas a presença dos serviços públicos e equipamentos urbanos
essenciais naquela localidade não proporciona a segurança jurídica da
posse aos ocupantes, necessária ao exercício pleno do direito à moradia,
até porque é também voraz o fenômeno da especulação imobiliária.
Disso decorre a necessidade de esse processo ser acompanhado por
políticas públicas e estratégias de gestão urbana, destinadas a reverter de
fato o quadro excludente de habitação nas cidades brasileiras, visto que
a atividade de regularizar tem o escopo primordial de concretizar uma
previsão constitucional constante nos objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, em seu artigo 3º, inciso III, qual seja: “erradicar a po-
breza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.”9
Por seu turno, a redução das desigualdades regionais e locais em se
tratando de habitação só pode ocorrer através da integração das políticas
nacionais às estaduais e especialmente, às municipais, de modo a mini-

7 ALFONSIN, 2007.
8 MELO, 2010, p 101.
9 MELO, op. cit., p. 104.

437
mizar ao máximo o déficit habitacional existente e a promover da melhor
forma possível o acesso maciço da população de baixa renda à moradia
digna, tendo como um de seus principais instrumentos as políticas de re-
gularização fundiária. Contudo, Fernandes ressalta que essas políticas não
podem ser formuladas de maneira isolada, mas devem ser acompanhadas
de ações preventivas especialmente formuladas no âmbito municipal no
sentido de interromper o ciclo de (re)produção da irregularidade urbana,
sem as quais haverá apenas um “sofrimento renovado da população” e
“uma demanda de recursos públicos infinitamente maior.”10
Para tanto, aos municípios foram atribuídas competências específicas
sobre a matéria urbana e habitacional, onde está incluída a política de
regularização fundiária no âmbito local.

3. COMPETÊNCIA MUNICIPAL PARA


REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA: UM OLhAR A
PARTIR DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Tempos atrás, quando ainda vigorava a Constituição de 1967, a au-


tonomia dos municípios para atuar em questões sobre as quais possuía
interesse era extremamente limitada, posto que até as leis orgânicas eram
elaboradas pelos Estados, que ficavam também responsáveis pela trans-
ferência de verbas quando necessário, juntamente com a União.
A Constituição Federal de 1988, por estabelecer diretrizes gerais da
política urbana voltadas para o adequado ordenamento territorial possibi-
litou aos municípios, como dito anteriormente, uma maior autonomia para
implementar a política de desenvolvimento urbano, implementação essa
que se dá de acordo com suas competências estabelecidas pela própria
Carta nos artigos 23, 30 e 182 e por lei complementar, na Lei 10.257/01.
A Carta Magna busca, sobretudo, fornecer diretrizes de caráter ju-
rídico para que sejam implementadas políticas urbanas coordenadas
entre os entes federativos para a promoção do desenvolvimento urbano

10 FERNANDES, op. cit., p. 24.

438
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

e social à luz da proteção do indivíduo, de acordo com os seus direitos


e garantias fundamentais.
Com a nova fisionomia do Município e a vontade do texto constitucio-
nal é possível observar uma nova função urbanística, como coloca José
Afonso da Silva11, que é empregada com o protagonismo municipal, sendo
sua atuação mais concreta e eficaz. Torna-se evidente que os municípios
adquirem o dever constitucional de garantir a função social da cidade.
Os Municípios, em decorrência dessa autonomia, passaram a pro-
mover com poderes maiores a política de ordenamento territorial, não
se submetendo às determinações diretas e autoritárias dos outros entes,
os quais também passaram a ter uma função mais específica na política
urbanística brasileira.
Além da competência atribuída ao ente municipal de legislar sobre
assuntos de interesse local (artigo 30, I), também a esse compete suplemen-
tar a legislação federal e a estadual no que couber (inciso II), dispositivo
esse que se coaduna com o estabelecido no artigo 49 da Lei 11.977/09,
onde consta que “Observado o disposto nesta Lei e na Lei nº 10.257, de
10 de julho de 2001, o Município poderá dispor sobre o procedimento de
regularização fundiária em seu território”. Ou seja, podem os municípios
acrescer normas atinentes a essa matéria conforme a manifestação da
irregularidade fundiária em seu território, contanto que respeitem as nor-
mas e diretrizes nacionais e estaduais sobre o tema. A competência da
União para instituir diretrizes gerais para o desenvolvimento urbano, por
seu turno, decorre do disposto no artigo 21, xx, da CF/88.
Já no inciso VIII do artigo 30 da CF/88 é onde se encontra expressa a
competência do Município para a promoção do “adequado ordenamento
territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e
da ocupação do solo urbano”.
Concomitantemente com a norma constante nesse artigo, é preciso
observar de forma sistemática e integrada os outros dispositivos da própria
Carta. O artigo 182, por sua vez, é de vital importância para a implemen-

11 SILVA, 2008, p. 99

439
tação da política urbana em nível local, porquanto confere ao município
a responsabilidade por executá-la, conforme diretrizes gerais fixadas em
lei (pela União) e com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade, assim como de garantir o bem-estar de seus
habitantes, tendo como principal instrumento para tal feito o plano diretor.
Em termos gerais, o plano diretor é um instrumento básico para a efe-
tivação da política de desenvolvimento urbano e sua expansão, resultante
do planejamento da gestão para determinada cidade. Tal plano é obriga-
tório para municípios que com população maior que 20 mil habitantes,
conforme consta no §1º do artigo 182 da CF/88. Quanto a essa disposição,
o Estatuto da Cidade, em seu artigo 41 (incisos II a VI), ampliou o rol de
requisitos para que os Municípios sejam obrigados a elaborar e aprovar
os planos diretores urbanos, valendo para todas as cidades:

II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações ur-


banas; III – onde o Poder Público municipal pretenda utilizar
os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição
Federal; IV – integrantes de áreas de especial interesse turístico;
V – inseridas na área de influência de empreendimentos ou ati-
vidades com significativo impacto ambiental de âmbito regional
ou nacional; VI - incluídas no cadastro nacional de Municípios
com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande
impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidro-
lógicos correlatos.

O plano diretor busca, dentro de uma perspectiva constitucional,


atender a diretrizes em âmbito nacional, fazer valer a legislação estadual
e aplicar a política urbana às peculiaridades das demandas municipais.
Diante disso, a relação dos entes federativos no que concerne as suas
competências precisa ter um caráter de interdependência, para que se
possa ter sucesso no escopo de atender o princípio da função social da
propriedade, núcleo de onde irradiarão todos os preceitos fundamentais
que a Constituição estabelece para a política de desenvolvimento urbano.
Esse princípio basilar será respeitado quando a propriedade urbana atender
às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
diretor municipal, conforme dispõe o artigo 182, §2º da CF/88.

440
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Em obediência à função social da propriedade é preciso que haja dentro


do plano diretor, além de outras políticas integradas, a política de regula-
rização fundiária. Essa deve ser especificada descrevendo de que maneira
será aplicada e quais os instrumentos utilizados para sua aplicação como,
por exemplo, as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). Essas, segundo
dispõe o artigo 47, V, da Lei n° 11.977/09 são parcelas de área urbana
instituídas através do plano diretor ou definidas por outra lei municipal,
destinadas predominantemente à moradia de população de baixa renda
e sujeitas às regras específicas de parcelamento, uso e ocupação do solo,
de modo a inibir o interesse especulativo do mercado imobiliário na área
após a regularização. Dessa forma, a utilização da política de regularização
fundiária estará de acordo com os preceitos estabelecidos pela política de
desenvolvimento urbano, tendo maior probabilidade de sua implementa-
ção incorrer em sucesso.
A execução da regularização fundiária precisa, pois, estar em con-
sonância com o planejamento intramunicipal e contextualizada com as
políticas de Estado, como políticas urbanas, tributárias e fundiárias, para
que a área alvo da regularização possa ser integrada ao restante da cidade
e não volte a ser uma área excluída das políticas públicas do município. É
imprescindível também a participação popular na concepção e na revisão
periódica do plano diretor, pois esses são os maiores interessados e é para
eles que essa política é feita.
Portanto, no que compreende a política de regularização fundiária
em seu aspecto constitucional, busca-se a efetivação dos direitos indi-
viduais fundamentais com base em princípios, como a função social da
propriedade e da cidade, e no direito à moradia digna, todos em função da
dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa
do Brasil (artigo 1º, III). Por esse motivo, não pode ocorrer um retrocesso
que vá de encontro aos objetivos da norma constitucional, ou seja, não
pode ocorrer uma regressão no avanço da concretização de um direito
social fundamental, o de morar dignamente.
A regularização fundiária é, assim, um instrumento que permite a efeti-

441
vação da política constitucional da dignidade humana, pois busca com base
nessa política a inclusão e integração socioespacial da população carente
que vive de forma irregular sem os meios necessários de gozar a cidade
com todos os pressupostos que nosso ordenamento estabelece. E a partir
do advento do Estatuto da Cidade e da Lei n° 11.977/09, a competência
municipal nessa seara teve significativa ampliação e melhor definição, com
o intuito de tornar efetivas as normas constitucionais relativas ao tema.

4. COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA


REGULARIZAR à LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE.

A Lei nº 10.257/01, denominada “Estatuto da Cidade”, foi criada com


o objetivo de regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal
de 1988 e estabelecer as diretrizes gerais da política urbana empregadas
no Brasil. Sobre o Estatuto, Elida Séguin relembra que “essa lei é produto
da Constituição de 1988 que inovou ao destinar um capítulo à política
urbana”12. Dessa forma, institui para a política urbana no país desde
princípios até solução para problemas sociais. Dentre os instrumentos
fornecidos para ordenação dos espaços urbanos está a regularização
fundiária, contida no gênero de instrumentos jurídicos e políticos em seu
artigo 4º, inciso V, alínea “q”.
Essa lei estabelece ainda que a regularização fundiária, mais do que
um simples instrumento jurídico da política urbana, consiste numa diretriz
geral (artigo 2°, xIV) que juntamente com as demais busca o ordenamento
do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana. Essa diretriz de regularização busca estabelecer normais especiais
de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação em áreas ocupadas
por população de baixa renda, considerando a situação econômica dos
ocupantes e as normas ambientais. No inciso IV do mesmo artigo, consta
a pretensão de se evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e
seus efeitos negativos sobre o meio ambiente por meio do planejamento

12 SÉGUIN, 2005, p. 4.

442
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do desenvolvimento urbano, da distribuição espacial da população e das


atividades econômicas pelo Município, levando em conta sua área de in-
fluência. Unindo os dois dispositivos, temos o ente municipal como ator
fundamental na solução dos problemas gerados pelo crescimento desor-
denado das cidades, tendo na regularização fundiária uma possibilidade
de reversão desse contexto de prejuízos sociais e ambientais.
As diretrizes para a regularização fundiária de assentamentos urbanos
irregulares também estão previstas no artigo 42-A, V, do Estatuto, relati-
vamente ao plano diretor dos Municípios incluídos no cadastro nacional
de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de
grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidroló-
gicos correlatos. Esses, mais ainda, devem prever áreas para habitação de
interesse social por meio da demarcação de ZEIS e de outros instrumentos
de política urbana, onde o uso habitacional for permitido, assim como as
diretrizes para a regularização fundiária de assentamentos urbanos irregu-
lares (se houver), observadas as normas federais e estaduais pertinentes.
Diante disso, é fundamental que o Município atente para as peculiari-
dades da comunidade na qual se aplicará a política, para que se cumpram
os objetivos estabelecidos pelo Estatuto e pela Constituição. Torna-se
imprescindível a participação popular na reclamação de seus anseios e
no planejamento da política de regularização fundiária que darão ao ente
municipal uma percepção mais concreta da realidade e do que realmente
precisa ser feito no planejamento, não apenas no âmbito da regularização
fundiária, mas na implementação da política urbana como um todo, para
que se alcance a efetivação das funções sociais da cidade.
É importante ressaltar que para promover a regularização fundiária
é preciso integrá-la com outros instrumentos estabelecidos na mesma
lei, como a demarcação urbanística (artigo 4º, V, alínea “t” do Estatuto) e
aqueles presentes na Constituição e em outros diplomas legais, como a
usucapião especial urbana, a desapropriação e a usucapião administra-
tiva introduzida pela Lei n° 11.977/09, a qual dispensa a via judicial para
sua realização contanto que sejam atendidos os requisitos constantes no
texto legal.

443
A regularização fundiária pode em sua política de ocorrência estabele-
cer para o Município o direito de preempção, que lhe confere preferência
para a aquisição de imóvel urbano quando objeto de alienação entre
particulares para fins de regularização fundiária (artigos 25, caput, e 26,
I, do Estatuto). Esse direito será regulamentado por lei municipal, base-
ada no plano diretor, a qual delimitará as áreas sobre as quais incidirão
as finalidades previstas e o prazo de sua vigência, com fundamento nos
artigos 25, §1º, e 26, parágrafo único, do mesmo diploma.
A Lei municipal também regulamentará a transferência do direito de
construir previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele decor-
rente, quando o imóvel for considerado necessário para servir a programas
relativos à regularização fundiária, à urbanização de áreas ocupadas por
população de baixa renda e à habitação de interesse social (art. 35, III).
O plano diretor, reiterado no Estatuto como instrumento básico da
política de desenvolvimento e expansão urbana (artigo 40, caput), ganha
relevo com a previsão nos §§1º e 2º de que o planejamento municipal em
todas as suas esferas, englobando todo o seu território, deve obedecer
e incorporar suas diretrizes e prioridades, no plano plurianual, nas dire-
trizes orçamentárias e no orçamento anual do Município. Está, portanto,
no cerne de toda atividade em âmbito municipal. O artigo prevê ainda
que a lei que instituir o plano diretor deverá ser revista ao menos a cada
dez anos e que, no decorrer do processo de elaboração do plano diretor
e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Exe-
cutivo municipais deverão promover audiências públicas e debates com
a participação popular dos vários segmentos, garantir a publicidade dos
documentos e informações produzidos e o acesso de qualquer interessado
aos mesmos (artigo 40, §§3º e 4º).
Essa exigência legal se coaduna tanto com os princípios da Administra-
ção Pública constantes no caput do artigo 37 da Carta Magna (legalidade,
moralidade, publicidade) como com a proposta de gestão democrática
da cidade, trazida pelos artigos 43 a 45 do Estatuto da Cidade, onde a
população se torna protagonista no processo de tomada de decisão a

444
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nível municipal, em obediência ao princípio democrático consagrado por


nossa Constituição.
O Município como fundamental gestor da cidade, com a implementa-
ção do Estatuto, deverá buscar sempre empregar uma política de pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade de forma integrada e sis-
tematizada, de modo que a regularização fundiária seja um instrumento
efetivo para a execução da política urbana e para a consequente melhoria
nas condições de vida da população.
Assim, o ente municipal, diante das competências a ele estabelecidas
pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade, precisa aplicar no que
couber a política de regularização fundiária quando essa provier de outros
entes da federação, mas sem olvidar a importância de atuar diretamente
nesse processo. Essa perspectiva atual garante maior autonomia ao Mu-
nicípio para a efetivação da regularização fundiária, justamente porque
busca agora nosso ordenamento não só a valorização do interesse públi-
co sobre o privado, mas também garantir que as peculiaridades de cada
cidade sejam levadas em consideração na concepção da política urbana
local, sendo inaceitável a retardação dos avanços conseguidos.
Por isso, o planejamento urbano se estabeleceu no Estatuto como um
dever que não pode ser negligenciado pelo poder público municipal, visto
que deve ser implementado em conjunto com as políticas públicas, sem
desperdícios de recursos e sem imprudência diante dos deveres assumidos
perante a população. Para assegurar esse cumprimento, o Estatuto inovou
ao trazer no artigo 52 um rol de infrações de improbidade administrativa
atribuíveis ao Prefeito municipal em caso de inobservância de seus impe-
rativos, sem prejuízo das demais sanções cabíveis e da punição de outros
agentes públicos envolvidos.
Em relação à questão habitacional e à promoção da regularização
fundiária, a Lei n° 11.977/09 também trouxe relevante contribuição para
a promoção do acesso à moradia digna, especialmente a nível local.

445
5. COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA
REGULARIZAR à LUZ DA LEI 11.977

No momento anterior à aplicação da Lei n° 11.977/09, outros eram os


dispositivos que especificavam quais as competências concretas dos mu-
nicípios no processo da regularização fundiária. Inicialmente foi editada,
em 1979, a Lei 6.766, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano,
e, posteriormente, a Lei nº 9.785, de 29 de janeiro de 1999, que alterou
alguns de seus artigos. Todavia, as duas leis não conseguiam atender às
demandas daquele momento, posto que alguns de seus dispositivos só
obteriam sucesso com altos custos de planejamento e execução, preju-
dicando a própria população, principalmente a de baixa renda. Os lotes,
por exemplo, seriam vendidos com valor elevado.
A Lei nº 6.766 visa a instruir de que forma devem ser divididos os imó-
veis existentes em áreas urbanas, possibilitando a regularização fundiária.
Com a implementação da Lei 11.977, suas determinações não foram des-
cartadas, mas sim aprimoradas e adequadas para a atual conjuntura física
e social do país. Nesse mesmo sentido, as competências determinadas
como municipais continuaram a valer.
O artigo 40 da Lei nº 6.766, referindo-se à notificação ao loteador
quando o loteamento ou desmembramento em via de venda ou promessa
de venda não se ache registrado ou regularmente executado, aduz que

A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso,


se desatendida pelo loteador a notificação, poderá regularizar
loteamento ou desmembramento não autorizado ou executado
sem observância das determinações do ato administrativo de
licença, para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento
urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes.

Nesse artigo e em seus incisos percebemos que não havia ainda nes-
sa lei uma política de regularização fundiária de interesse social, mas
apenas de interesse específico, visto que nos §§ 1º a 5º desse dispositivo
está prevista a obtenção pela via judicial de ressarcimento ao Município
que promover a regularização fundiária nessas condições, em face das

446
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

“importâncias despendidas com equipamentos urbanos ou expropriações


necessárias para regularizar o loteamento ou desmembramento” (artigo
40, §1º).
A Lei nº 9.875/99 não alterou a Lei nº 6.766/79 no que se refere às
competências dos municípios. Isso apenas ocorreu com o advento da Lei
n° 11.977/09.
Nessa nova lei, denominada popularmente de “Lei Minha Casa Minha
Vida”, a competência municipal para promover a regularização fundiária
está expressa no caput do artigo 50, assim como prevê que os demais entes
federados também são capazes de promovê-la. Além desses, os incisos I e II
do artigo abrangem outros atores sociais nesse processo: cooperativas ha-
bitacionais, associações de moradores, organizações sociais, organizações
da sociedade civil de interesse público e entidades civis constituídas com
a finalidade de promover atividades ligadas ao desenvolvimento urbano
ou à regularização fundiária. Percebe-se, a partir desse dispositivo, que a
regularização fundiária passa a ser encarada como um processo realizado
coletivamente, que depende da participação e da atuação articulada de
diversos atores, em momentos e com papéis específicos13.
Dentre estes atores, tem destaque o Município, visto que todo o pro-
cesso está vinculado à análise e aprovação do projeto de regularização
fundiária por este ente, bem como ao licenciamento urbanístico e am-
biental da área urbana.
No caso da regularização fundiária de interesse social, o artigo 53,
§1º, da Lei n° 11.977/09 dispõe que, no âmbito municipal, a aprovação
do projeto corresponde ao licenciamento urbanístico do projeto, e só
incluirá o licenciamento ambiental se o Município tiver conselho de meio
ambiente e órgão ambiental capacitado. Trata-se, pois, da municipali-
zação do licenciamento ambiental, contanto que o Município tenha as
condições materiais e formais para expedir a licença, ou seja, a gestão
plena de seu território.14

13 BRASIL. MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2012, p. 13.


14 MELO, 2010, p 195.

447
Quanto a este projeto, compete também ao Município definir os requi-
sitos para sua elaboração, no que se refere aos desenhos, ao memorial
descritivo e ao cronograma físico de obras e serviços a serem realizados,
com fulcro no §2º do artigo 51 da mesma lei. Cabe ressaltar que o projeto
aprovado no âmbito municipal é imprescindível para o registro do par-
celamento resultante do projeto de regularização fundiária de interesse
social, quando requerido ao registro de imóveis, por força do disposto no
artigo 65, II, dessa Lei.
O artigo 54, por seu turno, traz uma flexibilização do projeto de regu-
larização fundiária de interesse social diante das características de cada
ocupação, bem como da área de intervenção, para definir parâmetros
urbanísticos e ambientais específicos. Esse dispositivo se coaduna com o
artigo 52 da mesma lei, onde está previsto que nos casos de regularização
fundiária de assentamentos consolidados anteriormente à sua publicação,
ou seja, anteriores a 7 de julho de 2009, poderá o Município autorizar a
redução do percentual de áreas destinadas ao uso público e da área mínima
dos lotes definidos na lei de parcelamento do solo urbano (Lei nº 6.766),
de modo a adequar essa legislação à realidade atual da cidade.
Outro grande destaque da Lei n° 11.977 acerca da competência mu-
nicipal em matéria de regularização diz respeito à possibilidade de o
Município promover, por decisão motivada, a regularização fundiária de
interesse social em Áreas de Preservação Permanente, assim definidas pelo
Código Florestal (Lei nº 12.651/12, artigo 3º, II) e protegidas com o intuito
de preservar o meio ambiente e de assegurar o bem-estar das populações
humanas. Contudo, essa intervenção só será admitida em APP ocupada até
31 de dezembro de 2007 e inserida em área urbana consolidada, além de
se exigir um estudo técnico comprovando que a regularização implicará na
melhoria das condições ambientais relativamente à situação de ocupação
irregular anterior, conforme consta no §1º do artigo 54 da Lei nº 11.977.
Dessa maneira, ampliam-se as possibilidades de garantir o direito à
moradia digna às camadas mais baixas por meio da regularização fundiá-
ria, compatibilizando esse direito social fundamental sempre que possível
ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

448
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Outro aspecto importante da Lei é a previsão da obrigatoriedade de


o poder público implantar um sistema viário e de infraestrutura básica,
diretamente ou por meio de seus concessionários ou permissionários de
serviços públicos, ainda que a regularização tenha sido promovida pelos
demais legitimados. Essa infraestrutura básica corresponde, com base
no artigo 6º da Lei nº 6.766/79, às vias de circulação, ao escoamento das
águas pluviais, à rede para o abastecimento de água potável e às solu-
ções para o esgotamento sanitário e para a energia elétrica domiciliar. E
a disponibilização de muitos desses serviços públicos é de competência
do Município, como o saneamento básico e urbanização da área.
No caso da regularização fundiária de interesse específico, também
se exige a aprovação do projeto pela autoridade licenciadora e a emissão
das respectivas licenças urbanística e ambiental (artigo 61 da Lei 11.977).
Todavia, nessa modalidade se poderá exigir contrapartida e compensa-
ções urbanísticas e ambientais dos destinatários, conforme a legislação
vigente, como estabelece o § 2º deste artigo. Além disso, as responsabi-
lidades quanto à implantação de serviços, equipamentos e infraestrutura
básica poderão ser compartilhadas com os beneficiários dessa espécie
de regularização, de acordo com o poder aquisitivo da população a ser
beneficiada e os investimentos nesses setores já realizados pelos mora-
dores (artigo 62, §1º), algo que não se admite no caso da regularização
fundiária de interesse social, onde a responsabilidade do poder público
é bem mais ampla.
Diante do exposto, podemos inferir que a Lei n° 11.977/09 trouxe
inúmeros avanços para a política habitacional brasileira, não somente
por regular o Programa Minha Casa Minha Vida, mas principalmente por
ter sido a primeira lei a tratar especificamente da regularização fundiária
e de suas espécies.
Dentre suas principais contribuições, destaca-se a definição de compe-
tências e responsabilidades dos diversos atores envolvidos nos processos
de regularização e, especialmente, a atribuição expressa de competência
ao Município para disciplinar os procedimentos de regularização fundiária
dentro de seus limites territoriais15, como o novo protagonista da política

15 BRASIL. MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2012.

449
de promoção do acesso à moradia digna em conjunto com a preservação
do meio ambiente. Desse modo, concilia-se com a Constituição Federal
e com o Estatuto da Cidade no intuito de difundir a concepção de cidades
sustentáveis e de estimular a sua consolidação no território brasileiro.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos a partir dessa análise que, se anteriormente os municípios


figuravam como meros coadjuvantes no ordenamento jurídico brasileiro, a
notável expansão de suas competências desde o advento da Constituição
Federal de 1988 revela um atual protagonismo na execução de diversas
políticas públicas, em especial da política urbana. Tão evidente é a sua
importância atual que se tornou o responsável por determinar os critérios
para que uma propriedade urbana cumpra sua função social - um princí-
pio fundamental elencado no artigo 5º da CF/88 -, os quais devem estar
contidos no plano diretor elaborado a nível local.
E a regularização fundiária se torna importante justamente para
cumprir esse princípio, visto que pretende promover a integração dos
assentamentos irregulares à cidade formal não apenas do ponto de vista
jurídico, mas especialmente nas esferas social, ambiental e urbanística.
Desse modo, se tem uma regularização fundiária plena, abrangendo todos
os aspectos indispensáveis para que um indivíduo ou um agrupamento
vivam em condições dignas e tenham melhores oportunidades futuras,
através da promoção da saúde, educação, saneamento, lazer, transporte,
emprego e renda, entre outros fatores.
A expansão da competência municipal em regularização fundiária,
especialmente no que diz respeito à de interesse social, apresenta muitos
benefícios. O ente municipal está mais próximo da realidade local, tem
como conhecer melhor as peculiaridades da manifestação da informalidade
urbana em seu território e, por conseguinte, pode atuar mais diretamente
na solução desses problemas, visto que sua área de atuação é bem menor
se comparada àquela pertinente ao Estado-Membro ou à União.
No entanto, deve-se levar em conta que o orçamento dos Municípios é
muito inferior ao orçamento dos demais entes federados e, por esse mo-

450
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

tivo, se suas novas atribuições para promover a regularização não forem


acompanhadas por uma devida previsão orçamentária a nível nacional
para executá-las, o texto legal se constituirá em mera promessa, sem
possibilidade de concretização.
O instrumento da regularização fundiária por si só aplicado em qualquer
esfera da Federação não consegue atingir os objetivos constitucionais
senão por meio de políticas integradas, as quais modifiquem o processo
excludente de manutenção das desigualdades sociais. Somente com essa
integração se poderá chegar a um patamar de justiça social e de digni-
dade da pessoa espelhado em nossa Carta Magna, procurando atender
ao interesse público em detrimento do privado e promovendo o melhor
bem-estar da população, pois se estará exercendo verdadeiramente a
função social da cidade como um todo.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

ALFONSIN, Betânia. O significado do Estatuto da Cidade para os processos de re-


gularização fundiária no Brasil. In. ROLNIK, Raquel (Org.). Regularização fundiária
sustentável: conceitos e diretrizes. Brasília, DF: Ministério das Cidades, 2007. 295 p.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso
em: 25 ago. 2013.
______. Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o Parcelamento
do Solo Urbano e dá outras providências. Diário Oficial da União, 20 dez. 1979.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6766.htm>. Acesso
em: 25 ago. 2013.
_____. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da
Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras
providências. Diário Oficial da União, 11 jul. 2001. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03
/leis/leis_2001/l10257.htm>. Acesso em: 25 ago. 2013.
______. Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa,
Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em
áreas urbanas; altera o Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos

451
4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de
maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória no 2.197-43,
de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial da União, 8 jul.
2009. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/
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______Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação
nativa; altera as Leis nos 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro
de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de
setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67,
de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial da União, 28 mai.
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______. MINISTÉRIO DAS CIDADES. Regularização Fundiária Urbana: como aplicar
a Lei Federal nº 11.977/2009 - Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de
Habitação e Secretaria Nacional de Acessibilidade e Programas Urbanos. Brasília,
2012. 40 p. Disponível em: <http://www.capacidades.gov.br/media/doc/acervo/
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2008.

452
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O ativismo do Poder Judiciário


e do Tribunal de Contas da União na
regularização fundiária da comunidade
do Horto Florestal/RJ
Rafael da Mota Mendonça1
Mariana Gomes Peixoto Medeiros2
Juliana Thomas Kazan3

INTRODUÇÃO

O capítulo da política urbana da Constituição de 1988 inaugurou um


novo marco de proteção da posse e do direito à moradia da população que
habita em assentamentos urbanos informalmente (sem título registrado no
Registro Geral de Imóveis), em terras privadas e públicas. Neste contexto,
o Estatuto das Cidades trouxe uma série de instrumentos que permitem o
desenvolvimento da política urbana de regularização fundiária nesse tipo
de comunidade, com o desenvolvimento da regularização urbanística e
jurídica, de forma a concretizar o pleno direito à moradia digna e à cidade
dos habitantes de baixa renda, com segurança jurídica da posse.
Apesar dessa crescente evolução da proteção da moradia na ordem
jurídica, o acesso à terra no Brasil remonta a um longo processo de se-
gregação socioespacial. Para analisar este cenário devemos resgatar as
políticas que tem suas raízes históricas na época do Brasil Colônia, e em
especial com a promulgação da Lei de Terras de 1850, que deslegitimou a

1 Professor na Faculdade de Direito do IBMEC/RJ, Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica e advogado da


Associação de Moradores e Amigos do Horto. E-mail: rafaeldamota@gmail.com
2 Mestranda em Direito da Cidade na UERJ e trabalha na Coordenação de Habitação e Regularização Fundiária
da SPU/RJ. E-mail: marigopeme@gmail.com
3 Graduanda em Direito na UNIRIO e bolsista do Laboratório ETTERN do IPPUR/UFRJ. E-mail: julianakazan@
gmail.com

453
posse/ocupação como meio de acesso à terra no país4.Tais políticas per-
petuaram uma lógica de concentração da propriedade, de forma que seus
resultados estão fortemente presentes tanto na cidade quanto no campo.
O resultado disso é que há atualmente no Brasil um déficit habitacional
no país de 5, 4 milhões de residências, segundo pesquisa do IPEA5.
Ou seja, mesmo com o desenvolvimento de uma série de políticas,
como o exemplo do grande investimento do Governo Federal no Programa
Minha Casa, Minha Vida, a demanda por moradia adequada ainda é uma
grave questão. Aos alarmantes números do déficit habitacional somam-se
ainda as vítimas de deslocamentos involuntários (ou “remoções forçadas”).
A despeito de toda a proteção do direito social à moradia, o poder públi-
co e o Judiciário ainda promovem ou auxiliam na concretização dessas
remoções, muitas vezes de comunidades inteiras.
A cidade do Rio de Janeiro se insere neste cenário com um grande
número de assentamentos informais e dezenas de milhares de pessoas
morando sem segurança jurídica da posse, mas que, diante deste novo
marco jurídico-urbanístico inaugurado pela Constituição e consolidado
com o Estatuto das Cidades, possuem direito à regularização fundiária de
suas moradias. Neste contexto, abordaremos o caso do Horto Florestal,
uma comunidade cuja formação remonta à época da escravidão, pois
historiadores pesquisaram indícios da existência de quilombos na região6.
As mais de 620 famílias que hoje vivem na comunidade, encontram-se
há décadas ameaçadas de remoção, como resultado do referido processo
histórico de segregação socioespacial, no entanto, como a comunidade
está consolidada em terras de propriedade da União Federal, e diante de
todas as leis que permitem e promovem a regularização fundiária, a Se-
cretaria do Patrimônio da União (SPU), através de sua Superintendência

4 ALFONSIN, Betania. O significado do Estatuto da Cidade para os processos de regularização


fundiária no Brasil. Regularização Fundiária Plena. Secretaria Nacional de Projetos Urbanos. Brasília:
Ministério das Cidades, 2007.
5 http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=18179
6 Estudo minucioso sobre o histórico da comunidade do completo da comunidade em: SOUZA, Laura Olivieri
Carneiro. horto Florestal: um lugar de memória da cidade do Rio de Janeiro. A construção do Mu-
seu do horto e seu correspondente projeto social de memória. Rio de Janeiro, 2012. 219 p. Tese de
Doutorado - Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

454
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

no Rio de Janeiro (SPU/RJ), iniciou a elaboração de um projeto de regula-


rização fundiária e urbanística para a área em parceria com o Laboratório
de Habitação da Faculdade de Arquitetura do da Universidade Federal Rio
do Rio de Janeiro e com a participação dos moradores.
O projeto de regularização fundiária para a comunidade do Horto foi
desenvolvido com o objetivo de contemplar todas as dimensões de uma
regularização plena: jurídico, urbanístico, ambiental e social. No entanto,
como consequência de uma série de interferências do Poder Judiciário e
do Tribunal de Contas da União (TCU), o desenvolvimento desta política
pública urbana foi interrompido, culminando na decisão pela remoção da
comunidade em quase sua totalidade. É o que passaremos a abordar no
desenvolvimento deste trabalho.

BREVE hISTóRICO

A comunidade do Horto Florestal está estabelecida em área de proprie-


dade da União Federal e é composta por 621 famílias descendentes dos
antigos trabalhadores do Real Horto criado por D. João VI, que em 1.808
desapropriou o Engenho de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa para
a construção de uma fábrica de pólvora. Em 1811, foram erguidas vilas
para a instalação dos trabalhadores da fábrica, em virtude de o local ser
considerado de difícil acesso. Com a transferência da fábrica para Raiz da
Serra, aos pés da serra de Petrópolis, a área foi desmembrada e alienada,
sendo muitas casas de antigos funcionários cedidas, já no século xx, a
funcionários do Jardim Botânico.
Assim, gerações de famílias de funcionários e descendentes de funcio-
nários da antiga fábrica e do Jardim Botânico construíram uma comunidade
nos arredores do parque, com autorização (formal e informal) das diversas
administrações do Jardim Botânico,a fim de auxiliar na sua manutenção
e defesa. Durante anos, os moradores do Horto vêm cuidando desta lo-
calidade como extensão de suas vidas. Por este motivo, na década de 70
os moradores impediram a implantação de projetos de grande impacto

455
sócio-ambiental, como as construções de um cemitério e de conjunto
residencial financiado pelo BNH (Banco Nacional da Habitação). Hoje,
a área é ocupada em sua maioria por famílias de baixa renda, havendo
dentre elas um grande número de pessoas idosas, e que possuem inclusive
um projeto de proteção ao ambiente e à história da área, denominado
Museu do Horto7.
Os moradores lutam por sua permanência na área há cerca 30 anos,
desde que o extinto IBDF, órgão ligado ao Ministério da Agricultura, que
nesta época administrava o Jardim Botânico8, propôs mais de duzentas
ações de reintegração de posse (267 ações no total) contra os moradores.
Essas ações quase em sua maioria já transitaram em julgado, com sen-
tenças determinando a reintegração de posse em favor da União e, muitas
delas, sem determinar a indenização prévia. No entanto, ao longo desses
anos apenas cinco casas foram removidas efetivamente.
Cabe destacar, que a comunidade está localizada na zona sul do Rio
de Janeiro e inserida em um bairro (Jardim Botânico) cujo valor do solo
urbano é o quinto maior do país9. Além das moradias de funcionários e
ex-funcionários do Jardim Botânico, a área dos arredores do Horto é ocu-
pada por condomínios de luxo e instituições como o SERPRO, FURNAS,
CEDAE, IMPA, Toalhero Brasil, entre outros.
Em 2012 o condomínio de luxo Parque Canto e Mello, localizado nos
limites do Jardim Botânico em área de proteção permanente, teve decisão
judicial favorável à permanência das casas. Os moradores, que neste
caso são tratados como proprietários, pois mesmo estando em terras da
União Federal conseguiram o registro de seus imóveis no RGI em nome
de particular, foram condenados a promover a recomposição da área
degradada e a pagar indenização pelos danos causados. Na elaboração
do Acórdão da 2a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
os desembargadores consideraram que a ação foi proposta há mais de
20 anos e que os danos ambientais já estariam, portanto, consolidados.

7 Mais informações em http://www.museudohorto.org.br/


8 Hoje o Jardim Botânico é um instituto de pesquisa ligado ao Ministério do Meio Ambiente.
9 Segundo o índice “FipeZap”, disponível em http://oglobo.globo.com/infograficos/bairros-mais-caros/

456
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Ainda, se levou em conta que o processo de demolição das casas traria


maior impactado ambiental do que sua permanência10.
Atualmente os habitantes da comunidade do Horto encontram-se ame-
açados de remoção definitiva, desde que, por determinação do Tribunal
de Contas da União, um grupo interministerial apresentou a demarcação
definitiva da área do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro
(IPJB/RJ), englobando cerca de 90% (noventa por cento) da comunidade,
sob o argumento de necessidade de expansão da área de pesquisa do IPJB/
RJ. Ou seja, há mais de 30 anos os moradores encontram-se ameaçados
de remoção, quando na verdade só agora a área do Jardim Botânico foi
demarcada de forma definitiva e excluindo a maior parte da comunidade
de sua nova área, o que vai de encontro a uma séria de dispositivos nor-
mativos que garantem o direito à regularização fundiária dos moradores.

REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA E O
PROJETO DESENVOLVIDO NA COMUNIDADE

O capítulo da Política Urbana da Constituição de 1988 (artigos 183 e


184), incluído como fruto de conquistas sociais do Movimento Nacional
pela Reforma Urbana que participou ativamente da Constituinte, inaugu-
rou um novo paradigma jurídico-urbanístico, cujo principal balizador é a
função socioambiental da propriedade11. Assim, o direito constitucional
à regularização fundiária, como forma de proteger o direito à moradia
da população de baixa renda que ocupa há mais de cinco anos terras
públicas, está expresso quando se estabelecem as diretrizes da política
urbana (função social da cidade, das terras públicas e proteção jurídica
da posse). A Constituição também prevê expressamente o princípio da
função social da propriedade elencado no art. 5o (inciso xxIII) e, além
disso protege expressamente o direito à moradia, principalmente quando

10 Notícia publicada no Jornal O Globo de 14/05/2012. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/casas-


-nao-sairao-de-area-florestal-da-gavea-4899094#ixzz1uvhmeFDD
11 FERNANDES, Edesio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: Direito Urbanístico. Estu-
dos Brasileiros e Internacionais. FERNANDES, E; ALFOSIN, B [Orgs]. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 10.

457
no ano 2000, a Emenda Constitucional nº 26 incluiu a habitação rol dos
direitos sociais definidos no Art. 6o.
O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) regulamentou o capítulo da
política urbana da Constituição e trouxe uma série de instrumentos para
a implementação da política de regularização fundiária. Neste Sentido,
Nelson Saule Jr. discorre sobre a importância deste estatuto legal:

Somados a estes preceitos constitucionais, o Estatuto da Cidade


é a base legal para a promoção da regularização fundiária. O
estatuto adota como diretriz da política urbana, nos termos do
inciso xIV do artigo 2°, a regularização fundiária e a urbaniza-
ção de áreas ocupadas por população de baixa renda, mediante
o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e
ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioe-
conômica da população e as normas ambientais

Para tornar efetiva a proteção ao direito à moradia, o Estatuto


da Cidade arrola como instrumentos da política de regularização
fundiária, nos termos do inciso V do artigo 4°, as Zonas Especiais
de Interesse Social – ZEIS – (‘f’), a concessão de direito real de
uso (‘g’), a concessão de uso especial para fins de moradia (‘h’),
usucapião especial de imóvel urbano (‘j’), assistência técnica e
jurídica gratuita para as comunidades e grupos menos favorecidos
(‘r’) (SAULE, 2004, p.343)

Para a regularização fundiária de interesse social em terras da União


aplicam-se também os dispositivos da Lei Federal 9.636/1988, registrando
que para superar alguns obstáculos jurídicos encontrados no desenvol-
vimento desta política foi sancionada a lei 11.481/2007. Esta lei editada
em 2007 alterou a legislação especifica, enfatizando a diretriz da SPU de
inclusão social e territorial com o cumprimento da função socioambiental
das terras públicas, autorizando-a a regularizar ocupações em imóveis da
União, especificando as ocupações relativas a assentamentos informais
de baixa renda e estabelecendo regras para isenção de pagamento.
A Lei 11.977/2009, por sua vez, estabeleceu os princípios que a política
de regularização fundiária deve obedecer, tais como ampliação do acesso
à terra urbanizada pela população de baixa renda, com prioridade para
sua permanência na área ocupada, assegurados o nível adequado de ha-
bitabilidade e a melhoria das condições de sustentabilidade urbanística,

458
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

social e ambiental; articulação com as políticas setoriais de habitação,


de meio ambiente, de saneamento básico e de mobilidade urbana, nos
diferentes níveis de governo e com as iniciativas públicas e privadas, volta-
das à integração social e à geração de emprego e renda; participação dos
interessados em todas as etapas do processo de regularização; estímulo
à resolução extrajudicial de conflitos; e concessão do título preferencial-
mente para a mulher (artigo 48 e incisos).
Neste sentido, a regularização fundiária não compreende apenas a di-
mensão jurídica, com a titulação dos moradores e o registro dos títulos no
Registro Geral de Imóveis, mas também a regularização urbanística, com
a elaboração de um plano de regularização que contenha o parcelamen-
to para uso e ocupação do solo, e ainda a dimensão social que abrange
políticas que permitam a permanência e o desenvolvimento econômico
dos moradores.
No caso da comunidade do Horto Florestal, a SPU/RJ, com o intuito de
alcançar os objetivos constitucionais de proteção do direito à moradia e
à regularização fundiária, através do desenvolvimento de projeto efetivo
de regularização fundiária das áreas ocupadas pela comunidade, celebrou
convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, através de
sua Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.
Dessa forma, a comunidade, em conjunto com o próprio Poder Públi-
co, encontrou uma forma de se afirmar na região, exaltando suas raízes
históricas e garantindo a manutenção de uma realidade urbana total-
mente integrada ao meio ambiente local, consagrando todos os preceitos
constitucionais que garantem uma moradia digna, e com o propósito de
inserir áreas da União ocupadas por famílias de baixa renda em um novo
modelo de desenvolvimento econômico e social, baseado na inclusão
socioterritorial e no fomento do desenvolvimento sustentável.
O referido projeto desenvolveu estudos que permitiram elaborar o Plano
de Regularização Urbanística, possibilitando adequada inclusão socioter-
ritorial, com ordenamento espacial, delimitação de território, proteção
das áreas necessárias às funções institucionais do IPJB/RJ e propostas

459
de normas urbanísticas que permitam preservar o ordenamento adotado
pelo Plano e controlar o adensamento do espaço cedido à comunidade.
As etapas observadas pelo projeto foram: assembleia preliminar, ca-
dastro socioeconômico, cadastro físico, cadastro planialtimético e estudos
urbanísticos. Todas estas etapas foram concluídas em sua integralidade
permitindo desenvolver de forma ampla e completa a delimitação física
do perímetro necessário da área que deveria ser destinada a consolidação
do assentamento das famílias, com previsão de área para reassentamento,
infraestrutura (redes de água e esgoto), assim como adequação do sistema
viário existente. Importante ressaltar, que na formação desse perímetro
nenhuma área destinada ao assentamento comprometa às funções de
pesquisa e visitação do IPJB/RJ.
A titulação dos moradores seria realizada através da Concessão de
Direito Real de Uso (CDRU), incorporando os requisitos da Concessão Es-
pecial para Fins de Moradia (CUEM). Cabe destacar, que seriam incluídas
cláusulas resolutórias nos títulos, visando impedir o adensamento, bem
como o uso inadequado do solo, tendo em vista que se trata de uma área
de extrema importância ambiental e cultural. A não observância destas
cláusulas provocaria o cancelamento do título. Assim, o projeto apresen-
tado preencheu todos os parâmetros exigidos pela lei, atendendo de forma
ampla o interesse público, uma vez que consagraria direitos fundamentais
e visava ratificar uma situação possessória consolidada há décadas com
ciência e permissão da União Federal.
Neste sentido, a realização de proposta de regularização fundiária com-
põe as atribuições constitucionais do Executivo Federal, motivo pelo qual
o projeto apresentado está de acordo com o contexto jurídico instituído
pela Constituição Federal, Estatuto da Cidade e Lei 11.481/2007. Tais leis
amparam as ações de regularização fundiária, permitindo que o projeto
fosse realizado, sem qualquer óbice.
Sendo assim, a veiculação das informações quanto às etapas dos
estudos, levantamentos e intervenções, permitiriam a participação e o
controle social e a futura compreensão, pela Comunidade, da nova orga-

460
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nização espacial que estava para ser delineada, bem como a compreensão
a respeito das normas urbanísticas, que seriam elaboradas para preservar
o adensamento existente (com proibição de novas construções e novo
adensamento) e estabelecer novas diretrizes de caráter edilício (gabarito,
afastamentos, etc.), assim como a natureza jurídica e as condições reso-
lutórias do título de concessão de direito real de uso que seria outorgado
aos moradores, prevendo cancelamento no caso de infração às normas
citadas. No entanto, recentemente decidiu-se pela não implementação
do projeto e pela remoção da comunidade quase que em sua totalidade.

3.1. Direito ao Meio ambiente versus


direito à moradia, um falso conflito

Um dos argumentos mais utilizado, e amplamente explorado pela mídia


e pelos dirigentes do IPJB/RJ, contra o desenvolvimento do projeto de re-
gularização fundiária na comunidade do Horto e para justificar a remoção
dos moradores, é o de que estariam estabelecidas em área de proteção
ambiental, podendo causar danos ao meio ambiente local. No entanto, a
área ocupada pela comunidade e pelo IPJB/RJ não está compreendida na
categoria de unidade de conservação integral.
As classificações estabelecidas pela lei que institui o Sistema Nacional
de Sistemas de Conservação (SNUC), Lei n.º 9.985/2000, não preveem a
categoria “Jardim Botânico” como unidade de conservação. Dessa forma,
o entendimento contrário surgiria do equívoco de compreender estes
territórios como parte integrante do Parque Nacional da Tijuca, este sim
enquadrado pela Lei, como unidade de proteção integral (inciso III do art.
8° da citada Lei).
A Resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) n°
339/2003 define “Jardim Botânico” como área protegida, constituída no
seu todo ou em parte, por coleções de plantas vivas cientificamente reco-
nhecidas, organizadas, documentadas e identificadas. Além disso, a Lei
nº 10.316/2001, que cria a Autarquia Federal IPJB/RJ estabelece, como

461
sua finalidade específica, a pesquisa para conservação da biodiversidade,
não definindo, entretanto, sua delimitação territorial.
Acerca da regularização fundiária em espaços classificados como
Áreas de Preservação Permanente (APP) merecem atenção a Resolução
n° 369/06 do CONAMA e a Lei Federal nº 11.977/09 (art. 54 e §§), ambas
aprovadas para garantir a concretização do direito à moradia e a proteção
do meio ambiente.
A primeira reconhece que a regularização fundiária em áreas urbanas
é uma atividade de interesse social e, em certas condições, justifica a
intervenção ou supressão de vegetação em Áreas de Preservação Per-
manente (APPs) em margens de cursos de água, no entorno de lagos,
lagoas e reservatórios artificiais e em topo de morros e montanhas, sendo
possível regularizar ocupações implantadas nesses tipos de APPs, desde
que seja respeitada uma série de condições, pelas quais a comunidade do
Horto está contemplada. Inclusive com proposta de declaração de Área
de Especial Interesse público pela Prefeitura.
A segunda (Lei Federal nº 11.977/2009) prevê, em seu artigo 46, a
regularização fundiária de interesse social em Áreas de Preservação
Permanente, ocupadas até 31 de dezembro de 2007, desde que estudo
técnico comprove que esta intervenção implica a melhoria das condições
ambientais em relação à situação de ocupação irregular anterior. O referido
dispositivo legal consagra o acesso à moradia digna e poderia ser aplicado
de forma ampla na regularização fundiária da comunidade do Horto.
Dessa forma, mesmo que estivesse estabelecida em APP, isto não seria
um empecilho para a regularização fundiária da comunidade.

INTERVENÇÕES DO JUDICIáRIO E DO TCU


NO PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA

Apesar dos esforços do próprio Poder Público para efetivar a regulariza-


ção da área, ao longo do processo houve diversas interferências impostas
pelo Poder Judiciário e pelo Tribunal de Contas da União, como pode ser

462
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

demonstrado nas inúmeras decisões proferidas pela Justiça Federal, pela


reintegração de posse de casas de moradores beneficiários do projeto, e
no processo em curso no TCU que culminou na demarcação do perímetro
do IPJB englobando a área da comunidade.
União Federal tem a titularidade da área onde está estabelecida a co-
munidade do Horto, que na década de 1980 foi considerada “irregular”, o
que resultou na propositura de ações de reintegração de posse em face
dos moradores, com o argumento de que o referido espaço urbano deveria
ser utilizado para outros fins. Tais ações foram, em sua maioria, julgadas
procedentes, já estando com as decisões transitadas em julgado. Ocorre
que durante os anos, após a propositura das ações, a postura e o objetivo
da União Federal foram alterados. A reintegração que outrora atendia ao
interesse público do órgão responsável pela administração das terras da
União (SPU), passou a atender apenas aos interesses do Ministério do
Meio Ambiente (IPJB/RJ) e à crescente especulação imobiliária do bairro
onde está localizada a comunidade.
Mesmo com o julgamento procedente das referidas ações, a União,
adotou medidas com o fito de suspender a execução das reintegrações de
posse, não só em virtude da grande comoção social da comunidade, mas
principalmente com o objetivo de implantação de projeto de regularização
fundiária para o local. A comoção social da área pode ser exemplificada
com episódio ocorrido no dia 07 de junho de 2005 quando Oficiais de
Justiça compareceram à comunidade do Horto para reintegrarem a União
Federal em dois imóveis da região. Na oportunidade, os moradores do local
resistiram à reintegração em confronto direto com a Polícia e os Servidores
Federais, transformando o momento em um verdadeiro ato de protesto.
O evento foi noticiado pelos principais veículos de comunicação, o que
demonstra a gravidade do ocorrido.
No caso especifico de uma moradora do Horto, a Sra. Gracinda dos
Santos Silva, de 92 anos de idade, o juízo da 27ª Vara Federal, indo de
encontro a manifestação da União Federal acerca da permanência dos
moradores na localidade do Horto, proferiu decisão determinando a rein-

463
tegração de posse do imóvel onde reside, justificando que não caberia ao
órgão administrativo dispor sobre a posse de bem público.
Com o fito de evitar um desastre e nova comoção social, a Procuradoria
Regional da União expediu o ofício ao Presidente do IPJB/RJ solicitando
esclarecimentos quanto ao interesse deste instituto na reintegração do
imóvel ocupado pela idosa. Em resposta a tal questionamento, o Procu-
rador Chefe do IPJB/RJ, esclareceu que o imóvel ocupado pela Ré não
constituía objeto de interesse de reintegração imediata ao Arboreto e que
poderia ser contemplado em plano urbanístico para fins de reassentamen-
to, como parte dos trabalhos de regularização fundiária junto à SPU/RJ.
A decisão do juízo confrontou com o plano de regularização fundi-
ária e urbanística, que à época ainda estava sendo elaborado, com os
interesses da própria União Federal e do IPJB/RJ, que afirmara ao tempo
que não tinha interesse na reintegração daquele imóvel. Na tentativa de
reformar a referida decisão, a Advocacia Geral da União (AGU) interpôs
Agravo de Instrumento no dia 24 de setembro de 2010, expondo mais
uma vez as razões do Executivo Federal em não realizar a reintegração de
posse. Na mesma data, o Juízo da 27ª Vara Federal proferiu nova decisão
determinando o cumprimento da reintegração, ignorando todos os fatos
apresentados, bem como a manifestação expressa das partes interessadas.
A postura do Judiciário neste caso não encontrou qualquer amparo
legal, em especial pelas peculiaridades do caso que deveriam ter sido
observadas, uma vez que a Sr. Gracinda à época estava com 92 anos de
idade, sendo 70 anos como moradora do local. Caso idêntico ao da Sra.
Gracinda ocorreu com os familiares do Sr. Ruy Lopes, antigo morador do
Horto Florestal, já falecido.
Os mandados de reintegração de posse, nos casos da Sra. Gracinda
e do Sr. Ruy Lopes, foram expedidos durante a elaboração do projeto de
regularização fundiária. A União Federal, autora das ações de reintegra-
ção de posse, requereu formalmente ao juízo federal a suspensão dos
processos e a consequente devolução dos mandados de reintegração.
Qualquer decisão contrária à vontade da autora dessas ações, União

464
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Federal, configurou como clara intervenção direta nas políticas públicas


de regularização fundiária (competência privativa do poder executivo)
violando o princípio da separação de poderes.
No caso da Sra. Gracinda, diante do eminente risco de ver a moradora
despejada de suas terras, a SPU/RJ concedeu à moradora o Direito Real de
Uso (CDRU) daquele espaço urbano, a fim de que os objetivos do processo
de regularização fundiária em desenvolvimento não fossem prejudicados.
No entanto, a CDRU outorgada originou procedimento no Tribunal de
Contas de União (TCU), a partir de denúncia da Associação de Moradores
e Amigos do Jardim Botânico (AMAJB).
A mais recente interferência do Judiciário, ainda em período de defini-
ções quanto a delimitação da área do IPJB/RJ determinada pelo TCU, que
culminou no despejo de vários moradores beneficiários da regularização
fundiária, ocorreu no processo que tramita na 23ª Vara Federal do Rio de
Janeiro sob o n°0932846-81.1900.4.02.5101 em que a reintegração de posse
foi cumprida no dia 04 de abril de 2013, mesmo após inúmeros pedidos
de suspensão. A referida decisão retirou de suas casas uma família do Sr.
Delton dos Santos, nascido no local, composta de 12 pessoas (3 gerações
de ocupantes do Horto) sem qualquer indicação de local para realocação.
Vale notar que os meios para reintegração de posse, de forma ilegal e ar-
bitrária, foram fornecidos pela Associação de Amigos do jardim Botânico
(que não é parte integrante do processo), que assim como a AMAJB, é
formada pela elite que compõe o bairro do Jardim Botânico e criminaliza
a ocupação na área do Horto.
Durante o procedimento instaurado, o TCU afirmou em diversos mo-
mentos que a SPU/RJ utilizou a CDRU sem base legal. Afirmou ainda a
impossibilidade de regularização de edificações situadas em faixa não
edificável e que a posse dos referidos imóveis seria irregular12. No Acórdão
ficou determinada a interrupção do processo de regularização fundiária,
sendo vedada a possibilidade de titulação de qualquer morador, e que a
delimitação do perímetro definitivo do IPJB/RJ fosse feita em conjunto

12 Relatório no TC 032.772/2010-6 e Acórdão n° 2380/2012 – TCU – Plenário - doc. 10.

465
entre os Ministérios do Planejamento (SPU), Meio Ambiente (IPJB/RJ) e
Cultura (IPHAN) até o mês de maio de 2013.
O TCU tem suas atribuições definidas no artigo 96 da Constituição de
1988. Trata-se de um órgão autônomo, não tendo qualquer vínculo de
subordinação ao Legislativo, é auxiliar deste Poder. A fiscalização em si
é realizada pelo Legislativo. O Tribunal de Contas, como órgão auxiliar,
apenas emite pareceres técnicos. O rol de competências constitucionais
do Tribunal de Contas da União nos artigos 33, parágrafo 2°, 71 a 74 e
161, parágrafo único, da Constituição.
Os julgamentos dos Tribunais de Contas são de caráter objetivo, com
parâmetros de ordem técnica-jurídica, ou seja, subsunção de fatos às
normas. Diferente do que ocorre com o Poder Executivo, onde lhe é per-
mitido atuar de acordo com os critérios de conveniência e oportunidade.
Importante ressaltar que no caso específico da regularização fundiária
dos moradores do Horto o TCU atuou extrapolando suas competências
legais e constitucionais e invadindo política pública de competência do
executivo federal.
O dispositivo constitucional indica a adoção, pelo ordenamento ju-
rídico nacional, do sistema da jurisdição una, pelo monopólio da tutela
jurisdicional, do que decorre que as decisões administrativas das Cortes
de Contas, estão sujeitas ao controle jurisdicional, por se tratar de atos
administrativos. Em observância ao inciso xxxV, do artigo 5º, da Cons-
tituição Federal, qualquer decisão dos Tribunais de Contas, ainda que
relativo à apreciação de contas de administradores pode ser submetido ao
reexame do Poder Judiciário, se o interessado considerar que houve lesão
ao seu direito. Não havendo, em tais decisões, o caráter de definitividade
ou imutabilidade dos efeitos, que são inerentes aos atos jurisdicionais.
Quando o Poder Judiciário, pela natureza de sua função, é provocado a
solucionar as situações contenciosas entre o TCU e o indivíduo, ocorre o
controle jurisdicional das atividades administrativas. As questões tomam
forma de pleitos judiciais. As decisões dos Tribunais de Contas devem
estar restritas à lei e a verificação desse fato pode ser provocada pelo in-

466
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

teressado junto ao Poder Judiciário, por meio de ações próprias. Portanto


não se tratam de “recursos judiciais” das decisões dos Tribunais de Con-
tas, mas de ações que buscam uma tutela específica. As ações judiciais
poderão acarretar a nulidade da decisão do Tribunal de Contas, como se
pretende nesse caso específico, desconstituindo os efeitos ou a alteração
afetando o mérito, colocando-se em plena desarmonia ou conflito com a
decisão administrativa.
Assim, conforme analisado através desses casos, é possível perceber
evidente desconformidade do comportamento do Judiciário nas ações
que dizem respeito ao conflito fundiário do Horto com toda a legislação
que ampara o direito subjetivo à regularização fundiária dos moradores,
interferindo na política pública desenvolvida pela União Federal para o
desenvolvimento da função socioambiental de suas terras, uma vez que
o projeto feito em parceria com a universidade demonstrava a vontade
da própria União Federal, em regularizar a posse dos moradores no local,
e não a remoção.

4.1. Contexto Atual

No dia 07 de maio do presente ano a comissão interministerial indica-


da pelo TCU apresentou seu parecer final aos moradores determinando
a remoção de 520 famílias (80% da comunidade), ou seja, mais de duas
mil pessoas de baixa renda. A comissão não apresentou justificativa
sobre o novo perímetro nem mesmo a razão de ter desqualificado os
termos do projeto elaborado pela SPU/RJ e UFRJ. Ressalta-se que não foi
apresentada qualquer alternativa de moradia caso a remoção realmente
venha a ocorrer.
De acordo com levantamentos realizados pelo Instituto de Terras do
Rio de Janeiro (ITERJ) e posteriormente ratificados pelo cadastro da UFRJ,
mais de 80% (oitenta por cento) das famílias são de baixa renda. Portan-
to, estes moradores devem permanecer no local, onde a várias gerações
vivem pacificamente com suas famílias. E não restam dúvidas quanto a

467
necessidade do IPJB/RJ preservar sua área de visitação e de pesquisa, mas
não há a necessidade de remover as famílias da comunidade do Horto,
conforme comprovado pelo projeto de regularização fundiária apresentado
pela SPU/RJ em parceria com a UFRJ.
Importante salientar que antes mesmo da apresentação do parecer da
comissão indicada, 406 moradores do Horto, que não possuem ação de
reintegração de posse proposta pela União, realizaram requerimento de
Concessão de Uso Especial para fins de Moradia (CUEM) à SPU/RJ, ainda
em análise, uma vez que preenchem todos os requisitos exigidos pela
legislação federal e devem ter sua posse histórica protegida, nos termos
da Medida Provisória 2.220/2001 que versa sobre o assunto.
Inconformada com a decisão do TCU a Associação dos Moradores e
Amigos do Horto Florestal (AMAHOR) impetrou Mandado de Segurança no
Supremo Tribunal Federal, sob o n° 31707, com relatoria do Ministro Luís
Roberto Barroso. O objetivo do Mandado de Segurança, que atualmente
aguarda decisão em caráter liminar, é atuar no mérito da decisão do TCU
que impede a continuidade do processo de regularização fundiária a cargo
da Superintendência do Patrimônio da União no Rio de Janeiro.
Para o cumprimento da decisão pela remoção das famílias, a SPU ini-
ciou novo cadastramento das famílias, a fim de inseri-las em programas
habitacionais como o “Minha Casa, Minha Vida”, mas grande maioria da
comunidade não aceitou fazer esse recadastramento. No entanto, vivem
com receio de ver as ações judiciais pela reintegração de posse de mais
de 200 famílias executadas e de que novas ações sejam propostas contra
os moradores que não possuem ação judicial pela sua retirada, apesar
destes terem entrado com o pedido de reconhecimento de CUEM. Aguar-
dam ainda o julgamento do mandado de segurança impetrado no STF e
requisitaram maiores informações junto à SPU sobre os critérios utilizados
para a delimitação do perímetro do IPJB/RJ.

468
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

DISCRICIONARIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA E INTERVENÇÕES NAS POLÍTICAS
PÚBLICAS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA

Diante da referida decisão do TCU, cabe registrar que o poder de definir


o interesse público é um poder que se inclui e se esgota na competência
do Executivo. Trata-se, qual é a compreensão unânime de constituciona-
listas e administrativistas, de ato discricionário cujos motivos e objetos
são definidos estritamente, na estrutura institucional do Estado Brasileiro
e na hipótese do caso concreto pela União presentada pelo órgão com-
petente, ou seja, a SPU.
Neste sentido, a opção da SPU/RJ pela regularização fundiária e urba-
nística das famílias, de acordo com o novo contexto jurídico-institucional,
encontra respaldo na Constituição Federal, pois atende ao Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana (Art. 1º, inciso III da CF); contribui para
cumprimento de um dos objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil, a erradicação da pobreza e da marginalização e reduzir as de-
sigualdades sociais e regionais (Art.3º, inciso III da CF); o cumprimento
da função social da propriedade (Art. 5º, inciso xxIII da CF), que também
incide sobre a propriedade pública; o atendimento ao direito social à mo-
radia (Art. 6º da CF); bem como o disposto no capítulo da Política Urbana
(Art. 182 e 183).
São diretrizes de política urbana do Patrimônio da União, cuja missão
é conhecer, zelar e garantir que cada imóvel da União cumpra sua função
socioambiental, em harmonia com a função arrecadadora, em apoio aos
programas estratégicos para a nação. Deste modo o Patrimônio Público
Federal está inserido como recurso estratégico para implementação de
políticas voltadas para um novo modelo de desenvolvimento econômico
e social, baseado na inclusão socioterritorial e no fomento ao desenvol-
vimento sustentável.
O projeto de regularização fundiária e urbanística apresentado pela
SPU/RJ em parceria com a UFRJ tinha como escopo a delimitação exata

469
dos limites do IPJB/RJ e da área que seria destinada às moradias. Assim, a
Autarquia poderia, dentro de sua área, desenvolver, em sua plenitude, suas
atividades fins e a comunidade ter acesso aos serviços da cidade formal.
O propósito do plano de regularização foi o de construir uma convivên-
cia harmônica e sustentável entre os dois territórios, inaugurando novas
práticas de gestão urbana que possibilita a vizinhança de um instituto de
pesquisa com uma população que ocupa há muito tempo o local, mate-
rializando uma cidade mais justa e sustentável.
Política pública é o espaço que o Estado tem de discricionariedade para
cumprimento de prestações positivas exigidas pela Constituição Federal e
legislação complementar. Sem dúvida a atividade administrativa é dotada
da conhecida discricionariedade. Neste sentido, há uma tradicional dis-
cussão doutrinária cerca do controle judicial das políticas públicas, com
a ferrenha critica do ativismo judicial de promotores e juízes. No caso em
análise trata-se de um ativismo do órgão de contas do legislativo, que de
forma arbitraria impede que a proposta de regularização fundiária seja
apreciada pelos órgãos competentes.
O controle de políticas públicas pelo judiciário deve ser realizado em
caráter excepcionalíssimo. É sabido que não é função do judiciário im-
plementar política pública (papel do Pode Executivo), restando apenas o
controle de sua legalidade. O mesmo controle deve ser imposto ao tribunal
de contas federal que neste caso, extrapolando suas competências impede
que uma proposta de regularização fundiária siga o seu tramite regular.
Para uma política pública gozar de legitimidade não basta sua con-
formação com o ordenamento jurídico e o cumprimento das normas do
programa pré-definidos, mas sim, que venha a atingir interesses sociais
relevantes, consagrando os preceitos tutelados pela Constituição Federal
(BUCCI, 2006).
Assim, a política pública habitacional deve ser implementada no in-
teresse público e de acordo com os anseios da sociedade. A seleção de
prioridades na disponibilidade do patrimônio público é realizada pelo
executivo levando em conta o seu reflexo substantivo no meio social.

470
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Imprescindível destacar, dentro da perspectiva de política pública aqui


defendida, que a eleição das prioridades deve respeitar a efetivação dos
direitos fundamentais e sociais. A legitimação das posses na área do Horto
Florestal decorre de uma escolha de prioridades realizada pelo executivo
federal (DAL BOSCO, 2007).
Além da análise da implementação das politicas públicas sob a ótica da
consagração dos direitos fundamentais, imprescindível sua análise a partir
do contexto de direito à cidade, instituído pela Lei n. 10.257 de 2001. Essa
nova lógica impõe ao Estado a concretização de políticas de inserção de
todo cidadão nesse novo contexto de cidade, garantindo a moradia com
a legitimação das posses históricas (GARCIA, 2005).
Há séculos a área ocupada pelo IPJB/RJ desenvolve regularmente to-
das as suas atividades. A formação da comunidade do Horto Florestal se
confunde com a própria existência do Jardim Botânico. Para cumprimento
dos termos do Estatuto da Cidade e o pleito por uma cidade inclusiva, a
escolha de prioridades realizadas pelo executivo federal na elaboração de
uma proposta de manutenção dos moradores do Horto nessa localidade
atende aos termos do estatuto federal, bem como o núcleo essencial do
direito fundamental a moradia.
O artigo 182 da Constituição Federal disciplina o princípio básico que
orienta todas as políticas públicas urbanas, a função social das cidades.
De acordo com Rosangela Luft, o referido princípio atua como uma baliza
precursora da ação estatal13. O dispositivo constitucional é regulamen-
tado pelo artigo 2º do Estatuto da Cidade, que determina os objetivos da
política urbana.
A forma como a SPU/RJ conduziu a elaboração da proposta de regula-
rização das posses da comunidade do Horto atende a todos os elementos
formadores da função social das cidades. A legitimação da posse urbana
se demonstra método eficaz para realização da regularização fundiária

13 LUFT, Rosangela Maria. Políticas Públicas Urbanas: Premissas e condições para efetivação do
Direito à Cidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011 – Parte II, Capitulo I – A cidade enquanto direito à
função social, pág.112.

471
de interesse social. É papel do executivo a legitimação das posses que
estejam em terrenos de sua titularidade. Além disso, a comunidade do
Horto está inserida nos parâmetros definidos pela lei para o implemento
de regularização fundiária de interesse social.
Diante desses fundamentos, torna-se claro que a decisão da União
Federal no sentido de regularizar a posse dos moradores na área, repre-
sentou o legítimo exercício de uma competência constitucional, outorgada
ao Poder Executivo por força dos artigos 3°, inciso III, 23, inciso x e 183,
parágrafo 1°, da Constituição Federal, não podendo o TCU imiscuir-se
no mérito das políticas públicas de Regularização Fundiária, sob pena de
afrontar o Princípio da Separação e Independência dos Poderes.

CONCLUSÕES

O atual contexto no qual se insere a comunidade do Horto é de in-


definição quanto ao destino da maioria das famílias que a compõem,
apesar da decisão pela remoção de 520 famílias, os moradores conti-
nuam lutando por sua permanência, pelo direito a serem regularizados
no local, através da implementação do projeto desenvolvido pela SPU/
RJ em parceria com a UFRJ.
Afinal, a forma como a SPU/RJ conduziu a elaboração da proposta de
regularização das posses da comunidade do Horto atende a todos os ele-
mentos formadores da função social das cidades. Desta forma, a escolha
de prioridades realizada pelo executivo federal, qual seja a demarcação
de área do IPJB/RJ excluindo a comunidade, vai ao encontro das diretrizes
definidas no Estatuto das Cidades.
Os moradores do Horto Florestal preenchem todos os requisitos
para regularização de suas posses. A opção da Administração Públi-
ca é clara: trata-se de política pública do Ministério do Planejamento
Orçamento e Gestão, fundamentada nos artigos 3°, inciso III, e 183,
parágrafo 1°, da Constituição Federal que entende a concessão de uso
de imóveis federais um instrumento para erradicar a pobreza e reduzir
as desigualdades sociais.

472
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Erradicar a pobreza e diminuir as desigualdades é competência admi-


nistrativa da União Federal, razão pela qual, órgãos do legislativo federal
não possuem qualquer ingerência nas opções realizadas. Sendo assim,
a postura do TCU, foi de controle prévio em política pública urbana, não
encontrando amparo no ordenamento jurídico brasileiro.
É necessário observar a posse dos moradores do Horto como um fato
social e histórico, consagrado no tempo, enraizado na cultura local, nos
termos do que afirma Luiz Edson Fachin quando define a posse como a
causa da propriedade, por ser sua força geradora14. É a posse no cumpri-
mento de sua função social que estabelece uma funcionalidade ao direito
de propriedade, consagrando assim o direito fundamental a moradia.
Na mesma direção o professor Antonio Hernandez Gil15 nos ensina que
a função social da posse concretizada no caso em análise pelos moradores
do Horto, deve ser analisada sob dois aspectos: o primeiro, a necessidade
que a ordenação jurídica seja exponente da realidade social; e o segundo
o de que a função social tende a modificar determinadas estruturas sociais
e os correspondentes quadros jurídicos engessados.
A posse, para exercer sua função social, deve ter como pressuposto o
fato social, e como finalidade a evidência do social das instituições jurídi-
cas, ensejando um juízo de valor neste instituto. A posse consagrada no
Horto é tomada de grande densidade social atendendo a uma exigência
humana integradora da realidade social.
A Constituição Federal em seu artigo 216 define como patrimônio
cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem os conjuntos urbanos de valor histórico.
Diante disso, a comunidade do Horto Florestal faz parte do patrimônio
cultural brasileiro e sua existência deve ser garantida pelo Poder Público,

14 FACHIN, Luiz Edson. A Função Social da Posse e a Propriedade Contemporânea. Sergio Antônio
Fabris Editor. 1988.
15 GIL, Antonio Hernandez. La funcion social de laposesion (Ensayo de teorizacionsociologico-juridica).
Alianza Editorial, Madri, 1969, Ob. Cit. In LUIZ EDSON FACHIN, Ob. Cit. P. 20.

473
consagrando sua proteção constitucional, legitimando a posse e efeti-
vando o direito social à moradia.
A legitimação da posse dos moradores do Horto Florestal, no cum-
primento de sua função social, consagra o objetivo principal de instru-
mentalizar o ideal de justiça social, outorgando uma legítima destinação
ao patrimônio público. Com isso, a decisão de regularizar a posse dos
moradores, representaria o legítimo exercício de uma competência cons-
titucional, outorgada ao Poder Executivo. No entanto, acatar a decisão
do TCU, delimitando a área do IPJB/RJ com a exclusão da maioria dos
moradores da comunidade do Horto, acarreta em grave violação ao novo
marco jurídico-urbanístico inaugurado com a Constituição de 1988, que
garante o direito à regularização fundiária da comunidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

ALFONSIN, Betania. O significado do Estatuto da Cidade para os processos de


regularização fundiária no Brasil. Regularização Fundiária Plena. Secretaria
Nacional de Projetos Urbanos. Brasília: Ministério das Cidades, 2007, pp. 71 e 78.
BEDESCHI, Luciana. A regularização fundiária como diretriz de recupera-
ção ambiental de áreas de preservação permanente nas cidades. 157 fls.
Mestrado em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUCSP, 2012.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito
jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006 – O Conceito de Política Pública em Direito.
DAL BOSCO, Maria Goretti. Discricionariedade em políticas públicas. Curitiba:
Juruá, 2007 – Capitulo III, p. 252.
FACHIN, Luiz Edson. A Função Social da Posse e a Propriedade Contempo-
rânea. Sergio Antônio Fabris Editor, 1° ed. 1988.
FERNANDES, Edesio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: Direito
Urbanístico. Estudos Brasileiros e Internacionais. FERNANDES, E; ALFOSIN, B [Orgs].
Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 10.
GARCIA, Maria (Org.). A Cidade e seu Estatuto. A Cidade eo Estado, Políticas
Públicas e o Espaço Urbano. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 27.
GIL, Antonio Hernandez. La funcion social de laposesion (Ensayo de teo-
rizacionsociologico-juridica). Alianza Editorial, Madri, 1969. In LUIZ EDSON

474
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

FACHIN, Ob. Cit. p. 20.


LUFT, Rosangela Maria. Políticas Públicas Urbanas: Premissas e condições
para efetivação do Direito à Cidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011, p.112.
SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos
Irregulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004, pp. 342 -343- 347.
SOUZA, Laura Olivieri Carneiro. horto Florestal: um lugar de memória da
cidade do Rio de Janeiro. A construção do Museu do horto e seu cor-
respondente projeto social de memória. Rio de Janeiro, 2012. 219 p. Tese de
Doutorado - Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.

475
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Obstáculos na regularização
fundiária dos conjuntos habitacionais
de interesse social

Francisca Leiko Saito


Vera Maria Leme Alvarenga

INTRODUÇÃO

A CDHU – Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano


do Estado de São Paulo é uma empresa do governo do Estado de São
Paulo. Criada como autarquia em 1949, quando ainda era chamada de
Caixa Estadual de Casas para o Povo (CECAP), passou a atuar somente a
partir de 1967 como agente promotor na produção e comercialização de
habitações populares.1
Entre 1967 e 2012, a CDHU atendeu cerca de 537 mil famílias.2 Durante
esses anos o objetivo principal foi a provisão de moradias visando atender
à demanda habitacional de interesse social no Estado de São Paulo.
A produção mais significativa desse total de unidades habitacionais
executadas, diz respeito à implantação de conjuntos habitacionais,
apesar de que a empresa também implementa a urbanização e re-
gularização de assentamentos precários, principalmente nas regiões
metropolitanas do Estado.
Os empreendimentos habitacionais compreendem desde a avaliação/
aquisição dos terrenos, o estudo da viabilização financeira para atendi-
mento da demanda, o cadastro da população a ser atendida; a elaboração/
licenciamento de projetos de infraestrutura, urbanismo e edificações; a
execução das obras visando à implantação dos projetos; o registro nos

1 SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Habitação. Programa e Ações da Política Estadual da Habitação. Governo
do Estado de São Paulo, 2012, p.10.
2 Ibidem, p.11.

477
Cartórios de Registro de Imóveis gerando matrículas individualizadas;
a comercialização das unidades habitacionais, o gerenciamento da car-
teira de mutuários; o apoio social aos mutuários após a sua instalação
nos conjuntos.
Ao longo do tempo, muitos desses empreendimentos não foram en-
tregues de maneira regular aos seus moradores. O que demonstra que, o
processo de licenciamento e registro dos imóveis não acompanhou com
a mesma velocidade o processo de produção dos conjuntos habitacionais.
Com isso as irregularidades foram se acumulando e, com o passar
do tempo, se tornando cada vez mais difícil a sua solução, uma vez que
utilizávamos a legislação vigente de aprovação de projetos, que não se
adequava na maioria das vezes à situação fática dos conjuntos. Quando
conseguíamos aprovar o projeto, nos deparávamos muitas vezes com os
problemas fundiários.
A meta da CDHU é eliminar o passivo de imóveis que demandam de
regularização de modo a permitir a cada beneficiário o pleno acesso à
documentação de propriedade do imóvel, fornecendo assim segurança
jurídica e favorecendo a transferência das áreas públicas para a gestão
municipal, o que possibilita a implantação dos equipamentos urbanos e
sociais necessários à cidade.3
As alterações e inovações nas legislações e o aprimoramento das nor-
mas vem possibilitando a regularização fundiária de interesse social, no
entanto o maior avanço se iniciou a partir da publicação da Lei Federal
nº 11.977/2009.
Segundo o Corregedor-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, Dr.
José Renato Nalini: nada obstante os avanços normativos, a mentalidade
jurídica persiste afeiçoada a velhos e anacrônicos dogmas de intocabilidade
do registro predial, como se este fosse mais importante do que assegurar a
propriedade a seu titular.4
Neste artigo vamos tratar especificamente da regularização de conjun-
tos habitacionais de interesse social no Estado de São Paulo.

3 SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Habitação. Programa e Ações da Política Estadual da Habitação. Governo
do Estado de São Paulo, 2012, p.36.
4 NALINI, José Renato. Regularização Fundiária. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p.10.

478
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

DA REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA

De acordo com o artigo 46 da Lei Federal nº 11.977/2009: A regula-


rização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas,
ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares
e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à mora-
dia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 5
Regularização jurídica consiste na promoção da regularização da posse
e da propriedade, e parcelamento do solo nos assentamentos precários,
visando garantir a inclusão territorial e segurança da posse aos moradores.
Na prática para a efetivação da regularização fundiária é necessário,
por um lado, a eliminação de eventuais riscos às moradias - risco de
desabamento, desmoronamentos de encostas, inundações nas margens
dos córregos e rios ou falta de drenagem adequada - a recuperação de
habitações precárias, a descontaminação do solo, etc. Por outro lado, é
necessária também a execução pelo Poder Público ou pelo empreendedor
das obras de infraestrutura como: rede de abastecimento de água, rede
de esgotamento sanitário, tratamentos de efluentes, redes de drenagem,
contenções de encostas, iluminação, coleta de lixo, transporte, equipa-
mentos sociais, entre outros. Deverão ser verificadas as situações de
preservação ambiental como as margens de córregos, rios e nascentes,
vegetação significativa em estágio avançado de regeneração, topos de
morros para constatação da necessidade ou não de remoção e reconsti-
tuição do ambiente.
Portanto a regularização fundiária plena compreende tanto ações
jurídicas como de caráter urbanístico/ambiental.
Nelson Saule Junior, diz: A regularização fundiária foi incluída como um
dos instrumentos jurídicos e políticos da política urbana no Estatuto da Cidade.
A regularização fundiária deve ser entendida como uma medida necessária
para enfrentar o problema dos assentamentos informais.6

5 BRASIL. Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-


2010/2009/lei/l11977.htm, acessado em 23 de setembro de 2012, art.46.
6 SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2004, p. 348.

479
Com isso permitirão que municípios revertam o quadro de informali-
dade e precariedade da ocupação e uso do solo urbano.7

CONJUNTOS hABITACIONAIS

Pelo Provimento CG nº 16/2013, que modifica a seção VII, do Capítulo


xx, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado
de São Paulo, item 156.1: Entende-se com conjunto habitacional o empre-
endimento em que o parcelamento do imóvel urbano, com ou sem abertura
de ruas, é feito para a alienação de unidades habitacionais edificadas pelo
próprio empreendedor.8
Ou seja, o empreendedor executa o parcelamento do solo e também
constrói as edificações para alienação. As Normas de Serviço permitem que
no mesmo ato de registro, registre-se o parcelamento do solo e averbem-
-se as unidades habitacionais, não havendo desta forma necessidade de
dois requerimentos.
Algumas legislações municipais beneficiam os empreendedores de
conjuntos habitacionais com a redução do percentual de áreas públicas
a serem doadas à municipalidade. Por exemplo, no município de São
Paulo, para os casos de Plano Integrado (parcelamento do solo com
construções de edificação, ou seja, conjunto habitacional) há redução
de doação de 40% para 35% em casos de loteamento e de 20% para 15%
para desmembramento.9
Em geral são promovidos por meio das Companhias, Secretarias de
Habitação de Estados e Municípios. Quando privados, em geral são pro-
movidos com recursos do Sistema Financeiro da Habitação.
Os conjuntos habitacionais promovidos por órgãos e instituições do

7 Ibidem, p.349.
8 SÃO PAULO (Estado). Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Provimento CG nº 16/2013. São
Paulo: 15 de maio de 2013. Disponível em www.extrajudicial.tjsp.jus.br/pexPtl/visualizarDetalhesPublicacao.
do?cdTipopublicacao=3&nuSeqpublicacao=124, acessado em 25 de julho de 2013, item 156.1.
9 SÃO PAULO (Município). Decreto nº 44.667, de 26 de abril de 2004. Disponível em http://www.prefeitura.
sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/plantas_on_line/legislacao/index.php?p=12811, acessado em
03/11/2012, art. 60.

480
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Poder Público responsáveis pela execução de programas habitacionais,


muitas vezes são construídos sem atender às exigências da lei de parce-
lamento do solo e da legislação municipal de uso e ocupação do solo.10
Da mesma forma nos loteamentos irregulares é comum a falta de infra-
estrutura, principalmente de saneamento básico, e o registro público no
Cartório de Registro de Imóveis.
Reproduzindo o padrão de informalidade dos assentamentos da po-
pulação de baixa renda, o Poder Público contribuiu para o modelo de
desenvolvimento urbano excludente implantando conjuntos habitacionais
apartados dos tecidos urbanos consolidados, criando assim, grandes cen-
tros habitacionais sem a infraestrutura urbana necessária.

REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA DE INTERESSE SOCIAL

Segundo o conceito trazido no artigo 47 da Lei nº 11.977/2009: VII


– regularização fundiária de interesse social: regularização fundiária de as-
sentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por população de
baixa renda, nos casos: a) em que a área esteja ocupada, de forma mansa
e pacífica, há, pelo menos, 5 (cinco) anos; b) de imóveis situados em ZEIS;
ou c) de áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
declaradas de interesse para implantação de projetos de regularização fun-
diária de interesse social.11
No mesmo artigo temos o conceito de ZEIS: V – Zona Especial de Inte-
resse Social - ZEIS: parcela de área urbana instituída pelo Plano Diretor ou
definida por outra lei municipal, destinada predominantemente à moradia
de população de baixa renda e sujeita a regras específicas de parcelamento,
uso e ocupação do solo.12
No provimento CG nº 21/2013 no item 218 diz: A regularização fundiária
de interesse social caracteriza-se na presença dos seguintes requisitos: a) em

10 SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2004, p. 355.
11 BRASIL. Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2009/lei/l11977.htm, acessado em 23 de setembro de 2012, art.47, inciso VII.
12 Ibidem, art. 47, inciso V.

481
terras particulares, quando haja ocupação, titulada ou não, predominante-
mente de população de baixa renda e para fins residenciais, de forma mansa
e pacífica, por pelo menos 5 anos; ou b) em imóveis situados em ZEIS ou de
outra forma definido pelo Município como de interesse social ou em terras
públicas declaradas de interesse social para implantação de projetos de regu-
larização fundiária pela União, Estado ou Município, dispensada averbação
específica para tais fins13.
O que define o padrão de interesse social é a faixa de renda da popu-
lação moradora da área objeto de regularização fundiária e/ou o zonea-
mento estabelecido pelos Planos Diretores Municipais.

OBSTáCULOS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA


LEGITIMIDADE PARA REGULARIZAR

Na Lei nº 11.977/2009 tem legitimidade para regularizar: Art. 50. A


regularização fundiária poderá ser promovida pela União, pelos Estados,
pelo Distrito Federal e pelos Municípios e também por: I – seus beneficiários,
individual ou coletivamente; e II – cooperativas habitacionais, associações de
moradores, fundações, organizações sociais, organizações da sociedade civil
de interesse público ou outras associações civis que tenham por finalidade
atividades nas áreas de desenvolvimento urbano ou regularização fundiária.
Parágrafo único. Os legitimados previstos no caput poderão promover todos
os atos necessários à regularização fundiária, inclusive os atos de registro. 14
No Estatuto da Cidade a regularização fundiária foi incluída como um
dos instrumentos jurídicos e políticos da política urbana.15 Deve ser enten-
dida como medida necessária para melhoria dos assentamentos informais
e dessa forma reverter, juntamente com a urbanização, a informalidade
e precariedade da ocupação e uso do solo urbano.16

13 SÃO PAULO (Estado). Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Provimento CG nº 21/2013.
São Paulo: 19 de julho de 2013. Disponível em http://iregistradores.org.br/wp-ontent/uploads/2013/07/
TJSP-Provimento-CG-21-2013.pdf, acessado em 25 de julho de 2013, item 218.
14 BRASIL. Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2009/lei/l11977.htm, acessado em 23 de setembro de 2012, art. 50.
15 BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
leis_2001/l10257.htm, acessado em 23 de setembro de 2012, art.4º
16 SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2004, p. 348 e 349.

482
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Promover a regularização fundiária não retira as responsabilidades do


loteador responsável pelo parcelamento do solo irregular. O Poder Público
deve aplicar o artigo 38, § 2º da Lei Federal nº 6.766/79 que responderá
por crime contra Administração Pública, em razão do artigo 50 da Lei nº
6.766/79 e ainda administrativamente.17
Alguns cartórios de registro de Imóveis não estavam aceitando a CDHU
como legítima a promover a regularização fundiária porque o art. 50 da
Lei nº 11.977/2009 não cita as companhias habitacionais, no provimento
CG nº 21/2013 item 225.3 diz: o loteador é legitimado a requerer a regula-
rização fundiária do assentamento ilegal de sua autoria18, esperamos que
com a vigência do provimento a questão seja sanada.
A legitimidade de regularizar não pode ser confundida com a com-
petência do Município para regularizar. É competência do Município
legislar sobre assuntos de interesse local, promover adequado ordena-
mento territorial nos termos previstos nos incisos I e VIII do artigo 30 da
Constituição Federal: Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos
de interesse local; VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento
territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da
ocupação do solo urbano.19
A aprovação, a disciplina e a regularização do parcelamento do solo urbano
são de competência municipal.20
Nos casos dos conjuntos habitacionais produzidos pelo Estado, é ne-
cessário que seja estabelecida uma parceria com os municípios, pois inú-
meras etapas do processo de regularização são de competência municipal.
Também podem ou devem ser envolvidos no processo de regulari-
zação as concessionárias de serviços públicos, os órgãos estaduais de

17 BRASIL. Ministério das Cidades. Regularização Fundiária Urbana: como aplicar a Lei Federal nº 11.977/2009
– Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação e Secretaria Nacional de Programas Urbanos.
Brasília, 2010, p.13.
18 SÃO PAULO (Estado). Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Provimento CG nº 21/2013.
São Paulo: 19 de julho de 2013. Disponível em http://iregistradores.org.br/wp-content/uploads/2013/07/
TJSP-Provimento-CG-21-2013.pdf, acessado em 25 de julho de 2013, item 225.3.
19 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Constituicao/Constituicao.htm, acessado em 26 de julho de 2013, art. 30.
20 SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2004, p.355.

483
licenciamento, os cartórios de registro de imóveis, ministério público e
defensoria pública.21

qUESTÕES URBANÍSTICAS

Um dos maiores obstáculos sob o ponto de vista urbanístico, são as


modificações realizadas pelos moradores e pelas prefeituras no decorrer
dos anos. Sem a devida regularização, a população se apropria dos espa-
ços do conjunto alterando ou descaracterizando o projeto original, tanto
das edificações como das áreas destinadas ao uso público. Nesse sentido,
pode ocorrer que aprovações obtidas no projeto original junto aos órgãos
licenciadores, de conjuntos que não lograram seu registro imobiliário por
alguma pendência fundiária, são descartadas, pois o projeto aprovado não
reflete mais a realidade in loco.
Muitas vezes, como consequência da falta de infraestrutura urbana e
das distâncias aos centros comerciais mais próximos, é comum o apare-
cimento de comércios irregulares tanto em áreas previstas como áreas
públicas ou de uso comum nos lotes condominiais.
Há ainda os casos de ocupações em área de preservação permanente
ao longo de córregos e rios ou em encostas que além de problemas am-
bientais podem proporcionar risco à vida de diversas famílias.
As alterações e a descaracterização do projeto original levam à obriga-
toriedade de se iniciar o processo de regularização com o Levantamento
Planialtimétrico Cadastral do conjunto, que servirá como base para a
elaboração do Projeto de Regularização onde serão redefinidos os usos e
padrões de ocupação do solo, adequando-os à realidade atual.
Além disso, o projeto de regularização deve refletir o resultado das
discussões e negociações com a comunidade e com o município.
Muitas vezes a retirada das ocupações é condicionante para possibilitar
a regularização do conjunto, porém, em geral, encontra-se uma grande

21 BRASIL. Ministério das Cidades. Regularização Fundiária Urbana: como aplicar a Lei Federal nº 11.977/2009
– Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação e Secretaria Nacional de Programas Urbanos.
Brasília, 2010, p.13.

484
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

resistência à saída dessas famílias o que obriga a CDHU a autuar ações de


reintegração de posse. Devido aos prazos dilatados do Poder Judiciário,
essas ações acabam por impedir a conclusão do processo de regulari-
zação até por anos. Nesse sentido lembramos também a dificuldade de
realocação ou atendimento habitacional das famílias que não poderão
permanecer nessas áreas.
A falta de regularização fundiária coloca o conjunto habitacional numa
espécie de “território sem dono”. Apesar de fornecer alguns serviços
públicos, como recolhimento do lixo e iluminação do sistema viário, ge-
rando a cobrança de impostos, os municípios, na maioria das vezes, não
se apropriam das áreas destinadas ao uso público (áreas institucionais,
sistemas de lazer, áreas verdes e sistema viário), pois não possuem a sua
posse efetiva. O que acaba ocasionando a sua ocupação de maneira desor-
denada, tanto pela população moradora, quanto pelo próprio município.
Por outro lado o Estado, CDHU, não tem condições efetivas e materiais
para manter a vigilância e a gestão desses conjuntos que se encontram
implantados por todo o território estadual.
As consequências são alterações que causam descaracterizações em
relação ao projeto original que muitas vezes passam a ficar em desacordo
com a própria legislação municipal.

O MUNICÍPIO

Os municípios, como já mencionado, são os principais atores desse


processo, pois é deles a competência final de legislar sobre o território
urbano e consequentemente, como veio reforçar a nova legislação, a
competência sobre a regularização dos assentamentos informais.
Ocorre que nem sempre os municípios tem tido capacidade de absorver
o alcance, as facilidades e a aplicação da nova legislação, muitas vezes por
falta de corpo técnico capacitado, acarretando em morosidade na análise,
discussão/aceitação dos projetos e consequentemente na emissão dos
autos de regularização.

485
A falta de implementação de uma política de regularização fundiária
e sua integração com as políticas urbanas de habitação, meio ambiente,
saneamento básico e mobilidade no âmbito técnico/administrativo da
gestão territorial municipal, configura-se também em um dos principais
entraves para o bom andamento dos processos de regularização junto
aos municípios.
Não podemos esquecer que o processo de regularização depende da
atuação de equipe multidisciplinar, com vários tipos de profissionais atu-
ando em conjunto para viabilizar estratégias, que devem ser concebidas
para cada caso específico.
Outra dificuldade é a necessidade de adequação de legislações mu-
nicipais existentes à legislação federal, devido às inovações trazidas,
principalmente no que diz respeito à formação de Conselhos Municipais
de Meio Ambiente como resultado da implantação de uma política am-
biental municipal.
A CDHU, em particular, vem enfrentando dificuldades junto a alguns
municípios em relação à regularização das áreas construídas, pois, como
empresa que produz e financia unidades habitacionais, não tem a compe-
tência de regularizar os acréscimos construídos pelos mutuários. Como
já apontado, nos casos de conjuntos com unidades habitacionais unifa-
miliares, no decorrer do tempo a população moradora vai reformando a
casa entregue pela CDHU, implantando edículas, garagens cobertas, enfim,
aumentando a área construída original.
Muitas vezes o município possui legislação específica de conservação,
o que dificulta a aprovação do projeto de regularização somente com as
áreas construídas das tipologias originais da CDHU.
Após a regularização do conjunto, os municípios devem assumir a
responsabilidade de regularizar os acréscimos construtivos através pro-
gramas específicos.

LICENCIAMENTO AMBIENTAL

486
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Há dificuldade, por parte dos técnicos das Agências Ambientais do


Estado de São Paulo - CETESB e também das Secretarias de Meio Am-
biente municipais, na aplicação e no entendimento das legislações, não
conseguindo estabelecer as diferenças entre os casos de aprovação e
de regularização.
Está previsto no art. 53 da Lei nº 11.977/2009: § 1º A aprovação muni-
cipal prevista no caput corresponde ao licenciamento urbanístico do projeto
de regularização fundiária de interesse social, bem como ao licenciamento
ambiental, se o Município tiver conselho de meio ambiente e órgão ambiental
capacitado. § 2º Para efeito do disposto no § 1o, considera-se órgão ambiental
capacitado o órgão municipal que possua em seus quadros ou à sua dispo-
sição profissionais com atribuição para análise do projeto e decisão sobre o
licenciamento ambiental.22
A falta de uma política ambiental e de Conselho de Meio Ambiente
capacitado nos municípios causa demora no processo de regularização,
pois passam a ser analisados pela CETESB diretamente ou através do
Programa Cidade Legal.
Com relação ao registro de imóveis há um grande avanço, pois não cabe
ao registrador verificar a composição de seu conselho de meio ambiente e
a capacitação do órgão ambiental municipal. E ainda, não há necessidade
de apresentação do licenciamento ambiental estadual se o Município tiver
conselho de meio ambiente e órgão ambiental capacitado.23
Ocupações em Áreas de Preservação Permanente – APP, ainda são
uns dos entraves na regularização. A maioria dos projetos foram conce-
bidos com faixa de 15 metros, segundo o art. 4º inciso III da Lei Federal
nº 6.766/1979: ao longo de águas correntes e dormentes e das faixas de
domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatória a reserva
de uma faixa non aedificandi de 15 metros de cada lado, salvo maiores exi-

22 BRASIL. Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-


2010/2009/lei/l11977.htm, acessado em 23 de setembro de 2012, art. 53.
23 SÃO PAULO (Estado). Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Provimento CG nº 21/2013.
São Paulo: 19 de julho de 2013. Disponível em http://iregistradores.org.br/wp-content/uploads/2013/07/
TJSP-Provimento-CG-21-2013.pdf, acessado em 25 de julho de 2013, item 226 e 226.1.

487
gências da legislação específica24. E após 1996 foi decidido que deveria ser
30 metros conforme o art. 2º alínea a.1 da Lei Federal nº 4.771/1965 –
Código Florestal: Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito
desta Lei, as florestas e demais forma de vegetação natural situada: ao longo
dos rios ou de cursos d´água desde o seu nível mias alto em faixa marginal
cuja largura mínima será: de 30 metros para os cursos d´água de menos de
10 metros de largura25.
Como não regularizados à época, muitos conjuntos construídos pela
CDHU ficaram com APP ocupadas. A CDHU está apresentando Estudo
Técnico comprovando que não há prejuízo ao meio ambiente uma vez
que as moradias estão consolidadas, em atendimento ao art. 64 da Lei
nº 12.651/2012: Na regularização fundiária de interesse social dos assenta-
mentos inseridos em área urbana de ocupação consolidada e que ocupam
Áreas de Preservação Permanente, a regularização ambiental será admitida
por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária, na forma da
Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009.§ 1o O projeto de regularização fundiária
de interesse social deverá incluir estudo técnico que demonstre a melhoria
das condições ambientais em relação à situação anterior com a adoção
das medidas nele preconizadas.§ 2o O estudo técnico mencionado no § 1o
deverá conter, no mínimo, os seguintes elementos: I - caracterização da si-
tuação ambiental da área a ser regularizada; II - especificação dos sistemas
de saneamento básico; III - proposição de intervenções para a prevenção e
o controle de riscos geotécnicos e de inundações; IV - recuperação de áreas
degradadas e daquelas não passíveis de regularização; V - comprovação da
melhoria das condições de sustentabilidade urbano-ambiental, considerados
o uso adequado dos recursos hídricos, a não ocupação das áreas de risco e a
proteção das unidades de conservação, quando for o caso; VI - comprovação
da melhoria da habitabilidade dos moradores propiciada pela regularização

24 BRASIL. Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/


leis/l6766.htm, acessado em 25 de julho de 2013, art. 4º inciso III.
25 BRASIL. Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l4771.htm, acessado em 25 de julho de 2013, art. 2º alínea a.1.

488
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

proposta; e VII - garantia de acesso público às praias e aos corpos d’água.26


No caso de licenciamento de áreas situadas em Área de Proteção Am-
biental - APA não regulamentadas, no caso de São Paulo, a CETESB está
exigindo a reserva de 20% de área verde mesmo nos casos de regularização
fundiária e a CDHU, nos conjuntos que não possuem o percentual, sempre
que possível, está oferecendo a área faltante em outro empreendimento no
mesmo município. Ou quando isso não é possível, através de parceria, os
municípios disponibilizam áreas passíveis de revegetação de seu interesse
como forma de compensação.
Há ainda alguns conjuntos habitacionais que não possuem Sistema
de Tratamento de Esgoto – STE e a sua da implantação depende de um
sistema a ser executado pelo município ou pela SABESP. Quando não
há solução de curto prazo pode haver a necessidade de execução de
um sistema isolado de tratamento de esgotos que necessita de licen-
ciamento específico.

SEGURANÇA DA EDIFICAÇÃO

Nos casos de edificações verticais, prédios, há necessidade de obtenção


de AVCB – Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros.
Para tanto são necessárias contratações de obras que são demoradas
devido ao processo licitatório, e onerosas devido ao alto custo.
Também, muitas vezes, devem ser executadas obras de contenção de
taludes, demolição de edificações em situação de risco, e outras obras
necessárias à manutenção da segurança e salubridade das edificações.
Os municípios além de condicionarem a emissão do Habite-se à apre-
sentação do AVCB, exigem também a apresentação de Laudo de Habita-
bilidade das edificações elaborado por técnico habilitado.

26 BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-


2014/2012/Lei/L12651.htm, acessado em 26 de julho de 2013, art. 64.

489
CARTóRIO DE REGISTRO DE IMóVEIS

RETIFICAÇÕES

As retificações de descrição dos imóveis antes de 2004 eram obri-


gatoriamente judiciais, com as alterações inseridas pela Lei Federal nº
10.931/2004 criou-se o instrumento da retificação administrativa o que
simplificou e reduziu o tempo das mesmas. A Lei nº 12.424/2011 trouxe
novas inovações à Lei nº 6.015/73 incluindo no art. 213: § 11. Independe
de retificação: I - a regularização fundiária de interesse social realizada em
Zonas Especiais de Interesse Social, promovida por Município ou pelo Distrito
Federal, quando os lotes já estiverem cadastrados individualmente ou com
lançamento fiscal há mais de 10 (dez) anos.27
O provimento CG nº 21/2013 item 223 normatiza os procedimentos
para o registro de projetos de regularização fundiária sem a necessidade
de notificação dos confrontantes,28 sendo necessário somente quando for
constatada a expansão do parcelamento do solo.29

UNIFICAÇÃO

Com relação à unificação de imóveis contíguos com registro de imissão na


posse30, é ainda um obstáculo a ser vencido, pois os imóveis, em sua maioria,
têm descrições precárias e os oficiais de registro de imóveis alegam que só
poderão ser unificados com a carta de adjudicação que constará a descrição
da área desapropriada e assim será possível a abertura de uma nova matrícula.

27 BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/


leis/l6015.htm, acessado em 05 de agosto de 2013, art. 213 §11.
28 SÃO PAULO (Estado). Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Provimento CG nº 21/2013.
São Paulo: 18 de julho de 2013. Disponível em http://iregistradores.org.br/wp-content/uploads/2013/07/
TJSP-Provimento-CG-21-2013.pdf, acessado em 25 de julho de 2013, item 223.
29 Ibidem, item 228.1.
30 Ibidem, item 229.1.

490
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

DESCADASTRAMENTO DE IMóVEL RURAL NO INCRA

O procedimento de descadastramento do INCRA consiste em atualizar


o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural – CCIR e solicitar o descadas-
tramento Rural juntamente com os seguintes documentos: matrícula
atualizada do imóvel, ofício solicitando o cancelamento rural, formulários
do INCRA com informações da empresa e da área, Certidão de Perímetro
Urbano e Cópia da Lei que delimitou este perímetro fornecido pela Pre-
feitura, Laudo de Descaracterização de Uso Rural assinado por um enge-
nheiro agrônomo e ART quitada, cópias autenticadas do Estatuto Social,
CNPJ, Procuração e RG do procurador. Após avaliação o INCRA emite dois
ofícios, um para a prefeitura para cadastro da inscrição cadastral e outro
para o cartório para averbação na matrícula.
O item 216 do provimento CG nº 21/2013 trouxe um novo procedimen-
to que irá auxiliar muito com relação a esta questão: 216.1 O registro do
projeto de regularização independe de averbação prévia do cancelamento do
cadastro de imóvel rural junto ao INCRA e de inclusão no perímetro urbano.
216.2. Uma vez registrado o projeto de regularização de gleba cadastrada
como rural, o Oficial de Registro de Imóveis comunicará ao INCRA, para que
este órgão possa cancelar total ou parcialmente o certificado de cadastro de
imóvel rural e à Receita Federal do Brasil, quanto ao Imposto Territorial Rural,
enviando certidão da matrícula do parcelamento regularizado.31

PEÇAS GRáFICAS

Por diversas vezes nos deparamos com oficiais de registro exigindo alte-
rações nos projetos aprovados pelas prefeituras, retificações desnecessárias,
alterações e detalhamentos nos memorias descritivos abusivos. O provimento
CG nº 21/2013 esclarece: 227. Os padrões dos memoriais descritivos, das
plantas e demais representações gráficas, inclusive as escalas adotadas e

31 SÃO PAULO (Estado). Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Provimento CG nº 21/2013.
São Paulo: 18 de julho de 2013. Disponível em http://iregistradores.org.br/wp-content/uploads/2013/07/
TJSP-Provimento-CG-21-2013.pdf, acessado em 25 de julho de 2013, item 216.

491
outros detalhes técnicos, seguirão as diretrizes estabelecidas pela autoridade
municipal competente, considerando-se atendidas com a emissão do respec-
tivo auto de regularização ou documento equivalente.32

qUADROS DA NBR 12.721

Com a publicação do provimento CG nº 18/2012 que trouxe a seguinte


determinação no item 246.2.b: cálculo das áreas das edificações discrimi-
nando, além da global a das partes comuns, e indicando cada tipo de unidade
e a respectiva metragem de área construída, tudo de conformidade com as
normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT, aplicáveis ao
caso.33 Os registradores de imóveis passaram a exigir a apresentação dos
quadros de áreas da NBR 12.721, isso acarretava em um custo a mais para
a regularização dos conjuntos uma vez que era necessária a contratação,
para elaboração por técnico especializado, de um conjunto de quadro de
áreas para cada condomínio.
Em consulta realizada à Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São
Paulo com o pedido de não apresentação dos quadros da NBR o mesmo
foi acatado de acordo com o Parecer nº 162/2013-E: observada a linha de
flexibilização imposta pela Lei Federal nº 11.977/09, tem-se que os quadros
de áreas que acompanham a planta e a instituição do condomínio apresen-
tados pela CDHU podem ser aceitos pelos Oficiais de Registros de Imóveis
independentemente da observação das regras da ABNT, haja vista que a
CDHU apresenta seus quadros padronizados de acordo com a metodologia
da NBR 12.721 para o cálculo das áreas dos empreendimentos constantes
da instituição de condomínio.34

32 Ibidem, item 227.


33 SÃO PAULO (Estado). Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Provimento CG nº18/2012. São
Paulo: 25 de junho de 2012. Disponível em http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/cao_urbanismo_e_
meio_ambiente/legislacao/leg_estadual/leg_est_provimentos/CGJ_Prov-18-12-Parecer-168-12-Proces-
so-17333-2012.pdf, acessado em 23 de setembro de 2012, item 246.2.b.
34 SÃO PAULO (Estado). Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Parecer nº 162/2013. São Paulo:
10 de maio de 2013. Disponível em www.extrajudicial.tjsp.jus.br/pexPtl/visualizarDetalhesPublicacao.do?cdT
ipopublicacao=3&nuSeqpublicacao=124, acessado em 25 de julho de 2013.

492
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

CND – CERTIDÃO NEGATIVA DE DéBITOS DO INSS

Na Lei nº 12.424 /2011 incluiu a alteração da Lei nº 8.212/1991, art. 47,


§ 6º Independe de prova de inexistência de débito: e) a averbação da cons-
trução civil localizada em área objeto de regularização fundiária de interesse
social, na forma da Lei no 11.977, de 07 de julho de 2009.35
No provimento CG nº 18/2012 no item 246.2 constou: Para regularização
de conjunto habitacional, o interessado instruirá seu requerimento de registro
com os seguintes documentos: h) certidão negativa de débito para com a
Previdência Social relativa à construção, dispensada a apresentação mediante
declaração de preenchimento dos requisitos previstos nos arts. 322, XXV, e
370, III, da Instrução Normativa nº 971/09, da Receita Federal do Brasil.36
Após consulta realizada à Corregedoria Geral da Justiça do Estado de
São Paulo foi esclarecido no Parecer nº 162/2013-E: tendo em vista que
o §6º, do art. 47, da Lei no 8.212/91, diz que averbação da construção civil
localizada em área objeto de regularização fundiária de interesse social, na
forma da lei 11.977/2009, independe de prova de inexistência de débito, essa
realidade deve ser contemplada pelas Normas de Serviço da Corregedoria37.
Passando a constar no provimento CG nº 16/2013 a seguinte redação:
246.1.g) certidão negativa de débito para com a Previdência Social relativa à
construção, dispensada sua apresentação nos casos de regularização fundi-
ária de interesse social.38
A dispensa de apresentação da CND é uma grande vitória, pois existe
uma enorme dificuldade de obtenção da mesma devido a prazo decorrido
e a falência ou dívida das empresas que executaram as obras.

35 BRASIL. Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/


l8212cons.htm, acessado em 25 de julho de 2013, art. 47 § 6º.
36 SÃO PAULO (Estado). Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Provimento CG nº18/2012. São
Paulo: 25 de junho de 2012. Disponível em http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/cao_urbanismo_e_
meio_ambiente/legislacao/leg_estadual/leg_est_provimentos/CGJ_Prov-18-12-Parecer-168-12-Proces-
so-17333-2012.pdf, acessado em 23 de setembro de 2012, item 246.2.h.
37 SÃO PAULO (Estado). Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Parecer nº 162/2013. São Paulo:
10 de maio de 2013. Disponível em www.extrajudicial.tjsp.jus.br/pexPtl/visualizarDetalhesPublicacao.do?cdT
ipopublicacao=3&nuSeqpublicacao=124, acessado em 25 de julho de 2013.
38 SÃO PAULO (Estado). Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Provimento CG nº 16/2013. São
Paulo: 15 de maio de 2013. Disponível em www.extrajudicial.tjsp.jus.br/pexPtl/visualizarDetalhesPublicacao.
do?cdTipopublicacao=3&nuSeqpublicacao=124, acessado em 25 de julho de 2013, item 246.1.g.

493
ATO UNO

Apesar de constar no provimento CG nº 18/2012 no item 219: O


procedimento de registro do projeto de regularização fundiária de interesse
social ou específico é uno e deve observar o disposto na Lei nº 11.977/09,
no Capítulo XII, do Título V, da Lei nº 6.015/73, e nas normas técnicas desta
Seção, cabendo ao Oficial do Registro de Imóveis a realização do controle
de legalidade meramente formal acerca das aprovações dos órgãos compe-
tentes.39, ainda temos de convencer as Prefeituras e os Registros de Imóveis
a utilizar este benefício da norma.

CONCLUSÃO

A Lei Federal nº 11.977/2009 para a regularização fundiária de interesse


social de conjuntos habitacionais é fundamental para aplicação da função
social da propriedade e a dignidade da pessoa humana, uma vez que traz
a regularidade jurídica e introduz as famílias beneficiadas à sociedade
formal. Consequentemente traz uma maior consciência ambiental e o
melhor tratamento urbano-ambiental tanto por parte do Poder Público
como por parte da população beneficiada.
Apesar dos conjuntos habitacionais não serem ocupações espontâneas
como as ocupações irregulares, em sua maioria eles trazem um agravante,
pois seus moradores pagam ou pagaram as prestações pela sua moradia,
com a promessa de propriedade, ou seja, investiram nas suas moradias e
não tiveram acesso à “regularização jurídica” com a obtenção do “título
de propriedade”, com todos os benefícios que isso acarreta.
A Lei não visa beneficiar os loteadores clandestinos e irregulares, mas
sim beneficiar os moradores de baixa renda que neles residem a obter a
regularidade fundiária, o acesso à moradia digna e inclusão social. Por
outro lado, também beneficia as instituições do Poder Público que não

39 SÃO PAULO (Estado). Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Provimento CG nº 21/2013.
São Paulo: 18 de julho de 2013. Disponível em http://iregistradores.org.br/wp-content/uploads/2013/07/
TJSP-Provimento-CG-21-2013.pdf, acessado em 25 de julho de 2013, item 219.

494
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

respeitaram as próprias leis para execução de seus programas habitacio-


nais. Em parte compreensível devido à necessidade urgente de provisão de
moradia, em contraste com a morosidade dos licenciamentos urbanísticos
e ambientais, o que também pode ocasionar as ocupações irregulares
caso os terrenos fiquem vazios ou desocupados. É um dilema difícil de ser
sanado, pois, como sabemos, a demanda por moradia é muito maior do
que a produção habitacional pública e privada, principalmente em relação
à população de baixa renda.
A Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, entendendo
a necessidade urgente de regularizar a propriedade dos moradores dos
conjuntos habitacionais de interesse social, publicou os provimentos CG
nº 18/2012, 16/2013 e 21/2013 que normatizam os procedimentos de
regularização fundiária dos serviços de registros de imóveis viabilizando a
regularização fundiária dos conjuntos habitacionais e beneficiando desta
forma milhares de famílias com títulos de propriedade.
Entre janeiro e julho de 2013 foi possível a regularização plena de 11.283
unidades habitacionais da CDHU nos Cartórios de Registro de imóveis no
Estado de São Paulo.
Entendemos que os obstáculos que ainda persistem só serão superados
quando todos os agentes envolvidos se apropriarem dos novos instrumen-
tos jurídicos, aplicando-os em todo o seu alcance.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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496
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Os dez anos da vigência do estatuto da


cidade no processo dialético da práxis
da regularização fundiária urbana

João Aparecido Bazolli 1

1. EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO URBANA BRASILEIRA

No Brasil, os registros de normas sobre assuntos urbanos remontam


o período colonial. Destacam-se, nesse contexto, as Ordenações Filipinas
que, pela sua importância, estiveram vigentes no Brasil até 1916 e tratavam
de matéria edilícia, da organização da cidade e das atribuições das auto-
ridades locais relacionadas às deliberações sobre as questões urbanas2.
A cronologia do atual debate sobre a função social da propriedade no
contexto histórico brasileiro remonta 1808, ano este considerado como
divisor de águas entre a propriedade absoluta e relativa. Instituiu-se, nessa
época, o princípio do “poder de polícia” que fundamenta a aplicabilidade
dos institutos jurídicos urbanísticos, além de nascer, na ocasião, a cultura
jurídica da função social da propriedade urbana criada pela jurisprudência.
Essa nova cultura em questão estabeleceu a prerrogativa ao Estado, por
razões intrínsecas, de arbitrar sobre os interesses comuns3.
Desta feita, a temática urbana brasileira, que era tratada de maneira
fracionada, alcançou definitivamente o status de marco regulatório urba-
nístico a partir da Constituição do Império de 1824, século xIx, que passou
a amenizar o tratamento do direito de propriedade, que antes tinha o ca-
ráter quase que absolutista. A Carta Política de 1824 dispõe, por previsão

1 Doutor em Geografia. Graduado em Direito. Universidade Federal do Tocantins. Professor do Curso de Direito
(Direito Urbanístico) e Docente Permanente do Programa de Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos
Humanos. E-mail: jbazolli@uft.edu.br
2 DI SARNO, D. C. L. Elementos do direito urbanístico. Barueri: Manole, 2004.
3 DIAS, M. L. Notas sobre o direito urbanístico: a "cidade sustentável". Jus Navigandi, Teresina. Dis-
ponível em:< http://jus.com.br/revista/texto/1692/notas-sobre-o-direito-urbanistico > Acesso em: 25 set 2011.

497
legal do instituto da desapropriação, autêntica intervenção estatal. Esse
instrumento possibilitaria ao Estado lançar mão de áreas de seu interes-
se, com a retenção de propriedade privada, contrariando, assim, o dito
princípio absolutista4.
Mas somente no final do século xIx a legislação urbanística brasileira
mostrou sua evolução com o registro de parcerias entre o Poder Público
municipal e a iniciativa privada. Tais parcerias ocorreram pela necessidade
de melhorias urbanísticas nas cidades portuárias, chamadas de cidades
de fluxo. Essa intervenção possibilitou a realização de obras públicas
nas cidades pelas empresas privadas que recebiam, em contrapartida,
concessões para a exploração de serviços públicos na área portuária5.
A primeira Constituição Republicana de 1934 ratifica e contempla defi-
nitivamente a função social da propriedade, grafada no texto, de maneira
explícita, no artigo 133, item 17, mas interpretada de maneira implícita
quanto à sua aplicabilidade.

[...] item 17 - É garantido o direito de propriedade, que não poderá


ser exercido contra o interesse social e coletivo, na forma que a
lei determinar, assegurando a defesa prévia e justa nos casos de
desapropriação por necessidade de utilidade pública.

A referida Lei Magna destacou em seu bojo a ordenação urbana e as


atribuições do município. Estabeleceu, assim, sua competência de legislar
sobre os assuntos de interesse local6.
Surgiriam novas intervenções, ainda que modestas, no campo jurídico,
somente na década de 1960, entre elas a implantação da Política Nacional
de Habitação e Planejamento Territorial. Nessa década, os holofotes se
concentraram na aprovação da Constituição Federal de 1967, que instituiu
o planejamento urbano e incluiu a capacidade legislativa do município na
organização urbano-territorial7.
No entanto, mesmo com esse arcabouço à disposição, somente no
final dos anos 1970, nossos legisladores admitiram a existência de consi-

4 DI SARNO, op. cit.


5 DIAS, op. cit.
6 DI SARNO, op. cit.
7 id.,ibid.

498
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

derável parcela da população sem acesso ao mercado formal de solo. A


excessiva informalidade fundiária provocou a criação da Lei nº 6766, de
1979, denominada “Lei de Loteamento” ou “Parcelamento do Solo”, em
que os legisladores inseriram o chamado espaço legal, correspondente a
35% da área total loteada, nos projetos dos empreendimentos, área des-
tinada ao interesse social8.
Surgiu, a partir de então, a cultura de projetos os quais objetivaram
integrar as populações de áreas socialmente excluídas. Todavia, essas
ações de integração dependiam de recursos estatais disponíveis, que iriam
além da especificação cartográfica de zonas especiais ou da destinação
de áreas para a habitação social nos Planos-Diretores. Por esse motivo,
o resultado desse processo não registrou respostas significativas que pu-
dessem refletir na melhoria da qualidade de vida da população excluída9.
A década de 1970 foi marcada pela concepção da cultura de restrições
às atividades imobiliárias e ao uso do solo, sob o auspício do princípio do
“poder de polícia”. Nesse contexto, a cidade assumiu o papel de reserva de
valor de terras, motivo do desenvolvimento de mecanismos de preserva-
ção e de regulação do mercado de solos, voltados aos empreendimentos
imobiliários, e não à regulação social da produção da cidade10.
A norma sobre o parcelamento do solo serviu para segregar, em razão
do lucro e poder, a possível regularização fundiária. A “legalidade urba-
na” provoca a valorização antecipada no mercado de solo, na dinâmica
capitalista do espaço urbano.

O Direito urbanístico através daquilo que se convencionou


chamar “legalidade urbana” é regido por uma racionalidade
instrumental, voltada para a otimização do lucro e do poder no
espaço urbano, produzindo como uma das principais sequelas: a
segregação urbana, pois os processos de decibilidade das cidades
em sua imensa maioria possuem como objetivo apartar os ricos
dos pobres, por isto propugnamos por uma virada paradigmá-
tica no direito urbanístico brasileiro, para que o mesmo busque
a sua fundamentação na vontade discursiva dos cidadãos, com
o objetivo de produzir padrões de desenvolvimento sustentável
das cidades11.

8 DIAS, op. cit.


9 id.,ibid.
10 id.ibid.
11 DIAS, op. cit., p. 224.

499
2. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL DE 1988: UM NOVO MARCO LEGAL

Finalmente, para consolidar o papel relevante da política urbana, a


Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, traz em seu
bojo, pela primeira vez, dispositivos específicos e um capítulo sobre a
temática urbanística.
O artigo 182 da Carta Política estabeleceu que o Plano-Diretor seja o
instrumento técnico legal definidor de cada municipalidade. Esse instru-
mento tem o objetivo de orientar todas as atividades da administração e
dos administrados nas realizações públicas e particulares, que interessem
ou afetem a coletividade.
O mesmo artigo estabeleceu, ainda, que a propriedade urbana deva
cumprir o princípio da função social e atender às exigências fundamentais
de ordenação da cidade, expressas no Plano-Diretor.
O Plano-Diretor é considerado como instrumento básico da política
de desenvolvimento urbano e deve ser executado pelo Poder Público
municipal, a fim de garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais
da cidade.
Para Harada, a função social da propriedade, quando expressa no
Plano-Diretor, evita a especulação imobiliária e possibilita a aplicação das
medidas previstas no artigo 182 da Constituição Federal, regulamentado
pela Lei nº 10.257, de 2001, Estatuto da Cidade.

Intervenções urbanísticas nas periferias da cidade, onde predo-


mina população de baixa renda, podem acarretar valorização
imobiliária de tal ordem, produzindo efeitos não desejados pelo
Poder Público municipal, quais sejam, o deslocamento da po-
pulação humilde para locais cada vez mais distantes do centro
urbano. Nessas hipóteses, cabe ao Poder Público local ficar atento
para evitar a especulação imobiliária, exigindo o cumprimento
da função social da propriedade, expressa na lei do seu plano
diretor, utilizando-se, gradualmente, das medidas previstas no
§ 4º do art. 182 da CF12.

12 HARADA, K. Direito urbanístico: Estatuto da Cidade: Plano Diretor Estratégico. São Paulo: Ndj, 2004, p. 79.

500
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Segundo Mukai 13, o artigo 183 da Carta Magna reforçou e consolidou


a questão do princípio da função social da propriedade, quando instituiu
a chamada reforma urbana. Criou-se a figura da usucapião especial que
possibilita à pessoa que detém a posse de imóvel urbano, com área de
até duzentos e cinquenta metros quadrados, pelo período de cinco anos
ininterruptos, não seja molestada, além de lhe facilitar a aquisição de seu
domínio por meio dessa figura jurídica. A usucapião especial é a aquisição
de imóvel pela posse e uso de forma pacífica.
Entende Harada que o artigo 145 da Carta Política assumiu importante
papel na legislação urbanística brasileira, pois aborda o princípio da justa
distribuição do ônus e dos benefícios, referenda o desdobramento do prin-
cípio da igualdade de todos perante a lei e especifica questões relativas à
própria valorização imobiliária.

A execução de qualquer plano urbanístico, a reurbanização de um


bairro deteriorado, por exemplo, traz benefícios à população em
geral. Porém alguns serão direta e especificamente beneficiados
com a execução de obras e serviços públicos, com a valorização
de seus imóveis. Outras terão suas propriedades desvalorizadas
pela ação do Poder Público. As valorizações diretas e específicas
devem ser compensadas mediante pagamento da contribuição de
melhoria por parte dos beneficiados. As propriedades esvaziadas
de seu conteúdo econômico devem ser indenizadas mediante
regular processo expropriatório14 (HARADA, 2004. p. 97).

Mesmo com o avanço da legislação urbanística, permitida pela Cons-


tituição de 1988, foram verificadas, durante a Assembleia Constituinte,
diversas ações de lobbies do mercado imobiliário, que dominaram,
principalmente, a Subcomissão da Política Urbana e Transportes. Com
o intuito de pontuar algumas intervenções, no artigo 182 do capítulo
de Política Urbana, foi acrescida, na redação do texto final, a condição
de o Plano-Diretor ser o principal instrumento para definição da função
social da cidade. Esse artigo foi vinculado a um projeto de lei para a
sua regulamentação, que demorou 11 anos para sua aprovação e ainda

13 MUKAI, T. O Estatuto da Cidade; anotações à Lei. São Paulo: Saraiva, 2001.

14 Harada, op. cit. p. 97.

501
depende, para sua eficácia plena, da aprovação dos Planos-Diretores
pelas Câmaras de Vereadores15.
No entanto, nem todos os municípios brasileiros, que por definição
legal seriam obrigados a aprovar os seus Planos-Diretores, elaboraram o
documento. Os municípios que não cumpriram a lei, constitucionalmente,
ficaram impossibilitados de aplicar todos os instrumentos do Estatuto da
Cidade. Alguns destes, por previsão legal, somente poderão ser aplicados
se estiverem definidos no Plano-Diretor, substancialmente a definição
da função social da cidade e da propriedade, objeto para a aplicação no
ordenamento do espaço urbano.

3. A LEI Nº 10.257, DE JULhO DE 2001,


“O ESTATUTO DA CIDADE”

Após longa tramitação no Legislativo Federal, exatamente 11 anos,


foi aprovada a Lei nº 10.257, de 2001, chamada de “O Estatuto da Cida-
de”, que serviu para regulamentar o artigo 182 da Constituição Federal
do Brasil, de 198816.
O Projeto de Lei nº 5.788, de 1990, ao ingressar no Senado Federal,
recebeu o nº PL/181, de 1989, por ser um aperfeiçoamento do projeto
pioneiro de nº 2.191, de 1989, que originou o Estatuto da Cidade17.
Esse trabalho, elaborado estrategicamente pelo Senador Pompeu de
Souza, foi aprovado pelo Senado Federal em julho de 2001. Por não ser
comum o ingresso de projetos de lei pelo Senado Federal, acabou por
desarticular as ações dos empresários imobiliários que, após a aprovação
da referida lei, ficaram numa posição defensiva18.
Para Quinto Jr., o Estatuto da Cidade, se comparado com as experiências
europeias, estaria, ao menos, com um século de atraso, considerando-se

15 QUINTO JUNIOR, L. de Pi. Nova legislação urbana e os velhos fantasmas. São Paulo v.17, nº 47,
2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S0103-40142003000100011&
lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 5 set 2011.
16 id.,ibd.
17 QUINTO JR, op. cit.
18 id. ibid.

502
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o uso dos instrumentos urbanísticos, o qual possibilitaria regular social-


mente o mercado imobiliário e estabelecer mecanismos de compensação
social por meio da política urbana.
O Estatuto da Cidade surgiu como uma nova lei para ordenar o cres-
cimento do setor imobiliário e estabelecer as diretrizes gerais da política
urbana nacional. Tem a finalidade de regulamentar as questões da orde-
nação do território e da participação comunitária, e objetiva promover
a inclusão social. Também estabelece as regras referentes ao uso, à
ocupação do solo urbano e ao controle da expansão do território urbano,
e propõe a definição da função social da cidade e da propriedade, a ser
especificada no Plano-Diretor Participativo.
A Lei coloca à disposição, no seu capítulo segundo, ferramentas e
instrumentos de Política Urbana para uso contra os abusos ao direito à
propriedade, como a especulação imobiliária derivada da retenção fun-
diária. A especulação imobiliária objetiva a valorização viciosa do imóvel
e, em regra, é provocadora dos vazios urbanos nas regiões centrais das
cidades. Esse procedimento de retenção fundiária, pela nova Lei, poderá
ser punido com o Imposto Predial Territorial Urbano progressivo, pelo fato
de a propriedade não cumprir a função social.
Entre as medidas indutoras para cumprimento da função social da pro-
priedade, destacam-se: a possibilidade de desapropriação do imóvel não
utilizado ou subutilizado; o usucapião de imóvel urbano; a outorga onerosa
do direito de construir; as operações consorciadas, com estabelecimento
de parceria entre o setor público e privado; a transferência do direito de
construir; o impacto de vizinhança; a preempção; e o direito de superfície.
O Estatuto da Cidade dispõe que a municipalidade fixará as condições
e prazos para o cumprimento da obrigação de parcelar, edificar ou utilizar
terra urbana mantida em ociosidade, assegurados prazos não superiores
há um ano para protocolização de projeto de parcelamento, utilização ou
construção. O contribuinte tem dois anos, a partir da aprovação do pro-
jeto, para a utilização, parcelamento ou dar início às obras de edificação.
É importante notar que a norma legal ressalta a obrigação de utilização

503
da terra urbana de forma independente do parcelamento ou edificação.
Não cumpridas as obrigações estabelecidas, o município procederá à
aplicação do Imposto Predial e Territorial Urbano progressivo no tempo,
mediante a majoração da alíquota em até 3% anualmente, pelo prazo de
cinco anos consecutivos, respeitado o limite máximo de 15%.
Nessa cobrança do imposto, poder-se-á aplicar a alíquota máxima de
15% ou, se assim entender a prefeitura, proceder à desapropriação-sanção
do dito imóvel, obviamente com a obrigação do seu uso social.
Em caso de o poder municipal optar pela desapropriação-sanção do
imóvel, deverá pagar o valor da indenização, que corresponde ao valor
venal do imóvel (valor encontrado na planta de valores genéricos e utili-
zado para a cobrança do imposto predial), na forma de títulos públicos. O
avanço na sistemática desse pagamento pode ser verificado na previsão
legal que possibilita a dedução da valorização do imóvel, em função de
obras realizadas pelo Poder Público no local (pavimentação, iluminação
pública, rede de esgoto etc.). Portanto, encontrado o valor correspondente
à indenização do imóvel, caberá a dedução da valorização atribuída entre
o período da certificação do recebimento da notificação ao proprietário
que impôs o aproveitamento do imóvel e a efetiva desapropriação.
Nesse viés, foi considerada também como grande avanço do Estatuto
da Cidade a determinação da dedução, no pagamento da desapropriação-
-sanção, de quaisquer expectativas de ganhos, lucros cessantes e juros
compensatórios, relativos ao imóvel desapropriado.
Com essa medida, fica caracterizada a expropriação da “mais valia”
(a diferença entre o valor da mercadoria produzida e a soma do valor dos
meios de produção e do valor do trabalho, que seria a base do lucro no
sistema capitalista)19, objeto do lucro resultante da valorização do imóvel,
por conta de melhorias na localidade onde está inserido, realizadas pela
prefeitura e pagas por todos os contribuintes. Dessa maneira, a destina-
ção dessa valorização, atualmente apropriada pelo agente privado, toma

19 Karl Marx. O Capital, Volume I, Parte III, Capítulo VII, Processo de Trabalho e Processo de Produção de
Mais Valia, Secção 2, O Processo de Produção de Mais Valia.

504
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

outra direção, vai para os cofres públicos municipais e retorna para os


contribuintes em forma de prestação pública.
Em análise aos instrumentos instituídos pelo Estatuto, pela impor-
tância da sua influência na gestão da cidade, destaca-se o direito de
preempção, que, conceitualmente, equivale ao direito de preferência pelo
Poder Público municipal para aquisição de imóvel objeto de alienação
onerosa entre particulares. É permitida sua aplicabilidade somente em
áreas previamente circunscritas por lei municipal, instrumento que se
vincula obrigatoriamente à necessidade de áreas pelo Poder Público para
regularização fundiária, execução de programas e projetos de interesse
social, implantação de equipamentos urbanos e comunitários, proteção
ambiental e outros fins similares.
O Poder Público dispõe também da outorga onerosa, outro instrumento
que já vem sendo colocado em prática em diversas localidades brasileiras,
regulamentado por meio de lei municipal. Esse instrumento, conhecido
como outorga onerosa do direito de construir, impõe a prestação de con-
trapartida por quem exercer o direito de construir acima do coeficiente de
aproveitamento básico adotado pelo Plano-Diretor. O Plano-Diretor poderá
propor um único coeficiente para toda a cidade (integral) ou especificar
coeficientes diferenciados para áreas específicas da cidade (parcial).
Finalmente, considerado como instrumento contemporâneo, por sua
busca de equilíbrio ao meio ambiente, o Estudo de Impacto de Vizinhança
(EIV) foi inspirado no estudo prévio de impacto ambiental, mas que dele
se diferencia por sua aplicação. Esse instrumento democratiza as decisões
locais e possibilita a realização de consulta pública como requisito para
as licenças urbanísticas e edilícias municipais; acima de tudo, centra-se
em análise de questões essencialmente urbanas, quando da reprodu-
ção do espaço, como o adensamento populacional; o impacto sobre os
equipamentos urbanos e comunitários; a geração de tráfego; a demanda
por transporte público; e outras questões que afetem o meio ambiente
artificial e natural.
O Estatuto da Cidade cria instrumentos de gestão e sugere diretrizes

505
norteadoras para ações concretas relativas à política urbana. Por previsão
constitucional e desse novo marco regulador, ficaram instituídas garan-
tias ao direito às cidades sustentáveis, que devem ser entendidas como
o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-
estrutura urbana, ao transporte urbano coletivo, aos serviços públicos
com qualidade, ao trabalho e ao lazer. Para fortalecer a gestão pública, o
Estatuto propõe um conjunto de diretrizes estabelecidas por cooperação
entre o Poder Público e a iniciativa privada e demais setores da sociedade
no processo de urbanização; a justa distribuição dos benefícios e dos ônus
do processo de urbanização, com a finalidade de dar sustentabilidade às
cidades. Esse processo objetiva sensibilizar a geração presente para a
preservação do meio ambiente como garantia do uso do espaço urbano
também pelas gerações futuras.
Segundo Arruda, “[...] o Estatuto da Cidade não vai, por si só, garantir
cidades mais justas. A nova lei traz o instrumental cirúrgico, que pode ser
bem usado, ou não, de acordo com a habilidade do cirurgião, no caso as
municipalidades”20. O grande risco desse instrumental regulador é de se
tornar “lei que não pegou”.

4. PLANO-DIRETOR

A velocidade do crescimento das cidades resultou na falta da acomoda-


ção espacial da população. Nesse processo, o fato é que a solução para a
questão espacial com o uso de processos arcaicos, como os planejamentos
de gabinete e decisões à custa de interesses da classe dominante, mostrou-
-se ineficaz. Percebe-se, nesse contexto, haver a necessidade de se indicar
a construção de um novo paradigma, com base no planejamento urbano
que objetive o desenvolvimento sustentável das cidades.
O Plano-Diretor efetivamente criado pela Constituição Federal, de 1988,
emergiu da dialética “[...] ocupação do espaço e indissociabilidade entre o

20 ARRUDA, I. Estatuto da Cidade, uma Conquista histórica. Câmara dos Deputados. Série Separatas
de Discursos, pareceres e projetos. Brasília: Centro de Documentação e Informação, Coordenação de Publi-
cações, 2002, p. 597.

506
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

urbano e rural”. Conhecido como plano estratégico, por traçar os objetivos


e fixar seus prazos, estabelecer as atividades e definir sua execução; e como
diretor, por fixar as diretrizes do desenvolvimento urbano do Município21.
O Plano-Diretor deve considerar, para sua concepção, o município
como um todo, traçar os objetivos para a área urbana e rural; essencial-
mente deve definir a função social da propriedade e ser concebido a partir
de ampla participação popular.
A cidade, afinal, atinge o patamar constitucional. A Carta Magna, de
1988, prevê, em seu capítulo que trata da política urbana, a obrigatoriedade
da elaboração, pelos municípios, do Plano-Diretor Participativo e a sua
remessa à casa Legislativa Municipal, para a aprovação, efetivamente se
transformando em Lei Urbanística Municipal22.
Este foi o motivo que levou 1.700 municípios brasileiros a elaborarem
os seus Planos-Diretores, em 2006, para, em seguida, encaminhá-los às
respectivas Câmaras Municipais, para sua aprovação.
O Estatuto da Cidade, mesmo após 10 anos de vigência, ainda se
mostra em fase de discussão hermenêutica. Embora tenha surgido como
instrumento que regulamenta os preceitos constitucionais que tratam da
temática urbana, não apresentou ainda resultados efetivos, até pela depen-
dência da aprovação dos Planos-Diretores nos municípios que definirão, de
maneira mais específica, os instrumentos utilizados pela municipalidade
e as punições aplicadas aos especuladores imobiliários.
A questão central emergida do bojo desse novo conjunto de leis é o
contradito ao paradigma dominante sobre a propriedade absoluta. Nesse
aspecto, o debate é remetido à titularidade do domínio dos imóveis, exer-
cido por membros da própria comunidade onde estes se inserem. Dessa
maneira, a atitude dos próprios membros da comunidade, na relação
do uso de suas propriedades, deveria ser cidadã, o que não condiz com
a atividade especulativa de retenção de terrenos, resultante dos vazios
urbanos das cidades.

21 SILVA, J. A. da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 139.
22 LIRA, R. P.. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

507
Como explica Borges, “[...]o titular do domínio tem a obrigação com sua
comunidade, ou seja, tem de cumprir na condição de titular do domínio a
função social da propriedade”23. Esta é destinada a servir a todos, embora
pertença a um só. Assim, verifica-se que a propriedade privada, com base
individualista, cedeu definitivamente o espaço para a propriedade com
finalidade social.
A propriedade somente se justifica quando cumpre sua função social,
hoje por imposição legal, definida no Plano-diretor24.
Nesse contexto, a essência da discussão é a questão epistemológica
da cidadania enquanto essência da cidade.
Os antigos planejamentos urbanos concebidos em gabinete, sem
participação popular e tendo como resultado cartas temáticas delimi-
tadoras dos espaços de uso e ocupação do solo, deram margem a uma
nova concepção didática de formulação, ou seja, o estabelecimento de
um novo paradigma. Esse novo paradigma possibilita que a população
participe efetivamente da discussão dos Planos-Diretores e influencie no
seu resultado; como consequência, observam-se nos dias atuais o avanço
para a politização da massa, a reafirmação da cidadania e o respeito à
função social da cidade25.

5. NORMA AMBIENTAL URBANA

Para tratar de normas ambientais brasileiras, é necessário que se


faça uma breve introdução sobre a Agenda 21 Global. Referida Agenda
é o resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, realizada em 1992 na cidade do Rio de Janeiro, e traduz
a tensa relação entre a espécie humana e a natureza, na sua pretensão de
buscar o equilíbrio por meio do crescimento econômico duradouro, tendo
como espinha dorsal o desenvolvimento sustentável. Esse documento con-
sensual, concebido num processo que durou cerca de dois anos, recebeu

23 BORGES, P. T. Institutos Básicos do Direito Agrário. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 8.
24 HARADA, op. cit.
25 id. ibid.

508
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

contribuição de governos e de instituições da sociedade civil de 179 países.


A Agenda 21 Brasileira, resultante da global, trata da questão dos
vazios urbanos nas cidades. Enfoca o paradoxo entre a necessidade de
áreas verdes nas cidades, em especial nas zonas densamente ocupadas, e
a otimização do uso da infraestrutura existente nas cidades, pelo elevado
custo da urbanização e impacto ambiental, ou seja, propõe o debate acerca
da cidade compacta e dispersa.
Na abordagem ambiental sobre o meio urbano brasileiro, destaca-se
o crescimento urbano horizontal, resultado da dispersão da cidade pela
partilha de espaços de antigas chácaras, sítios e fazendas, ao redor da
cidade, para fins especulativos, estabelecendo, por analogia, uma mancha
de óleo em expansão urbana.
O uso desse mecanismo de expansão, com parcelamento de glebas
situadas em posições descontínuas da mancha urbana, ou seja, a quilô-
metros de distância da área central, em locais anteriormente utilizados
para funções agrárias, termina por eliminar essas funções iniciais, que
respondem pelo crescimento e riqueza da própria cidade.
Embora se constate uma tendência global de redução do crescimento
demográfico, os diagnósticos que abordam o meio urbano não são ani-
madores, o último censo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
constatou que dos 190.732.694 brasileiros, 84,35% vivem nas cidades26.
Verifica-se que no período de setenta anos, entre 1940 a 2010, o mesmo
Instituto constatou que a população urbana passou de 12,8 milhões para
160 milhões de habitantes. Projeções não mostram retrocesso ou estabi-
lidade nesse processo; ao contrário, constatam que a população urbana
no país atingirá a cifra de 88,94% em 202527. Outro aspecto relevante é
o fato de que 50% dessa população viverão em áreas de ocupações irre-
gulares ou clandestinas28. O crescimento urbano se detecta também pelo

26 IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Primeiros resultados do Censo 2010. Disponível
em: < http://www.censo2010.ibge.gov.br/>. Acesso em 24 set 2011.
27 PNUD, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Relatórios de Desenvolvimento hu-
mano. Disponível em: < http://www.pnud.org.br/rdh/>. Acesso em 20 set 2011.
28 MARICATO, E. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Vozes, 2001.

509
número de municípios criados nesse mesmo período, isto é, foram de
1.574 para 5.565, trazendo problemas, como crescimento desordenado;
ausência de planejamento; carência de recursos e serviços; obsolescência
da infraestrutura e dos espaços construídos; padrões atrasados de gestão
e agressões ao ambiente, e estão longe de serem solucionados.
Historicamente, após a Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento, em 1972, realizada em Estocolmo,
quando a participação brasileira foi duramente criticada, desenvolveu-
-se a legislação ambiental brasileira. Como resultado dessa participação,
criaram-se, no país, a Secretaria Especial do Meio Ambiente e algumas
normas ambientais.
No entanto, efetivamente nada de significativo ocorreu antes do início
da década de 1980, somente nessa ocasião estudos buscaram consolidar o
arcabouço legal que tratava das questões ambientais e estava fracionado
na Política Nacional do Meio Ambiente. A Lei nº 6.938, de 1981, foi criada
em decorrência do clamor dos movimentos ecológicos e por imposição
internacional de políticas de meio ambiente.
O Estado, na década de 1980, acreditava, equivocadamente, que po-
deria gerir as desigualdades sociais e controlar a degradação do meio
ambiente, em conturbada caminhada que resultou na criação e extinção
de secretarias e ministérios29.
A consciência ambiental se fortaleceu finalmente a partir da Consti-
tuição Federal de 1988, que, em seu artigo 225, prevê os princípios gerais
em relação ao meio ambiente, e estabelece punições exemplares, penais
e administrativas, para as condutas e atividades lesivas ao meio ambien-
te, para a pessoa física, e, como grande novidade, estende a punição à
pessoa jurídica.
Cabe ressaltar que a Política Nacional de Meio Ambiente, a partir da sua
edição, em 1981, com sua base política apoiada na legislação ambiental
internacional, foi adaptada várias vezes e recepcionada em parte pela

29 BANUNAS, I. T. Poder de polícia ambiental e o município. Porto Alegre: Sulina, 2003.

510
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

referida Constituição Federal30.


A Legislação Ambiental de 1981, com o respaldo da Constituição
Federal de 1988, instrumentalizou a esfera municipal, que, integrada ao
Estado e à União, passou a deliberar sobre as questões relacionadas ao
meio ambiente, como a realização de estudos de impacto ambiental e da
regulamentação de áreas de relevante interesse ambiental; instrumentos
estes que incidiam mais sobre os grandes projetos e empreendimentos.
Em época recente, e de maneira modesta, os governos municipais
vêm criando seus órgãos ambientais, em casos sem status de secretaria
e, muitas vezes, agregados aos setores desarticulados com a temática
ambiental, e, ainda, boa parte com abrangência nas áreas de limpeza
pública e de parques e jardins, com pouca interface com o planejamento
físico-territorial das cidades, propriamente dito.
O município, no uso da sua atribuição de gestor ambiental, não tem
conseguido sequer transpor a grande barreira de controlar a expansão ur-
bana, ora por omissão, pela falta de aparato para manter uma fiscalização
rigorosa, e, na maioria das vezes, por pressão do mercado imobiliário, no
sentido de formar estoque de áreas urbanizáveis.
Os conflitos advindos do avanço do processo de urbanização, quando
ocorrem sobre as áreas rurais no entorno das cidades, com relevante
frequência sobre terras férteis, obviamente interferem na economia local,
pela influência nas atividades agrícolas produtivas, e são provocados
pelos enfrentamentos com o mercado imobiliário. Em outras situações,
quando esse avanço atinge áreas ambientalmente frágeis, não recomen-
dadas para usos urbanos, em especial o parcelamento para fins habi-
tacionais, são provocados pelos enfrentamentos com as classes menos
favorecidas, que estão nestes locais justamente por não haver interesse
pelo mercado imobiliário.
Nesse processo, não há controle sobre os locais agricultáveis nas áreas
ambientalmente frágeis. A expansão da cidade torna locais agricultáveis
em espaços vazios com infraestrutura no interior do perímetro urbano

30 id. ibid.

511
e possibilita assentamentos em áreas ambientalmente frágeis que não
oferecem condições mínimas para a sobrevivência das pessoas insta-
ladas nesses locais. Essa condição é provocada pela baixa capacidade
de suporte do Poder Público em atender demandas por infraestrutura e
serviços públicos.
Para integrar o meio ambiente natural às questões urbanas, criou-se,
em 2003, o Ministério das Cidades, que tem como proposta lançar um olhar
ambiental no tratamento da questão habitacional do país, e considerar
o ambiente natural como parte integrante do desenvolvimento urbano,
garantindo à população o direito à infraestrutura, mobilidade e transporte
coletivo, equipamentos e serviços urbanos e sociais. No entanto, o seu
objetivo precípuo é o direito à cidade sustentável e à inclusão da sociedade
nas decisões governamentais, com a criação de instâncias de participação
popular por meio de conselhos.

6. PROBLEMAS E OBSTáCULOS PARA A


REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA URBANA NO BRASIL

Os setores públicos tratam a informalidade como exceção e criam


programas isolados e distintos de regularização fundiária, e, com isso,
não integram o contexto das cidades. Os títulos dos imóveis ainda são
objeto de troca de votos, portanto, a sua dinâmica de relação com os
programas fundiários estão ligados a situações políticas, tanto temporais
(épocas eleitorais), quanto publicitária (entrega com objetivo quantitativo).
Não há conjunção de programas, como emprego e renda, saúde e outros,
para garantir a permanência da população em condições dignas de ha-
bitação; assim, automaticamente as áreas regularizadas são segregadas.
Os programas se colocam muito mais como protetores institucionais do
que como respostas às demandas sociais. A insistência na limitação dos
direitos nos programas de regularização gera novas informalidades. Não
há cadastramentos, criação de mecanismos de recuperação de custos e de
valorização; enfim, as pessoas são amontoadas em regiões segregadas.

512
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A visão histórica da situação denota que esse tipo de ocupação em


regiões segregadas é parte de uma estratégia da população, haja vista
existir menor risco de remoção e probabilidade maior de ascender aos
serviços públicos e aos benefícios da regularização da posse.
Sabe-se que a regularização, regra geral, fomenta o mercado imobi-
liário informal, possibilitando aos beneficiários dos programas usarem o
capital realizado, resultado da venda do imóvel, para sua sobrevivência ou
para outras finalidades. Esse fenômeno é constatável em toda a América
Latina, pois não há controle do Estado, pós-regularização. Assim, caberia
à municipalidade criar mecanismos para assegurar a permanência das
famílias nos locais regularizados e uma fiscalização rígida, para dificul-
tar a transferência dos imóveis, condições não constatadas na práxis da
execução dos programas de regularização fundiária urbana.
Em todo o País, a tolerância pelos órgãos fiscalizadores fomenta ocu-
pações descontroladas nas áreas urbanas, embora seja de conhecimento
geral que o tempo de permanência nas ocupações configure direitos. Ainda
assim, o governo, nas três esferas de poder, não tem conseguido exercer
competente controle sobre o território.
Como enfrentamento ao passivo existente, responsável pela cidade
ilegal e excludente, a regularização fundiária passou à pauta nacional,
fundamentada no direito subjetivo gerado pelas ocupações que é invocado
por essa nova ordem jurídica urbanística, que passou a se consolidar a
partir do efetivo reconhecimento ao direito de moradia.
A abordagem do tema habitacional remonta ao artigo 25 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), mas a Emenda Constitu-
cional de nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que modificou o artigo 6º da
Constituição Federal; o Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257, de 2001 –, e a
Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001, permitiram alguns
avanços na ordem jurídica brasileira aplicável ao tema fundiário, ou seja,
essencialmente esses institutos reconheceram o direito de moradia como
direito fundamental.
Ressalte-se, porém, que o Estatuto da Cidade, como precursor para o

513
avanço dos debates fundiários urbanos, por tratar das questões urbanas
em várias dimensões, consolidou a noção da função social e ambiental, da
propriedade e da cidade, sendo reconhecido como um marco conceitual
jurídico-político para a aplicação do Direito Urbanístico.
Contudo, ainda não há amplo entendimento do impacto dessa nova
ordem jurídico-urbanística na gestão das cidades. A regularização fun-
diária, por exemplo, é vista como ação discricionária do Poder Público,
e não como direito subjetivo do cidadão. Portanto, é salutar a estratégia
da criação de um programa específico pelos municípios, que trate desse
importante tema.
Convém salientar que o país conquistou avanço na urbanização das
ocupações irregulares, mas os procedimentos esbarram na regularização
jurídica; os resultados na emissão de documentos garantidores da posse,
quando comparados com a necessidade da população, são ínfimos, ante
a enorme burocracia de a legislação urbanística e de registro imobiliário
ser elitista.
Importantes ingredientes ampliam as dificuldades para a solução das
questões fundiárias urbanas, entre elas a superação de um falso conflito
existente entre a preservação ambiental e a regularização fundiária; a
falta de percepção da indissociabilidade entre o direito e a gestão pública,
e outros.
Nesse viés, é necessário o enfrentamento do problema fundiário com
a construção de argumentos consistentes que validem essa nova ordem
jurídica, por meio da pacificação da doutrina e jurisprudência no campo
do Direito Urbanístico.
Os processos de regularização fundiária devem se preocupar em
centrarem-se na garantia ao exercício do direito de moradia, isto é, com
o olhar na ampliação do marco legal que verse sobre o tema.

514
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Tabela 1: Quadro geral da legislação relacionada


à regularização fundiária urbana

515
516
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

517
Tabela 2: Instrumentos para a regularização fundiária

518
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudo do Ministério das Cidades (2009), que considerou a soma de


famílias de baixa renda vivendo em domicílios irregulares com inadequa-
ções de infraestrutura básica, constatou um quadro fundiário caótico que
apresenta 5,5 milhões de pessoas que precisam de moradia, delas 83,5%
na área urbana, e mais de 13 milhões de domicílios irregulares, equiva-
lentes a 44% dos domicílios do País. Entretanto, a informação não é exata,
e o quadro pode ser muito superior se se considerar que existem vários
assentamentos irregulares com infraestrutura instalada, não computados
no estudo. Apesar da expressividade dos números, esses dados, no en-
tanto, apresentam um panorama da irregularidade, sem muita precisão,
especificidades, e sem a visibilidade que a questão merece. De qualquer
maneira, trata-se de um problema que atinge todo o país e reflete até hoje
a falta de políticas públicas de regularização fundiária e habitacionais,
principalmente voltadas para a população de baixa renda.
A irregularidade fundiária é uma questão estrutural das cidades bra-
sileiras, caracterizada por um desenvolvimento urbano desordenado.
Fala-se, com razão, na dimensão acentuada do “problema” da irregu-
laridade no Brasil, chegando-se a percentuais que variam em torno de
40 a 70% do parque imobiliário existente. Esses números, entretanto,
devem ser utilizados de forma cuidadosa, já que se referem a situações
e a problemas diferenciados.
O termo irregularidade estabelece uma “definição pela negação”31, ou
seja, a irregularidade se define por tudo que não é regular. Isso dificulta a
identificação do objeto a ser estudado, pois este, num primeiro momento,
é somente um ‘fato’ que está em desacordo com a legislação ou com os
procedimentos de controle urbanísticos. Neste momento, definir a irre-
gularidade pressupõe uma classificação, ou uma tipologia, que permita
orientar a análise, considerando-se as diferenças significativas entre as

31 CARDOSO, A.L. Irregularidade urbanística: questionando algumas hipóteses. Belo Horizonte: Encontro
Nacional da ANPUR, 10, 2003.

519
formas de irregularidade encontradas. Essa classificação, todavia, pode,
num primeiro momento, ser meramente descritiva, mas deve, num se-
gundo momento, dialogar com as questões subsequentes (população
afetada, causas e processos de produção), de forma a se construir um
modelo com capacidade explicativa dos fenômenos e com capacidade
de orientar a ação política.
A regularização fundiária poderia contribuir para a inserção plena do
cidadão à cidade; viabilizar a sustentabilidade da cidade, porque reduziria
os passivos urbanísticos e ambientais, além de propiciar a transformação
da economia informal em economia legal.
A política urbana deveria focar a regularização fundiária, mas ter meca-
nismos de controle da irregularidade para cortar o círculo vicioso que gera
elevado dispêndio ao erário municipal na posterior correção do problema.
Outro aspecto relevante nas questões fundiárias é a eficácia plena
conferida às normas e princípios do Direito Urbanístico, fator que atribui
segurança jurídica na aplicação dos instrumentos que possibilitem o
controle urbano.
A Legislação Urbanística da Cidade Legal desconhece a cidade real que
mostra os conflitos dessa incompatibilidade posta. Com a flexibilização
dessas normas, haveria o reconhecimento da pluralidade e diversidade
da produção social.
O caminho para pacificar esses conflitos nasce da relativização da
propriedade com a utilização dos meios legais para a garantia da posse,
além do domínio. Importante pontuar que a regularização fundiária requer
a análise do caso concreto, pois existem diversas possibilidades para a
solução do problema.
Embora se detecte avanço no tratamento do tema fundiário, pode-se
afirmar que não há muito a se comemorar pelos 10 anos da promulgação
do Estatuto da Cidade. Poder-se-ia citar o exemplo da aplicação da edi-
ficação compulsória e IPTU progressivo no tempo, um dos importantes
instrumentos para o controle da especulação imobiliária, que tem efeito

520
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

insignificante devido à elasticidade nos procedimentos burocráticos, que


pode chegar, entre a notificação inicial e a desapropriação, a 8 anos, re-
fletindo, durante esse período, em penalidade insignificante, estimando-
-se o valor máximo de 15% sobre o valor venal do imóvel, considerada
muita branda em relação à valorização do imóvel ao se comparar com o
mercado imobiliário.
Constata-se, na prática, que os municípios não estão aplicando os ins-
trumentos desse novo arcabouço jurídico ante a forte influência política
orquestrada pelo mercado imobiliário, e em razão do conservadorismo do
judiciário, ainda reticente em relação relativismo do direito à propriedade.

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putados. Série Separatas de Discursos, pareceres e projetos. Brasília: Centro de
Documentação e Informação, Coordenação de Publicações, 2002.
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lina, 2003.
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1994.
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sil. Brasília. DF: Senado Federal, 1988.
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Censo 2010. Disponível em: < http://www.censo2010.ibge.gov.br/>. Acesso em
24 set 2011.
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521
cesso de Produção de Mais Valia, Secção 2, O Processo de Produção de Mais Valia.
LIRA, R. P.. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
MARICATO, E. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis:
Vozes, 2001.
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Acesso em 20 set 2011.
QUINTO JUNIOR, L. de Pi. Nova legislação urbana e os velhos fantasmas. São
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< h t t p : / / w w w. s c i e l o . b r / s c i e l o . p h p ? s c r i p t = s c i _ a r t t e x t & p i d
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SILVA, J. A. da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

522
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Perspectivas e impasses para


regulamentação da ZEIS nº.114-Centro
Histórico de Salvador/BA

Aparecida Netto Teixeira1


Elisamara de Oliveira Emiliano2

INTRODUÇÃO

A promulgação da Constituição Federal de 1988, fruto do processo


de redemocratização da sociedade brasileira, introduziu o princípio da
função social da cidade, regulamentado pelo Estatuto da Cidade, em 2001.
A partir daí, os municípios passaram a dispor de um conjunto de instru-
mentos, que foram, em sua maioria, incorporados aos respectivos planos
diretores, com vistas ao cumprimento da função social da propriedade
urbana. Desses, destaca-se a Zona Especial de Interesse Social (ZEIS)
que tem como objetivo principal garantir o direito de permanência dos
moradores no seu local de moradia, com a realização da regularização
urbanística e fundiária dos respectivos assentamentos pelo poder público,
mediante processo participativo, com vistas à melhoria das condições
de habitabilidade.
Deve-se destacar que a competência para a implementação das ZEIS
é municipal, devendo constar do Plano Diretor ou legislação específica, o
qual deverá contemplar os planos específicos, abrangendo ações de regu-
larização fundiária, de regularização urbanística e de mobilização social.

1 Doutora em Estruturas Ambientais Urbanas pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo
– FAUUSP; Profa. Mestrado em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social da Universidade Católica
de Salvador – UCSAL; Coordenadora do Grupo de Pesquisa do CNPq “Gestão Democrática da Cidade”; cida.
netto@hotmail.com.
2 Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia – FAUFBA; Mestre em Urbanismo
pela Universidade Católica de Campinas PUCCAMP, elisamara.emiliano@gmail.com.

523
Em Salvador, apesar da atuação do poder público municipal ainda ser
bastante incipiente no enfrentamento desse problema, algumas ações
pontuais importantes vem sendo empreendidas, das quais destaca-se a
regulamentação da ZEIS nº. 114, pelo seu caráter emblemático referente
à previsão de habitação, e particularmente da habitação social, no Cen-
tro Histórico de Salvador, associado, nesse caso, a uma forte atuação
da comunidade.
Nesse contexto, o objetivo do presente trabalho é proceder a uma
reflexão acerca do recente processo de regulamentação da ZEIS nº. 114,
como uma importante ação pública em andamento, a partir de dois eixos
principais. Em primeiro lugar, aborda-se-á as prerrogativas legais relacio-
nadas a essa temática, qual seja a Constituição Federal (1988), o Estatuto
da Cidade (2001) e o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador
(PDDU/2008). Em segundo lugar, será abordado especificamente as ações
públicas relacionadas ao processo de regulamentação da referida ZEIS,
a partir da análise dos relatórios municipais elaborados, que abrangem
a complementação de ações relativamente à regularização urbanística e
fundiária, bem como ao plano de ação social.
Nesse sentido, o presente artigo visa contribuir com a discussão acerca
do processo de regulamentação das ZEIS no Brasil, e em particular em
Salvador, com ênfase na ZEIS nº. 114, a qual, caso se concretize, poderá
se constituir em uma referência emblemática em âmbito nacional, com
vistas à conciliação entre preservação do patrimônio histórico e direito
à moradia.

1. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988),


O ESTATUTO DA CIDADE (2001) E O INSTRUMENTO
DE ZEIS NO BRASIL E EM SALVADOR/BA

Na década de 1980, o processo de redemocratização brasileiro foi con-


solidado com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que conferiu
matizes de direito público na maioria dos institutos de direito privado.

524
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Sendo assim, decorre da Constituição a necessidade de haver limitações


ao direito de propriedade, as quais “consistem nos condicionamentos que
atingem os caracteres tradicionais desse direito, pelo que era tido como
direito absoluto, exclusivo e perpétuo”. (SILVA, 2010, p. 279).
O art. 182 da CF estabelece ser de competência do poder público mu-
nicipal a execução da política de desenvolvimento urbano, devendo ser
realizado conforme diretrizes gerais fixadas em lei. Ainda com referência
ao citado artigo, são objetivos da política urbana ordenar o pleno desen-
volvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes. Já o art. 183 garante o direito de propriedade ao possuidor de
imóvel urbano de até 250 m², que o utiliza para moradia há cinco anos, de
modo ininterrupto e sem oposição, e que não tenha outro imóvel. Ainda
nesse sentido, a Medida Provisória n° 2.220/2001, regulamentou a aplica-
ção do instituto da concessão de uso especial, tratado no § 1° do art. 183.
Embora houvesse urgência da regulação desses dispositivos com o in-
tuito de possibilitar uma mais eficiente e facilitada regularização fundiária
das ocupações informais existentes em todo o Brasil, e em detrimento da
pressão política exercida pelo Fórum de Reforma Urbana, apenas após 11
anos o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) foi aprovado no Congresso
Nacional. Após a aprovação os municípios puderam dispor dos institutos
previstos na Constituição, uma vez que muitos dependiam de regulamen-
tação da lei federal. Nesse sentido, o governo federal modificou e inovou,
retomando as ações relacionadas à promoção da política habitacional em
âmbito nacional, o que foi fortalecido com a criação do Ministério das
Cidades, em 2003.
A despeito, entretanto, dos avanços decorrentes do Movimento pela
Reforma Urbana consolidados na lei do Estatuto, há que se reconhecer
que, após doze anos da promulgação da referida lei, registra-se a baixa
aplicabilidade da mesma pelas municipalidades, principalmente no que
se refere aos instrumentos urbanísticos, o que pode ser atribuído, por um
lado, à falta de suporte institucional dos municípios de pequeno porte, e,
por outro, ao aumento da atuação do capital imobiliário (construção, incor-

525
poração e financiamento) no controle das cidades de médio e grande porte.
Apesar disso, no tocante à habitação de interesse social e à regulari-
zação dos assentamentos informais, há que se destacar a previsão, no
Estatuto da Cidade, da Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) 3, o qual tem
sido um dos instrumentos mais incorporados no texto dos Planos Diretores
Municipais, posteriormente à aprovação da Lei do Estatuto4. Trata-se de
instrumento urbanístico de suma importância, voltado para o tratamento
das áreas ocupadas e vazias destinadas à moradia da população de baixa
renda, com vistas à atuação do poder público para a urbanização e regula-
rização fundiária, e a produção de habitação de interesse social, nas quais
se aplicam regras especiais de uso e ocupação do solo. (ALFONSIN, 2002).
Em Salvador, esse instrumento foi recentemente previsto no Plano
Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU/2008)5, no âmbito da Política
de Habitação de Interesse Social (PHIS). Para a regulamentação das ZEIS,
a lei prevê a elaboração do Plano de Regularização, abrangendo três as-
pectos: o Plano de Urbanização; o Plano de Regularização Fundiária e o
Plano de Ação Social e Gestão Participativa.
No tocante a regularização das ZEIS, destacam-se artigos 83 e 84, os
quais disciplinam a elaboração do Plano de Regularização pelos órgãos
da administração direta ou indireta do município ou do Estado da Bahia,
e que incluem a população como participante em todas as etapas do pro-
cesso de regularização, podendo ainda elaborar o plano, se assistida por
técnicos e desde que aprovados pelo órgão municipal de habitação. Outro
ponto relevante constante no PDDU/2008 é o art. 88 e seus parágrafos,
pois inclui como integrantes da Comissão de Regularização da ZEIS, além

3 Esse instrumento já vinha sendo implementado por algumas administrações municipais desde a década de
1980 (Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte), com destaque para a experiência precursora de
implantação do Plano de Regularização de ZEIS (PREZEIS), em Recife/PE.
4 Conforme pesquisa realizada pelo Ministério das Cidades em 2008, relativo ao “Projeto Rede de Avaliação
e Capacitação para a Implementação dos Planos Diretores Participativos”, que analisou a incorporação dos
instrumentos do Estatuto da Cidade nos Planos Diretores a partir da análise dos relatórios estaduais e muni-
cipais, constatou-se que o instrumento da ZEIS constou de 81% dos planos analisados, posteriormente aos
instrumentos do zoneamento (91%) e o parcelamento compulsório, IPTU progressivo e desapropriação, estes
já previstos na Constituição Federal.
5 Para o histórico acerca da previsão do referido instrumento em Salvador/BA, que compreende a institu-
cionalização das APSES (1985) e AEIS (2004), ver: ESPIRITO SANTO; GORDILHO-SOUZA; TEIxEIRA, 2007.

526
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do poder público (executivo e legislativo), representantes dos moradores


e das associações de bairros, com número igual de representantes.
No conjunto das ações que vem sendo implementadas pelo poder pú-
blico municipal em Salvador destaca-se a regulamentação da ZEIS n°.114,
pelo seu caráter emblemático e inovador ao prever o uso habitacional, e em
particular, a habitação social no Centro Histórico de Salvador, garantindo
o direito à moradia e a promoção da função social da cidade, de acordo
com o Estatuto da Cidade (2001), conforme será exposto no item a seguir.
Nesse sentido, a elaboração do Plano de Regulamentação da ZEIS n.
114 traz como desafio a promoção de habitação social no centro histórico,
devendo-se considerar as especificidades relativas ao fato de ser, por um
lado, uma área densamente ocupada, dotada de infra-estrutura, o que
difere substancialmente da maioria das demais áreas de ocupação precá-
rias que predominam na cidade de Salvador. Por outro lado, registra-se a
precariedade dos casarões, tanto em termos físicos quanto em relação às
condições sanitárias. Deve-se ressaltar que essa área já foi objeto de ações
públicas, em particular do governo estadual, com as primeiras iniciativas
já executadas no que se refere à intervenção urbanística, recuperação
edilícia e regularização fundiária.

2. A ZEIS Nº. 114 (CENTRO hISTóRICO


DE SALVADOR): A DEFINIÇÃO DA POLIGONAL

A ZEIS nº. 114 está localizada no Centro Histórico de Salvador/BA,


o qual constitui-se em importante sitio histórico, em âmbito nacional e
internacional, sendo tombado em âmbito federal, como Patrimônio da
Humanidade pela UNESCO, em 1984, e em âmbito estadual, pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Com o processo de expansão urbana da cidade e a criação de novas
centralidades, tem-se o esvaziamento habitacional e a deterioração desse
centro, tanto em função da saída de instituições públicas, do comércio e
serviço, quanto pela retirada da população de baixa renda, como resultado,

527
principalmente da implementação, em 1992, do “Plano de Ação Integrada
do Centro Histórico de Salvador”, de iniciativa do governo estadual, e im-
plantado pela Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia
(CONDER). Esse plano tinha como ênfase a dinamização do comércio e
serviços, em detrimento do uso habitacional.
Até 1997, foram realizadas as seis das sete etapas previstas inicial-
mente, tendo resultado em elevados investimentos públicos e pouca
efetividade econômica dos novos pontos comerciais. Além disso, a im-
plantação desse Plano resultou na eliminação progressiva dos cortiços,
com indenizações insuficientes para aquisição de novas moradias, o que
fez com que a maioria dessa população passasse a ocupar informalmente
áreas nos arredores, sobretudo os prédios fechados e em ruínas. Essas
intervenções resultaram na redução significativa da população local e em
fortes conflitos sociais, culminando, em 2004, na celebração de Termo de
Acordo e Compromisso (TAC), envolvendo o Ministério Público e asso-
ciações de moradores locais, liderados pela Associação de Moradores e
Amigos do Centro Histórico de Salvador (AMACH), a partir do qual ficou
garantido a permanência da população no local, mediante a provisão de
habitações de interesse social.
Desse modo, para a 7ª Etapa, além dos recursos do governo federal
(Ministério das Cidades/Projeto Monumenta), foram previstos a aplicação
de recursos do governo estadual, mediante a implantação do Programa
de Habitação de Interesse Social (PHIS) e do Programa Habitacional do
Servidor Público Estadual (PROHABIT), os quais prevêem a reforma de
casarões para fins habitacionais. Considerando-se, entretanto, o período
decorrido de nove anos após a assinatura do TAC e o número pequeno
de imóveis recuperados, pode-se afirmar que os referidos programas ha-
bitacionais vêm sendo implantados a “passos lentos”.
Nesse contexto, e por ocasião da discussão da formulação da Po-
lítica Habitacional de Interesse Social (PHIS) de Salvador, inserida no
PDDU/2008, é que essa área foi incorporada como Zona Especial de
Interesse Social, constante do art. 84, Anexo 3. Desse modo, conforme

528
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

afirma Teixeira (2012), a definição da ZEIS nº.114, bem como de outras


duas previstas no Centro Histórico de Salvador 6 resultaram

de reivindicações do movimento popular, que pressionaram


pela intervenção do poder público pela promoção de melhorias
e condições dignas de habitabilidade, associado à conjuntura
político-institucional nos diversos âmbitos (federal, estadual
e municipal) favorável, bem como de técnicos municipais e
estaduais comprometidos com a questão da habitação social.
(TEIxEIRA, 2012, p. 10).

A ZEIS nº. 114 foi definida, inicialmente como um “conjunto de edifi-


cações, que abrange as ruas São Francisco, 3 de Maio, 28 de Setembro, 7
de Novembro, Saldanha da Gama e Guedes de Brito”, as quais integram a
7a Etapa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador, que compõe o
“Plano de Ação Integrada do Centro Histórico de Salvador”.
Muitos desses imóveis, principalmente aqueles de uso habitacional
ocupados pela população de baixa renda, necessitam de reforma, já que
a maioria dos mesmos ainda não foi recuperado pelo governo estadual
(Figuras 1 e 2). Vale ressaltar, entretanto, que a recuperação dos imóveis
para fins habitacionais pelo governo do Estado, ainda que em ritmo bas-
tante lento, e com alguns problemas relativamente à finalização das obras,
vem mudando o aspecto da localidade. (Figuras 3 e 4).
Figuras 1 e 2 - Imóveis em ruína, fechados, localizados no Centro
Histórico de Salvador, às Ruas 3 de maio (esq.) e Rua São Francisco (dir.)

Fonte: SALVADOR, 2012.

6 No Centro Histórico, além da ZEIS nº. 114, registram-se a ZEIS de Vila Nova Esperança e a ZEIS do Pilar.

529
No momento atual, a Prefeitura Municipal de Salvador (PMS) e a
Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF) vêm dando prosseguimento à com-
plementação das ações necessárias para a regulamentação dessa ZEIS,
as quais, conforme exposto anteriormente, já vinham sendo realizadas
no âmbito da 7a. Etapa, pela CONDER, principalmente no que se refere
à regularização fundiária e ao Plano de Ação Social e Gestão Participa-
tiva. Para tanto, a PMS conta com recursos financeiros internacionais
provenientes da Aliança de Cidades/Banco Mundial, captados mediante
projeto formulado e aprovado na gestão municipal de 2005/2008. Esse
projeto foi elaborado no âmbito da ex-Secretaria Municipal de Habitação
(SEHAB), sob a gestão de Angela Gordilho-Souza. Registra-se que essa
Secretaria foi extinta em 2008, e atualmente as ações referentes à habi-
tação social ficaram restritas à Coordenadoria de Fomento e Produção
de Habitação Popular.
No que se refere à complementação do Plano Urbanístico da ZEIS 114,
considerando tratar-se de área consolidada e que já vem sendo palco de
atuação do governo estadual, foram previstos dois aspectos principais: a
elaboração de legislação urbanística específica e a discussão e definição
da poligonal. Considerando-se as limitações do presente artigo tratar-se-á
apenas do segundo aspecto.
Figuras 3 e 4 - Imóveis restaurados, localizados no Centro Histórico de
Salvador, às Ruas São Francisco (esq.) e Rua do Tijolo (dir.)

Fonte: SALVADOR, 2012.

530
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Quanto ao limite da ZEIS, para seu primeiro traçado, partiu-se da


constatação de que essa não poderia se restringir apenas ao conjunto de
edificações constantes no PDDU/2008, o qual, conforme exposto acima,
foram definidos a partir da poligonal da 7. Etapa, tendo como ênfase as
atividades comerciais e de serviço voltados para o turismo. No caso da
ZEIS nº. 114, de modo diferente, a ênfase principal é a promoção do uso
habitacional em área central, de valor histórico e cultural, e particular-
mente com relação à habitação de interesse social, voltada para as faixas
de menor renda. Além disso, fazia-se necessário, a partir da discussão
com a comunidade, a definição de um limite que abrangesse, não apenas
os imóveis com uso habitacional, mas também a indicação de espaços
e equipamentos de uso comum, fundamentais no sentido de mudar a
perspectiva da população local, propiciando melhores condições de vida.
Nesse sentido, foi realizado o levantamento de campo abrangendo
duas porções territoriais distintas, quais sejam a poligonal da 7. Etapa
(parte alta) e o trecho da Barroquinha/Baixa dos Sapateiros (parte baixa).
Este último, apesar de ter como uso predominante o comércio popular,
ao longo da Av J. J. Seabra, apresenta uma quantidade significativa de
unidades habitacionais em estado precário de conservação. No total foram
pesquisadas 25 quadras, abrangendo 328 imóveis7.
Como resultado do levantamento de campo, constatou-se a predomi-
nância do uso habitacional, com 40% do total das unidades pesquisadas,
das quais 17% referem-se à habitação social, relativos aos projetos do
PHIS e PROHABIT previstos na 7. Etapa. Em seguida, destaca-se o uso
comercial e de serviços com 23%. Quanto à tipologia, no que se refere
especificamente às habitações, destaca-se as casas térreas (32%), segui-
do das edificações de dois pavimentos (22%), o que demonstra tratar-se
de área com predominância horizontal, pouco verticalizada. Destaca-
-se na área de estudo a existência de vilas com percentual de 12% e um

7 Para tanto, foram utilizadas fichas de cadastro, contemplando os seguintes itens: uso e ocupação do solo;
tipologia (casa térrea; dois pavimentos; casarão; cortiço; vila; edifício); ocupação informal – registro da exis-
tência, ou não, de alguma ocupação informal/invasão dos imóveis pesquisados.

531
percentual reduzido de cortiços (2%). Quanto ao estado de conservação
das habitações, tem-se o predomínio de habitações em médio estado de
conservação (45%), seguido pelas habitações precárias (40%), o que indica
a necessidade de se prever mecanismos de incentivo à conservação dos
imóveis, com vistas à melhoria das condições de habitabilidade, abran-
gendo itens como pintura, esquadrias e cobertura.
Com base, pois no levantamento de campo e, a partir da discussão
com representantes da comunidade e com o poder público municipal, por
ocasião da realização da Oficina Temática em março de 2013, foi definida
a proposta de poligonal da ZEIS nº. 114, conforme constante da Figura 5.
Para a identificação das quadras a serem inseridas (total ou parcialmente)
na referida poligonal foram utilizados dois critérios principais. Quanto
ao primeiro critério, a quadra deveria ter como uso predominante o ha-
bitacional (existente ou com previsão no âmbito dos Programas PHIS ou
Prohabit) ou misto. Nesse caso, deve-se ressaltar a inclusão, na poligonal
proposta, de algumas quadras não contempladas na 7. Etapa, localizadas
na Barroquinha (Baixa dos Sapateiros), à Rua Visconde de Itaparica, na
qual constatou-se a ocorrência de um grande número de unidades habi-
tacionais em estado de conservação precário.
Quanto ao segundo critério, a quadra deveria dispor de equipamentos
de uso comum (existente ou previsto). Nesse caso, foram incluídas as qua-
dras que dispunham de imóveis já previstos no âmbito da 7a. Etapa para
a instalação de creche e cozinha comunitária, os quais já encontram-se
recuperados. Ainda com relação aos equipamentos propostos, propõe-se
a implantação de equipamento de ensino de superior, no casarão onde
funcionava a Secretaria Municipal de Serviços Públicos e Prevenção à
Violência (SESP).
Além dos critérios citados acima, buscou-se não inserir nessa poli-
gonal, edifícios institucionais importantes existentes na área, a exemplo
dos museus, igrejas, órgãos municipais e federais, considerando-se que
o principal objetivo da ZEIS é gravar a área para habitação social. Desse
modo, foram incluídos apenas os edifícios institucionais compatíveis ao

532
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

referido uso, como o edifício do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia (governo


estadual) - que historicamente abrigava a realização de oficinas e cursos,
principalmente nas áreas de teatro, artesanato, informática e restauração
- e os três casarões destinados à implantação do projeto de “Residência
Universitária” pelo governo estadual.
Figura 5 - Poligonal proposta para a ZEIS n. 114

Fonte: SALVADOR, 2013a.

Quanto à implantação de equipamentos de uso comum, apesar da


escassez de vazios no interior da ZEIS, foram identificadas duas áreas
que resultaram do desabamento de alguns casarões, cuja definição foi
discutida e aprovada em oficinas temáticas realizadas com a participação
da AMACH. Estas áreas estão localizadas, respectivamente no fundo dos
lotes 16 a 24 da Rua São Francisco, e na área interna da quadra delimitada
pelas ruas Saldanha da Gama, 28 de setembro, São Francisco e Ladeira da
Praça. Prevê-se para esta última a implantação de equipamento de saúde
e lazer, voltado para atividades para terceira idade, atividades esportivas
e culturais da comunidade (Figura 6). Deve-se registrar que na poligonal
proposta foram incorporados dois equipamentos já existentes nas áreas
de segurança e saúde, quais sejam o 18. Batalhão de Polícia Militar e o
posto de saúde.

533
Entretanto, no que se refere à poligonal proposta, posteriormente ao
processo de discussão e definição da mesma, a PMS informou acerca da
existência de um projeto de estacionamento8, a ser implantado nas pro-
ximidades da Rua Visconde de Itaparica, na Barroquinha. Em face dessa
questão, o poder público municipal formalizou, junto à consultoria respon-
sável pela proposta de regulamentação da ZEIS 114, a solicitação referente
à retificação da poligonal, com a exclusão da área da Barroquinha.
Figura 6 - ZEIS n. 114 – Equipamentos comunitários existentes e equi-
pamentos propostos

Fonte: SALVADOR, 2013a.

A equipe de consultoria posicionou-se contrariamente ao projeto de


estacionamento, e consequentemente à retificação da poligonal, sob dois
argumentos principais. Em primeiro lugar, pelo fato de que a proposta de
poligonal já havia sido referendada em oficina temática, conforme exposto
acima. Em segundo lugar, pela importância de inclusão daquela porção
de território na poligonal da ZEIS, em face da precariedade das unidades

8 O projeto consta de 03 pavimentos, e área total 4.281,00 m2, com previsão de 138 vagas, bem como a im-
plantação de praça na cobertura, com área para comércio, constituindo-se “em mais uma opção de espaço
para entretenimento no centro da cidade, além de dar suporte para a atração de novos investimentos para a
área, atualmente degradada”. (SALVADOR, 2012, p. 51).

534
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

habitacionais ali existentes. No entanto, a decisão da administração mu-


nicipal foi pela exclusão da parte da Baixa dos Sapateiros da poligonal
proposta, tendo resultado na poligonal identificada na Figura 7.
Figura 7 – Poligonal final da ZEIS 114 (Centro Histórico Salvador)

Fonte: SALVADOR, 2013a.

3. A CONSTRUÇÃO DO PLANO DE REGULARIZAÇÃO


FUNDIáRIA E DE AÇÃO SOCIAL E GESTÃO PARTICIPATIVA

Para a complementação do Plano de Regularização Fundiária foram


levantadas as ações em andamento, dado que o projeto de requalificação
da 7a Etapa prevê a entrega de títulos às famílias beneficiárias. A discussão
sobre a titulação se deu em 2007, quando foram desenvolvidas atividades
com a comunidade, capitaneadas pela Secretaria de Desenvolvimento
Urbano – SEDUR, tendo sido definido junto à comunidade, que o titulo a
ser entregue será a Concessão de Direito Real de Uso, pois as unidades
habitacionais foram ou estão sendo executadas em áreas desapropriadas
pelo Estado.
O processo de regularização fundiária vem sendo implementado, em
grande parte da poligonal, pelo governo do Estado (voltado para habitação

535
de interesse social), através da CONDER. Inicialmente vem se procedendo
à desapropriação dos imóveis, sendo previsto, posteriormente a transfe-
rência da posse das unidades habitacionais para os moradores. Algumas
ruas da poligonal estão fora do decreto de desapropriação compreen-
dendo as ruas Curriachito, Visconde de Itaparica até a intersecção com a
rua Ruy Barbosa na Barroquinha. Essas ruas, inseridas na ZEIS 114, não
fazem parte do projeto inicial da 7a Etapa e devido ao perfil preponderante
de pequenos comércios e habitações populares, não demandam novas
desapropriações. Desse modo, sua inserção na poligonal da ZEIS se deu
para conservar esses usos.
A pesquisa fundiária constatou que os imóveis localizados na Quadra
22-S(Rua 07 de Novembro, n. 10); Quadra 28-S (compreende a Rua São
Francisco, n. 29 a Rua 28 de Setembro, n. 23); e a Ladeira da Praça, nº 28,
foram objeto de desapropriação através do Decreto Estadual nº 8.679/2003,
destinando–se a execução de empreendimentos habitacionais voltados
para famílias de baixa renda, bem como outros equipamentos urbanos,
comerciais e mistos, indispensáveis à revitalização do Centro Histórico
de Salvador.
Figura 8 – Situação Jurídica dos imóveis da 7. Etapa

Fonte: SALVADOR, 2013b.

536
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Os imóveis inseridos nessas quadras vêm sendo desapropriados gra-


dativamente, através de processos individuais. Ressalta-se que, de acordo
com as informações disponibilizadas pela CONDER/Pelourinho, dos 89
imóveis com processos iniciados; 81 já possuem imissão na posse; 02
possuem escrituras; 04 estão com pagamentos de indenização efetuados
e aguardando a imissão na posse; e 02 possuem algum tipo de pendência.
Desses imóveis, 05 são atualmente ocupados por estacionamento; 02 por
comércio; 01 por uma entidade não governamental (AMAFRO) e 01 é uma
praça (Figura 8).
Para que a poligonal seja regularizada é necessária a finalização dos
processos de desapropriação em curso, bem como a emissão de títulos das
unidades para cada família atendida pelo programa. Até dezembro de 2012
foi registrado pela COREF (Coordenadoria de Regularização Fundiária/
CONDER) a emissão de 26 títulos, que devido a dificuldades de registro
em cartório não foram disponibilizados para os moradores.
Quanto à complementação do Plano de Ação Social e Gestão Partici-
pativa partiu-se das informações já existentes no Projeto Técnico de Ação
Social, elaborado pela CONDER em 2006, no âmbito da 7ª Etapa de Revita-
lização do CHS e produção de unidades habitacionais de interesse social.
Dentre as questões abordadas na complementação do Plano de Ação
Social destacamos a implantação e funcionamento da Comissão de Re-
gularização; Geração de Renda e Equipamentos Públicos de Interesse
Comunitário. Para definição de projetos prioritários de Geração de Renda
se considerou as atividades já desenvolvidas pela AMACH, relativamente
à Cozinha Comunitária e ao Centro Tecnológico do Pelourinho.
A cozinha comunitária, além de promover formas de produção, utiliza-
ção e conservação de alimentos de qualidade, funcionará como um Centro
de Treinamento gastronômico e de convivência social, desenvolvendo o
potencial criativo de seus participantes, bem comoatividades sociais e eco-
nômicas que venham contribuir para o aperfeiçoamento da comunidade,
proporcionando sua autosustentabilidade e apoio no desenvolvimento
socioeconômico da região (Figura 9). Para o início de funcionamento da

537
cozinha comunitária, o projeto receberá apoio da Secretaria do Trabalho,
Emprego, Renda e Esporte do Estado da Bahia (SETRE). Os recursos serão
destinados às obras e serviços de adequação do imóvel, equipamentos
e capacitação.
Figura 9 - Imóvel à Rua Sete de Novembro, n. 26 onde funcionará a
cozinha comunitária.

Fonte: SALVADOR, 2012.

O segundo projeto destinado à Geração de Renda é o Centro Tecno-


lógico Social do Pelourinho, localizado a Rua Inácio Acioly, nº 7, que já
teve um projeto piloto executado em 2012, e no momento encontra-se
com as atividades suspensas por falta de apoio financeiro para a ma-
nutenção da estrutura e do quadro de monitores (Figuras 10 e 11). Essa
ação visa capacitar, treinar e formar jovens e adolescentes de 16 a 29
anos, regularmente matriculados na rede pública de ensino, formados
ou não, provenientes de comunidades em vulnerabilidade social, com
vistas ao desenvolvimento de aplicativos digitais gerenciais (softwares),
criando oportunidades de geração de emprego e renda e acesso ao mer-
cado de trabalho, transformando-os em empreendedores tecnológicos.
Serão criados aplicativos digitais para apoiar a gestão cultural e social
de museus, bibliotecas, centros culturais, centros de formação e qua-
lificação, escolas, creches, e toda atividade de gestão pública, privada,
social, cultural e econômica.

538
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Figuras 10 e 11 – Centro Tecnológico Social do Pelourinho

Fonte: http://ctspelourinho.com.br/sobre.aspx

Quanto a definição dos Equipamentos Públicos de Interesse Comunitá-


rio, esses foram discutidos com a comunidade ficando definidas no Plano
de Ação Social e Gestão Participativa as seguintes demandas:

4. O PROCESSO PARTICIPATIVO NO DESENVOLVIMENTO


DAS AÇÕES VOLTADAS A REGULAMENTAÇÃO DA
ZEIS 114 (CENTRO hISTóRICO DE SALVADOR)

Inicialmente as atividades para regulamentação da ZEIS 114 estavam


previstas para seis meses, tendo sido iniciadas em setembro de 2012.
Entretanto, devido a diversos fatores9 foram necessários nove meses para

9 Com a troca de gestão municipal em 2013, e o fato dos meses de janeiro e fevereiro oferecerem mais trabalho
aos moradores do Centro Histórico, nos primeiros meses de 2013 os trabalhos ficaram suspensos.

539
o desenvolvimento das atividades. Durante o processo foram realizados
21 encontros, sendo 07 com técnicos da PMS; 05 com a comunidade; 07
encontros entre os técnicos da consultoria contratada, e 02 com a AMACH.
Nas discussões das atividades e produtos de cada etapa foram envol-
vidos 11 técnicos de diferentes órgãos da PMS e FMFL. Nas atividades de
mobilização foram envolvidos representantes de outros órgãos públicos,
com atuação no Pelourinho, a exemplo do Escritório da CONDER; ERCAS
(Escritório de Referência do Centro Antigo de Salvador) e IPAC (Instituto
do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia). Além disso, representantes
da UNEB (Universidade Estadual da Bahia) participaram de todo proces-
so, prestando assessoria à AMACH, associação essa fundamental, para
mobilização da comunidade. No total, mais de 100 pessoas participaram
das atividades, abrangendo as reuniões e oficinas temáticas. É importante
esclarecer que a PMS não disponibilizou nenhum tipo de estrutura para
mobilização da comunidade a consultoria contratada juntamente com a
AMACH mobilizou a comunidade através de convites porta a porta.
Ainda com referência às atividades previstas no Plano de Ação Social,
sendo também uma exigência do PDDU/2008, tem-se a formação da Co-
missão de Regularização da ZEIS 114, com objetivo de acompanhar as
atividades desde o seu inicio. Nesse sentido, foi pactuado com a comuni-
dade a constituição de uma Comissão Provisória, composta por integran-
tes da comunidade para acompanhar todas as atividades, a qual, após a
finalização dos trabalhos seria consolidada pela instituição da Comissão
de Regularização, já que esta prevê a participação de representantes dos
poderes executivo e legislativo, dependendo, desse modo, de ações da Pre-
feitura para ser instalada mediante decreto. A Comissão Provisória contou
com 11 moradores do Centro Histórico. Vale considerar, entretanto, que
todas as atividades com a Comissão foram ampliadas, contando sempre
com um publico maior.
Desse modo, na ultima etapa do trabalho, a Comissão Provisória dei-
xou de existir e foram indicados os nomes e entidades que representam a
sociedade civil para integrarem a Comissão de Regularização, que deve ter

540
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

os trabalhos retomados após a complementação das indicações e publi-


cação de decreto de regulamentação da ZEIS 114. Seguem as atribuições
da Comissão da ZEIS 114 pactuadas com os atores envolvidos:
I. Definir as prioridades de intervenções na ZEIS, a partir das discussões
com a população;
II. Fiscalizar execução das ações dos planos de regularização fundiária
e ação social e gestão participativa;
III. Intermediar assuntos do interesse da ZEIS junto aos órgãos da ad-
ministração direta ou indireta, funcionando como elemento de articulação
com os Conselhos Municipais voltados a política urbana e de Habitação;
IV. Mediar os conflitos referentes à urbanização e regularização fundi-
ária, em consonância com o Plano de Regularização específico;
V. Articular a participação da população no monitoramento das ações
dos processos de regularização fundiária;
VI. Elaborar, quando da conclusão das ações previstas no Plano de
Ação Social e Gestão Participativa e a finalização da entrega dos títulos
das unidades habitacionais de interesse social, parecer de encerramento
a ser apresentado ao órgão público responsável pela execução do Plano
de Regularização.
Vale ressaltar que a composição da Comissão de Regularização da
ZEIS 114 observa a composição paritária entre poder publico e sociedade
civil. Ficou definido ainda no Plano de Ação Social e Gestão Participativa
que as reuniões serão abertas e quando houver necessidade de votação,
somente os membros da Comissão terão direito a voto. Ressalta-se que a
Comissão de Regularização ainda depende das indicações do poder publico
municipal, estadual e do poder legislativo, bem como a publicação do de-
creto com os respectivos componentes para ser definitivamente instalada.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de regulamentação da ZEIS nº. 114 pode ser considerada


uma ação emblemática da administração pública municipal de Salvador,

541
representando um significativo avanço no contexto das políticas públicas
com vistas a inclusão social e a promoção do direito à moradia digna,
cumprindo a diretriz da função social da cidade e da propriedade, conforme
disposto no Estatuto da Cidade (2001). Vale ressaltar que, no caso da ZEIS
em questão, a sua previsão no PDDU/2008 está diretamente relacionada à
atuação dos moradores locais, os quais organizados, resistiram às políticas
públicas excludentes implantadas neste território, a partir da década de
1990, bem como a conjuntura político-institucional favorável, quer seja
em âmbito federal, quanto municipal.
No contexto atual, a regulamentação da ZEIS nº. 114 assume uma di-
mensão ainda mais importante, considerando-se que o governo estadual
vem implantando uma nova etapa de intervenção pública no local, me-
diante o Plano de Reabilitação do Centro Antigo de Salvador. Este Plano,
se por um lado, se insere numa perspectiva mais ampla de intervenção
em âmbito nacional em centros históricos, a partir da inserção do uso
habitacional, por outro, prevê a atração de um número significativo de
investimentos privados de porte no Centro Histórico e entorno, principal-
mente em relação às unidades habitacionais de alto padrão e de hotéis
de grande porte.
Nesse sentido, ainda que considerando-se a importância do incentivo
ao mix de usos no centro, e a previsão do uso habitacional para diferen-
tes faixas de renda, o instrumento da ZEIS faz-se necessário para gravar
a área para o uso de habitação social, de modo a salvaguardar o direito
de moradia para a população local, visando a melhoria das condições de
habitabilidade, bem como a permanência da população após o processo
de reabilitação.
É mister destacar a participação ativa da Associação de Moradores –
AMACH no processo recente de regulamentação da referida ZEIS, quer seja
na discussão da proposição da poligonal, quer seja na indicação das áreas
para a implantação dos equipamentos de uso coletivo, o que por certo em
muito contribuirá para a apropriação desse instrumento pela comunidade
local, que deverá cobrar diretamente da Prefeitura caso ocorra a demora
na implementação das ações previstas.

542
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A regulamentação dessa ZEIS torna-se, pois importante na perspecti-


va de inclusão social dos moradores locais, devendo-se considerar não
apenas a unidade habitacional em si, mas a habitação de forma ampla,
compreendendo a oferta de serviços de educação, saúde, bem como al-
ternativas de emprego e renda, com qualificação profissional.
Nesse contexto, cabe ao poder público municipal a conclusão de to-
das as ações relativas à complementação dos Planos de Urbanização; de
Regularização Fundiária e de Ação Social, consolidando, desse modo,
a regulamentação da ZEIS nº. 114, mediante decreto municipal, garan-
tindo, desse modo, a permanência da população. Para que a poligonal
proposta seja regularizada faz-se necessário a finalização dos processos
de desapropriação em curso, bem como a emissão de títulos das unidades
para cada família atendida pelo programa. Nesse sentido, é de extrema
importância a regulamentação e a atuação da Comissão de Regulariza-
ção no monitoramento dos processos e ações junto a SEDUR, CONDER e
Cartórios de Registro de Imóveis, devendo informar a comunidade acerca
do andamento das ações de regularização fundiária e proceder à mobili-
zação para que todos recebam seus títulos. Desse modo, o movimento de
garantia do direito à moradia para a população de baixa renda no Centro
Histórico ainda é um processo em construção.
Entretanto, apesar do avanço, deve-se registrar que a regulamentação
da ZEIS em questão trata-se de uma ação pontual no âmbito da atuação
do poder público municipal, que vem sendo viabilizada mediante o aporte
de recursos externos. Assim, se considerarmos a magnitude da proble-
mática habitacional da cidade de Salvador e o número expressivo de ZEIS
existentes, pode-se afirmar que atualmente a atuação do poder público
municipal ainda é bastante restrita. Além disso, desde a extinção da Se-
cretaria Municipal de Habitação, em 2008, a temática da habitação social
de modo mais amplo, vem deixando de ser prioridade política do governo
municipal, que passou a tratar prioritariamente dos empreendimentos do
MCMV, com a suspensão de diversas ações relativas à regularização das
ZEIS que vinham sendo encaminhadas em gestões anteriores.

543
Nesse sentido, é preciso que o poder público municipal, em caráter
de urgência, empreenda um programa preferencialmente voltado para
a regulamentação das ZEIS, quer seja mediante a captação de recursos
federais, quer seja, através da destinação de recursos próprios em lei
orçamentária. Além disso, em face da magnitude da problemática habi-
tacional em Salvador, é fundamental a articulação de esforços entre os
governos municipal e estadual, com a explicitação das competências,
evitando, desse modo, a sobreposição de ações e o desperdício de dinheiro
público. Pode-se afirmar, desse modo, que ainda há um grande desafio
a ser vencido de forma a aproximar a retórica da prática efetiva, em prol
de uma cidade mais justa e menos desigual.

6.REFERÊNCIAS

ALFONSIN, Betânia de Moraes et. al. (coord.) Regularização da Terra e Moradia.


O que é e como implementar. São Paulo:Instituto Polis, 2002.
BAHIA. (Estado). Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (SE-
DUR). Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER). 7ª
Etapa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador. Projeto Integrado de
Desenvolvimento Sócio-Econômico e Ambiental. PhIS – 1ª ETAPA, 2006a.
BAHIA. (Estado). Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (SE-
DUR). Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER). 7ª
Etapa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador. Projeto Integrado de
Desenvolvimento Sócio-Econômico e Ambiental. PhIS– 2ª ETAPA, 2006b.
SALVADOR. Secretaria Municipal de Infraestrutura e Defesa Civil. Secretaria
Municipal do Urbanismo e Transporte. Fundação Mário Leal Ferreira. Projeto de
Regulamentação da ZEIS nº. 114 (Centro Histórico de Salvador/BA). Relatório
2 - Caracterização e Diagnóstico da ZEIS 114 (Centro histórico). Salvador:
Prefeitura Municipal de Salvador: Fundação Mário Leal Ferreira: Vivenda Consul-
toria, Assessoria e Planejamento, dez. 2012.
______. Projeto de Regulamentação da ZEIS nº. 114 (Centro Histórico de Salvador/
BA). Relatorio 3 - Complementação do Plano Urbanístico e Legislação
Urbanística Específica da ZEIS nº 114 (Centro histórico). Salvador: Prefei-
tura Municipal de Salvador: Fundação Mário Leal Ferreira: Vivenda Consultoria,

544
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Assessoria e Planejamento, 2013a.


______. Projeto de Regulamentação da ZEIS nº. 114. (Centro Histórico de Salvador/
BA). Relatório 4 – Complementação dos Planos de Regularizaçao Fundiária
e de Ação Social ZEIS nº 114 (Centro histórico). Salvador: Prefeitura Muni-
cipal de Salvador: Fundação Mário Leal Ferreira: Vivenda Consultoria, Assessoria
e Planejamento, 2013b.
SALVADOR. Secretaria de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente.
Superintendencia de Meio Ambiente. Fundação Mário Leal Ferreira. “Planejando
Salvador - Relatório de atividades de planejamento desenvolvidas pela SEDHAM,
SMA e FMLF no período 2005-2012”, 2012.
SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33 ed. São Paulo:
Malheiros Editoras, 2010.
TEIxEIRA, A. N. A ênfase do uso habitacional na reabilitação do Centro Antigo de
Salvador/BA. Urbicentros – Morte e Vida dos Centros Urbanos, 1. Seminário In-
ternacional URBICENTROS. Morte e Vida dos Centros Urbanos, Anais..., PPGAU/
UFPB; PPGAU/FAUFBA, João Pessoa/PB, 2010.
______. ZEIS em áreas centrais: o caso do Centro Histórico de Salvador (CHS).
Urbicentros – Morte e Vida dos Centros Urbanos, 3. Seminário Internacional UR-
BICENTROS. Morte e Vida dos Centros Urbanos, Anais..., PPGAU/UFPB; PPGAU/
FAUFBA, Salvador/BA, 2012.

545
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Regularização fundiária
em salvador (2002-2012):
avanços e retrocessos1

Angela Gordilho Souza2


Adriana Nogueira Vieira Lima3

Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína.

(Fora da ordem, Caetano Veloso)

1 ANTECEDENTES

No final da década de 1970 e início da década de 1980, a ditadura


militar começa a dar sinais de enfraquecimento e o movimento social
passa a buscar a transformação da institucionalidade vigente através da
redemocratização do Estado brasileiro. No campo das lutas urbanas é
colocada em pauta a reivindicação do Direito à Cidade, que segundo Henri
Lefebvre,4 compreende o “direito à vida urbana, transformada, renovada.”
Na busca desse ideal, as reivindicações direcionam-se para o direito à terra,
aos meios de subsistência, ao trabalho, à saúde, à educação, à cultura, à
moradia, à proteção social, à segurança, ao meio ambiente sadio, ao sa-

1 Esse texto foi elaborado tomando como referência estudos anteriores das autoras: LIMA, Adriana Nogueira
Vieira. 2005. A (in) segurança da posse: regularização fundiária em Salvador e os instrumentos do Estatuto
da Cidade. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal
da Bahia, Salvador, 2005. GORDILHO-SOUZA. Ângela. Regularização fundiária na nova política municipal de
habitação de interesse social em Salvador. Revista Veracidade – Seplam/Prefeitura do Salvador, Ano 2, No.
2, julho de 2007; Agradecemos as contribuições de Francisco Teixeira e Reneé Buzarh.
2 A autora é Profa. Dra. da Faculdade de Arquitetura da UFBA e atuou como Secretária Municipal da Habitação
do Município do Salvador, durante o período de 2005-2007, e-mail amgs@ufba.br
3 A autora é professora de Direito Urbanístico da UEFS e atuou como Diretora de Regularização Fundiária na
Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia durante o período de 2006-2010. Atualmente é
doutoranda em Arquitetura e Urbanismo – UFBA, e-mail adriananvlima@gmail.com
4 LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Editora Moraes Ltda,1991, p. 116.

547
neamento, ao transporte público, ao lazer e a informação, de acordo com
os princípios de universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos.
Essas reivindicações pelo Direito à Cidade constituíram o fio condutor
na busca de um efetivo exercício da cidadania e afirmação de direitos.
Esses sujeitos coletivos passaram a intervir no processo de construção
de uma Nova Ordem Constitucional, visando a assegurar a inscrição de
direitos econômicos, políticos, sociais e culturais. Nesse contexto de am-
pla participação, foi apresentada a proposta popular da Reforma Urbana
subscrita por 131 mil brasileiros e que ao tramitar no Congresso Nacional
foi paulatinamente tomando novos contornos, esvaziando ou postergando
algumas pretensões do movimento social de reforma urbana, bem como,
em alguns casos, atrelando a aplicação de alguns instrumentos urbanís-
ticos a existência de normas regulamentadoras.
Apesar da ausência de normas infraconstitucionais, esse novo para-
digma possibilitou que durante a década de 1990, diversas reivindicações
pautadas pelos movimentos sociais urbanos pudessem ser experimentadas
no processo de construção de políticas públicas na esfera local, a exem-
plo da participação direta na elaboração das leis orgânicas em diversos
municípios brasileiros e da estruturação do orçamento participativo em
Porto Alegre (1989). No campo especifico da Reforma Urbana, segundo
Jan Bitoun5, as problemáticas visibilizadas pelos movimentos sociais de
base territorial pressionaram para que fossem inventadas soluções inéditas
que não poderiam ser encontradas no acervo daquelas acumuladas nas
legislações urbanas dos países do norte. É nessa esfera que podem ser
destacados, como exemplos, a incorporação dos instrumentos urbanísticos
propostos pelo movimento da Reforma Urbana em alguns planos direto-
res municipais, a criação do Fundo Municipal de Habitação Popular e do
Conselho Municipal de Habitação Popular nos municípios de Diadema/
SP - 1993, Belo Horizonte/MG - 1993 e Santo André/SP - 1999, o estabe-
lecimento das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e das comissões

5 BITOUN, Jan. Movimentos Sociais Urbanos e a trajetória do urbanismo. Revista Cidades Vol. 1, n. 1,
2010, São Paulo, p.67-77.

548
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

locais de urbanização em Recife/PE -1993 e dos instrumentos de combate


à especulação imobiliária incorporados na Lei de Parcelamento do Solo
Urbano em Joboticabal/SP -1991.

2 ESTATUTO DA CIDADE: UMA CONCEPÇÃO


PLURAL DE REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA

A partir dessas experiências e após mais de uma década da promulga-


ção do texto constitucional6, é aprovada a Lei Federal n°10.257, de 10 de
julho de 2001 (Estatuto da Cidade), regulamentando os artigos 182 e 183
da Constituição Federal de 1988, representando um terreno fértil para o
fortalecimento das reivindicações e utopias voltadas para o reconheci-
mento das múltiplas formas de acesso e uso do solo.
Nesse sentido, o Estatuto da Cidade estabelece um conjunto de princí-
pios e diretrizes gerais visando guiar a elaboração e execução da política
urbana de modo a reverter a segregação e exclusão socioespacial gerada
no decorrer do processo de urbanização brasileira. A função social da pro-
priedade e das cidades juntamente com os princípios do desenvolvimento
sustentável, da justiça social e da participação popular se apresentam
como base estruturadora dessa política.
No campo especifico da regularização fundiária, o Estatuto da Cidade
adota como diretriz da politica urbana, nos termos do inciso xIV do seu
artigo 2º, “a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por
população de baixa renda, mediante o estabelecimento de normas especiais
de urbanização, uso e ocupação do solo, ou edificação, levando-se em consi-
deração a situação socioeconômica da população e as normas ambientais.”.
Ao inseri-la no rol das suas diretrizes e na dinâmica do planejamento
urbano, o Estatuto da Cidade evidencia a importância do instrumento do

6 Durante esses anos de tramitação no Congresso Nacional, o Estatuto da Cidade não passou apenas a ser
fruto de uma reivindicação do movimento social de reforma urbana, mas também representou um pacto entre
diversos setores que compõem a sociedade brasileira, sendo incorporados ao projeto inicial, instrumentos de
interesse do capital imobiliário, a exemplo do instituto das operações urbanas consorciadas. Ver nesse sentido
BASSUL, José Roberto. Estatuto da Cidade: quem ganhou? quem perdeu? 2004. 167 f. Dissertação de mestrado
(Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura, Universidade de Brasília (Unb), Brasília, 2004.

549
Plano Diretor para implementação dos programas de regularização fundi-
ária, na medida em que a ele cabe estabelecer as exigências fundamentais
de ordenação da cidade para que a propriedade cumpra a sua função
social, bem como apontar as áreas onde serão aplicados os instrumentos
urbanísticos, tais como solo criado, direito de preempção, Zonas Especiais
de Interesse Social (ZEIS), transferência do direito de construir e operação
urbana consorciada que devem, em tese, ser aplicados de forma associada
com o processo de regularização fundiária.
O Estatuto da Cidade também deixa claro que a regularização fundiária
não passa necessariamente pelo direito individual à propriedade plena.
Há uma nítida opção por abarcar uma concepção plural de direitos de
propriedade que no dizer Congost7 advém de relações sociais que devem
ser observadas através da pluralidade de ângulos e deve ser estudada sob
a hipótese da mutabilidade – historicidade - que transcende os princípios
legais e estruturas institucionais. É nesse sentido que a segurança da posse,
considerada como parte integrante do direito à moradia, pode ser garantida
através de diversas formas de titulação. O Estatuto da Cidade, buscando
a regularização fundiária em terras públicas, prevê os instrumentos da
concessão de uso especial para fins de moradia, concessão de direito real
de uso e o direito de superfície. Para as ocupações localizadas em área
privada, o instituto a ser utilizado é o do usucapião especial urbano. É
aberta ainda a possibilidade dos instrumentos serem aplicados de forma
individual e/ou coletiva.
No que concerne ao instituto da concessão de uso especial para fins
de moradia (CUEM) em virtude do veto presidencial dos artigos 16 a 20,
sob argumento, em rápida síntese, de que o instrumento contrariava o
interesse público, principalmente quando exercido nos imóveis públicos
destinados ao uso comum do povo foi editada a Medida Provisória n.
2.220, de 4 de setembro de 2001. Muito embora a medida provisória man-
tenha parcialmente a concessão de uso especial para fins de moradia nos
termos do dispositivo vetado, a MP restringiu drasticamente, porquanto

7 CONGOST, Rosa. Property rights and historical analysis: what rights? what history? Oxorford University Press, 2003.

550
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

a aplicabilidade do instituto beneficiará somente aqueles que tenham


preenchidos os requisitos exigidos até o dia 30 de junho de 2001 (prazo
fixado no art. 1º). Também há uma restrição no que tange as exceções para
a sua aplicação, sendo facultado ao Poder Público transferir ocupações
quando em áreas públicas de uso comum do povo, destinadas a projeto
de urbanização, de interesse nacional, de preservação ambiental e de
proteção de ecossistemas naturais, reservados à construção de represas
e obras congêneres e ou situadas em via de comunicação.
No âmbito das politicas públicas, a partir da eleição do presidente Lula
em 2002, representando forças de centro-esquerda foi criado o Ministério
das Cidades que buscou trazer para o plano nacional, o acúmulo dessas
experiências desenvolvidas na esfera local e partindo da tese central de
que o Brasil vive uma crise urbana, elaborou a Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano (PNDU)8, tendo como finalidade alcançar a
igualdade social e o resgate da cidadania das populações de baixa renda,
através da orientação e coordenação de planos, ações e investimentos
dos vários níveis de governo, com a colaboração dos poderes legislativo
e judiciário, e a participação do setor privado e da sociedade civil, tendo
como cinco as propostas estruturantes a implementação dos instru-
mentos fundiários do Estatuto da Cidade, Sistema Nacional de
habitação; promoção da mobilidade urbana sustentável e cidadania no
trânsito; novo marco legal para o saneamento ambiental; capacitação e
informação das cidades.
Com base na Política Nacional de Desenvolvimento Urbano foram ela-
boradas outras políticas setoriais, dentre as quais destaque-se: a Política
Nacional de Habitação e a Política Nacional de Apoio à Regularização
Fundiária Sustentável que visava apoiar, complementar e/ou suplementar
as ações dos governos municipais e estaduais, prevendo intervenções di-
retas apenas nos casos em que os assentamentos a serem regularizados
estejam situados em terras da União.

8 MINISTÉRIO DAS CIDADES. Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Caderno 1, 2004. Disponível
em: www.cidades.gov.br. Acesso em 22 dez. 2005.

551
A Política Nacional de Apoio à regularização Fundiária Sustentável
parte do principio de que a regularização fundiária é um processo amplo,
que não pode ou não deve ser reduzida a sua dimensão jurídica, devendo
essa dimensão ser necessariamente conciliada com a regularização
urbanística e ambiental dos assentamentos, bem como com a
introdução de programas socioeconômicos e outros programas gover-
namentais que proponham a plena integração social dos moradores de
assentamentos informais à economia da cidade, estando assentada nos
seguintes pressupostos: reconhecimento do direito à moradia e segurança
da posse como direitos fundamentais; acesso à terra urbana como efeito
jurídico do princípio constitucional da função socioambiental da proprie-
dade; supremacia do Direito Público sobre Direito Privado na regulação
da ordem urbanística; compreensão da natureza curativa dos programas
de regularização que devem ser implementados em um contexto amplo
de políticas públicas em todas as esferas governamentais; necessidade
de conciliação entre a regularização urbanística e ambiental com
a regularização jurídica e patrimonial; necessidade de contribuir para
renovação dos processos de mobilização social em torno da questão.9
A regularização fundiária também foi incluída como diretrizes do Sis-
tema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) criado pela Lei
Federal nº 11.124, de 16 de junho de 2005 tendo dentre outros objetivos
o enfrentar do problema habitacional em dois eixos: enfrentar o déficit
habitacional, aumentando o estoque de moradia e intervir na qualificação
das moradias existentes. Para tanto, o art.11 da Lei nº 11.124/05 dispõe
que os recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social devem
ser destinados aos programas habitacionais de interesse social que con-
templem dentre outras ações a urbanização, produção de equipamentos
comunitários, regularização fundiária e urbanística de áreas carac-
terizadas de interesse social.

9 Para uma análise critica dos resultados da Política de Regularização Fundiária Sustentável, ver FERNANDES,
Edésio. Princípios, Bases e Desafios de uma Política Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável.
In: ALFONSIN, Betânia de Moraes e FERNANDES, Edésio. (Orgs.). Direito à moradia e segurança da posse
no Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2004.

552
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A politica de regularização fundiária sustentável e o seu respectivo


programa foi desdobrado em uma série de ações, dentre elas a modifica-
ção da legislação pátria, a exemplo da regularização fundiária em Bens
Públicos da União (Lei n° 11.481/2007) e a lei nacional de Regularização
Fundiária (Lei n° 11.977/2009), que trouxe expressamente o conceito de
regularização fundiária e novos instrumentos de regularização, cite-se a
demarcação urbanística e a legitimação de posse.
A partir da contextualização desses marcos normativos e das políticas
no plano federal voltados a regularização fundiária, buscar-se-á fazer uma
reflexão sobre a regularização fundiária implantada pelo município de
Salvador no período de 2002-201210, apontando os seus avanços, limites e
pontos de inflexão, bem como suas confluências e interfaces com a Política
de Regularização Fundiária Sustentável proposta pelo governo federal.

3 A REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA
NO MUNICIPIO DO SALVADOR

3.1 A INFORMALIDADE NA CIDADE DO SALVADOR

A Cidade de Salvador, como as demais capitais brasileiras, revela


um quadro de extrema desigualdade social e de concentração de renda,
compondo um cenário de fortes contrastes no ambiente construído. Esse
quadro se traduz de forma visível no espaço urbano, por um lado, pela
ocupação formal – caracterizada por áreas com oferta de infraestrutura,
regulada pelas leis de ocupação e uso do solo e pelo mercado imobiliário
– e, por outro lado, pela ocupação informal – resultante da implantação
de loteamentos clandestinos, bem como de ocupações coletivas em áre-
as públicas e privadas, deficiente de atributos urbanísticos – onde mora
a maioria da população de baixa renda –, em decorrência, sobretudo, da

10 É importante ressaltar que o presente artigo foca apenas no Programa Municipal de Regularização não
tendo como o Programa de Regularização Fundiária desenvolvido pelo Estado da Bahia-Secretaria de Desen-
volvimento Urbano, através da Companhia de Desenvolvimento Urbano (CONDER) e Habitação e Urbanização
da Bahia S.A (URBIS) no Município de Salvador.

553
pouca efetividade das políticas habitacionais de interesse social.
A cidade de Salvador entrou no terceiro milênio com quase 2,5 milhões
de habitantes, perfazendo atualmente cerca de 2,7 milhões (CENSO, 2010),
o que a faz continuar ocupando o 3º lugar em contingente populacional
no país. A ocupação informal de habitação nesse município, no início
dos anos 2000, representava 32% do total de ocupação habitacional
no município, correspondendo a 60% da população, o que corresponde
aproximadamente a 460 mil domicílios, equivalendo ao chamado déficit
qualitativo de habitação. A situação é mais grave ao se considerar áreas
formais deficientes de benfeitorias urbanísticas, incluindo loteamentos po-
pulares que cresceram sem a devida gestão pública, que representa 54% da
área ocupada e 73% da população, equivalente a 550 mil domicílios. Essa
ocupação está concentrada, sobretudo nas áreas do Subúrbio e Miolo da
cidade, demarcando uma nítida segregação em relação à ocupação formal
da cidade, ao longo da orla oceânica11. Portanto, além da necessidade de
novas unidades habitacionais, decorrente do crescimento populacional,
o déficit habitacional constituído historicamente abrange as deficiências
ambientais, de infraestrutura física e social e a inadequação fundiária
No intuito de contribuir com um balanço critico das politicas de regu-
larização fundiária no município de Salvador que buscaram, em tese, o
enfrentamento dessa problemática, o presente trabalho traz uma breve
síntese das ações que antecederam a aprovação do Estatuto da Cidade,
para em seguida adentar nos Programa de Regularização Fundiária im-
plementados pelo município de Salvador durante o período de 2002-2012.
Propõe-se para tanto uma periodização, de acordo com as gestões muni-
cipais desde então, sendo: O Primeiro Período, de 2002 a 2004, no qual
foi feita uma distribuição massiva de títulos de concessão de uso especial
para fins moradia; Segundo Período, de 2004-2008, no qual se buscou
com base na Politica Nacional de Regularização Fundiária Sustentável a
articulação entre a dimensão fundiária e urbanística, bem como um dialogo

11 GORDILHO-SOUZA, Angela. Limites do habitar; segregação e exclusão na configuração urbana contem-


porânea de Salvador e perspectivas no final do século xx. Salvador: EDUFBA, 2000.

554
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

com as politicas de habitação de interesse social; e por fim um Terceiro


Período, de 2009-2012 que tem como marco inicial a promulgação da lei
nacional de regularização fundiária e o lançamento do Programa Nacional
de Habitação, Minha Casa Minha Vida12. (MAPA 1, em anexo).

3.2 A REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA


EM SALVADOR ANTES DO ESTATUTO DA CIDADE

A situação de insegurança em que sempre estiveram submetidos os


moradores dos assentamentos construídos à margem da legalidade urbana
fez com que a Federação das Associações de Bairro de Salvador (FABS) e
Movimento de Defesa dos Favelados (MDF) nas décadas de 1970 e 1980
reivindicassem um programa oficial de legalização da posse da terra.
Em resposta as reivindicações dos movimentos de luta pela terra, o
Plano de Desenvolvimento Urbano de Salvador (PLANDURB) elaborado
entre os anos de 1975-78 e institucionalizado no inicio da década de
1980,13 com base na sua proposta de intervir para enfrentar os “desequi-
líbrios sociais” na ocupação urbana, não só reconhece a permanência
da ocupação informal na cidade, como cria o instrumento das Áreas de
Proteção Socio-ecologica (APSEs), estabelecendo parâmetros específicos
visando garantir a permanência da população residente nos assentamentos
consolidados de baixa renda14.
No que concerne especificamente a legalização da posse da terra, no
início da década de 1980, a Prefeitura de Salvador dá inicio aos primeiros
programas de legalização da posse da terra.15É importante notar que até

12 A sistematização dos dados apresentados tem como base as entrevistas concedidas pela Coordenação de
Regularização Fundiária às autoras, relatórios de gestão e o Plano Municipal de Habitação de Salvador (2008-
2025). SALVADOR. Prefeitura Municipal. Secretaria Municipal da Habitação. Plano Municipal de habitação
de Salvador (2008-2025). SEHAB/Via Pública, 2008. É importante ressaltar que a descontinuidade das ações
entre os períodos apresentados também reflete na qualidade dos dados.
13 SALVADOR. Prefeitura Municipal. Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – PDDU – Lei 3.525, de
11 de setembro de 1985. Coletâneas Leis e Decretos, Salvador, 1985.
14 SALVADOR. Lei nº 3.592, de 16 de novembro de 1985. Dispõe sobre o enquadramento e delimitação
em caráter preliminar de áreas de Proteção Sócio-Ecológica – APSE no Município de Salvador e esta-
belece medidas para sua regulamentação definitiva e dá outras providências
15 A exigência da regularização fundiária pode ser observada pelas agências de financiamento internacional
desde o Projeto de Saneamento Básico do Vale do Camurujipe, no inicio da década de 1980.

555
então a cessão de documentação era concedida em regra para os morado-
res de loteamentos públicos produzidos em muitos casos para remover a
população de áreas valorizadas da cidade. É a partir dessa experiência que
a titulação ainda que de forma tímida e pontual passa a ocorrer também
nas ocupações informais localizadas em áreas valorizadas da cidade.16
Inicialmente foram utilizados os denominados termos de permissão de
uso, instrumento através do qual a Prefeitura autorizava a permanência
em terrenos públicos ocupados pela população de baixa renda. Após um
longo período de estudos e discussões no âmbito da OCEPLAN, optou
pela utilização preferencial do instituto da concessão de direito real de
uso (CDRU), em detrimento da doação ou outros instrumentos adminis-
trativos. Assim, em 1983, a concessão de direito real de uso foi inserida
na Lei Orgânica do Município, sendo posteriormente regulamentada pela
Lei Municipal 3.293/1983.
O primeiro programa municipal de legalização de lotes, utilizando o
instrumento da concessão de direito real de uso, teve início em 1984 e
foi elaborado pela Coordenação de Desenvolvimento Social, órgão da
Secretaria de Administração Municipal. Esse programa tinha como obje-
tivo a titulação através da concessão de direito real de uso de 4.000 lotes
localizados nos loteamentos públicos, mas sendo apenas legalizados
780 lotes.17 Posteriormente, em 1986, foi elaborado um novo programa
pela Secretaria de Terras e Habitação em convênio com a Companhia de
Renovação Urbana de Salvador (RENURB), cuja proposta era atingir 20
mil lotes, não logrando também o êxito esperado visto que, das 18 áreas
previstas, apenas 05 tiveram a sua legalização considerada concluída18.
Esse insucesso em relação aos programas pode ser interpretado a partir

16 Embora não seja possível falar em programas de regularização fundiária, ações tópicas ocorreram na dé-
cada de 1970. Em 1971, a SETRABES forneceu aos desabrigados da chuva um atestado de ocupante do imóvel
construído em terreno fornecido pela Prefeitura; em 1977 foram emitidos certificados de posse em favor de
famílias desabrigadas em Canabrava e Conjunto Residencial São Cristóvão (Conjunto dos Desabrigados); em
1978 os moradores do PROFILURB I receberam contrato de acordo e compromisso; em 1982 foi utilizado o
instituto da permissão de uso para titular a primeira etapa do loteamento Fazenda Coutos.
17 SALVADOR, Prefeitura Municipal. Legalização de lotes urbanos em Salvador,.1985.
18 SALVADOR, Prefeitura Municipal do Salvador - SETHA - Secretária da Terra e Habitação. Programa de
Legalização Fundiária Municipal - 1986-1988 - Relatório Parcial. Salvador, 1989.

556
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da análise das mensagens e relatórios de gestão enviados à Câmara de


Vereadores pelos chefes do Poder Executivo municipal durante o período
1980-2001. Embora em praticamente todas as mensagens estivesse pre-
sente a promessa de promover a legalização da posse da terra ocupada
pela população de baixa renda, as ações desenvolvidas não atingiam as
metas esperadas. Durante o período analisado, o poder público, através de
diversas gestões municipais, procedeu ao cadastramento de moradores,
escolheu áreas piloto, solicitou autorização da Câmara para conceder o
título, sem, contudo, finalizar a regularização dos assentamentos, geran-
do um ciclo vicioso alimentador de novos programas, novos cadastros,
novas autorizações. Do ponto de vista prático, esses programas, além
de representarem um gasto do dinheiro público, geravam frustração ao
morador, pois muitos, apesar de cadastrados, não chegavam a receber o
título prometido.
Assim, neste período que vai dos anos 1980 até 2001, a emissão de
títulos de regularização fundiária através de CDRU, se constituiu em um
passo pioneiro na Regularização fundiária de habitação de interesse
social. No entanto, efetivou-se de forma lenta, sobretudo por demandar
autorização legislativa individualizada, somando um total aproximado de
7.000 títulos emitidos. Também é possível observar uma desarticulação
entre os programas de legalização da posse da terra e a demarcação das
Áreas de Proteção Socio-ecologicas. (APSEs)

3.3. REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA EM SALVADOR


– PóS-ESTATUTO DA CIDADE

3.3.1. PRIMEIRO PERÍODO (2002 – 2004):


TITULAÇÃO EM LARGA ESCALA

Como visto, o Estatuto da Cidade trouxe uma série de instrumentos


jurídico-urbanísticos úteis ao reconhecimento e regularização fundiária
dos assentamentos construídos à margem da legalidade urbanística e fun-

557
diária. No âmbito do município de Salvador foi aprovada a modificação
da Lei Orgânica Municipal através da Emenda nº 1619 e a promulgação
da Lei nº 6.099/200220, a fim de adequar a legislação local ao Estatuto da
Cidade. Essas modificações na legislação municipal buscaram possibili-
tar a legalização de lotes, situados em área urbana, utilizados para fins
de moradia, ocupados pela população de baixa renda, e cuja porção de
área não ultrapasse 250m2, através da concessão de uso especial para
fins de moradia.
É importante salientar que a mensagem do Prefeito que encaminhou
o projeto de lei à Câmara dos Vereadores, propondo a modificação dos
instrumentos de regularização fundiária, com vista a adequá-los ao Es-
tatuto da Cidade, exalta a importância da titulação através de títulos de
propriedade plena, recorrendo aos falaciosos argumentos que se baseiam
nas concepções do economista Hernando De Soto21:

Somente a aquisição da propriedade do terreno pode, portanto,


modificar tal realidade, que foi, inclusive objeto de comentário do
jornalista Elio Gaspari, publicado no jornal Folha de São Paulo,
edição de 21 de janeiro de 2001. Na matéria, o jornalista abordou o
livro de hernando de Soto, que retrata, em todas as suas etapas,
a verdadeira odisséia dos ‘heróicos empreendedores do andar
de baixo’ na busca desesperada pelo seu titulo de proprietário.

Essa proposta deflagrou um longo debate na Câmara dos Vereadores,


sendo acatada pelo Chefe do Executivo Municipal, a proposta de emenda
substitutiva ao Projeto de Lei que propôs a inclusão da concessão de uso
especial para fins de moradia como instrumento prioritário para regula-
rização fundiária. Em seguida foram sancionados os referidos marcos
legislativo e iniciado pela Coordenadoria de Regularização Fundiária
(CRF), da então criada Secretária de Habitação, o Programa de Regula-
rização Fundiária, cuja meta era entregar 100 mil títulos aos moradores

19 SALVADOR. Emenda nº 16 à Lei Orgânica do Município do Salvador, de 30 de janeiro de 2002. Diário


Oficial do Município, Poder Legislativo, Salvador, 31 jan. 2002.
20 SALVADOR. Lei nº 6.099, de 19 de fevereiro de 2002. Diário Oficial do Município, Poder Legislativo,
Salvador, 20 fev. 2002.
21 SOTO, Hernando. O mistério do capital. Record: Rio de Janeiro, 2001

558
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

residentes em áreas de propriedade municipal oriundas de processo de


ocupação informal ou parceladas pelo Município, através de loteamentos
públicos para implantação de habitação de interesse social. O Programa
de Regularização Fundiária teve como base para a sua implementação
basicamente os seguintes critérios: o imóvel deve estar situado em área
urbana pertencente ao Município; o ocupante deve possuir o imóvel por,
no mínimo, cinco anos completados até 20/06/2001; a dimensão da par-
cela de área deve ser de até 250m²; a utilização do terreno deve ser para
fins de moradia do possuidor ou de sua família (uso comercial permitido
até 49% da área total do imóvel); o ocupante não pode ser proprietário
ou concessionário de outro imóvel urbano ou rural e deve possuir renda
familiar de até seis salários mínimos.
A dispensa conferida pelo Estatuto da Cidade em relação à autorização
legislativa representou um fator fundamental para possibilitar durante o
período de 2002-2004, a entrega de 45 mil escrituras de concessão de
uso para fins de moradia em diversas áreas da cidade, (MAPA ANExO).
Esse período embora tenha apresentado um resultado quantitativo mais
expressivo do que os demais programas implementados antes do Estatuto
da Cidade, mantém a mesma concepção de regularização fundiária dos
programas anteriores, restringindo-se à dimensão jurídica do lote. Não
houve, por parte do programa, a preocupação de promover a urbanização
nos assentamentos ou qualquer forma de regularização urbanística, atra-
vés da articulação com as Áreas Especiais de Interesse Social, nos termos
do Plano Diretor, há época em fase de elaboração.22
Essa distribuição de títulos em larga escala dissociada de outras
políticas públicas não repercutiu na integração urbana tão almejada pelos
moradores, pondo em cheque a esperança de que “ser legal” iria habilitá-
-los ao acesso à infraestrutura e a outros benefícios da urbanização na
conquista pelo direito à Cidade.

22 SALVADOR. Lei n° 6.586, 03 de agosto de 2004. Aprova o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano
do Município do Salvador, 2004. Disponível em: http://www.sedham.salvador.ba.gov.br.

559
3.3.2 SEGUNDO PERÍODO (2005 – 2008):
TENTATIVA DE ARTICULAÇÃO DAS DIMENSÕES
FUNDIáRIAS E URBANÍSTICAS

Nessa segunda fase ocorrida pós-Estatuto da Cidade, compreendida


entre 2005-2008, houve a manutenção do Programa de Regularização Fun-
diária, sem que houvesse interrupção das ações em curso, utilizando-se,
de imediato, a mesma sistemática e metodologia e dando continuidade as
ações de regularização fundiária nas áreas constantes da primeira fase do
Programa (MAPA ANExO). Entretanto, as análises dos resultados alcança-
dos, associadas às definições do Ministério das Cidades, consubstanciadas
nos princípios do Programa de Regularização Fundiária Sustentável já
abordado nesse trabalho, apontaram para a necessidade de mudanças,
buscando introduzir um enfoque mais abrangente do direito à moradia e
integração entre a dimensão fundiária e urbanística.
Buscou-se inaugurar uma nova sistemática de atuação municipal na
regularização fundiária, compreendendo o cadastro de todos os imóveis
existentes na área, além dos habitacionais, incluindo os demais usos como
comércio e serviço, institucional e de produção, visando outras modalida-
des de regularização fundiária desses imóveis, bem como o levantamento
das demandas existentes nessas localidades e a indicação de projetos
de melhorias, com a finalidade de fomentar a captação de recursos para
implantação de melhorias nessas áreas, de forma integrada.
Nessa fase, ainda com base nos avanços contidos na Politica Nacional
de Regularização Fundiária Sustentável, também houve a preocupação em
inserir a dimensão da regularização fundiária no âmbito do Plano Diretor
de Desenvolvimento Urbano (Lei Municipal nº 7.400, de 20 de fevereiro
de 2008), buscando articulá-la a Política Municipal de Habitação de Inter-
esse Social e instituição das Zonas Especiais de Interesse Social que tinha
dentre outros objetivos promover a regularização fundiária sustentável e
a participação e controle na gestão desses espaços urbanos.
Para tanto, o Plano Diretor incorpora as APSES e AEIS anteriormente

560
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

previstas e inclui outras áreas da cidade no zoneamento especial, tota-


lizando o número de 116 (cento e dezesseis) ZEIS, abrangendo a maior
parte das ocupações informais da cidade. Nesse Plano Diretor, é proposta a
classificação das ZEIS em cinco categorias que guardam correspondência
com as múltiplas formas de uso e ocupação do solo historicamente constru-
ídas nos territórios informais. O total de ZEIS identificadas representa uma
superfície territorial de aproximadamente 3.012 hectares, correspondendo
a 12% da área continental do município (28 mil ha) e cerca de 30% da área
ocupada por habitação. Estima-se que nessas áreas habite um total de 1,2
milhões de habitantes, equivalente a 44% do total da população projetada
pelo IBGE para 2006 (2,7 milhões).23
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de 2008 também
destinou um capítulo especifico para regularização das Zonas Especiais
de Interesse Social24, que deverá compreender o Plano de Regularização
que, por sua vez, deverá conter o Plano de Urbanização, o Plano de Re-
gularização Fundiária e o Plano de Ação Social e Gestão Participativa.
Durante essa fase foram elaborados os Planos de Bairro, de forma parti-
cipativa, para as localidades de Nova Constituinte, São Marcos - Baixa
Fria e Mussurunga.
Durante esse período, a Secretaria de Habitação continuou atuando nas
áreas objeto do primeiro período, inserindo novas áreas. (MAPA ANExO).
Houve, ainda que sem lograr êxito, a tentativa de ampliação do escopo do
Programa para promover com recursos do Programa Federal Papel Pas-
sado, a regularização fundiária em áreas de domínio privado, a exemplo
das áreas de propriedade da Santa Casa de Misericórdia (Calabar e Alto
das Pombas) e de propriedade da União (Gamboa e Solar do Unhão). Em
relação às áreas da Santa Casa, apesar do acordo de parceria firmado

23 Para este cálculo estimou-se uma densidade média de 400 hab/ha, freqüente em áreas de ocupação in-
formal em Salvador.
24 Ver nesse sentido, GORDILHO-SOUZA, Angela; ESPIRITO SANTO, Maria Teresa Gomes e TEIxEIRA Apa-
recida Netto. O desafio da regulamentação de ZEIS - Zonas Especiais de Interesse Social. XII Encontro da
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano Regional, Anais. Belém,
Pará., Mai. de 2007 e SAULE JUNIOR, Nelson; LIMA, Adriana Nogueira Vieira; ALMEDIDA, Guadalupe M. J. Abib
de. As zonas especiais de interesse social como instrumento de regularização fundiária. Fórum de Direito
Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 5, n. 30, nov./dez. 2006.

561
para o repasse das áreas ao município, a doação não foi efetivada. No que
tange as áreas repassadas pela União, as dificuldades para averbação no
Cartório de Imóveis da gleba em nome do município, somados aos limi-
tes da gestão municipal, a dificuldade na contratação de empresas com
expertise para o desenvolvimento do trabalho e aos morosos tramites da
CAIxA para liberação dos recursos acarretaram na paralização das ações.
Desse modo, o Programa permaneceu restrito as áreas de domínio muni-
cipal, perfazendo durante o período de 2005-2008 a entrega de cerca de
18 mil escrituras de concessão de uso especial para fins de moradia, do
total de 35 mil previstas, de acordo com o relatório técnico dessa gestão.
Contudo, em que pesem esses avanços iniciais, ainda é tímida a
centralidade que a questão fundiária assume nas politicas locais e estar
longe de ser incorporado enquanto politica de Estado. Ademais esse
segundo período culminou com o desmonte da estrutura institucional,
através da extinção da Secretaria de Habitação, tendo no final do ano de
2008, a sua estrutura de gestão reduzida a uma Diretoria de Habitação
na então criada Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habi-
tação e Meio Ambiente – SEDHAM, o que agravou ainda mais a situação
de autonomia e execução.

3.3.3 TERCEIRO PERÍODO (2009-2012):


RETROCESSO INSTITUCIONAL ?

O novo arcabouço jurídico contido na Lei n. 11.977, de 7 de julho de


2009 que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) e a
regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas
embora tenha trazido um conceito amplo de regularização fundiária,
abrangendo medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais, bem
como a ampliação do leque dos instrumentos jurídicos para regularização
fundiária de áreas privadas, através da demarcação urbanística e legitima-
ção de posse25, não teve efetiva repercussão no Programa de Regularização

25 Foi iniciado o trabalho para promover a regularização fundiária do Alto de Santa Terezinha, através da
demarcação urbanística, contudo o processo foi interrompido pela municipalidade.

562
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Fundiária de Salvador, implementado no período de 2009-2012.


Esse período, semelhante ao que ocorreu no plano nacional, foi mar-
cado pelo refluxo das ações voltadas a planejamento e desenvolvimento
institucional, em detrimento do maior vigor ao PMCMV, ficando a frágil
estrutura de gestão municipal praticamente voltada ao cadastramento e
seleção de beneficiários para inclusão desse novo programa habitacional
federal, em larga escala.
No que concerne especificamente a regularização fundiária, houve
um retrocesso qualitativo do Programa, na medida em que esse período
foi marcado pela perda de força das ações voltadas a articulação entre a
dimensão urbanística e fundiária dando lugar ao retorno de uma concepção
de regularização fundiária restrita à dimensão jurídica do lote.26 Também
há uma redução no quantitativo, em virtude do quase exaurimento das
terras públicas municipais aptas a promover a regularização fundiária,
perfazendo durante o período de 2008-2012 a entrega de cerca de 5 mil
escrituras de concessão de uso especial para fins de moradia, na maioria
referente à complementação de títulos em áreas já regularizadas, sendo
apenas agregado duas novas áreas ao Programa. (MAPA ANExO).

4 CONSIDERAÇÕES GERAIS

A ordem jurídica do Brasil, trazida pela Constituição Federal de 1988,


Estatuto da Cidade (Lei Federal 10. 257 de 10 de julho de 2001) e da Lei
Federal 11.977, de 07 de julho de 2009 que dispõe sobre a regularização
fundiária de áreas informais consolidam as bases legais para intervenção
dos poderes públicos no processo de regularização fundiária dos assen-
tamentos irregulares.
Ao inserir a regularização fundiária como uma diretriz da política de
desenvolvimento urbano, o Estatuto da Cidade pretendeu trazê-la para

26 Apesar do esforço da equipe técnica para promover a elaboração da minuta do projeto de lei dispondo sobre
a regulamentação das zonas especiais de interesse social não houve encaminhamento do referido Projeto à
Câmara Municipal, ao contrário foi inserido na Lei 8.167/2012 que dispõe sobre o ordenamento do uso e ocu-
pação do solo, um capítulo para tratar dessa temática que não guarda consonância com os estudos técnicos
desenvolvidos no âmbito da Diretoria de Habitação. Essa Lei encontra-se sub judice, tendo a sua aplicação
parcialmente suspensa pelo Poder Judiciário da Bahia.

563
o centro do planejamento urbano, cabendo ao Plano Diretor Municipal
estabelecer os critérios e instrumentos que deverão ser aplicados. A
diversidade das formas de titulação do solo urbano definidas também
buscou contemplar a diversidade de formas e normas existentes nos as-
sentamentos informais, além de demonstrar a nítida opção do legislador
em promover o valor de uso do bem, uso esse destinado especificamente
ao exercício do direito à moradia.
Considerando que a regularização fundiária deve ter como horizonte
a promoção da segurança da posse, a garantia do direito à moradia e do
direito à cidade, e tendo os direitos humanos o caráter de universalidade e
indivisibilidade, essas três dimensões do direito se sucedem e se comple-
tam. Esse entendimento vem reforçar a necessidade de uma apropriação
ampla, implicando no enfrentamento da dimensão jurídica, urbanística
e social na definição dos objetivos e na concepção de um programa de
regularização fundiária.
Ao tomar Salvador como estudo de caso, observa-se que embora os
Programas de Regularização Fundiária tenham alcançado um número
relativamente expressivo de outorga de escritura, totalizando entre o pe-
ríodo de 2002-2012, cerca 68 mil títulos de concessão de uso especial
para fins de moradia, não tiveram o condão de articular “o conjunto de
medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regulariza-
ção de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo
a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções
sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado”, conforme disposto na nossa legislação pátria.
Essa incompleta e fragmentada politica de regularização fundiária vem
alimentando a produção de novas redes de informalidade não apenas nos
aspectos dominiais, mas, sobretudo urbanístico, pela não regulamentação
da ZEIS. É possível observar nas áreas objeto dos Programas de Regulari-
zação Fundiária que as transações dos imóveis continuam sendo realiza-
das através de mecanismos informais. Durante o período de 2002-2012,
apenas 1631 transferências foram feitas com a anuência órgão municipal

564
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

responsável pela execução da Politica e apenas um bairro teve o plano


urbanístico concluído, em 2007, abrangendo as localidades de Baixa Fria
e Baixa de Santa Rita, ainda não totalmente executado e sem a devida
regularização fundiária.
Ainda que não se possa desmerecer o avanço no âmbito institucional,
através da elaboração do Plano Municipal de Habitação, da inclusão do
instrumento da ZEIS nos Planos Diretores, da introdução do Plano de Bair-
ro, é forçoso reconhecer o limite dessas conquistas na efetiva melhoria do
meio ambiente construído e na garantia do Direito à Cidade, nos termos
pautados pelos movimentos sociais urbanos.
Esse balanço evidencia a necessidade de intensificar os processos de
ebulição política que vem florescendo nas ruas das cidades brasileiras,
retomando o potencial emancipatório que guiou a luta pela reforma ur-
bana, de modo a apostar “numa práxis constituinte que coloque em marcha
a afirmação de novos direitos, menos como norma do que potência de auto-
produção de movimento e vida.” 27

27 NEGRI, Antonio. O direito do comum: o que existe na fronteira entre o público e o privado ? Disponível em
http://uninomade.net/tenda/o-direito-do-comum-o-que-existe-na-fronteira-entre-o-publico-e-o-privado.

565
566
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Regularização fundiária em terras


particulares: desafios à efetivação da
usucapião especial coletiva urbana

Luana Xavier Pinto Coelho1


Isabella Madruga Cunha2

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A promulgação da Lei n. 10.257 em 2001, conhecida como Estatuto


da Cidade, inovou o cenário jurídico nacional, concretizando princípios
constitucionais previstos no título “Da Política Urbana” da Carta Magna,
com a criação de instrumentos e mecanismos que dariam efetividade a
uma nova política urbana nacional.
Princípios antes de contorno pouco preciso e de conteúdo inexplorado,
ganharam substância com a edição da lei federal, tais como os princípios
da função social da cidade e função social da propriedade urbana. Este
último sendo um tanto quanto mais conhecido e debatido que aquele, mas
que aqui também ganha mecanismos para maior efetivação.
A função social da propriedade passa a ser compreendida a partir da
política de planejamento urbano delineada no plano diretor de cada cidade:

(...) esses instrumentos urbanísticos têm forte inspiração na


ideia, central para o novo Direito Urbanístico brasileiro, de que
o direito de propriedade urbana não tem seu conteúdo definido
pelo proprietário do terreno e de que é o interesse público e as
funções sociais da cidade que conformarão os contornos do
exercício desse direito. Essa regulação pública acerca do direito
de propriedade não apenas limita-o administrativamente, mas
atinge-o em sua essência e redefine-o, retirando-lhe qualquer
autonomia ou caráter absoluto.3

1 Mestre em Cooperação Internacional e Desenvolvimento Urbano pela TUD Darmstadt/Alemanha, bacharel


em Direito, assessora jurídica da Terra de Direitos, membro do Comitê Popular da Copa de Curitiba e Obser-
vatório de Políticas Públicas Paraná. E-mail: luanacoelho@terradedireitos.org.br .
2 Graduanda em Direito pela UFPR
3 ALFONSIN, B. M. Dos instrumentos da política urbana. In: Estatuto da Cidade Comentado, por Liana
Portilho Mattos, 107-129. Belo Horizonte: Mandamentos, p. 108.

567
Percebe-se por todo o processo de construção de tal legislação (desde
a inclusão do título “Da Política Urbana” na constituição de 1988, objeto
de conquista de movimentos populares) e os amplos debates que precede-
ram sua edição, corroboram para seu significativo teor sociopolítico, com
carga principiológica também expressiva, própria das reivindicações de
movimentos sociais por luta pela moradia e reforma urbana, em especial.
O Estatuto da Cidade tenta preencher uma lacuna legislativa no tocante
à administração da cidade e ser instrumento de reforma urbana. Mas o
que exatamente isto significa? Os problemas urbanos, principalmente
aqueles dos grandes centros, são conhecidos por todos os brasileiros: ci-
dades superlotadas, imensa desigualdade social, assimetria na prestação
e acesso a serviços públicos, parte expressiva da população vivendo em
condições degradantes de miserabilidade humana. E qual a obrigação
do Estado perante a escassez de moradia, de serviços urbanos básicos
como saneamento e educação, perante tais cenas de miséria indignas à
condição humana? Por muito tempo legou-se a iniciativa privada ou ao
mercado o fornecimento de certas necessidades básicas, como a moradia.
Entendia-se (e ainda há muitos que assim o entendem) que não seria pa-
pel do Estado garantir certos direitos sociais, mas que este deveria atuar
de forma controladora, inibindo a formação de novas áreas de ocupação
irregular (favelas), que seriam o foco da miséria urbana.4 Fato é que, o
trabalho de prevenção (se é que a repressão pode ser assim entendida),
não poderá resolver uma realidade fática, consolidada e duradoura, das
cidades brasileiras. O discurso do ilegal ou irregular não mais justifica o
descaso do governo com as populações de baixa renda que, por motivos
vários, formam as favelas das grandes cidades.5 Ademais, o fenômeno das

4 O autor defende que “não se pode admitir, por outro lado, que, a pretexto de adaptar o direito à realidade,
se pretenda legitimar a ocupação irregular do solo urbano” (Pinto 2011). Posição da qual discordamos, pois
o Direito, neste caso, agiria de forma a não efetivar os direitos sociais, e sim como simples instrumento de
manutenção da atual situação de desigualdade no uso do solo urbano.
5 É imperativo reforçar que processos migratórios do campo para cidade, ocasionados pela atração da cidade em
ofertar serviços e emprego, é um fenômeno global. Contudo, diferentemente da lenta urbanização visualizada
na Europa durante a Revolução Industrial, os países em desenvolvimento estão vivendo um processo acelerado
de urbanização que não acompanha a oferta por serviços no espaço urbano, o que tem sido identificado como
processos de “urbanização da pobreza”

568
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ocupações fundiárias irregulares, historicamente, não é uma prerrogativa


das populações de baixa renda, basta estudar a situação da grilagem de
terras pelo país.
O fato é que o alto custo de vida nas cidades grandes impossibilita
que trabalhadores assalariados (mínimo nacional) possam viver na cidade
formal e, desta forma, todas as distorções na ocupação do solo são con-
seqüência natural do estágio de desigualdade, especialmente econômica,
vivenciado pela nossa sociedade, somado ao déficit do Estado em prover
serviços essenciais6.
O Estatuto da Cidade, ao traçar diretrizes para o uso e gestão do solo
urbano, leva em consideração essa cidade das desigualdades, com todas
as distorções existentes no uso e gozo das facilidades que a cidade ofe-
rece. Portanto, o estatuto visa resguardar direitos daqueles que vivem
uma realidade fática, que são parte essencial do sistema urbano, mas são
ignorados - ou eram até a edição da referida lei - pelo Direito nacional.
Seu significado como instrumento jurídico é de caráter revolucionário,
como bem explica Betânia Alfonsin:

Para o Direito brasileiro, o significado é tão ou mais importante:


rompemos com a tradição de regulação do direito de propriedade
pela matriz do liberalismo jurídico clássico adotado pelo Código
Civil e o alcance da novidade revoluciona o Direito Público Brasi-
leiro, dando um vigoroso corpo ao ramo do Direito Urbanístico.7

Após onze anos de sua promulgação, o Estatuto da Cidade ainda carece


de estudos, práticos e teóricos, que lhe garantam maior efetivação. Vários
dos mecanismos ali inseridos são ou de complexa implementação - o que
prescinde de grande esforço técnico-político -, ou de viés exclusivamente
político - uma vez que devem estar inseridos na política de planejamento

6 A ausência de programas habitacionais no Brasil não fornece alternativas de moradia à população de baixa
renda. Os poucos programas habitacionais existentes são ineficientes e repetem erros básicos, como forne-
cimento de casas sem acesso a serviços básicos ou a emprego. Como será discutido com mais acuidade em
momento posterior deste artigo, o direito a moradia está longe de ser compreendido como tendo conteúdo
somente no objeto físico casa, pois garantir moradia é tarefa bem mais complexa.
7 ALFONSIN, op. cit. p. 110.

569
urbano. Estes dois fatores têm diferido o processo de concretização da
política urbana tal qual idealizada no Estatuto.
Sem querer abordar todos os aspectos controversos encontrados no Es-
tatuto da Cidade, este artigo irá centrar a análise no instituto da usucapião
especial coletiva urbana. Sendo um dos mecanismos que busca realizar
a função social da propriedade urbana e, sobretudo, promover a regula-
rização fundiária, esta espécie de usucapião criada pela nova legislação
apresenta-se ainda de complexa execução. Interpretações equivocadas do
instituto e apego a preciosismos burocráticos próprios da prática civilista
podem pôr por terra a possibilidade de sua aplicação prática.
Tendo como base de fundo a atuação em litigância estratégia da Or-
ganização de Direitos Humanos, Terra de Direitos, em processos de regu-
larização fundiária de terrenos urbanos, o estudo deste instituto aqui se
propõe a tentar promover um debate tanto de base normativa quanto de
atuação jurisdicional, de forma a indicar os principais entraves ou desafios,
sua origem e, ao fim, avaliar o atual cenário e propor alternativas. Para
tanto, será utilizado como exemplo, o caso emblemático da comunidade
do Sabará, no município de Curitiba.
As vilas que compõe o chamado bolsão Sabará na região da Cidade
Industrial de Curitiba, originaram-se de ocupação espontânea que iniciou
em 1988. Os ocupantes eram trabalhadores oriundos do êxodo rural e
atraídos pela industrialização das cidades ou aqueles de baixa renda
expulsos do centro urbano. Encontraram um espaço destituído de equi-
pamentos urbanos e qualquer estrutura. Construíram suas moradias, bem
como promoveram o esforço conjunto para prover a região com condições
mínimas de urbanização. Aos poucos, lá começaram a passar linhas de
ônibus, foram construídas escolas, pois que o poder público não podia
mais fechar aos olhos para as pessoas que ali viviam.
Diante deste quadro, a COHAB – CT, Companhia de Habitação Popular
de Curitiba, dizendo serem seus os terrenos ocupados, buscou os mora-
dores para providenciar a regularização fundiária da área. Firmou com os
moradores “Termos de Concessão de Uso do Solo”, os quais obrigavam

570
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

os moradores com parcelas mensais, com a promessa de que ao fim do


pagamento eles receberiam a titulação da área. Entretanto, o que ocorreu
foi que quando da quitação das parcelas, os moradores não receberam
a escritura de seus terrenos. Descobriu-se, então, que grande parte dos
terrenos negociados pela COHAB não eram de propriedade desta e/ou não
tinham suas matrículas regularizadas. O Ministério Público entrou com
uma ação declaratória de nulidade dos contratos, que foram anulados em
sentença confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça.
Indignados com a atuação do poder público, os moradores iniciaram
um processo de mobilização em suas comunidades, buscaram assessorias
jurídicas e constituíram associações de moradores. Seu objetivo era a
regularização fundiária de sua área, encontrando nas ações de usucapião
especial coletiva a solução mais adequada para aquela realidade. Quatro
ações foram propostas no ano de 2008, sem que até o momento tenha
nenhuma decisão em sede de primeira instância.

2. DA USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVA:


BREVE INTRODUÇÃO AO INSTITUTO.

A usucapião especial para fins de moradia não é inovação do Estatuto


da Cidade, sendo já detalhadamente descrita na própria Constituição Fe-
deral de 1988. Sua forma coletiva, porém, é espécie inédita.
Dita o art. 10 da Lei n. 10.257/2001 que:

As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros


quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua
moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição,
onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada
possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente,
desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel
urbano ou rural.

Do conceito legal já se podem extrair os requisitos materiais para re-


quisição da usucapião coletiva:
1) ser a ocupação em terreno maior que 250 m², considerando que a me-

571
tragem de 250 m² é o limite para a usucapião individual, qualquer terreno
que exceda tal extensão já é passível de ser usucapido coletivamente, ou
seja, por dois ou mais possuidores.
2) Ocupação por população de baixa renda, a legislação aqui não aponta
critérios para aferir o que é baixa renda. Portarias ministeriais, contudo,
indicam critérios de baixa renda para diversos programas sociais8. Resta
saber se, no momento de instruir a demanda coletiva, será necessário
prova desta circunstância.
3) Ocupação para fins de moradia, este requisito exclui a possibilidade
de usucapião para aqueles detentores de pequenos comércios ou imóveis
para locação, o que é muito comum em tais aglomerados. O terreno objeto
da ação de usucapião especial deve ser comprovadamente utilizado como
moradia pelos requerentes e suas famílias.
4) Posse ininterrupta e sem oposição, critério este comum a outras
espécies de usucapião, onde a posse deve ser mansa e pacífica, além da
permanência temporal.
5) Impossibilidade de identificar os terrenos ocupados por cada possuidor,
se fosse possível tal identificação, não seria necessário fazer a demanda
coletivamente, este requisito portanto justifica a própria existência do
instituto, já que a grande densidade das ocupações irregulares são um dos
grandes entraves para seu processo de regularização fundiária.
6) Não ser possuidor de outro imóvel urbano ou rural, requisito também
comum ao usucapião especial individual, tem fins claros de assegurar
o direito à moradia àqueles que não o possam realizar de outra forma,
evitando beneficiar outros que não se enquadrem em tal situação. Mas a
prova deste quesito é ponto que deve ser atentamente debatido.
Dos requisitos materiais elencados supra já se podem inferir uma séria
de entraves para proposição da demanda coletiva, tendo em vista a reali-
dade prática das aglomerações urbanas de população de baixa renda. Cada

8 O Programa do Governo Federal Minha Casa Minha Vida, por exemplo, determina como baixa renda uma
renda familiar de até R$ 1.395,00. Já o Ministério do Desenvolvimento Social estipula que será considerado
baixa renda para fins de constar no cadastro único de programas sociais “as famílias de baixa renda que são
aquelas com renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo e as que possuam renda familiar
mensal de até três salários mínimos”. (Ministério do Desenvolvimento Social 2012)

572
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

um destes entraves será analisado detalhadamente no tópico seguinte.


A lei também elenca requisitos processuais próprios para a demanda
coletiva. O primeiro deles refere-se aos legitimados9 a propor a ação
de usucapião especial, previsto no art. 12. Além dos possuidores em
estado de composse, podem ainda intentar a demanda como substituo
processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente
constituída, desde que explicitamente autorizada pelos representados.
Prevendo a possibilidade de substituto processual, a lei deixa claro que
sua legitimidade depende da autorização de todos os representados de
forma explícita, ou seja, todos eles deverão expressar sua vontade em
documento de representação.
Será ainda obrigatória à intervenção do Ministério Público (art. 12 § 1°)
em todas as ações de usucapião especial urbana, seja ela individual ou
coletiva. E o rito na ação judicial de usucapião especial de imóvel urbano
a ser observado é o sumário (art. 14).
Dispõe o art. 13 que a usucapião especial de imóvel urbano poderá
ser invocada como matéria de defesa. Aliás, na pendência da ação de
usucapião especial urbana, ficam sobrestadas quaisquer outras ações,
petitórias ou possessórias, que venham a serem propostas relativamente
ao imóvel usucapiendo (art.11).
As consequências da sentença que reconhece a demanda coletiva
são, inicialmente, 1) sua validade como título para registro no cartório de
registro de imóveis, para o qual a lei prescreve gratuidade (art. 12 § 2º);
2) a determinação de fração ideal igual de terreno a cada possuidor, que
poderá ser diferente contanto exista acordo escrito entre os condôminos,
estabelecendo frações ideais diferenciadas (art. 10 § 3°); e 3) a constituição
de condomínio especial.
O condomínio especial, sua natureza jurídica e seu funcionamen-
to, restam obscuros. O tratamento legal é sucinto e pouco elucidativo,
criando grande problema para a compreensão do instituto, já que este é

9 Tramita no Congresso Nacional projeto de lei (PLS 49/09) que altera o Estatuto da Cidade para incluir o
Ministério Público e a Defensoria Pública entre as partes legítimas que podem propor a ação de usucapião
especial coletiva urbana.

573
o resultado final da sentença que reconhece a demanda coletiva. Sendo,
assim, seu objeto final, o condomínio especial deveria ter sido abordado
com mais acuidade.
Segundo a lei, art. 10 §4°, o condomínio especial constituído é indivisí-
vel, não sendo passível de extinção. Tal extinção somente poderia ocorrer
no caso de sobrevir execução de urbanização posterior à constituição do
condomínio, mesmo assim pendente de deliberação favorável tomada
por, no mínimo, dois terços dos condôminos.
Sobre a administração do condomínio, o Estatuto da Cidade não entra
em pormenores, somente dispõe sobre o quorum necessário às delibe-
rações relativas à administração do condomínio especial, que devem
ser tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando
também os demais, discordantes ou ausentes (art. 10 § 5°).
Após introduzir, sucintamente o instituto da usucapião especial cole-
tiva, passamos a análise crítica dos requisitos legais e das lacunas deixa-
das pela legislação, demonstrando como estes podem comprometer sua
utilização pelas populações cujo instituto visa amparar.

3. DISSONâNCIAS ENTRE AS EXIGÊNCIAS


LEGAIS E A REALIDADE URBANA BRASILEIRA

A regularização fundiária tem se tornado um grande desafio nas cida-


des brasileiras, ao mesmo tempo em que constitui uma grande demanda
das populações vivendo em situações de irregularidade fundiária. Dos
mecanismos de regularização fundiária hoje existentes, a diferenciação
se faz relativamente à propriedade da terra ocupada, havendo a conces-
são especial de uso para fins de moradia, no caso de ocupações de terras
públicas; e a usucapião especial coletiva urbana para o caso de terrenos
de propriedade de particulares. Recentemente, a Lei n. 11.977/2009, que
institui o programa Minha Casa Minha Vida, cria outro instrumento de re-
gularização fundiária, a demarcação urbanística. Este instrumento permite
que o Poder Público municipal demarque imóveis de domínio público ou

574
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

privado, identifique ocupantes e qualifique a natureza e tempo de posse,


para que em seguida, legitime a posse dos ocupantes através da entrega
da escrituração dos terrenos.
A regularização fundiária em terrenos particulares a ser promovida
diretamente pelos interessados (sem o intermédio do poder público) é
possível através da utilização da usucapião especial coletiva. É relevante
frisar esta condição, pois entraves postos a efetivação da ação são en-
traves que diretamente afetam a possibilidade de regularização fundiária
nestes casos.

3.1 Requisitos materiais


3.1.1. Finalidade única de moradia

O primeiro problema ou entrave trazido pela legislação diz respeito


à possibilidade de requisição da usucapião especial coletiva se a área
for ocupada somente para fins de moradia. Esta exigência legal pode
inviabilizar o uso deste instituto por desconsiderar a realidade que pre-
tende “proteger”.
Dificilmente em um aglomerado urbano de população de baixa ren-
da, áreas de ocupação irregulares são compostas somente de moradias.
Vários moradores possuem também um comércio ou prestam serviços.
Tais atividades não somente representam sua fonte de renda e de sua
família, como abastece a própria população local dos produtos e serviços
ali ofertados10.
Ou seja, temos aqui uma exigência legal que não corresponde à rea-
lidade fática, que pode dificultar enormemente a mobilização da popula-
ção, em especial detentores de comércios, para promoção da demanda
coletivamente. Fato este que restringe em grande monta os possíveis
beneficiários deste instrumento legal.

10 Populações estas que, sendo de baixa renda, se ainda tiverem que se locomover grandes distâncias para
fazerem compras, comprometem ainda mais sua situação de vulnerabilidade. Estudos realizados na cidade
de Belo Horizonte demonstram que a remoção de pequenos comércios em intervenções de urbanização que
preveem somente o reassentamento habitacional tem provocado impacto negativo nas comunidades reassen-
tadas, que precisam percorrer grandes distâncias para fazer compras, além da perda do vínculo de confiança
geralmente existente entre a população local e as pequenas vendas.

575
Pretendendo resguardar o direito à moradia, o legislador detém uma
compreensão errônea do que este direito significa ou qual seja seu con-
teúdo. O conteúdo de direito à moradia tem sido desenvolvido através de
estudos em outras disciplinas do conhecimento, tais como urbanismo,
antropologia, geografia e sociologia, no âmbito dos estudos urbanos,
mas ainda pouco explorado pelo ramo do Direito. A relatoria especial
das Nações Unidas para o Direito à Moradia identifica que o conteúdo
deste direito está muito além da ideia de quatro paredes e um teto. Para
a relatora da ONU, o direito à moradia adequada pressupõe: segurança
da posse; disponibilidade de serviços, infraestrutura e equipamentos
públicos; custo acessível; habitabilidade; não discriminação e priorização
de grupos vulneráveis; localização adequada; e adequação cultural.11
A desvalorização do aspecto cultural do espaço construído reflete nas
políticas públicas de habitação social, que tendem a serem construções
homogêneas, padronizadas, simplesmente “plantadas” onde quer que
se localize o programa habitacional. Na efetivação do direito à moradia
no Brasil ainda é flagrante a falta de entendimento acerca do conteúdo
adequado deste direito, em especial na atuação prestacional do Estado
voltada à concretização do direito para grupos socialmente excluídos.
David Harvey em seu livro Social Justice and the City já alertava para o
fato que as políticas públicas que visam influenciar o sistema urbano devem
conciliar as estratégias de design ou direcionadas a forma espacial (local
dos objetos, como casas, vias, plantas etc) com medidas que influenciam
o processo social que vigora nas cidades. Somente assim, para o autor,
seria possível alcançar resultados sociais coerentes. Harvey, contudo,
constata que estamos longe de conseguir conciliar estes dois aspectos
nas intervenções urbanas e indica duas razões para tanto. A primeira ele
aponta como inerente a complexidade do próprio sistema urbano e, como
segunda razão, a tradição acadêmica míope da monodisciplinaridade,
enquanto o sistema urbano implora pelo tratamento interdisciplinar.12

11ROLNIK, Raquel. Direito à moradia. 2012. Disponível em <http://direitoamoradia.org/?page_


id=46&lang=pt> Acesso em 05 de Julho de 2012.
12 HARVEY, David. Social Justice and the City. Athens: The University of Georgia Press, 2009, p. 50.

576
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Percebemos, portanto, que ao adotar uma visão simplista e restritiva


do direito à moradia, excluindo da proteção legal outros usos da proprie-
dade urbana (comercial, locação ou serviços) pela população de baixa
renda, os dispositivos normativos que prescrevem a usucapião especial
coletiva estão retirando de seus destinatários a possibilidade de aceder
à moradia adequada, ou seja, aquela que não somente garante um teto,
mas também o acesso a serviços e, principalmente, à renda. Pois como
dito anteriormente, sem acesso à renda e à possibilidade de suprir os
custos da habitação, indiretamente está se tolhendo o acesso ao próprio
direito à moradia.
A falta de compreensão do objetivo final do instituto por parte do Ju-
diciário pode levar a exigências que inviabilizem a demanda, como nos
casos de requerimento de perícia para atestar o cumprimento do requisito
legal do uso exclusivo para moradia.

3.1.2 Não possuir outro imóvel urbano ou rural

Tal como no caso acima, acerca dos moradores que possuem comér-
cios, será o fato de moradores serem possuidores de imóvel rural ou de
outro imóvel urbano destinado à locação. Isto porque a situação diversa
dos moradores de uma mesma porção de terreno poderá ser elemento
complicador na demanda coletiva, já que alguns dos possuidores não
fariam jus a postular com os demais.
Para além disso, há também a chance de um possuidor ser proprie-
tário de imóvel rural, mas em tal localidade ou em tal circunstância que
exatamente o levou o migrar para cidade. Ou seja, a propriedade rural
pode estar localizada em região onde seu cultivo produtivo ou lucrativo
seja impossível e, portanto, gerando a própria situação de vulnerabilidade
e pobreza de seu proprietário. Sabe-se que grande porção da população
de ocupações irregulares das grandes cidades brasileiras é oriunda de
zonas rurais do país.
O possuidor de outro imóvel urbano, da mesma forma, poderia con-

577
figurar como aquele morador que destina imóvel à locação e, com tal
atividade, produz sua renda familiar. Assim, impedir que este demande
coletivamente a usucapião de imóvel em locação inviabiliza sua partici-
pação na demanda coletiva, pois sua aceitação implica na extinção de
sua fonte de renda.
Percebe-se, portanto, que tais critérios não poderiam ser absolutos.
A lei deveria prever uma associação de critérios, tal como levar em con-
sideração a renda familiar, para evitar a exclusão do rol de beneficiários
de pessoas que verdadeiramente fariam jus à demanda coletiva. Pois,
como dito, ser possuidor de outro imóvel não é, necessariamente, fator
que retira aquele possuidor da situação de vulnerabilidade social ou como
pessoa de “baixa renda”.
Nos processos de usucapião coletiva das vilas do Sabará, tem sido
recorrente o argumento de que não houve prova nos autos de que os
requerentes não possuem outro imóvel urbano ou rural. Tendo em vista
que os processos abarcam, em média, 300 famílias requerentes, a produ-
ção de prova individual tornaria impossível a demanda. A exigência de
prova individual em processo coletivo denota a incompreensão do Poder
Judiciário com as demandas coletivas e suas peculiaridades. Em havendo
conjunto probatório claro que uma comunidade é de baixa renda, ocupan-
do terrenos há mais de 20 anos, não é razoável adotar uma visão restritiva
da hermenêutica legislativa, exigindo prova negativa impossível, que a
natureza coletiva da demanda dispensa, ou melhor, inviabiliza.
É possível perceber que, neste tópico, temos duas dificuldades: uma
da própria técnica legislativa de fazer exigência individual, mas também
de aplicação jurídica, ao interpretar as exigências legais sob as lentes do
processo individual e não conseguir oferecer soluções que visem à reso-
lução do problema concreto.
3.2 Requisito processual: representatividade via associação ou adesão
de todos os possuidores
Como explicitado acima, são legitimados a propor a usucapião coletiva
os possuidores em estado de composse ou a associação de moradores,

578
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sendo que a lei aqui se refere à necessidade de autorização explícita de


cada um dos interessados.
Veja que a interpretação restritiva de tal exigência, de modo a refletir
na cobrança judicial de anuência expressa por todos os possuidores,
pode representar requisito processual que leve a quase total inaplicabi-
lidade da demanda coletiva em grandes aglomerados informais. Isto por
dois motivos: a um, a possível heterogeneidade entre os possuidores (no
mesmo terreno pode haver aqueles que não fazem jus a demanda, como
possuidores de comércio ou imóvel em locação) e entre os lotes (tamanhos
e ocupações variados) pode ser fator complicador de consenso unânime
necessário; a duas, a utilização de substituto processual via associação
de moradores depende da existência de uma entidade que detenha boa
representatividade perante os moradores e legitimidade - o que está sujeito
de uma relação de confiança. A dificuldade desta tarefa decorre do sim-
ples fato que qualquer desconfiança nos representantes da associação de
moradores pode romper sua legitimidade e comprometer todo o processo.
Veja que a consequência prática desta exigência (anuência expressa
de todos os possuidores) restringe a possibilidade de uso do instrumento
da usucapião especial coletiva a pequenos aglomerados ou a pequenos
grupos de possuidores, uma vez que em qualquer outra escala, a comple-
xidade natural de tais ocupações já inviabiliza a coordenação diante das
diversidades e dissidências. Afinal, como se faria a regularização fundiária
de um terreno quando há ilhas em seu interior não passíveis de serem
usucapidas coletivamente? Poderia ocorrer a regularização de forma não
uniforme e descontínua?
Na prática esta exigência tem sido fonte de grandes controvérsias.
Aqueles que tentam conseguir a anuência expressa de todos os mora-
dores acabam por demorar anos para constituir o material necessário a
protocolização da demanda, pela dificuldade de mobilização necessária
de toda a comunidade. Uma saída encontrada no caso das demandas
interpostas para as vilas do Sabará, em Curitiba, foi utilizar-se da asso-
ciação de moradores como substituto processual, sob o argumento, já

579
consolidado na jurisprudência, de que é desnecessária a anuência ex-
pressa dos representados nestes casos13. Das quatro ações protocoladas,
somente em uma delas o juiz exigiu o cumprimento da letra da lei, com
a juntada de autorização expressa de maioria dos moradores figurados
como requerentes na ação. Tal exigência foi suprida através da realização
de assembléia na comunidade, que conseguiu reunir certa de 80% dos
moradores que compunham a demanda, o que foi aceito como satisfatório
para cumprimento do requisito legal.

3.3 Condomínio especial: resultado final da demanda coletiva

Instituto que necessita de estudo mais detalhado é a figura do condo-


mínio especial, que surge como consequência da sentença que reconhece
a posse coletiva. Como dito anteriormente, o Estatuto da Cidade não se
ateve a dispor de pormenores sobre o funcionamento ou extinção deste
condomínio especial, o que gera inúmeras dúvidas e possíveis errôneas
interpretações.
O primeiro grande equívoco interpretativo, que já vem sendo cometi-
do por alguns juristas ao comentar tal dispositivo14, é aquele que leva o
aplicador do direito a utilizar o instituto do condomínio previsto no art.
1.314 e seguintes do Código Civil analogamente ao condomínio especial
do Estatuto da Cidade.

(...) a própria sentença constitui um condomínio, entre os co-


-proprietários, para a administração das partes comuns do ter-
reno, ou seja, como será a utilização e limpeza das vielas, dos
becos, das praças ou de outros espaços comuns. Dentro de cada
residência (barraco ou pequenas casas de alvenaria), o proprie-
tário exerce plenamente seus poderes. Assim, as deliberações do
condomínio irão incidir apenas sobre as áreas comuns e outros
temas de interesse da coletividade de moradores.15

13 STJ - AgRg nos EREsp 497600-RS, AgRg no REsp 911288-DF, REsp 1159101-RS, AgRg no AgRg no Ag
1157523-GO

14 (Ferraz 2006), (Olimpio s.d.).


15 (Olimpio s.d.)

580
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Ora, tal entendimento é absurdo! Estes moradores não detêm mais


direito a serviços públicos básicos como limpeza urbana ou recuperação
de vias públicas, instalação de luz e todos os demais direitos assegurados
a todos os cidadãos? Ou seja, leva-se ao absurdo de imaginar que a regu-
larização da propriedade pela via coletiva afasta destes moradores direitos
que todos os cidadãos urbanos possuem, até que ocorra a urbanização.
E se tal urbanização nunca ocorrer ou ocorrer após longos anos? O con-
domínio especial é uma forma de copropriedade, mas nunca uma forma
de privatização do espaço urbano de forma que intervenções localizadas
pelo poder público passem a ser proibidas.
O problema quanto à responsabilidade pelas as áreas comuns não pode
ser resolvido pela legislação civilista, pois tais institutos não têm qualquer
relação que autorizem tal analogia. Há aqui, novamente, que evocar o es-
pírito da lei para compreender que este processo não pode vir a prejudicar
os beneficiários, ou seja, isto não pode significar que os condôminos são
os únicos responsáveis pela preservação ou manutenção de áreas comuns
(vias, praças, ruas, becos), que são na verdade áreas públicas (o que uma
futura urbanização confirmará) e devem ser mantidas pelo poder público.
Há de se ter em conta que as áreas que podem ser objeto de tal ação
não estão em estágio inicial de formação, até mesmo porque um dos
requisitos processuais é o decurso do tempo. Desta forma, na atual si-
tuação brasileira nestes casos, é provável que já exista na área alguma
interferência no poder público, como a construção de rede de esgoto ou
iluminação, ou até mesmo a presença de postos de saúde ou escolas. Tais
serviços deverão ser mantidos normalmente pelo Poder Público, sob pena
de o resultado da ação coletiva de usucapião vir a ter efeitos negativos
para as populações que o Estatuto da Cidade intencionava proteger, pois já
vivem em situação de extrema vulnerabilidade e desprovidos de inúmeros
de seus direitos constitucionais de cidadãos.
Outro problema que se visualiza na constituição do condomínio espe-
cial, é no que diz respeito à titularidade de terrenos individuais. A sentença
que reconhece a demanda e constitui condomínio especial apto a regis-

581
trar no cartório de registro de imóveis, determina a cada possuidor uma
fração ideal igual, que não necessariamente condiz com as dimensões do
terreno. Para que os terrenos sejam individualizados deve ser feito acordo
escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
Tal situação nos defronta com dois problemas de ordem prática: a
viabilidade de se fazer um acordo entre os condôminos delimitando os
lotes, uma vez que é critério para a própria propositura da ação a “im-
possibilidade de identificar os terrenos ocupados por cada possuidor”; e
uma possível incompatibilidade entre normas urbanísticas locais (ex: lei
de Uso e Ocupação do Solo Urbano) que delimita a dimensão mínima do
lote urbano. Fica a pergunta: se o possuidor, ao final da divisão da fração
ideal, possuir lote inferior ao limite determinado em norma municipal,
poderá fazer o registro? Se a lei não nos dá a reposta, resta-nos concluir
que além de todas as exigências já estudadas, as áreas usucapidas co-
letivamente ainda deverão estar em zoneamento urbano que possibilite
flexibilização de regras urbanísticas convencionais (como estar em área
de Zeis – zona de especial interesse social).
É fácil prever, ademais, a dificuldade de convencer possuidores – cada
um com diferentes situações de posse – em aceitar um condomínio espe-
cial onde todos tenham fração igual. No caso do acordo entre eles para
determinar as frações diferenciadas, resta o problema de ordem técnica de
fazê-lo, se for impossível determinar o terreno ocupado por cada possuidor.
A lei também silencia sobre a possibilidade de transferência de titulari-
dade pelos condôminos no condomínio especial, ou seja, uma vez formada
a propriedade coletiva fica a dúvida acerca da possibilidade de transfe-
rência pelos titulares (venda, doação etc.) das frações que lhe couberam.
Sabe que a mobilidade, própria da vida urbana, gera situações onde um
coproprietário necessite transferir a titularidade da parte que lhe cabe.
Sendo a propriedade um direito disponível e, constituindo a titularidade
da fração ideal um direito individual, dele o titular pode dispor da mes-
ma forma que ocorre com o regime de propriedade privada. Certamente
será um desafio a gestão de tal propriedade, com inúmeras titularidades,

582
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

perante o Registro de Imóveis, mas o certo é que se deve evitar a buro-


cratização do exercício do direito enquanto perdurar o condomínio, que
se desfaz somente com a urbanização.
Ainda acerca do condomínio especial, outra lacuna ou imprecisão le-
gislativa é concernente a sua extinção. O §4° determina que o condomínio
especial não é passível de extinção, salvo em uma única circunstância, que
é a superveniência de processo de urbanização, desde que submetida a
aprovação de dois terços dos condôminos. Entretanto, a lei não explicita
o que ocorre com a titularidade da propriedade, nem quem é competente
para deliberar sobre o processo de transferência desta após o processo
de urbanização. Não há definição, do mesmo modo, se esta urbanização
pressupõe um parcelamento do solo e uma reconfiguração da ocupação
que se configurava.
A dificuldade que se visualiza é que, os processos de regularização
fundiária empreendidos através da usucapião coletiva, pressupõem certa
ausência do Estado em promover este processo por outras formas, como
restou claro no caso das vilas do Sabará. Neste cenário, a concretização da
regularização não pode restar dependente da iniciativa do poder público.
É razoável, portanto, que se proceda ao registro cartorário considerando
a definição das frações ideais, iguais ou diferenciadas, conforme acordo
prévio entre os condôminos (presente na sentença), sendo desnecessário
novo parcelamento do solo para efeitos de registro.
Registradas as frações ideais, a superveniência de urbanização deve
considerar o direito de propriedade consolidado no registro, o que impõe a
negociação com os condôminos para cessão de terrenos que servirão para
construção de vias ou demais equipamentos públicos, considerando os
direitos decorrentes, como ocorre em qualquer outra situação semelhante.

4. CONCLUSÃO

Por todo o discutido, é possível concluir que não é sem motivos que
no Brasil, mesmo após onze anos de edição da Lei n. 10.257/2001, tantos

583
entraves ainda se apresentem, tanto para a população interessada quan-
to para o Poder Judiciário, para o reconhecimento de uma demanda de
usucapião especial coletiva urbana.
No caso utilizado aqui com exemplo na cidade de Curitiba, as quatro
ações de usucapião espacial coletiva intentadas há mais de cinco anos
não tem sequer previsão de decisão de primeira instância. Essa lentidão
no transcurso do processo pode ser associada primordialmente a incom-
preensão por parte do judiciário sobre como proceder frente de demandas
coletivas, em especial na constituição de provas, cuja sistemática não pode
ser reproduzida de uma demanda individual.
Apesar de o Estatuto da Cidade ter representando grande avanço no
direito brasileiro, rompendo com a tradição privatista de compreensão
da propriedade urbana e introduzindo conceitos inovadores como a fun-
ção social da cidade, este conjunto normativo apresenta ainda lacunas
e imprecisões que merecem, por um lado, estudo detido por parte dos
estudiosos do Direito de forma a garantir sua efetiva aplicabilidade; por
outro lado, encontra desafios quanto ao enfrentamento do tema por parte
dos Tribunais. Como argumentado ao longo deste artigo, alguns dos ins-
trumentos de direito urbanístico previstos no Estatuto da Cidade são, por
vezes, de difícil aplicação, sendo somente possível de se concretizarem
se houver um alargamento interpretativo dentro da lógica sistêmica do
conjunto normativo legal e constitucional.
O Direito Urbanístico é ainda carente de estudos que levem em conta
aspectos interdisciplinares da situação analisada que captem a com-
plexidade do fenômeno urbano. Não há como avançar na disciplina se
nos ativermos estagnados na euforia pela conquista legislativa, quando
há ainda muito que se fazer para conseguir dar efetividade ao Estatuto
da Cidade em toda sua potencialidade, como norma transformadora da
realidade urbana. Não há como negar, como já foi afirmado, que o esta-
tuto vem preencher uma lacuna legal e, portanto, sua importância como
instrumento de reforma urbana não há como ser questionado. Contudo, a
realidade está cheia de exemplos e outros ramos do conhecimento estão

584
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

repletos de estudos apontando para as limitações das regulações jurídicas


em atender as demandas reais da população urbana, inclusive o próprio
Estatuto da Cidade.
A complexidade em implementar a usucapião especial coletiva, objeto
de análise neste trabalho, assim como as complicações que podem surgir
pelo rigor legislativo em sua utilização, não são particularidades deste ins-
tituto, mas também se encontram presentes em vários outros instrumentos
do Estatuto da Cidade (a concessão de uso especial para fins de moradia
apresenta contornos semelhantes). Ademais, alguns dos instrumentos
urbanísticos podem vir a ser utilizados com desvio de finalidade, sem
atender ao objetivo de reforma urbana – entenda-se como redução das
desigualdades no uso da cidade e a promoção do uso sustentável – que
foi o fim maior da edição da referida norma.
O Direito necessita, sob pena de pairar no mundo da ilusão, de ver a
realidade que pretende regular. Não há como conceber as normas como
um “dever ser” completamente desconectado do “ser”. Se o objetivo de
instrumentos urbanísticos como a usucapião especial coletiva é garantir
segurança da posse a milhares de famílias vivendo e ocupações irregula-
res nas cidades brasileiras e garantir o direito à moradia, cabe ao Direito
compreender, primeiramente, o que é o próprio direito à moradia e quais
os elementos que o compõe, sob pena de, ao querer resguardá-lo, esvaziá-
-lo por completo. Como argumentado, garantir moradia é muito mais que
fornecer casa, pois para que o cidadão tenha acesso aos meios de manter
a casa (objeto físico) precisa de renda, acesso a serviços essenciais a si e a
sua família, ou seja, acesso aos meios de garantir sua sobrevivência digna.

5. REFERÊNCIAS

ALFONSIN, B. M. Dos instrumentos da política urbana. In: Estatuto da Cidade Co-


mentado, por Liana Portilho Mattos, 107-129. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
DALLARI, A. A., e S. F. Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal
10.257/2001. Sao Paulo: Malheiros, 2006.
FERRAZ, S. Usucapiao Especial (arts. 9° a 14). In: Estatuto da Cidade: Comen-

585
tários à lei federal n. 10.257/2001, Adilson Abreu Dallari and Ferraz Sérgio
(org.), 138-152. Sao Paulo: Malheiros, 2006.
HARVEY, David. Social Justice and the City. Athens: The University of Georgia
Press, 2009.
OLIMPIO, D. L. Artigos. Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte.
Disponível: <http://www.mp.rn.gov.br/download/artigos/artigo08.pdf>. Acesso
em 5 de Agosto de 2012.
PINTO, V. C. Direito Urbanístico: Plano diretor e direito de propriedade. Sao
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
ROLNIK, Raquel. Direito à moradia. 2012. Disponível em <http://direitoamoradia.
org/?page_id=46&lang=pt> Acesso em 05 de Julho de 2012.
Ministério do Desenvolvimento Social. Inclusao no Cadastro Único. 2012.
<http://www.mds.gov.br/falemds/perguntas-frequentes/bolsa-familia/cadastro-
-unico/beneficiario/cadunico-inclusao>. Acesso em 4 de Outubro de 2012.

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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Regularização fundiária
plena: inovações legislativas
em matéria de usucapião

Soraya Santos Lopes1

1. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE


E FLEXIBILIZAÇÃO DE REqUISITOS

O usucapião 2
é modo de aquisição da propriedade através da posse
continuada durante certo lapso temporal, conforme requisitos estabe-
lecidos em lei. Através do reconhecimento do usucapião, o possuidor
torna-se proprietário. Para Orlando Gomes, não se trata de uma espécie
de prescrição, mas de um instituto autônomo. Enquanto a prescrição é
negativa, porquanto nasce da inércia, o usucapião é positivo, eis que
pressupõe a posse continuada3.
Trata-se de aquisição originária4, porquanto não decorre de ato de
transmissão ou relação com o antecessor diretamente ou por interposta
pessoa. Presente o requisito da posse prolongada por determinado lapso
temporal legal, surge a pretensão do possuidor para pleitear o seu reconhe-
cimento. Tradicionalmente, o usucapião pressupõe uma sentença judicial
declaratória que serve de título de transcrição em Cartório de Registro de
Imóveis, quando o possuidor adquire o domínio, passando à condição de
proprietário do imóvel.

1 Titulação acadêmica: Doutorado e Mestrado em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia(UFBA);
Instituição: Procuradoria Geral do Estado da Bahia
Cargo: Procuradora do Estado
e-mail: sorayaslopes@gmail.com
2 Em latim, usucapio é palavra do gênero feminino. A prática predominante do foro se filiou à masculinização
do termo. O termo usucapião usado no feminino é a forma erudita. No masculino constitui a forma usual da
linguagem moderna. O Código Civil consagrou a corrente majoritária da linguagem usual. Portanto, não se
deve considerar errônea a adoção de qualquer uma das formas, erudita ou usual (GOMES, Orlando. Direitos
Reais, 12ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1996, p. 162).
3 GOMES, Orlando. Direitos Reais, 12ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1996, p. 161.
4 Para Caio Mário da Silva Pereira, somente configura aquisição originária quando se tratar de ocupação de
coisa sem dono(Instituições de Direito Civil, 4ª ed. 1981, pp. 98 e segs.)

587
A regra, portanto, tem sido a interposição de ação judicial para o re-
conhecimento do usucapião.
O usucapião tem fundamento no princípio da segurança jurídica, dando
estabilidade social, porquanto consolida as aquisições e facilita a prova
do domínio.
A teoria da função social da propriedade já vinha sendo construída por
Ihering e Duguit, reforçada pela Encíclica Rerum Novarum. Em 1917 e 1919
as constituições Mexicana e de Weimer, respectivamente, irão influenciar
definitivamente o ordenamento jurídico mundial.
Os direitos sociais são ampliados com fundamento na solidariedade,
contemplando o direito ao desenvolvimento, direito à cidade, direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Neste sentido, a CF/88 inovou com o usucapião especial urbano, pre-
visto no art. 183, no Capítulo que regula a Política Urbana, verbis:

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzen-
tos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterrupta-
mente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário
de outro imóvel urbano ou rural.

A redução do prazo para cinco anos reflete, sem dúvida, a influência


da cláusula da função social da propriedade urbana. Importante ressaltar
que na data da sua promulgação estava em vigor o Código Civil de 1916.
Portanto, as áreas urbanas acima de 250 m² tinham o usucapião regulado
por este Diploma Legal vigente à época.
O Código Civil de 1916 distinguia o usucapião ordinário do extraordi-
nário. O primeiro dependia de justo título e boa fé. Daí o lapso temporal
abreviado para 10(dez) anos entre presentes e 15(quinze) anos entre au-
sentes. A expressão justo título ensejava confusão. Para Orlando Gomes,
o título deveria ser justo no sentido de idoneidade para transferir (compra
e venda, troca, dação em pagamento, doação, legado, arrematação e
adjudicação)5. O usucapião extraordinário era caracterizado pela maior
duração da posse, 20(vinte) anos, dispensado o justo título e a boa fé. Pre-

5 GOMES, Orlando. Direitos Reais, 12ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1996, p. 169.

588
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sentes os requisitos legais, o possuidor poderia requerer ao juiz a sentença


declaratória, servindo de título de transcrição no Registro de Imóveis.
Seguindo a tendência de flexibilização, o Código Civil de 2002 atual-
mente dispensa o justo título e a boa fé, estabelecendo a redução do lapso
temporal para 15(quinze) anos.
Prevalece, todavia, o modus operandi através de interposição de ação
judicial para que o magistrado declare o usucapião por sentença.
A tendência de flexibilização dos requisitos do usucapião, sem dúvida,
reflete os valores que inspiram a cláusula da função social da propriedade.
Podemos dizer que a regularização fundiária urbana vem sendo gesta-
da desde a promulgação da Constituição de 1988, com os dispositivos da
Política Urbana contemplados nos arts 182 e 183, já inseridos na redação
original da Carta Magna. A Emenda Constitucional nº 26/2000 elevou
a moradia à categoria de direito social, pavimentando o caminho para
a instrumentalização e efetivação deste direito. Com a promulgação do
Estatuto da Cidade, Lei 10.275/2001, surgem novos instrumentos urba-
nísticos postos à disposição do Poder Local para fazer valer as cláusulas
da função social da propriedade e as funções sociais da cidade, a exemplo
do Usucapião Especial Coletivo de Imóvel Urbano.
Essa inovação foi complementada com os instrumentos previstos no
bojo da Lei federal nº 11.977/2009, contribuindo para a realização da
regularização fundiária plena.
De acordo com este diploma legal, a regularização fundiária consis-
te no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais
que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de
seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno
desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 46). Assim, dentre os
princípios6 que embasam a regularização fundiária, destaca-se a prioridade

6 Também figuram como princípios a serem observados na regularização fundiária: articulação com as políticas
setoriais de habitação, de meio ambiente, de saneamento básico e de mobilidade urbana, nos diferentes níveis
de governo e com as iniciativas públicas e privadas, voltadas à integração social e à geração de emprego e
renda; participação dos interessados em todas as etapas do processo de regularização; estímulo à resolução
extrajudicial de conflitos; e concessão do título preferencialmente para a mulher (art. 48).

589
da permanência da população de baixa renda na área ocupada, assegu-
rados o nível adequado de habitabilidade e a melhoria das condições de
sustentabilidade urbanística, social e ambiental.
Portanto, a regularização fundiária não deve estar restrita à legitimação
da posse ou registro de título, devendo ser considerada de forma plena
a realizar o direito à moradia digna.
Significa dizer, no modus operandi da regularização fundiária, não
deve ser dada prevalência à remoção extensiva como forma de enfrentar
os assentamentos irregulares, mas a observância do princípio do acesso
amplo à terra urbanizada pela população de baixa renda, com prioridade
para sua permanência na área ocupada (art. 48,I). Este princípio está
harmonizado com o direito à moradia, o acesso à cidade e à terra urbana.
Em verdade, a regularização fundiária é um projeto que deve integrar
as dimensões urbanísticas, ambientais, jurídicas e sociais.
Assim, o Estatuto da Cidade introduziu a modalidade de Usucapião
Especial Coletivo de Imóvel Urbano e a Lei 11.977/2009 inovou com o
usucapião reconhecido na instancia administrativa.

2. USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO DE IMóVEL URBANO7

O Estatuto da Cidade, no art. 10, caput, reconhece o direito ao Usucapião


Especial Coletivo de Imóvel Urbano. Da exegese do dispositivo, verifica-se
a intenção do legislador de adaptar o instituto à realidade urbana, sob o
pálio da função social da propriedade, que instrumentaliza a realização
das funções sociais da cidade, verbis:
Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta
metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para
sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição,
onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada
possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente,
desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel
urbano ou rural.

7 De acordo com a Lei 11.977/2009, área urbana é a parcela do território, contínua ou não, incluída no perí-
metro urbano pelo Plano Diretor ou por lei municipal específica (art. 47, inciso I). Cabe, portanto, ao município
definir e delimitar o contorno daquilo que considerar área urbana.

590
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

São elementos que configuram esta espécie de Usucapião: a) áreas


urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados; b) ocupa-
das por população de baixa renda para sua moradia durante cinco anos
ininterruptos e sem oposição; c) onde não seja possível a identificação
dos terrenos ocupados por cada possuidor; d) onde os possuidores não
sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Apesar de o legislador fazer referência a área urbana, o que a princípio
englobariam imóveis públicos e privados, como é cediço, os bens públicos
não estão sujeitos ao usucapião (art. 183 §3º e 191, Parágrafo Único da
CF/88). Portanto, todas as áreas públicas estão excluídas da abrangência
do dispositivo, eis que insuscetíveis de serem adquiridas por usucapião8.
O que deve ser considerado população de baixa renda?
De acordo com o art. 182, da CF/88, a política de desenvolvimento ur-
bano é executada pelo Poder Publico Municipal, tendo como instrumento
o Plano Diretor, cujo objetivo é ordenar o pleno desenvolvimento das fun-
ções sociais da cidade. O legislador constituinte, todavia, não relacionou
quais seriam as funções sociais da cidade. Como o Município é o locus da
Política Urbana, as funções sociais da cidade devem ser inerentes a cada
cidade do território nacional, devendo ser identificadas no contexto local,
ensejando o direito à cidade.
Assim, o município é o locus da regularização fundiária urbana. Em-
bora existam parâmetros objetivos genéricos para a aferição do que seja
população de baixa renda, é a realidade local que definirá. Portanto, cabe
a cada município aferir a sua condição socioeconômica e definir o limite
que caracteriza a população de baixa renda.
A exegese do referido art. 10, caput, aponta para uma área acima de
duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupada por população de baixa
renda para sua moradia onde não seja possível a identificação dos terrenos
ocupados por cada possuidor.
Sendo impossível a identificação jurídica dos terrenos ocupados, por-

8 Isto não impede, todavia, que as áreas públicas sejam objeto de intervenção de outros instrumentos ur-
banísticos, a exemplo da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia(CUEM).

591
quanto inexistem títulos translativos de domínio, conclui-se que se trata
de área sem título que legitime a ocupação. Assim, os elementos descritos
no dispositivo, em verdade, caracterizam as áreas ocupadas por aglome-
rados subnormais ou favelas.
Necessário ressaltar que o legislador alude à identificação dos terre-
nos ocupados por cada possuidor. Entendemos que essa identificação
não se refere ao título jurídico da ocupação, porquanto a intenção do
dispositivo é a recuperação de áreas degradadas. Assim, é preciso dis-
tinguir as ocupações que caracterizam favelas daquelas que constituem
verdadeiros cortiços.
Com efeito, favelas são aglomerados de casebres construídos tos-
camente em certos pontos dos grandes centros urbanos, constituindo
unidades autônomas. Nas favelas existe a possibilidade de identificar
frações ideais da poligonal e a área ocupada por unidades autônomas.
Por outro lado, os cortiços são casas de habitação coletiva. Nestes ca-
sos, é operacionalmente impossível identificar frações ideais porque há,
em verdade, um compartilhamento dos cômodos da unidade habitacional
por vários possuidores.
O usucapião coletivo deve não só promover a regularização fundiária,
mas também recuperar áreas degradadas.
É o entendimento extraído do seguinte julgado do Tribunal de Justiça
de São Paulo, verbis:

[...] a expressão ‘onde não for possível identificar os terrenos ocu-


pados por cada possuidor’, buscou alcançar situações nas quais
o ‘cortiço’ não se enquadra, mas sim as favelas estas sim, aptas
a propiciar a urbanização e assentamento definitivo, em aten-
dimento à política urbanística, já que construídas de maneira
autônoma, ao passo que nos cortiços ocupam-se os ‘cômodos’,
o que torna inviável a identificação da área de cada possuidor.
TJSP, Apelação Cível nº: 9090941-33.20069

Assim, entendemos que o dispositivo se aplica tão somente às áreas


qualificadas como aglomerados subnormais ou favelas, por absoluta im-

9 Disponível em:<https://www.esaj.tjsp.jus.br/cjsg/resultadocompleta.do>. Acesso em: 25 nov. 2011.

592
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

possibilidade operacional de contemplar os cortiços.


O art. 10 também exige a comprovação de que os possuidores não
sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Tal comprovação somente é possível através de pesquisa em registros
formais existentes nos Cartórios de Imóveis, já que o legislador refere-se
à condição de proprietário, ou seja, titular de escritura pública registrada
em cartório.
Sem tais registros, presume-se que os possuidores não são proprietários
de outros imóveis, o que não exclui o fato de auferirem renda com outros
imóveis nas mesmas condições (sem título translativo), já que podem
ser dados em locação informal (sem contrato). Esta é uma realidade pre-
sente nas favelas. Por esta razão, entendemos que a forma operacional
de enfrentar a dificuldade de comprovação deste requisito formal é a
declaração, sob as penas da lei, de que o possuidor não é proprietário de
outro imóvel urbano ou rural,

2.1 REqUISITO TEMPORAL

Para fins de contagem do lapso temporal de cinco anos ininterruptos,


o possuidor pode acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto
que ambas sejam contínuas (§1º). Abstraindo a discussão doutrinária de
ser a posse um direito, um fato ou um interesse juridicamente protegido,
entendemos que na contagem desse prazo devem ser utilizadas todas as
provas admitidas em direito, já que os moradores nem sempre possuem
instrumento formal(contrato de compra e venda, contrato de locação,
contrato de concessão de uso, etc) que comprove a ocupação. Exigir que
esses moradores apresentem tais instrumentos para a comprovação da
posse pode resultar na impossibilidade de efetivação deste direito.
O início da contagem do prazo de cinco anos é objeto de controvérsia
nos tribunais, havendo entendimentos no sentido de que o termo inicial

593
seria a data da vigência da Constituição Federal10. Com a devida vênia,
trata-se de uma espécie de usucapião introduzido pelo Estatuto da Cida-
de. Portanto, não haveria base fática para contabilizar este prazo antes
mesmo da existência legal do instituto. Assim, entendemos que o termo
inicial para a contagem do prazo de cinco anos é a data de vigência da Lei
10.257/2001. Esta lei entrou em vigor 90 (noventa) dias após a data de sua
publicação, ocorrida em 11 de julho de 2001. Logo, o termo inicial para
a contagem do prazo de cinco anos é a data de 10 de outubro de 2001.

2.2 CONDOMÍNIO ESPECIAL CONSTITUÍDO

O usucapião especial coletivo de imóvel urbano será declarado pelo


juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório
de registro de imóveis (§2º do art. 10).
O §3º determina que na sentença o juiz atribuirá fração ideal de terre-
no para cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que
cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos,
estabelecendo frações ideais diferenciadas.
A regra, portanto, é que na área registrada conste, para cada possuidor,
a mesma fração ideal. Quando o legislador se refere ao acordo escrito
alude a condôminos ao invés de possuidor, hipótese em que se presume a
criação prévia de condomínio, confirmada com a redação do §4º.
O legislador não impõe limite às novas frações ideais estabelecidas pelo
aludido acordo escrito, o que poderá resultar na negociação de frações
ideais entre os possuidores, consolidando várias frações em um único
condômino, podendo reduzir a um número menor de frações ideais. Por
exemplo, se inicialmente a área objeto de usucapião coletivo abrangia 50
frações ideais, pode ficar reduzida a 20 ou 30 frações ideais, dependendo
do acordo escrito entre os condôminos.

10 Em sentido contrário: prazo da prescrição aquisitiva que não deve ser contado a partir da vigência da Lei
10.257/91 (Estatuto da Cidade). Usucapião coletiva que é modalidade de usucapião constitucional urbana,
previsto desde a CF de 1988, artigo 183. “O objetivo do instituto que é justamente o de regularizar e urbanizar
áreas ocupadas por população de baixa renda" (TJSP - Apelação n. 436.638-4/0, Relator Des. Teixeira Leite).
Disponível em: <https://www.esaj.tjsp.jus.br/cjsg/resultadocompleta.do>. Acesso em: 25 nov. 2011.

594
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O legislador não condiciona este acordo a uma homologação judicial.


Todavia, como o reconhecimento desta espécie de usucapião deve sempre
ocorrer na via judicial, presume-se que havendo acordo escrito, deve ser
homologado por sentença. Neste sentido, havendo manifesta intenção de
manipulação das frações ideais por um grupo de condôminos, seria o caso
de não ser homologado o acordo, prevalecendo a regra geral de iguais
frações ideais, a fim de preservar o acesso democrático à terra urbana.
O § 4º estabelece que o condomínio especial constituído seja indivisí-
vel, permitida a sua extinção se e quando houver deliberação favorável
tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução
de urbanização posterior à sua constituição.
Portanto, para que seja extinto o condomínio, deve haver deliberação
favorável de, no mínimo, dois terços dos condôminos e esta extinção
seja necessária à execução de urbanização posterior à sua constituição.
Consequentemente, não sendo o caso de execução de urbanização o
condomínio permanecerá indivisível.
Considerando a situação hipotética de redução do número de frações
ideais em função do acordo escrito de condôminos, entendemos que um
grupo de condôminos pode manter a hegemonia e a indivisibilidade do
condomínio ad infinitum.
Por tais razões, é forçoso concluir que a regra do §4º não está harmo-
nizada com o planejamento da cidade, tampouco com as funções sociais
da cidade (art. 182, da CF/88), porquanto permite que os condôminos
possam dispor da área objeto de usucapião coletiva conforme seus inte-
resses exclusivos, sem a observância das diretrizes de planejamento ur-
bano do município, tampouco do Plano Diretor. Para tanto, basta inexistir
quorum de dois terços, o que dificultará, na via administrativa, a extinção
do condomínio no caso de urbanização posterior. Importante ressaltar
que o condomínio será constituído sempre que houver acordo escrito
estabelecendo frações ideais diferenciadas. Inexistindo este interesse, a
área será registrada atribuindo frações ideais iguais para cada possuidor,
conforme estabelecido em sentença, não se aplicando o §4º.

595
Considerando que a política de desenvolvimento urbano é executada
pelo Poder Público Municipal, segundo as funções sociais da cidade, po-
demos afirmar que o §4º, aludindo à indivisibilidade do condomínio, é de
constitucionalidade duvidosa.
Este dispositivo introduz uma ordem lógica inversa, privilegiando a
parte em detrimento do todo, ou seja, a área objeto de usucapião coleti-
va, parte da cidade, prevalece sobre a cidade em si na medida em que a
extinção desse condomínio especial depende da manifestação da vontade
dos condôminos, prevalecendo sobre qualquer outra, inclusive a vontade
dos cidadãos.
Significa dizer, na hipótese de existir a possibilidade de executar um
projeto de urbanização que possa beneficiar a coletividade e todo o espaço
urbano, o Poder Público Municipal ficará na dependência de deliberação
e concordância dos condôminos, invertendo toda a lógica do desenvolvi-
mento urbano, que tem como referencial o interesse público e a cidade
como um todo.
Nesta esteira de entendimento, com fundamento no princípio da função
social da propriedade e da cidade, entendemos que essa área não deve
ficar à margem do planejamento urbano. Assim, aplicando uma inter-
pretação sistemática ao dispositivo, entendemos que na ação judicial de
reconhecimento de usucapião especial coletiva de imóvel urbano, com
fundamento na função social da propriedade e da cidade, a instrução
deve demonstrar se a área pleiteada está integrada e contemplada no
Plano Diretor. Seria o caso de o Ministério Público requisitar informações
ao Poder Público Municipal, para que se manifeste sobre a inclusão da
área objeto de usucapião coletivo no contexto do planejamento urbano, já
que a intervenção do Parquet é obrigatória na ação de usucapião especial
urbano. A sentença servirá de título para registro no cartório de registro
de imóveis.

596
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

2.3 DA CONSTITUCIONALIDADE
DO USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO

O Usucapião Especial Coletivo de imóvel urbano vem sendo objeto


de discussão quanto a uma suposta inconstitucionalidade do dispositivo,
porquanto o legislador infraconstitucional disciplina o instituto tendo
como referencial as áreas ocupadas coletivamente acima de duzentos e
cinquenta metros quadrados, extrapolando os parâmetros constitucionais
do usucapião especial, fixados em uma unidade familiar e área máxima
de duzentos e cinquenta metros quadrados.
Com a devida vênia, entendemos que a suposta arguição de inconsti-
tucionalidade do dispositivo está alicerçada em uma interpretação literal
da Carta Magna. Em se tratando de política urbana, o intérprete deve
considerar que a questão não está restrita ao art. 183 da Lei Maior, devendo
ampliar a compreensão para considerar a função social da propriedade e
da cidade cujos valores integram o núcleo principiológico do Título I da
Lei Maior, notadamente os objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil(art. 3º). Assim, entendemos que o planejamento urbano dialoga
com tais objetivos, porquanto contribui para a construção de uma so-
ciedade livre, justa e solidária, serve de garantia para o desenvolvimento
nacional, contribui para a erradicação da pobreza, reduz as desigualdades
sociais e regionais, promovendo o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Alegar a inconstitucionalidade do art. 10 previsto no Estatuto da Cida-
de, é desenvolver um raciocínio hermenêutico pautado unicamente pela
lógica formal. É vislumbrar a norma Constitucional isolada de um contexto
maior. É enxergar a realidade pela janela apertada da norma.
Ocorre que tais operações dogmáticas dependem enormemente do
grau de compreensão e percepção da realidade pelo magistrado, ou seja,
trata-se de afastar a lógica formal e ingressar em um novo paradigma da
compreensão do fenômeno jurídico, a fim de realmente conferir a efeti-
vidade aos direitos constitucionalmente garantidos, sob pena de resultar

597
numa “frustração constitucional” (Verfassungsenttäuschung), abalando a
confiança dos cidadãos na ordem jurídica como um todo”11.
O sentido e alcance do artigo 10, quando preconiza a possibilidade de
usucapião de áreas maiores que duzentos e cinquenta metros quadrados,
ocupadas por uma coletividade, está em harmonia com a realidade urbana,
contemplando a moradia em sua dimensão coletiva.
Finalmente, é preciso ressaltar que a competência para legislar sobre
direito urbanístico é concorrente, cabendo à União dispor sobre normas
gerais. Com a referida modalidade de usucapião, prevista no artigo 10, o
legislador ordinário nada mais fez do que estender às pessoas de baixa
renda, que ocupassem áreas de favelas ou aglomerados residenciais sem
condições de legalização dominial, os direitos já conferidos pelo artigo
183 da Constituição Federal.
Neste sentido Acórdão da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo no Recurso de Apelação Cível n.º 212.726-1-4, julgado
em 16 de dezembro de 1994, tendo como relator o Desembargador José
Osório estabelece o seguinte:

Ação Reivindicatória. Lotes de terreno transformados em favela


dotada de equipamentos urbanos. Função social da propriedade.
Direito de indenização dos proprietários. Lotes de terrenos urba-
nos tragados por uma favela deixam de existir e não podem ser
recuperados, fazendo assim, desaparecer o direito de reivindicá-
-los. O abandono dos lotes urbanos caracteriza uso antissocial da
propriedade, afastado que se apresenta do princípio constitucio-
nal da função social da propriedade. Permanece, todavia, o direito
dos proprietários de pleitear indenização contra quem de direito.

O conteúdo desta decisão demonstra a prevalência do coletivo sobre o


individual quando se trata de realizar a função social da propriedade, crian-
do precedente para a arguição posterior do usucapião especial coletivo.

11 KRELL, Andréas. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha. Os (des)caminhos de um direito
constitucional “comparado”, Sérgio Antônio Fabris, Porto Alegre, 2002, p. 26.

598
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

3. INOVAÇÕES DA LEI 11.977/2009


EM MATéRIA DE USUCAPIÃO

A Lei 11.977/2009 contempla a Regularização fundiária de Interesse


Social (RFIS) e a Regularização Fundiária de Interesse Específico(RFIE). A
inovação, em matéria de usucapião, é tratada no âmbito da RFIS.
Por expressa disposição legal, a RFIS constitui espécie de regularização
fundiária de assentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por
população de baixa renda, nos casos: a) em que a área esteja ocupada,
de forma mansa e pacífica, há, pelo menos, 5 (cinco) anos; b) de imóveis
situados em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS)12; c) de áreas da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios declaradas de
interesse para implantação de projetos de regularização fundiária de
interesse social.
A RFIS deve partir da demarcação urbanística, procedimento adminis-
trativo pelo qual o Poder Público demarca imóvel de domínio público ou
privado, definindo seus limites, área, localização e confrontantes, com a
finalidade de identificar seus ocupantes e qualificar a natureza e o tempo
das respectivas posses (art. 47, Inciso III).

3.1 DEMARCAÇÃO URBANÍSTICA E LEGITIMAÇÃO DE POSSE

A demarcação urbanística compete ao Poder Público e exige cautela


quando da definição dos limites. O legislador alude a confrontantes e ocu-
pantes. Os confrontantes são os proprietários ou possuidores dos terrenos
limítrofes e contíguos à área objeto de regularização de interesse social.
Estes confrontantes devem ser localizados e intimados a se manifestar
no que tange aos limites definidos na planta e no memorial descritivo do
imóvel a ser matriculado. Estando o confrontante em lugar incerto e não
sabido, deve ser procedida a sua intimação por edital, a fim de preservar

12 Parcela de área urbana instituída pelo Plano Diretor ou definida por outra lei municipal, destinada pre-
dominantemente à moradia de população de baixa renda e sujeita a regras específicas de parcelamento, uso
e ocupação do solo( art. 47, inciso V)

599
o princípio do contraditório e ampla defesa. Os ocupantes, por outro lado,
constituem um contingente de pessoas instaladas de forma irregular,
devendo comprovar a posse mansa e pacífica há pelo menos cinco anos.
Na RFIS é facultada a lavratura do Auto de Demarcação Urbanística(ADU)
pelo Poder Público.
A fim de possibilitar as notificações e posteriores impugnações, é
imprescindível a completa identificação dos imóveis abrangidos pelo
ADU. Por esta razão, além do prazo máximo de 60 dias para publicação,
o legislador exige que na notificação por edital conste resumo do ADU,
com a descrição que permita a identificação da área a ser demarcada e
seu desenho simplificado.
O ADU poderá abranger imóveis públicos ou privados.
Concluída a etapa de levantamento de dados, inexistindo área objeto de
conflito no âmbito do espaço delimitado e atendido o princípio do devido
processo legal, caberá ao Poder Público encaminhar o ADU ao Cartório
de Registro de imóveis para o registro da gleba.
Sanadas as controvérsias com relação ao ADU, o mesmo deve ser
averbado, quando, então, o Poder Público deverá elaborar o projeto de
regularização fundiária e submeter o parcelamento dele decorrente ao
competente registro(art. 58). Concluído o registro do projeto, o poder
público concederá o título de legitimação de posse aos ocupantes cadas-
trados. A demarcação é sempre anterior à legitimação da posse. Todavia,
é possível demarcar sem que haja posterior legitimação.
Registrado o título de legitimação de posse, será constituído o direito à
posse direta para fins de moradia aos moradores cadastrados pelo poder
público. Para fins de cadastro, o morador não deve ser concessionário,
foreiro, proprietário de outro imóvel urbano ou rural ou ainda benefici-
ário de posse concedida anteriormente. Entendemos que tais condições
jurídicas devem ser comprovadas mediante declarações dos interessados,
firmadas sob as penas da lei, já que muitas vezes é operacionalmente
impossível a busca desses registros.
O detentor do título de legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de

600
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

seu registro, tem o direito de requerer ao oficial de registro de imóveis


a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua
aquisição por usucapião, nos termos do art. 183, da CF/88.
É o que determina o art. 60, da Lei 11.977/2009, instituindo uma espé-
cie nova de usucapião que se consolida na via administrativa, portanto,
prescinde de ação judicial.

3.2 USUCAPIÃO NA INSTâNCIA ADMINISTRATIVA

Com efeito, o art. 60, da Lei 11.977/2009, introduz uma forma de


usucapião a ser reconhecida na instância administrativa pelo oficial de
registro de imóveis, também denominada de usucapião extrajudicial, verbis:

Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida


anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse, após
5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de regis-
tro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade,
tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art.
183 da Constituição Federal. (grifo nosso)

A norma retromencionada garante ao detentor do título de legitima-


ção de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, o direito de requerer
ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de
propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos
do art. 183, da CF/88. Portanto, o dispositivo previsto no referido art. 60
está limitado às áreas de até duzentos e cinquenta metros quadrados.
Este limite pode dificultar a conversão do título de legitimação de posse
em registro de propriedade devido à diversidade de realidades locais nos
municípios. Assim, o Município deve considerar este limite quando da
constituição dos lotes, caso esteja previsto no projeto de regularização a
referida conversão dentro de prazo de cinco anos.
Como há referência expressa ao usucapião especial regulado no art.
183, da CF/88, remanescem as mesmas condições materiais. Todavia,
conferindo o direito de aquisição por usucapião na via administrativa, a
intenção do legislador foi simplificar e dar celeridade ao procedimento,

601
já que sem esta possibilidade haveria a necessidade de se pleitear esta
aquisição na via judicial.
Contudo, para que seja possível esta aquisição, o dispositivo exige o
prazo de cinco anos contados a partir do registro do título de legitimação de
posse, sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente.
Ora, de acordo com o art. 47, inciso VII, alínea “a”, da Lei 11.977/2009, a
RFIS abrange os assentamentos irregulares ocupados, predominantemen-
te, por população de baixa renda, nos casos em que a área esteja ocupada,
de forma mansa e pacífica, há, pelo menos, 5 (cinco) anos, salvo quando
se tratar de ZEIS, por estar sujeita a regras específicas de parcelamento,
uso e ocupação do solo.
Portanto, o requisito temporal de cinco anos de ocupação mansa e
pacífica é previamente aferido como condição para a RFIS, anterior à
demarcação urbanística e à legitimação de posse. Consequentemente, no
momento de conversão do título de legitimação em registro de proprie-
dade este requisito temporal já se presume cumprido, devendo também
ser observado o transcurso de cinco anos contados do registro do título
de legitimação de posse.
Assim, quando o legislador alude aos direitos decorrentes da posse exer-
cida anteriormente não significa que a fruição do lapso temporal de cinco
anos antes do registro do título de legitimação da posse seja suficiente
para pleitear a aquisição do imóvel por usucapião na via administrativa.
Em verdade a alusão a este período anterior é apenas no sentido de que o
mesmo poderá ser reconhecido nos moldes tradicionais, através da com-
provação da posse por todos os meios admitidos em direito, submetida à
apreciação judicial. Seria o caso de o detentor não ser contemplado com
o título de legitimação de posse e buscar o reconhecimento desse tempo
nas vias judiciais.
Quando se tratar de título de legitimação de posse registrado é que
surgirá a possibilidade de se pleitear a aquisição por usucapião na via
administrativa, desde que cumprido o lapso temporal de cinco anos con-
tados a partir do registro, sem a necessidade de comprovação da posse

602
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

como situação de fato, já que a mesma está qualificada pelo competente


registro de legitimação.
Indaga-se quanto à constitucionalidade do referido art. 60, já que o auto
de demarcação pode abranger imóvel público, conforme já ressaltado, e
o legislador constituinte estabelece que os imóveis públicos não devem
ser adquiridos por usucapião.
Com efeito, o art. 60 faz remissão expressa ao art. 183, da CF/88. Esta
norma constitucional ressalta que o título de domínio e a concessão de
uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independen-
temente do estado civil. Ademais, conclui que os imóveis públicos não
serão adquiridos por usucapião.
Ora, se o legislador constituinte alude ao título de domínio e conces-
são de uso, é forçoso concluir que o possuidor somente adquire o título
de domínio quando se tratar de área privada. Em caso de área pública, o
vínculo terá natureza jurídica de concessão de uso, porquanto os imóveis
públicos não serão adquiridos por usucapião.
Assim, somente é possível a conversão do título de legitimação de
posse em registro de propriedade quando se tratar de imóvel de titulari-
dade privada. No caso de imóvel público o vínculo tem natureza jurídica
de concessão de uso, nos termos art. 183, da CF/88.
O art 60-A determina que o título de legitimação de posse poderá ser
extinto pelo poder público emitente quando constatado que o beneficiário
não está na posse do imóvel e inexistir registro de cessão de direitos.
Isto significa, a contrário senso, que o beneficiário pode ceder os
direitos decorrentes da conversão do título de legitimação da posse em
propriedade, devendo registrar este negócio jurídico. Caso contrário, o
título de legitimação de posse poderá ser extinto através de averbação no
Cartório de Registro de Imóveis.
Certamente o cancelamento do registro deve ser precedido por um
processo administrativo no qual seja garantido o devido processo legal.
Concluído este procedimento, o poder público solicitará ao oficial de re-
gistro de imóveis a averbação do cancelamento do registro do título de
legitimação, instruído com documento hábil.

603
Quando a área urbana for acima de 250m² (duzentos e cinquenta
metros quadrados), o prazo para requerimento da conversão do título
de legitimação de posse em propriedade será o estabelecido na legis-
lação pertinente sobre usucapião, notadamente o art. 1.230 do Código
Civil de 2002.
Importante ressaltar que os procedimentos relativos ao usucapião, no
âmbito da Lei 11.977/2009, ocorrem na via administrativa. Portanto, sem-
pre que houver controvérsia será possível provocar a instância judicial.
Finalmente, é necessário ressaltar que a simples legitimação de posse
para fins de moradia, sem a possibilidade de conversão em registro de
propriedade com todos os consectários lógicos jurídicos, não é suficiente
para promover a ascensão econômico-social da população beneficiária,
porquanto não tem natureza jurídica de direito real, eis que não foi con-
templada no art. 1.225 do atual Código Civil. Sem a qualificação de direito
real, a simples legitimação de posse não confere ao titular o direito de ga-
rantia real, exigido como requisito principal para a celebração de contrato
de mútuo junto a estabelecimentos bancários. Assim, com a possibilidade
de conversão deste título em registro de propriedade, configurando a
aquisição por usucapião, nos termos do art. 183, da CF/88, o legislador
infraconstitucional introduziu uma componente qualificadora que pode
conferir efetividade ao procedimento de RFIS, contribuindo para a redução
das desigualdades sociais.

3.3 PROCEDIMENTO DE REGISTRO EM CARTóRIO

O procedimento do registro em cartório deve observar a Lei 6.015/1973,


com a redação da Lei 12.424/2011. Com esta nova redação, a Lei de Re-
gistros Públicos possibilita abertura de matrícula de parte ou da totalidade
de imóveis públicos oriundos de parcelamento do solo urbano, ainda que
não inscrito ou registrado. (art. 195-A).
Outrossim, a partir da publicação da Lei 12.424/2011, podem ser objeto
de registro os contratos ou termos administrativos, assinados com a União,

604
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Estados, Municípios ou o Distrito Federal, no âmbito de programas de


regularização fundiária e de programas habitacionais de interesse social,
dispensado o reconhecimento de firma, admitida a assinatura a rogo a
impressão dactiloscópica do beneficiário, quando este for analfabeto ou
não puder assinar, acompanhados da assinatura de 2 (duas) testemunhas.
(art. 221, V, §1º).
A implementação de projetos de regularização fundiária, além da
simplificação do procedimento de abertura de matrícula nos cartórios de
registro de imóveis, necessita também de uma adaptação das normas que
regem esses cartórios à Lei 11.977/2009. O que se verifica, in concreto,
é que muitas normas que regem os cartórios de registro de imóveis não
foram atualizadas e adaptadas à nova disciplina de regularização fundiá-
ria. No âmbito Municipal, é preciso que as respectivas leis municipais de
zoneamento dialoguem com as leis municipais de regularização fundiária.
Por exemplo, a cobrança das custas cartoriais às famílias com renda
até 3 SM não garante a titularidade e legitimação da posse, dificultando
a regularização. Neste sentido, entendemos que os registros resultantes
da RFIS devem ser gratuitos.
É imprescindível, portanto, a adoção de um provimento nacional
a ser instituído pelo Conselho Nacional de Justiça para a padronização
e flexibilização de normas cartoriais no âmbito da RFIS, ovjetivando a
adequação de provimentos dos Tribunais de Justiça à Lei 11.977/2009.
Atualmente estes provimentos estão adaptados à Lei 6.766, mas não à
Lei 11.977/2009.

3.4 APROVAÇÃO DO PROJETO DE RFIS

Como o projeto de regularização fundiária pressupõe medidas jurídicas,


urbanísticas, ambientais e sociais, configurando um projeto de natureza
interdisciplinar, certamente existirão dificuldades a serem enfrentadas
pelos Municípios. Isto porque a regularização fundiária de interesse social
depende da análise e da aprovação do projeto pelo Município (art. 53).

605
Esta aprovação corresponde ao licenciamento urbanístico do projeto de
regularização fundiária de interesse social, bem como ao licenciamento
ambiental. O licenciamento ambiental caberá ao Estado na hipótese de
ser o Município incompetente, nos termos do art. 30 da CF/88, mantida a
exigência de licenciamento urbanístico pelo Município (art. 54 §3º).
O licenciamento urbanístico não se confunde com o licenciamento
ambiental. Com efeito, o licenciamento ambiental é instrumento da
Política Nacional do Meio Ambiente, condição necessária para que uma
determinada atividade, efetiva ou potencialmente poluidora, possa ser
realizada. O licenciamento urbanístico constitui instrumento de execução
do planejamento urbano, objetivado por licenças para construir, edificar,
reformar, demolir, expedidas pelo Poder Local, portanto, é sempre da
competência do Município.
O projeto de RFIS deve ser analisado e aprovado pelo Município, no
que tange ao licenciamento urbanístico e ambiental. Para tanto, o Muni-
cípio deve ter conselho de meio ambiente e órgão ambiental capacitado.
A RFIS depende do cumprimento destes requisitos. É a dicção do art. 53.
Consequentemente, a inexistência de órgão Municipal capacitado pode
representar um obstáculo à regularização quando, por exemplo, o licen-
ciamento ambiental for atribuição do mesmo.
Se o Município não possuir conselho de meio ambiente e órgão ambien-
tal capacitado, não terá condições técnicas e operacionais para aprovar
o projeto. È o que poderá ocorrer quando o licenciamento ambiental
abrange áreas de esgotamento sanitário, por exemplo.
Quando o projeto abranger área de Unidade de Conservação de Uso
Sustentável, cuja regularização é admitida nos termos da Lei nº 9.985, de
18 de julho de 2000, será exigida também anuência do órgão gestor da
unidade (Art. 53 §3º).
A RFIS em Áreas de Preservação Permanente (APP) também pode-
rá enfrentar os mesmos obstáculos de ordem técnica. Neste sentido,
é facultado ao Município promover a regularização dessas áreas (art.
54 §1º) desde que ocupadas até 31 de dezembro de 2007 e inseridas

606
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

em área urbana consolidada. Para tanto, estudo técnico elaborado por


profissional habilitado deve comprovar que esta intervenção implica a
melhoria das condições ambientais em relação à situação de ocupação
irregular anterior. Este estudo deve estar compatível com o projeto de
regularização fundiária e apresentar um conteúdo mínimo (art. 54 § 2º).
Estes requisitos legais, apesar de pertinentes, em tese, podem adiar
a concretização da regularização em muitos municípios por absoluta
falta de condições operacionais, notadamente a existência de pessoal
com capacitação.
A fim de promover uma maior integração com o meio ambiente ecolo-
gicamente equilibrado, entendemos que a RFIS em áreas de APP também
deve dialogar com o Código Florestal, apesar de não haver dispositivo na
Lei 11.977/2009 quanto esta exigência.
Na RFIS caberá ao Poder Público implantar sistema viário e de infra-
estrutura básica, previstos no § 6o do art. 2o da Lei no 6.766, de 19 de de-
zembro de 1979 (vias de circulação, escoamento das águas pluviais, rede
para o abastecimento de água potável e soluções para o esgotamento
sanitário e para a energia elétrica domiciliar), diretamente ou por meio
de seus concessionários ou permissionários de serviços públicos (art. 55).
Trata-se de uma norma indicativa de atividade a ser desenvolvida pelo
Poder Local. Com efeito, o legislador federal não tem competência para
interferir de forma direta e determinante no âmbito local, em nome do
princípio da autonomia federativa. Como as obras de infraestrutura bási-
ca e mobilidade representam um montante considerável de recursos, os
municípios podem adotar instrumentos jurídicos para a sua realização, a
exemplo de convênios e consórcios públicos.
Em verdade, cada assentamento necessita de estratégia própria. Não
há uma receita única para todos os assentamentos. A modelagem da
estratégia deve ser orientada para a obtenção de resultados aderentes à
realidade fática. Por exemplo, se a situação fundiária local assinala a ne-
cessidade de regularização de área pública, incluindo bem de uso comum
ou especial, será necessária a desafetação prévia mediante Lei autoriza-
dora. Tratando-se de área privada pode ser precedida de desapropriação.

607
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de todas as influências progressistas que ficaram consolida-


das na cláusula da função social da propriedade, não podemos deixar de
considerar o fato de que muitas decisões administrativas e judiciais ainda
são pautadas na noção ortodoxa do direito de propriedade absoluto, ins-
pirada no Liberalismo Clássico, presente nos dispositivos do Código Civil
de 1916, influenciados pelo Código de Napoleão.
Este fato, por si só, pode criar obstáculos e limitações à operacio-
nalização das novas modalidades de usucapião introduzidas pelas Leis
10.257/2001 e 11.977/2009, na medida em que se trata de instrumentos
urbanísticos que regularizam áreas ocupadas informalmente.
Com efeito, o reconhecimento do usucapião especial coletivo, previsto
no Estatuto da Cidade, continua dependendo de ação judicial, enquanto
que a modalidade introduzida pela Lei 11.977/2009 inova na medida em
que prescinde de ação judicial, podendo ser reconhecido o usucapião na via
administrativa, desde que cumpridos os requisitos legais específicos (lapso
temporal de cinco anos contados do registro da legitimação de posse).
Tais inovações, por si só, não conferem efetividade aos dispositivos,
porquanto dependem da apreciação judicial ou administrativa.
Conforme já ressaltado, a regularização fundiária é um procedimento
complexo que transcende a área local, objeto de regularização. Significa
dizer, a regularização fundiária não é apenas conceder o registro, mas
constitui um projeto que deve contemplar um conjunto de ações complexas
voltadas para a concretização do direito à moradia digna.
Neste sentido, é preciso que haja regulamentação das normas cartoriais
em nível nacional, com a padronização de procedimentos informatizados
que dialogam entre si a fim de dar celeridade e segurança jurídica à exe-
cução do projeto de regularização.
Na medida em que a posse legitimada durante o prazo de cinco anos é
a condição para o possuidor requerer o domínio decorrente do usucapião,
o primeiro passo é a demarcação urbanística. Sem a conclusão dessa fase

608
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

preliminar não se tem legitimação de posse e consequentemente não


incidirá a norma do art. 60 que regula o usucapião extrajudicial.
Por outro lado, o usucapião especial coletivo depende do preenchi-
mento de conceitos indeterminados no caso concreto, o que exige um
esforço interpretativo do julgador que pode estar afinado com a cláusula
da função social da propriedade, ou não.
Outrossim, para que estes instrumentos sejam implementados é im-
prescindível que o Poder Local exercite o controle do uso e ocupação do
solo urbano.
Sem dúvida, os novos instrumentos representam avanços do ponto de
vista normativo. Todavia, a sua aplicabilidade ficará na dependência da
implementação de condições administrativas e operacionais, com forte
componente política, e do processo de compreensão a ser desenvolvido
e construído pelo intérprete no caso concreto.

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610
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Territórios de povos e
comunidades tradicionais
e política urbana

Bruno Barbosa Heim1


1. Introdução

O Estado brasileiro deve assegurar a regularização fundiária dos


terreiros, povos de santo. Entretanto, o que tem sido vivenciado como
política de Estado é a negação de direitos a esses povos. Pensar a situa-
ção dos povos e comunidades tradicionais no espaço urbano e proteção
de seus territórios é um desafio para os gestores públicos, acadêmicos e
militantes do campo do direito urbanístico.
Aceitando este desafio, este artigo desenvolve, de forma inicial, uma
apresentação de quem são os povos e comunidades tradicionais, como a
literatura tem se referido a estes sujeitos, bem como os diplomas legais
internacionais e da ordem interna. Posteriormente, o território é apresen-
tado como elemento unificador dos mais diversos povos e comunidades
tradicionais e objeto fundamental à constituição identitária destes grupos.
Com recorte nos povos de santo, reflete-se sobre a prática cultural e
identitária dos povos, afro-brasileiros, que tem na religiosidade a ferra-
menta de manutenção de traços sócio-culturais, cerceados no período de
aculturamento na formação da sociedade brasileira. O território desses
povos surge como algo que deve ser analisado com cautela, pois ele se
expande a todos os locais de culto ao sagrado, não se restringindo ao local
do terreiro, templo da religião.
Damos destaque à dificuldade e limites que a política de regularização
fundiária pode encontrar para proteger os territórios de povos e comu-

1 Mestrando em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental, Especialista em Direito Público e Graduado em


Direito. Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e FASETE. Ministra a disciplina Direito Urba-
nístico. Email: brunoheimadv@gmail.com

611
nidades tradicionais e apontamos para a necessidade de refletir sobre a
aplicação de outros instrumentos.

2. POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

A atenção aos povos e comunidades tradicionais surgiu, provavel-


mente, nos embates em torno da criação de espaços naturais protegidos,
que proibiam a presença de moradores. Isto porque os Estados Unidos
da América adotaram um modelo de “parque”, centrado na concepção de
wilderness, áreas que seriam supostamente selvagens, virgens, livres da
presença humana, modelo este que acabou sendo transportado para outros
lugares do mundo. Mas, se já nos EUA está concepção foi questionada por
povos que reivindicavam habitar o espaço e embebedar a “natureza” com
sua presença, a exportação para países de terceiro mundo foi dramática
para diversos povos que habitam as florestas tropicais e locais ambien-
talmente mais frágeis, áreas privilegiadas pelos preservacionistas para
estabelecimento de rígida proteção2
Assim, na década de 1980 teriam aparecido nos documentos e encon-
tros de entidades ambientalistas internacionais e organismos multilaterais
referências as estes povos e comunidades, seja no reconhecimento de
seus conhecimentos tradicionais da natureza, das técnicas sustentáveis
de manejo ou mesmo questionando a remoção quando da criação de
unidades de conservação, valendo destacar a menção no Relatório Nosso
Futuro Comum da ONU, que se referenciava aos grupos tradicionais e seus
conhecimentos sobre o ambiente e recursos3, bem como aos povos indíge-
nas e tribais, sujeitos capazes de contribuir com sociedade no manejo de
recursos em complexas florestas, montanhas e ecossistemas secos, mas
ameaçados de extinção virtual4 e o documento da União Internacional

2 DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. 6. ed. ampliada. São Paulo: Hucitec:
Nupaub-USP/CEC, 2008.
3 Idem.
4 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇõES UNIDAS. Report of the World Commission on Environment and De-
velopment: our common future. 1986. Disponível em: <http://www.un-documents.net/wced-ocf.htm>.
Acesso em: 14 ago. 2013.

612
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

para Conservação da Natureza, que reconhecia o processo de perda da


diversidade cultural humana, avaliado como problema tão grave quanto
a perda das espécies5.
Muitas terminologias foram utilizadas por cientistas, organismos
internacionais e documentos legais para expressar estes sujeitos hoje
abarcados na categoria de povos e comunidades tradicionais. Diegues e
Arruda6 demonstram que o banco mundial utilizava “povos tribais”, base-
ado nos povos indígenas amazônicos e da América Latina, substituindo
a expressão de conotação limitada por “povos nativos”; no campo das
ciências sociais foram denominadas “sociedades parciais” e camponeses,
como também “povos dos ecossistemas”.
Entre os documentos internacionais, a Convenção n. 169 da OIT, de
1989, acolhe as expressões “povos indígenas e tribais”, entendendo estes
últimos com aqueles povos “cujas condições sociais, culturais e econômi-
cas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam
regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições
ou por legislação especial”; no ano de 1992, na Convenção das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente, a ECO/92, são firmadas a Declaração do Rio
Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e a Convenção Sobre Diversidade
Biológica, que adotam os termos “povos indígenas” e “outras comunidades
locais” referindo-se, porém, aos saberes destes sujeitos como “conheci-
mento indígena e tradicional”, o que já lhe assemelha mais à terminologia
atual; já a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO,
firmada em 2001, adota “minorias” e “povos autóctones”.
No plano interno, o termo populações tradicionais aparece na Lei n.
9.985/00, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação
e apresenta entre os seus objetivos a proteção dos recursos naturais
necessários à subsistência destas populações, respeitando e valorizando
sua cultura e promovendo-as social e economicamente. O conceito pro-

5 A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, aprovada pela Conferência Geral da UNESCO em 2001
ratifica este entendimento, afirmando que a diversidade cultural é tão importante para o gênero humano
quando a diversidade biológica para a natureza.
6 DIEGUES, Antônio Carlos e ARRUDA, Rinaldo. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília:
Ministério do Meio Ambiente; São Paulo: USP, 2001.

613
posto7, porém, foi vetado, por pressão de grupos preservacionistas e do
movimento de seringueiros da Amazônia. Os primeiros compreendiam ser
excessivamente amplo e os segundos por discordarem do critério temporal,
que exigia permanência na área “há três gerações” e não os enquadraria8.
Mais recentemente, o novo código florestal, Lei n. 12.651/12, já adotou
“povos e comunidades tradicionais”.
No Brasil os autores caminham para a padronização terminológica,
porém, não necessariamente conceitual. Santilli9, adotando populações
tradicionais, afirma que o conceito só pode ser compreendido na interface
biodiversidade e sociodiversidade; Almeida designa populações tradicio-
nais como “sujeitos sociais de com consciência coletiva incorporando pelo
critério político organizativo uma diversidade de situações [...] que têm
se estruturado igualmente em movimentos sociais”10 e Diegues e Arruda,
também adotando populações tradicionais as define como:

[...] grupos humanos culturalmente diferenciados que historica-


mente reproduzem seu modo de vida, de forma mais ou menos
isolada, com base em modos de cooperação social e formas
específicas de relações com a natureza, caracterizados tradicio-
nalmente pelo manejo sustentado do meio ambiente.11

O conceito ganhou respaldo legal em 2007, com a publicação do De-


creto n. 6.040, que instituiu a Política Nacional de Povos e Comunidades
Tradicionais e os definiu como:

[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem


como tais, que possuem formas próprias de organização social,
que ocupam e usam territórios e recursos naturais como con-

7 O vetado artigo 2º, xV previa população tradicional como “grupos humanos culturalmente diferenciados,
vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu
modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos naturais
de forma sustentável”.
8 SANTILLI, Juliana. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação: Uma Visão Socioambiental. In: SILVA,
Letícia Borges da; OLIVEIRA, Paulo Celso de (Coords.). Socioambientalismo: uma realidade – Homenagem
a Carlos Frederico Marés de Souza Filho. Curitiba: Juruá, 2008.
9 Idem.
10 ALMEIDA, Alfredo Wagner. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos
sociais. In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. v. 06, n. 01, maio 2004. p. 09-32. p. 12.
11 DIEGUES, Antônio Carlos; ARRUDA, Rinaldo. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília:
Ministério do Meio Ambiente; São Paulo: USP, 2001.

614
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral


e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas
gerados e transmitidos pela tradição;

São inúmeros os sujeitos sociais que podem ser incluídos nesta eclética
categoria, podendo citar, exemplificadamente, seringueiros, indígenas,
quilombolas, comunidades de fundo de pasto, pescadores artesanais,
faxinais, quebradeiras de coco babaçu e os povos de santo.

3. TERRITóRIOS TRADICIONAIS

Se os povos e comunidades englobam uma gama de sujeitos sociais


aparentemente tão diversos, existiria um critério unificador comum, ca-
paz de agregá-los no manto de uma única categoria? O antropólogo Paul
Elliott Little, professor da Universidade de Brasília, oferece caminhos para
responder este questionamento12, cujos passos serão a seguir descritos.
No ensaio “territórios sociais e povos e comunidades tradicionais no
Brasil: por uma antropologia da territorialidade”, Little propõe uma “teoria
antropológica da territorialidade13”, cujo enfoque seria capaz de detectar
semelhanças muitas vezes ocultas em outras abordagens, como campe-
sinato, etinicidade e raça.
Suas origens residiriam nas expansões de fronteiras durante o período
colonial e imperial, da ocupação do litoral à cafeicultura no sudeste, pas-
sando pelas incursões de bandeirantes, ocupação da Amazônia, escravi-
zação de índios, plantations de cana-de-açúcar e algodão, o ciclo do gado
no sertão e mineração, que gerariam cada uma ondas de territorialização
para indígenas e negros escravizados, lutas de resistência, estratégias de
combate à resistência, agrupamentos, conflitos, apropriações, consenti-
mentos. Como resultado, pode-se perceber que constituição e resistência

12 LITTLE, Paul Elliott. Territórios Sociais e Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil: por uma
antropologia da territorialidade”. Série Antropologia. n. 322. Brasília: DAN/UnB, 2002. Disponível em: <http://
www.dan.unb.br/images/doc/Serie322empdf.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2012.
13 Little compreende territorialidade como “esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar
e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu ‘território’
ou homeland”, idem, p. 03.

615
culturais dos grupos caminham juntas e foram constituídos territórios
sociais, territórios estes que podem ser modificados historicamente, a
depender das forças que o pressionam.
A primeira característica, entre aquelas o autor agrega na noção de
“razão histórica” dos povos e comunidades tradicionais seria a “proprie-
dade social”14, distinta da dicotomia propriedade privada ou pública, duas
caras do mesmo processo de disputa pelo capital, envolvendo burguesia
e burocracia, e incapazes de corresponder à necessidade destes grupos,
porque as regras que regulamentam os territórios tradicionais são baseadas
no direito consuetudinário, marginal ao regime jurídico oficial dos estados.
A segunda residiria na subjetivação do espaço com sentimentos e
significados, seja pela identificação do sagrado, do conhecimento e valo-
rização do ambiente ou outras formas, transformando-o num “lugar”, o
local concreto e habitado. Esta noção de lugar pode ampliar a identidade
do grupo a partir do momento em que se relacionar com os territórios
construídos com base em suas cosmografias15. A terceira se caracteriza
na ocupação histórica que fundamenta o território, envolvendo décadas
e em alguns casos séculos, capazes de agregar “peso histórico” às rei-
vindicações territoriais e mantém viva na “memória coletiva” daqueles
sujeitos sua territorialidade.
Como assevera o autor, seu trabalho faz uma “macro-análise antro-
pológica” e não um estudo etnográfico, mas frente à multiplicidade de
expressões da territorialidade humana, que produzem ainda mais amplas
possibilidades de tipos de territórios, qualquer análise antropológica destas
requer um estudo etnográfico. Isto porque a territorialidade de cada grupo
e, consequentemente, a constituição de seus territórios é processual, um
produto histórico fruto de processos sociais e políticos.
Assim, assumindo que as territorialidades são específicas, cremos
que o empreendimento da “macro-análise” realizada pode conter as-

14 O autor alerta que propriedade social não significa coletivização da propriedade e ausência de propriedade
individual, pois os grupos possuem regras específicas e variáveis de acesso à recursos, como a terra.
15 Cosmografia é definida como “os saberes ambientais, ideologias e identidades − coletivamente criados e
historicamente situados − que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território”. Idem, p. 04.

616
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

pectos por vezes inviáveis de serem plenamente generalizados, não se


coadunando com todas as territorialidades dos mais diversos povos e
comunidades tradicionais.
É o caso do aspecto temporal das ocupações, a terceiro característica
da razão histórica dos povos e comunidades tradicionais. Tal aspecto não
se coaduna com a noção de tradicional agregada à estes povos e comuni-
dades. Tradicional não se confunde questões de ancestralidade, tempos
históricos remotos, primitivos, ou, como assevera Almeida:

[...] nem tão pouco a laços primordiais que amparam unidades


afetivas, e incorpora as identidades coletivas redefinidas situa-
cionalmente numa mobilização continuada, assinalando que as
unidades sociais em jogo podem ser interpretadas como unidades
de mobilização. O critério político-organizativo sobressai com-
binado com uma “política de identidades”, da qual lançam mão
os agentes sociais objetivados em movimento para fazer frente
aos seus antagonistas e aos aparatos de estado.16

Esta leitura é compartilhada pelo próprio Little, quando afirma que a


palavra tradicional é polissêmica, porém utilizada para tratar de realidades
fundiárias modernas, ou mesmo pós-modernas.
Para os povos e comunidades tradicionais, cujas identidades tem como
fundamento a intrínseca relação com seus territórios tradicionais, perder
o território não é uma alternativa possível. Por isto inclusive o Brasil tem
vivenciado a insurreição destes grupos no cenário social, organizados
em movimentos sociais, como reconhece Alfredo Wagner B. de Almeida,
que pautam, prioritariamente, a defesa de seus territórios tradicionais,
a constituição de marcos legais e implementação destes marcos. Para
os povos e comunidades tradicionais perder o território é perder suas
referências culturais e identitárias, e perdida esta referência, deixa de ser
povo, é desaparecer (SOUZA FILHO, 1998).

16 ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. Terras de quilombos, Terras Indígenas, “Babaçuais Livres”,
“Castanhais do Povo”, Faxinais e Fundos de Pasto: Terras tradicionalmente ocupadas. Manaus: PPGSCA-
-UFAM, 2006.

617
4. POVOS DE SANTO E SEUS TERRITóRIOS

Em meio aos povos e comunidades tradicionais do país, encontramos


os povos de santo, ou povos de terreiro, entre outras denominações de-
signativas dos membros de religiões afro-brasileiras.
A história dos povos de santo tem origem no processo de colonização
brasileira, quando Portugal impôs aos povos originários e povos africanos
o regime de escravidão. Dos portos africanos foram retirados, contra sua
vontade, sujeitos de diferentes localizações, com distintas línguas, culturas,
organizações políticas e religiosas.
Na África, ou seria melhor, nas Áfricas, não existiam uma unidade, só
na “África Negra” se organizam em mais de um mil grupos étnicos, com
suas religiões. As religiões, distintas entre povos, também sofrem varia-
ções dentro de um mesmo povo17. Esta realidade pode ser observada, por
exemplo, entre os iorubás, que ocupavam Nigéria, Togo e a antiga Daomé,
atual Benin. Pierre Verger18 explica que primeiramente o termo iorubá
significou um grupo linguístico compartilhado por milhões, com culturas
e tradições comuns. Em que pese a adoção de língua única, diferenças
dialetais existiam e nunca foi constituída uma unidade política na região.
Cada grupo, como aqueles da cidade de Ifé, ou os Egbá, preferiam manter
sua identidade própria, e uma constituição de identidade comum (nagô
ou iorubá) só foi possível depois do século xIx. Mais tarde o termo iorubá
passou a designar também um povo, nação ou território.
Entre os iorubás não havia um panteão de orixás – deuses – hierar-
quizado e único. Certas divindades como xangô, primeira em Oyó, não
existe em Ifé, onde uma divindade local, Oramfé, ocupa seu lugar com
os poderes do trovão. Outros orixás seriam cultuados em quase todos os

17 KOCH-WESER, M. R. M. Yoruba-Religion. Die Yoruba-Religion in Brasilien. Boon: [s.n.], 1976. Apud.


BERKENBROK, Volney J. A Experiência dos Orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé.
3. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
18 As informações sobre os iorubás na Áfricas foram retiradas de: VERGER, Pierra Fatumbi. Orixás, deuses
iorubás na áfrica e no Novo Mundo. 5. ed. Salvador: Corrupio, 1997.

618
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

territórios iorubás, como Oxalá19, o deus da criação.


Isto porque a religião dos iorubás é marcantemente uma religião ligada
à família, onde um antepassado libertou-se da materialidade corporal e
passou a existir em forma de energia, axé, e se tornou um bem familiar. Este
ato de transmutação da matéria em energia não coincide com a morte do
membro da família – que para os iorubás seria o abandono do corpo pelo
èmí20 -, era antes uma possibilidade sublime de deixar o mundo profano
e tornar-se um ser divino.
Mas, o culto aos orixás, que mesmo entre os Iorubás possuía múltiplas
variações, sem estabelecimento de hierarquia ou padronização de divin-
dades, não era a única religião presente na África, tão pouco foi a única
transportada para o Brasil. Na mesma região co-habitada pelos iorubás
desenvolveram-se os jêjes, que ao invés de orixás cultuavam voduns e
povos islamizados.
A estratégia do colonizador foi dividir os diferentes povos, o que
acontecia já na África, depois deixando os negros em diferentes portos
brasileiros e se aprofundava no momento da venda dos escravos para
senhores locais. Ao dividir os negros de origem comum reduzir-se-iam as
possibilidade de entendimento mútuo e, consequentemente, de organiza-
ção dos negros, enfraquecendo a resistência e possibilidades de levantes.
Isso fez com que negros de diferentes povos, línguas e com expressões
religiosas distintas, muitas vezes inimigos entre si, fossem agrupados na
senzala ou nas casas urbanas dos senhores.
A religião foi a melhor forma de reprodução do modo de vida africano
antes de contato com o colonizador21. Isto porque, segundo Tshibangu, “o

19 Verger opta pela escrita iorubá para se referir aos termos desta língua. Porém, constatando que inexiste
uma padronização dos termos iorubás em publicações brasileiras, utilizaremos as terminologias adaptadas
ao português e já consagradas no uso cotidiano.
20 Para o Baba Guido, “na Concepção Filosófica dos Iorubá, èmí [...] tem a conotação de Àse Nlánlà – a Força
Divina Vital, contida no interior de cada Ser. O Mito da Gênese Iorubá, exalta O Ser Supremo – Olódùmarè, toda
a responsabilidade pela criação. [...] insuflado no exato momento do nascimento, em que cada ser absorve
uma porção do Divino, dando-lhe dessa forma, vida e existência própria.” (destaques do original). AJAGUNNÀ,
Baba Guido Omo. Uma Breve Análise do Vocábulo Èmí. Disponível em: <http://www.okitalande.com.br/
forum/forum_posts.asp?TID=476>. Acesso em: 29 jan. 2013.
21 TOMÁZ, Alzení de Freitas. O Direito e o Sagrado no Território Afro-Brasileiro de Mãe Edneuza. 2013.
Monografia (Bacharelado em direito) – Faculdade Sete de Setembro, Paulo Afonso, 2013. p. 27.

619
africano é um ser profunda e incuravelmente crente, religioso. Para ele,
a religião não é simplesmente um conjunto de crenças, mas, um modo
de vida, fundamento da cultura, da identidade e dos valores morais”22.
Mas, durante séculos não existiu uma religião africana no país, apenas
uma mistura de experiências de cultos que alguns negros traziam e iam se
misturando a outras, advindas de novas remessas de escravos23. Em aper-
tada síntese, pode-se afirmar que foi através do culto às divindades que o
negro encontrou forças para resistir ao processo de opressão da escravidão
e, com a devida sapiência, encontrou formas de burlar a fiscalização da
igreja e dos senhores, mesclando seus deuses aos deuses católicos, o que
permitia, no dia do santo, bater tambor e dançar para seu orixá.
Se as primeiras atividades religiosas ocorreram nas matas ou sob
cerrada vigilância nas fazendas, posteriormente, os negros libertos das
cidades, junto com outros escravos urbanos, como os escravos de ganho,
tiveram melhores condições de organização religiosa. Era na privacidade
dos sobrados, habitados coletivamente, que se praticavam as liturgias, o
que introduziu uma característica ainda hoje encontrada nos candomblés,
seus templos sagrados são locais de moradia e culto24.
Mas, a reprodução do modelo religioso originalmente existente nas
Áfricas era impossível no Brasil, pois, se os deuses eram, em geral, entes
familiares que teriam se transmutado em energia e a religião uma orga-
nização essencial familiar, como fazer isso com famílias dilaceradas e
grupos distintos coabitando o mesmo local?
Os laços familiares que não poderiam mais ter origem biológica se
transformaram em laços afetivos, as famílias de santo. Sustenta-se que os
primeiros terreiros foram criados por negros de mesma origem étnica25,

22 THIBANGU, Tshishiku; AJAYI, J. F. de; SANNEH, Lemin. Religião e evolução social. história geral da
áfrica, VIII: África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010. P. 605. Apud: TOMÁZ, Alzení de Freitas. O Direito
e o Sagrado no Território Afro-Brasileiro de Mãe Edneuza. 2013. Monografia (Bacharelado em direito)
– Faculdade Sete de Setembro, Paulo Afonso, 2013. p. 27.
23 Para as condições em que se desenvolveu o candomblé no país, ver: BASTIDE, Roger. As Religiões Afri-
canas no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1985.
24 SILVA, Vagner Gonçalves da. Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira. 2 ed. São Paulo:
Selo Negro, 2005.
25 Idem.

620
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mas os seus iniciados e sucessores na condução do terreiro não necessa-


riamente eram de uma mesma origem na África, porém as diferenças do
passado n’outro lado do mar haveriam de ser superadas pela necessidade
de criar laços identitários e propagar a fé.
No que tange às divindades, a alternativa encontrada foi reunir, em
um único espaço, o culto a deuses de distintas origens. Se “na África, a
cada região corresponde a um Orixá”26, no Brasil, diferentes Orixás foram
reunidos em um único culto.
Neste aspecto o terreiro, locus central do território do candomblé,
assumiu papel de destaque, pois, como afirma Raquel Rolnik, “através do
terreiro transferir-se-ia para o Brasil grande parte do patrimônio cultural
negro-africano, flexível o suficiente para poder responder à situação con-
creta vivida na diáspora”27. Continua ainda a autora:

O patrimônio simbólico do negro brasileiro afirmou-se


no Brasil como território político-mítico-religioso, para
sua transmissão e preservação. Perdida a antiga dimensão do
poder guerreiro, ficou para os membros de uma civilização
desprovida de território físico a possibilidade de reterri-
torializar na diáspora através de um patrimônio simbólico
consubstanciado no saber vinculado ao culto dos muitos deuses,
à institucionalização das festas, das dramatizações dançadas e
das formas musicais. 28 (grifou-se)

Os terreiros se constituíram como uma recriação da África, adotando


padrões de organização arquitetônica semelhante à dos templos africanos.
O modelo dos compounds, moradias coletivas dos iorubas, constituídas por
quartos em torno de uma área comum, foram adotados em diversos terrei-
ros, com quartos individualizados para os orixás29. Quando são pequenos
e não possuem estrutura para individualização dos espaços, os terreiros
podem reunir em um único peji as divindades urbanas, mas como afirma
Bastide, “de qualquer forma, o lugar do culto na Bahia aparece sempre

26 ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. Studio
Nobel: FAPESP: São Paulo, 2003. p. 65.
27 Idem, p. 65.
28 Idem, p. 65.
29 SILVA, Vagner Gonçalves da. Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira. 2 ed. São Paulo:
Selo Negro, 2005.

621
como um verdadeiro microcosmo da terra ancestral”, de tal sorte que a
religião do candomblé “é uma África em miniatura”30.
Mas, Bastide ainda vocaciona, seria uma mera caricatura o terreiro que
tentasse imitar a África sem participar do mundo sobrenatural, o que se
da através da consagração dos terreiros, a prática de enterrar o axé – for-
ça que anima todas as coisas. Somente após o enterro dos axés de cada
orixá, ritual que consiste em um segredo restrito a alguns dos iniciados
do candomblé, o templo assumirá a condição do local sagrado.
Os territórios do candomblé, porém, não se resumem ao espaço físico
do templo religioso, o terreiro. Dias denomina territórios descontínuos os
espaços ambientados para rituais complementares àqueles do templo.31
Estes territórios se constituem das matas, fontes, rios, praias, encruzi-
lhadas, qualquer lugar que seja evocativo de uma simbologia para o can-
domblé e onde se desenvolvam atividades ritualísticas, como o despacho
para exu ou o depósito de oferendas a determinado Orixá.
Neste espectro, as matas cumprem função primordial, pois diversos
ritos de consagração e de culto a orixás requerem o uso de folhas especí-
ficas. Nas palavras que Bastide reproduz de um informante: “todo segredo
do candomblé reside em suas ervas”32. Estas folhas podem até existir no
quintal do terreiro, mas não devem ser utilizadas no culto, pois vigora a
dicotomia do mundo da cultura e selvagem, este localizado nas matas não
plantadas pelos Homens. As matas compõem o reino do orixá Ossain, só
ele tem o domínio das ervas e lá que elas devem ser encontradas. A própria
coleta é um ritual, praticado com procedimentos e horários determinados.

5. POLÍTICA URBANA E INSTRUMENTOS


PARA PROTEÇÃO DOS TERRITóRIOS TRADICIONAIS

A política urbana, conforme vocação constitucional, consiste no con-

30 BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 76.
31DIAS, Jussara Cristina Rêgo. Territórios do Candomblé: desterritorialização dos terreiros na Região
Metropolitana de Salvador. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Geografia. Instituto de
Geociências da Universidade Federal da Bahia, 2003.
32 BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 126.

622
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

junto de intervenções promovidas pelo poder público no espaço urbano,


no rastro de garantir a plena efetivação das funções sociais da cidade e
garantia do bem-estar dos seus habitantes. Seu principal instrumento é
o plano diretor, documento que é fruto de uma etapa do planejamento
urbano – que ali não se encerra, mas pensa a cidade real e a cidade que se
pretende atingir, através da definição concreta do conteúdo das diversas
propriedades urbanas.
Alguns exemplos que envolvem a proteção dos territórios de povos
e comunidades tradicionais nas cidades começam a surgir em experi-
ências ainda isoladas, e outros veem sendo formulados pela doutrina.
Estas experiências são inovadoras e precisam ser compartilhadas entre
gestores público e sociedade, como o caso de terras indígenas urbanas33,
da possibilidade de criação de municípios indígenas34, a titulação de
remanescentes de quilombos urbanos ou tombamento e zoneamentos
específicos para terreiro35.

5.1 Dificuldades da regularização


fundiária dos terreiros de candomblé

A proteção dos territórios de diversos povos e comunidades tradicio-


nais perpassa pelo reconhecimento e titulação, seja em nome do poder
público ou da coletividade. Assim é o caso das terras tradicionalmente
ocupadas pelo povos indígenas, reservas indígenas, dos remanescentes
de quilombos e comunidades de fundo de pasto.

33 O Município de Rio Preto da Eva, no Estado do Amazonas, foi pioneiro ao publicar lei que autoriza de-
sapropriação de área urbana para assentamentos dos índios ali territorializados. Sobre esta experiência e o
fascículo da cartografia social que subsidiou o decreto, ver: FARIAS JÚNIOR, Emmanuel de Almeida. Terras
Indígenas nas Cidades: Lei Municipal de Desapropriação nº 302. Aldeia Beija-flor, Rio Preto da Eva, Amazonas.
Manaus: UEA Edições, 2009 e ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de (Org.). Nova Cartografia Social da Amazônia:
Indígenas na Cidade de Rio Preto da Eva - Comunidade Indígena Beija-Flor. Manaus: Editora da Universidade
do Amazonas, 2008.
34 Sobre uma provadora proposta de Municípios indígenas, ver: NOGUERIA, Caroline Barbosa Contente;
DANTAS, Fernando Antônio de Carvalho. Criação de Municípios Indígenas: desafios ao direito brasileiro. In:
SAULE JR, Nelson et al. (Orgs.) Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico – Manaus, 2008:
O direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanços e Perspectivas. Porto Alegre:
Magister, 2009.
35 OLIVEIRA, André Luiz de Araújo. Patrimônio Cultural e Poder: trajetória normativa e desdobramentos
preservacionistas do município de Salvador – Bahia. 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo)
– Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.

623
Os povos de santo vivem em constante ameaça de desterritoriali-
zação, muitas vezes promovidas pelo próprio poder público, como foi
o caso do terreiro Oyá Onipo Neto, demolido pela Prefeitura Municipal
de Salvador em 200836, e tem reforçado a demanda pela titulação dos
terreiros de candomblé37.
Mas, a regularização fundiária de terreiros de candomblé não tão
simples como a regularização fundiária de uma unidade habitacional.
Isto porque, como grupos com identidade e cultura distinta, organizado
sob normas arraigadas na tradição, o tratamento dos povos de santo pelo
poder público deve buscar respeitar suas peculiaridades.
Buscar compreender e respeitar seu padrão organizativo é um im-
perativo ético e jurídico, pois a Convenção n. 169 da OIT, diploma devi-
damente incorporado à ordem jurídica pátria com posição hierárquica
supralegal, determina que ao se aplicar a legislação pátria aos povos e
comunidades tradicionais seja levado em consideração seus costumes
e direitos consuetudinários.
Neste sentido, importante constatar que os terreiros são, em regra,
local que acumula função de moradia com a função litúrgica, englobando
muitas vezes diversas moradias, áreas verdes, fontes e espaços de uso
coletivo, como os barracões.
Ademais, a noção de propriedade destes sujeitos, conforme sua cosmo-
visão, é distinta daquela arraigada na sociedade brasileira e reconhecida
pela ordem jurídica. Segundo Baptista, que realizou estudos etnográficos
no Rio de Janeiro e Salvador, encontram-se duas peculiaridades na con-
cepção de propriedade dos povos de santo. Primeiro, os praticantes do
candomblé, como sujeitos que incorporam entidades – orixás, inquices,
voduns, e entidades que foram incorporadas aos cultos, como caboclos e
ciganos – são objeto destas entidades, “cavalos” à serem montados. Se são
objeto destas entidades, não poderiam reivindicar para si a propriedade

36 ARAÚJO, Gláucio. Demolição de terreiro provoca polêmica em Salvador. G1, Brasil/Religiosidade, 18 mar.
2008. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,mul353993-5598,00-demolicao+de+terreiro+p
rovoca+polemica+em+salvador.html>. Acesso em: 15 jan. 2012.
37 SANTOS, Normando Baptista. Candomblé: da resistência à politização. Le Monde Diplomatique
Brasil, São Paulo, ano 2, n. 22., 36-37, mai. 2009.

624
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dos demais objetivos presentes no terreiro, como roupas e instrumentos.


Segundo, porque tudo no terreiro pertenceria ao axé, as pessoas, as coi-
sas, tudo ali é desta força divida que habita e anima as coisas do mundo.
Assim, nem mesmo os babalorixás ou ialorixás seriam proprietários
do terreiro, ainda que construído em terreno próprio e com seus recursos.
No momento de consagração do terreiro, este passaria a ser apenas um
“zelador”, encarregado de distribuir o axé, mas não o titular do mesmo.
Este ponto aponta para questões de grande relevância para o processo
de regularização fundiária dos terreiros. Se o babalorixá ou ialorixá não
é proprietário do terreiro, não deveria ser ele o sujeito a ser titulado na
regularização, mas o orixá regente do terreiro.
Ocorre que, segundo a ordenamento jurídico pátrio somente podem
titularizar direitos, como o direito de propriedade ou posse, sujeitos de
direito, categoria que engloba as pessoas e entes despersonalizados.
Pessoas, segundo a doutrina civilista, são todas aquelas que possuem
personalidade jurídica, atributo genérico que viabiliza a titularização de
direitos e que conferia o status de pessoas aos sujeitos. Mas, o ordena-
mento jurídico não reconhece a possibilidade de entidades sagradas de
alguns povos, ainda que para estes sejam tão presentes neste mundo
quanto os humanos que aqui habitam, gozarem de personalidade jurídica.
Este atributo é conferido pela lei aos seres humanos e entidades criadas
pela sociedade, como associações, sociedades empresariais e até mesmo
a um patrimônio afetado a determinado fim – as fundações, mas não aos
deuses africanos ou de outras religiões, o que inviabiliza a regularização
fundiária titularizar a unidade para estas entidades.
Neste sentido, tem se apresentado como melhor alternativa para re-
gularização fundiária dos terreiros a constituição de uma pessoa jurídica
que represente a comunidade de praticantes do candomblé, seja uma
associação ou organização religiosa.
A constituição e titulação de associações ou organizações religiosas,
além de alternativa à impossibilidade de regularização em nome do Orixá,
é capaz de sanar outro problema vivenciado pelos povos de santo quando

625
o terreiro é propriedade do babalorixá ou ialorixá. Em caso de falecimento
destes, o terreiro, também pela cosmovisão e regras próprias do candom-
blé, deveria ser assumido por um filho ou filha de santo, escolhido pelo
Orixá. Ocorre, porém, que a sucessão de bens quando do falecimento
de seu titular é amplamente normatizada no Brasil e não reconhece a
possibilidade de um ente “escolher” o destino daquele patrimônio. Para o
direito civil, com o falecimento do de cujos, automaticamente o patrimô-
nio é transferido para os sucessores, como os filhos, cônjuge ou aqueles
previstos em testamento.
O conflito entre a sucessão do terreiro segundo a “lei do santo” e a lei
civil já levou inúmeros terreiros a serem fechados e tem motivado que
vários procurem regularizar a entidade religiosa através de uma pessoa
jurídica, transferindo-lhe a propriedade do terreiro.

5.2 Limites da regularização fundiária


de territórios de povos de santo

Além dos terreiros, os povos de santo constituem seus territórios


naquilo que denominamos, emprestando expressão de Dias, “territórios
descontínuos”. Estes locais, principalmente quando inseridos no espa-
ço urbano, não são controlados unicamente pelos povos de santo. Ao
contrário, é comum que os territórios tradicionais do candomblé sejam
também espaços vivenciados por outros sujeitos, membros de famílias
de santo, ou não, que ali se territorializam.38 Esta disputa de poder pelo
espaço pode se constituir desde a pressão de ocupação das matas pela
expansão urbana formal e informal até o combate às práticas religiosas
e destinação de certas áreas a atividades de lazer.
Em grandes cidades, como Salvador, onde a expansão da malha ur-
bana tem ocupado todo o território municipal, os povos de santo têm se

38 FARIA, Arley Haley; SANTOS, Rosselvelt José. Territórios de Direitos Culturais e Étnicos das Religiões de
Matriz Africana em Uberlância, MG. Mercator - Revista de Geografia da UFC, vol. 7, n. 13, 2008, Fortaleza,
p. 19-27. Disponível em: <http://www.mercator.ufc.br/index.php/mercator/issue/view/M13/showToc>.
Acesso em: 19 jan. 2012.

626
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mobilizado pela preservação de matas e fontes. “Kó si ewé, kó sí Òrìsà”


e “Kó si omi, kó sí Òrìsà” são expressões em ioruba que significam “sem
folha, não há orixá” e “sem água, não há orixá” e estão sendo amplamente
difundidas pelos povos de santo, tendo ganhado até melodia na voz de
Maria Bethânia:

[...] Sem folha não tem sonho


Sem folha não tem festa
Sem folha não tem vida
Sem folha não tem nada

Eu guardo a luz das estrelas


A alma de cada folha [...]

Neste sentido, Bastide, cuja obra foi publicada pela primeira vez em
1958, já afirmava que algumas entidades não mais “descem”, como o
xangô de Ouro, pois as ervas necessárias para sua encarnação no egun
não são mais localizadas39.
Porém, é possível proteger os territórios descontínuos de povos de
terreiro, em especial quando existente sobreposição de territórios, através
da regularização fundiária? A regularização, como intervenção que visa
garantir segurança jurídica à posse, é realizada através da outorga de um
direito real sobre a área ocupada e os direitos reais gozam da caracterís-
tica de “oponibilidade” ou “eficácia absoluta”, o que impões à coletividade
o dever de respeito da utilização exclusiva que o titular faz com a coisa.
A outorga de direito real sobre determinado espaço da cidade que
constitua território descontínuo dos povos de santo não parece ser a uma
hipótese à ser aplicada sem amplos conflitos, pois demandaria direitos
exclusivos sobre áreas multiplamente utilizadas, como a praia do rio
vermelho em Salvador, onde são realizadas oferendas à Iemanjá no dia
02 de fevereiro.
Ainda que a política urbana desenvolvida no país venha adotando cada
vez mais ações de regularização fundiária, em consonância com a diretriz

39 BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 126.

627
do Estatuto da Cidade, e a proteção territorial de outros povos e comu-
nidades tradicionais perpasse pela titulação territorial, os instrumentos
que garantem direito real sobre o bem não são os únicos que podem ser
utilizados pelo poder público.
A Convenção n. 169 da OIT, marco internacional da afirmação dos
territórios tradicionais, também caminha neste sentido. Afirma o diploma
que se deve reconhecer aos povos interessados o direito à propriedade e à
posse das terras que tradicionalmente ocupam. Porém, reconhece que em
casos apropriados, como quando não ocupem efetivamente o território,
dever-se-á salvaguardar o direito de utilização do território não exclusivo.
O Estatuto da Cidade apresenta uma séria de instrumentos jurídicos
e políticos e de planejamento – tombamento, unidades de conservação,
zonas especiais de interesse social, zoneamento ambiental, disciplina de
parcelamento do solo e o próprio plano diretor – que podem se tornar
objeto dos estudiosos do direito urbanístico e política urbana, com obje-
tivo de pensar mecanismos eficazes de garantir a plena salvaguarda dos
territórios de povos e comunidades tradicionais em áreas urbanas.

6. CONCLUSÃO

Os povos e comunidades tradicionais são sujeitos sociais cultural-


mente diferenciados e cuja principal característico enfocada neste artigo
é a forte relação que estabelecem com o local vivido, subjetivando-o e o
tornando-o seu território. Até pouco tempo invisibilizados, diferentes povos
e comunidades tradicionais tem emergido no cenário político nacional, or-
ganizados em movimento sociais, com a reivindicação de seus territórios.
Estes sujeitos são diferentes entre si, com distintos hábitos, costumes e
territorialidades, mas perder seus territórios pode significar desaparecer.
O Brasil possui marcos legais para tratar de povos e comunidades
tradicionais, mas é importante que os grupos localizados nas cidades
tenham a devida atenção do poder público, no sentido de proteger suas
peculiaridades culturais.

628
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Através do estudo dos povos de terreiro buscamos demonstrar que é


imperativo compreender a dinâmica territorial dos povos para promover
uma ação de salvaguarda territorial que respeite suas peculiaridades e
apresentamos algumas reflexões a cerca das dificuldades enfrentadas na
regularização fundiária, bem como os limites desta intervenção, o que nos
impõe buscar outros instrumentos de política urbana hábeis a proteger
seu território.

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631
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A dialética entre a regularização


fundiária e o aluguel nas áreas públicas
municipais objeto de concessão

Candelaria Maria Reyes Garcia1


Ellade Imparato2

INTRODUÇÃO

Logo ao cadastrar os moradores para a implantação do então Programa


de Regularização Urbanística e Fundiária de áreas públicas em São Paulo
para o cumprimento da Lei Municipal n.º 13.514 de 16 de janeiro de 2003,
verificou-se que inúmeras famílias respaldavam a posse de suas moradias
em contratos de aluguel com particulares.
Assim, constatou-se um grande impasse: quem tinha direito a con-
cessão de uso especial para fins de moradia? O Morador (locatário) não
preenchia o requisito do animus domini (aquele que possui como seu), e
muitas vezes se recusava a preencher o cadastro, pois dizia que o imó-
vel não era seu. O dono da construção (locador) via de regra morava no
mesmo lote e em algumas situações sequer morava no assentamento.
Há de se ressaltar que muitas vezes a equipe social apontava para a
situação estabelecida pela própria dinâmica da comunidade que é reflexo
da sociedade, ou seja, a ilegalidade do aluguel na visão da comunidade
não se consumava, uma vez que os locatários tinham plena convicção
que moravam em um imóvel que não lhes pertencia e que não tinham
construído, portanto, “incentivar” o locatário a requer a concessão de uso
gerava apenas a expulsão sumaria dos mesmos do imóvel onde moravam,
por meio inclusive de violência.

633
Diante do impasse, a Secretaria de Habitação solicitou ao Pólis – Institu-
to de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais consultoria para
implantar a política pública de regularização fundiária de áreas públicas
ocupadas pela população de baixa-renda.
Esta consultoria norteou e respaldou o trabalho dos técnicos municipais
no para o reconhecimento do direito à moradia da população assentada
nas áreas públicas.
Reconheceu a existência dos aluguéis como entrave à regularização
apontando a prática como “utilização indevida da área pública - locação”.
Orientou no sentido que os “locadores” não têm direito à concessão de
uso especial para fins de moradia, salvo se utilizarem o imóvel também
para sua moradia.
“Neste caso, ou seja, se o locador utilizar o imóvel para sua moradia e
de sua família, deverá ser beneficiário da concessão especial pela fração
ideal ocupada, direito este igualmente assegurado aos locatários nas suas
respectivas frações ideais”.
O parecer ressaltou a ilegalidade desses contratos que desrespeitam as
premissas dadas no Código Civil para a celebração de um contrato válido
deduzindo logicamente que: “este contrato é ilegal (...) na medida em que
a locação de área pública é ato ilícito, um eventual contrato não outorga
legitimidade à relação travada entre locador / locatários”.
Segundo o parecer, “Importante ressaltar, que a inexistência de do-
cumentação comprobatória da locação (contrato formal de locação)
impede o “locador” de efetuar formalmente o despejo. Assim, ausente o
documento que comprova a lícita relação locatícia, o locador não poderá
tomar providências oficiais e legítimas junto ao Poder Judiciário para o
despejo das famílias que sejam locatárias”.
Desta forma, o parecer concluía logicamente que “este locador não
possui meio hábil e nem amparo legal para questionar judicial ou admi-
nistrativamente a ocupação, pelos locatários, do imóvel localizado em
área pública, sendo-lhe defesa na prática do despejo formal”.
No entanto, não é o que temos presenciado ao aplicar estes preceitos,

634
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o judiciário ao longo destes anos vem apontando para uma solução em


que vale o contrato de locação feito entre os particulares independen-
temente da relação de propriedade do imóvel. Em muitos casos o réu
prova na Ação Judicial de Despejo que tem a Concessão de Uso outorgada
pela municipalidade.
A realidade fática demonstrou ser mais complexa que a construção
jurídica feita, no caso, para respaldar o programa paulistano que contou
inicialmente com a desafetação de 160 áreas públicas e o reconhecimento
do direito à moradia para mais de 42 mil famílias.
Seus resultados demandaram aprimoramento pelo Poder Público na
execução da 2ª Fase do Programa em 2008 – com proposta de atendimento
de 23.000 famílias.
Parte da demanda municipal para a regularização fundiária foi acolhida
com a revisão dos instrumentos normativos, representando significativo
avanço na execução do Programa. Em especial, destacam-se: a possibili-
dade de desafetação de áreas por meio de decreto e a admissibilidade de
fotos aéreas como meio comprobatório da posse.
Com efeito, tais avanços não seriam possíveis caso o Município não
houvesse posto em prática sua política de regularização fundiária a partir
de 2003, tampouco, experimentado as dificuldades operacionais do Pro-
grama para a escala de irregularidade da cidade.
As inovações normativas encontram-se consubstanciadas na Lei
municipal nº 14.665/08 e no Decreto nº 49.498/08. No entanto, algumas
das dificuldades encontradas na primeira fase persistiram no momento
de implementação da segunda. Entre elas, a situação do aluguel nas
áreas regularizadas.
Fato é que ao longo desses anos este problema persiste e depois de
refletir percebemos que esta questão traduz a antiga dialética do direito
estabelecido pela Medida Provisória 2220/01, o mercado informal e a falta
de regramento e sanções específicos pela municipalidade.
Diante dos questionamentos e conflitos surgidos em decorrência de
situações de locação entre particulares residentes ou não nas áreas que

635
integram a Regularização Fundiária é que surgem os questionamentos
propostos como reflexão para este trabalho: a) é possível aceitar como
legal o aluguel de subsistência: um imóvel dentro do mesmo lote do lo-
cador ou parte do imóvel do locador; b) como conter o aluguel em escala
ou especulação: uma pessoa tem várias imóveis de aluguel dentro de um
mesmo lote ou mesma área.
Assim, no sentido de aliarmos a necessidade das famílias moradoras
dos assentamentos de baixa renda às possíveis propostas legais para
solução dos conflitos buscamos essa reflexão.

DAS FORMAS DE TITULAÇÃO E DE SEUS REqUISITOS

Em síntese, o Município de São Paulo propõe a outorga de três tipos


de títulos, a concessão de uso especial para fins de moradia, a concessão
de direito real de uso e a autorização de uso. Além desses títulos a Muni-
cipalidade pode conferir uma declaração, denominada de “Declaração de
preenchimento dos requisitos da concessão de uso especial para fins de
moradia”, que é outorgada nos casos onde se verifica a impossibilidade
de consolidação da ocupação no local (como acesso por área particular).
A regra é a concessão de uso especial para fins de moradia, prevista na
Medida Provisória 2.220/01, aplicando-se subsidiariamente a concessão
de direito real de uso, prevista no ordenamento desde que outorgado o
Decreto-Lei n. 271/67. Aos casos de atividade não residencial (ou não
predominantemente residencial) aplica-se a autorização de uso, prevista
na mencionada Medida Provisória.
Os institutos não transferem o domínio pleno sobre a propriedade
imobiliária do ente público (o que é vedado constitucionalmente), mas
possibilitam o uso privativamente por beneficiários das concessões que
são compreendidas como atos bilaterais entre as partes. No caso, as par-
tes são a Prefeitura de São Paulo (como proprietária dos imóveis onde
se situam os assentamentos regularizados na 1ª e 2ª fases) e as famílias
beneficiárias da regularização fundiária (os concessionários).

636
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Tratando-se de instrumento preferencial de regularização fundiária,


a aplicação da concessão de uso especial para fins de moradia requer a
observância dos seguintes requisitos: (i) possuir como sua área urbana de
até 250m²; (ii) ter a posse da área urbana pelo período mínimo de cinco
anos, ininterruptamente e sem oposição; (iii) utilizar a área urbana para
sua moradia ou de sua família; (iv) não ser proprietário ou concessionário,
a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural (SAULE JR: 2004, 399).
Destacam-se, por ora, a primeira e a última condição, uma vez que o
destaque deste estudo corresponde à confrontação dos instrumentos de
titulação com a locação de moradias celebrada entre particulares.

DA NORMA àS EXPERIÊNCIAS EM CAMPO

Quando se refere expressamente ao possuidor que utiliza imóvel ur-


bano, como se seu fosse, a Medida Provisória identifica com precisão o
animus domini, intrínseco aos requisitos a serem observados. Ademais,
constitui-se a impossibilidade de outorga de títulos no caso de propriedade
ou domínio útil de outro bem imóvel concomitante ao pleito da concessão
de uso especial para fins de moradia.
A exegese das condições definidas na Medida Provisória parece bas-
tante simples. Mas sua aplicação nas favelas regularizadas em São Paulo
mostrou-se extremamente complexa confrontando-se com circunstâncias
historicamente construídas entre particulares, onde a verificação de ocor-
rência do animus domini não acontece.
Na segunda fase do então Programa de Regularização Urbanística e
Fundiária a orientação do Município, no intuito de resolver essa situação,
foi identificar toda e qualquer relação jurídica entre particulares que se
enquadrava como aluguel e lançá-la a um status de conflito.
Dessa forma identificada uma situação de conflito o Município como
legítimo proprietário não reconhecia a locação como negócio jurídico,
restando à assessoria jurídica do Programa a acomodação das negociações
entre particulares por meio de outros institutos de direito civil (notada-

637
mente, a confissão de dívida) no intuito de manter o locatário no imóvel
comprando do locador a construção por ele erigida.
Desta maneira, o Programa tentou combinar a desconsideração
dos contratos de aluguel e eliminar o enriquecimento sem causa (co-
mumente representado pela titulação do “inquilino” que recebe uma
casa ou outro tipo de benfeitoria sem nunca haver concorrido com as
despesas para construí-la).
A situação é extremamente controversa nas áreas regularizadas. Além
disso, os casos são muito diversificados. O aluguel nas favelas localiza-
das em áreas públicas municipais representa tanto benfeitorias erguidas
como investimento acumulado de uma vida inteira como casos da mais
absoluta opressão entre particulares. Certo é que verdadeiras relações
jurídicas de locação formaram-se em décadas de omissão do Município,
mesmo que calcadas sobre posses qualificadas como injustas sob uma
perspectiva meramente civilista. O Município, por sua vez, para voltar a
se assenhorar de seu patrimônio e implementar uma política habitacional
significativa no parque habitacional para baixa renda estabelece na posse
(uma situação de fato) o único critério para restabelecimento da tutela
dessas porções territoriais.
Some-se a isso o fato da diretriz ser diametralmente oposta na regu-
larização fundiária de loteamentos irregulares ou clandestinos. Ou seja,
nessas circunstâncias o setor competente da Prefeitura, dentro da mesma
Secretaria, considera o adquirente do lote, independentemente da posse
direta sobre o imóvel, como beneficiário final.
Não obstante, a prática demonstrou que houve vários casos de compo-
sição amigável entre locador e locatário, contudo, ficou muito aquém dos
casos em que essa composição amigável não foi possível, ora pelo valor
da construção está fora do orçamento dos locatários, ora pelo completo
desinteresse dos locadores em uma composição amigável por entenderem
que estariam desfazendo-se de seu “patrimônio”.

638
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A POSSIBILIDADE DE RECONhECIMENTO
DOS ALUGUERES EM áREA PÚBLICA
MUNICIPAL REGULARIZADA

O aluguel para a população de baixa renda nessas áreas configuraria


uso especulativo ou seria alternativa de provisão habitacional (com a
construção das moradias a um público que normalmente não tem acesso
a crédito pelos meios formais)? Quais seriam as circunstâncias a diferen-
ciarem ambas as situações? E como proceder a qualquer avaliação dessas
circunstâncias sem configurar puro arbítrio dos agentes públicos?
O Programa de Regularização Fundiária de favelas em São Paulo
adotou o critério da posse direta dos imóveis, afastou-se de qualquer
arbítrio. Contudo, persistem os conflitos evidenciados em todas as áreas
regularizadas, diferenciando-se apenas em maior ou menor incidência, a
serem expostos a seguir.
Não menos importante, para o Município cabe o questionamento
acerca da fiscalização após a titulação dos possuidores de fato. Queixas
de moradores em áreas recém tituladas, algumas vezes colacionadas nos
plantões de atendimento à população indicam a persistência de relações
opressivas nas áreas, consubstanciadas nas relações entre alegados “do-
nos” de imóveis e “inquilinos” titulados. A pressão para desocupação dos
imóveis, antes e depois da regularização fundiária, é extremamente forte.
Isso, na prática, representa a permanência das avenças entre particulares.
A capacidade de resposta do Município com relação aos conflitos de
aluguel ainda é lenta e pouco representativa, mesmo porque a legislação
não se mostra clara o suficiente para uma atuação mais incisiva. Cance-
lar o termo de concessão sem a retomada do imóvel não é uma solução
eficaz, do mesmo modo retomar o imóvel (lote) sem indenizar o dono da
construção seria uma medida igualmente injusta.
O próprio Poder Judiciário pouco se manifestou acerca dos desdobra-
mentos do instituto criado pela Medida Provisória, ao contrário nas situa-
ções de conflito de aluguel em área pública que chegaram ao conhecimento

639
da Municipalidade, o Judiciário posicionou-se no sentido de prevalência
do contrato de aluguel independentemente do domínio da área. O risco à
segurança da posse de moradores (originalmente “inquilinos”) decorrente
de tal entendimento ainda é desconhecido, mas fornece indicativos de que
a posse no local objeto de titulação pode ser prejudicada.

A SOLUÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO


NOS PROCESSOS DE REASSENTAMENTO E
SITUAÇÕES DE ALUGUEL.

O Estado do Rio de Janeiro reconheceu de forma direta a situação já


estabelecida há anos nos assentamentos, mesmo que esse reconhecimen-
to seja apenas na situação de aprovação de diretrizes para a demolição
de edificações e relocação de moradores. No Decreto nº 34.5223, de 3 de
outubro de 2011 o Estado reconhece a situação de locação em casos onde
haverá alguma intervenção do Poder Público, seja remoção por risco, seja
obra de urbanização, este decreto aprova as diretrizes para a demolição
de edificações e relocação de moradores em assentamentos populares,
sem fazer distinção quanto a propriedade da área do assentamento (pú-
blica ou particular).
No “Anexo A” do decreto a situação fica bem clara, vejamos o texto
de parte do Anexo A:

1.3 - IMÓVEIS ALUGADOS - O tratamento a ser dado aos casos


de edificações alugadas contempla a oferta de indenização da
benfeitoria ao titular e um auxílio financeiro ao locatário. Este
critério evita beneficiar moradores recentes da comunidade
em detrimento dos mais antigos, ao mesmo tempo que faz o
ressarcimento ao titular das despesas realizadas na construção
da benfeitoria.
Além disso, dá condições ao locatário de buscar um novo imóvel
para alugar, facilitando o pagamento do depósito, mecanismo
utilizado nos aluguéis em áreas de baixa renda, em substituição
ao fiador.
A hipótese de beneficiar somente o locatário poderia provocar
uma onda de despejos durante a implantação do projeto, como
forma do titular da benfeitoria resguardar seus investimentos.
Utilizar o critério de indenizar o proprietário pela benfeitoria
e ofertar uma nova moradia ao locatário poderia provocar o

640
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

aparecimento de casos de “aluguéis fictícios”, beneficiando uma


mesma família duas vezes. Por estas razões, esses procedimentos
foram descartados.

Essa alternativa visa, claramente, a proteção do locatário, no sen-


tido de coibir uma expulsão arbitrária. Também podemos dizer que
reconhece a edificação como dispêndio do locador ao propor uma
indenização pela construção. No entanto, verificamos que não existe
um limite claro para indenizações pelas construções fazendo entender
que também será indenizado aquele que usa o aluguel de forma espe-
culativa no mercado informal.

CONCLUSÃO

O mercado imobiliário informal nas áreas públicas municipais é uma


realidade que não se pode mais omitir. A falta de legislação específica para
regular essa situação dentro dos assentamentos em área pública municipal
tem sido um grande entrave no processo de regularização fundiária, uma
vez que nos deparamos com um grande número de imóveis que ficam
no limbo jurídico, sem titulação. Vale dizer que os moradores locatários,
via de regra, não aceitam receber a titulação do imóvel e os donos das
construções locadores não podem recebê-la - para não caracterizar duplo
atendimento. O duplo atendimento se daria mesmo que o imóvel locado
e aquele utilizado para moradia se encontrem dentro do mesmo lote, ou
sobre a mesma laje, pois em São Paulo a regularização de área pública
utiliza o critério da especialização da fração.
A reformulação do ordenamento jurídico municipal para o enfren-
tamento das questões fáticas, o papel da moradia alugada dentro da
provisão habitacional de interesse social, a diferenciação entre situações
de subsistência e especulação imobiliária em áreas públicas municipais,
todas consubstanciam etapas de um processo que o Município de São
Paulo deverá enfrentar a fim de que sua política habitacional se mante-
nha na trilha da justiça social garantindo e respeitando a dinâmica das

641
comunidades dentro de limites que impeçam a especulação.

BIBLIOGRAFIA

BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil: arquitetura moderna, lei do


inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. 4ª Edição.

BRUNO, Ana Paula, GARCIA, Candelaria Maria Reyes e SANTOS, Raphael Bischof
dos: Aluguel entre particulares em áreas públicas municipais: considerações sobre
conflitos enfrentados na implementação do programa paulistano de regularização
fundiária de favelas. In Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico
– Manaus 2008: O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de
1988 – Balanço e Perspectivas / [Organizado por] Nelson Saule Júnior et al. – Porto
Alegre,: Magister, 2009, p. 85.

ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade


de São Paulo. São Paulo: FAPESP:Studio Nobel, 1999. 2ª Edição.

SÃO PAULO. HABISP. Disponível em < www.habisp.inf.br >.

SAULE JR., Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares.


Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004.

NOTAS

1 Candelaria Maria Reyes Garcia - Advogada, Consultora Jurídica da Secretaria Municipal de Habitação de São
Paulo, Especialista em Direto do Estado, Especialista em Direito Urbanístico pela PUC/Minas candelariareyes@
gmail.com (11) 3397-3829
2 Ellade Imparato- Advogada, Diretora Administrativa do IBDU, Consultora Jurídica da Secretaria Municipal
de Habitação de São Paulo, Mestre em Filosofia do Direto, Doutoranda da Universidade Mackenzie em Direito
Econômico, eimparato@gmail.com (11) 3397-3828
3 DECRETO Nº 34522 DE 3 DE OUTUBRO DE 2011.
Aprova as diretrizes para a demolição de edificações e relocação de
moradores em assentamentos populares
O PREFEITO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, no uso de suas atribuições legais, e
CONSIDERANDO a necessidade de atualizar e uniformizar os procedimentos da administração municipal para a
desocupação de áreas em assentamentos populares, necessárias à implantação de projetos de interesse público
DECRETA:
Art. 1.º Ficam aprovadas as diretrizes para a demolição de edificações e relocação de moradores em assenta-
mentos populares na forma do anexo A.
Parágrafo único. Aplicam-se as mesmas diretrizes às situações de emergências, tais como incêndios, enchentes,

642
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

desabamentos e despejos.
Art. 2.º Ficam revogados os Decretos n.° 28.983, de 11 de fevereiro de 2008, n.° 33.017, de 05 de novembro de
2010, e n.° 23.846 de 19 de dezembro de 2003.
Art. 3.°Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Rio de Janeiro, 3 de outubro de 2011; 447.º ano da fundação da Cidade.
EDUARDO PAES

ANEXO A

1. DIRETRIZES PARA DEMOLIÇÃO DE EDIFICAÇÕES E RELO-


CAÇÃO DE MORADORES EM ASSENTAMENTOS POPULARES
1.1 - CONDICIONANTES:
As intervenções urbanísticas previstas em projetos de urbanização de
assentamentos populares ou em projetos de interesse público indicam,
muitas vezes, a necessidade de demolição de unidades residenciais, co-
merciais e mistas situadas em assentamentos populares.
Tais demolições são necessárias à execução de sistema viário, à im-
plantação de obras de infraestrutura e equipamentos públicos, ou por
estarem situadas em áreas inadequadas à habitação.
Os projetos de urbanização, elaborados com a orientação de atingir
o menor número possível de unidades, indicam soluções diversas, de
acordo com as especificidades de cada área e privilegiam a utilização de
espaços livres no próprio local, e, na inexistência dessas áreas, a escolha
de terrenos o mais próximo possível.
A relocação compulsória de uma moradia, mesmo em casos justifica-
dos, deve ser precedida de um entendimento e aceitação, por parte das
famílias a serem reassentadas, dos objetivos, condições e benefícios do
projeto. Devem ainda ser considerados os investimentos realizados por
essas famílias, na produção da sua moradia, reconhecendo o direito a
estas benfeitorias.
O processo de reassentamento baseia-se nas seguintes diretrizes:
• A participação da população beneficiada, em todas as etapas do
processo, buscando soluções de consenso e o comprometimento de todos
com o sucesso do projeto;
• A real melhoria das condições de habitabilidade da população objeto

643
da intervenção, mediante a oferta de alternativas de relocação;
1.2 - ALTERNATIVAS DE RELOCAÇÃO - A oferta de outra moradia às
famílias se dará por meio da escolha de uma das seguintes modalidades,
respeitadas as características do projeto de relocação, a disponibilidade
dos recursos e a especificidade de cada beneficiário:
1.2.1 - Uma nova moradia no local, mediante a construção de unidades
residenciais de bom padrão construtivo, quando previsto no projeto ou
num empreendimento do Programa Minha Casa Minha Vida ou similar;
1.2.2 - A indenização da benfeitoria;
1.2.3 - A compra de uma nova moradia, preferencialmente na própria
comunidade, denominada compra assistida;
1.2.4 - Auxílio financeiro específico para liquidação antecipada do par-
celamento do contrato de compra e venda de imóvel residencial celebrado
conforme as regras do Programa Minha, Casa Minha Vida, regulado pela
Lei Federal n.° 11.977, de 7 de julho de 2009, quando autorizado pelo Chefe
do Poder Executivo e apenas para os casos de recolocação de famílias
desabrigadas ou moradoras de área de risco;
1.2.4.1 - No caso da liquidação antecipada, o beneficiário assinará
Termo de Concordância, que substituirá o recibo definido no Anexo 5.
1.2.5 - Pagamento de aluguel mensal no valor definido no Decreto n.°
2893, de 13 de abril de 2011, até o reassentamento definitivo em outra
moradia.
1.3 - IMÓVEIS ALUGADOS - O tratamento a ser dado aos casos de
edificações alugadas contempla a oferta de indenização da benfeitoria ao
titular e um auxílio financeiro ao locatário. Este critério evita beneficiar
moradores recentes da comunidade em detrimento dos mais antigos, ao
mesmo tempo que faz o ressarcimento ao titular das despesas realizadas
na construção da benfeitoria.
Além disso, dá condições ao locatário de buscar um novo imóvel para
alugar, facilitando o pagamento do depósito, mecanismo utilizado nos
aluguéis em áreas de baixa renda, em substituição ao fiador.
A hipótese de beneficiar somente o locatário poderia provocar uma

644
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

onda de despejos durante a implantação do projeto, como forma do ti-


tular da benfeitoria resguardar seus investimentos. Utilizar o critério de
indenizar o proprietário pela benfeitoria e ofertar uma nova moradia ao
locatário poderia provocar o aparecimento de casos de “aluguéis fictícios”,
beneficiando uma mesma família duas vezes. Por estas razões, esses
procedimentos foram descartados. (grifos nossos)

645
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A proteção ao direito
de posse nos conflitos
fundiários urbanos

Kristal Moreira Gouveia1

INTRODUÇÃO

O homem é um animal social: É a máxima imortalizada por Aris-


tóteles. Atingir uma coexistência adequada e digna em sociedade, no
entanto, é um objetivo complexo. É necessária uma série de elementos
indispensáveis para que a dignidade seja alcançada pelo ser humano como
integrante social de seu meio, apto a ser cidadão ativo da sociedade na
qual se encontra.
É preciso organizar-se nesse meio, adequar-se aos padrões sociais e
ao modelo de vida e de economia no qual a pessoa humana é inserida
desde o nascimento. Para tanto é preciso trabalhar, gerar renda para que
se possa consumir o que é necessário para a subsistência. Trata-se aqui
do mais básico, do mais inerente à subsistência humana, à adaptação a
esse mundo. Um dos alicerces primordiais a esta subsistência é a moradia.
Morar é possuir um lar, uma habitação: um espaço de terra onde o
indivíduo e sua família habitem, protegendo-se da insegurança dos am-
bientes públicos. A moradia é um espaço inviolável e pessoal do indivíduo,
constituído para que este possua a mínima segurança e estabilidade para
auto-organizar-se. Pode-se concluir, portanto, que a moradia chega a ser
uma extensão da pessoa, necessária a seu estabelecimento na sociedade.
No entanto a moradia não é para todos. Pelo menos não na prática.
Este elemento, em um sistema econômico marcado pela industrialização

1 Acadêmica de Direito da turma 2015.1 da Faculdade Paraíso do Ceará – FAP-CE. kristalmoreira@hotmail.com

647
acelerada, urbanização e consumismo desordenado, tornou-se também
um bem de consumo. Para ter-se moradia, portanto, é necessário possuir
poder aquisitivo. A fonte desta afirmação é um processo histórico secular
que solidificou a sociedade no modelo atual.
É também sabido que o poder aquisitivo não é distribuído isonomi-
camente. Ao contrário, no atual sistema capitalista desenfreado e prin-
cipalmente, com a construção histórico-econômica do Brasil, o poder
aquisitivo é segregante. Quem não tem renda, portanto, não tem moradia.
Mas moradia não deveria ser bem de consumo. Afinal, moradia é direito.
Graças à evolução normativa internacional e nacional, de fato hoje a
moradia é reconhecida como um direito humano e fundamental inerente e
que deve ser garantido a todas as pessoas humanas e não só àquelas que
possuem poder aquisitivo o suficiente para adquirir o título da propriedade
de um pedaço de terra.
São essas pessoas hipossuficientes, segregadas por um modelo eco-
nômico projetado para elitizar, que não estão aptas a adquirir a habitação
através dos meios estritamente legais, ou seja, tornando-se proprietários.
Dessa incapacidade, paralelamente à necessidade prima de morar, é que
nascem as moradias irregulares, os assentamentos informais ou ocupa-
ções ilegais. Neste bojo, a ocupação por parte de grupos ou indivíduos que
possuem apenas direito de posse sobre a terra na qual habitam.
Por sua vez, é através do embate entre o grupo vulnerável na situação
de posse e entre o proprietário formal – seja ele particular ou o Estado –
que nasce o conflito fundiário urbano. É nesse contexto que o presente
trabalho propõe-se a analisar as múltiplas variáveis presentes nesta situ-
ação conflituosa e abordar histórica e normativamente a tutela à posse
da terra pela parcela segregada da sociedade, inapta economicamente a
integrar o mercado imobiliário formal.

648
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O DIREITO FUNDAMENTAL à MORADIA


NO ATUAL ORDENAMENTO JURÍDICO

O primeiro documento ao qual remonta a ideia de habitação de maneira


diretiva é a Carta de Atenas, elaborada em 1933, resultado do IV Congresso
Internacional de Arquitetura. Fruto da reunião entre renomados urbanis-
tas da época, o instrumento visou estabelecer um conceito de cidade que
correspondesse à situação atual da época, no que tangia às necessidades
dos integrantes daquele meio. Neste documento a habitação é elencada
como uma das funções da cidade, ao lado do trabalho, circulação e lazer.
Normativamente, hoje o direito à moradia possui bases firmes e explíci-
tas no ordenamento jurídico nacional constitucional e infraconstitucional,
tal como na legislação internacional e em documentos que não possuem
um valor estritamente jurídico, e sim diretivo quanto aos valores a serem
adotados para receber tutela jurídica.
É o caso do grande expoente ao qual remonta a explicitação do Direito
à Moradia: A Declaração Universal dos Direitos Humanos. Datada de
1948, em seu artigo xxV, sob a denominação de “habitação”, elenca este
direito no rol de direitos humanos, criando uma tendência a manifestar-
-se nos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo. Como ensina Nelson
Saule Júnior (p. 132),

A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que


reconhece a moradia como uma necessidade básica para a
pessoa humana ter um padrão de vida digna, o estabelecimento
de normas de proteção do direito à moradia está presente nos
Tratados Internacionais de Direitos Humanos e nas regulamen-
tações e resoluções dos organismos internacionais responsáveis
pela proteção destes direitos2.

Desta feita, diversos tratados internacionais passaram a fazer men-


ção ao direito à moradia ou habitação, trazendo sucintamente a ideia de
habitação como necessidade intrínseca à existência humana digna. Foi o

2 SAULE JUNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2004, p. 132.

649
caso do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1966), que já exibiu em seu texto a expressão “moradia adequada”³; O
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966); O Pacto de San
José da Costa Rica, A Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas
as Formas de discriminação Racial (1965), a Convenção sobre os Direitos
da Criança (1989), a Convenção Internacional de Proteção dos Direitos de
Todos os Trabalhadores Imigrantes e membros de sua família (1977), a
Declaração dos Direitos Humanos de Viena (1993) – que reiterou o disposto
na Declaração de Direitos Humanos de 1948.
Trata-se esse de um rol exemplificativo, existindo ainda outros tratados
que trouxeram em seu bojo a reafirmação da propagação desse direito.
Como aponta Ligia Melo3, merecem atenção especial duas conferên-
cias sobre este tema, HABITAT I e HABITAT II datadas respectivamente
1976 e 1996, cujo conteúdo foi a situação de má distribuição de terras
e proteção ao direito de habitação, tal como a sustentabilidade dos as-
sentamentos irregulares.
Traçou-se a partir desses eventos um documento denominado AGENDA
HABITAT, trazendo em seu bojo uma série de metas, diretrizes e princí-
pios em busca da adequada moradia sustentável. Os países participantes
– rol no qual o Brasil está incluso – comprometeram-se a adotar em seus
próprios planos de desenvolvimento governamental as metas e diretrizes
elaboradas, aderindo a uma postura sustentável, e monitorando-se quanto
a consecução deste propósito.
O reconhecimento internacional crescente e gradativo da moradia
como direito humano, além de ser adotado pelo Brasil, ao passo que está
presente em diversos tratados do qual é signatário, repercutiu direta-
mente no ordenamento jurídico pátrio, que em sua Carta Magna de 1988
solidificou este direito como fundamental, primando pela sua proteção e
regulamentação em vários de seus dispositivos. Pode-se dizer, portanto,
que tanto as normas nacionais como internacionais vinculam o Brasil a

3 MELO, Ligia. Direito à moradia no Brasil: política urbana e acesso por meio da regularização
fundiária. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 36.

650
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

adotar como diretriz em seu governo a busca pela moradia como mínimo
existencial a ser garantido a cada cidadão. O fundamento para a cogência
da norma internacional encontra-se no art. 5º, § 2º da Carta Magna:

Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem


outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados,
ou dos tratados internacionais em que a República Federativa
do Brasil seja parte.4

Nesse sentido, aponta Fabiana Rodrigues Gonçalves:

Destarte, os tratados assinados pelo Brasil possuem força de lei


e, desse modo, criam como obrigação, por parte do Estado bra-
sileiro de cumprir esse direito para todos os indivíduos. Assim,
sendo, há possibilidade de invocar imediatamente os tratados e
convenções de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário,
não havendo a necessidade de edição de atos com força de lei,
voltados à outorga de vigência interna aos acordos internacionais,
vez que “as normas definidoras de direitos e garantias fundamen-
tais têm aplicação imediata” (§ 1º, art. 5º da CF).5

Quanto à presença desses preceitos na Constituição Federal de 1988, é


possível visualizá-los em diversos dispositivos. Destaca-se que a moradia
foi inserida no rol de Direitos Fundamentais Sociais do art. 6º da Carta
através da Emenda Constitucional nº 26 de 2000. Em seguida, o art. 5º, xI
traz a garantia da proteção jurídica e inviolabilidade da casa com funda-
mento na ideia de moradia como pressuposto para o mínimo existencial,
adotado pela Carta Magna, através do trecho “a casa é o abrigo inviolável
do indivíduo (...)”6.
Ademais, aponta-se como dispositivos da Constituição que refletem
este direito são os artigos 1º - ao primar pela dignidade da pessoa humana;
e 2º - ao objetivar a construção de uma sociedade cidadã e isonômica.
Embora estas normas não apontem expressamente para a questão da
moradia, como explica Ligia Melo, “a violação do direito de morar leva à

4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, texto digital.


5 GONÇALVES, Fabiana Rodrigues. Direitos sociais: direito à moradia. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande,
xVI, n. 110, mar 2013, texto digital.
6 BRASIL, 1988, texto digital.

651
violação dos demais direitos”7. Dando-se ênfase à dignidade da pessoa
humana, uma vez que a moradia é reconhecida como um mínimo exis-
tencial para o cidadão.
Esta diretriz é mais uma vez resgatada através da importante inserção
da ideia de função social da propriedade presente no art. 5º, incisos xxII
e xxIII da Constituição. A função social da propriedade, explicite-se, é
relativamente inovadora no ordenamento pátrio. A Constituição de 1988,
popularmente conhecida como Constituição Cidadã, prima pela funcionali-
zação da propriedade no sentido de flexibilizar os direitos privados herdei-
ros do regime de liberalismo em prol de um viés coletivista característico
do atual estado Neoconstitucional, tema a ser mais aprofundado à frente.
Portanto, ao passo que o diploma passado zelava pela supervalorização
das relações privadas – tendência demonstrada pelo antigo Código Civil
de 1916 – a atual Carta trouxe a imagem de um estado interventor, que
possui certo controle sobre a autonomia privada, no sentido de resguardar
interesses coletivos mesmo em relações privadas. Esta ideia coletivista
foi inovada pelos dispositivos supramencionados da Constituição Fede-
ral (art. 5º, incisos xxII e xIII) e possui grande conexão com a moradia
adequada, pois relativiza o legalismo presente na relação de aquisição de
propriedade, impondo que mesmo a propriedade privada precise possuir
uma função social – seja movimentar a economia, o mercado imobiliário,
gerar renda, entre outros.
Este dispositivo visou coibir a especulação imobiliária e consequen-
temente, os latifúndios. Relativiza o direito privado, o publicizando ao
qualificá-lo com uma redoma constitucional que condiciona o uso da
propriedade privada à função social coletiva. Os dispositivos do ordena-
mento, assim, adéquam-se ao fundamento do próprio Estado Democrático
de Direito, a cidadania. Com clareza, explica Ligia Melo:

A determinação de que a propriedade deverá atender a uma


função social tem reflexos no direito à moradia, tendo em vista
as dificuldades de acesso à terra urbana retida nas mãos de uma

7 MELO, 2010, p. 40.

652
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

minoria, que usufrui da propriedade utilizando-se de especulação


imobiliária para aumentar seus ganhos. 8

Esta ideia coletivista foi inovada pelos dispositivos supramencionados


da Constituição. Ademais, faz-se mister mencionar o capítulo da consti-
tuição referente a Política Urbana, que tal como a legislação infraconsti-
tucional atinente será melhor abordados em capítulo específico.

1.1. Moradia adequada e direito à cidade.

Indissociável ao estudo do Direito fundamental à Moradia é o Direito


à cidade, uma vez que aquele compõe uma das funções essenciais deste.
Como supramencionado, a Carta de Atenas em 1933 elencou as funções
essenciais da cidade, sendo uma delas a habitação. Não é possível disso-
ciar o conceito de moradia do estudo ao Direito à Cidade devido ao fato
de a formação da cidade, sua estruturação, divisão e situação econômica
e social refletir diretamente na distribuição de terras e de renda.
Metaforicamente, diz-se que cidade é um organismo vivo. Tal qual, é
composta por células, que são aqueles que a habitam. Seus vícios e imper-
feições refletem em seus munícipes, tal como suas qualidades e atributos.
Uma cidade marcada pela grande concentração de renda e forte imigração
apresentará uma tendência a uma maior segregação social, por exemplo.
Na mesma linha de raciocínio, uma cidade planejada provavelmente irá
apresentar menos problemas estruturais e urbanísticos do que uma que
nasceu desordenadamente.
Ademais, para a promoção do direito à moradia é necessário que a
cidade forneça condições para a construção de habitações. Condições
físicas e econômicas. São necessárias rede de esgoto, eletricidade, forneci-
mento de água, transporte público – entre outras funções públicas – aptas
a tornar a habitação hóspita.

8 MELO, loc. cit.

653
Sem embargo, pode-se afirmar que a habitação como função da socie-
dade abarca não apenas a moradia física, um pedaço de chão construído,
e sim uma série de fatores que enseja a esta habitação a denominação de
moradia adequada. Ao falar-se em direito à moradia, portanto, objetiva-
-se que seja respeitado o direito a uma moradia digna e que conflua as
funções a serem fornecidas pela cidade.
Nesse sentido, a persecução ao direito à moradia é muito mais do que
o direito a um título de propriedade o ao direito de permanecer em um
imóvel na situação de posse. É o direito a uma série de fatores que torne
possível coexistir naquele local com dignidade.
Assertivamente, explica Elaine Adeline Pagani.

O problema da moradia abrange não somente aqueles que não


têm onde habitar, mas também aqueles que habitam moradias
indignas, tendo em vista que moradia em más condições pode
acarretar consequências prejudiciais à saúde física e mental,
gerada pela falta de saneamento básico e o adensamento ex-
cessivo de pessoas por unidade habitacional gerando o aumento
das tensões sociais. 9

Nas palavras de Patrícia de Menezes Cardoso, “a moradia adequada


corresponde ao direito de viver com segurança, paz e dignidade”.10 Nesse
sentido a ONU editou o Comentário Geral nº 4 sobre moradia adequada
que em seu item 8 enumera os itens que devem estar presentes para que
possa-se considerar a moradia adequada: Segurança jurídica da posse;
disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infraestrutura; custo
suportável; habitalidade; acessibilidade; localização e adequação cultural.
Não basta, portanto, ter acesso à moradia. É indispensável que este
acesso seja qualificado por certos pré-requisitos que a classifiquem como
adequada. Ou seja, que haja a segurança jurídica daquela posse, afastando
a possibilidade de despejos forçados arbitrários, quando há outra solução
possível; Que o ambiente de habitação seja provido de serviços públicos

9 PAGANI, Elaine Adeline. O direito de Propriedade e o direito à moradia: um diálogo comparativo


entre o direito de propriedade urbana imóvel e o direito à moradia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p.120.
10 CARDOSO, Patricia de Menezes. Democratização do acesso à propriedade pública no Brasil: função
social e regularização fundiária. 2010, p.133, texto digital.

654
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

que atendam as necessidades dos habitantes e encontre-se em uma loca-


lização possível que não limite o acesso a um determinado tipo de serviço
essencial; Que a habitação seja um ambiente salubre e estruturalmente
seguro, evitando o nascimento e perpetuação de tensões entre os vizinhos;
Que o custo de habitação do imóvel seja acessível e não segregante; e
ainda, que sejam respeitados os costumes e a cultura de comunidades
com características específicas.
Cabe ainda ressaltar que a moradia não pode ter seu conceito des-
vinculado ao de cidade, uma vez que este é o meio no qual aquela se
ergue, estrutura e concretiza. Para que seja adequada, portanto, deve
ainda possuir as garantias de coesão em relação à polis e características
que a tornem proveitosa para aquele que nela habita. Não existe moradia
adequada sem uma devida integração ao meio onde se insere. Deve a mo-
radia, portanto, ser coesa em relação às condições próprias da cidade em
relação ao clima, localização e estrutura. Faz-se pertinente, para finalizar
este momento, a lição de Elza Maria Alves Canuto:

A moradia será sempre mais adequada quanto mais respeitar a di-


versidade cultural, os padrões habitacionais próprios e costumes
das comunidades, grupos sociais e época, em que é construída,
pois não pode ser dissociada dos seus aspectos econômico, so-
cial, cultural e ambiental; é imperioso reconhecer a sua unidade
como um direito fundamental do homem. 11

Impossível falar sobre direito à moradia adequada na cidade sem


relacioná-la ao direito à cidade. Trata-se aqui de uma decorrência direta
dos princípios elencados pela atual constituição tal como de seus funda-
mentos, dando-se destaque à cidadania. A palavra deriva do latim civitas,
cujo significado é “cidade”. Por cidadania entende-se a inserção social do
sujeito na sociedade como participante ativo da mesma, ou seja, assumindo
obrigações e sendo titular de direitos.
Nelson Saule Junior ensina que “o direito à cidade retrata a defesa da
construção de uma ética urbana fundamentada na justiça social e cidada-

11 CANUTO, Elza Maria Alves. O direito à moradia urbana como um dos pressupostos para a efetivação
da dignidade da pessoa humana. 2008, p.167, texto digital.

655
nia.” 12 O direito à cidade pode ser entendido, portanto, como o direito do
sujeito de fazer parte da sociedade em que se insere de modo igualitário
e ético, sem discriminação ou segregação de qualquer espécie, possuin-
do amparo do Estado para que, como representante outorgado do povo,
garanta o mínimo existencial para uma existência digna. Este mínimo
inclui a possibilidade de o sujeito ser um cidadão ativo e participativo da
urbe, indiscriminadamente.

CONFLITOS FUNDIáRIOS URBANOS

A estrutura na qual as cidades brasileiras encontram-se hoje orga-


nizadas traz como característica padrão a segregação e desigualdade
social entre os grupos residentes. Esta segregação apresenta-se em maior
ou menor escala, variando em conformidade com o processo histórico-
-cultural que formou cada cidade. Esta polaridade entre grupos sociais
que coexistem no mesmo ambiente deriva de um processo secular de
segregação gradativa e planejamento urbano exclusivo, que no tocante ao
acesso a terra, dividiu a população das cidades em proprietários formais
de terra e possuidores irregulares. A disputa pela posse de terra que ocorre
quando estes (possuidores) ocupam terrenos daqueles (proprietários) –
que podem vir a ser particulares ou o Estado – origina o conflito fundiário
urbano. Para compreendê-lo, no entanto, deve-se explanar o apanhado
histórico de suas raízes.

O ACESSO à PROPRIEDADE E O
MERCADO IMOBILIáRIO FORMAL

A linha que divide os proprietários formais de terra e os meros possui-


dores em situação de irregularidade é exatamente a capacidade econômica
de integrar o mercado imobiliário formal. Isso ocorre porque no modelo
econômico atual a terra tornou-se um bem de consumo adquirido através
da compra do título de propriedade.

12 SAULE JUNIOR, 2004, p. 239.

656
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A adstrição da aquisição de propriedade à compra e venda tem como


seu marco histórico a Lei das Terras. Em 1850 esta lei foi editada com o
intuito de regular a transferência formal de propriedade, que até então não
era normatizada, não havendo transferência através de compra e venda e
sendo possível que aqueles em mero estado de posse fossem tidos como
donos. Em seu bojo, a lei mudou essa situação, trazendo a norma de que
a propriedade somente poderia ser adquirida mediante pagamento ou
doação do Estado.
Nessa época o país recebia um grande número de trabalhadores imi-
grantes e já apareciam os primeiros sinais de que trabalho escravo estava
chegando ao seu fim. Ambas as situações apontavam que nasceria uma
nova parcela integrante da cidade, com menor poder aquisitivo. Uma vez
que até então era possível adquirir imóvel através da posse, considera-
-se que a iniciativa do texto da lei visou precisamente impedir que esses
novos integrantes da sociedade tivessem acesso à propriedade, uma vez
que não possuíam a renda necessária para adaptar-se aos preços de
mercado das terras.
Infelizmente, portanto, a lei que traria a possibilidade de regulamen-
tação adequada da distribuição de terras, findou por criar um mercado
imobiliário segregante, por agregar a compra e venda como único meio
de transferência de terra entre particulares, elitizando o acesso a terra.
Aliando esta circunstância a um planejamento urbano que não se destinou
a abrigar esse contingente de pessoas que passava a fazer parte da socie-
dade, criou-se um grupo com pouco ou nenhum acesso a obter terras para
morar de modo legal. Nesse sentido, Clara Moutinho Pontes Lima explica:

Da leitura do inteiro teor da Lei de Terras, percebe-se que esta


continha em seu bojo nobres fins que não foram concretizados,
tendo em vista que na prática não se primou pela funcionalidade
da propriedade imóvel, o que acarretou em uma desigual distribui-
ção do território e conduzindo a uma injustiça social no campo,
e, em seguida, nas cidades. 13

13 LIMA, Clara Moutinho Pontes. O aparente conflito entre o direito à moradia e a proteção ambiental.
2010. p.20 ,texto digital.

657
Esta situação gradativa de desigualdade social ao lado da urbanização
acelerada trazida pela Revolução industrial e o êxodo rural, que inflava o
contingente populacional de cidades não planejadas para esta mudança,
criou a situação das ocupações irregulares. A ausência de políticas públi-
cas urbanas e planejamento foi um ponto chave para a desorganização
populacional que tomou forma. Como explica Paulo Ernani Bergamo dos
Santos, “em razão da falta de planejamento urbano adequado, insufi-
ciente para receber essa ‘massa’ populacional vinda das áreas rurais, as
periferias cresceram desordenadamente, rumo a áreas não servidas pelo
aparelhamento urbano.” 14
Importante ressaltar que quando se menciona a ausência de planeja-
mento urbano adequado, não se infere ter havido falta de planejamento
como um todo. Ao contrário, historicamente avalia-se que a situação de
segregação foi, em parte, fruto de um planejamento urbano que visava
concentrar serviços essenciais em áreas não acessíveis para a população
mais carente. Como explica Vinicius Mancini Guedes,

As cidades se valeram de um planejamento urbano baseado num


zoneamento que impediu que os pobres ficassem nas áreas servi-
das de infraestrutura. (...)tal exclusão se deu de forma bem sutil:
impedindo as principais configurações de ocupação utilizadas
pelas camadas mais pobres da população naquelas áreas(...).15

Assim, houve um zoneamento de infraestrutura visando beneficiar as


classes mais abastadas em detrimento da parcela marginalizada – que,
com esta distribuição, só tornava-se ainda mais marginalizada – formando
o que é conhecido como “cidades paralelas”.
Além desses fatores, a presença do vício da especulação imobiliária
no contexto do mercado imobiliário formal e a insuficiente fiscalização
do Poder Público sobre o mesmo enlanguesceram a discrepância entre a
concentração de terras nas mãos da elite e a necessidade de terras por
parte da população marginalizada.

14 SANTOS, Paulo Ernani Bergamo dos. Ocupações irregulares e regularização fundiária. Revista Magister
de Direito Ambiental e Urbanístico. LOCAL, v.40, fev./mar 2012, p.77.
15 GUEDES, Vinícius Mancini Guedes. Planejamento urbano e segregação. Revista Magister de Direito
Ambiental e Urbanístico. LOCAL, v.34, fev./mar 2011, p.29.

658
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Deste modo, parcelas da população não aptas a integrar o mercado


imobiliário formal passaram a ocupar terras para residir – imóveis aban-
donados, sem movimento, em áreas ambientais, públicas - muitas vezes
estabelecendo-se nelas e contextualizando-se cultural e familiarmente
por décadas sem reclamação de seus proprietários legais, que em muitos
casos é o próprio Poder Público. A ocupação irregular tornou-se, então,
a única alternativa de morar de grandes grupos não assistidos pelo Es-
tado em sua tarefa de promover os direitos fundamentais relativos ao
mínimo existencial.
Como assertivamente aponta Ligia Melo, “tal dinâmica tem caracterís-
ticas próprias vinculadas a fatores externos como a dificuldade de acesso
à terra urbana16”. Sob nenhum aspecto estas ocupações sem uma tutela
estatal mostram-se um meio apto e salubre à existência de seus sujeitos
uma vez que, como prossegue a autora em sua obra, “esses assentamentos
estão distantes de atender quaisquer padrões urbanísticos e ambientais
que traduzam uma vida adequada a seus ocupantes.” 17
A insegurança da posse de quem reside através das ocupações e assen-
tamentos irregulares o torna vulnerável ante a possibilidade de reintegra-
ção de posse e despejos forçados por parte do Poder Público, que muitas
vezes age de modo truculento e com pouca ou nenhuma diplomacia. A
ocorrência desse tipo de conflito entre os grupos vulneráveis ocupantes e
o proprietário legal que pode ser o Poder Público ou o particular represen-
tado por este através do Poder Judiciário é precisamente o que caracteriza
o conflito fundiário urbano.

CARACTERIZAÇÃO DO CONFLITO FUNDIáRIO URBANO

A definição de conflitos fundiários urbanos foi dada pelo Ministério


das Cidades no artigo 3º, I da Resolução recomendada nº 87 do Conselho
das Cidades, datada de 8 de dezembro de 2009, nos seguintes termos:

16 MELO, 2010, p. 176.


17 MELO, loc. cit.

659
Disputa pela posse ou propriedade de imóvel urbano, bem como
impacto de empreendimentos públicos e privados, envolvendo
famílias de baixa renda ou grupos sociais vulneráveis que neces-
sitem ou demandem a proteção do Estado na garantia do direito
humano à moradia e à cidade. 18

Segundo Marcelo Eibs Cafrune19, no conflito fundiário urbano deve-se


identificar os sujeitos conflituosos e o objeto deste embate. O autor atribui
a figura do sujeito protagonista aos grupos sociais de baixa renda, sejam
eles organizados ou de crescimento espontâneo em um determinado lo-
cal. Prossegue na caracterização ao propor que “o sujeito antagonista por
excelência pode ser identificado pelo proprietário do imóvel ocupado, o
qual dispõe de diversos meios jurídicos e políticos para confrontar a pos-
se do imóvel”. Por fim, aponta o objeto do conflito como a terra urbana.
Desta feita é possível entender o conflito fundiário urbano como uma
situação em que um sujeito dotado de legalidade sobre o imóvel (proprie-
tário) o reivindica em face de outro com exercício da posse do mesmo
(possuidor), que geralmente trata-se de uma coletividade em situação de
hipossuficiência e vulnerabilidade jurídica e econômica.
Existe uma série de fatores que ocasiona o surgimento destes conflitos,
que subdividem-se em tipologias. Estes fatores foram definidos, também,
pelo Ministério das Cidades em apresentação da Secretaria Nacional de
Programas Urbanos:

- Reintegração de posse de imóveis públicos e privados, em que


o processo tenha ocorrido em desconformidade com a garantia
de direitos sociais;
- Obras públicas geralmente relacionadas à implantação ou
melhoria de infraestrutura, resultantes ou não de desapropria-
ção, que resultem de alguma maneira na expulsão de famílias
de baixa renda;
- Inexistência ou deficiência de políticas habitacionais municipais
e estaduais voltadas à provisão de habitação de interesse social
e à regularização fundiária que possam conferir solução habita-
cional adequada para garantir o direito à moradia;

18 BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Programas Urbanos. Resolução recomendada
nº 87: Brasília, 2010, texto digital.
19 CAFRUNE, Marcelo Eibs. Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos: do debate teórico à construção
política. Revista da Faculdade de Direito UniRitter, Porto Alegre, n. 11, 2010, p. 203-204.

660
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

- Regulação do parcelamento, uso e ocupação do solo que não


tenha destinado áreas na cidade para garantir a segurança da
posse da população de baixa renda e a provisão de habitação
de interesse social; e
- Concentração da propriedade da terra.

Como se pode observar, a importância do Poder Público é onipresente


nas disputas urbanas de posse de terra, seja por sua ação ou omissão.
Nos fatores geradores elencados pelo Ministério das Cidades, a falta de
políticas públicas urbanas e de fiscalização quanto aos latifúndios e à
prática da especulação imobiliária são omissões do Estado resultantes
em conflitos. Já a reintegração de posse de imóveis públicos de maneira
irregular, despejos forçados e desapropriações em prol de obras públicas
– quando for possível encontrar ou negociar uma alternativa – e regulação
e parcelamento de solo que não tenha garantido segurança de posse são
ações positivas por parte do poder estatal que podem originar ou permitir
o nascimento dessas disputas.
O que objetiva-se aqui, além de uma crítica, é uma indicação de que
esta parcela marginalizada e segregada da população necessita do amparo
estatal para regularizar a segurança de sua posse. Além do Estado, diga-se
de passagem, uma série de atores sociais pode vir a intervir no conflito
para reequilibrar a situação de poderes entre os sujeitos antagônicos.
Ainda na lição de Cafrune, frequentemente intervêm o Poder Judiciário
através da Defensoria Pública e Ministério Público Estadual e Federal; Os
escritórios de advocacia popular que possuem titularidade para represen-
tar as coletividades vulneráveis em disputa; O Poder Executivo em seus
níveis municipal e estadual; O Poder legislativo; Os movimentos sociais;
Organizações não governamentais; Polícia Militar; Conselho Tutelar;
Associações de moradores, e outros que podem existir em cada caso
concreto, visto que não é um rol taxativo. Qual ou quais desses agentes
poderá interferir na disputa de posse dependerá do caso concreto e da
tipologia da ocupação irregular. 20

20 CAFRUNE, 2010, p. 203.

661
2.3. Legalidade versus legitimidade dos sujeitos do conflito

Percebe-se no conflito fundiário urbano um claro conflito entre normas


jurídicas, uma vez que se contrapõem a legalidade e a legitimidade de
seus sujeitos. Ideia que, ainda na lição de Cafrune, pode ser explicitada
da seguinte maneira:

O que está em confronto são concepções ideológicas que ou


reconhecem
primazia nas instituições estabelecidas – legalidade – ou atribuem
predominância aos processos de construção social orientados em
satisfazer as necessidades humanas pautados nas instituições
existentes – legitimidade21.

Muito embora existam dispositivos no ordenamento jurídico que garan-


tem a segurança jurídica da propriedade daqueles que possuem seu título
formal, o direito à posse dos ocupantes irregulares legitima-se através da
proteção ao direito à moradia, e dos dispositivos que responsabilizam o
Estado sua consecução.
Pode-se dizer, então, que ambos os sujeitos possuem direitos na
questão do conflito fundiário urbano. Da mesma maneira, ao tratar-se do
instituto da desapropriação, o Estado possui seu direito contraposto ao
direito à moradia da coletividade em questão.
Há de existir, portanto, uma ponderação entre normas. No passado
liberalista, este conflito aparente não existia com tal força, uma vez que
predominava a ideologia do formalismo legal como meio de consecução
da justiça. No entanto, o estado atual é vestido pelo manto do neoconsti-
tucionalismo, ideologia que elevou os princípios à condição de normas e
publicizou o direito privado, almejando um viés coletivista em detrimento
de direitos privados que porventura contrariassem a ordem pública.
Assim, surge a possibilidade de as leis serem flexibilizadas em vislumbre
do atendimento dos princípios e garantias constitucionais. Neste sentido,
Marinoni explica que “o neoconstitucionalismo exige a compreensão crítica

21 Ibidem, p. 201.

662
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da lei em face da Constituição, para ao final fazer surgir uma projeção ou


cristalização da norma adequada, que também pode ser entendida como
conformação da lei.”22
No entanto, muito embora os princípios estejam ganhando cada vez
mais relevância devido à nova vestimenta do estado, aquele que detém o
título de propriedade ainda encontra-se em situação vantajosa no conflito
do ponto de vista legal. O que se faz imperativo, portanto, é a tutela jurídica
da posse com fulcro nos dispositivos constitucionais que fundamentam o
direito à moradia por meio do ativismo judicial e uma série de instrumentos
previstos no ordenamento jurídico, como será visto no capítulo a seguir.

MEIOS DE EFETIVAÇÃO DA TUTELA AO DIREITO DE POSSE

Os alicerces jurídicos e ideológicos do atual Estado de Direito abrem


um amplo leque de meios aptos a tutelar o direito à posse de coletividades
vulneráveis em conflitos urbanos. Merecem destaque os instrumentos de
política pública urbana, dando-se ênfase ao instituto da regularização
fundiária; a utilização da mediação e a promoção do ativismo judicial
como formas de resolução de conflitos fundiários urbanos que podem ser
capazes de, em sua utilização adequada, promover a proteção do direito
à moradia de possuidores irregulares de terra.

3.1. Políticas públicas urbanas de regularização fundiária

A tutela ao direito à moradia dos que residem irregularmente deve ser


perseguida através de ações do poder público que objetivem regularizar a
situação de posse daquela população, legalizando as ocupações e garan-
tindo sua segurança jurídica ante despejos e demais espécies de ameaças
a posse que podem ensejar conflitos fundiários urbanos.
A esta regularização, que adéqua a situação de fato à situação registra-

22 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do processo. (Curso de processo civil; v.1) – 3.ed.rev.e atual.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.48.

663
ria, dá-se o nome de regularização fundiária. A importância deste instituto
reside em sua consequência de cessar a insegurança da moradia, tutelando
legalmente seu estado de fato através de uma série de instrumentos le-
gais que embora não transfiram a propriedade, regularizam a posse. Sua
definição foi traçada pelo artigo 46 da lei 11.977/2009:

A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídi-


cas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização
de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de
modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvi-
mento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado.23

Este instituto, portanto, protege estas ocupações irregulares de futuras


ameaças à posse, tratando-se de um meio de prevenção de conflitos fun-
diários urbanos, ou, quando estes já estiverem em curso, uma solução. A
pressão oriunda de movimentos sociais protetores do direito à moradia
e a incorporação de tratados internacionais ao direito interno brasileiro
resultaram na abertura de um vasto leque de meios legais para a conse-
cução desse fim.
O marco inicial desta abertura legal é a inserção de um capítulo so-
bre política urbana, quando da promulgação da Carta Magna de 1988. O
presente capítulo prevê a figura do plano diretor (art.182) e da usucapião
imóvel (art.183). Este capítulo remete a regulamentação dos institutos
descritos à lei específica. Esta lei foi publicada em 2001 sob a denominação
de Estatuto da Cidade (lei 10.257 de 10 de julho de 2001).
O Estatuto da Cidade é uma lei essencial para a promoção do desen-
volvimento urbano, uma vez que regulamenta com especificidade os
instrumentos da política urbana, tanto no tocante a diretrizes de política
urbana e garantia da função social da propriedade, como o plano diretor, o
IPTU progressivo, o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;
Como instrumentos de efetivação direta da regularização fundiária, que
regularizam ocupações irregulares já existentes.

23 BRASIL. Lei 11.977 de 7 de julho de 2009. Minha casa, minha vida, texto digital.

664
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Oportuno ressaltar que a competência no tocante ao desenvolvi-


mento urbano abrange os três entes da federação: É privativa à União
a instituição de diretrizes básicas de desenvolvimento urbano e funções
correlatas da cidade, de acordo com o art. 21, inciso xx da Constituição.
Trata-se aqui de uma competência para diretrizes amplas e de alcance
macrorregional, tratando-se de uma organização nacional do sistema de
cidades. Em contrapartida, em contexto local, como supramencionado,
os Municípios possuem competência para instituir seus respectivos pla-
nos diretores, respeitando as diretrizes do Estatuto da Cidade (lei federal)
e são os principais responsáveis pelas políticas habitacionais, uma vez
que com base nas necessidades e características estruturais locais, são
responsáveis por definir diretrizes específicas. Já aos Estados compete
concorrentemente com a União a legislação sobre Direito urbanístico, e
a possibilidade de traçar planos metropolitanos e para microrregiões, de
acordo com suas necessidades.
Em relação aos instrumentos utilizados para a promoção direta da
regularização fundiária, Nelson Saule Junior aponta a concessão de uso,
instrumento que objetiva regularizar a situação legal das pessoas que
vivem em áreas públicas, como a favela e outras espécies de ocupações
ilegais, transferindo o direito de uso para fins de moradia para estas fa-
mílias, sem transferir a propriedade. Este instrumento é regulamentado
pela Medida Provisória nº 2220/2001.
O autor prossegue ao elencar o usucapião urbano, e a ZEIS (Zonas
especiais de interesse social), que segundo o autor, tem sido o método
mais eficaz de promover regularização fundiária sustável. Através da de-
limitação de ZEIS, áreas urbanas ocupadas por assentamentos irregulares
de coletividades de baixa renda (favelas, cortiços, loteamentos populares
e outros) são demarcadas e reorganizadas pelo poder público, de modo a
reestruturar esta zona, a tornando sustentável e habitável. Assim, há uma
flexibilização dos padrões urbanísticos existentes para integrar aquela
coletividade na cidade legal, através da tutela e organização do espaço
por parte do Estado. A delimitação e especificação da ZEIS tem que ser
descritas em lei de zoneamento municipal.24
Visto o aspecto legal, é imperioso ressaltar a lição de Ivan Carneiro

24 SAULE JUNIOR, Nelson. Formas de proteção do direito à moradia e de combate aos despejos forçados no
Brasil. In: FERNANDES, Edésio (org.) Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del
Rey, 2001. p. 118-124, passim.

665
Castanheiro, ao explicar que a regularização fundiária deve ser vista e
procedida de maneira holística e não meramente registrária.25 Ou seja, este
procedimento não pode ser apartado da assistência aos outros direitos
correlatos. Não é suficiente formalizar a posse em documento no cartório
e sim criar condições para que aquela posse se dê de maneira sustentável,
primando pela moradia adequada e condições de habitação que garantam
a dignidade humana da coletividade tutelada.

3.2. Mediação como meio de resolução


de conflitos fundiários urbanos

Nos conflitos fundiários urbanos, é preciso buscar meios de garantir


a maior efetividade aos direitos inerentes às partes conflitantes. Neste
contexto, uma solução recomendada é a adoção da mediação como proce-
dimento a ser utilizado para solucionar a disputa. O instituto da mediação
derivado das ADR (Alternative Dispute Resolution - doutrina americana
de Frank Sander publicada em 1996) traz uma série de beneficies que de
forma sucinta e no contexto dos conflitos fundiários urbanos podem ser
resumidas na maior amplitude de negociação entre os sujeitos do conflito,
na característica não-adversarial de sua utilização, que resulta na possi-
bilidade de serem selados acordos entre as coletividades e o proprietário,
para que se encontre um denominador comum entre seus interesses.
Além disso, o método pelo qual se dão às negociações – as audiências
públicas – permite a participação de uma série de atores sociais que vi-
sam a consecução da justiça social no em cada caso (Defensoria Pública,
movimentos sociais, Ministério Público, Poder Executivo, entre outros).
Recebe ainda defesa este método pelo fato de haver maior celeridade, uma
vez que não estará preso ao devido processo legal do Poder Judiciário,
havendo uma apreciação mais específica do caso e com maior amplitude
formal de discussão e negociação, além de descongestionar a máquina
estatal que encontra-se em crise por excesso de demanda.

25 CASTANHEIRO, Ivan Carneiro. Regularização fundiária: fundamentos, aspectos práticos e propostas. In:
NALINI, J. R.; LEVY, W. (coords.) Regularização fundiária. São Paulo: Forense, 2013, p.33-52.

666
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

3.3. Ativismo judicial fundado no Estado neoconstitucional

Uma vez que não tenha sido possível a tentativa de mediação, ou que
a mesma tenha sido frustrada e o conflito fundiário urbano tenha sido
levado ao judiciário, a atividade de intérprete e aplicador do direito pelo
magistrado apresenta-se como um fator essencial para a consecução ou
não da justiça social naquele caso concreto. Apesar dos instrumentos de
desenvolvimento urbano, em um conflito entre dois polos na disputa por
posse, o possuidor ainda é menos resguardado legalmente, havendo uma
situação de desequilíbrio.
Mediante esta situação e dado o atual contexto neoconstitucionalista
que flexibiliza o direito privado em prol da consecução do bem social, cabe
ao magistrado utilizar do ativismo judicial para adequar o caso concreto
não apenas à letra seca da lei, mas também aos princípios constitucionais,
que ganharam status de norma e ainda de condição validadora da lei. Não
pode, portanto, estar o juiz preso ao legalismo exacerbado. O ativismo
judicial é uma forma benéfica de dar valor normativo aos princípios, os
aplicando quando necessário.
É preciso que estes operadores do direito tenham como fundamento as
noções de justiça social, inclusão e cidadania.. Para tanto, o direito deve
ser aplicado de maneira holística, conglobando a lei aos fundamentos,
princípios e ideologia do Estado Democrático de Direito. O direito civil
e processual não podem ser dissociados do constitucional, urbanístico,
ambiental e demais ramos. Esta visão impede que decisões padrões e
que não exploram minuciosamente o caso concreto sejam proferidas,
causando injustiças em massa.
Nesse sentido, felizes são as palavras de Nelson Saule Junior ao expor
a “necessidade de os operadores de Direito terem vocação e qualificação
cultural e social para promoverem a justiça social na solução dos confli-
tos ambientais urbanos”26, mostrando, assim, que os instrumentos legais
necessitam de sujeitos operadores capacitados não apenas tecnicamente,
mas também social e ideologicamente para a consecução da justiça social.

26 SAULE JUNIOR, 2001, p. 125.

667
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem embargo, pode-se dizer que a cidade é um retrato da sociedade.


No tocante ao cenário brasileiro, trata-se de uma sociedade marcada
pela luta e maculada pela segregação; Pela necessidade de adequação
de muitos em um espaço que é receptivo a poucos. A cidade brasileira,
tal como seu povo, não é tranquila. É dividida em classes que se opõem
e que se enfrentam. O fruto desta polarização econômica é a ausência
de moradia legal para uma grande parte da população e consequente
ocupação irregular.
Para que o Estado se adeque aos fundamentos, princípios e objetivos
da atual Constituição cidadã, não é possível ignorar esta classe margi-
nalizada. Felizmente, a ideologia do Estado brasileiro já evoluiu a ponto
de seu ordenamento jurídico prever meios aptos a garantirem uma redo-
ma de proteção ao direito à posse nessas situações de desequilíbrio de
poderes. Trata-se aqui de instrumentos de regularização fundiária e da
normativização dos princípios fruto do pensamento neoconstitucional,
tal como a mediação e o ativismo judicial. Portanto, a lei por si só não
é o suficiente. É imperioso que a mentalidade dos operadores do direito
acompanhe estas mudanças.
Somente com um engajamento social e ativismo judicial apto a utilizar
de forma adequada estes instrumentos é possível esta tutela, de modo a
garantir cada vez mais efetividade aos direitos humanos e aos princípios
constitucionais que zelam pela igualdade, isonomia, dignidade da pessoa
e buscam a erradicação da pobreza e segregação social e uma verdadeira
nação cidadã.

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670
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Cartografia sociojurídica dos conflitos


urbanos: O caso da Comunidade
Dandara, em Belo Horizonte

Maria Tereza Fonseca Dias1;


Isabella Gonçalves Miranda2;
Fúlvio Alvarenga Sampaio3;
Alba Moreira Salles4
Ananda Martins Carvalho5;
Arthur Rodolpho de Paiva Castro6
Isabella Aparecida Ferreira da Costa7
Julia Dinardi Alves Pinto8;
Marcos Bernardes Rosa9
Tays Natália Gomes10

1 INTRODUÇÃO

O tema das ocupações urbanas vem ganhando destaque especial


nos últimos anos, em função do número cada vez maior de aglomerados
que surgem em decorrência de uma dinâmica habitacional excludente e
segregadora, fruto de uma conjuntura que combina omissão estatal - histó-
rica no tocante à questão da moradia - crescimento urbano desordenado,
desigualdade social, especulação imobiliária e insegurança na posse de
terrenos urbanos. Privados do exercício pleno do direito fundamental à
moradia adequada, grande número de famílias organiza-se em ocupações
urbanas, extrapolando, assim, os limites da denominada “cidade legal” e
passam a conviver com a precariedade de serviços públicos, com a inse-
gurança da posse e com ameaças constantes de despejos forçados. Tais
fatores impedem a efetivação da função social da propriedade e do direito

671
à cidade. O quadro descrito, aplicável a diversas metrópoles no mundo
inteiro, não é distinto na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH),
notadamente no tocante a valorização imobiliária e produção do espaço
urbano, conforme análises de Magalhães, Tonucci Filho e Silva, 2011.
Assim, mostra-se urgente a realização permanente do acompanha-
mento e mapeamentos de tais ocupações na RMBH, para que haja não
só o reconhecimento dessas comunidades, mas a possibilidade do poder
público abarcá-las em projetos de planejamento urbano e programas
habitacionais. O mapeamento das referidas ocupações também tornará
possível o fortalecimento das suas redes de comunicação e apoio, as
quais envolvem agentes tanto por parte do poder público quanto por
parte da sociedade civil, constituída por entidades apoiadoras e mora-
dores das ocupações.
Em entrevista ao Jornal Le Monde Diplomatique, em fevereiro de 2012,
a relatora especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à
Moradia, Raquel Rolnik (Rolnik apud Brasilino, 2012), afirmou que tem
havido o aumento dos conflitos por moradia nos últimos anos no Brasil.
Segundo a entrevistada, tal fato representa um paradoxo, pois temos um
ordenamento jurídico que respeita esse direito, haja vista a Constituição
Federal, que coloca a moradia como direito fundamental e reconhece o
direito dos ocupantes de terrenos públicos ou privados que não tiveram
alternativas de acesso à moradia. Além disso, nunca tivemos, nas últimas
décadas, montante tão alto de investimentos públicos para a produção
de novas casas.
A situação descrita torna-se ainda mais agravante se for levado em
conta o grande impasse da dinâmica urbana vigente, pois enquanto exis-
tem várias construções abandonadas, há muita gente em busca de um
lugar digno para morar, procurando sair do aluguel ou até mesmo das
ruas. Em Belo Horizonte, o déficit habitacional chega a 62 mil imóveis,
de acordo com o Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS),
finalizado em 2010. (MIRANDA E CÂMARA, 2013). Esse número, quando
somado ao déficit habitacional dos municípios que compreendem a Região

672
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Metropolitana de Belo Horizonte, eleva-se para 115 mil moradias, segundo


cálculos da Fundação João Pinheiro. Ainda de acordo com a Fundação,
a RMBH tinha, em 2008, 170.669 imóveis vagos. (MINAS GERAIS, 2005)
Considerando os dados apresentados e a situação específica do Mu-
nicípio da RMBH, este trabalho pretende descrever como a metodologia
da cartografia sociojurídica pode contribuir para a compreensão das
ocupações urbanas nas grandes metrópoles. Também tem por escopo
apresentar a análise dos conflitos jurídicos que envolvem a Comunidade
Dandara, em Belo Horizonte, bem como o trabalho de pesquisa e extensão
que está sendo desenvolvido nesta comunidade.

2 AS OCUPAÇÕES URBANAS EM BELO hORIZONTE

Na literatura acadêmica brasileira existem poucos trabalhos que traçam


e delimitam o conceito de ocupações urbanas. Portanto, faz-se necessá-
rio esboçar um conceito que seja capaz de orientar e operacionalizar os
estudos de mapeamento e cartografia a serem desenvolvidos.
Em primeiro lugar, é importante destacar as limitações e dificuldades
de estabelecer fronteiras claras entre diferentes territórios nas cidades
como, por exemplo, entre comunidades, bairros, vilas, favelas, ocupações.
Também é difícil estabelecer antagonismos claros e inequívocos entre con-
ceitos/idéias, tais como: invasão x ocupação; organizado x espontâneo;
urbano x rural; ilegal x legal. Tais dualidades e homogenizações acabam
por gerar confusões, preconceitos e exclusões (teóricas e espaciais).
Em segundo lugar, nomear o mundo e as coisas é um exercício de
poder. Portanto, o conceito de ocupações urbanas utilizado foi construído
a partir do critério da autodeterminação dos grupos urbanos que buscam
o exercício do direito a moradia adequada. Tal critério é especialmente
relevante se for considerada a perspectiva metodológica da cartografia
sociojurídica que a pesquisa adota, descrita a seguir. Para orientar os ob-
jetivos deste estudo, o conceito construído buscou abarcar as dimensões
identitária, política, legal e urbanística dos grupos sociais considerados.

673
Do ponto de vista legal e urbanístico, as ocupações urbanas se referem
a áreas da cidade, que se configuram a partir da tomada de posse de um
terreno de maneira informal e extralegal, e que se consolidam em espaço
cuja destinação social atribuída é eminentemente urbana. Segundo essa
análise abrangente, todas as vilas e favelas poderiam se enquadrar como
ocupações urbanas, assim como as áreas ocupadas por grandes imobili-
árias e atores políticos com capacidade econômica. A indeterminação do
conceito o torna abrangente, mas acaba por enquadrar juntos espaços
geográficos, políticos e simbólicos extremamente diferentes e desiguais.
Em Belo Horizonte, o conceito ganhou visibilidade na década de 80,
quando foram realizadas ocupações urbanas como forma de luta social
organizada pela moradia. Nesse período, movimentos sociais, partidos,
setores da igreja, com auxílio de setores técnico-profissionais interdis-
ciplinares, organizaram ocupações de terras para resolver o problema
imediato do déficit habitacional e também para pressionar o poder público
a efetivar direitos de cidadania. As ocupações Corumbiara, Zilah Spósito,
1º de Maio e a ocupação das escadarias da Igreja São José foram emble-
máticas nesse sentido.11
As ocupações recentes, que emergiram no cenário belo-horizontino
nesse novo século, guardam algumas diferenças com relação às ocupações
urbanas realizadas no passado e sua trajetória também é responsável pela
transformação do conceito em discussão.
A ocupação que refundou esta tradição política na cidade foi a Ocupa-
ção Caracol, realizada em 2006 pela organização “Brigadas Populares”.
A partir dessa data, muitas outras ocupações foram realizadas por movi-
mentos sociais na cidade: as ocupações João de Barro I (2006), II (2007)
e III (2007), as ocupações Camilo Torres (2009), Irmã Dorothy (2010) e
Dandara (2009) e, mais recentemente, as ocupações Eliana Silva I (2012)
e II (2012). Ademais, diante deste cenário de efervescência da luta pelo
direito à moradia, surge a ocupação Guarani Kaiowá (2013) em Conta-
gem, cidade da RMBH, realizada, novamente, pela organização Brigadas
Populares. Outras ocupações surgem de maneira espontânea, e passam

674
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

a se organizar junto à movimentos sociais passando a se auto-definirem


como ocupações urbanas, como é o caso das Comunidades Zilah Spósito
(2012) e Comunidade Rosa Leão (2013).12
As novas identidades sociais que se autodeterminam “ocupações
urbanas” foram definidas, pela pesquisa como: identidades urbanas ter-
ritorializadas em mobilização continuada pelo direito à moradia e pelo
direito à cidade.
Para fins de operacionalização da pesquisa acerca do Mapeamento
das Ocupações Urbanas na RMBH, foi realizado inicialmente o recorte
temporal das ocupações urbanas, dividindo aquelas que se iniciaram
antes de 2006, daquelas que se iniciaram depois dessa data. Tal recorte
fundamenta-se no estudo do Plano Municipal de Habitação de Belo Hori-
zonte, realizado pela Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (URBEL)
e tem como ponto inicial o surgimento da Ocupação Caracol (PRANDINI,
2012; MIRANDA, 2012).
O recorte temporal também justifica-se pelo tempo de consolidação de
uma ocupação. Aquelas que existem há mais de 5 anos são consideradas,
inclusive juridicamente, mais consolidadas do que aquelas que existem
há menos tempo, observando-se a legislação que pauta a regularização
fundiária, através do instrumento do usucapião especial urbano (art. 183,
CR/1988).
Assim, considerando os critérios da autodeterminação como ocupação
urbana e surgimento após 2006, serão estudadas as já conhecidas ocu-
pações: Dandara, Zilah Spósito, Rosa Leão, Irmã Dorothy, Camilo Torres,
Eliana Silva e a ocupação Guaraní Kaiowá. Como o estudo em questão
trata de mapear as ocupações urbanas, é possível que sejam identificadas
outras comunidades ainda não listadas.
A primeira delas a ser mapeada foi a comunidade Dandara e a me-
todologia selecionada pelo grupo foi a da cartografia social, em sua
vertente sociojurídica.

675
3 A CARTOGRAFIA SOCIOJURÍDICA

A cartografia social surge contemporaneamente como ferramenta


metodológica para compreensão dos fenômenos sociais complexos. Diz
respeito à ciência que estuda os procedimentos de obtenção de dados
sobre o traçado do território para sua posterior representação técnica e
artística e os mapas como um dos sistemas de comunicação deste. Para
autores como Alfredo Wagner (1993); Vilegas Ramos (2000) e Habbeger
e Mancyla (2006) esta metodologia trata de novo instrumental de planifi-
cação e transformação social.
Pode-se dizer que a mesma deriva, em diversos aspectos, da meto-
dologia da pesquisa-ação. A pesquisa-ação, conforme Thiollent (2002) é
desenvolvida a partir da interrelação entre o pesquisador e os participan-
tes representativos da situação-problema, de acordo com os princípios
de subjetividade, cidadania e emancipação social. São pressupostos da
pesquisa-ação: 1) a existência de um problema coletivo; 2) o envolvimento
solidário e dialógico de todos os participantes (pesquisadores e pessoas
da comunidade); 3) a participação, das pessoas da comunidade na inves-
tigação como sujeitos e não como meros informantes.
Pode-se dizer inicialmente que a cartografia social tem por escopos:
a pesquisa, a ação, a participação e a sistematização coletiva das infor-
mações e pressupõe que o conhecimento é essencialmente um produto
social e político.
No Brasil, a cartografia social tem sido utilizada no campo da Antro-
pologia junto aos povos tradicionais em situação de risco territorial, com
o escopo de auxiliá-los na demarcação de seus próprios limites de caça,
pesca, extrativismo etc.
Esta nova cartografia está em expansão no território nacional, tendo
sido utilizada primeiramente na região Amazônica e atualmente em vários
outros domínios das ciências humanas. Em Minas Gerais, essa metodologia
tem sido utilizada junto a comunidades tradicionais quilombolas e outros
povos tradicionais (Costa Filho, 2009).

676
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

No desenvolvimento da cartografia social são construídos vários tipos


de mapas diferentes: de dados (infraestrutura produtiva, reprodutiva e
de serviços, elementos naturais, populacionais etc); mapas temporais
(passado, presente e futuro); mapas temáticos (econômico, ecológico, de
redes sociais, administrativo, de conflitos) entre outros.
Pela caracterização das ocupações urbanas como comunidades inse-
ridas em um contexto de conflito territorial, a metodologia da cartografia
social, na sua vertente sociojuridica, foi selecionada para a realização de
mapeamento jurídico das ocupações urbanas. Isto se dá sem prejuízo da
utilização de outras metodologias, tais como as entrevistas estruturadas,
história de vida, levantamento de dados econômicos e estatísticos.
Na bibliografia pesquisada, suprarreferenciada, não foi localizado relato
de estruturação metodológica que constituísse o mapeamento jurídico com
base na cartografia social. O mapeamento jurídico, como espécie de mapa
temático, será construído como processo de compreensão da realidade
das ocupações urbanas a partir dos conflitos jurídicos da propriedade nas
ocupações urbanas, como será visto a seguir no caso da Comunidade
Dandara, em Belo Horizonte.
A realização da cartografia jurídica exige o conhecimento e a análise
de dados políticos e jurídicos do processo que envolve a disputa territorial
em que se insere a comunidade Dandara. Desta forma, uma perspectiva
pluralista, subjetiva e minuciosa do conflito fundiário deve ser esboçada
a partir da análise processual e documental, que abarque notícias de
jornal, trabalhos acadêmicos, fontes de informação gerados na própria
comunidade, como jornais, vídeos e fotos. Deve também, estar baseada
nas entrevistas aos moradores da comunidade e na própria oficina de
cartografia social.
A seguir serão apresentados alguns dos resultados parciais gerados
a partir das entrevistas, vivências de campo e da análise de dados. Tais
informações já são em si, rico material de pesquisa, e guiarão a equipe
na condução das oficinas de cartografia sociojurídica a serem realizadas
junto à comunidade.

677
3 A COMUNIDADE DANDARA E OS CONFLITOS
SOCIOJURÍDICOS DA OCUPAÇÃO URBANA

3.1 A ocupação urbana na comunidade


Dandara, em Belo horizonte

A comunidade Dandara nasceu da ocupação de um terreno no Bairro


Céu Azul, Belo Horizonte, em 9 de abril de 2009. A área é formalmente
de propriedade da Construtora Modelo Ltda. e, desde a data da ocupação,
passou a estar sob a posse dos moradores sem-casa que nela construíram
as suas moradias.
No dia da ocupação, cerca de 200 pessoas organizadas pelo MST e
pelas Brigadas Populares entraram no terreno e resistiram às primeiras
tentativas de remoção empreendidas pela Policia Militar do Estado de
Minas Gerais. Durante o dia, as famílias resistiram fazendo um cordão de
isolamento e proteção. Desta forma, esperaram até que anoitecesse para
negociar com a polícia, quando então, poderiam alegar que não aceita-
riam o despejo a noite, pois isso seria ilegal. Desta forma, representados
pelos advogados populares da organização “Brigadas Populares”, estas
pessoas passaram a noite no terreno. O conhecimento da legislação por
parte dos movimentos e organizações ali presentes revela que, desde o
princípio, os instrumentos jurídicos foram mobilizados em favor da luta
social (MIRANDA, 2012).
Desde então, a comunidade cresceu em número e vem se consolidando
como um território urbano organizado. Atualmente moram na Dandara
mais de 1.100 famílias, sendo que a grande maioria vive em casas de
alvenaria. A ocupação do terreno se deu com base em um planejamento
urbanístico e arquitetônico que foi elaborado, de maneira participativa,
pelo arquiteto popular Thiago Castelo Branco junto com os moradores
da ocupação e movimentos sociais. Tal planejamento previu ruas largas,
áreas de preservação ambiental, áreas para equipamentos coletivos e
lotes de tamanhos iguais.

678
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A partir desse planejamento, a comunidade se ergueu de forma au-


tônoma, sem contar com o apoio dos governos na concretização das
políticas urbanas. Equipamentos individuais e coletivos sistemas de luz,
água e esgotamento e espaços como hortas, centro comunitário e centro
ecumênico foram construídos pelos próprios moradores.
Embora a comunidade Dandara represente avanço em termos de ocu-
pação urbana participativa e produção coletiva e cidadã do espaço das
cidades, ela não é reconhecida como território da cidade pelas esferas de
governo. Ou seja, a área onde vivem mais de 1.100 famílias consta nos
mapas oficiais como vazio urbano e estas têm sido tratadas como crimi-
nosas esbulhadoras da propriedade alheia, como “invasoras”.
Assim, a cartografia da Dandara é a cartografia de um conflito urbano,
por vezes tratada como área de invasão para a qual a única política pú-
blica que cabe é a execução da reintegração de posse. Para os moradores
e seus apoiadores Dandara é um território autoconstruído na cidade que
representa a luta de muitas famílias pelo direito à moradia adequada.
Assim como foi constatado no trabalho de Boaventura de Sousa San-
tos sobre o Direito em Pasárgada (SANTOS, 1988), a condição da posse
do terreno tem determinado a forma como o Estado e o Poder Judiciário
relacionam-se com os moradores de diferentes áreas da cidade. No caso
das ocupações urbanas, os mais básicos direitos constitucionais, como
o direito a ter acesso às políticas públicas em condição de igualdade e
o direito à cidade, que envolve o direito a usufruir dos serviços e da in-
fraestrutura urbana, têm sido negados aos moradores. Tais conclusões
puderam ser retiradas não apenas das entrevistas realizadas em campo,
mas também do trabalho etnográfico realizado na comunidade Dandara
por Miranda (2013).
Tal embate político e social se expressa, no caso da comunidade Dan-
dara, de forma bem contundente na disputa jurídica sobre a legitimidade
da posse da ocupação, como descrito a seguir.

679
3.2 Conflitos jurídicos em torno da
ocupação da Comunidade Dandara

A intensidade do conflito político, que ganhou largas proporções e


visibilidade na cidade de Belo Horizonte, se reflete na complexidade do
conflito processual que envolve a comunidade Dandara. A seguir, descreve-
-se o conflito fundiário travado no Poder Judiciário e que será, em seguida,
analisado sob uma perspectiva crítica.
Logo quando foi concretizada a ocupação Dandara, a Construtora
Modelo ingressou com uma Ação de Reintegração de Posse, na 20ª Vara
Cível da Capital, contra os integrantes do Movimento dos Sem Terra –
MST alegando a “invasão” do terreno no dia 09/04/2009 (Processo nº
0024.09.545.746-1). Na petição inicial, a Construtora não demonstrou
exercício de posse sobre o terreno em questão; os imóveis não estão
individualizados (loteados) e nem tampouco consta a localização exata
deles. Apesar disso, houve deferimento de liminar, em 16/04/2009, para
a reintegração de posse, entendendo que os documentos juntados nos
autos eram suficientes para comprovar a posse.
O histórico documental do imóvel, juntado aos autos, mostra que a
propriedade da área foi registrada sob três matrículas diferentes e, primei-
ramente, sem o respeito do princípio da “territorialidade”, referente aos
registros imobiliários. As áreas foram registradas inicialmente em Pedro
Leopoldo, sendo posteriormente registradas em Ribeirão das Neves, sem
que tenha havido o cancelamento da matrícula em Pedro Leopoldo. Isto
tudo, a despeito das áreas estarem de fato localizadas em Belo Horizonte.
A própria Construtora Modelo fundamenta, para justificar o foro da ação,
a localização das áreas na capital, agindo de modo contraditório aos re-
gistros apresentados. Nesse sentido, ao menos formalmente, os terrenos
estão fora da jurisdição em que a ação foi proposta.
Depois da aquisição, o terreno permaneceu ocioso por mais de 12
anos, não havendo, ao que tudo indica, nenhuma iniciativa concreta da
proprietária quanto ao exercício da posse do bem, cuja reintegração fora

680
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

pleiteada. Nos autos, entretanto, foi apresentado pedido de licenciamento


para construção, na área, de um condomínio fechado que seria denomina-
do “Bairro Trevo”. Também foi alegado pela Construtora, que o processo
de licenciamento da área estaria demorando mais de 12 anos devido à
burocracia e às formalidades exigidas pelo Município de Belo Horizonte.
Há relatos de que a área, além de não estar protegida, era utilizada como
depósito de entulhos e para a prática de alguns crimes, conforme relato
de moradores.13
Na semana seguinte à ocupação, em 20/04/2009, alguns ocupantes
e seus apoiadores, com a assistência da Assessoria Jurídica da PUC Mi-
nas, ingressaram na 9ª Vara Cível Capital com um agravo de instrumento
(Processo nº 1.0024.09.545746-1/001) que pedia a suspensão da liminar
de reintegração de posse a fim de manter as famílias no imóvel até a
decisão final da lide.
Os argumentos utilizados neste recurso foram: a ausência de com-
provação da posse efetiva por parte da construtora; o descumprimento
do princípio da função social da propriedade; o direito à moradia dos
ocupantes; a existência de conflito de competências, pois a escritura do
terreno indicava que o terreno era rural; o não exercício da posse pela
proprietária; bem como a possibilidade de lesão grave e de difícil reparação.
Após a suspensão da liminar, deferida na mesma data da sua propo-
situra, o agravo de instrumento foi redistribuído e a Construtora Modelo
Ltda fez um pedido de reconsideração da decisão ao Desembargador
plantonista, Tarcísio José Martins da Costa, que proferiu, então, decisão
monocrática, revogou a decisão do Desembargador Plantonista e revalidou
a liminar de reintegração de posse anteriormente deferida. Ocorre que,
em razão de não haver fato novo que autorizasse a revogação da decisão
anteriormente proferida e, embasada em sólidos argumentos, a Assistên-
cia Jurídica da PUC impetrou um Mandado de segurança no cartório de
feitos especiais da capital (Processo nº 1.0000.09.499331-8/000) em face
da ilegalidade da decisão do Des. Tarcísio José Martins da Costa, alegando
que ele não poderia ter revogado a decisão do Des. plantonista e deferido

681
a reintegração de pose em sede de retratação, sem estarem presentes os
requisitos para o deferimento da reintegração de posse liminarmente. O
pedido deste mandado de segurança foi deferido, em sede liminar, pelo
Des. Nepomuceno Silva, em 16/06/2009 e foi o que por muito tempo
manteve a comunidade numa situação de relativa segurança jurídica.
Enquanto vigente esta decisão liminar, foi iniciado um processo de
negociação da Comunidade Dandara com a Construtora Modelo, me-
diados pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública. A proposta da
Construtora apontava para a verticalização total da área com prédios
destinados a famílias de classe média e baixa, porém exigia que todos os
moradores saíssem de sua casa para que depois, supostamente, voltassem
para apartamentos de 39,5m², comprados por intermédio do Programa
Minha Casa, Minha Vida. Não desejando a verticalização, os moradores
aceitaram a proposta, mas propuseram outro projeto em que não teriam
que sair da área. A Construtora não aceitou a contraproposta e, portanto,
não se chegou a nenhuma solução.
Diante da impossibilidade de uma saída negociada, a corte especial, em
09/06/2010, denegou o pedido de segurança, tornando sem efeito a liminar
deferida. O juiz da 20º Vara Civil, nos autos da Ação de Reintegração de
Posse citada (Processo nº 0024.09.545.746-1) determinou o cumprimento
da decisão para a reintegração de posse e chegou a requerer contingente
policial, abrigo e transporte para os pertences das famílias.
Os moradores e seus apoiadores ajuizaram em março de 2010, por
meio da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, uma Ação Civil
Pública, na 6ª Vara da Fazenda Pública Estadual (Processo nº 0356609-
69.2010.8.13.0024). Ela teve como propósito estabelecer a permanência ou
viabilizar, celeremente, efetivo local para habitação e moradia das famílias
da comunidade. Ressaltou-se que nos imóveis existem famílias, compostas
por mulheres, crianças, adolescentes, homens, muitas dessas pessoas já
idosas, com deficiência, e a omissão do poder público é a responsável
pela situação que impacta de modo injusto e penoso os moradores da
comunidade Dandara.

682
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Na citada ACP, alegou-se que a efetivação do direito à moradia é co-


-responsabilidade entre Estados e Municípios. Alegou, ainda, o abandono
da área pelo seu proprietário formal, a Construtora Modelo, em contrapo-
sição ao exercício da posse e da função social da propriedade pelos atuais
moradores. Tendo isso em vista, a ACP requereu que o Estado de Minas
Gerais e o Município de Belo Horizonte tomassem medidas no sentido de
reconhecer a situação consolidada em que se encontravam as famílias e
regularizasse o terreno ou reconhecesse o direito de serem destinatárias
de um programa de moradia sustentável.
A ACP reitera a necessidade das famílias da comunidade Dandara se-
rem incluídas nas políticas urbanas de forma ampla e participativa, além
da urgência de ascenderem aos meios básicos que permitam o acesso ao
direito à cidade. Afirma, ainda, que a retirada das famílias da Dandara
representa perda material para elas, e que os moradores da comunidade
necessitam de proteção, tendo em vista a condição de insegurança em
que vivem devido a iminência de despejo, a ausência de direitos básicos
e a abusiva ação da polícia. Enquanto o direito à moradia não lhes for
assegurado, essas famílias estariam expostas ao risco, notadamente em
relação a sua integridade física e moral. Tendo todos esses apontamentos
em vista, a DPE requereu concessão da liminar para: suspensão do pro-
cesso administrativo em que a Construtora Modelo pede a aprovação de
parcelamento (loteamento) do imóvel; inclusão da área da Dandara como
ZEIS; formação de uma comissão para efetivação do direito à moradia com
participação da comunidade; abstenção imediata de qualquer interferên-
cia física no imóvel, incluindo a remoção das famílias, permanecendo a
situação concreta como está até que seja concebida solução concreta pela
comissão; garantia de participação das famílias nos programas de inclusão
social, bem como à saúde, educação, acesso à água e energia elétrica;
bloqueio imediato de 20% das despesas para investimentos para a área
habitacional, previstos no orçamento estadual de 2010, para que fiquem
disponíveis para investimentos na comunidade; e que seja determinada a
abstenção da Construtora Modelo de qualquer negociação com o imóvel,

683
bem como de exercer atos de posse na área prevista para o loteamento.
Em conclusão aos pedidos da DPE, o Juiz de Direito Titular da 6ª Vara
da Fazenda Pública Estadual e Autarquias, Dr. Manoel dos Reis Morais,
em 06/04/2010, ao revogar a decisão anterior de reintegração de posse,
ponderou que, no caso da comunidade Dandara, havia um conflito entre
o direito à propriedade e o direito à moradia. Afirmou que os direitos não
são absolutos e é no embate entre eles que deve-se descortinar o peso
de um e outro. No caso do direito à moradia, dele depende nosso próprio
existir enquanto seres humanos. Neste sentido, afirmou:

[...] se o nosso existir depende, numa certa medida, de uma de-


terminada ocupação espacial, torna-se incontestável que nossa
dignidade humana possui como correlato o direito à moradia. Por
isso, então, que o direito à propriedade não possui peso seme-
lhante ao do direito à moradia na situação ora analisada, pois a
prevalência da propriedade, como direito da Construtora Modelo
Ltda, não leva à afetação da dignidade humana, enquanto que o
desapossamento dos membros da comunidade Dandara implica
em alijá-los do direito de existir como pessoas dignas, já que lhes
impede o morar como residência. (MINAS GERAIS, 2010, p. 4)

O juiz concluiu, então, que o direito à ocupação do imóvel deveria ser


reservado aos membros da comunidade Dandara, e a eles deveriam ser
garantidos também todos os direitos decorrentes da dignidade humana.
Nesse sentido, afirmou que “[...] Não basta [...] garantir o direito de ocu-
pação do imóvel, mas proporcionar medidas que efetivem a concretização
do direito à moradia como uma das condições de projeção dos moradores
como seres humanos.” (MINAS GERAIS, 2010, p. 6)
O citado juiz deferiu parcialmente a medida liminar, tendo acatado
todos os itens, à exceção daquele que requeria o bloqueio de parte do
orçamento estadual, com a justificativa de que as medidas determinadas,
se implantadas adequadamente, tornarão inócuo o pedido.
Foi determinado que, no prazo de 45 dias, o Município deveria suspen-
der o andamento do projeto de parcelamento da Construtora e inscrever a
comunidade como ZEIS; que o Estado de Minas Gerais deveria instituir a
comissão, com participação da comunidade, para assegurar-lhes o direito

684
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

à moradia; e que o Município e o Estado deveriam encetar medidas admi-


nistrativas para o acesso da comunidade a serviços de saúde, educação,
água, energia elétrica. Porém, tais medidas ainda não se concretizaram
na realidade dos moradores da comunidade Dandara, como constatou o
grupo de pesquisadoras em visita a comunidade nos meses de maio de
julho de 2013.
Embora o Dr. Manoel dos Reis Morais, que recebeu a ACP, tenha de-
ferido praticamente todos os pedidos, o Tribunal de Minas Gerais cassou
essa liminar. De qualquer forma, a ACP conseguiu retirar o conflito da 20ª
Vara Civil juntando os dois processos por conexão na 6ª Vara da Fazenda
Pública, onde a liminar de reintegração de posse está suspensa.
A Construtora Modelo Ltda. Propôs ainda duas ações incidentais a
ACP: a exceção Suspeição (Processo nº 0578513-68.2012.8.13.0000), que
pretendia afastar do julgamento do caso o Juiz de Direito da 6ª Vara da
Fazenda pública, Dr. Manoel dos Reis Morais, por pré-julgamento e ten-
dência processual, pedido que foi denegado, pelo TJMG, em 31/08/2012;
e o Agravo de Instrumento (Processo nº 1.0024.09.545746-1/006), com
o objetivo de cassar a decisão do magistrado de primeira instância, que
não poderia revogar a decisão concessiva da reintegração de posse, já
que corroborada pelas instâncias superiores, sob pena de insegurança
jurídica. Este pedido, entretanto, foi negado, em 19/02/2013, em decisão
do Tribunal. Desde então, o despejo das famílias está suspenso e existem
duas ações tramitando na justiça.
O sucesso em matéria de resistência das ocupações urbanas parece
se dar não apenas pelas audaciosas e efetivas estratégias processuais
adotadas pelos advogados populares e seus parceiros, mas também pela
qualidade da mobilização política e organização popular dos moradores
das ocupações urbanas.

685
4.3 Os conflitos sociais e de direitos no que tange as concepções
de terra, posse e propriedade: análise das estratégias jurídicas
das partes no Caso Dandara

4.3.1. Argumentos e estratégias da proprietária

No Brasil, a transformação da terra em propriedade privada se mate-


rializou na ordem jurídica brasileira, sendo incorporada uma concepção
de propriedade individual e irrestrita no Código Civil de 1916.
A propriedade da terra foi e segue sendo um instrumento de poder e
diferenciação social seja no campo ou nas cidades. Como discute Isabella
Miranda (2012), além do planejamento urbano excludente, o exercício da
hegemonia do poder político, do saber e do direito no país instituiu uma
ordem social na qual as leis que determinavam as formas de acesso à
propriedade formal da terra urbana foram fundamentais para a divisão da
cidade e seus cidadãos em estratos hierárquicos. Como afirma a autora,

“[...] a propriedade privada, sacralizada pela doutrina liberal, se


estabeleceu e se consolidou no Brasil por meio de processos de
apropriação e violência, que depois são traduzidos em normas
e leis que as legitimam e naturalizam. Tal estrutura fundiária
de restrição do acesso à terra pela compra e pelo registro do
imóvel foi especialmente severa para a manutenção das rela-
ções de dominação e exclusão de grande parte da população.
(HOLSTON apud GOMES, 2009; Rodrigues, apud MAYER, 2010).”
(MIRANDA, 2012)

A partir da redemocratização do país, em 1988, o regime de terras é


formalmente modificado e a propriedade deixa de ter um valor jurídico
incondicional e incontestável.
A Constituição de 1988 no capítulo da Reforma Urbana, artigos 5º
inciso xxIII e 6º, e o Novo Código Civil de 2002 passam a condicionar a
propriedade à observância do princípio da função social. Tal princípio
coloca sob tensão a concepção liberal inquestionável do direito de pro-
priedade. Entretanto, como problematiza Mariana Prandini Assis (2012), o
princípio da função social da propriedade não está claramente definido na

686
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Constituição Federal de 1988, o que torna o conceito altamente disputado.


Nas sentenças judiciais o direito de propriedade tem prevalecido sobre
os demais princípios, leis e direitos, o que revela que a leitura dos juristas,
por ideologia ou despreparo, segue reproduzindo uma legislação patri-
monialista (FERNANDES, 2012).
A Construtora Modelo Ltda., formal proprietária do terreno onde
hoje se situa a comunidade Dandara, segue a estratégia processual da
comprovação da posse por meio da simples apresentação do registro
cartorial do imóvel.
A construtora argumenta, ainda, possuir um distanciamento do pro-
blema da moradia, atribuindo-o unicamente ao poder público. Apesar
de considerar urgente a realização de uma reforma social, a proprietária
defende que esta é uma questão a ser incumbida a outros órgãos, conside-
rando-se, inclusive, vítima de uma “ditadura do Judiciário”: “Deferir-se em
favor de quem não tem direito para posse de um imóvel somente porque
se trata de uma vila popular, para obviar-se uma crise social e porque não
é moralmente justo, é praticar-se o confisco através da jurisdição. Com a
devida vênia, a pior das ditaduras é a ditadura do Judiciário”.
A argumentação da Construtora Modelo que ressalta a violação da pro-
priedade privada encontra eco não apenas junto ao Judiciário mas também
no senso comum. Como exemplo, podem ser citadas as manifestações de
repúdio à decisão do Dr. Manoel dos Reis em suspender a ação de reinte-
gração de posse da comunidade Dandara. As críticas feitas ao juiz e por ele
respondidas em matéria no Estado de Minas concentraram-se em quatro
pontos principais, quais sejam: se o juiz Manoel fosse o dono do imóvel,
como agiria; o pobre e seu lugar social; aumento da criminalidade com
a presença de posseiros; e irresponsabilidade do juiz e a má impressão
que causará a favela nas personalidades que visitarão a capital mineira.
Ao responder as questões levantadas, o magistrado afirmou: que o juiz,
na sua posição de mediar conflitos sociais, não cabe se colocar totalmente
na posição de uma das partes. Destacou que, ao deferir provisoriamente
a posse para os moradores da Dandara, simplesmente calculou o peso do

687
direito à moradia no confronto com o direito à propriedade tendo como
fiel a dignidade da pessoa humana (três princípios constitucionais). Argu-
mentou, ainda, sobre a possível má impressão causada a “personalidades
que visitem a cidade”, que cabe a todos os brasileiros cuidar para que não
existam aglomerados e favelas e que para chegar a esse ponto faz-se ne-
cessário não ignorar a existência dos pobres e dos despossuídos como se
fossem invisíveis. Além disso, ressaltou ser inconcebível pretender colocar
os pobres num lugar determinado como se fossem de outra classe, estirpe,
raça, ou inferiores, fazendo crescer o abismo da desigualdade. Sobre o
aumento da criminalidade, o juiz não entrou no mérito da discussão mas
não deixou de colocar que favelas e aglomerados não são simples redutos
de criminosos, mas lugar de gente trabalhadora e idônea.

4.3.2 Argumentos e estratégias


em prol da Comunidade Dandara

Os defensores da Comunidade Dandara basearam sua estratégia utili-


zando-se de diversas frentes argumentativas. Assim, consta a importância
do direito constitucional à moradia como principal fonte da argumentação,
juntamente com o não cumprimento da função social da propriedade por
parte da Construtora Modelo.
A propriedade privada é tensionada pela argumentação sobre o prin-
cípio da função social da propriedade que, de acordo com os moradores e
seus apoiadores, a Construtora Modelo nunca exerceu e que agora estava
sendo efetivada pelos moradores, que construíram no terreno suas casas
e sua comunidade, respeitando as legislações urbanísticas e ambientais
para a área.
O professor de Direito Constitucional da UFMG, Prof. José Luiz Qua-
dros de Magalhães, elaborou artigo, em junho de 2009, que demonstra o
papel da função social da propriedade rural e urbana. Nele, o professor
discorre sobre a evolução do sentido da propriedade durante as mudanças
de paradigma que ocorreram nos Estados nacionais no Século xx. Des-

688
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

taca que o Direito não pode mais ser instrumento de dominação onde a
propriedade se colocava como o centro do sistema jurídico. A finalidade
do ordenamento é a vida com dignidade e liberdade, e não é possível a
concretização desses direitos humanos na miséria.
A propriedade é também contraposta ao direito de moradia e ao prin-
cípio da dignidade humana, que seriam violados caso a Judiciário deter-
minasse a reintegração de posse da comunidade.
Contra a criminalização dos movimentos sociais, que também cola-
bora entre os argumentos contrários às ocupações, os moradores das
ocupações e seus apoiadores reiteraram os princípios políticos do direito
de resistência, da participação nas cidades, da supremacia do interesse
público sobre o interesse privado.
Estratégias subsidiárias à fundamentação jurídica foram também utili-
zadas como instrumento de pressão política. Nota-se a importância dada à
visibilidade da comunidade na imprensa, a articulação com outros movi-
mentos sociais, a pressão junto ao poder público por meio de Audiências
Públicas, a articulação com as Universidades na realização de projetos
comunitários, grandes marchas de mais de 20 Km da comunidade até o
centro de Belo Horizonte e ações diretas como ocupações temporárias
de espaços públicos como praças, sedes de secretarias e, até mesmo, o
gabinete do prefeito na Prefeitura de Belo Horizonte.
As mobilizações também ocorreram em torno de demandas por direitos
fundamentais na ocupação, como é o caso da falta de água. Uma comissão
da Comunidade Dandara reuniu-se com a COPASA a fim de tratar sobre
o fornecimento de água para a comunidade. (fl.167). Na época, não havia
sido firmado o Termo de Ajuste de Conduta entre a Prefeitura o Governo de
Minas e o Ministério Público que proíbe o fornecimento de água e energia
elétrica para as ocupações urbanas “irregulares”.

689
4.3.3 O mapeamento sociojurídico: o direito a moradia e a função
social da propriedade sob a ótica dos moradores da Dandara

Na Dandara, composta por uma população a quem o Direito é cons-


tantemente negado, seus moradores possuem concepções de direito e
justiça bem distintas das hegemônicas. Tais conclusões puderam ser
retiradas não apenas das entrevistas realizadas em campo, mas também
do trabalho etnográfico realizado na comunidade Dandara por Miranda
(2013), cujas entrevistas serão relatadas a seguir. Para realizar as entre-
vistas com os moradores da Comunidade Dandara, a pesquisadora passou
cerca de dez dias vivendo na comunidade e conversando informalmente
com os moradores, até que encontrasse um momento propício para a
entrevista gravada. Embora houvesse um roteiro semi-estruturado de
perguntas, as entrevistas seguiram o fluxo de uma conversa cotidiana, de
maneira bastante flexível. Entrevistou-se uma diversidade de moradores,
respeitando-se critérios de diversidade da população.
Uma das moradores, Simone, conta que, quando foi para Dandara com
a ajuda do cunhado que cedeu seu terreno, não tinha idéia do que era uma
ocupação organizada e de que em tal teria de lutar. Em entrevista para a
pesquisadora Isabella Miranda, ela afirmou que passou muito medo no
início da ocupação. Simone se indigna de como a lei pode legitimar tanta
violência contra eles, que buscavam pela dignidade.
Seu Orlando, outro entrevistado da comunidade, indignou-se com o fato
de os moradores das ocupações não terem assegurado direitos à moradia,
à segurança, à educação e a tantos outros e, nesse sentido, questiona a
validade da Lei. Afinal, como pode ser lei se tantos não têm acesso ao
direito que ela propõe a todos? Este senhor, critica o fato do Juiz achar
que os moradores de ocupações não terem direito de morar nas casas
que autoconstruíram, sendo que os magistrados já têm moradia e todos
os direitos que a acompanham. Para ele, isso sim é injustiça.
Dona Ângela, que está na Dandara desde o primeiro dia na comunida-
de, questiona que justiça é essa que pode permitir que um terreno desse

690
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

tamanho seja entregue à especulação imobiliária e ao lucro de uma única


empresa, ao invés de manter a moradia de mil famílias, direito básico
e que garante o cumprimento da função social daquele espaço. É dela
a afirmação: “[...] eu acho muita injustiça a Construtora Modelo ter um
terrenão desses.”
Há entre os moradores da comunidade uma forte reflexão quanto aos
termos invasão e ocupação. Em entrevista, Simone afirmou a esse respeito:
“Nós não invadimos nada, nós só ocupamos o que estava vazio. Invadir
é tirar uma pessoa de dentro da casa dela e isso nós não fizemos. O que
fizemos foi um favor para a sociedade porque isso aqui era a desova de
corpos, era ponto de droga, era lugar de estupro.” Ao ser indagada “O que
é função social?” Ângela explicou que é fazer bem para a sociedade, fazer
bem para a natureza, beneficiar a mais pessoas e não a uma só.

5 CONCLUSÕES

Considerando os argumentos apresentados tanto em favor como con-


tra a Comunidade Dandara no mapeamento jurídico do conflito urbano
estudado, percebeu-se que eles giram em torno do direito de propriedade,
da sua função social e da dignidade da pessoa humana. Os argumentos
dos moradores corroboraram as visões sobre os referidos princípios que
prevaleceram até o presente momento perante o Poder Judiciário mineiro
diante do caso Dandara.
Prevaleceu o argumento de que no ordenamento constitucional brasilei-
ro não se pode jamais, em nome da propriedade, ameaçar a vida de quem
quer que seja. No caso da ocupação Dandara, não houve justificativa ou
fundamento jurídico que se sobrepusesse à vida de milhares de pessoas,
nem mesmo a noção clássica de direito de propriedade, vez que esta não
estava destinada a sua função social.
A análise das estratégias jurídicas e políticas de resistência da comu-
nidade revelam que há um duplo processo de politização da justiça e
judicialização da política, quando um conflito social e político de grandes

691
proporções é, em grande medida, definido no âmbito do Poder Judiciário.
A construção de uma imagem positiva e a visibilização da comunidade
Dandara foram essenciais para criar poder de dissuasão, aumentando o
custo político do despejo da comunidade.
Conforme o relato dos entrevistados, Dandara contribuiu muito para a
emancipação dos moradores, pois nela aprenderam que possuem direitos
e que estes devem ser exigidos do poder público. Assim, a moradia na
Dandara não significa só uma casa; é uma comunidade; é a construção
de uma grande família; é aprender a andar de cabeça erguida; é aprender
a lutar pelos direitos; construir sonhos, planejar a cidade, decidir juntos.
Um valor muito superior ao de cada uma das casas da comunidade.
É muito marcante na comunidade a idéia de que os próprios moradores
constroem o direito que precisam, a partir da luta.

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694
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

NOTAS

1 Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenadora da Pesquisa de


Mapeamento das Ocupações Urbanas em Belo Horizonte e Região Metropolitana, financiada pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do
CNPq. Contato Eletrônico: mariaterezafdias@yahoo.com.br.
2 Bacharel em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais. Assistente técnico de pesquisa do
CNPq. Contato Eletrônico: bellagm2@hotmail.com
3 Bacharelando em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista. Bolsista do CNPq. Contato
Eletrônico: fulvioalvsampaio@gmail.com
4 Bacharelanda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora voluntária da Pesquisa
de Mapeamento das Ocupações Urbanas em Belo Horizonte e Região Metropolitana. Contato Eletrônico:
albamsalles@gmail.com
5 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora voluntária da Pesquisa
de Mapeamento das Ocupações Urbanas em Belo Horizonte e Região Metropolitana. Contato Eletrônico:
anandamartins91@gmail.com
6 Bacharelando em Ciências do Estado na Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador voluntário
da Pesquisa de Mapeamento das Ocupações Urbanas em Belo Horizonte e Região Metropolitana. Contato
Eletrônico: arthur_castro@ymail.com
7 Bacharelanda em Direito na Faculdade Batista de Minas. Pesquisadora voluntária da Pesquisa de Mapeamento
das Ocupações Urbanas em Belo Horizonte e Região Metropolitana. Contato Eletrônico: isabella_ferreira@
msn.com
8 Bacharelanda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora voluntária da Pesquisa
de Mapeamento das Ocupações Urbanas em Belo Horizonte e Região Metropolitana. Contato Eletrônico:
juliadap@hotmail.com
9 Bacharelando em Direito na Faculdade Batista de Minas Gerais. Pesquisador voluntário da Pesquisa de
Mapeamento das Ocupações Urbanas em Belo Horizonte e Região Metropolitana. Contato Eletrônico: ma-
rkimrosa@gmail.com
10 Bacharelanda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora voluntária da Pesquisa
de Mapeamento das Ocupações Urbanas em Belo Horizonte e Região Metropolitana. Contato Eletrônico:
taysnatalia@hotmail.com
11 Entrevista de Isabella G. Miranda à urbanista Mônica Cadaval em Outubro de 2012.
12 Entrevistas de Isabella Gonçalves Miranda aos militantes Joviano Mayer (2012), Rafael Bittencourd (2012)
e Gilvander Luiz Moreira (2013).
13 Vide os trabalhos de Miranda (2012) e Coutinho (2010).

695
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Conflitos fundiários urbanos:


Poder Judiciário e segregação
socioespacial no Brasil

Giovanna Bonilha Milano1

1. SEGREGAÇÃO SOCIESPACIAL E
DESIGUALDADE NA PRODUÇÃO DO
ESPAÇO URBANO NO BRASIL

A produção e reprodução do espaço social e, particularmente, do


espaço urbano têm sido objeto de análise nas mais diversas áreas do co-
nhecimento. É notável, entretanto, os avanços desempenhados durante
o século xx especialmente pelo campo da geografia, em desentranhar o
espaço tomado a partir da descrição de resultados provenientes da ação
natural para redimensioná-lo ao âmbito da produção social, ou seja, do
trabalho humano.2
Conforme ressalta Flávio Villaça, foi somente a partir de tal guinada
paradigmática que se tornou possível incluir no estudo das dinâmicas
espaciais elementos como a dominação de grupos sociais, desigualdade
econômica, poder político e construções ideológicas.3 O espaço torna-
-se, a partir de então, fonte profícua de investigações que transcendem a
observação nua de seus componentes naturais e passam a considerá-lo
de forma integrada às relações sociais, históricas, juridicas, econômicas
e políticas.
Esta perspectiva relacional, na qual o espaço é observado a partir de
sua permanente relação com as dinâmicas sociais é explorada pelo geó-
grafo Milton Santos, que defende a relevância do território como categoria
de análise social, desde que considerado a partir da noção de “território
usado”. Ou seja, em permanente diálogo com os atores que dele se uti-

697
lizam, sob um processo dialético no qual se incluem “as coisas naturais
e artificiais, a herança social e a sociedade em seu movimento atual.” 4
Diante disso, o espaço passa a ser definido em sua dimensão relacional
porque mais do que servir como arena para uma série de relações sociais,
ele próprio encontra-se imbricado em dialética relação que envolve os
processos sociais e o ordenamento territorial. É essa relação que impede
a análise monolítica do espaço – afeita à estabilidade e limitação fixa de
fronteiras – e a realoca na perspectiva de movimento e fluidez, própria da
dinâmica de conflitos da produção social. 5
Os processos de ordenação do espaço e disputa territoriais, sob tal
viés de análise, deixam de se apresentar como o resultado de ações na-
turalizadas para assumirem o caráter de “resultado de lutas políticas e
de decisões políticas tomadas no contexto de condições tecnológicas e
político-econômicas determinadas”. 6
Nas cidades brasileiras, este conjunto de idéias assume especial cen-
tralidade na medida em que fornece as ferramentas teóricas necessárias
à investigação da mais importante das manifestações espacial-urbanas
em nossa sociedade, qual seja a desigual distribuição socioespacial.7
Segundo afirma Villaça, “nenhum aspecto do espaço urbano brasileiro
poderá ser jamais explicado/compreendido se não forem consideradas
as especificidades da segregação social e econômica que caracteriza nos-
sas metrópoles, cidades grandes e médias. 8 O desafio de compreender a
segregação urbana no Brasil está, portanto, em situar a dimensão físico-
-espacial como resultado da desigual distribuição da riqueza socialmente
produzida, considerando-se os seus reflexos na produção de precária situ-
ação habitacional descrita sob as tipologias de assentamentos irregulares
ou ocupações informais. 9
A ausência de universalidade no acesso a terra urbanizada e ao mer-
cado formal habitacional no Brasil, apresentam-se como características de
um processo de urbanização que não realizou a socialização dos meios de
consumo coletivo para reprodução mínima da vida concreta dos cidadãos
- como educação, saúde, cultura, transporte e, principalmente, moradia.10

698
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O resultado desse percurso, como indica Maricato, está na generalizada


constituição de cidades ditas “irregulares”, porque incompatíveis com
os crivos estabelecidos pela legalidade urbanística e civilística, e na fre-
quente utilização do recurso da ocupação de terras como estratégia para
moradia. 11
Para além destas fronteiras entre legalidade e ilegalidade, reforçadas
pelo discurso da “cidade oficial”, escondem-se, entretanto, vivências
urbanas plurais e complexas que articulam indivíduos, coletividades e
a cidade: 12

“(...) el análisis de la tensión legalidade-ilegalidad se deve dirigir a


totalidade de las relaciones sociales, incluyendo las resistências a
la segregación social y la valorización de las luchas por el derecho
a estar (y permanecer) em la ciudad. (...) No basta defender las
políticas públicas o la flebixilización de las normas urbanísticas.
Es indispensable uma nueva imaginación professional, que rea-
lice la propuesta de uma ciudad fundamentalmente democrática
(diversa y plural). “13

São os conflitos urbanos - e mais pujantemente os conflitos fundiários


urbanos – que representam a contraface deste processo de silenciamento
das desigualdades na produção socioespacial.

2. CONFLITOS URBANOS: PRODUÇÃO DO


DISSENSO E MANIFESTAÇÃO DE SUJEITOS COLETIVOS

Os conflitos urbanos caracterizam-se como “todo e qualquer confronto


e litígio relativo à infraestrutura, serviços ou condições de vida urbanas,
que envolva pelo menos dois atores coletivos e/ou institucionais (inclu-
sive o Estado) e se manifeste no espaço público (vias públicas, meios de
comunicação de massa, justiça, representações frente a órgãos públicos,
etc).”14 Ou seja, corresponde a toda forma de conflituosidade protagonizada
por sujeitos coletivos no espaço social em cujo pleito central situe-se o
direito à cidade, em suas múltiplas dimensões.
Conforme sistematiza Carlos Vainer existem ao menos duas concepções

699
acerca do lugar do conflito da vida social, que influenciam decisivamente
na forma como serão analisadas e problematizadas tais manifestações.
A primeira delas, denominada “visão normativa” compreende o conflito
como uma disfunção social, ou seja, enquanto desequilibrio sistêmico na
organização da sociedade. Nesta perspectiva, em um sistema social ade-
quadamente regulado os conflitos não existiriam ou ocupariam dimensão
secundária e de diminuta relevância em relação às questões fundamentais
e estruturantes do sistema.15
A outra concepção diz respeito à noção de que a capacidade de ge-
ração e reprodução de conflitos é diretamente proporcional aos traços
de pujância e dinamicidade de determinada sociedade. Isso significa que
antes de representar qualquer distorção indesejável na estabilidade social
“os conflitos constituem dinâmicas, processos e sujeitos sociais que via-
bilizam e operam o permanente aperfeiçoamento do sistema ou, mesmo,
em algumas visões, sua superação – através de reformas ou revoluções”.16
Diante dissso, os conflitos que versam sobre os antagonismos per-
tinentes à (re) produção das cidades cumprem o papel de confrontar o
consenso na formação do pacto entre citadinos, denunciando os diferen-
tes conjuntos de interesses e a desigualdade na fruição dos benefícios no
espaço urbano. A rejeição da legitimidade e pertinências destas ações
coletivas de enfrentamento nas cidades ampara-se, segundo Vainer, em
certas correntes intelectuais e políticas que podem ser agrupadas em três
grandes campos: i) “utopia da sociedade/cidade harmônica”; ii) “utopia da
sociedade/cidade silenciada” e iii) “utopia da sociedade/cidade negocial”.
A “utopia da sociedade/cidade harmônica” traduz-se na projeção
utópica caracterizada pelo igualitarismo social e pela ausência de con-
flituosidade. Em tal argumentação, a obtenção do igualitarismo ou ho-
mogeneização dos indivíduos na cidade encerraria qualquer dimensão
conflituosa em torno do espaço urbano.17 Na “utopia da sociedade/cidade
silenciada” por sua vez, os conflitos são extintos por meio da violência
do poder. Trata-se da busca pela aniquilação do dissenso como elemento
central de articulação do poder, vigindo tanto em ordenamentos sociais

700
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

abertamente ditatoriais quanto em sistemas classificáveis, apriorística-


mente, como democráticos.18
Por fim, a “utopia da sociedade/cidade consensual” fundamenta-se
na leitura negocial da cidade para a qual os indivíduos seriam pretensa-
mente iguais e aptos a transigir livremente sobre seus interesses. Sob esta
concepção, alinhada à noção de contratualização dos antagonismos na
cidade, os conflitos seriam evitados pela negociação prévia e a conciliação
entre os direitos e interesses dos sujeitos em confronto. 19
Ocorre que, em uma sociedade marcada pela desigualdade e pela
segregação sociespacial, a satisfação de necessidades e direitos funda-
mentais de determinados sujeitos coletivos – a exemplo da moradia digna
– demanda, muitas vezes, a restrição de interesses individuais ou de gru-
pos particulares, como a especulação imobiliária. E é nesta contradição,
fundada em inexorável dissenso, que os conflitos urbanos apresentam-se
como a resposta possível.
Cumprem, por um lado, a função de anunciar e desestabilizar situações
de injusta desigualdade no espaço urbano, evidenciando as situações de
ausência de direitos encobertas pelas projeções utópicas que descrevemos
acima. De outro lado, é apenas por meio dos conflitos que os grupos que
vivenciam condições comuns de adversidade se constituem enquanto
sujeitos coletivos e passam a atuar politicamente no espaço público,
mobilizando-se para demanda de direitos e alteração do status quo.
Conforme afirma Ilse Scherer-Warren, os sem-teto assim com
os sem-terra caracterizam-se por permanente “diáspora dentro do
Estado-nação”:20

“Será com suas participações nas lutas pela terra e pela mo-
radia, que essas populações se transformam em sujeitos que
lutam por direitos e em atores politicamente ativos nas redes em
movimento. É nessa condição que realizam a passagem atópica
dos aglomerados de exclusão para o sonho utópico dos novos
territórios-zona (assentamentos e lugares fixos de moradia) e
com o sentimento de pertencimento e reconhecimento como
cidadão e sujeito coletivo nos territórios-rede (…).”21

701
A tipologia dos conflitos urbanos é vasta e abrange diferentes
objetos, formas de manifestação e agentes sociais envolvidos. A he-
terogeneidade também está presente nas formas de manifestação que
abrangem denúncias em meios de comunicação; atos políticos em
espaços públicos; ocupação de prédios ou terrenos, confrontos com
as forças de segurança; abaixo-assinados; representações elaboradas
coletivamente e destinadas ao Poder Público ou, ainda, demandas ar-
ticuladas sob a forma de ações judiciais. 22

Diante da pluralidade destas expressões, para as reflexões propostas


neste trabalho optamos pelo recorte temático pertinente aos conflitos
urbanos cujo objeto identifica-se com as disputas pelo acesso a terra para
moradia, protagonizadas por sujeitos coletivos e desenvolvidas na forma
de ações ajuizadas no Poder Judiciário.

3. CONFLITOS FUNDIáRIOS URBANOS

Os conflitos fundiários urbanos caracterizam-se por situações de dis-


puta pela posse ou propriedade de imóveis urbanos, envolvendo famílias
de baixa renda ou grupos sociais vulneráveis que necessitem ou deman-
dem a proteção do Estado na garantia do direito humano à moradia e à
cidade. Compreendem, ainda, os confrontos ocasionados pelo impacto
de empreendimentos públicos e privados que ameacem a garantia destes
direitos fundamentais.23
Esta definição, elaborada por Resolução do Conselho Nacional das
Cidades24, fundamenta-se em amplo leque de diplomas legais - formu-
lados no âmbito internacional e nacional - que versam sobre a proteção
jurídica do direito à moradia adequada, bem como disciplinam os limites
impostos à prática de “despejos forçados”, realizados em circunstâncias
de conflitos fundiários urbanos. 25
Todavia, nas situações de conflitos fundiários que envolvem disputas de
bens jurídicos, não raro antagônicos, notadamente vinculados à posse ou
a propriedade da terra urbana, esse robusto arcabouço legal ainda parece

702
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

carecer de efetividade. O aumento crescente dos registros de conflitos


urbanos relacionados ao acesso a terra para moradia coloca-se como o
cerne de uma conjuntura paradoxal de desenvolvimento e produção do
espaço nas cidades. 26
De um lado, tem-se o ascendente investimento em produção habitacio-
nal – com a realização de programas dedicados a esta finalidade 27– apoiado
por um ordenamento jurídico que incorporou o direito à moradia como
direito fundamental e pela existência de inúmeros espaços participativos
que, em sua proposição origina, cumprem a função de democratizar a
elaboração da política urbana. Não obstante, assiste-se a “um enorme
impulso aos processos de espoliação e concentração da riqueza que,
historicamente, sempre estiveram ligados à questão do acesso à terra.”28
Conforme esclarece Raquel Rolnik, no meio urbano paralelamente aos
processos de ampliação do crédito e de investimentos públicos no setor da
construção civil, persiste o adensamento da especulação imobiliária com
a elevação dos preços da terra e dos imóveis. Esta dinâmica tem cumprido
o papel de ampliar consideravelmente os conflitos fundiários em duas
perspectivas: a primeira delas corresponde à expansão das fronteiras de
atuação do mercado imobiliário, com a inclusão de novas terras em seu
espectro de interesse, o que tem resultado na remoção de famílias que
moram em ocupações historicamente consolidadas.
Em segundo lugar, tem-se a intensificação de novas ocupações de
terra por parte dos setores da população que não conseguem acessar
estas possibilidades de crédito para moradia. Correspondem essencial-
mente aos indivíduos situados na maior concentração de taxa do déficit
habitacional e menor capacidade econômica – cuja faixa de renda oscila
entre 0 e 3 salários mínimos, e que moram em grandes metrópoles nas
quais o crescente valor da terra tem inviabilizado o sucesso de progra-
mas habitacionais.29
Acrescente-se, ainda, um fator de reforço às dinâmicas acima descri-
tas que corresponde à realização dos megaeventos esportivos no Brasil,
especificadamente a Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos de 2016. Sob

703
a justificativa das competições as cidades-sede têm realizado uma série
de intervenções e grandes projetos urbanos que resultam em violações de
direitos humanos e na remoção forçada de milhares de pessoas. 30
Em todas as situações, o mínimo comum reside no desrespeito à segu-
rança legal da posse e na supremacia de interesses privados com a con-
centração da terra urbanizada, como um obstáculo de difícil tranposição
para garantia de direitos fundamentais. Resta evidente a desconformidade
entre as respostas oferecidas pelo Poder Público, estas situações conflitu-
osas, e os instrumentos disponíveis para tal finalidade.

4. PODER JUDICIáRIO E CONFLITOS FUNDIáRIOS

A falta de afinação entre políticas públicas que deveriam prover o


direito à moradia adequada e o ordenamento territorial das cidades é o
grande elemento contemporâneo catalisador de conflitos pela terra urba-
na no Brasil. Dentre as estratégias que buscam fornecer soluções a estas
crescentes demandas é possível citar a elaboração da Política Nacional de
Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos, elaborada pelo
Conselho Nacional das Cidades e implementada por meio da Resolução
Recomendada n.º87, de 8 de dezembro de 2009.
Trata-se de um conjunto de dispositivos gerais que busca matizar a
resolução das disputas fundiárias nas cidades mediante a aplicação do
conteúdo assegurado no ordenamento jurídico vigente, especialmente
a Constituição Federal e o Estatuto das Cidades. A Política divide-se em
três grandes nichos de atuação, que devem operar articuladamente, e que
compreendem a prevenção, a mediação e o monitoramento das disputas
por terras urbanas para moradia no Brasil.
Em seus objetivos destacam-se o necessário reconhecimento do
caráter coletivo dos conflitos fundiários urbanos, nos litígios pela posse
e propriedade, que envolvam famílias de baixa renda ou grupos sociais
vulneráveis. Além disso, também é mencionada a importância da garantia
do devido processo legal em casos de conflitos, com vistas a possibilitar

704
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o contraditório e a ampla defesa, para todas as pessoas envolvidas. 31


Os dispositivos apresentados pela Política Nacional de Prevenção e
Mediação de Conflitos fundiários urbanos representam a síntese dos di-
versos diplomas legais mencionados no item anterior, e reforçam a exis-
tência de instrumentos que deveriam possibilitar melhores respostas às
situações de disputa pela terra urbana no Brasil. A implementação destas
ferramentas é prerrogativa de todos os poderes – executivo, legislativo
e judiciário – cada qual no âmbito do exercício de suas competências,
constitucionalmente estabelecido.
Os confrontos pelo espaço urbano traduzidos em conflitos pelo acesso a
terra para moradia não apenas transitam, portanto, pelas políticas públicas
a serem efetivadas pelo Poder Executivo. Em um cenário de ascendente
judicialização de conflitos sociais, cada vez mais o Poder Judiciário tam-
bém é convocado a analisar tais demandas e emitir posicionamentos por
meio de decisões.
De acordo com Luís Roberto Barroso, a reinauguração democrática sob
o marco da Constituição Federal de 1988 acarretou o despertar de um lugar
inédito para prestação jurisdicional, permeado pelo surgimento de “novos”
direitos; o aumento de demanda por justiça e a ascensão institucional do
Judiciário. Como resultado deste percurso verificou-se a “judicialização
de questões políticas e sociais, que passaram a ter nos tribunais a sua
instância decisória final.” 32
A ressiginficação do Poder Judiciário como um espaço privilegiado para
o trânsito das relações sociais em conflito implica, consequentemente,
em um redimensionamento do lugar das decisões proferidas na atuação
jurisdicional frente à a realização de direitos fundamentais, como o acesso
à moradia digna e o direito à cidade.
O aumento da importância do Poder Judiciário no que tange à ava-
liação de conflitos sociais vem subsidiado por elaborações doutrinárias
que sugerem uma virada teórica e metodológica afinada ao novo texto
constitucional. Esta vertente crítica preconiza a ressignificação dos
pilares clássicos do direito vigente, principalmente do direito privado,

705
buscando matizar as raízes privatistas fundadas no individualismo patri-
monialista e redimensionar sua aplicação à satisfação das necessidades
de sujeitos concretos.
Conforme esclarece José Antônio Peres Gediel essa corrente doutriná-
ria corresponde a um viés crítico às relações clássicas do direito privado
que conformam o modelo jurídico hegemônico, sob a fundamentação da
“valorização radical do ser humano concreto, socialmente inserido com
suas diferenças, mas dotado de dignidade essencial que o identifica com o
destino de toda a humanidade”.33 Este retorno às raízes antropocêntricas
do direito, como afirma Luiz Edson Fachin, deverá servir não para reafir-
mar os postulados individualistas oitocentistas, mas para romper com as
noções de neutralidade e tecnicismo, vocacionando o direito definitiva-
mente a serviço da vida. 34
No caso específico de análise deste trabalho, esta nova perspectiva
fundada na “constitucionalização” das relações interprivadas e “reper-
sonalização” das relações jurídicas incide diretamente sobre esfera das
titularidades, propugnando a incorporação do conteúdo da função social
como substantivo do direito de propriedade.35 Decorre daí, a defesa de
que nos casos concretos de conflitos fundiários, em não havendo com-
provada função social do imóvel em lítigio, perder-se-ia a justificativa de
titularidade por aquele que a detivesse.
É o que afirma Gustavo Tepedino:

Disso decorre que se uma determinada propriedade não cumpre


sua função social, perde o seu título justificativo. De fato, se a
função social é noção que surge exatamente na busca de uma
legitimidade da propriedade privada, não seria excessivo afirmar
que, na sua ausência, seja retirada a tutela jurídica dominical, em
situações concretas de conflito, para privilegiar a utilização do
bem que, mesmo desprovida do título de propriedade, condiciona-
-se e atende ao interesse social.36

Sob esta ótica, baseada na eficácia horizontal da principiologia consti-


tucional em relação às titularidades, aponta-se para uma travessia jurídica
empreendida pela transposição da propriedade imobiliária clássica e sua

706
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ascensão ao plano da coexistencialidade e da solidariedade social.37 Em


rumo ainda mais dedicado à construção de “um contraponto humano e
social” à uma “propriedade concentrada e despersonalizada” defende
Luiz Edson Fachin a autonomia da posse perante a propriedade e a não
redução de seu conteúdo a constricções jurídicas que percam de vista
sua vocação para satisfação de necessidades.38
Ao observarmos o tratamento jurisdicional dispensado às situações
de conflito fundiário urbano, entretanto, deparamo-nos com um cenário
composto por mais continuidades do que rupturas. Como bem define Jac-
ques Alfonsin, nos múltiplos problemas relacionados ao acesso à terra no
Brasil as soluções jurídicas apresentadas permanecem desconsiderando tal
questão como prioritária.39 O maior indício desse comportamento reside na
sobrevalorização do registro imobiliário, para aferição da propriedade da
terra, dispensando qualquer outra forma de análise que pudesse aventar
a dimensão coletiva dos sujeitos, a violação de direitos fundamentais ou
a má utilização do bem imóvel em litígio pelo proprietário.40
Ao lado da construção de doutrinas jurídicas que almejam uma virada
axiológica no conteúdo dos direitos patrimoniais, parece resistir na atuação
jurisdicional a reprodução de certa “mentalidade” moderna proprietária,
caracterizada pela simplicidade e abstração.41 Conforme descreve Pietro
Barcellona, o proprium, que antes pautava as relações de pertencimento,
converte-se na modernidade em propriedade anônima e passa a configurar
uma “potência objetivada que parece ter vida própria e inclusive passa a
governar as relações entre os homens, que se transformam precisamen-
te, por um lado, em relações entre coisas, e por outro, em relações entre
sujeitos abstratos de direito.” 42

A la abstracción de la propiedad corresponde la abstracción del


sujeto, y solo esto hace posible la transformación del individua-
lismo posesivo originário em uma forma general de organización
de la sociedad: la sociedad de los propietarios libres e iguales.
También aqui reconocemos uma paradoja de la constittuición
de la modernidad, que solo la subjetividad jurídica abstracta
consigue mediar: la propiedad identificada como componente
constitutivo del individualismo, como el propium de la vocación
posesiva, se transforma em pontencia enajenada y coagulada

707
en el objeto que se pone frente al individuo particular como
mercancia o como capital.43

As continuidades que marcam o vigor desta “mentalidade proprietá-


ria”, inaugurada na modernidade jurídica, são em si incompatíveis com
a análise integral dos conflitos fundiários urbanos. Isto porque, estes se
constituem por relações complexas, calcadas em necessidades de sujeitos
concretos, indisponíveis a leituras apriorísticas baseadas unicamente em
registros imobiliários e na adequação formal de títulos de propriedade.

5. ATUAÇÃO DO PODER JUDICIARIO: SELETIVIDADE


E REPRODUÇÃO DA SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL

O espaço urbano representa na atualidade palco privilegiado de dispu-


tas e conflitos que orbitam em torno de sua apropriação e das finalidades
possíveis para o seu uso social. Os confrontos coletivos relacionados ao
acesso à terra urbana para habitação, emergem nesta arena como o re-
sultado dos processos históricos de segregação socioespacial nas cidades
brasileiras, representando situações-limite diante da ausência de realiza-
ção material do direito fundamental à moradia adequada.
Em que pese a existência de arcabouço positivo substancial no que
tange à proteção do direito à moradia - incorporado por meio dos pac-
tos internacionais de direitos humanos, do texto constitucional ou de
leis específicas infraconstitucionais – os conflitos fundiários urbanos
apresentam-se como uma realidade crescente e insuficientemente inves-
tigada tanto na doutrina jurídica, quanto nos casos concretos submetidos
à análise jurisdicional.
A carência de análises empíricas sobre a temática reforça o pioneiris-
mo do Projeto “Conflitos coletivos sobre a posse e a propriedade de bens
imóveis”, desenvolvido pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universida-
de Católica de São Paulo. 44
Muito embora a coletas de informações seja
parcial em relação ao cenário nacional, os dados apresentados permitem
apontar para determinada tendência contemporânea no comportamento

708
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do Poder Judiciário em relação às ações de disputa pela terra urbana. Nesse


espectro, características constitutivas destes fenômenos sociais - como
a dimensão coletiva e evidente repercussão social - aparentemente dei-
xam de ser analisadas em suas peculiariedades. Em verdade, dão lugar à
constrictas elaborações processuais que operam a partir de categorias do
direito privado clássico, por meio das quais se tem admitido a salvaguarda
da propriedade privada e da segurança patrimonial do proprietário como
os principais interesses motivadores da fundamentação decisória.
Das constatações que puderam ser empiricamente aferidas, a primeira
delas diz respeito à ausência de uniformização terminológica na referência
aos conflitos fundiários. As decisões pesquisadas demonstraram que a
doutrina jurídica utilizada para fundamentação das sentenças não invoca
em sua análise parte signficativa dos vocábulos pertinentes às dinâmicas
socioespaciais que constituem o objeto das disputas. Esse comportamento
indica uma lacuna importante na construção de “arcabouço conceitual de
porte na matéria”, cuja ausência é verificável tanto na bibliografia juridica
quanto nas fontes primárias consultadas.
A relevância da não recepção de conceitos que versam especificada-
mente sobre conflitos fundiários urbanos está na atomização destes fenô-
menos sociais e na utilização de institutos inadequados para as demandas,
mormente advindos da dogmática civilista clássica. Com isso, tem-se que
o conteúdo das dinâmicas socioespaciais deixa de ser conhecido pelo Di-
reito que passa a operar sob viés exclusivamente individual e patrimonial,
reforçando o encobrimento do caráter coletivo que lhes é constitutivo.
Exemplo disso é demonstrado pela aludida pesquisa, ao apontar que das
“21 decisões encontradas para as palavras-chave “favela+posse”, em 17 os
réus são pessoas físicas, individualmente consideradas, em alguns casos
inclusive em situação de litisconsórcio passivo.”45
Outro resultado significativo consiste na observação dos fundamentos
utilizados para sustentação das decisões judiciais em casos de conflitos
fundiários urbanos. A investigação do Tribunal de Justiça de São Paulo
e no Tribunal Regional Federal da 3ª Região demonstrou que apenas 4%

709
das fontes pesquisadas versavam sobre a comprovação do cumprimento
da função social do imóvel em litígio. Ao passo que 47% das decisões
fundamentavam-se apenas na comprovação do esbulho possessório ou
na regularidade formal do título de propriedade.46
No que diz respeito aos princípios constitucionais atendidos na decisão
os dados igualmente informam a prevalência da tutela de direitos patrimo-
niais em detrimento da salvaguarda do direito à moradia e da dignidade
da pessoa humana. Nesse sentido, do universo de processos analisados
no Tribunal de Justiça do Paraná e no Tribunal Regional Federal da 4ª
Região, apenas 4,29% invocou a relização do direito social fundamental
à moradia, em contraponto dos quais 52% fundamentaram-se na defesa
da segurança patrimonial da parte proprietária. Ademais, a função social
da propriedade não foi sequer citada como componente do fundamento
das medidas liminares nas ações urbanas. 47
Ainda que de forma preliminar, este cenário permite indicar a falta
de permeabilidade dos conflitos fudiários urbanos, em sua integralidade,
diante do Poder Judiciário. A manutenção do instituto clássico da proprie-
dade privada como núcleo decisório nas disputas pela terra, e o silêncio
jurisdicional acerca das dimensões coletivas e da repercussão social que
envolvem o tema, confirmam a parca aplicabilidade dos instrumentos
jurídicos dedicados à tutela do direito à moradia.
Os dados apresentados trazem à tona o problema da racionalidade pela
qual vem sendo pautada a intervenção jurisdicional em casos de conflitos
fundiários urbanos. Permite ainda sugerir que o comportamento típico
desempenhado pelo Poder Judiciário nestes casos atua como um fator de
reforço à segregação socioespacial urbana, com repercussões decisivas
no aprofundamento das desigualdades espaciais no Brasil. O desafio
contemporâneo está na melhor elucidação dos mecanismos pelos quais
a seletividade das decisões jurisdicionais tem operado, compreendendo
a reconstrução da trajetória de mobilização de determinados institutos
jurídicos; o contexto de sua aplicação, e os possíveis (des) caminhos no
olhar dispensado contemporaneamente aos confrontos coletivos sobre
os territórios das cidades.

710
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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NOTAS

1 Mestre e Doutoranda em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná. Professora de Direito
Civil e Direito à Cidade na Graduação e Pós-Graduação. Sócia-cooperada da Ambiens Sociedade Cooperativa.
Email: giovanna.milano@gmail.com
2 VILLACA, Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estud. av., São Paulo, v. 25, n. 71, Apr.
2 011.p. 37.
3 Idem.
4 SANTOS, Milton. Território e Sociedade — entrevista com Milton Santos. 2ª ed. 4ª reimpressão. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.p. 26.

712
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

5 Ibidem. p. 54.
6 HARVEY, David. Espaços de Esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2009. p. 108.
7 VILLACA, Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estud. av., São Paulo, v. 25, n. 71, Apr.
2011. p. 37.
8 A utilização dos termos é controversa mesmo na doutrina especializada sobre o assunto. Neste trabalho
utilizamos os termos assentamentos irregulares ou ocupações informais com o objetivo de abarcar o maior
número de situações de precariedade habitacional que compreendam situações de informalidade jurídica,
urbanística, dentre outras. O termo assentamentos irregulares é empregado neste sentido pelo jurista Nelson
Saule Junior, que com ele faz alusão à formações socioespaciais identificadas com assentamentos informais,
favelas e cortiços.
9 O autor define a segregação urbana “como a forma de exclusão social e de dominação que tem uma di-
mensão espacial”. VILLACA, Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estud. av., São Paulo,
v. 25, n. 71, Apr. 2011. p. 37-41. Já para Peter Marcuse, segregação corresponde ao “processo pelo qual um
grupo populacional é forçado, involutariamente, a se aglomerar em uma área espacial deinida, em um gueto.
É o processo de formação e manutenção de um gueto”. Cf. MARCUSE, Peter. Enclaves, sim; guetos, não: A
segregação e o Estado. In Espaços & Debates – Revista de Estudos Regionais e Urbanos. v.24, n.45.
São Paulo: Núcleo de Estudos Estudos Regionais e Urbanos, 2004. p.24
10 SANTOS, Boaventura de Souza. O Estado, o direito e a questão urbana. In FALCÃO, Joaquim de Arruda.
(org.) Invasões urbanas: conflito de direito de propriedade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p.37
11 MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias- Planejamento urbnao no Brasil. In: A
cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Otília Arantes;Carlos Vainer; Ermínia Maricato
– Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 154-155
12 RIBEIRO, Ana Clara Torres. Dimensiones culturales de la ilegalidad. In Espacios urbanos no con-sentidos:
legalidade e ilegalidade em la producción de ciudad. Colombia y Brasil. Medellín, Colombia: Universidad
Nacional de Colombia, 2005.p. 30
13 RIBEIRO, Ana Clara Torres. Dimensiones culturales de la ilegalidad. In Espacios urbanos no con-sentidos:
legalidade e ilegalidade em la producción de ciudad. Colombia y Brasil. Medellín, Colombia: Universidad
Nacional de Colombia, 2005.p. 30
14 Esta definição foi elaborada pelo Observatório Permanente de Conflitos Urbanos, vinculado ao Instituto
de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Acesso disponível em http://
www.observaconflitos.ippur.ufrj.br.
15 VAINER, Carlos “Visão do Movimento Social, da Universidade e do Governo Federal sobre a Pre-
venção e Mediação dos Conflitos Urbanos.” In. Palestra proferida no Seminário Nacional Prevenção e
Mediação de Conflitos Fundiarios Urbanos. Ministério das Cidades: 2007. p.1.
16 Ibidem. p. 2
17 Ibidem. p. 4
18 Idem.
19 VAINER, Carlos “Visão do Movimento Social, da Universidade e do Governo Federal sobre a Pre-
venção e Mediação dos Conflitos Urbanos.” In. Palestra proferida no Seminário Nacional Prevenção e
Mediação de Conflitos Fundiarios Urbanos. Ministério das Cidades: 2007. p.5.
20 SCHERER-WARREN, Ilse. Estado e Lutas sociais: participação e conflito na produção do espaço.In
Ambiens Sociedade Cooperativa (org.) Estado e lutas sociais: intervenções e disputas no território. Curitiba,
Kairós, 2010.p. 260.
21 Idem.
22 VAINER, Carlos “Visão do Movimento Social, da Universidade e do Governo Federal sobre a Pre-
venção e Mediação dos Conflitos Urbanos.” In. Palestra proferida no Seminário Nacional Prevenção e
Mediação de Conflitos Fundiarios Urbanos. Ministério das Cidades: 2007. p.5.
23 A elaboração do conceito de conflitos fundiários urbanos é apresentada pela Resolução Recomendada
n.º87, de 8 de dezembro de 2009. Trata-se de documento em vigência, aprovado pelo Conselho Nacional das
Cidades e recomendado ao Ministério das Cidades.
24 O Conselho Nacional das Cidades foi criado em 2004 e possui natureza deliberativa e consultiva, integrando
a estrutura do Ministério das Cidades. Possui como maior finalidade o monitoramento e a propositura de dire-
trizes para a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano – PNDU .Atualmente o ConCidades é composto por
86 titulares, dentre os quais 49 membros pertencentes à sociedade civil e 37 representantes do poder público
(federal, estadual e municipal).
25 Segundo esclarece Nelson Saule Junior o “direito à moradia no direito interncional dos direitos humanos
tem como fonte originária a Declaração Universal dos Direitos Humanos que, apesar de não ter valor jurídico,
contém um núcleo de direitos da pessoa humana, que foram incorporados nos tratados internacionais de
direitos humanos. A moradia é reconhecida como uma necessidade básica da pessoa humana, com base na
concepção da Declaração Universal dos Direitos Humanos sobre o direito a um padrão de vida adequado.”Cf.

713
SAULE JUNIOR, Nelson.A proteção juridica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor,2004. p.89. Desde a Declaração Universal, muitos instrumentos de proteção in-
ternacional de direitos humanos dedicaram-se ao tema, dos quais se pode mencionar: Pacto Iternacional dos
Direitos Econônomicos, Sociais e Culturais (1966); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Politicos (1966);
Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação Racial (1965); Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança (1989); Convenção Internacional de Proteção dos Direitos de Todos
os Trabalhadores Migrantes e Membros de Sua Família (1977); Convenção Internacional Sobre o Estatuto
dos Refugiados (1951). Em âmbito nacional, é preciso mencionar a Constituição Federal, que pioneiramente
dedicou capítulo específico à Política Urbana; o Estatuto da Cidade (Lei n.º10.257/2001); a Lei n.º 11.977/2009,
que versa sobre a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, além de outras
legislações esparsas que complementam o quadro legal urbanístico brasileiro.
26 Segundo informações fornecidas pelo Ministério das Cidades o registro de conflitos fundiários urbanos
cresceu em 200% desde o ano de 2009. Cf. Jornal Estado São Paulo (2012). “Denúncias de conflitos fundiários
cresceram 200% em três anos no Brasil”, 14 de março. A ausência de diagnóstico específico sobre o assunto,
entretanto, faz com que os números não conduzam a conclusões sobre a totalidade e a territorialidade estas
ocorrências, nem tampouco permitam comparações definitivas em relação a outros períodos históricos.
27 A este respeito, é possível citar o Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV – instituído pela Lei n.º11.977,
de 7 de julho de 2009.
28 ROLNIK, Raquel. (2012). “Conflitos por moradia estão aumentando no Brasil”. Le Monde Diplomatique
Brasil, 6 de fevereiro.
29 ROLNIK, Raquel. (2012). “Conflitos por moradia estão aumentando no Brasil”. Le Monde Diplomatique
Brasil, 6 de fevereiro.
30 Conforme estimativas apresentadas no Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa “Me-
gaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil”, cerca de 170 mil pessoas encontravam-se ameaçadas
de despejo em função dos megaeventos esportivos. “Via de regra são comunidades localizadas em regiões
cujos imóveis passaram, ao longo do tempo, por processos de valorização tornando-se objeto da cobiça dos
que fazem da especulação com a valorização imobiliária a fonte de fabulosos lucros. Evidentemente, os mo-
tivos alegados para remoção forçada são outros: favorecer a mobilidade urbana, preservar as populações em
questões de risco ambientais e,mesmo, a melhoria de suas condições de vida, ainda que a sua revelia e contra
sua vontade.” Cf. Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa “Megaeventos e Violações
de Direitos Humanos no Brasil”. p.18.
31 Cf. Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos, estabelecida na Resolução
n.º87, de 8 de dezembro de 2009 do Conselho Nacional das Cidades.
32 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais
e a construção do novo modelo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva,2011.p. 407
33 GEDIEL, José Antônio Peres. Memorial apresentado ao Concurso Público para a Classe de Professor Titular
de Direito Civil, do Departamento de Direito Civil e Processual Civil, do Setor de Ciências Jurídicas, da Univer-
sidade Federal do Paraná — UFPR. Texto inédito. p. 61. Para um maior aprofundamento nas reflexões que vem
sendo elaboradas sob a perspectiva do direito civil-constitucional, consultar: PIERLINGIERI, Pietro. Perfis do
direito civil. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
34 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 18.
35 FACHIN, Luiz Edson. “Homens e mulheres do chão levantados.” In questões do direito civil contem-
porâneo. Rio de Janeiro: Renovar,2008.p. 56.
36 TEPEDINO, Gustavo; SCHEREIBER, Anderson.O Papel do Poder Judiciário na Efetivação da Função Social da
Propriedade. In STROZAKE, Juvelino José. (org.). questões agrárias. Julgados, comentários e pareceres.
São Paulo: Editora Método, 2002. p.40.
37 FACHIN, Luiz Edson. “Homens e mulheres do chão levantados.” In questões do direito civil contem-
porâneo. Rio de Janeiro: Renovar,2008.p. 65.
38 FACHIN, Luiz Edson.Função social da posse e a propriedade contemporânea (uma perspectiva da
usucapião imobiliária rural). Porto Alegre: Fabris, 1988.p. 21. Para um maior aprofundamento sobre o tema da
autonomia da posse e sua função social, consultar: GIL, Antonio Hernández. La función social de la posesión
(Ensayo de teorización sociológico-jurídica). Madrid: Alianza Editorial, 1969.
39 ALFONSIN. Jacques Távora. O acesso à terra como conteudo de direitos humanos fundamentais à
alimentação e à moradia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.p 115
40 Ibidem.p. 116
41 STAUT JUNIOR, Sérgio. Cuidados Metodológicos no Estudo da história do Direito de Propriedade.
Revista da Faculdade de Direito da UFPR, América do Sul, 42 2006. p. 162.
42 BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietário. Madrid: Editorial Trotta, 1996. p. 48. Livre tra-
dução da autora.
43 Tradução livre. Afirma o autor: “À abstração da propriedade corresponde a abstração do sujeito, e só isto

714
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

torna possível a transformação do individualismo possessivo originário em uma forma geral de organização
da sociedade: a sociedade dos proprietários livres e iguais, Também aqui reconhecemos um paradoxo da
constituição da modernidade, que só a subjetividade jurídica abstrata consegue mediar:a propriedade identi-
ficada como um componente do individualismo, como o proprium da vocação possessiva, se transforma em
potencia alienada e coagulada que se põe a frente do indivíduo particular como mercadoria ou como capital.”
BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietário. Madrid: Editorial Trotta, 1996. p. 48.
44 A pesquisa citada foi realizada no âmbito do “Projeto Pensando o Direito” (Convocação 02/2009), desen-
volvido pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em parceria com o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Entitulada “Conflitos coletivos sobre a posse e a propriedade
de bens imóveis”, a investigação foi conduzida pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
sob a coordenação acadêmica dos professores da Faculdade de Direito - Nelson Saule Júnior, Daniela Libório e
Arlete Inês Aurelli. Para conclusão dos trabalhos, houve a colaboração de outras entidades da sociedade civil
que participaram da coleta e análise dos dados, quais sejam: Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos –
COHRE; Pólis Instituto de Estudos Formação e Assessoria em Políticas Sociais e Organização Terra de Direitos.
45 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Direito. Sumário executivo – Relatório de pes-
quisa “Conflitos coletivos sobre a posse e a propriedade de bens imóveis” . Série Pensando o direito.
nº7/2009. – versão publicação. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, 2009. p. 38
46 Ibidem. p. 66-67.
47 Ibidem. p. 67

715
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Estado, Direito e
a política urbana

Tiago Gonçalves da Silva1

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objeto de estudo a mediação dos conflitos


executada pela ação do Estado, efetuada no desenvolvimento da política
urbana, através do Direito. Entende-se por assentamentos irregulares as
áreas de baixa renda, construídas como solução habitacional das classes
menos favorecidas da população, que se expandem nas grandes cidades
brasileiras como resultado do urbanismo capitalista excludente, bem
como de uma política de desenvolvimento urbano também excludente,
fortemente influenciada pelo modo de produção capitalista. A mediação
dos conflitos é, por sua vez, concebida como o conjunto de medidas pro-
movidas pelo estado para dispersão dos conflitos sociais, inerentes ao
processo de acumulação capitalista regido pelo próprio estado.
Para identificação desta ação política do estado recorre-se, neste traba-
lho, a uma metodologia trabalhada por Boaventura de Souza Santos (1984).
Enuncia-se como uma teorização sociológica do direito com capacidade
de promover a análise da mobilização política do direito nas lutas urbanas
do Recife. Para realização da análise da mediação dos conflitos, através
da política urbana, pretende-se demonstrar a caracterização do Estado
e do Direito, bem como a relação existente entre os conceitos, e como
influenciam a resolução dos conflitos existentes na sociedade, através da
política, neste caso, precisamente, pelo que se denomina política urbana.

717
2. O ESTADO COMO CONSOLIDAÇÃO DA DOMINAÇÃO

No Estado capitalista existe sempre uma vertente dominante constituída


pelas relações sociais de produção, caracterizando-se na lógica do capital
e no processo de acumulação regido por ela. A lógica do capital é a lógica
da luta de classes. A articulação social dominante confere ao Estado força
para continuação do processo de acumulação, revelando-se um contínuo
processo de exploração das camadas desprovidas dos meios de produção.
Todavia, é possível identificar a natureza conflitual da lógica do capi-
tal, pois, se baseia nas relações de exploração, visando mais acumulação
do capital, ao mesmo tempo em que se constitui numa seara política de
igualdades e liberdades individuais. Essa contradição permeia a formação
do Estado capitalista, pois, são asseguradas as condições de reprodução
das relações de exploração, ao mesmo tempo em que se garantem a
igualdade e a liberdade da população inserida no mercado de trabalho.
O Estado se constitui como parte do processo de acumulação capita-
lista, e ao mesmo tempo, estabelece através do processo de acumulação
e das relações sociais produzidas por ele, os limites de atuação do próprio
Estado capitalista.
A luta de classe é responsável pelo dinamismo econômico do capita-
lismo, acelerando o processo de desenvolvimento das forças produtivas.
Essa luta expandiu o papel do Estado no sentido da regulação econômica
e da provisão de serviços. Verifica-se que as contradições do Estado são
o resultado da ação direta dos grupos subordinados e dominantes, agin-
do tanto no setor de produção como no Estado para manter ou ampliar
conquistas materiais e influência ideológica.
O Estado democrático liberal e a produção capitalista são estruturas
distintas cuja articulação é contraditória, pois o Estado concede direito
tanto aos cidadãos quanto ao Capital. A respeito disso, Poulantzas (2000)
2
traz um apontamento importante, chamando atenção sobre o papel do
Estado e a formação da ideologia dominante.
No Estado capitalista a função política geral do Estado consiste em

718
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dispersar as contradições do modo de produção capitalista e das lutas


de classes, concordando com o conceito de função do Estado apontado
por Engels que seria a de manter o domínio de uma classe sobre a outra.
O Estado caracteriza-se como forma política das relações sociais, se
constituindo numa relação entre as instituições políticas e as forças eco-
nômicas, a política expressando os interesses da sociedade e a economia
os interesses particulares. “Esta relação entre o político e o econômico
pressupõe uma mediação que seja simultaneamente exterior e superior
tanto ao político como ao econômico. Essa mediação é o direito” (SAN-
TOS, 1984:09/10).
O papel de mediador exercido pelo Estado é explicado por Bobbio
(1987)3, relacionando com a existência de uma sociedade dividida em
classes organizadas.
Neste sentido, Boaventura Santos (1984) traz uma importante teoria
sobre os mecanismos de dispersão de conflitos, constituindo-se na Te-
oria da Dialética Negativa do Estado, através da qual, afirma que
a mediação dos conflitos realizada pelo Estado é o modo de dispersão
das contradições do próprio Estado, bem como, da manutenção das lu-
tas sociais em níveis funcionais condizentes com os limites estruturais
necessários à manutenção do processo de acumulação e das relações
sociais de produção. A dispersão se caracteriza como um conjunto arti-
culado e diversificado de mecanismos distintos, tais quais: mecanismos
de socialização/integração, mecanismos de trivialização/neutralização
e mecanismos de repressão/exclusão.
Segundo este mesmo autor, os mecanismos de dispersão podem ser
utilizados de forma separada, conjunta ou até em seqüência, dependen-
do das condições históricas existentes, bem como, da forma da luta de
classes e das estruturas estatais vigentes, e ainda, da área de atuação do
mecanismo em relação à tensão ou questão social manifestada.
Boaventura Santos diz ainda que: “os mecanismos de dispersão estão
presentes em todas as políticas sectoriais do Estado e são acionadas, pre-
ferencialmente, através do direito que, como ficou dito, é a instância de

719
mediação, por excelência, entre o político e o econômico nas formações
sociais capitalistas” (1984: 17).
A separação formal existente entre o Estado/Político e o Estado/Direito
é uma relação social, objeto de contradições e lutas sociais, ou seja, são
passíveis de pressões e, consequentemente, transformações nos mo-
mentos de acionamento dos mecanismos de dispersão das contradições,
modificando a intensidade da dominação e legitimação do Estado, bem
como, alterando os limites estruturais impostos sobre a ação do próprio
Estado no processo de acumulação e pelas relações sociais geradas.
O político e o econômico adquirem um novo conceito, através da seara
jurídica, e se transformam numa ordem universal, igualitária e livre, atra-
vés da qual, é produzido o espaço ideológico que o Estado atua, de forma
descompromissada, nos instrumentos de reprodução das relações sociais
de produção. Dinamismo, flexibilidade e complexidade da práxis jurídica
nas formações sociais capitalista faz do direito a instância privilegiada de
mediação entre o político e o econômico.

3. O DIREITO COMO INSTâNCIA MEDIADORA DO ESTADO

O Direito é um sistema coercitivo, constituído de normas que visam


regular o bem estar da sociedade. “É uma técnica social que consiste em
ocasionar a conduta social desejada dos homens por meio da ameaça de
coerção no caso de conduta contrária” (KELSEN, 2001: 230). É produto das
transformações sociais que se desenvolve ao longo dos tempos, acompa-
nhando a evolução do pensamento vigente na sociedade, visando dirimir
os conflitos existentes.
A história do Direito está ligada ao desenvolvimento das civilizações.
Em cerca de 1760 a.c., o Rei Hamurábi determinou que o direito babilô-
nico fosse codificado e inscrito em pedra para que o povo pudesse vê-
-lo no mercado: o chamado Código de Hamurábi foi uma das primeiras
legislações escritas.
A formação do Estado moderno condicionou a concentração do poder

720
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de criar o Direito, seja pela criação das leis, ou pelo reconhecimento e


controle das demais fontes do Direito, tais como o costume e a equidade.
Consolida-se paulatinamente o fortelecimento do Direito Positivo. Carac-
terizado como o conjunto de normas em vigor ditadas e impostas pelo
Estado em seu próprio território. O Direito Positivo é necessariamente
peculiar ào Estado que o criou, variando de acordo com as condições
sociais vigentes na época de sua criação.
A primeira postulação sobre a distinção entre o Direito Positivo, con-
solidado na Lei elaborada pelos homens, e o Direito Natural foi elencada
pelos filósofos gregos, sendo, posteriormente, recepcionada pelo Direito
Romano. O Direito Natural foi definido como o direito posto pela razão
natural, observado entre todos os povos e de conteúdo imutável, o que
corresponde à definição de direito natural.
A importância do Direito Natural para o Direito atual vêem do movi-
mento racionalista jurídico do século xVIII, que concebia a razão como
base do direito e propugnava a existência de um direito natural acima do
direito positivo. Este direito natural seria válido e obrigatório por si mes-
mo. O direito natural representou, historicamente, uma forma de embate
sobre à ordem jurídica imposta pelas monarquias absolutistas, e com o
advento das revoluções liberais, notadamente a Revolução Francesa de
1789, teve início um processo de codificação das leis, orientado pela razão
e baseado nos princípios do direito natural.
A partir desta discussão, dois pensamentos se constituíram nas cor-
rentes primordiais sobre o entendimento do Direito. Os “jusnaturalistas”
e, em contraposição, os “juspositivistas”, que só reconhecem a existência
do direito positivo, rejeitando a tese da existência de um direito eterno,
imutável e geral para todos os povos, afirmando que direito é apenas as
normas elaboradas pelo poder do Estado.
A distinção entre o Direito Natural e o Direito Positivo perdeu parte da
sua força, tendo em vista, a incorporação dos direitos e liberdades funda-
mentais à codificação do direito positivo, notadamente, nas Constituições
modernas, bem como, na consolidação do Estado moderno e o monopólio
da produção jurídica.

721
O entendimento de justiça como um direito socialmente garantido a
todos foi absorvido pelo Estado e pelo aparato dogmático do Direito. É “a
instituição social que nas sociedades contemporâneas tem a pretensão
de concretizar o justo” (FALCÃO, 1984:80).
Falcão (1984)4 explica sobre a aplicação do direito positivo estatal ser
o caminho para a pratica da justiça social.
O Direito é fenômeno influenciado pela luta política entre diferentes
classes sociais, ou seja, também, está sujeito ao desenvolvimento das
relações de produção existente em determinado momento histórico. É
moldado pela correlação de forças de uma sociedade. Toda legislação traz
pensamentos e ideologias determinadas pela luta de classes, ou seja, o
Direito estatal é fruto das relações sociais de produção capitalista, impos-
tas pela correlação de forças existentes, incorporando os pensamentos
reivindicações dos grupos dominantes, tais como se verifica no conceito
de propriedade, disciplinado pela legislação civil brasileira de 1916 e a
atual codificação de 2002.
Oliveira5 tece considerações sobre o assunto, apontando a perspectiva
que alguns doutrinadores adotam
Boaventura Santos (1984) aponta para a crescente fragmentação da
própria práxis jurídica estatal, ou seja, diversos são os modos de juridicida-
de inerentes ao Direito vigente, e quanto maior for essa diversidade, mais
importantes serão as ações sociais e políticas decorrentes da opção entre
estratégias jurídicas alternativas por parte das classes e grupos sociais em
luta. É essa crescente fragmentação da práxis jurídica estatal que propicia
a ação de dispersão dos conflitos por parte Estado capitalista.

4. A POLÍTICA URBANA COMO MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

A partir das palavras que compõem a expressão Política Urbana, é


possível extrair sua função principal que é a organização das cidades,
feito através de metas traçadas e executadas pelo Poder Público visando
ordenar o crescimento urbano, atuando em diversas frentes, tais como:

722
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

habitação, saneamento, transportes e regularização fundiária.


A atividade urbanística caracteriza-se na ação do poder público para
ordenamento dos espaços habitáveis. Trata-se de uma atividade para
organização dos espaços que vivem o Homem. Uma ação como essa, é,
primordialmente, realizada pelo poder público, mediante interferência
na propriedade privada e nas organizações econômicas e sociais exis-
tentes nos espaços urbanos. A política urbana, normalmente, é realizada
mediante autorização legislativa, pois, limita os direitos de propriedade,
visando o interesse da coletividade.
A pertinência do trato constitucional da política urbana reside em sua
significação de ordem pragmática. É notória a necessidade do planeja-
mento urbano sob dois aspectos: a vinculação dos cidadãos; bem como,
a vinculação do próprio Poder Público que, apesar de elaborar as ações
da política urbana, deve também respeitá-la. Esta dicotomia Sociedade
x Estado deve ser superada, e a política urbana, à medida que busca um
equilíbrio, se constitui como um meio para isto.
Todavia, a ação do Estado é favorecida pela utilização das normas
impostas pelo direito, tendo em vista a diversificada estrutura da política
urbana. As políticas de desenvolvimento urbano utilizam instrumentos
normativos em quase todas as suas ações.
A questão fundiária urbana é geralmente identificada como um proble-
ma social gerado a partir do crescimento acelerado e desorganizado das
cidades nas sociedades capitalistas. Tentam dissociar a política urbana do
modo de produção de acumulação capitalista, constituindo-se um grande
equívoco, visivelmente percebido no mercado imobiliário vigente, que
privilegia uma determinada faixa da população que pode pagar o valor
imposto pelos imóveis, provocando a falta de moradia às camadas menos
abastadas da população.
Verifica-se que Boaventura Santos (1984)6 trata desta questão, iden-
tificando a concepção que o Estado capitalista trata a política urbana.
O Estado capitalista tem sido incapaz de produzir transformações
decisivas no estatuto da terra, limitando-se a intervenções marginais

723
destinadas a manter sob controle as tensões sociais dele decorrentes.
“No caso específico do equacionamento e solução da questão fundiária
urbana e do problema da habitação popular, quer-se resolver o problema
da habitação sem resolver a crucial questão institucional da propriedade
da terra” (PESSOA, 1984:189).
Na verdade, o crescimento das cidades brasileiras tem acompanhado
a um grande processo de exclusão social, determinando as alternativas à
população pobre para suprir o problema de moradia, criando e formando
assentamentos a margem da ação do Estado, tais como as favelas, total-
mente, carentes de infra-estrutura e serviços públicos básicos.
A ação do Estado capitalista na estrutura urbana visa dirimir ou mediar
os conflitos existentes, suavizando a situação de exclusão, mantendo o
processo de acumulação e de produção social dominante, deixando o
conflito para um momento posterior, ou, até mesmo para uma área di-
ferente da cidade. O objetivo não consiste em resolver o problema, mas
deixá-lo em níveis toleráveis com as exigências necessárias ao modo de
acumulação capitalista em determinado momento histórico. Utilizando-
-se para este fim, os mecanismos de dispersão disponíveis, neste caso
através da política urbana.
No entanto, em que pese o tom pessimista do texto exposto, os meca-
nismos de dispersão das contradições emergentes das relações sociais de
produção capitalista acionados no domínio fundiário urbano e habitacional
são expressões da luta de classes, ou melhor, dizendo, a política urbana
implementada pelo Estado capitalista, também, está sujeita às pressões dos
movimentos sociais, ligados às camadas da sociedade não vinculadas ao
capital. Muitas vezes, os direitos perseguidos pelas classes dominadas são
reconhecidos e torna-se parte integrante do Estado, tais como na ocasião
da aprovação da legislação federal conhecida como Estatuto da Cidade e,
em nível municipal, da promulgação da Lei do Prezeis, ambas as legisla-
ções, fruto das lutas dos movimentos sociais, ligados a questão urbana.
Nos últimos anos, a estratégia da legitimação política tem mudado no
Brasil com a retomada da democracia, repercutindo no direito público,

724
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

estendendo-se, também ao direito privado, que muitas vezes recepcionam


normas disciplinadas fora do ambiente do Estado, influenciadas pela luta
dos movimentos sociais.
Consubstanciando essa argumentação, Joaquim Falcão (1984)7 cita
a crise de legitimidade do regime posto e, também, se posiciona sobre a
pretensa posição do Direito estatal sobre a ordem jurídica da sociedade:
“a pretensão do direito estatal em se constituir na única forma jurídica
da sociedade é apenas uma ambição totalitária de rara concretização.
Na maioria das vezes o direito estatal é apenas hegemônico ou domi-
nante” (1984).
Neste sentido, é possível identificar o processo de invasões de terras,
que se intensificaram no Brasil no período de retomada da democratiza-
ção, como uma justificativa dos invasores de terra para prevalência do
direito a moradia, sobre o direito de usar e dispor a terra segundo a livre
vontade do proprietário.
Os conflitos de propriedade traduzidos como as invasões urbanas são
manifestações políticas promovidas pela sociedade civil, mais precisa-
mente, pelas classes menos favorecidas, deixadas totalmente a margem
do modo de produção capitalista.
Diferentes soluções são pensadas para resolução dos conflitos advindos
das invasões urbanas, mas, na analise realizada por Joaquim Falcão (1984),
através de nove casos de invasão de propriedade urbana por população
de baixa renda, ocorridos na Região Metropolitana do Recife entre 1963 e
1980, foi identificado que o equacionamento dos conflitos se deu através
de dois tipos de processo: a negociação e a ação judicial. Constituindo-se
a ação judicial como um único remédio jurídico regular para resolução
dos conflitos, considerado pela doutrina jurídica dominante no Brasil; a
negociação se caracteriza como um processo não regulado pelo direito
estatal pátrio.
Essa orientação jurídica vigente se dá pela predominância do direito de
propriedade, perante os aplicadores do ordenamento jurídico brasileiro,
inclusive, integrando a execução das ações da política urbana desenvol-
vida pelo Estado.

725
Recentemente, Fernandes (2001) afirmou que três paradigmas têm
orientado a análise jurídica dos processos de urbanização, integrantes
da política urbana desenvolvida, que expressa enfoques conflitantes no
tocante aos direitos de propriedade. São os determinados pelo Código Civil;
os do Direito Administrativo, bem como o enfoque mais amplo adotado
pelos estudos sócio-jurídicos.
No entanto, o paradigma dominante ainda é o proposto pelo Código
Civil. O tratamento liberal e individualista dado pelo Código Civil à questão
dos direitos de propriedade tem orientado a maioria das decisões judiciais
e coloca obstáculos para as tentativas de ação do Estado no controle do
uso, ocupação e desenvolvimento da terra urbana.
Foi em grande medida por causa dessa visão dominante que o processo
de urbanização brasileiro foi basicamente conduzido por interesses priva-
dos e, na maioria das vezes, solucionava apenas um aspecto do problema,
utilizando o direito como único caminho existente, dispersando o conflito.
“O Estado ao aplicar, criar ou mudar a lei com o escopo de solucionar um
conflito de solo urbano, está ao mesmo tempo dispersando e criando novas
contradições porque apenas administra o problema temporariamente”.
(MOURA, 1985:78).
Todavia, já é possível verificar o desenvolvimento do tema da política
urbana em diversas legislações. É mais evidente na Constituição Federal
de 1988 e na regulamentação dos seus artigos 182 e 183, através da pro-
mulgação da Lei Federal nº 10.257/01, o chamado Estatuto das Cidades,
bem como no Código Civil Pátrio.
A política urbana pela primeira vez foi tratada em âmbito constitu-
cional pela Constituição Federal de 1988. Isto decorreu do processo de
urbanização acelerado por qual passou o Brasil. Não restam dúvidas que
foi tendo em vista os problemas decorrentes da urbanização desordenada
que o constituinte originário de 1988 trouxe ao viés constitucional alguns
meios de compatibilizar o conceito de propriedade do Código Civil, que
permite o usar, gozar e usufruir da propriedade quase ilimitadamente, às
novas necessidades pragmáticas.

726
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A Constituição Federal de 1988 dispôs nos seus artigos 182 e 183 sobre
importantes instrumentos jurídicos e urbanísticos que podem ser aplicados
para fins de organização e ordenamento das cidades, tais como: o plano
diretor, parcelamento ou edificação compulsória, imposto sobre a pro-
priedade territorial urbana, desapropriação para fins de reforma urbana.
Instituíram, também, a usucapião urbana e a concessão especial para fins
de moradia como instrumentos específicos de regularização fundiária.
Atribuiu ao Município à competência preponderante para dispor sobre
a política e a legislação urbana, condicionando o exercício do direito de
propriedade urbana ao cumprimento da sua função social.
A função social da propriedade deverá ser o princípio norteador para
estabelecimento da política urbana, e o Município, com base na legislação
e, em especial através do plano diretor, o principal responsável pela for-
mulação, implementação e avaliação permanentes da sua política urbana,
visando garantir para os cidadãos o direito à cidade e a justa distribuição
dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização.
A Constituição Federal apresenta, também, os princípios da moralidade,
legalidade, impessoalidade que devem nortear a atuação e a decisão do
administrador, devendo ser considerados no momento da escolha dos
instrumentos para política urbana.
Visualiza-se através do princípio da legalidade como o direito relaciona-
-se ao desenvolvimento da política urbana em geral, estando intrínseco a
praticamente todo o tipo de ação, como afirma Bacelar Filho8.
A instituição da usucapião urbana e da concessão de uso para fins de
moradia conferiu uma oportunidade essencial para a promoção da regu-
larização fundiária de áreas urbanas ocupadas por população de baixa
renda. A Constituição, no seu artigo 183, reconhece o direito ao domínio
de quem possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e
cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem
oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, desde que não
seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
A regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal

727
através da promulgação do Estatuto das Cidades traz um novo impulso
para compreensão do potencial teórico e prático do capítulo referente à
política urbana, instrumentalizando a luta das classes menos favorecidas,
e, também, tornando mais fácil a mediação dos conflitos, promovida pelo
Estado, dentro dos limites estruturais atuais necessários a manutenção
do processo de acumulação capitalista.
O Estatuto da Cidade define princípios e objetivos, diretrizes de ação e
instrumentos de gestão urbana a ser utilizado principalmente pelo Poder
Público municipal e determinou que a política urbana tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
propriedade urbana.
Dispõe ainda sobre os instrumentos jurídicos, urbanísticos e tribu-
tários que podem garantir eficácia ao Plano Diretor e ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.
Enumera instrumentos da política de desenvolvimento urbano, como o
parcelamento, a edificação e a utilização compulsórios, o imposto sobre
a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo, a de-
sapropriação com pagamento em títulos da dívida pública, o usucapião
especial coletivo, o direito de superfície, o direito de preempção, a outorga
onerosa do direito de construir, as operações urbanas consorciadas e a
transferência do direito de construir.
Essa nova legislação trouxe a possibilidade de modificar entendimentos
conservadores em relação ao direito de propriedade e imprimir mudanças
no sentido do cumprimento do preceito constitucional da função social
da propriedade, pois, o Município, ao dispor de poderosos instrumentos
jurídicos, urbanísticos e tributários, poderá certamente contribuir para
minimizar os graves problemas urbanos das cidades brasileiras, regulari-
zando grande parte do seu solo e beneficiando milhares de famílias com
o acesso à moradia regularizada.
Os novos instrumentos do Estatuto da Cidade vêm viabilizar o tra-
tamento especial das áreas ocupadas por população de baixa renda,
reconhecendo o direito de permanência dos moradores que ali estão, e

728
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

reconhecendo através de diversas formas a posse da terra. Esta reivindi-


cação antiga dos ocupantes propicia melhorias nas moradias, uma vez
garantidas sua permanência, desonerando parte dos investimentos pelo
poder público. Também lhes confere o direito a um endereço e os insere
como credores aos sistemas de financiamento, parte da cidadania que
todos devem ter.
No entanto, é possível ilustrar a temática da política urbana como
instância de mediação de conflitos, observando a recente pesquisa “Rede
Avaliação e Capacitação para a Implementação dos Planos Diretores Par-
ticipativos”, realizada pelo Ministério das Cidades – Governo Federal, em
parceria com o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), a Rede Observa-
tório das Metrópoles e a ONG FASE, objetivando estruturar um processo
de acompanhamento e monitoramento da implementação dos Planos
Diretores Participativos no Brasil.
A pesquisa foi executada a partir da leitura das Leis dos Planos Dire-
tores, analisando cinco questões principais, tais como: a) Acesso à terra
urbanizada (incluindo os instrumentos para a gestão da valorização
imobiliária); b) Acesso aos serviços e equipamentos urbanos, com ênfa-
se no acesso à habitação, ao saneamento ambiental e ao transporte e à
mobilidade; c) Sistemas para a gestão e a participação democrática; d)
Questões transversais, como gênero e políticas afirmativas; e) Grau de
autoaplicabilidade das definições.
O resultado obtido na avaliação da pesquisa indica que diversos instru-
mentos normatizados pelo Estatuto das Cidades foram incorporados aos
textos normativos dos Planos Diretores, no entanto, a aplicação efetiva,
deixou a desejar e, em muitos casos, ainda se exige uma regulamentação
por lei específica.
Por outro lado, ainda sob a perspectiva da pesquisa mencionada acima,
foi construída efetivada uma análise qualitativa dos textos aprovados, bem
como das condições para sua implementação, sendo possível identificar
avanços positivos para o processo de efetivação dos Planos Diretores

729
Participativos. Entre estes, destacou-se: 1) A retomada das Discussões
físico-territoriais no âmbito do Planejamento Municipal; 2) A Participa-
ção no Processo de Elaboração dos Planos Diretores; 3) Incorporação da
questão ambiental; 4) O Reconhecimento da Conservação de Imóveis de
Preservação Histórico e Cultural; 5) A criação de espaços institucionais
para acompanhamento da implementação dos planos.
No âmbito da legislação municipal do Recife a política urbana foi
expressa pela Lei Orgânica, promulgada em 1990, e ainda em vigor, ao
determinar que seja instituída e implementada pelo Município de acordo
com as diretrizes gerais fixadas nas legislações federal e estadual, com o
objetivo de organizar, ordenar e dinamizar as funções sociais da Cidade
e da propriedade urbana.
A lei orgânica recepcionou diversos instrumentos jurídicos contidos
no Estatuto da Cidade, descrevendo-os como instrumentos da política
urbana desenvolvida pelo Município, tais como: plano diretor, legislação
de parcelamento, ocupação e uso do solo, de edificações e de posturas, o
plano de regularização das zonas especiais de interesse social - PREZEIS,
a concessão do direito real de uso, a desapropriação por interesse social,
necessidade ou utilidade pública e o usucapião urbano.
A Lei Orgânica disciplinou que o plano diretor será instrumento de
ordenamento da ação do Município para promoção do desenvolvimento
do sistema produtivo com a devida integração das parcelas marginaliza-
das da população, objetivando uma justa redistribuição de renda e dos
recursos públicos; da participação e controle social nas ações da munici-
palidade e o amplo acesso da população à informação, no que se refere a
planejamento, programas, projetos e orçamento municipal; da definição
da configuração urbanística da cidade, orientando a produção e uso do
espaço urbano, tendo em vista a função social da propriedade.
Verifica-se que essa legislação municipal busca garantir uma maior par-
ticipação da população nas decisões políticas, referentes ao ordenamento
espacial da cidade. No entanto, deixa essas ações políticas às vontades
discricionária do executivo, ou seja, o Estado, caracterizado como o Muni-

730
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

cípio do Recife, utilizando-se de instrumento jurídico, a lei orgânica, media


uma contradição do próprio Estado, dispersando os conflitos inerentes a
democratização das ações políticas do município. Neste caso, utilizou-
-se um mecanismo de neutralização, garantiu a possibilidade, mas, não
determinou os meios para atingir os fins.
O plano diretor instituído pela Lei Municipal nº 17.511 de 2008, es-
tabelece as diretrizes gerais e conceitua os objetivos da política urbana
municipal. Determina, também, que a cidade cumpre suas funções sociais
na medida em que assegura o direito de todos os citadinos ao acesso à
moradia, dentre outros direitos.
A legislação municipal busca imprimir um caráter mais formal à luta
pela moradia ao elencar o princípio da função social da cidade, relacio-
nando a garantia do acesso a direitos, principalmente, os que relacionados
à moradia.
Vários instrumentos foram elencados para a execução da política
urbana. Dentre os quais, tem ação destacada para os fins dessa pesqui-
sa, que é um instrumento de planejamento, caracterizado pelo Plano de
Regularização Fundiária das ZEIS – Prezeis; bem como, o instrumento
de regularização fundiária propriamente dita, ao instituir a concessão de
direito real de uso.
Outra legislação importante de analisar é a Lei n° 16.176 de 1996, pois,
estabelece as normas de uso e ocupação do solo do Recife, descrevendo
o zoneamento da cidade, e especifica que as Zonas Especiais de Interesse
Social - ZEIS - são áreas de assentamentos habitacionais de população
de baixa renda, surgidos espontaneamente, existentes, consolidados ou
propostos pelo Poder Público, onde haja possibilidade de urbanização e
regularização fundiária.
Para finalizar o relato sobre a legislação municipal que disciplina a
política urbana do município, notadamente, vinculada as ações de regula-
rização fundiária, não é possível deixar de citar a legislação que instituiu o
Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social - PREZEIS,
regulamentado primeiramente pela Lei nº 14.947 de 1987 e modificado

731
pela Lei n º 16.113 de 1995. A instituição desta legislação incorporou rei-
vindicações dos movimentos sociais ligados à luta pela terra urbanizada
e pela moradia.
A Lei do PREZEIS, instituída pelo poder municipal do Recife, no seu
capítulo III regulamenta e disciplina como deve ser efetuada a regulari-
zação urbanística das ZEIS, colocando no seu bojo regras sobre: planos
urbanísticos, tamanhos de lote, reserva de solo virgem, sistema viário,
desmembramento e remembramento de lotes e etc.
O Capítulo V disciplina o sistema de gestão do programa, instituindo
as suas instâncias, atribuições, papeis e competências, garantindo um
espaço importante de discussão e planejamento das ações do PREZEIS.
Já no Capítulo IV ficou expresso como deve ser realizada a regularização
fundiária. Para tanto, o art. 20, da Lei do PREZEIS, autoriza o Município a
utilizar os instrumentos jurídicos necessários, preferencialmente a CDRU
– Concessão de Direito Real de Uso. No seu parágrafo 1º, proíbe o instituto
da doação dos bens públicos situados nas ZEIS e o parágrafo 2º expressa
que o Município prestará assessoria em ações de usucapião para fins de
regularização fundiária.
5. Considerações Finais
Neste artigo foi analisado a mediação de conflitos por parte do estado,
realizada através da ação na política urbana brasileira e, mais precisamente
na cidade do Recife.
A mediação dos conflitos é, por sua vez, concebida como parte da
política desenvolvida pelo estado para dispersão dos conflitos sociais,
causados pelas contradições do próprio estado capitalista, inerentes ao
processo de acumulação do capital.
Para realização desta análise da mediação dos conflitos, através da
política urbana, partiu-se da caracterização do Estado e do Direito, relacio-
nando seus conceitos, traçando um quadro evolutivo, identificando como
as escolhas do estado, construídas através do direito, são fomentadas
como resultado da luta de classes, influenciados, não exclusivamente,
pela vertente dominante.

732
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O estado foi entendido como a instância política de dominação pelo


capital e, o direito foi caracterizado como a instância principal para me-
diação dos conflitos realizada pelo estado. Ou seja, se o estado é resultado
da luta de classes e, através dele são construídas as normas que regulam
nosso dia-a-dia, é possível afirmar que tanto o estado, como o direito,
são produtos formados pelo resultado das lutas empreendidas entre as
diferentes classes sociais. Destaca-se a formação da política urbana, como
uma ação implementada pelo estado e regulada pelo direito, criada para
mediar os conflitos pela terra urbana, mantendo o processo de acumula-
ção do capital, mas, ao mesmo tempo, cria limites à atuação do capital,
oferecendo ações para melhoria da vida da população menos privilegiadas.
Demonstra-se acima, que a política urbana, efetuada através da regula-
rização fundiária de assentamentos irregulares, é caracterizada como uma
ação do estado para minimizar as lutas existentes pela terra e pela mora-
dia. Baseados no conceito de mediação de conflitos por parte do estado
Verifica-se que a política urbana é uma ação do estado para desen-
volvimento das cidades. A política urbana foi entendida como um instru-
mento de mediação de conflitos, criado pelo estado, a partir do processo
de formação do pensamento dominante.
Portanto, é correto pressupor que a política urbana no Brasil pode
ser entendida como uma ação de mediação de conflitos, realizada pelo
estado, pois, serve para dispersar as lutas, mas, também, se caracteriza
por um processo de luta pelo direito à moradia, formado com influência
da própria população beneficiária.
É possível notar que a própria institucionalização de uma área como
ZEIS, força a garantia do reconhecimento do direito à moradia pelo próprio
estado. Quando o estado efetua a mediação do conflito pela terra urba-
na, através do instrumento jurídico das ZEIS, impõe limites à atuação do
próprio estado, que passa a ser impulsionado pelas normas determinadas
na Lei que regulamentou a ZEIS.

733
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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PLANO DIRETOR DO RECIFE - Lei Municipal n. º 17.511/2008.

NOTAS

1 Mestre em Desenvolvimento Urbano e Advogado. Doutorando do Programa de Pós Graduação em Desen-


volvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. tiagogs74@gmail.com
2 “O Estado tem um papel essencial nas relações de produção e na delimitação – reprodução das classes sociais,
porque não se limita ao exercício da repressão física organizada. O Estado também tem um papel específico
na organização das relações ideológicas e da ideologia dominante.”
3 “A vida de um Estado moderno, no qual a sociedade civil é constituída por grupos organizados cada vez
mais fortes, está atravessada por conflitos grupais que se renovam continuamente, diante dos quais o Estado,
como conjunto de organismos de decisão (parlamento e governo) e de execução (o aparato burocrático),
desenvolve a função de mediador e de garante mais do que a de detentor do poder de império segundo a
representação clássica da soberania.”
4 “para o senso comum, aplicar o direito positivo estatal e fazer justiça legal é o caminho privilegiado e quiçá
exclusivo de praticar justiça social. Esta apropriação não é gratuita. Ao contrário, é historicamente explicá-
vel, e situada. Resulta do aparecimento dos estados nacionais nos dois últimos séculos. E toma forma com
a associação do liberalismo como ideologia social, ao capitalismo como teoria econômica, e ao positivismo
dogmático como doutrina jurídica”.
5 “uma perspectiva materialista e vêem o direito como cristalizando, em cada etapa histórica, os interesses das
classes dominantes, contra os quais as classes dominadas, através de suas lutas, vão cristalizando valores e
princípios próprios, os quais, um dia, tenderão a tornar-se um novo direito. Ora, dentro de uma tal perspectiva,
o povo, as classes dominadas, os grupos oprimidos têm a capacidade, através de suas lutas, de gerarem um
novo direito”. (In ABREU NETO, 2008: 23-24)
6 “Trata-se de um problema ou conjunto de problemas sociais específicos criado fora do mundo do trabalho
e da produção e que, como tal, não é o capital mas sim à sociedade no seu todo e, portanto, ao Estado que

736
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

compete resolver. É com base nesta concepção que o Estado capitalista assume a questão urbana e a enfrenta
com um conjunto de medidas e acções a que dá o nome global de política urbana”.
7 “A crise de legitimidade do regime aumenta a probabilidade de uma baixa eficácia da legalidade estatal, o
que por sua vez abre espaços para o surgimento de manifestações normativas não-estatais. Sendo de notar
que estas manifestações não são necessariamente contra o regime... Muitas vezes elas são buscadas pelo
próprio governo enquanto válvulas de escape capazes de viabilizar a posição hegemônica do direito estatal”.
8 “o princípio da legalidade, impõe à Administração Pública obediência à lei formal como norte de atuação e
limite da garantia ao cidadão. No cumprimento de suas funções, o agente público não tem liberdade ou vontade
pessoal. A imperatividade das leis não obriga somente ao particular, mas, antes de tudo, a própria Administração
ao constituir-lhes poderes-deveres, indisponíveis e irrenunciáveis”. (In LIMA, 2002:146).

737
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Mediação como prática


de transformação dos
conflitos fundiários urbanos

Antonio Rafael Marchezan Ferreira1

INTRODUÇÃO

A vida contemporânea tem contribuído para moldar pessoas mais


solitárias e individualistas. Especialmente em países em desenvolvimen-
to, marcados pela pobreza, intensifica-se o distanciamento nas relações
sociais, pois o indivíduo precisa devotar-se quase que integramente para
garantir a satisfação de suas necessidades básicas. É premente a neces-
sidade de um intermediário para restabelecer os laços de comunicação,
para atravessar as fronteiras da intolerância e incompreensão, resgatando
o indivíduo ou a comunidade socialmente isolada.
A mediação é vista aqui sob esta perspectiva, como um instrumento
capaz de transformar os conflitos, restaurar vínculos sociais por meio da
cultura do terceiro – o intermediário, proporcionando uma via em que
indivíduos ou grupos sociais passem a ter consciência de seu papel na
construção de “soluções” de seus conflitos.
O foco específico do presente estudo são os conflitos fundiários urba-
nos, bem como os contornos de uma proposta de mediação como prática
de transformação destes conflitos.
Assim, em um primeiro momento dedica-se a estabelecer um perfil
destes conflitos, partindo-se de uma visão macro – da análise dos traços
característicos dos conflitos urbanos, para culminar nos delineamentos
específicos dos conflitos fundiários brasileiros. Posteriormente, descreve-
-se o percurso histórico protagonizado pelo Ministério das Cidades para
traçar os contornos de uma Política Nacional de Prevenção e Mediação

739
de Conflitos Fundiários Urbanos. Na seqüência analisam-se as caracterís-
ticas da mediação então proposta, objetivando estabelecer reflexões que
possam contribuir para uma crítica científica deste método. Finalmente,
são apresentadas as considerações finais e a bibliografia que contribuiu
na construção deste trabalho.

DELINEAMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM


PERFIL DOS CONFLITOS FUNDIáRIOS URBANOS NO BRASIL

Estabelecer com exatidão um perfil dos conflitos fundiários urbanos


no Brasil trata-se de tarefa inexecutável, que extravasariam os limites do
presente estudo. Todavia, cumpre-se traçar delineamentos capazes de
marcar os contornos de uma possível tipologia destes, a fim de se pre-
parar o terreno para lançar as sementes da mediação como método não
adversarial de transformação de conflitos.
O conflito social é fator inerente à vida das sociedades, estabelecendo
uma relação dialética com a transformação social; de fato, o conflito pro-
duz mudança e esta tende a produzir mais conflito. A sociologia clássica
sempre lhe dedicou especial atenção; Theodoro faz um breve panorama
de sua importância ao expor que:

Para Marx, a luta de classes é o motor da história. Também para


Spencer, o conflito anima qualquer sociedade e estabelece um
equilíbrio entre esta e o indivíduo. Já para Durkheim, os conflitos
são formas emergentes de uma sociedade (industrial-urbana)
em plena constituição. [...] Para Simmel [...], conflito é uma
das formas mais vivas de interação constituindo um processo
de associação. [...]. Os conflitos são partes integrantes das
relações humanas, da trama social; eles são diversos, com são
as relações sociais.2

Reconhecida esta qualidade do conflito inerente à condição humana,


se propõe romper-se com o paradigma característico das “soluções” de
conflitos notadamente adversariais e marcados pela lógica binária do certo
e errado, bem e mal, justo e injusto etc. Os métodos não adversariais re-
clamam a consciência de um novo paradigma – o conflito pela perspectiva

740
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da complexidade, que tem como proposição metodológica o pensamento


não linear ou não determinista (cujas origens remetem às teorias da ma-
temática complexa, autopoiese, estruturas dissipativas etc.).
Assim, estabelecidos os presentes pressupostos, cumpre-se direcionar
o foco do estudo para os conflitos urbanos. Observa-se, em um primeiro
momento, que estes correspondem à manifestação da coletividade para
com as contradições urbanas decorrentes do processo de desenvolvimento
e seus elementos constitutivos são engrenagens do próprio mecanismo
histórico do desenvolvimento.
Para Borja, em análise do caso europeu, há três modalidades de con-
flitos: a) agentes dominantes (especialmente o Estado) versus a população
da cidade – este primeiro caso tem como ponto conflitivo os equipamen-
tos coletivos, principalmente a moradia. Nesta seara as reivindicações
vinculam-se à participação da população (as diversas classes, não apenas
a classe popular) nos organismos públicos; b) agentes capitalistas privados
versus o Estado – neste ponto ressalta-se a posição dicotômica do Estado
em atender simultaneamente os grupos dominantes e a população em
geral; e c) o conflito entre os próprios agentes capitalistas em concor-
rência pelo espaço.3
Embora a experiência européia guarde vínculo com os países latino-
-americanos, uma vez que tem residência na mesma problemática – o
consumo de bens e equipamentos urbanos – , não se pode olvidar que
são processos históricos distintos. Assim, adverte Gohn que

A mera transposição de “modelos” de análise constituiria uma


simplificação distorcedora da realidade; as análises dos cientistas
europeus, sobre os movimentos sociais urbanos, devem constituir
apenas marcos de referência. Torna-se de importância funda-
mental a diferenciação dos processos que caracterizaram as es-
pecificidades históricas das formações sociais latino-americanas,
de industrialização tardia.4

De fato, o processo de urbanização da America Latina é resultado da


busca capitalista européia por zonas de acumulação de riquezas. Assim,
enquanto na Europa a separação do trabalhador e seus meios de produção

741
se deu por meio de conflitos violentos, caracterizando uma verdadeira
luta de classes, na America Latina a colonização já se estabelece sob o
paradigma da ruptura entre trabalhadores e meios de produção. Por con-
seqüência, “O Estado assume, na maioria das formações sociais latino-
-americanas, papel de diluidor e catalisador dos conflitos”.5
Assim, penetração do capital monopolista no Brasil da década de 50
passou a impor ao Estado a missão de proporcionar a infra-estrutura ur-
bana. Neste contexto, a formação das áreas metropolitanas é marcada por
uma série de “contradições sociais e políticas”: demandas por “serviços de
infra-estrutura (água, esgotos, asfaltamento de ruas, iluminação privada e
pública etc)”; por um sistema de transporte coletivo rápido e eficiente, “pois
a expansão urbana pelo crescimento da periferia não foi acompanhada
de uma intervenção, por parte do Estado, destinadas a atender as novas
circunstâncias”; por um “sistema educacional em todos os níveis, pois a
modernização econômica impôs expectativas novas à mão-de-obra”; pela
necessidade de “serviços ligados à sobrevivência propriamente dita (postos
de saúde, maternidade, hospitais e pronto-socorros etc)” e por “equipa-
mentos sociais e culturais (creches, parques infantis, bibliotecas, centros
de recreação, locais de prática esportivas, áreas verdes etc)”.6
O conflito social assume esta nova roupagem, o espaço urbano
brasileiro materializa-se como expressão desta estrutura econômica e
sua conseqüente manifestação social – o Estado é posto no centro das
relações produtivas.

Se a cidade foi o espaço por excelência do conflito entre burguesia


e proletariado, a urbanização da economia e da sociedade amplia
esse espaço; se essa urbanização tem no Estado capturado pela
burguesia internacional-associada seu principal agente e simul-
taneamente seu principal obstáculo, esse espaço não apenas
se amplia: se redefine para colocar no centro da contradição o
próprio Estado.7

No âmbito específico dos conflitos fundiários urbanos já se esboçam


elementos capazes de revelar as nuances de sua tipologia. É inegável que
a atuação estatal contribuiu decisivamente para o controle da produção do

742
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

espaço urbano, bem como para a construção do valor fundiário urbano.


Todavia, como adverte Ferreira, este controle se estabeleceu “às avessas”,

Pois se na Europa ele visava alguma universalização e democra-


tização no acesso à cidade, no Brasil ele se deu ou para garantir
a onipotência das elites, e manter em níveis aceitáveis os bairros
de classe média, deixando aliás o mercado imobiliário bastante
livre para atuar, ou para “resolver” as demandas populares quan-
do absolutamente necessário, na base de relações populistas e
clientelistas [...].8

Outro elemento salutar na configuração do espaço urbano foi a política


de higienização dos bairros, que se fundava em argumentos de ordem
sanitária para instituir padrões modernos de controle do processo de ur-
banização, mas implicava, em última análise, em mais um artifício para
viabilizar a diferenciação de zonas urbanas privilegiadas. Este aparato
era instrumentalizado pelo Estado por meio de uma complexa legislação
urbanística, com normas austeras para a edificação, bem como para uso
e ocupação do solo.

Com isso, saia privilegiado o mercado imobiliário, capaz de


respeitar tais regras ou de dobrá-las graças à sua proximidade
com o Poder Público e seu poder financeiro, e prejudicava-se
definitivamente a população mais pobre, incapaz de responder
às duras exigências legais. Para construir, seria necessário ter
documentação da posse da terra, dominar o aparato técnico-
-jurídico do desenho e da aprovação de plantas, e respeitar as
diretrizes legais sanitárias e de ocupação e uso do solo, que
muitas vezes impunham regras que só podiam ser aplicadas nos
terrenos mais caros.9

Todo este processo de diferenciação espacial se intensifica com a in-


dustrialização, ressaltando-se mais uma vez a importância da intervenção
estatal. “O capitalismo industrial, ao exacerbar a divisão social do trabalho
e a luta de classes, acentuou a divisão social do espaço [...]”. Assim, como
conseqüência natural deste processo, as áreas de localização privilegiada
(em função da acessibilidade e infra-estrutura) eram mais valorizadas e
logicamente ocupadas pelas classes dominantes, restando para as classes
mais baixas as localidades mais extremas, periféricas. “As leis funcionaram

743
mais do que nunca para demarcar os lugares de cada um, e as classes
dominantes intensificaram ainda mais sua presença na máquina do Estado,
para garantir os novos espaços de alta valorização [...]”.10
Fica evidenciado, desta forma, que a “segregação urbana” revela-se
como uma característica fundamental para a compreensão da estrutu-
ra espacial das metrópoles brasileiras. Villaça define segregação como
“processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem
a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos
de bairros da metrópole”. Deste modo, a segregação tem como fator
determinante a maior concentração, em uma específica região, de uma
determinada classe em relação às demais. Na metrópole brasileira, o
mais predominante padrão de segregação é o do centro versus periferia.
“O primeiro, dotado da maioria dos serviços urbanos, públicos e privados,
é ocupado pelas classes de mais alta renda. A segunda, subequipada e
longínqua, é ocupada predominantemente pelos excluídos”.11 No mesmo
sentido argumenta Alves ao expor o que denomina de cidades paralelas:

Atualmente nas grandes capitais, o contorno único que delimi-


taria “a cidade” se desfaz e observa-se a edificação de “cidades
paralelas”: o centro econômico e as periferias esquecidas. Duas
cidades com contornos e funcionamentos próprios. De um lado,
um centro interconectado com o mundo global, nobre, hege-
mônico, informatizado e sustentado por relações hierárquicas
dos detentores de capital econômico e epistemológico. Na outra
margem, observa-se o grande segmento social urbano que vive
em situação de risco, seja ele geológico ou social. Um contexto
de pobreza, violência, altas taxas de desemprego, escassez de
recursos para satisfação de necessidades básicas (alimentos,
vestuário, educação, moradia sustentável) e desarticulação
crescente do acesso a bens e serviços.12

O espaço protagoniza-se como mecanismo de exclusão, intensificando


a contradições urbanas e, por conseqüência, gerando conflitos urbanos
que gravitam em torno deste processo de formação da estrutura espacial
urbana. Assim, as fontes de conflitos fundiários urbanos assentam-se,
genericamente, em dois componentes básicos: a irregularidade fundiária
(relativa ao uso do solo pelos grupos sociais populares, marcando-se
pelo conflito entre direito de posse versus propriedade) e; irregularidade

744
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

construtiva (caracterizado pela não observação das normas e diretrizes


que estabelecem os padrões para edificação civil).13
Neste contexto, explica Cafrune, que facilmente se identificam os
protagonistas da cena conflitiva. De um lado, têm-se os grupos sociais
populares, cujas reivindicações podem se dar “em razão de ocupação
recente que mobilize o questionamento imediato” ou nas hipóteses de
ocupação tradicional sob incidência de fato novo de repercussão interna
(como melhorias de infra-estrutura) ou externa (obras do poder público
que importem em alterar o traçado da área ocupada). De outro lado, no
posto de antagonista deste conflito tem-se o proprietário do imóvel ocu-
pado, “o qual dispõe de diversos meio jurídicos e políticos para confrontar
a posse do imóvel. Este proprietário pode ser o poder público ou um par-
ticular”. Ainda, não se pode esquecer-se de outros personagens sempre
atuantes conflitos, quais sejam: o Poder Judiciário, o Ministério Público,
os entes da federação, organizações não governamentais, associações
de moradores etc.14
De forma mais particularizada, a Secretaria Nacional de Programas
Urbanos do Ministério das Cidades delineia os “fatores geradores dos
conflitos fundiários urbanos”:

- Reintegração de posse de imóveis públicos e privados, em que


o processo tenha ocorrido em desconformidade com a garantia
de direitos sociais;
- Obras públicas geralmente relacionadas à implantação ou me-
lhoria de infraestrutura, resultantes ou não de desapropriação,
que resultem de algumas maneira na expulsão de famílias de
baixa renda;
- Inexistência ou deficiência de políticas habitacionais municipais
e estaduais voltadas à provisão de habitação de interesse social
e à regularização fundiária que possam conferir solução habita-
cional adequada para garantir o direito à moradia;
- Regulação do parcelamento, uso e ocupação do solo que não
tenha destinado áreas na cidade para garantir a segurança da
posse da população de baixa renda e a provisão de habitação
de interesse social e
- Concentração da propriedade da terra.15

A característica marcante destes conflitos, portanto, é o papel de-


senvolvido pelo Estado, sua intervenção como agente gerenciador dos

745
equipamentos urbanos e sua função de mediador das relações de classe.
Todavia, a atuação do Estado neste processo não é linear, mas fortemen-
te marcada pela dicotomia de interesses diversos. Gohn explica que “o
processo de urbanização desenvolve-se de forma caótica, a mediação do
Estado é contraditória, pois tem que atender às classes dominantes e às
pressões das dominadas”.16

ESFORÇOS EM TORNO DA CONSTRUÇÃO DE UMA


POLÍTICA NACIONAL DE PREVENÇÃO E MEDIAÇÃO
DE CONFLITOS FUNDIáRIOS URBANOS

A necessidade de abordar os conflitos fundiários urbanos por caminhos


não adversariais está fortemente presente no universo jurídico pátrio.
De fato, encontram-se inúmeros exemplos na legislação brasileira e nos
Tratados Internacionais, dos quais o Estado brasileiro é signatário, em
que a tônica marcante pugna pela utilização de modelos alternativos para
solução de conflitos17.
Di Sarno e Saule Júnior argumentam que nos “processos de mediação
e negociação é fundamental a análise das conseqüências e dos impactos
dos despejos sobre a população afetada e a comunidade do entorno, como
forma de auxiliar no desenho das soluções alternativas”.18Ainda, lembra
Cafrune que

[...] as propostas de institucionalização de políticas de prevenção


e mediação de conflitos fundiários urbanos, no Brasil, encontram
fundamentos, principalmente, em proposições advindas de se-
tores políticos articulados na defesa dos direitos dos moradores
e ocupantes de imóveis em situação irregular. Tais propostas
buscam dar visibilidade à complexidade do conflito e prevenir as
freqüentes ações que violam direitos humanos, quando emergem
conflitos fundiários.19

Há órgãos da administração pública, em especial o Ministério das


Cidades, que se demonstram especialmente sensíveis a esta necessida-
de, apresentando um aparato normativo expressamente indicativo de

746
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

práticas não adversariais, pautando-se, portanto, pela prevenção, bem


como pela mediação no ajustamento dos conflitos fundiários urbanos.
Todavia, ressalta-se a advertência de Fernandes quanto à impossibilidade
de uma legislação urbanística “neutra ou simplesmente determinada pelo
processo sócio-econômico”, ou ainda, como “mero elemento repressivo
da super-estrutura estatal”. De fato, a legislação urbana é um dos fatores
protagonistas da produção e estruturação do espaço social, assim,

[...] existe uma relação intima, ainda que contraditória, entre as


políticas urbanas, por um lado, e as atitudes e convenções sociais
definidas na vida cotidiana, por outro lado, as quais constituem
as várias formas de “justiça informal” existentes na sociedade
brasileira.

O caso do Brasil mostra que o processo de produção da legislação


urbana deve ser entendido a partir da perspectiva dos mesmos
interesses que levaram a acumulação capitalista sem controle
nas cidades, sem jamais perder de vista todas as respostas e
alternativas criadas na vida cotidiana por aqueles que tem sido
tradicionalmente excluídos de tal processo, vale dizer, a grande
maioria dos habitantes das cidades. Ao invés de ser uma questão
técnica, cuja resposta há de ser encontrada dentro dos limites
do universo jurídico, a produção da legislação urbana constitui
um processo político, já que é uma dimensão do mesmo conflito
social que se encontra na raiz da produção da cidade. Do meu
ponto-de-vista, cidade e cidadania são um mesmo tema.20

O Ministério das Cidades, criado em 2003, tem desempenhado o pa-


pel de agente centralizado e catalisador das reivindicações e propostas
relativas à necessidade de mediação de conflitos fundiários urbanos. Sua
postura e ações tencionaram, a princípio, para investir-se no protago-
nismo deste processo político de construção de diretrizes normativas que
pudessem refletir prevalência da prática não adversarial no ajustamento
destes conflitos.
A Resolução nº 31, de 18 de março de 2005, editada pelo Conselho
das Cidades (Ministério das Cidades) representou o primeiro passo na
implementação de uma política de prevenção e mediação de conflitos
fundiários urbanos. O presente texto normativo propôs o estabelecimento
de um diálogo entre os órgãos do Poder Judiciário e instituições essen-

747
ciais à Justiça e o Conselho das Cidades, tendo como pauta a atuação do
Judiciário em conflitos relativos aos deslocamentos e despejos de grande
impacto social. Propôs ainda a composição de um grupo de trabalho com
a missão de mapear os conflitos relativos a deslocamentos e despejos no
país e identificar as tipologias do problema sugerindo soluções estruturais.
O grupo de trabalho indicado na resolução não foi prontamente ins-
tituído em razão da falta de regulamentação quanto sua composição e
coordenação, sendo então editada a Resolução Administrativa nº 01, de 31
de agosto de 2006, do Conselho das Cidades. Esta determinou a retomada
do trabalho do grupo, agora denominado de Grupo de Trabalho de Conflitos
Fundiários Urbanos, coordenado pelas Secretarias Nacionais de Habitação
e Programas Urbanos e composto por representantes de movimentos
populares. Contava também com a participação de representantes do Mi-
nistério da Justiça, Secretaria Especial de Direitos Humanos, Procuradoria
Federal dos Direitos do Cidadão e Relatoria Nacional do Direito Humano
à Moradia Adequada e Terra Urbana.
Posteriormente, verificou-se que a problemática dos conflitos fundiá-
rios extrapolava as competências do Ministério das Cidades, sendo então
editada a Resolução Recomendada nº 24, de 06 de dezembro de 2006, que
aconselhava a criação de Comissão Interministerial para o desenvolvimen-
to de ações coordenadas na área de prevenção e mediação de conflitos
fundiários urbanos. A presente comissão foi composta pelo Ministério das
Cidades, Ministério da Justiça, Secretaria Especial de Direitos Humanos,
Ministério do Meio Ambiente, Secretariado Patrimônio da União e Caixa
Econômica Federal e, na qualidade de convidados, contava-se com o
Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça e o Ministério Pú-
blico Federal.
Neste contexto, o Grupo de Trabalho composto a partir da Resolução
Administrativa nº 01/ 2006, do Conselho das Cidades, em 2006, apontou
para necessidade de se estabelecer uma Política Nacional de Prevenção e
Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos, sendo apresentada uma proposta
preliminar para ser objeto de debate no Seminário Nacional de Prevenção

748
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos, realizado em Salvador, em


2007, bem como na 3ª Conferência Nacional das Cidades. A citada pro-
posta aponta inicialmente para o inexorável reconhecimento da garantia
do direito à moradia adequada com um componente fundamental para o
cumprimento da função social da propriedade urbana e da cidade, bem
como para o direito à cidade.
Após discussões, proposições e encaminhamentos da 3ª Conferência
Nacional das Cidades, das quais foi objeto a proposta da Política Nacional
de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos, o Ministério
das Cidades, por intermédio do Conselho das Cidades, editou e aprovou
a Resolução Recomenda nº 50, de 02 de abril de 2008. Esta recomenda
que a Secretaria Nacional de Programas Urbanos garanta uma estrutura
formal administrativa para assegurar a transversalidade do tema ‘Conflitos
Fundiários Urbanos’ com as demais Secretarias Nacionais (recomendando
assim, a implementação imediata da Comissão Interministerial disposta
na Resolução Recomendada nº 24 do Conselho das Cidades).
A fim de efetivar as diretrizes anteriormente estabelecidas, o Ministro
de Estado das Cidades publicou a Portaria nº 587, de dezembro de 2008,
com intuito de disciplinar o rito de tramitação dos processos envolvendo
conflitos fundiários. Esta coloca que os processos recepcionados e de-
vidamente formalizados serão encaminhados para a Secretaria Nacional
de Programas Urbanos, que será responsável por promover as diretrizes
recomendadas na Resolução Recomendada nº 50, do Conselho das Ci-
dades, anteriormente citada.
Os debates em torno da temática continuaram e em 08 de dezembro
de 2009, foi publicada a Resolução Recomendada nº 87, do Conselho das
Cidades, que recomenda a instituição da Política Nacional de Prevenção e
Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos. A presente resolução foi cons-
truída à luz das discussões realizadas no Seminário Nacional de Preven-
ção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos (Salvador, 2007), na 3ª
Conferência Nacional das Cidades, bem como em Seminários Regionais,
realizados ao longo de 2009 em cidades de todas as cinco regiões do

749
Brasil (Curitiba-PR, Goiânia-GO, Recife-PE, Rio de Janeiro-RJ e Belém-PA).
Preliminarmente, a presente Resolução estabelece três conceitos
fundamentais que determinam o objeto e o âmbito de incidência de suas
diretrizes. Tratam-se das concepções de conflito fundiário urbano, da pre-
venção de conflitos fundiários urbanos e da mediação de conflito fundiário
urbano. Assim, o art. 3º define:

I. conflito fundiário urbano: disputa pela posse ou propriedade de


imóvel urbano, bem como impacto de empreendimentos públicos
e privados, envolvendo famílias de baixa renda ou grupos sociais
vulneráveis que necessitem ou demandem a proteção do Estado
na garantia do direito humano à moradia e à cidade;
II. prevenção de conflitos fundiários urbanos: conjunto de medi-
das voltadas à garantia do direito à moradia digna e adequada
e à cidade, com gestão democrática das políticas urbanas, por
meio da provisão de habitação de interesse social, de ações de
regularização fundiária e da regulação do parcelamento, uso e
ocupação do solo, que garanta o acesso à terra urbanizada, bem
localizada e a segurança da posse para a população de baixa
renda ou grupos sociais vulneráveis;
III. mediação de conflitos fundiários urbanos: processo envolven-
do as partes afetadas pelo conflito, instituições e órgão públicos
e entidades da sociedade civil vinculados ao tema, que busca
a garantia do direito à moradia digna e adequada e impeça a
violação dos direitos humanos.

Quanto aos princípios inspiradores e firmadores da Política Nacional


de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos, são aponta-
dos no art. 4º: a) do direito à moradia digna e adequada e à cidade; b) da
função social da propriedade e da cidade; c) do devido processo legal, do
contraditório e da ampla defesa; d) do acesso à terra urbanizada e bem
localizada para a população de baixa renda e grupos sociais vulneráveis;
e) da segurança da posse para população de baixa renda e grupos sociais
vulneráveis; f) da responsabilidade do Estado para implementação desta
política e; g) da prevalência da paz e soluções pacíficas para situações de
conflitos fundiários urbanos.
Além destes princípios, a Resolução estabelece diretrizes para a con-
solidação da Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos
Fundiários Urbanos, merecendo destaque as seguintes: a) promover a

750
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

gestão democrática da cidade, assegurando a participação da sociedade


civil organizada na formulação e implantação das políticas urbanas; b) ga-
rantir o acesso às informações sobre a política, os programas e as ações de
prevenção e mediação de conflitos fundiários urbanos; c) reconhecimento
do caráter coletivo dos conflitos fundiários urbanos nos litígios pela posse
e a propriedade de imóvel urbano que envolvam famílias de baixa renda
ou grupos sociais vulneráveis, assegurando todas as garantias decorrentes
do devido processo legal; d) o fomento de medidas que possam promover
a articulação das partes envolvidas no conflito, bem como dos Poderes,
Executivo, Legislativo e Judiciário, entidades da sociedade civil vinculadas
ao tema e membros do Ministério Público e Defensoria Pública, visando à
solução dos conflitos conforme os princípios e diretrizes desta política e;
e) criação e adoção de normas, procedimentos e instâncias de mediação
de conflitos fundiários urbanos com base nos tratados internacionais de
direitos humanos em que o Estado brasileiro é signatário (art. 5º e §§).
Ainda, a presente Resolução discorre detalhadamente sobre os papéis,
ações e competências (comuns e específicas) que os entes federados (Pode-
res da União, Estados, Distrito Federal e Municípios) desempenharam para
monitoramento, prevenção e mediação dos conflitos fundiários urbanos, a
fim de implementar a política por ela estabelecida (art. 6º e seguintes).
Quanto ao monitoramento, ressalta-se a necessidade da elaboração de um
sistema integrado de mapeamento das situações de conflitos fundiários
urbanos no território nacional, envolvendo, por evidente, a participação
de todos os entes federados nas suas competências, sob a coordenação
do Governo Federal (art. 6º, I, “a”).
No que tange a prevenção, o foco da Resolução volta-se para o desem-
penho de políticas públicas integradas que viabilizem o direito à moradia
adequada e o direito à cidade, promovendo medidas de regularização
fundiária de interesse social, como emprego de instrumentos específicos,
tais como concessão de uso especial para fins de moradia; usucapião
urbano; concessão de direito real de uso; demarcação urbanística, legi-
timação de posse; e demarcação de zonas especiais de interesse social
(art. 7º, I, “a” e “b”).

751
Ao abordar a questão da mediação dos conflitos, preocupa-se, primor-
dialmente, com a promoção de diálogos entre as partes afetadas, institui-
ções e órgão públicos das três esferas da federação, bem como entidades
da sociedade civil vinculadas ao tema, com objetivo precípuo de alcançar
soluções pacíficas, garantido o direito à moradia e impedindo a violação
dos direitos humanos (art. 8º, I, “a”).
Deste modo, uma vez traçado um panorama quanto aos princípios
e diretrizes da Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos
Fundiários Urbanos recomendados pelo Ministério das Cidades, cumpre-
-se analisar qual o perfil de mediação proposta nesta política, como o
método então indicado é desenhado em seus contornos gerais e até
que ponto estas recomendações poderão contribuir para uma melhor
abordagem dos conflitos fundiários urbanos, vistos, agora, por uma
perspectiva não adversarial.

A MEDIAÇÃO COMO PRáTICA DE TRANSFORMAÇÃO


DOS CONFLITOS FUNDIáRIOS URBANOS

As cidades são o palco ideal para o desenvolvimento da mediação.


Aquele reduzido espaço em que se adensa a sociedade permite aos seus
habitantes a ruptura com seus pequenos núcleos, descortinando novas
realidades sociais e culturais. É claro que as fronteiras não são claramen-
te delimitadas, há um complexo processo de interação na delimitação
do espaço público, que pode produzir consenso, mas também dissenso.
Para Alves,

no espaço urbano deve existir a possibilidade de diálogo, a


abertura para um entendimento e resolução de um bem que é
coletivo e não particular. Por abranger uma coletividade tem que
proporcionar um mínimo de significação comum para todos os
integrantes daquele lugar e dos códigos culturais e políticos que
o qualificam.21

Neste contexto, Six aponta que a “primeira mediação a fazer é a de


devolver confiança às cidades e aos subúrbios, estudando-se a fundo sua

752
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

realidade e potencialidades, e não as reduzir a bairros [...], mas criar uma


democracia urbana”.22
Portanto, uma vez estabelecidas as características que dão contorno
aos conflitos fundiários urbanos, bem como traçados os paradigmas
normativos de uma política nacional de prevenção e mediação destes
conflitos, cumpre-se demonstrar o papel da mediação como prática de
transformação destes conflitos. Para tanto, coloca-se como pressuposto
teórico a obra Dinâmica da Mediação de Jean-François Six. Tal escolha
se dá face ao reconhecimento da mediação como prática transcendente
ao conflito; a distinção entre mediação cidadã e mediação institucional;
a visão da cidade com um setor de aplicabilidade da mediação; e a ele-
vação da mediação como prática social, importando em um verdadeiro
exercício da cidadania.23
A mediação surge como uma nova linguagem de abordagem de con-
flitos, implicando na ruptura ao princípio da “binariedade” presente na
sociedade ocidental, marcado por uma postura reducionista e maniqueísta,
que apresenta a realidade como oposição, como o “isto ou aquilo”. Ela
também não se conforma à cultura do oriente (especialmente dos povos
indianos e árabes) em que a realidade é vista como uma mescla – “isto e
aquilo” simultaneamente. O que se pretende com a mediação é o reco-
nhecimento do mútuo, o estabelecimento de um terreno de coexistência,
em que ambos possam se reconhecer mutuamente, pois são reconhecidos
por um terceiro.24
Deste modo, explica Six que o papel da mediação é suscitar o “3” – a
terceira dimensão: os espaços intermediários. Ou seja,

quer fazer de modo tal que, deste diálogo-confrontação em pre-


sença de um terceiro, nasça qualquer coisa que não será nem
a solução unilateral do primeiro, nem a solução unilateral do
segundo, mas uma saída original realizada por um e outro juntos,
uma saída que não pertence a nenhum dos dois propriamente,
mas aos dois, como uma criança que nasce de dois pais”.25

Importante se torna especificar de forma bastante precisa os protago-


nistas da cena conflitiva. Como já exposto, de um lado têm-se famílias

753
de baixa renda ou grupos sociais vulneráveis, de outro, proprietários ou
empreendedores públicos ou privados. Ainda, permeando este conflito e
oscilando em suas polaridades têm-se o Poder Judiciário, o Ministério Públi-
co, organizações não governamentais, associações de bairros etc. Assim,
questões se levantam: quem irá protagonizar o papel do terceiro? Quem
será o mediador responsável por ouvir os opostos, conferir-lhe significado
e construir a via comum de transformação deste conflito? Ainda por outra
perspectiva, como se define a mediação de conflitos fundiários urbanos?
Segundo a já citada Resolução Recomendada nº 87, do Conselho das
Cidades, esta se caracteriza por um “processo envolvendo as partes afe-
tadas pelo conflito, instituições e órgão públicos e entidades da sociedade
civil vinculados ao tema, que busca a garantia do direito à moradia digna
e adequada e impeça a violação dos direitos humanos” (art. 3º, I).
O termo “mediação”, bem como a própria denominação “mediador”,
devem ser analisados com cautela. Six adverte para o uso indiscriminado
ou inadvertido do termo, lançando luzes quanto aos problemas decorren-
tes de sua pluralidade semântica. Ora, os termos recebem empregos para
elementos da vida cotidiana, ora apresentam carga científica ou política.

As denominações são tão diversas que se tem impressão de se


encontrar em um hipermercado: o bazar da mediação, como
produtos que, colocados lado a lado, estão lá sem ligação entre
si, apenas fazendo parte de um conjunto heteróclito.26

Buscando aclarar estas imprecisões e mirando aportar diretrizes


capazes de proporcionar organização e classificação, Six propõe o re-
conhecimento de duas modalidades de mediação: institucional e cidadã.
Assim, explica que há

de uma parte, a mediação “homem”: uma mediação emitida


por um poder, vinda de cima, proveniente de algum organismo
constituído qualquer – a mediação institucional. De outra parte, a
mediação “mulher”: uma mediação independente, suscitada pela
vida cotidiana, na base, em livre associação – a mediação cidadã.27

Para a construção de tal classificação são utilizados dois critérios

754
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

distintivos: o primeiro relacionado à origem dos diferentes mediadores; o


segundo pautado no modo de ação destes.
Partindo-se do primeiro critério – origem dos mediadores – tem-se que
na mediação institucional estes são estabelecidos por um poder constitu-
ído, representam “funcionários” de um Estado, município ou organismo
constituído. Já na mediação cidadã, seus mediadores não são estabelecidos
por instituições, mas nascem nos grupos sociais, são mediadores “natu-
rais”, “propostos por associações livres, por cidadãos a outros cidadãos”.28
A Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários
Urbanos na Resolução Recomendada nº 87, do Conselho das Cidades,
contempla, de certa forma, a construção destas duas modalidades de
mediação, pois aponta para a constituição de mediadores institucionais,
ao chamar a responsabilidade de participação na mediação do conflito
das três esferas da federação, bem como Defensoria Pública. Ainda, reco-
nhece a importância dos mediadores cidadãos, ao assegurar e reclamar
a participação de entidades da sociedade civil, membros dos conselhos
tutelares, dos movimentos sociais e entidades protetoras de direitos hu-
manos (art. 8º).
Os mediadores institucionais desempenham uma dupla finalidade –
estabelecendo diálogos entre a própria instituição e os mediados e devem
viabilizar canais de acesso aos núcleos de mediação de conflitos. Como
já demonstrado no tópico anterior, a Resolução Recomendada nº 50, do
Conselho das Cidades, externa bem esta preocupação ao recomendar a
Secretaria Nacional de Programas Urbanos à construção de uma estrutura
administrativa que viabilize a transversalidade da temática dos conflitos
fundiários urbanos com as demais secretarias. Ainda, a Portaria nº 587 do
Ministro de Estado das Cidades também encampa tal preocupação ao dis-
ciplinar o rito de tramitação dos processos envolvendo conflitos fundiários.
As presentes medidas, quando efetivamente implementadas, atendem à
diretriz de promoção de uma gestão democrática da cidade, viabilizando
o acesso da sociedade civil organizada às práticas não adversariais de
tratamento de conflitos.

755
Ainda, Six apresenta uma perspectiva otimista quanto ao desenvolvi-
mento dos mediadores institucionais, reconhecendo uma tendência destes
a se tornarem mais “justos” e “equitativos”, desempenhando um verdadeiro
papel de interlocutor entre as partes. Assim, explica que com freqüência

[...] aqueles nomeados mediadores por suas instituições ou os


institucionais que se interessam por mediação estão em evolu-
ção: de funcionários a serviço de sua instituição, eles tendem a
tornar-se “centristas”, a se aproximar mais e mais do interlocutor,
do requerente, do que faz a demanda.29

Quanto aos mediadores cidadãos, Six ressalta que o desenvolvimento


urbano e os movimentos populares fizeram com que as associações pas-
sassem a assumir este papel. Seus membros são os verdadeiros mediadores
cidadãos, que assumem um senso de responsabilidade pela cidade. Guar-
dadas suas convicções pessoais (morais, políticas ou religiosas) devem ser
promotores da “laicidade”, buscando estabelecer áreas de entendimento e
compreensão. 30 A Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos
Fundiários Urbanos (Resolução Recomendada nº 87, Conselho das Cidades)
possui mecanismos de capacitação e cooptação destes mediadores, tais
como o fomento e realização de cursos, seminários e conferências (art.
6º, I, “d”); a estruturação de cadastro de agentes capacitadores para a pro-
moção de oficinas, seminários e cursos de capacitação sobre o acesso à
justiça e direitos humanos (art. 6º, I, “e”); o fortalecimento das associações
de moradores e dos movimentos sociais para colaborar na mediação dos
conflitos fundiários urbanos (art. 8º, I, “j”).
A presente medida importa em uma ruptura de paradigma, pois permite
a estes atores sociais um sentimento de apropriação de seus direitos, em
contraposição ao sistema impositivo da Justiça formal e possibilita a efetiva
participação no processo político de construção de instrumentos de ajus-
tamento destes conflitos, fator que confere identidade e responsabilidade
pelo modelo de regulamentação das decisões comuns.
Para Alves, os conflitos urbanos reclamam esta perspectiva, que implica
reconhecer a experiência e os métodos de “resolução dos conflitos dessas

756
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

comunidades periféricas”, ou seja, “um saber produzido cotidianamente


por quem vive naquela realidade e descobre métodos alternativos e criati-
vos para solucionar seus conflitos, visto que muitas vezes o código jurídico
vigente não contém leis específicas para aquele contexto”. Assim, conclui
expondo que “a cidadania se constrói com sujeitos ativos, emancipados
e críticos. O direito formal tem que dar abertura ao direito que emerge
na relação entre as pessoas, em contextos sociais diferenciados [...]”.31
Sob a perspectiva do modo de agir, Six chama atenção para a cautela
em não se confundir os mediadores institucionais e cidadãos. Os primeiros
são essencialmente especialistas, com formação direcionada à resolução
de um problema específico – são técnicos (juristas, psicólogos, assistentes
sociais, etc.), investidos de poder e responsáveis por trazer soluções aos
problemas apresentados. Já os mediadores cidadãos “são os cidadãos entre
os cidadãos” – não são responsáveis por resolver os conflitos, “mas estarão
lá para permitir às pessoas encontrar, por seus próprios meios, uma saída
a seus conflitos”. Enquanto o mediador institucional é “apressado” a dar
resposta, demonstrar resultado; o mediador cidadão deve “tomar tempo,
afastar o simplismo, os atalhos, a precipitação, deve guardar o senso da
duração e do recuo, da paciência e da distância”.32
Nesta perspectiva, bastante interessante são as contribuições de
Souza ao estabelecer um rol de sujeitos que necessariamente deve estar
presente na mediação de questões relativas ao conteúdo e execução de
políticas públicas:

a) o Ministério Público, como autêntico representante da coleti-


vidade; b) a Defensoria Pública, como representante das pessoas
carentes, cujos interesses são prioritários em matéria de políticas
públicas; c) todos os entes, na esfera do Poder Executivo, que
detenham competência para atuar na matéria, incluindo-se nota-
damente agentes públicos como competência técnica na matéria,
além de advogados públicos de cada ente; d) representantes do
Poder Legislativo, tendo em vista possíveis repercussões orça-
mentárias e eventuais necessidades de alterações normativas,
inclusive em razão de possíveis inconstitucionalidades por ação
ou omissão; e) entidades representativas de setores afetados
pelas políticas públicas; f) representantes de titulares de direitos
individuais homogêneos envolvidos no conflito; g) entes priva-
dos que tenham responsabilidades relacionadas ao conflito; h)

757
instituições acadêmicas e de pesquisa que detenham notório
conhecimento sobre a matéria envolvida no litígio.33

Contudo, observa-se que a presente distinção deve permanecer incó-


lume, os espaços e esferas de atuação dos mediadores institucionais e
cidadão devem ser respeitados, pois são imprescindíveis ao desenvolvi-
mento da mediação. Assim, adverte Six que

[...] conservar bem esta distinção capital entre as duas sortes


de mediação permite dar os verdadeiros lugares à mediação
institucional e à mediação cidadã e permite a estas levar uma à
outra, à sua maneira, sua pedra para melhor construir as liga-
ções sociais.34

O modelo de mediação de conflitos recomendado na Resolução Re-


comendada nº 87, Conselho das Cidades, propõe, como exposto, uma
configuração mista, marcada pela presença de mediadores institucionais
e cidadãos. Contudo, não traça limites ou estabelece um procedimento
ou metodologia de atuação destes mediadores.
Observa-se que há o reconhecimento do caráter coletivo destes confli-
tos, bem como a preocupação com a garantia de se assegurar aos grupos
sociais vulneráveis o devido processo legal, o contraditório e a ampla
defesa (art. 5º, V da Resolução Recomendada nº 87). Ainda, preocupa-se
em reconhecer e garantir o respeito às especificidades regionais no de-
senvolvimento de ações relativas à prevenção e mediação dos conflitos
fundiários urbanos (art. 5º, VI da Resolução Recomendada nº 87). E, no que
tange especificamente a metodologia de solução dos conflitos, aponta-
-se como diretriz a elaboração ou adoção de “normas, procedimentos
e instâncias de mediação de conflitos fundiários urbanos com base nos
tratados internacionais de direitos humanos em que o Estado brasileiro é
signatário” (art. 5º, §2º, III da Resolução Recomendada nº 87).
A preocupação externada, de fato, não é quanto ao método, mas
quanto ao resultado. Ou seja, permite-se a construção ou a adoção de
metodologias já existentes, desde que resultem em soluções pacíficas
para as situações de conflitos fundiários, com a prevalência da garantia

758
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dos direitos humanos fundamentais, expressos na Constituição Federal


e em tratados e protocolos internacionais dos quais o Estado brasileiro
é signatário.
Six, porém, chama atenção para a necessidade de dialogo e cooperação
entre os mediadores institucionais e mediadores cidadãos, como condição
necessária ao futuro da mediação. Assim, considerando que o modelo da
Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Ur-
banos (Resolução Recomendada nº 87, Conselho das Cidades) contempla
esta presença dual de mediadores institucionais e cidadãos, a presente
preocupação também deve ser válida. A metodologia que venha a ser
contemplada ou adotada não pode olvidar esta recomendação.
Por fim, há um papel ainda maior a ser desempenhado pela media-
ção nas cidades que vai além da específica função de atuar em conflitos
fundiários. Seu exercício pode avivar no cidadão o senso de cidadania,
pode criar uma verdadeira democracia urbana. Six explica que os pri-
meiros mediadores são aqueles “pensam seu lugar dentro de uma visão
de conjunto, que recusam todos os corporativismos e querem organizar
juntos, com todos, uma vida comum”. Ainda, destaca as vantagens para
uma cidade em promover e sustentar uma associação de mediadores
independentes, que terá como principal tarefa a “inventividade”, ou seja,
“encontrar passarelas entre uns e outros, abrir caminhos e, assim, prevenir
os estancamentos e conflitos”.35

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários


Urbanos a ser constituída nos termos das resoluções do Ministério das
Cidades tem como traço marcante a própria atuação estatal, quer como
protagonista, parte e agente mediador do conflito, é responsável por
garantir o direito à moradia digna e adequada, bem como promover
ações que impeçam a violação dos direito humanos.
Mas fica evidenciado que o papel da mediação tem fronteiras mais

759
amplas que estas. Ela representa um instrumento de política demo-
crática, vez que inclui os indivíduos marginalizados, os conscientiza e
os responsabiliza pela prevenção e transformação dos conflitos, me-
diante a construção de “soluções” dialogadas, intensificando assim a
solidariedade social, representando em última análise, um importante
instrumento de cidadania.

BIBLIOGRAFIA

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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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NOTAS

1 Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Estadual de Londrina e Doutorando em Direito Urba-
nístico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor de Prática Processual Civil e Prática em
Processo Administrativo da Universidade Estadual de Maringá.
2 THEODORO, Suzi Huff. Mediação de conflitos socioambientais. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 53.
3 BORJA, J. Movimientos Sociales Urbanos. Buenos Aires: Nueva Vision, 1975, p. 42 apud GOHN, Maria da
Glória. Reivindicações Populares Urbanas. São Paulo: Cortez, 1982.
4 GOHN, Maria da Glória. Reivindicações Populares Urbanas. São Paulo: Cortez, 1982, p. 17.
5 Ibid., p. 19.
6 MOISÉS, José Álvaro; MARTINEZ-ALIER, Verena. A Revolta dos Suburbanos ou “Patrão, o Trem Atra-
sou”, in José Álvaro Moisés et al. (eds.), Contradições Urbanas e Movimentos Sociais. São Paulo: CEDEC,
Paz e Terra, 1977, p. 46-47.
7 OLIVEIRA, Francisco. Acumulação Monopolista, Estado e Urbanização: A Nova qualidade do Con-
flito de Classes, in José Álvaro Moisés et al. (eds.), Contradições Urbanas e Movimentos Sociais. São
Paulo: CEDEC, Paz e Terra, 1977, p. 75.
8 FERREIRA, João Sette Whitaker. A Cidade para Poucos: breve história da propriedade urbana no Bra-
sil, in Anais do Simpósio “Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização”, UNESP Bauru
e SESC Bauru, 21-26 ago. 2005. Disponível em: http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/j_whitaker/
propurbcred.doc. Acesso em 17.06.2013, pp. 7-8.
9 Ibid., p. 8.
10 Ibid., p. 9.
11 VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP: Lincoln Institute,
2001, pp. 142 e143.
12 ALVES, Heloisa Greco. Mediação: um outro olhar sobre os conflitos urbanos. Disponível em: http://
conferencias.iscte.pt/viewpaper.php?id=50&print=1&cf=3, acesso em 23.05.2013, p. 3.
13 CAFRUNE, Marcelo E. Mediação de conflitos fundiários: do debate teórico à construção política.
In: Revista da Faculdade de Direito UniRitter, 2010, p. 199.
14 Ibid., p. 203.
15 CEAF/MP/PR. Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos. Disponível em: http://www.
ceaf.mp.pr.gov.br/arquivos/File/apres2409daniel.pdf, acesso em: 19.06.2003.
16 GOHN, op. Cit. P. 27.
17 Neste sentido pode-se mencionar: o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNH3) (editado pelo governo
federal por meio do Decreto n. 7.037/2009, posteriormente modificado pelo Decreto n. 7.177/2010) que prevê
no Eixo Orientador IV, diretriz 17, Objetivo estratégico III a “Utilização de modelos alternativos de solução de
conflitos; a Constituição Federal, em especial os seguintes dispositivos: art. 6º que prevê a moradia como direito
fundamental; inciso xI do art. 5º, segundo o qual a casa é um asilo inviolável do indivíduo; inciso LV do art.
5º, que assegura a garantia do devido processo legal; inciso xxIII do art. 5º e arts. 182 e 183 que expressam a
garantia da função social da propriedade urbana e o art. 182 que estabelece a função social da cidade; o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (adotado pela Resolução n. 2.200-A (xxI) da Assembléia
Geral das Nações Unidas e ratificado pelo Brasil) que reconhece o direito de todos a um adequado nível de
vida para si e sua família, incluindo alimentação apropriada, vestuário e moradia, e a contínua melhora das
condições de vida; o Comentário Geral nº 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização

761
das Nações Unidas sobre o direito à moradia adequada, que aponta os elementos de tal moradia e, dentre eles,
especifica a segurança na posse; o Comentário Geral nº 7 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
da Organização das Nações Unidas sobre o direito à moradia adequada e despejos forçados, que esclarece o
conceito de despejos forçados e enuncia procedimentos para proteção das pessoas afetadas por despejos; a Lei
nº 10.257, de 10 de julho de 2001, Estatuto da Cidade, responsável por estabelecer diretrizes relativas à Política
Urbana, Plano Diretor e Gestão Democrática da Cidade; o Projeto de Lei nº 4.827/1998 que institucionaliza e
disciplina a mediação de prevenção e solução consensual de conflitos (em trâmite perante a Câmara Federal) e
o Projeto de Lei nº 166/2010 – Novo Código de Processo Civil – que dedica uma seção específica para disciplinar
a mediação e a conciliação (art. 134 e seguintes).
18 SAULE JR., Nelson; DI SARNO, Daniela C. L.; AURELLI, Arlete Inês (org.). Conflitos coletivos sobre a
posse e a propriedade de bens imóveis. Série Pensando o Direito n. 7/2009, p. 37.
19 CAFRUNE, op. Cit. P. 207.
20 FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, pp. 203-232.
21 ALVES, op. Cit. P. 3.
22 SIx, Jean-François. Dinâmica da Mediação. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 171.
23 Ibid.
24 Ibid., pp. 4-5.
25 Ibid., p. 7.
26 Ibid., p. 24.
27 Ibid., p. 2.
28 Ibid., p. 29.
29 Ibid., p. 43.
30 Ibid., p. 32.
31 ALVES, op. Cit. P. 4.
32 SIx, op. Cit. PP. 34-35.
33 SOUZA, Luciane Moessa de. Mediação de Conflitos Coletivos: a aplicação dos meios consensuais
à solução de controvérsias que envolvem políticas públicas de concretização de direitos funda-
mentais. Belo Horizonte: Forum, 2012, p. 123.
34 SIx, op. Cit. P. 35.
35 Ibid., p. 35.

762
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O direito à moradia no
capitalismo periférico: análise
do caso da Comunidade Vinhais
Velho – São Luís/MA
Mariana Rodrigues Viana1
Ruan Didier Bruzaca2

INTRODUÇÃO

O capitalismo periférico é um conceito que engloba a realidade


de diversos países subdesenvolvidos, como é o caso do Brasil, no qual
há grande influência do capital globalizado na adoção de políticas e
no comportamento das instituições administrativas e jurídicas. Assim,
observa-se a inter-relação entre economia e direito, pois os atores eco-
nômicos influem diretamente na ordem jurídica, afetando a concretização
do direito à moradia.
No que toca o direito à moradia, a realidade brasileira é marcada por um
contexto de desigualdades, observadas nos planos diretores, na aplicação
e interpretação das leis atinentes, nos efeitos da especulação imobiliária,
tendo-se como consequência a impossibilidade da cidade abarcar a de-
manda habitacional, acarretando em diversos conflitos jurídicos.
Destarte, objetiva-se analisar como o direito à moradia não se efe-
tiva em razão do modelo econômico dominante. Para isto, ressalta-se
os conflitos urbanos na Grande São Luís, destacando como tal modelo
é desenvolvido nas cidades brasileiras e suas implicações no âmbito
jurídico-administrativo.
O estudo desses fatores é relevante tendo em vista que a realidade
brasileira, por ser marcada por tais desigualdades, apresenta elevado
déficit habitacional, ocupações ilegais, despejos forçados, construções

763
irregulares, ausência de estrutura, o que se presencia de forma incisiva
na Grande São Luís.

1 O DIREITO à MORADIA NO CAPITALISMO PERIFéRICO

A realidade dos países do capitalismo periférico representa um vasto


campo para analisar a efetividade de direitos e garantias fundamentais.
Neste momento, o foco é o direito à moradia, que possui grande relação
com a formação das cidades e questões urbanísticas, devendo-se observar
as políticas públicas adotadas e a atuação da iniciativa privada.
Conceitualmente, o capitalismo periférico é um modelo de desenvol-
vimento no qual as estruturas socioeconômicas e político-culturais locais
são determinadas por interesses econômicos dos centros hegemônicos3.
Corresponde à uma visão econômica globalizada, no qual o capital es-
trangeiro, como é o caso das multinacionais, acabam influenciando o
modelo de desenvolvimento.
Wolkmer4 atenta que os países periféricos da América Latina, incluin-
do o Brasil, possuem economias de dependência, que são controladas e
reproduzem o jogo de interesses do capital central dominante. Assim,
considera que a América Latina é reduzida a mera função de exportado-
ra de produtos primários importadora de capital e tecnologia, enquanto
se intensifica a sangria dos mercados dos países pobres e se amplia as
desigualdades de intercambio mundiais.
Continuando, Wolkmer5 aponta que a condição político-econômica de
dependência dos países periféricos evidencia cada vez mais a complexi-
dade entre Centro/Periferia, Norte/Sul. Aqui, o marco essencial está no
processo dependente-associado. Neste sentido, todo fenômeno histórico
vincula-se a interesses associados, nacionais e internacionais, não sendo
imposta exclusivamente pelas condições externas ou pelas relações inter-
nas de classes dos países dependentes e, dessa forma, as contradições nos
países periféricos latino-americanos devem ser buscadas na conjunção
de fatores externos e internos.

764
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Como resultado, as necessidades do mercado acabam preponderando,


e, conforme aduz Galeano6, “o dinheiro governa sem intermediários” e
o Estado ocupa-se em reprimir e disciplinar as camadas populares, ou
seja, não busca prover direitos sociais como moradia, saúde, educação,
dentre outros. Esta constatação diz respeito à realidade de diversos países
latino-americanos, nos quais há a primazia de determinados interesses
individuais e a desconsideração dos anseios coletivos.
Nas sociedades periféricas e dependentes, prioriza-se direitos civis,
políticos e socioeconômicos, e o controle de conflitos latentes relacio-
nados às carências materiais e às necessidades de sobrevivência, pau-
tado por uma ordem jurídica caracterizada pelas funções coercitivas,
repressivas e penais7.
Sobre o direito à moradia Farias e Rosenvald8 afirmam:

O direito à moradia traduz necessidade primaria do homem,


condição indispensável a uma vida digna e complemento de
sua personalidade e cidadania. Atua com eficácia normativa
imediata, tutelando diretamente situações jurídicas individuais. É
muito mais do que simplesmente o “direito à casa própria”, pois,
como direito fundamental de segunda geração (ou dimensão),
envolve a necessidade do Estado de cumprir obrigações de fazer,
centradas na prática de políticas públicas capazes de garantir
um abrigo adequado, decente e apropriado a quem necessita de
um mínimo vital.

A função social da propriedade em relação à moradia “é a de conceder


um espaço de vida e liberdade a todo ser humano, independente da ques-
tão da propriedade”9. Não obstante, na realidade dos países periféricos,
resguarda-se o privilégio da propriedade e deslegitima-se a pretensão da
moradia digna que se insere na categoria dos direitos sociais. O direito à
moradia torna-se uma garantia que, em decorrência da ausência de meios
ou da existência de instrumentos precários de tutela e concretização, acaba
pleiteada por vias consideradas ilegais, tais quais as ocupações urbanas
de terrenos e imóveis.
Neste sentido, Wolkmer10 afirma:

O aspecto obsoleto, estático e excludente das instituições nor-


mativas oficiais (tanto no âmbito da legislação positiva quanto
do Poder Judiciário), que acarreta precária eficácia da legalidade

765
dominante e profunda crise de legitimidade, abre espaço para
os movimentos sociais de marginalizados e despossuídos – os
“sem-teto” e os “sem-terra” – que, sem acesso à Justiça oficial
(via de regra lenta e onerosa), utilizam-se de práticas jurídicas
paralelas e alternativas consideradas “ilegais”.

Assim, mesmo sendo o direito à moradia um direito fundamental, ele-


mentar de um viver digno e que tem amparo constitucional, o mesmo é
reiteradamente ignorado pela sociedade contemporânea, tendo em vista
a estrutura social globalizada e os órgãos estatais deficientes.
No contexto brasileiro, é preponderante, no que diz respeito à cidade e
às questões urbanísticas, a presença de interesses de elites e de corrupção
institucional. Neste sentido, Maricato11 afirma que os planos aprovados nas
Câmaras municipais seguem os interesses tradicionais da política local e
dos grupos vinculados ao governo.
Sobre a cidade e o urbanismo, Maricato12 destaca:

Como convém a um país onde as leis são aplicadas de acordo


com as circunstâncias, o chamado Plano Diretor está desvincu-
lado da gestão urbana. A habitação social, o transporte público,
o saneamento e a drenagem não têm o status de temas impor-
tantes para tal urbanismo. O resultado é: planejamento urbano
para alguns, mercado para alguns, lei para alguns, modernidade
para alguns, cidadania para alguns [...].

A concretização do direito à moradia é consequência da efetividade


da idéia de direito à cidade, que, segundo a Carta Mundial pelo Direito à
Cidade, “é um direito coletivo de todas as pessoas que moram na cidade,
a seu usufruto equitativo dentro dos princípios de sustentabilidade, de-
mocracia, equidade e justiça social”13.
Em outras palavras, direito à cidade é a possibilidade de o sujeito e a
coletividade como um todo usufruir do espaço urbano de forma democrá-
tica e equitativa. Assim, o direito à moradia resulta desse contexto, pois
se refere à garantia de que o sujeito desfrute de um habitat digno, justo e
sem intervenção estatal ou particular.
Destarte, trata-se de um Direito ignorado na atuação dos governantes e
dos órgãos e integrantes da organização judicial, e não é mero acaso que

766
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

são tomadas diversas decisões judiciais e administrativas que atendem


os interesses alheios à população oprimida, favorecendo a elite local, o
mercado imobiliário e o interesse empresarial.
No entanto, tal direito à cidade não é efetivado, conforme aponta
Damous14:
Quando se fala em ocupação desordenada do solo urbano, em
déficit de infra-estrutura em geral e, em particular, de saneamen-
to básico, de transporte, de moradia, de qualidade de serviços
públicos; quando se fala em destruição de áreas verdes, em
agressão ao patrimônio cultural, na verdade o que se evidencia
é a total incapacidade do Estado em proporcionar ao cidadão o
que o torna digno do amparo constitucional em matéria de meio
ambiente construído: o direito à cidade.

Esta conjuntura é resultado do modelo desenvolvimentista no qual


prepondera a livre iniciativa, o discurso desenvolvimentista, que justifica
a degradação ambiental, e o individualismo. O livre mercado – que busca
o mínimo de intervenção e controle estatal – é, desta forma, considerado
como fonte de prosperidade e garantia de democracia15.
Entretanto, o referido modelo econômico não representa, na realidade
brasileira, prosperidade e democracia, como pode ser visto a primeira vista.
Em relação à cidade, por um lado, beneficia os atores econômicos, como
empreiteiras e imobiliárias, dando-lhes liberdades e garantias para usu-
fruir de seus direitos individuais. Por outro lado, acarreta um caos urbano,
marcado por desigualdades, déficits habitacionais, ocupação irregular do
solo, consequência da negação do direito à cidade e consequente ausência
de concretização do direito à moradia.
Sobre isso, Coutinho16 afirma:

Em outras palavras, o chamado “crescimento desordenado das


cidades” – expressão pacificamente aceita como chave para o
diagnóstico da “crise urbana” – não significa nenhuma forma
de “patologia social” a ser corrigida pela racionalidade técnica
e/ou pelas virtudes da gestão democrática, mas tão somente a
própria realização da ordem determinada pela lógica do capital.

Prepondera a exclusão urbanística, na qual apenas parcela da popu-


lação usufrui da cidade, restando aos demais ocupar ilegalmente o solo

767
urbano. Neste sentido, a proliferação de bairros marginais nos países de
terceiro mundo constitui uma característica do processo de reprodução
do operário industrial e do exército de reserva no capitalismo periférico –
tais bairros representam ocupações ilegais de terrenos privados, marcado
pela ilegalidade de suas construções e edificações17.
Esta ilegalidade pode ser considerada funcional. Para o legislativo, por
contribuir para o contexto institucional corrupto e influenciado por interes-
ses particulares. Para o mercado, pela manutenção de mão-de-obra barata,
assim como para a especulação imobiliária. Não obstante, é disfuncional
do ponto de vista coletivo, pois prejudica a sustentabilidade ambiental,
as relações democráticas e a qualidade de vida urbana18.
Ademais, Maricato19 destaca:

Um abundante aparato regulatório normatiza a produção do


espaço urbano no Brasil - rigorosas leis de zoneamento, exi-
gente legislação de parcelamento do solo, detalhados códigos
de edificações são formulados por corporações profissionais que
desconsideram a condição de ilegalidade em que vive grande
parte da população urbana brasileira em relação à moradia e
ocupação da terra, demonstrando que a exclusão social passa
pela lógica da aplicação discriminatória da lei.

O urbanismo brasileiro contempla o espaço urbano legalizado e exclui


as ocupações ilegais do solo. Neste urbanismo, a cidade representada é
apenas aquela em que os moradores possuem título de propriedade, ao
contrário da realidade nas favelas, por exemplo, que não existe o devido
registro da propriedade. Exclui-se essa realidade da apreciação do poder
público, o que acarreta em diversos problemas de ordem jurídica, como
ausência de prestações de serviços, como água, saneamento, educação
e saúde, impossibilitando o direito à moradia digna.
Outro fator importante é que o urbanismo brasileiro é proveniente
da importação de padrões advindos dos países desenvolvidos, aplicados
apenas a parcela da cidade, resultando em uma modernização desigual.
Este planejamento modernista, segundo Maricato20, foi importante ins-
trumento de dominação ideológica, pois ocultou parcela da realidade
da cidade – aquela marcada pela ilegalidade –, formando um mercado
imobiliário restrito e especulativo.

768
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Observado o contexto no qual os direitos à moradia digna e à cidade


são obstados em virtude do modelo econômico e jurídico dominante,
buscar-se-á agora evidenciar este contexto tendo em vista a realidade
urbana brasileira. Assim, o tópico seguinte ocupa-se com a verificação
de tal constatação é resultado de pesquisa realizada em comunidades na
Grande São Luís.

2 A REALIDADE URBANA DA GRANDE SÃO LUÍS:


CONFLITOS E RESPOSTAS JURÍDICAS NO CASO DA
COMUNIDADE DE VINhAIS VELhO, SÃO LUÍS, MARANhÃO

A realidade desigual apresentada no tópico anterior é a que se obser-


va no Brasil em geral e na sociedade maranhense em particular. Nesta,
a situação urbana da Grande São Luís, conglomerado dos municípios de
São Luís, Paço do Lumiar, São José de Ribamar e Raposa, representa foco
de vários conflitos envolvendo moradia.
Neste sentido, destaca-se que o Maranhão é o estado com o maior
déficit habitacional do país, onde de acordo com a Comissão de Direitos
Humanos da OAB faltam mais de 500 mil moradias, e na capital, São Luís,
existem mais de 30 comunidades ameaçadas de despejo21.
Ademais, Dias e Nogueira Júnior22 destacam:

São Luís e suas cidades vizinhas (São José de Ribamar, Paço do


Lumiar e Raposa) sofrem com o problema da falta de políticas
públicas voltadas para a resolução de suas problemáticas, isto
atrelado ao significativo incremento populacional visível nos
aglomerados urbanos diferenciados das unidades analíticas em
questão. Este, por seu turno, faz com que os recursos naturais
daquela primeira referida cidade passem por um processo de
degeneração, haja vista a exaustão e poluição de recursos hídri-
cos (superficiais e subsuperficiais), além de uma não proteção
ostensiva das formações vegetais, degradação do potencial
edafo-pedológico, dos índices de balneabilidade das praias,
dentre outros problemas.

Diante da similaridade das demandas e dos limites da pesquisa de


campo, é possível destacar alguns conflitos nos municípios da Grande
São Luís. Assim, é o caso das seguintes comunidades, das quais se teve

769
contato em razão de projetos de pesquisas e extenção: no município de
São Luís, as comunidades de Vinhais Velho e Novo Angelim; no município
de Paço do Lumiar, as comunidades, Eugênio Pereira, Menino Gabriel,
Renascer e o Loteamento Todos os Santos.
Diante da similitude entre os conflitos existentes, dar-se-á destaque
ao caso de Vinhais Velho, no município de São Luís. Como se pretende
destacar, trata-se de uma realidade marcada pela insegurança jurídica e
interferência das atividades econômicas e estatais em desfavor da popu-
lação local atingida – e consequentemente à consagração e garantia do
direito à moradia.
Vinhais Velho representa uma comunidade presente nas proximidades
do bairro do Recanto dos Vinhais, no município de São Luís. Em torno desta
localidade, projetou-se o empreendimento da Via Expressa, realizado pelo
governo do Maranhão, que interligará a Avenida Carlos Cunha às avenidas
Jerônimo de Albuquerque e Daniel de La Touche, sob a justificativa de
melhorar o tráfego e o deslocamento da população.
Mota23 apresenta que a comunidade de Vinhais Velho passou pelos
vários momentos da história das Américas, desde o Brasil colônia até a
atualidade. Inicialmente, foi uma terra de indígenas, até que os grupos
pertencentes à nação Tupinanbá foram conquistados pelos franceses.
Posteriormente, o território integrou-se ao território dos portugueses,
passando pela construção da Aldeia da Doutrina e posterior Vila do Vi-
nhais, em 1757.
Constata-se que durante todo o século xIx consolidou-se o processo de
expulsão das populações nativas e ocupação das terras por fazendeiros.
Em Vinhais Velho, poucas famílias descendentes da nação Tupinambá
resistiram em torno da capela de São João Batista, construída desde a
colonização portuguesa24.
Na atualidade, a localidade marcou-se pelo isolamento, posterior
especulacao imobiliária, observando a construção de diversos conjuntos
habitacionais e condomínios, mas “preservou a cultura tradicional, seja
na memória dos anciãos como nas práticas de seus moradores”25.

770
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Sobre o empreendimento, a construção da Via Expressa ligará os bairro


do Renascença e Jaracati aos bairros do Cohafuma, Recando dos Vinhais,
Ipase e Maranhão Novo. A justificativa do interesse público é refutada
na medida em que a obra privilegiará localidades que concentram maior
riqueza e que contribuem para o consumo, pois nas extremidades da re-
ferida via, encontram-se 4 shoppings centers: de um lado, os shoppings
São Luís, Jaracati e Monumental/Tropical, e, de outro, o Shopping da Ilha.
Neste sentido, Sodré e Dias26 apresentam:

O empreendimento “Via Expressa” é justificado politicamente


como uma intervenção de menos de 7,0 km na zona urbana de
São Luís (considerado como uma “rodovia estadual”, de maneira
ilógica), tendo em vista a demanda por novos espaços/vias de
circulação. Contudo, não foi planejado de forma adequada, tendo
em vista ligar as avenidas Carlos Cunha e Daniel de La Touche,
que, di per si, são duas vias absolutamente congestionáveis, o
que pode inviabilizar, no curto prazo de operação, o próprio
empreendimento, permitindo-se apenas escoamento de trânsito
e mobilidade urbana entre três dos principais shopping-centers
da Capital Maranhense.

Ademais, tal acarretará impactos socioambientais, culturais e religiosos


aos atingidos. Entre os atingidos pela obra destacam-se a Comunidade do
Vinhais Velho, que sofrerá impactos em suas fontes naturais, reservas de
manguezais e vegetação nativa, e o conjunto do Maranhão Novo, que terá
a destruição de área verde, parque natural e fauna existentes na região27.
Sobre a situação da comunidade do Vinhais Velho, Mota28 assevera:

[...] a Via Expressa ameaça passar por cima da comunidade,


expulsando famílias que sempre viveram no lugar, que manti-
veram com seu esforço pessoal as tradições herdadas de seus
ancestrais. Uma das lideranças da comunidade é Dona Ubaldina,
hoje com oitenta e cinco anos, que desde sua mocidade zela
pela igreja secular. Dedicação que vai além do cuidado com o
templo, mantendo as tradições do catolicismo popular, com seu
calendário litúrgico composto por várias festividades, incluindo
rezas, cânticos, ladainhas e procissões.
Tragicamente, a família de seu Olegário, d. Ubaldina e de Maria
Vitória, anciãos na faixa dos oitenta anos, cujos filhos e cônjuges,
netos e bisnetos, totalizando mais de cinquenta pessoas, que até
agora viviam mansamente nas propriedades deixadas por seus
ancestrais, tiveram parte de suas moradias condenadas para
passagem da Via Expressa.

771
No processo de desapropriação, justificado pelo interesse público, as
casas das famílias atingidas chegam a ser avaliadas por valores próximos
a 30 mil reais. Diz respeito a residências simples, mas com reservas de
mata nativa e nascentes de águas. Além disto, o valor oferecido impossi-
bilita a compra de moradia na localidade, por ser uma área valorizada29.
Em consequência, na medida em que as famílias são desalojadas, as
mesmas são levadas a ocupar áreas marginais e periféricas da cidade,
aprofundando problemas urbanísticos em relação à irregularidade das
condições de moradia.
Em resumo, as demandas envolvem o despejo da população local, a
degradação do meio ambiente e do patrimônio histórico, o deslocamento
para as periferias e consequentes ocupações irregulares do solo urbano.
Deste modo, observa-se a inefetividade de garantias fundamentais como o
direito à moradia e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Por conta desta situação, ingressou-se com ação judicial (Processo nº
0003100-90.2012.8.10.0000) com o intuito de suspender as obras da Via
Expressa. No entanto, em primeiro grau, postergou-se a análise da liminar
para depois da contestação dos réus, o que levou o Ministério Público Es-
tadual a ingressar com recurso (Agravo de Instrumento nº 19.517/2012),
deferindo-se a liminar e suspendendo as obras.
Trata-se de verdadeira insegurança e imprevisibilidade da atuação do
poder judiciário – de um lado atua em favor das investidas de particulares
e do poder público e, por outro, de forma sensível aos direitos da popu-
lação local. Trata-se de uma atuação paradoxal, que não leva em conta
a existência de direitos e prima por interesses ditos de interesse público
– como se a garantia à moradia digna também não fosse.
Não obstante, o recurso interposto pelo MPE foi prejudicado, pois o
juízo de primeiro grau retratou a decisão anteriormente proferida. Ademais,
existe acordo homologado pelo juiz da 8ª Vara da Justiça Federal, “no qual
as obras somente podem ser retomadas após o Estado cumprir suas obri-
gações em relação à proteção do patrimônio arqueológico ali existente”30.

772
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Nestes termos, destaca-se a ementa:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RETRATAÇÃO


DA DECISÃO AGRAVADA PELO JUIZ DE PRIMEIRO GRAU. PERDA
SUPERVENIENTE DO INTERESSE RECURSAL. ARTIGO 529 DO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. PREJUDICIALIDADE RECONHECI-
DA. I - O juízo de primeiro grau, ao proferir decisão interlocutória,
impugnada mediante agravo de instrumento, tem a faculdade de
reconsiderar sua decisão, em sede de juízo de retratação, como
permite o artigo 529 do Código de Processo Civil. II - Resta pre-
judicado o recurso quando a decisão recorrida é reconsiderada
pelo juiz de primeira instância, haja vista o desaparecimento do
interesse que levou o recorrente a buscar a modificação da de-
cisão originária. III - O interesse recursal somente se faz patente
quando o recurso puder ser útil ao recorrente, condição que deve
ser aferida até que se ultime o julgamento do inconformismo.
IV - Agravo prejudicado31.

Assim, atenta-se a uma manifestação positiva do Poder Judiciário em


relação à presente questão urbana. Mas, como será observado no tópico 3,
esta não é a realidade dominante em relação às prestações jurisdicionais,
pois em virtude de problemas na organização interna da própria institui-
ção, sem uma identidade voltada para a solução de problemas coletivos,
observa-se constante desrespeito a direitos e garantias fundamentais – a
exemplo da decisão inicial do processo em análise, que negou a suspensão
do empreendimento.
No entanto, diante do cenário instaurado, a população da comunidade
cedeu às investidas das empresas e do governo do Estado do Maranhão, e
aceitou um acordo extrajudicial. Demais comunidades também sofreram
e sofrem com as investidas particulares e públicas e, por consequência,
com a insegurança jurídica em relação ao direito à moradia. Como se
pretende destacar no presente artigo científico, trata-se de uma tensão
social em que o mercado e o Estado preponderam frente à comunidade.

3 ANáLISE CRÍTICA àS RESPOSTAS JURÍDICAS


DOS CONFLITOS URBANOS: UMA MUDANÇA DE PARADIGMA

As manifestações sociais envolvendo o direito à moradia na Grande


São Luís, como visto no caso de Vinhais Velho, acabam recorrendo a

773
soluções judiciais ou extrajudiciais. No entanto, nem sempre os conflitos
existentes se solucionam de forma satisfatória, o que se observa quando
se analisa as relações entre o modelo jurídico dominante, as instituições
jurídicas envolvidas e os interesses que os circundam.
Assim, o presente modelo jurídico estatal (de seu ordenamento posi-
tivo e de seu órgão de decisão) limita-se a regulamentar conflitos inte-
rindividuais/patrimoniais e não sociais de massa – não garantindo uma
regulamentação de tensões coletivas que digam respeito ao acesso à terra
e ocupações de áreas rurais e urbanas32.
Observa-se no contexto brasileiro um confronto que envolve disputa
pela posse, que se desenrola em uma estrutura agrária de privilégios
e injustiças, assentada na dominação política autoritária e clientelista,
marcada pelo capitalismo especulativo e pelo comprometimento com os
interesses das tradicionais elites agrárias33.
Ademais, destaca-se:

O aspecto obsoleto, estático e excludente das instituições nor-


mativas oficiais (tanto no âmbito da legislação positiva quanto
do Poder Judiciário), que acarreta precária eficácia da legalidade
dominante e profunda crise de legitimidade, abre espaço para os
movimentos sociais de marginalizados e despossuídos – os ‘sem-
-teto’ e os ‘sem-terra’ – que, sem acesso à Justiça oficial (via de
regra lenta e onerosa), utilizam-se de práticas jurídicas paralelas
e alternativas consideradas ‘ilegais’. Essas praticas cotidianas
dos movimentos sociais definem, nos horizontes do que a ordem
legal vigente chama de ‘ilegalidade’, novo espaço instituinte de
cujas relações e rupturas, calcadas no binômio ‘legal/ilegal’,
emergem direitos igualmente reconhecidos que acabam não só
legitimando a ‘ilegalidade’, mas edificando outro Direito’ sob
formas de legitimação34.

As instituições jurídicas que atuam ao lado dos movimentos sociais


são dotados de uma atuação diferenciada e uma visão crítica em relação
ao direitos. Como exemplo, temos as Defensorias Públicas, os advogados
populares e, por vezes, o Ministério Público. Isto é resultado justamente da
aproximação com as reais necessidades das populações atingidas e com as
identidades de cada instituições, reconhecendo-se enquanto instrumento
de combate e mudança social.

774
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

No entanto, o Poder Judiciário, diferentemente, nem sempre consegue


solucionar os conflitos existentes, acarretando em respostas desfavoráveis
aos movimentos sociais ou a vias extrajudiciais de resolução de conflitos.
No caso dos conflitos urbanos envolvendo moradia, existem direitos e
garantias fundamentais presentes no ordenamento jurídico pátrio que
fundamentam a concretização das necessidades da população atingida.
Neste sentido, é necessário destacar que a função social da propriedade
é um assunto recorrente nos livros de direitos reais, sendo necessário que
a propriedade seja útil para a coletividade. Logo, se o proprietário de um
terreno não atribui a devida função social à propriedade, o mesmo pode
sofrer sanções que o ordenamento jurídico estabelece, como é o caso
da desapropriação, do parcelamento compulsório e do Imposto sobre
a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) progressivo no tempo.
Sobre isso, esclarecem Farias e Rosenvald35:

Na função social da posse o possuidor não é mais inserido entre


os erga omnes, como mero sujeito passivo universal de um dever
de abstenção, que difusamente titulariza o direito subjetivo de
exigir que o proprietário cumpra as suas obrigações perante a
coletividade. Aqui, o possuidor adquire individualidade e busca
acesso aos bens que assegurem a si e a sua família o passaporte
ao mínimo essencial. São casos em que a propriedade recebe
função social, mas quem a concede não é o proprietário, porém
um possuidor.

Entretanto, mesmo com a existência da função social da propriedade


e função social da posse, o que continua a ocorrer é o total desprezo a
tais institutos presentes no nosso ordenamento. Observam-se reiteradas
decisões judiciais favoráveis ao proprietário, mesmo não atendendo à
função social, e desfavoráveis aos possuidores, que atribuíram função
social no possuir a propriedade.
Dentre os fatores da presente realidade, aponta-se que a não concre-
tização do direito à moradia digna em razão “da inércia do poder público,
[...] da perda de funcionalidade dos serviços públicos e do tensionamento
e desagregação do tecido social”36. Com isso, os planos diretores, as po-
líticas públicas, as decisões judiciais, atendem aos interesses das classes

775
abastadas, abarcando a cidade legalizada e excluindo aqueles que resi-
dem na ilegalidade, que não usufruem de serviços públicos básicos e de
garantias quanto à moradia.
As falhas do poder judiciário podem ser vistas como uma inadequação,
não cumprindo com suas funções, tais quais garantir direitos e resolver
problemas, em razão da insuficiência na formação dos juízes e vícios
institucionais, marcada pela lentidão, formalismo, elitismo e distante da
realidade social37.
Não obstante, observa-se a presença de alguns juízes, dotados de
consciência social e responsabilidade, que assumem a liderança das
reformas, objetivando dar ao judiciário a organização necessária para
cumprir suas funções38.
Tendo em vista alguns conflitos envolvendo os movimentos sociais
urbanos, o Judiciário comporta-se das seguintes formas: a) atuação tradi-
cional em nível predominante – aplicação da legislação estatal oficial; b)
atuação inoperante em nível crescente – negociações pela via administra-
tiva e; c) atuação alternativa em nível de exceção – por relevância pública
e justiça social, o Judiciário decide em favor dos invasores, reconhecendo
direitos em face das carências e necessidades fundamentais39.
Ademais, as comunidades ameaçadas de despejo encontram-se em
estado de resistência, visando ter atendidas suas necessidades básicas e,
para tal, organizam-se e protagonizam as manifestações sociais. Isto é
notado nos espaços políticos do Capitalismo periférico, no qual surgem
tensões sociais provenientes da exclusão de satisfazer necessidades ma-
teriais, surgindo novos agentes atores de produção jurídica40.
Das resistências sociais surgem algumas respostas do poder público
e da iniciativa privada, entretanto, insuficientes, como os Termos de
Ajustamento de Conduta. No entanto, estes não garantem os direitos
reivindicados e mantêm o Estado numa posição de inércia. Assim,
Damous41 evidencia a incapacidade de o Estado proporcionar amparo
constitucional ao direito à cidade tendo em vista os problemas relacio-
nados ao direito urbanístico.

776
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

No atual contexto dos países de capitalismo periférico, o modelo jurídico


vigente é caracterizado por uma estrutura lógica e formal que é insuficiente
em face dos problemas coletivos. Esta exaustão suscita a construção de
um novo modelo de pensamento, substituindo aquele que, centrado na
resolução dos conflitos individuais, não é capaz de dar respostas satisfa-
tórias às questões complexas da sociedade.
A exaustão é observada na medida em que seus conceitos e categorias
são esvaziados e problematizados, acarretando na carência de seus códi-
gos, modelos analíticos e esquemas cognitivos42. O modelo jurídico vigente,
enraizado no estatismo, no tecnicismo e na racionalidade, mostra-se cada
vez mais impróprio para resolver os conflitos coletivos, necessitando-se
de uma mudança de paradigma.
Ocorre que o estudo da dogmática jurídica consistiria em aprender as
últimas contribuições técnicas baseadas em uma atomização social uni-
ficada por uma ordem jurídico-formal – obtida por uma técnica singular,
impessoal e neutra – que constrói o Direito e fixa critérios axiomáticos43.
Neste compasso, tal dogmática é objeto de crise, pois as suas regras além
de não resolverem os problemas existentes, não conseguem nortear a
convivência em sociedade44.
Indica-se nesta insuficiência uma ordem que não apenas disciplina e
regulamenta as forças nas relações, mas monopoliza a produção legisla-
tiva, agora posta em cheque – aqui, a reflexão jurídica dos profissionais
torna-se incapaz de interpretar fatos inéditos45. O esgotamento do modelo
jurídico reflete então a incapacidade em resolver e lidar com os problemas
que se instauram na sociedade hodierna, que advém da desconsideração
das necessidades sociais e defesa de seus interesses.
Assim sendo, esta ideia de insuficiência também é produto da inter-
dependência existente entre o modelo jurídico e o modelo econômico.
A influência direta dos atores econômicos e a desconsideração das ne-
cessidades sociais, aliando-se à exclusividade do Direito formulado pelo
Estado, torna o modelo jurídico cada vez mais incapaz de solucionar os
conflitos sociais.

777
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que a atuação dos governantes, dos órgãos e integrantes da


organização judicial atendem os interesses alheios à população oprimida,
favorecendo a elite local, o mercado imobiliário e o interesse empresarial.
Dessa forma, é atestado que o Estado, em sua prestação jurisdicional e
administrativa, sofre influência de atores econômicos, atendendo às suas
necessidades e sendo inerte quanto às demandas da população excluída.
O caso de Vinhais Velho exemplifica o contexto urbano da Grande São
Luís, marcado por investidas do capital particular e público e consequente
insegurança de direitos da comunidade local. Assim, observam-se resistên-
cias sociais e jurídicas, mas, diante da preponderância das necessidades
do mercado, não se observa uma garantia e previsibilidade na atuação
das instituições jurídicas e administrativas.
Neste aspecto o próprio direito à moradia é posto em contraposição às
liberdades individuais, à propriedade, ou seja, direitos fundamentais de
primeira geração possuem grande resguardo devido ao desenvolvimen-
to da tutela de direitos individuais e liberais – o que não se observa em
relação aos direitos da coletividade. É o que se constata na Grande São
Luís, onde diversas comunidades são atingidas pela insuficiência estatal
em garantir o direito à moradia, mas eficientes na tutela dos direitos eco-
nômicos, por exemplo.
Assim, o direito à moradia digna é freqüentemente lesionado, bem
como outros direitos sociais, enquanto direitos individuais como o direito
à propriedade são efetivados. Dessa forma, o resultado evidente da não
concretização do direito fundamental à moradia é a ilegalidade latente nos
espaços urbanos, marcada por ocupações de terrenos e imóveis, existindo
uma insegurança jurídica e fática.

778
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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NOTAS

1 Graduanda em Direito. Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Email: mariviana90@hotmail.com.


2 Mestrando em Direito e Instituições do Sistema de Justiça. Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Bol-
sista da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Email: ruandidier@msn.com.
3 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3 ed. rev.
e atual. São Paulo: Editora Alfa Omega, 2001, p. 80.
4 WOLKMER, op. cit., p. 80.
5 WOLKMER, op. cit., p. 80-81.
6 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. São Paulo: LP&M Pocket, 2009, p. 30.
7 WOLKMER, op. cit., p. 83.
8 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Direitos Reais. v. 5. 8. ed. Bahia:
Editora JusPODIVM, 2012, p. 97.
9 FARIAS; ROSENVALD, op. cit., p. 78.
10 WOLKMER, op. cit., p. 107.
11 MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias. In.: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos;
MARICATO, Ermínia. A Cidade do Pensamento Único: Desmanchando consensos. 3 ed. Petrópolis: Editora
Vozes, 2002, p. 124.
12 MARICATO, op. cit., p. 124-125.
13 V FÓRUM SOCIAL MUNDIAL. Carta Mundial pelo Direito à Cidade. Porto Alegre, 2005. Disponível em

780
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

<http://www.forumreformaurbana.org.br/index.php/documentos-do-fnru/41-cartas-e-manifestos/133-carta-
-mundial-pelo-direito-a-cidade.html>. Acesso em: 10 mai. 2012.
14 DAMOUS, Wadih. Prefácio – Cidades e sustentabilidade. In:AHMED, Flávio. COUTINHO, Ronaldo. Cidades
sustentáveis no Brasil e sua tutela jurídica. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. vii.
15 GALEANO, op. cit., p. 31.
16 COUTINHO, Ronaldo. Sustentabilidade e Riscos nas Cidades do Capitalismo Periférico. In: LEITE, José Rubens
Morato; FERREIRA, Heline Sivini; BORRARI, Larissa Verri (Orgs.). Estado de Direito Ambiental: Tendências.
2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitaria- Grupo GEN, 2010, p. 177.
17 SOUSA SANTOS, Boaventura. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto
Alegra: Fabris, 1988, p. 10.
18 MARICATO, op. cit., p. 123.
19 MARICATO, op. cit., p. 147.
20 MARICATO, op. cit., p. 124.
21 O IMPARCIAL. Déficit habitacional no Maranhão é o maior do país. 2011. Disponível em: <http://
www.oimparcial.com.br/app/noticia/urbano/2011/01/27/interna_urbano,70873/index.shtm>. Acesso em
10 fev. 2012.
22 DIAS, Luiz Jorge Bezerra da Silva; NOGUEIRA JÚNIOR, João de Deus Matos. Contribuição às análises
da problemática ambiental da Ilha do Maranhão. In: Ciências humanas em Revista. São Luís, v. 3, n. 2,
dez.2005, p. 128.
23 MOTA, Antônia da Silva. Vinhais Velho Ameaçado pela Via Expressa. 2012. Disponível em: <http://
tribunalpopulardojudiciario.wordpress.com/2012/02/05/vinhais-velho-ameacado-pela-via-expressa/>.
Acesso em: 10 mai. 2012.
24 MOTA, op. cit., 2012.
25 MOTA, op. cit., 2012.
26 SODRÉ, Erika Suzana Pereira; DIAS, Luiz Jorge Bezerra da Silva. A implatação da Via Expressa e seus
impactos ambientais em São Luís (Maranhão). xVII Encontro Nacional de Geógrafos. Belo Horizonte,
jun. 2012. Disponível em: <www.eng2012.org.br/>. Acesso em: 17 out. 2012
27 CDHM – Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Ofício à presidente da Câmara Federal. 2012.
28 MOTA, op. cit., 2005.
29 MOTA, op. cit., 2005.
30 VIAS DE FATO. Movimento ocupe no Vinhais Velho. Disponível em: <http://www.viasdefato.jor.br/
index2/index.php?limitstart=162>. Acesso em 25 ago. 2012.
31 MARANHÃO. TJ-MA. Processual civil. Agravo de Instrumento. Retratação da decisão agravada pelo juiz de
primeiro grau. Perda superveniente do interesse recursal. Artigo 529 do código de processo civil. Prejudiciali-
dade reconhecida. Ag 19.517/2012. Des. Marcelo Carvalho Silva, 2012.
32 WOLKMER, op. cit., p. 105.
33 WOLKMER, op. cit., p. 106.
34 WOLKMER, op. cit., p. 107.
35 FARIAS, ROSENVALD, 2012, p. 77.
36 APPARECIDO JUNIOR, José Antonio. Meio ambiente urbano e a concessão urbanística – A proposta do
município de São Paulo. In: Revista Magister de Direito Ambiental Urbanístico. Porto Alegre: Magister,
ago-set, 2005, p. 48.
37 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 79-80.
38 DALLARI, op. cit., p. 80.
39 WOLKMER, op. cit., p. 108-109.
40 WOLKMER, op. cit., p. 119.
41 DAMOUS, op. cit., p. vii.
42 LYRA FILHO, op. cit., p. 39.
43 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1 ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 43.
44 WOLKMER, op. cit., p. 75.
45 FARIA, op. cit., p. 46.

781
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O inadimplemento na prestação
do direito à moradia e a legitimidade
da ocupação: o caso do Circo-Escola
em São Paulo

Marcelo Eibs Cafrune1

INTRODUÇÃO

O Estado brasileiro reconheceu expressamente, por meio da Emenda


Constitucional n. 26/2000, o direito à moradia como direito social fun-
damental. A Lei Federal n. 10257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto da
Cidade – instituiu como diretriz geral da política urbana, dentre outras,
“a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à
terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura ur-
bana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para
as presentes e futuras gerações” (art. 2°, I).
Tal reconhecimento ao direito à moradia é fruto de um conjunto de
reivindicações já presentes no período constituinte (1987-88), articuladas
no âmbito do Movimento Nacional pela Reforma Urbana2, às quais foram
agregadas contribuições do período posterior. Conforme Letícia Osório,
“no que se refere ao direito humano à moradia adequada, a década de 90
representou o período de maior clarificação e progresso dos fundamentos
legais internacionais referentes a esse direito”3.
No âmbito judicial, contudo, um conjunto significativo de decisões
– fortemente influenciadas pelas tradições do Direito Civil e do Direito
Processual Civil –, ao enfrentarem a situação de conflito em ações pos-
sessórias, deferem liminar ou definitivamente ordem de reintegração de
posse em benefício do proprietário – cuja posse é presumida – e em prejuízo
de pessoas não proprietárias no exercício de posse para fins de moradia.

783
Algumas decisões esparsas têm indicado a possibilidade de que o Poder
Judiciário reconheça no caso concreto a) a legitimidade da posse velha
ou b) o caráter político – e legítimo – da posse nova. Tais decisões podem
significar, de um lado, uma possível mudança de postura no reconheci-
mento do direito à moradia no Brasil, ou, de outro, a disposição de juízes
de evitar situações de despejos forçados resultantes de reintegrações de
posse com suas frequentes violações aos Direitos Humanos.
Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é analisar as decisões de 1° grau
exaradas no âmbito do processo judicial n. 0045635-59.2011.8.26.0053,
que tramitou na 3ª Vara de Fazenda Pública do Foro Central da Comarca
de São Paulo, tendo como requerente o Município de São Paulo, como
requeridos a Frente de Luta por Moradia e demais ocupantes da área, e
como Juiz de Direito, o magistrado Luis Fernando Camargo de Barros Vidal.
O desfecho de tal processo, no 1° grau, representa uma exceção, no
contexto brasileiro, às situações de ocupação de imóveis urbanos não
utilizados ou subutilizados, como forma de protesto ou de exercício do
direito à moradia. Destaca-se a presente decisão, não apenas por ser ex-
ceção à praxe judiciária, como também, e principalmente, por suas razões
de decidir, as quais podem estar influenciadas pela corrente teórica do
neoconstitucionalismo.

O NOVO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO


E A GARANTIA DE DIREITOS SOCIAIS

Após a promulgação da Constituição da República Federativa do Bra-


sil de 1988, inúmeras questões novas estavam colocadas aos juristas. A
Constituição era resultado de aspirações efetivamente transformadoras,
sendo difícil imaginar que algum grupo ou organização social possa ter
ficado indiferente ao momento constituinte. Dessa forma, a Constitui-
ção foi profícua na garantia de direitos diversos, passando a regular um
conjunto amplo de aspectos da vida social. Pode-se dizer que nela foi
sintetizado um programa de transição entre o contexto autoritário, no

784
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

qual as violações de direitos e as desigualdades sociais eram toleradas


ou promovidas pelo Estado, para um futuro democrático, de garantia de
direitos e de promoção da igualdade.
Trata-se, em síntese, de uma carta política de características inéditas na
história brasileira, para a qual se fez necessária a configuração de novas
teorias para a interpretação e para a efetivação das normas nela contidas4.
Transcorridos vinte e quatro anos do momento inaugural da nova ordem
constitucional, é notável observar que, no debate entre as diferentes tra-
dições do pensamento jurídico nacional e da progressiva modificação do
corpo de ministros do Supremo Tribunal Federal, estejam fortalecidos os
argumentos baseados no novo constitucionalismo.
Para se alcançar o patamar hermenêutico atual, há que se destacar
algumas mudanças de paradigmas que possibilitaram a ascensão do Di-
reito Constitucional brasileiro. Luís Roberto Barroso aponta três marcos
fundamentais. No marco histórico, afirma que a Constituição de 1988
representou um avanço no que chamou de “capacidade de simbolizar
conquistas e mobilizar o imaginário das pessoas”5. No marco filosófico,
destaca a ascensão do pós-positivismo, resultante da “superação histórica
do jusnaturalismo e [do] fracasso político positivismo jurídico”6. Por fim,
no marco teórico, indica a existência de três grandes transformações: “a)
o reconhecimento de força normativa à Constituição; b) a expansão da
jurisdição constitucional; c) o desenvolvimento de uma nova dogmática
da interpretação constitucional”7.
De forma sintética, é possível afirmar que a nova interpretação consti-
tucional não substitui, de todo, os elementos tradicionais de interpretação
no Direito, entretanto, ela se utiliza de um conjunto diverso de métodos e
referências teóricas. As novas categorias são ilustrativas: conceitos jurí-
dicos indeterminados, princípios, colisões entre normas constitucionais,
ponderação e argumentação8. Ao se construir, o novo direito constitucio-
nal – ou neoconstitucionalismo – acabou operando um processo amplo
de constitucionalização do direito, “levando à adoção de novas leituras
de normas e institutos”9.

785
Para Daniel Sarmento, “as teorias neoconstitucionalistas buscam
construir novas grades teóricas (...), em substituição àquelas do positi-
vismo tradicional, consideradas incompatíveis com a nova realidade”10.
Como consequência, “a leitura clássica do princípio da separação de
poderes, que impunha limites rígidos à atuação do Poder Judiciário, cede
espaço a outras visões mais favoráveis ao ativismo judicial em defesa
dos valores constitucionais”11.
Esta nova postura acarreta, de um lado, a relativização do princípio
majoritário, apostando em concepções substantivas da democracia, em
que a proteção às minorias e aos direitos fundamentais ganha relevo e, de
outro, a abertura do ordenamento jurídico e, especialmente, do sistema
judicial, a crescente utilização de princípios jurídicos de natureza axioló-
gica. A argumentação jurídica incorpora de forma significativa os deba-
tes morais, assim, “as fronteiras entre os dois domínios [direito e moral]
torna-se muito mais porosa, na medida em que o próprio ordenamento
incorpora, no seu patamar mais elevado, princípios de justiça, e a cultura
jurídica começa a ‘levá-los a sério’”12.
Tais características vão ao encontro do aumento do protagonismo
judicial, por meio da chamada judicialização da política e do chamado
ativismo judicial. Ainda que sejam fenômenos relacionados, a primeira é
mais ampla que o segundo. A própria Constituição de 1988 – e sua com-
preensão histórica – criou as condições necessárias para o desenvolvi-
mento desses fenômenos, seja em razão da ampliação das ferramentas
de controle constitucional e do seu rol de proponentes, seja por causa do
elenco de grande rol de direitos cuja aplicabilidade passou a ser imediata.
A judicialização da política, conforme diversos estudos vêm demons-
trando tem causas internas e externas ao poder judiciário, sendo notórias
as situações em que os partidos políticos e seus integrantes, com assento
do Congresso Nacional, judicializam debates realizados em seu âmbito.
Por isso, “é praticamente impossível que alguma questão relevante seja
resolvida no âmbito parlamentar sem que os perdedores no processo
político recorram à nossa Corte Suprema, para que dê a palavra final à

786
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

controvérsia, com base na sua interpretação da Constituição”13.


Já o ativismo judicial pode ser compreendido como atitude, decisão ou
comportamento dos magistrados no sentido de revisar temas e questões
de competência de outras instituições14. Alexandre Garrido da Silva, para
embasar seus estudos sobre o ativismo judicial, cita Ran Hirschl, que define
esse processo contemporâneo como Juristocracy, ou governo dos juízes. A
hipótese explicativa desse autor é a preservação hegemônica. Segundo ele:

O poder judicial não cai do céu; ele é politicamente construído.


Acredito que a constitucionalização dos direitos e o fortaleci-
mento do controle de constitucionalidade das leis resultam de
um pacto estratégico liderado por elites políticas hegemônicas
continuamente ameaçadas, que buscam isolar suas preferências
políticas contra mudanças em razão da política democrática,
em associação com elites econômicas e jurídicas que possuem
interesses compatíveis15.

Para compreender o fenômeno de forma mais clara, importante des-


crever as duas principais correntes teóricas que se contrapõem no que diz
respeito à postura judicial para a interpretação constitucional, conforme
classificação original de Cass Sunstein, adotada por Garrido da Silva. São
elas: a) perfeccionismo; e b) minimalismo.
O perfeccionismo é, nos EUA, sustentado por magistrados e autores
liberais, que buscam “fazer da constituição o melhor que ela pode ser”.
Por isso, em casos controversos, os tribunais devem produzir “juízos in-
terpretativos independentes” sobre o significado do texto constitucional
com base em argumentos de princípios. Dessa forma, juízes perfeccionistas
elaboram discursos fortemente prescritivos, de natureza principiológica e
propensos à moralização do Direito. Esta postura é criticada “por descon-
siderar a falibilidade judicial nos casos difíceis, particularmente pelo fato
de os juízes não possuírem especial expertise em teoria política, ética ou
moral, e por conceder muito poder a magistrados que não são legitimados
democraticamente”16.
Já o minimalismo, ao contrapor-se ao perfeccionismo, defende a
postura de juízes menos ambiciosos, que se restringem, em seus pro-

787
nunciamentos, apenas àquelas questões consideradas indispensáveis
para a justificação da decisão do caso em exame. Algumas vantagens
atribuídas ao minimalismo são: a redução da dificuldade na tomada de
decisão colegiada em questões polêmicas, a capacidade de diminuir os
erros judiciais. Trata-se de um modelo que, segundo Garrido da Silva, é
cauteloso na construção de grandes teses.
Esta oposição de posturas teóricas e judiciais, especialmente no que
diz respeito à forma e à extensão da aplicabilidade das normas constitu-
cionais, é relativamente recente no Brasil, em razão de a praxe judicial
recomendar a postura minimalista aos magistrados, tradicionalmente
amparados pela lógica formal positivista de subsunção do fato à norma.
Ainda que seja provável, conforme indicado, que esta assunção de pode-
res pelo judiciário tenha como objetivo ressaltar sua importância política,
também é verdadeiro reconhecer que a esfera judicial tem buscado agir
conforme as expectativas da sociedade contemporânea de forma a ampliar
a efetividade dos direitos fundamentais.
Conforme Carlos Bernal Pulido, “os direitos fundamentais são direitos
subjetivos que possuem propriedades específicas”, tais como a validade
jurídica, seu caráter abstrato, sua generalidade17. Mas a propriedade espe-
cífica que o diferencia dos demais direitos subjetivos é seu caráter funda-
mental. Para determiná-lo, devem-se definir suas propriedades formais e
materiais. As propriedades formais referem-se à origem desses direitos em
certas fontes. Tais fontes podem estar: no capítulo de direitos fundamentais
da Constituição, na presença genérica na Constituição, no pertencimento
ao bloco de constitucionalidade, e no reconhecimento judicial.
Quanto às propriedades materiais, Pulido afirma que os direitos fun-
damentais podem ser derivados de direitos morais, ou seja, ainda que
determinado direito subjetivo não esteja formalmente previsto, ele pode
ser reconhecido como direito se decorrer de três dimensões da pessoa po-
lítica: a liberal, a democrática e aquela atinente ao Estado Social. Por isso,
considera-se como direito fundamental o direito subjetivo que “protege as
faculdades morais da pessoa liberal ou sua capacidade de discernimento,

788
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ou quando sua finalidade é satisfazer as necessidades fundamentais da


pessoa revestir para ter o status de direitos fundamental”18, bem como
quando assegura igualdade no exercício dessas faculdades.
Essa classificação tem consequência para a ponderação, uma vez que
se os direitos subjetivos são passíveis de entrar em colisão entre si, “um
direito possuir ou não certas propriedades fundamentais é uma razão para
conceder a esse direito um peso maior ou menor na ponderação em que
ele enfrentará outros direitos subjetivos ou bens coletivos”19. A ponderação
de princípios e direitos fundamentais consolidou-se como método típico na
argumentação jurídica contemporânea para a resolução de casos difíceis,
nos quais as soluções não estão – e não podem estar – prontas no Direito
vigente, por sua própria natureza.
Em um ordenamento jurídico plural, a Constituição garante princípios
e direitos fundamentais, de mesma hierarquia jurídica, que ao colidirem
eventualmente entre si levam à necessidade de ponderação do juiz ou do
legislador, que deverá conferir maior intensidade possível, no caso, aos
princípios e direitos fundamentais em conflito20.
Nesse âmbito de discussão, ganhou destaque o tema da efetividade
dos direitos sociais, direitos subjetivos fundamentais que passaram a ser
judicializados por seus detentores, passando a ser reconhecidos pelo
Poder Judiciário como de prestação imediata, realizando a promessa de
efetividade da Constituição. Dentre as determinações judiciais para aten-
dimento dos direitos sociais ganhou notoriedade a questão do direito à
saúde, cuja tutela excessiva tem sido objeto de ponderação teórica quanto
aos limites da atuação do Poder Judiciário na definição de prioridades no
orçamento público21.
Ainda que haja debate sobre os limites do Judiciário quanto à tutela
jurisdicional para a efetivação do direito à saúde, está consolidado o en-
tendimento de que o Judiciário pode atuar para efetivar direitos sociais
fundamentais no caso concreto, por meio do método de ponderação. Tal
compreensão resulta do fato de que o neoconstitucionalismo representa
atualmente no Brasil, não apenas uma corrente teórica para a compre-

789
ensão, interpretação e argumentação da Constituição, dos direitos funda-
mentais e dos princípios nela presentes, como também uma experiência
consolidada nos espaços judiciais enquanto ferramenta de decisão com
vistas à máxima efetivação da Constituição.

O RECONhECIMENTO DO DIREITO à MORADIA


COMO DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL

No que tange ao direito à moradia, há muitos elementos que histo-


ricamente impedem ou limitam sua efetivação pelo Poder Judiciário.
Poder-se-ia, a título de especulação teórica, listá-los para então analisar
eventuais semelhanças e diferenças com o direito à saúde, o que incluiria
a discussão sobre os aspectos econômicos, sua necessidade para o res-
peito ao princípio da dignidade da pessoa humana, sua importância para
a garantia do direito à vida22.
Outra dimensão da discussão envolveria cogitar situações de reivin-
dicação do direito à moradia e de sua respectiva judicialização para ava-
liar o tratamento judicial do tema. Sendo o direito social à moradia um
direito subjetivo que contem propriedades formais e materiais as quais
o classificam como direito fundamental, faz-se necessário destacar duas
características ímpares: a necessidade de um local onde ele é exercido e
a impossibilidade de reprodução de localização23.
Destaca-se, para fins de delimitação do tema trabalhado, o fato de que
um conjunto significativo de decisões – fortemente influenciadas pelas
tradições do Direito Civil e do Direito Processual Civil –, ao enfrentarem
a situação de conflito em ações possessórias, deferem liminar ou defini-
tivamente ordem de reintegração de posse em benefício do proprietário
– cuja posse é presumida – e em prejuízo de pessoas não proprietárias no
exercício de posse para fins de moradia.
Tratar da efetividade do direito à moradia no contexto de conflitos
possessórios se justifica porque, na grande maioria dos casos, é nas ações
possessórias que este direito social aparece judicializado, no momento

790
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da defesa dos réus. Diferentemente do direito social à saúde, são raras


as situações em que o direito à moradia é operado judicialmente, como
reivindicação individual, por autores de ações judiciais contra o Estado.
Assim, a tradição judicial brasileira, em matéria de tutela da propriedade
e da posse, permanece refratária à recente constitucionalização do orde-
namento jurídico civil e processual civil. Dessa forma, na grande maioria
dos casos, as decisões judiciais são proferidas em conformidade com a
regra processual civil (art. 927, CPC) de que comprovados os requisitos –
i. posse; ii. turbação ou esbulho praticado pelo réu; iii. data da turbação
ou do esbulho; iv. continuação da posse, embora turbada, na ação de
manutenção; a perda da posse, na ação de reintegração – “o juiz deferirá,
sem ouvir o réu, a expedição do mandado liminar de manutenção ou de
reintegração” (art. 928, CPC).
Em razão da regra prevista no parágrafo único do art. 1.201, do Código
Civil brasileiro, a qual prevê que “o possuidor com justo título tem por si
a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expres-
samente não admite esta presunção”, para a ampla maioria da doutrina
e da jurisprudência, é suficiente para a comprovação da posse (requisito
fundamental), a juntada de prova de justo título, isto é, na prática, a es-
critura pública de propriedade do imóvel.
É de grande importância a discussão acerca da presunção iuris tantum
de posse ao proprietário, a gerar um série de consequências de grande
impacto. O justo título, para Sílvio Venosa24 (representativo da opinião
majoritária), é o fato gerador do qual a posse deriva, permitindo concluir
que se há documentos que declarem a propriedade, presume-se a posse
de boa-fé, até que circunstâncias outras provem o contrário. Nesse sen-
tido, ainda se aplica a Súmula n. 487 do Supremo Tribunal Federal, de
03 de dezembro de 1969, que determina “será deferida a posse a quem,
evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada”.
Dentre as circunstâncias que podem afastar a presunção relativa,
destaca-se uma possibilidade de prova muitas vezes requerida, raramen-
te realizada: a inspeção judicial. Segundo o art. 440, do CPC, “o juiz, de

791
ofício ou a requerimento da parte, pode, em qualquer fase do processo,
inspecionar pessoas ou coisas, a fim de se esclarecer sobre fato, que in-
teresse à decisão da causa”. Com o auxílio deste meio de prova, conflitos
fundiários coletivos25 poderiam ter desfechos menos violentos do que
aqueles frequentes.
Somando-se a presunção de posse ao titular do domínio, a possibilidade
de liminar inaudita altera pars e o escasso interesse de realização de provas
independentes pelos magistrados, chega-se à situação de que, em regra,
os proprietários de imóveis urbanos (ou em vias de urbanização) detidos
como ativo imobiliário, podem assumir o risco de descuidar do exercício
efetivo da posse e do cumprimento das funções sociais dela resultantes26,
uma vez que as regras civis e processuais civis como aplicadas rotineira-
mente pelo Judiciário garante-lhes segurança para tanto.
Entretanto, algumas decisões esparsas têm indicado a possibilidade
de que o Poder Judiciário reconheça no caso concreto a) a legitimidade
da posse velha ou b) o caráter político – e legítimo – da posse nova27. Tais
decisões podem significar, de um lado, uma possível mudança de pos-
tura no reconhecimento do Direito à moradia no Brasil, ou, de outro, a
disposição de juízes de evitar situações de despejos forçados resultantes
de reintegrações de posse com suas frequentes violações aos Direitos
Humanos28. Compreendidas como ativistas, essas decisões de novo tipo
procuram considerar a complexidade do caso concreto, afastando-se da
aplicação simples das regras, para buscar otimizar os princípios e direitos
fundamentais constitucionais.
Com base nas principais características do novo constitucionalis-
mo brasileiro, objetiva-se analisar os elementos presentes na decisão
interlocutória e na sentença proferidas no Processo Judicial 0045635-
59.2011.8.26.0053, que tramitou na 3ª Vara de Fazenda Pública do Foro
Central da Comarca de São Paulo, tendo como requerente o Município
de São Paulo, como requeridos a Frente de Luta por Moradia e demais
ocupantes da área, e como Juiz de Direito, o magistrado Luis Fernando
Camargo de Barros Vidal29.

792
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O Município de São Paulo ajuizou, em 30 de novembro de 2011, ação de


reintegração de posse, com pedido para deferimento liminar, para retirar
as famílias sem-teto que ocupam o imóvel situado na Rua do Boticário,
n. 40/48, desapropriado, por utilidade pública, pelo ente municipal para
construção de circo-escola. No despacho inicial, o Juiz afirmou: “Pelo que
se lê nos autos há pessoas que não tem onde morar, impondo-se maior
vagar em face da alegação de esbulho possessório, dado o direito consti-
tucional à habitação (art. 6.º, da CF)”. Foram realizadas duas audiências
de conciliação, em 16 de dezembro de 2011 e em 10 de janeiro de 2012.
Em decisão interlocutória de 1° de fevereiro de 2012, o juiz reconhece
o ingresso, confessado pelos réus, no imóvel, cogitando da aplicação das
regras processuais aplicáveis. Entretanto, afirma ele:

Também pelo que se lê nos autos, as pessoas que tomaram a


posse do imóvel integram um grupo de cidadãos paulistanos
desprovidos de habitação, aos quais a municipalidade recusa a
oferta de atendimento habitacional (fl. 237). (...) Tais elementos
permitem considerar provisoriamente que os requeridos alegam
privação do direito social de habitação garantido pelo art. 6.º
da Constituição Federal, e que, a julgar pelos dados ofertados
pela municipalidade relativos ao ano de 2011, ela levará mais
de 24 anos para quitar a atual fila de espera em seu programa
habitacional, o que aparenta mora ou inadimplemento na
prestação social30.

Apercebe-se, o magistrado, diante de um contexto de fatos em que


não há solução simples: “a hipótese, como anotado no parecer do Minis-
tério Público, é de evidente colisão de direitos que cumpre situar em sua
dimensão objetiva à luz da fase processual em marcha”31. Dessa forma,
afirmou que:

[a] proteção possessória prevista na lei civil em favor do poder


público não pode ser compreendida desde a ótica de um direito
subjetivo e fundamental de uma parte privada qualquer, tendo
em vista a natureza da pessoa jurídica (de direito público) inte-
ressada, e tendo em vista as exigências do Estado de Direito32.

E, situando-se no âmbito no campo dos juízes que, sem deixar de


utilizar os elementos tradicionais de interpretação no Direito, passa

793
a sugerir a necessidade de aplicar um conjunto diverso de métodos e
referências teóricas:
Tem-se aí, conforme a linguagem do direito dos direitos huma-
nos, o fenômeno da complementaridade dos direitos individuais
e sociais, a demandar largueza interpretativa e generosidade
na aplicação do direito, sempre tendo em mira a efetivação de
tais direitos e a garantia do mínimo existencial invocado pelo
Ministério Público33.

O magistrado argumenta que, em fase de cognição sumária, no caso


analisado, a colisão de direitos não pode ser solucionada em favor do
município, pois:

evidencia-se mais acentuada em virtude da destinação social


do bem público, consistente na edificação de um equipamento
para o funcionamento de uma escola de circo, que se caracteri-
za como de interesse cultural e assim qualifica-se como direito
social. Este dado fático não pode ser desconsiderado, mas não
autoriza, nesta fase, a solução da liminar em favor da municipa-
lidade por soma de direitos e títulos em detrimento daqueles dos
requeridos. (...) E também porque, ao menos em sede liminar, há
de se reconhecer maior relevância ou peso específico ao direito
existencial de habitação34.

Na sentença exarada em 21 de junho de 2012, o juiz de 1° grau reto-


ma suas razões de decidir quando do indeferimento da liminar e passa a
justificar a impossibilidade de desconhecimento pelo Poder Judiciário dos
direitos fundamentais:

Não é possível, negar um direito fundamental, e achar isso nor-


mal, porque pobres são assim, e a eles se reserva nada mais que
o direito de entrar numa fila, sabe-se lá para o que e quando. Por
tal razão, não é possível interpretar a norma jurídica como se o
interesse público primário se realizasse a margem de qualquer
consideração com a situação de privação dos pobres35.

Conforme a prática dos juízes chamados perfeccionistas, o juiz Luís


Fernando Camargo de Barros Vidal, passa a fazer considerações gerais
sobre a problemática em que o caso apreciado se insere, indicando que
há mora na prestação estatal do direito à moradia:

794
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Que a municipalidade poderia atender com mais vigor o direito


constitucional à moradia não há dúvida, pois concede incentivos
fiscais para construir estádio de futebol, o faz para a realização
de programas de “revitalização” urbana, e destina recursos até
para a construção de escolas de circo como no caso dos autos:
pão e circo, como na a velha Roma, sem escrúpulos cívicos como
Maria Antonieta, aquela dos brioches. Tudo segue no sentido da
instalação de situações propícias para a promoção das desocu-
pações forçadas, por culpa das políticas públicas36.

A referida sentença é bastante clara, ainda, ao indicar que o ato im-


putado aos réus como sendo esbulho possessório, é antes um ato de
desobediência civil, no qual fica evidente a cobrança pela prestação do
estado para a efetivação de um direito social fundamental: o direito à
moradia. Desta forma, os ocupantes do imóvel da Rua Boticário não es-
tariam atuando contra o ordenamento jurídico, mas, ao contrário, “lutam
por construí-lo e efetivá-lo à luz de valores e princípios constitucionais
esquecidos pelo poder público que, repita-se, encontra-se em mora na
efetivação do direito social à moradia”37.
Por fim, ao julgar a ação improcedente, o juiz declara a mora do poder
executivo e sentencia, com base na Constituição, em seus princípios e
direitos fundamentais, a inexistência de proteção à posse do Município,
uma vez que, no caso concreto, o direito social à moradia apresenta-se
como melhor forma de utilização do bem, declarando o conflito como
pertencente ao âmbito do direito público, do direito constitucional, auto-
rizando o “acolhimento da exceção do contrato social não cumprido”38.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve por objetivo apresentar algumas considerações acer-


ca do novo constitucionalismo brasileiro e avaliar sua influência no caso
concreto da ação de reintegração de posse n. 0045635-59.2011.8.26.0053,
que tramitou na 3ª Vara de Fazenda Pública do Foro Central da Comarca
de São Paulo, tendo como requerente o Município de São Paulo, como
requeridos a Frente de Luta por Moradia e demais ocupantes da área, e

795
como Juiz de Direito, o magistrado Luis Fernando Camargo de Barros Vidal.
Para tanto, fez-se necessário avaliar as principais características
associadas ao neoconstitucionalismo, com base nas reflexões de parte
de seus principais estudiosos. Pode-se sintetizá-lo como um espectro
de correntes doutrinárias que reúne juristas em razão de sua postura
quanto à interpretação e aplicação das normas pelos magistrados e ao
papel do poder judiciário, especialmente em relação à efetividade dos
direitos fundamentais e à expansão da tutela jurisdicional. Nesse sentido,
caracteriza-se pela defesa de uma ordem jurídica marcada pela eficácia
dos direitos fundamentais, pela argumentação jurídica e pela metodologia
da ponderação.
O desfecho do processo analisado representa uma exceção, no contexto
brasileiro, às situações de ocupação de imóveis urbanos não utilizados ou
subutilizados, como forma de protesto ou de exercício do direito à mora-
dia. Destaca-se a presente decisão, não apenas por ser exceção à praxe
judiciária, como também, e principalmente, por suas razões e forma de
decidir, as quais parecem estar influenciadas pelo neoconstitucionalismo.
A sentença é significativa por indicar uma postura proativa do Poder
Judiciário em relação à efetividade material do direito social à moradia
que, como direito subjetivo fundamental, por suas propriedades formais
e materiais. Ao afastar regras tradicionalmente aplicadas em situações
semelhantes, tal decisão pode ser enquadrada como ativista, ainda que,
conforme classificação acima, não seja fruto da chamada judicialização
da política. Ao contrário, a motivação do autor, o Município de São Paulo,
é típica e tradicional.
O que mudou foi o contexto, fático e jurídico, de aplicação das re-
gras de Direito Civil e de Direito Processual Civil nos casos de conflitos
possessórios coletivos urbanos. No caso, o juiz reconheceu tratar-se de
matéria de ordem pública, de tutela a direito social fundamental, em uma
situação que o autor da ação é ele próprio devedor do direito à moradia
reivindicado pelos ocupantes do imóvel.
A constitucionalização do direito à moradia, ainda que tardia, merece

796
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

receber do aparato judiciário acolhimento para o reconhecimento de sua


plena efetividade. A postura decisiva do novo constitucionalismo em con-
ferir efetividade aos direitos fundamentais de forma ampla é um avanço
civilizatório para a consolidação do Estado democrático de direito.

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TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: Estudos
em homenagem ao Professor Caio Tácito. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 309-333.
TEPEDINO, Gustavo & SCHREIBER, Anderson. O papel do Poder Judiciário na
efetivação da função social da propriedade. In: Cadernos RENAP, n. 2, ano I, nov.
2001. p. 35-44.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Vol. V. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.

798
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

NOTAS

1 Mestre em Direito (UFSC); doutorando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília


(UnB); marcelocafrune@gmail.com.
2 Rede de entidades da sociedade civil que pleiteou a inclusão do Capítulo da Política Urbana na Constituição
da República, via emenda popular, assinada por aproximadamente 150 mil pessoas. Sobre o tema: BONDUKI,
Nabil. A Reforma Urbana no Processo de Participação Popular na Constituinte. In: Constituição 20 Anos: Es-
tado, Democracia e Participação Popular: caderno de textos. Brasília: Edições Câmara: 2009. Disponível em:
http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2441/constituicao_20_anos_caderno.pdf. Acesso
em: 09 set. 2012. p. 177.
3 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à Moradia Adequada na América Latina. In: ALFONSIN, Betânia; FERNAN-
DES, Edésio. Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos
de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2006. p. 31.
4 BARROSO, Luís Roberto. A doutrina brasileira da efetividade. In: BARROSO, L. R. Temas de Direito Constitu-
cional. Tomo III. Rio de Janeiro: RENOVAR, 2005.
5 Idem. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. In: BARROSO, L. R. Temas de Direito Consti-
tucional. Tomo IV. Rio de Janeiro: RENOVAR, 2009
6 p. 65.
Ibidem, p. 66.
7 Ibidem, p. 67.
8 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. In: BARROSO, L. R. Temas
de Direito Constitucional. Tomo IV. Rio de Janeiro: RENOVAR, 2009. p. 73.
9 SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: SARMENTO, Daniel.
Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2009. p. 117.
10 Ibidem, p. 119.
11 Ibidem, p. 119.
12 Ibidem, p. 121.
13 SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: SARMENTO, Daniel.
Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2009. p. 124-5.
14 GARRIDO DA SILVA, Alexandre. Minimalismo, Democracia e Expertise: o Supremo Tribunal Federal diante
de questões políticas e científicas complexas. In: RDE, ano 3, n. 12: p. 107-142, out./dez. 2008.
15 HIRSCHL, 2004, p. 49 apud GARRIDO DA SILVA, op. cit., 2008, p. 119.
16 GARRIDO DA SILVA, op. cit., 2008, p. 112.
17 PULIDO, Carlos Bernal. O Caráter Fundamental dos Direitos Fundamentais. In: RDE, ano 5, n. 19-20: p.
17-35, jul./dez. 2010. p. 18.
18 Ibidem, p. 34.
19 Ibidem, p. 19.
20 BARROSO, op. cit., 2007, p. 37.
21 Sobre o tema, ver BARROSO, op. cit., 2007.
22 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito à moradia: instrumentos e experiências de regularização fundiária
nas cidades brasileiras. Rio de Janeiro: Ippur/UFRJ, 1997. p. 20.
23 SCHECHINGER, Carlos Morales. Algumas peculiaridades do mercado do solo urbano. In: Curso de Edu-
cação à Distância “Bases para el estudio del mercado del suelo en America Latina”. Lincoln Institute of Land
Policy, março, 2005.
24 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Vol. V. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.
25 Sobre a definição de conflitos fundiários coletivos urbanos e a possibilidade de mediação desses conflitos,
ver CAFRUNE, Marcelo. Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos: do debate teórico à construção política.
Revista da Faculdade de Direito UniRitter, Porto Alegre, n. 11, p. 197-217, 2010.
26 Sobre função social da posse e da propriedade, ver: FACHIN, Luiz Edson. A Função Social da Posse e a
Propriedade Contemporânea. Porto Alegre: SAFe, 1988; TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da
Propriedade Privada. In: Estudos em homenagem ao Professor Caio Tácito. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p.
309-333; e TEPEDINO, Gustavo & SCHREIBER, Anderson. O papel do Poder Judiciário na efetivação da função
social da propriedade. In: Cadernos RENAP, n. 2, ano I, nov. 2001. p. 35-44.
27 Conforme definição do Código de Processo Civil, entende-se por posse velha aquela que ultrapassar o lapso
temporal de um ano e um dia; e por posse nova a que for exercida até o limite de ano e dia.
28 Exemplo recente de violência resultante de decisão exarada em processo que envolveu conflito coletivo
sobre a posse é o caso do despejo realizado, em 22 de janeiro de 2012, da Ocupação Pinheirinho, no município
de São José dos Campos – SP. Para saber mais: PINHEIRINHO: Um Relato Preliminar da Violência Institucional.
Justiça Global, 2012. Disponível em: http://global.org.br/wp-content/uploads/2012/01/Pinheirinho-um-Relato-

799
-Preliminar-da-Viol%C3%AAncia-Institucional.pdf. Acesso em: 15 fev. 2012.
29 A apelação tramita no Tribunal de Justiça de São Paulo sob o n. 0046697-37.2011.8.26.0053.
30 SÃO PAULO. 3ª Vara de Fazenda Pública. Ação de Reintegração / Manutenção de Posse n. 0045635-
59.2011.8.26.0053. Autor: Município de São Paulo. Réus: Frente de Luta por Moradia e outros. Juiz de Direito
Luis Fernando Camargo de Barros Vidal. São Paulo, 21 de junho de 2012. Disponível em: http://www.tjsp.jus.
br/ Acesso em: 25 jul. 2012. p. 2.
31 Ibidem, p. 3.
32 Ibidem, p. 3.
33 SÃO PAULO. Decisão citada, 2012. p. 3.
34 Ibidem, p. 4.
35 Ibidem, p. 6-7.
36 Ibidem, p. 8.
37 SÃO PAULO. Decisão citada, 2012. p. 10.
38 Ibidem, p. 12.

800
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Proteção possessória coletiva


passiva: a necessária revisão da tutela
processual da posse para solução de
conflitos fundiários urbanos

Thaís Aranda Barrozo1

1 INTRODUÇÃO

A despeito da proteção constitucional do direito à moradia como


direito fundamental social, bem como da função social da propriedade e
das cidades, as políticas urbanas até então realizadas pelo poder público
não foram suficientes à concretização de tais direitos. Como consequên-
cia imediata, observa-se a crescente e desordenada ocupação do espaço
urbano pelos necessitados, acompanhada de significativo aumento dos
números de conflitos sociais que têm como ponto nodal a legitimidade
do exercício da posse da terra.
Tal contingência exige do jurista um estudo abalizado do problema
não só sob a ótica do direito constitucional contemporâneo e de suas
influências nas relações jurídicas reguladas pelo direito civil e pelo direito
urbanístico, mas também das técnicas processuais adequadas a garantir
efetividade à proteção material, de modo que o processo sirva, de fato,
como instrumento à disposição dos cidadãos para a concretização do
direito à moradia e da função social da propriedade e da posse, no intuito
de eliminação dos conflitos sociais fundiários.
Nesse desiderato, busca-se no presente trabalho realizar um breve
estudo sobre a tutela do direito fundamental social à moradia no novo
modelo estatal, com especial destaque ao estudo da proteção possessória
e da legitimação da posse como instrumento jurídico de política urbana.

801
Para tanto, procede-se à análise da atual tutela jurídica – material e
processual – da posse coletiva, do eventual desalinho da proteção ma-
terial com o sistema processual civil vigente, demonstrando, ao final,
a necessidade de reconhecimento da função social da posse coletiva e
de sua natureza transindividual para, nesse contexto, pensar em novos
modelos processuais aptos à solução dos conflitos fundiários urbanos e
à efetividade do direito fundamental à moradia.

2 A TUTELA MATERIAL DA POSSE

2.1 As Teorias Sociológicas da Posse e o Conceito de Posse

O direito brasileiro tutela a posse como figura autônoma, querendo


isso dizer que a proteção possessória é legalmente assegurada àquele
que a exerça de fato, independentemente da existência de título em que
se funde2. Tanto assim é que muitos direitos são reconhecidos àquele que
exerce a posse, como, por exemplo, o direito à aquisição da propriedade
da coisa objeto de posse por meio de usucapião, como conseguinte do
exercício desta por determinado lapso temporal, sem qualquer oposição
pelo titular do domínio.
Nesse contexto, o direito civil confere àquele que se estabelece em
imóvel urbano3, de forma mansa e pacífica e por prazo superior a ano e
dia, o direito a proteção possessória contra terceiros, ou mesmo contra
o proprietário do bem, direito esse fundamentado no fato da posse em si
mesmo (na situação de fato). O objetivo do legislador civil ao assim pro-
ceder foi atribuir segurança jurídica à posse, preservando-a em relação a
possíveis atos de violência dirigidos ao mero possuidor.
Inegável que a lei civil é influenciada por uma ideologia privativista
e que, por essa razão, tende por vezes a uma priorização da defesa da
propriedade em detrimento da posse. No entanto, a Constituição Federal
de 1988 prescreveu em seu art. 5º, xxIII, a função social da propriedade
e traçou linhas gerais para uma política urbana (arts. 182 e 183), fundada

802
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

na função social das cidades e no bem-estar social. Sobreleva-se, assim, a


ideia de que o uso da terra há que atender o bem-estar de toda a coletivi-
dade, exigindo, em determinados casos, que o direito à posse se sobrepuje
ao direito de propriedade, no intuito de se alcançar a justa distribuição da
terra e a promoção de justiça social.
Os civilistas, já de longa data, debruçam-se sobre diversas teorias que
buscam conceituar a posse, apontando-se, tradicionalmente, que o Código
Civil de 2002 abraçou a Teoria de Ihering, acolhida pelo vetusto Código Civil
de 1916, definindo o possuidor como aquele que age como se proprietário
fosse, exercendo de fato algum(ns) dos poderes inerentes à propriedade4.
A evolução social revela, no entanto, a existência e o surgimento de
novas teorias que defendem o caráter social da posse, destacando-se,
dentre elas, as Teorias Sociológicas de Perozzi, de Saleilles e de Hernandez
Gil. A primeira defende a posse como fator social; a segunda vai um pouco
mais além, relacionando a posse a uma teoria de apropriação econômica,
afirmando que haverá posse, e não mera detenção, onde houver uma
relação de fato que estabeleça a independência econômica do possuidor.
A última, de sua vez, afirma que não há como se conceituar a posse sem
relacioná-la à sua função social, apontando a necessidade de que um
Estado Social ocupe-se de um programa de distribuição equânime dos
recursos da coletividade5.
No caso brasileiro, a redação constitucional acena para a adoção de
uma conceituação social da posse, inclusive com a legitimação desta pelo
atingimento da função social da propriedade, ante a relevância dos inte-
resses sociais envolvidos na justa distribuição de recursos à coletividade.
Nada obstante, a despeito do avanço na redação constitucional, muito
ainda há a avançar na obtenção de uma adequada conceituação da posse,
aproximando-se seus aspectos civis e constitucionais, para que se alcance
a efetiva tutela jurídica e processual do instituto enquanto vetor de justa
distribuição da terra e promoção de justiça e bem-estar social. Nesse
sentido, Fredie Didier Jr. afirma que a função social da posse é, inclusive,
pressuposto implícito para a tutela da posse, “decorrente da eficácia direta
e imediata da função social da propriedade”6.

803
O presente ensaio prossegue, assim, com algumas considerações sobre
o direito fundamental social à moradia e a tutela jurídica da posse, para
então adentrar no estudo do sistema processual de proteção possessória
vigente e a sua necessária readequação para atingimento dos fins sociais
da norma constitucional.

2.2 O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL à


MORADIA E O DIREITO à PROTEÇÃO POSSESSóRIA.

Seguindo a tendência mundial de regulamentação do direito humano


à moradia digna, reafirmado nas Conferências das Nações Unidas sobre
Assentamentos Humanos (Habitat I e Habitat II), a primeira realizada em
Vancouver, em 1976 e a segunda em Istambul, no ano de 19967, por meio
da Emenda Constitucional n.º 26, de 14/02/2000, o direito à moradia foi
incluído no rol dos direitos sociais previstos no art. 6º, da Constituição
Federal, assumindo, assim, status de direito fundamental à espera de
concretização pelo Estado.
Com o advento do Estatuto da Cidade, em 10/07/2001, o legislador ordi-
nário ocupou-se em regulamentar a política urbana tratada arts. 182 e 183
da Constituição Federal, no intuito de “ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”, preconizando,
ainda, o dever estatal de “regularização fundiária e urbanização de áreas
ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de
normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação,
consideradas a situação socioeconômica da população e as normas am-
bientais” (art. 2º, xIV da Lei n.º 10.257/2001).
O consectário imediato do reconhecimento do direito à moradia como
direito fundamental social implica em observá-lo em suas dimensões
negativa e afirmativa, ou seja, como direitos de defesa perante o Estado e
como direitos a prestações estatais8.
Muito embora se reconheça um direito subjetivo à moradia no âmbito
do direito a ações positivas do Estado (direito a prestações sociais), haja

804
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

vista a sua fundamentabilidade, o seu enquadramento no mínimo exis-


tencial que confira vida digna aos cidadãos, bem como a sua inclusão no
rol de obrigações do Estado (gênero) previstas na regra de competência
material comum do art. 23, Ix, da Constituição Federal9, e na regra de
competência material privativa dos Municípios, nos termos do art. 30,
VIII, da norma constitucional10, o foco de análise no presente estudo é o
direito à moradia no âmbito dos direitos de defesa perante o Estado, e até
mesmo perante terceiros, pelo viés da proteção da posse coletiva.
A possibilidade de se analisar a proteção da posse coletiva por esse
ângulo decorre do fato das ações negativas perante o Estado englobarem,
nos termos da Teoria dos Direitos Fundamentais de Alexy, o direito de
não afetação a situações (não afetação do direito de viver dignamente,
concretizando-se o direito fundamental social à moradia) e do direito à
não eliminação de posições jurídicas do titular do direito (direito de ser
mantido na posse que cumpre a sua função social)11.
E não só isso. A Lei n.º 11.977, de 07/07/2009, ao tratar da regulariza-
ção fundiária de assentamentos urbanos, incluiu no rol dos “instrumentos
gerais” de política urbana, previstos no Estatuto da Cidade, institutos jurídi-
cos e políticos destinados à legitimação da posse (art. 4º, V, “u”, da Lei n.º
10.257/2001). Daí a necessidade de um olhar mais detalhado à proteção
possessória, assim entendida não só como a tutela jurídica, mas também
a tutela jurisdicional adequada da posse à luz de sua função social, como
mecanismo de implementação de política fundiária urbana.
Justifica-se, ainda, o estudo da adequada tutela jurisdicional da posse
haja vista que a evolução constitucional e legislativa acerca do direito
material à moradia digna, não foi, até o presente momento, suficiente por
si só à concretização desse direito fundamental social, que esbarra em
obstáculos de diversas ordens, sobremaneira a política e a econômica,
observando-se cristalina omissão estatal na realização de políticas públicas
para regularização fundiária em polos urbanos.
A falta de política pública fundada na função social das cidades e no
bem-estar social é evidenciada pelo sem número de ocupações urbanas

805
nas zonas periféricas das cidades que, na irregularidade, proliferam-se de
forma gradativa, coletiva e, como regra geral, não violenta. Multiplicam-
se, em proporções geométricas, as moradias informais, não se podendo
afirmar que a posse assim exercida seja mera “invasão” ou “esbulho” da
propriedade alheia, aproximando-se muito mais do uso legítimo da terra,
como contingência ao exercício de direitos de cidadania no intuito de
sobrevivência e alcance da função social da propriedade.
Pensemos na situação das moradias informais e das gigantescas
favelas, erigidas como consequência imediata da necessidade de pes-
soas pobres de terem uma moradia a despeito da omissão estatal na
realização de políticas públicas de urbanização e desenvolvimento
sustentável das cidades.
Abaixo, trecho da matéria divulgada no Correio Braziliense que relata
como as ocupações aconteceram na Favela Sol Nascente, em Ceilândia/
DF, área originariamente rural que desordenadamente se transformou em
local para moradia de mais de 100.000 pessoas, transformando-se numa
das maiores favelas da América Latina:

A diarista Paula Alves Ferreira, 42 anos, aponta para o fim da


rua esburacada, no Trecho 1 do Condomínio Sol Nascente, em
Ceilândia. Mostra
que a região ocupada por barracos e biroscas há 12 anos não
passava de um enorme cerrado. No período, ela viu casas se
multiplicarem. Com a chegada de tantos moradores, os problemas
não demoraram a aparecer. As terras da chácara de Paula, antes
férteis, pararam de dar frutas e verduras devido à contaminação
do solo. O lugar, tranquilo, tornou-se palco de crimes de toda
ordem. Em pouco mais de uma década, a zona rural escolhida
pela trabalhadora para viver com a família se transformou na
segunda maior favela da América Latina, de acordo com o Insti-
tuto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Só fica atrás da
Rocinha, no Rio de Janeiro.
Três décadas atrás, os primeiros chacareiros chegaram à região.
Em 1999, grileiros começaram a atuar no local, ainda no governo
Joaquim Roriz, mas a migração em massa teve início no terceiro
mandato de Joaquim Roriz, em 2004. Com 61 mil moradores e
crescimento populacional desordenado, o Sol Nascente caminha
para ocupar o topo do ranking de maior comunidade pobre do
país — incrustada em um morro, a comunidade carioca da Roci-
nha praticamente não tem mais espaço físico para se expandir.
Lideranças comunitárias garantem que, hoje, são pelo menos 100
mil pessoas na região do DF — o GDF não reconhece o número.12

806
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Como conseguinte, multiplicam-se também, e em igual proporção, os


conflitos fundiários e a disputa pela terra urbana, sendo o Judiciário por
inúmeras vezes chamado a solucionar tais conflitos, tendo à sua disposi-
ção, como instrumento, um sistema processual instituído sob a influência
de uma ideologia liberal arcaica, regido por regras fortemente voltadas à
tutela do direito de propriedade, de natureza eminentemente individualista,
em detrimento da tutela da posse e de sua função social.
Daí a necessidade de que o processualista moderno se ocupe da busca
por técnicas processuais aptas à adequada tutela jurisdicional da posse,
como meio de concretização do direito fundamental à moradia digna e
de eliminação de conflitos fundiários urbanos, atribuindo-se, assim, se-
gurança jurídica à posse que cumpra sua função social.

3 A TUTELA PROCESSUAL DA POSSE

3.1 O sistema processual de proteção possessória vigente

Um dos principais efeitos da posse é a proteção conferida ao possui-


dor (proteção possessória), reconhecendo-se juridicamente meios de
autotutela, como a legítima defesa da posse e o desforço imediato, e de
heterotutela, onde se enquadram as ações possessórias propriamente
ditas, institutos criados por lei especificamente para a tutela da posse
(ações de manutenção e reintegração de posse e o interdito proibitório)13.
Como regra geral, considera-se legitimado ativo para a ação posses-
sória o possuidor, direto ou indireto, que “tem direito a ser mantido na
posse em caso de turbação e reintegrado no de esbulho” (art. 926/CPC).
Em contrapartida, será legitimado passivo para a causa aquele a quem
seja atribuído o ato de ameaça, turbação ou esbulho da posse (art. 927,
II e 932/ CPC) ou o terceiro que, de má-fé, recebeu a coisa esbulhada
(art. 1.212/CC).
Característica marcante das ações possessórias é o seu caráter dúpli-
ce, permitindo o art. 922 do Código de Processo Civil que o juiz confira a

807
proteção possessória ao réu, desde que assim o requeira em sua defesa
e que produza prova de ser ele o legítimo possuidor do bem, vítima, por-
tanto, da turbação ou esbulho pelo autor da demanda14, recaindo sobre a
decisão o peso da coisa julgada.
Como requisito da petição inicial, exige-se, nos termos do art. 282/
CPC, a exata indicação e qualificação das partes, permitindo-se aferir a
sua legitimidade, ativa e passiva, para a causa.
Posto isso, não se pretende, no momento, estender em estudo mi-
nucioso das questões procedimentais acerca das ações possessórias. O
que se quis demonstrar é que até mesmo uma breve análise do modelo
processual vigente faz saltar aos olhos que a proteção possessória tem
sido conferida aos cidadãos por meio de um sistema processual criado
para tutelar jurisdicionalmente conflitos de interesses de natureza indivi-
dual, sistema processual este ainda pouco influenciado pela nova ordem
constitucional, que privilegiou a função social da propriedade e da posse
em detrimento de interesses privatísticos.
Observa-se, assim, que as ações possessórias, na forma em que regu-
ladas no Código de Processo Civil, seguem procedimentos destinados à
solução do conflito possessório que envolva interesses individuais, em que
o julgador ocupa-se em dizer qual dos litigantes é o legítimo possuidor do
bem disputado, e quem é o autor da ameaça/turbação/esbulho, ambos
tratados no processo enquanto sujeitos individuais, titulares de direitos,
ainda que haja a formação de litisconsórcio em um dos polos da relação
jurídica processual.
Falta, contudo, ao sistema processual vigente, um olhar mais atento
ao fato de que a posse, enquanto situação jurídica a ser tutelada, não
pode mais ser simplesmente resumida e tratada como simples interesse
individual. Ainda que a posse conserve essa característica, muitas situa-
ções de fato outras existem, situações em que marcante o caráter social
da posse e que os conflitos decorrentes do seu exercício atingem a toda
uma coletividade.

808
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Conflitos desta ordem padecem, nos dias atuais, da falta de um modelo


processual apto à sua solução, sobremaneira quando essa coletividade
encontra-se no polo passivo da relação jurídica. Afinal, para a tutela
processual da posse coletiva ativa, os arts. 1º e 4º da Lei da Ação Civil
Pública (Lei n.º 7.347/85), com a redação que lhes foi dada pelo Estatuto
da Cidade (Lei n.º 10.257/01), autorizam que ações civis públicas sejam
propostas no intuito de tutelar jurisdicionalmente os interesses transindivi-
duais relacionados à ordem urbanística15, legitimando-se todas as pessoas
nominadas em seu art. 5º, a representar em juízo toda uma coletividade,
na defesa de seus interesses16.
Não existe, contudo, previsão legal equivalente para as hipóteses em
que a coletividade esteja no polo passivo. Assim, a solução para o conflito
fundiário coletivo acaba sendo prestada pelo Judiciário seguindo-se as
regras do sistema processual individual.
Prova disso é que os julgadores, no momento em que chamados a
resolver os conflitos de interesses em que a posse é reclamada em face
daqueles que a exercem de forma coletiva, acabam por se utilizar de nor-
mas procedimentais de maneira arrevesada, já que inexistente um modelo
processual próprio e apto a essa proteção possessória.
A seguir, um relato da doutrina de como o problema se põe, e de como
vem sendo tratado pelas Cortes Superiores:

Fato comum é a invasão de grandes áreas por um número


indeterminado de famílias, cujos membros são desconhecidos
do proprietário. Tem-se admitido a propositura da ação contra
os ocupantes do imóvel, que serão citados e identificados pelo
oficial de justiça, fazendo-se a indicação, na inicial, de somente
alguns nomes, geralmente dos que lideram o grupo. Nessa linha,
decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “em caso de ocupação de
terras por milhares de pessoas, é inviável a citação de todas para
compor a ação de reintegração de posse, eis que essa exigência
tornaria impossível qualquer medida judicial”17.

A “alternativa” processual que vem sendo, então, utilizada é a exclu-


são da relação jurídica processual de muitos daqueles que são os sujeitos
passivos da relação jurídica de direito material (!), ao argumento de ser

809
“inviável” o chamado de todos os réus para compor a lide (!), exigência
esta que inviabilizaria o próprio processo.
Nada obstante, é de se destacar que o eventual conflito decorrente de
uma ocupação da terra na forma acima descrita, fruto da única alternativa
possível à população carente de condições mínimas de moradia digna, é,
sem dúvidas, muito distante e diverso de um simples conflito decorrente de
ameaça, turbação ou esbulho individualmente praticado em face daquele
que se ache o legítimo possuidor do imóvel. Os interesses em conflito são
eminentemente de ordem social, transindividual, não havendo como ser
resolvido com meras “adaptações” de uma proteção possessória criada
com base num processo civil de cunho individualista. Tal proceder con-
figura evidente negativa de tutela jurisdicional aos ocupantes das áreas,
ao argumento de que “seria inviável” trazê-los ao processo.
Prosseguir dessa forma, fechando os olhos ao problema posto, corres-
ponde, portanto, a negar a esses cidadãos não só o direito fundamental à
moradia, mas também aquele de acesso à justiça e a uma ordem jurídica
justa, emergindo daí a necessidade de se encontrar um modelo processual
adequado à solução de conflitos urbanos dessa natureza.

3.2 Ocupações urbanas: a posse


coletiva como interesse transindividual.

Constatado o fato de que as ocupações urbanas exigem uma tutela


processual diferenciada da posse, prossegue o estudo com a classifica-
ção da posse como interesse de natureza transindividual para, nessa
qualidade, pensar num modelo processual apto à solução dos conflitos
fundiários urbanos.
Inicialmente, necessário que se defina o vocábulo “interesse” e que se
compreenda a concepção jurídica emprestada ao mesmo.
José Marcelo Menezes Vigliar, com apoio nas lições de José Cretella Jr.,
aponta que interesse nada mais é do que “a vontade do homem dirigida
a atingir uma finalidade”18 e que, “Se o interesse é protegido pela norma

810
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

jurídica, estamos diante de direito”19, destacando, assim, a estreita relação


entre “interesse” e “direito”.
A compreensão do que sejam interesses/direitos transindividuais ga-
nha relevância na contemporaneidade, haja vista a evolução das relações
sociais, que passam a adotar novos modelos igualmente necessitados de
tutela jurídica, observando-se verdadeira “transmigração do individual
para o coletivo”20. Surge, assim, a necessidade de se suplantar a ideia de
interesses e direitos apenas individualmente considerados, exigindo-se
do ordenamento jurídico que tome também em conta os interesses de
uma coletividade.
Os interesses transindividuais significam, portanto, “uma utilidade
indivisa (não necessariamente indivisível) que pode ser ao mesmo tempo
compartilhada por todos os membros do grupo”21. Como conseguinte,
diversa é a perspectiva da relação jurídica de direito material que envolve
interesses transindividuais comparada àquela que se limita a interesses
individuais, haja vista que “Uma perspectiva visa proteger os direitos sub-
jetivos, tutelando-os individualmente; a outra objetiva preservar interesses
do grupo social através da imposição de dever jurídico de abstenção da
conduta que viole tais interesses”22.
A posse, tal qual situação jurídica exercida em ocupações urbanas e
moradias informais, face suas características e peculiaridades, permitem a
sua classificação como interesse transindividual. É o que se tem observado
na doutrina quando se apontam as ocupações, urbanas ou rurais, como
exemplo de posse coletiva.
Para Carlos José Cordeiro, “O legislador do Estatuto da Cidade não alude
nem à posse, nem à detenção, mas à ocupação. No caso, a ocupação é um
símile da posse.”23 Prossegue o referido autor afirmando que

[...] nos núcleos habitacionais desorganizados é possível posse


materialmente certa por parte de seus moradores, sem que isso
desnature a posse coletiva que deve ser observada de forma
fluida, o que não se confunde, por conseguinte, com a composse
do sistema jurídico civil, sendo, pois, composse sui generis, uma
posse múltipla.24

811
Considerar que em ocupações urbanas a posse é exercitada material-
mente de forma certa e divisível pelos moradores informais, sem desca-
racterizar a posse coletiva fluida de toda a área por eles ocupada, nada
mais é do que afirmar essa posse como um interesse transindividual, como
um interesse de toda uma coletividade.
Afinal, como bem ensina Hugo Nigro Mazzilli25, os interesses tran-
sindividuais (interesses coletivos, em sentido lato), são os interesses
compartilhados por todo um grupo, uma coletividade, ora tocando a uma
categoria determinável de pessoas (no caso dos interesses individuais
homogêneos ou coletivos em sentido estrito), ou mesmo compartilhado
por um grupo indeterminável de indivíduos, ou de difícil ou impossível
determinação (interesses difusos).
Tratando especificamente dos interesses ligados ao urbanismo, o
autor afirma a sua natureza difusa, citando decisão proferida pelo Min.
Ari Pargendler no julgamento do REsp n.º 166.714/SP pela 3ª Turma do
Superior Tribunal de Justiça, em 21/08/2001, em que afirmado quanto
a interesses dessa natureza que “há indivisibilidade do objeto e indeter-
minação dos titulares, que não estão vinculados entre si por nenhuma
relação jurídica base, o que se amolda à definição contida no art.81,
parágrafo único, do CDC”26.
Portanto, a posse coletiva, tal qual exercida em ocupações urbanas e
moradias informais, é interesse de natureza transindividual, e os conflitos
fundiários urbanos fundados nessa situação de fato devem ser resolvidos
em processos de natureza coletiva, sob pena de negativa não só de segu-
rança jurídica na posse da terra urbana, mas do próprio acesso à justiça
aos ocupantes.

3.3 Conflitos fundiários urbanos e ação coletiva passiva.

Conforme lições de José Roberto dos Santos Bedaque, “A utilidade do


ordenamento jurídico material está intimamente relacionada com a efi-
cácia do processo, que constitui o meio para garantir a atuação do Direito

812
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nas hipóteses de ausência de cooperação espontânea dos destinatários”27,


de modo que, se não há processo adequado à concretização do direito
material, a própria efetividade deste resta comprometida.
Dessa feita, caracterizados os interesses urbanísticos como transindi-
viduais, a conclusão imediata a que se chega é a da inegável necessidade
de se encontrar uma técnica processual apta à sua defesa em juízo, bem
como a necessidade de um processo de natureza coletiva para solução
dos conflitos fundiários urbanos fundados na posse, para a adequada pro-
teção da posse coletiva e de sua função social como instrumento jurídico
de efetivação de política urbana.
Conforme acima se destacou, não parece problemático reconhecer
que a posse coletiva, que atenda a seu fim social, possa ser defendida por
meio de um processo coletivo tradicional, pensando-se nas hipóteses em
que o grupo ou a coletividade ocupe o polo ativo da demanda possessó-
ria. Para esses casos, tal qual já mencionado, qualquer legitimado ativo
extraordinário, nos termos dos arts. 1º, 4º e 5º da Lei de Ação Civil Pública
(Lei n.º 7.347/85), poderá propor a demanda em nome da coletividade
representada, defendendo seus interesses possessórios em juízo.
A questão controvertida se põe quando os conflitos fundiários urbanos
levados à apreciação e julgamento pelo Poder Judiciário têm o grupo,
a coletividade (os ocupantes), no polo passivo da demanda. Afinal, à
ausência de texto normativo que permita a legitimação extraordinária
passiva (ações coletivas passivas), os sujeitos passivos da relação jurídica
de direito material (de natureza transindividual, frise-se), acabam sendo
tratados como partes passivas individualmente consideradas. A proteção
processual possessória se dá, assim, de forma individual, a despeito da
transindividualidade do interesse discutido na demanda judicial.
Analisando o discurso normativo no sistema brasileiro e a prática
judiciária nos despejos forçados contra grupos de pessoas que moram
informalmente, João Maurício Martins de Abreu discorre sobre o problema
posicionando-se da seguinte forma:

Significa, então, afirmar que todos os assentados, que às vezes se


contam aos milhares, deveriam ser pessoalmente citados para in-
tegrar o polo passivo das demandas que visam atingir seu direito
à moradia, sob pena de o processo ser ilegítimo? Não. Significa,

813
isto sim, que o procedimento que vem sendo adotado em muitas
ações judiciais revela ínfima consideração com a efetividade da
defesa do direito à moradia, ou seja, com a concretização prática
do discurso normativo vigente. É, por isso, um procedimento
inadequado e ilegítimo.28

E conclui o seu raciocínio afirmando a imprescindibilidade de que se


busquem novas alternativas procedimentais que permitam a participação
dos moradores informais no debate processual, garantindo-se “algum sa-
tisfatório meio de representatividade em juízo dos assentados, ou o direito
à moradia, mesmo em seu aspecto meramente defensivo, será convertido
em simples instrumento de retórica vazia”29.
Evidencia-se, assim, a necessidade de um processo civil coletivo para
tutela da posse coletiva nas hipóteses em que o grupo, a coletividade, esteja
no polo passivo da relação jurídica, garantindo-se a representatividade dos
ocupantes no processo, bem como o efetivo exercício do contraditório e da
ampla defesa, subprincípios do princípio maior do devido processo legal.
Essa situação - fática e jurídica - está a demonstrar que não há mais
como o processo civil brasileiro abster-se da adoção das ações coleti-
vas passivas, ainda que se admita a problemática envolvida em torno
do tema30.
Afinal, estando o grupo no polo passivo da relação jurídica de direito
material, esta deveria ser espelhada de igual forma na relação jurídica de
direito processual, garantindo ao grupo, enquanto tal, a defesa de seus
interesses em juízo, escapando, assim, ao duplo problema que se põe na
forma que os processos judiciais vêm sendo conduzidos: a) não se teria
um processo com milhares de réus (o que leva o Judiciário afirmar a invia-
bilidade do processo); b) nem se excluiriam da relação jurídica de direito
processual os sujeitos da relação jurídica de direito material.
Hugo Nigro Mazilli propõe, para situações tais, que sejam elaboradas
normas jurídicas que legitimem

[...] no polo passivo alguns órgãos estatais para substituírem


processualmente coletividades de pessoas, desde que no pro-
cesso interviesse necessariamente o Ministério Público e desde
que a coisa julgada se formasse em benefício delas, não em seu
prejuízo – como é o que já ocorre no sistema dos arts. 16 da
LACP e 103 do CDC.

814
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Camilo Zufelato, de sua vez, ao tratar das ações coletivas passivas,


posiciona-se no sentido de que a decisão de procedência do pedido vin-
cularia a todos os indivíduos que compõem o grupo sem possibilidade
de oposição ao comando judicial coletivo, ressalvando que, por essa
razão, a admissão das ações coletivas passivas não pode prescindir de
um sistema de controle judicial da adequada representação do legitimado
passivo, que deve ser “o mais rigoroso e cauteloso possível na admissão
do representante de todo o grupo como réu na demanda”31, sob pena de
ineficácia da decisão proferida na ação coletiva passiva.
Enfim, seja por um caminho, por outro, ou mesmo por ambos, o que
não se pode deixar de apontar é que os conflitos fundiários urbanos reve-
lam uma nova realidade de direito material quanto à proteção possessória
coletiva, marcada pelo “reconhecimento de direitos e de interesses que
transcendem a existência de um ‘sujeito’ de direito, de um ‘indivíduo’,
de uma ‘pessoa’ e que merecem tanto qualquer direito como adequada
proteção do Estado-juiz (adequada tutela jurisdicional)”32.
Ou ainda, como bem ressaltado por João Maurício Martins de Abreu,

[...] negar o caráter imprescindível da representatividade dos


assentados nesses processos judiciais é negar a sua própria con-
dição de cidadãos; é negar até mesmo, em última instância, sua
condição primeira de pessoas humanas, transformando- os em
aviltante objeto de uma prestação: o despejo pelo poder público.33

Assim, imperioso que o sistema processual civil contemporâneo evo-


lua no sentido de efetivamente garantir tutela jurisdicional adequada aos
conflitos fundados na posse coletiva exercida por moradores informais
nas ocupações urbanas. A admissão da proteção possessória por meio de
ações coletivas passivas parece atender a esse anseio.

4 CONCLUSÕES

Tecidas essas breves considerações acerca da tutela material e pro-


cessual da posse no modelo estatal vigente, conclui-se pela necessidade

815
de que o sistema processual civil contemporâneo acompanhe as transfor-
mações observadas nas relações sociais e já sentidas no direito material,
no intuito de que sirva efetivamente como instrumento para solução de
conflitos fundiários urbanos, fundados na posse coletiva, tal qual exercida
em ocupações urbanas e moradias informais.
O primeiro passo nesse sentido é o reconhecimento da posse não mais
apenas como interesse individual a ser tutelado pelo direito, mas também
como interesse de natureza transindividual, eis que exercida de forma co-
letiva, fluida, exigindo, de conseguinte, um processo de natureza coletiva
para a sua defesa em juízo, mesmo quando essa coletividade estiver no
polo passivo da relação jurídica material e processual.
Afasta-se, assim, a problemática situação de milhares de pessoas que se
vêem vítimas de despejos forçados, ordenados em processos de natureza
individual por meio de decisões inegavelmente ilegítimas, eis que dirigidas
a pessoas que sequer foram regularmente chamadas a compor a lide, ex-
cluindo, por completo, a defesa de seus interesses do debate processual.
Admitir as ações coletivas passivas para a defesa da posse coletiva em
juízo apresenta-se, pois, como hipótese viável para a necessária reforma
do sistema processual civil vigente, munindo-o de instrumento apto à
solução de conflitos fundiários urbanos coletivos, de modo a garantir
efetiva segurança e legitimação à posse, como meio de implementação
de políticas públicas urbanas destinadas à concretização do direito fun-
damental social à moradia.

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NOTAS

1 Mestre em Direito Negocial (na área de concentração de Processo Civil) pela Universidade Estadual de Lon-
drina – UEL, Especialista em Direito Empresarial, com ênfase em Direito Tributário, pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná – PUC/PR, Especialista em Filosofia Jurídica e Política pela Universidade Estadual de Londri-
na - UEL, Professora da Universidade Estadual de Londrina – UEL, Advogada, thaisaranda@sercomtel.com.br.
2 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil esquematizado, volume 2. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 342.
3 Esclareça-se que a menção a imóveis urbanos apenas justifica-se pelo corte metodológico traçado na realiza-
ção do presente estudo, sem excluir, contudo, a possibilidade de se estender o entendimento aos imóveis rurais.
4 BRASIL, Lei n.º 10.406/2002, Código Civil –. “Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de
fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.
5 GIL apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil esquematizado, volume 2. São Paulo: Saraiva, 2013.
p. 345-347.
6 DIDIER JR, Fredie. A função social da propriedade e a tutela
processual da posse, disponível em http://direitosreais.files.wordpress.com/2009/03/a-funcao-social-e-
-a-tutela-da-posse-fredie-didier.pdf, acesso em 14/08/2013.
7 Em http://www.onuhabitat.org/index.php?option=com_content&view=article&id=72&Itemid=85, acesso
em 15/08/2013.
8 ALExY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Constitucionales,
1993. p. 187-188.
9 BRASIL, Constituição Federal de 1988. “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios: [...]
Ix - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de sanea-
mento básico”.
10 Ibidem. “Art. 30. Compete aos Municípios: [...]
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso,
do parcelamento e da ocupação do solo urbano”.
11 ALExY, op. cit., p. 189-194.
12 Disponível em http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2013/05/08/interna_cida-
desdf,364811/distrito-federal-esta-a-um-passo-de-ter-a-maior-favela-da-america-latina.shtml, acesso em
14/08/2013.
13 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 5: direito das coisas, 8ª ed.. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 130-131.
14 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 5: direito das coisas, 8ª ed., São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 139-140.
15 BRASIL, Lei n.º 7.347/85, Lei da Ação Civil Pública. “Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem
prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
[...]
VI - à ordem urbanística.
[...]
Art. 4o Poderá ser ajuizada ação cautelar para os fins desta Lei, objetivando, inclusive, evitar o dano ao meio
ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística ou aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,
turístico e paisagístico.”
16 Ibidem. “Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:
I - o Ministério Público;
II - a Defensoria Pública;
III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;
V - a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;

818
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econô-
mica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.”
17 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 5: direito das coisas, 8ª ed., São Paulo: Sa-
raiva, 2013, p. 158. A decisão mencionada pelo autor tem as seguintes fontes: RT, 744/172 e JTACSP, 146/96.
18 VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Tutela Jurisdicional Coletiva. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 59.
19 Ibidem, p. 59.
20 VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Tutela Jurisdicional Coletiva. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 59.
21 BELINETTI, Luiz Fernando. Definição de interesses difusos, coletivos em sentido estrito e indivi-
duais homogêneos. In: Estudos de direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 667.
22 Idem. Ações coletivas – um tema a ser ainda enfrentado na reforma do processo civil brasileiro –
A relação jurídica e as condições da ação nos interesses coletivos. In: REPRO 98, ano 25, abril/junho.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 667.
23 CORDEIRO, Carlos José. Usucapião especial urbano coletivo: abordagem sobre o Estatuto da Cidade.
Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 177.
24 Ibidem, p. 178.
25 MAZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio
cultural, patrimônio público e outros interesses. 26. ed. rev. amp. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 50-51.
26 Ibidem, p. 756.
27 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo.
5ª ed., rev. e ampl.. - São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 74-75.
28 ABREU, João Maurício Martins de. A moradia informal no banco dos réus: discurso normativo e prática
judicial. In: Rev. direito GV vol.7 no.2 São Paulo July/Dec. 2011, disponível em http://dx.doi.org/10.1590/
S1808-24322011000200002, acesso em 15/08/2013.
29 ABREU, João Maurício Martins de. A moradia informal no banco dos réus: discurso normativo e prática
judicial. In: Rev. direito GV vol.7 no.2 São Paulo July/Dec. 2011, disponível em http://dx.doi.org/10.1590/
S1808-24322011000200002, acesso em 15/08/2013.
30 Nesse ponto, ganha destaque na doutrina a discussão acerca da tormentosa questão de se chegar a pro-
nunciamento jurisdicional desfavorável, acobertado pela coisa julgada material, contra aquele que não esteve
presente na relação jurídica processual e quanto aos modos de execução dessa decisão.
31 ZUFELATO, Camilo. Proibição às torcidas organizadas, Estatuto do Torcedor e a ação coletiva passiva.
Disponível em http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/proibicao-as-torcidas-organizadas-estatuto-
-do-torcedor-e-a-acao-coletiva-passiva/8715, acesso em 16/08/2013.
32 BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito
processual civil, 1 – 6. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 67.
33 ABREU, João Maurício Martins de. A moradia informal no banco dos réus: discurso normativo e prática
judicial. In: Rev. direito GV vol.7 no.2 São Paulo July/Dec. 2011, disponível em http://dx.doi.org/10.1590/
S1808-24322011000200002, acesso em 15/08/2013.

819
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Regularização fundiárias em
áreas de conflito possessório

Cleide Aparecida Nepomuceno1

INTRODUÇÃO

Os aglomerados urbanos, também conhecidos por favelas ou vilas,


são umas das facetas da injustiça social e se destacam por moradias pre-
cárias e carentes de infraestrutura básica, tais como, serviços públicos de
saneamento, água, luz (legalizados), soluções de drenagem pluvial e pela
irregularidade urbana. A situação jurídica dessas áreas, entretanto, apre-
senta diferenças que repercutem no direito dessas pessoas a uma melhoria
habitacional, por meio de políticas públicas de regularização fundiária.
Algumas áreas favelizadas se originaram de ocupação de áreas urbanas
até então vazias, aparentemente, sem qualquer destinação social a não
ser mera especulação financeira, iniciando conflitos que são objetos de
processos judiciais pela posse da terra. Nesses casos, o princípio da dig-
nidade humana e o direito à moradia dos ocupantes entram em confronto
com o direito à propriedade privada ou pública.
Essas áreas litigiosas representam não apenas um problema social, para
o qual políticas de regularização fundiária poderiam ser a solução, como
também processos que se perpetuam na Justiça e se tornam subterfúgio
para a omissão do poder público.
Esse artigo se propõe a investigar o surgimento do direito público
subjetivo à regularização fundiária, a partir do marco legal trazido pela
Lei 11.977/20092, indagando se ocupações em áreas cuja posse é litigiosa
por meio da sua disputa em ações possessórias podem ser alvo de regu-
larização fundiária, e, caso positivo, como se daria a responsabilidade
pela sua implementação e qual o instrumento legal mais pertinente,

821
tendo por objeto a apresentação de um caso concreto da Defensoria
Pública de Minas Gerais.

RELEVâNCIA SOCIAL DA REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA

Uma reflexão sobre o direito público subjetivo à regularização fundiária


dos moradores de assentamentos informais (irregulares) perpassa por uma
análise, ainda que breve, sobre o processo de urbanização brasileira e a
produção de lotes infraestruturados.
A Lei de Terra, nº 601 de 18 de setembro de 1850, foi um significati-
vo marco legal, ao dispor ser legítima somente a aquisição de imóveis
mediante compra (ou sucessão), invertendo a regra anterior pela qual a
propriedade só era adquirida mediante a ocupação efetiva por meio das
sesmarias, no espaço rural, e das datas, nas vilas e cidades nascentes,
conforme apontam Lúcia Keitão e Norma Lacerda3 (2003, p. 59).
A proibição oriunda da Lei de Terras, conforme registrado por Keitão
e Lacerda4, não impediu que parte da população, cuja renda não permitia
a aquisição de um lote, ocupasse parte do solo, processo que, nos cen-
tros urbanos foi acirrado a partir da década de 1930 com o adensamento
populacional atraído pela incipiente industrialização brasileira somada a
ausência de uma reforma agrária que mantivesse ou atraísse o trabalhador
na zona rural. Esse processo se intensificou nas décadas de 1960 e 1970
que coincidiram com um significativo crescimento econômico.
O modelo de industrialização brasileira se alicerçou no pagamento de
salários pífios aos seus trabalhadores, insuficientes para a aquisição de
uma moradia ou de lotes dotados de infraestrutura urbana. Em contrapar-
tida, a moradia se tornou um bem caro e escasso para esses trabalhadores,
especialmente com a contribuição da legislação relativa à regulamentação
do uso dos espaços urbanos.
As cidades tiveram de ser planejadas por meio de leis que determinas-
sem as áreas residenciais, as comerciais, as mais adensadas e aquelas
destinadas às casas de luxos. As áreas urbanas destinadas à residência

822
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

deveriam ser parceladas e estruturadas, e os lotes, provenientes do parce-


lamento, registrados no Cartório de Registro de Imóveis para futura venda,
agregando-se ao valor deste todo o custo com a infraestrutura urbana.
Esse produto era inacessível à maioria dos trabalhadores resultando na
ocupação informal do solo, processo que se observa atualmente.
Por muito tempo, o entendimento político predominante era que as
comunidades (favelas), formadas à margem da lei, deveriam ser removidas
dos centros mais urbanizados das cidades. Edésio Fernandes5 registra que
esse pensamento vigorou até década de 70, quando, em razão do avan-
ço da mobilização social pelo reconhecimento do direito de moradia, os
assentamentos informais passaram a ser tolerados, e surgiram diversas
políticas de regularização fundiária.
Essas políticas servem de remédio para trazer à legalidade assentamen-
tos surgidos informalmente, ou seja, sem qualquer titulação da posse, e
melhorar a situação habitacional de vários cidadãos brasileiros que, sem
acesso à terra infraestruturada, edificaram suas casas em locais impróprios
ou não legalizados e carentes de melhorias urbanas, mas podem também
ser adaptadas em áreas de conflitos fundiários.

DEFINIÇÃO LEGAL DA REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA

A par da discussão sobre as diversas concepções de regularização


fundiária6 ora como regularização jurídica da posse (titulação da proprie-
dade), ora apenas como urbanização (obras de infraestrutura), o Estatu-
to da Cidade, Lei 10.257/017, ao regulamentar os Artigos 182 e 183 da
Constituição Federal, prevê como diretrizes gerais da política urbana, para
áreas ocupadas por população de baixa renda, a regularização fundiária
e a urbanização:

Artigo 2º .A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno


desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
(...)
xIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas
por população de baixa renda, mediante o estabelecimento de

823
normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edi-
ficação, consideradas a situação socioeconômica da população
e normas ambientais.( BRASIL, 2009)

Betania Alfonsin (2006. p. 60) em pesquisa sobre as diversas concep-


ções de políticas fundiárias executadas elaborou a seguinte definição
para o instituto:

Regularização fundiária é um processo conduzido em parceria


pelo Poder público e população beneficiária, envolvendo as di-
mensões jurídicas, urbanística e social de uma intervenção que
prioritariamente objetiva legalizar a permanência dos moradores
de áreas urbanas ocupadas irregularmente para fins de moradia
e acessoriamente promove melhorias no ambiente urbano e na
qualidade de vida dos assentamentos, bem como incentiva o
pleno exercício da cidadania pela comunidade sujeito do projeto.8

Celso Santos Carvalho9 também compreendia, antes da edição da lei,


que a regularização fundiária tinha seu aspecto jurídico e urbanístico, e
que neste último aspecto a sua função era de “adaptar a situação existente
aos padrões mínimos urbanísticos e ambientais, reconhecendo a realidade
socioterritorial de cada lugar” (CARVALHO, 2010, p. 137):
A Lei 11.977/09 conceituou o que vem a ser regularização fundiária
de forma ampla, contemplando a titulação da propriedade e também a
urbanização, ora entendida como obras de infraestrutura, deixando claro
que o processo compreende, em conjunto, esses dois aspectos:

Art. 46. A regularização fundiária consiste no conjunto de me-


didas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam
à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de
seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia,
o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade
urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra-
do. (BRASIL, 2009)

A Lei 11977/2009 é um marco jurídico em matéria de regularização


fundiária, pois além de trazer novos conceitos e direitos ela também
trouxe novos instrumentos de regularização fundiária como a demarca-
ção urbanística e a legitimidade de posse, retratou as etapas necessárias

824
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

à regularização fundiária, definiu competências e responsabilidades. A


interpretação da lei não deixa dúvidas de que a regularização fundiária é
um direito público subjetivo dos moradores de assentamentos irregulares
na presença dos requisitos informadores deste direito10 (CARDOSO, 2010,
p.89) e, em contrapartida, uma obrigação do poder público11 (CARVALHO,
2010, p.134)

ASSENTAMENTOS INFORMAIS
E REGULARIZAÇAÕ FUNDIáRIA

O artigo 46 da Lei 11977/2009 define a regularização fundiária e o artigo


47, VI, conceitua os assentamentos irregulares como “ocupações inseridas
em parcelamentos informais ou irregulares, localizadas em áreas urbanas
públicas ou privadas, utilizadas predominantemente para fins de moradia.”
São parcelamentos informais ou irregulares aqueles que não foram
precedidos de projeto de parcelamento ou desmembramento do solo
aprovado junto ao setor competente do Município e registrado no Cartório
de Registro de Imóveis, consoante Lei 6.766/79.
Para a Lei 11.977/2009 há duas modalidades de regularização fundiária
a regularização fundiária de interesse social e de interesse específico. A
primeira está definida no artigo 47, inciso VII como a “regularização fun-
diária de assentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por
população de baixa renda, nos casos: a) em que a área esteja ocupada,
de forma mansa e pacífica, há, pelo menos, 5 (cinco) anos; (Redação dada
pela Lei nº 12.424, de 2011); b) de imóveis situados em ZEIS; ou c) de áreas
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios declaradas
de interesse para implantação de projetos de regularização fundiária de
interesse social.
A regularização fundiária de interesse específico é definida por
exclusão para os casos de assentamentos edificados à margem da Lei
6.766/79 e da legislação municipal pertinente “quando não caracteriza-
do o interesse social nos termos do inciso VII”, conforme inciso VIII do
artigo 47, da Lei 11.977/2009.

825
De acordo com a interpretação da Lei 11.977/2009, haverá direito pú-
blico subjetivo à regularização fundiária de interesse social quando houver
no assentamento informal, predominantemente pessoas de baixa renda,
cuja situação jurídica se enquadre em um dos casos descritos no artigo
47, inciso VII acima mencionado, conforme sustenta Patrícia Cardoso em
monografia sobre o tema12 (CARDOSO, 2010, p.90).
O prazo da existência da posse por 5 anos coincide com o prazo fi-
xado para a caracterização da usucapião especial urbana, individual ou
coletiva, prevista no Estatuto da Cidade e também com o prazo previsto
para a Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia – CUEM – me-
dida provisória 2.220/2001, ambas regulamentadoras do artigo 183 da
Constituição Federal. Caracterizada a usucapião ou a CUEM há o direito
público subjetivo à regularização fundiária, porém, a lei13 não menciona
ser necessária a prova dos demais requisitos destes dois instrumentos
para haver direito dos moradores a um projeto global de regularização,
exigindo apenas que o assentamento exista há cinco anos e a posse seja
mansa e pacífica.
A lei permite também que a posse em área para implantação de pro-
jeto de regularização de interesse social ou ZEIS são também objetos
de regularização fundiária, sem maiores considerações sobre tempo e a
natureza da posse.

INSTRUMENTOS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA

A regularização fundiária, no seu aspecto jurídico, tem por finalidade


resolver o problema da titulação da posse de seus ocupantes por meio de
instrumentos legais como, por exemplo, a usucapião, a concessão de uso
especial para fins de moradia e, agora no novo texto da Lei 11.977/2009,
a demarcação urbanística e a legitimação da posse.
O título de domínio confere segurança jurídica à posse, pois a isenta
da ameaça de remoção compulsória e também facilita o desdobramento
de outros direitos ligados à propriedade, como o caso de partilha do imó-

826
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

vel, na hipótese de uma separação judicial ou divórcio dos proprietários,


transmissão da propriedade causa mortis, entre outros, conforme registra
Edésio Fernandes (2006, p.22):

Títulos são importante, sobretudo quando há conflitos, sejam


eles conflitos de propriedade, conflitos domésticos e familiares,
conflitos de direito de vizinhança, etc. Títulos também são impor-
tantes para reconhecer direitos sociopolíticos e para garantir que
os ocupante dos assentamentos informais possam permanecer
nas áreas que ocupam, sem risco de serem expulsos pela ação
do mercado imobiliário, por mudanças que quebrem o pacto
gerador da percepção de segurança de posse, pela pressão do
crime organizado, etc., como tem acontecido em diversas favelas
e loteamentos irregulares brasileiros.14

A importância da titulação da posse para assentamentos irregulares é


discutível, Hernando de Soto (2001)15 a defende, especialmente pelo as-
pecto econômico, à medida que o título de posse serviria de garantia para
empréstimos, aquecendo a economia, Edésio Fernandes (2006)16, apesar
de salientar a importância da titulação também aponta que ela poderia
servir de estímulo para que os moradores vendessem sua propriedade e
iniciasse nova ocupação. Peter Marcuse (2008)17 defende que a titulação
não serve de garantia de posse, pois somente valoriza e prioriza a pro-
priedade em detrimento dos possuidores, defendendo um outro sistema
de proteção da moradia com formas alternativas de posse.
A titulação da posse por si só não resolve o problema da pobreza e
seus desdobramentos em carências urbanas e moradias precárias, mas,
pode servir de garantia contra o próprio poder público na eventualidade de
uma desapropriação, oportunidade em que os moradores não precisariam
discutir o direito de serem indenizados pelas benfeitorias e pela posse da
terra, estando assegurados da plena e justa indenização prevista no artigo
182, §3º da Constituição da República.
A relevância da regularização fundiária para a moradia torna impres-
cindível a sua definição enquanto direito público subjetivo, que pode
ser estendido, inclusive, para assentamentos irregulares sob ameaça de
despejo em virtude de cumprimento de mandado judicial de reintegra-

827
ção de posse. Prevê a lei 11.977/2001 terem direito público subjetivo à
regularização fundiária os assentamentos irregulares situados em zonas
especiais de interesse social (artigo 47, b). De forma isolada esse instituto
não é um instrumento de regularização fundiária, pois não proporciona a
titulação da posse, mas facilita a implementação dessa política.
O Estatuto da Cidade dispõe ser a zona especial de interesse social –
ZEIS – instrumento da política urbana (artigo 4º, V, f). A Lei 11.977/2009
define que, para fins de regularização fundiária, entende-se por Zona Espe-
cial de Interesse Social - ZEIS: parcela de área urbana instituída pelo Plano
Diretor ou definida por outra lei municipal, destinada predominantemente
à moradia de população de baixa renda e sujeita a regras específicas de
parcelamento, uso e ocupação do solo (artigo 47, V).
O assentamento irregular ou informal ocupado por pessoas de baixa
renda, predominantemente, definido como ZEIS permite uma maior fle-
xibilização das regras de uso e ocupação do solo, facilitando os parâme-
tros urbanísticos legais de legalização da área à medida que diminui as
exigências de espaçamento entre residências, largura de vias públicas,
por exemplo. Sobre a importância de ZEIS assevera João Sette Whitaker
Ferreira (2010, p. 29):

A delimitação destes assentamentos como ZEIS permite adotar


padrões urbanísticos especiais e procedimentos específicos de
licenciamento além de contribuir para o reconhecimento da posse
de seus ocupantes.18

O instituto além de ser importante para efeito da urbanização do local


também tem relevância para a comunidade protegendo-a de especulação
imobiliária, sobretudo em áreas que interessam ao mercado, ao impedir a
possibilidade de remembramento de lotes e a edificação de prédios acima
de 5 andares, por exemplo. Essas medidas contribuem para a manutenção
das famílias em seu local protegendo-as de tentativas de expulsão que
em médio prazo poderiam prejudicar suas condições de vida e moradia,
conforme sustenta Celso Santos Carvalho (2010.p. 129):

828
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O Estatuto da Cidade, ao instituir a Zona Especial de Interesse So-


cial (ZEIS), teve por objetivo justamente criar um instrumento que
permitisse reconhecer e acolher, no arcabouço legal, os padrões
urbanísticos específicos adotados pela população nas ocupações
de interesse social. Outra vantagem da ZEIS é que ela contribui
para a sustentabilidade do assentamento regularizado, podendo
(na verdade, devendo) estabelecer disposições, como a existência
de um comitê gestor com participação da comunidade, proibição
de remembramento de lotes ou a exigência de manutenção do uso
habitacional de interesse social, que buscam evitar ou dificultar
a expulsão dos moradores e a apropriação da área urbanizada
por segmentos sociais com maior poder econômico.19

A delimitação de um assentamento irregular como Zona Especial de


interesse Especial pelo poder público, implica, consoante o novo regra-
mento da Lei 11977/2001, no reconhecimento por parte deste de sua
obrigação em implementar políticas públicas de regularização fundiária,
fixando critérios urbanísticos de uso e ocupação do solo adequados para
o tipo de ocupação.

áREAS DE CONFLITOS FUNDIáRIOS URBANOS

O princípio da dignidade humana e o direito à moradia em confronto


com o direito à propriedade privada são bens jurídicos conflitantes nos
casos de disputas possessórias, quando no pólo ativo está o titular da área
objeto de reintegração de posse e do outro um grande grupo de famílias
pauperizadas que ocuparam a área que a seu olhar estava ociosa.
No caso abaixo analisado, o Poder Judiciário não está sendo capaz
de solucionar a lide, talvez, por implicar em problemas sociais de grande
repercussão, pois eventual cumprimento de um mandado de reintegração
de posse não seria solução para as milhares de famílias que ficariam sem
teto; ou ainda em razão desse tipo de conflito demandar a participação
do Município com a implementação de políticas públicas de regularização
fundiária, nem sempre requeridas pelo pólo passivo da ação.
A falta de solução para os processos de reintegração de posse não
resolve o problema dos posseiros ocupantes e tão pouco daqueles que
reivindicam a posse, exigindo que alternativas sejam buscadas em nome

829
da pacificação social e do direito à cidade sustentáveis preconizada no
Estatuto da Cidade.

A REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA EM áREAS DE CONFLITOS


FUNDIáRIOS URBANOS: VITóRIA DA CONqUISTA

Em 1997, várias pessoas empobrecidas, oriundas, em sua maior parte


da Região do Barreiro, em Belo Horizonte, Minas Gerais, ocuparam, de
forma espontânea, uma área adjacente ao Bairro Petrópolis, conhecido
na época como uma favela, pelo imperativo da necessidade de uma mo-
radia, conforme tese de defesa apresentada nos autos do processo de
reintegração de posse nº 024.98.007.632-7. Em março de 1998 já havia
no local aproximadamente 2000 mil famílias com cerca de 6000 pessoas
entre adultos, crianças e idosos, conforme sustentam os moradores.
A área ocupada é constituída pelos lotes 40, 41, 42 e 39 da Antiga
colônia da Vargem Grande, posteriormente conhecida como Barreiro de
Cima. Os primeiros lotes estão registrados sob o nº 16624, fls. 140, livro
3-M e o último (39) sob nº 22.173, fls. 151livro 3-V no Cartório do 3º Ofício
de Imóveis, registrada em nome de Edmundo de Almeida Medeiros e sua
esposa Adelina Cecília dos Santos Medeiros.
Em 28 de fevereiro de 1998, foi proposta a ação de reintegração de pos-
se de nº 024.98.007.632-7, pelos titulares do domínio da área, distribuída
perante o juízo da 10ª Vara Cível de Belo Horizonte, que sustentam ter sido
a área invadida, injustamente, por várias pessoas violando a ordem jurídi-
ca legal. Até o momento este processo anda não tem decisão de mérito.
As partes em litígio tentaram uma composição, no segundo semestre de
2004, conforme atestam os documentos que instruem o processo, porém
não lograram êxito, certamente pelo Município não ter se posicionado
favoravelmente a uma desapropriação, apesar de ter existido até mesmo
um cálculo sobre o valor da área.
Em 30 de novembro de 2009, o oficial de justiça responsável pelo
cumprimento da ordem liminar de reintegração de posse certificou nos

830
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

autos que a área a ser reintegrada encontrava-se ocupada por cerca de


duas mil pessoas, necessitando de um grande planejamento e aparato da
Polícia Militar.
A Polícia Militar havia sido informada do cumprimento da ordem de
reintegração de posse, mas asseverou ser necessário ter um mapa da área
a ser reintegrada, bem como seria necessário reuniões com outros órgãos
além do próprio autor da ação.
Em resumo, o oficial de justiça devolveu o mandado por não ter obtido
os meios necessários para o cumprimento da ordem de reintegração de
posse que determinaria a saída de cerca de 6000 mil pessoas do local sem
qualquer operação ou apoio para destiná-las a outro local ou ainda apoio
de onde seriam levados seus pertences.
Apesar da insistência da parte autora no cumprimento do mandado,
de fevereiro de 2010 a junho de 2010, o mandado judicial ficou revogado
tendo por subterfúgio o aguardo de providência por parte da polícia militar.
Em 14 de junho de 2010, o julgador saneou o processo para determinar a
citação pessoal daqueles que compareceram espontaneamente no pro-
cesso e a citação por edital do restante além de determinar a intimação
pessoal da Defensoria Pública para assumir a curadoria processual dos
réus citados por edital. A Defensoria apresentou contestação e ação civil
pública autônoma, requerendo o apensamento da possessória a esta em
razão da conexão da matéria.
O imóvel em litígio está, desde 1999, em zoneamento inserido como
ZEIS, o que para a Defensoria Pública significa, apesar do conflito posses-
sório, que os moradores possuem direito público subjetivo à regularização
fundiária com fundamento legal no artigo 47, VII, alínea b, pois quanto a
este item a lei não exige a posse mansa ou pacífica. Para resolver a disputa
possessória a Defensoria Pública propõe a desapropriação judicial, em sede
de ação civil pública (0024.12.128.192-7) com fundamento no artigo 1228,
§4º e 5º do Código Civil, cuja indenização em favor do proprietário deve
ser suportada pelo Município que, mediante um projeto de regularização,
deve transferir, posteriormente, os títulos aos moradores como direito

831
real de uso ou mediante demarcação urbanística e legitimação da posse.
Ao considerar o imóvel como ZEIS, o Município atraiu para si a obri-
gação de promover políticas de regularização fundiária com o objetivo
de resolver, inclusive, o conflito de interesses em torno da posse. Se o
imóvel não estivesse localizado em área definida pelo Estatuto da Cidade
ou pela lei de uso e ocupação do solo como zona especial de interesse
social, os moradores não poderiam reivindicar direito público subjetivo
à regularização fundiária, pois, não estaria caracterizada nenhuma das
hipóteses previstas no artigo 47, VII da Lei 11977/2009 restando apenas a
discricionariedade da administração, mas ainda assim poderiam pleitear
a aplicação do artigo 1228, §4 e 5º do Código Civil20.

ARTIGO 1228, §4º E 5º DO CóDIGO CIVIL

Conflitos fundiários urbanos são casos de difícil solução em função do


impacto social que eventual medida de reintegração de posse representa
e por isso são objeto da presente análise tendo como solução apresenta-
da o direito dessas famílias à regularização fundiária, instrumentalizada
pela desapropriação judicial prevista no artigo 1228, §4ºe 5º do Código
Civil e posterior outorga da titulação dos imóveis pelo Município em
favor dos moradores.
Pela perspectiva tanto do direito civil quanto do direito urbanístico,
como também da lógica do ordenamento legal em vigor, tempo gera di-
reitos à medida que uma situação se consolida, impondo outras soluções
para conflitos possessórios dessa natureza que o mero cumprimento de
ordem de reintegração de posse dada em processos dessa natureza sob
a ótica estritamente civilista.
O Código Civil em vigor trouxe uma nova modalidade de perda da
propriedade de imóvel, alicerçada no princípio da função social da pro-
priedade, na hipótese do proprietário ter sido privado da posse direta por
um considerável número de pessoas que nele realizou obras e serviços
de interesse social e econômico relevante, conforme abaixo transcrito:

832
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dis-


por da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que
injustamente a possua ou detenha. (...)

§ 4º. O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel


reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e
de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de
pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou sepa-
radamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse
social e econômico relevante.

§ 5º. No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa inde-


nização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença
como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores
(BRASIL, 2001)

A expressão “imóvel reivindicado” mencionada no parágrafo 4º do arti-


go 1228 não impede que a tese seja sustentada em ações possessórias21,
conforme sustenta Teori Albino Zavascki (2002, p.844):

(...)o conflito de interesses poderá surgir não apenas no âmbito de


ações reivindicatórias, como suposto no dispositivo, mas também
em interditos possessórios, não sendo plausível negar-se, nessas
situações, a utilização, pelos possuidores demandados, das prer-
rogativas asseguradas pelo instrumento agora proposto. O que
se quer, em suma, enfatizar, é que a interpretação teleológica do
dispositivo haverá de presidir a sua aplicação, seja para preencher
valorativamente os conceitos abertos, seja para acomodar sob
seu pálio as possíveis variantes análogas que a realidade vier a
apresentar no futuro22.

A análise dos requisitos para aplicação do artigo ao caso concreto


deverá ser casuística, mas para a interpretação da boa fé por parte dos
ocupantes o juiz deverá considerar a necessidade econômica e social
deles e as obras e serviços de interesse social e econômico relevante do
ponto de vista social do direito à moradia.
O artigo não esclarece quem deva ser o responsável pelo pagamento
da indenização em favor do proprietário. Pode-se sustentar que a res-
ponsabilidade é do poder público municipal se houver a caracterização
do direito público subjetivo à regularização fundiária, especialmente em
função da lei municipal considerar o local como ZEIS.
A responsabilidade do Município pela política urbana tem fundamen-
to legal no artigo 23, Ix da Constituição Federal conjugado com o artigo

833
182 desse mesmo diploma que trata da política urbana, somado ainda ao
disposto no Estatuto da Cidade. Marcelo de Oliveira Milagres (2011) 23
defende que em regra a responsabilidade pelo pagamento da indenização
é dos beneficiários da desapropriação privada, porém, tratando-se de
pessoas de baixa renda é razoável que a responsabilidade recaia sobre o
Município, uma vez que a ele cabe regular a organização e distribuição do
espaço urbano, e aponta que o próprio Superior Tribunal de Justiça vem
reconhecendo a competência municipal para a regularização fundiária de
áreas ocupadas por pessoas de baixa renda.
O valor da indenização a ser fixada judicialmente em favor do pro-
prietário da terra e suportada pelo Município deve considerar o fato do
descumprimento da função social da propriedade, antes da ocupação e
a delimitação da área como Zona Especial de Interesse Social. Milagres
(2011, p. 191)24 aduz que:

A indenização, nesse caso, não configura resposta compensa-


tória ou retributiva, mas remédio às conseqüências da conduta
não conforme ao ordenamento jurídico, pois a desapropriação
privada não deixa de ser uma sanção pelo descumprimento da
função social da posse e da propriedade

Paga a indenização pelo Município cessa o conflito pela posse da terra,


restando ao Município a obrigação em implementar a regularização fun-
diária outorgando aos moradores um título pela posse da terra mediante
a legitimação da posse ou concessão de direito real de uso, entre outros.
Registra-se que há interpretação de que o instituto só é aplicável em
ações reivindicatórias e que o valor da indenização deve ser prévio e justo
e pago pelos possuidores25 e ainda interpretação da total invalidade e até
mesmo inconstitucionalidade da norma26. Opiniões que não coadunam
com a plena realização do direito à moradia para as populações pobres.

CONCLUSÃO

A regularização fundiária é política pública voltada para amenizar o


problema da irregularidade urbana de assentamentos precários e suas

834
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

moradias inadequadas do ponto de vista urbano e jurídico e importa em


efetivação do direito à moradia à medida que proporciona segurança da
posse e melhorias habitacionais.
A Lei 11.977/2009 representou um novo marco jurídico em matéria
de regularização fundiária ao conceituá-la, ao definir responsabilidades
e novos instrumentos como a demarcação urbanística e legitimação da
posse e sua conversão em domínio.
Pode-se sustentar que existe direito público subjetivo à regularização
fundiária, com fundamento legal no artigo 47, VII da Lei 11.977/2009 se
o assentamento irregular, cuja posse mansa, pacífica e ininterrupta exis-
te há pelo menos cinco anos, ou esteja em locais inseridos no território
municipal como zona especial de interesse social ou em áreas declaradas
de interesse público para efeitos de regularização fundiária pela União,
Estado ou Município.
A Lei é silenciosa quanto à possibilidade de direito público subjetivo
à regularização fundiária de áreas em conflito possessório urbano, inse-
ridas em zonas especiais de interesse social, mas dentro da perspectiva
do direito à moradia e da dignidade humana, há de se interpretar que há
direito público subjetivo nessa circunstância, uma vez que há instrumentos
passíveis de solucionar o conflito possessório entre os ocupantes da área
e o titular do domínio, autor da ação de reintegração da posse.
Nessas áreas conflituosas, pode-se aplicar ao caso o instituto previsto
no artigo 1228, §4º e 5º do Código Civil, se a ocupação e o litígio se arras-
tarem por mais de cinco e no local houver construções de interesse social
e boa fé dos ocupantes. A análise dos requisitos é casuística, mas há de
se levar em consideração a necessidade econômica dos ocupantes para
aferição da boa fé e das obras de interesse social, sob pena de inaplicabi-
lidade do instituto. O texto do Código Civil permite interpretar que o ônus
da indenização é dos ocupantes ou mesmo do poder público. Sustenta-se
que será do poder público se houver direito público subjetivo à regulari-
zação fundiária, caso contrário a regularização fundiária continuaria no
âmbito da discricionariedade do poder público municipal, responsável
pela política urbana.

835
O direito público subjetivo à regularização fundiária por meio do
dispositivo acima pode ser requerido pela Defensoria Pública em ação
civil pública figurando no pólo passivo o proprietário da área e o poder
público municipal.
Se a área em litígio não estiver inserida em Zona Especial de interesse
Social, ainda assim é possível a regularização fundiária, lembrando que se
não for ZEIS, não há direito público a esta, mas mera discricionariedade
do ente estatal.
A regularização fundiária é uma política urbana importante como res-
posta a uma trajetória excludente do processo de urbanização brasileira
e meio de concretização do direito humano à moradia digna. As diversas
situações jurídicas em que os assentamentos estão inseridos, como, por
exemplo, as de conflitos possessórios, devem ser interpretadas de acordo
com os princípios da função social da propriedade, da dignidade humana
e do direito à moradia.

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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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NOTAS

1 Defensora Pública em Minas Gerais, titular da Defensoria Especializada em Direitos Humanos, Coletivos e So-
cioambientais, pós-graduada em direito urbanístico pela PUC –Minas. cleide.nepomuceno@defensoria.mg.gov.br
2 BRASIL, Lei 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a
regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei no 3.365, de 21
de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11
de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001;
e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 8 jul. 2009.
3 KEITÃO, Lúcia; LARCERDA, Norma. A função Urbanística da Usucapião. In: FERNANDES, Edésio e ALFONSIN,
Betânia (Org.). A Lei e a Ilegalidade na Produção do Espaço Urbano. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 59-76.
4 KEITÃO, Lúcia; LARCERDA, Norma, loc. cit.
5 FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil uma Introdução. In: FERNANDES, Edé-
sio et al (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 11-75.
6 ALFONSIN, Betânia. O Significado do Estatuto da Cidade para os Processos de Regularização Fundiária
no Brasil. In: RONILK, Raquel et al (Org.). Regularização Fundiária de Assentamentos Informais. Belo
Horizonte: Puc Minas Virtual, 2006. p. 53-73.
7 BRASIL, Lei 10.257, de 10 de setembro de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal,
Estabelece Diretrizes Gerais da Política Urbana e dá outras Providências. Diário Oficial da União, Brasília,
11 set. de 2001.
8 ALFONSIN, Betânia, loc. cit.
9 CARVALHO, Santos Celso. Regularização Fundiária. In: DANALDI, Rosana; ROSA, Junia Santa. (Org) Ações
integradas de urbanização de assentamentos precários, 2ª ed. 2010, p. 129-160. Disponível em: http://
www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/ArquivosPDF/PNUD_Curso_a_distancia_Miolo.pdf. Acesso
em 14 nov. de 2011.
10 CARDOSO, Patrícia de Menezes. Democratização do acesso à propriedade pública no Brasil: função
social e regularização fundiária. 2010. 260 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Direito do Estado - área de
concentração Direito Urbanístico) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
11 CARVALHO, Santos Celso. Regularização Fundiária. In: DANALDI, Rosana; ROSA, Junia Santa. (Org) Ações
integradas de urbanização de assentamentos precários. 2ª ed., 2010. p. 129-160. Disponível em: http://
www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/ArquivosPDF/PNUD_Curso_a_distancia_Miolo.pdf . Acesso
em 14 de nov. de 2011.
12 CARDOSO, Patrícia de Menezes. Ibid., p. 90.
13 BRASIL. Lei nº 12.424, de 2011. Deu nova redação ao artigo 47, VII, alínea a da Lei 11.977/2009. Diário
Oficial da União. Brasília, 17 de jun. de 2011, p. 2.
14 FERNANDES, Edésio. Regularização de Assentamentos Informais: o Grande Desafio dos Municípios, da
Sociedade e dos Juristas Brasileiros. In RONILK, Raquel eT al (Org.). Regularização Fundiária de Assenta-
mentos Informais. Belo Horizonte: Puc Minas Virtual, 2006. p. 17-27.
15 SOTO, Hernando de. O mistério do capital (The mystery of capital). Tradução de Zaida Maldonado. Rio
de Janeiro: Record, 2001.
16 FERNANDES, Edésio. Legalizando o ilegal. In: BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (Org). As cidades da cidade.
Belo Horizonte: UFMG, 2006, p.143.
17 MARCUSE, Peter. O caso contra os direitos de propriedade. In: VALENÇA, Márcio Moraes (Org). Cidade (i)
legal. Rio de Janeiro: Maudx, 2008.
18 FERREIRA. João Sette Whitaker.O processo de urbanização brasileiro e a função social da proprie-
dade urbana. ações integradas de urbanização de assentamentos precários 2010. 2a ed.. Disponível
em: http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/ArquivosPDF/PNUD_Curso_a_distancia_Miolo.
pdf. Acesso em 9 de nov. de 2011.
19 CARVALHO, Santos Celso. Regularização Fundiária. In: DANALDI, Rosana; ROSA, Junia Santa. (Org) Ações
integradas de urbanização de assentamentos precários. 2ª ed. 2010, p. 129 a 160. Disponível em: http://
www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/ArquivosPDF/PNUD_Curso_a_distancia_Miolo.pdf. Acesso
em 14 de nov de 2011.
20 MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito à Moradia. São Paulo: Editora Atlas, 2011.
21 Nesse sentido também o Enunciado 310 da Quarta Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal

839
(CFJ) “Interpreta-se extensivamente a expressão Imóvel reivindicado (artigo 1228, §4º), abrangendo pretensões
tanto no juízo petitório quanto no possessório”.
22 ZAVASCKI, Teori Albino. “A Tutela da Posse na Constituição e no Projeto do Código Civil”. In: MARTINS-
-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: RT, 2002, p.843-861
23 MILAGRES, Marcelo de Oliveira. op. Cit. p. 191
24 MILAGRES, Marcelo de Oliveira. op. Cit. p. 191
25MIRANDA, Silvio Júnior. Limites ao Direito de Propriedade e Autonomia Privada. In: SOUZA, Adriano Stanley
Rocha (Org). Estudos Avançados da Posse e dos Direitos Reais. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2010.
26 LIMA,Renata Dias de Araújo.O Princípio da Função Social da Propriedade como máscara para a legitima-
ção do controvertido instituto da desapropriação judicial. In: SOUZA, Adriano Stanley Rocha (Org). Estudos
Avançados da Posse e dos Direitos Reais. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2010.

840
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A importância da transversalidade
no estudo de impacto de vizinhança –
EIV/RIV: o exemplo de Cuiabá

Marcel Alexandre Lopes


Tatiana Monteiro Costa e Silva

INTRODUÇÃO

Colima-se neste texto mostrar a importância da transversalidade das


diretrizes urbanísticas quando da análise do EIV/RIV, pelos técnicos do
município, no sentido de nortear o empreendedor, especialmente com
relação as medidas mitigadoras e compensatórias.
Esse direcionamento a ser dado pelo Município não pode ser centra-
lizado e unilateral, encabeçado por uma única Secretaria, mas sim por
um grupo multisetorial composto por diversos profissionais de diversas
áreas do conhecimento, que discutirão as facetas do empreendimento:
acessibilidade, mobilidade, transito e transporte, ambiente, drenagem, etc.
Contudo, é sabido que a ausência de planejamento, como também de
dialogo entre as esferas de poder e dentro do próprio ente. Tal problema
ou omissão vem ocasionando nos centros urbanos o colapso da qualidade
de vida, e os instrumentos urbanísticos, principalmente o EIV/RIV objetiva
proporcionar aos cidadãos o direito de ir e vir, a acessibilidade, a mobili-
dade, moradia, lazer e cultura, enfim, o planejar da cidade para o amanhã.
Eis a grande dificuldade encontrada pelos técnicos e gestores munici-
pais, dada a falta de estrutura e articulação entre os órgãos de gerencia-
mento urbano com as demais secretarias, também faltam instrumentos de
auxilio no planejamento urbano, como o levantamento aerofotogramétrico
do município, o Sistema Integrado de Informação – SIG; e os dados do
perfil socioeconômico da cidade. São elementos de planejamento que, na

841
sua ausência, dificultam, na prática, a implementação dos instrumentos
urbanísticos por meio de legislação específica.
Daí a necessidade de observância das diretrizes destinadas a regular o
planejamento urbano, mesmo que tais regras não se mostrem populares,
ou de fácil aplicabilidade, ou mesmo ainda que desatendam a interesses
particulares.
Enuncia-se aqui a importância do EIV/RIV, trazendo o exemplo do
Município de Cuiabá, que desde 1999 já operacionaliza o referido instru-
mento, e institucionalmente criou a Câmara Técnica de Gestão Urbana e
Ambiental por meio da Portaria 002 de 2011, com o objetivo de analisar
todos os empreendimentos considerados como “alto impacto não se-
gregável”, na cidade, de acordo com a lei de uso e ocupação do solo em
vigor – Lei Complementar n.º 231 de 2011.
A Câmara Setorial de Gestão Urbana e Ambiental reúnem-se semanal-
mente, composto pelas diversas Secretarias do Município: Meio ambiente
e regularização fundiária, Habitação, Infraestrutura, Saneamento, Transito
e Transporte e Desenvolvimento Urbano.
Eis o objetivo deste artigo, mostrar a experiência inovadora do municí-
pio de Cuiabá que criou a Câmara Setorial de Gestão Urbana e Ambiental,
que delineia todas as diretrizes para o empreendedor, em pró da cidade
e da sociedade cuiabana.

1. ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINhANÇA

As cidades brasileiras de médio e grande porte vêm enfrentando nas


últimas décadas sérios problemas com o crescimento desordenado, des-
controlado e ilegal, às margens de normas urbanísticas e ambientais. As
políticas públicas urbanas, diga-se principalmente as de uso e ocupação
do solo e parcelamento do solo, ou seja, idealizadas pelos urbanistas
não surtiram as conseqüências desejadas, pela falta de aplicabilidade
da norma ou inoperância/omissão do ente municipal. Sobre o assunto,
transcrevemos a seguinte lição:

842
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O zoneamento por si só não é capaz de mediar todos os confli-


tos de vizinhança, apesar de, em inúmeras cidades, ter logrado
garantir a proteção da qualidade de vida de alguns bairros -
principalmente aqueles ocupados por residências unifamiliares
em lotes grandes. Estes últimos podem comportar grandes
empreendimentos que, mesmo atendendo aos requisitos da Lei,
provocam profundos impactos nas vizinhanças: sobrecarga no
sistema viário, saturação da infra-estrutura – drenagem, esgoto,
energia elétrica, telefonia -, sombreamento e poluição sonora,
entre outros1.

O Estudo de Impacto de Vizinhança, assim como o seu respectivo


relatório, tem como objetivo promover a mediação dos interesses dos em-
preendedores imobiliários urbanos, dos gestores públicos e dos cidadãos,
de modo a garantir a sustentabilidade e a função social das cidades, nos
casos de empreendimentos potencialmente impactantes ou considerados
polo geradores de tráfego.
Teve sua origem no Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano ela-
borado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU),
ainda final da década de 70. “Naquele momento, o país atravessava um
período sinistro de sua história, quando os direitos básicos da cidadania
hesitavam sob a égide do regime militar”2, nos dizeres de Rogério Rocco.
Mariana Senna Sant’Anna vincula a origem do Estudo de Impacto de
Vizinhança com o surgimento do instrumento de gestão ambiental esta-
belecido na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, autodenominado
de AIA - Avaliação de Impacto Ambiental, recepcionado pela Lei Maior
de 88 em seu art. 225, como Estudo Prévio de Impacto Ambiental – EIA/
RIMA. Contudo, conclui que “não havia, até a promulgação do Estatuto
da Cidade, uma lei federal que determinasse a obrigatoriedade desse tipo
de estudo em áreas urbanas”3.
É instrumento preventivo da política urbana e ao mesmo tempo apre-
senta uma limitação administrativa ao direito de propriedade, pois limita
e restringe o direito de propriedade do lote urbano, com vistas a atender
o interesse da coletividade. Nos ensina Mariana Sant’anna, que “nos ter-
mos do Estatuto da Cidade, o Estudo de Impacto de Vizinhança é um dos
instrumentos da política urbana. Essa é a sua natureza jurídica”4.

843
Outro é o entendimento sobre a natureza jurídico para Rogério Rocco:

Portanto, temos no Estudo de Impacto de Vizinhança um institu-


to de natureza jurídica hibrida, que incide como uma limitação
administrativa, ao mesmo tempo que se caracteriza como direito
subjetivo ao exercício da cidadania para a gestão da sustentabili-
dade das cidades – como devidamente assegurado pelo princípio
constitucional da função social da propriedade5.

Por sua vez, a propriedade urbana cumpre a sua função social quan-
do atende às exigências determinadas no Plano Diretor. Assim, houve
a relativização da propriedade no meio urbano, para o florescimento
do urbanismo sustentável, com vistas à ordenação do espaço e, conse-
quentemente, para alcançar, em última análise, a qualidade de vida dos
cidadãos da cidade.
A política urbana expressa no texto constitucional e reafirmada no
Estatuto da Cidade tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e da propriedade urbana, de modo a evitar a
utilização inadequada dos imóveis; a proximidade de usos incompatíveis
ou inconvenientes; o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivo
ou inadequado em relação à infraestrutura urbana; a instalação de empre-
endimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores
de tráfego, sem a previsão da infraestrutura correspondente; a retenção
especulativa de imóvel urbano que resulte na sua subutilização ou não
utilização, a deterioração das áreas urbanizadas e, por fim, a poluição e
a degradação ambiental.
A função social da cidade tem como meta evitar a utilização inadequa-
da, prejudicial a toda a coletividade, por isso o Poder Público municipal
deve redirecionar os recursos e a riqueza de forma mais justa, solidária e
equitativa, combatendo as desigualdades e a exclusão social. Jorge Renato
Reis frisa que “... também, que o texto constitucional fixa o conteúdo da
função social a que deve estar adstrito o exercício dos direitos relativos
ao domínio, definindo seu conteúdo, exigindo o seu cumprimento e san-
cionando o seu descumprimento”6.
A função social da propriedade urbana veio consagrada nos artigos

844
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

182 e 183 do texto constitucional de 1988, tendo como ente principal ou


realizador dessa política de inclusão o Poder Público municipal.
José Afonso da Silva qualifica o solo como urbano, dado o exercício
das funções urbanísticas:

A Constituição, como acabamos de ver, acolheu a doutrina de que


a propriedade urbana é um típico conceito de direito urbanístico,
na medida em que a este cabe qualificar os bens urbanísticos e
definir o seu regime jurídico. A qualificação do solo como urba-
no, porque destinado ao exercício das funções urbanísticas, dá
a conotação essencial da propriedade urbana7.

Continua o renomado autor, parafraseando o jurista espanhol Pedro


Escribano Collado:

a função social da propriedade privada urbana repousa num


pressuposto de primordial importância, qual seja: o de que a ativi-
dade urbanística constitui uma função pública da Administração,
que, em conseqüência, ostenta poder de determinar a ordenação
urbanística das cidades, implicando, nisso, a iniciativa privada e
os direitos patrimoniais dos particulares8.

Assim sendo, o Estudo de Impacto de Vizinhança surge justamente para


corrigir o descompasso da má utilização do solo, com vistas a controlar
e mitigar os impactos no espaço urbano.
Enfatiza-se aqui que referido instrumento mitigador de impactos ur-
banos, ao atenderem a função social da propriedade devem considerar o
aspecto ambiental, pois

na nova ordem jurídica, a função social e ambiental da proprie-


dade além de permitir ao proprietário, no exercício de seu direito,
fazer tudo que não prejudique à coletividade e o meio ambiente,
também impõe comportamentos positivos para que a propriedade
se adéqüe à preservação do meio ambiente.9

O EIV/RIV deverá ser realizado em empreendimentos públicos e priva-


dos em área urbana, cujas atividades necessitem da elaboração do Estudo e
Relatório de Impacto de Vizinhança para obter as licenças ou autorizações
necessárias para sua construção, ampliação ou funcionamento.

845
O Poder Público não pode se eximir da responsabilidade de elaborar
o EIV quando de um empreendimento ou atividade a ser desenvolvida
também ser considerada de grande porte ou relevo, pois o exemplo deve
ser dado.
Com efeito, o artigo 36 do Estatuto da Cidade determina que a lei mu-
nicipal definirá os empreendimentos e atividades privados ou públicos
em área urbana que dependerão de elaboração EIV para obter as licenças
ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a carga do
Poder Público.
O município dessa forma ao definir essas atividades limitará o direito
de propriedade, com vistas a assegurar a qualidade de vida dos cidadãos
urbanos. Sobre o assunto leciona Lucélia Martins Soares:

Estamos tratando de empreendimentos ou atividades de


tal porte ou relevância que podem conturbar o equilíbrio
do andamento de uma região com seus simples surgimen-
to. A Administração Pública, embora não proíba a cons-
trução de obra ou exploração de atividade, tenta intervir
de maneira a evitar que haja perturbação no cotidiano
daqueles que habitam na região ou, pelo menos, tenta
amenizar ao máximo a intensidade daquela. Novamente,
aqui o Poder Público intervém para limitar a liberdade
daquele proprietário da esfera privada, na tentativa de
adequar a construção ao meio no qual será inserida, ou
vice-versa. É que muitas vezes, por conta do aparecimento
de um empreendimento em determinada região, o Poder
Público deve aumentar a rede de serviços colocados à
disposição no local. Daí a exigência da elaboração do
Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança, previsto no art.
36 da Lei 10.257/200110.

A indicação dessas atividades ou empreendimentos ficará a critério do


ente municipal quando da elaboração da lei específica, estabelecendo as
definições quanto ao porte e o tamanho de cada uma delas, que varia de
acordo com as necessidades e anseios do Município que devem sempre
se destinar a atender o interesse local.
Mais uma vez, nos utilizamos das sábias lições de referida autora:

E assim o é porque cada Município terá condições de averiguar


que tipos de empreendimentos podem gerar um distúrbio de
grande porte a ponto de exigir sua intervenção na prestação de

846
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

serviços públicos ou,. Ao contrário, impedir que o projeto siga


em frente, com a denegação da competente licença. Tudo isso
levando em consideração seu espaço territorial11.

Vale destacar que algumas questões devem ser minuciosamente estu-


dadas pela equipe multidisciplinar que elabora o estudo, principalmente
no que tange à geração de tráfego e ao adensamento populacional que a
atividade ou empreendimento podem gerar.
De acordo com o artigo 37 da Lei nº 10257/2001, o EIV será executado
de forma a contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento
ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e
suas proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das seguintes questões:
adensamento populacional; equipamentos urbanos e comunitários; uso e
ocupação do solo; valorização imobiliária; geração de tráfego e demanda
por transporte público; ventilação e iluminação; paisagem urbana; pa-
trimônio natural e cultural. “Sem dúvida alguma, trata-se dos principais
elementos de infra-estrutura a abalar o equilíbrio de uma região em caso
de empreendimento ou atividade de grande porte ou relevo”, para Lucélia
Martins Soares12.
Édis Milaré informa que nos estudos de avaliação há uma metodologia
a ser adotada:

(...) nos estudos de avaliação, as etapas de prognóstico, pondera-


ção e participação social se revestem de grande importância. Os
estudos de impacto constituem uma aplicação dessa metodologia.
Há regras e critérios metodológicos para a elaboração de tais
estudos que, na salvaguarda da integridade ou da boa qualidade
do meio em risco de ser afetado, devem ser prévios, em virtude
do princípio da precaução13.

O rol de atividades estabelecidas no art. 37 é meramente exemplifica-


tivo, podendo ser considerados outros aspectos, pois se diz “no mínimo.
“Mas não se pode deixar de lembrar que o caput do art. 37 é claro ao afirmar
que o rol lá exposto não é limitativo, mas sim exemplificativo. O texto legal
diz que “no mínimo” serão aqueles os elementos abordados no EIV”14.
Eis algumas atividades que exemplificam os empreendimentos sujeitos

847
à realização de EIV/RIV: loteamentos/parcelamentos do solo em geral;
conjuntos residenciais, incluso os condomínios urbanísticos; shopping
centers; supermercados/hipermercados; indústrias; universidades; esco-
las; centros culturais; parques públicos; sistemas de transporte; depósitos;
aterros sanitários; aeroportos; etc.
Outro aspecto que merece destaque são as medidas mitigadoras e
compensatórias decorrentes da atividade ou empreendimento, que deverão
ser custeadas pelo empreendedor.
Sobre o assunto Rogerio Rocco assegura a necessidade de clareza:

Da mesma forma, a definição das medidas mitigadoras ou com-


pensatórias dos impactos causados pelo empreendimento ou
atividade deve obedecer a critérios claros, a fim de que realmente
atendam aos interesses daqueles que estão sofrendo os efeitos
dos impactos. Isto é, estas medidas devem estar equiparadas ao
alcance dos impactos, mas devem estar voltadas à garantia da
melhoria da qualidade de vida da vizinhança e do equilíbrio da
ordem urbanística – nos termos das diretrizes apontadas pelo
Estatuto da Cidade15.

O Estudo de Impacto de Vizinhança desde a sua origem está associa-


do ao Estudo de Impacto Ambiental, e a realização de um não impede a
elaboração do outro, tanto é que o artigo 38 dispõe que a elaboração do
EIV não substitui a elaboração e aprovação de estudo prévio de impacto
ambiental (EIA), requerida nos termos da legislação ambiental.
Eis a necessidade dos dois estudos, para Edis Milaré:

O EIV, realmente, trata de ambiente específico, o urbano.


E, por esse motivo, também, deve tratar de aspectos peculiares,
razão pela qual o rol de requisitos mínimos indicados no Estatuto
da Cidade (art. 37) é específico para o ambiente urbano.
Entendemos que o artigo que determina que o EIV não dispensa o
EIA apenas serve para a hipótese da necessidade de complemen-
tação do EIV com aspectos ambientais não identificados ou não
constantes da legislação municipal urbanística, mas relevantes
para o caso específico, em termos ambientais16.

“Ou seja: mesmo tendo sido exigido o Estudo de Impacto de Vizinhança,


se este não se revelar suficiente para a análise dos possíveis impactos,

848
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ainda assim pode ser exigido o Estudo de Impacto Ambiental, que é muito
mais abrangente”17.
A publicidade é requisito fundamental no procedimento de análise do
Estudo de Impacto de Vizinhança. Todos os atos e documentos relativos
ao Estudo de Impacto de Vizinhança devem estar disponíveis a sociedade,
para que se demonstre a lisura e transparência do procedimento junto ao
ente Municipal, bem como para demonstrar a seriedade e cientificidade
do estudo elaborado. É o que nos assegura Milaré, que os “documentos
relativos ao EIV/RV deverão ter publicidade e permanecerão disponíveis,
para consulta de qualquer interessado, no órgão competente do Poder
Público Municipal”18.
Portanto, o Estudo de Impacto de Vizinhança deve ficar disposição de
qualquer cidadão/interessado para sanar eventuais dúvidas acerca do
empreendimento ou atividade a ser realizado.
Além do mais, a obrigatoriedade da publicidade e divulgação do EIV
garante ao cidadão comum o direito de participar democraticamente desse
procedimento já que:

O objetivo do Estudo de Impacto de Vizinhança é democratizar


o sistema de tomada de decisões sobre os grandes empreen-
dimentos a serem realizados na cidade, dando voz a bairros e
comunidades que estejam expostos aos impactos dos grandes
empreendimentos. Dessa maneira, consagra o Direito de Vizi-
nhança como parte integrante da política urbana, condicionando
o direito de propriedade19.

Nesse caminho, a audiência pública é um dos principais instrumentos


de participação popular e democrática nos municípios e imprescindível
para legitimar o EIV/RIV.
A audiência é uma sessão aberta que oportuniza a discussão a toda
a população para tratar de temas relacionados à política urbana e os
impactos decorrentes da atividade, bem como verificar se as medidas
mitigadoras alcançarão os seus objetivos.
A equipe multidisciplinar que apresenta o EIV/RIV escuta as manifes-
tações, dúvidas, críticas e opiniões dos diversos segmentos e se coloca a
esclarecer as dúvidas.

849
Na apresentação do EIV/RIV, o empreendedor e a equipe multidisci-
plinar esclarecem a sua concepção, salientando os impactos positivos e
negativos, bem como as medidas mitigadoras e compensatórias que serão
realizadas e custeadas pelo empreendedor.
Outro momento participativo dos diversos segmentos da sociedade
se dá pela etapa de análise do processo de aprovação do EIV/RIV pelo
conselho das cidades.
Geralmente, o Conselho das Cidades é uma instância consultiva, delibe-
rativa e também recursal. É etapa que se configura essencial no processo
de análise e aprovação do EIV/RIV, já que tem o papel de acompanhar,
propor, fiscalizar, apreciar e avaliar propostas da implementação dos
planos, programas e projetos relativos ao desenvolvimento urbano local.
O Conselho deve ser tripartite e deve ter representação de todos os
segmentos da sociedade (movimentos sociais populares, ONGs, trabalha-
dores, acadêmicos, instituições de ensino, empresários, que constituem
o segmento da sociedade civil e o segmento do Poder Publico: municipal,
estadual e federal, etc).
Esses mecanismos têm vital importância para garantir a dignidade dos
direitos da pessoa humana, bem como o respeito aos valores da democra-
cia e justiça para se conseguir a necessária transparência para a construção
de uma sociedade fraterna, pluralista e sem qualquer tipo de preconceito.

2. O EXEMPLO DE CUIABá: A ANáLISE


TRANSVERSAL DO EIV/RIV PELO MUNICÍPIO

Antes de tudo, convém destacar a Lei de Uso e Ocupação do Solo do


Município de Cuiabá. Os diversos tipos de Uso do Solo Urbano na cidade
de Cuiabá foram classificados em 04 (quatro) categorias, a saber: inócua20,
compatível21, impactante22 e alto impacto, nos termos da Lei Complementar
nº. 004/97, que foi revogada pela Lei Complementar n.º 231 de 2011 – uso,
ocupação e urbanização do solo urbano.
Neste estudo, vamos nos ater a categoria alto impacto. São as atividades

850
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

e empreendimentos que, por seu nível impactante, porte, periculosidade,


potencial poluidor e incremento da demanda por infra-estrutura, devem
submeter-se a condições especiais para sua localização e instalação.
A categoria “alto impacto” subdivide-se em “alto impacto segregável”
e “alto impacto não segregável”:

a subcategoria alto impacto segregável abrange as atividades e


empreendimentos altamente impactantes, passíveis de serem
afastados do meio urbano comum, localizando-se em zona ur-
bana especialmente destinada a esta subcategoria de uso.
a subcategoria alto impacto não segregável abrange as
atividades e empreendimentos, que apesar de seu cará-
ter altamente impactante, não podem afastar-se do meio
urbano comum.

As atividades e empreendimentos da subcategoria “alto impacto não


segregável” estão sujeitos à apresentação de relatório de impacto urba-
no – RIU23 e sua aprovação pelo Conselho Municipal de Desenvolvimento
Urbano – CMDU, atualmente denominado de Conselho Municipal de De-
senvolvimento Estratégico - CMDE.
O Estudo de Impacto de Vizinhança será aprovado pelo Conselho
Municipal de Desenvolvimento Urbano – CMDU e apresentado em Au-
diência Pública.
A Audiência Pública é realizada na Região Administrativa a qual se
destina a Atividade ou Empreendimento, na sede da Administração Re-
gional ou em local indicado por seu representante legal.
A antiga Lei n.º 103/2003 (uso e ocupação do solo) em seu art. 23
disciplinava o rol de atividades sujeitas ao EIV/RIV como “Alto Impacto
Não Segregável”.24
Assim sendo, essa norma municipal especificou o rol de atividades
sujeitas ao Estudo de Impacto de Vizinhança e respectivo Relatório na
cidade de Cuiabá, nos termos do art. 36 da do Estatuto da Cidade.
Referida norma foi revogada pela Lei Complementar n.º 231 de 2011,
que praticamente incorporou esse rol os tornando-os mais restritivos.
É neste momento que se insere o olhar transversal por parte do Poder

851
Público que desde setembro de 2009 implantou câmara setoriais, conforme
Portaria n.º 007, a seguir transcrita:

Art. 1º. Constituir a Câmara Setorial da Prefeitura Municipal de


Cuiabá e designar, os Secretários das respectivas Secretarias
abaixo elencadas, para sua composição.
a) Coordenador da Câmara Social e Desenvolvimento Humano
Secretário Municipal de Educação
b) Coordenadora da Câmara de Gestão Urbana e Ambiental
Presidente do Instituto de Planejamento e Desenvolvi-
mento Urbano
c) Coordenador da Câmara de Desenvolvimento Econômico
Secretário Municipal de Trabalho, Desenvolvimento Econômico
e Turismo
d) Coordenador de Gestão Fiscal Secretário Municipal de Finanças
e) Coordenador de Comunicação e Política Secretário Municipal
de Comunicação

A transversalidade tem sua origem centrada na área da educação


(educabrasil, 2011), como:

forma de organizar o trabalho didático na qual alguns temas


são integrados nas áreas convencionais de forma a estarem
presentes em todas elas. O conceito de transversalidade surgiu
no contexto dos movimentos de renovação pedagógica, quando
os teóricos conceberam que é necessário redefinir o que se en-
tende por aprendizagem e repensar também os conteúdos que
se ensinam aos alunos25.

A transversalidade é apontada na sociedade moderna como tendên-


cia na gestão de políticas públicas, especialmente do ente local, face ao
intenso movimento de descentralização das ações ambientais e urbanas,
já que está mais próxima da realidade da comunidade.
Deste modo, o Poder Público Municipal deve estar apto a respaldar e
auxiliar o empreendedor que elabora o Estudo de Impacto de Vizinhan-
ça, tendo o olhar intersetorial e transversal das questões que envolvem
o estudo. Como bem pondera Luis Claudio Campos sobre o reforço das
políticas setoriais:

Um ponto de partida para a aplicação deste novo enfoque é o


diagnóstico de que os problemas que são objeto das diversas
políticas setoriais são interligados e interdependentes e
se reforçam mutuamente. É preciso que as políticas públicas

852
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

se ajustem à complexidade da realidade e à “natureza estrutural”


dos problemas sociais, se de fato desejarmos produzir algum
impacto sobre eles.26

A constituição das Câmaras Setoriais tinha a finalidade de reunir se-


manalmente os Secretários que tivessem problemas ou áreas de atuação
em comuns, dada a dificuldade de comunicação e transversalidade das
ações conjunta das secretarias.
Com relação às questões urbanas ambientais, ficou designada a Câmara
de Gestão Urbana e Ambiental, sob a coordenação do extinto Instituto de
Planejamento e Desenvolvimento Urbano - IPDU.
Atualmente, a Câmara de Gestão Urbana e Ambiental desenvolve suas
ações em outra conjectura, sob o olhar multidisciplinar, intersetorial e
transversal dos técnicos que compõem as Secretarias descritas no art. 3º
da Portaria n.º 002/2011:

Art. 3º. Integram a Câmara Técnica de Gestão Urbana e Ambiental


representantes dos seguintes órgãos e secretarias:
a) Um titular e um suplente do Instituto de Planejamento e De-
senvolvimento Urbano – IPDU;
b) Um titular e um suplente da Secretaria Municipal de Meio
Ambiente e Desenvolvimento Urbano - SMADES;
c) Um titular e um suplente da Secretaria Municipal de Infraes-
trutura – SEMINFE;
d) Um titular e um suplente da Secretaria Municipal de Trânsito
e Transporte – SMTU;
e) Um titular e um suplente da Agência Municipal de Habitação
Popular;
f) Um titular e um suplente da Companhia de Saneamento da
Capital – SANECAP;

Tal justificativa se deve a necessidade de uniformizar as decisões, bem


como dar celeridade à tramitação dos processos entre as diversas secreta-
rias, em especial entre as secretárias de Meio Ambiente e Desenvolvimento
Urbano – SMADES, Secretaria Municipal de Infraestrutura – SEMINFE,
Secretaria Municipal de Trânsito e Transporte – SMTU, Secretaria de Cida-
des e o Instituto de Planejamento e Desenvolvimento Urbano – IPDU, hoje
incorporada a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano – SMDU.
Outro fator importante para a criação da Câmara de Gestão urbana e

853
Ambiental foi a grande demanda de empreendimentos e atividades que
exigem apresentação do Estudo de Impacto de Vizinhança e seu respectivo
Relatório de Impacto de Vizinhança, bem como outros empreendimentos
que requerem análise técnica das secretarias acima relacionadas.
Além do mais, o art. 3º da Lei Complementar nº 150/07 - Plano Dire-
tor de Desenvolvimento Estratégico de Cuiabá – PDDE, dispõe que esse
diploma legal visa a proporcionar o desenvolvimento integrado e har-
monioso, o bem-estar social e a sustentabilidade de Cuiabá e da Região
do seu entorno, considerado instrumento básico, global e estratégico da
política de desenvolvimento urbano e rural, determinante para todos os
agentes públicos e privados atuantes no município, destinado também a
ampliar a oferta e melhorar a qualidade dos serviços públicos prestados
pela Municipalidade, buscando atender às aspirações das populações
urbana e rural do Município;
O Plano Diretor de Desenvolvimento Estratégico de Cuiabá - PDDE,
no que se refere à análise do EIV/RIV, disciplina que deve ser feita por
equipe multidisciplinar.
A Portaria n.º 001, em seu artigo 2º destaca que a Câmara reunir-se-á
ordinariamente uma vez por semana, na terça-feira e, extraordinariamente,
quando convocada por uma das secretarias integrantes desta Câmara, sob
a coordenação do IPDU, atualmente Secretaria Municipal de Desenvolvi-
mento Urbano - SMDU.
Sempre que necessário, os membros da Câmara Técnica poderão con-
vidar outros técnicos da Prefeitura de Cuiabá ou não, para esclarecimentos
ou depoimento, que ajudem na emissão do parecer conjunto.
As decisões da Câmara Técnica serão redigidas em forma de parecer,
numeradas em ordem cronológica e assinadas por todos os membros
participantes da reunião.
A Lei Complementar n.º 231 de 2011, que trata do uso, ocupação e
urbanização do solo urbano impõe a Câmara Técnica de Gestão Urbana
e Ambiental a elaboração do termo de Referência para a elaboração do
EIV/RIV27, como também consultar determinadas Secretarias sobre a
disponibilidade de equipamentos para atendimento à população prevista
caso o empreendimento seja residencial.

854
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Portanto, o emprego dessa análise transversal e intersetorial no Estudo


de Impacto de Vizinhança deu respaldo para as decisões que são tomadas
pelos camerarios, o que antes era decido por uma única Secretaria.

CONCLUSÃO

Deve antes de tudo, qualquer intervenção local ou planejamento urbano


obedecer, em primeiro lugar, à função social da propriedade contemplada
no texto constitucional, além do desenvolvimento, integrado e harmonioso,
o bem-estar social, na promoção do ordenamento do solo urbano, de forma
a combater os conflitos atuais e futuros das cidades, o que se verifica com
os empreendimentos ou atividades sujeitos ao EIV/RIV.
É promulgada no ano de 2001, a norma denominada “Estatuto da Cida-
de” – Lei n.º 10.251, considerada por muitos como a salvadora dos municí-
pios. Vários foram os instrumentos instituídos na referida norma federal,
contudo, destacamos a importância do Estudo de Impacto de Vizinhança
e respectivo Relatório de Impacto de Vizinhança para o ordenamento e
crescimento das cidades brasileiras, como medida intervencionista na
propriedade, atendendo sempre ao interesse público.
O EIV/RIV expressa grande potencial para a “negociação urbana” ou
“barganha” entre o poder público e os interesses privados, sobretudo os
da população, já que é o momento de transacionar interesses urbanos
que em determinadas situações são relegados a segundo plano por vários
motivos: falta de norma ou omissão.
A análise transversal no Estudo de Impacto de Vizinhança é de fun-
damental importância, tendo em vista sua natureza preventiva, uma vez
que busca respaldar o empreendedor para que sua atividade elimine ou
mitigue ao máximo possível os impactos advindos de sua atividade.
Assim, o Estudo de Impacto de Vizinhança passa a ser um instrumento
preventivo legal que contém uma base de informações sólidas, quanti-
ficadas, localizadas, e passíveis de controle efetivo pelo Poder Público
Municipal, sobretudo imprescindíveis na sociedade contemporânea.
Portanto, o olhar multidisciplinar da atividade sujeita ao estudo ajuda
a corrigir distorções que antes não eram analisadas ou verificadas pela

855
analise unilateral, o que prejudicava a quantificação das medidas miti-
gadoras e compensatórias do impacto.

REFERÊNCIAS:

CAMPOS, Luis Claudio. Políticas Públicas e Temas Transversais. Disponível


em :< http://politicaspublicasbr.wordpress.com/temas-transversais/. Acesso em
11/09/2011.
Estatuto da Cidade: guia de implementação pelos municípios e cidadãos. Câmara
dos Deputados, Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior, Secretaria Especial
de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República, Caixa Econômica Federal
e Instituto Pólis. Brasília, 2001.
FELICIO, Bruna da Cunha; FOSCHINI, Regina Célia. A função social e ambiental
da propriedade urbana: contribuição do Estatuto da Cidade. In: Congresso
de direito urbano-ambiental: 5 anos do estatuto da cidade: desafios e perspectivas.
SULZBACH, César Emílio; NERY, Cristiane. Fundação Escola Superior de Direito
Municipal, Procuradoria-Geral do Municipio de Porto Alegre, Associação dos Pro-
curadores do Municpio de Porto Alegre.
SOARES, Lucélia Martins. Estudo de Impacto de Vizinhança. In: Estatuto da
Cidade. DALLARI, Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). São Paulo: Malhei-
ros, 2003. P. 294
REIS, Jorge Renato. O direito de propriedade urbana na legislação brasileira.
In: O mundo da cidade e cidade no mundo: reflexões sobre o direito local. CARVA-
LHO, Ana Luísa Soares, NERY, Cristiane da Costa et al. (org.). Porto Alegre: IPR, 2009.
SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros,
2008. p. 78.
SILVA, José Afonso apud COLLADO, Pedro Escribano. In: Direito urbanístico
brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
ROCCO, Rogério. Estudo de impacto de vizinhança: instrumento de garantia
do direito às cidades sustentáveis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 26.
SANT’ANNA, Mariana Senna. Estudo de impacto de vizinhança instrumen-
to de garantia de qualidade de vida dos cidadãos urbanos. São Paulo: Ed.
Forum, 2007.
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. A gestão ambiental em foco. 6 ed. São

856
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 561.


EDUCARBRASIL. Disponível em:<http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/dicio-
nario.asp?id=70>. Acesso em 11/09/2011.

NOTAS

1 Estatuto da Cidade: guia de implementação pelos municípios e cidadãos. Câmara dos Deputados, Comissão
de Desenvolvimento Urbano e Interior, Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da
República, Caixa Econômica Federal e Instituto Pólis. Brasília, 2001. P. 181.
2 ROCCO, Rogério. Estudo de impacto de vizinhança: instrumento de garantia do direito às cidades
sustentáveis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 26.
3 SANT’ANNA, Mariana Senna. Estudo de impacto de vizinhança instrumento de garantia de qualidade
de vida dos cidadãos urbanos. São Paulo: Ed. Forum, 2007.
4 SANT’ANNA, Mariana Senna. Estudo de impacto de vizinhança instrumento de garantia de qualidade
de vida dos cidadãos urbanos. São Paulo: Ed. Forum, 2007. P. 157.
5 Idem. ROCCO, Rogério.
6 REIS, Jorge Renato. O direito de propriedade urbana na legislação brasileira. In: O mundo da cidade
e cidade no mundo: reflexões sobre o direito local. CARVALHO, Ana Luísa Soares, NERY, Cristiane da Costa
et al. (org.). Porto Alegre: IPR, 2009. P – 1-10.
7 SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 78.
8 SILVA, José Afonso apud COLLADO, Pedro Escribano. In: Direito urbanístico brasileiro. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
9 FELICIO, Bruna da Cunha; FOSCHINI, Regina Célia. A função social e ambiental da propriedade urbana:
contribuição do Estatuto da Cidade. In: Congresso de direito urbano-ambiental: 5 anos do estatuto da cidade:
desafios e perspectivas. SULZBACH, César Emílio; NERY, Cristiane
10 SOARES, Lucélia Martins. Estudo de Impacto de Vizinhança. In: Estatuto da Cidade. DALLARI, Adilson
de Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). São Paulo: Malheiros, 2003. P. 294.
11 Idem. SOARES, Lucélia Martins. P. 295.
12 SOARES, Lucélia Martins. Estudo de Impacto de Vizinhança. In: Estatuto da Cidade. DALLARI, Adilson
de Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). São Paulo: Malheiros, 2003. P. 300.
13 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. A gestão ambiental em foco. 6 ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2009. P. 561.
14 SOARES, Lucélia Martins. Estudo de Impacto de Vizinhança. In: Estatuto da Cidade. DALLARI, Adilson
de Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). São Paulo: Malheiros, 2003. P. 300.
15 ROCCO, Rogério. Estudo de impacto de vizinhança: instrumento de garantia do direito às cidades
sustentáveis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
16 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. A gestão ambiental em foco. 6 ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2009. P. 561.
17 Idem. Milaré, Édis. P. 562.
18 Idem. Milaré, Édis. P. 562.
19 Estatuto da Cidade: guia de implementação pelos municípios e cidadãos. Câmara dos Deputados, Comissão
de Desenvolvimento Urbano e Interior, Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da
República, Caixa Econômica Federal e Instituto Pólis. Brasília, 2001.
20 INÓCUA – os que não apresentam caráter de incomodidade, nela se incluindo a atividade residencial unifami-
liar, e aquelas anexas à residência, desde que não ultrapasse a 50% (cinquenta por cento) da área construída desta
21 COMPATÍVEL – os que, por seu nível impactante, porte, periculosidade, potencial poluidor e incremento da
demanda por infra-estrutura, podem e devem integrar-se à vida urbana, adequando-se a padrões comuns de
funcionamento, estabelecidos pelo Código de Posturas Municipais.
22 IMPACTANTE – os que, por seu nível impactante, porte, periculosidade, potencial poluidor e incremento
da demanda por infra-estrutura, podem integrar-se à vida urbana comum, adequando-se às exigências de
Posturas Municipais, mas que exigem padrões mínimos de infra-estrutura para sua instalação e funcionamento.
23 Com a instuição do Plano Diretor de Desenvolvimento Estratégio em 2007 o RIU passou a ser denominado
de Estudo de Impacto de Vizinhança e respectivo Relatório no municipio de Cuiabá.
24 Art. 23. Integram a subcategoria Alto Impacto Não Segregável, as seguintes Atividades e Empreendi-
mentos, por tipo de uso:
I – USO RESIDENCIAL:

857
a) Condomínios fechados horizontais ou verticais com mais de 20.000 m2 (vinte mil metros quadrados) de
área privativa total, excluindo-se vagas privativas de garagens.
II – COMERCIAL VAREJISTA:
a) Venda e revenda de veículos automotores, máquinas, equipamentos, mercadorias em geral, lojas de de-
partamentos, mercados, supermercados, hipermercados, conjuntos comerciais, shopping center com áreas
instalada superior a 10.000 m2 (dez mil metros quadrados);
b) Comércio varejista de combustíveis (Postos de abastecimento) com capacidade de estocagem superior a
60.000 (sessenta mil) litros de combustível;
c) Comércio varejista de GLP (Gás Liqüefeito de Petróleo) com armazenamento entre 520 (quinhentos e vinte)
e 1.560 (Hum mil quinhentos e sessenta) quilos de gás;
d) Comércio de fogos de artifício, com estocagem entre 5 (cinco) e 20 (vinte) quilos de produtos explosivos.
III – COMERCIAL ATACADISTA:
a) Comércio atacadista atrator e/ou usuário de veículos leves e/ou médios com área instalada superior a
10.000 m2 (dez mil metros quadrados);
b) Comércio atacadista atrator e/ou usuário de veículos leves e/ou médios e pesados com área instalada entre
5.000 m2 (cinco mil metros quadrados) e 15.000 m2 (quinze mil metros quadrados).
IV – SERVIÇOS DE EDUCAÇÃO:
a) Instituições de ensino superior com mais de 750 m2 (setecentos e cinqüenta metros quadrados) de área
instalada;
V – SERVIÇOS DE SAÚDE E ASSISTêNCIA SOCIAL:
a) Policlínicas, hospitais gerais e especializados, maternidades, pronto-socorros, casas de saúde, spas e simi-
lares com mais de 100 (cem) leitos;
VI – SERVIÇOS PÚBLICOS:
a) Cadeias e albergues para reeducandos.
VII – ATIVIDADES E EMPREENDIMENTOS DE REUNIõES E AFLUêNCIA DE PÚBLICO:
a) Casas de shows e espetáculos, ginásios, estádios complexos esportivos com capacidade superior a 3.000
(três mil) lugares;
b) Centros de eventos, convenções, feiras e exposições com mais de 10.000 m2 (dez mil metros quadrados)
de área instalada;
VIII – SERVIÇOS DE TRANSPORTES E ARMAZENAMENTO:
a) Garagens e oficinas de empresas de transporte urbano e/ou interurbano de passageiros com mais de 10.000
m2 (dez mil metros quadrados) de área instalada; Gerenciamento Urbano – Uso e Ocupação do Solo Urbano
b) Centrais de cargas e empresas transportadoras de mudanças e/ou encomendas com mais de 15.000 m2
(quinze mil metros quadrados) de área instalada;
c) Garagens e oficinas de empresas transportadoras de cargas perigosas;
d) Terminais rodoviários interurbanos de passageiros;
e) Aeroportos e heliportos;
Ix – OUTROS SERVIÇOS
a) Crematórios e cemitérios verticais e horizontais;
b) Caixa forte central.
x – INDUSTRIAL:
a) Indústrias da categoria Impactante cuja Análise de Atividade definir o re-enquadramento na categoria Alto
Impacto Não Segregável;
b) Instalações industriais, inclusive da construção civil, com área instalada de 1.000 m2 (mil metros quadrados)
a 5.000 m2 (cinco mil metros quadrados);
c) Armazéns e silos para produtos agrícolas com capacidade de até 1.200 (hum mil e duzentas) toneladas.
xI – ENERGIA
a) Linhas de transmissão;
b) Subestações.
25 EDUCARBRASIL. Disponível em:<http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/dicionario.asp?id=70>. Acesso
em 11/09/2011.
26 CAMPOS, Luis Claudio. Políticas Públicas e Temas Transversais. Disponível em :< http://politicaspublicasbr.
wordpress.com/temas-transversais/. Acesso em 11/09/2011.
27 Art. 233. A Camara Tecnica de Gestão Urbana e Ambiental consultará a Secretaria de educação, a Se-
cretaria de Assistência Social e Desenvolvimento Humano e Secretaria de Saúde ou sucedâneas, através da
administração regional sobre a disponibilidade de equipamentos para atendimento à população prevista caso
o empreendimento seja residencial.
Art. 234. Com base nas informações fornecidas a Camara Tecnica de Gestão Urbana e Ambiental, num prazo
máximo de 30 (trinta) dias úteis, emitirá Termo de Referência para elaboração do EIV/RIV.

858
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A outorga onerosa e a concessão


de potencial construtivo: uma leitura
a partir do caso do estádio do Clube
Atlético Paranaense

André Thomazoni Pessoa Silva


Andrei Toshio Hayashi
Felipe Klein Gussoli
Galanni Dorado de Oliveira*

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho possui como objeto central o instituto da outorga


onerosa de potencial construtivo. Para isso, atenta-se primeiramente a
breve histórico legislativo do instituto do solo criado da divisão de com-
petências constitucionais impostas nesse campo, atentando precipua-
mente para as competências municipais. Nesse sentido, abrangemos a
existência de dispositivos do Estatuto da Cidade que regulam instrumentos
disponíveis à consecução de uma política urbana adequada, dentre eles,
o instituto da outorga onerosa. Analisa-se a discussão doutrinária em
torno da natureza da outorga onerosa e sua relação paradoxal com alguns
elementos e conceitos do direito financeiro.
O último tópico possui como escopo o estudo de caso referente à
concessão de potencial construtivo ao Clube Atlético Paranaense. Analisa-
-se o plano de fundo legislativo, os possíveis vícios de tal concessão,
relacionado, ainda esta situação específica com a teoria anteriormente
dissecada, nunca perdendo o foco nos elementos de direito financeiro
pertinentes ao trabalho e os objetivos precípuos de uma política urbana
séria e comprometida com os ideais democráticos.

859
2. POLÍTICA URBANA E A DIVISÃO
DE COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS

O retrospecto histórico acerca do instituto jurídico do solo criado de-


monstra que este fora criado e consolidado na prática administrativa e
na doutrina antes mesmo do advento de um diploma legal abrangente,
com regras claras que o regulamentassem2. O primeiro passo em dire-
ção à sua uniformização e regulamentação, não obstante, se deu com a
Constituição de 1988.
O texto constitucional, além de recepcionar no art. 5º, xxIII3 o moder-
no conceito de direito de propriedade limitado ao cumprimento de uma
função social, prevê em seus artigos 182 e 183 a criação de instrumen-
tos de Políticas de Desenvolvimento Urbano. Contudo, preferiu o poder
constituinte originário delegar à legislação infraconstitucional, mediante
atribuição de competências legislativas, a tarefa de estabelecer os instru-
mentos específicos de Política Urbana. Daniela Campos Libório Di Sarno
define competência como “a particularização do poder do Estado em alguma
pessoa, que recebe esta responsabilidade através de disposição legal”4.
A União recebera competência material para elaborar e executar planos
nacionais e regionais de ordenação de território e de desenvolvimento
econômico e social, além de instituir diretrizes para o desenvolvimento
urbano (inclusive habitação, saneamento básico e transporte), conforme
disposto no art. 21, Ix, xx. Cabe também à União, concorrentemente, le-
gislar sobre direito urbanístico (art. 24, I) estabelecendo normas gerais que
poderão ser complementadas pelos Estados e Municípios. “Norma geral”,
entretanto, é expressão jurídica aberta cujo conceito é controvertido5.
Em outra seara, cabe ao Estado privativamente instituir regiões metro-
politanas, aglomerações urbanas e microrregiões (art. 25, § 3°). Contudo,
no entendimento de Di Sarno6 essa competência só se realizará na justa
medida em que os Municípios afetados queiram agir em conjunto, pois
é dever do Estado-Membro, e dele apenas, estimular, promover, incenti-
var e cooperar com medidas que contribuam para a eficácia na solução

860
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dos problemas afins. Aos Estados também compete legislar sobre direito
urbanístico de formar suplementar e complementar à União; exercerão,
contudo, competência plena para estabelecer normas gerais não havendo
lei federal. A superveniência da lei federal suspenderá a lei estadual no
que lhe for contrária (CF art. 24, § 3º).
Fora ao Município, no entanto, que a Constituição Federal conferiu
papel essencial na efetivação das Políticas Urbanísticas, dando-lhe com-
petência legislativa de editar normas de interesse local (art. 30, I), com-
petência suplementar (art. 30, II) e competência material para executar
políticas urbanas (art. 182, caput).

3. COMPETÊNCIA MUNICIPAL

Tendo em vista a repartição de competência antes mencionada, Dallari


defende que os Municípios poderiam criar novos instrumentos de orga-
nização urbana. Além disso, segundo o autor, o Estatuto da Cidade (art.
4°) deixa claro que o rol de instrumentos não é exaustivo, admitindo a
possibilidade de advento de outros ali não previstos. Reconhecendo-se a
validade de instrumentos urbanísticos preexistentes ao Estatuto da Cida-
de, afirma o autor, pode-se também admitir a criação e adoção de novos
instrumentos posteriormente desenvolvidos por Estados e Municípios
(desde que em consonância ao Estatuto). Esse entendimento deve ser
recebido com ressalvas. A primeira delas é que o referido Estatuto “trata
tão somente, de competências da União7”. A competência Municipal advém
diretamente da Constituição. Segundo, deve se compreender como se
realiza a complexa relação de cooperação entre os entes federativos para
só então definir em quais circunstâncias os Municípios, ao legislarem em
interesse local, não invadiriam competências de outros Entes.
Logo após a promulgação da Constituição de 1988, Fernanda Dias
Menezes de Almeida já apontava que a problemática das competências
municipais giraria em torno da conceituação do termo interesse local.
Segunda a autora, interesse local não significa interesse exclusivo dos

861
Municípios, mas a predominância do Interesse dos Municípios sobre o
interesse regional do Estado e do interesse geral representado pela União.
Gilmar Mendes aduz que são de interesse local as atividades (e respectiva
legislação) pertinentes a transporte coletivo, coleta de lixo, ordenação do
solo urbano, fiscalização das condições de higiene de bares e restaures,
dentre outras.8
Ainda segundo entendimento de Dallari, corroborado por José Afonso
da Silva, a competência Municipal não se restringiria à suplementar as
normas gerais federais ou estaduais, pois nem todas as normas Munici-
pais sobre direito urbanístico são criadas com fundamento no art. 30, II.
O Município tem competência própria oriunda do texto constitucional. A
competência exercia pela União e pelo Estado esbarra na competência que
a Constituição reservou aos Municípios, fundada no dito interesse local.
Contudo, como bem destaca José Afonso da Silva, a atuação legislativa
municipal deve guardar os ditames, diretrizes e objetivos gerais estabe-
lecidos pela União, posto que uma norma Municipal que contrarie tais
preceitos estaria eivada de vício, invadindo competência que não lhe cabe.9
Os Municípios podem, portanto, criar novas políticas, tendo em vista o
interesse local, porém estas não podem confrontar diretrizes estabelecidas
pela União. O interesse local deve representar um interesse cuja preponde-
rância seja municipal, mas que represente também os interesses da União
e do Estado, de maneira colateral. O que a Constituição objetiva com a
divisão de competências é, em verdade, uma ação coordenadas entres os
entes federativos, sendo ilógico falar em competência municipal, interesse
local, conflitante com as demais competências (e interesses de Estado e
União). Na formula defendida por Hely Lopes Meirelles, “não há assunto de
interesse local que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional”10.

4. INSTRUMENTOS DE POLITICA
URBANA NO ESTATUTO DA CIDADE

Publicada treze anos após a promulgação da Constituição Federal


de 1988, a Lei 10.257 (Estatuto da Cidade) estabeleceu, como objetivo
das Políticas de Urbanização (constitucionalmente previstas), o pleno

862
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.


O art. 4° do Estatuto da Cidade prevê um rol não exaustivo de instru-
mentos urbanísticos colocados à disposição da Administração Pública.
Dallari11 classifica esses instrumentos a partir de suas funcionalidades:
planejamento; instrumentos tributários e financeiros de política urbana;
instrumentos jurídicos e políticos de atuação urbanística; e instrumentos
ambientais, destinados a assegurar a preservação do ambiente urbano.
Quanto aos instrumentos de planejamento, o art. 4° da Lei 10.257 enu-
mera respectivamente em seus incisos: i) planos nacionais, regionais e
estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e
social; ii) planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urba-
nas e microrregiões; iii) planejamento municipal. A lei destaca, ainda,
dentre os instrumentos de planejamento do Município: o plano diretor,
disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo; zoneamento
ambiental; plano plurianual; diretrizes orçamentárias e orçamento anual;
gestão participativa; outros.
Dentre os instrumentos tributários e financeiros de política urbana
destaca-se a outorga onerosa e transferência de potencial construtivo.
Tratar-se-á, a partir de agora, do mecanismo especifico da outorga onero-
sa. Essa atenção especial se explica, pois, tem sido esse o instrumento de
política urbana utilizado no Paraná para patrocinar a reforma do Estádio
Joaquim Américo (Arena da Baixada).
Celso Antônio Pacheco Fiorillo define outorga onerosa como um “instru-
mento que amplia o direito de construir bem como permite a alteração do uso
do solo sempre mediante a contrapartida a ser prestada pelo beneficiário”.12
Neto Marques acrescenta: “a onerosidade da outorga é, na verdade, uma
consequência do estabelecimento do instituto do solo criado”13, afinal, só faz
sentido prever a possibilidade de outorga onerosa se preexistir a noção
de que a edificação além do coeficiente básico de aproveitamento (solo
criado) não corresponde um direito subjetivo do particular.
Ao abordar a noção de solo criado, o qual é indenizado por meio do
instrumento da outorga onerosa, invariavelmente se adentra o segundo

863
aspecto do zoneamento urbanístico. Este é constituído por dois institu-
tos fundamentais: coeficiente de aproveitamento e taxa de ocupação,
“instrumentos básicos para definir uma distribuição equitativa e funcional
de densidades (edilícia e populacional) compatíveis com a infraestrutura e
equipamentos de cada área considerada”.14 Conforme descrito por Eros
Roberto Grau, “o coeficiente de aproveitamento expressa a relação entre a
área construída”, ou seja, a soma dos pavimentos, cobertos ou não de uma
edificação “e a área total do terreno em que a edificação se situa”. Por outro
lado, “a taxa de ocupação expressa a relação entre a área ocupada”, ou seja,
a área do solo sob a qual se assenta a construção, projeção horizontal da
área construída acima do nível do solo “e a área total do terreno”15.
José Afonso da Silva fixa o conceito de coeficiente (taxa) de ocupação
máxima como “o fator pelo qual a área do lote deve ser multiplicada para se
obter a máxima área de projeção horizontal da edificação permitida naquele
lote”16, e descreve coeficiente (taxa) de aproveitamento enquanto “fator
pelo qual a área do lote deve ser multiplicada para se obter a área total de
edificação máxima permitida nesse mesmo lote17”.
Nesse contexto, é competência Municipal estipular, através do Plano
Diretor, os coeficientes de aproveitamento básico e máximo para cada
região, considerando, sempre, critérios de oportunidade e conveniência,
tendo em vista a infraestrutura existente e o aumento da densidade de-
sejada para cada região. Para além desse coeficiente básico permitido
até atingir-se o coeficiente máximo, faz-se necessário adquirir direito de
construir mediante pagamento de uma contrapartida. A doutrina diverge
no que concerne ao modo de prestação de tal contrapartida, mas esta
questão persiste sendo pouco explorada.
Floriano de Azevedo Neto Marques defende a possibilidade de pa-
gamento da contrapartida em modalidades outras que não apenas em
dinheiro, seguindo certos limites: i) o preço não poderia exceder o valor
unitário do metro quadrado do terreno, e ii) não poderia exceder, no total,
o valor do imóvel, pois sendo o direito de construir acessório ao direito
de propriedade não poderia este exceder aquele. Márcia Walquiria Batista

864
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dos Santos complementa que “a disciplina da [outorga onerosa] constará de


lei ordinária [municipal], a qual disporá a respeito da forma de cálculo para
a cobrança da outorga,” sendo possível inclusive que a lei preveja “casos
passíveis de isenção deste pagamento”.18
Embora reconheça a possibilidade de isenção, a autora salienta a
necessidade de a Lei Municipal especifica estar em conformidade com a
Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), impedindo,
assim, o Poder Público de renunciar a qualquer arrecadação sem indicar
a corresponde fonte de receita. Dessa forma, deve haver equilíbrio entre
o benefício econômico auferido pela concessão onerosa do direito de
construir e a contrapartida recebida pelo Município, pois, o direito de
construir está limitado a infraestrutura urbana19.
Assevera Eros Roberto Grau que “através da outorga onerosa permitir-
-se-ia que fossem ressarcidos ao setor público encargos que o solo criado
acarreta20”. Outrossim, o desenvolvimento da capacidade técnica e da
demanda pela “criação artificial de área horizontal, sobre ou sob o solo na-
tural”21, passa a atrair o interesse da administração pública, pois acarretar
a exigência de mais equipamentos a partir da ocupação e utilização de
tais espaços criados. Solo criado depende, relaciona-se e exige, portanto,
meios de circulação, fornecimento de água, esgoto, transportes públicos,
áreas de lazer, estacionamento, dentre outras estruturas mais.
Por outro lado, ressalva que “a cessão do direito de criar solo não confi-
gura nem autorização, nem permissão e nem licença”. Pois, “quanto o setor
público negocia direito de criar solo está vendendo determinado bem e não
permitindo o exercício de atividade”, não ocupando o poder público posição
diversa dos particulares, pois opera “cessão de direito de criar solo – ainda
que intervenha sobre todas as operações praticadas, na condição de agente
organizador e fiscalizador do mercado de direito de criar solo”22.
Discordam os doutrinadores principalmente a respeito da natureza
jurídica dos recursos oriundos da outorga onerosa. Para Seabra Fagundes,
assim como para Márcia dos Santos, os recursos oriundos da outorga
onerosa seriam receitas tributárias cuja natureza jurídica se assemelha à

865
dos impostos: “o gravame lançado sobre os favorecidos pela criação de solo
há de resultar em impostos”23. Entretanto, o posicionamento que se tornou
dominante no Brasil (a partir da década de 90) é o postulado por Eros
Grau, para o qual essas receitas não possuem características tributárias.
“Tributos são receitas que encontram sua causa em lei; daí sua definição como
receitas legais”. No caso da outorga onerosa “estamos diante de um ato de
aquisição de um direito, não compulsório”, portanto ato voluntário, no qual
a vontade da partes é o requisito principal. Desse modo “a remuneração
correspondente, pois, é contratual e não legal” 24.
Floriano de Azevedo Marques Neto defende que as receitas provenien-
tes da outorga onerosa do direito de construir são mero preço público,
haja vista a não haver compulsoriedade na aquisição do direito ao solo
criado25. Contudo, a doutrina e os tribunais têm encontrado grande difi-
culdade em definir o que é preço público e diferenciá-lo das taxas. Ricardo
Lobo Torres oferta uma conceituação, para o autor preço público é “a
prestação pecuniária, que, não sendo dever fundamental nem se vinculando
às liberdades fundamentais, é exigida sob a diretiva do principio constitucional
do benefício”. Dessa forma, conclui o autor, trata-se de “remuneração de
serviços inessenciais, com base no dispositivo constitucional que autoria a
intervenção no domínio econômico” 26.
Regis Fernandes de Oliveira, ao destacar a contratualidade típica dos
preços, esclarece que a cobrança do preço está limitado ao mercado, ou
seja, a remunerar as atividades típicas de mercado cuja recepção não é
obrigatória e o serviço não é tipicamente reservado ao poder público27.
Os autores evidenciam, assim, que o preço deve remunerar um bem
ou serviço não essencial inserido no domínio econômico, pois parece
impossível existir vontade de contratar quando o individuo está impeli-
do a negociar, seja pela essencialidade do bem, ou pela inexistência de
alternativa de mercado. Nesse sentido, Regis Fernandes de Oliveira en-
tende ser inconstitucional a cobrança de tarifa nos serviços de água, luz,
telefone, transporte, pois “são serviços prestados ao contribuinte ou postos
à sua disposição [em que] só se pode cobrar taxa. A circunstância de criar ou

866
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

instituir uma sociedade de economia mista ou empresa pública ou fundação


não descaracteriza todo o regime jurídico”28
Dessa forma, parece haver certa dificuldade em se enquadrar os re-
cursos oriundos da outorga onerosa na categoria de preços públicos. Não
há emanação de vontade quando a única alternativa do contribuinte é
adquirir o direito de construir por meio da remuneração do poder público.
Atente-se, por óbvio, que há emanação de vontade tão somente quando
o sujeito enseja edificar acima do coeficiente de utilização atinente ao
seu imóvel e provoca a Administração Pública para conseguir tal outorga,
vontade essa, que cessa no momento seguinte, pois tão somente o poder
público é capaz de conceder potencial de construção.
Por outro lado, a remuneração recebida pelo estado visa remunerar o
incremento da estrutura urbana e compensar a exigência de mais equipa-
mentos públicos gerada pela edificação além do coeficiente básico. Dessa
forma, a outorga onerosa remunera os encargos oriundos de serviços
prestados pelo estado à titulo de serviços públicos, ou seja, serviços que
são postos pelo estado à disposição do contribuinte sob regime de direito
público. Não deveria, por esse prisma, perdurar o entendimento de Eros
Grau, pois não se trata aqui de operações em que particular e estado estão
nivelados. Trata-se de operações verticalizadas.
Assim, sugere-se que os recursos recebidos pela outorga onerosa do
direito construir não constituem preço, pois advém e subsistem de uma
relação jurídica verticalizada cujo objetivo é remunerar serviços essenciais
oferecidos fora do domínio econômico. Esses recursos se assemelham,
em verdade, às taxas. Parafraseando Regis Fernandes de Oliveira, taxa é
o tributo vinculado ou dependente de uma ação estatal que só pode ser
exigido dos particulares em razão do exercício do poder de polícia ou
pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e
divisíveis, prestados ao contribuinte ou posto a sua disposição (conforme
expressamente disposto na Constituição Federal art. 145, III29). Nesse sen-
tido, a outorga onerosa é cobrada do contribuinte através do exercício do
poder de polícia exercido pelo estado, que estabelece os limites do direito

867
de construir, estipulando coeficientes básicos e máximos, cujo objetivo é
remunerar a exigência de incremento da infraestrutura urbana originada
pela criação de solo para além do coeficiente básico.
Tal posicionamento é coerente com o que dispõe o Estatuto da Cidade,
que vincula os recursos arrecadados com a outorga onerosa ao incremento
da estrutura urbana. No diploma em questão ficam expressas as finalidades
auferidas com a adoção da outorga oneroso do direito de construir, bem
como da alteração de uso que serão aplicadas com as seguintes finalidades:

1) regularização fundiária; 2) execução de programas e projetos


habitacionais de interesse social; 3) constituição de reserva fun-
diária; 4) ordenamento e direcionamento da expansão urbana;
5) implantação de equipamentos urbanos e comunitários; 6)
criação de espaços públicos e áreas verdes; 7) criação de uni-
dade de conservação ou proteção de outras áreas de interesse
ambiental; e 8) proteção de áreas de interesse histórico, cultural
ou paisagístico30.

Mais do que elucubrações teóricas, as discussões sobre a definição


da natureza jurídica desses recursos tem grande relevância prática. O
reconhecimento desses recursos como taxas, ao invés de preços públicos,
condicionaria seu regime a princípios legais específicos. Mencione-se ain-
da, dentre outras consequências práticas, que: i) o caráter orçamentário,
em conformidade com o princípio da universalidade, garantiria o melhor
controle da aplicação dos recursos às finalidades dispostas em lei; ii) a
submissão à LRF quanto a renuncia de receitas, impedindo uma guerra
fiscal entre os Municípios, que no intento de atrair a iniciativa privada,
pode vir a conceder benefícios através da outorga onerosa; iii) a sujeição
ao principio da legalidade, da anterioridade e da universalidade favoreceria
a segurança jurídica.
Por fim, cabe ressaltar que a atividade urbanizadora realizada pelo
poder público está submetida, também, ao principio da isonomia (art.
5º, caput da Constituição Federal e ao art. 2°, xI, do Estatuto da Cidade).
Logo, os instrumentos de política urbana não podem servir para perpe-
tuar desigualdades sociais, que obviamente repercutem e se reforçam

868
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

na própria conformação e produção do espaço urbano, desse modo o


cálculo da contrapartida, fundamento da outorga onerosa, deve consi-
derar tais desigualdades, privilegiando aqueles em situação de maior
precariedade econômica.

5. COPA DO MUNDO E A OUTORGA


ONEROSA AO CLUBE ATLéTICO PARANAENSE

Com a notícia, em 2007, de que o Brasil seria sede da Copa do Mundo


FIFA 2014, grandes foram as comemorações. Passados 64 anos, o país seria
novamente o palco de um dos maiores e mais festejado evento do globo.
Curitiba, capital inclusa dentre as doze cidades sede do megaevento,
logo recebeu uma série de recomendações - senão imposições – para se
adequar ao projeto da FIFA para a Copa, que exigia uma série de requisitos
para que as cidades sede possam abrigar os jogos. O Termo de Compro-
misso assinado pelo Comitê Organizador Brasileiro com a FIFA acertou
os pontos restantes para a confirmação do país como sede do evento.
Finalmente, concretizou-se a submissão da nação às exigências do capital
privado com a promulgação da dita Lei da Copa, que dispunha, inclusive,
mandamentos contrários ao ordenamento pátrio.
Para o fiel cumprimento do acordo firmado pelo Comitê Organizador
com a FIFA, em 13 de janeiro de 2010 a União, o Governo do Estado do
Paraná e a Prefeitura Municipal de Curitiba firmaram a Matriz de Respon-
sabilidades. Esta visava a executabilidade de todas as ações necessárias
à realização da Copa do Mundo em 2014 e da Copa das Confederações,
em 2013. A Matriz de Responsabilidades determina para o sucesso do
empreendimento a ser realizado, a conjugação de esforços de todos os
entes federativos, entidades participantes e população. Da Matriz assinada,
coube ao Estado e ao Município a responsabilidade por todas as obras
referentes à mobilidade urbana, ao entorno do aeroporto e terminais tu-
rísticos e, primordialmente, ao estádio e seus arredores. Coube à União
a reforma e expansão do aeroporto e dos terminais turísticos (Cláusula
Terceira da Matriz)31.

869
Mais adiante no texto do documento, mais precisamente na Cláusula
Sétima, consta expressamente no § 2º: “A contrapartida ao financiamento
oferecido pela União é de responsabilidade exclusiva do Tomador, e não
poderá conter recursos oriundos do Orçamento Geral da União.”
Deste modo, o acordo assinado percorreu em linhas gerais os modos
de aquisição de recursos para viabilização da Copa na cidade de Curitiba.
Dos anexos da Matriz consta, em 2010, previsão de gastos para reforma
e ampliação do Estádio Joaquim Américo (Arena da Baixada). Já neste
primeiro plano se estimava um total inicial de gastos, a cargo do Governo
Municipal, de R$ 46,6 milhões apenas com as obras nos arredores do es-
tádio. Os gastos com a reforma e adequação da Arena propriamente dita
beiravam, na estimativa inicial, 138 milhões, a cargo do Governo Federal
em parceria com o Clube Atlético Paranaense, mediante financiamento
pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES). O prazo máximo para
a conclusão do estádio seria dezembro de 2012.
Sem perder tempo, já em setembro de 2010 o Estado do Paraná, Mu-
nicípio de Curitiba e o Clube Atlético Paranaense (CAP) celebraram - com
intervenção Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba
(IPPUC) - convênio específico para possibilitar no âmbito local a realização
da Copa do Mundo FIFA 2014 e Copa das Confederações 2013. O citado
convênio entre os entes público e o CAP dispõe já na Cláusula Segunda
acerca do rateio do valor total estimado para concretização da amplia-
ção e reforma do Estádio Joaquim Américo Guimarães. Dos 135 milhões
estimados para a obra, coube a cada parte o custeio de 1/3. Mais tarde, o
valor total da obra sofreu modificação, sendo alterado para 184,6 milhões,
mantido o acordo de rateio em 1/3 32.
Para concretização do investimento foi estabelecido um complexo
projeto de engenharia financeira. O Estado do Paraná, responsável
pelo aporte de recursos perante o BNDES, garantiu a capitalização de
Agência de Fomento (Agência de Fomento do Paraná S.A.) com recursos
provenientes do Fundo de Desenvolvimento Econômico do Estado. O
1/3 de responsabilidade do Estado deve ser repassado ao Município,

870
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

que ficará responsável pela transferência de sua terça parte devida


somada à parte devida pelo Estado, ou seja, 2/3 (R$ 123.066.000,00).
Esse valor a ser repassado pelo Município será transferido mediante
cotas de potencial construtivo.
A concessão de potencial construtivo para garantia do repasse de
verbas ao CAP se deu através da Lei Municipal 13.620/10 (regulada
pelo Decreto 826/2012). Dita Lei Municipal instituiu “o potencial cons-
trutivo especial relativo ao Programa Especial da Copa do Mundo FIFA
2014”. O art. 2º da Lei dispunha: “O Programa autoriza a concessão de
potencial construtivo de, no máximo, R$ 90 milhões de reais, referentes
ao valor previsto para execução das obras exigidas para adequação do
Estádio selecionado para sediar a Copa do Mundo 2014”. Projeto de Lei
nº 005.00073.2012, recomendado pelo Tribunal de Contas estadual e de
iniciativa do Prefeito Municipal, em tramitação na Câmara de Vereadores
de Curitiba, prevê alteração do art. 2º para que conste do texto autoriza-
ção expressa para concessão de 246.134 cotas de potencial construtivo
ao CAP. A redação do PL não dispõe acerca do valor de cada cota, mas
sabe-se que o valor atual de mercado - vinculado ao Custo Unitário Básico
de Construção (art. 2º § 1º da Lei Municipal 13.620/10) – corresponde a
R$500,00. A modificação na Lei concederia, portanto, o equivalente a R$
123.067.000, 00 ao CAP. As cotas de potencial construtivo concedidas ao
CAP correspondem exatamente aos 2/3 do valor total do empreendimento
a ser realizado no estádio sede dos jogos da Copa 2014 em Curitiba. Deste
modo, a mesma Lei Municipal em questão estabelece, em seu art. 3 e §1º,
que O potencial construtivo será calculado no valor de 2/3 (dois terços) do
valor total orçado das obras necessárias à conclusão do Estádio, atendidas
as especificações da FIFA.
Pois bem, possuidor de cotas de potencial construtivo no valor aproxi-
mado de 123 milhões de reais, resta o CAP detentor de recursos suficientes
para garantia de qualquer empréstimo. E exatamente assim aconteceu.
Uma vez que possuidor dos recursos necessários ao empréstimo de 2/3 do
valor necessário à reforma, o Clube hipotecou seu Centro de Treinamento

871
e contraiu empréstimo junto ao Fundo de Desenvolvimento do Econômico
do Estado (FDE) no montante de 46,1 milhões de reais. O valor restante
para completar sua terça parte acordada no convênio antes realizado –
16,2 milhões de reais - foi aplicado com recursos próprios.
Para este primeiro empréstimo realizado em prol do CAP pelo Estado
(46,1 milhões) – requerimento feito em 04/04/2012 - foi utilizada como
recebedora dos valores a Sociedade de Propósito Específico CAP S.A –
Arena dos Paranaenses, empresa criada especificamente para adminis-
tração dos recursos direcionados à reforma e ampliação do Estádio do
CAP. O contrato de financiamento tem como caucionante o CAP e como
anuente o Município de Curitiba. A Lei Estadual nº 16.733/2010 autorizou
o financiamento pelo FDE das obras no Estádio Joaquim Américo, e a
Resolução FDE nº 05 de maio de 2012 autorizou o repasse de 30 milhões
de reais. O financiamento está atrelado a juros anuais de 1,9%, com data
de vencimento em 05 de dezembro de 2013.
Como já dito, o que garante esses 30 milhões de reais emprestados
junto ao FDE (representado pela Agência de Fomento do Paraná S.A) são
as cotas de potencial construtivo33. Esses 30 milhões iniciais emprestados
pela CAP S.A equivalem a 60.000 cotas de potencial construtivo das 246.134
que logo farão parte do patrimônio do CAP, que como já dito, foram por
lei municipal concedidas ao Clube. O montante sobre apenas o principal,
sendo que como bem observou o Tribunal de Contas do Paraná, não existe
garantia suficiente para cobrir os encargos34. A par disso, para evidenciar,
desde já, a natureza pública integral dos recursos utilizados no estádio
do CAP, transcrevemos o item IV do Anexo I do contrato de empréstimo
realizado entre CAP S.A. e Estado do Paraná:

IV. O FDE, a CAP S/A e o CLUBE ATLÉTICO PARANAENSE,


autorizam o MUNICÍPIO DE CURITIBA, a ofertarem para venda
do potencial construtivo vinculado, de forma parcial ou total, e,
havendo proposta de pagamento de valor mínimo equivalente à
cotação vigente, o que desde já concordam com a concretização da
venda e do depósito do valor recebido diretamente em conta corrente
bancária do FDE que, por sua vez utilizará o montante depositado
para a amortização do saldo contrato de financiamento (sic)35.

872
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Desvirtuação ainda maior do instituto do potencial construtivo, já am-


plamente caracterizado – bem como demonstrado as condições em que
é possível sua transferência e outorga – é apresentada no item seguinte
do Anexo I do instrumento contratual citado:

V. Se, após a venda das últimas cotas de Potencial Construtivo


e a amortização do financiamento, restar saldo devedor a liqui-
dar junto ao FDE, o MUNICÍPIO DE CURITIBA emitirá potencial
construtivo adicional, cujo produto da venda – para a qual a au-
torização do FDE e CAP S/A, constante do item IV deste anexo,
será estendida – seja suficiente para liquidação total do saldo
remanescente (grifa-se)36.

Desta feita, de acordo com o contrato acima citado, os próprios recursos


provenientes da venda de potencial construtivo pela Prefeitura Municipal
é que pagarão a dívida existente entre a CAP S.A. e o Estado do Paraná.
Dinheiro público pagando financiamento com origem em dinheiro público.
De outro lado, cabe analisar de onde virão os recursos restantes, uma
vez que os 30 milhões de reais constantes do contrato avençado entre
CAP S.A e Estado do Paraná correspondem apenas à parcela da terça parte
investida pelo CAP na obra. Restam, para a consecução da obra, nesta
linha de raciocínio, 154,6 milhões de reais.
O Estado do Paraná, responsável pela conclusão do empréstimo com o
BNDES já elaborou minuta de contrato para realização do financiamento37.
O financiamento só é possível em razão da criação do Programa BNDES
de Arenas para a Copa do Mundo de 2014, o qual visa apoiar a construção
dos estádios que receberão os jogos da Copa. Da mesma forma, a Lei Es-
tadual 16.733/2010 autorizou o financiamento, sendo que mediante sua
abertura está o Estado do Paraná apto a receber até R$ 131.168.000,00,
limitados até 75% do valor total da obra. O montante, segundo consta da
minuta contratual é composto, “dentre outras fontes, pelos recursos do
Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT (...) e do Fundo de Participação
PIS/PASEP”38 . A dívida, a ser paga em 156 prestações (treze anos!) tem
como garantia desta vez parcelas do Fundo de Participação dos Estados
e o produto de arrecadação do Imposto sobre Produtos Industrializados
Proporcional às Exportações.

873
Os R$ 131.168.000,00 aportados pelo Estado do Paraná através de
sua agência de Fomento, estão condicionados à realização de Contrato
de Financiamento entre a CAP S.A e o Estado do Paraná39. Ou seja, a en-
genharia financeira arquitetada visa tão somente o repasse de recursos
por “escala” do BNDES à CAP S.A. O contrato a ser celebrado entre CAP
S.A. e o Estado do Paraná, através do FDE administrado pela Agência de
Fomento do Paraná, também já tem a minuta pronta. Da minuta é possível
depreender, novamente, qual a garantia do contrato: os títulos de potencial
construtivo emitidos pela Prefeitura40.
A situação até aqui delineada mostra exatamente os contornos tomados
para o financiamento público das obras do Estádio Joaquim Américo. Neste
sentido, vistas a fiscalizar a utilização das verbas públicas para a adequa-
ção do Estádio aos eventos em discussão, o Tribunal de Contas Estadual
requereu esclarecimentos à Prefeitura Municipal de Curitiba41. A resposta
encaminhada pode ser encontrada no Ofício nº 031/2012 – SECOPA42.
Desta maneira, o que quer a Prefeitura dar a entender é que todo o
esquema financeiro arquitetado não passa de um novíssimo instrumento
de política urbana, montado para garantir a realização dos eventos es-
portivos programados para 2013 e 2014. A intenção da citada manobra é
desvirtuar o instituto do potencial construtivo, como previsto no Estatuto
da Cidade, pois não é possível afetar a manobra às finalidades elencadas
no Estatuto, como já dito.
O TCE, aceitando a intricada interpretação de um “novo instrumento
de política urbana”, no mesmo relatório que avalia o quadro instaurado
(Relatório TCE nº 04/2012) conclui pela natureza pública dos recursos, o
que dá pouco importância à nomenclatura que vem se dando à manobra.
Da página 36 do relatório extraímos:

Por ser receita pública, a liberação dos valores ao beneficiário


só pode significar dispêndio de recurso público. Caracterizar re-
cursos arrecadados mediante concessão de potencial construtivo
como públicos tem por consequência atrair a aplicação do §3º
do artigo 4º do Estatuto da Cidade, que resguarda a participação
do controle social na fiscalização.

874
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Por assim ser, caracterizada a natureza pública dos recursos para fins
eminentemente privados, e que no futuro trarão lucros ao Clube, e não
à população, colacionamos o que diz o art. 4º do Estatuto da Cidade43.
Entretanto, não se vê é participação popular nos assuntos que tocam a
concessão de potencial construtivo ao CAP. A Comissão prevista no art.
8º da Lei Municipal 13.620/2010 apenas determina a presença de repre-
sentantes do Poder Executivo e Legislativo, deixando a sociedade civil
alheia a questões de seu primordial interesse.

6. CONCLUSÕES

As diversas modificações projetadas com a reforma da Arena da


Baixada passam ao léu dos interesses reais da sociedade, que em breve
verá o entorno do estádio congestionado, inchado e desapropriado inde-
vidamente. A venda futura do potencial construtivo criado pela Câmara
Municipal distorce a finalidade de controle urbano do instituto, a qual
será, ao fim, ignorada.
Assim, das explicações deste artigo e da breve narrativa aqui dispos-
ta, não vislumbramos uma solução para o desvirtuamento do instituto
do potencial construtivo em Curitiba, mas sim um alerta, haja vista a
preeminente necessidade de participação popular na questão, que, com
o passar dos dias, além de modificar o cenário da cidade, modifica a vida
de seus habitantes.
A complexa engenharia financeira desenvolvida para viabilizar estes
repasses dificulta o diagnóstico da própria natureza de tais recursos,
mesmo para juristas e profissionais do urbanismo, não obstante, pode-se
dizer com clareza que a natureza dos recursos que financiarão a reforma
do Estádio do Clube Atlético Paranaense é pública.
Sequer é correto denominar o montante de recursos de “potencial
construtivo”, conforme faz a Lei Municipal nº 13.620 de 2010 (modificada
pela recente Lei Municipal nº 14.219 de 2012). A atual redação do artigo
2º da referida Lei é claro: “O Programa autoriza a concessão de potencial
construtivo de, no máximo, R$ 123.066.666,67, referente ao valor previsto
para execução das obras exigidas para adequação do Estádio selecionado

875
para sediar a Copa do Mundo - FIFA 2014”. Noticia-se modernamente que
este valor fora majorado.
O que se fez, em realidade, fora utilizar o nome de um instrumento
de política urbanística expresso no Estatuto da Cidade para batizar uma
manobra de repasse de recursos públicos para uma empreitada da inicia-
tiva privada, cujas finalidades são avessas às anunciadas pelo artigo 34
do Estatuto da Cidade que delimita expressamente que o Certificado de
Potencial Adicional Construtivo (CEPAC) é exclusivo de operações urbanas
consorciadas, não sendo este o caso (nem material, nem formalmente)44.
Tais previsões normativas não impediram, conforme demonstram
experiências concretas diversas, que o uso do CEPAC fosse deturpado,
de maneira similar ao que agora ocorre com o financiamento das obras
da Arena da Baixada. Conforme descreve Márcia Walquiria Batista dos
Santos, “podemos encarar o Cepac como moeda corrente para financiar
projetos municipais, a exemplo dos títulos da dívida pública e da dívida
pública agrária, que, com o passar dos anos, se tornaram desacreditados
e pouco valor possuem no mercado financeiro”45. É o problema, portanto,
da financeirização dos instrumentos de política urbanística, que ocorre,
muitas vezes, de maneira extremamente problemática (como é o caso da
reforma do estádio do Clube Atlético Paranaense).
Já mencionamos, consonante ao entendimento do TCE-PR, que não se
trata, no caso em tela, de outorga onerosa de direito de construir, e agora
refutamos o rótulo de novo instrumento de política urbana. O que confi-
gura, portanto, tal repasse, que o TCE-PR considera um “novo instrumento
de política urbanística”? A despeito da dificuldade para se responder a tal
questionamento, definitivamente refutamos o caráter instrumental desta
medida no que concerne à política urbanística estabelecido em lei federal.
Embora as municipalidades tenham competência constitucional para criar
instrumentos novos de política urbana, estes não podem conflitar com as
diretrizes estabelecidas pela Lei nº 10.257/2001 e com a natureza jurídica
desses recursos que os vincula a determinada finalidade. Denominar de
‘instrumento novo’ o repasse de verbas públicas para uma empresa privada
dispender em uma obra particular, que resultará em acréscimo de patri-
mônio a esta mesma empresa, é uma tentativa de legitimar uma prática

876
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

totalmente contrária às finanças públicas46, às diretrizes estabelecidas


pelo Estatuto da Cidade, ao princípio da isonomia e a própria natureza
desses recursos.
O argumento é reiterado, mas o reproduziremos por ser de completa
pertinência ao debate aqui levantado, e, principalmente, por ser também
uma questão atinente à atividade financeira do Estado: há uma gama
enorme de necessidades públicas a serem supridas, e os administradores
públicos optaram por dispender somas milionárias em uma empreitada
que beneficiará, em última análise, exclusivamente os organizadores da
Copa do Mundo - FIFA 2014 e os proprietários dos estádios que sediarão
partidas do megaevento (dada a iminente valorização pecuniária).Con-
forme Aliomar Baleeiro denotara, no âmago da discussão sobre necessi-
dades públicas residem privações, desejos ou estados de insatisfação que
somente em e mediante uma coletividade podem ser satisfeitos; por outro
lado, continua o autor, a necessidade torna-se pública por uma decisão
de órgãos públicos47.
Há que se pensar, finalmente, se todo o esforço e dispêndio dirigido à
realização da Copa do Mundo - FIFA 2014 representa, de fato o interesse
da coletividade, e se vem a satisfazer em qualquer escala as necessidades
infinitas que se apresentam cotidianamente a atuação positiva do Estado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCEPR); 11/04/2012. Relatório nº 01.
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Comissão de Fiscalização dos Recursos Públicos Aplicados para a Realização das
Obras da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Relatório nº04/2012. Curitiba (PR):
Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCEPR); 09/2012. Relatório nº 04. Proto-

877
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ESTATUTO da cidade: Comentários à lei federal 10.257/2001. Adilson Abreu
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rev. e atual. até a emenda Constitucional n. 68, de 21.12.2011. São Paulo: Malheiros
Editores, 2012.
__________. Direito Urbanístico Brasileiro. 6. ed. rev. e atual. São Paulo, Ma-
lheiros: 2010.

878
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário.-- 7. ed. atual.


até a aplicação da EC n. 27, de 2.3.2000, e da LC 101 de 4.5.2000. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000.

NOTAS

1 Acadêmicos do 4º Ano do Curso de Direito da Universidade Federal do Paraná.


2 Adilson Abreu Dallari In: Estatuto da cidade: Comentários à lei federal 10.257/2001. Coord. Adilson Abreu
Dallari e Sergio Ferraz.
3 Figuram, ainda, no corpo constitucional os princípios da função social da propriedade e da função social da
cidade como ideias centrais que conferem coerência ao sistema de atos normativos e administrativos que visam à
organização do espaço urbano (DALLARI, 2001, p. 75).
4 DI SARNO, Daniela Campos Libório. In: Estatuto da cidade: Comentários à lei federal 10.257/2001. Coord.
Adilson Abreu Dallari e Sergio Ferraz. p. 62
5 José Afonso da Silva critica a definição do termo que se fundamente unicamente no critério da generalidade
da aplicação da norma. Para ele, “a combinação do estabelecimento de princípios e diretrizes de ação com
critérios de aplicação” juntamente com “a previsão constitucional específica” é que encaminham a ideia
fundamental do conceito. Portando, adotando a definição de José Afonso da Silva, normas gerais são leis,
ordinárias ou complementares, produzidas pelo legislador federal nas hipóteses previstas na Constituição, que
estabelecem princípios e diretrizes da ação legislativa da União, dos Estados e dos Municípios. SILVA, José
Afonso da. Direito urbanístico Brasileiro. p. 57.
6 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Idem.
7 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Ob.Cit. p. 66.
8 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito constitucional. p. 886.
9 SILVA, José Afonso. Ob. Cit. p. 55-56.
10 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. p. 136
11 DALLARI, Adilson Abreu. Ob. Cit.
12 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2001: lei do meio ambiente
artificial. p. 67
13 NETO MARQUES, Floriano de Azevedo. Ob. Cit. p. 232.
14 Ibidem. p. 250.
15 GRAU, Eros Roberto Op. cit. p. 56.
16 SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 251.
17 Ibidem.
18 SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. In: Estatuto da Cidade: Lei 12.257, de 10.07.2001. comentários/
coordenadores Odete Medauar, Fernando Dias Menezes de Almeida.
19 Márcia Walquiria Batista dos Santos parece adotar o mesmo posicionamento de Seabra Fagundes, para quem
as receitas oriundas da outorga onerosa tem caráter tributário estando submetidas às regras do art. 14 da Lei
de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar 101 de 4 de maio de 2000 - Art. 14. A concessão ou ampliação
de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de
estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes,
atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições: I - demonstração
pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art.
12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;
II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de
receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou
contribuição. § 1o A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção
em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada
de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado. § 2o Se o ato de
concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida
no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.
20 GRAU, Eros Roberto. Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental. p. 82.
21 Ibidem. p. 57.
22 Idem. p. 83.
23 FAGUNDES, Miguel Seabra. Aspectos jurídicos do solo criado. p. 7.
24 Idem. p. 83.

879
25 NETO, Floriano de Azevedo Marques. Instrumentos de politica urbana, In:Estatuto da Cidade: Comentários
à Lei Federal n° 10.257/2001.
26 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. p.160.
27 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direto financeiro. p. 165.
28 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. HORVATH, Estevão. Manual de Direito Financeiro. p. 46.
29 Idem. p. 44
30 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Ob. Cit. p. 68.
31 CLÁUSULA TERCEIRA – DAS RESPONSABILIDADES DOS PARTÍCIPES
III – A União oferecerá aos entes e proprietários dos estádios a possibilidade de contratar financiamento
a intervenções em Estádios e Mobilidade Urbana, nas condições estabelecidas em resolução do Conselho
Monetário Nacional, exigindo do tomador de recursos adequação e satisfação com estas e outras condições
requeridas para a assinatura do contrato de financiamento.
IV – Os Estados e Municípios deverão observar rigorosamente a legislação específica para a contratação de
operações de crédito, em especial, mas não se limitando às seguintes normas: LC 101/2000 e Resoluções do
Senado Federal nº 40/2001 e nº 43/2001. Os Estados deverão incluir as referidas operações de crédito nos
seus respectivos Programas de Reestruturação e Ajuste Fiscal.
32 Segundo consta do Relatório 04/2012 da Comissão de Fiscalização da Copa 2014 do Tribunal de Contas do
Estado do Paraná (Relatório TCE nº 04/2012), p. 8.
33 Dispõe a Cláusula Décima Quinta do Contrato de Financiamento (abertura de crédito nº 001/12) entre FDE
e CAP S.A – Arena dos Paranaenses: “Para assegurar o pagamento da obrigação decorrente deste Contrato de
Financiamento, em parcela única (montante principal e demais encargos) na data prevista na Cláusula Sexta, a
CAP S/A e o CLUBE ATLÉTICO PARANAENSE, vinculam em garantia, em favor do FDE, em caráter irrevogável
e irretratável, em caução, POTENCIAL CONSTRUTIVO de série especial emitido pelo Município de Curitiba,
previsto na Lei Municipal 13.620 de 09 de novembro de 2010, no valor equivalente a R$ 30.000.000,00 (trinta
milhões), de acordo com o exposto no Anexo I, o qual anui neste ato, com a presente vinculação”. Do anexo
I do contrato consta: II – A fim de constituir a garantia em caução, proceder-se-á ao registro junto ao Cartório
de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de Curitiba, Paraná, ficando o MUNICÍPIO DE CURITIBA,
como DEPOSITÁRIO do Potencial Construtivo, responsável pela manutenção do registro e o consequente
bloqueio para qualquer cancelamento ou transferência do potencial sem que haja concordância formal do
FDE, representado pela FOMENTO PARANÁ”.
34 Relatório TCE nº04/2012, p. 8.
35 Contrato, p. 16.
36 Ibidem.
37 Minuta enviada ao Tribunal de Contas do Paraná após requerimento deste à Agência de Fomento do Paraná
(Oficio PRESI nº1067/2012), acessada através dos anexos do Relatório TCE nº 04/2012, página 74 e seguintes.
38 Relatório TCE nº 04/2012, p.80.
39 Cláusula Décima, item I, “c” da Minuta anexada ao Relatório nº 04/2012 TCE, página 88.
40 Anexo I da minuta do contrato entre a CAP S.A. e o FDE, p. 125 do Relatório nº 04: “GARANTIA DE CAUÇÃO
DE POTENCIAL CONSTRUTIVO, item II, ‘b’) Quantidade: 174.891 (cento e setenta e quatro oitocentos e noventa e
uma) cotas no valor unitário nominal de R$ 500,00 (quinhentos reais) totalizando, nesta data, R$ 87.445.500,00
(oitenta e sete milhões, quatrocentos e quarenta e cinco mil, quinhentos reais).”
41 Ofício TCE nº 017/2012.
42 A hipótese em tela diz respeito à transferência do direito de construir, estabelecida no art. 35 do Estatuto
da Cidade. Desta forma, não se trata de outorga onerosa (...) A Lei Municipal nº 9.801/2000 já previa este
instituto, em seu art. 2, inciso II. Ressalte-se que o parágrafo do art. 2 prevê a adoção de ‘outros instrumentos
de política urbana’. Página 32 do Relatório TCE nº 04/2012.
43 Art. 4o Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:
V – institutos jurídicos e políticos:
n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso;
o) transferência do direito de construir;
§ 3o Os instrumentos previstos neste artigo que demandam dispêndio de recursos por parte do Poder Públi-
co municipal devem ser objeto de controle social, garantida a participação de comunidades, movimentos e
entidades da sociedade civil.
44 Art. 34. A lei específica que aprovar a operação urbana consorciada poderá prever a emissão pelo
Município de quantidade determinada de certificados de potencial adicional de construção, que
serão alienados em leilão ou utilizados diretamente no pagamento das obras necessárias à própria operação.
45 SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. Ob. Cit. p. 220.
46 Finanças públicas entendida como a atividade voltada “aos dinheiros públicos, e, por extensão, à sua
aquisição, administração e emprego” (JUNIOR, L. E. F., 2003. p.2).
47 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à ciência das finanças.p.3-4.

880
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A transferência do direito de construir


como alternativa para regularização
fundiária em Paraisópolis – São Paulo

Natália Romano Soares1

COMPLEXO PARAISóPOLIS

Paraisópolis é um loteamento originado na década de 1920, com


aproximadamente 100 hectares de área particular. O abandono dos lotes
pelos proprietários, a dificuldade de ocupação devido à topografia, aos
rios que cortam a área e a falta de infraestrutura no arruamento e seu
entorno facilitaram a ocupação por grileiros e posseiros, que começou a se
intensificar no final da década de 60, quando o bairro vizinho do Morumbi
começou a ser construído.
Muitos proprietários dos lotes originais os compraram como forma de
investimento, sem a intenção imediata de construir e, consequentemente,
a área nunca foi ocupada pelos proprietários.
A área para o Poder Público é um tanto complexa, pois se trata de área
de propriedade privada, tornando difícil a justificativa para investimentos
públicos, até ser definida no Plano Diretor do Município de São Paulo
(Lei n.º 13.430/02) como Zona Especial de Interesse Social – ZEIS, após
o advento do Estatuto da Cidade.
Com isso, o direito à moradia ganhou outra dimensão e a Prefeitura
passou a executar obras planejadas, implementando infraestrutura no
Paraisópolis às famílias que ali moravam há mais de 20 ou 30 anos.
Após isso, a regularização fundiária se tornou outro passo importante
para Paraisópolis e, por ser uma área de propriedade particular, até 2009
não havia uma legislação para a regularização fundiária que compreendes-

881
se toda a sua complexidade para abarcar o direito e a segurança à posse,
a não ser através das ações de usucapião propostas pelos moradores,
que são notórias pela morosidade de solução pelo Poder Judiciário, dada
a demanda existente.
Diante dessa situação, o Poder Público teve o dever de encontrar um
meio para iniciar o processo de regularização fundiária da segunda maior
favela no Município de São Paulo.

ESTATUTO DA CIDADE

O Estatuto da Cidade promulgado através da Lei Federal n° 10.257/01,


fruto de um intenso trabalho de mobilização dos movimentos sociais e
da sociedade civil, definiu um novo marco regulatório para o controle do
processo de desenvolvimento urbano por parte dos Municípios, regula-
mentando os artigos 182 e 183 da Constituição Federal.
Com esse avanço significativo para a melhoria das condições de
moradia da população mais pobre, o Estatuto instituiu um conjunto de
instrumentos para que os Municípios garantissem maior acesso à terra
urbana e segurança à posse, possibilitando a regularização fundiária e o
reconhecimento da função social da propriedade.
Dez anos após a aprovação do Estatuto, remanesce a efetividade da
norma contida na Lei Federal n.º 10.257/01, onde continua sendo uma
oportunidade pendente para as cidades, pois muitos instrumentos deixa-
ram de ser aplicados pelos Municípios.
Em que pesem essas dificuldades, muitos Municípios com mais de 20
mil habitantes implementaram o Plano Diretor como instrumento básico
da política de desenvolvimento e de expansão urbana, colocando à dispo-
sição do Poder Público, novos instrumentos legais, capazes de aperfeiçoar
a legislação urbana.
Nesse sentido, o artigo vem relatar uma experiência de regularização
fundiária da segunda maior favela de São Paulo – Paraisópolis, utilizando
o instrumento “Transferência do Direito de Construir”, preconizado no

882
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

artigo 35 do Estatuto da Cidade:

“Art. 35 - Lei Municipal, baseada no Plano Diretor, poderá au-


torizar o proprietário de imóvel urbano, privado ou público, a
exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública,
o direito de construir previsto no Plano Diretor ou em legislação
urbanística dele decorrente, quando o referido imóvel for consi-
derado necessário para fins de:
I – implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse
histórico, ambiental, paisagístico, social e cultural;
III – servir a programas de regularização fundiária, urbanização
de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de
interesse social.
§ 1º A mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário
que doar ao Poder Público seu imóvel, ou parte dele, para os fins
previstos nos incisos I a III do caput.”
§ A lei municipal referida no caput estabelecerá as condições
relativas à aplicação da transferência do direito de construir.

TRANSFERÊNCIA DO DIREITO DE CONSTRUIR

A transferência do direito de construir é um dos instrumentos de regu-


lação pública do exercício do direito de construir, que pode ser utilizado
pelo Poder Público municipal para condicionar o uso e edificação de um
imóvel urbano às necessidades sociais e ambientais da cidade2.
Esse instrumento urbanístico confere ao proprietário de um lote, o
direito de exercer seu potencial construtivo em outro lote, ou de vendê-lo
a outro proprietário, já que a densidade ou coeficiente construtivo estabe-
lecido para o território não pode ser atingido, sob pena de comprometer
o respectivo imóvel.
A aplicação da transferência do direito de construir é prevista na grande
maioria dos planos diretores que geralmente, remetem a sua regulamen-
tação para lei específica, como no caso de São Paulo.
Em seu artigo 198, o Plano Diretor Estratégico do Município de São
Paulo – PDE, através da Lei n.º 13.430, de 13 de setembro de 2002, adotou
como um dos instrumentos de política urbana a “transferência do direito
de construir”:

883
Art. 198 - Para o planejamento, controle, gestão e promoção do
desenvolvimento urbano, o Município de São Paulo adotará, den-
tre outros, os instrumentos de política urbana que forem neces-
sários, notadamente aqueles previstos na Lei Federal nº 10.257,
de 10 de julho de 2001 - Estatuto da Cidade e em consonância
com as diretrizes contidas na Política Nacional do Meio Ambiente:
(...)
xxI- transferência do direito de construir;
(...)

E no artigo 217 do PDE:

Art. 217 - O Executivo poderá autorizar o proprietário de imóvel


urbano, privado ou público, a exercer em outro local passível
de receber o potencial construtivo deduzida a área construída
utilizada quando necessário, nos termos desta lei, ou aliená-lo,
parcial ou totalmente, para fins de:
I - implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
II - preservação, quando for considerado de interesse histórico,
ambiental, paisagístico, social ou cultural;
III - servir a programas de regularização fundiária, urbanização
de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de
interesse social.
Parágrafo único - A mesma faculdade poderá ser concedida ao
proprietário que doar ao Município seu imóvel, ou parte dele,
para os fins previstos neste artigo.”

Além do Plano Diretor Estratégico, o Município de São Paulo esta-


beleceu normas complementares para instituição dos Planos Regionais
Estratégicos das Subprefeituras – PRE, através da Lei n.º 13.885, de 25 de
agosto de 2004, o exercício da “transferência do direito de construir” em
imóveis doados ao Município nas ZEIS para fins de habitação de interesse
social, dentre outras situações.
Deste modo, o proprietário de um imóvel urbano, público ou privado,
sobre o qual, como no caso em estudo visando a programas de regula-
rização fundiária, pode exercer a “transferência do direito de construir”,
desde que autorizado previamente pelas leis municipais.
Uma das inovações trazida pelo Estatuto da Cidade, a transferência
do direito de construir separa o direito de propriedade e o direito de
construir, compensando os proprietários de imóveis que tenham seu po-

884
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

tencial construtivo reduzido em benefício a programas de regularização


fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda
e habitação de interesse social. Nestes casos, autoriza-se o exercício do
direito de construir em outro imóvel.
Em Paraisópolis, os proprietários dos lotes não puderam utilizar-se
do direito de construir devido à intensa ocupação e, com isso, poderá ser
feito em outro local.

DOAÇÃO DE IMóVEIS - PARAISóPOLIS

Tendo em vista a possibilidade de aplicar a transferência do direito


de construir, na hipótese de doação de imóveis destinados ao referido
Programa nos termos estabelecidos nos artigos 217 e seguintes da Lei
n.º 14.430/02, bem como nos artigos 24 e seguintes da Lei n.º 13.885/04,
Paraisópolis teve uma atenção especial quando permitiu ao Poder Exe-
cutivo no Plano Regional Estratégico, a emissão da certidão de outorga
onerosa de potencial construtivo adicional, conforme o disposto abaixo:

“Art. 23. O Poder Executivo poderá emitir Certidões de Ou-


torga Onerosa de Potencial Construtivo Adicional, com valor
de face expresso em reais, visando à execução de programas
habitacionais de interesse social e de urbanização das favelas
de Heliópolis e Paraisópolis, localizadas, respectivamente, nas
Áreas de Intervenção Urbana de Ipiranga-Heliópolis e de Vila
Andrade-Paraisópolis.”

Com a urbanização do Complexo Paraisópolis, a regularização fundiária


era primordial a fim de que os moradores adquirissem a segurança/direito
na posse. Porém, o fato de se tratar de área particular, o ordenamento
jurídico urbanístico era escasso, se não fossem as ações de usucapião a
serem propostas pelos moradores. Diante dessa dificuldade, foi obrigatória
a intervenção do Poder Executivo e Legislativo do Município de São Paulo
na promulgação de lei e decretos que possibilitassem a regularização
fundiária em Paraisópolis.
Assim, o Poder Executivo autorizou receber em doação, através da Lei

885
n.º 14.062/05, regulamentada pelo Decreto n.º 47.272, de 12 de maio de
2006, que dispõe sobre a aplicação da transferência do direito de construir
na hipótese de doação de imóveis destinados ao Programa de Regulari-
zação e Urbanização do Complexo Paraisópolis.
Os imóveis destinados ao Programa de Regularização e Urbanização
de Paraisópolis são aqueles situados nos perímetros das Zonas Especiais
de Interesse Social – ZEIS, tais como: ZEIS 1 – W050-CL; ZEIS 3 – W001-
-CL; ZEIS 1 – W045-BT; ZEIS 1 – W046-BT; ZEIS 1 – W047-BT e ZEIS 1
– W048-BT3.
Os interessados na doação de imóveis e na obtenção do benefício
deverão protocolar requerimento endereçado à Secretaria Municipal de
Habitação - Sehab, que deverá analisar todos os documentos apresentados
e autorizar a doação do imóvel à Municipalidade.
Contudo, para a formalização da doação, somente será admitida a
transferência do direito de construir de imóveis localizados nos perímetros
das ZEIS acima descritos, comprovadamente livres e desembaraçados de
qualquer ônus ou dívidas.
Os imóveis permitidos pelo decreto serão recebidos independentemente
da existência de edificações, regulares ou não.
Após a formalização e o registro da escritura de doação, a Sehab
encaminhará o processo administrativo à Secretaria Municipal de De-
senvolvimento Urbano – SMDU para a emissão da certidão do potencial
construtivo transferível ao doador do imóvel cedente.
Com isso, o doador poderá utilizar a certidão de potencial construtivo
ou vender para algum interessado, para aplicação em lotes, cujos Coefi-
cientes de Aproveitamento Básico possam ser ultrapassados, respeitando
os limites definidos pelos Planos Regionais Estratégicos das Subprefeituras,
nas seguintes situações: nas faixas de até 300 (trezentos) metros de cada
lado ao longo dos eixos de transporte público de massa existentes; na
área definida por circunferência com raio de até 600 (seiscentos) metros,
tendo como centro as estações de transporte metroviário ou ferroviário
existentes; nas Áreas de Intervenção Urbana - AIU, na forma prevista nos
artigos 30 e 31 da Lei nº 13.885, de 2004.

886
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A publicidade do programa de doação dos imóveis localizados em Pa-


raisópolis aconteceu através de anúncios em jornais de grande circulação
e cartas informativas aos proprietários. Apesar da publicidade, o número
de adesão ao programa foi muito baixo. Atualmente, temos aproxima-
damente 75 mil metros quadrados de imóveis doados que se tornaram
públicos, possibilitando a regularização fundiária.
Essa foi uma das opções encontradas pela Municipalidade para adquirir
imóveis com a finalidade de efetuar a regularização fundiária. Em alguns
casos, quando se tratava de imóvel vazio, construíram-se empreendimen-
tos habitacionais para as relocação das famílias moradoras em área de
risco, principalmente quando a ausência de áreas se torna um obstáculo
para a concretização da política urbana.

REGULARIZAÇÃO FUNDIáRIA - qUADRA 50

Após a doação, os imóveis se tornam públicos, possibilitando a regu-


larização fundiária através da Concessão de Uso Especial para Fins de
Moradia – CUEM, ou através da Concessão de Direito Real de Uso – CDRU.
A CUEM, prevista na Medida Previsória n.º 2220/01, é um direito
garantido pelo Estatuto da Cidade para regularizar áreas públicas onde
residam moradores de baixa renda, uma vez que os imóveis públicos não
podem ser adquiridos pela Usucapião. É um instrumento administrativo
de regularização possessória em área urbana, expedido de forma gratuita.

887
A CDRU, instituída através do Decreto-Lei n.º 271/67 e elencado no
Estatuto da Cidade como instituto jurídico a fim de ser utilizado para a ga-
rantia de uma política urbana no Município para a regularização fundiária.
Ambos os instrumentos têm por objeto o direito à posse de terrenos
públicos e serve como instrumento administrativo de legalização pos-
sessória no meio urbano, expedido através de instrumento público ou de
sentença judicial, caso omisso o poder público. Constitui, por isso mesmo,
aspecto singular na regularização para fins de moradia, forçando o Poder
Judiciário a discutir a política pública de moradia e urbanização, seja em
nível individual ou coletivo (neste caso quando não for possível identificar
os terrenos ocupados por cada possuidor), seja realizado na forma admi-
nistrativa ou por vias judiciais. A concessão do uso deverá ser levada a
registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Todos os lotes da quadra 50 de Paraisópolis foram doados, o que
permitiu a regularização de aproximadamente 80 domicílios através da
outorga da concessão de uso especial para fins de moradia ou a concessão
de direito real de uso, conforme as características de cada domicílio e 05
comércios, através da autorização de uso.

DEMARCAÇÃO URBANÍSTICA

Atualmente, com o advento da Lei n.º 11.977/09 que estabelece a regu-


larização de áreas de interesse social e de interesse específico, com ênfase
nas ocupações em áreas privadas, a Secretaria Municipal de Habitação de
São Paulo iniciou o diagnóstico das áreas de Paraisópolis para o processo
administrativo da demarcação urbanística pelo qual o Poder Público, a fim
de promover a regularização fundiária, demarca imóvel público ou privado,
definindo seus limites, áreas, localização e confrontantes, para identificar
seus ocupantes e qualificar a natureza e o tempo das respectivas posses4.
E com isso, a mesma Lei definiu a Legitimação de Posse como um ato do
Poder Público destinado a conferir título de reconhecimento de posse de
imóvel objeto de demarcação urbanística, com a identificação do ocupante
e do tempo e natureza da posse5.

888
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

CONCLUSÃO

Diante do exposto, fica mais clara a necessidade de se implementarem


instrumentos instituídos pelo Estatuto da Cidade para o alcance de uma
regularização fundiária plena, permitindo assim, o cumprimento do prin-
cípio da função social da propriedade e a garantia do direito à moradia.
Para isso, é importante que haja gestão pública afim da implementação
desses instrumentos para que possa garantir o acesso de todos à terra
urbanizada e regularizada. Como por exemplo, a notificação de proprietá-
rios de imóveis em Paraisópolis para adesão ao programa de doação dos
imóveis em troca de uma certidão de potencial construtivo que garante
a transferência do direito de construir, o que já garantiu a regularização
fundiária de uma quadra em Paraisópolis, através da outorga dos títulos
de concessão especial para fins de moradia ou concessão de direito real
de uso.
É de se notar que a reforma urbana se faz necessária para a implemen-
tação dos instrumentos do Estatuto da Cidade, possibilitando a integração
do público com o privado, para que a cada dia aumentem as políticas
públicas no Município, bem como a legislação pertinente.

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-do-direito-de-construir/

NOTAS

1 Advogada, especialista em Direito Processual Civil, Assessora Jurídica na Secretaria Municipal de Habitação
de São Paulo, nromanosoares@gmail.com.
2 Brasil. Estatuto da Cidade (2001). Estatuto da cidade: Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece
diretrizes gerais da política urbana. – Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2001.
3 Artigo 2º do Decreto Municipal de São Paulo n.º 47.272/06.
4 Artigo 47, III da Lei Federal n.º 11.977/09.
5 Artigo 47, IV da Lei Federal n.º 11.977/09.

890
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A utilização do conceito de
“valor justo” como definido pelo
International Valuation Standards – IVS
na determinação da indenização
justa em processos de desapropriação
de bens imóveis

Emilio Haddad1
Cacilda Lopes dos Santos2

INTRODUÇÃO

A presente comunicação se propõe a dar continuidade à reflexão


iniciada em trabalhos anteriores dos autores a respeito da necessidade
de serem repensados os critérios de valoração de áreas desapropriadas.
O foco principal desta vez é a aplicabilidade do conceito de “valor justo”,
presentes nas Normas Internacionais de Avaliação, elaborada pelo Inter-
national Valuation Standards Council – ICVS, e cuja versão mais nova e
atualizada, de 2011, e recentemente traduzida e publicada em português,
pelo Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia – IBAPE,
resultante de uma cuidadosa tradução do Eng.. Carlos Eduardo Cardoso.

O TRABALhO é DIVIDIDO EM 4 PARTES:

Com o objetivo de contextualizar o tema, é feito inicialmente uma breve


descrição do processo vigente de determinação do valor de indenização
de imóveis desapropriados.
Na segunda parte, é apresentado e discutido o conceito valor justo.
Na terceira são analisadas as dificuldades e problemas a serem enfren-
tados na utilização do valor justo.

891
Finalmente, no último capítulo, são apresentadas algumas conclusões
e feitas sugestões tendo em vista a utilização do valor justo.

1. DETERMINAÇÃO DO VALOR DE
INDENIZAÇÃO DE IMóVEIS DESAPROPRIADOS:
A PRáTICA CORRENTE NO BRASIL

Uma das principais dificuldades envolvidos em processos de desa-


propriações é o do estabelecimento do valor de indenização do imóvel.
(Azuela, 2009).
A doutrina e a jurisprudência estabelecidas no Brasil apontam que
o valor de indenização deve corresponder ao “valor de mercado” da
propriedade.
Existem várias definições de valor de mercado, propostas por dife-
rentes entidades ou associações ligadas à avaliação de imóveis, e que se
assemelham. Do interesse deste trabalho, podemos citar as definições
da Norma Brasileira, e das novas Normas IVS.
Valor de mercado segundo definida pela Norma NBR 14653-1 Avalia-
ção de bens Parte 1: Procedimentos gerais3, da Associação Brasileira de
Normas Técnicas: “Quantia mais provável pela qual se negociaria volun-
tariamente e conscientemente um bem, numa data de referência, dentro
das condições do mercado vigente”.
No Glossário do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Enge-
nharia de São Paulo, “valor de mercado” é assim definido: “Quantia mais
provável pela qual um bem seria negociado em uma data de referência,
entre vendedor e comprador prudentes e interessados no negócio, com
conhecimento de mercado, mas sem compulsão, dentro das condições
mercadológicas”.
Valor de mercado segundo o International Valuation Standards (2013),
mais recente, de certa forma consolida as definições anteriores:

Valor de mercado é a quantia estimada pela qual, na data da


avaliação, um ativo seria transacionado entre um comprador

892
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

e um vendedor predispostos, em uma transação entre partes


independentes, após exposição apropriada ao mercado e onde
as partes agem com conhecimento, prudência e sem compulsão
para transacionar4.

A utilização do “valor de mercado” em processos de desapropriação


tem apresentado vários problemas, e talvez o caso mais paradigmático
sejam as superavaliações no caso da desapropriação de terrenos para o
Parque Estadual da Serra do Mar (Dias, 2001).
No Brasil, justa indenização é tratada expressamente pela Constituição
Federal como direito fundamental e aplica-se não só ao expropriado, mas
também ao próprio expropriante, que não pode ser obrigado a submeter-
-se a uma indenização que extrapola os parâmetros de justiça e permite
que o particular se locuplete indevidamente.
Em razão da terminologia “justa indenização” possibilitar atribuições
de significado com variado grau de subjetividade, o que se pode extrair
das decisões judiciais sobre o tema é que a justa indenização tem consi-
derado em sua composição o valor de mercado do imóvel, fundando-se
no entendimento de que na justa indenização o que se busca é recompor
o patrimônio daquele que foi expropriado.
Contudo, da mesma forma que não é justa a indenização irrisória,
aquela incapaz de trazer a recomposição do patrimônio do expropriado,
é também profundamente injusta a indenização excessiva, aquela extra-
ordinariamente exorbitante, capaz de permitir enriquecimento ilícito às
custas do erário, principalmente quando se trata de propriedades que nada
produzem, situação que poderia ser melhor balizada pelo conceito mais
amplo de “valor justo” previsto pelas normas do IVS.
Analisando esse duplo significado da justiça do valor indenizatório nos
processos de desapropriação, o Egrégio Tribunal Regional Federal da 3ª
Região esposou entendimento no sentido de que “o princípio constitucional
da justa indenização deve ser interpretado como norma de proteção bipo-
lar, ou de ‘mão dupla’. A justiça da indenização compreende a garantia do
cidadão contra a sanha expropriatória do Estado, protegido assim o direito

893
fundamental à propriedade. No entanto, compreende também o princípio
da justa indenização deverem o Estado e a coletividade serem protegidos
contra o enriquecimento indevido às custas dos cofres públicos”. (TRF
3ª Região, 2ª Turma, Rescisória n. 96.03.004927-1, rel. Desembargadora
Sylvia Steiner, julgado em 4.12.96).
De outro lado, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “Nenhuma
decisão judicial pode amparar o enriquecimento sem causa. Toda a deci-
são há de ser justa.” (STJ, 6ª Turma, REsp n. 90.366-MG, rel. Min. Vicente
Cernicchiaro, julgado em 11.6.96).
Podemos notar que ainda que haja uma tendência em se considerar
que a justa indenização comporte a ideia de valor de mercado, a legislação
urbanística brasileira e padrões de avaliação internacionalmente aceitos,
como aqueles tratados pelo IVS, podem abrir espaço para a construção de
entendimento jurisprudencial que incorpore um conceito de “valor justo”,
mais coerente com a necessidade de se evitar o enriquecimento sem causa
ocorrido em casos emblemáticos de desapropriações no Brasil.
Nitidamente um novo paradigma avaliatório se faz necessário, e no item
seguinte argumentamos por que uso do “valor justo” no lugar do “valor
de mercado” se propõe como caminho para superação das dificuldades
apresentadas pela utilização do “valor de mercado”.

2. O CONCEITO DE “VALOR JUSTO”

A norma IVS, de 2011, já adotadas pela União Pan-Americana de As-


sociações de Avaliação - UPAV como normas pan-americanas de avalia-
ção, e acolhida pelos seus membros entre os quais o Instituto Brasileiro
de Avaliações e Perícias de Engenharia – IBAPE, por outro lado, propõe
novas definições, uma de “valor justo”, e outra de “valor de mercado”.

O “valor justo5” é assim definido:

“Valor Justo - Preço estimado para a transferência de um ativo


ou passivo entre partes identificadas, informadas e dispostas a
negociar, que reflita os referidos interesses das partes.”

894
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O valor justo é assim um conceito mais amplo do que o valor de mer-


cado, e “embora em muitos casos o preço justo entre duas partes se iguale
àquele que seria obtido em uma transação de mercado”, eles podem diferir:

“O valor justo requer a determinação do preço que seja justo entre


duas partes identificadas, considerando as respectivas vantagens
e desvantagens que serão obtidas na transação (...) Em contraste,
valor de mercado requer a desconsideração de quaisquer van-
tagens ou desvantagens não disponíveis aos participantes do
mercado de modo geral”

Vantagens e desvantagens – tanto para o poder público que desa-


propria quanto para o proprietário despossuído do bem -- podem
se fazer presentes na definição do valor justo: a simples utilização do
valor de mercado não as captura, criando muitas vezes restrições para
acordo judicial.

Para exemplificar, entre estas vantagens e desvantagens podem


ser citadas:

a simplificação jurídica nos casos de desapropriação de bem


pertence a vários donos, como aqueles provenientes de herança;
a não incidência para os proprietários dos “custos de transação”
(corretagem, tempo de exposição do imóvel, etc.);
formas de pagamento que convenham às partes, evitando-se a
possibilidade de precatórios;
a possibilidade de, na determinação do valor se levar em conta
além dos valores de uso – determinados pelo mercado – também
valores de não uso, como no caso da desapropriação de áreas
protegidas;
a possibilidade, no caso de desapropriação de uma propriedade
que não cumpra sua “função social”, que o valor justo reflita
o interesse do poder público de poder dispor do imóvel mais
rapidamente do que se tivesse que seguir as etapas previstas
em lei para a aplicação da desapropriação em títulos (respecti-
vamente, o imposto predial e territorial progressivo, a edificação
compulsória)

Observe-se que a versão de 2011 da norma IVS traz importantes altera-


ções com relação às versões anteriores, buscando eliminar redundâncias e
aspectos mais periféricos. Ao manter no texto a distinção entre “valor justo”

895
e “valor de mercado” tal diferença passou a receber maior notabilidade,
que se faz presente no nosso meio após a sua tradução para o português
e sua divulgação através de um Seminário Internacional, realizado em
São Paulo, no mês deabril de 2013, com o patrocínio do IBAPE e da Royal
Institute of Chartered Surveyors – RICS.
As normas IVS de 2011 aponta que o de “valor justo” ser “comumente
aplicado no contexto judicial” (pág. 36), referindo-se à pratica em ou-
tros países, com uma cultura jurídica na qual os tribunais privilegiam
mais a mediação.
Uma observação final: a determinação de valor no caso de desapropria-
ção para fins socioambientais, seja para fins de regularização fundiária, ou
criação de zonas de proteção, merece uma discussão mais aprofundada,
por envolve valores de não mercado, o que aumenta a complexidade na
determinação do valor de indexação. O “valor justo” pode em muitos casos
fornecer um atalho seguro para se chegar a um valor de indenização que
seja pacificador e que incorpore os princípios de direito orientadores da
política urbana e ambiental no Brasil.

3. PROBLEMAS NA UTILIZAÇÃO DO “VALOR JUSTO”


PARA O CáLCULO DA INDENIZAÇÃO EM PROCESSOS
DE DESAPROPRIAÇÃO

O entendimento na doutrina no que se refere à estimativa do valor de


indenização nos processos de desapropriação de bens imóveis tem sido o
da identificação do valor justo com o valor de mercado. Conforme acima
argumentamos, o conceito de valor justo, por ser mais amplo do que o
valor de mercado, deveria se tornar o novo paradigma no cálculo de in-
denização em casos de desapropriação de imóveis em razão de sua maior
proximidade de significado com a ideia de justa indenização prevista na
Constituição Federal e com os princípios de direito urbanístico previstos
no Estatuto da Cidade.

896
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Do nosso melhor conhecimento o valor justo, tal como definido pelas


Normas internacionais IVS, não tem sido utilizado na fixação do valor de
indenização nos processos judiciais de desapropriação. Introduzi-lo na
prática jurídica seria um típico caso de inovação que, como tal, vai reque-
rer adaptações de nosso sistema. Entre estas, é fundamental uma nova
compreensão tanto por parte dos peritos avaliadores quanto do judiciário.
Ainda que a doutrina e a jurisprudência brasileira tenham atribuído
à noção de justa indenização a ideia de valor de mercado, a previsão de
valor justo em normas de avaliação internacional possibilitaria um câmbio
deste entendimento.
Neste sentido, a Professora Sonia Rabello, no trabalho Justa Indenização
nas Expropriações Imobiliárias urbanas:

“ É´ verdade que, no Direito, é fundamental que se tenha e se


conserve, com boa dose de estabilidade o sentido que se atribui
a um conceito, sem o que não haveria, de fato, segurança jurí-
dica quanto à cognicibilidade do seu conteúdo. Porém, isto não
significa que, havendo fatos novos que alterem as circunstâncias
que justifiquem determinado entendimento daquele conteúdo, o
conceito não deva ser alterado. E é isto que acontece hoje com
o termo justa indenização”.
(RABELLO, Sonia. 2009)

Desde 1995, a ideia de justo valor começou a fazer parte da pauta dos
tribunais superiores em razão dos inúmeros pedidos de revisão de decisões
que fixaram indenizações milionárias aos proprietários. Estas ações de
revisões vêm sendo propostas ainda que já tenha transitado em julgado,
ou seja, ainda que não sejam mais cabíveis recursos.
No entanto, a discussão a respeito do valor justo em indenização sem-
pre se emparelha à noção, muitas vezes injusta, de “valor de mercado”.
Uma valoração justa da propriedade expropriada deveria incorporar con-
ceitos e princípios de justiça social advindos do Estatuto da Cidade, sendo
que a discussão judicial vivenciada nos tribunais brasileiros se restringe
a valor de mercado.
Após pesquisas, verificamos que são raros os casos em que nossos
tribunais manejam conceitos como recuperação de mais-valia6, função

897
social da propriedade e justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes
do processo de urbanização, conceitos que poderiam ser incorporados em
metodologia que adotasse a ideia de “valor justo”.

Anotamos, contudo, que no Brasil a lei que disciplina as desapro-


priações em áreas rurais define a justa indenização como sendo a que
considere o valor de mercado, o que tem prejudicado a construção de um
melhor entendimento para a indenização justa em áreas urbanas:

Lei n°. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993


Art. 12. Considera-se justa a indenização que reflita o preço
atual de mercado do imóvel em sua totalidade, aí incluídas as
terras e acessões naturais, matas e florestas e as benfeitorias
indenizáveis, observados os seguintes aspectos:

No entanto, à legislação brasileira, à exemplo de tantas outras poderia


ser mais precisa quanto ao significado de justa indenização para áreas
urbanas.

Vejamos:

Lei portuguesa sobre desapropriação:

Do conteúdo da indemnização Artigo 23.º Justa indemnização


1 - A justa indemnização não visa compensar o benefício alcança-
do pela entidade expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para
o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor
real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou
possível numa utilização económica normal, à data da publica-
ção da declaração de utilidade pública, tendo em consideração
as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data”.

E ainda, a anterior lei espanhola sobre expropriação:

“Ley 6/1998, sobre regime del solo i regles de valoración


Artículo 36. Procedimiento de determinación del justiprecio
El justiprecio de los bienes y derechos expropiados se determinará
conforme a lo establecido en el título III de la presente Ley, median-
te expediente individualizado o por el procedimiento de tasación
conjunta.
TÍTULO III

898
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Valoraciones
Artículo 23. Aplicación general de las reglas de valoración
A los efectos de expropiación, las valoraciones de suelo se efectuarán
con arreglo a los criterios establecidos en la presente Ley, cualquiera
que sea la finalidad que la motive y la legislación, urbanística o de
otro carácter, que la legitime”.

Artículo 27.
Valor del suelo urbanizable
1. El valor del suelo urbanizable incluido en ámbitos delimitados
para los que el planeamiento haya establecido las condiciones
para su desarrollo se obtendrá por aplicación al aprovechamiento
que le corresponda del valor básico de repercusión en polígono,
que será el deducido de las ponencias de valores catastrales. En el
supuesto de que la ponencia establezca para dicho suelo valores
unitarios, el valor del suelo se obtendrá por aplicación de éstos
a la superficie correspondiente. De dichos valores se deducirán
los gastos que establece el artículo 30 de esta Ley, salvo que ya
se hubieran deducido en su totalidad en la determinación de los
valores de las ponencias. (…)
En cualquier caso, se descartarán los elementos especulativos
del cálculo y aquellas expectativas cuya presencia no esté
asegurada”.

Neste tema, julgamos importante o disposto pela legislação Colom-


biana, Decreto 1420/1998, que é bem eficiente ao estabelecer padrões
objetivos que deverão ser considerados na avaliação:

“ARTICULO 2o. Se entiende por valor comercial de un inmueble


el precio más probable por el cual éste se transaría en un mer-
cado donde el comprador y el vendedor actuarían libremente,
con el conocimiento de las condiciones físicas y jurídicas que
afectan el bien.
(…)
CAPITULO IV.
DE LOS PARAMETROS Y CRITERIOS PARA LA ELABORACION
DE AVALUOS
ARTICULO 20. El Instituto Geográfico Agustín Codazzi, la entidad
que cumpla sus funciones y la personas naturales o jurídicas re-
gistradas y autorizadas por las lonjas en sus informes de avalúo,
especificarán el método utilizado y el valor comercial definido
independizando el valor del suelo, el de las edificaciones y las
mejoras si fuere el caso, y las consideraciones que llevaron a tal
estimación.
(…)”

899
Vê-se que a legislação espanhola e a colombiana, por exemplo, fixam
procedimentos e técnicas de valoração nas desapropriações e estabe-
lecem um rol de critérios que visam a atender os seguintes princípios:
que a qualificação urbanística do solo condiciona seu aproveitamento
e, portanto, seu valor econômico; que as mais-valias procedem de obra
de urbanização ou mudanças nas leis de uso do solo e que a atribuição
destas mais-valias será cabível quando o proprietário haja custeado como
deve, a urbanização.
No Brasil, embora possamos inferir uma proximidade entre o significado
de “valor justo” das normas técnicas do IVS e o significado pretendido pela
Constituição Federal com a previsão de que a desapropriação requer justa
indenização, o que permite sua utilização nas desapropriações judiciais,
a aplicação concreta destes conceitos requer um procedimento que seja
estabelecido por lei a fim de lhes atribuir maior concretude.

4.COMENTáRIOS

O presente trabalho tem, entre seus propósitos, refletir sobre a possibi-


lidade do conceito de “valor justo” previsto pelo IVS poder ser aplicado nas
indenizações em desapropriação como forma de se atribuir concretude à
justa indenização prevista na Constituição Federal visto que possibilitaria
considerar nas desapropriações os princípios que informam a política
urbana delineada no Estatuto da Cidade, Lei Federal n°. 10.257, de 10
de julho de 2001, que explicita a desapropriação como um instrumento
jurídico da política urbana.
Sem embargo, dentre os principais instrumentos contemplados no
Estatuto da Cidade, a desapropriação é provavelmente o que mereceu o
tratamento mais lacônico. Ao comentar a ausência de unidade legislativa
para se tratar o tema da desapropriação urbanística, Silva (2006, p. 185):

“A aspiração de unidade legislativa fracassa redondamente. Nos


aspectos puramente procedimentais e nos mais substanciais dos
critérios de valoração, quando se trata de urbanismo, pouco ou
nada há que acudir-se àquela lei geral. Há de acudir-se a uma

900
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

série de disposições que integram o ordenamento jurídico sobre


solo e ordenação urbana”.

Consolidar um novo modo de pensar sobre justa indenização, que con-


siga fazer distinção entre “valor justo” e “valor de mercado” é tarefa que
pode atribuir ao instituto da desapropriação um instrumento de política
urbana mais legítimo.
A mudança de paradigma também contribuiria para diminuir o excesso
de judicialização em torno do tema desapropriação, pois é da essência
do conceito “valor justo”, o acordo entre comprador e vendedor, situação
onde faz preponderar a negociação em detrimento do arbítrio do poder
judiciário.
No Brasil, como já exposto em outros trabalhos, a ausência na lei de
dispositivos específicos para o caso de avaliação de imóveis, em particular
no caso de desapropriações, é fator que dificulta ao Poder Judiciário anali-
sar os resultados dos laudos apresentados e gera discussões intermináveis
a respeito do quantum a ser indenizado ao expropriado.
Afinal, para uma aplicação mais eficiente do direito, e para uma mu-
dança efetiva de paradigma em tema de valoração justa é fundamental a
determinação de um procedimento objetivo, circunstância que se evidencia
no estudo da desapropriação, cuja lacuna procedimental é muito grande.
Esse é um problema observado também em outros países e ramos do
direito. Neste sentido, Azuela (2006, p. 506) “Para entender estos proble-
mas, há sido indispensable recuperar la idea de la procedimentalización
del derecho, pues con ella entendemos que las normas jurídicas solo ad-
quieren un sentido concreto (es decir, sólo forman parte de la experiencia
práctica) en el contexto de un procedimiento”.
Sabemos que a lei não obstaculizará as discussões a respeito da justa
indenização7, mas a ausência de regramento para as questões de avalia-
ção e justa indenização na lei brasileira é um componente que permite
distorções muito acentuadas na fixação do valor final das indenizações.

901
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NOTAS

1 Professor Associado aposentado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, email:
emhaddad@usp.br
2 Professora de Direito do Estado, Gerente de Atendimento Jurídico Caixa Econômica Federal, email: cacilo-
pes@uol.com.br
3 Atualmente em revisão.
4 Pode-se dizer que essa definição de valor de Mercado, apresentada nas Normas IVS, é uma forma mais
condensada daquela apresentada pelo Appraisal Institute, segundo a qual: “Market value in the most probable
price, as of a specifies date, in cash, or in terms equivalent to cash, or in the other precisely revealed terms
for which the specified property rights should sell after a reasonable exposure in a competitive market under
all conditions requisite for a fair sale, with the buyer and seller each acting prudently, knowledgeably, and for
self-interest, and assuming that neither is under duress”.
5 “Fair value”, em inglês
6 É o que afirmam SMOLKA, Martim e FURTADO Fernanda, em Recuperación de PlusValias en América em
América Latina. Eurolibros, p. xV: “Estas mais-valias resultam em geral de ações alheias ao proprietário, e
mais notadamente derivam da atuação pública, seja através de inversões em infraestrutura ou de decisões
relativas à regulação do uso do solo urbano”
7 Em Portugal, mesmo com um a legislação bem eficiente em tema de expropriação, há grande discussão
sobre o justo preço. Neste sentido, podemos verificar a dimensão das controvérsias em seminário promovido
sobre a Avaliação do Código das Expropriações, em 25/09/2003, pela Associação Nacional de Municípios
Portugueses, em exposição de António Pereira da Costa:
“A maior discussão ligada à fixação do justo preço estava e está na distinção entre ‘solos aptos para construção”‘e
“solos para outros fins”, sendo estes determinados por via residual, depois de definidos os primeiros”.

903
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Aplicação do instrumento urbanístico -


operação urbana consorciada - à reali-
zação das obras para a Copa do Mundo
de 2014: o caso de Porto Alegre – RS

Fernanda Peixoto Goldenfum1

1. DIREITO DE PROPRIEDADE NO ESTATUTO DA CIDADE

Inicialmente, observa-se que o Estatuto da Cidade regulamenta o artigo


182, da Constituição Federal de 1988, dispondo acerca das diretrizes gerais
e dos instrumentos da política urbana, tais como, a efetiva aplicação do
plano diretor, do direito de preempção, da operação urbana consorciada,
da outorga onerosa do direito de construir (solo criado), dentre outros.
Conforme Pagani (2009, p.185), o objetivo para a consecução desta Lei
foi “combater a especulação imobiliária”. (grifos nossos)

2. PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS

Tratando-se de Parcerias Público-Privadas (PPPs), Sundfeld (2007,


citado por PRESTES 2009, p. 188-189), bem realiza uma definição de tais
Parcerias, dividindo-as em dois sentidos: amplo e estrito. Faz-se necessário
realizar literal transcrição:

Em sentido amplo, PPPs são os múltiplos vínculos negociais de


trato continuado estabelecidos entre a Administração Pública e
particulares para viabilizar o desenvolvimento, sob a responsa-
bilidade destes, de atividades com algum coeficiente de interes-
se geral (concessões comuns, patrocinadas e administrativas;
concessões e ajustes setoriais; contratos de gestão com Oss;
termos de parcerias com OSCIPs; etc.). Seu regime jurídico está
disciplinado nas várias leis específicas.
Em sentido estrito, PPPs são os vínculos negociais que adotam a
forma de concessão patrocinada e de concessão administrativa,

905
tal qual definidas pela Lei federal 11.079/04. Apenas estes con-
tratos sujeitam-se ao regime criado por essa Lei. (SUNDFELD,
2007 citado por PRESTES, 2009, p.188-189)

Prestes (2009, p.189), por sua vez, reforça que as Parcerias Público-
-Privadas são consideradas instrumentos que foram incorporados na
legislação brasileira com o intuito de viabilizar e realizar contratações de
tarefas, serviços e obras públicas dos particulares.
A Parceria Público-Privada se faz presente na definição legal de Ope-
ração Urbana Consorciada situada no Estatuto da Cidade. É importante
ressaltar que, afim de que ocorra uma Operação Urbana Consorciada,
consoante o disposto em Lei, é essencialmente necessária a participação
efetiva dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores
privados com a coordenação do Poder Público municipal, a fim de que
seja possível a aplicação desse instrumento urbanístico.
Villela Lomar (2003, p.251) relembra ser indispensável a participação
dos proprietários de imóveis que residem na área em que será objeto de
realização de uma Operação Urbana Consorciada, bem como dos mora-
dores, usuários permanentes e investidores privados. Villela Lomar (2003,
p.251) opina que não há a exclusão da participação de outros habitantes e
usuários da cidade, visto que uma das diretrizes fundamentais do Estatuto
da Cidade é a gestão democrática da cidade.
Sundfeld (2005, p.34 citado por CARVALHO e DIAS, 2010, p.91) leciona
que “as PPPs foram concebidas para o financiamento de infraestrutura,
principal foco de investimentos para o país nos próximos anos”, objeti-
vando a realização das obras para a concretização da Copa do Mundo de
2014, no Brasil. (grifos do autor)

3. CONCESSÃO URBANÍSTICA

Registra-se que a concessão urbanística pode ser considerada um


importante instrumento para que seja possível a realização de uma Ope-
ração Urbana Consorciada, visto que os objetivos podem ser concretizados

906
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sem que haja a excessiva liberação de verbas por parte do Poder Público.
Menciona-se para tanto, que a concessão urbanística não foi citada no rol
dos instrumentos da política urbana arrolados no artigo 4º, do Estatuto da
Cidade, no entanto, a sua utilização não sofre algum impedimento, visto
que o rol presente nesse artigo é exemplificativo, admitindo a utilização
de outros instrumentos não descritos nesta Lei. (VILLELA LOMAR, 2004,
p. 111)
O autor já citado bem conceitua o instrumento da concessão urbanística
como o contrato em que, ocorrendo uma prévia licitação, o Poder Público
delega à determinada empresa ou consórcio de empresas a realização
da (re)urbanização de certa região da cidade com o intuito de implantar
as diretrizes urbanísticas elencadas na lei do plano diretor. Em se tra-
tando de Operação Urbana Consorciada, é indispensável a utilização da
lei municipal específica que tenha permitido a sua aprovação. (VILLELA
LOMAR, 2004, p.111)
A título de informação, conforme dispõe Villela Lomar (2004, p.112),
no Brasil, a concessão urbanística está presente na Lei Federal nº. 8.987,
de 13 de fevereiro de 1995. Nesta Lei há a previsão de normas gerais ap-
tas a serem aplicadas aos contratos de concessão em geral, de serviços
e obras públicas.
Dallari (2001, p.23 citado por VILLELA LOMAR, 2004, p.113) rememora
que a concessão urbanística obteve acolhimento por parte do Estatuto
da Cidade. O artigo 2º, inciso III, deste Estatuto, estipula que uma das
diretrizes gerais da política urbana, em nosso país, é a cooperação entre
os governos, a iniciativa privada e outros setores da sociedade no pro-
cesso de urbanização, visando ao interesse social. O artigo 31, § 1º, da
mesma lei urbanística, realiza a definição do se entende por Operação
Urbana Consorciada, dispondo que é “o conjunto de intervenções e me-
didas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos
proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados”.

907
4. REqUISITOS PARA A REALIZAÇÃO
DE UMA OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA

Em Cabral (2008, p.20) encontramos a seguinte afirmação:

A legislação urbanística nacional reconhece a operação urbana


consorciada como valioso instrumento de planejamento urbano,
estando prevista nos arts. 32 e 33 da Lei nº 10.257, de 10 de julho
de 2001, Estatuto da Cidade. Ademais de constituir um dos mais
importantes instrumentos de planejamento municipal, a opera-
ção urbana consorciada deve estar aliada ao desenvolvimento
sustentável das cidades.

Sendo assim, no Estatuto da Cidade visualiza-se um padrão estabele-


cendo a exigência de uma lei municipal específica (que deve ser debatida
e aprovada na Câmara dos Vereadores), remetendo ao plano diretor. É
indispensável analisar que os requisitos para a realização de uma Operação
Urbana Consorciada, estão delimitados no artigo 32, “caput”, do Estatuto.
O artigo já mencionado possui como exigências: a delimitação da área de
aplicação deste instituto jurídico-urbanístico, que esteja explícito qual será
a sua finalidade e as transformações estruturais, a projeção de melhorias
sociais e ambientais que serão atingidas na área demarcada.
Ademais, no artigo 33, incisos I a VII, do Estatuto, há a disposição de que
a lei municipal específica (que aprovar a Operação Urbana Consorciada),
obrigatoriamente, deverá relatar um plano urbano específico de Operação
Urbana Consorciada, o qual deve conter: a previsão da definição da área
que será atingida, o programa básico de ocupação da área, o programa de
atendimento socioeconômico à população diretamente afetada, a disposi-
ção de quais são as finalidades da Operação em questão, o Estudo Prévio
do Impacto de Vizinhança (EIV), o relato de qual forma de retribuição
(contrapartida) será exigida dos proprietários, usuários permanentes e
investidores privados e expor qual é a forma compartilhada de controle
da Operação com representação da sociedade civil no caso específico.
(VILLELA LOMAR, 2003, p.249)
Alfonsin (2005, p.307) adverte que o artigo 33, inciso IV, do Estatuto,

908
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

trata das finalidades da Operação, devendo o Poder Público alegar quais


são os objetivos a ser concretizados com a realização de tal Operação,
respeitando o Princípio da Publicidade, observância indispensável à
Administração Pública (disposto no artigo 37, “caput”, da Constituição
Federal de 1988) por meio da divulgação do propósito em utilizar este
instrumento jurídico-urbanístico. O objetivo deve estar de acordo com o
interesse público (a saber, o Princípio da Supremacia do Interesse Público
sobre o Interesse Privado).
No artigo 33, § 1º, do Estatuto da Cidade, há a previsão legal de que a
destinação dos recursos adquiridos pelo Poder Público municipal com a
realização de uma Operação Urbana Consorciada será para que ocorra a
sua própria realização. (CABRAL, 2007, p.18)
Estatui-se que o instituto urbanístico - Operação Urbana Consorciada
- engloba o Poder Público municipal e há uma disposição expressa em lei
estipulando que a partir da aprovação da lei específica, todas as licenças
ou autorizações que forem expedidas de forma contrária com o plano da
Operação em questão, serão nulas, consoante o artigo 33, § 2º, do Estatuto
da Cidade. (GASPARINI, 2002, p.185)
Pires de Oliveira e Pires Carvalho (2002, p.151) orientam que aplicando
o Princípio da Recuperação de Investimentos pelo Poder Público, arrolado
no artigo 2º, inciso xI, do Estatuto da Cidade, o Município admite a emissão
de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC), a fim de
serem leiloados ou utilizados como custeio da Operação Urbana Consor-
ciada, respeitando o disposto no artigo 34, “caput”, do Estatuto da Cidade.
Villela Lomar (2004, p.106-107) arremata que a fim de que seja possível
a realização da Operação desejada, há uma autorização para que uma lei
municipal específica possa permitir a emissão de Certificados de Potencial
Adicional de Construção (CEPAC) com o objetivo de estes serem alienados
com o intuito de que ocorra uma antecipação dos recursos financeiros
necessários para a execução das intervenções urbanísticas planejadas.
Ademais, prossegue o autor referido que, a tais Certificados há a per-
missão para serem livremente negociados, no entanto, seu uso (ou direito

909
de construir) torna-se restrito aos imóveis presentes na área em que ocorre
a Operação Urbana Consorciada, observando para tal, a regra estipulada
no artigo 34, §1º, do Estatuto da Cidade. (VILLELA LOMAR, 2004, p. 106

5. CONCEITO DE OPERAÇÃO URBANA


CONSORCIADA NO ESTATUTO DA CIDADE

Mukai (2007, p.13-14) conceitua a Operação Urbana Consorciada


como um tipo especial de intervenção urbana que objetiva a transforma-
ção estrutural de determinado setor de uma cidade. Nesse instrumento
urbanístico há o redesenho deste setor, podendo seu espaço ser público
ou privado; presenciam-se investimentos públicos e privados a fim de
realizar a execução, alteração, manejo e transação dos direitos de uso e
edificabilidade do solo e as obrigações de urbanização.
Sintetizando, tais Operações consistem em um instrumento de implan-
tação de determinado projeto urbano para uma área específica da cidade,
com o auxílio de parcerias entre diversos atores sociais: o proprietário,
o Poder Público, os investidores privados, os moradores e os usuários
permanentes.
No setor privado são integrantes quatro categorias sociais acima men-
cionadas, relembrando: proprietários, moradores, usuários permanentes
e investidores privados. (CARVALHO FILHO, 2009, p.220)
Carvalho Filho prossegue lecionando que “os proprietários são, como
regra, os maiores beneficiários das operações urbanísticas”. Tais proprietá-
rios são titulares do direito de propriedade sobre os imóveis e determinado
benefício poderão adquirir.
Já na categoria pertencente aos moradores, denominam-se estes como
sendo aqueles residentes no local em que será realizada a Operação, com
a ressalva de que não podem ser proprietários dos imóveis que serão
beneficiados com a implantação desta. Enquadram-se nessa categoria
os locatários e os moradores (comodatários, enfiteutas, usuários, usu-
frutuários, herdeiros e sucessores), ou seja, os residentes nesta área sem

910
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

possuírem o direito de propriedade. Também podem ser considerados os


familiares dos proprietários dos imóveis situados na área da Operação.
A seu turno, os usuários permanentes podem ser considerados aqueles
que fazem uso da área, porém não são proprietários, nem moradores.
A fim de que sejam considerados usuários permanentes, é necessário
averiguar a frequência em que estão presentes na área que será objeto
da realização da Operação. Como exemplos de usuários permanentes
podemos citar os trabalhadores, os servidores públicos, os estudantes, os
comerciantes, os prestadores de serviços e empresários das indústrias.
Sintetizando, todos aqueles que utilizam a área para o desempenho das
suas atividades profissionais ou estudantis.
Por fim, os investidores privados. Estes visam à obtenção de lucros,
próprio das atividades empresariais, podendo ser consorciados caso ob-
servem ao interesse econômico e o Poder Público consiga direcionar tais
investimentos realizados para efetuar ações e estratégias específicas da
urbanização. (CARVALHO FILHO, 2009, p.220-221)
Carvalho Filho (2009, p.218) define uma Operação Urbana Consorciada
como sendo um instrumento de política urbana, que representa um insti-
tuto criado e desenvolvido com base no regime de parceria, cujo modelo
auxilia inúmeras formas de atuação da Administração Pública. É impe-
rioso ressaltar que o regime de parceria exige a cooperação mútua entre
a Administração Pública (Setor Público) e os seus administrados (Setor
Privado). O intuito cooperativo é a base da Operação Urbana Consorciada.
Consoante o magistério de Carvalho Filho:

Quando se associam o Poder Público e o setor privado, seja


este representado pelas comunidades gerais, seja pelo segmen-
to produtivo empresarial, é possível alcançar, com êxito, fins
públicos, deles resultando benefícios para todos. (CARVALHO
FILHO, 2009, p.218)

O artigo 32, do Estatuto da Cidade, entende que a Operação Urbana


Consorciada é um tipo especial de intervenção urbana que objetiva a
transformação estrutural do ambiente urbano, com caráter de projeto ur-

911
bano. Este instituto possui como finalidade a realização de transformações
estruturais, com melhorias sociais e valorização ambiental.
Por transformações urbanísticas estruturais, podemos entender a
implantação dos serviços públicos, o calçamento das ruas, um sistema
adequado de escoamento do esgoto, a ampliação da rede de águas plu-
viais, os transportes, dentre outras.
Já como melhorias sociais, podemos citar, a título de exemplos, a ins-
talação de postos médicos, a implantação de novas escolas, o estímulo
à oferta de bens e serviços de consumo, a construção de centros habita-
cionais à população de baixa renda, e etc.
Finalmente, valorização ambiental é entendida como a preservação
do meio ambiente e dos recursos naturais, além da valorização econô-
mica, social, política, estrutural e arquitetônica, resultado da realização
do consórcio entre os diversos atores sociais.
Todavia, a Operação Urbana Consorciada que seja um projeto ou esteja
em fase de implantação deve respeitar as diretrizes gerais do Estatuto da
Cidade e da lei municipal específica aprovada pelo Poder Legislativo - o
plano diretor de cada Município. Vale destacar que as diretrizes gerais
englobam a garantia do direito a cidades sustentáveis, a justa distribuição
dos resultados do processo de urbanização, a recuperação dos investi-
mentos do Poder Público que resulte na valorização de imóveis urbanos,
a urbanização de áreas ocupadas pela população de baixa renda, a igual-
dade de condições entre os agentes públicos e privados na realização de
seus empreendimentos como um processo de urbanização, utilizando
como base o Princípio da Função Social da Propriedade Urbana. (VILLELA
LOMAR, 2003, p.250)
Gasparini (2002, p.180) conceitua Operação Urbana Consorciada
apoiando-se no Estatuto da Cidade. Para este jurista, o instrumento ur-
banístico em questão pode ser definido como um conjunto de medidas
urbanísticas que possuem a coordenação e a aplicação pelo ente municipal
e cuja execução é realizada com a participação de terceiros, possuindo
a finalidade de obter transformações urbanísticas estruturais, melhorias

912
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sociais e valorização ambiental em determinada área urbana que contém


disposição em uma lei específica com base no plano diretor.
O Poder Público municipal exerce uma administração pública, onde
há a necessidade de realizar empreendimentos a fim de obter benefícios
a uma população interessada. Observa-se que os recursos financeiros
disponibilizados ao custeio de uma obra pública são, frequentemente, em
quantias exorbitantes, tornando necessário para a consecução dos inves-
timentos almejados que se recorra aos dispositivos de gerenciamento de
grande complexidade. É viável, nesses casos, estabelecer uma parceria
com o setor privado para a realização de uma Operação com o intuito de
obter contrapartidas para a população diretamente interessada.
Mukai (2008, p.25) constata que a Operação Urbana Consorciada é
um conjunto de intervenções possíveis de serem implantadas em uma
região urbana específica, cujo objetivo é solucionar os diversos aspec-
tos da infraestrutura urbana. Por conseguinte, há uma autorização para
efetivar a construção, por meio de contrapartidas, visando à melhoria da
infraestrutura urbana na área a ser objeto de realização de uma Operação.
Enfim, a Operação Urbana Consorciada utiliza-se de mecanismos de
operação do Direito Urbanístico demonstrando ser um instrumento útil
ao planejamento das cidades. Em nosso entender, as diretrizes gerais do
Estatuto da Cidade elencadas na lei municipal específica - o plano diretor
- devem ser respeitadas na elaboração do plano de uma Operação e em
sua posterior implantação.
Dessa maneira, a Operação Urbana Consorciada é considerada um
conjunto de intervenções que possuem a coordenação do Poder Públi-
co municipal (o Poder Executivo), cuja definição se faz presente na lei
municipal específica - o plano diretor, com a finalidade de preservar,
recuperar ou transformar áreas urbanas específicas. Tais intervenções
urbanísticas podem ocorrer em obras públicas ou privadas, com os
agentes públicos e privados que atuam em sua realização, assumindo
obrigações determinadas.

913
6. FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E LEGAL
DA OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA

A Operação Urbana Consorciada possui como fundamento constitu-


cional, afim de que seja possível criar e disciplinar tal instrumento urba-
nístico, o Princípio da Função Social da Propriedade, remetendo ao artigo
5º, incisos xxII e xxIII, da Constituição Federal de 1988, que tratam sobre
a propriedade, tornando-a um direito fundamental e social.
Por conseguinte, o fundamento legal para regular a vigência deste
instituto está presente no Estatuto da Cidade, na Seção x, em seus artigos
32, 33 e 34. O fundamento legal possibilita ao Município a utilização da
Operação Urbana Consorciada como um instrumento de transformações
urbanísticas.
Gasparini (2002, p.181) compactua o entendimento de outros juristas
que entendem que o ente municipal possui a competência para realizar
a criação e a disciplina da Operação Urbana Consorciada, obtendo como
base legal o artigo 30, inciso VIII, instituído pelo legislador constituinte
de 1988. Tal artigo está descrito no Título III, que regula a organização do
Estado, no Capítulo IV, o qual trata da competência dos Municípios. O inciso
supracitado dispõe que compete ao Município “promover, no que couber,
adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do
uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”.

7. OBJETIVO E CARACTERÍSTICAS DA OPERAÇÃO


URBANA CONSORCIADA NO ESTATUTO DA CIDADE

Consoante o artigo 32, § 1º, do Estatuto da Cidade, o objetivo da


realização de uma Operação Urbana Consorciada é “alcançar em uma
área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a va-
lorização ambiental”.
Registre-se que o Estatuto dispõe que a Política Urbana possui como
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade

914
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

e da propriedade urbana. Maricato e Ferreira (2002, p.229) entendem que


esta é uma característica presente na Operação Urbana Consorciada,
em que há uma outorga onerosa com caráter especial em uma área de-
terminada, podendo haver um conflito entre os interesses que a Lei visa
proteger e o mercado imobiliário excludente, observando o descrito no
artigo 34, do Estatuto da Cidade.
Verifica-se que os Certificados de Potencial Adicional de Construção
são lançados em uma Operação específica, com o Poder Público exercen-
do o seu controle. São títulos que possuem um objetivo social, visto que
podem ser vendidos a fim de ser possível a reurbanização de uma favela,
a recuperação de cortiços, ou seja, seus recursos podem realizar melhorias
em toda uma cidade. (MARICATO e FERREIRA, 2002, p.230)
A Operação Urbana Consorciada faz a iniciativa privada realizar o fi-
nanciamento de recuperação em áreas onde ocorrerá a própria Operação,
possibilitando a venda do direito ao adicional de construção. (MARICATO
e FERREIRA, 2002, p.230)

8. OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA E O PLANO DIRETOR

O Estatuto da Cidade dispõe que a Operação deverá ser planejada e


executada utilizando como base a lei do plano diretor. A aprovação deve
ocorrer se no projeto da Operação Urbana Consorciada estiver estipulado
que possui como meta a realização de transformações estruturais, visto
que é uma exigência fundamental de ordenação da cidade existente na
lei do plano diretor.
A lei municipal específica da Operação deve estar de acordo com as
diretrizes delineadas no plano diretor. Para o urbanista Villela Lomar (2003,
p. 253-254), o plano diretor deve apresentar os elementos básicos que
possibilitem a sua clara identificação, a especificação das transformações
estruturais objetivadas, as melhorias sociais e ambientais que se preten-
dam concretizar, e, se possível for, apresentar a enumeração das ações,
dos programas e dos projetos que põem em prática as suas diretrizes e
as do Estatuto da Cidade.

915
Todavia, averba Villela Lomar (2003, p.258) que a Operação Ur-
bana Consorciada pode ocorrer voluntariamente por empreendedo-
res privados. Porém, o Poder Público obtendo recursos financeiros,
está autorizado a promover o ordenamento do território, realizando
empreendimentos de urbanização ou de renovação urbana a fim de
concretizar as diretrizes existentes na lei do plano diretor, respeitando
o preceito constitucional que possui como objetivo, ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade, arrolado no “caput” do
artigo 182, da Carta Política de 1988.

9. CONTRAPARTIDAS E BENEFÍCIOS URBANÍSTICOS

As contrapartidas, nas palavras de Prestes (2009, p.181), estão pre-


sentes em obras públicas que são resultado das finalidades da Operação
Urbana Consorciada, na destinação de bens imóveis realizados pela
mesma Operação a fim de cumprir as finalidades objetivadas, na des-
tinação de habitação de interesse social e na oferta de lotes com preço
compatível com a renda da população necessitada, bem como pode
resultar em uma contrapartida de natureza financeira, com destino à
conta relacionada à Operação.
Gasparini (2002, p.183) conceitua contrapartida como uma compensa-
ção feita em dinheiro, bens, construções ou em serviços. Exemplificando,
o beneficiário poderá realizar um pagamento de uma quantia em dinheiro
pela ampliação do coeficiente de aproveitamento ou realizar uma constru-
ção de uma obra de interesse público ou de interesse social, ou executar
um serviço de interesse público.
Seguindo com essa perspectiva, Villela Lomar (2003, p.270) afirma que
as leis do plano diretor ou a lei municipal específica estão aptas a realizar a
autorização para aprovar benefícios urbanísticos capazes de serem execu-
tados por investidores e proprietários imobiliários a fim de desenvolverem
as obras e aos serviços essenciais à Operação Urbana Consorciada uma
requalificação urbanística disposta na lei do plano diretor.

916
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Villela Lomar (2003, p.272) expõe com clareza que a contrapartida


pode resultar na autorização legal para a instituição de Certificados de
Potencial Adicional de Construção e na determinação da aplicação dos
recursos na área onde se enquadra a Operação citada no artigo 33, § 1º,
do Estatuto da Cidade.

10. LICENÇAS E AUTORIZAÇÕES E CERTIFICADO


DE POTENCIAL ADICIONAL DE CONSTRUÇÃO

Escrevem Carvalho Filho e Fortini (2008, p.253), sustentando que na


realização de uma Operação Urbana Consorciada, estão presentes os atos
de consentimento estatal em que o Poder Público demonstra que concorda
que os particulares realizem o exercício das atividades de seu interesse.
Entre tais atos estão presentes as licenças e as autorizações.
Há a regulamentação no artigo 34, “caput”, § 1º e § 2º, do Estatuto da
Cidade, de que o Município possui a competência para expedir Certifica-
dos de Potencial Adicional de Construção, os quais serão alienados em
leilão ou utilizados diretamente no pagamento das obras necessárias à
Operação em questão.
Trata-se de pagamento em títulos públicos, visto que possuem um
valor, valendo como se moeda corrente fosse, podendo ser um meio de
pagamento efetuado pelo Município aos terceiros responsáveis pela exe-
cução das obras. (CARVALHO FILHO e FORTINI, 2008, p.257)
Faz-se mister ressalvar que a livre negociabilidade de tais Certificados
está presente no artigo 34, § 1º, do Estatuto. A seu turno, a conversão dos
Certificados em direito de construir só poderá ser consumado na área em
que ocorrer a Operação.
Segundo estatui Carvalho Filho e Fortini (2008, p.259), a construção que
for realizada acima do coeficiente de aproveitamento básico dependerá
de duas leis para obter a aprovação. Uma lei aprovará o plano diretor, o
qual ficará responsável pela fixação das áreas em que a construção está
sujeita a ultrapassar o limite. Outra lei é uma lei específica, a qual possui

917
a competência para realizar a aprovação da Operação, requisito exigido
pelo artigo 34, §2º, do Estatuto.
Consoante Gasparini (2002, p.186), a lei específica que aprovar a
Operação a fim de ser realizada em determinada área da cidade, poderá
conter previsão, regulamentação e autorização à emissão dos Certificados.
Tais títulos urbanísticos são concedidos em razão da Operação Ur-
bana Consorciada envolver construções acima dos índices urbanísticos
considerados dentro da normalidade para determinada área da cidade.
Para a concretização do exercício do direito, é conferido pelo Município,
que cobra certo valor, obtido em função das vantagens auferidas pelo
beneficiado. (GASPARINI, 2002, p.186)
Di Pietro (2006, p.237 apud CARVALHO FILHO e FORTINI, 2008, p.253)
enumera como espécies de atos de consentimento estatal, as licenças e as
autorizações. Explica a autora que licenças são atos unilaterais e vincula-
dos em que a Administração faculta o exercício de uma atividade aos que
preenchem os requisitos legais; e que autorizações são atos unilaterais e
discricionários que possuem um consentimento do Poder Público a fim
de que o interessado obtenha uma autorização para realizar o exercício
de determinada atividade.
O Estatuto da Cidade, por sua vez, dispõe que tais Certificados podem
ser utilizados no pagamento das obras que serão realizadas através da
Operação. Trata-se de pagamento em títulos públicos, visto que possuem
um valor, valendo como se fosse moeda corrente, podendo ser um meio
de pagamento efetuado pelo Município aos terceiros responsáveis pela
execução das obras. (CARVALHO FILHO e FORTINI, 2008, p.257)

11. A APLICAÇÃO DO INSTRUMENTO URBANÍSTICO


ADEqUADO-OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA-à
REALIZAÇÃO DAS OBRAS PARA A COPA DO MUNDO
DE 2014: O CASO DE PORTO ALEGRE -RS

Em época de realização de um megaevento esportivo, tal como a


Copa do Mundo de 2014, estabelece-se a necessidade de oferecer um
amplo debate político-jurídico, com o intuito de propiciar a inaugura-

918
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ção de um efetivo processo participativo, onde haverá a análise dos


conjuntos de intervenções e medidas propícias a serem implantadas
nas cidades-sede dos jogos.
Tais intervenções e medidas possíveis de serem aplicadas a fim de oca-
sionar a realização da Copa do Mundo de 2014, devem sofrer uma análise
de planejamento urbanístico de médio e longo prazo. Entende-se que os
investimentos em recursos públicos devem se dar em obras adequadas
ao capital das cidades-sede, visando ao interesse público.
Para tanto, o Poder Público deve estabelecer um planejamento demo-
crático envolvendo a participação da sociedade atingida com a realização
das obras para a concretização da Copa do Mundo de 2014. O método
de planejamento urbanístico de médio e longo prazo mais viável para a
realização deste evento esportivo mundial é a utilização do instrumento
urbanístico - Operação Urbana Consorciada - prevista no Estatuto da Ci-
dade servindo de apoio ao Poder Público para a realização de melhorias
na infraestrutura urbana, possibilitando alcançar a plena acessibilidade
nas cidades beneficiadas com tal megaevento esportivo.
Entende-se por plena acessibilidade o livre trânsito nas cidades a todos
os residentes e aos turistas. É cabível a observação de que tal acessibi-
lidade é direito de todos, independentemente do meio social em que se
esteja inserido, devendo estar presente o respeito ao direito à moradia e ao
usufruto de uma cidade com infraestrutura adequada. Em se tratando de
infraestrutura, é importante a existência de aeroportos que comportem a
elevação na demanda de turistas (em época de ocorrência de megaeventos
esportivos, tal como a futura Copa do Mundo), de vias terrestres onde haja
o livre trânsito de pedestres e dos diversos meios de transporte, de uma
rede hoteleira de boa qualidade, de restaurantes, de shopping-centers, de
estabelecimentos comerciais, de supermercados, etc.
É imperioso que, nas cidades-sede de uma Copa do Mundo, a violên-
cia seja efetivamente combatida pelos órgãos públicos e privados; que a
Educação obtenha bons índices; que o Sistema de Saúde seja adequado
à demanda, havendo vaga nos leitos hospitalares, profissionais nos pos-

919
tos de saúde; e que a Segurança seja efetiva, com a implantação de um
adequado sistema prisional, com a existência de uma boa administração
pública e com a Justiça sendo eficiente.
A Operação Urbana Consorciada – é um instrumento definido na legis-
lação infraconstitucional (o Estatuto da Cidade), possuindo amparo nas
normas e princípios constitucionais, possibilitando um efetivo controle da
sociedade acerca das intervenções urbanas efetuadas com base na utili-
zação do capital privado, concomitantemente com o capital público. Há a
possibilidade de estabelecimento de uma Parceria Público-Privada para a
consecução de investimentos nestas obras, sendo o ideal para a realiza-
ção de um megaevento esportivo como será a Copa do Mundo de 2014.
Caso o Poder Público realize uma Operação, o capital investido pela
iniciativa privada deverá ser investido na realização das obras nas áreas
urbanas, possibilitando além de um efetivo controle social, a garantia da
segurança jurídica com o capital investido pelos particulares obtendo um
retorno satisfativo à população residente nas cidades-sede e aos turistas
que nelas transitarem.
Importa ressaltar que nos estádios do Beira-Rio (time sul-riograndense
– Sport Club Internacional), em Porto Alegre, e da Arena da Baixada (time
paranaense – Atlético – PR), em Curitiba, as obras de construção e reforma
na infraestrutura serão realizadas através do patrimônio privado. Isto é,
as arenas restantes terão suas obras custeadas pelo patrimônio governa-
mental3. (COPA DO MUNDO, 2010)
A revista Veja, já referida, disponibiliza o dado de que, atualmente,
o custo para investir em obras para a realização do Mundial, em onze
estádios(sendo nove públicos e dois privados), estima-se em torno de 5,1
bilhões, ou seja, 187 % a mais do que a previsão realizada pela Confede-
ração Brasileira de Futebol (CBF), em 2007, quando o Brasil foi escolhido
para sediar a Copa do Mundo de 2014. (VEJA, 2010)
O Tribunal de Contas da União (TCU) - órgão de fiscalização das contas
da Federação, conforme disposição constitucional - disponibiliza através
de meio eletrônico, a prestação de determinadas informações relevantes

920
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

à sociedade. Acerca da situação do estádio do Beira-Rio, localizado em


Porto Alegre, demonstra-se os seguintes dados: a inexistência de recur-
sos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social)
com o intuito de prestar auxílio na reforma deste estádio; as obras estão
sendo custeadas com recursos da iniciativa privada, incluindo o Sport
Club Internacional; o estádio que será sede do Mundial em Porto Alegre,
realizou a previsão inicial de investimentos em torno de R$ 130 milhões;
consoante o relatório do SINAENCO (Sindicato Nacional das Empresas
de Arquitetura e Engenharia Consultiva), o estádio do Beira-Rio iniciou
a demolição de sua arquibancada em dezembro de 2010; o Ministério do
Esporte, em seu relatório de fevereiro de 2011, dispõe que a obra está em
situação de “drenagem e cobertura”. (O TCU... , 2011)
Raquel Rolnik refere que estão obtendo aprovação inúmeras excep-
cionalidades para a realização da Copa do Mundo de 2014, relativas à
Lei de Licitações, bem como à isenção de impostos, e a desnecessidade
de determinadas garantias exigidas em épocas normais, tais como a rea-
lização de alterações no plano diretor dos Municípios, não perpassando
pelos processos normais de alteração. Tal quadro excepcional está sendo
votado pelas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e o Congresso
Nacional por meio da utilização das Medidas Provisórias (que tem força de
lei, mas não são leis), decretadas pelo Poder Executivo Nacional. (ROLNIK,
2011) (grifamos)
Tais reformas e ampliações deveriam ter sido realizadas por meio de
uma Operação Urbana Consorciada, com a instituição de parcerias entre
os Poderes Público e Privado, e consultando a população diretamente
interessada, com o objetivo de estabelecer um procedimento democrático.
Cafrune e Gonçalves (2009, p.8) atentam para o fato de que, em 29
de dezembro de 2008, houve uma alteração na legislação permitindo a
construção de um empreendimento nomeado de “Gigante para Sempre”,
cuja titularidade é do time sul-riograndense Sport Club Internacional.
Prosseguem os autores informando que a alteração foi possível com a
Lei Complementar nº. 609, de 8 de janeiro de 2009, onde dispôs a respeito

921
do “aumento dos índices de construção e das áreas passíveis de receberem
edificações”, com a ressalva de que sejam cabíveis tanto às atividades
comerciais quanto às de lazer, sendo expressamente vedada a utilização
para fins residenciais4. (CAFRUNE e GONÇALVES, 2009, p. 9)
A razão para tal alteração é possibilitar a modernização do complexo
esportivo Beira-Rio, a fim de observar às exigências impostas pela FIFA
a fim de que seja possível ao Sport Club Internacional ter a sua arena
utilizada como sede na Copa do Mundo de 2014.
A Prefeitura Municipal de Porto Alegre elaborou o Projeto de Lei Com-
plementar nº. 608 de 2009, aprovado pela Câmara dos Vereadores, com o
mesmo fundamento de possibilitar a modernização do estádio de futebol
com vistas à Copa do Mundo de 2014. Esta Lei Complementar discorre
a respeito de outra área em que o Sport Club Internacional possui a pro-
priedade, e as alterações objetivam elevar o valor de mercado do imóvel,
ampliando a taxa de ocupação e dos índices de aproveitamento da área,
permitindo a sua destinação ao uso residencial qualificado, com a ale-
gação de realizar vendas a fim de obter recursos para serem investidos
na construção da cobertura da arena. (CAFRUNE e GONÇALVES, 2009)
A Exposição de Motivos que possibilitou a alteração no padrão cons-
trutivo alega:

Não somente por ser urbanisticamente exequível, na medida em


que se considera o porte da área – suficiente para absorvê-lo
sem prejuízo à paisagem, à mobilidade e à estruturação urbana
da região – mas, por observar o ordenamento urbano vigente –
indutor que é à renovação das atuais tipologias edilícias residen-
ciais unifamiliares em edificações multifamiliares, por permitir
valorizar o setor através da qualificação urbano-ambiental, e,
especialmente, na perspectiva do interesse público, pela oportu-
nidade de somar, para a realização da Copa do Mundo 2014 em
Porto Alegre. (PORTO ALEGRE, 2008, p.2 citado por CAFRUNE e
GONÇALVES, 2009, p.10)

Cafrune e Gonçalves (2009, p. 10) opinam que há uma contrariedade


quando a fundamentação utilizada para modificar a legislação alega
que as alterações mantêm as condições de uso e não ocorrerá prejuízo
à mobilidade e à paisagem. A fundamentação afirma também que, tal

922
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

proposta respeita o ordenamento jurídico ao possibilitar a transformação


e a melhora das condições de vida na região em que está situada a área
pertencente ao Sport Club Internacional. A seguir o trecho em que está
presente tal declaração:

Em contraste com as externalidades negativas atuais geradas por


sua subutilização, o referido quarteirão oportunizará a renovação
e a reestruturação urbana do setor, através da implantação de
enclave com característica e personalidade próprias – novo e
qualificado cenário urbano com repercussões positivas para toda
a região. (PORTO ALEGRE, 2008, p. 2 e 3 citado por CAFRUNE e
GONÇALVES, 2009, p.10)

Há, também, grupos sociais que percebem a possibilidade de surgimen-


to de impactos socioambientais. Organizações que promovem resistência
institucional e social aos projetos, em relação às alterações legislativas a
fim de que seja possível a ocorrência da Copa do Mundo de 2014, alegam:

A paixão pelo futebol está sendo usada em nossa cidade como


chantagem para permitir a flexibilização de normas urbanísticas,
auferindo grandes vantagens para poucos empreendedores, diri-
gentes de futebol e políticos oportunistas e trazendo junto muitos
prejuízos ao ambiente natural e ao conforto urbano. (...) Não so-
mos contra a copa (...). Queremos o respeito às leis e às pessoas,
das presentes e das futuras gerações. Não aceitamos o uso da
paixão popular pelo esporte para chantagear a opinião pública
e então conceder benefícios a empreendimentos privados, com
visíveis prejuízos à comunidade e ao ambiente natural. (RSUR-
GENTE, 2008 citado por CAFRUNE e GONÇALVES, 2009, p.11)

A fim de atender às estratégias de planejamento, Porto Alegre - RS,


tornou - se objeto de políticas de reestruturação, havendo investimentos
de organizações empresariais com a atuação da gestão pública. Tal fato foi
possível com a flexibilização das normas, da realização das obras públicas,
da implementação de políticas atrativas desta forma de investir, com o
auxílio da orientação e financiamento dos organismos internacionais,
tais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO). (CAFRUNE e GONÇALVES, 2009)

923
Em suma, houve a flexibilização da legislação urbanística e o não
cumprimento à legislação ambiental.
O Jornal Zero Hora, no dia 29 de outubro de 2008, publicou uma ma-
téria intitulada “Nova Secretaria Para a Copa de 2014 – Entrevista de José
Fortunati”. Tal matéria relata acerca das exigências estabelecidas pela FIFA
a fim de que a Copa do Mundo de 2014 possa ser realizada no Brasil. O
Jornal Zero Hora deu ênfase à cidade de Porto Alegre - RS. O vice-prefeito
eleito de Porto Alegre, José Fortunati,informa o que é exigido pela FIFA a fim
de que Porto Alegre seja sede do Mundial, merecendo transcrição literal:

No Caderno de Encargos, a FIFA listou exigências (muitas sub-


jetivas) de como os municípios devem se preparar para a Copa
e submeteu autoridades a questionário:
Rede hoteleira
A entidade exige quantidade e qualidade de leitos em hotéis. O
total não foi especificado.
Saneamento e ambiente
São severas e rigorosas as exigências com relação a saneamento
básico, mas ainda não há parâmetros definidos. O projeto que
aumenta a capacidade de tratamento da rede de esgoto despejado
no Guaíba vem sendo usado como trunfo pela administração
municipal. A FIFA exige medidas de proteção ao ambiente (prin-
cipalmente o ar) na Copa.
Epidemias e terrorismo
A FIFA mostrou muito interesse em saber se Porto Alegre sofreu
algum tipo de epidemia (como a de dengue, por exemplo) ou atos
de terrorismo, o que deve servir de alerta para ações preventivas
nesse sentido.
Espaço aéreo
A entidade quer garantias de que o espaço aéreo dos estádios
será fechado durante os jogos para evitar publicidade indesejada.
Transporte de qualidade
A desobstrução e ampliação de vias que levam aos estádios são
exigências da entidade internacional, que questionou as autori-
dades locais sobre a existência ou não de metrô.
Isenção de impostos
Entre as exigências mais incomuns está a isenção de tributos
sobre bens e serviços. Se a entidade comprar um carro para
transportar autoridades, por exemplo, não pagaria ICMS. (FOR-
TUNATI..., 2008)

No Jornal do Comércio foi divulgada a matéria “Ministro das Cidades


espera PAC da Copa até metade do mês”, onde há a informação de que o
levantamento realizado pelo mesmo jornal demonstra que a Copa do Mun-

924
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do de 2014 poderá gerar aproximadamente R$ 6 bilhões em investimentos


para a cidade de Porto Alegre e sua Região Metropolitana, conforme citado
por Echeverria (2010, p.163).
Echeverria (2010, p.167) realiza oportuna observação ao destacar que
em Porto Alegre deve-se realizar “intervenções estruturantes, principal-
mente no que diz respeito à mobilidade urbana”, fazendo a ressalva de que
“este foi o item mais exigido desde o início do processo de candidatura”. Em
certo momento, a Prefeitura de Porto Alegre, possibilitou a liberação para
“o início das obras no Estádio Beira-Rio, através das licenças ambientais,
já que, sem estas, nenhum clube poderia realizar qualquer intervenção”.
Neste caso, dever-se-ia utilizar o instrumento urbanístico do Estudo Prévio
de Impacto de Vizinhança (EIV), requisito exigido para a realização de
uma Operação Urbana Consorciada.
Lecionam Domingues, Betarelli Junior e Magalhães (2011, p. 4), “O
custo do capital é maior em países em desenvolvimento, ou seja, dinheiro
gasto no evento representa dinheiro não gasto em outras áreas, tal como
o sistema de saúde”. Prosseguem opinando, “Outro aspecto diz respeito ao
financiamento dos investimentos requeridos pelos eventos com recursos
públicos, o que pode gerar redução de outras despesas ou elevação da
dívida pública”.
Conforme Swinnen e Vandemoortele (2008) apud Domingues, Betarelli
Junior e Magalhães (2011, p. 4),

A principal questão posta é se o financiamento dos mega-eventos


com recursos públicos promove um retorno mais eficiente quan-
do comparado com retornos de outras formas de investimentos,
como, por exemplo, no sistema de saúde e de educação. (SWIN-
NEN e VANDEMOORTELE, 2008).

É pertinente realizar a observação de que a Copa do Mundo de 2014


oportunizará uma ampla visibilidade ao Brasil no cenário internacional,
incentivando o turismo, ampliando os negócios e intensificando as re-
lações internacionais e regionais. Os órgãos governamentais, em todas
as suas esferas, possuem a responsabilidade social de prestar contas aos

925
cidadãos dos recursos a serem utilizados à realização das obras para a
Copa do Mundo de 2014, possibilitando a participação popular. (grifamos)
Impõe-se a implantação de um efetivo sistema de fiscalização dos
investimentos realizados nas obras a fim de possibilitar a ocorrência da
futura Copa do Mundo, no Brasil. Sugere-se a presença da iniciativa privada
neste processo, estabelecendo um regime democrático de participação.

12. CONCLUSÕES GERAIS

Contudo, analisando o Estatuto da Cidade observa-se que o instrumento


urbanístico adequado à realização das obras para a Copa do Mundo de
2004, em Porto Alegre, seria a Operação Urbana Consorciada (instrumento
previsto na Lei supramencionada), o que não foi realizado, podendo trazer
consequências negativas para a cidade de Porto Alegre.
Por consequências negativas em face da não utilização do instrumen-
to urbanístico adequado à realização das obras para a Copa do Mundo
de 2014, podemos destacar o risco de não haver a justa distribuição dos
benefícios e ônus do processo de urbanização e a existência de um pla-
nejamento urbano municipal ineficiente. Além disso, não haverá a efetiva
parceria e coordenação entre os setores público (Poder Público) e privado
(iniciativa privada) municipais, concomitante com a participação popular
(proprietários, moradores e usuários permanentes), além de não ocorrer
significativas melhorias sociais e na infraestrutura urbana.
Haverá dificuldade em realizar a devida fiscalização dos investimentos
nas obras, dando margem aos desvios burocráticos da própria função
administrativa com a excessiva liberação das verbas pelo Poder Público.
É imperioso que o Poder Público municipal efetivamente exerça a sua
função de controle em sua atuação. Entende-se ser necessário haver a
compatibilidade entre os interesses público e privado, originando a exis-
tência de um intuito cooperativo. É imprescindível a presença do capital
de investimento público e privado, com o intuito de ocasionar o desenvol-
vimento das atividades econômicas. Para tanto, deve haver a exigência

926
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de uma contrapartida financeira ou de outra natureza, a fim de instituir


benefícios urbanísticos.
Para bem finalizar, opinamos que, com a não realização de uma
Operação Urbana Consorciada, na cidade de Porto Alegre, haverá a não
concretização das políticas públicas urbanas, pois a iniciativa privada será
atuante, no entanto, não haverá a efetiva participação popular. Nesse caso,
não se concretizará a gestão democrática da cidade, e consequentemente,
a justiça social. (grifamos)

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NOTAS

1 Fernanda Peixoto Goldenfum é Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS, pós-graduanda em
Direito Público- Direito Municipal pela FMP/ESDM e integrante do Grupo de Pesquisa e Extensão em Direito
Urbanístico da FMP. fernandagoldenfum@hotmail.com
2 Embora a imprensa escrita não seja considerada fonte científica, trazemos as notícias inseridas no presente
trabalho como mera ilustração do debatido.
3 Segundo informações orais prestadas por Procuradora do Município de Porto Alegre, as referidas leis foram
objeto de questionamento por ação popular.

930
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Considerações críticas
sobre as zonas especiais
de interesse social

Cíntia de Freitas Melo1


Luiz Fernando Vasconcelos de Freitas2

1- INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda a temática das Zonas Especiais de Inte-


resse Social e sua relação com a efetivação dos princípios de função social
da propriedade e da cidade. Num primeiro momento buscará conceituar
e situar o instrumento dentro do contexto de planejamento urbano e da
legislação urbanística.
As chamadas ZEIS, conforme será demonstrado adiante integram o
zoneamento das cidades, demarcando determinadas áreas, ocupadas
ou não, para cumprimento de função social de moradia de população de
baixa renda.
Delimitado o conceito do instrumento analisado, apresentaremos a
discussão da sua efetividade diante do direito à moradia. Essa efetividade
está relacionada intimamente aos mecanismos de participação popular e
reforma urbana, desde os procedimentos legislativos para demarcação,
até o controle de sua aplicabilidade.
Percebemos no entanto, que há um distanciamento entre previsão le-
gislativa e uma real concretização das ZEIS no espaço, diante disso, não
só apresentamos alguns fatores que possam causar tal problema, como
também apresentamos propostas para solucionar este problema e ampliar
a participação da sociedade.
Tais sugestões que serão apresentadas no texto, como, por exemplo,
facilitar a proposição da demarcação de áreas já ocupadas, visam con-

931
cretizar os objetivos dos movimentos por reforma urbana e construir uma
cidade mais justa.

2- CONCEITUAÇÃO

As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) são um instrumento


de demarcação urbanística que integra o zoneamento das cidades. O
zoneamento é uma concepção substancial de planejamento urbano,
que diz respeito ao uso, parcelamento e ocupação do solo, integrando,
desta forma, uma ocupação territorial funcional do espaço, efetivando o
princípio da função social da propriedade urbana. Nas palavras do jurista
José Afonso da Silva:

O zoneamento pode ser entendido como um procedimento ur-


banístico destinado a fixar os usos adequados para as diversas
áreas do solo municipal. Ou: destinado a fixar as diversas áreas
para exercício das funções urbanas elementares.3

O objetivo das ZEIS, objeto de estudo deste trabalho, é a democrati-


zação fundiária nos municípios, por meio da delimitação de áreas com
diretrizes específicas que garantam moradia para família de baixa renda.
As áreas demarcadas como ZEIS podem ser assentamentos já constituídos,
atuando, deste modo, como instrumento na regularização do território em
consonância com as disposições das Leis de Uso, Parcelamento e Ocu-
pação do Solo; bem como em áreas vazias, protegendo da especulação
imobiliária, por meio do aumento da oferta de terrenos para a habitação
de interesse social.
O instrumento das ZEIS está previsto no artigo 4º, inciso V, alínea “f”,
da lei 10.257/2001 (Estatuto das Cidades), como instrumento de política
urbana e regularização fundiária.
As ZEIS, assim, se prestam a duas finalidades. Uma ligada à políti-
ca de desenvolvimento urbano ao reservar terrenos ociosos, situados
em regiões que contém infraestrutura e equipamentos urbanos, para
realização de projetos de moradia de interesse social. E outra ligada à
regularização de áreas urbanas marcadas por processos de ocupação

932
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

informais do espaço e que são áreas marcadas pela situação de insegu-


rança na posse dos moradores.
Os instrumentos de combate à inércia de proprietários que mantém
a propriedade ociosa previstos no Estatuto das Cidades, tais como IPTU
progressivo no tempo, edificação compulsória e desapropriação sanção,
não estão satisfatoriamente regulamentados no âmbito das municipali-
dades, quando há a previsão na legislação local. Vejamos:

Da mesma forma, quase a totalidade dos relatórios aponta


para a ampla incorporação dos instrumentos de política urbana
instituídos pelo Estatuto da Cidade, feita, porém, de maneira
superficial e genérica. Esses instrumentos encontram-se basi-
camente listados, sem aprofundamento, seguindo os mesmos
parâmetros da lei federal e remetendo as regulamentações para
leis específicas. Em geral, os instrumentos não são autoaplicáveis
e apenas uma minoria define as áreas passíveis de uso dos mes-
mos. Faltam metas e prazos para regulamentações posteriores,
e poucos criam os vínculos com o orçamento municipal. Essa
constatação mostra ainda que a Resolução nº 34 do Conselho
Nacional das Cidades, definidora do conteúdo mínimo dos Planos,
de fato não foi res- peitada. Consequentemente, a aplicação dos
instrumentos após a aprovação da lei do Plano Diretor é obser-
vada apenas em raros casos.4

Extrai-se do relatório Os planos diretores municipais pós-estatuto da


cidade: balanço crítico e perspectivas 5 que o instrumento que mais aparece
nos Planos Diretores Municipais são as ZEIS, demonstrando sua relevân-
cia na efetivação de uma política habitacional alinhada aos interesses
populares e no combate da especulação imobiliária que retém grandes
vazios urbanos. É, portanto, um instrumento possível e viável de garantia
de um planejamento urbano democrático, e de combate à propriedade
que viola os preceitos constitucionais da política urbana marcada pelo
funcionalismo da terra urbana.

2 – ZEIS E DIREITO à MORADIA

Nos casos de demarcação como ZEIS de assentamentos informais já


existentes, torna-se fundamental para a regularização fundiária de áreas
ocupadas ilegalmente. Frisa-se que as ocupações em desconformidade

933
com as proposições de Leis de Uso e Ocupação do Solo são a regra nas
cidades brasileiras e não a exceção. O jurista e urbanista Edésio Fernandes
assim se manifesta sobre a questão:

Se considerarmos as formas de acesso à terra urbana e constru-


ção de moradia, entre 40% e 80% da população urbana das gran-
des cidades brasileiras vivem ilegalmente, sendo que o mesmo
fenômeno tem crescido em cidades de porte médio e mesmo em
cidades pequenas. (...)
O ilegal é a maneira por excelência de organização da sociedade
urbana no Brasil hoje. Se há 80% das pessoas vivendo ilegalmente,
o que está em xeque é a própria ordem jurídica, que exclui toda
esse enorme parcela da população do reconhecimento de muitos
dos direitos básicos e universais.6

Diante da situação de irregularidade apresentada, que se torna parti-


cularmente perversa no que diz respeito ao solo ocupado pelos pobres,
concluímos que no Brasil, as cidades são produzidas e reproduzidas sob o
manto da ilegalidade. O atual processo de produção das normas jurídico-
-urbanísticas não consegue captar o quadro de produção de moradias nas
cidades e transformar a realidade da informalidade.
Através da efetivação desta zona especial, é possível trazer à legalidade
a urbanização levada a cabo por centenas de milhares de famílias pobres
que acessam o direito à moradia pela via da ocupação irregular do terri-
tório. No estabelecimento de diretrizes de uso, parcelamento e ocupação
do solo que estejam consonantes com a dinâmica social do local, traz-se
para a esfera jurídico-urbanística a busca pelas respostas adequadas às
demandas da comunidade.
Frisa-se que as ZEIS se inserem no campo das políticas fundiárias re-
distributivas e na ampliação do acesso à terra para moradia de interesse
social, na sua regulamentação, portanto, deve-se considerar os conflitos
por terra que se desenvolvem no espaço urbano e a realidade de desigual-
dade das condições de renda e sua correlação com o desenvolvimento do
mercado imobiliário urbano.
Nesse sentido, afirma-se que esse instrumento está inserido no contexto
da luta pelo direito à cidade, pois entende-se que esse direito é forjado nas

934
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

contradições existentes no espaço urbano entre aqueles que não podem


exercitar seus direitos nas cidades, notadamente os direitos sociais, e entre
aqueles que buscam transformar as cidades em espaços privatizados, que
sirvam apenas a interesses particulares.
Convém asseverar que no ano de 2009 o geógrafo David Harvey fez
a palestra inaugural do seminário Lutas pela reforma urbana: o direito à
cidade como alternativa ao neoliberalismo e assim se manifestou sobre o
direito à cidade:

Eu tenho trabalhado já há algum tempo com a ideia de um direito


à cidade. Eu entendo que o direito à cidade significa o direito de
todos nós a criarmos cidades que satisfaçam as necessidades hu-
manas, as nossas necessidades. O direito à cidade não é o direito
de ter - e eu vou usar uma expressão do inglês - as migalhas que
caem da mesa dos ricos. Todos devemos ter os mesmos direitos
de construir os diferentes tipos de cidades que nós queremos
que existam. O direito à cidade não é simplesmente o direito ao
que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade
em algo radicalmente diferente. Quando eu olho para a história,
vejo que as cidades foram regidas pelo capital, mais que pelas
pessoas. Assim, nessa luta pelo direito à cidade haverá também
uma luta contra o capital.7

Nessa linha de intelecção as concepção das ZEIS são uma forma de


transformar as cidades em espaços mais justos e igualitários. São ins-
trumentos de garantia não apenas do direito à moradia, mas do direito à
cidade para populações de baixa renda que vivem em situação de inse-
gurança na posse ou que compõe o déficit habitacional.
No entanto, passados mais de dez anos da promulgação do Estatuto
das Cidades e quase uma década do vencimento do prazo limite para os
Municípios elaborarem seus Planos Diretores, nos encontramos ainda,
diante de diversos problemas de efetividade do instrumento.

3- PARTICIPAÇÃO POPULAR E ZONEAMENTO

Não há que se falar em efetivação do direito à cidade sem que haja


uma Reforma Urbana real. Para garantir o direito à cidade das maiorias

935
pobres é necessário romper com a lógica da cidade legal e da cidade
ilegal. Nessa toada, Nelson Saule Júnior, resgatando o conceito de Re-
forma Urbana proposto pelo Movimento Nacional pela Reforma Urbana,
assim registra:
Em 1986, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana define o
conceito da reforma urbana como uma nova ética social, que
condena a cidade como fonte de lucros para poucos em troca da
pobreza de muitos. Assume-se, portanto, a crítica e a denúncia do
quadro de desigualdade social, considerando a dualidade vivida
em uma mesma cidade: a cidade dos ricos e a cidade dos pobres; a
cidade legal e a cidade ilegal. Condena a exclusão da maior parte
dos habitantes da cidade determinada pela lógica da segregação
espacial; pela cidade mercadoria; pela mercantilização do solo
urbano e da valorização imobiliária; pela apropriação privada dos
investimentos públicos em moradia, em transportes públicos, em
equipamentos urbanos e em serviços públicos em geral.8

No âmbito das Reforma Urbana, as ZEIS se colocam no sentido de


delimitar áreas para a construção de empreendimentos imobiliários para
população de baixa renda combatendo a especulação imobiliária e re-
gularizar áreas informais de ocupação do solo urbano reduzindo, dessa
maneira, o fosso entre a cidade legal e a cidade dita ilegal. Acontece que
tal instrumento somente pode ser instituído por lei municipal específica
ou pelo Plano Diretor. Como destaca Nelson Saule Júnior:

As ZEIS devem ser instituídas por lei municipal, que pode ser a
lei que institui o Plano Diretor, ou por lei municipal específica. A
lei deve conter os perímetros das áreas, os critérios para a ela-
boração e execução do plano de urbanização, as diretrizes para
o estabelecimento das normas especiais de parcelamento, uso
e ocupação do solo e de edificação e os institutos jurídicos que
poderão ser utilizados para a legalização da titulação das áreas
declaradas de habitação de interesse social para a população
beneficiária.9

Sabe-se que a iniciativa do processo legislativo municipal é preponde-


rantemente dos próprios vereadores ou do executivo municipal. Projetos
de iniciativa popular são raros já que, dentre outros fatores, há uma difi-
culdade imposta pelo número de eleitores a endossar o projeto por meio
de assinatura.

936
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Para ilustrar tal fato cita-se o exemplo do município de Belo Horizonte


que prevê em sua lei orgânica que o processo de lei de iniciativa popular
deve ser subscrito por no mínimo cinco por cento do eleitorado:

Art. 89 - Salvos nas hipóteses previstas no artigo anterior, a ini-


ciativa popular em matéria de interesse específico do Município,
da cidade ou de bairros pode ser exercida pela apresentação à
Câmara de projeto de lei subscrito por, no mínimo, cinco por cento
do eleitorado do Município, em lista organizada por entidade
associativa legalmente constituída, que se responsabilizará pela
idoneidade das assinaturas.10

Isso significa que no caso do município mencionado seriam necessárias


cerca de 93.000 assinaturas tendo em conta que há 1.860.172 eleitores em
Belo Horizonte. 11 Um número expressivo de cidadãos que dificilmente
poderia ser mobilizado em torno de uma causa popular.
Ora, deste modo, as comunidades atingidas, maiores interessadas na
demarcação da área ocupada como ZEIS, encontram inúmeras dificuldades
de conseguir mobilizar um número tão grande de pessoas a subscreve-
rem a proposta. Portanto, ainda que com representatividade formalmente
constituída, a própria população residente no território se vê refém do
jogo político e da apresentação da proposta por parte do chefe do Poder
Executivo ou, de um membro do Poder Legislativo.
Propõe-se, portanto, repensar as formas de ampliar o poder popular
na iniciativa legislativa tocante à dimensão urbanística, como forma de
garantir o direito à cidade para todos.
Tal proposta está em consonância com uma Reforma Urbana que busca
eliminar as desigualdades sócio-espaciais e implantar uma justiça urbana
efetiva. Além disso, estaria plenamente adequada ao princípio da gestão
democrática das cidades que se materializa na participação da população
e de associações de bairro, por exemplo, na elaboração execução e moni-
toramento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.
Nesse sentido é importante citar Nelson Saule Júnior que assim se
manifesta sobre a soberania popular e a democracia direta na gestão de
uma política democrática:

937
A soberania popular referenda como princípio a democracia
participativa, que possibilita o exercício do poder diretamente
pelo povo nos processos políticos de tomada de decisão sobre
os interesses da sociedade. Como princípio constitucional, emite
o comando de ampliação e intensificação dos processos e dos
mecanismos de participação popular, como forma de possibilitar
uma isonomia de tratamento na relação do Poder Público com
os diversos segmentos da sociedade, independente da origem
social, posição econômica, local e região onde vivem.12

Diante do exposto, o princípio da participação popular seria contem-


plado em articulação com o princípio da gestão democrática das cidades
e seria ampliada a garantia do direito à cidade por meio da instituição
de ZEIS que respeitariam a situação consolidada de moradia de assenta-
mentos irregulares.
A participação popular deve ser estimulada e ampliada, não apenas
na forma de iniciativa na proposição das leis, mas, também na presença
real da sociedade civil na elaboração e revisão dos Planos Diretores.
Ora, se é o Plano Diretor o mais importante instrumento de planeja-
mento e ordenamento sócio-territorial, não se pode contentar como
seu aspecto participativo meramente formal, mas, essencialmente,
sua condução deve ser feita pela sociedade, auxiliada pelos técnicos e
gestores – não o contrário.
No entanto, não se pode dar exclusividade ao Plano Diretor para a
previsão da demarcação das ZEIS, tendo em vista que este é um instru-
mento que pressupõe maior perenidade, e em consequência disso, a Lei
que o institui recebe maiores pressões políticas contrárias à sua alteração,
como forma de garantir sua perpetuação no tempo, e a consecução de
seus objetivos a longo prazo, além dos elevados custos gerados.
Atento a isto, e ciente de que a realidade das ocupações informais –
muito mais dinâmica e fluida que a alteração de outras áreas da cidade,
como, por exemplo, um área de uso industrial ou de proteção histórica,
o Município de Recife na década de 80 promulgou a Lei das PREZEIS. O
intuito era retirar do Plano Diretor a regulamentação das ZEIS, de modo
a permitir maior flexibilidade ao instrumento, coerente com a urgência

938
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

social que um assentamento irregular sofre, sem, no entanto, afetar de


sobremaneira o planejamento global da cidade. Sobre o Prezeis, vejamos:

Do ponto de vista urbanístico, não é menor a importância dessa


lei. Afinal, por meio dela rompe-se com a idéia de lote padrão,
largamente utilizada nos loteamentos oficiais. Agora, tem-se o
lote possível, delimitado não só a partir das dimensões que de-
finem sua área, mas, sobretudo, pelo acatamento dos padrões
construtivos existentes em cada área específica. (...) Outro ponto
importante a considerar é que nem sempre se pode estabelecer
no plano diretor o conjunto das áreas a serem consideradas
ZEIS, uma vez que a ocupação de áreas urbanas por populações
faveladas surge, por vezes, literalmente da noite pro dia. Importa,
pois, que o planejador municipal tenha à mão um instrumento
capaz de ser utilizado com a flexibilidade que os planos diretores
não tem.13

A participação popular é também fundamental para efetividade


do instrumento, por meio do controle público da execução das diretrizes.
Trata-se de uma obrigação do Poder Público executar o planejamento,

Tais leis ou decretos nada têm de normativos: são atos de efeitos


concretos , revestindo a forma imprópria de lei ou decreto, por
exigências administrativas. Não contém mandamentos genéri-
cos, nem apresentam qualquer regra abstrata de conduta: atuam
concreta e imediatamente como qualquer ato administrativo de
efeitos individuais e específicos (...)14

Esta obrigação é ainda mais urgente quando diz respeito à garantia de


direitos fundamentais, como a moradia. Portanto, mecanismos de controle
popular são indispensáveis para que a regulamentação das ZEIS não se
torne letra vazia da Lei, e se realize no espaço.

4- CONCLUSÃO: ENCARANDO OS DESAFIOS

A crise da aplicabilidade do instrumento está relacionada, primordial-


mente à vontade política, e, com o controle e pressão popular muito já
pode se avançar. Mas, este não é o único fator que gera um distanciamento
entre previsão legislativa e afetação no território. Destacamos, dentre eles
a regulamentação inadequada na Lei Municipal. O relatório supracitado15

939
aponta, dentre as inconsistências, o fato das leis municipais, muitas vezes,
repetirem as diretrizes federais, estas genéricas, sem especificar de acordo
com a realidade local. Não trazem elementos como parâmetros de uso,
coeficientes de aproveitamento e delimitação da área. Ou seja, ainda que
os planos diretores prevejam o instrumento, eles não o regulamentam,
tampouco oferecem condições de regulamentação futura.
Diante disso, percebemos, que dentro de um contexto de uma cidade
mais democrática, e que realize os objetivos propostos pelos movimen-
tos populares de reforma urbana, as ZEIS são instrumento com potencial
emancipatório de justiça social. A sua previsão, dentro do planejamento
territorial municipal é expressiva, no entanto, nem sempre ela se traduz
em prática, em outras palavras, há uma crise na aplicabilidade apesar
da ampla presença do instrumento nos planos diretores de todo o país.
Esta distância entre discurso e prática se dá por diversas razões, seja
pela inércia política, especialmente por parte dos gestores – problema
este que pode ser atacado por meio do controle popular. Seja pela inade-
quação na previsão legal que, apesar da presença do instrumento, peca
na fragilidade da regulamentação específica. Ou ainda, pelo fato de que
o engessamento nas alterações do instrumento não traz as respostas
mais adequadas às demandas sociais, afastando da própria comunidade
residente em determinada área, por exemplo, a possibilidade de requerer
sua área como ZEIS.
Logo, faz-se necessário, não apenas a manipulação técnica e legislativa
dos instrumentos que podem garantir acesso à cidade da população de
baixa renda, mas, principalmente, uma apropriação política popular que
represente os anseios da construção de um outro projeto de cidade, em
que a justiça social se materialize no território.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

DA SILVA. José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 2ª ed. São Paulo, 1997.
DOS SANTOS JUNIOR, Orlando Alves e MONTANDON, Daniel Toddmann (orgs.). Os

940
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

planos diretores municipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas.


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MEIRELES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, Ação Popular e Ação Civil Pública.
Ed. RT, 11ed. 1987,
SAULE Júnior, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregu-
lares. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2004.

NOTAS

1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Mestranda em Arquitetura e Ur-

banismo pela UFMG – cmelo2009@gmail.com


2 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestrando em Direito pela UFMG e

Técnico em Direito do Programa Pólos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG – ferdinandofi@yahoo.

com.br
3 DA SILVA. José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 2ª ed. São Paulo, 1997. Pp. 232.
4 DOS SANTOS JUNIOR, Orlando Alves e MONTANDON, Daniel Toddmann (orgs.). Os planos diretores muni-
cipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das
Cidades. IPPUR/UFRJ, 2011.
5 DOS SANTOS JUNIOR, Orlando Alves e MONTANDON, Daniel Toddmann (orgs.). Os planos diretores muni-
cipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das
Cidades. IPPUR/UFRJ, 2011. PP. 115
6 FERNANDES Edésio. Direito e Gestão na Construção da Cidade Democrática no Brasil. In: As Cidades da
Cidade/ Carlos Antônio Leite Brandão (organizador) - Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
7 HARVEY, David. Lutas pela reforma urbana: o direito à cidade como alternativa ao neoliberalismo Disponível
em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2009/02/440802.shtml> Acesso em: 25/06/2013.
8 SAULE JUNIOR, Nelson. A trajetória da reforma urbana no Brasil. Disponível em: < http://www.redbcm.com.
br/arquivos/bibliografia/a%20trajectoria%20n%20saule%20k%20uzzo.pdf> Acesso em 25/06/2013.
9 SAULE Júnior, Nelso.. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 2004.
10 Belo Horizonte. Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte publicada em 21 de março de 1990.
11 Disponível em:<http://www.tre-mg.jus.br/eleicoes/eleicoes-012/informacoes%20para%20imprensa/
eleitorado> Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais. Acesso em 28/06/2013.
12 SAULE Júnior, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 2004.
13 LEITÃO, Lúcia. Remendo novo em pano velho: breves considerações sobre os limites dos planos diretores.

941
In.: FERNANDES, Edésio e ALFONSIN, Betânia (orgs.). Direito Urbanístico: Estudos Brasileiros e Internacionais.
Del Rey. Belo Horizonte, 2006. Pp. 326
14 MEIRELES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, Ação Popular e Ação Civil Pública. Ed. RT, 11ed. 1987, pp. 15.
15 DOS SANTOS JUNIOR, Orlando Alves e MONTANDON, Daniel Toddmann (orgs.). Os planos diretores mu-
nicipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das
Cidades. IPPUR/UFRJ, 2011.

942
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Dimensão social e jurídica da política


urbana no Centro de São Paulo na
contemporaneidade (2006-2012)1

Afonso Soares de Oliveira Sobrinho2

INTRODUÇÃO

A cidade de São Paulo passa, na contemporaneidade, por políticas


neoliberais que atendem aos interesses elitistas que demandam uma inter-
venção da ordem e disciplina das condições de vida e do próprio trabalho,
por meio da higiene pública3. Utiliza-se dos discursos da modernização
da cidade como uma utopia4, para que se possa disciplinar os espaços e
corpos. Refletir sobre o passado nos ajuda a compreender o presente, em
especial com as mutações da cidade e o desejo utópico de nos tornarmos
“civilizados”, uma utopia das elites locais.
As novas mutações do presente ocorrem, principalmente, pela segrega-
ção entre ricos e pobres por “muros invisíveis”. Além disso, pela disciplina
como espaço ordeiro, que nos une pela exploração pelo trabalho e nos
separa pela negação aos direitos sociais dos pobres.
Porém, algo fugiu ao controle no centro e era conter massas de
“viciados” que viviam em áreas outrora degradadas e, agora, são ob-
jeto da especulação imobiliária dos novos endinheirados. Trata-se de
uma intervenção cirúrgica que acabou ganhando uma repercussão
não esperada. São operações policiais pelas administrações locais,
que começam com os moradores em situação de rua, passam pelos
vendedores ambulantes (operação delegada) até chegar à tradicional
região da Luz, denominada “Cracolândia”.

943
Considerando tais apontamentos, este artigo discute à questão do sa-
neamento da pobreza, por meio da intervenção urbana na área do Projeto
“Nova Luz” a partir da dimensão sócio-jurídica.

1. OS INDÍCIOS DO DISCIPLINAMENTO
DA POBREZA NO CENTRO DE SÃO PAULO

Os indícios das ações saneadoras, promovidas em parceria entre mu-


nicipalidade, Governo do Estado e iniciativa privada, tem, como ponto
culminante, o tratamento dispensado pelos Guardas Civis aos moradores
em situação de rua da área central, no chamado “toque de despertar”:

[...] ‘Limpeza’ do Centro?


Depois da desastrada reforma do sistema de albergues, que
vem reduzindo as vagas disponíveis para moradores de rua e
causou espanto por sua insensibilidade no trato de uma questão
particularmente delicada, tendo em vista seus aspectos sociais e
humanos, a Prefeitura da capital acaba de tomar uma segunda
medida igualmente infeliz em relação a essa população desam-
parada. Portaria publicada no dia 1º de abril regulamenta os pro-
cedimentos a serem observados pela Guarda Civil Metropolitana
(GCM) no trato com os moradores de rua, cabendo-lhe ‘contribuir
para evitar a presença de pessoas em situação de risco nas vias
públicas da cidade e locais impróprios para a permanência sau-
dável das pessoas’. Isto deverá ser feito por meio da ‘abordagem
e encaminhamento das pessoas, observando as orientações da
Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social’.
Isto quer dizer, como explica Bruno Paes Manso em reportagem
publicada no Estado de quarta-feira, que os guardas poderão
incomodar os moradores de rua, para levá-los a deixar essa
condição. Uma das formas de fazer isso é o chamado ‘toque de
despertar’. Em vários locais do centro da cidade – como a Praça
da Sé e em frente à Bolsa de Valores –, os guardas estão acor-
dando diariamente os que dormem deitados nas calçadas. Eles
podem ficar ali, desde que sentados [...] (Editorial, O Estado de
S. Paulo, 16/04/2010).

Posteriormente, outros sujeitos passaram a ser alvo das medidas sa-


neadoras na região central da cidade, em especial pelo cerco policial aos
dependentes químicos. A justificativa dos governos seria a deterioração
da região da Luz e o combate ao crime e às drogas na área que passou a
ser denominada pela mídia de “Cracolândia5”; objeto, inclusive, de ações

944
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da municipalidade no Projeto Nova Luz. O marco legal, que permite a in-


tervenção urbana, na área da Luz, veio com a concessão urbanística – Lei
14.917, de 07 de maio de 2009, como previsão do Plano Diretor Estratégico
da Cidade de 2002 na modalidade delegação pela administração, com a
finalidade estrita de realização de obras específicas.
O Plano Diretor (que se encontra em revisão pelo legislativo) foi criado
com o objetivo de melhorar a qualidade de vida dos moradores na cidade
e, numa perspectiva nacional, é previsão legal do Estatuto da Cidade, Lei nº
10.257/2001, que regulamenta os artigos 182-183 da Constituição Federal.
A instituição desse plano em cidades com mais de 20.000 habitantes per-
mitiria reordenar os espaços urbanos. O referido plano, em vigor a partir
da Lei nº 13.430 de 2002, assegura, em seu artigo 3º, a definição quanto
à função social da propriedade urbana, à política de desenvolvimento
urbano do município e às políticas públicas do município, entre outros
aspectos a gestão democrática.

[...] Art. 2º O Plano Diretor Estratégico é instrumento global e


estratégico da política de desenvolvimento urbano, determi-
nante para todos os agentes públicos e privados que atuam no
Município.
[...] Art. 3º O Plano Diretor Estratégico abrange a totalidade do
território do Município, definindo:
I – a política de desenvolvimento urbano do município;
II – a função social da propriedade urbana;
III – as políticas públicas do Município;
IV – o plano urbanístico-ambiental;
V – a gestão democrática [...] (MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, lei
13.430 de 13/09/2002).

No entanto, pelo artifício da lei, ampliaram-se os mecanismos de sua


aplicação, mediante a “privatização” dos espaços centrais da cidade,
a partir das leis 13.430/2002 e 14.917/2009. E, particularmente, a lei
14.918/2009 autoriza a administração municipal a aplicar a Concessão
Urbanística na área da “Nova Luz”.
Porém, discute-se o desvio de finalidade da lei pela administração, haja
vista o instrumento legal (Estatuto de Cidade, Plano Diretor Estratégico),
que foi criado para assegurar a função social da propriedade urbana. O

945
fato é que o Projeto de revitalização Nova Luz encontra-se sub judice, e
a atual administração municipal suspendeu sua execução e caminha na
direção de outra política urbana. Porém, a especulação imobiliária não
espera por discursos e avança.

[...] DA CONCESSÃO URBANÍSTICA


Art. 239. O Poder Executivo fica autorizado a delegar, mediante
licitação, à empresa, isoladamente, ou a conjunto de empre-
sas, em consórcio, a realização de obras de urbanização ou
de reurbanização de região da Cidade, inclusive loteamento,
reloteamento, demolição, reconstrução e incorporação de con-
juntos de edificações para implementação de diretrizes do Plano
Diretor Estratégico [...]. (MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, lei 13.430
de 13/09/2002).

Lei 14.917/2009 – Concessão Urbanística no Município de São


Paulo:
[...] Art. 1º. A concessão urbanística constitui instrumento de
intervenção urbana estrutural destinado à realização de urba-
nização ou de reurbanização de parte do território municipal a
ser objeto de requalificação da infra-estrutura urbana e de reor-
denamento do espaço urbano com base em projeto urbanístico
específico em área de operação urbana ou área de intervenção
urbana para atendimento de objetivos, diretrizes e prioridades
estabelecidas na lei do plano diretor estratégico [...] (MUNICÍPIO
DE SÃO PAULO, Lei 14.917 de 07/05/2009).

Por sua vez, a Lei 14.918, de 07 de maio de 2009, autoriza a adminis-


tração municipal a aplicar a Concessão Urbanística na área da “Nova Luz”:

[...] Art. 1º. Fica o Executivo Municipal autorizado a aplicar a


concessão urbanística na área delimitada pelo perímetro da Nova
Luz, na forma e atendidas às normas previstas na legislação
municipal específica.
Parágrafo Único – Para os fins desta lei, considera-se Nova Luz o
conjunto das intervenções urbanísticas necessárias para a execu-
ção de projeto urbanístico específico no perímetro definido pelas
Avenidas Cásper Líbero, Ipiranga, São João, Duque de Caxias e
Rua Mauá, no Distrito da República.
Art. 2º Constituem diretrizes específicas da concessão urbanís-
tica autorizada pela presente lei:
I – preservação e recuperação do patrimônio histórico, cultural
e artístico existente no local;
II – equilíbrio entre habitação e atividade econômica, de forma a
propiciar a sustentabilidade da intervenção;
III – implantação de unidades habitacionais destinadas à popu-
lação de baixa renda, de acordo com as normas urbanísticas
aplicáveis às Zonas Especiais de Interesse Social;

946
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

IV – incentivo à manutenção e expansão da atividade econômica


instalada, especialmente nos setores ligados à tecnologia;
V – execução planejada e progressiva do projeto urbanístico es-
pecífico, de forma a evitar, durante o período das intervenções,
o agravamento de problemas sociais e minimizar os impactos
transitórios negativos delas decorrentes [...] (MUNICÍPIO DE SÃO
PAULO, Lei 14.918 de 07/05/2009).

Esse conjunto de leis se configura numa engenhosa arquitetura de


poderes que fundamentam o atual processo de privatização dos espaços
públicos com o velho discurso social, como projeto urbanístico sustentá-
vel para a área, objeto da mais contundente operação urbana pela qual
São Paulo passa na contemporaneidade. Porém, discute-se o desvio de
finalidade da lei pela administração, haja vista o instrumento legal (Esta-
tuto de Cidade, Plano Diretor Estratégico), que foi criado para assegurar
a função social da propriedade urbana, conforme incisos I, II e III do § 4º
do art. 182, bem como art. 183 da Constituição Federal.
Por sua vez, a Carta Magna, na parte dos princípios gerais da ativi-
dade econômica, declara a função social da propriedade, no art. 170, III.
Portanto, o próprio uso e ocupação do espaço público não poderiam ser
delegados em benefício e estímulo à especulação imobiliária e, muito me-
nos, a sua privatização, haja vista que não foram realizadas nem mesmo
audiências públicas para ouvir a comunidade afetada antes da aprovação
da lei 14.918/2009, que autoriza o poder público a executar o projeto de
concessão urbanística, enquanto instrumento de gestão democrática
prevista no Plano Diretor Estratégico da Cidade.

Justiça paulista suspende de novo projeto de revitalização da Luz


A Justiça suspendeu anteontem, mais uma vez, o projeto de
concessão urbanística da Nova Luz - aposta do prefeito Gilberto
Kassab (PSD) para renovar o bairro onde fica a Cracolândia,
no centro de São Paulo. O juiz da 8.ª Vara da Fazenda Pública,
Adriano Marcos Laroca, deferiu liminar em ação popular contra
a execução do projeto. Também foram suspensos o estudo de
viabilidade econômica da Nova Luz e os trabalhos urbanísticos
específicos complementares.
Os principais questionamentos são a falta de participação dos
moradores do bairro nas audiências públicas e os gastos da
Prefeitura, que devem passar de R$ 355 milhões, como admitiu
o secretário de Desenvolvimento Urbano, Miguel Bucalem. O

947
argumento é que tais investimentos vão contra a justificativa da
lei da concessão: minimizar gastos públicos.
Pela concessão urbanística, a Prefeitura pretende repassar à
iniciativa privada, por licitação, a área delimitada por 45 quar-
teirões na Luz e na Santa Ifigênia. Caberá à empresa que vencer
a concorrência promover obras de recuperação nas ruas, cal-
çadas e praças. Como contrapartida, poderá lucrar explorando
os imóveis desapropriados ou vendê-los. A previsão é de que a
reurbanização demore 15 anos para ficar pronta e custe R$ 1,1
bilhão [...] (FRAZÃO, 2012).

O debate jurídico está formado, e até o último pronunciamento dos


órgãos competentes, com os recursos devidos. A intervenção urbanística
já estará concluída e a parte mais vulnerável social e economicamente
nesses territórios, qual seja a população mais carente, terá sido afetada
pela falta de políticas públicas que garantam o patrimônio histórico, mo-
radias populares, emprego, renda e dignidade a quem por lá construiu
sua vida e sua história. Principalmente, os que estão na informalidade,
espécie de alvos preferenciais dos projetos da atual gestão por meio das
medidas saneadoras.

2. O PROJETO NOVA LUZ E A FUNÇÃO SOCIAL


DA PROPRIEDADE URBANA: DA PRIVATIZAÇÃO
DE ESPAÇOS A NEGAÇÃO à VIDA DIGNA

Nova Luz é um projeto urbanístico que afeta mais diretamente a vida


das pessoas pobres do centro (moradores de rua e/ou dependentes
químicos) de São Paulo, nas últimas gestões públicas. Trata-se de uma
operação urbana de saneamento “exemplar” e que servirá de modelo a
futuras operações em outras áreas.
Nesse sentido, fica uma indagação: os espaços públicos deveriam
atender a uma perspectiva de valorização do patrimônio histórico, cultural
e social ou ao estímulo à ocupação a partir de concepções privatizantes
e elitistas? Acredita-se que isso deveria ser feito por meio de incentivo a
construções habitacionais, voltadas à classe média, favorecendo, portanto,
a especulação imobiliária e medidas pensadas de cima para baixo, sem

948
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

levar em conta as questões sociais e seus reflexos para a cidade. Durante


a Gestão Serra, foram dados incentivos fiscais para atrair investidores
para a região. A próxima estratégia seria a realização do leilão da área
escolhida para a intervenção urbana próxima a região da “Cracolândia”.
Como projeto de um novo bairro, tamanho grau de modificações que
seriam feitas nesses territórios, objeto da cobiça de grandes construtoras.

Cracolândia vai a leilão em um só lote para virar novo bairro


[...] Dois grupos empresariais disputam o direito de transformar
a região da cracolândia, no centro de São Paulo, em um novo
bairro [...].
O que está em disputa é uma área de 103 mil m2 que será de-
sapropriada pela prefeitura e leiloada, em um único lote, para
que a empresa vencedora transforme a região degradada em um
local atrativo para empresas da área de tecnologia e moradores
da classe média.
Incluindo áreas que não serão desapropriadas – ruas, praças,
prédios públicos, como o Poupatempo e o Corpo de Bombeiros,
e a tradicional rua Santa Ifigênia, conhecida pelo comércio de
produtos eletrônicos –, a cracolândia, ou Nova Luz, como prefere
a prefeitura, tem 269 mil m2 [...] (SPINELLI; CREDENCIO, Folha
de S. Paulo, 19/05/2007).

Quanto à questão social, o que fazer com os pobres e excluídos dos


espaços centrais da cidade, uma vez que eles continuam a ocupar outros
espaços? O embelezamento por si só não parece ser garantia de uma
cidade melhor para todos. Transformar os espaços públicos em local de
circulação é uma tendência autoritária e promotora da limpeza social,
em especial da pobreza.
O Direito serve a quem pode fazê-lo. Porém, haveria a violação da lei
pela administração pública, justamente por aqueles que deveriam zelar
pelo seu cumprimento e observar os princípios fundamentais que balizam
o próprio Estado de Direito capitalista. Sobre isso tratam as cláusulas
pétreas expressas na Constituição Federal: o artigo 1º, caput, II, III e IV,
apresenta, como fundamentos do Estado Democrático de Direito: a cidada-
nia, a dignidade da pessoa humana, aliado aos valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa. Também o artigo 3º, caput da CF/88, aponta, como
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a construção

949
de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento
nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das
desigualdades sociais e regionais, além da promoção do bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
Entre os direitos e garantias fundamentais, o artigo 5º apresenta os
direitos e deveres individuais e coletivos, tendo, como baliza, o princípio
da isonomia, por meio da igualdade de todos perante a lei, sem distinção
de quaisquer natureza, garantindo, aos brasileiros e estrangeiros residen-
tes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade. Em consonância com o artigo 6º, temos, entre
os direitos sociais, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência social aos desamparados, na forma da Constituição. Por sua
vez o artigo 170 da Constituição Federal de 1988, inserido no título VII
da ordem econômica e financeira, apresenta, entre outros, os seguintes
princípios gerais:

DOS PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA


Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos exis-
tência digna, conforme os ditames da justiça social, observados
os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento di-
ferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços
e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
Ix - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte
constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e ad-
ministração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qual-
quer atividade econômica, independentemente de autorização
de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei (BRASIL,
2004, p.97).

950
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A partir desses dispositivos constitucionais, observa-se, claramen-


te, uma opção do constituinte em unir uma proposta liberal com um
sentido humano, enquanto modelo de Estado Democrático de Direito.
Um estado capitalista, de base liberal, com um sentido de dignidade
humana nas relações particulares, inclusive no cumprimento da função
social da propriedade.
Roberto Lyra Filho (1997), em O Que é Direito, atenta para o cuidado
com as ideologias presentes nas leis. Ele explica que o direito deve ser
visto numa perspectiva mais ampla do que a lei, haja vista interesses
conflitantes entre as ideologias presentes nas leis.

A identificação entre Direito e lei pertence, aliás, ao repertó-


rio ideológico do Estado, pois na sua posição privilegiada ele
desejaria convencer-nos de que cessaram as contradições,
que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é
imaculadamente jurídico, não havendo Direito a procurar além
ou acima das leis. Embora as leis apresentem contradições que
não nos permitem rejeitá-las sem exame, como pura expressão
dos interesses da classe dominante, também não se pode afir-
mar, ingênua ou manhosamente que toda legislação seja direito
autêntico, legítimo e indiscutível. Nesta última alternativa, nós
nos deixaríamos embrulhar nos pacotes legislativos, ditados pela
simples conveniência do poder em exercício. A legislação abrange
sempre, em maior ou menor grau, direito e antidireito: isto é,
direito propriamente dito, reto e correto, e negação do direito,
entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuísticos
do poder estabelecido (FILHO, 1997, p. 8).

Portanto, a partir da análise de Filho (1997) e a concepção oficial, as


leis seriam instrumentos mobilizadores das ações municipais e estaduais
garantidoras de um direito, o qual atende aos interesses da elite e não de
todos, incluídos os dependentes químicos.
A administração municipal, em parceria com o Governo do Estado,
com o discurso de cuidar da saúde dos cidadãos e para garantir o Direito
à vida de dependentes químicos da “Cracolândia”, passa ao policiamento
ostensivo da área num primeiro momento, para forçar a retirada dos “vi-
ciados” e “traficantes” da área do projeto “Nova Luz” e imediações; sob
o pretexto de que, num segundo momento, haveria a entrada do serviço
de assistência social, apoio psicológico. Mas quais os critérios utilizados

951
para definir a internação compulsória? Deve-se considerar que a inter-
nação voluntária, involuntária ou compulsória dos viciados está prevista
na lei 10.216/2001, a qual trata da proteção e dos direitos das pessoas
com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial da saúde
mental, aplicável aos dependentes químicos de drogas. Por sua vez, a lei
11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre
drogas, prevê, em seu artigo 4º, inciso I, o respeito aos direitos fundamen-
tais da pessoa humana quanto à autonomia e à liberdade.
No entanto, a partir das matérias veiculadas pela mídia, verifica-se que
a forma como é conduzido o processo denominado “Operação Integrada do
Centro Legal”, pelo poder público via polícia, e a realidade social, há sérios
questionamentos quanto à violação aos direitos e garantias fundamentais
da Constituição Federal de 1988. E a questão vem sendo tratada como caso
de polícia pela própria mídia, pelo governo do Estado e municipalidade, que
defendem a repressão policial como uma necessidade no tratamento com
a questão da dependência química e o tráfico de drogas, o que seria uma
medida eleitoreira. Em outras palavras, esses sujeitos dependentes vêm
sendo tratados como “subcidadãos” (em que não se respeita a dignidade
humana e o direito à vida digna): “criminosos”, “drogados”; uma espécie
de “câncer social”, que ameaça a própria convivência pacífica na cidade.
Portanto, o que seria, a princípio, políticas públicas para dar dignidade
e salvar vidas se transforma em instrumento de repressão sobre a vida.
Passa-se à população o sentimento de pânico, a partir da migração dos
dependentes químicos para outras regiões da cidade, num processo de
limpeza social. Se a dignidade era negada antes da ocupação policial, na
denominada “Cracolândia”, no período posterior, os dependentes passam
a serem vigiados 24 horas, tratados como uma “ameaça” ao corpo social
e, assim, são objeto de “tortura psicológica”. Isso acontece mediante uso
de aparato policial, que ora os segregam em praças, ora os dispersam,
estando em constante frenesi, circulando sem poder se fixar. A lógica
dessas ações seria, segundo relatos policiais na mídia, uma estratégia de
dispersão que causa “dor e sofrimento”, para que possam pedir socorro e
serem encaminhados à internação.

952
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Porém, questiona-se tal fato do ponto de vista dos direitos humanos.


Ou seja, o poder público cometeria violações expressas aos direitos e
garantias individuais expressas na Constituição Federal de 1988, como o
direito à vida, a liberdade de ir e vir, entre outros preceitos constitucionais
básicos do Estado Democrático de Direito, como a cidadania e a digni-
dade da pessoa humana? Incorreria na prática de tortura e o tratamento
desumano ou degradante? Em caso positivo, em nome de qual direito?
As ideologias das ações governamentais revelam uma ordem elitista no
trato com a questão social, que nos remete à noção de higiene e limpeza
social. Ou seja, em nome da “revitalização” do centro e utopia de cidade
limpa, passa-se ao uso de instrumentos de repressão (leis, policiamento,
vigilância) aos “viciados da Cracolândia”. O foco da ação, supostamente, é
o combate ao tráfico de drogas e a garantia da vida e de saúde dos depen-
dentes químicos. Curiosamente, o local, objeto das medidas saneadoras,
fica na área do projeto “Nova Luz”. Passa-se à repressão pura e simples
e/ou internação oportunista de indivíduos dependentes de drogas, nessa
tradicional região. Não há, portanto, políticas públicas de médio e longo
prazo que trate a questão da dependência para além do imediatismo mi-
diático e governamental.
Os ricos, quando tem dependência química, internam seus entes para
tratamento em clínicas sofisticadas, até que se recuperem e vislumbrem
uma vida com dignidade. O pobre, na proposta de internação compul-
sória, é retirado de circulação e resta-lhe a opção de voltar às ruas, pois
é seu território de vida. A imensa maioria perdeu os vínculos familiares
e não tem como recuperá-los sozinhos. Nesse caso, a proposta sane-
adora governamental parece surtir efeito de imediato, haja vista que o
sujeito, sabendo que foi retirado de determinada área, vai preferir fazer
outra coisa e, assim, empurra-se a questão social mais uma vez para as
periferias e áreas limítrofes da mancha urbana, onde, enfim, poderá ter
sua “liberdade recuperada”.

953
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pari passu ao processo de limpeza social e disciplina dos sujeitos por


intermédio da intervenção urbana na região da Luz, objeto do Projeto Nova
Luz, há uma apropriação dos territórios pelo setor privado, via operações
urbanas que autorizam o uso de áreas centrais da cidade e seu entorno,
para a especulação imobiliária e interesses corporativos. Nessa perspec-
tiva, a propriedade não atende a sua função social, pela precariedade nas
políticas de habitação, em especial da moradia popular no centro.
Também, há a precariedade nas políticas públicas, em especial no
trato com a saúde decente e educação de qualidade básica, que permita
a formação social, cultural e profissional. Além disso, há a precariedade
nas políticas públicas, para a geração de emprego e renda para a popu-
lação em situação de rua. Legitima-se a segregação social, espacial, e a
violência contra aqueles que vivem em maior vulnerabilidade social, em
nome da Segurança Pública, pela negação da cidadania e com o discur-
so do Direito à vida e a saúde. Porém, quais políticas sociais o governo
propõe para quem vive na rua, senão a internação como mecanismo de
retirada de circulação?
Concluímos observando que a Carta Magna assegura, como princípios,
em seu art. 1º, inciso II e III, a dignidade da pessoa humana e cidadania. E
a República Federativa do Brasil tem, entre seus objetivos fundamentais:
erradicar a pobreza, a desigualdade social, uma sociedade livre, justa e
solidária. E é, justamente, a população pobre, que tem sido afetada pelas
políticas públicas, que não garantem condições de vida digna a quem
vive no centro.

REFERÊNCIAS

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__________. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos
das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial

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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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políticas públicas contemporâneas (2006-2011) na Cidade de São Paulo: análise crítica
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SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
SPINELLI, Evandro; CREDENCIO, José Ernesto. Cracolândia vai a leilão em um só
lote para virar novo bairro. In.: Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano C4, São Paulo,
19/05/2007.

NOTAS

1 Artigo elaborado a partir da Dissertação de Mestrado em Políticas Sociais pela Universidade Cruzeiro do Sul,
com o título “A Concepção saneadora da pobreza nas políticas públicas contemporâneas (2006-2011) na Cidade
de São Paulo: análise crítica do processo de disciplinamento da informalidade” (OLIVEIRA SOBRINHO, 2011).
2 Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP. Advogado. affonsodir@gmail.com.
3 “Higiene. Derivado do grego hygieinos (que tem saúde); tecnicamente é a parte da medicina que trata da
saúde, mostrando os meios de conservá-la, evitando doenças.
[...] A higiene pública, assim, compreende toda matéria de ordem propriamente sanitária, como toda medida
de caráter mesmo policial, mas de interesse ou para fins higiênicos, isto é, de saúde pública.
A bem de saúde dos habitantes de um lugar e da salubridade dele, todas as medidas, aconselhadas por esta
parte da medicina, porém determinada pelo poder público, mesmo que, em certos casos, se mostrem restrições
aos direitos individuais ou ao direito de propriedade.” (SILVA, 1993, p. 383)
4 “Utopia 1. Termo criado por Tomás Morus em sua obra Utopia (1516), significando literalmente ‘lugar nenhum’
(Gr. ou: negação, topos: lugar), para designar uma ilha perfeita, onde existiria uma sociedade imaginária na
qual todos os cidadãos seriam iguais e viveriam em harmonia. A alegoria de Tomás Morus serviu de contra-
ponto, por meio do qual ele criticou a sociedade de sua época, formulando um ideal político-social inspirado
nos princípios do humanismo renascentista. 2. Em um sentido mais amplo, designa todo projeto de uma
sociedade ideal perfeita. O termo adquire um sentido pejorativo ao se considerar esse ideal como irrealizável
e, portanto, fantasioso. Por outro lado, possui um sentido positivo, quando se defende que esse ideal contém
o germe do progresso social e da transformação da sociedade [...]” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2008, p. 274).
5 A respeito da expressão “Cracolândia”, trata-se de um termo depreciativo de desqualificação social criado e
difundido pela grande mídia em referência aos dependentes químicos (inclusive usuários do crack; portanto,
o sentido pejorativo deriva dessa droga), moradores em situação de rua, prostitutas, pequenos traficantes,
entre outros, situados na região central de São Paulo, denominado Bairro da Luz. Esse território é objeto de
“revitalização” enquanto lócus de especulação imobiliária a partir do Projeto Nova Luz e da Ação Integrada
Centro Legal a partir da operação policial de “dor e sofrimento” imposta a esses sujeitos enquanto políticas
saneadoras implantadas pela municipalidade em parceria com o Governo do Estado (OLIVEIRA SOBRINHO,
UNICSUL, 2011).

956
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Dos vazios urbanos à função


social da propriedade: percursos da
socioespacialização da cidade através
dos instrumentos de parcelamento,
edificação e utilização do solo no
Município de Porto Velho

Diogo Henrique Costa Fonseca1


Daniela Pacheco Rodrigues Fonseca2

1.INTRODUÇÃO

Surge da recorrente e sistemática prática de especulação imobiliária


a problemática dos impactos negativos que têm levado o meio urbano de
Porto Velho à degenerescência o obsoletização dos espaços intersticiais,
dominadas excessivamente por áreas vazias que oneram as finanças
públicas na busca de provimento de infraestrutura e serviços essenciais.
Uma espacialidade de cunho social torna-se, portanto, uma busca
perene do Poder Público, que deve lançar mão de estratagemas de sus-
tentabilidade urbana voltadas para a compactação dos espaços, excluindo
paulatinamente tais áreas vazias ou subutilizadas.
Há uma aguda relação entre o aproveitamento qualitativo dos nichos
urbanos e a implementação de intrementos de gestão prerrogados tanto
pela Carta Magna, como pelas normas infraconstitucionais, de cunho
preventivo e protecionista da função social da cidade e da propriedade.
Dentre os diplomas que trouxeram a obrigação pública de interferência
na propriedade privada que se distancia da função social, que é dar-lhe
uso, encontra-se o Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsória com
previsão punitiva, em toda sua gama de implicações e efeitos.

957
Não obstante, em Porto Velho, o recurso traz preceitos que requer
aproximação aos demais instrumentos da política urbana inseridas pelo
Plano Diretor, no sentido de mitigar uma série histórica de retenções ex-
clusivitas, que ainda hoje estimulam a segregação socioespacial.

2.PLANO DIRETOR E A
FUNCIONALIZAÇÃO SOCIAL DA CIDADE

Em um intervalo não superior a meio século, ocorreu um incremento


no contingente populacional das cidades brasileiras, que migrou de ma-
joritariamente rural para majoritariamente urbano. Com esta reversão
situacional, emergiu o reposicionamento das estratégias de políticas
públicas para contenção dos impactos negativos ocasionados ao meio
ambiente natural, de igual modo, ao construído.
O marco regulatório da reforma urbana brasileira, o Estatuto da Cida-
de, prelecionou em suas normas gerais, ofertando constitucionalmente
ao poder público municipal, a elaboração do diploma normativo apto a
reger os quesitos para ordenamento do território urbano em sua função
social. A saber, para fins da efetivação do Estatuto, aplica-se um rol de
instrumentos necessários ao planejamento municipal,dentre os quais
destaca-se o Plano Diretor.
Tal diploma é objetivo em salientar que “A propriedade urbana cumpre
sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordena-
ção da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das
necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e
ao desenvolvimento das atividades econômicas” respeitadas as diretrizes
previstas no art. 2o da mesma Lei.3
O Plano Diretor municipal condiciona, portanto, a produção física,
social e espacial, tida como meio ambiente em seus diferentes espectros.
Este se torna um plano, por sua natureza prospectiva e capacidade de
idealização; torna-se diretor enquanto consolida e assegura a eficácia dos
dispositivos nele elencados para produção do espaço. 4

958
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

No prisma da propriedade, credita-se ao sistema normativo do Plano


Diretor assegurar a internalização biunívoca dos elementos onerosos e
benéficos produzidos pela urbanização, uma vez que estes elementos
essenciais compõe o princípio da função social.
O Macrozoneamento municipal, que é esboçado pelos planos diretores,
e o zoneamento de uso que deste deriva, não só se dispõe a consolidar
áreas de grande potencial para intensificação da densidade urbana como
também a conter a dispersão excessiva do tecido urbano com vistas a
otimizar os equipamentos e serviços, garantindo a função social da cidade.
Nos Interstícios de tal funcionalização social da cidade e da propriedade,
encontram-se estabelecidas condutas de melhor utilização dos recursos
disponíveis, impedindo ocupações em áreas de risco e lançando mão de
estratégias e programas sociais para reassentamento das populações que
nelas residem, requalificação de regiões centrais degradadas, realização
de planos e programas que coíbam o esvaziamento de áreas bem dota-
das de infraestrutura, suportados por um sistema de acompanhamento e
controle frequente destas áreas.
Um dos elementos fulcrais do conjunto de instrumentos contemplados
pelo Plano Diretor refere-se à identificação e destinação social das porções
territoriais, internas ao perímetro urbano demarcado, que não tenham
sofrido parcelamento, edificação ou utilização, denominados vazios
urbanos, eivados de intenções meramente especulativas e antagônicas
àquelas almejadas para a cidade.
A função social, portanto, figura-se como um valor ético jurídico que se
torna mais evidente através de sua vinculação às demandas existentes na
cidade. Destarte, é certo dizer que num contexto onde o déficit habitacional
encontra-se extrapolado, a cidade cumpre sua função social quando adota
medidas de mitigação da defasagem através dos intrumentos de gestão,
dentre os quais, a punição sanção sobre os proprietários de imóveis vazios
ou subutilizados.
Assim, compreende-se que a cidade e seu elemento de pertencimento
individual - a propriedade privada da terra - aproximam-se da funcionali-

959
zação social ao passo que tornam factíveis as diretrizes de planejamento e
controle contidas no Plano Diretor, devendo este, contemplar as medidas
coercitivas e preventivas sobre a expansão da malha urbana, anterior ao
devido aproveitamento de terrenos ociosos.

3. FORMAÇÃO DA CIDADE E CONSTRUÇÃO


DO ESPAÇO ATRAVéS DOS INSTRUMENTOS
DA POLÍTICA URBANA

O objeto de estudo central do planejamento urbano é a cidade, sua


formação e aspectos relacionais e constituintes da produção sócioespa-
cial. Parte-se, todavia, do conceito de cidade como objeto de sucessivas
interferências e não somente em seus aspectos físicos e materiais.
Tal definição refere-se a diferentes critérios usados para se caracterizar
uma área eminentemente urbana, levando em conta aspectos geográficos,
demográficos, de densidade e de permanência.
As cidades estruturam o espaço coletivo frequentemente, portanto
são consideradas como a base da organização política da sociedade e
evoluem em estado metamórfico sofrido por um contínuo processo de
espacialização, produto de uma mudança estrutural ou funcional.5
No ambiente citadino, não é bastante a sobrevivência do indivíduo, mas
sua inserção nos grupos comunitários, além de dotação uma infraestrutura
que permite que as pessoas consigam viver, circular, usar, se alimentar,
dormir, acordar, sair de um lugar para chegar ao outro, tendo acesso aos
bens e serviços que são a própria produção sócioespacial 6‒.
Nesta ótica, pode-se entender a cidade sob dois aspectos: a cidade
formal e a informal. Na primeira, estão os privilegiados por ter acesso aos
melhores investimentos públicos e retenção especulativa da propriedade.
Na segunda, as informais, fixam-se aqueles que habitam locais desassis-
tidos, onde houve uma expansão e consolidação de forma irregular, sem
ou com baixíssimo investimento do poder público em serviços e equipa-
mentos urbanos básicos, ou mesmo caracterizada pela ocupação ilegal
do solo urbano.7

960
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A desestruturação deste sistema urbano através da descontinuidade


sobre as políticas públicas instrumentais ocasiona um colapso territorial,
embutindo na consolidação da cidade uma proeminência vazia e a ob-
soletização dos seus espaços constituintes, onde somente certos valores
residuais se mantêm, apesar de sua completa desafeição ante a atividade
em seu entorno.8
A viabilização da função social da propriedade através dos instrumentos
legais de gestão desgasta a atual tendência de segregação das relações
urbanas, que se tornou geradora de pobreza, não apenas como fato do
modelo socioeconômico, mas, também, do modelo espacial.9
Do ponto de vista jurídico econômico, os instrumentos regulatórios
atuam incisivamente na distribuição das mais valias urbanas que são
abastecidas pelo esforço coletivo, porém, frequentimente retidas por uma
minoria. Assim é, pois a urbe se reproduz sob o signo do capital, possuindo
condições de concentração e densidade que abarcam qualidades particu-
lares para seu desenvolvimento.10
Dos instrumentos urbanísticos que pactuam com o máximo e melhor
aproveitamento do solo urbano ocioso, decorre a produção territorial, que
já não se encontra plenamente condicionado aos limiares naturais, senão
à manutenção de forças produtivas fendidas sob o capital.11
Para Henri Lefebvre, há um desdobramento direto da produção espacial
da cidade sobre o processo de reprodução social que recompõe ativamente
as relações e contribui para sua manutenção e consolidação.12
Paradigmaticamente, tanto é requerida a transformação espacial
quanto mais as formas urbanas existentes se revelem inadaptadas ao seu
contexto13.Os instrumentos da política urbana operam diretamente em tais
variações, conferindo maior ponderação ao processo.

961
4. ASPECTOS hISTóRICOS, MARCOS
REGULATóRIOS, INSTRUMENTOS URBANÍSTICOS
E PRODUÇÃO SóCIOESPACIAL EM PORTO VELhO.

A dinâmica espacial de Porto Velho, consolidada por contínuos movi-


mentos de expansão e retração migratória, influenciou diretamente sua
estrutura jurídica urbanística, que em raros momentos alcançou plena
efetividade de transformação do território, despontanto um Laissez-faire
urbano, motor para a ineficácia dos instrumentos de planejamento e con-
trole, em prejuízo ao cumprimento da função social da cidade.
Sua condição geográfica, inicialmente desprovida de meios eficientes
de acesso, foi o principal vetor de isolamento, suficiente para retardar uma
ocupação desenvolvimentista e decorrer em um processo de povoamento
espontâneo, constituindo o embrião urbano da cidade.
A evolução espontânea da ocupação urbana, somente foi rompida atra-
vés do início dos fluxos migratórios e propagação de colônias permanentes
que se instalaram no então território federal, com intuito de participarem
ativamente dos grandes ciclos econômicos experimentados pela região.
No espaço demográfico, um considerável incremento se deu a partir da
finalização da pavimentação da BR-364,em 1983, responsável por inter-
ligar o a região sudeste do Brasil a Porto Velho, onde antes somente era
possível ser acessada através da ferrovia Madeira-Mamoré tendo a cidade
de Guajará Mirim como ponto de inicial, pela via fluvial do Rio Madeira,
partindo de Manaus ou por via aérea.
No lapso temporal de 1983 a 1986, Porto Velho expandiu em número
12.435 para 29.037 migrantes14, experiência que seria repetida futuramente
com a implantação das grandes Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e
Jirau, ocasionando um inchaço populacional de 292.399 habitantes em
1996 para 428.527 habitantes em 2010.15
De modo similar, um processo anterior foi responsável pelo incentivo
do movimento de ocupação massiva no Estado de Rondônia e, por con-
sequência, de sua capital: os Projetos Integrados de Colonização-PICs,

962
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

implantados pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária- INCRA no


ano de 1970, este, uma ação promovida pelo poder público, fortemente
ligada ao incentivo estatal do ciclo agropecuário, todavia, suficiente para
endossar o processo de ocupação urbana desordenada.
É notável o distanciamento corriqueiro entre o rito formal de interven-
ção sobre o solo pra fins de parcelamento urbano e a maneira como a
cidade de Porto Velho se reproduziu e se reproduz, através de rotineiras
ocupações clandestinas, seja através de loteamentos piratas deflagrados
por inescrupulosos incorporadores, seja por grupos de baixa renda que
vislumbram nas áreas públicas ociosas uma possibilidade para assenta-
rem-se definitivamente.
Na oportunidade da transição de Rondônia, da condição de Território
Federal para Estado da federação no ano de 1981, fôra promovida a de-
marcação do perímetro urbano referente ao distrito sede da capital Porto
Velho, possuindo uma área bruta de 8.533,9674 Ha, no entanto, somente
para fins de registro de propriedade e não para incidência das obrigações
estabelecidas pela Lei Federal 6.766 de 1979 que dispunha sobre o Par-
celamento do Solo Urbano , excluíra-se uma área total de 1.499,9496 Ha,
inteiramente inseridas no perímetro urbano.
As áreas excluídas tratavam-se de terras tituladas, destinadas aos
Ministérios da Aeronáutica, do Exército e da Agricultura, além de uma
extensão de terra já reservada à União através do Decreto 1.031/1939, com
área de 243,41 Ha e de grandes glebas denominadas Sítio Ceará, Boa Vista
e Takilândia transferidas na qualidade de título definitivo a proprietários
particulares, com características de latifúndios urbanos.
Este processo de exceção sobre a titularidade fundiária, assim da deli-
mitação original do perímetro urbano, trata-se, sem dúvidas, da centelha
precurssora de grandes vazios urbanos sobre a malha da cidade, incen-
tivando a clandestinidade das ocupações e fomentando a insegurança
jurídica que se perpetua hodiernamente.
Tal fato observa-se mediante a sobreposição das cartas excluídas ori-
ginalmente aos atuais espaços ociosos e subutilizados da área urbana.

963
Interessa notar que a maior porção territorial destas áreas, localiza-se
nos extremos geográficos do perímetro urbano, então se torna perceptível
que daí efloraram os grandes vazios urbanos e ocupações subnormais
existentes na cidade.
Explicitamente, as ocupações irregulares e áreas ociosas que se esten-
dem através de parte da Avenida Imigrantes até os limites da Base Aérea
de Porto Velho, prolongando-se à Avenida Jorge Teixeira e incorporando
os bairros “Nacional” e “São Sebastião”, encontram-se assentadas sobre
áreas averbadas como Títulos Definitivos Milagres I e II, de propriedade
do Governo Estadual de Rondônia.
Alhures, ao leste, destacam-se os grandes aglomerados informais aglu-
tinados sobre os vazios urbanos que se prolongavam do bairro “Ulisses
Guimarães” ao bairro “Teixeirão”, a nordeste, ambos compostos de terras
tituladas pelo INCRA, inseridos na extinta Gleba Rio Madeira.
Os primórdios dos instrumentos de intervenção do solo em Porto
Velho, estes, funcionalistas em gênero, acompanham a sanção Lei de
Zoneamento número 064 de 1973, produto de uma conjuntura de fomento
governamental às ações declaradas prioritárias para uma reforma urbana
de contorno local, denominado “Plano de Ação Imediata”.
Sem dúvidas, a Lei de Zoneamento trouxera consigo rebatimentos de
uma norma de controle predecessora, o Código Municipal de Posturas, a
Lei 53-A sancionada em 27 de dezembro de 1972, no Governo Jacob Freitas
Atalah, além de diplomas mais remotos, contendo singelos regramentos
de ocupação e uso do solo.
As Posturas municipais disciplinam, em determinado grau, as inter-
ferências de ordem estética, higiênica, conservacionista, inclusive social
urbana do município, deixando à margem questões referentes aos aspectos
referentes á destinação do solo urbano.
No entanto o funcionalismo moderno da cidade consagrou-se somente
a partir da Lei de Zoneamento de 1973, que estabelecia normativas sobre
o zoneamento, ordenamento do uso e desenvolvimento dos terrenos e
edificações no âmbito do Município.

964
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A trajetória da estruturação sócio espacial da capital rondoniense


marca-se por sucessivas transformações ao passo que os diplomas nor-
mativos de uso e ocupação do solo dispõem e delimitam os instrumentos
de intervenção.
Cronologicamente, e posteriormente à Lei de Zoneamento de 1973 e
sua revisão através da Lei 475 de 1985, constitui-se a primeira Lei de Uso
e Ocupação do Solo do município, em 1990 e ao curso do Governo Fran-
cisco Chiquilito Erse, revisada através da atual Lei Complementar 098 de
1999 e sustentada pelo Plano Diretor Municipal de 2008 que introduziu
no município os Instrumentos da Política Urbana em sua figura recente.
No bojo da aplicação destes instrumentos, inserem-se as relações
da modelagem sócio-espacial do território municipal, ao mais, inter-
ferindo nas relações de inversão econômica que minoram a informa-
lidade urbana.16
No rol dos instrumentos jurídicos e políticos contemplados pelo Plano
Diretor Municipal, encontra-se disposto o Parcelamento, Edificação e Uti-
lização Compulsória (PEUC), que, em linhas gerais, reproduz os critérios
normativos já dispostos no Estatuto da Cidade.
No plano morfológico de Porto Velho, ao decurso das últimas décadas,
nota-se uma estratificação contínua de padrões e tipologias espaciais que
comumente rechaçam os instrumentos legais de gestão, em especial o
PEUC, motivo pelo qual o perímetro urbano constitui-se, por décadas, por
imensas áreas ociosas.
Como consequência, consubstanciam-se novas formas espaciais
disjuntivas, a exemplo da expansão urbana desordenada com aumentos
de perímetros não planejados, o urban sprawn com a incorporação de no-
vas áreas fragmentadas ao núcleo urbano do município com baixíssimas
densidades populacionais e sempre a exigir novas e maiores áreas para
os assentamentos humanos.17
Ainda, há o surgimento de formações constelares espraiadas, parce-
lamentos clandestinos e informais do solo ocasionando um plus de den-
sidades brutas, sobrepreço do lote urbano e saturação do sistema viário.

965
A incongruência entre o processo de crescimento do município e a
inserção dos instrumentos de gestão, impõe determinados encaixes ter-
ritoriais formados por fenômenos híbridos e desagregadores da topologia
urbana e rural da cidade. Uma espacialidade diferencial onde já se torna
indefinida, inclusive, a própria definição dos lugares para efeito de regu-
laridade e significado18 .
Deste modo, o que se observa ao longo das últimas décadas, é uma
tendência à manutenção de consideráveis áreas sem parcelamento, con-
tíguas às áreas urbanizadas, que resguardam intenso campo de aplicação
dos instrumentos compulsórios indutores de urbanização.
Em Porto Velho, os processos de produção do espaço baseados na
informalidade já não concentram uma questão sintomática, isto é, não
traduzem um fato degenerativo das relações jurídico urbanas, senão,
tornaram-se um fator estrutural na configuração urbana da cidade.
Como casos típicos, possui relevo a criação, através da Lei Comple-
mentar 431/2011, do núcleo urbano de “Nova Mutum Paraná” e do seu
pólo industrial, ambos vinculados ao Distrito de Jacy Paraná, a aproxima-
damente 120 km do distrito sede de Porto Velho:

[...] compreendendo o loteamento “Nova Mutum Paraná”, a mar-


gem esquerda da Rodovia Federal BR 364, KM 818, sentido Acre,
com área de 2.524.577,46 m², (dois milhões, quinhentos e vinte
e quatro mil, quinhentos e setenta e sete metros quadrados e
quarenta e seis decímetros quadrados), a Área de Interesse His-
tórico e Cultural da Estrada de Ferro Madeira Mamoré com área
de 365.681,00m², (Trezentos e sessenta e cinco mil, seiscentos
e oitenta e um metros quadrados), a Zona de Expansão Urbana
com área de 5.333.371,54 (cinco milhões, trezentos e trinta e três
mil, trezentos e setenta e um metros quadrados e cinqüenta e
quatro decímetros quadrados).19

A inserção da “Zona Especial de Interesse Social Tomé de Souza”,


criada pela Lei Complementar 467 de 2012, aponta, no mesmo sentido, a
parcimônia instrumental no fortalecimento de distúrbios urbanos, dada a
ampliação não planejada de seu perímetro formal. Assim:

Fica declarado como Zona Urbana no Município de Porto Velho,


Distrito sede, à margem esquerda do Rio Madeira a área que
compreende o lote nº 338, localizado a margem direita da Ro-

966
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dovia Federal BR 319, sentido Humaitá, com área de 300.113,90


m², (trezentos mil, cento e treze metros quadrados e noventa
decímetros quadrados).20

Esta incorporação de uma nova área reservada à implantação de ha-


bitações de interesse social coaduna-se às demais áreas gravadas para
implantação de ZEIS, já estabelecidas pelo Plano Diretor: I – área entre
a Estrada de Ferro Madeira Mamoré e a Rua Euclides da Cunha; II – área
localizada ao sul do setor Militar; III – área localizada a leste da dos bairros
Cascalheira, Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves.21
Mais além, a sanção das Leis 1.615, 1.616, 1.617 e 1.692, dispondo
sobre a autorização legislativa municipal para receber doação de terras
destinadas à implantação ZEIS, criadas de modo desvinculado ao Sistema
de Planejamento municipal.
Por sua vez, o fato da criação destas novas ZEIS possuírem uma
configuração alheia ao processo estabelecido pelo Plano Diretor, dada a
ausência de lei que instituisse a política municipal de habitação através do
Plano Local de Habitação de Interesse Social-PLHIS, e pela morosidade na
incumbência de competências, confinaram áreas subutilizadas, bolsões
de pobreza e exclusão, hoje, plenamente ocupados por parcelamentos e
edificações clandestinas, aguardando a anistia de um modelo de regula-
rização fundiária tão cara à sustentabilidade urbana.
Não bastante ao endosso do espraiamento urbano, durante a aprovação
da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo n. 097 de 1999, houve
a inclusão de inúmeras áreas à zona urbana de Porto Velho, que ao tra-
mitar da comissão técnica preparatória para a aprovação da Câmara de
Vereadores, teve sua expansão urbana ampliada de 500 m (quinhentos
metros) para 5.000 m (cinco mil metros).

São áreas de expansão urbana as contidas fora do perímetro


urbano até 5.000,00m (cinco mil metros), e outras áreas legal-
mente reconhecidas pelo Poder Público, a estas áreas aplicam-se
o regime urbanístico da ZR1.22

Embora a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo tenha amplia-


do a área destinada à expansão urbana direcionada pelo Plano Diretor,

967
não há, a priori, de ser caracterizada antinomia aparente de normas no
âmbito da urbanística, pois esta se destina a complementar àquela na
pormenorização do zoneamento.
Aliás, a inclusão do supracitado projeto habitacional “Tomé de Sou-
za”, localizada a aproximadamente 930m (novecentos e trinta metros),
utilizou-se desta lacuna, que investe de legislação urbana uma porção
territorial ainda desprovida de parcelamento, que abriga grande maciço
florestal e hidrológico, chegando a abranger 41.462.993, 83 m² (quarenta
e um milhões quatrocentos e sessenta e dois mil novecentos e noventa
e três vírgula oitenta e três metros quadrados) na margem esquerda do
Rio Madeira.
Tal ampliação do perímetro urbano reservou aos proprietários de lotes
inseridos nesta área a permissão para lotear, ressalvadas a servidões am-
bientais e urbanísticas existentes, embora sujeita a regras específicas de
parcelamento, uso e ocupação do solo, como disposto no inciso V do art.
46 da Lei Federal 11.977/2009 e art. 45 da Lei Complementar 311/2008.
Alojou-se na criação destes componentes - que sequer prontificam-se a
caracterizarem clusters urbanos - um padrão complexo de “informalidade-
-legal”, promotor do espraiamento territorial e especulação massiva de
novas áreas da cidade.
Não menos notório, é a desvinculação dos instrumentos municipais da
política urbana aos “núcleos urbanos distritais”. A saber, o município de
Porto Velho possui uma vasta extensão territorial de 34.096,388 Ha o que
introduziu em sua mancha urbana uma característica de “pulverização”
da ocupação, decorrendo na criação de 12 (doze) distritos.
Já no Plano Diretor municipal, considera-se como Macrozona Urbana,
não somente o núcleo urbano do distrito sede como também os demais
núcleos urbanos distritais . Daí surge uma série de conflitos de ordem
23

fundiária, potencializadores da inoperância do Poder Público sobre o con-


trole de vazios urbanos: o não atendimento à exigência de demarcação do
perímetro nos respectivos núcleos urbanos, a incapacidade de promover
imediata regularização fundiária uma vez que tais áreas encontram-se

968
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sob o domínio da União.


A deleção do poder público em delimitar estas áreas e a ausência de
um plano de desenvolvimento setorial específico fomentou a forma sem
norma dos grandes aglomerados, alejando-se de padrões similares aos
das “cidades de contorno”24 e deixando um imenso passivo de irregula-
ridade e vazios urbanos sobre a ocupação do solo, para além dos limites
do distrito sede .
A burla ao sistema formal de parcelamento do solo pra fins urbanos, é
uma realidade flagrante que não condiz com o princípio basilar da função
social da propriedade.
Mormente a este aspecto, a Lei Municipal de Parcelamento uso e
Ocupação do Solo e a Lei Federal de Parcelamento do Solo Urbano e,
dispõem sobre as medidas punitivas que devem recair sobre aquele que
loteie ou desmembre o solo sem autorização do órgão público competente,
sem observância das determinações constantes do ato administrativo de
licença ou mesmo veicular em proposta, contrato, prospecto ou comu-
nicação ao público ou a interessados, afirmação falsa sobre a legalidade
do empreendimento.25
Aloca-se um contrassenso na proliferação de vazios urbanos nos rin-
cões da cidade, considerando que são diversos os instrumentos de controle
e ocupação do solo, estatuídos originalmente pelo Estatuto da Cidade e
replicados pelo Plano Diretor Municipal de Porto Velho. Na verdade trata-
-se de institutos constituídos, com intuito de estabilizar a distribuição de
renda derivada do solo e universalização do acesso à terra urbanizada.
O liame entre os instrumentos da política urbana e a gestão munici-
pal conserva estreiteza absoluta, consistindo na sustentação de planos,
programas e práticas controladas que assegurem que o crescimento
populacional seja acompanhado por acesso a infraestrutura, habitação
e emprego26, assim como o controle de determinados processos, como
concentração e dispersão espaciais, que conformam a organização do
espaço em suas origens e dinâmica.
A proliferação de terras vazias, na caleça da história do município,

969
trouxe como consequência uma mixórdia fundiária que não se distancia
das práticas de estruturação urbana nas demais cidades brasileiras onde
prepondera o modelo do espraiamento urbano e da insegurança sobre
posse da terra.
Neste obsoleto modelo de cidade, numerosas e vultosas áreas segui-
ram o desenvolvimento à margem do planejamento prévio e integrado,
com ausência de sistema viário, sem fixação de padrões, reserva de áreas
verdes, de espações público ou provisão de infraestrutura básica. Assim,
o acúmulo de disfunções comprometeu e reduziu a habitabilidade urbana
e afetando a qualidade de vida da população.27
Assim, a aplicação de medidas compulsórias para o ordenamento
territorial e urbanização controlada, emergem como elementos fulcrais
para controle do crescimento espontâneo e desordenado, da frag-
mentação da malha urbana e do gradativo espraiamento da unidade
morfológica municipal.

5. PARCELAMENTO, EDIFICAÇÃO E UTILIZAÇÃO


COMPULSóRIA: UMA FERRAMENTA PARA
FUNCIONALIZAÇÃO SOCIAL DE PORTO VELhO

O instituto do “parcelamento, edificação ou utilização compulsórios”,


é um instrumento que tem como objetivo “coibir a ociosidade de terrenos
bem localizados da cidade ou dotados de infraestrutura pública, estimu-
lando um melhor aproveitamento” 28
e traz, em decorrência do seu não
cumprimento, a imputação sequencial de punições e sanções.
O Plano Diretor do município alberga a obrigação constitucional de
contemplar o instrumento, definindo e delimitando as áreas da cidade nas
quais os proprietários deverão ser notificados para proceder ao adequado
aproveitamento dos seus imóveis.

Esta providência é fundamental para que o município aplique o


conjunto de instrumentos que lhe permitirão combater e retenção
especulativa de imóveis urbanos que se enquadrem nas catego-
rias de não utilizados ou subutilizados. A retenção especulativa

970
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de imóveis urbanos é uma das formas de especulação imobiliária,


que contribui para a exclusão urbanística ou socioterritorial, que
se manifesta nos fenômenos de favelização e periferização da
população. A exigência de parcelamento, edificação ou utilização
compulsórios é o primeiro passo de uma sequência que se com-
bina para ampliar o acesso à terra bem localizada, possibilitando
um melhor resultado da aplicação dos recursos públicos para a
produção habitacional destinada às famílias de baixa-renda.29

A regulação sobre áreas vazias e ociosas localizadas perímetro urbano


e sua indução ao devido aproveitamento, portanto, trata-se de obrigação
do Poder Público, constitucionalmente estabelecida no parágrafo 4º do
art. 182, devendo exigir ao proprietário do solo urbano não edificado em
área delimitada pelo Plano Diretor, mediante lei específica, a promoção
do seu adequado aproveitamento sob pena sucessiva de parcelamento ou
edificação compulsória; imposto sobre a propriedade predial e territorial
urbana progressivo no tempo; desapropriação com pagamento mediante
títulos da dívida pública.30
Seguindo esta toada, O Estatuto da Cidade, em sua Seção II, contempla
o instrumento e amplia sua aplicabilidade, delegando o detalhamento
à lei municipal derivada do Plano Diretor que deve fixar prazos para o
cumprimento das obrigações estabelecidas, considerando subutilizado
o imóvel cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano
diretor ou em legislação dele decorrente.31
Ressalta-se que a notificação do proprietário de imóveis vazios ou
subutilizados se dá através do Poder Executivo municipal e que há, neces-
sariamente, a obrigação de proceder devida averbação desta no cartório de
registro de imóveis. Tal subscrição da notificação, na respectiva certidão
de propriedade é de suma importância, tanto pela imputação da obriga-
ção de fazer ao proprietário como pelo vínculo do ato ao objeto afetado.
A notificação ao proprietário pelo Executivo municipal dar-se á por
funcionário do órgão competente do Poder Público municipal ou por edital
quando frustrada, por três vezes, a tentativa de notificação po funcionário.
A diretriz também é replicada na Lei Orgânica do Município de Porto
Velho, demonstrando que a política urbana municipal tem por objetivo

971
ordenar o pleno desenvolvimento da função social da cidade, onde:

O proprietário de solo urbano incluído no plano diretor, com


área não edificada ou não utilizada nos termos da lei federal,
deverá promover seu adequado aproveitamento, sob pena, su-
cessivamente, de I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II- imposto sobre a propriedade predial e territorial progressiva
no tempo;III- desapropriação com pagamento mediante título
da dívida pública municipal, de emissão previamente aprovada
pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos em
parcelas anuais iguais e sucessivas, assegurados o valor real da
indenização e juros legais.32

Já na oportunidade da elaboração do Plano Diretor de Porto Velho, fôra


gravado um plano de manchas que definiu a localização dos vazios urba-
nos municipais, assim como dos parcelamentos que apresentavam baixa
densidade construtiva, isto é subutilizados, majoritariamente situados à
zona leste da cidade, passíveis de incidência de parcelamento, edificação
e utilização compulsória pelo poder público.
Não coincidentemente, estas áreas alocam-se nos setores cadastrais
inseridos nas áreas delimitadas por antigas cartas de aforamento, sem
olvidar das demais áreas obsoletas localizadas sobre bens dominicais (ou
dominiais) em área urbana.
Para Helly Lopes Meirelles, bens dominiais “são aqueles que, embora
integrando o domínio público como os demais, deles diferem pela possi-
bilidade sempre presente de seremutilizados em qualquer fim ou, mesmo,
alienados pela Administração, se assim desejar.”33
Para fins de consolidação dos vazios sobre estes bens, é relevante a
adoção de medidas exortadas pela Lei nº 9.636 de 15 de maio de 1998 que
dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de
bens imóveis de domínio da União, mediante convênio.
Afinal, o instituto de parcelamento, edificação e utilização do solo
há de incidir sobre todas as áreas vazias intraurbanas, sejam estas de
propriedade pública a ou privada, no sentido de vinculação do interesse
social ao interesse público.

O valor estratégico dos bens imóveis que compõem o Patrimônio


da União reside no fato de se constituírem em terrenos e edifica-
ções geralmente localizados em áreas de grande valorização eco-

972
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nômica nas cidades [...] ou de significativa fragilidade ambiental,


como é o caso dos terrenos situados ao longo da orla marítima
e margens de rios, e abrigar em, ainda, uma importante reserva
de vazios urbanos, com grande potencial para atendimento a
demandas sociais.34

O que resta pendente para a observância constiucional do Instrumento


do Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsória em Porto Velho,
além da notificação dos proprietários para cumprimento da obrigação em
prazo definido, é a demarcação individual dos lotes e a regulamentação dos
casos passíveis de incidência da progressividade do Imposto Predial Terri-
torial Urbano-IPTU, muito embora o mapa 11 do mesmo anexo apresente
a delimitação de três setores de aplicação imediata da punição sanção.
Por sua vez, o IPTU progressivo no tempo, impõe-se como medida
extrafiscal ao proprietário que descumprir os prazos da notificação para
proceder com o parcelamento, edificação ou utilização de seu terreno,
incindindo por no máximo 5 (cinco anos) sobre o valor venal do imóvel
com alíquota limite de 15%.
Findo este período, o Poder Público municipal estará autorizado a
desapropriar o imóvel mediante pagamento ao proprietário de títulos da
dívida pública, ou mesmo mediante unidades imobiliárias urbanizadas caso
seja estabelecido consórcio, nos termos do Estatuto da Cidade: “O Poder
Público municipal poderá facultar ao proprietário de área atingida pela
obrigação de que trata o caput do art. 5o desta Lei, a requerimento deste,
o estabelecimento de consórcio imobiliário como forma de viabilização
financeira do aproveitamento do imóvel.”35
Os prazos, estabelecidos pelo Plano Diretor de Porto Velho, são de
um ano, a partir da notificação, para que seja protocolado o projeto no
órgão municipal competente; prazo de um ano, a partir da aprovação do
projeto, para iniciar as obras do empreendimento e prazo de um ano para
utilização da edificação ou reinício da obra, sendo que “a transmissão do
imóvel, por ato intervivos ou causa mortis, posterior à data da notificação,
transfere as obrigações de parcelamento, edificação ou utilização”36
Diz-se extrafiscal a cobrança do IPTU progressivo no tempo, pelo seu

973
caráter doutrinário à urbanização, isto é, uma exação fiscal não meramen-
te arrecadatório, destinada a impor um comportamento ao proprietário.
Na esfera das normas infraconstitucionais federais, traduz um novo
marco jurídico a Lei 11.124/05, que institui o Sistema Nacional de Habi-
tação de Interesse Social – SNHI e tem, como objetivos, dentre outros,
“viabilizar para a população de menor renda o acesso à terra urbanizada
e à habitação digna e sustentável”.37
Sua redação aponta claramente para a priorização de áreas já con-
solidadas da cidade de forma a ampliar a garantia do direito à moradia e
habitação, trazendo, ainda, a diretriz de “utilização prioritária de incentivo
ao aproveitamento de áreas dotadas de infraestrutura não utilizada ou
subutilizada, inseridas na malha urbana.” 38
Aí, encontra-se inserido o princípio de direito à moradia confrontante
ao elevado número de vazios urbanos presentes na malha urbana com
infraestrutura disponível para atender o déficit habitacional.
Dado este esboço, a política para implantação dos instrumentos urba-
nísticos de parcelamento, ocupação e utilização do solo, segue em fluxo
contrário à supressão do déficit habitacional.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estadistica-IBGE, aponta um dé-
ficit habitacional de 35 mil moradias em Porto Velho39. Este quantitativo
aproxima-se dos dados fornecidos pelo Plano Local de Habitação - PLHIS
que descreve uma carência de aproximadamente 30 mil moradias, tendo
utilizado a metodologia da Fundação João Pinheiro e Ministério das Cidades
durante o levantamento de dados.
Factualmente, levantamentos recentes da Prefeitura Municipal de Porto
Velho, demonstram que o déficit aproxima-se de 50.000 (ciquenta mil)
moradias, ao passo em que o número de unidades imobiliárias particulares
desocupadas e vagas é de 5.614.
Evocando o preceito constitucional de utilização do imóvel urbano
vazio ou subutilizado, vislumbra-se nesses espaços o cumprimento da
função social, baseado na defasagem do acesso à moradia, pela via do
parcelamento ou utilização compulsória.

974
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Em um monitoramento promovido pelo Departamento de Gestão


Urbana da Prefeitura Municipal de Porto Velho, com base no cadastro
do Sistema Integrado de Administração Tributária - SIAT40 levantou o
quantitativo e a localização das atuais áreas vazias inseridas nos limites
urbanos do Distrito Sede de Porto Velho, constituído de lotes e glebas
com área superior a 1.000 m² (um mil metros quadrados).Tal dimensão é
preâmbular, uma vez que não se encontra definida em lei, porém se presta
como indicador de um conteúdo mínimo necessário ao cumprimento da
função social destas propriedades vazias e subultilizadas.
A metodologia para detecção dos vazios urbanos seguiu a seguinte
rotina: através do mapeamento georreferenciado, foram marcados, inicial-
mente, os lotes rurais e glebas vazias contidas na Macrozona de Expansão
Urbana, totalizando 1.065 (mil e sessenta e cinco) unidades imobiliárias
com uma área aproximada de 265.878.553,15 m² (duzentos e sessenta e
cinco milhões oitocentos e setenta e oito mil quinhentos e cinquenta e
três vírgula quinze metros quadrados).
Posteriormente, definiu-se o quantitativo total de vazios urbanos, em
cômputo de 20.230 (vinte mil duzentos e trinta) unidades imobiliárias, com
ou sem cadastro municipal, totalizando uma área aproximada de 274.719.
053,70 m² (duzentos e setenta e quatro milhões setecentos e dezenove
mil cinquenta e três vírgula setenta metros quadrados ) .
Assim, chegou-se a um percentual de lotes vazios estimado em 19%
das unidades imobiliárias existentes no perímetro urbano atual. Número
que não transparece o provimento real de terras, uma vez que, traduzido
em área bruta, descreve um percentual de 78,0584 % de área urbana dis-
ponível, sem o devido aproveitamento.

6. CONCLUSÕES

Dada a imensa quantidade de solo ainda disponível para utilização e


implantação de infraestrutura, desponta a aplicação do instrumento de
parcelamento, edificação e utilização compulsória à medida que desponta

975
uma forte pressão dos setores econômicos em direção a uma nova amplia-
ção do perímetro urbano, que se destinaria a beneficiar exclusivamente
algumas propriedades privadas de modo pontual.
Observa-se a necessidade de tomada de decisão do ponto de vista do
planejamento urbano estratégico pelo Poder Público Municipal, sistema-
tizando as áreas prioritárias para a intervenção e alcance do instrumento,
de maneira coordenada com as demandas existentes, sejam elas de pro-
vimento e adensamento habitacional, edilício ou mesmo sob o aspecto
de incremento dos espaços públicos e áreas verdes, partindo dos espaços
mais centrais às franjas da cidade.
De modo geral, Porto Velho apresenta uma realidade inconveniente no
âmbito da ocupação de áreas da União, que foram excluídas assim do pro-
cesso de demarcação original do perímetro urbano, com lenta transferência
ao patrimônio estadual e municipal para fins de regularização fundiária.
Tais terras constituem histórico modelo de manutenção da ociosidade
em grandes áreas urbanas, a considerar sua implicação em obste primário
ao parcelamento do solo e, consequentemente, à garantia da posse em
cumprimento à função social da propriedade. Tanto é que figuram como
terras devolutas, e devolutas são, pois desocupadas permaneceram até
sua devolução à União da República.
Torna-se necessário, a adoção de perspectivas menos perdulárias, com
a compatibilização do desenvolvimento local ao uso e ocupação do solo,
aos recursos ambientais, à infraestrutura urbana, à oferta de equipamen-
tos urbanos e comunitários e à mobilidade de pessoas e bens através da
requalificação na ocupação dos terrenos urbanos ociosos.

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976
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

_______, Lei nº 11.124, de 16 de Junho de 2005. Dispõe sobre o Sistema Nacional


de Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de
Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS.
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tor_informal.pdf>. Acesso em 28 de junho de 2013.

NOTAS

1 Arquiteto e Urbanista. Especialista em Direito Ambiental e Urbanístico. Prefeitura Municipal de Porto Velho.
Arquiteto e Urbanista. E-mail: digitoimagem@gmail.com
2 Arquiteta e Urbanista. Especialista em Licenciamento Ambiental. Instituto Federal de Rondônia. Professora
EBTT. E-mail: danielaprodrigues@gmail.com
3 Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de
1988,estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.
4 PINTO (2010)
5 SANTOS,1988.
6 Informação fornecida por Raquel Rolnik, em palestra proferida em 12 de agosto de 2005, com o tema “Pla-
nejamento em questão”, na Universidade Estadual do Maranhão.
7 REIS, 2006.
8 MORALES, 2002
9 SANTOS, 2005.
10 SPÓSITO, 2000.
11 SMITH, 1984.
12 LEFEBVRE, 1973.
13 LAMAS,2007.
14 Fonte: Seplan (Dados SIMI). Item 2. Demografia.
15 IBGE. Censo:2010.
16 ZEMKO, 2004.
17 GALSTER et al.,2001.
18 LACOSTE, 1988.
19 Art. 1º da Lei Complementar 431de 04 de Outubro de 2011.
20 Art 1º da Lei complementar 467 de04 de Setembro de 2012.
21 Art. 44 do Plano Diretor Municipal de Porto Velho; Lei Complementar 311 de 30 de junho de 2008
22 Art. 6º; Parágrafo 5º da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo-Lei Complementar 097/1999
23 Art.13; § 1º da Lei Complementar 311/2008.
24 GARREAU, 1988.
25 Lei Complementar 097/1999 e art. 50 da Lei Federal 6.766/1979, respectivamente.

978
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

26 DAVEY, 1993.
27 FARIA,1995.
28 ROLNIK, 2010, org.
29 SALANDÍA,2013
30 Constituição da República federative do Brasil de 1988.
31 Art. 5o ; § 1o da Lei 12.257/2001.
32 Art.144;parágrafo 4 da Lei Orgânica de Porto Velho.
33 MEIRELLES.Direito Administrativo Brasileiro, 2000.
34 BORGES;LEAL.2011.
35 Art. 46 da Lei 12.257/2001.
36 Art.33 da Lei Complementar 311/2008.
37 Art. 2°da Lei Federal 11.124/2005.
38 art. 4° da Lei Federal 11.124/2005.
39 Dados do Censo 2010.
40 Monitoramento executado em 2013.

979
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Entre regularizar e remover: análise


crítica da (in)adequação jurídica do
instituto da desapropriação em casos
de remoções forçadas

Talita de Fátima Pereira Furtado Montezuma1

INTRODUÇÃO

A dinâmica de expulsão de comunidades de baixa renda das regiões


valorizadas da cidade remonta ao período da Revolução Industrial eu-
ropéia, com a segregação espacial entre operários e classes burguesas,
perpassando a criação dos cortiços, a instituição de políticas higienistas,
a formação das primeiras favelas, etc. Com o adensamento populacio-
nal e a complexifição das relações capitalistas, a terra urbana assume
papel central no atual sistema de produção, circulação e consumo dos
bens da cidade.
Neste sentido, observa-se a iminência e a atualidade de conflitos
fundiários envolvendo a remoção de comunidades de baixa renda e ju-
ridicamente irregulares. A instauração do modelo de desenvolvimento-
-crescimento e a instalação de empreendimentos urbanos catalisam
este processo.
Os conflitos desafiam os agentes e os signos do campo jurídico, na
medida em que são constantemente provocados a ofertar respostas,
mediar negociações, imprimir interpretações aos textos legais, etc.,
assumindo posições estratégicas na condução de conflitos com as-
pecto jurídico-político. Boltanski e Chiapello acentuam que o Direito
pode ser visto enfatizando-se a maneira como legitima desigualdades

981
e infere uma ordem de justificação ao capital, essencialmente anômico
ou amoral, ou enfatizando-se:

A maneira como ele possa servir de recurso àquele que tenham


sido desfavorecidos por uma prova, quer por ela não se basear
num princípio legítimo de justiça, quer por sua realização local
ter transgredido os procedimentos reconhecidos como válidos
(legais), quer por seus resultados desfavoráveis terem sido re-
gistrados ad aeternum e ter sido recusada aos desfavorecidos a
possibilidade de fazer novas provas.2

A concretização de um padrão de normatividade justa, que utilize suas


injunções na contenção da explorabilidade capitalista, depende “em grande
parte da força da crítica à qual será exposto o processo capitalista e da
pressão exercida sobre os governos para utilizar a arma que só pertence
a ele: o direito”3. Neste sentido caminha a análise ora exposta, no reforço
ao papel da crítica em questionar a adequação dos instrumentos jurídicos
utilizados em conflitos urbanos coletivos.
Objetiva-se, portanto, analisar em que medida o instituto jurídico da
desapropriação conforma um modelo adequado para lidar com conflitos
fundiários coletivos, marcados por violações multidimensionais de direitos.
Ademais, procura-se estabelecer uma compreensão sistêmica do ordena-
mento, verificando dispositivos nacionais e internacionais e realizando
diálogo multidisciplinar.
Considera-se a hipótese de que existe mitigação da aplicabilidade dos
instrumentos democráticos da política urbana, notoriamente daqueles
relacionados com a regularização fundiária, quando remoções forçadas
são efetivadas por intermédio do instituto expropriatório. Assim, cria-se
aparente antinomia no ordenamento, na medida em que os institutos
urbanísticos possuem a efetividade mitigada ao privilégio da lógica patri-
monialista da desapropriação.
Na metodologia, utilizam-se procedimentos de revisão de literatura,
pesquisa legislativa e análise documental. No referencial teórico, traba-
lham-se as noções de crescimento urbano, direito à cidade, remoções
forçadas e o instituto da desapropriação.

982
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Ao desenvolver o estudo proposto, realiza-se breve caracterização


do processo de ocupação de terras e de efetivação do direito à moradia
nas cidades brasileiras. Posteriormente, destaca-se o tratamento que
organizações internacionais e movimentos sociais têm dado à remoção
forçada, apontando-a como prática de violação de direitos humanos.
Ainda, busca-se delimitar o funcionamento do instituto desapropriatório
para questionar em que medida pode instrumentalizar as remoções. Por
fim, registram-se os resultados analíticos da pesquisa.

I. NOTAS SOBRE O CRESCIMENTO URBANO BRASILEIRO

A velocidade do crescimento urbano a partir da década de 19404 leva


para as cidades a maior concentração das residências brasileiras e acirra
os conflitos fundiários pelo direito a acessar e viver no espaço urbano.
A concentração não é apenas demográfica, mas também de violações
de direitos básicos. Também se observa a concentração de condições pro-
pícias para o desenvolvimento do capitalismo: mão de obra reserva para
as indústrias, mercado consumidor, acessibilidade, facilidade em estreitar
relações e a circulação de produtos e atividades comerciais.

No estágio atual do desenvolvimento do capitalismo, o urbano


aparece como o lugar onde se concentram as atividades produ-
tivas, a infra-estrutura necessária à produção e à circulação de
mercadorias e a força de trabalho, constituindo-se, portanto, em
condição necessária para o avanço do processo de acumulação.5

A instalação de equipamentos públicos, o crescimento direcionado da


cidade para determinada área e a propaganda realizada pelos promotores
imobiliários confluem na valorização do espaço urbano, fazendo com que
os proprietários fundiários aufiram lucro suplementar que se converte
em renda da terra, aumentando a renda real dos que já possuem capital
monetário e fundiário6.
Os interesses dos agentes de mercado tendem a se aproximar e a
tensionar as políticas urbanas. Seu poderio direciona-se para a trans-

983
formação da terra e dos bens urbanos em mercadoria, desqualificando
sua compreensão enquanto direitos, afinal a “acumulação do capital é
o objetivo e o resultado não menos inevitáveis de todos os mecanismos
econômicos capitalistas”7.
Famílias de baixa renda, privadas das condições econômicas de
acesso à moradia formal, buscam e constroem seus locais de vida e
residência através das ocupações de terras, marcadas pelo estigma da
ilegalidade ou identificadas como manifestação das formas de resistên-
cia e sobrevivência dos grupos dolorosamente incluídos no modelo de
cidade-empreendimento.

É na produção da favela, em terrenos públicos ou privados inva-


didos, que os grupos sociais excluídos tornam-se, efetivamente,
agentes modeladores, produzindo seu próprio espaço, na maioria
dos casos independentemente e a despeito de outros agentes.
A produção deste espaço é, antes de mais nada, uma forma de
resistência e, ao mesmo tempo, uma estratégia de sobrevivência.
Resistência e sobrevivência de grupos sociais recém-expulsos do
campo ou provenientes de áreas urbanas submetidas às opera-
ções de renovação, que lutam pelo direito à cidade.8

Neste cenário, percebe-se a incidência de dois dos mais marcantes


aspectos do crescimento urbano das cidades brasileiras: a especulação
fundiária9 e a segregação socioespacilal10.
Não incomum que a busca por um lugar na cidade conduza essas
populações para regiões ambientalmente vulneráveis e/ou juridicamente
irregulares, constituindo as chamadas áreas de risco, em que se combinam
a degradação ambiental (como lixões, áreas sujeitas às contaminações,
inundações, etc.) com a vulnerabilidade social dos moradores ocupam
tais espaços. Sobre o assunto:

A ocupação de áreas frágeis ou estratégicas do ponto de vista


ambiental – como mananciais de água, complexos dunares ou
mangues – é decorrente de um padrão extensivo de crescimento
por abertura de novas fronteiras e expulsão permanente da po-
pulação mais pobre das áreas ocupadas pelo mercado.11

A autoconstrução da moradia ocorre com os recursos disponíveis à


população que, por seus baixos salários e falta de assistência técnica,

984
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

constroem o espaço urbano a partir de suas necessidades e possibili-


dades. Para obtenção de serviços públicos, as comunidades em vias de
consolidação organizam-se na reivindicação por fornecimento de água,
energia, saneamento, construção de escolas, posto de saúde e outros
sérvios essenciais.
A consolidação da comunidade coloca o Estado numa situação ambí-
gua, senão paradoxal. Pressionado pelas reivindicações comunitárias e
sem poder negar a consolidação da moradia informal como opção viável
daquelas pessoas, o Estado realiza pequenas intervenções e concede al-
guns benefícios mínimos à existência da comunidade. Realiza, por outro
lado, comportamento oposto: perdura em omissão no dever de urbanizar
a área e dotá-la dos equipamentos públicos necessários a uma vida digna;
omite-se em seu papel de promover regularização da área, mantendo-a nos
padrões de informalidade e ilegalidade; e, através de um comportamento
ativo, no qual favorece as dinâmicas e demandas do mercado formal, é
permissivo com os processos de especulação urbana, quando não é mesmo
o agente imediato promotor de despejos comunitários.
Ademais, a implementação dos serviços e equipamentos públicos
tende a ocorrer pontual e gradativamente. Muitas vezes, servem de
objeto de troca, em um modo arcaico de fazer política. Por diversos
motivos, tem-se que a ocupação irregular de terras é essencialmente
funcional ao Estado:

Os legislativos mantêm com esse universo uma relação muito


funcional, já que as anistias periódicas visando a regularização de
imóveis são alimento fecundo da relação clientelista. A ilegalida-
de é portanto funcional – para as relações políticas arcaicas, para
um mercado imobiliário restrito e especulativo, para a aplicação
arbitrária da lei, de acordo com a relação de favor.
Dependendo do ponto de vista, no entanto, ela é muito disfun-
cional: para a sustentabilidade ambiental, para as relações de-
mocráticas e mais igualitárias, para a qualidade de vida urbana,
para a ampliação da cidadania.12

Observa-se a perspectiva disfuncional ou a desproporção com que


os grupos sociais economicamente vulneráveis e de baixa incidência
institucional sofrem as conseqüências da omissão estatal e suportam um

985
duplo ônus social: a deslegitimação de suas moradias e o alto preço dos
impactos do chamado ‘desenvolvimento’ urbano.

II. REMOÇÃO FORÇADA E A UTILIZAÇÃO


DO INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO

Em conflitos fundiários coletivos que envolvem o direito à cidade de


comunidades consolidadas, observa-se que a remoção apresenta-se como
prática violadora de diversos direitos humanos. Muitas vezes, o Estado
pretende desapropriar os terrenos, ofertando permuta de casas em bair-
ros periféricos ou, quando muito, indenizações que apenas contemplam
o valor das benfeitorias, sendo rara a incorporação do valor do terreno.
Destarte se reconheça a importância das origens do instituto da de-
sapropriação, bem como sua validade no ordenamento jurídico vigente,
questiona-se acerca de sua adequação jurídica enquanto suporte legal
aos processos de remoção forçada, em face do atual quadro normativo
do Direito Urbanístico e Constitucional, que prezam pela consolidação de
políticas urbanas democráticas.
A justificativa política para intervenção do Estado na propriedade
dá-se a partir da concepção do Estado Social em superação ao Estado
Liberal, passando a considerar maior necessidade de ingerência estatal
na esfera privada dos homens, a fim de atenuar as desigualdades sociais
e regulamentar as relações econômicas, mantendo. Nesta ótica, o Estado
intervencionista deve existir para assegurar o interesse social. Torna-se,
portanto, incoerente pensar que a desapropriação – outrora oriunda dos
princípios do Estado Social – é utilizada para na desconstrução de tecidos
sociais comunitários, alargando o déficit social e a negação de direitos
humanos na cidade.
Com a proclamação constitucional da função social da propriedade
(Art. 5º, inciso xxIII, Constituição Federal), encerra-se definitivamente a
concepção de que a propriedade seria um direito absoluto, de usar, gozar
e dispor da maneira que o proprietário entendesse fazê-lo, ou mesmo,

986
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

possibilitando que ele nada fizesse: a relação com o bem se limita pela
supremacia do interesse coletivo que passará a estabelecer os contornos
sobre os quais a propriedade pode ser exercida legitimamente.
A desapropriação, portanto, é maneira de intervenção supressiva do
Estado na propriedade, gerando transferência na titularidade do bem.

Segundo entendemos, desapropriação é instituto de direito pú-


blico, que se consubstancia em procedimento pelo qual o Poder
Público (União, Estados-membros, Territórios, Distrito Federal e
Municípios), as autarquias ou a entidades delegadas autorizadas
por lei ou contrato, ocorrendo caso de necessidade ou utilidade
pública, ou, ainda, de interesse social, retiram determinado bem
de pessoa física ou jurídica, mediante justa indenização, que, em
regra, será prévia e em dinheiro, podendo ser paga, entretanto,
em títulos da dívida pública ou da dívida agrária, com cláusula
de preservação do seu valor real, nos casos de inadequado apro-
veitamento do solo urbano ou de Reforma Agrária, observados
os prazos de resgate estabelecidos nas norma constitucionais
respectivas.13

1 SISTEMáTICA DO INSTITUTO

Na atual sistemática, a desapropriação encontra-se prevista pela


Constituição Federal de 1988 em seu Art. 5º, inciso xxIV. Ocorre que a
regulamentação do procedimento desapropriatório editou-se em tempos
anteriores à Constituição de 1988, ou seja, num período distante da atual
orientação centrada na valorização da dignidade humana e dos direitos
fundamentais.
O Decreto-Lei 3.365/41, conhecido como Lei Geral das Desapropria-
ções, regula os casos de desapropriação por utilidade pública e subsidia o
procedimento dos demais casos. A Lei 4.132/64 regula a desapropriação
por interesse social e as Leis 4.505/64, Lei 8.629/93, Leis Complementares
nº 76/93 e 88/96, regulam a desapropriação para fins de Reforma Agrária.

A desapropriação é um procedimento administrativo que se realiza


em duas fases: a primeira, de natureza declaratória, consubstan-
ciada na indicação da necessidade ou utilidade pública ou do
interesse social; a segunda, de caráter executório, compreendendo
a estimativa da justa indenização e a transferência do bem ex-
propriado para o domínio do expropriante14. (grifos no original)

987
Verifica-se que se trata de procedimento e não de ato administrativo,
ou seja, a deflagração e a regularidade de todas as fases mostram-se es-
senciais para validade do efeito final almejado: a expropriação do bem. O
poder público decreta a área como de utilidade pública ou interesse social,
decreto cujo efeito é meramente declaratório da vontade expropriante e
adstringe-se à deflagração do início do procedimento, não constituindo
ato expropriatório que autorize, de pronto, medidas de intervenção su-
pressiva no bem.
Após sucessão das fases do procedimento, com a devida publicidade
e esclarecimento da hipótese de utilidade pública declarada, o poder pú-
blico inicia negociação com o particular, a fim de averiguar o montante
da indenização, que deve ser justa, prévia e em dinheiro, conforme aduz
o texto constitucional. Havendo acordo quanto ao valor, o expropriante
deverá pagar a indenização e realizar escritura pública do imóvel que, por
aquisição originária, agora pertencerá ao domínio público; não havendo
acordo, ajuíza-se ação no Poder Judiciário, a fim que se determine o valor
justo de indenização.
O Decreto-Lei 3.365/41 traz, ainda, mais alguns aspectos que devem
ser registrados sobre a desapropriação: dita que a autoridade competente
para declarar utilidade pública é o chefe do Poder Executivo; estabelece
os bens passíveis de desapropriação, apenas os de natureza patrimonial;
especifica os casos em que ocorre utilidade pública para fins de desapro-
priação; traz a vedação de que o Poder Judiciário decida sobre a ocorrência
ou não o casso de utilidade pública, deixando a designação na seara da
discricionariedade do administrador; dispõe sobre o foro, a petição inicial
e demais aspectos procedimentais do Processo Judicial.
Sobre tal decreto, cumpre mencionar que este unificou os conceitos
de necessidade e utilidade pública neste último. Publicado sob a égide
da Constituição de 1937, que não previa a desapropriação por interesse
social, o instituto limitou-se aos casos de utilidade pública.
Com a promulgação da Constituição de 1946, nitidamente mais demo-
crática, a hipótese de desapropriação por interesse social foi prevista em

988
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

seu art. 141, §6º, sendo regulamentada apenas em 1962, com a edição
da Lei 4.132/62.
Nem utilidade pública, nem interesse social são conceitos identificáveis
com o interesse da Administração, tampouco com interesses de Governo.
As leis específicas trazem rol das hipóteses de incidência de cada conceito,
ou seja, não cabe ao Administrador criar definições e sim conformar o
caso concreto com as previsões legais.

Na desapropriação por utilidade pública as hipóteses legais que


autorizam o exercício do poder expropriatório, como visto, são
diferentes daquelas previstas na desapropriação por interesse
social. Além disso, o prazo de caducidade da declaração de uti-
lidade pública para desapropriação realizada com fundamento
em necessidade ou utilidade pública é de cinco anos e o prazo
de caducidade da declaração de interesse social, com fins de
desapropriação, é de dois anos15.

Cumpre registrar a sutileza do liame entre as definições, impondo ár-


duos exercícios de reflexão nos casos concretos. Nos casos de remoções
de comunidades, o assunto ganha relevo ao se promover indagações: no
caso de interesse social, a redistribuição fundiária não seria também e,
primordialmente, de interesse público, diante da necessidade de realização
da função social da propriedade? No caso do interesse público, medidas
de regularização de terras de comunidades carentes e vulnerabilizadas
não atenderiam, senão apenas ao interesse daquela coletividade, mas de
toda sociedade, na promoção de uma cidade justa e integradora?

II.2 REMOÇÕES FORÇADAS E


VIOLAÇÕES DE DIREITOS hUMANOS

O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais


da ONU, garante proteção ao direito à moradia, em seu artigo 11. Com base
neste documento, a ONU monitora e produz relatórios sobre a efetividade
do direito à moradia nos países signatários do acordo. Desta forma, o Co-
mentário Geral nº 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

989
da ONU dispõe sobre o conteúdo do direito à moradia adequada. Já em
seu Comentário Geral nº 7 (2004, on-line), o Comitê trata dos despejos
forçados e seus impactos sobre os direitos das populações atingidas. Inicia
afirmando a obrigação dos governos signatários do Pacto em melhorar os
bairros e condições de vida da população, colocando como última opção
a prática de despejos, definindo-os:

El empleo de la expresión “desalojos forzosos” es en cierto modo


problematico. Esta expresión pretende transmitir el sentido de
arbitrariedad e ilegalidad. [...], el término “desalojos forzosos”
se define como el hecho de hacer salir a personas, familias y/o
comunidades de los
hogares y/o las tierras que ocupan, en forma permanente o pro-
visional, sin ofrecerles medios apropiados de protección legal o
de otra Ìndole ni permitirles su acceso a ellos16.

Com fulcro no Comentário e no monitoramento da ocorrência de despe-


jos forçados, a relatoria especial da ONU sobre direito à moradia adequada
elabora documento17 que inicia reafirmando a posição de que a Comissão
sobre despejos forçados entende esta prática como grave atentado aos
direitos humanos, especialmente ao direito à moradia adequada, ao direito
à cidade, à preservação da dignidade e vida íntima do cidadão, bem como
o direito de não ser violado pelo Estado e de participar democraticamente
dos processos de tomada de decisões locais. Em trechos, o documento
resgata o e afirma que:

El Comité define el “desalojo forzoso” y reitera que los desalojos


forzosos constituyen prima facie violaciones del derecho a una
vivienda adecuada. Asimismo reconoce que las mujeres, los
niños, los jóvenes, los ancianos, los pueblos indígenas, las mi-
norías étnicas y de otro tipo, así como otros individuos y grupos
vulnerables, se vem afectados en medida desproporcionada por
la práctica de los desalojos forzosos. Según el Comité, debería
prohibirse estrictamente en todos los casos que los Estados de-
jaran sin hogar de forma intencionada a una persona, familia o
comunidad a raíz de un desahucio, ya sea forzoso o legal. Las
disposiciones de no discriminacion del Pacto imponen a los go-
biernos la obligación adicional de velar por que no se produzca
ningún tipo de discriminación.18

990
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Nelson Saule Jr.19 ressalta os mecanismos internacionais protegem o


direito à moradia e visam inibir a prática dos despejos forçados em casos
de guerra e conflitos armados. O autor cita a 4ª Convenção de Genebra
sobe Proteção dos Civis em Tempos de Guerra, o II Protocolo Contra o Con-
flito Armado Internacional, O Estatuto de Roma do Tribunal Internacional
Criminal e a Resolução 1998/26 da Subcomissão de Promoção e Proteção
dos Direitos Humanos da Comissão de Direitos Humanos das Nações Uni-
das: estes instrumentos protegem os cidadãos contra despejos forçados
e asseguram retorno ao lar das famílias deslocadas compulsoriamente.
Na regularidade de um Estado de Direito, práticas de despejo massivo
de populações pelo Estado, que deveria promover melhores condições
de vida, tornam-se ainda mais injustificáveis. As remoções violentas de
comunidades vulnerabilizadas dos lugares em que moram, desrespeitam
uma gama complexa de direitos, que vão além da soma da perda da mo-
radia, do trabalho próximo, da escola e do posto de saúde freqüentados,
da mobilidade urbana da região, o que por si já demonstra a gravidade do
rompimento do tecido social. Somam, no todo, a violação da dignidade,
da possibilidade de participar sobre as decisões políticas locais, o rompi-
mento de vínculos sociais e simbólicos, a desconstrução de histórias de
vida, de projetos futuros, induzindo à impossibilidade de se quantificar,
exatamente, os impactos futuros desta prática para o todo social.
O reconhecimento desta prática como violência institucional ocorre
não apenas em âmbito internacional, mas também local. A legislação de
Fortaleza/CE, utiliza-se do termo remoção forçada para designar despejos
com violações de direitos, coibindo-os (a não ser por hipóteses excepcio-
nais) e propondo outras diretrizes para política urbana20.

991
II.3 A ARBITRARIEDADE DA DESAPROPRIAÇÃO EM FACE
DOS ATUAIS INSTRUMENTOS DA POLÍTICA URBANA

Desnecessário repetir as considerações sobre a arbitrariedade do con-


texto político de formulação do Decreto 3.365/41, que nitidamente ressoa
sobre suas disposições normativas. Cabe apenas, brevemente, apontar
traços da legislação em que se verifica a autorização de um comporta-
mento possivelmente arbitrário do Estado. Por exemplo:

• O Art. 7º do Decreto permite que as autoridades administrativas


penetrem, com auxílio de força policial, nos prédios declarados
de utilidade pública. Considerando que a declaração apenas
inicia o procedimento administrativo, que seu efeito limita-se a
manifestar a vontade do expropriante, verifica-se autorização
para adentrar, compulsoriamente, nas casas, fato que pode
ocorrer violentamente e com invasão da intimidade das famílias,
deixando-as vulneráveis às ações não negociadas do Poder Pú-
blico, a exemplo do que ocorre com o cadastro compulsório de
famílias que não querem se retirar de sua localidade, mas que
são pressionadas a acatar a presença dos agentes públicos, abrir
suas casas e permitir medições e avaliações dos imóveis, ainda
que a obra ou projeto urbanístico não tenha passado por nenhum
processo de participação popular ou mesmo de esclarecimento
sobre os impactos aos direitos dos moradores.
• O Art. 9º veda o Poder Judiciário de verificar se ocorre, ou não,
os casos de utilidade pública. Amplia-se a discricionariedade do
chefe do executivo, em notório desprestígio ao mandamento
constitucional que diz que nenhuma lesão de direito será excluída
da apreciação do Judiciário (Art.5, xxxV, CF/88). O artigo man-
tém-se constitucional no ordenamento, mas não sem provocar
dificuldades nos casos concretos, em que a ação judicial proposta
pelo expropriante tem como objeto apenas a delimitação do valor
da indenização, restringindo o direito de defesa do expropriado.

Trazendo a análise para os casos de desapropriação para fins de re-


moção, verifica-se que ao se legitimar o amplo leque de possibilidades
do Estado de incidir sobre a moradia de comunidades vulnerabilizadas e
que, tantas vezes, possuem baixo conhecimento de seus direitos, permite-
-se a adoção de políticas arbitrárias e cujo delineamento se esquivará ao
crivo democrático. Não se trata, portanto, de atribuir discricionariedade
ao administrador, mas sim de abrir caminhos para possíveis comporta-
mentos arbitrários.

992
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Mesmo sob o prisma da discricionariedade, tem-se que esta não pode


ocorrer de maneira absoluta. Ao tratar sobre a discricionariedade adminis-
trativa, Ana Paula Lima de Melo considera superado o paradigma da estrita
legalidade em face do novo paradigma da legalidade constitucional e da
juridicidade, ou seja, a mera conformidade dos atos com a lei não basta
mais na investigação dos atos administrativos, que devem passar também
pelo crivo da noção de juridicidade, qual seja, da compatibilidade dos atos
administrativos com os princípios constitucionais, mitigando o âmbito de
discricionariedade do agende estatal. Em suas conclusões, aponta que:

A redução da atuação discricionária da Administração é pensada


tendo em vista a necessidade premente da preponderância de
valores sociais, sobretudo, considerando relevante a supremacia
do interesse público, ou mesmo do valor maior albergado por
este, sempre relevando-se também o objetivo de um Estado
Democrático de Direito, que é o alcance do bem-estar social, do
bem comum, pelos seus cidadãos21.

Desta forma, mesmo o exercício da discricionariedade deve-se com-


patibilizar com a democracia e os direitos preservados no ordenamento,
sob pena de se qualificar como discricionariedade antijurídica e ilegítima.
Necessário, portanto, impor um crivo democrático às ações estatais,
exatamente para que possam cumprir os fins de redistribuição justa da
terra, de configuração e reconfiguração agregadora dos sujeitos sociais no
espaço urbano, de requalificação de áreas degradadas com preservação
dos vínculos sociais construídos, na garantia de que famílias ocupantes
de comunidades pobres tenham assegurada a preservação das várias
dimensões do direito à cidade.
Por fim, saliente-se, como mais um elemento que problematiza a ade-
quação da desapropriação para fins de remoção que, o instituto expropria-
tório encontra-se regido pela ótica do Direito Administrativo, enquanto
que a remoção dá-se para implementação de obras e instrumentos da
política urbana, regidas pelo Direito Urbanístico.
Ambas as searas jurídicas comunicam-se com o fundamento maior do
ordenamento, qual seja, a Constituição Federal, que estabelece a funda-
mentalidade do Direito à Moradia.

993
O Estatuto da Cidade veio por fim a qualquer discussão sobre a auto-
nomia do Direito Urbanístico em relação ao Direito Administrativo. Ainda:

Posição seguida também por Edésio Fernandes e Carlos Ari


Sundfeld que, a partir do Estatuto da Cidade, o direito urbanístico
brasileiro se consolidou por apresentar todos os componentes
necessários de um ramo do direito, sendo estes constituídos
pelas missões e princípios constitucionais específicos voltados
à proteção do direito a cidades sustentáveis22.

Diz-se isso, partindo da verificação de que a desapropriação, quando


incide na política urbana, não pode ser legitimada apenas sob a ótica da
legalidade no Direito Administrativo, posto que qualquer ação que delineie
a configuração do espaço urbano e se configure em práticas sistemáticas
do Estado na política urbana, devem-se submeter aos ditames do Direito
Urbanístico, em especial, do direito à cidade.

II.4 O DEVER ESTATAL DE PROMOVER A REGULARIZAÇÃO


FUNDIáRIA EM DETRIMENTO DAS REMOÇÕES FORÇADAS

Outro aspecto que aponta para a inadequação jurídica da desapro-


priação substancia-se na consideração de que a regularização fundiária
é dever do Estado, garantindo proteção às comunidades assentadas, mas
que o próprio Estado se vale da irregularidade da ocupação no momento
de remover.
A regularização fundiária enquanto dever estatal e aparece nas dis-
posições acerca da política urbana. Assim dispõe o Estatuto da Cidade,
Lei 10.257/01:

Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno de-


senvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
xIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas
por população de baixa renda mediante o estabelecimento de
normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edi-
ficação, consideradas a situação socioeconômica da população
e as normas ambientais;

994
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O Estatuto também arrola, em seu Art. 4º, instrumentos de efetivação


da política urbana, incluindo a regularização fundiária na alínea q, inciso
V. Somando-se as disposições do Estatuto da Cidade com o direito social
fundamental à moradia, o direito à cidade e a garantia das funções sociais
da cidade e da propriedade, pode-se concluir que a legislação traçada
para política urbana prioriza a integração dos “assentamentos irregulares”
com a cidade e seus serviços, através de mecanismos de regularização
fundiária, que garantam proteção ao uso e à posse. A regularização, neste
sentido, é vista como conjunto de procedimentos que promovam uma
adequação formal da moradia com a legislação, ou seja, garantia da segu-
rança jurídica da posse e, ainda, que requalifiquem o espaço, melhorando
as condições de vida das famílias ocupantes e garantindo condições de
permanência no local.
Saule Jr.23 considera a regularização fundiária como mecanismo para
além da titularização individual da terra e garantia do direito de proprie-
dade privada, visão difundida pelos grandes bancos internacionais para
legalizar o mercado informal.

Conferir um título de propriedade urbana para grupos sociais que


vivem em permanente estado de pobreza, sem atender a outras
necessidades, como a implantação de infra-estrutura, oferta de
equipamentos públicos – como escolas e postos de saúde – e a
efetiva possibilidade de trabalho e geração de renda, será um
benefício temporário.
Para evitar esta situação, a política de regularização fundiária
deve ter uma ampla dimensão, compreendendo o atendimento de
todos os componentes do direito à moradia. Uma ação integrada,
que envolva as ações de urbanização, de valorização da memória
e identidade dos moradores dos assentamentos informais, que es-
timule e apoie atividades educacionais e econômicas de geração
de renda e trabalho e a preservação, por lei, das áreas como de
habitação de interesse social, são medidas que devem englobar
a dimensão da política de regularização fundiária.

Também a Lei Orgânica de Fortaleza/CE prever o dever do Estado de


regularizar os chamados “assentamentos informais”24. Cumpre mencionar,
ainda, as disposições do Plano Diretor Participativo de Fortaleza de 200925
e da Constituição do Estado do Ceará26.

995
A Lei Federal nº 11.977/09, que dispõe sobre o Programa Minha Casa
Minha Vida, reafirma a regularização fundiária como instrumento de
promoção da cidadania, que deve estar associada às políticas públicas
e estabelece princípios para as ações de regularização27. A violência e a
segregação promovidas por remoções forçadas são incompatíveis com
uma sistemática que privilegia a regularização fundiária. Em conseqüência,
ressurge a constatação de que o instituto da desapropriação não alberga
tais considerações.

II.5 DA LóGICA DO DIREITO INDIVIDUAL DE


PROPRIEDADE à LEGITIMIDADE DAS RELAÇÕES DE USO

A proteção jurídica da posse perpassa todo ordenamento, podendo-se


mencionar: o direito constitucional à prescrição aquisitiva do bem através
do uso, pela instituição da Usucapião, inclusive, da Usucapião Especial
Urbana, com prazos reduzidos para facilitar acesso à moradia, estabelecida
no art. 183, CF/88; a legitimação da posse, instrumento previsto na Lei
11.977/09; concessão de direito real de uso, regulada pelo Decreto-Lei
271/67, art.7º; concessão de uso especial para fins de moradia, regulada
pela Medida Provisória nº 2220/01; por fim, a demarcação urbanística de
áreas ocupadas para fins habitacionais, para realização de regularização
fundiária, conforme Lei 11.977/09.
Se a sistemática da desapropriação fundamenta-se na supressão da
propriedade privada e, nas remoções, centenas de famílias se relacionam
com o bem através de outra relação jurídica lítica e legítima, a posse, o
olhar e a aplicação exclusiva daquela sistemática gera lacunas no comple-
xo da circunstância. Pretende-se refletir em torno da questão: legislação
que se sustenta na propriedade privada e individual mostra-se hábil para
incidir na supressão de direitos que se situam no exercício da posse por
uma coletividade de famílias?
O debate se amplifica quando se averigua o preço das indenizações
ofertadas às famílias que não possuem titularização individual da proprie-

996
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dade. Os preços, em regra, irrisórios, “justificam-se” pela exclusão do valor


do imóvel, indenizando-se apenas as benfeitorias construídas, mesmo
nos casos em que a relação com o bem ocorra há décadas, ocultando a
proteção jurídica dada à posse.
Se o ordenamento garante proteção à posse, a ausência de proprie-
dade privada não pode servir de argumento de legitimação para retirada
das comunidades, quiçá ofertando-se valores que não contemplam a
indenização do imóvel com justiça e capacidade de ressarcir os prejuízos
patrimoniais sofridos, possibilitando a compra de imóvel similar, com as
mesmas características e no mesmo bairro.
O entendimento já encontra ressonância nos Tribunais pátrios, que
iniciam o reconhecimento da obrigação de se indenizar a posse, embora
em valores bem inferiores às relações em que se detém a propriedade.
Neste sentido:

A desapropriação da propriedade é a regra, mas a posse legítima ou


de boa-fé também é expropriável, por ter valor econômico para
o possuidor, principalmente quando se trata de imóvel utilizado
ou cultivado pelo posseiro. Certamente, a posse vale menos que
a propriedade, mas nem por isso deixa de ser indenizável, como
têm reconhecido e proclamado os nossos tribunais.28

Relevante registrar crítica a tais posicionamentos, que inferiorizam a


proteção jurídica da posse na quantificação da indenização.

II.6 ENTRE O ROMPIMENTO DO VÍNCULO COM O BEM,


PARA O ROMPIMENTO DOS VÍNCULOS COMUNITáRIOS
E OUTRAS DIMENSÕES DE DIREITOS

Da leitura do Comentário Geral nº7 Comitê de Direitos Econômicos,


Sociais e Culturais da ONU, bem como das experiências com comunidades
urbanas que sofrem remoções forçadas, apreende-se que diversos direitos,
para além da propriedade, são atingidos pelas remoções.
O direito à moradia, à preservação do lar e da intimidade, o direito de
não sofrer violências e ingerência arbitrárias; direitos coletivos, os vínculos

997
desenvolvidos com o espaço e com a comunidade, a identidade criada no
local, as relações entre vizinhos, o acesso aos serviços públicos do bairro:
direitos suprimidos pela remoção, sem que o instituto da desapropriação
ofereça qualquer mitigação. Atinge-se, ainda, a dimensão do direito à ci-
dade relativa ao direito de participar do processo de tomada de decisões e
a garantia a uma cidade democrática. Pode-se dizer que as funções sociais
da cidade também sofrem duros impactos.
Para Nelson Saule, a realização das funções sociais da cidade constitui
direito difuso dos cidadãos, de maneira que, uma política urbana que não
atendesse seus ditames, feriria a cidadania de todos moradores da cidade.

O pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade deve


ser entendido como um interesse difuso de seus habitantes, de
modo que estes sejam considerados sujeitos de direito, podendo,
perante as esferas do Poder Público e do Poder Judiciário, ser exi-
gida a defesa do cumprimento deste princípio nas situações em
que o desempenho de atividades e funções exercidas na cidade
resulte em conflitos de interesses urbanos de intensa litigiosidade
e complexidade.29

Destarte, a lógica da desapropriação funciona apenas na supressão de


direitos patrimoniais, deixando em aberto as demais dimensões, sociais,
políticas, culturais e simbólicas, dos direitos atingidos nas remoções
forçadas. Como, neste contexto, garantir proteção aos direitos coletivos?
O Comitê Popular da Copa de Fortaleza/CE30, em documento produ-
zido para questionar irregularidades no licenciamento de uma das obras
preparatórias para Copa de 201431, ressalta a importância de distinguir a
desapropriação, instituto consolidado no direito administrativo, dos casos
de remoções forçadas, designação trazida em instrumentos da política
urbana. Considera que:

o que se quer verificar é que o projeto prevê a retirada de co-


munidades inteiras, ou seja, milhares de famílias, em ação que
não se destitui apenas o direito individual de propriedade, mas
sim todos os cidadãos de suas relações comunitárias, sociais
e econômicas desenvolvidas e ligadas historicamente àquele
território. [...] Não se trata de imposição de sacrifício individual
em benefício do interesse coletivo, mas exatamente o oposto:
é a imposição de um sacrifício coletivo a uma parcela da po-
pulação, pré-determinada em face de sua condição social e
econômica vulnerável.32

998
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

III. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE


O CONTEÚDO DO DIREITO à CIDADE

Ampliando a regulamentação do Direito Urbanístico e da democracia


participativa, o Estatuo da Cidade positiva e define o direito à cidade,
em seu artigo 2º, inciso I. Tem-se um direito complexo, que evidencia a
dimensão da participação e gestão democrática da cidade, além de um
conjunto articulado de elementos que, na ausência de um, faz perecer o
direito em si.
O direito à cidade abrange o direito aos elementos mínimos da vida
urbana: água, saneamento, energia elétrica, transporte público, moradia,
que compõe um mínimo necessário para o exercício da vida digna. O
conjunto desses direitos associa-se à noção das funções sociais da cidade,
objetivo precípuo elencado no caput do artigo exposto.
Na interface com o direito à cidade, também o direito à moradia aparece
como elemento de seu conteúdo. Diferente do direito à habitação, restrito
a casa, o direito à moradia possui conteúdo mais abrangente e relacionado
com a proposta inscrita na concepção do direito à cidade.
O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, no
Comentário Geral Nº 4 sobre direito à moradia, estabeleceu parâmetros
para caracterização da moradia adequada, incluindo: a segurança jurídica
da posse; a disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraes-
trutura; acessibilidade, tanto física como econômica, para que os custos
da moradia se compatibilizem com a renda dos moradores; proteção aos
grupos mais vulneráveis, como crianças, idosos e deficientes; configuração
do acesso a terra como um direito; localização que permita acesso a em-
pregos e serviços públicos sociais e, ainda, que não ofereça risco à saúde
da população; além de adequação cultural da moradia com a identidade
dos moradores. O Comentário segue afirmando que:

Além disso, o pleno gozo dos outros direitos - como o direito


à liberdade de expressão, o direito à liberdade de associação
(como para os inquilinos e outros grupos comunitários), o direito
à liberdade de residência e o direito de participar em tomada
de decisões públicas - é indispensável se o direito à moradia
adequada é para ser realizado e mantido por todos os grupos
na sociedade. Da mesma forma, o direito de não ser submetido

999
a interferências arbitrárias ou ilegais na vida privada, família, lar
ou correspondência constitui uma dimensão muito importante
na definição do direito à moradia adequada.33

O Fórum Nacional de Reforma Urbana, articulação nacional de movi-


mentos populares urbanos, associações de classe, ONG’s e entidades de
pesquisa, reivindica uma cidade que:

Implemente o Estatuto da Cidade;


Uma cidade com gestão democrática e participativa;
Uma cidade com desenvolvimento urbano sustentável;
Uma cidade com habitação de qualidade para todos;
Uma cidade com saneamento ambiental para todos;
Uma cidade que prioriza o transporte pública;
Uma cidade com segurança pública democrática, baseada nos
Direitos Humanos;
Uma cidade com trabalho e distribuição de renda;
Uma cidade que apoie a reforma agrária;
Uma cidade que priorize seus recursos para os setores
populares;34

Henri Lefebvre, analisando a sociedade urbana:

Face a esse direito, ou pseudodireito, o direito à cidade se afirma


como um apelo, como uma exigência. Através de surpreenden-
tes desvios – a nostalgia, o turismo, o retorno para o coração
da cidade tradicional, o apelo das centralidades existentes ou
recentemente elaboradas – esse direito caminha lentamente.
A reivindicação da natureza, o desejo de aproveitar dela são
desvios do direito à cidade. Esta última reivindicação se anuncia
indiretamente, como tendência de fugir à cidade deteriorada e não
renovada, à vida urbana alienada antes de existir “realmente”.35

Conclui afirmando que “o direito à cidade não pode ser concebido como
um simples direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode
ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada.” 36
David Harvey compreende que o direito à cidade deve atender às ne-
cessidades humanas e que:

O direito à cidade está, por isso, além de um direito ao acesso


àquilo que já existe; é um direito de mudar a cidade mais de
acordo com o nosso desejo íntimo. A liberdade para nos fa-
zermos e refazermos, assim como nossas cidades, é um dos
mais preciosos, ainda que dos mais negligenciados, dos nossos
direitos humanos.37

1000
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Promover o direito à cidade, nesta concepção, tem de significar uma


ruptura radical com o modelo de sociedade e produção vigentes, confron-
tando a formação capitalista da cidade. Desta forma, inclui-se o direito de
viver bem na cidade, de acessar seus instrumentos, de construir e requa-
lificar o urbano como ambiente saudável e propício para a dignidade de
todos, com garantia de acessibilidade e preservação dos vínculos sociais,
dentro de um sistema produtivo distributivo, participativo, equânime e
sustentável. Incompatível, portanto, com a prática das remoções forçadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das análises realizadas, tem-se que a lógica do instituto da


desapropriação não perfaz todas as condições para instrumentalizar re-
moções de comunidades consolidadas.
Isso, porque, a própria prática de remoções deve ser coibida, em privi-
légio às ações de regularização fundiária que garantam o direito à moradia
e à cidade. Ademais, tem-se pela necessidade de compatibilizar o instituto
com os preceitos urbanísticos e constitucionais do ordenamento.
Ainda, percebe-se que não se trata apenas da expropriação de uma
propriedade. Em verdade, existe a desconstrução de um tecido social
complexo, dificilmente reparado adequadamente. Quando se remove uma
família, crianças perdem o vínculo com a escola, idosos com os médicos
próximos, vizinhos se desencontram. Relações de trabalho na proximidade,
pequenos comércios, trabalhos como de lavadeira de roupa, mecânico,
serviços gerais, em regra, tendem a se desestruturar com o reassenta-
mento para áreas distantes e periféricas da cidade. Compromete-se a
renda familiar e encarece custos de vida, como acontece, em regra, com
o aumento de gastos no transporte. Ademais, famílias que tantas vezes
viviam em áreas centrais da cidade, dotadas de equipamentos públicos,
são direcionadas para regiões sem infraestrutura adequada, aumentando
a precariedade de vida de quem já sofre cotidianamente a violação de
direitos. Ou seja, aumenta-se a vulnerabilidade social.
Ainda, desestrutura-se o modo de vida comunitário, rompendo com
laços simbólicos e com a memória socioafetiva construída no local. Desta

1001
forma, a indenização como medida de recompensa da perda do bem, na
maioria das vezes insuficientes, não consegue restituir a complexidade
das dimensões de direitos que são violados.
Portanto, urge que a discussão seja incorporada e aprofundada no
campo jurídico, enfatizando a implementação de instrumentos democrá-
ticos da política urbana.

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de São Paulo, 2009.
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gulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004.

NOTAS

1 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará e Mestranda em Ordem Constitucional pelo Programa
de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará. Advogada. Email: Talita.pfurtado@gmail.com
2 BOLTANSKI & CHIAPELO. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2009, p.415.
3 Id. Ibid., 2009, p. 414.
4 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.
5 OLIVEIRA, N., & BARCELLOS. O uso capitalista do solo urbano: notas para discussão. In: Ensaios FEE
[Online] 8:2. Disponível em < http://revistas.fee.tche.br/index.php/ensaios/article/viewFile/1144/1482>,
acessado em 13.11.2011.
6 FREIRE, Renato. ESBOÇANDO OLhARES: O Pensamento Marxista sobre a teoria de renda da terra
e a comercialização capitalista de moradia. Disponível em <http://www.rj.anpuh.org/resources/rj/
Anais/2006/conferencias/Renato%20Freire.pdf>, acessado em 14.04.2013.
7 MANDEL, Ernest. O lugar do marxismo na história. São Paulo: xamã, 2001, p.45.
8 CORRêA, Roberto Lobato. O espaço urbano. Rio de janeiro: Editora Ática, 1989, p.30.

1003
9 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p.106-107.
10 CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p.249-250.
11 ROLNIK, Raquel. A lógica do caos. Disponível em <http://www.usp.br/srhousing/rr/docs/a_logica_do_
caos.pdf>, acessado em 18.04.2013.
12 ARANTES, VAINER, MARICATO. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petró-
polis, RJ : Vozes, 2000, p.123.
13 SALLES, José Carlos Moraes. A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 6ª ed. rev, atual.
E ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p.78.
14 MEIRELLES, Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: 28ª ed., Malheiros
Editores Ltda, 2003, p.574.
15 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: 20ª ed., Malheiros Editores
Ltda, 2006, p.822.
16 ONU. Comentário Geral nº 7 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível
em <(http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/reforma-agraria/ComentarioGe-
ral7_DESC)>, acessado em 22.10.2013.
17 Trata-se de Informe do Relator Especial para o direito à moradia adequada, Sr. Miloon Kothari, publicado
em 18 de fevereiro de 2004.
18 Id.Ibidem, online.
19 SAULE JR., Nelson. op.cit., 2004.
20 Ver Art. 5º PDPF/09 e Art. 149 da Lei Orgânica Municipal.
21 MELO, Ana Paula Lima de. O Novo Paradigma da Discricionariedade Administrativa. In: Germana
de Oliveira Moraes. (Org.). Temas Atuais de Direito Administrativo. Fortaleza: ABC Fortaleza, 2000, p.65.
22 SAULE JR., Nelson. op.cit., 2004, p.209.
23 Id. Ibid., 2004, p. 346.
24 Art. 149, I e Art. 156, IV , § 4°.
25 Art. 4º, Ix; Art. 5º e Art. 6º.
26 Art. 291.
27 Art. 48..
28 MEIRELLES, Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: 28ª ed., Malheiros
Editores Ltda, 2003, p. 575.
29 SAULE JR., Nelson. op. cit., 2004, p.222.
30 Articulação de movimentos sociais, entidades, ONG’s, grupos da universidade, comunidades e membros da
sociedade civil em geral, organizados no debate acerca dos impactos provocados pela realização de megae-
ventos, especificamente sobre os impactos da Copa de 2014 para comunidades vulnerabilizadas.
31 Obra de implementação do VLT – Veículo Leve sobre Trilhos, que prever a retirada de mais de cinco mil
famílias ao entorno da linha férrea do Ramal Parangaba-Mucuripe.
32 COMITE POPULAR DA COPA, 2011. Relatório parcial de questionamento do licenciamento ambien-
tal da obra do Veículo Leve sobre Trilhos, Fortaleza, CE. Disponível em < http://comitedacopa2014.
wordpress.com/>, acesso em 17.07.2013.
33 ONU, Comentário Geral nº 7 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível
em <(http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/reforma-agraria/ComentarioGe-
ral7_DESC)>, acessado em 22.10.2014.
34 FÓRUM NACIONAL DE REFORMA URBANA. Disponível em http://www.forumreformaurbana.org.br,
acessado em 03.08.2013.
35 LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução: Rubens Eduardo Farias. São Paulo: Centauro, 2001, p.117.
36 Id. Ibidem, 2001, p.117-118.
37 HARVEY, David. A liberdade da cidade. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, pp. 09 - 17, 2009, p.1.

1004
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Estudo de impacto de vizinhança:


desafios para sua regulamentação
frente ao caso de São Paulo

Angela Seixas Pilotto1


Paula Freire Santoro2
José Carlos de Freitas3

1. CONCEPÇÃO E ORIGEM DO INSTRUMENTO

1.1. Objetivos do Estudo de Impacto de Vizinhança

O uso de uma propriedade historicamente tem sido limitado por


normas urbanísticas, geralmente traduzidas pelo zoneamento municipal,
com o objetivo, idealmente, de garantir o interesse coletivo4 eevitar confli-
tos de vizinhança, geralmente associadosaos limites das incomodidades
que podem ser geradas num imóvel. No entanto, nem sempre as regras
urbanísticas conseguem prever todos os possíveis impactos que grandes
empreendimentos podem promover. Mesmo em conformidade com as
normas, tais empreendimentos podem ser muito impactantes simples-
mente pelo surgimento sobre uma vizinhança equilibrada5.
Para alterar, mitigar, compensar impactos urbano-ambientais ou até
mesmo restringir a implantação de determinados empreendimentos, foi
concebido o instrumento do Estudo de Impacto de Vizinhança – EIV. Di-
versos teóricos consideram que os impactos urbano-ambientais envolvem
um conceito abrangente de meio ambiente, aplicando-se tanto para ques-
tões relativas ao meio ambiente urbano e ao meio ambiente preservado
(Moreira, 1997; Marques, 2010; Ministério Público de São Paulo, 2001).
Além de regrar impactos, o EIV é tido como um dos instrumentos de
democratização da gestão urbana (Schasberg, 2011), na medida em que
pode servir para a mediação entre os interesses privados dos empreen-

1005
dedores e o direito à qualidade urbana daqueles que moram ou transitam
em seu entorno. Seu objetivo seria o de:

“(...) democratizar o sistema de tomada de decisões sobre os


grandes empreendimentos a serem realizados na cidade, dando
voz a bairros e comunidades que estejam expostos aos impac-
tos dos grandes empreendimentos. Desta maneira, consagra o
Direito de Vizinhança como parte integrante da política urbana,
condicionando o direito de propriedade” (Câmara dos Deputados,
2001, p. 199).

Inclusive, o Estatuto da Cidade poderia ter sidomuito mais enfático


em relação à formade gestão democrática no âmbito do EIV, conforme
propunha seu projeto de lei, exigindo a realização de audiências públicas
deliberativas sobre a implantação de um empreendimento após o estu-
do. Schasberg (2011) endereça bem claramente os setores resistentes ao
instrumento e as decisões tomadas no âmbito da Comissão de Constitui-
ção, Justiça e de Redação sobre as alterações feitas no projeto de lei que
originou o Estatuto da Cidade:

“(...) atendendo reivindicações de setores da construção e par-


lamentares ligados a igrejas evangélicas (liderados pelo Bispo
Rodrigues PL/RJ) retirou dispositivos que determinavam para
o EIV a obrigatoriedade de “audiência da comunidade afetada”
e a nulidade das licenças expedidas sem a observância desse
requisito.
A obrigatoriedade da regulamentação do EIV por Lei Municipal
específica veio no plenário por proposta da Bancada dos Evan-
gélicos, como forma de evitara sua autoaplicabilidade pelos
PDs e transferir a decisão aos municípios. Desde então, desde a
aprovação do EC, sistematicamente representantes dessa ban-
cada propuseram iniciativas legislativas no Congresso Nacional
no sentido de isentar os Templos Religiosos da exigência de EIV”
(Schasberg, 2011, p. 4 a 5).

1.2. Concepção inspirada em experiências norte-americanas

Embora tenha sido mais disseminado após a aprovação do Estatuto


da Cidade (Lei Federal n. 10.257/01, art. 36 a 38), a ideia não é nova no
país. Segundo Marques (2010), a concepção do instrumento no Brasil
surge nas tentativas de aprovação de normas urbanísticas, no final da

1006
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

década de 19706, que originaram o texto dos projetos de lei que deram
base ao Estatuto da Cidade. Este foi inspirado no já existente Estudo de
Impacto Ambiental (EIA-RIMA), que por sua vez tiveram influência dos
instrumentos de avaliação de impacto ambiental surgidos nos anos 1960
nos Estados Unidos, que procuravam melhor avaliar as implantações de
grandes empreendimentos industriais nas cidades e da disseminação
destes instrumentos por parte dos organismos internacionais de finan-
ciamento (Marques, 2010).
Outra visão, anunciada em um debate público pelo prof. Emílio Haddad,
afirma que a concepção do EIV foi inspirada no que a prática norte-ame-
ricana chamou de development impact fees, ou de development extractions.
Consiste em que, a cada nova aprovação de um empreendimento, se re-
queira ao empreendedor que forneça uma contrapartida, que pode ser uma
doação de terra para equipamentos públicos, melhoramentos urbanos, ou,
inclusive, pagamento em dinheiro para um fundo de desenvolvimento ur-
bano. Como justificativa para esta cobrança, os norte-americanos associam
a ideia de que é preciso cobrar pelo crescimento urbano, pois ele exige
diversificação ou implantação de nova infraestrutura e equipamentos; e
também porque um novo processo de aprovação permite a abertura de
uma negociação para provisão destas infraestruturas e equipamentos
necessários (Nelson e Moody, 2003). Usualmente, no Brasil, estas ações
aplicam-se a novos parcelamentos do solo, ou à cobrança sobre o aden-
samento construtivo por meio da Outorga Onerosa do Direito de Construir,
e estes não envolvem a cobrança sobre outros impactos promovidos na
implantação de um grande empreendimento em uma área já urbanizada.

1.3. O destaque para Porto Alegre e São Paulo na aplicação

Lollo e Röhm (2005) citam diversos municípios que já utilizavam o


instrumento antes mesmo da aprovação do Estatuto da Cidade: São Paulo,
Porto Alegre, Campo Grande (Cymbalista, 2001), Distrito Federal, Criciúma,
Fortaleza, João Pessoa, Natal, Niterói e Anápolis. Dois municípios, São

1007
Paulo e Porto Alegre, ganharam destaque na literatura que trata do tema.
Porto Alegre possuía, desde 1978, o Estudo de Viabilidade Urbanística
– EVU, obrigatório para a aprovação de grandes empreendimentos (Pres-
tes, 2005). Mas foi o Decreto n. 11.987/98, que estabeleceu normas para
elaboração de EIA-RIMA, que criou a possibilidade do poder público, por
meio de um diagnóstico, analisar impactos socioeconômicos decorrentes
da instalação destes empreendimentos7. A experiência foi muito estudada
porque a metodologia permitiu avaliar não apenas a edificação, mas as
relações destes equipamentos com a sociedade (Câmara dos Deputados,
2001; Santoro, 2003; Marques, 2010; etc.).
Um dos casos mais estudados de Porto Alegre foi o da implantação de
um supermercado em um bairro residencial, o qual apontou, por exemplo,
que, ao contrário do esperado, o equipamento não gera oferta quantitativa
de postos de trabalhos e estes têm salários menores do que os encontrados
em pequenos e médios estabelecimentos da região (Santoro, 2003). Com
base no Estudo, o município exigiudiversas contrapartidas, desde obras
viárias até medidas socioeconômicas8. Apesar do valor das contraparti-
das ter sido alto, o empreendedor obteve retorno já no primeiro ano de
implantação do supermercado, tendo sido muito vantajoso. Ainda assim,
houve muita resistência por parte do supermercado, que argumentava que
em outros municípios obtinha licença sem exigências de contrapartidas9.
Já o município de São Paulo aplicava o instrumento desde os anos 1990,
quando sua Lei Orgânica passou a exigir a apresentação de Relatório de
Impacto de Vizinhança para empreendimentos de significativa repercussão
ambiental e na infraestrutura, os quais foram definidos por decretos nos
anos posteriores (Decretos n. 32.329/92, n. 34.713/94 e n. 36.613/96), que
vigoram até hoje (Moreira, 1997; Moreira, 1999). O roteiro de elaboração
do relatório de impacto de vizinhança é descritivo e uma avaliação de sua
implementação em 19 empreendimentos analisados entre 1990 e 199210
já mostrava que os estudos apresentados tinham critérios insatisfatórios,
pois se balizavam na infraestrutura de empreendimentos semelhantes,
o que não era suficiente para demonstrar a inexistência de impactos, e

1008
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

não envolviam a análise do impacto à paisagem urbana (Moreira, 1992).

1.4. Contexto atual: pouca disseminação x


expansão de grandes equipamentos

Juntamente com o processo de disseminação de planos diretores pelo


país, a partir de exigência do Estatuto da Cidade, esperava-se que o EIV
ganhasse maior efetividade. Mas,assim como outros instrumentos que
dependem de lei específica para sua implantação, o grau de implemen-
taçãodo EIV no país foi muito baixo. Poucos municípios afirmaram pos-
suir lei específica de EIV: de acordo com as Pesquisas MUNIC de 2005 e
200811, apenas 7,5% dos municípios afirmaram possuir esta lei em 2005,
e este número subiu para 12,9% em 2008. As regiões que sofreram maior
variação neste período foram a Sul e a Centro-Oeste.

Gráfico – Variação percentual dos municípios com lei espe-


cífica de instrumentos de política urbana, por regiões do país
– 2005/2008

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisa, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações
Básicas Municipais 2005/2008.

Em um quadro de pouca aplicação dos instrumentos urbanísticos no


país, este número não impressiona; mas o contexto de forte expansão
da instalação de grandes empreendimentos urbanos – shoppings, su-
permercados, equipamentos multiuso –, justifica que haja uma maior
disseminação do EIV nos municípios, reconhecendo suas potencialida-

1009
des. É justamente com este objetivo que este texto aborda o estudo da
experiência do município de São Paulo e, a partir desta, aponta desafios
para a implementação do instrumento em um quadro mais ampliado de
municípios no país.

1.5. Na ausência de lei municipal, EIV


pode ser exigido com base no Estatuto da Cidade

Há muitos municípios que, contrariando o art. 36 do Estatuto da Cidade,


ainda não dispõem de lei disciplinando o EIV, bem como a relação dos
empreendimentos e atividades a ele sujeitos para a obtenção de licenças
e autorizações de construção, ampliação e funcionamento.
A mora legislativa, contudo, não autoriza a implantação inconsequente
de obras e atividades impactantes, nem com a conivência do Poder Público.
Conforme tem decidido o Tribunal de Justiça de São Paulo: a ausência de
lei municipal não exclui a necessidade de elaboração do EIV, porque sua
exigência decorre do Estatuto da Cidade; o EIV é instrumento limitador
da discricionariedade administrativa; a população deve ser consultada em
audiência pública; o EIV deve ser prévio, até mesmo para a expedição de
alvará provisório de instalação12. É a mesma posição do Tribunal de Justiça
do Paraná13 e do Tribunal Federal Regional da 4ª Região14.
O artigo 2º da Lei n. 10.257/01 contém um rol de diretrizes que sina-
lizam a necessidade de que empreendimentos e atividades, públicos ou
privados, sejam implantados em consonância com o equilíbrio urbano e
ambiental, exigindo, assim, maior controle e avaliação pelo Poder Público:
(i) legislador exigiu do município o planejamento como premissa para o
desenvolvimento das cidades e das atividades econômicas do seu territó-
rio, visando evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus
efeitos negativos sobre o meio ambiente (inciso IV); (ii) para garantir sua
missão de ordenar e controlar o uso do solo, o Estatuto da Cidade impôs ao
município obrigações (inciso VI), ora para evitar o parcelamento do solo, a
edificação e o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura

1010
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

urbana, ora para não permitir a instalação de polos geradores de tráfego


sem esta última (“c” e “d”), nem a deterioração das áreas urbanizadas, a
poluição e a degradação ambiental (“f” e “g”); (iii) compete ao município
proteger, preservar e recuperar o meio ambiente natural, construído e
cultural (inciso xII).
O empreendedor, por outro lado, ao interferir no tecido urbano e se
apropriar gratuitamente da infraestrutura instalada provoca, no mais das
vezes, externalidades negativas, traduzidas por impactosno meio urbano,
que, de ordinário, são suportados pela vizinhança e pela coletividade. Mas,
por aplicação do princípio do poluidor pagador (do Direito Ambiental), o
empreendedor que produz espaço urbano deve arcar com os respectivos
custos das externalidades.
Determinadas atividades construtivas (e seu respectivo funcionamento),
mesmo que lícitas, têm o potencial de causar degradação ambiental pela
alteração adversa das características do meio ambiente, na modalidade
de poluição (prejudicar o bem-estar da população; criar condições adver-
sas às atividades sociais e econômicas; afetar as condições estéticas ou
sanitárias do meio ambiente), levando a uma responsabilização objetiva
pela reparação dos danos causados ao meio ambiente e a terceiros (art. 3º,
incisos II e III, “a”, “b” e “d”, e inciso IV, c.c. art. 14, § 1º, Lei nº 6.938/81).
Daí ser necessário que desses empreendedores se exija a apresentação
de estudos que identifiquem a dimensão dos impactos de seus empre-
endimentos. E a população interessada deve ser ouvida (art. 2º, xIII, do
Estatuto da Cidade).

2. O INSTRUMENTO DO ESTUDO DE IMPACTO


DE VIZINhANÇA FRENTE AO CASO DE SÃO PAULO

2.1. Aspectos sobre a atual regulação do


EIV no município de São Paulo

O EIV já estava previsto em São Paulo no capítulo sobre Política Urbana

1011
da Lei Orgânica de 1990 (art. 159), e apenas com base nela foi pedido para
19 casos (Moreira, 1992).
Foi regulamentado pelos decretos n° 34.713/94 e 36.613/96 e, pos-
teriormente, já nos termos do Estatuto da Cidade, foi previsto no Plano
Diretor Estratégico de São Paulo (PDE, Lei n. 13.430/02, art. 257), que
procura diferenciar relatório de impacto ambiental do de vizinhança; re-
produz as questões a serem tratadas no EIV (§ 2°) já previstas no Estatuto
da Cidade (Lei Federal n. 10.257/01, art. 37) e recupera alguns aspectos
de gestão democrática.
A Lei n. 13.885/04, que institui os Planos Regionais Estratégicos das
Subprefeituras, dispõe sobre o parcelamento, disciplina e ordena o Uso e
Ocupação do Solo do Município de São Paulo (LUOS), define, por sua vez,
os empreendimentos geradores de impacto de vizinhança como “aqueles
que pelo seu porte ou natureza possam causar impacto ou alteração no seu
entorno ou sobrecarga na capacidade de atendimento da infra-estrutura”
(Lei n. 13.885/04, art. 157, III). Tais empreendimentos estão sujeitos à
aprovação específica (idem, art. 161).
Atualmente está em debate na Câmara Municipal o Projeto de Lei n.
414/11, que dispõe sobre o Estudo de Impacto de Vizinhança e respectivo
Relatório de Impacto de Vizinhança (EIV/RIVI), visando regulamentar o
instrumento à luz do Plano Diretor Estratégico e Lei de Uso e Ocupação
do Solo15.
No momento atual, portanto, o município de São Paulo não dispõe
de lei específica que regule o tema. Portanto, os decretos autônomos n°
34.713/94 e 36.613/96 são inválidos tendo em vista que o instrumento
deve estar regulamentado em lei municipal (conforme art. 36 do Estatuto
da Cidade).
As considerações a seguir apresentadas partem do debate em pauta
sobre a implementação do instrumento EIV/RIV em São Paulo, tendo em
vista o PL 414/1116, a legislação municipal sobre o tema e a experiência de
outros municípios. Busca-se apontar aspectos necessários à regulamenta-
ção deste Estudo, e encorajar outros municípios a disciplinar o instrumento.

1012
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

2.2. Conceito de impacto de vizinhança

De acordo com Antônio Claudio M. L. Moreira, impacto de vizinhança


consiste no:

“(...) impacto de cada empreendimento sobre esse ambiente


urbano compreende as transformações urbanísticas que o em-
preendimento promove nas adjacências (mudanças dos usuários,
dos preços dos imóveis, dos usos e da ocupação do solo, etc.),
o contraste do empreendimento em relação ao visual e ao sig-
nificado das edificações circunvizinhas, a demanda excedente à
capacidade das redes de infraestrutura urbana – inclusive vias, a
utilização dos recursos naturais que excede sua disponibilidade
e sua capacidade de absorção” (Moreira, 1999).

A definição do impacto de vizinhança trata de atividades e empre-


endimentos que possam causar impactos ambientais e urbanísticos, de
vizinhança. Como já comentado, não se trata somente de impactos am-
bientais, mas também de impactos de natureza urbanística, ou, urbanísti-
co-ambientais, entendidos no sentido do art. 225 da Constituição Federal17
(Moreira, 1997; Marques, 2010; Ministério Público de São Paulo, 2001).
A LUOS de São Paulo diferencia empreendimentos geradores de im-
pacto de vizinhança (art. 157, III)18 dos geradores de impactos ambientais
(art. 157, II)19, restringindo o impacto de vizinhança aos do entorno e na
infraestrutura (Lei n. 13.885/04, art. 157), diferindo consideravelmente
da visão mais holística de meio ambiente do art. 225 da Constituição
Federal. O PL em debate em São Paulo amplia um pouco esta definição,
tratando dos empreendimentos que possam causar impactos à deterio-
ração das condições da qualidade de vida do entorno (PL n. 414/11, art.
2º)20, aproximando-se da definição de “sadia qualidade de vida” presente
no art. 225 da Constituição Federal. Esta definição mais abrangente de
meio ambiente, como garantia de qualidade de vida, não significa que
os temas a serem investigados devam ser os mesmos de um Estudo de
Impacto Ambiental (EIA-RIMA), mas sim que não se deve restringir o EIV
a aspectos viários ou das edificações.

1013
Vizinhança, por sua vez, é um conceito que nos remete à ideia de
região localizada perto ou ao redor de um local; arredor, cercania, ime-
diação; situação do que é contíguo ou limítrofe; conjunto de pessoas
que habitam lugares vizinhos. Os vizinhos civis são os que estão mais
próximos dos usos, obras e atividades impactantes, numa relação de
contiguidade. Os vizinhos urbanos21 são os que ocupam ou utilizam uma
localidade ou região pouco mais distante, não adjacente, mas dentro do
âmbito de propagação dos usos, obras e atividades impactantes, onde
as interferências nocivas repercutem.

2.3. Empreendimentos enquadrados


como geradores de impacto de vizinhança

Em geral as leis que regulamentam o estudo de impacto de vizinhança


apresentam uma listagem dos empreendimentos a serem enquadrados
como geradores de impacto de vizinhança e esta listagem é definida a
partir de categorias de uso, tipo de atividade, porte dos empreendimentos,
seja em área construída, número de vagas, de usuários ou de unidades.
A definição dos empreendimentos que se enquadram no EIV/RIV a
partir de linhas de corte de área construída e quantidade de vagas de
estacionamento, ou pelo porte e tipo de atividade, não é suficiente para
atender diversas situações potencialmente geradoras de impacto de vizi-
nhança. Verifica-se a necessidade, por exemplo, de aliar a estes critérios:
(i) a questão dos impactos sinérgicos e cumulativos, que podem estar
associados a empreendimentos de porte menor, mas situados próximos
uns aos outros22; (ii) a questão da localização do empreendimento, já que
o mesmo empreendimento pode levar a diferentes impactos dependendo
da região da cidade onde for instalado; (iii) as grandes alterações volumé-
tricas, que transformam consideravelmente a paisagem e o sítio urbano,
promovendo amplas áreas impermeabilizadas, entre outros fatores; e,
(iv) os empreendimentos de pequeno porte, que possuem poucas vagas,
mas que atraem um grande número de viagens e utilizam as ruas para
suportar este afluxo.

1014
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Além disso, verifica-se que, ao estabelecer a “linha de corte” na lei,


os empreendedores têm buscado “driblar” o enquadramento, adotando o
número de vagas máximo ou área computável máxima muito próxima ao
valor de corte (não só para estudos de impacto de vizinhança, mas tam-
bém para polos geradores de tráfego) ou fragmentando a aprovação do
empreendimento. Desta forma, deve-se superar o enquadramento a partir
apenas de parâmetros métricos, uma vez que, se a lista estabelece que
empreendimentos acima de 60 mil m² devem realizar o EIV, empreendi-
mentos com 1 m² a menos ficam de fora, mas podem implicar em impacto
semelhante ou superior a um empreendimento com justos 60 mil m².
Assim, é importante que a Prefeitura, com algum grau de discricio-
nariedade, possa enquadrar um empreendimento onde haja dúvida ou
que não esteja estritamente expresso nos itens listados na lei, mediante
confirmação desta deliberação no âmbito de um dos conselhos ou órgãos
colegiados que fazem a gestão do EIV/RIV. Ademais, seria igualmente
importante trabalhar com critérios qualitativos para o enquadramento e
não só os quantitativos.
Destaca-se nesta direção a experiência de São Bernardo do Campo
que estabeleceu, em decreto regulamentador de EIV (Lei Municipal n.
5.714/07, Decreto n. 16.477/08), que seria feita uma avaliação técnica no
momento do processo de aprovação de um projeto e, a critério técnico da
Comissão Interdisciplinar de Avaliação e Aprovação do Estudo de Impacto
de Vizinhança – CIAEIV, outras atividades ou empreendimentos, além dos
listados, poderão ser objeto de apresentação de EIV.
Outro aspecto específico de São Paulo, que não merece ser reproduzido
em outros municípios, diz respeito ao fato de que a “linha de corte” para
o enquadramento corresponde à área computável do empreendimento,
e não a sua área total. Este aspecto é muito relevante, pois diversos
empreendimentos de São Paulo têm muita área considerada como “não
computável”, o que acaba por distorcer o critério. Há muitos casos de
empreendimentos em que a área total chega a ser o dobro da computável,
terminando por enquadrar pouquíssimos empreendimentos na obrigato-
riedade de apresentação de EIV.

1015
Outra distorção que pode acontecer é a falta de definição de parâme-
tros para o enquadramento dos empreendimentos mistos ou multiusos,
compostos por usos residenciais e não residenciais, devendo neste caso,
inclusive, considerar a soma das áreas.
Considerando a preocupação com os diferentes impactos, dependen-
do da região onde o empreendimento for instalado, verifica-se que na
legislação de EIV/RIV de Porto Alegre (Lei Complementar n. 695/12), por
exemplo, a listagem de empreendimentos faz referência às macrozonas ou
zonas onde se localizam, enquadrando determinados empreendimentos
como de impacto de vizinhança somente se estiverem localizados naquela
macrozona específica. Isto possibilita ter critérios mais rígidos sobre novos
empreendimentos que venham a se instalar em uma área já saturada.
A linha de corte para o EIV/RIV também deve considerar a necessária
articulação com outras leis municipais que exigem estudos específicos
de impacto, como a própria lei de uso e ocupação do solo, as de polos
geradores de tráfego, de estudo de impacto ambiental, etc.

2.4. Definição de área de influência

A definição de vizinhança/área de influência é um aspecto relevante


da regulamentação de EIV/RIV, que deveria constar da lei, mencionando
a quem cabe a definição da área de influência e que critérios deve-se
ser observar. É desejável que a Prefeitura, e não o empreendedor, fique
responsável por definir a área de influência de cada empreendimento no
processo de licenciamento, tendo em vista as características específicas
deste, da região onde estará localizado e a abrangência que o impacto
pode ganhar. De outra forma, esta definição pode ser realizada pelo
empreendedor, no âmbito do EIV, sendo sujeita a avaliação pelo órgão
licenciador, que pode alterá-la, se achar necessário.
A área de influência também deve refletir as escalas de análise. É muito
comum que os EIVs utilizem dados municipais, muito genéricos, que não
permitem a avaliação do impacto em uma escala local. Novamente, a

1016
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

experiência do município de São Bernardo do Campo retoma a dos estu-


dos de impacto ambiental e propõe a definição de vizinhança imediata e
mediata, sinalizando que seriam diferentes os impactos, conforme o grau
de proximidade do empreendimento.

2.5. Temas a serem analisados

Muitas leis municipais que regulamentam o EIV/RIV apresentam ba-


sicamente os itens que já constam do Estatuto da Cidade como conteúdo
mínimo para o EIV/RIV (art. 37), mas a legislação municipal poderia (e
deveria!) detalhar os itens, a partir da realidade local, de forma a especificar
melhor o que se espera da análise e incluir outros aspectos relevantes23. So-
bre o conteúdo mínimo sugerido pelo Estatuto da Cidade, cabe considerar:
Adensamento populacional: análise sobre o adensamento popula-
cional que o empreendimento poderá causar e sobre os impactos desse
adensamento na população local, na infraestrutura e serviços existentes
na área de influência e também os incômodos da movimentação e fluxo
da população permanente ou sazonal. Deve-se considerar também a
possibilidade de expulsão de determinados grupos;
Equipamentos urbanos e comunitários: análise sobre a capacidade dos
equipamentos urbanos e comunitários existentes24 e sobre o consumo a
ser gerado pelo incremento do adensamento;
Uso e ocupação do solo: análise do uso e ocupação do solo atuais
na área de influência (incluindo as características habitacionais, como a
existência de assentamentos precários) e sobre a forma como podem ser
afetados pelo novo empreendimento (concorrência, prestação de serviços,
etc.), além da compatibilidade com o zoneamento;
Valorização imobiliária: análise dos impactos decorrentes, para a
população e atividades do entorno, da valorização ou desvalorização
imobiliária a ser gerada na sua instalação;
Geração de tráfego e demanda por transporte público: análise das
demandas adicionais de tráfego e viagens a serem geradas pelo empre-

1017
endimento e avaliação da capacidade de suporte do sistema viário e do
transporte público local e regional;
Ventilação e iluminação: análise das alterações possíveis relativas à
ventilação e iluminação e insolação, sombreamento, especialmente sobre
o espaço público;
Paisagem urbana, patrimônio natural e cultural: análise do impacto
sobre a paisagem urbana (morfologia urbana, formação de barreiras, rela-
ção entre áreas adensadas e espaços livres, arborização urbana, poluição
visual) e patrimônio natural e cultural da área de influência, considerando
o significado destes elementos para a população e atividades locais, além
dos bens tombados.
Em relação à inclusão de outros aspectos a serem analisados no EIV/
RIV, merecem atenção:
Aspectos ambientais: contemplando os impactos relativos à imper-
meabilização, aquecimento, geração de ruído, drenagem, lençol freático,
qualidade do ar, situações de risco, geração de resíduos e efluentes,
condições do solo;
Aspectos socioeconômicos: contemplando os impactos relativos à
quantidade e qualidade de postos de trabalho gerados, bem como renda da
população residente ou atuante no entorno e benefícios a serem gerados;
Mobilidade urbana: considerando não só o impacto sobre sistema viá-
rio e transporte público, mas também as questões relativas à mobilidade
como um todo, envolvendo, por exemplo, acessibilidade, circulação de
pedestres e ciclistas, e a relação destes com o uso do solo;
Normas, planos, projetos que incidem sobre a área: legislação urba-
nística e ambiental; planos, programas e projetos governamentais de me-
lhoramentos urbanos previstos ou em andamento; projetos já aprovados
junto à municipalidade, que podem gerar efeitos cumulativos e sinérgicos
quando implementados, e também impactos face às diferentes temporali-
dades de sua instalação ou descompasso na construção do espaço urbano.
Estes deverão ser informados pela Prefeitura, idealmente no momento
da elaboração do Termo de Referência com o conteúdo a ser estudado (a
exemplo dos arts. 5º e 6º da Res. CONAMA 01/86).

1018
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Além destes conteúdos, o EIV/RIV deve definir as medidas mitigadoras


e/ou compensatórias dos impactos negativos, bem como aquelas inten-
sificadoras dos impactos positivos, a partir da análise realizada. Deve-se
prever, primeiramente, a eliminação integral dos impactos negativos, ou,
não sendo possível, a definição de medidas mitigadoras, ou ainda medidas
compensatórias. Tais medidas devem ser proporcionais ao impacto. O que
nos remete às críticas que se faz à legislação que trata de polos gerado-
res de tráfego em São Paulo, que estabeleceu que o custo das melhorias
viárias a serem executadas pelo empreendedor não pode representar
mais de 5% do custo total do empreendimento, ou seja, grande parte dos
impactos está oficialmente sendo suportada pelo poder público, que arca
com a diferença. Segundo Kuba (2012), já há posicionamento contrário
aos artigos da Lei que estabelecem este limite, por possuírem vício de
inconstitucionalidade frente aos artigos 225 da Constituição Federal e 191
da Constituição Estadual:

“(...) porque restringe indevidamente a proteção do meio ambien-


te urbano ao determinar que as melhorias viárias de mitigação de
impacto viário do pólo gerador de tráfego não possam superar 5%
do custo do empreendimento, sem se preocupar com a extensão
do dano causado ao tráfego do entorno do empreendimento”
(Kuba, 2012).

Complementarmente aos temas a serem analisados no EIV listados


na legislação municipal, para elaboração do relatório é necessária exis-
tência de um termo de referência, que disponha o conteúdo mínimo do
relatório25. Tendo em vista que os empreendimentos podem variar mui-
to quanto à complexidade ou à localização, é importante que exista a
possibilidade do órgão licenciador complementar o termo de referência
para situações específicas.
Ainda, os procedimentos para aprovação do EIV/RIV devem ser
clarose que passem por análise de equipes inter secretarias, sem sobre-
posição de solicitações/análises entre os órgãos da prefeitura. Além do
necessário cuidado de não solicitar para o EIV questões já abordados
em outras leis específicas.

1019
Quanto à qualidade dos EIVs, estes não podem ser meramente descri-
tivos das condições atuais, mas necessitam apresentar metodologia de
avaliação dos impactos e medidas adequadas para redução e mitigação
dos impactos negativos. Para isso, é necessário que sejam elaborados por
equipes multidisciplinares qualificadas, podendo a prefeitura recorrer a
um cadastro de empresas/escritórios habilitados ao serviço.

2.6. Necessidade de gestão e deliberação democrática

O EIV-RIV deve ser também um instrumento de democratização de


tomadas de decisões sobre o desenvolvimento urbano local e, portanto, o
instrumento que possibilita o debate com a população local afetada pelo
empreendimento e a deliberação sobre sua implantação.
A audiência pública é um direito subjetivo público e tem a finalidade de
expor aos interessados o conteúdo do estudo, mediante relatório, dirimindo
dúvidas e recolhendo dos presentes críticas e sugestões.
O Plano Diretor Estratégico de São Paulo exige que se dê publicidade
aos documentos dos estudos (art. 259), cópia gratuita fornecida aos mo-
radores da área afetada e suas associações (§ 1°) e retoma a necessidade
de audiência pública, apesar de não considera-la obrigatória: “o órgão
público responsável pelo exame do Relatório de Impacto de Vizinhança
– RIV deverá realizar audiência pública, antes da decisão sobre o projeto,
sempre que sugerida, na forma da lei, pelos moradores da área afetada
ou suas associações” (PDE, Lei n. 13.430/02, art. 259, § 2°). Mesmo erro
incorre o PL n. 414/11, que, com relação à necessidade de audiência, ao
invés de considerá-la obrigatória, condiciona-a à solicitação por abaixo-
-assinado por pessoas que residam ou trabalhem na área afetada.
As audiências devem ser obrigatórias (o inciso xIII do art. 2º do Estatuto
da Cidade traz diretriz a respeito), contribuindo, inclusive, para aumen-
tar o controle social sobre a qualidade técnica do estudo de impacto de
vizinhança que será apresentado, especialmente quanto à pertinência da
análise e das medidas mitigadoras propostas. Para isso, é importante que

1020
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

os estudos apresentados tenham linguagem simples e utilizem elementos


gráficos que facilitem a compreensão do público e estejam acessíveis a
todo e qualquer interessado.
A lei de EIV deve deixar claro o papel e o(s) momento(s) da audiência
pública no processo de aprovação do empreendimento, constando, por
exemplo, a finalidade/destinação das contribuições realizadas em audi-
ência. Também deve haver fundamentação da decisão que não considerar
as criticas e sugestões feitas na audiência pública, sob pena de nulidade.
Ainda, o estudo de impacto de vizinhança deve ser prévio à aprovação
do empreendimento, condicionando sua aprovação (sempre considerando
que este pode não ser aprovado). Neste sentido, o art. 13 do PL de São
Paulo é extremamente importante ao afirmar que não se aplica aos casos
de EIV/RIV o dispositivo do código de obras que possibilita que a obra se
inicie antes da aprovação.

2.7. Da necessidade de monitoramento

Nem sempre o EIV/RIV pode ser suficiente na previsão de todos os


impactos prévios a serem evitados, uma vez que a cidade é dinâmica, e
que a construção de um empreendimento pode demorar e a região pode
ter se modificado consideravelmente. Neste sentido, recomenda-se que
seja previsto o monitoramento destes impactos e, sempre que necessário, a
atualização dos estudos, contemplando eventos e efeitos não identificados.
O monitoramento dos impactos posteriores à implantação do empre-
endimento também se faz necessário, de forma a garantir que os impactos
negativos estejam realmente mitigados. O monitoramento dos EIVs pode,
inclusive, contribuir para o aperfeiçoamento do instrumento, ao avaliar se
as medidas propostas e empreendimentos enquadrados estão adequados.
Esse monitoramento é previsto em norma legal, por exemplo, na reali-
zação do coirmão EIA/RIMA (art. 6º, IV, da Resolução CONAMA 01/86).

1021
2.8. Relação com outros instrumentos

O EIV/RIV deve ser compreendido no âmbito do conjunto da legisla-


ção urbanística municipal. No caso de São Paulo, deve considerar as leis
existentes – no mínimo, o Plano Diretor Estratégico, Planos Regionais e
Lei de Uso e Ocupação do Solo, Lei sobre Polos Geradores de Tráfego – e
a relação entre estas leis e o instrumento do EIV/RIV. Além disso, deve-se
prever, em âmbito municipal, uma articulação entre os diversos instru-
mentos de licenciamento urbano-ambiental: EIV/RIV, Polos Geradores de
Tráfego (PGT), estudo de impacto ambiental (EIA), avaliação ambiental
estratégica (AAE) e estudo de viabilidade ambiental (EVA).
É importante destacar que há uma conversa entre o EIV/RIV e o EIA/
RIMA, a começar dos elementos comuns que caracterizam esses instru-
mentos: ambos são tratados no âmbito de um processo administrativo
aberto pela Administração Pública, sendo, portanto, procedimentos públi-
cos realizados pelo empreendedor ou proponente do projeto, sob a inter-
venção do Poder Público; são instrumentos de limitação da discricionarie-
dade administrativa; os dois visam à prevenção dos danos potenciais da
atividade/obra sobre o meio ambiente; são pressupostos do licenciamento;
deve-se dar ampla publicidade de seu conteúdo; a participação popular é
de rigor; aprimoram o princípio da eficiência administrativa.
O EIA/RIMA é instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente
(art. 9º, III, Lei 6.938/81) que visa preservar, melhorar e recuperar a qua-
lidade ambiental. O EIV/RIV é instrumento da Política Urbana (art. 4º, VI,
Lei 10.257/01) que visa preservar, melhorar e recuperar a qualidade do
ambiente urbano. Essa definição, no entanto, deve-se mais à aplicação
prática dos dois institutos do que a real finalidade de sua criação: prevenir
danos ao meio ambiente, em seu sentido holístico.
Nesse sentido, havendo similitude entre os instrumentos, embora,
na prática, sejam aplicados para aquilatar impactos sobre objetos apa-
rentemente distintos (EIA – meio ambiente natural; EIV – meio ambiente
construído e cultural), é possível afirmar que, na ausência de legislação

1022
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

municipal disciplinando o EIV/RIV, poderão ser aplicados os parâmetros


para a elaboração do EIA/RIMA, em termos de abrangência e conteúdo,
tais como: (i) art. 5º, Res. CONAMA (diretrizes) – alternativas tecnológicas
e de localização, considerar hipótese de não execução do projeto; indicar
e avaliar os impactos nas fases de implantação e operação; definição
da área de influência do projeto; considerar os planos e programas de
governo (propostos e em implantação) e sua compatibilidade; o Poder
Público pode fixar diretrizes complementares às do art. 5º, considerando
as características ambientais e peculiares do projeto, se necessárias; (ii)
art. 6º, Res. CONAMA – descrição do local, com o estudo do meio físico,
biológico e socioeconômico (relação de dependência entre a sociedade
local, os recursos ambientais e sua utilização futura); análise dos impactos
positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos
a médio e longo prazos, temporários e permanentes, grau de reversibi-
lidade, propriedades cumulativas e sinérgicas (poderá indicar alteração
do modo de produção em outras obras e atividades existentes); definir
as medidas para corrigir ou mitigar os impactos negativos; programa de
acompanhamento e monitoramento dos impactos positivos e negativos.

2.9. Responsabilidade técnica

O EIV/RIV, à semelhança do EIA/RIMA, é instrumento de avaliação


que tramita por meio de processo administrativo, sob a intervenção de um
ou mais órgãos públicos encarregados de seu licenciamento. Ele é con-
tratado pelo empreendedor, realizado por profissionais de áreas distintas
do conhecimento técnico e científico (multidisciplinar) e aprovado por
servidores ou agentes públicos. Bem por isso, incide sobre as respectivas
condutas responsabilidades de ordem administrativa, civil e criminal, caso
os estudos sejam feitos e aprovados, por exemplo, de forma inconsistente,
omissa e tendenciosa.
A responsabilidade administrativado empreendedor e dos profissionais
que elaboram o estudo está prevista na Lei n. 9.605/98 (lei de crimes

1023
ambientais), e vem definida como toda ação ou omissão que viole as re-
gras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio
ambiente (art. 70). As sanções vêm dispostas no art. 7226 e a autoridade
deve promover a abertura de processo administrativo, sob pena de corres-
ponsabilidade, observando a ampla defesa e o princípio do contraditório.
A responsabilidade civil por danos causados ao ambiente urbano do
empreendedor e dos profissionais que elaboram os estudos (eles concor-
rem para a prática da degradação ambiental) é objetiva, vale dizer, ela
independe da apuração de culpa (arts. 3º, IV e 14 da Lei n. 6.938/81). A do
órgão ambiental é objetiva (art. 37, parágrafo 6º, CF). A dos servidores/
agentes públicos responsáveis pela aprovação é objetiva (por concorre-
rem com a prática, ao aprovarem o EIV), e também podem responder por
improbidade administrativa (Lei n. 8.429/92), sujeitando-se a penas civis,
administrativas e políticas27.
A responsabilidade criminal do empreendedor e dos profissionais
contratados pode decorrer, por exemplo, da omissão de informações nos
estudos, ou da inserção de informação falsa (art. 299 do Código Penal –
falsidade ideológica – 1 a 5 anos de reclusão e multa). A responsabilidade
do funcionário público pode decorrer da informação falsa ou enganosa,
da omissão da verdade, sonegação de informações ou dados técnico-
-científicos em procedimentos de autorização ou licenciamento ambiental
(art. 66, Lei n. 9.605/98 – 1 a 3 anos de reclusão e multa).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do texto compreendeu-se como o Estudo de Impacto de Vizi-


nhança pode ser um importante instrumento de regramento dos impactos
urbano-ambientais e, além disso, de democratização da gestão urbana
na escala local, ao mediar os interesses privados dos empreendedores
e os coletivos dos moradores ou usuários do entorno. Tais aspectos já
se constituem em grandes desafios da regulamentação e aplicação do
instrumento.

1024
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Além disso, as considerações sobre o EIV apresentadas no texto com


base no caso de São Paulo possibilitaram elencar outros desafios relativos
à implementação do instrumento e aos aspectos necessários a sua regu-
lamentação como: (i) a necessidade de definir claramente na legislação
aspectos como: conceito de impacto de vizinhança, definição da área de
abrangência, obrigatoriedade e papel da audiência pública e da publici-
zação dos documentos, monitoramento dos impactos, procedimentos e
responsabilidades; (ii) a dificuldade em se definir os empreendimentos que
deverão ser objeto do EIV/RIV tendo em vista os desafios relacionados
àquestão dos impactos cumulativos e sinérgicos e da fragilidade das listas
com “linhas de corte” baseadas em área, número de vagas, entre outros;
(iii) as problemáticas relacionadas à compatibilização entre as diversas
leis urbanísticas municipais e sua relação com o EIV e à fragmentação
do licenciamento; e, (iv) a experiência ainda reduzida na utilização do
instrumento e resistência por parte dos empreendedores.
De outro lado, verificou-se também possibilidades de utilização do
instrumento (ou do EIA/RIMA) ainda que não esteja regulamentado no
município, o que pode subsidiar ações a curto prazo. Espera-se que o
texto venha a encorajar municípios a fazê-lo, ampliando a implementação
do instrumento e, consequentemente, a mitigação e compensação dos
impactos destes empreendimentos. Por fim, este debate se constitui em
importante elemento no âmbito das considerações e avaliações sobre
a implementação do Estatuto da Cidade, após mais de dez anos de sua
aprovação.

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NOTAS

1 Arquiteta urbanista, mestre pela FAUUSP, assistente técnica do Ministério Público do Estado de São Paulo.
angelaspilotto@gmail.com.
2 Arquiteta urbanista, doutora pela FAUUSP, assistente técnica do Ministério Público do Estado de São Paulo.
paulasantoro@usp.br.
3 Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Promotor
de Justiça de Habitação e Urbanismo de São Paulo, jcfreitas@mp.sp.gov.br.
4 Diz-se idealmente, porque isso que nem sempre se aplica, o zoneamento tem sido utilizado historicamente para
proteger o interesse dos proprietários e gerar diferenças no espaço (Rolnik, 1997; Villaça, 2012; entre outros).
5 Há também casos de municípios que adotaram um zoneamento composto essencialmente por zonas mistas,
em que o Estudo de Impacto de Vizinhança, instrumento que iremos tratar neste artigo, ganha uma importância
maior, será ele que definirá usos permitidos ou admitidos na escala da vizinhança. Um exemplo é o caso de
Votuporanga/SP (Cucato & Fava, 2010).
6 Projeto de Lei n. 775/83 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, que mais tarde foi substituído
pelo Projeto n. 5.788/90. Interessante observar que o projeto de lei original do Estatuto da Cidade, PL n. 181
de 1989, do Senador Pompeu de Souza, aparece sem o nome de EIV, nem regulamentação mínima, mas com
o mesmo princípio, de assegurar a participação popular, também na discussão de projetos de impacto urbano
e ambiental (art. 49) (Schalsberg, 2011, p.4).

1027
7 Aqueles que têm área de venda igual ou superior a dois mil metros quadrados.
8 Entre as contrapartidas estavam: a criação de uma nova avenida; o estabelecimento de uma cota dos produtos
a serem vendidos na loja, beneficiando a produção agrícola local; o aumento no número de lojas no interior
do empreendimento e a necessidade de abrigar os comerciantes locais (que sairiam das ruas para dentro do
supermercado); recursos para requalificação daqueles cujos negócios seriam afetados pelo empreendimento
e reserva de parte dos empregos na loja (10%) para pessoas acima de 30 anos; construção de uma creche para
60 crianças; além da responsabilidade pelo transporte dos materiais recicláveis para galpões de separação e
do lixo orgânico para uma usina de compostagem.
9 Isso leva à reflexão sobre a necessidade de mobilização em prol da disseminação do instrumento no país,
evitando grandes distorções de interpretação entre os municípios ou uma competição desleal entre estes,
quando se perde qualidade urbano-ambiental.
10 Em recente reunião sobre o instrumento na Câmara Municipal, uma técnica da Secretaria do Verde e Meio
Ambiente afirmou que foram analisados 19 EIV-RIVs em 8 anos, entre 2006 e 2013, o que mostra que houve
uma redução grande do número de empreendimentos que estão apresentando estes estudos, pois corresponde
ao mesmo número dos que foram analisados em dois anos, entre 1990 e 1992.
11 Pesquisa MUNIC 2008 pergunta “se o município possui, ou não, leis específicas sobre os instrumentos de
política urbana relacionados”, dentre eles “Estudo de Impacto de Vizinhança”, considerado “estudo realizado
antes da aprovação do empreendimento ou atividade para mostrar seus efeitos quanto à qualidade de vida da
população residente na área e suas proximidades” (pergunta 5.4, com resposta 1 = sim ou 2 = não).
12 Agravo de Instrumento nº 334.282-5/5-00, Presidente Epitácio, TJSP, Primeira Câmara de Direito Público,
Relator Danilo Panizza, j. 10.02.04, v.u.; Agravo de Instrumento n° 357.165-5/O, Pirajuí, Terceira Camara de
Direito Publico, Relator Laerte Sampaio, j. 09.06.04, v.u.; Agravo de Instrumento n° 994.09.259211-0 (971.798-
5/5-00) – São Bernardo do Campo – TJSP - Câmara Reservada ao Meio Ambiente – j. em 29.07.10, Relatora
Regina Capistrano.
13 Agravo de Instrumento nº 876860-7, TJPR, 5ª Câmara Cível, j. 08.05.12, Relator Leonel Cunha.
14 Agravo de Instrumento no 5001805-94.2013.404.0000, j. em 01.02.13, Relator Des. Luís Alberto D’Azevedo
Aurvalle (D.E. 04.02.13).
15 O PL foi proposto pelo Executivo a partir de projeto formulado pelo Conselho Municipal do Meio Ambiente
e Desenvolvimento Sustentável (CADES), entre 2005 e 2006.
16 O PL 414/11 traz os seguintes conteúdos: (i) EIV/RIVI prévios à emissão de licenças de construção e am-
pliação ou dos alvarás de aprovação e de aprovação e execução ou das licenças de funcionamento (art. 1°); (ii)
definição das atividades e empreendimentos geradores de impacto de vizinhança com listagem das situações
em que os empreendimentos podem se enquadrar (art. 2° e 3°); (iii) procedimentos para aprovação do EIV/
RIVI (art. 4°, 5°, 10 e 11); (iv) aspectos que devem ser analisados no EIV/RIVI (art. 6°) e que devem seguir o
Termo de Referência anexo ao PL (art. 7°); (v) sobre a publicização do EIV/RIVI e a realização de audiência
pública (art. 8° e 9°); e, (vi) responsabilidades quanto às despesas do EIV/RIVI (art. 12).
17 “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações” (CF, art. 225).
18 Considerados: “III. empreendimentos geradores de impacto de vizinhança: aqueles que pelo seu porte ou
natureza possam causar impacto ou alteração no seu entorno ou sobrecarga na capacidade de atendimento
da infra-estrutura” (art. 157, II).
19 Considerados: “II. empreendimentos geradores de impacto ambiental: aqueles que possam causar altera-
ção das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente e que direta ou indiretamente afetem:
a) a saúde, a segurança e o bem estar da população; b) as atividades sociais e econômicas; c) a biota; d) as
condições paisagísticas e sanitárias do meio ambiente; e) a qualidade dos recursos ambientais;” (art. 157, II).
20 “Art. 2º. Para os fins desta lei, atividades e empreendimentos geradores de impacto de vizinhança são aqueles
que, por seu porte ou natureza, possam causar impactos ambientais relacionados à sobrecarga na capacidade
de atendimento da infraestrutura urbana e viária, bem como à deterioração das condições da qualidade de
vida do entorno” (PL n. 0414/2011, art. 2º).
21 Expressão utilizada por CORDEIRO, António. A Proteção de Terceiros em Face de Decisões Urbanísticas.
Coimbra: Almedina, 1995, p. 145-153.
22 Aqui a aprovação “lote a lote”, de cada empreendimento isoladamente na Prefeitura, inviabiliza a percepção
do impacto cumulativo.
23 Nesse sentido a Resolução CONAMA 01/86, que disciplina a realização do EIA/RIMA, no seu art. 5º,
parágrafo único, autoriza o Poder Público fixar diretrizes complementares, considerando as características
ambientais e peculiares do projeto.
24 Conforme a Lei Federal n. 6.766/79 e alterações posteriores, que dispõe sobre o parcelamento do solo ur-
bano, “A infra-estrutura básica dos parcelamentos é constituída pelos equipamentos urbanos de escoamento
das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica

1028
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

pública e domiciliar e vias de circulação” (Art. 2° § 5o) e “Consideram-se comunitários os equipamentos públicos
de educação, cultura, saúde, lazer e similares” (Art. 4° § 2º).
25 O termo de referência, de forma geral, deve ter como conteúdo mínimo: (i) caracterização do empreendi-
mento e definição da área de influência diretamente e indiretamente afetada; (ii) análise da situação atual da
área de influência do empreendimento; (ii) diagnóstico dos efeitos (impactos) positivos e negativos (segundo
os diferentes grupos: residentes, usuários, funcionários, etc.), avaliando a compatibilidade e viabilidade, por
meio da apresentação da situação futura com a implantação do empreendimento; e, (iv) proposição de so-
luções para os impactos, demonstrando a viabilidade e compatibilidade e definição de medidas mitigadoras
e/ou compensatórias.
26 Advertência, multa simples; multa diária; apreensão de animais, produtos, equipamentos, veículos; destruição
de produto; suspensão de venda e fabricação de produto; embargo de obra ou atividade; demolição de obra;
suspensão ou cancelamento de atividade; penas restritivas de direitos, como a suspensão de registro, licença
ou autorização, perda de incentivos fiscais ou em financiamentos em estabelecimentos oficiais de crédito,
proibição de contratar com a Administração Pública.
27 Suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens, ressarcimento ao
erário, proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios,
direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual sejam sócios majoritários.

1029
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Estudo de impacto de
vizinhança e vinculação
do Poder Público

1
Rayanna Brito
Edson Ricardo Saleme2

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é analisar a vinculação do Poder Público


em face dos resultados apontados no Estudo de Impacto de Vizinhança
(EIA) no momento da tomada de decisão quanto à concessão ou não da
autorização urbanística ao empreendimento ou atividade, bem como
da influência dos frutos da audiência pública prévia para discussão dos
eventuais impactos.
O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), com previsão nos artigos
4º, VI c/c dos artigos 36, 37 e 38 da Lei nº 10.257, de 2001, Estatuto da
Cidade, é instrumento de gestão municipal. Existe para evitar impactos
negativos ao meio ambiente urbano oriundos de empreendimentos ou
atividades a serem implantados na municipalidade ou mesmo alterados
ou modificados em sua circunscrição. Esses impactos, se não mitigados,
poderiam ser capazes de comprometer o equilíbrio da ordem urbanística
das cidades.
Neste sentido, para que se possa formar um entendimento sobre o
assunto importante tecer algumas considerações acerca dos fundamentos
do EIV no âmbito da Ordem Urbanística, de sua natureza jurídica, da sua
previsão ou não no plano diretor; da possibilidade de participação popular
em sua emissão e concretização do Estudo de Impacto de Vizinhança, das

1031
principais diferenças entre o Estudo de Impacto Ambiental e o Estudo de
Impacto de Vizinhança e da vinculação do Poder Público aos resultados
obtidos nesse instrumento.

1. FUNDAMENTOS DO ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINhANÇA

Para melhor entender os fundamentos do Estudo de Impacto de Vi-


zinhança, importante analisar as normas estabelecidas na Constituição
Federal, bem como na Lei Federal n.10.257/01 (Estatuto da Cidade) no
que diz respeito à propriedade privada imobiliária urbana.
Há uma evolução ao conceito de propriedade privada no Direito que
se observa desde o princípio do século xx. No direito nacional a proprie-
dade privada alcançou novos patamares daqueles estabelecidos no État
Gendarme. O direito urbanístico ganhou nova dimensão. Mais ampla,
atualmente é a concepção atual daquela inicialmente estabelecida no
âmbito do Direito Civil. O Direito urbanístico é ramo do direito público e
se corresponde direitamente à necessidade das municipalidades estabe-
lecerem o planejamento urbano e as normas citadinas correspondentes.
Atualmente não se concebe o direito de propriedade como direito
absoluto e ilimitado. Este novo conceito confere ao direito urbanístico
o atributo de funcionalidade e utilidade (produtividade), assumindo ca-
racterística subjetiva no sentido de que o proprietário deve exercer seus
direitos sobre o imóvel conservando a respectiva função social do bem,
em observância aos princípios do Estado Social.
O direito de propriedade, para Maria Magnólia Lima Guerra3, é um di-
reito subjetivo que deve atender uma finalidade, regulada pela respectiva
função social, ou seja, a propriedade é um direito acompanhado de uma
função social definida por norma específica.
Entende a autora ainda que o direito de propriedade é caracterizado
pela sua bilateralidade. Vale dizer que o direito subjetivo de propriedade
vem acompanhado de um dever jurídico, nos moldes introduzidos pela
Constituição de Weimar, em 1919. E, no caso do direito de propriedade,

1032
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o dever atribuído se correlaciona ao atendimento dos interesses sociais.


Amparando o entendimento mencionado, a interpretação dos artigos
5º caput e incisos xxII e xxIII da Constituição Federal esses dispositivos
tratam da inviolabilidade do direito de propriedade, bem como, da função
social que lhe deve permear e que alguma lei lhe deve imprimir. Pode-se
indicar que, desde o Estatuto da Terra, Lei n. 4504, de 1964, já indicou
os parâmetros para atendimento dessa função. A Lei n. 10.257, de 2001,
indica, a partir dos termos constitucionais, que a lei municipal deve de-
terminar como se atende a função social da propriedade.
O princípio da função social aplica-se determinando legalmente as
obrigações do proprietário com o fim de limitar o uso indiscriminado da
propriedade. Determinados limites são impostos, pois, o uso da proprie-
dade pode causar direta ou indiretamente, interferências no local (cidade)
onde está situada, ocasionando repercussões negativas em diversas
dimensões, sobretudo no meio ambiente citadino.
Nesse diapasão, o Estudo de Impacto de Vizinhança revela-se relevante
instrumento de controle jurídico do processo de desenvolvimento urbano
por meio da obtenção “das prováveis modificações nas diversas caracte-
rísticas socioeconômicas e biofísicas do meio ambiente urbano que podem
resultar de um projeto proposto4. Isso pode ocorrer na ampliação, cons-
trução ou modificação de empreendimentos ou atividades impactantes.
Com base no artigo 36 do Estatuto da Cidade, observa-se que são as
normas municipais que devem prever os critérios que serão enquadrados
empreendimentos e atividades sujeitos ao Estudo de Impacto de Vizi-
nhança. Tal disposição é de fácil entendimento tendo em vista que, são
os municípios os entes capazes de estabelecer quais empreendimentos
ou atividades poderão surtir efeitos negativos ao desenvolvimento equi-
librado da sociedade local.
O EIV, para Vanêsca Buzelato Prestes 5, deve abarcar os empreendimen-
tos de acordo com o tipo de atividade desenvolvida: industriais, comer-
ciais ou residenciais. A exemplo desta adequação ao tipo de atividade ou
empreendimento. A autora diferencia a implantação de uma lanchonete

1033
e uma franquia do Mc Donald`s no seguinte sentido:

“um McDonald´s (SIC), por exemplo, é do gênero alimentício


tanto quanto uma lancheria, em tese, sujeitos ao mesmo alvará e
por consequencia à mesma análise. Todavia, o impacto causado
por um Mac Donald´s (SIC) é muito maior que uma lancheria,
especialmente na circulação, dado o afluxo de carros e pedestres
usual desta atividade. A análise precisa considerar atividade
específica que será desenvolvida ou que passará a ser exercida
na hipótese de ampliação. A avaliação da quantidade de vagas
de estacionamento, a largura das vias de acesso, os gargalos do
fluxo de trânsito que confluem para um mesmo local, o barulho
são extremamente importantes merecendo análise tópica, ou
seja, dependendo da atividade específica.”

Assim, de forma a evitar que o meio ambiente urbano sofra paulati-


namente interferências urbanas capazes de comprometer os padrões de
sustentabilidade locais afetando o ambiente local, sobretudo comprome-
tendo vias urbanas com excesso de circulação, o artigo 2º do Estatuto
da Cidade estabeleceu o EIV para que a propriedade seja empregada de
forma a não prejudicar o meio onde se situa e seja utilizada de maneira
racional e equilibrada.

2. MEIO URBANO E EIV

O art. 53 do Estatuto da Cidade6 trata a ordem urbanística como um


Direito de característica difusa por se relacionar com um número indeter-
minado de pessoas que habitam um mesmo local (cidade).
Para José Carlos de Freitas7 o conceito de ordem urbanística extraído
da interpretação do artigo 2º do diploma legal supracitado assim se define:

“envolve o direito às cidades sustentáveis; um planejamento ur-


banístico (notadamente a elaboração, execução e implementação
dos planos diretores e seu controle popular); ao uso, ocupação
e parcelamento do solo urbano e ordenados, à proteção do
ambiente natural, artificial e cultural, à ordenação da atividade
edilícia (zoneamento urbano e ambiental, licenças urbanísticas);
à utilização de instrumentos de intervenção urbanística (desapro-
priação, tombamento, servidão administrativa, IPTU progressivo
e desapropriação sanção, etc.); ao regramento e proteção dos
equipamentos comunitários e bens públicos ou sociais (ruas,

1034
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

avenidas, pontes, viadutos, túneis, parques, praças, jardins, la-


gos, áreas verdes e institucionais, espaços livres, etc.) ao direito
à moradia, notadamente das camadas sociais de baixa renda”.

Da análise do autor pode-se entender que é direito da coletividade


urbana o direito manutenção da ordem urbanística, sem qualquer distin-
ção, considerando-se o direito de circulação, habitação, moradia e outros
relacionados à vida na cidade.
A construção ou modificação de determinados empreendimentos ou
até a execução de certas atividades, sejam elas públicas ou privadas, são
capazes de causar impactos negativos ao meio ambiente urbano. Pode-se
citar, como exemplo, a construção de centros comerciais, ou até mesmo
na edificação de obras públicas com repercussão no meio urbano.
Os impactos negativos que podem interferir no desenvolvimento equi-
librado das cidades são vistos como Impacto de Vizinhança pelo Estatuto
da Cidade.O referido diploma legal não prevê expressamente o que vem a
ser Impacto de Vizinhança, porém, da interpretação dos artigos 2º, IV, V,
VI “b” e “d”, VIII c/c os artigos 36 e 37, extrai-se uma conceituação que,
segundo Mariana Mencio8:

“é causado pela implementação de empreendimentos e atividaes


geradores de efeitos negativos sobre o meio ambiente urbano
consistentes no aumento desproporcional do adensamento po-
pulacional, dos equipamentos urbanos, comunitários, da geração
de tráfego, de demanda por transporte público, de prejuízos
gerados pela falta de ventilação e iluminação adequadas dos
imóveis urbanos, degradação do patrimônio cultural, natural e
da paisagem urbana. Fatores que rompem o equilíbrio da ordem
Urbana, bem difuso dos habitantes da cidade”.

O conceito de impacto de vizinhança relaciona-se diretamente com


a adequação do empreendimento ou atividade com o meio no qual será
inserido ou edificado. Busca-se uma interação da atividade ou empre-
endimento com o meio existente. Deve-se buscar uma integração sem
impacto. Se isso não for possível, deveria se mitigar os possíveis impactos.
O empreendimento ou obra deve manter uma harmonia local. Se houver
impacto no trânsito, por exemplo, deve-se prever formas de minimizá-lo.

1035
Isso compreende também que o que se quer implementar não contraste
com o que permite o zoneamento local.

3. LICENÇA E AUTORIZAÇÃO

O artigo 369 do Estatuto da Cidade estabelece que a lei municipal defi-


nirá os empreendimentos e atividades que dependerão da elaboração do
EIV para obtenção de licença ou autorização.
Hely Lopes Meirelles10 entende a diferença entre elas no seguinte
sentido:

“Licença é ato administrativo vinculado e definitivo pelo qual


o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas
as exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades
ou realização de fatos materiais antes vedados ao particular,
como por exemplo: exercício de uma profissão, a construção de
um edifício em terreno próprio. A licença resulta de um direito
subjetivo do interessado, razão pela qual a Administração não
pode negá-la quando o requerente satisfaz todos os requisitos
legais para a sua obtenção, e, uma vez expedida, traz presunção
de definitividade”.

Embora admita-se que ambas sejam concedidas por alvará, José Afonso
da Silva11, ponderando acerca do assunto, defende que a autorização é
precária e destinada a empreendimentos provisórios, e a licença, por sua
vez, é definitiva e diz respeito a construções permanentes.
A doutrina e jurisprudênciaindicam que os institutos das “licenças”
urbanística e ambiental são, na verdade, autorização. Configuram-se atos
precários e não definitivos, pois tratam de interesses transindividuais que,
em caso de descumprimento, impõe ao Poder Público o poder dever de
cassar a autorização eventualmente concedida. Considerando o próprio
sentido de poder de polícia, como a capacidade da Administração conferir
autorização para o exercício de determinadas atividades pública. Se for
constatado que ela não vai ao encontro das premissas estabelecidas em
lei ou é realizada de forma a impactar o ambiente, impede-se o exercício
da atividade.

1036
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

4. ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINhANÇA E PLANO DIRETOR.

O artigo 182 da Constituição Federal atribui ao Poder Público Muni-


cipal a execução da política de desenvolvimento urbano, com o objetivo
de garantir o pleno desenvolvimento social sob a égide do bem- estar de
seus munícipes. O Plano Diretor, com previsão no parágrafo 1º do artigo
em exame, e é definido como instrumento básico da política de desen-
volvimento urbano. Com isso, essa propriedade deve cumprir seu papel
(função social) quando da realização das exigências de ordenação das
cidades previstas no referido Plano, conforme previsão do parágrafo 2º.
O Poder Público, por meio das diretrizes do Plano Diretor, objetiva
cumprir o previsto no artigo 2º do Estatuto da Cidade, quer viabilizar a
ordenação do espaço urbano, de maneira a proporcionar aos habitantes
da cidade a vivência harmônica nas quatro funções básicas da cidade:
circulação, habitação, trabalho e lazer12.
Entre os incisos do artigo 4º que relacionam os instrumentos de polí-
tica urbana, entre eles o EIV, uma vez adotado pelo Plano Diretor, deve
cumprir o objetivo de regular os empreendimentos urbanos a fim de que
os impactos não gerem externalidades que possam piorar ainda mais o já
problemático cenário das paisagens e mobilidade urbana. A Lei instituidora
das diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, que regulamen-
tou o inciso xx do art. 21 e o art. 182 da Constituição Federal, em seu
inciso II e Ix, prevê dois princípios que podem auxiliar no estabelecimento
de instrumentos de apoio à mobilidade urbana e guardar intima sintonia
com a necessidade de EIA em face do estabelecimento das peculiaridades
municipais, nos termos do que dispõe a Lei n. 12.587, de 2012, criadora
da Política Nacional de Mobilidade Urbana: o do desenvolvimento das
cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais e o da eficiência,
eficácia e efetividade na circulação urbana.
O EIV deve ser claro quanto aos impactos que a implementação de
determinado empreendimento trará para os habitantes locais, bem como
a extensão deles. Em razão dessa exigência, os responsáveis pela elabo-

1037
ração do instrumento devem indicar no EIV, nos termos do disposto no
artigo 37 do Estatuto da Cidade, o cumprimento das exigências relevantes à
melhoria da infraestrutura capazes de suportar as externalidades oriundas
dos grandes empreendimentos.
Com isso, a Resolução nº34/05 do Conselho das Cidades, estabelece
no artigo 3º, que o Plano Diretor (artigo II), é o responsável por elaborar
critérios para a aplicação do EIV. O ente Municipal deve estar ciente acerca
de imposições e fórmulas capazes de evitar ou minimizar impactos.
Os Estudos de Impacto de Vizinhança já contam com alguma regu-
lamentação legal e normativa capazes de orientar o administrador na
concessão de licença urbanística. Essas normas, estabelecidas por normas
municipais não podem ser tomadas apartadas do plano diretor e do plano
diretor de mobilidade urbana, nos termos que dispõe as Leis nº s 10.257,
de 2001 e 12.587, de 2012. O EIV tomado separadamente desses planos e
sem o respectivo processo de aprovação urbanística, não cumprirá com
os objetivos para o qual foi previsto.

5. A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA
CONFECÇÃO E CONCRETIZAÇÃO DO
ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINhANÇA

A população local, moradora das imediações do ambiente em que


será erigido o empreendimento ou atividade, e por ser a principal afetada
em possíveis impactos, é a mais habilitada para discutir as questões que
possam exsurgir de sua inserção naquele meio, a partir dos estudos pré-
vios de implementação.
A participação popular é princípio constitucional expresso no artigo
1º, parágrafo único. Somada à essa previsão constitucional,o Estatuto da
Cidade13 expressamente insere a participação da população no processo
de elaboração do EIV nos termos do artigo 2º, xIII c/c artigo 37, parágrafo
único, acerca da publicidade dos documentos.

1038
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Para Mariana Mencio14:

“a participação popular na elaboração e implantação do planeja-


mento urbano, que inclui a elaboração do EIV, decorreu da uma
mudança de paradigma vivenciado pelo nosso sistema político,
com a introdução dos conceitos de Democracia participativa e
representativa pela Constituição Federal de 1988”.

Atualmente, a Administração Pública não pode manter distanciamento


e estabelecer função meramente burocrática e autoritária que marcaram
sua atuação pretérita. A população, não obstante possa ter algum dis-
tanciamento de informações essenciais por falta de educação ambiental,
deve participar das decisões. Considerando que os órgãos coletivos como
ONGs e OSCIPs participam do processo de tomada de decisões coletivas,
também auxiliam os menos informados na obtenção de um cenário, que
nem sempre pode se refletir em situação desprovida de certos interesses.
Entretanto, a necessidade de obtenção de consenso na tomada das deci-
sões administrativas impõe limites à discricionariedade do ente.
Com a participação popular limita-se a discricionariedade do adminis-
trador ao analisar dados oferecidos pelo empreendedor a parti de estudos
de impacto de vizinhança. Desta forma, a elaboração do EIV não pode
assumir caráter eminentemente técnico. É necessário a participação dos
habitantes locais afetados pelo empreendimento ou atividade, sendo pela
consulta de documentos, como também pelas audiências públicas em que
se possibilite a discussão dos efeitos e prejuízos decorrentes daqueles.
Importante, no entanto, que a decisão seja coletiva e envolva a socie-
dade e a Administração Pública, gerando uma espécie de “pacto social”
onde os vários interesses submergidos sejam avaliados. Cabe apontar
que existem previsões de conseqüências jurídicas aos empreendimentos
ou atividades que exijam EIV e a obrigatoriedade se constate desprezada
sem a elaboração do necessário estudo.
Nos casos em que a obrigatoriedade seja imposta por lei e os empreen-
dedores não apresentem os estudos, os atos administrativos autorizadores
serão tidos como inválidos e, a autoridade administrativa expedidora da

1039
licença ou autorização poderá responder por improbidade administrativa
com fundamento no que dispõe o artigo 11 da Lei nº 8.429, de 1992.
A população pode, mediante ação popular, nos termos do artigo 1º c/c
artigo 2º “b”, da Lei nº 4.717, de 1965, controlar a ação da municipalidade,
nos casos de omissão quanto a elaboração do EIV, em razão da licença
ou autorização ter sido expedida com vício, por não observar as regras
constantes tanto da Constituição Federal, como no Estatuto da Cidade,
conforme já discorrido anteriormente.

6 - PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE O ESTUDO DE IMPACTO


AMBIENTAL E O ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINhANÇA.

O Estudo de Impacto de Vizinhança guarda grande proximidade do Es-


tudo de Impacto Ambiental. Porém, assume vertente relacionada ao meio
ambiente urbano especificamente. Essa previsão do legislador corroborou
ainda mais para que o direito urbanístico se tornasse ramo autônomo do
direito, que também se constitui por meio de princípios autônomos e pela
própria previsão do art. 24, I da Constituição Federal.
Importante, no entanto, frisar que, a elaboração do EIV não exclui a
elaboração do EIA, uma vez que ambos são instrumentos de proteção
do ambiente como todo considerado. Vale afirmar que as atividades ou
empreendimentos sujeitos ao EIA não precisam ser submetidos ao EIV,
pois se pressupõe que os requisitos daquele já estão contidos nele.
Por conseguinte, o EIV apresenta como principal fundamento a função
social da propriedade no sentido de que a utilização da propriedade urba-
na atenda aos interesses não só individuais, mas de toda a coletividade.
Porém, ambos os Estudos como característica em comum, não substituem
a decisão do administrador, são instrumentos que devem subsidiar a to-
mada de decisões e, em caso de indicação de impacto, propor formulas
de mitigação.

1040
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Nas palavras de Antônio Herman Benjamin15,

“O EIA, atua fundamentalmente, na esfera de discricionariedade


da Administração Pública. Seu papel é limitar, no plano da decisão
ambiental, a liberdade de atuação do administrador. Se o EIA é
limite de decisão administrativa, não se confunde, pois com a
decisão administrativa em si. Sendo momento preparatório da
decisão, o EIA a orienta, informa, fundamenta e restringe mas,
tecnicamente falando, não integra como um de seus elementos
internos. É parte do procedimento decisório mas não é compo-
nente interior da decisão administrativa”.

Assim, tanto o EIA quanto o EIV são instrumentos de gestão. Pode-se


destacar a importância constitucional do EIA em face de sua previsão
constitucional, nos termos do art. 225, parágrafo 1º, IV da Constituição
Federal. Cabe também mencionar que a Resolução 237, do CONAMA,
destaca a necessidade de empreendimentos com obrigatoriedade de EIA,
além de outros estabelecidos em leis esparsas.

7 - A VINCULAÇÃO DO PODER PÚBLICO AOS RESULTADOS


OBTIDOS NO EIV.

É certo que diante dos diversos dados e interesses consignados no re-


latório do Estudo de Impacto de Vizinhança há um rol de opções a cargo
do administrador público que, inclusive, ao exercer sua discricionariedade,
pode exigir determinadas contrapartidas em prol da organização e trânsito
locais ou outras circunstâncias afetadas pelo empreendimento.
A referida discricionariedade, contudo, deve ser tomada em conta, em
razão do que determinar a lei local, a partir das indicações do Estatuto da
Cidade, diploma que permite ao administrador que tome sua decisão de
acordo com o que for conveniente ao município, em cada caso concreto.
Destarte, ainda que o EIV indique a viabilidade do empreendimento ou
atividade, o Administrador, fundamentando sua decisão, poderá não con-
ceder a licença ou autorização demandada, pois a ele compete a palavra
final relativamente ao ato. O estudo, por sua vez, deve apresentar os efeitos
positivos e negativos decorrentes da implementação do empreendimento

1041
ou atividade e, a administração deve sopesar suas consequências diante
dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, respondendo nos
casos de omissão ou falta de justificativa para os seus atos.
Com vistas a corroborar este estudo, Vanêsca Buzelato Prestes sintetiza:

“O EIV não substitui a decisão do administrador. É um instru-


mento para a tomada de decisão e é mitigador desta. Em outras
palavras, o administrador precisa considerar os elementos
colocados no EIV, porém, não precisa aderir a este, desde que
justifique e motive”.

Certamente a palavra do administrador é a final. Sua decisão irá em-


basar a concessão ou não da autorização para a construção da obra.

8. CONCLUSÕES

1. O Estudo de Impacto de Vizinhança é instrumento de gestão criado


com o objetivo de evitar que os empreendimentos ou atividades possam
gerar efeitos negativos ao ambiente urbano. Isso pode ser na construção,
alteração ou modificação de empreendimentos que possam comprometer
o equilíbrio da ordem urbanística das cidades.

2- Como forma de evitar que o meio ambiente urbano sofra paulati-


namente interferências urbanas capazes de comprometer os padrões de
sustentabilidade de cada município, bem como a ordem urbanística, o
artigo 2º do Estatuto da Cidade estabeleceu o EIV com fundamento na
função social da propriedade. Deve haver previsão no plano diretor e no
plano diretor de mobilidade urbana para que haja embasamento suficiente
de sua obrigatoriedade.

3. A autorização, forma pela qual o ato se exterioriza, é precária e des-


tinada a empreendimentos provisórios. O EIV gera autorização que obriga
o proprietário a manter as indicações necessárias para sua manutenção.

1042
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

4. A participação popular tem papel de limitar a discricionariedade do


administrador ao analisar os dados oferecidos pelos estudos de impacto
de vizinhança e fazer com que a decisão tomada por este leve em consi-
deração o “pacto social” firmado entre Administração e administrado sob
a análise do interesse de ambos nele envolvidos.

5. O Estudo de Impacto de Vizinhança é derivado do Estudo de Impacto


Ambiental; porém, assume vertente relacionada ao ambiente urbano espe-
cificamente em razão de ter como base normas relacionadas à propriedade
urbana. À Administração Pública é conferida elevada discricionariedade
em razão dos interesses distintos em questão, bem como em razão das
inúmeras possibilidades de decisões. Deve-se motivar e fundamentar
suas decisões.

BIBLIOGRAFIA

BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 18. ed. São
Paulo. Malheiros, 2005.
FIGUEIREDO, Lucia Valle. Disciplina Urbanística do Direito de Propriedade. São Paulo.
Malheiros, 2005.
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________. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo. Malheiros, 2005.

1043
NOTAS

1 Mestranda em Direito Ambiental e graduada em Direito pela UNISANTOS. Advogada em São Paulo.
2 Professor Doutor do Curso de Mestrado e Doutorado em Direito Ambiental Internacional da UNISANTOS.
Professor de Graduação da Unisantos e Universidade Paulista. Advogado em São Paulo.
3 Aspectos Jurídicos do Uso do Solo Urbano, p. 55.
4 Renato Cymbalista (Dicas do Instituto Polis – Idéias para a ação Municipal – Estudo de Impacto de Vizinhança,
nº 192) disponível em: www.polis.org.br.
5 Plano Diretor e Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) – Revista de Direito Ambiental, nº 37, ano 10, janeiro
– março de 2005, Editora Revista dos Tribunais.
6 Artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor: “A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas
poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo – Parágrafo único: A defesa coletiva será exercida
quando se tratar de: I- interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindivi-
duais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.
7 Temas de Direito Urbanístico, p. 298-303.
8 A influência do Estudo de Impacto de vizinhança na expedição da licença urbanística para construção de empre-
endimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente urbano, p.55.
9 Artigo 36 do Estatuto da Cidade: “Lei municipal definirá os empreendimentos e atividades privados ou públicos em
área urbana que dependerão de elaboração de Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV) para obter as licenças
ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal”.
10 Direito Administrativo Brasileiro, p.177.
11 Direito Urbanístico Brasileiro, p. 388.
12 A influência do Estudo de Impacto de vizinhança na expedição da licença urbanística para construção de empre-
endimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente urbano, p.60.
13 Artigo 2º, xIII: “a audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implan-
tação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou
construído, o conforto ou a segurança da população”.
Artigo 37, parágrafo único: “Dar-se-á publicidade aos documentos integrantes do EIV, que ficarão disponíveis para
a consulta, no órgão competente do Poder Público municipal, por qualquer interessado”.
14 A influência do Estudo de Impacto de vizinhança na expedição da licença urbanística para construção de empre-
endimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente urbano, p.75.
15 Os princípios do Estudo de Impacto Ambiental como Limites da Discricionariedade Administrativa, Revista
Forense, Vol. 317, p.27.

1044
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Gestão de cidades:
instrumentos contemporâneos e
a judicialização da política urbana

João Aparecido Bazolli 1

1. INTRODUÇÃO

Este estudo buscou compreender a crise urbana do País calcada na


falta de organização espacial urbana de maneira equânime e integrado-
ra e na ausência da ação do Poder Público que deveria aplicar a política
nacional urbana como orientadora e coordenadora de esforços, planos,
ações e investimentos nos vários níveis de governo.
A gestão de cidades requer a existência de instrumentos que possi-
bilitem a concretização das estratégias e objetivos para realização do
planejamento sustentável das cidades. Os instrumentos de gestão são os
mecanismos e as ferramentas que poderiam ser utilizados pelo Poder Pú-
blico durante o processo e a sua prática administrativa, e, de modo geral,
estão previstos na própria Legislação que estabelece o regime jurídico da
gestão. Assim, esses instrumentos são recomendados na boa prática de
planejamento, mas ainda visto com indiferença pelo Poder Público, que,
por motivação política ou por incapacidade técnica, deixa de aplicá-los.
Entre os principais instrumentos de gestão de cidades destacam-se:
Agenda 21; Metas do Milênio; Planos e Políticas Nacionais; Planos e Po-
líticas Setoriais; Planos e Políticas de Ordenamento do Território; Planos
Municipais. A importância da aplicação desses instrumentos de gestão na
busca da cidade sustentável será discutida, suscintamente, neste trabalho.
A metodologia aplicada pelo estudo foi a investigação dos instrumentos
contemporâneos de gestão de cidades à luz dos planos nacionais e locais,
na área de desenvolvimento urbano, por meio de revisão bibliográfica e de

1045
atividades de análise de reuniões do Conselho de Desenvolvimento Urbano.
Concluiu-se que os instrumentos de gestão existentes para a concre-
tização das estratégias e objetivos de um planejamento sustentável das
cidades não são aplicados na prática administrativa em razão de interesses
políticos e econômicos. Nesse viés, os conflitos das disputas do espaço
urbano que deveriam ocorrer no campo da mediação, com a efetiva parti-
cipação popular por meio de audiências públicas, são judicializados. Dessa
maneira, o trabalho revela a resistência pelo Poder Público em realizar a
divisão justa da cidade, preconizada pela nova ordem urbanística, a qual
está sendo contraposta pela sociedade, que, ao não se lhe conceder o
espaço legítimo de debate – audiência pública –, tem conseguido impedir
as ações contrárias ao interesse público, recorrendo ao Poder Judiciário.

2. A AGENDA 21 E AS METAS DO MILÊNIO

A Agenda 21 Global resultou da Conferência das Nações Unidas sobre


Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada em 1992, na
cidade do Rio de Janeiro. Foi elaborada a partir de compromisso estabe-
lecido na Carta da Terra (documento oficial da Conferência) como plano
de ação a ser tomado nos níveis global, nacional e local, por organizações
das Nações Unidas, governos e grupos locais, nas diversas áreas. Esse
processo de participação traduz a tensa relação entre a espécie humana
e a natureza, na sua pretensão de buscar o equilíbrio por meio do cres-
cimento econômico duradouro, tendo como espinha dorsal o desenvol-
vimento sustentável.
Essa proposta inovadora de planejamento consensual de quatro seções,
quarenta capítulos e mais de 2,5 mil recomendações práticas foi concebida
num processo participativo de dois anos de debate e entendida como modo
de construir a sustentabilidade, nesse sentido destaca Novaes:

A Agenda 21 não é apenas um documento. Nem é um receituário


mágico, com fórmulas para resolver todos os problemas ambien-
tais e sociais. É um processo de participação em que a sociedade,
os governos, os setores econômicos e sociais sentam-se à mesa

1046
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

para diagnosticar os problemas, entender os conflitos envolvidos


e pactuar formas de resolvê-los, de modo a construir o que tem
sido chamado de sustentabilidade ampliada e progressiva 2.

A essência da Agenda 21 Global está no conceito de desenvolvimen-


to sustentável, fundamentado em cinco pilares: sustentabilidade social,
ambiental, territorial, econômica e política, acrescidas à sua análise as
dimensões: cultural e ecológica. Trata-se de um processo de transformação
de orientação do desenvolvimento tecnológico e mudança institucional,
que se harmonizam e reforçam o potencial presente e futuro, a fim de
atender às necessidades e aspirações humanas, o “duplo imperativo éti-
co de solidariedade sincrônica com a geração atual, e de solidariedade
diacrônica com as gerações futuras”3 compelidas a trabalhar em escalas
múltiplas de tempo e espaço.
Porém, o conceito usual de desenvolvimento sustentável foi dado
pela Comissão Mundial da Organização das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento (UNCED), já em 1987, no documento Our
Common Future (Nosso Futuro Comum), conhecido por Relatório Brun-
dtland, traduzido em “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades
presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir
suas próprias necessidades” 4.
A Agenda 21 Brasileira foi elaborada dentro dos conceitos da Global,
por meio de amplo processo de estudos, consultas e debates, promovidos
pela Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda
21 (CPDS), e por um colegiado de alto nível, constituído por representantes
do governo e da sociedade. Esse processo foi conduzido pelo Ministério
do Meio Ambiente.
Nesse sentido, a Agenda 21 Brasileira, embora com desprestígio entre
os municípios brasileiros, busca exercer seu importante papel de fomenta-
dora de concepção e execução de uma nova geração de políticas públicas,
a qual objetiva reduzir as desigualdades e discriminações sociais no País.
Afinal, não pode haver desenvolvimento enquanto houver iniquidades
sociais crônicas, nem se as formas de uso dos recursos ambientais no

1047
presente comprometerem os níveis de bem-estar das gerações futuras.
Nesse debate sobre cidades sustentáveis, é indispensável introduzir
as Metas do Milênio. Durante a realização da Cúpula do Milênio, reunião
promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York,
em 8 de setembro de 2000, líderes de cento e oitenta e nove países firma-
ram um pacto. Desse pacto, cujo foco principal era o compromisso de
combater a pobreza e a fome no mundo, nasceu o documento chamado
Declaração do Milênio, conhecido como Metas de Desenvolvimento do
Milênio (MDM). Ficou, assim, estabelecido como prioridade eliminar a
extrema pobreza e a fome do mundo até 2015.
Interessante destacar que os municípios brasileiros não integraram
o debate entre a Agenda 21 e os Objetivos e Metas de Desenvolvimento
do Milênio, embora sejam dois instrumentos que se articulem e se com-
plementem para a consecução do desenvolvimento sustentável, ambos
aprovados e adotados pela comunidade dos Estados-membros que com-
põem a Organização das Nações Unidas (ONU). A Declaração propôs
compromissos concretos que, se cumpridos nos prazos fixados, segundo
os indicadores quantitativos que os acompanham, deverão melhorar o
destino da humanidade neste século. Essa declaração menciona que os
governos “não economizariam esforços para libertar nossos homens,
mulheres e crianças das condições desumanas da pobreza extrema”5, e
as ações seriam monitoradas pelo Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH), medida comparativa que engloba três dimensões: riqueza, educação
e expectativa média de vida.
Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio são oito: erradicar a
pobreza extrema e a fome; atingir o ensino básico universal; promover a
igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; reduzir a mortali-
dade infantil; melhorar a saúde materna; combater o HIV/AIDS, a malária
e outras doenças; garantir a sustentabilidade ambiental; e estabelecer uma
parceria mundial para o desenvolvimento. Esses objetivos seriam atingidos
por meio da realização de ações específicas, para atingir dezoito metas,
cujo cumprimento poderia ser acompanhado pelo conjunto de quarenta e

1048
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

oito indicadores, propostos por especialistas de organismos internacionais,


como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
Embora a Agenda 21 e os Objetivos e Metas de Desenvolvimento do
Milênio mantenham estreita sintonia em suas prioridades, ao repercutir
os temas essenciais para a sustentabilidade do desenvolvimento: meio
ambiente e combate à pobreza, não são objetos de transversalidade nas
políticas de governo brasileiro, que somente alcançou parte das metas até
2010 atribuídas aos programas de transferência de renda (bolsa família)6.
A Agenda 21 e as Metas do Milênio estabeleceram princípios a serem
cumpridos, pelo Poder Público, nas três esferas de governo. Mas por
razões políticas e econômicas, em regra geral, esses compromissos não
são observados, com gravame de serem comumente ignorados. Não se
verifica nas atividades de planejamento e desenvolvimento urbano, rea-
lizadas pelo Poder Público Municipal, o debate sobre esses princípios, na
contramão de direção à cidade sustentável.
Uma das tarefas básicas concretizadas nos princípios da Agenda 21 e
das Metas do Milênio é a busca do equilíbrio com a adoção do princípio
da abordagem preventiva entre o desenvolvimento de áreas urbanas, o
meio ambiente e o sistema global de assentamentos para a obtenção de
um mundo urbanizado sustentável. As ferramentas para a obtenção de um
desenvolvimento fisicamente mais equilibrado incluem não só políticas ur-
banas e regionais específicas e medidas jurídicas, econômicas, financeiras,
culturais, entre outras, mas também métodos inovadores de planejamento
e projeto de desenvolvimento, revitalização e gestão das cidades.
Portanto, municipalizar a Agenda 21 e as Metas do Milênio é uma tarefa
que requer o engajamento coletivo da sociedade. Cabe ao gestor local e à
sua equipe técnica incentivar a participação de representantes da socie-
dade civil, do Poder Público, das universidades, garantindo, no processo,
a presença dos grupos mais vulneráveis. Não é uma tarefa fácil, mas
necessária para que haja avanço no debate sobre as questões da cidade.

1049
3. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O ESTATUTO
DAS CIDADES COMO INDUTORES DA FUNÇÃO
SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA CIDADE

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 deu ao Plano-


-Diretor o status de instrumento básico da política de desenvolvimento
urbano e transferiu ao Poder Público Municipal a responsabilidade pela
garantia do pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade
e da cidade.
O Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257, de 2001, que regulamenta o artigo
182 da Constituição Federal, embora avançado para a realidade latino-
-americana, na visão de Quinto Junior7, se comparado às experiências
europeias, está ao menos com um século de atraso, considerando-se o
uso dos instrumentos urbanísticos, o qual possibilita regular socialmente
o mercado imobiliário e estabelecer mecanismos de compensação social
por meio da política urbana.
A referida Lei rege as questões da ordenação do território e da parti-
cipação comunitária e objetiva, no seu bojo, promover a inclusão social.
Estabelece, também, as regras referentes ao uso, à ocupação do solo ur-
bano e ao controle da expansão do território urbano, e propõe a definição
da função social da cidade e da propriedade, especificada no Plano-Diretor
Participativo.
Entre as medidas indutoras para cumprimento da função social da
propriedade e da cidade, destacam-se: a possibilidade de desapropriação
do imóvel não utilizado ou subutilizado; a usucapião de imóvel urbano; a
outorga onerosa do direito de construir; as operações consorciadas, com
estabelecimento de parceria entre os setores público e privado; a trans-
ferência do direito de construir; o impacto de vizinhança; a preempção e
o direito de superfície.

1050
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

4. A JUDICIALIZAÇÃO DO
TRATAMENTO DA POLÍTICA URBANA

A crise urbana no País mostrou a necessidade da aplicação da “po-


lítica nacional orientadora e coordenadora de esforços, planos, ações e
investimentos dos vários níveis de governo e, também, dos legislativos,
do judiciário, do setor privado e da sociedade civil”8.
A estruturação dessa política nacional urbana se deu a partir das Con-
ferências das Cidades, em âmbito municipal e estadual, e da Conferência
Nacional das Cidades, em 2003. Nessas conferências, foram discutidas
as proposições que culminaram na incorporação ao documento final às
resoluções, aos princípios e às diretrizes desses encontros.
A construção democrática prosseguiu na preparação e realização
das conferências bienais que se seguiram, com encontros municipais,
estaduais e debates dos vários segmentos envolvidos com o desenvolvi-
mento urbano, como movimentos sociais, empresários, parlamentares,
universidades, centros de pesquisa, Organizações Não Governamentais
(ONGs), sindicatos e entidades profissionais.
O desenvolvimento urbano poderia ser definido como a expressão
ligada à modernização da cidade e à transformação do espaço urbano
para adaptá-lo à modernidade. Esse desenvolvimento deveria promover
a melhoria das condições materiais e subjetivas de vida (bem comum),
na perspectiva da diminuição da desigualdade social e garantia de sus-
tentabilidade ambiental, social e econômica.
Nesse contexto, ressalta-se que a democratização do País avançou no
campo da gestão urbana, especialmente pelo reconhecimento da Carta
Magna do direito à moradia e à cidade, e na incorporação dos mais pobres
como objeto de políticas urbanas. No entanto, a prática não tem concreti-
zado o debate sobre a agenda de um novo ordenamento territorial como
componente fundamental de um projeto de desenvolvimento.
A busca do estabelecimento de uma nova cultura objetiva edificar um
espaço público participativo de resistência à privatização da esfera pública

1051
e de fazer transformações por meio de pactos. A política de desenvolvi-
mento urbano tem como objeto o espaço socialmente construído, com o
recorte em torno dos temas estruturadores do espaço urbano e de maior
impacto na vida da população. Maricato discorre assim sobre o tema:

Para a equipe que coordenou os primeiros passos da Política


Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) no Ministério das
Cidades, tratava-se de construir uma nova “cultura” para ocupar
um vazio de propostas práticas abrangentes, dar espaço para a
emergência dos conflitos, constituir pactos em torno de conceitos,
programas e linhas de ações. Buscou-se edificar um espaço públi-
co participativo que pudesse resistir à cultura de privatização da
esfera pública, bem como ao avanço das imposições antissociais
da globalização. A abertura de espaços democráticos nos quais
os conflitos possam se expressar não é algo banal na história do
país. Trata-se de uma mudança que pode desencadear novas e
sucessivas transformações 9.

A cidade não é neutra e deve ser vista como força ativa, ferramenta
eficaz para gerar empregos e renda e produzir desenvolvimento. Esse fato
mostra a necessidade de superar os desafios de uma política nacional
urbana, ainda com pontos críticos que merecem reanálise, objetivando o
avanço das ações em escala local, como a promoção de um planejamento
territorial integrado, inter-relacionando todas as escalas; o estabeleci-
mento de formas institucionais de participação e controle social, essen-
cialmente a atribuição de caráter deliberativo aos Conselhos Municipais;
a elaboração de um sistema unificado de informações que articule as
três esferas de governo, para o monitoramento e avaliação da política;
estabelecimento de fontes estáveis e permanentes de recursos financeiros
nos três níveis de governo.
Partindo dessa linha de pensamento, a Política Nacional de Desenvolvi-
mento Urbano (PNDU), no campo habitacional, considerou a necessidade
da criação da Política Nacional de Habitação (PNH), como novo modelo
de organização institucional e com os seguintes componentes: a integra-
ção urbana de assentamentos precários, a urbanização, a regularização
fundiária sustentável, a provisão da habitação e a integração da política
de habitação à política de desenvolvimento urbano.

1052
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A Política Nacional de Habitação, aprovada em 2004 pelo Conselho


das Cidades, se constituiu como elemento básico da política fundiária de
implementação dos Planos-Diretores Municipais para garantir a função
social da propriedade, a regularização fundiária de interesse social e a
revisão da Legislação Urbanística e Edilícia, pelo seu papel estratégico de
possibilitar o acesso à terra urbanizada.
Assim, foi elaborada sob esses princípios e as diretrizes, tendo como
meta principal garantir à população, especialmente à de baixa renda, o
acesso à habitação digna. Para a implantação dessa política, considera-
-se fundamental, a fim de atingir seus objetivos, a sua integração com a
Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU).
A sua construção se deu a partir de um arcabouço conceitual quali-
tativo com a finalidade de fundamentar seus argumentos, de estruturar
ações concretas no campo da habitação e, como consequência, promover
a integração entre os agentes de atuação na sua implementação, como
se observa nesse excerto:

Coerente com a Constituição Federal, que considera a habitação


um direito do cidadão, com o Estatuto da Cidade, que estabelece
a função social da propriedade e com as diretrizes do atual go-
verno, que preconiza a inclusão social, a gestão participativa e
democrática, a Política Nacional de Habitação visa promover as
condições de acesso à moradia digna a todos os segmentos da
população, especialmente o de baixa renda, contribuindo, assim,
para a inclusão social 10 .

Nessa análise de políticas e planos, conclui-se que as cidades brasi-


leiras vivem também um momento de crise da mobilidade urbana, que
exige mudança de paradigma, talvez de forma mais radical do que outras
políticas setoriais. Trata-se de reverter o atual modelo de mobilidade,
integrando-a aos instrumentos de gestão urbanística, subordinando-se
aos princípios da sustentabilidade ambiental e voltando-se decisivamente
para a inclusão social.
A Mobilidade Urbana é um dos mais difíceis desafios que as cidades
enfrentam no mundo e, consequentemente, serão vistos futuros investi-

1053
mentos maciços voltados para o setor. Atualmente, segundo o Relatório
Future of urban mobility11, 64% do total de viagens são feitas dentro de
áreas urbanas, e essas viagens deverão triplicar até 2050. Portanto, a
capacidade de inovar é fundamental e deve ocorrer de forma rápida, con-
veniente e com pouco impacto ambiental, embora a maioria dos sistemas
de mobilidade urbana no Brasil se mostre hostil à inovação, por razões
econômicas e políticas.
A Mobilidade Urbana Sustentável pode ser definida como o resultado de
um conjunto de políticas de transporte e circulação que visa proporcionar
o acesso amplo e democrático ao espaço urbano, por meio da priorização
dos modos não motorizados e coletivos de transportes, de forma efetiva,
que não gerem segregações espaciais, socialmente inclusivos e ecologi-
camente sustentáveis.
As políticas de uso e ocupação do solo, com foco na mobilidade ur-
bana, deveriam induzir à formação de uma cidade mais compacta e sem
vazios urbanos, onde a dependência dos deslocamentos motorizados fosse
minimizada. Mas os dirigentes públicos, reiteradamente, por pressões do
setor econômico, expandem as cidades ao entorno, gerando quantidade
expressiva e inaceitável de terrenos urbanos ociosos em bairros consoli-
dados, dotados de infraestrutura e de acessibilidade privilegiada, que são
estocados para fins de especulação e valorização imobiliária, beneficiando
exclusivamente os seus proprietários.
Os Planos-Diretores, tradicionalmente, estabelecem diretrizes para a
expansão e adequação do sistema viário e para o sistema de transporte
público. Incorporar a mobilidade urbana ao Plano-Diretor é priorizar, no
conjunto de políticas de transporte e circulação, a mobilidade das pessoas,
e não dos veículos; o acesso amplo e democrático ao espaço urbano; e os
meios não motorizados de transporte.
Nesse viés de debate proposto pelo trabalho voltado para a ocupação
racional do espaço urbano, enfoca-se a insistente ocupação urbana das
áreas de risco, destacando que estudos constatam que, no último século,
o grave problema dos desastres naturais ocorridos nas cidades produzi-

1054
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ram danos muito superiores aos provocados pelas guerras. Alguns fatores
gerados por crises econômicas refletem negativamente sobre a segurança
das comunidades contra desastres, como deterioração de condições de
vida, intensificação das desigualdades e desequilíbrios que provocam o
desenvolvimento de bolsões e cinturões de extrema pobreza, no entorno
das cidades de médio e grande porte.
Todavia, o Estado tem a obrigação de salvaguardar a população por
causa do direito natural à vida e à incolumidade, formalmente reconhecido
pela Constituição da República Federativa do Brasil. Assim, compete à
Defesa Civil a garantia desse direito, em circunstâncias de desastre, além
do objetivo constante de reduzir os desastres, em número e intensidade
(BRASIL, 2007). Assim a Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012, que insti-
tuiu a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC), originada da
Medida Provisória (MP) nº 547, de 11 de outubro de 2011, vem tentando
cumprir esse papel.
A Política Nacional de Proteção e Defesa Civil tem seu enfoque na
redução de desastres por meio de ações de prevenção, mitigação, prepa-
ração, resposta e recuperação voltadas à proteção e defesa civil, e aponta
mecanismos que estabelecem a articulação entre União, Estados, Distrito
Federal e Municípios e integram a sociedade nas discussões. Entre seus
objetivos, destacam-se a incorporação da redução do risco de desastre e
as ações de proteção e defesa civil – entre os elementos da gestão terri-
torial (ordenamento territorial, desenvolvimento urbano, meio ambiente,
infraestrutura) – e do planejamento das políticas setoriais (saúde, educação,
recursos hídricos, geologia, mudanças climáticas, ciência e tecnologia) –,
tendo em vista a promoção do desenvolvimento sustentável.
A velocidade do crescimento das cidades resultou na falta da acomo-
dação espacial da população. As soluções para a questão espacial com
o uso de processos arcaicos, como os planejamentos de gabinete e deci-
sões à custa de interesses da classe dominante, mostraram-se ineficazes.
Percebe-se, nesse contexto, haver indicação da construção de um novo
paradigma, com base no planejamento urbano que objetive o desenvol-
vimento sustentável das cidades.

1055
Nesse contexto, é importante destacar que, para Silva12, o Plano-Diretor
emergiu da dialética ocupação do espaço e indissociabilidade entre o ur-
bano e o rural. É conhecido como plano estratégico, por traçar objetivos
e fixar prazos, estabelecer atividades, e definir sua execução; e, como
diretor, por fixar as diretrizes do desenvolvimento urbano do Município.
Mesmo não tendo sido utilizada a melhor técnica para a elaboração dos
Planos-Diretores no País, caberia à sociedade exercer a cidadania e fazer
valer os preceitos constitucionais. Afirma-se que “Nenhum instrumento
é adequado em si, mas depende de sua finalidade e operação. Nenhuma
virtualidade técnica substitui o controle social sobre essa prática”13.
Pode-se afirmar que os planos urbanos convergem para o ordenamento
territorial e o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade
urbana e da cidade. Para isso, entre as diretrizes usuais, destacam-se a
“regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população
de baixa renda, mediante normas especiais de urbanização, uso e ocu-
pação do solo e edificação, considerada a situação socioeconômica da
população e as normas ambientais”14 como principais metas das admi-
nistrações municipais.
Nota-se que os assentamentos informais são uma realidade em todas
as cidades brasileiras, e a necessidade quantitativa atual é de 7,2 milhões
de moradias, concentradas nas áreas urbanas e nas faixas de mais baixa
renda da população. Esse dado é baseado em um estudo do Ministério das
Cidades (2004), definido a partir do Censo de 2000, do IBGE, embora essa
quantia possa ser muito superior, caso se considerem os assentamentos
irregulares com infraestruturas já instaladas, não computadas neste estudo.
A irregularidade fundiária é questão estrutural das cidades brasileiras,
caracterizada por um desenvolvimento urbano desordenado. Fala-se, com
razão, na dimensão acentuada do “problema” da irregularidade no Brasil,
chegando-se a percentuais que variam em torno de 40 a 70% do parque
imobiliário existente.
A regularização fundiária pode contribuir para a inserção plena do
cidadão na cidade e paralelamente viabilizar a sustentabilidade da ci-

1056
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dade, porque reduzirão os passivos urbanísticos e ambientais, por meio


de projetos que resultem na proteção e recuperação ambiental, como
arborização, criação de parques, unidades de conservação e educação
ambiental. Ao mesmo tempo, a inserção social dos habitantes deve ser
articulada às políticas públicas, por meio da geração de emprego e renda,
da participação social nos processos de gestão dessas áreas e de ações
que assegurem a permanência dessa população, prevenindo a formação
de novos assentamentos informais na cidade, inclusive.
Nesse sentido, a regularização fundiária sustentável deve partir de uma
visão integrada, na qual a regularização jurídica, dominial, seja combinada
com a regularização urbanística e ambiental.
O gestor público latino-americano, em geral, tem baixa capacidade
de governo e se respalda no praticismo rudimentar e superficial, não usa
a ciência e a técnica e, por esse motivo, comete inúmeras falhas, dentre
elas a centralização de poder político e administrativo (não dispõe de
um método de governo); o descompasso no manejo político em relação
à macroeconomia (muito poder político restringe recursos econômicos);
e o descuido com os problemas de maior relevância para a população,
como transporte coletivo, limpeza pública, atendimento à saúde, e outros.
Entende-se que o planejamento normativo usual mostra ineficiência
ao combinar elementos como a centralização do Poder Público e o es-
tabelecimento de uma relação entre o sujeito que planeja e um sistema
planejado, destituído da capacidade de interferência. Os planos devem ser
concebidos a partir de um diagnóstico e serem frutos de uma análise do
comportamento social, mas são concebidos, fundamentalmente, a partir
da análise econômica. Observa-se ainda a predominância da visão técnica
sobre a visão estratégica e a possibilidade de redizer o futuro com certa
exatidão ou calcular um risco probabilístico previamente. Assim, nessa
linha de pensamento, o plano se configura de maneira determinística, sem
estratégias para lidar com as incertezas e surpresas.
Para Matus15, um plano construído, mesmo havendo certo controle,
necessita da participação de vários atores, com objetivos cooperativos e

1057
conflitivos, condição que possibilita realizar esforço no sentido de mitigar
as insuficiências do modelo normativo.
Nesse viés, para a construção de um plano, é necessário reconhecer a
existência de mais do que uma explicação (por ser cooperativo e conflitivo),
o que implica diversas apreciações da realidade, considerada a complexi-
dade do sistema social. Desta feita, a economia deixa de ser preponderante
na explicação da realidade, fator que possibilita a viabilidade política do
plano. Portanto, compõe a integração do técnico e do político no âmbito
do planejamento, que se configura como aposta contra as incertezas.
Dessa maneira, o mesmo autor16 entende que o Plano Normativo ignora
a sua viabilidade de execução quando não estabelece a consulta política
entre a equipe técnica de planejamento e a direção política do governo.
Então, não cumpre o papel de interação entre o técnico e o político, fator
que reforça a sua impraticabilidade. Por isso, é importante que o plano
seja o resultado de mediação entre o conhecimento e a ação, que são
passos de acumulação de conhecimento para agir. Desse ponto de vista, o
planejamento só se completa na ação e, nesse momento em que o plano é
testado, é necessário ter mecanismos que permitam adaptá-lo com agilida-
de para fazer frente às surpresas que surgem durante a sua implantação.
Para conhecer a realidade, é necessário compreendê-la por meio da
identificação dos problemas descritos pelos atores, do exame de viabilidade
política do Plano e do processo de construção dessa viabilidade para as
operações não viáveis definidas no momento anterior – uma estratégia
para lidar com pessoas e as circunstâncias que rodeiam o jogo social –,
e identificar os recursos para a viabilização do Plano. Em suma, deve-se
identificar os interesses e valores que os atores sociais relevantes con-
ferem às operações do Plano e as possíveis alianças e oposições, com a
finalidade de traçar a estratégia a ser adotada para viabilizá-lo.
Essa nova concepção de planejamento exige mudança radical nas
concepções tradicionais, que vai além da análise econômica: produz todo
contexto social e político; adota tecnologias compatíveis com a velocidade
da mudança das situações reais; enfrenta o problema da incerteza dentro

1058
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da qual se desenvolve o planejamento; e monta um sistema de análise e


acompanhamento do Plano que apoia a tomada de decisões na conjuntura
da sua implantação.
O modelo participativo de Plano baseia-se em práticas voltadas para
resultados, participação e envolvimento, a fim de contribuir com a pos-
sibilidade de construir uma melhoria global. Por exemplo, a democracia
é a filosofia política pela qual os brasileiros e diversos outros povos do
mundo decidiram governar.
A escolha das pessoas em contribuir para a construção de uma socie-
dade justa depende da vontade delas e mostra que a democracia é uma
realidade. A mobilização comunitária na defesa do espaço constituiu a
forma de ação que mais rapidamente vem se desenvolvendo nos últimos
tempos. E talvez seja capaz de estabelecer relação mais direta entre as
preocupações imediatas das pessoas e questões mais amplas.
Esse processo oportuniza aos cidadãos a participação na vida pública
da cidade, pois, ao se verem envolvidos com os desafios básicos do de-
senvolvimento, como moradia, desemprego, lixo, água e poluição, têm a
tendência de mobilizar recursos para a solução desses problemas e criar
uma cultura mais participativa, transparente e responsável.
O desenvolvimento local é o resultado da mediação de interesses en-
tre os atores sociais, políticos e econômicos, e as suas ações devem ser
executadas por atores locais17. O papel do território é fundamental para
o desenvolvimento local à medida que gera identidade e estabelece as
relações de conflitos a serem mediadas18.
Esse novo olhar sobre desenvolvimento local possibilita o debate sobre
estratégias contrapostas, marco que encadeia a transferência de respon-
sabilidade, retira a exclusividade da administração pública e a distribui
entre a sociedade civil, instituições, organizações públicas e privadas e
grupos de pressão19.
Contudo, as mudanças são conquistadas com dificuldade, conside-
rando-se que as relações de poder estejam consolidadas, as pessoas cor-
rompidas e os agentes não reorientem as suas ações, a menos que não

1059
tenham perdas. A competição pelos recursos do território cria conflitos
entre o mercado e a sociedade, tanto pelo valor de troca como pelo de uso20.
As cidades pequenas e médias, regra geral, têm corpo técnico e político
desqualificado, o qual reduz consideravelmente as práticas qualitativas,
além de grande parte de o território nacional ainda viver de planejamento
de gabinete, fundamentado em posturas coronelistas, impondo modelos
inadequados às conjunturas locais, antítese da sustentabilidade urbana21.
A disputa pelo território ocorre entre os atores e os agentes interessados
no espaço da cidade. De um lado, está o mercado imobiliário, impondo
o chamado crescimento econômico, por intermédio de lobbies; de outro,
a sociedade. Constata-se, porém, que a força hegemônica capitalista,
com a influência do poder político, representada no caso pelo mercado
imobiliário, desvia-se, regra geral, do locus legítimo de embate: as audi-
ências públicas, os debates nos conselhos representativos e os debates
com técnicos especializados em questões urbanas.
Ao invés de o confronto pela disputa do espaço urbano acontecer
nesses locais próprios para o embate, passam pelos bastidores políticos.
Nesse contexto, são lançadas mãos de fortes apelos simbólicos para
desconstruir os posicionamentos contrários à especulação imobiliária
nas cidades brasileiras, fundados no discurso progressista. Portanto, a
desconstrução dessa lógica empregada nesse debate não depende somen-
te de argumentação técnica, mas de algo que dê uma força simbólica e
possibilite solidificar a engenharia reversa. As Câmaras de Vereadores têm
sido o local onde se tenta vincular o crescimento do mercado imobiliário
ao progresso da cidade. A simbologia do progresso pretende justificar a
necessidade do crescimento urbano como maneira de organizar a cidade
e como instrumento para regular o preço da terra, ao revés do debate
técnico sobre a temática.
Tem-se ainda a ampla defesa da propriedade absoluta, havendo, nos
debates acerca de temas fundiários, ao se tratar de vazios urbanos nas
cidades, frases como: estas terras “têm dono”, procurando dar o tom
imponderável da licitude, mesmo que os supostos “donos da terra” não

1060
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

estejam cumprindo a função social. A cidade não pode ficar à mercê de


pessoas que utilizam área como reserva de valor, conforme discorre Carlos:

Fala-se na construção de uma cidade democrática e livre. Para


que isso ocorra é necessária uma pré-condição: a existência de
homens livres. E a cidade não dever ser entendida como valor
de troca e suas áreas mantidas como reserva de valor. Impõe-
-se pensar a cidade não enquanto materialização das condições
gerais do processo de reprodução do capital, mas da vida humana
em sua plenitude. É fundamental superar a contradição da lógica
do atual sistema entre o valor de uso e de troca22.

Torna-se relevante analisar esse contexto sob a ótica da apropriação


política das determinações dos Projetos Urbanísticos das cidades, referente
tanto ao desenho urbano, quanto ao perímetro urbano e às diretrizes de
ocupação, como da consequente produção de um espaço urbano desi-
gual, segregado e de alta especulação imobiliária. Essa análise permite
compreender de que forma a cultura política patrimonialista e clientelista
influenciou e influencia o planejamento urbano, a gestão urbana, a ocupa-
ção das cidades brasileiras e a elaboração de sua Legislação Urbanística.
Tudo leva a crer que só quando ocorrerem mudanças profundas no
sistema político brasileiro, de forma a coibir o individualismo na ação par-
lamentar, e o fisiologismo tradicionalmente presente na relação entre os
Poderes Executivo e Legislativo, com vistas à introdução de mecanismos
que aumentem a responsabilidade dos parlamentares à frente do eleitorado
e do governo, será possível esperar maior valorização do Parlamento, “no
sentido de que possa realizar plenamente as suas três funções básicas:
representar a sociedade, legislar com autonomia e controlar o Executivo”23.
Defende-se na estrutura apresentada pelo estudo uma cidade compacta
e com densidade adequada, a qual possibilite mais eficiência na oferta de
infraestrutura, diversidade da mobilidade urbana, acessibilidade a todos,
controle social, humanização e vitalidade urbana, acesso aos consumi-
dores e eficiência do transporte urbano coletivo.
Constata-se por vários estudos que o crescimento desordenado das
cidades traz a expectativa da captação de um fluxo monetário futuro, in-

1061
duzido pela modificação da ordem espacial que estabelece ao empresário
urbano a sua capacidade de bancar os vazios urbanos, considerando-se
as variáveis do custo de produção habitacional e da ineficiência dos me-
canismos de tributação, [...] “porque os interesses econômicos das escalas
mais abrangentes colidem com as necessidades da escala da cidade”24.
Portanto, a cidade compacta, com a gestão adequada de seu território,
garantiria sua sustentabilidade. Ao contrário, seria privilegiada a corrup-
ção urbanística essencialmente por meio de alterações legislativas, com
objetivos de favorecer interesses particulares do mercado imobiliário.
Condição que, além de acarretar prejuízos às cidades, refletiria numa
maior incidência de afastamento das classes menos favorecidas das re-
giões centrais, obrigando-as a viver em lugares cada vez mais precários.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As cidades brasileiras não poderiam se amoldar exclusivamente aos


interesses econômicos e políticos e, por muitas vezes, colocar em xeque
os Poderes constituídos. Nesse viés, amplia-se o debate sobre o papel dos
Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e do Ministério Público, haja
vista que os debates acerca da produção do espaço urbano vêm girando
especificamente em torno da economia de mercado, que é subsidiado e
reforçado pela propriedade absoluta, universalizada na frase “essa terra
tem dono”.
Portanto, manter esse discurso é desprezar a nova ordem urbanís-
tica e desconstruir a história dos movimentos pela Reforma Urbana,
que conquistou, por emenda popular, um capítulo da política urbana na
Constituição de 1988, arts. 182 e 183, regulamentado posteriormente pelo
Estatuto da Cidade, que tem a finalidade de tornar as cidades mais justas,
democráticas e sustentáveis.
O processo de construção e futuras alterações dos Planos-Diretores
Municipais deverão ter a garantia da participação popular, tendo como
nulidade esse impedimento ou mascaramento muitas vezes utilizado, e o

1062
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Judiciário tem se manifestado nesse sentido em âmbito Nacional.


Dessa maneira, o respeito ao direito urbanístico, que entre os princípios
básicos traz a democracia participativa, é essencial ao se discutir alteração
da Legislação da Cidade. Portanto, construir e alterar o Plano-Diretor, sem
participação popular e sem estudos urbanísticos e ambientais que o fun-
damentem, é inconcebível, pois os preceitos essenciais para a qualidade
de vida estariam sendo violados.
O planejamento e as decisões de gabinete, sob a orientação de um
técnico e de setores privados, perderam definitivamente espaço. Os des-
tinos das cidades são objeto de discussão de seus moradores. É impor-
tante salientar que a Lei determina nesse sentido. Há, pois, institutos que
protegem a cidade, entre eles o Estatuto da Cidade.
Importante salientar o comportamento do Legislativo Municipal Brasi-
leiro, pois os cidadãos assistem ao esvaziamento das funções das Câmaras
Municipais no País, quais sejam, as de fiscalizar a Prefeitura, criar e modi-
ficar Leis e verificar como o dinheiro público está sendo aplicado, em face
de as Prefeituras cooptarem os vereadores por meio da distribuição de
cargos na administração local e pela falta de cultura política do eleitorado,
que não acompanha o trabalho dos vereadores depois de empossados.
Logo, esse ínfimo índice de cobrança possibilita ao Executivo ampliar seus
tentáculos sobre o Legislativo. Andrade explica o contexto:

Substantivamente, a estratégia básica é o governismo, isto é,


apoiar o governo em troca de transferência de recursos sob o con-
trole do executivo para suas bases locais ou setoriais. Há fortes
incentivos institucionais pra isso, em particular a concentração
de poderes de execução orçamentária e de promoção política
nas mãos do governo, o baixo custo eleitoral de infidelidade
partidária e o baixo grau de controle por parte do eleitorado 25.

As Câmaras Municipais, em geral, são ocupadas por atividades como


mudança de nome de rua, requerimentos das mais diversas ordens ou
escolha de pessoas para prestar homenagem em sessões especiais, haja
vista o turbilhão de títulos de cidadãos e medalhas de mérito distribuídas.
Verifica-se, porém, que o problema de origem é o sistema eleitoral, que

1063
apresenta uma disfunção grave no processo de votação proporcional, nas
coligações partidárias. Por desconhecimento, o eleitor não sabe para onde
vai o seu voto, fator que gera natural desinteresse, pelo próprio baixo grau
de politização. Os eleitores votam por obrigação, o que reforça a crise de
confiança no Legislativo.
A mobilização popular e até uma possível intervenção do Ministério
Público têm efeito sobre as decisões que ferem o interesse público nas
Câmaras Municipais.
A judicialização do debate acerca das cidades, com as transformações
de políticas e planos urbanos, tem deslocado as discussões da disputa do
espaço urbano, que deveria estar no campo da mediação, para o Judici-
ário. Verifica-se então que se por um lado o deslocamento é prejudicial
por não pautar da mediação, por outro garante ao cidadão seus direitos
constitucionais, embora sem empoderamento o resultado se tornasse
comprometido.
Portanto, optar pela mediação levando os debates sobre as cidades às
conferências, às audiências públicas, enfim à efetiva participação popular,
com o uso dos instrumentos discutidos neste estudo, viabilizaria, a médio
e em longo prazo, uma melhor qualidade de vida à população, com eco-
nomia de recursos. Nesse contexto, a judicialização, além de representar
um retrocesso, no aspecto participativo, pela falta do empoderamento,
isola as decisões, não interage e na maioria das vezes, mesmo atendendo
aos interesses da população, fica distante do seu cotidiano.

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NOTAS

1 Doutor em Geografia. Graduado em Direito. Universidade Federal do Tocantins. Professor do Curso de Di-
reito (Direito Urbanístico) e Docente Permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional.
E-mail: jbazolli@uft.edu.br
2 NOVAES, W. Agenda 21: um novo modelo de civilização. In: TRIGUEIRO, C. Meio ambiente no século
21. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. p. 49.
3 SACHS, I. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2002. p. 15.
4 NOSSO FUTURO COMUM. Comissão Mundial da Organização das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento (UNCED). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. 430 p. Disponível
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5 Nações Unidas. Declaração da Cúpula do Milênio das Nações Unidas. Centro de Informações das Nações
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12 SILVA, J. A. D. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1997.
13 MARICATO, E. Brasil, Cidades: alternativas para a crise urbana. 3ª ed. Petropólis: Vozes, 2008. p. 96.
14 HARADA, K. Direito Urbanístico: Estatuto da Cidade. Plano Diretor Estratégico. São Paulo: NDJ,
2004. p. 41.
15 MATUS, C. Adeus, senhor presidente: governantes governados. Tradução de Luís Felipe Rodrigues
del Riego. 3ª ed. São Paulo: Fundap, 1996.
16 Id., Ibid.
17 GUMUCHIAN , H. E.; GRASSET, R.; LAJARGE, Y. E. R. Les acteurs, ces oubliés du territoire. Paris:
Anthropos, 2003.
18 AROCENA, J. El desarrollo local: un desafio contemporáneo. Montevideo: Taurus, 2001.
19 AMIN, S. Les luttes pour la terre et les ressources naturalles et la construction d’alternatives.
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20 SANTOS, M. Território, globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1997.
21 ROMERO, M. A. B. Urbanismo sustentável para a reabilitação de áreas degradadas: construindo um
sistema de indicadores de sustentabilidade urbana. Brasília: UNB, 2008. p. 528. Disponível em: <http://
vsites.unb.br/fau/pesquisa/sustentabilidade/linhas_de_pesquisa/ Pesquisa/Pesquisa/universal 2006REL%20
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22 CARLOS, A. F. A. A cidade. 8ª ed. São Paulo: Contexto, 2005. (Repensando a Geografia). p. 89.
23 PRALON, E. M.; FERREIRA, G. N. Centralidade da Câmara Municipal de São Paulo no processo decisório.
In: ANDRADE, R. D. C. (Org.). Processo de governo no Município e no Estado. São Paulo: EDUSP, 1998.
pp. 73-86. p. 86.
24 SPOSITO, M. E. B. A produção do espaço urbano: escalas, diferenças e desigualdades socioespaciais. In:
CARLOS, A. F. A. et al. A produção do espaço urbano: agentes e processos, escalas e desafios. São
Paulo: Contexto, 2011. p. 139.
25 ANDRADE, R. D. C. Processos decisórios na Câmara dos Vereadores e na Assembleia Legislativa de São
Paulo. In: ANDRADE, R. D. C. A. (Org.). Processo de governo no município e no Estado: uma análise a
partir de São Paulo. São Paulo: EDUSP, 1998. pp. 15-40. p. 18.

1067
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Novas perspectivas para o


parcelamento, edificação e utilização
compulsórios (PEUC): o caso de São
Bernardo do Campo (SP)

Claudia Virginia Cabral de Souza;


Fernando Guilherme Bruno Filho;
Mauricio de Castro Gazola;
Wagner Membribes Bossi1

INTRODUÇÃO

Em certa medida o instrumento do parcelamento edificação e utili-


zação compulsórios (PEUC) se apresenta, para pesquisadores, gestores e
militantes da reforma urbana, quase que como uma esfinge.
Tal comparação se justifica, posto que sempre apontado como apto a
cumprir (ou colaborar decisivamente para) uma providência essencial à
correção dos desequilíbrios no processo de urbanização brasileiro: a ex-
pansão desmesurada das cidades em direção às franjas, deixando atrás de
si um grande volume de terrenos e imóveis inaproveitados e subutilizados.
Tornado factível após uma longa trajetória, hoje, porém, os mesmos ato-
res que contribuíram para erigi-lo em nossa legislação se quedam frente
a ele, tentando entender seu alcance e suas verdadeiras possibilidades
nas cidades do Brasil contemporâneo. Assim, raras são as experiências
concretas de implementação, ainda que referências (na legislação ou nas
reflexões políticas e científicas) permaneçam.
A experiência narrada a seguir, ainda em curso quando da elaboração
deste trabalho, representa a tentativa de concretização do PEUC no contex-
to do Município de São Bernardo do Campo (SP) e, em certa medida, padece

1069
da falta (ou da raridade) de paradigmas e antecedentes para a modulação
de seus marcos – legais ou regulamentares e, também, administrativos.
Assim, os percalços são inevitáveis, e várias questões permanecem em
aberto, mas já se vislumbra a possibilidade efetiva de utilização do PEUC
no combate à resiliência dos “vazios urbanos” e, portanto, na exigibilida-
de de usos que atendam à função social da propriedade imóvel urbana,
sempre considerando as estratégias e objetivos próprios ao planejamento
urbano de cada município, com suas peculiaridades, obrigatoriamente
estampados nos respectivos planos diretores.
A exposição principia com uma abordagem jurídica e urbanística acerca
da trajetória do PEUC no Brasil, anotando certas dificuldades e questões
que se colocaram aprioristicamente, e que serviram como balizas para as
alternativas adotadas na regulamentação e na gestão do instrumento. Em
seguida, trataremos de caracterizar o município e sua realidade urbana, as
opções acolhidas pelo Plano Diretor e a pertinência do PEUC neste contex-
to. Prosseguiremos descrevendo o instrumental (procedimentos, bancos de
dados e de informações, etc.) manejados pela administração, encerrando
com um resumo dos produtos até o momento e as perspectivas futuras.

2. PEUC, REFORMA URBANA E


FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Conforme já tangenciamos acima, reforma urbana e função social da


propriedade imóvel urbana (FSPIU) são conceitos indissociáveis, e quando
a primeira se coloca no Brasil, no início dos anos 60, já o faz com essa
associação, ainda que com uma grande ênfase na questão da oferta de
moradia adequada. Vinte anos depois, quando se apresenta a primeira
proposta de efetiva de regulamentação da função social (o Projeto de Lei
775, apresentado ao Congresso pelo poder executivo de então), o PEUC
já estava inserido no processo, e com uma configuração praticamente
idêntica àquela que acabou se cristalizando no texto do artigo 182, §4º,
da Constituição Federal.2 Esse “privilégio” dado ao PEUC como único in-

1070
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

strumento alçado à condição de regra constitucional, em detrimento de


vários outros (exceção feita aos planos diretores), tem motivos histórico-
políticos e jurídicos, estes como sucedâneos daqueles, para os quais é
preciso atenção, ainda hoje, após a edição do Estatuto da Cidade e dos
planos diretores municipais.
O primeiro é o fato de que a não utilização (em sentido amplo, englo-
bando imóveis vazios ou edificados) é a mais grave das violações à FSPIU.
Suas consequências são exponenciais, com redução da oferta, e, portanto,
do acesso da terra urbanizada a quem dela demanda, especialmente das
classes com menor poder aquisitivo. Assim, a periferização acaba sendo
a alternativa, com todas as consequências deletérias daí decorrentes.
O segundo é que, no contexto da propriedade individual constitucio-
nalmente assegurada e historicamente privilegiada, o PEUC se apresenta
como a mais incisiva forma de direcionamento do uso do solo ao inte-
resse coletivo, talvez mais até do que em relação à propriedade agrária.
Portanto, numa perspectiva de hierarquia do ordenamento jurídico, tal
relativização do direito de propriedade é mais enfático quando posto no
mesmo patamar; em outras palavras, na própria Constituição Federal.
A par disso, porém ainda na perspectiva da constitucionalização do
instrumento, duas advertências são também necessárias.
Em primeiro lugar, nos parece equivocado entender que cumprir
a FSPIU se resuma a edificar ou utilizar a propriedade, posto que, por
exemplo, a determinação da modalidade do uso (como ocorre nas ZEIS)
que vá além das meras questões de comodidade entre imóveis vizinhos
também cumpre esse papel.
Em segundo lugar, como já apontamos em outra reflexão3, não obs-
tante o texto constitucional “faculte” a adoção do PEUC, se presentes as
condições objetivas que justifiquem sua adoção – “in casu”, vazios urbanos
com consequências negativas – a dicção correta é de uma obrigação de
adoção, em respeito à consagrada fórmula do “poder-dever”. Tratando-
-se, então, de competências constitucionalmente estabelecidas, é dever
dos municípios desenvolver, via planos diretores, o combate aos vazios
urbanos, adotando-se o citado instrumento (PEUC) ou outros.

1071
É na tensão entre esses elementos que o Estatuto da Cidade (Lei
10.257/2001) irá disciplinar o PEUC e seus sucedâneos (IPTU progressivo
no tempo e desapropriação com pagamento em títulos), nos artigos 5º
a 8º, 42 “I” e 46 (consórcio imobiliário), com destaque para as regras de
procedimento da notificação, mas também outros tantos dispositivos dos
artigos citados e que avançam na aplicabilidade do instrumento por sobre
a proteção exacerbada da propriedade privada, dominante até então no
arcabouço jurídico brasileiro. Antes disso, porém (art. 2º, VI, “e”), o Estatuto
coloca como uma das diretrizes gerais da política urbana a “ordenação
e controle do uso do solo, de forma a evitar: (...) a retenção especulativa
de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização”.
Esse cenário poderia apontar para a adoção ampla do PEUC pelos
municípios, ao institucionalizarem a política urbana local. Entretanto,
como anotam Oliveira e Biasotto (2011, 79-84), 87% dos planos diretores
(chegando a 100% em estados como Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro,
e, no geral, mais do que, por exemplo, a outorga onerosa ou as operações
urbanas consorciadas) o fizeram, mas de maneira acrítica e irrefletida, sem
relação com as estratégias do desenvolvimento urbano ou apenas trans-
crevendo o texto do Estatuto. Pior que isso, sem avançar na aplicabilidade
do instrumento (por exemplo, determinando as porções do território sobre
o qual incidiria) e, quando o fazem, em muitos casos isso se dá de forma
edulcorada ou restritiva.
Assim, o PEUC encontra-se numa espécie de círculo vicioso, onde a
raridade das experiências concretas faz aumentar a inapetência dos go-
vernos e mesmo da sociedade civil em sua adoção, com poucas tentativas
de rompimento. Entretanto, forçoso é reconhecer que a implementação
do PEUC em qualquer realidade urbana implica, sim, em esforço razoável,
de levantamentos e análises complexas, em face de certos condicionantes
ou limites, alguns dos quais anotaremos abaixo.

2.1. Alternativas e condicionamentos à aplicação do PEUC

Como se depreende, há um leque amplo de possibilidades para a con-


figuração do PEUC no plano diretor municipal. As opções devem atender

1072
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

a várias necessidades, como (i) articular corretamente o instrumento com


as estratégias e finalidades da política urbana, (ii) dar segurança jurídica,
para o poder público e para os proprietários, quanto às obrigações e pro-
cedimentos, ou (iii) evitar a “burla” à exigibilidade de uso, parcelamento
ou edificação compulsórios. Ainda que se afigure impossível separar os
vazios urbanos que estão nessa condição por especulação imobiliária
daqueles assim colocados por outras razões (integrantes de massas fali-
das, arrolados em inventários que se arrastam ao longo dos anos, etc.), o
objetivo final deve ser o direcionamento para o cumprimento da FSPIU, e
não a sanção pelo tempo passado antes da notificação.
Com esse espírito, além daquilo que já exigido pelo Estatuto (p. ex., a
estipulação o coeficiente mínimo de aproveitamento, a definição das regi-
ões em função da infraestrutura, etc.) destacamos como fundamental, no
momento da elaboração do PD, da lei específica ou de seu regulamento4,em
cada caso, estabelecer (i) a metragem mínima dos imóveis, que pode va-
riar em função das características da ocupação do solo local- tendências
à horizontalização ou verticalização, por exemplo; (ii) a caracterização
de imóvel edificado porém não utilizado5; (iii) as questões ambientais
(vegetação, contaminação, etc.) que afastariam, eventualmente e em qual
medida, a obrigação de edificar ou parcelar; (iv) os usos econômicos que
não demandam edificação, como dutos, redes, clubes esportivos, etc., e
o percentual admissível desses usos em cada terreno; (v) os prazos-apre-
sentação de projeto, aprovação, início e conclusão de obras, lembrando
que o de aprovação não tem parâmetros mínimos dados pelo Estatuto;
(vi) a escala de notificações, dividindo os imóveis em grupos (combinando
por exemplo metragem com localização), de forma a notificar primeiro
aqueles proprietários dos lotes ou glebas que mais urgentemente preci-
sam se adequar à função social, ainda em face das estratégias da política
urbana (áreas centrais ou com maior infraestrutura ociosa, com demanda
por ocupação, etc.; (vii) as hipóteses aceitáveis de consórcio imobiliário.
Num segundo momento, trata-se de ajustar procedimentos que confi-
ram também certeza, mas agora ainda sustentabilidade à sistemática de

1073
notificação e controle do cumprimento das obrigações de edificar, parcelar
ou utilizar. Assim, nos parece decisivo (i) definir e aperfeiçoar a utilização
das fontes de informação (cadastros municipais ou registrários, dados
sobre serviços utilizados, como água e energia elétrica-especialmente
valiosos para aferir a não-utilização, diligências e documentação por
imagens aéreas e fotos, etc.); (ii) a capacitação das equipes responsáveis
pelas notificações, as quais devem ser pessoais, tanto quanto possível;(iii)
a abertura para impugnações por parte dos proprietários; (iv) a celeridade
das averbações perante os cartórios de registros de imóveis; e, sobretudo
(v) a definição de uma rotina de acompanhamento dos desdobramentos
da notificação, seus percalços e entraves6.

3. AS OPÇÕES ADOTADAS EM SÃO BERNARDO.

3.1. A cidade e as estratégias de planejamento urbano

São Bernardo do Campo, cidade que se fez conhecida em função da


indústria do automóvel instalada a partir da década de 1950, é um muni-
cípio que, desde então, cresceu muito rapidamente e sem um adequado
planejamento. Em 1950 a população local era de 29.295 habitantes e,
trinta anos depois, em 1980, atingia 425.602 habitantes, configurando
um elevado ritmo de crescimento, bem acima das médias estadual e na-
cional nos três intervalos censitários.7 Nesse período de 30 anos a cidade
se expandiu por meio de sucessivos loteamentos – muitos precariamente
urbanizados e, por vezes, irregulares – e favelas, que foram estendendo
a mancha urbana cada vez mais em direção aos mananciais.
Do território de 408,45 km², mais de 70% são áreas ambientalmen-
te protegidas – Área de Proteção e Recuperação do Manancial Billings
(APRM-Billings), contigua à área urbana, e Parque Estadual da Serra do
Mar (PESM), no extremo sul. São três bacias hidrográficas: a bacia do
Tamanduateí, toda ela urbana; a bacia do Pinheiros, coincidente com a
APRM-Billings, e a bacia do Mogi, onde se localiza o PESM.8

1074
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Embora a maior parte da população se concentre na Bacia do Taman-


duateí, vem sendo exercida grande pressão demográfica sobre a APRM-
-Billings, desde, pelo menos, a década de 1970. Em 2010 a população
total era de 765.463 habitantes e 25,8% – 197.554 pessoas – residiam nos
mananciais (IBGE, 2010).
A ocupação dos mananciais encontra várias explicações – desde a atra-
tividade que exerce em função da paisagem privilegiada e que funcionou,
provavelmente como um chamariz inicial, até, e principalmente, o baixo
custo da terra, em parte motivado pela coercitiva legislação estadual de
mananciais da década de 1970.9 Fato é que o padrão de urbanização das
cidades brasileiras leva a que as áreas ambientalmente protegidas sejam,
com frequência, ocupadas irregularmente pela populações de baixa renda,
as quais não tem acesso ao mercado formal de habitação. São Bernar-
do não é diferente. Em 2010 foram contabilizados 151 assentamentos
precários no manancial (68 favelas e 83 loteamentos irregulares), onde
residiam 44.898 pessoas ou, aproximadamente, 23% da população total
da APRM-Billings.10

Mapa 1 - São Bernardo do Campo:


Bacias hidrográficas e Macrozoneamento

1075
A expansão urbana deixou interstícios – terrenos vazios ou subutili-
zados e, mais recentemente, imóveis não utilizados – em meio ao tecido
urbano fora dos mananciais e, até mesmo, na região central. Em resposta,
a estratégia adotada pelo planejamento da cidade veio no sentido de indu-
zir o cumprimento da FSPIU, visando o direito à moradia, a proteção das
áreas ambientalmente sensíveis e a recuperação do ambiente construído
ou da paisagem urbana,11 que se deteriora com a presença do abandono
que caracteriza, quase sempre, esse conjunto de imóveis.
Assim é que o plano diretor aprovado em 2011 trata objetiva e deta-
lhadamente do instrumento do PEUC, definindo:
que o mesmo se aplica à Macrozona Urbana Consolidada, cujos limi-
tes coincidem com a bacia do Tamanduateí, onde se quer induzir a plena
utilização da propriedade imobiliária;
que o objeto do instrumento são os imóveis com área igual ou superior
a 1.000m² não edificados ou subutilizados (com coeficiente de aproveita-
mento menor que 0,20), bem como as edificações não utilizadas há mais
de três anos;
os casos de isenção da obrigação (atividades econômicas que não
demandem edificação para exercer suas finalidades, bem como alguns
usos e atividades especiais);
os procedimentos gerais para a notificação e os prazos para o cum-
primento da obrigação.

3.2. Os “vazios urbanos” municipais e seu enfrentamento

A sociedade e o governo do Município de São Bernardo buscaram no


PEUC um instrumento que efetivamente assegurasse o cumprimento da
FSPIU naqueles imóveis não edificados ou não utilizados (em sentido
estrito) dentro das características histórico-políticas vividas no presente.
O Plano Diretor aprovado após a vigência do Estatuto da Cidade (Lei
Municipal 5.593/2006) já estipulava algumas definições, como a área
mínima dos imóveis sujeitos à obrigação e os usos isentos, mas nenhuma

1076
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

consequência posterior se observou. Já em 2011, o novo Plano (Lei Muni-


cipal 6.184) avança substancialmente quando (i) define, em seu artigo 7º,
a função social da propriedade imóvel urbana, afastando expressamente
a não utilização – em sentido amplo – dessa condição; (ii) coloca, em
seu artigo 8º, a indução à ocupação dos imóveis ociosos como um dos
objetivos gerais da política urbano-ambiental; e (iii) descreve com maior
riqueza de detalhes as condições de exigência do PEUC, a caracterização
dos imóveis passíveis de sofrer a exigência para uso, os procedimentos,
prazos e as consequências da notificação. A Lei Municipal 6.186/2011,
aprovada logo em seguida, apenas reiterava os termos do Plano Diretor.
A partir daí a administração se apetrechou para dar início às notifica-
ções, refletindo acerca das considerações expostas na parte final do item
2.1, dando início aos levantamentos e diligências necessárias para aferir
a realidade dos “vazios urbanos” no âmbito municipal, e consolidando,
então, certas regras no Decreto Municipal 18.437, de 16 de abril de 2013.
Essa norma completa o ciclo de regulamentação do instrumento, es-
tabelecendo, dentre outros dispositivos, (i) o acompanhamento por parte
do ConCidade12 do processo de notificação e suas consequências; (ii)
as definições possíveis para proprietários sujeitos à obrigação, apondo
o compromissário-comprador e o usucapiente nessa categoria; (iii) as
condições que deveriam cumprir os imóveis isentos da obrigação; (iv) a
sistemática de reunião de informações e de elaboração do “laudo técni-
co”, documento que caracteriza o imóvel como não-utilizado em sentido
amplo; (v) as possibilidades de impugnação por parte do notificado; (vi)
o procedimento de notificação propriamente dito.
Em especial, o regulamento estipula uma escala de notificações, que se
estende até o final de 2014, construída com base em critérios ou lógicas
complementares:
capacidade administrativa para proceder ao conjunto das notificações
previstas, obrigando seu desmembramento no tempo em até, aproxima-
damente, dois anos;
priorização por bairro (da Macrozona Urbana Consolidada), em função

1077
de sua proximidade do centro principal e do padrão de urbanização, de
forma que na primeira etapa foram incluídos o bairro Centro e dois bairros
de classe média, localizados ao norte do centro no sentido do município de
São Paulo; na segunda etapa, bairros que conformam um anel envoltório
ao bairro Centro; e na terceira e última etapa os bairros mais afastados;
priorização das ZEIS 2 – Zonas Especiais de Interesse Social, formadas
por imóveis vazios ou subutilizados reservados pelo zoneamento para a
produção habitacional, incluídas na primeira etapa de notificações, qual-
quer que seja sua localização na Macrozona Urbana Consolidada, dada
a relevância da questão habitacional e a perspectiva de que a notificação
induza ao cumprimento da função social da propriedade consistente, nesse
caso, na produção de habitação social.

A espacialização das etapas segue demonstrada no Mapa 2.


Mapa 2 - Distribuição espacial das notificações: etapas

1078
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

4. A APLICAÇÃO DO INSTRUMENTO

A aplicação do PEUC demonstrou-se desde logo como uma tarefa com-


plexa que, para ser eficazmente conduzida, requereria (i) um cuidadoso
planejamento dos trabalhos, (ii) o envolvimento da superior administração
e das equipes técnicas, (iii) a dedicação exclusiva de um profissional para
o gerenciamento dos trabalhos e, ainda, (iv) participação e transparência
ao longo do processo.
Com essa visão foi possível contratar uma consultoria para orientar a
implementação do instrumento e destacar um profissional responsável
pelo gerenciamento direto e cotidiano do instrumento.
De pronto, enquanto se elaborava o planejamento do processo, buscou-
-se identificar o mais fielmente possível os imóveis objeto do PEUC.

4.1. A identificação dos imóveis sujeitos ao PEUC

À época da elaboração do plano diretor, em 2010, foram realizados


levantamentos com o objetivo de definir o âmbito e a modelagem do
instrumento. O cadastro imobiliário foi a fonte dos estudos e já naquele
momento verificaram-se inconsistências,13 que motivaram uma série de
vistorias para, em campo, aferir as informações cadastrais.
Passados dois anos, em 2012, com o plano diretor aprovado, diante da
determinação de implementar o instrumento a primeira tarefa consistiu na
elaboração de uma listagem atualizada dos imóveis sujeitos à aplicação
do instrumento, nos termos do plano diretor e da lei específica do PEUC,
quais sejam:
imóveis não edificados com área igual ou superior a 1.000 m² e coefi-
ciente de aproveitamento (CA) igual a zero;
imóveis com área igual ou superior a 1.000 m² que apresentem edifi-
cação cuja área construída resulte em CA menor que 0,2;
edificações não utilizadas há mais de 3 (três) anos, independentemente
da área do terreno e do CA.

1079
Os estudos basearam-se em informações do cadastro imobiliário, que
foram associadas ao banco de dados espaciais disponível no Sistema de
Informações Geográficas (SIG) da prefeitura municipal.14 Inicialmente foi
realizada uma consulta na base de dados bruta do cadastro imobiliário,
selecionando-se somente os lotes com área igual ou maior que 1.000 m²
(mil metros quadrados); estes foram representados no SIG, ambiente em
que se realizaram as consultas espaciais, das quais resultou a identificação
e uma listagem preliminar de imóveis vazios ou subutilizados,15 que ainda
foi submetida a uma comparação com a listagem de 2010 e a uma análise
do Departamento de Planejamento Urbano, visando eliminar flagrantes
imperfeições ou desatualizações do cadastro imobiliário, em especial
grandes empreendimentos implantados em imóveis que continuavam a
constar como não edificados.
De posse da listagem assim obtida, que totalizava 565 imóveis, foram
realizadas pesquisas no Sistema de Acompanhamento de Projetos de
Obras Particulares (OBRPAR), visando identificar os imóveis que possuíam
projetos em análise, alvará de construção e certificado de conclusão de
obras. Estes últimos – os imóveis com certificado de conclusão de obras
– foram excluídos da listagem, o que resultou num rol de 458 imóveis a
serem notificados por se apresentarem não edificados ou subutilizados. Os
demais – imóveis com projeto em análise ou com alvará de construção –
permaneceram na listagem de notificáveis, uma vez que somente a efetiva
execução das obras de construção ou ampliação os poderia desobrigar.16
Ainda restava a identificação dos imóveis não utilizados, para o que
foram buscadas várias fontes. De início foi consultado um levantamento
assistemático realizado em 2009 pela Secretaria Municipal de Desenvol-
vimento Econômico e Turismo (SDET) que fornecia informações acerca
de unidades industriais desativadas e, na sequência, realizadas vistorias
conjuntas entre as duas secretarias municipais – a SDET e a Secretaria
de Planejamento Urbano (SPU), encontrando-se 11 imóveis nessas con-
dições. Para complementar as informações recorreu-se aos indicadores
de consumo das concessionárias de serviços públicos, os quais podem se

1080
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

prestar à constatação da não utilização do imóvel. Na prática, os regis-


tros de consumo de água não serviram como indicador, pois o cadastro
disponibilizado pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de
São Paulo (SABESP) não permitiu estabelecer a relação com o cadastro
imobiliário da prefeitura, tornando difícil a comprovação da ociosidade
do imóvel por esta via. Porém, os dados da concessionária de serviços de
energia elétrica – AES Eletropaulo – se revelaram úteis, permitindo que
fosse extraída uma relação de imóveis com consumo zero ou incompatível
com a área construída, ou ainda atividade cadastrada. Esse rol passou por
uma verificação cadastral, que resultou em 78 imóveis, os quais, somados
aos 11 provenientes do levantamento da SDET, implicaram num total de
89 imóveis não utilizados.
O cômputo total de notificações a serem processadas atingiu, portanto,
547 imóveis, como demonstra o Quadro 1.

4.2. O planejamento da aplicação do instrumento

O planejamento da aplicação do instrumento identificou as várias ações


necessárias à aplicação do instrumento, antecedentes e subsequentes às
notificações, as quais seguem sinteticamente relatadas:
Identificação dos imóveis notificáveis, o que envolve, no mínimo,
pesquisa cadastral;
Elaboração de decreto regulamentador do instrumento, com os pro-
cedimentos a adotar, conforme o planejado;
Preparação dos laudos técnicos a serem anexados às notificações, para
o que foram previstas vistorias aos imóveis previamente identificados;
Autuação dos processos para cada um dos imóveis a notificar;
Realização das notificações, nos termos da legislação;
Desdobramentos administrativos – averbação da notificação em Car-
tório de Registro de Imóveis, análise de impugnação e/ou recurso por
parte do proprietário, análise de solicitações de consórcio imobiliário; e
Monitoramento de todo o processo de aplicação do instrumento até
que o imóvel cumpra a obrigação com que foi notificado.

1081
quadro 1: Imóveis notificáveis por classes e etapas

É preciso acrescentar a necessidade de envolvimento de vários agentes


– públicos e privados – na implementação do instrumento, em suas várias
fases, envolvimento que assume dimensões técnica e política e que requer
a construção de capacidades. E, lembremos também, que por tratar-se de
um processo longo, se fazem necessárias avaliações de percurso.
Em São Bernardo, uma vez elaborada a minuta de decreto regula-
mentador, esta foi submetida ao prefeito municipal e secretários afins
à matéria, bem como, logo após, ao exame do corpo técnico das secre-
tarias municipais afetas – Planejamento Urbano, Finanças, Habitação,
Gestão Ambiental e Procuradoria Geral do Município. A Secretaria de
Planejamento Urbano, coordenadora da aplicação do PEUC, organizou
uma oficina em que, com a presença da consultoria contratada, foi feita

1082
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

uma exposição conceitual sobre o instrumento, discutida detidamente a


minuta de decreto e definidos os encaminhamentos posteriores até sua
promulgação. Na oportunidade foram definidos os papéis de cada setor de
governo com respeito à operacionalização do instrumento – entre outras,
o fornecimento de informações, a realização de vistorias, a preparação
de peças técnicas, os diferentes tipos de análise e os atos de notificar e
de averbar – e os fluxos internos básicos.

4.3. O processo de notificação e seus percalços

Identificados os imóveis e definidas as etapas de notificação, julgou-


-se por bem, no sentido de garantir maior confiabilidade aos trabalhos,
vistoriar os imóveis relacionados. Em função do grande número de casos
– 547 – e também em razão da dinamicidade urbana, optou-se por realizar
as vistorias em etapas, tal como as notificações. Portanto, apenas os 147
imóveis da Etapa 1, prevista para 2013, serão vistoriados inicialmente. De-
vidamente registradas, inclusive com fotos (sempre que possível), as visto-
rias subsidiam a elaboração do laudos técnico previsto na Lei 6.186/2011.
Do laudo técnico constam os dados cadastrais, as informações obtidas
nas vistorias e uma apreciação conclusiva quanto ao enquadramento do
imóvel (se não edificado, subutilizado ou não utilizado). A elaboração do
laudo técnico enseja a abertura do processo administrativo do imóvel,17 ao
qual é juntada a Notificação. Até o momento foram notificados 23 imóveis,
havendo apenas um caso de notificação por edital, conforme Quadro 2.
Várias tem sido as dificuldades encontradas no tocante à notificação,18
as quais, muito resumidamente, podem ser grupadas segundo ordens de
problema: (i) desatualização dos cadastros municipais; (ii) deficiências de
estrutura dos organismos públicos envolvidos, (iii) poucas e incipientes
experiências relacionadas ao PEUC, o que coloca o desafio da criação de
parâmetros para aplicação do instrumento; (iv) inexperiência da equipe
técnica no tocante à matéria e uma, ainda que difusa, resistência ideológica
à aplicação do instrumento.

1083
qUADRO 2: Etapa 1: estágio das notificações
e atos subsequentes (ago. 2013)

A desatualização do cadastro fiscal imobiliário quanto à identificação e


endereço do proprietário e com relação aos dados do imóvel (área constru-
ída e existência de edificação) faz com que a tarefa de notificar se estenda
e se multipique. Por exemplo, ao não encontrar um proprietário – pessoa
jurídica – a alternativa tem sido a pesquisa nos sites na Junta Comercial do
Estado de São Paulo (JUCESP) e/ou da Receita Federal, quase sempre man-
tidos atualizados. Recurso adicional, em ainda assim não se localizando
o proprietário no endereço informado nos sites mencionados é a consulta
à Procuradoria Fiscal do Município para verificar possível execução fiscal,
cujo processo informa o endereço atualizado do proprietário. Caso não
exista execução fiscal o ultimo recurso é a notificação por edital, o que
ocorreu em um caso (Quadro 2).
São muitos os casos em que a informação cadastral não confere com
o registro imobiliário.19 As divergências entre os dados cadastrais e os
constantes da matrícula do imóvel (área de terreno, área construída e
proprietário) tem levado a devoluções por parte dos cartórios de registro
de imóveis, quando da solicitação de averbação. Por vezes se faz neces-
sária apenas a correção de dados cadastrais no laudo técnico (medidas,

1084
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

confrontações, etc.), que, uma vez realizada, permite o reencaminhamento


do pedido de averbação, porém há casos em que nova notificação é indis-
pensável (quando o registro de imóveis informa ser diverso o proprietário
do imóvel). Por essa razão, se surgem dúvidas prévias à notificação, a
matrícula do imóvel é solicitada antes do ato de notificar.
Ressalve-se, no entanto, as dificuldades que encontra a equipe res-
ponsável para manter o cadastro fiscal imobiliário atualizado, uma vez
que os proprietários não informam mudança de endereço ou transfe-
rência de propriedade.20 O cadastro mobiliário, pelas mesmas razões,
também se mostra desatualizado, dificultando a identificação correta
dos casos de atividade econômica isenta de notificação, nos termos da
legislação municipal.
Outro limite – que vem sendo enfrentado por meio de atividades de
capacitação – é a já comentada inexperiência da equipe técnica no trato
com o PEUC. Um exemplo é o debate para uniformização de entendimento
quanto a notificar proprietários de imóveis que já contam com processo de
aprovação de projeto em curso no município e aqueles que possuem alvará
de construção, como comentamos anteriormente.21 A novidade em que
se constitui o instrumento gera a necessidade de verificação, sucessivas
vezes, da documentação emitida, para que se diminuam as imprecisões
(laudos técnicos, notificações, etc.). Notam-se dificuldades conceituais
e operacionais, como a necessidade de meticuloso preenchimento das
peças que evitem frustrações na fase de averbação. Em decorrência, o
ritmo das notificações está aquém do inicialmente planejado, tanto que
até o momento foram realizadas 15% das notificações previstas na Etapa
1, que se encerra no final do exercício de 2013. Porém, os procedimentos
estão sendo aprimorados, e embora ainda em fase inicial a experiência
tem se mostrado valiosa por permitir que os aprendizados, as dúvidas e
os impasses que surgem sejam melhor equacionados pela equipe respon-
sável pela gestão do instrumento, dado seu ineditismo e as inevitáveis
correções de rumo.

1085
5. PERSPECTIVAS PARA O FUTURO MEDIATO

Iniciamos este artigo comentando sobre as poucas experiências de


implementação do PEUC registradas até o momento, quando já se passou
mais de uma década de aprovação do Estatuto da Cidade. E nos referimos,
também, ao debate ainda em curso nos meios profissionais e acadêmicos
sobre o alcance e a efetividade do instrumento.
Situados nesse contexto, devemos considerar, também, que a aplicação
do PEUC em São Bernardo encontra-se em estágio bastante inicial, que
não permite, por ora, falar em resultados. No entanto, é possível tratar
das perspectivas de futuro no médio prazo.
Há expectativas na administração municipal e entre os conselheiros
do ConCidade de São Bernardo de que o PEUC contribua para diminuir
a ociosidade dos imóveis e a degradação de muitos deles, situados em
grande parte no centro da cidade e, portanto, com grande visibilidade.
Mas, vários daqueles que se pensava não utilizados estão de alguma (e
precária) forma ocupados, limitando a aplicação do instrumento.
Também se espera que a aplicação do PEUC induza à colocação no
mercado dos terrenos delimitados como ZEIS 2, favorecendo a produção de
habitação de interesse social, mas se começa a ficar claro que, em função
da localização estratégica desses terrenos (em função da proximidade de
grandes rodovias, como a Anchieta, a Imigrantes e, mais recentemente, o
Rodoanel) e, em decorrência, do elevado preço da terra, que os proprie-
tários tendem a aguardar, a esperar para ver se o instrumento “pega” – e,
quiçá, uma mudança na legislação!
No entanto, é sabido que o PEUC não produz resultados concretos
imediatos. Os prazos definidos na legislação federal para o cumprimento
dos ritos do PEUC (prazos mínimos para apresentar projeto e para iniciar
as obras), sem contar os relativos à aprovação do projeto e à execução
das obras lançam os possíveis resultados vários anos à frente do momento
da notificação.
Mas, por outro lado, a séria, consciente e tenaz aplicação do instru-

1086
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mento pode produzir contribuir, ao mesmo tempo, para a construção de


uma nova cultura urbanística, em que a função social da propriedade
assuma importância social. Nesse sentido, é importante a atenção aos
proprietários notificados, a divulgação do resultado dos trabalhos e a
sequência dos atos.
No momento em que escrevemos este artigo o governo municipal fina-
liza as medidas para enviar ao Legislativo o projeto de lei que regulamenta
a cobrança do IPTU progressivo no tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os artigos 182 e 183


da Constituição Federal, estabelece diretrizes da política urbana e dá outras pro-
vidências.
BRUNO FILHO, F.; DENALDI, R. Parcelamento, edificação e utilização compulsó-
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1087
OLIVEIRA, F. L. de; BIASOTTO, R. O acesso à terra urbanizada nos planos diretores
brasileiros. In: SANTOS JUNIOR, O. A. dos; MONTANDON, D. T. (Org.). Os planos
diretores municipais pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas.
Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011.
PINTO, V. C. Do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. In: MATTOS,
L. P. (Org.). Estatuto da Cidade comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
SÃO BERNARDO DO CAMPO. Lei nº 6.184, de 21 de dezembro de 2011. Dis-
põe sobre a aprovação do Plano Diretor do Município de São Bernardo do Campo
e dá outras providências.
________Lei nº 6.186, de 27 de dezembro de 2011. Dispõe sobre o instrumento
do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios instituído pelo Plano Diretor
do Município de São Bernardo do Campo, e dá outras providências.
________Decreto nº 18.437, de 16 de abril de 2013. Regulamenta a Lei nº
6.186, de 27 de dezembro de 2011, que dispõe sobre o parcelamento, edificação ou
utilização compulsórios, instituído pelo Plano Diretor do Município de São Bernardo
do Campo, e dá outras providências.
________Plano Local de habitação de Interesse Social de São Bernardo do
Campo: 2010-2025. Secretaria de Habitação da Prefeitura do Município de São
Bernardo do Campo, 2010.
SILVA, J. A. da. Direito urbanístico brasileiro. 6ª ed. (revista e atualizada). São
Paulo: Malheiros, 2010.
SOUZA, M. L. de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à
gestão urbanos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

NOTAS

1 Claudia Virginia é arquiteta, mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), doutoranda em Pla-
nejamento e Gestão do Território (UFABC) e diretora de Planejamento Urbano da Prefeitura de São Bernardo
do Campo (PMSBC) – claudia.virginia@saobernardo.sp.gov.br; Fernando Bruno é mestre (PUCSP) e doutor em
Direito do Estado (USP) e professor da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu – fgbruno@uol.
com.br; Mauricio Gazola é arquiteto e urbanista, especialista em geoprocessamento – (UNICAMP) e assistente
do Departamento de Planejamento Urbano da PMSBC – mauricio.gazola@saobernardo.sp.gov.br; Wagner Bossi
é arquiteto e urbanista, mestre em Estruturas Ambientais Urbanas (FAUUSP) e gerente da implementação do
PEUC na PMSBC – wagner.bossi@saobernardo.sp.gov.br .
2 “Art. 182. (...)
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor,
exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado,
que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo

1088
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados
o valor real da indenização e os juros legais.”
3 BRUNO FILHO; DENALDI, 2009, p.39-40.
4 Algumas das questões levantadas aqui já o foram em outro trabalho de nossa autoria (BRUNO FILHO; DE-
NALDI, 2009), outras surgiram durante a experiência aqui relatada.
5 Anote-se a posição de Victor Carvalho Pinto (2002, p. 132 e ss.) no sentido de que, na verdade, a “não
utilização” seria gênero, do qual “não-parcelamento” e “não-edificação” seriam espécies. Apenas estas duas
últimas situações, portanto, seriam passíveis de regulação pelos municípios.
6 A correta e completa instrução dos processos administrativos, um para cada imóvel cujo proprietário foi
notificado, é medida essencial, o que já fora intuído por BUENO (2002, p.96-98).
7 Dados dos censos demográficos do IBGE mostram que São Bernardo do Campo registrou as seguintes Taxas
Geométricas de Crescimento Anual (TGCA) nos intervalos considerados: 10,74% (1950-60), 9,52% (1960-70),
7,76% (1970-80), enquanto que o Estado de São Paulo, registrou, nos mesmos intervalos as taxas de 3,57%,
3,20% e 3,49%. As taxas nacionais naqueles períodos eram ainda menores (3,7%, 2,78%, 2,48%).
8 O Macrozoneamento vigente toma por base as bacias hidrográficas como se verá no Mapa 1.
9 Não cabe aqui aprofundar a argumentação sobre o papel da legislação da antiga legislação de mananciais do
Estado de São Paulo, que de tão restritiva acabou por fazer cair o preço da terra, o interesse dos proprietários
e o controle sobre ela. Numerosos autores já se dedicaram ao tema, dentre eles MARICATO (1996).
10 SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2010.
11 Conforme princípios fundamentais e objetivos gerais da política urbano-ambiental constantes do plano
diretor do município – Lei 6.184/2011.
12 Conselho da Cidade e do Meio Ambiente de São Bernardo do Campo, constituído nos termos dos conselhos
de cidades recomendados pelo Ministério das Cidades e Conselho Nacional das Cidades, que agrega, também,
as funções de conselho de meio ambiente.
13 As inconsistências estão relacionadas à desatualização cadastral, haja vista que embora a equipe da Se-
cretaria de Finanças realize atualizações pontuais elas não são suficientes para acompanhar a dinâmica de
crescimento da cidade, gerando divergências entre o parcelamento real, legal e fiscal.
14 O cadastro imobiliário municipal é alimentado e mantido pelo Sistema Integrado de Arrecadação Municipal
(SIAM), onde as informações alfanuméricas são armazenadas no banco de dados corporativo Oracle. O SIAM
possibilita a realização de inúmeras consultas aos atributos cadastrados como, por exemplo, área de terreno
e área construída. Através do Sistema de Informações Geográficas (SIG) foi possível associar a base de dados
espacial à alfanumérica utilizando como link a inscrição imobiliária.
15 Por meio de uma sequência de cruzamentos espaciais usando métodos de intersecção e identificação, foi
possível relacionar os lotes aos bairros e às ZEIS 2 e classificá-los como vazios, quando a área construída era
igual a zero, e como subutilizado, quando a razão entre e área construída e a área de terreno era menor que 0,20.
16 Decisões como esta não foram tomadas facilmente. Por vezes, implicaram em sucessivos debates entre os
membros da equipe, como comentaremos adiante.
17 Os procedimentos de vistoria, elaboração do laudo técnico, autuação de processo administrativo e notifi-
cação vem ocorrendo progressivamente, em várias frentes, já que cada procedimento compete a uma equipe
diferente. Dessa forma, alguns imóveis já foram notificados, enquanto outros ainda cumprem os procedimentos
precedentes.
18 A notificação é aqui entendida no sentido amplo, incluindo, além do ato de notificar, as providências
anteriores e posteriores ao mesmo.
19 Houve caso em que, feita a notificação ao proprietário identificado no cadastro fiscal imobiliário, este a
repassou ao alegado proprietário atual que, por sua vez, pediu a impugnação da notificação, juntando escri-
tura de compra e venda lavrada em cartório de notas e não registrada no competente registro imobiliário.
20 O último recadastramento imobiliário foi realizado em 2007 e, desde então, as equipes fiscais se orientam
com base em imagens de satélite e trabalhos de campo. Novo recadastramento está em fase de contratação.
21 Foram recebidos e indeferidos pedidos de impugnação da notificação em casos do tipo.

1089
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O “deixa como está, para ver como fica”:


licenciamento urbanístico, poder de
polícia e a supremacia do interesse
social na execução da política urbana

Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino1

“Veio os homi com as ferramentas


e o dono mandô derrubá...”
(Adoniran Barbosa- Saudosa Maloca, 1951)

1. A FEIÇÃO CONTEMPORâNEA DO DIREITO


DE CONSTRUIR EM FACE DA ORDENAÇÃO DO
USO E OCUPAÇÃO DO SOLO URBANO

É da leitura dogmática tradicional a percepção de que emana do poder


de polícia do Município a instituição do controle que o ente exerce sobre
o uso e ocupação do solo urbano, por meio de processos de licenciamen-
to prévio e fiscalização, destacadamente no que tange às atividades de
parcelamento, edificação e funcionamento comercial, industrial e/ou de
serviços. Em elaborada apreciação do problema, Maria Sylvia Zanella Di
Pietro aduz que o exercício do poder de polícia, lato sensu, é atribuído ao
Estado em geral, e não apenas à Administração Pública, de modo que
“reparte-se entre Legislativo e Executivo. (...) O Poder Legislativo, no exer-
cício do poder de polícia que incumbe ao estado, cria, por lei, as chamadas
limitações administrativas ao exercício das liberdades públicas e indica as
medidas de polícia cabíveis para impor o seu cumprimento”2. Portanto,
embora seja essa potência imanente à Administração, seu exercício toma
como pressuposto os atos de prévia legiferação, bem como o acionamento

1091
do poder regulamentar do Executivo, assomando muito mais complexo do
que se supõe, verdadeiro poder-dever, ou antes, dever-poder.
Nada obstante, perspectivas contemporâneas divergentes têm buscado
assentar sobre novos fundamentos tais prerrogativas, sendo da lavra de
Carlos Ari Sundfeld uma das críticas mais contundentes à noção de “poder
de polícia”, em sua vertente clássica:

Ela é terrivelmente problemática, por uma infinidade de motivos.


O mais grave deles – que modernamente se quis eliminar, com a
exclusão da álavra poder, passando-se a referir apenas a polícia
administrativa – é seu timbre autoritário. Reconhecer à Adminis-
tração um poder de polícia parece significar algo além da mera
descrição da função de aplicar as leis reguladores dos direitos,
único sentido que a expressão poderia ter no Estado de Direito.3

De fato, a incursão do autor por um chamado Direito Administrativo


Ordenador, a princípio, espelha com maior fidedignidade a atribuição
constitucional dos Municípios de promover o adequado ordenamento
territorial, cara ao artigo 30, VIII.
No que tange à temática dos parcelamentos do solo, a questão soa
hoje pouco controversa. Grosso modo, já se encontra assentado o en-
tendimento de que inexiste um ‘direito subjetivo de parcelar’, intrínseco
ao direito de propriedade imobiliária, vez que o ato de aprovação de
loteamentos e desmembramentos pelo Poder Executivo tem natureza
de autorização, sujeitando-se a juízo de conveniência e oportunidade da
Administração, embasado sempre nas previsões dos respectivos planos
urbanísticos4. A autorizada e não unívoca lição de José Afonso da Silva
não deixa dúvidas a respeito:

De plano, vale situar que o parcelamento do solo não constitui


direito subjetivo do proprietário da gleba, mas autorização que
concede o Município a um particular para o exercício da função
pública de urbanização, que é, a rigor, privativa do Poder Público.
Realmente, o consentimento do Poder Público para parcelar solo
para fins urbanos confere ao particular a faculdade de exercer
em nome próprio, no interesse próprio e à própria custa e riscos,
uma atividade que pertence ao Poder Público Municipal – qual
seja, a de oferecer condições de habitabilidade à população
urbana, como já dissemos; e esse é caso típico de autorização,

1092
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

não de licença. Tal transformação da propriedade não integra as


faculdades dominiais, porque não constitui uma função privada.5

Tanto assim, que postura idêntica tem sido encampada pelos Tribu-
nais Superiores, para endossar o caráter de discricionariedade técnica da
aprovação de projetos de loteamento, que somente se consubstancia em
ato jurídico perfeito com o registro6.
Por sua vez, o controle a que se assujeita a atividade edilícia enseja
análise mais detida do ‘direito de construir’, historicamente configurado
de modo diverso pela legislação, doutrina e jurisprudência nacionais.
Na perspectiva civilística convencional, emanava o direito de construir
diretamente do direito de propriedade imobiliária, como um dos poderes
dominiais, impassível de sofrer qualquer restrição externa. Já sob a ótica
do direito administrativo, de maneira genérica, o achatamento do ius ae-
dificandi pode ser interpretado como modalidade de intervenção estatal no
direito de propriedade, tendo, como contraponto, a pretensão indenizatória
do particular atingido. Ambos os vieses foram conciliados no Código Civil
brasileiro de 2002, na dicção do art. 1.299: “o proprietário pode levantar em
seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os
regulamentos administrativos”. Duas dimensões vêm à baila na prescrição:
o direito de vizinhança – ele mesmo sob reorientação no bojo da onda de
constitucionalização do direito civil, por autores como Luiz Edson Fachin7,
especialmente no dito “uso anormal da propriedade” do Título III, Capítulo
V, Seção I (CC/2002), ao lado dos “regulamentos administrativos”, que
mais se aproximam do debate que ora se propõe.
Em giro inovador, o paradigma urbanístico atual caracteriza essa
restrição imposta pelo zoneamento à possibilidade de edificar não como
limitação externa ao direito de propriedade, mas como conformação
imanente ao seu próprio núcleo essencial, por força da necessária funcio-
nalização da propriedade urbana inscrita no art. 182, §2º, da Carta Magna
e que deflui, concretamente, das exigências fundamentais de ordenação
da cidade expressas nos Planos Diretores Municipais. Impende salientar
que, a partir de hermenêutica sistemática das normas de regência, não

1093
se pode deixar de compreender que o Plano Diretor, em sentido material,
engloba, na realidade, o conjunto da legislação urbanística imprescindí-
vel à definição do que seja, em cada situação prática, a função social da
propriedade urbana, sob pena de tornar mera carta de princípios, com
elementos programáticos de baixo grau de vinculação, descambando em
ilusão de planejamento8. Defendemos, portanto, a extensão do regime jurí-
dico próprio do Plano Diretor também às regras locais de uso, ocupação e
parcelamento do solo, bem como à Lei de Perímetro Urbano, no mínimo,
o que já vem sendo decantado em determinadas decisões judiciais9.
Parece nítido, contudo, que, mesmo sob a égide desta reformulação, a
disputa não cessa, mas regressa assentada sobre outros termos: o sacri-
fício exigido pelas normas urbanísticas chega a fulminar o núcleo essencial
do direito de propriedade? Este “núcleo essencial” depende, por óbvio, da
vocação do bem inserto em suas circunstâncias materiais, ou seja, da
“aptidão natural do bem em conjugação com a destinação social que
cumpre, segundo o contexto em que esteja inserido”, nas palavras de
Celso Antônio Bandeira de Mello10, ou a “viabilidade prática e econômica
do emprego da coisa”, na didática de Sundfeld11. A titulo ilustrativo, tem-se
o posicionamento da doutrina jus-urbanística portuguesa, na dicção de
Mário Esteves de Oliveira, que oferece uma composição: “subjetivamente,
quanto à sua titularidade, o proprietário tem a garantia concreta e efetiva
da Constituição. Já quanto ao uso objetivo da propriedade, essa garantia
é abstrata e virtual – pois, embora sejam seus os usos ou as utilidades que
dela se podem tirar, eles são apenas aqueles que possam ser tirados (ou
que não estejam proibidos de serem tirados)”12.
No cenário do direito brasileiro, é notório que o Estatuto da Cidade (Lei
10.257/2001) desgarrou do direito de propriedade dos imóveis urbanos,
expressamente, o direito de superfície e o direito de construir. A despeito
de vozes esparsas em sentido contrário, alinhamo-nos com a premissa de
que a mera regulação, em tese, do potencial construtivo de um terreno,
não induz legitimidade para que o particular pleiteasse ressarcimento por
perdas e danos do Poder Público, visto que a generalidade da comunidade,

1094
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

bem como cada um dos proprietários cuja edificabilidade foi circunscrita,


beneficiam-se, individual e coletivamente, desse contingenciamento. Exce-
ção se apresenta quando infringido o princípio da isonomia (na sua faceta
particularmente aplicável em relação aos planos urbanísticos, como infere
Fernando Alves Correia13), isto é. entre os proprietários abrangido por um
determinado setor do zoneamento, como espécie de vedação às alterações
pontuais, semelhante, em certa medida, à proibição do denominado “spot
zoning” norte-americano. Outra caracterização, ademais, tornaria inviáveis
quaisquer medidas de política urbana, especialmente aquelas de indução
ao desenvolvimento (como a variação dos coeficientes de aproveitamento
para utilização da outorga onerosa do direito de construir) e de distribuição
dos ônus e benefícios do processo de urbanização, segundoreza o art. 2º, Ix
do Estatuto da Cidade. Poder-se-ia cotejar o regime jurídico das restrições
do zoneamento, ou seja, a ausência de desdobramentos indenizatórios,
com a incidência ex lege de Áreas de Preservação Permanente, que trans-
forma parcelas de imóveis em non aedificandi, sem atingir a titularidade
(aporte subjetivo) do bem.
É certo que a jurisprudência reconhece, por vezes, que a supressão
absoluta do potencial de exploração econômica da propriedade imobiliária
é expediente análogo à expropriação indireta. Destarte, impõe-se sempre a
comprovação da idoneidade (adequabilidade finalística), indispensabilidade
(menor ingerência possível) e ponderação (balanceamento de direitos)
nesta seara. Na esteira de José Roberto Pimenta Oliveira, reproduzimos
que “não se deve, pois, presumir a necessidade da medida encampada
pela norma da Administração, mesmo que fundada em elementos téc-
nicos, pois existe o dever administrativo de plena comprovação de sua
indispensabilidade”14. O argumento técnico, isoladamente, corre o risco
de arrojar-se em inaceitável autoritarismo tecnocrático.
Em suma, vale situar a tese sintetizadora de Victor Carvalho Pinto,
para quem o direito de construir e suas modulações pelo Poder Público
não derivam do poder de polícia, stricu sensu, embora possam ser objeto
de fiscalização com base nele. Em torno da ideia de patrimonialização

1095
do direito de construir pelo particular, o autor assevera que o mesmo
se afigura como bem autônomo, espécie sui generis de direito real,
inclusive averbável:

Em todos os institutos estudados, verifica-se a existência de ônus


a serem suportados pelos proprietários para financiar a infra-
-estrutura urbana. No loteamento, são realizadas obras, transfe-
ridos terrenos e criadas servidões. Na contribuição de melhoria,
na outorga onerosa, nas operações urbanas consorciadas e na
transferência do direito de construir é feito um pagamento em
dinheiro. Em todos estes casos, o benefício auferido em troca é
a aquisição ou ampliação do direito de construir. O fato de haver
uma relação sinalagmática em todas essas situações, tendo por
objeto o direito de construir, já demonstra que seu fundamento
não pode ser o poder de polícia, uma vez que este não pode ser
transacionado. (...) Estes mecanismos só fazem sentido se aceito
o princípio da patrimonialização do direito de construir.15

2. DA NATUREZA JURÍDICA DAS LICENÇAS EDILÍCIAS

Tendo vista tal conceituação, é preciso explorar a natureza jurídica já


não do direito de construir em si, mas dos atos da Administração Pública
que permitem o seu exercício. Diferentemente da aprovação de projeto
de parcelamento do solo, a documentação da aprovação de projetos de
construção, reforma ou demolição se dá mediante alvarás de licença, e não
de autorização. Hely Lopes Meirelles bem explana ambas as categorias:

O alvará será de licença quando se tratar de construção definitiva


em terreno do requerente; será de autorização quando se cuidar
de obra provisória, em terreno do domínio público ou mesmo par-
ticular. A diferença está em que no caso de alvará de licença sua
outorga assenta no direito do requerente à edificação em caráter
definitivo no terreno indicado, como ocorre com as construções
previstas no Código de Obras e nas leis de zoneamento; no caso
de alvará de autorização sua expedição decorre de liberalidade da
Prefeitura (e não de direito do requerente), como na hipótese da
construção de uma banca em praça pública para venda de jornais
(...) Daí decorre que o alvará de autorização é sempre revogável
sumariamente pela Prefeitura, sem qualquer indenização, ao
passo que o alvará de licença nem sempre o é.16

Tal distinção leva em conta, assim, a existência ou não de direito sub-


jetivo do particular requerente. Enquanto a autorização gera esse direito,

1096
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nos casos de parcelamento, a licença apenas reconhece e consubstancia


um direito preexistente, outorgado por lei (índices urbanísticos cons-
tantes do zoneamento) e condiciona seu exercício ao preenchimento
de determinados requisitos, também previstos em normas específicas,
mormente municipais. Trata-se o licenciamento e suas exigências, nou-
tras palavras, de encargo assumido pelo particular para a prática efetiva
dos atos de construção.
Porém, se a superfície da teoria é límpida, turbulentas são as águas
em que imergem os conflitos entre o interesse público e o privado. A
doutrina consagrou, quanto às licenças urbanísticas, princípios reitores
para auxiliar na solução desse tipo de controvérsia:

necessidade: significa que o particular que deseje exercer ati-


vidade edilícia está obrigado a licenciar a obra, nas hipóteses
da lei municipal;
caráter vinculado: já o Poder Público, no momento de outorga
da licença, está adstritos aos requisitos legais, não podendo
negá-la quando verificados os mesmos. Alguns autores, porém,
falam em certo âmbito de discricionariedade técnica do Município,
inclusive na caracterização de tais requisitos;
transferibilidade: diz-se da tendência de, alienado o imóvel, a
licença para nele edificar seguir o principal, favorecendo quem
o venha a herdar ou adquirir;
autonomia: vale dizer, à Administração não cabe discutir, para
concessão da licença, quaisquer refregas sobre o domínio do
imóvel ou relativas às relações inter privados, tampouco nelas
influindo a decisão administrativa;
definitividade: exercida a atividade nos termos e nos prazos
hábeis da licenças, isto é, antes que a mesma caduque, gerando
prescrição, o ato não pode, rebus sic standibus, ser discriciona-
riamente revisto ou revogado.

Outrossim, é de se notar que, no tocante ao conteúdo dos requisitos


supracitados, avalia-se, caso a caso, a compatibilidade da obra que se
pretende encetar com os parâmetros urbanísticos da zona em que se
situa o imóvel em questão, tais como taxa de ocupação, recuos, taxa de
permeabilidade, coeficiente de aproveitamento, gabarito, entre outros. Por sua
vez, incidem igualmente juízos técnico-funcionais sobre a segurança e a
estrutura das edificações. Há uma indisfarçável sobreposição de campos do
saber nas regas, em geral, alocadas nos Códigos de Obras e nas Posturas

1097
Municipais. Normas técnicas, tanto as institucionalizadas pela Associa-
ção Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), por exemplo, quanto padrões
consensuais na comunidade científica também devem ser obedecidos:

A maioria das normas jurídicas contidas em planos, projetos, leis


e decretos urbanísticos nada mais faz senão positivar ou aplicar
normas técnicas. O direito estatal não apenas positiva normas
técnicas, como também a elas faz remissões, incorporando as
formas de auto-regulação produzidas no interior da própria
comunidade profissional. O resultado dessa transformação é
um modelo institucional cujos parâmetros são distintos dos do
constitucionalismo clássico. A exigência de positivação como
condição para o reconhecimento da validade das normas técni-
cas ao mesmo tempo criaria problemas de inflação legislativa,
tecnificação do direito e politização do urbanismo. A remissão
do ordenamento jurídico a normas técnicas extra-estatais pode
atenuar simultaneamente todos esses problemas. Ao regular a
aplicação da ciência, o direito precisa respeitar os princípios que
a regem (...)17

Em todas as situações, pontue-se, a atividade edilícia apenas poderá


ser desenvolvida quando o terreno de suporte qualificar-se como lote, isto
é, porção de solo “com frente para logradouro público em condições de
receber edificação residencial, comercial, institucional ou industrial”18. A
produção de lotes pressupõe prévio parcelamento, uma vez que a gleba
nua ou indivisa poderá receber unicamente construções com finalidade
rural típica ou, quando muito, agroindustrial. Na expressão da doutrina:

O parcelamento do solo para fins urbanos transforma glebas


rurais em lotes urbanos edificáveis. (...) Cumpridas as exigências,
o direito de construir incorpora-se ao terreno, que passa a ser
qualificado de “lote”. Tanto é assim que o lote é considerado
pela lei terreno destinado a edificação, em oposição à gleba, que
é inedificável. A restrição è edificabilidade das glebas é a técnica
empregada pelo direito urbanístico para impedir a ocupação de
áreas ainda não dotadas de infra-estrutura. A caracterização
de um terreno como lote pressupõe que ele já está apto a ser
ocupado, por dispor da infra-estrutura adequada.19

1098
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

3. EM BUSCA DO DEVIDO PROCESSO DE


LICENCIAMENTO: A FRAGMENTAÇÃO ENTRE
AS DIMENSÕES URBANÍSTICA E AMBIENTAL

Diante desse cenário, vem se mostrando progressivamente evidente


que o modelo disseminado de licenciamento urbanístico, com etapas
preliminar (consulta), de elaboração de projeto (pelo particular) e admi-
nistrativa (concessão de alvará de autorização ou licença) adapta-se bem
a determinadas tipologias de edificação, como as de pequeno e médio
porte, bem como a certos usos, como o residencial. O procedimento
corrente, como é sabido, após o licenciamento (alvará de construção),
implica tanto em controle concomitante (durante a execução da obra,
com eventuais notificações para adequação), quanto controle sucessivo/
repressivo (ex post factum), por meio de vistorias de conclusão de obra e,
enfim, da expedição do “habite-se” ou documento similar que permita a
ocupação do edifício, quando não haja descompasso entre este e os termos
da licença original exarada.
Todavia, grande parte das construções nos centros urbanos destina-
-se a finalidades próprias, tais como estabelecimentos comerciais e de
recreação, das mais diversas envergaduras. Nesses casos, para além da
aprovação do projeto do edifício em si mesmo (que, em certa medida, já
considera o uso futuro previsto), é necessário proceder-se ao licenciamento
das atividades que nele serão levadas a cabo, amiúde representativas de
maiores impactantes ao meio ambiente urbano do que a própria atividade
construtiva. Tais licenças são comumente denominadas “comerciais”,
“industriais”, “alvará de localização” ou ainda “de funcionamento” e
integram também uma apreciação sobre os usos permitidos, proibidos e
permissíveis/tolerados em cada zona da cidade. Novamente, a classifica-
ção engendrada por Hely Lopes Meirelles20 é de utilidade, neste quesito:

a) usos conformes ou permitidos: exercê-los seria direito


subjetivo do particular, assim como ampliar o estabelecimento/
construção;
b) usos desconformes ou proibidos: os usos incompatíveis

1099
com o zoneamento poderiam ser sumariamente impedidos a não
ser que haja pré-ocupação em relação à legislação restritiva, caso
em que poderia o mesmo seguir funcionando, uma vez iniciado,
sem que possa receber ampliação posterior;
c) usos tolerados ou permissíveis: dependeriam de autoriza-
ção precária do órgão competente no Município, decorrendo de
mera liberalidade.

A questão tem batido às portas da magistratura. O Tribunal de Justiça


do Estado do Rio Grande do Sul, nesse diapasão, assentou a interpreta-
ção de que “uso desconforme é aquele que se mostra contrário ao Plano
Diretor e, sem que ocorra hipótese de pré-ocupação, autoriza o Município
a negar alvará de funcionamento e, se já concedido, de ofício anulá-lo.
Não se configura pré-ocupação se, no momento da entrada em vigor da
nova lei, não havia uso conforme a ser garantido e, sim, o uso se dera
no passado (...)”21.
Conforme narra Pedro Tavares Maluf, em escorço de direito compa-
rado, a concessão das licenças urbanísticas pode ir além22. No caso do
ordenamento português, ao menos desde a introdução do Decreto-Lei n.
61/1995, fala-se em juízo de compatibilidade como aquele que o Poder
Público emite sobre a coincidência da utilização que se pretende dar ao
solo com os diversos planos de ordenamento em vigência, inclusive os
regionais, devendo, nesta esfera, serem os pedidos submetidos à autori-
dade central para apreciação. Complementarmente, dispõe o direito luso
da possibilidade de suspensão provisória dos procedimentos de informação
prévia, de licenciamento e de autorização, chancelada pelo Decreto-Lei
380/1999. Anota Fernando Alves Correia que a racionalidade da norma
visa assegurar, pro futuro, a eficácia dos planos de ordenamento territorial
e sua exata implementação, no interregno “a partir da data fixada para o
início do período de discussão pública e até a data da entrada em vigor
daqueles instrumentos de planeamento”23.
O volume de informações e a variedade de interferências provoca-
das no entorno do empreendimento/atividade e na urbe como um todo
exige, não raro, a consecução, antecipadamente, de Estudos de Impacto
Ambiental e/ou Estudos de Impacto de Vizinhança. O primeiro encontra

1100
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

regulamentação nos três níveis federativos, ao passo que o segundo


enquadra-se eminentemente na competência legislativa de interesse local
e, em geral, não é considerado auto-aplicável, ainda quando estipulado,
in abstracto, no Plano Diretor Municipal, o que obstaculiza seu emprego
pela típica inércia do legislador24.
Outra dificuldade patente diz respeito ao conteúdo material dos
Estudos de Impacto. É hoje notória a insuficiência dos diagnósticos do
chamado “meio socioeconômico” nos estudos de impacto ambiental,
mormente nos que pretendem abranger projetos de larga-escala25. Isso, a
despeito do art. 6º, I, ‘c’, da Resolução n. 01/1986 do Conselho Nacional
do Meio Ambiente26, que determina a inclusão dos aspectos culturais,
históricos, urbanísticos, enfim, antrópicos (meio ambiente artificial), no
licenciamento ambiental.
Por esta razão, trouxe o Estatuto da Cidade, nos artigos 36 a 38, o ins-
trumento do Estudo de Impacto de Vizinhança, expressamente autônomo
em relação ao EIA-RIMA, embora não haja impedimento para que ambos
sejam realizados simultânea ou paralelamente. Ao contrário, a tendência
vai no sentido da sua conjugação num processo único de licenciamento
urbanístico-ambiental, visando superar essa fragmentação:

A rigor, o segundo [Estudo de Impacto de Vizinhança] nem seria


necessário, pois o Estudo de Impacto Ambiental obviamente se
refere também ao meio ambiente urbano. Talvez a criação do
segundo se deva ao costume ou ao preconceito no sentido de
tomar a expressão “meio ambiente” como abrangendo apenas o
ambiente natural, os recursos naturais, tais como florestas, águas,
montanhas, etc. Na verdade, o meio ambiente a ser preservado
abrange tanto os bens naturais como os bens culturais. O que
deve variar, diante do caso concreto, é a forma, a metodologia,
de realização do estudo, que será sempre um Estudo de Impacto
Ambiental.27

Razões especulativas à parte, a resistência a uma abordagem holística


permanece nos vários modelos de avaliação de impacto. À divergência
sobre a competência ratione materiae agregam-se acirradas disputas entre
instâncias federativas pela definição da atribuição de licenciar, nos casos
concretos, não deixando de haver quem chegue a pugnar pela possibili-

1101
dade de pluralidade de licenciamentos em paralelo. Malgrado as inúmeras
propostas para resolução dos conflitos de competência, certo é que o
art. 10, §1º da Resolução CONAMA n. 237/199728 obriga os Municípios a
apresentar aos entes estaduais ou federais incumbidos do licenciamento
declaração de conformidade do empreendimento com a legislação local
de uso e ocupação do solo, em tímido diálogo inter-escalar.
Nos Estados Unidos da América, berço do impact assessment, caso pa-
radigmático foi apreciado pela Court of Appels of New York no ano de 1986.
Acompanhemos a narrativa de Antônio Figueiredo Beltrão: a Associação
de Trabalhadores e Empregados Chineses ajuizou demanda contra o
Município (City of New York), alegando que as alterações no planejamento
urbano da região de Chinatown, desconsideraram que a introdução de
condomínios de luxo aceleraria a retirada de residentes e comerciantes e
alteraria em demasia as características da comunidade local. A ré respon-
deu que não havia previsão legal explícita de necessidade de estudo sobre
impacto social ou econômico em Manhattan. Ao final, o tribunal decidiu
que “os padrões existentes de concentração, distribuição ou crescimento
da população e as características da comunidade ou vizinhança, bem como
o potencial deslocamento, em longo termo, de residentes e comerciantes,
são condições físicas que necessariamente devem ser consideradas pela
agência quando da análise do potencial do projeto em causar efeitos sig-
nificativos no ambiente”29.
No tocante ao Estudo de Impacto de Vizinhança, propriamente, a dou-
trina brasileira indica que, à semelhança de seu congênere ambiental30, sua
elaboração e dados não suprimem inteiramente o juízo de conveniência e
oportunidade do administrador, já que o estudo prévio se presta a franquear
alternativas diversas a serem sopesadas, na correlação custo-benefício.
A despeito de não-vinculante, estabelece um grau a mais de exigência,
recaindo não sobre o conteúdo da decisão pública em si, mas sobre sua
motivação, sua reserva de consistência31. O agente decisório poderá adotar
uma das várias soluções fornecidas pelo EIV, porém deverá fundamentar
tecnicamente a escolha, além de submetê-la ao crivo da população, via

1102
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

audiências públicas e outras formas de gestão democrática:

A participação popular, ao lado do EIV, também serve como ele-


mento limitador da discricionariedade administrativa, podendo
vincular absoluta ou relativamente a vontade do administrador
público aos resultados proferidos na discussão pública.32

Se o resultado das audiências públicas não atrela cabalmente a Admi-


nistração, serve para interpretar e direcionar os resultados do estudo de im-
pacto e pode subsidiar, inclusive, o gestor com elementos embasadores da
negativa do alvará para a atividade potencialmente lesiva, cuja concessão,
classicamente, seria ato vinculado. Auxilia, assim, o Município a adentrar
no mérito técnico da questão, ampliando sua margem de apreciação para
além dos aspectos formais da licença, quase como se autorização, de fato,
fosse, ponderando não apenas a estrita legalidade da atividade licenciada
(sua permissividade no zoneamento), como também o grau e a tipologia
das incomodidades por ela geradas.

4. CONFLITOS DE DIREITO INTERTEMPORAL

Encerrado o processo de licenciamento, cabe ao Município a fiscaliza-


ção de futuras alterações fáticas no uso e ocupação do solo e das eficiações.
Nesse mister, impera o princípio do tempus regit actum, sendo essencial
avaliar o momento em que a licença (de construção ou de funcionamento)
foi expedida e o grau de urbanização/consolidação da realidade em jogo,
por força dos pilares que sustentam a atuação da Administração Pública,
nos termos do art. 37, caput, de nossa Constituição Federal.
Conflitos dessa espécie, em geral, apresentam tintura intertemporal,
qual ocorre com a superveniência de legislação contrária aos termos
de alvará já expedido ou quando da emergência de posterior projeto de
intervenção urbanística de interesse público (alargamento de vias, por
exemplo). O déficit de planejamento municipal, associado às mudanças
sumárias de parâmetros urbanísticos fruto de lobby político dos setores
imobiliário e da construção civil, agravado pela descontinuidade das

1103
sucessivas gestões, acarreta em sérios problemas dessa ordem. Toshio
Mukai enfrenta o problema:

A questão mais aguda neste aspecto configura-se do seguinte


modo: uma lei que venha a modificar o zoneamento existente
pode encontrar alguém que, tendo obtido alvará de construção
ao tempo da lei anterior, tenha iniciado a construção antes do
advento da nova lei; supondo-se que a alteração promovida
pela lei nova implique a mudança da zona, ainda assim, nessa
hipótese, haverá direito adquirido do proprietário de levantar sua
construção até o final. Esse o entendimento do STF no que diz
respeito ao assunto. Contudo, ainda nessa mesma hipótese, se
a obra ainda não tiver sido iniciada, quando do advento da nova
lei, o alvará poderá ser cassado, indenizando-se as despesas
efetivamente realizadas com o projeto da obra ou decorrentes
da obtenção do alvará. Essa também a orientação do STF sobre
o assunto.33

Por esta tese, o direito de construir integra incontornavelmente o patri-


mônio do particular (direito adquirido) tão somente com os atos executó-
rios da obra, ou seja, seus marcos iniciais. E os precedentes do Supremo
Tribunal de Federal34/35 homenageiam o primado da segurança jurídica,
seguidos pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça36. Contudo,
em não se havendo dado início à obra, possível a sua interdição37.
Se a mutação legal superveniente não tem o condão de atingir as licen-
ças expedidas legitimamente, muito menos surtirá símile efeito a mudança
da posição dos tribunais ou da orientação da própria gestão municipal
sobre matéria correlata: “a alteração de jurisprudência administrativa
não atinge os atos administrativos já praticados”38, o que se confirma
em recente aresto do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, o qual,
apesar de reconhecer a nulidade de leis do Município de São Luís edita-
das sem precedência de estudos técnicos válidos e participação popular,
salvaguardou os alvarás nelas embasados39.
No que concerne à revisão sponte propria das licenças conferidas pela
Administração Pública, a doutrina reconhece importante distinção entre
anulação e revogação. Dado o caráter vinculado de tais atos, “sua outorga
com infringência de exigências legais lhes imputa vício de legalidade, que
as torna inválidas – invalidade de que a Administração poderá conhecer

1104
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de ofício, a fim de rever seu ato, com sua anulação”40. De outra sorte, “a
revogação é ato de controle do mérito. Dar-se-á quando sobrevier motivo
de interesse público que desaconselhe a realização da obra licenciada,
tal como: a) mudança das circunstâncias (...) b) adoção de novos critérios
de apreciação (...) c) erro na sua outorga”41. Da figura do erro de outorga,
contudo, não se infere erro de direito, mas sim, equívoco de natureza
técnica, imputável ao agente público avaliador do projeto. Por conse-
guinte, somente “a revogação que gerar prejuízo para o titular da licença
provocará a obrigação de indenizá-lo por parte da Administração”42. Entre
outras variáveis, despesas realizadas com a realização da obra e/ou com
a elaboração do projeto da construção poderão indicar a extensão do dano
material suportado pelo particular.

5. A LINhA TÊNUE: MEDIDAS SANCIONADORAS


VERSUS MEDIDAS REGULARIZADORAS

Circunstância mais corriqueira é aquela em que a irregularidade da


edificação ou da atividade em funcionamento não tem origem em equí-
voco da Administração, mas inteiramente na postura dos administrados,
ensejando controle corretivo e/ou repressivo do Poder Público. A linha é
tênue para identificar quais as medidas adequadas à situação fática, se de
regularização, eventualmente conjugada com reparação/compensação ur-
banística, ou sancionadoras strictu sensu, como os embargos e a demolição.
Se a tendência dos licenciamentos é a unificação, quanto possível,
também parece ser esta a da fiscalização. Conforme explicita Carlos Ari
Sundfeld, a obrigação de suportar a verificação administrativa, como ocor-
re nas vistorias de edificações, estabelecimentos comerciais e indústrias,
e de com ela colaborar é espécie de sujeição, de modo que incorre em
ilícito quem a ela opõe quaisquer óbices43, exceção feita pelo Constituinte
apenas ao asilo inviolável da residência (art. 5º, xI, CF/88) e, assim mes-
mo, com ressalvas, como em situações de desastre (consumado ou imi-
nente). Similarmente, a inobservância de ordem legitimamente emanada

1105
de autoridade competente para correção de irregularidade constatada,
especialmente após o encerramento do devido processo administrativo,
esbarraria no crime de desobediência do art. 330 do Código Penal. Longe
disso, a usual dispersão dos procedimentos, órgãos e agentes do Muni-
cípio dificulta delimitar a quem incumbe a atribuição final de declarar e
aplicar as medidas pertinentes e a judicialização é uma constante, tanto
por parte do Estado, quanto dos particulares, frustrando a celeridade e a
efetividade das medidas adotadas. Esse ambiente de inércia e animosidade
é, parcialmente, conseqüência de compreensões errôneas do fenômeno
da ordenação territorial e de seu equivalente jurídico, qual seja, o direito
administrativo ordenador.
Em face das recentes notícias de terríveis sinistros como incêndios em
localidades despreparadas e desabamento de prédios inteiros44 (conspicu-
amente associadas a falhas no licenciamento ou insuficiente fiscalização),
ameaçando a vida dos cidadãos e a incolumidade pública, quiçá seja um
dos esclarecimentos centrais a retomar o balanceamento da segurança
pública com a segurança jurídica, no destrinchamento dos mecanismos
acauteladoras e sancionadoras manejados pela Administração Pública:

Freqüentes vezes, a infração administrativa, por suas característi-


cas de gravidade e perigo aos interesses públicos, exige a adoção
de providências imediatas, voltadas a impedir sua continuidade.
(...) A solução para, nessas hipóteses, evitar o perigo, não é – como
supõem certos administradores – aplica imediatamente a sanção,
lançando ao punido o ônus de desconstituir o ato sancionador.
Aceita-se apenas a interdição cautelar, até a conclusão do pro-
cedimento. Tal medida não é sancionadora, mas acauteladora,
o que, se por um lado dispensa o procedimento para garantia
do direito de defesa, por outro impede a imposição de gravames
desnecessários à cessação do perigo, bem como implica em
que, constatada posteriormente a falsidade da imputação, sejam
cabalmente indenizados os prejuízos pela aplicação da medida.45

De um lado, autores como Hely Lopes Meirelles indicam que a auto-


-executoriedade das sanções administrativas estendem-se à viabilidade
de imposição direta pelo Município, inclusive com emprego de força, sem
necessidade de autorização judicial46. Entende, na mesma toada, Toshio

1106
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Mukai que “retirar do Executivo tal possibilidade é esvaziar o exercício


do poder de polícia que lhe é inerente, e transferir tal faculdade ao Poder
Judiciário é infringir o princípio da independência e harmonia dos poderes”
. Uma vez mais recorrendo a Sundfeld, há que se falar em “imposição
47

coercitiva de obrigações não atendidas pelos particulares” ou, trocando


em miúdos, em “execução compulsória das ordens” da Administração48.
Tem-se, nesta modalidade, tanto o constrangimento físico sobre o in-
divíduo, como do fechamento de indústria poluidora, quanto a atuação
administrativa em substituição ao dever incumprido pelo privado, qual se
verifica na derrubada de prédio em ruínas, com direito de regresso dos
dispêndios oriundos do Erário.
Já para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, são atributos intrínsecos do
poder de polícia exercitado pela Administração a discricionariedade, a
auto-executoriedade e a coercibilidade. A segunda está sujeito, ainda, a
ser desdobrada em exigibilidade (faculdade de tomar decisões executó-
rias sem ordem do Judiciário, cumpridas indiretamente pela aplicação
de penalidades) e executoriedade (poder de impor tais decisões por meios
diretores de coação). Nem todos os atos administrativos gozariam de
auto-executoriedade, e sim tão somente aqueles assim previstos em lei e,
ademais, depois de concluso o devido processo administrativo. Em casos
de urgência, procedimentos especiais seriam admissíveis, desde que o
emprego da força não seja desmedido, passíveis os excessos e desvios
de responsabilização cível como penal da autoridade coatora/abusiva.
A característica central da auto-executoriedade, neste sistema, é a de
“inverter o ônus de ir a juízo”, vez que os atos da Administração gozam
de presunção de legitimidade49.
Ao passo que a communis opinio em torno da natureza extrema da
demolição (medida de ultima ratio) é transparente50, nem sempre é fácil
distinguir em que cenários a regularização de uma edificação é viável.
A derrubada de uma construção, além de sua irreversibilidade, aflige,
a depender de sua destinação – e mormente quando sirva para fins ha-
bitacionais – dignidade da pessoa humana em patamares inaceitáveis.

1107
Trata-se, em suma, de conflito entre um direito ou interesse difuso (ordem
urbanística e/ou meio ambiente urbano) e um direito individual/coletivo
indisponível fundamental (moradia digna).
Nessas oportunidades, a solução deverá balancear os elementos do
caso concreto, com influxo do princípio da proporcionalidade-razoabili-
dade para optar pelo tipo de intervenção (regularização ou demolição) de
menor potencial lesivo: “tal como a atividade tipificante que responde
pela configuração in abstracto das infrações e sanções administrativas, a
atividade tipificadora e sancionadora in concreto assujeita-se às injunções
normativas do princípio da razoabilidade-proporcionalidade”51. A ponde-
ração tem sido adotada, entre outras cortes, pelo Tribunal de Justiça do
Estado do Paraná52.
Em situações excepcionais, como as supra referenciadas, há que se
reconhecer a serventia da teoria do fato consumado, na direção da estabili-
zação dos efeitos dos atos viciados53. O decurso do tempo e a consolidação
do processo de urbanização podem tornar a situação fática de tal modo
inalterável, sua modificação a fórceps tão atentatória a direitos fundamen-
tais, que o benefício social será inequívoco em se tolerar a sobrevivência
no ordenamento jurídico, de um ato administrativo (licença ou autoriza-
ção) eivado de irregularidade, ainda que insanável, como uma espécie de
prescrição urbanística.
O mesmo se poderia afirmar de determinados tipos de obras, as quais,
frente ao positivismo acrítico sobre a complexidade da dinâmica urbana,
seriam consideradas “clandestinas”. Isto, desde que configurado interesse
social. O “interesse social”, integrante, hoje, da noção geral de “interesse
público”, pode se configurar pela ocupação por população de baixa ren-
da ou outros grupos sociais vulneráveis. Nesse sentido, é modalidade de
cláusula geral urbanística que emerge com destaque no âmbito do Estatuto
da Cidade e foi, mormente, consolidada pela Lei 11.977/2009, a permitir
a flexibilização de parâmetros e índices urbanísticos (como os de uso e
ocupação do solo), para regularização fundiária dessa natureza. Enquanto
o primeiro diploma define, entre os instrumentos político-jurídicos do art.

1108
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

4º, V, as Zonas Especiais de Interesse Social (alínea ‘f’), o último anuncia, com
todas as letras, a viabilidade da regularização fundiária de interesse social54.
Ora, a regularização de um assentamento informal, logo, fora dos
padrões urbanísticos apontados no zoneamento, é incontestavelmente
recepcionada pelo direito brasileiro com fundamento no primado da
moradia digna, admitindo-se, por conseguinte, não o saneamento de
infrações administrativas (construções clandestinas), mas a flexibilização
dos regulamentos administrativos (e, nos termos do art. 54, mesmo dos
regramentos ambientais, atendidos alguns critérios) para que tais edifi-
cações deixem a irregularidade. É dizer, altera-se a norma e se anistiam
eventuais discrepâncias anteriores, mas não se convive com a sanção
impune, ignorando-a. Se o Estado tem o poder-dever de sancionar, muito
mais detém o dever-poder de regularizar, o que o Poder Judiciário tem
reiteradamente avençado na experiência dos loteamentos irregulares55.
Muito distante dos argumentos conservadores por vezes invocados, as
Zonas Especiais de Interesse Social, não constituem espaços de exceção,
de não-direito, de mera tolerância ou de leniência, mas territórios com
parâmetros particulares de uso e ocupação do solo, espaços de prioriza-
ção para a prestação estatal, antes objeto de políticas públicas do que de
polícias públicas.

6. (IN)CONCLUSÕES

Acha-se em fase embrionária, no Brasil, o debate na literatura jurídica


que aborde a relação entre os condicionamentos ao direito de construir, o
devido processo administrativo de licenciamento urbanístico-ambiental,
o espaço de exercício do poder de polícia sobre o uso e ocupação do solo
urbano e as hipóteses de incidência do princípio da supremacia do interesse
social para substituição da atuação sancionadora pela regularizadora.
No primeiro tópico, é de se ressaltar a escassez de referenciais juris-
prudenciais pós-Estatuto da Cidade que tenham incorporado plenamente
a dissociação entre direito de construir e direito de propriedade, ignorando

1109
ainda o potencial que esta nova configuração apresenta para resolução
conflitos entre os particulares e as Administrações Públicas. Estas, por sua
vez, por uma pluralidade de motivos, tampouco alcançaram patamares
satisfatórios de implementação dos respectivos instrumentos de política
urbana capazes de efetivar a função social da propriedade por meio desta
bifurcação entre solo e potencial construtivo56.
Na dimensão dos licenciamentos, a discrepância de prazos, o exces-
so de burocracia, a obscuridade da redação de leis municipais (quando
existem), a ausência ou precariedade dos fluxos internos e a deficiente
comunicação entre os diversos setores e órgãos do Poder Executivo, aqui,
destacadamente o municipal, emperram os trâmites, dilatam o tempo e
abrem margem ao personalismo, ao favorecimento ilícito, ao clientelismo
político e ao acesso a informações privilegiadas, quando de alguma forma
influentes são os interessados. Subsiste também dúvida sobre a necessida-
de/conveniência de submeter projetos e intervenções públicas ao mesmo
tipo de licenciamento urbanístico, embora certas legislações municipais
assim o prevejam. Tem-se identificado, por todo o país, a gravidade dos
impactos multifários de grandes projetos urbanos alavancados no contexto
dos programas de desenvolvimento, por vezes mesmo de maior monta
que empreendimentos privados, carecendo de maior planejamento e de
instâncias de mediação de conflitos57.
Igualmente, é de fácil percepção que os mesmos gargalos normativos
obstaculizam a efetividade das sanções administrativas, que encontram,
paralelamente, uma série de entraves na baixa capacidade institucional
das gestões, na frágil estrutura para o adequado desempenho das tarefas
de fiscalização e na leniência/omissão do Poder Público na autuação das
infrações e aplicação das medidas cabíveis. Tanto no controle preventivo
quanto repressivo, a morosidade nos procedimentos, a incerteza sobre os
modos e limites das medidas acauteladoras passíveis de aplicação extraju-
dicial e a sobreposição de competências entre agentes de entes federativos
diversos – a exemplo da relação por vezes distanciada entre os técnicos
municipais e os membros do Corpo de Bombeiros Militar, estadual – sig-

1110
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nificam entraves de vulto a serem superados. Parte deles, acreditamos,


poderiam ser sanadas por meio de compilação, simplificação e atualização
da legislação municipal atinente à matéria, preferencialmente como uma
das ações no processo de revisão participativa dos Planos Diretores que
se aproxima a passos largos.
Por derradeiro, é impreterível que se consolide uma perspectiva ad-
ministrativo-urbanística acolhedora dos valores constitucionais, primor-
dialmente, do direito à moradia digna, a partir da integração do interesse
social, já expresso pontualmente em significativo conjunto de leis em
vigor, à tradicional noção de interesse público, gozando aquele do mesmo
regime jurídico de supremacia atribuído a este. Dessa equação resulta a
legitimidade das medidas de regularização de assentamentos informais
e demais morfologias urbanas marginalizadas, alertando-se, porém, para
o emprego amesquinhado que tornou-se corrente da regularização para
atender a interesses outros como o de shopping centers e condomínios de
luxo, sob pena de se perverter a lógica mesma do planejamento urbano
democrático, destinado a assegurar o direito não só da cidade, mas, sobre-
tudo, o direito à cidade ambientalmente sustentável e socialmente justa.

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NOTAS

1 Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisador-adjunto do Núcleo de Estudos
em Direito Administrativo, Ambiental, Urbanístico e do Desenvolvimento do Programa de Pós-Graduação em
Direito da UFPR (NEDAUD/UFPR). Integrante do Núcleo Curitiba do INCT Observatório das Metrópoles. Assessor
jurídico do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério
Público do Estado do Paraná. E-mail: hoshino.thiago@gmail.com
2 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Poder de Polícia em matéria urbanística. In: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO
DE SÃO PAULO. Temas de Direito Urbanístico. Vol 1. São Paulo: Imprensa Oficial, 1999, p. 25.
3 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 11.
4 Nesse sentido, é de se mencionar a opinião de Victor Carvalho Pinto, que condiciona as transformações
urbanísticas ao princípio – infelizmente ainda pouco articulado pelo direito pátrio, mas largamente em voga na
Europa Ocidental – da vinculação situacional: “O regime do parcelamento do solo estatuído pela Lei 6.766/1979
também consagra o princípio da vinculação situacional, na medida em que condiciona a atividade de urba-
nização a uma prévia programação urbanística do plano diretor, que inclua o terreno em uma zona urbana,
de expansão urbana ou de urbanização específica (art. 3º).Ainda que a gleba se situe em zona urbana ou de
expansão urbana, nem por isto dispõe seu proprietário do direito de parcelá-la. Antes que possa apresentar
projeto de loteamento, deverá aguardar da prefeitura o estabelecimento das diretrizes específicas para aquele
parcelamento. (...) Fica claro, portanto, que o proprietário não tem o direito de parcelar sua gleba. Esse direito
é conferido pelo plano diretor e pelas diretrizes específicas. (...) Não pode haver, portanto, parcelamento em
cidades desprovidas de plano diretor. (PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico – Plano Diretor e Direito de
Propriedade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 281-286)
5 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 434-435.
6 “APELAÇÃO CÍVEL. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA PELO OFICIAL. LOTEAMENTO. REGISTRO DE PARCELAMENTO.
APROVAÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO. ATO JURÍDICO PERFEITO. DIREITO ADQUIRIDO. I – O ato de aprovação,
pelo chefe do Poder Executivo Municipal, de pedido de parcelamento de solo urbano para fins de loteamento,
não materializa ato jurídico perfeito, pois o ato administrativo ‘aprovação’ tem natureza discricionária e precária,
podendo ser revisto pela administração a qualquer tempo, quando não materializado o ato que se pretendia
efetuar. II - Ainda que a legislação vigente à época não prescrevesse prazo para o competente registro (Decreto
Lei nº 58/37), a partir da edição da disposição normativa que previu tal formalidade, esta passou a ser exigível
dentro do prazo ali estabelecido. Extrapolado tal lapso temporal, não têm os interessados o direito inconteste
de inscrever o referido empreendimento no registro público a qualquer tempo, pois tal providência poderia,
em última análise, inclusive, vir a macular princípios basilares da Administração, além do ordenamento legal
vigente com relação ao parcelamento urbano e leis ambientais ligados a interesses coletivos da mais variada
espécie. APELO CONHECIDO E IMPROVIDO” (STF. Agravo de Instrumento n. 738125 GO. Relator: Min. GILMAR
MENDES. Julgamento: 10/09/2013, fls. 365/366).
7 Sobre o assunto, conferir: FACHIN, Luiz Edson. Direitos de vizinhança e o novo Código Civil brasileiro: uma
sucinta apreciação. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES; Jones Figueirêdo. (Org.). Questões controvertidas no novo
Código Civil. São Paulo: Método, 2004, p. 191-208.
8 VILLAÇA, Flavio. As ilusões do Plano Diretor. Arquivo digital disponível em: http://www.belem.pa.gov.br/
planodiretor/pdfs/A%20ILUSAO_DO_PLANO%20DIRETOR.pdf. São Paulo: edição do autor, 2005. Acesso em

1113
julho/2013.
9 Foi o caso do Município de São Sebastião, apreciado pelo Tribunal de Justiça Bandeirante: “(...) Nestes termos,
considerando, conforme se colhe dos autos, que não existe, formalmente, na atualidade, no Município de São
Sebastião lei constitutiva do plano diretor, mas materialmente, constituindo a Lei Complementar n° 81/2007, em
parte, lei dessa natureza, e mesmo que, dispondo referido diploma a respeito de normas sobre zoneamento, uso
e ocupação do solo, haveriam as entidades comunitárias de participar do estudo para a elaboração do projeto
que nela se converteu.” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ação Direta de Inconstitucionalidade n°
147.807.0/6. Relator Walter de Almeida Guilherme,11 de março de 2009).
10 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza jurídica do zoneamento: efeitos. In: Revista de Direito
Público 61/39.
11 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. 1ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 93
12 OLVEIRA, Mário Esteves de. In: Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n. 3, p. 197, 1995.
13 Profundizando este debate, vide: CORREIA, Fernando Alves. O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade.
Coimbra: Almedina, 2001.
14 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo
brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 317.
15 PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico – Plano Diretor e Direito de Propriedade. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2005, p. 314-316.
16 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 12ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 546-457.
17 PINTO, V. C. Op. cit., p. 247-248.
18 SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 334.
19 PINTO, V. C. Op. Cit., p. 299.
20 MEIRELLES, H. L. Op. cit., p. 525-526.
21 RJTJRS 161:411.
22 MALUF, Pedro Tavares. Licença edilícia e plano urbanístico no direito português. In: DALLARI, Adilson Abreu
e DI SARNO, Daniela Campos Libório (coords.) Direito Urbanístico e Ambiental. Belo Horizonte: Editora Fórum,
2007, p. 405.
23 CORREIA, Fernando Alves. Manual de Direito do Urbanismo. Coimbra: Almedina, 2001, p. 341.
24 Embora a jurisprudência venha admitindo regulamentação via decreto: “ADMINISTRATIVO. HORÁRIO DE
FUNCIONAMENTO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL. LIMITAÇÃO. POSSIBILIDADE. 1. Prevendo o Decreto
040/05 do Município de Santa Maria que o funcionamento de estabelecimentos comerciais no horário da
madrugada deve ser precedido de estudo de impacto de vizinhança, é dado ao Município, no exercício do seu
poder de polícia, vedar o funcionamento de estabelecimento neste período se o estudo assim recomendar. 2.
AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.” (TJRS. Agravo de Instrumento nº 70.014.612.550, Quarta Câmara
Cível, Relator Des. Araken de Assis, julgado em 28/06/2006).
25 Inúmeros trabalhos acadêmicos têm chamado atenção para este viés. Sandra Cureau, Subprocuradora-Geral
da República e coordenadora da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF (Meio Ambiente e Patrimônio
Cultural), conclui, entre outras coisas, que: “(...) 5. Devido ao grau de participação social ainda insuficiente e à
deficiência dos estudos sobre o chamado meio sociocultural, as condições socioambientais e econômicas não
estão sendo repostas, em muitos casos, de modo a permitir a reprodução do meio e do modo de vida dessas
populações; 6. os estudos ambientais são insuficientes e falhos. Para a questão social, é fundamental que, além
das metodologias quantitativas, sejam empregados métodos qualitativos e participativos; 7. como os diagnós-
ticos têm sido falhos, a identificação e a avaliação de impactos socioculturais também têm sido deficientes e as
propostas de medidas mitigadoras insuficientes (...)” (CUREAU, Sandra. A deficiência de avaliação do chamado
meio sociocultural, nos estudos de impacto ambiental, e suas conseqüências para as a comunidades afetadas
pelas grandes obras. In: GALLI, Alessandra (coord.) Direito Socioambiental. Vol. 1. Curitiba: Juruá, 2010, p. 394).
26 “Artigo 6º - O estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as seguintes atividades técnicas:
I - Diagnóstico ambiental da área de influência do projeto completa descrição e análise dos recursos ambientais
e suas interações, tal como existem, de modo a caracterizar a situação ambiental da área, antes da implantação
do projeto, considerando:
c) o meio sócio-econômico - o uso e ocupação do solo, os usos da água e a sócio-economia, destacando os sítios
e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade
local, os recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos.”
27 DALLARI, Adilson Abreu. Instrumentos da Política Urbana. In: Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal
10.257/2001). 2ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 84-85.
28 “Art. 10 - O procedimento de licenciamento ambiental obedecerá às seguintes etapas:
§ 1º - No procedimento de licenciamento ambiental deverá constar, obrigatoriamente, a certidão da Prefeitura Mu-
nicipal, declarando que o local e o tipo de empreendimento ou atividade estão em conformidade com a legislação
aplicável ao uso e ocupação do solo e, quando for o caso, a autorização para supressão de vegetação e a outorga
para o uso da água, emitidas pelos órgãos competentes”

1114
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

29 Cinhese Staff and Workers Association v. City of New York, 68 N.Y.2d 359,363 (1986). Conferir: BELTRÃO,
Antonio Figueiredo Guerra. Estudo de Impacto Ambiental (EIV) e Estudo de Impacto de Vizinhança. In: AHMED,
Flávio (org.). Cidades Sustentáveis no Brasil e sua Tutela Jurídica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, p. 78.
30 “A não vinculatividade do Poder Público deve-se ao fato de que o EIA não oferece uma resposta objetiva
e simples acerca dos prejuízos ambientais que uma determinada obra ou atividade possa causar” (FIORILLO,
Celso Antonio Pacheco e RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito Ambiental e Legislação Aplicável. São
Paulo: Max Limonad, 1997, p. 212).
31 O conceito é veiculado no presente trabalho na acepção que lhe deu Peter Häberle: “Colocado no tempo, o
processo de interpretação é infinito, o constitucionalista é apenas um mediador (Zwischenträger). O resultado
de sua interpretação está submetido à reserva da consistência (Vorbehalt der Bewährung), devendo ela, no
caso singular, mostrar-se adequada e apta a fornecer justificativas diversas e variadas, ou ainda, submeter-se
a mudanças mediante alternativas racionais.” (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta
dos intérpretes da Constituição. Porto Alegre: Fabris, 1997, p. 42).
32 MENCIO, Mariana. A influência do Estudo de Impacto de Vizinhança na expedição da licença urbanística para
construção de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente ur-
bano. In: PIRES, Luís Manuel Fonseca et alli. Estudos de Direito Urbanístico. Vol 1. São Paulo: Editor Cetras
Jurídicas, 2006, p. 88.
33 MUKAI, Toshio. Direito urbano e ambiental. 3ª edição. Belo Horizonte: editora Fórum, 2006, p. 346.
34 “EMENTA: Licença de construção – Revogação. Fere o direito adquirido a revogação de licença de construção
por motivo de conveniência, quando a obra já foi iniciada. Em tais casos, não se atingem apenas faculdades
jurídicas – o denominado ‘direito de construir’ – que integram o conteúdo do direito de propriedade, mas se
viola o direito de propriedade que o dono do solo adquiriu com relação ao que já foi construído, com base na
autorização válida do Poder Público. Há, portanto, em tais hipóteses, inequívoco direito adquirido, nos termos
da Súmula 473” (STF. RE 85.002-SP. Rel. Min. Moreira Alves. RTJ 79/1016).
35 “EMENTA: Direito de construir - Mera faculdade do proprietário, cujo exercício depende de autorização do
Estado - Inexistência de direito adquirido à edificação anteriormente licenciada, mas nem sequer iniciada, se
supervenientemente foram editadas regras novas, de ordem pública, alterando o gabarito para construção no
local. (...) a licença anteriormente concedida não está imune à superveniência de regras novas editadas no
interesse público, alterando o gabarito para a construção no local” (STF. Agravo Regimental em Agravo de
Instrumento 135.464-0/RJ. Relator: Ministro Ilmar Galvão. Julgamento: 05 de maio de 1992)
36 Quanto às demais Cortes de Justiça: “subsiste a licença de estabelecimento comercial dada anteriormente
à declaração de zona residencial” (RDA 114:287). Da mesma forma, no Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo: “EMENTA: Zoneamento - Estabelecimento industrial para exploração de pedreira regularmente licen-
ciado pela municipalidade - Lei posterior doMunicípio alterando o zoneamento da cidade - Não pode o Poder
Público, ‘manu militari’, interromper o funcionamento de estabelecimento industrial, regularmente licenciado
de acordo com os usos conformes, sob pena de se ferir direito adquirido (...) não há dúvida de que o interesse
público deve prevalecer sobre o particular, mas também é manifesto que aquele não pode ser sacrificar, ar-
bitrariamente, o direito do particular (...) se a Prefeitura pretender a imediata cessação de qualquer atividade
desconforme, mas com pré-ocupação da zona, deverá indenizar cabalmente o seu exercente, amigavelmente
ou mediante desapropriação” (RT 548:232 e ss.).
37 “Administrativo. Licença para construir deferida pela autoridade municipal. Restrição superveniente da
legislação estadual. Obra ainda não iniciada. Se a obra ainda não foi iniciada, a restrição é válida. Precedentes
do Supremo Tribunal Federal. Recurso Especial não conhecido.” (STJ – Segunda turma. Resp. n. 103.298/PR.
Rel. Min. Ari Pargendler. Data do Julgamento: 17.11.1998).
38 SILVA, Carlos Medeiros. Parecer: ‘Licença para Construir – Ato Administrativo – Revogação – Ilegalidade e Ino-
portunidade – Modificação da Jurisprudência Administrativa – Respeito às Situações Constituídas’. RDA, 109, p. 269.
39 “CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO JUDICIAL. TERCEIRO.
CABIMENTO. SÚMULA Nº 202 DO STJ. SENTENÇA QUE JULGOU PROCEDENTE AÇÃO CIVIL PÚBLICA DECLA-
RANDO NULAS AS LEIS MUNICIPAIS Nºs.5389/2010 E 5.391/2010, QUE ALTERARAM A LEI Nº 3.253/1992, QUE
DISPõE SOBRE O ZONEAMENTO, PARCELAMENTO, USO E OCUPAÇÃO DO SOLO URBANO DO MUNICÍPIO
DE SÃO LUIS, POR AUSêNCIA DE ESTUDOS TÉCNICOS, DE PUBLICIDADE, DE TRANSPARêNCIA E DE PAR-
TICIPAÇÃO POPULAR EM SEUS PROCESSOS LEGISLATIVOS, RECONHECENDO INCIDENTALMENTE OFENSA
À CF, E CONTRARIEDADE AO ESTATUTO DA CIDADE (LEI FEDERAL Nº 10.257/2001) E À LEI MUNICIPAL Nº
4.669/2006, QUE DISCIPLINA O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE SÃO LUIS. LEIS DE EFEITOS CONCRETOS.
ALEGAÇÃO DE INADEQUAÇÃO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SENTENÇA QUE AFETA A ESFERA JURÍDICA DE
TERCEIROS, DECLARANDO NULOS OS ATOS PRATICADOS SOB A ÉGIDE DAS DITAS LEIS, ALCANÇANDO
OS ALVARÁS DE CONSTRUÇÃO JÁ CONCEDIDOS ÀS EMPRESAS CONSTRUTORAS COM OBRAS EM ANDA-
MENTO E A COMERCIALIZAÇÃO DE IMÓVEIS. VIOLAÇÃO AO PRINCÍCIO DA SEGURANÇA JURÍDICA.” (TJMA.
Câmaras Cíveis Reunidas. Mandado de Segurança n. 29167/2012. Relator: Des. Jamil de Miranda Gedeon Neto.
Julgamento: 05/04/2013).

1115
40 SILVA, J. A. Op. cit., p. 448.
41 SILVA, Idem, p. 449.
42 SILVA, J. A. Idem, p. 450.
43 SUNDFELD, C. A. Op. Cit., p. 76.
44 Referimo-nos, especificamente, aos casos da Boate Kiss, em Santa Maria (RS) e do prédio em obras da
Avenida Mateo Bei, em São Paulo (SP), os quais ganharem a mídia nacional no ano de 2013 e trouxeram
novamente à baila o tema do licenciamento e do controle/fiscalização das edificações.
45 SUNDFELD, C. A Idem, p. 78.
46 “O embargo da obra pela Prefeitura deve ser precedido de notificação da fiscalização para a devida correção
das irregularidades verificadas, e se não foram corrigidas nas condições e prazos estabelecidos justifica-se a
interdição dos trabalhos por meios diretos do próprio Município, e até emprego de força policial requisitada,
se houver resistência do embargado” (MEIRELLES, H. L. Op. cit., p. 458).
47 MUKAI, T. Op. cit., p. 390.
48 SUNDFELD, C. A. Op. Cit., p. 83.
49 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 26-28.
50 “Em se tratando de obra licenciada, a ordem de demolição somente será expedida após processo regular,
com direito de defesa, no qual se desconstitua a licença (por anulação ou cassação) e, não sendo efetuada
a demolição pelo próprio interessado, caberá a demolição compulsória.” (MUKAI, Toshio. Op. cit., p. 389.)
51 OLIVEIRA, J. R. P. Op. Cit., p. 485.
52 “DIREITO ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA DE PRECEITO COMINATÓRIO.
PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA QUE SE CONFUNDE COM O MÉRITO DA AÇÃO. APRECIAÇÃO
CONJUNTA. RECURSO REFERENTE À POSSIBILIDADE DE SE DEMOLIR OU NÃO ÁREA DE 1 M2 (UM METRO
QUADRADO) QUE NÃO OBEDECE AO RECUO FRONTAL ExIGIDO PELO PODER PÚBLICO. INADMISSIBILIDADE.
OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. PREJUÍZOS DO APELADO SUPERIORES AOS BENEFÍCIOS
A SEREM OBTIDOS PELA COLETIVIDADE. PRELIMINAR REJEITADA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. RECURSO
CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. Considerando-se que a preliminar de nulidade da sentença se confunde
com o mérito da ação, deve ser apreciada conjuntamente com ele. 2. Não há que se falar em demolição
de construção que avança 1 m2 (um metro quadrado) sobre área de recuo frontal desde que ine-
xista dano ambiental, bem como risco à segurança ou à saúde de terceiros e que o prejuízo do
proprietário do imóvel seja em muito superior ao benefício obtido pela coletividade. Aplicação do
princípio da proporcionalidade.” (TJPR - 5ª C.Cível - AC - 593800-9 - Foro Central da Comarca da Região
Metropolitana de Curitiba - Rel.: José Marcos de Moura - Unânime - J. 22.03.2011)
53 “(...) após um certo lapso de tempo, diante de determinadas circunstâncias fáticas e jurídicas, há a esta-
bilização do vício – ou seja, o que era um ato inválido passa a ser ato irregular – e a conversão do dever de
invalidar em dever de sanar – quer dizer, o sistema exigia a edição de um ato invalidante, mas passa a exigir a
edição de um ato redutor, convertedor ou convalidante (...)” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios
do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 452).
54 “Art. 47. Para efeitos da regularização fundiária de assentamentos urbanos, consideram-se:
(...)
VII – regularização fundiária de interesse social: regularização fundiária de assentamentos irregulares ocupados,
predominantemente, por população de baixa renda, nos casos:
a) em que a área esteja ocupada, de forma mansa e pacífica, há, pelo menos, 5 (cinco) anos;
b) de imóveis situados em ZEIS; ou
c) de áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios declaradas de interesse para implantação
de projetos de regularização fundiária de interesse social”
55 “RECURSO ESPECIAL. DIREITO URBANÍSTICO. LOTEAMENTO IRREGULAR. MUNICÍPIO. PODER-DEVER
DE REGULARIZAÇÃO. (...) 4. A ressalva do § 5º do art. 40 da Lei 6.766/99, introduzida pela Lei n. 9.785/99,
possibilitou a regularização de loteamento pelo Município sem atenção aos parâmetros urbanísticos para a
zona, originariamente estabelecidos. Consoante a doutrina do tema, há que se distinguir as exigências para a
implantação de loteamento das exigências para sua regularização. Na implantação de loteamento nada pode
deixar de ser exigido e executado pelo loteador, seja ele a Administração Pública ou o particular. Na regularização
de loteamento já implantado, a lei municipal pode dispensar algumas exigências quando a regularização for
feita pelo município. A ressalva somente veio convalidar esse procedimento, dado que já ratificado pelo Poder
Público. Assim, com dita ressalva, restou possível a regularização de loteamento sem atenção aos parâmetros
urbanísticos para a zona. Observe-se que o legislador, no caso de regularização de loteamento pelo município,
podia determinar a observância dos padrões urbanísticos e de ocupação do solo, mas não o fez. Se assim foi,
há de entender-se que não desejou de outro modo mercê de o interesse público restar satisfeito com uma
regularização mais simples. Dita exceção não se aplica ao regularizador particular. Esse, para regularizar o
loteamento, há de atender a legislação vigente. 5. O Município tem o poder-dever de agir para que o loteamento
urbano irregular passe a atender o regulamento específico para a sua constituição. 6. Se ao Município é imposta,

1116
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ex lege, a obrigação de fazer, procede a pretensão deduzida na ação civil pública, cujo escopo é exatamente a
imputação do facere, às expensas do violador da norma urbanístico-ambiental. 5. Recurso especial provido.”
(STJ. Recurso Especial n. 448216/SP, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma. Julgado em 14/03/2003).
56 Para conclusões do mesmo teor a que chegou a pesquisa nacional conduzida pela Rede de Avaliação e
Capacitação para a Implementação dos Planos Diretores Participativos, vide: JÚNIOR, Orlando Alves dos Santos;
MONTANDON, Daniel Todtmann (Orgs.). Os Planos Diretores Municipais Pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico
e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2011.
57 Esse risco foi reconhecido pelo Ministério das Cidades e recebeu uma investida sistemática, porém incipiente,
na Portaria n. 317, de 19 de julho de 2013, a qual buscou regulamentar, em sua própria redação, “medidas e
procedimentos a serem adotados nos casos de deslocamentos involuntários de famílias de seu local de moradia
ou de exercício de suas atividades econômicas, provocados pela execução de programa e ações, sob gestão
do Ministério das Cidades, inseridos no Programa de Aceleração do Crescimento”.

1117
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Perversão de instrumentos
urbanísticos em prol dos megaeventos
esportivos: o financiamento das obras
na Arena da Baixada
Júlia A. Franzoni1
Rosangela M. Luft2

INTRODUÇÃO

A negociação de potencial construtivo, ou de qualquer título jurídico


que tenha por objeto a alienação de “direito de construir” ou de “solo cria-
do”, não pode ser tratada independentemente dos regramentos estabeleci-
dos no planejamento urbano municipal e nas normativas nacionais sobre
o tema, pois esses instrumentos integram um mesmo sistema regulatório.
A política urbana foi disciplinada na Constituição Federal em duas par-
tes principais: na fixação das competências constitucionais e em capítulo
específico (Título VII, Capítulo II). No que diz respeito ao exercício das
competências legislativas em questões de política urbana, a Constituição
Federal instituiu que se trata de atribuição em que concorrem a União,
os Estados (art. 24, I) e os Municípios (art. 30, I e VIII). Cabe à União esta-
belecer as normas gerais; os Estados suplementarem a norma nacional
naquilo que for de interesse regional, sobretudo quando se tratar de re-
gião metropolitana e aglomeração urbana (art. 25, §3º); e os Municípios
tratarem dos aspectos de interesse local (art. 30, I, II e VIII).
O segundo âmbito de regulação constitucional está presente nos artigos
182 e 183 da Constituição, dentro do capítulo designado Política Urbana.
Entre 1998 e 2001 a política urbana estava na dependência da fixação das
normas gerais de competência da União, consoante estabelece o art. 182,
caput. No referido período, vez que os Municípios detinham competência

1119
concorrente a respeito do tema, eles podiam criar e regulamentar instru-
mentos urbanísticos com certa liberdade.
Suprindo o vácuo legislativo federal sobre a matéria, em 10 de julho de
2001 foi promulgada a lei nacional nº 10.257/2001, o Estatuto da Cidade,
que dispõe sobre as “normas gerais” de política urbana. Desde então, nos
três níveis federativos este tema passou a ter que observar e ao mesmo
tempo se adaptar, aos critérios legais presentes tanto na Constituição
Federal, quanto nas normas do Estatuto da Cidade. Essa condicionante
implica que todos os instrumentos urbanísticos consolidados em período
anterior ao Estatuto, caso contrariem suas diretrizes, serão considerados
revogados, tendo em vista os mecanismos de direito intertemporal do
sistema jurídico brasileiro, salvo as garantias relativas ao ato jurídico
perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada (Decreto-Lei n. 4.657/42).
A partir desses marcos regulatórios federais – Constituição Federal e
Estatuto da Cidade as características norteadoras da política urbana são:

A política urbana municipal passa a ser integralmente fundada


no Plano Diretor, pois segundo prevê o art. 182, §1º, ele é “o
instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão
urbana”. Tal previsão gera uma primazia normativa da lei do
plano diretor em relação às demais leis urbanísticas. Ainda que
formalmente as leis urbanísticas municipais costumem adotar a
mesma forma de aprovação que a lei do plano – lei complementar
ou lei ordinária3 – deve sempre ser observada essa preferência
material entre a lei do plano e as demais legislações municipais
de política urbana;
O planejamento urbano passa a determinar o conteúdo da
função social da propriedade (art. 182, §2º, CF). Ou seja, os
atributos dos proprietários de imóveis urbanos previstos no art.
1228 do Código Civil – usar, gozar, dispor e reaver o bem – não são
uma mera faculdade do titular, mas passam a ter seu conteúdo
conformado pelas leis urbanísticas;
O princípio da justa distribuição dos benefícios e ônus do
processo de urbanização previsto no art. 2º, Ix do Estatuto
da Cidade funda uma nova lógica de uso e ocupação de bens
públicos e privados. Isso implica que nas cidades, quem exerce
suas atividades de maneira mais impactante que os demais ci-
dadãos, deve compensar esse plus coletivamente. Essa primeira
hipótese se aplica aos casos de empreendimentos e edificações
que gerem mais adensamento, mais circulação de pessoas, cujo
uso seja mais nocivo ao ambiente ou que produzam outro efeito
que impacte sobre a coletividade. Em contrapartida, quem sofre
restrições especiais em sua propriedade em prol da cidade, deve

1120
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ter uma compensação em função deste ônus. Exemplo desta


segunda hipótese são os imóveis que sofrem restrição no uso
– comparativamente aos demais imóveis vizinhos – para fins
de proteção do patrimônio histórico ou por questão ambiental;
A venda ou a transferência do direito de construir, assim como
os demais instrumentos urbanísticos regulados pelo Estatuto da
Cidade ou por outras leis nacionais, passam a ter regras espe-
cíficas de operação e de aplicação. Elas devem se enquadrar
obrigatoriamente nas normas dos instrumentos previstos pelo
Estatuto da Cidade, que são a outorga onerosa do direito de cons-
truir (ou solo criado)4 e a transferência do direito de construir, os
quais dependem obrigatoriamente de previsão no plano diretor
municipal e regulamentação por lei específica (art. 42, II EC).

Toda sistemática nacional deverá, portanto, ser tida como premissa


normativa no âmbito municipal quando for realizado o planejamento ur-
bano ou utilizado algum instrumento jurídico-urbanístico. Os Municípios,
por questões de constitucionalidade e de legalidade, devem necessaria-
mente respeitar as normas nacionais, eles não podem regular localmente
instrumentos urbanísticos que desrespeitem ou sejam incompatíveis com
a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade.
Tendo em mente os referidos pressupostos, trataremos aqui do caso
das reformas no Estádio Joaquim Américo em Curitiba, onde, contraria-
mente à sistemática jurídico-urbanística aludida, estão sendo utilizadas as
verbas do instrumento outorga onerosa do direito de construir para
financiar e garantir as obras em estádio privado. Mas antes de tratarmos
especificamente do uso deturpado do instrumento, vamos descrever o
histórico do caso em análise, bem como da engenharia financeira adotada.

1. O CASO DO ESTáDIO JOAqUIM AMéRICO:


hISTóRICO E ENGENhARIA FINANCEIRA5

Em janeiro de 2010 foi firmado um acordo de Matriz de Responsabi-


lidades em razão da Copa do Mundo de 2014, entre a União, o Governo
do Estado do Paraná e a Prefeitura de Curitiba, na qual foram definidas
as competências de cada ente. Intervenções em portos e aeroportos fi-
caram a cargo da União, porquanto intervenções de mobilidade urbana,

1121
nos Estádios e seus entornos, nos terminais turísticos, nas adjacências
dos aeroportos e portos ficariam a cargo do Estado do Paraná e da Pre-
feitura de Curitiba6.
Considerando que em Curitiba optou-se por um estádio privado para
sediar os jogos da Copa do Mundo 2014, o Estádio Joaquim Américo co-
nhecido como “Arena da Baixada”, foi firmado, consequentemente, um
Termo de Compromisso. Neste, figuraram os entes públicos que acordaram
a Matriz de Responsabilidades (Estado do Paraná e Município de Curitiba)
e o presidente do Clube Atlético Paranaense, clube detentor do estádio.
No “Anexo I” da Matriz de Responsabilidade, foi apresentada uma tabela
(Anexo B – Estádio/Arena) na qual se coloca que a reforma e ampliação do
Estádio Joaquim Américo se daria com recursos do próprio Clube Atlético
Paranaense e da União, via BNDES.
Diante disso, em setembro do mesmo ano, foi estabelecido o Convênio
19.275 entre o Estado do Paraná, a Prefeitura de Curitiba (que intervinha
através do IPPUC), e o Clube Atlético Paranaense, para a adequação do
estádio Joaquim Américo às condições impostas pela FIFA.
No Convênio 19.275 ficou estabelecido, por sua vez, que cada parte
seria responsável por 1/3 do valor estimado para execução da obra, o
que significou à época um valor equivalente a 45 milhões para cada parte
e um limite global de 130 milhões. Ressalta-se que na cota parte do Clube
Atlético Paranaense estavam incluídos os incentivos fiscais e os projetos
de obras executados e pagos pelo Clube antes de firmar o Convênio; o
que mascarou, em certa medida, que o valor a ser pago pelo Clube seria
efetivamente menor em relação aos entes públicos.7
O Convênio também determinou que o Estado do Paraná não repas-
sasse de forma direta o valor equivalente a sua cota parte para as obras
do estádio, de forma que os 45 milhões de reais devidos por ele seriam
destinados para obras conjuntas com o município em demais projetos,
medidas e programas relacionados à Copa do Mundo de 2014.8 Dessa
maneira, seria o Município de Curitiba quem ficaria responsável direta-
mente por 2/3, ou seja, 90 milhões em recursos para a reforma da Arena
da Baixada.9

1122
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

As contrapartidas previstas para Clube Atlético Paranaense, frente a


esses investimentos dos entes públicos, seriam:

Intensificação da parceria existente relativa às Escolinhas do


Atlético Paranaense, em especial em áreas carentes;
Cedência, pelo período de 5 (cinco) anos após o encerramento da
Copa do Mundo, de um espaço junto à sua Sede Administrativa
correspondente a 50% do total da área da Sede, para instalar área
da Secretaria Municipal de Esporte e Lazer;
Cedência, pelo período de 50 (cinqüenta) meses a partir da assi-
natura do convênio, de espaços para a realização de eventos de
interesse do ESTADO e/ou do MUNICÍPIO, compatíveis com o
espaço já existente, e sem qualquer utilização dos espaços desti-
nados à prática do futebol e de seus meios para treinamento, sem
ônus, ressalvado o reembolso de despesas tais como iluminação,
segurança e limpeza (considerando que o convênio foi assinado em
setembro de 2010 e imaginando que as obras acabem em março
de 2014, a contrapartida seria utilizada somente de março de 2014
a novembro de 2014);
Viabilização de espaço para a instalação de quiosques dos pro-
gramas “LEVE CURITIBA” e “FEITO AQUI PARANÁ”, como forma
de apoiar o artesanato local;
Manutenção da parceria com o Instituto Municipal de Turismo
quanto ao espaço para o ponto de parada da Linha Turismo na
Arena do CAP;
Cedência, sem ônus, de dois camarotes na Arena do CAP, sendo
um para o MUNICÍPIO e outro para o ESTADO, para o desenvolvi-
mento de programas e eventos de interesse municipal e estadual,
pelo período de 50 (cinquenta) meses a partir da assinatura do
convênio (mesmo caso do item c); e
Realização, ao final do ano, de um evento das escolinhas de fute-
bol do Clube, do qual participem os alunos das escolas parceiras.

Percebe-se que nenhuma das contrapartidas previstas para o Clube


Atlético Paranaense significa o dispêndio de recursos na mesma propor-
ção dos entes públicos, de forma que, seria um equívoco chamá-las de
“contrapartidas”.
A estratégia que o poder público municipal encontrou para repassar
valores ao Clube foi através da instituição de títulos de potencial cons-
trutivo em nome do Atlético Paranaense, resolvendo que do valor total
de 90 milhões de reais, 45 milhões poderiam ser destinados à constru-
tora responsável pela obra e 45 milhões seriam dados em garantia em
um possível empréstimo realizado junto ao Fundo de Desenvolvimento
Econômico do Estado do Paraná,10 ou ainda, os 90 milhões de reais po-

1123
deriam ser repassados integralmente como remuneração da construtora
selecionada para a obra.11
Para que essa estratégia pudesse se concretizar, em novembro de 2010,
foi publicada a Lei Municipal 13.620, que instituía o potencial construtivo
relativo ao estádio Joaquim Américo. No mesmo sentido, foi aprovada
a Lei Estadual 16.733, que permite que o Tesouro do Estado, através do
Fundo de Desenvolvimento Econômico – FDE, apoiasse financeiramente
o Projeto de reforma e ampliação do estádio Joaquim Américo, embasado
no interesse público e coletivo que este envolveria (o que se questiona por
se tratar de investimento em bem privado, vinculado a contrapartidas de
caráter público-social duvidoso).
Com a atualização dos custos das obras, foram firmados o Termo
Aditivo à Matriz de Responsabilidade e os Termos Aditivos ao Convênio
celebrado por Estado, Município e Atlético, em que se apontou o novo
valor do projeto em um total de 234 milhões de reais – valor a ser repartido
igualmente entre os três entes responsáveis.
Em agosto de 2011 ocorreu o primeiro repasse de verbas por parte do
Estado do Paraná para a Prefeitura no valor de 7 milhões de reais, sem
que as obrigações da Cláusula 1º, §2 do Convênio – melhoria na drenagem
das bacias do rio Água Verde e desapropriação dos imóveis em torno do
Estádio – tivessem sido cumpridas.
No intuito de viabilizar a recepção dos recursos da Prefeitura através
do potencial construtivo, foi criada ainda em agosto do mesmo ano pelos
conselheiros do Clube Atlético Paranaense uma Sociedade de Propósito
Específico, a CAP S/A ARENA DOS PARANAENSES, com participação
acionária total do clube.
Apenas em dezembro é que foi publicado o Decreto Municipal
1.957/2011, que decretou de interesse público os imóveis do entorno da
Arena da Baixada, cumprindo-se o primeiro passo para as desapropriações,
conforme exigia o Convênio 19.275.
Em abril de 2012 foi lançado o relatório número 1 da Comissão de
Fiscalização Copa de 2014 do Tribunal de Contas do Estado Paraná. O Tri-

1124
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

bunal através do relatório apontou irregularidades, a falta de transparência


e objetividade nos dados apresentados, especialmente no que concerne
às obras no Estádio Joaquim Américo, que resultaram numa série de re-
comendações, dentre elas: que as partes dessem efetividade às obrigações
estabelecidas no Convênio 19.275 atentando a como seria feita a fiscalização
dos recursos a serem repassados e a prestação de contas; formalização e
publicação de qualquer alteração dos contratos por meio de termos aditivos;
a reavaliação das obrigações que caberiam ao Clube Atlético Paranaense.
Seguido desse relatório, em maio do mesmo ano, foi editado o Decreto
Municipal n. 826/2012, que regulamentava a Lei Municipal 13.620. Esse
decreto estabeleceu que o potencial construtivo transferível ao Programa
Especial da Copa do Mundo FIFA 2014, corresponderá a 60.000 cotas de
1,00 m² cada uma. Como havia sido mencionada, a estratégia que o poder
público municipal encontrou para transferir recursos para as obras na
Arena foi a criação de títulos de potencial construtivo. Esse instrumento
de política urbana é regulado por lei específica, Lei Municipal 9.803/00,
pelo Plano Diretor da cidade, Lei Municipal 11.266/04, e pela Lei de Zo-
neamento Urbano, Lei Municipal 9.800/00. Vale ressaltar, no entanto,
que os indicadores utilizados nos anexos do Decreto não são os mesmos
estabelecidos na Lei de Zoneamento Urbano (ver tabela ao final), além
de não respeitarem outras disposições das leis regulamentadoras e as
destinações específicas a que esse instrumento deve respeito, conforme
disposto do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) – Lei Federal que dispõem
sobre as normas gerais dos instrumentos de política urbana.
A instituição de novas normas e as alterações legislativas, no entanto,
não pararam por aí. Em junho foi publicado o Decreto Estadual 4.913/12,
que criou um comitê de gestão e acompanhamento das ações do FDE
com relação à Copa, denominado “Comitê de Financiamento da Copa”;
lembrando que parte do FDE havia sido dada em garantia do empréstimo
do BNDES para a realização das obras no Estádio Joaquim Américo.
No mesmo sentido, ainda em junho, publicou-se a Lei Estadual
17.206/12 que autoriza o Poder Executivo a contratar operação de cré-

1125
dito junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
– BNDES, até o montante de R$ 138.450.000,00 a ser aportado no Fundo
de Desenvolvimento Econômico – FDE, sendo que este valor deverá ser
utilizado exclusivamente para reforma e ampliação do Estádio (art. 1º).
Em seguida, foi firmado novo Termo Aditivo ao Convênio 19.275, que
determinava, principalmente, que o CAP até dezembro de 2014 entregasse
à prefeitura de Curitiba imóveis com valor equivalente aos desapropriados
em torno do Estádio para sua ampliação.
Nesse meio tempo, tem-se o lançamento do relatório número 2 da
Comissão de Fiscalização da Copa de 2014 do TCE, que buscou verificar
as providências cumpridas pelos atores envolvidos, conforme determinado
no relatório número 1.
Em agosto veio o relatório número 3 da Comissão, cujo escopo era
verificar a execução dos projetos e obras relacionadas ao megaevento
tendo como base o estabelecido na Matriz de Responsabilidades para
cada ente federativo.
No mês de novembro, o órgão pleno do Tribunal de Contas do
Estado julgou questão referente à natureza jurídica dos recursos
transferidos por meio de potencial construtivo, decidindo que se tra-
tava de recursos públicos.
Em dezembro, na última sessão da Câmara Municipal sob antiga ges-
tão da Prefeitura de Curitiba, foi aprovada a Lei Municipal 14.219/12, que
alterava dispositivos da Lei 13.620/10, aumentando o valor máximo para
concessão de potencial construtivo ao estádio para R$ 123.066.666,67.
Além de estabelecer que o CAP teria que dar as contrapartidas sociais ao
Município por receber tal crédito, sem, contudo, especificá-las.
O primeiro acontecimento referente ao caso relatado no ano de 2013
foi o repasse de recursos financeiros pelo Governo do Estado do Paraná
à CAP S/A, por meio de financiamento via FDE, sem cumprir todas as
determinações estabelecidas pelo Tribunal de Contas do Estado.
Em 26 de junho de 2013 foi publicado o Decreto Municipal n. 985/2013,
que “dispõe sobre a forma de pagamento das cotas oriundas da concessão

1126
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do incentivo instituído pela Lei Municipal n.º 13.620, de 4 de novembro


de 2010”. Este decreto não esclarece quem vai efetuar a venda dos títu-
los de potencial construtivo, mas em seu artigo 1º prevê que: os valores
arrecadados serão recolhidos em conta bancária vinculada, em nome do
Município de Curitiba. Isto demonstra de que a venda deste potencial con-
tinuará sendo realizada pela Prefeitura e não transferida ao CAP. A verba
é que será direcionada ao pagamento das obras. No mesmo decreto foi
inserida tabela com a relação de algumas das zonas e setores da cidade
e respectivos potenciais de construção – coeficiente de aproveitamento
básico (COEF) e máximo (COEF. MÁx).
O esquema abaixo representa sinteticamente a engenharia financeira
adotada para o financiamento das obras:

A complexidade da engenharia financeira e urbanística utilizada neste


caso, levou a uma séria de confusões a respeito da natureza jurídica deste
potencial construtivo e da sua adequação ao ordenamento urbanístico.

1127
Chegou-se até a afirmar que se tratava de um novo instituto criado pelo
Município de Curitiba. Iremos debater em detalhes este tema para de-
monstrar que não se trata de um novo instrumento urbanístico, mas sim
do desvirtuamento da outorga onerosa do direito de construir.

2. INSTRUMENTOS URBANÍSTICOS
RELATIVOS AO DIREITO DE CONSTRUIR:
TRANSFERÊNCIA E OUTORGA ONEROSA

No caso da cessão de potencial construtivo para custear a reforma do


Estádio Joaquim Américo são perpetradas confusões entre os instrumen-
tos da transferência do potencial construtivo e da outorga onerosa
do direito de construir ou solo criado. A própria Lei Municipal nº
13.620/2010 que autorizou o uso do potencial construtivo em benefício
das obras no Estádio Joaquim Américo utiliza de modo confuso e equivo-
cado a expressão transferência de potencial construtivo em seus artigos
5º e 6º12, assim como o faz seu decreto regulamentador (nº 826/2012)13 e
várias outras leis e regulamentos do Município de Curitiba. Argumenta-se,
inclusive, nas decisões do Tribunal de Constas do Estado do Paraná (TCE/
PR)14 que no caso da Arena teria sido criado um terceiro instrumento jurí-
dico. Cabe, portanto, analisar os dois instrumentos do Estatuto da Cidade
para dirimir estes conflitos e verificar que não é compatível com o sistema
jurídico este que intitulam ser um “novo instrumento”.

2.1 Transferência do direito de construir

Ambos os instrumentos, a transferência e a outorga, giram em torno do


direito de construir. Os dois, também, podem envolver uma negociação
onerosa. No entanto, como o Estatuto da Cidade chama o solo criado de
“outorga onerosa”, usamos a expressão apenas para esse último instru-
mento. A lógica que os move é o já citado princípio da justa distribuição
dos benefícios e ônus do processo de urbanização.

1128
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A legislação municipal de zoneamento de uso e ocupação do solo urba-


no tem, por metodologia, a segmentação do perímetro urbano municipal
em diferentes zonas e/ou setores. Para cada uma destas zonas ou setores
são fixados critérios equânimes de uso e ocupação do solo, como,
por exemplo, tipos de uso, taxas de ocupação, taxas de permeabilidade,
metragens de afastamento, coeficientes de aproveitamento etc.
A justa distribuição dos benefícios e ônus deve ser avaliada a partir de
delimitações territoriais e/ou temáticas específicas. É o que Fernando Cor-
reia denomina “o caráter relativo do conceito de igualdade”, o que implica
que o problema da igualdade “seja circunscrito ao âmbito de um mesmo
plano ou de cada uma das zonas ou sectores em que ele se subdivide e
que a localização dos terrenos na área abrangida por cada um deles e a
sujeição às mesmas regras jurídicas urbanísticas se transformem no critério
de comparação entre as situações jurídicas dos diferentes proprietários”15.
A premissa que move esta normatização é que todos aqueles proprietá-
rios que tiverem um imóvel dentro de uma mesma zona ou setor deverão
ter iguais direitos de uso e ocupação do seu bem, comparativamente aos
demais proprietários de imóveis dentro da mesma zona ou setor. Se hou-
ver tratamento diferenciado entre eles, aquele que sofrer algum prejuízo
ou ônus específico em prol do interesse público deverá ser compensado
e aquele que explorar de maneira mais intensa e impactante seu imóvel,
deverá oferecer uma contrapartida para a cidade.
A transferência do direito de construir se aplica quando algum pro-
prietário, no âmbito de uma zona, sofre compulsoriamente ou assume
voluntariamente algum ônus específico em função de uma demanda
de interesse público. Assim sendo, o uso deste instrumento jurídico se
justifica pelo motivo que gerou um prejuízo especial ao proprietário em
relação ao uso do seu bem. O Estatuto da Cidade delimita quais seriam
os motivos que justificariam o emprego da transferência do direito de
construir. Eles se manifestam quando o imóvel é considerado necessário
para fins de (art. 35 EC):

Implantação de equipamentos urbanos e comunitários;


Preservação, quando o imóvel for considerado de interesse his-

1129
tórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural;
Servir a programas de regularização fundiária, urbanização de
áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de
interesse social.

Em relação a essas três hipóteses, a transferência do direito de cons-


truir poderá ser usada não somente quando forem impostas as condições
ao proprietário em prol das referidas hipóteses de interesse público, mas
também quando ele se dispõe voluntariamente a doar seu bem ao poder
público para as mesmas finalidades.
Ocorrendo alguma das mencionadas situações, faz-se uma análise
comparativa entre o morador específico e os demais moradores da mesma
zona ou setor para dimensionar quanto de direito de construção lhe foi
privado. É essa diferença que permitirá o dimensionamento de quanto de
direito de construção que o proprietário especialmente onerado poderá
transferir. Ou seja, uma vez que o proprietário não pode construir no seu
imóvel ou que ele doa este bem para as hipóteses de interesse público
previstos na lei, o Município lhe confere o direito de construir em outro
imóvel capaz de receber este potencial suplementar de construção – seja
o imóvel do proprietário em si, seja de um terceiro.
O caso da Arena do CAP não se identifica com nenhuma das hipóteses
tratadas, pois o imóvel não está sofrendo nenhuma das restrições referidas
no seu direito de construir. E, ainda, o CAP não irá doar imóvel de sua
titularidade para os fins referidos na lei. Logo, não é caso de transferên-
cia do direito de construir. Ademais, o Clube Atlético Paranaense não
consta da “Relação de imóveis com disponibilidade para transferência”
disponível no site da Secretaria de Urbanismo de Curitiba16.

2.2 Potencial construtivo e as regras da outorga onerosa

O potencial construtivo pode ser definido como a proporção de edifi-


cabilidade estabelecida em lei, dimensionável em metros quadrados, para
o exercício do direito de construir em determinado imóvel. Uma série de

1130
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

critérios da legislação urbanística municipal devem ser combinados para


se estabelecer quando e como se pode construir em cada imóvel urba-
no. Em relação a esse potencial de construção, destaca-se um indicador
fundamental presente nas legislações urbanísticas, que é o coeficiente
de aproveitamento.
A lei conceitua coeficiente de aproveitamento como “a relação entre
a área edificável e a área do terreno”. Em um imóvel, por exemplo, em
que a área do terreno seja de 500m2 e a lei permita construir 750m2, o
coeficiente de aproveitamento será 1.5.
Para o emprego da outorga onerosa do direito de construir, também
denominada solo criado, é necessário que a legislação municipal crie
dois tipos diferentes de coeficiente de aproveitamento para os imóveis,
o coeficiente de aproveitamento básico (CAb) e o coeficiente de
aproveitamento máximo (CAm), este último sempre maior que o pri-
meiro. O CAb é o direito de construir ou o potencial construtivo conferido
a todos os proprietários da área em caráter gratuito. Dito de outro modo,
todo proprietário poderá construir a metragem do CAb sem ter que pagar
pelo direito de construir, basta apenas que o seu projeto de edificação
esteja de acordo com todos os critérios legais estabelecidos para a sua
zona ou setor.
Quando o proprietário quiser construir acima do CAb, mas dentro dos
limites máximos do CAm, ele deverá comprar essa diferença, esta me-
tragem que será construída a mais. Por isto, quando se fala de outorga
onerosa do direito de construir, emprega-se também a expressão “solo
criado”, pois a lei institui a possibilidade de construir acima do limite
básico de construção para a zona ou setor. Luiz Alocchio afirma que “a
figura da criação artificial do solo – em verdade, a adição de mais uma
possibilidade de aproveitamento do potencial construtivo – corresponde
a todo espaço advindo para construção, que sobrepuje uma certa propor-
ção (coeficiente) entre a obra erigida e a área natural do terreno onde se
achará encravada tal edificação”17.
Esse solo criado, montante admitido em lei para construção acima

1131
do CAb, não pertence ao proprietário do imóvel, mas sim ao Município,
razão pela qual é a Prefeitura quem negocia onerosamente este potencial
adicional de construção.
Por isso afirmamos que sempre será outorga onerosa do direito de
construir ou solo criado quando o potencial construtivo utilizado vier
desse “banco de potencial construtivo”18 criado pelas leis municipais
ao diferenciarem o CAb do CAm para setores ou zonas da cidade. A lei
municipal estabelece, portanto, um crédito de potencias de construção
que integram o patrimônio do Município, através dos índices urbanísticos
previamente prescritos.
O emprego do CAm também tem como fundamento o princípio da justa
distribuição dos benefícios e ônus do processo de urbanização. Contudo,
diferentemente da lógica própria à transferência do direito de construir
referida acima, no caso da outorga onerosa do direito de construir o
raciocínio é que aquele que constrói mais do que o coeficiente básico
de aproveitamento, gerando um adensamento superior no local, deverá
compensar coletivamente este seu benefício pessoal.
Uma observação de extrema importância em relação à outorga onerosa
do direito de construir diz respeito à destinação que deve ser dada a essa
contrapartida adimplida pelo proprietário beneficiado – adimplemento este
que não necessariamente precisará ser em dinheiro.
O Estatuto da Cidade estabelece expressamente todas as destinações
que poderão ser empregadas pela municipalidade a este recurso da outorga
onerosa: i) regularização fundiária; ii) execução de programas e projetos
habitacionais de interesse social; iii) constituição de reserva fundiária; iv)
ordenamento e direcionamento da expansão urbana; v) implantação de
equipamentos urbanos e comunitários; vi) criação de espaços públicos de
lazer e áreas verdes; vii) criação de unidades de conservação ou proteção
de outras áreas de interesse ambiental e; viii) proteção de áreas de interesse
histórico, cultural ou paisagístico (artigo 31 c/c 26 do EC).
Esta vinculação legal não ocorre sem motivos. Uma vez que a ou-
torga onerosa do direito de construir gera maior impacto urbanístico em

1132
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

determinado local, a Municipalidade terá maior ônus para cumprir seus


deveres de manter infraestrutura, serviços e equipamentos públicos. Logo,
a receita obtida com a venda do potencial construtivo deve obrigatoria-
mente ser revertida em benefícios coletivos para a cidade.
Desse modo, uma regra específica e fundamental para diferenciar a
transferência do direito de construir da outorga onerosa do direito de
construir (solo criado) é a origem do potencial construtivo, ou seja a
procedência dos metros quadrados que serão utilizados.
Se o potencial de edificação vem de um outro imóvel específico, cujo
proprietário não pode construir a integralidade do coeficiente de aprovei-
tamento básico (CAb) previsto na lei para a sua zona ou setor, ou, ainda,
ele doou imóvel seu para a execução de projeto de interesse público (am-
biental, histórico, de habitação social etc), está-se diante da transferência
do potencial construtivo.
Agora, se a metragem de edificação utilizada vem do “banco geral de
potencial construtivo” do Município, está-se diante de outorga onerosa
do direito de construir, também chamada solo criado ou concessão do
direito de construir. Esse banco de potencial surge da diferença
entre os CAb e os CAm de todas as zonas e setores da cidade nas
quais existam esses dois critérios fixados em lei. Aquilo que for
CAb é dos proprietários dos imóveis. O que se situa acima do CAb
até o limite do CAm é do Município. é esse “banco de potencial
construtivo” que recebeu a qualificação de recurso/bem públi-
co pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná no processo nº
229047/2012 do TCE19.
No caso da Arena do Atlético, consoante trataremos a seguir, o poten-
cial construtivo previsto no convênio, nas leis e nos regulamentos especí-
ficos da Arena seguem a lógica do solo criado. Chega-se a tal conclusão
porque a venda do potencial construtivo para financiar as obras na Arena
somente pode emanar desse banco de potencial construtivo, vez que não
está ocorrendo a transferência de potenciais entre bens. Mas, no episódio
específico da Arena veremos que existem algumas particularidades que
deturpam as regras legais de emprego desse instrumento.

1133
3. OUTORGA ONEROSA DO DIREITO
DE CONSTRUIR NA CIDADE DE CURITIBA

Considerando as premissas e análises feitas nos itens anteriores, cabe


ponderar, neste momento, a regulamentação da outorga onerosa do
direito de construir em Curitiba. Parte-se, inicialmente, da lei básica do
planejamento urbano municipal: o plano diretor.
Nos anos de 2003 e 2004 o Plano Diretor de Curitiba passou por um
amplo processo de revisão e adaptação das suas normas ao Estatuto da
Cidade.20 Em 16/12/2004 foi promulgado o Plano Diretor através da Lei
Municipal Ordinária nº 11.266/2004.
Os artigos 59 e seguintes do Plano Diretor regulamentam a outorga
onerosa do direito de construir21. A lei do plano, na mesma lógica do Es-
tatuto da Cidade, prevê que a este instrumento será aplicado as seguintes
finalidades: i) execução de programas e projetos habitacionais de interesse
social e regularização fundiária; ii) promoção, proteção e preservação
do patrimônio histórico, cultural, natural e ambiental; iii) ordenamento e
direcionamento da ocupação urbana; iv) criação de espaços de uso pú-
blico de lazer e áreas verdes e; v) implantação de equipamentos urbanos
e comunitários (art. 60 PD). O parágrafo 2º do artigo 63 do Plano Diretor
reforça essa vinculação ao prever que “os recursos auferidos deverão ser
utilizados exclusivamente para as finalidades expressas nos incisos
I a V do art. 60 desta lei” (sem grifos no original).
Além disso, o Plano Diretor de Curitiba prevê, no artigo 61, as macro-
zonas onde poderá ser aplicada a outorga onerosa22 e no artigo 62 foram
estabelecidos os acréscimos máximos possíveis àqueles indicados na
legislação de zoneamento23.
A previsão e o emprego da outorga onerosa do direito de construir
deveria ter como consequência lógica a adequação dos coeficientes de
aproveitamento e demais indicadores previstos na lei de zoneamento. Ou
seja, a revisão do plano diretor e a respectiva promulgação da lei deveria
gerar a revisão da legislação urbanística municipal, sobretudo da lei de

1134
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

zoneamento e seus coeficientes de aproveitamento, para permitir o empre-


go do solo criado. Ocorre que essa adequação não ocorreu até o presente
momento e continuam em vigor as leis anteriores24. O artigo 87 do Plano
Diretor de Curitiba estabeleceu prazo de 3 anos para a apresentação dos
novos projetos de lei. Todavia, estamos há quase dez anos de promulgação
da lei do plano diretor e não se tem notícia desses projetos de lei.
Quando vamos analisar a lei de zoneamento de uso e ocupação do
solo de Curitiba, n.º 9800/2000, não encontramos em suas tabelas
a previsão de coeficientes de aproveitamento básico e máximo. Existe
apenas a previsão de “COEF. APROV”. Essa diferenciação de coeficientes
é encontrada em leis esparsas, como as que regulam a transferência do
direito de construir (Lei n.º 9.803/2000) e na lei que cria incentivos para
programas de habitação de interesse social (Lei n.º 9.802/2000), bem
como em decretos esparsos (ex: Decreto n. 985/2013 relativo ao Estádio).
Se confrontarmos as tabelas e os indicadores destas referidas leis e
decretos, iremos nos deparar com uma incongruência de indicadores (ver
tabela ao final). Se compararmos essas mesmas tabelas com a previsão
do artigo 62 do Plano Diretor referido acima, percebemos que não há uma
compatibilização entre diretivas do plano diretor e opções regulatórias das
leis infraplano. As denominações de setores e zonas ora são compatíveis,
ora criam subzonas de zonas, ora criam zonas inéditas. Enfim, as normas
curitibanas são bastante confusas e de difícil compreensão para o gestor
público, o que dirá a um cidadão comum.
Além de toda a dificuldade gerada pela imensa inflação de decretos
e leis não sistematizados de maneira clara e coerente, verificamos que
existem inúmeras leis e decretos municipais posteriores à promulgação
do Plano Diretor de Curitiba, que regulamentam os instrumentos da trans-
ferência e da outorga onerosa do direito de construir, mas sequer fazem
remissão ao Plano Diretor de Curitiba em sua parte introdutória. São
exemplos as leis nº 12.080/2006 (transferência de potencial para Reserva
Particular do Patrimônio Natural Municipal – RPPNM) e nº 12.767/2008
(outorga e transferência de potencial construtivo para os Pólos da Linha

1135
Verde), e os Decretos nº 359/2012 (Dispõe sobre a outorga onerosa para a
concessão de incentivos ao programa especial de governo) e nº 606/2007
(Regulamenta a Lei nº 12.080/2006, que cria reserva particular do patri-
mônio natural - RPPNM). Isso demonstra um descaso do Município em
relação à supremacia da lei do plano diretor e da necessária coerência
que deve ser mantida entre as leis urbanísticas municipais.
No Município de Curitiba existem algumas hipóteses específicas de
aplicação da outorga onerosa do direito de construir que são geridas
pela Secretaria Municipal de Urbanismo:

Geral (“solo criado”): da Lei Municipal n. 9.801/2000 que trata


dos instrumentos da política urbana, com uma certa consonância
com o Plano diretor de Curitiba, vinculando o uso dos instrumen-
tos, entre os quais se inclui a concessão onerosa do direito de
construir para: I - a proteção e preservação do patrimônio cultural,
natural e ambiental do Município; II - a desapropriação parcial
ou total de imóveis necessários a adequação do sistema viário
básico; III - a instalação de equipamentos urbanos e comunitários;
IV - a criação de espaços de uso público; V - a implantação de
programas habitacionais de interesse social; VI - o aproveita-
mento de imóveis no Setor Estrutural com potencial construtivo
subutilizado por limitações urbanísticas
habitacionais: potencial construtivo concedido para emprego
em locais de execução de programas habitacionais de interesse
social - Lei n. 9.802/2000. Recebe o incentivo construtivo aquele
que o transferir à COHAB-CT, à conta do Fundo Municipal de
Habitação (FMH), imóvel urbano destinado a programa habita-
cional de interesse social. Fica, também, facultado ao interessado
o pagamento em dinheiro, como recursos destinados ao FMH25.
Neste caso também se observa o respeito ao Estatuto da Cidade
e ao Plano Diretor;
Operação urbana consorciada da Linha Verde, cujos recur-
sos com a venda de potencial construtivo por meio dos CEPACs
são aplicados obrigatoriamente nas obras realizadas no perímetro
da própria operação (art. 8º da Lei Municipal nº 13.909/2011,
assim como determina o Estatuto da Cidade.
Programas especiais de governo (PEG): o Decreto Municipal
nº 359/2012, com uma grande quantidade de erros terminológi-
cos e técnicos autoriza de maneira pouco clara o emprego das
verbas do potencial construtivo do banco do Município para a
execução de programas especiais de governo. O decreto não
especifica expressamente o conteúdo destes programas especiais
de governo e como será efetuada a contrapartida pelo emprego
do potencial construtivo que integra o patrimônio público. Se
executarmos uma simulação de potenciais construtivos no site
da Prefeitura Municipal de Curitiba26, verificaremos que o valor
para a compra dos potenciais de PEG é mais barato que os demais

1136
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

“solos criados”. Isto nos induz a concluir que este potencial será
vendido com prioridade em relação aos demais. A questão prin-
cipal que se coloca é: para que finalidade vai este dinheiro
arrecadado pelo Município na execução dos PEG?

4. TRANSFERÊNCIA OU OUTORGA? O CASO DA ARENA

Conforme narrado na primeira parte, onde foi feito o histórico do caso


das obras da Arena do Clube Atlético Paranaense, a engenharia financei-
ra para reforma do estádio empregou o potencial construtivo para duas
finalidades: a) adiantar a venda para financiar uma parte das obras de
reforma (30 milhões de reais) e; b) dar o restante como garantia ao Fundo
de Desenvolvimento do Estado (FDE) pelo empréstimo.
A opção pela utilização da venda do potencial construtivo para financiar
as obras no Estádio surgiu do Convênio nº 19.275/2010, o qual sofreu 5
substanciais modificações até o momento – termos aditivos n. 19275-01,
19275-02, 19275-03, 19275-04, 19275-0527. Com base no Convênio, foi
aprovada a Lei Municipal nº 13.620/2010 que “instituiu o potencial cons-
trutivo para o Estádio Joaquim Américo”, sendo esta lei alterada pela Lei
Municipal nº 14.219/2012 e regulamentado o uso do potencial construtivo
por meio do já referido Decreto n. 985/2013.
Essas duas leis municipais não instituem propriamente novos poten-
ciais construtivos para a cidade, elas apenas “autorizam” o emprego de
parte do banco de potencial construtivo do Município de Curitiba em
benefício das obras do Estádio. Os coeficientes de aproveitamento
estabelecidos nas leis municipais não foram modificados, razão
pela qual o potencial de solo criado que pode ser vendido pelo
Município, derivado das diferenças entre o CAb e o CAm fixados
para diferentes zonas e setores da cidade, continua o mesmo
desde as leis de 2000.
Tal conclusão é corroborada pelo (confuso) parágrafo único do art
1º do Decreto 826/2012 que regulamenta a Lei Municipal 13.620/2010:
“o incentivo que trata do caput deste artigo consistirá na concessão de

1137
parâmetros, por transferência de potencial construtivo, conforme esta-
belecido na legislação em vigor”.
A mesma lei fixa que “caberá ao Clube Atlético Paranaense, beneficiário
da concessão dos créditos do potencial construtivo, a devida e proporcional
compensação e contrapartidas sociais ao Município de Curitiba. (art. 7º).
As perguntas que até então não foram respondidas são: que compensação
e contrapartidas são essas? Uma vez que a lei vincula o uso dos recursos
obtidos com a venda do potencial construtivo, o CAP irá respeitar estas
vinculações legais ao realizar as contrapartidas?
A prefeitura de Curitiba liberou 257.143 cotas de potencial construtivo
ao Atlético e deixou à disposição do clube para utilizar os papéis como
garantia em empréstimos. O primeiro valor apresentado pela Secretaria de
Urbanismo indicava que cada título equivalia à R$ 500,00 totalizando quan-
tia diferente dos 123 milhões indicados (o valor ultrapassa 128 milhões).
Ocorre que, muito embora tenham sido previstas essas duas modali-
dades de utilização do potencial construtivo, há o risco de que os títulos
sejam integralmente utilizados para pagamento dos custos da obra. A
parte que seria destinada para atuar como garantia de empréstimo será,
na verdade, coloca no mercado para captação de recurso e amortização
da dívida. Se não for alterado o quadro atual, o Atlético estará, de fato,
utilizando recurso do Município de Curitiba para quitar seus próprios em-
préstimos, recursos esses que estão vinculados por lei a investimentos em
urbanismo, patrimônio histórico e ambiental e habitação social.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A utilização do instrumento do potencial construtivo é o mecanismo-


-chave para o financiamento da obra de reforma e ampliação da Arena
da Baixada. Conforme análise da engenharia financeira montada para a
operação, o instrumento permitiu que o Estado do Paraná intermediasse
empréstimo com o BNDES para repasse da verba para o Clube Atlético,
pois teria como respaldo a venda do potencial construtivo para quitação

1138
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dessa dívida. Indo além, os títulos de solo criado, trabalhado em lotes na


operação, um para garantia de empréstimo, outro para venda no merca-
do, estão, de fato, lastreando quase a integralidade do custo referente à
reforma do estádio. E, para realização do dinheiro de forma a amortizar
as dívidas desenvolvidas (empréstimo com BNDES pelo Estado do Paraná,
empréstimo da CAP/SA com o FDE), esses títulos terão que ser postos
no mercado.
Trata-se, aqui, de claro desvio de finalidade ao atendimento do inte-
resse público, uma vez que o Município de Curitiba, através da cessão
de potencial construtivo, está respondendo pela parte referente ao Clube
Atlético na divisão dos custos da obra – poderá o Clube quitar suas dívidas
vendendo potencial construtivo? –, e de perversão de utilização de instru-
mento urbanístico – o potencial construtivo não é um título curinga passível
de qualquer formatação para captação de recurso atrelada a finalidades não
previstas em lei.
Há quem defenda ser o potencial construtivo utilizado na operação
de financiamento da obra do estádio um terceiro instrumento criado
pelo Município de Curitiba, especificamente para finalidade envolvendo
a preparação para realização da Copa do Mundo de 2014 na cidade. Ora,
essa compreensão dos fatos atesta que os instrumentos de política urba-
na não passam de mecanismos moduláveis pela Administração Pública
em negociações com setor privado, que tratam o direito à cidade como
negócio e a própria cidade como mercadoria.
Quando o TCE/PR afirma que a hipótese confirmaria existência de
outro instrumento que a transferência de potencial construtivo e a outorga
onerosa, encobre a ilegalidade da utilização perpetrada pela engenharia
financeira em comento. Trata-se, sem dúvida, de utilização ilegal do
instrumento da outorga onerosa do direito de construir. O Municí-
pio de Curitiba cede potencial construtivo integrante de seu quantitativo
de solo criado avaliado (conforme estudo dos parâmetros urbanísticos e
das permissões legais), e o repassa para o Clube Atlético, que receberá
quantia referente ao valor da venda dos títulos. Essa operação é ilegal

1139
porque as hipóteses para repasse dos recursos obtidos com a venda dos
títulos estão expressamente previstas em lei e financiar obra de estádio
privado não estão entre elas. Está evidenciado que a utilização irregular
do potencial construtivo está a serviço da garantia da reforma e ampliação
do estádio, frente ao risco alarmado de inviabilidade de financiamento da
operação pelo Clube Atlético. O Município de Curitiba opta pela ilegalidade,
em prejuízo da ordem urbanística e do interesse público, em prol suposta
obrigação de viabilizar o Megaevento esportivo na cidade.
É preciso lembrar, por fim, que nas disposições transitórias da lei do
Estatuto da Cidade estão disciplinadas hipóteses de improbidade admi-
nistrativa. O artigo 52 prescreve:

Art, 52. Sem prejuízo da punição de outros agentes públicos


envolvidos e da aplicação de outras sanções cabíveis, o Prefei-
to incorre em improbidade administrativa, nos termos da Lei
no 8.429, de 2 de junho de 1992, quando:
IV – aplicar os recursos auferidos com a outorga onerosa
do direito de construir e de alteração de uso em desacordo
com o previsto no art. 31 desta Lei (sem grifos no original)
VI – impedir ou deixar de garantir os requisitos contidos nos
incisos I a III do § 4o do art. 40 desta Lei28;

Se o potencial construtivo continuar sendo destinado aos negócios


jurídicos e atos normativos municipais referidos, ou seja, se os recursos da
venda dos títulos de potencial construtivo continuar vinculado especifica-
mente para o financiamento das obras no Estádio Joaquim Américo, sem
a imposição de contrapartidas efetivas e compatíveis com as vinculações
estabelecidas na lei, está-se diante de ilegalidade manifesta e de hipótese
de improbidade administrativa.

REFERÊNCIAS

ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Do solo criado (outorga onerosa do direito de


construir) - instrumentos de tributação para a ordenação do ambiente urbano. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 64.
CORREIA, Fernando Alves. Manual de Direito do Urbanismo. Vol. 1. Coimbra: Al-

1140
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

medina, 2006, p. 623.


DALLARI, Adilson Abreu. FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade: comentários à Lei
Federal 10.257/2001. 2.ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
________. DI SARNO, Daniela Campos Libório. Direito Urbanístico e Ambiental. 2a
edição rev. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 6.ª edição (atualizada por
Izabel C. L. Monteiro e Yara D. P. Monteiro). São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
PINTO, Victor de Carvalho. Direito Urbanístico: plano diretor e direito de propriedade.
São Paulo: revista dos Tribunais, 2005.
Processo n. 229047/2012 do Tribunal de Constas do Estado do Paraná - TCE/PR
SILVA, José Afonso da.. Direito Urbanístico Brasileiro. 4.º edição. São Paulo: Malhei-
ros Editores, 2006.

NOTAS

1 Bacharel e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), advogada associada
da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos, e-mail juliafranzoni@gmail.com.
2 Bacharel e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), doutoranda em Direito
da Cidade na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em Direito Urbanístico na Université Paris
1 – Panthéon-Sorbonne, Professora da UERJ, e-mail rosangelaluft18@yahoo.com.br.
3 A autonomia político-legislativa atribuída aos Municípios pelo poder constituinte, confere-lhes discriciona-
riedade para a estruturação de suas normas e, de consequência, para definir a espécie legislativa de aprovação
das leis urbanísticas. Para entender qual a lógica normativa de um Município, deve-se inicialmente recorrer a
sua lei orgânica. Além de sua função organizacional, ela elenca os temas sobre os quais o Município deverá
legislar e prevê o formato da lei, se será complementar, ordinária ou se admitirá regulamentação por decreto.
Em função disso, existem Municípios em que o plano diretor é lei complementar, outros ordinária, em outros,
ainda, toda a legislação urbanística é lei complementar. Mesmo o plano diretor pode mudar a denominação
para plano de desenvolvimento estratégico, plano de desenvolvimento integrado, plano diretor de desenvol-
vimento sustentável, entre outras titulações.
4 Com um tratamento específico quando for empregado em uma operação urbana consorciada.
5 O levantamento dos dados analisados neste arquivo foi fruto de trabalho coletivo realizado pelo Comitê
Popular da Copa de Curitiba, do qual as autoras são integrantes. Esse coletivo tem promovido importante
trabalho de monitoramento e incidência nos órgãos públicos, denunciado práticas violadoras de direitos
relacionadas à realização da Copa do Mundo de 2014 na cidade. Em relação à reforma e ampliação da Arena
da Baixada, o Comitê acompanha o caso desde o início e promoveu ações de denúncia, divulgando notas de
repúdio contra a utilização do instrumento do potencial construtivo, realizando eventos públicos de discussão
e oficiando autoridades responsáveis.
6 Em alguns casos também da Prefeitura de São José dos Pinhais, onde se situa o Aeroporto Afonso Pena.
7 Clausula Segunda, Parágrafo Primeiro, Inciso III
8 Clausula Segunda, Parágrafo Primeiro, Inciso I do Convênio e item V do Plano de Trabalho
9 Clausula Segunda, Parágrafo Primeiro, Inciso II
10 Clausula Quarta, Parágrafo Único
11 Clausula Quinta, Parágrafo Único
12 Art. 5º As transferências do potencial construtivo, serão efetuadas na forma de acréscimo ao potencial
construtivo dos lotes, nos parâmetros máximos previstos na Lei Municipal nº 9.803, de 3 de janeiro de 2000.
Art. 6º As condições e critérios para a concessão e transferência de potencial construtivo de que trata esta lei
serão regulamentadas pelo Município de Curitiba, através de decreto, conforme estabelece a Lei Federal nº
10.257/2001 e Lei Municipal nº 11.266/2004.
13 Art. 1º Parágrafo único. O incentivo que trata do caput deste artigo consistirá na concessão de parâmetros,

1141
por transferência de potencial construtivo, conforme estabelecido na legislação em vigor.
14 Processo n. 229047/2012 do TCE/PR, pauta da sessão de 01/11/2012: ““A comissão que estudou o assunto
disse em primeiro passo que não enquadrava nem na outorga onerosa, nem na transferência de potencial
construtivo, mas sim, que se apoiava numa outra hipótese prevista no estatuto da cidade que é justamente
outras práticas de intervenção urbana na qual a comissão vislumbrou que através desse dispositivo então, o
Município estava criando uma unidade especial de potencial construtivo que em nada está similarizado com a
transferência do potencial construtivo que é o instrumento que realmente foi incorporado na política urbana”.”.
15 CORREIA, Fernando Alves. Manual de Direito do Urbanismo. Vol. 1. Coimbra: Almedina, 2006, p. 623.
16 http://www.curitiba.pr.gov.br/servicos/cidadao/potencial-construtivo-relacao-de-imoveis-com-disponi-
bilidade-para-transferencia/1118, consulta em 26/08/2013.
17 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Do solo criado (outorga onerosa do direito de construir) - instrumentos
de tributação para a ordenação do ambiente urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 64.
18 A Prefeitura não pode criar solo para além do limite estabelecido na legislação. O coeficientes de aproveita-
mento do tipo CAb e CAm foram estabelecidos nas leis de 2000, sem muitas modificações posteriores. Esse banco
estabelecido pela Prefeitura, portanto, está lastreado nos permissivos provenientes dos índices urbanísticos
cuja quantidade não é conhecida só pelo Município, mas também pelo mercado imobiliário que atua na cidade.
19 Processo n. 229047/2012 do TCE/PR, pauta da sessão de 01/11/2012: “a conclusão do relatório sustenta a
natureza de bem público ou de recurso público, não orçamentária, mas um patrimônio público que será des-
tinado, na forma da lei municipal, em consonância com a lei do Estatuto das Cidades para atividade especial”.
20 Esse processo foi amplamente criticado por movimentos sociais e academia. Alegam ter-se tratado de mera
atualização dos planos já existentes, sendo as adaptações meramente principiológica.
21 Art. 59. A outorga onerosa do direito de construir, também denominado solo criado, é a concessão emitida
pelo Município, para edificar acima dos índices urbanísticos básicos estabelecidos de coeficiente de apro-
veitamento, número de pavimentos ou alteração de uso, e porte, mediante contrapartida financeira do setor
privado, em áreas dotadas de infraestrutura.
22 I - eixos estruturantes; II - eixos de adensamento; III - áreas com predominância de ocupação residencial
de alta, média e baixa densidade; IV - áreas de ocupação mista de alta, média e baixa densidade; V - áreas
com destinação específica. Aplica-se, também, nos lotes com testadas para os eixos viários principais e para
a regularização de edificações.
23 a) eixos estruturantes: até 2 (dois); b) eixos de adensamento: até 2 (dois); c) áreas de ocupação mista alta,
média e baixa densidade: até 2 (dois); d) áreas com predominância de ocupação residencial de alta, média e
baixa densidade: até 1 (um); e) áreas com destinação específica: até 1 (um). E, para os terrenos com testada para
eixos viários principais, legislação específica poderá indicar acréscimos máximos de até 01 (um) coeficiente.
24 Lei nº 9.800, de 03 de janeiro de 2000, que dispõe sobre o Zoneamento, uso e Ocupação do Solo do Município
de Curitiba e dá outras providências; Lei nº 9.801, de 03 de janeiro de 2000, que dispõe sobre os Instrumentos
de Política Urbana no Município de Curitiba; Lei nº 9.802, de 03 de janeiro de 2000, que institui incentivos
para a implantação de Programas Habitacionais de Interesse Social; Lei nº 9803, de 03 de janeiro de 2000,
que dispõe sobre a Transferência de Potencial Construtivo; Lei nº 9.804, de 03 de janeiro de 2000, que cria o
Sistema de Unidades de Conservação do Município de Curitiba e estabelece critérios e procedimentos para
implantação de novas Unidades de Conservação; VI - Lei nº 9.805, de 03 de janeiro de 2000, que cria o Setor
Especial de Conservação Sanitário Ambiental e dá outras providências; VII - Lei nº 9.806, de 03 de janeiro de
2000, que institui o Código Florestal do Município e dá outras providências.
25 Ademais, a Lei Municipal 12.816/2008 dispõe que: “Art. 10. Constituirão recursos do FMHIS: VII. as receitas
provenientes da venda ou transferência de potencial construtivo, previstos na Lei Municipal N.º 9.802, de 3
de janeiro de 2000”;
26 http://www.curitiba.pr.gov.br/servicos/cidadao/potencial-construtivo-simulador/1115
27 http://www.copa2014.curitiba.pr.gov.br/conteudo/termos-aditivos/828
28 (Art. 40. § 4o No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os
Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão: I – a promoção de audiências públicas e debates com
a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade; II – a
publicidade quanto aos documentos e informações produzidos; III – o acesso de qualquer interessado aos
documentos e informações produzidos).

1142
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ANEXO

1143
1144
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

1145
Tabelas das leis que fixam CAb e CAm em Curitiba (as cores das colunas corres-
pondem às cores das letras com o nomes das zonas ou setores, demonstrando a
criação de novas zonas/setores ou a subdivisão de zonas/setores já existentes
com a fixação de novos coeficientes)

1146
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Direitos sociais e
políticas públicas direito
à cidade sustentáve

Edson Ricardo Saleme1


Silmara Veiga2

1. INTRODUÇÃO.

É sabido que até pouco tempo não existiam políticas públicas voltadas
para a cidade e a melhoria das condições estruturais locais. Não se inda-
gava qual seria o futuro citadino e seu desenvolvimento. O que importava
era expandir e gerar divisas. Dois fenômenos históricos intimamente im-
bricados surgem como protagonistas da problemática da política urbana
no Brasil: a industrialização e o êxodo rural.
A partir do desenvolvimento industrial que eclodiu no Sudeste, na dé-
cada de 40, consideráveis massas de população dirigiram-se para os gran-
des centros, fixando-se nas regiões periféricas. Conquanto o destino dos
migrantes fosse preponderantemente os centros recém-industrializados
do Sudeste, muitos deles também se dirigiram para as grandes cidades
de outras regiões do Brasil. E, mais recentemente, a partir da década de
90, a migração voltou-se para os centros regionais.
Segundo dados do IBGE, enquanto a população rural de 1940 a 2000
passou de 28,3 milhões para 31,8 milhões, a urbana, no mesmo período,
saltou de 12,9 milhões para 138 milhões. (IBGE, 2001).
Outro fenômeno importante notado é a excessiva desigualdade social,
ainda remanescente, que impele a parcela menos favorecida a se tornar
extremamente dependente de políticas públicas. O certo é que o poder
público, em face do crescimento populacional e do êxodo rural, mostrou-se
impotente para assegurar infraestrutura mínima nas grandes áreas que se

1147
urbanizavam de modo precário, em desatendimento aos padrões exigidos
pela legislação em vigor. Tampouco implantou políticas habitacionais
coerentes com esse processo.
De fato houve uma expansão desenvolvimentista por meio da industria-
lização. O período se caracterizou pelo predomínio do capital imobiliário
especulativo. Como exemplo é possível citar a cidade do Rio de Janeiro,
quando ainda na década de 1960, possuía grandes vazios de terras, en-
quanto boa parte da população se aglomerava em morros e favelas.
No início da década de 80, observou-se a o crescimento da demanda por
moradia das classes sociais de baixa renda e da cidade do Rio de Janeiro
também se extrai um bom exemplo, pela eleição de Leonel Brizola para
prefeito no ano de 1980. Este no início de sua campanha possuía apenas
5% das intenções de votos e com a proposta de distribuição de terras, com
uma proposta de um milhão de moradias. Elegeu-se, sobretudo a partir
dessa proposta.
Esse fato chamou a atenção do governo militar e para o efeito político
dessa eleição, o que fez com que os militares também criassem um plano
de ação com relação aos problemas das cidades. Passou-se, a partir dessa
nova experiência, a tomar-se postura com as finalidade de se buscar um
equilíbrio entre a acumulação da propriedade privada e as necessidades
sociais. Isso por meio da intervenção estatal, mais uma tentativa de ma-
nutenção dos moldes do Welfare State.
Em São Paulo, nos termos de trabalho de coleta de dados desenvolvi-
do pela Caixa Econômica Federal3, o Poder Público veio a impor regras à
indústria da construção e locação de prédios apenas na última década do
século xIx. Dessa forma, a partir da chegada das massas de trabalhadores
provenientes de diversos locais, ao chegarem a São Paulo, esse municí-
pio, com precárias condições habitacionais, proliferação indiscriminada
de loteamentos e insuficiência de serviços de saneamento básico, ainda
teve que buscar novas opções em termos de moradia para os rurícolas
presentes nos diversos êxodos rurais.
Porém, o sistema da casa própria não surtiu muito efeito e buscaram-

1148
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

-se novas soluções, conforme afirma Gabriel Bolaffi, durante muitos anos
acenou-se aos trabalhadores a promessa da obtenção de uma casa própria.
Isso não foi cumprido. Criou-se o BNH (Banco Nacional da Habitação)
buscando-se suprir essa lacuna. O aluguel de casas constituiu-se uma
das soluções encontradas, pois caso o novo morador não se adaptasse a
solução era mais rápida. Porém, até mesmo os barracos na periferia das
cidades já estavam mais caros que as prestação do Sistema Financeiro
de Habitação.4
Somente nos anos 70, o então governador do Estado de São Paulo,
Laudo Natel, enfatizou a questão do desenvolvimento do interior com
o Plano Rodoviário de Interiorização do Desenvolvimento (PROINDE),
pois já vislumbrava os efeitos deletérios da excessiva concentração na
região metropolitana.
Desde aquela época até hoje o sistema habitacional encontra problemas
relevantes. Atualmente, busca-se progressivamente uma integração entre
público e o privado para resolver a questão orçamentária e encontrar a tão
esperada regularização fundiária por meio da transformação da posse em
propriedade. Exemplo disso pode ser dado por meio das operações urbano-
-consorciadas, cujo objeto é a parceria público-privada para melhoria
da infraestrutura urbana, sobretudo com o auxilio de empresas privadas
atuantes em setores de serviços de natureza eminentemente pública.
O desafio atual, nas palavras de Kaplan, é lograr uma atuação estatal
com planejamento estratégico, a partir do devido processo legal, seguin-
do políticas públicas voltadas para a coletividade sem se olvidar de uma
integração e do atendimento dos objetivos estabelecidos no art. 3º da
Constituição Federal, no sentido de se garantir o desenvolvimento na-
cional a partir de uma sociedade livre, justa e solidária. O auxilio privado
não corresponde à abolição de meios legais para se contratar terceiros.
Na verdade, a eficiência, em um de seus desdobramentos clássicos, cor-
responde ao entendimento de que o Estado não seja mais visto como
um dinossauro faminto sugando os contribuintes, mas uma força motriz
capaz de otimizar os recursos sociais levando ao progresso, geração de

1149
emprego e renda, maior transparência e resultados, e a uma sociedade
naturalmente mais justa e democrática em todos os sentidos. 5
Uma das preocupações que se observam nas normas dedicadas ao
urbanismo é possível ser identificada no Código de Posturas de São Paulo,
de 1886, que destacava as condições de moradia como principal fator de
comprometimento da salubridade urbana. Dessa forma, já se proibiu a
construção de cortiços no perímetro central.6
O que se oberva, a todo tempo, é que as políticas públicas urbanas
devem estar atreladas a um estudo aprofundado das necessidades que
envolvem a região. Ao se falar em municípios, não se pode esquecer que
podem estar inseridos em regiões metropolitanas ou aglomerações ur-
banas, gerando a necessidade de uma decisão conjunta dos municípios
envolvidos. Maiores necessidades são encontradas nos municípios ca-
rentes de obras de infraestrutura que deveriam ser objeto de cooperação
entre Estado e União, a exemplo, do que ocorre com a Baixada Santista.
A Região Metropolitana sofre com recursos escassos e necessidade de
ampliação da malha viária e ferroviária. Quem se pode responsabilizar
por essas obras vultosas e necessárias?
Aqui se buscará analisar as primeiras tentativas de se criar uma le-
gislação urbana voltada para as necessidades sociais e acompanhada
de políticas públicas condizentes com a necessidade de expansão de
infraestrutura e da própria urbanização. Os primeiros capítulos traçarão
o histórico de uma tentativa de criação de um código urbanístico. Os
posteriores indicarão a criação do Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001,
e serão observadas como as políticas públicas deveriam acompanhar os
processos de planificação municipal.

2. NORMAS EM PROL DA URBANIZAÇÃO DAS CIDADES

A partir do surto industrial dos anos 40, paulatinamente, o que se perce-


beu no País é que o arcabouço normativo de que se dispunha mostrou-se
insuficiente para satisfazer necessidades da época e isso se tornou eviden-

1150
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

te pelo agravamento dos problemas, mormente de ordem habitacional.


Somam-se a isso a extrema pobreza de grande parte da população e a
ineficiência dos poderes públicos.
Cogitou-se então da necessidade de maior intervenção no sentido de
se criar mecanismos legais para: a) restituir à legalidade as áreas com
ocupação já consolidada, tais como, por exemplo, loteamentos irregulares
ou clandestinos, situações para as quais a legislação não fornecia resposta,
conduzindo à perpetuação da ilegalidade; b) conceder à administração
instrumentos eficazes de planejamento urbano, inclusive de forma a in-
terferir e direcionar o uso da propriedade.
Entretanto, o que se poderia ser considerados grandes avanços, tal
qual um planejamento ou norma capaz de promover uma regularização
fundiária não foi gerada de maneira ágil. A forma de como ocorreram
esses avanços se verá a seguir.
Na década de 60, já se pensava nas questões urbanas, exemplo disso
foi a realização do Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana
em Petrópolis/RJ, onde se discutiram as questões que na época se apre-
sentavam, tal como a questão de ocupações e favelas moradias irregulares
no Rio de Janeiro, favelas. 7
Com o golpe militar de 1964 muitas reformas pretendidas, muitos dos
avanços que se discutiam, ficaram congelados. Isso porque esse tipo de
pensamento era considerado avançado demais, por exemplo, ‘dar’ terras
aos pobres na época da Guerra Fria, em pleno governo militar, considerava-
-se prática comunista.
Na década de 70, entretanto, os movimentos sociais voltaram a pedir
mudanças, e em 1977 foi criada a Comissão Nacional de Desenvolvimento
Urbano – CNDU, a fim de tentar criar uma lei nacional de desenvolvimento
urbano. A CNDU, vinculada ao Ministério do Interior, idealizou o que viria
a ser o Projeto de Lei 775 de 1983.
O Projeto de Lei 775, de 1983, tratava-se de um projeto de lei de de-
senvolvimento urbano. Dispunha sobre os objetivos e a promoção do
desenvolvimento urbano. Enviado à Câmara para votação pelos próprios

1151
militares, devido a premente necessidade social das massas por moradia,
resposta à positiva repercussão das propostas de campanha do prefeito
eleito do Rio de Janeiro Leonel Brizola.8
O Projeto de Lei 775 de 1983 é um paradigma no sentido de que “coloca
como base da política de desenvolvimento urbano a questão social, através
da função social da propriedade”. Além disso, elenca a função do Poder
Público em melhorar a qualidade da vida da população, e trás mais ino-
vação quando prevê no art. 22 a criação de ‘áreas restritas’, que são áreas
de proteção ambiental nas cidades.9
Adotava como pontos básicos: a) oportunidade de acesso à propriedade
urbana e à moradia; b) justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes
da urbanização; c) correção das distorções da valorização da proprieda-
de urbana; d) regularização fundiária e urbanização específica de áreas
ocupadas por população de baixa renda; e e) adequação do direito de
construir às normas urbanísticas. 10
Apresentava, de forma harmônica e sistemática, diretrizes, instru-
mentos e normas gerais que deveriam pautar o desenvolvimento urbano.
Também previa a ação conjunta das três esferas de governo para a for-
mulação e implantação da política urbana.11
O Projeto não foi aprovado. Sua tramitação e discussão estabeleceram-
-se tão lentamente que praticamente coincidiram com os debates da
Constituinte de 1987, o que acabou ajudando muitas de suas propostas
inovadoras, tal como a função social da propriedade, da maneira que foi
agregada ao texto constitucional.
Nesse sentido, o trabalho do Movimento Nacional de Reforma Urbana
que propôs e apresentou a Emenda constitucional Popular pela Reforma
Urbana foi de grandiosa valia e importância. Pautada pelos princípios de
obrigação do Estado em assegurar os direitos urbanos, função social da
propriedade, direito à cidade, gestão democrática da cidade. Princípios
esses insculpidos no capítulo “Política Urbana”, materializados pelos
artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988.
A conquista legislativa no âmbito federal se cristalizara: a Constituição

1152
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Federal passou a assegurar princípios norteadores da política urbanística.


Cabia agora aos Estados adaptarem suas respectivas constituições, aos
municípios e Distrito Federal adequarem suas leis orgânicas. Obrigou-se a
criação de planos diretores para determinados municípios. Criou-se, assim
o momento inicial de uma política urbana com planejamento e busca das
satisfações da necessidades dos munícipes, a partir de sua própria opinião
e participação.

3. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E


A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA.

A Constituição vigente, seguindo os modelos constitucionais anteriores,


estabeleceu a proteção à propriedade em geral, inclusive com inserção
de capítulo especificando quando se cumpre ou não a função social da
propriedade urbana e rural. Percebe-se pelos dispositivos constitucionais
uma preocupação em evitar que a propriedade sirva à especulação imo-
biliária ou mesmo outro objetivo que possa macular o acesso à terra das
populações menos beneficiadas.
Para José Afonso Leme Machado reconhecer que a propriedade tem
uma função social é não tratá-la como um ente isolado da sociedade.
Afirmar que ela possui essa função social não significa transformá-la em
vítima da sociedade. A O conteúdo da propriedade não reside em um só
elemento. Há o elemento individual que possibilita o gozo e o lucro para
o proprietário. Mas outros elementos aglutinam-se a esse: além do fator
social há o componente ambiental.12
A Constituição atual segue o defendido na doutrina italiana, segundo
a qual a propriedade não constitui uma instituição única, mas várias
instituições diferenciadas, em correlação com os diversos tipos de bens
e de titulares, de onde ser cabível falar não em propriedade, mas em
propriedades.
Nesse sentido, a propriedade deixou de ser tema relacionado unica-
mente ao direito civil. Atualmente outras subdivisões da ciência jurídica

1153
com ela se importam diretamente, sobretudo para imposição de tributos e
o estabelecimento das obrigações a elas relacionadas em face do cumpri-
mento das funções legalmente estabelecidas. O instituto da propriedade
ganhou formas diferenciadas de tratamento positivando-se as exigências
que os legisladores consideram essenciais e criando normas estritas,
sobretudo no código de obras ou leis afins, a fim de se estabelecer os
desígnios adequados por meio do plano diretor ou mesmo de uma lei
com essa finalidade. Assim, sem se desatar da teoria civilista a partir dela
buscou-se uma função que pudesse ser atribuída ao bem sem retirar-lhe
o conteúdo econômico. Assim, o respeito à função social não esvazia o
direito de propriedade constitucionalmente estabelecido.
A importância do ao cumprimento da função social se reflete nos
dispositivos constitucionais que sancionam sua inobservância, chegan-
do até a expropriação do bem, conforme se depreende dos dispositivos
constitucionais contidos no parágrafo 4º do art. 182 e do art. 184, este
ultimo referente a propriedade rural. A importância ainda foi sublinhada
pela repetição do principio no inciso II e III do art. 170 da Constituição. Não
obstante entendimentos no sentido de que a função social não diminui
a propriedade ela condiciona seu uso a observância de fatores, sem os
quais, podem gerar ônus ao proprietário a ponto de ate mesmo perder o
bem que possui.
Em que pesem diversas opiniões acerca do tema, a verdade é que a
função social limita a propriedade e não a inutiliza o a torna imprópria
para fruição, desta forma ocorreria, na verdade, a desapropriação indireta.
Normas e atos normativos de origens diversas condicionam a utilização
da propriedade a observância de determinados parâmetros, sem os quais
se configura uma oposição ao que se poderia considerar seu uso social.
Certamente, há uma redução do uso pleno da propriedade. Certamente vai
de encontro ao anterior conceito que simplesmente deixava o proprietário
livre para decidir acerca do destino de seu bem imóvel. A propriedade
hoje está sujeita a normas urbanísticas impostas pela municipalidade a
fim de se atender uma série de exigência e sobretudo adequar o uso da

1154
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

propriedade ao conjunto social de bens. Alem delas, outras de ordem


estética e de segurança publica, alie-se ainda aquelas oriundas de legis-
lação ambiental, conferindo-lhe características que por vezes impede sua
descaracterização e, consequentemente, seu uso.
Cabe ainda dizer o remarcado por Roberto Dromi (2007, p. 25-38) que
o município é o gerente da cidade. Ademais, ela é um fenômeno vivo e
dinâmico que cabem e concorrem inúmeras instituições e organizações.
Deve garantir as necessidades vitais para o desenvolvimento pleno da
pessoa humana. Existe, assim, um novo tipo de relação em que haja um
sistema eficiente na gestão de políticas com orientação macroeconômica.
A cidade também sofre externalidades regionais e nacionais que podem
ser positivas ou negativas, mas inegável é a função da municipalidade a
fim de estimular a acessibilidade e a inclusão social, trabalhista e cultural.
Dessa forma, observa-se que a propriedade não perdeu suas caracterís-
ticas civilistas. O que ocorre é a instituição de novos programas e institutos
constitucionais e legais em prol de sua conservação e desenvolvimento.
Contudo, diante do quadro social existente no planeta, não há mais lugar
para a concepção privatistica pura, a qual concebia a propriedade como
absoluta. A função social pode-se traduzir em limitações que, a primeira
vista, podem parecer óbices a serem transpostos ou mesmo impossíveis de
serem superados. Por outro lado, reconhece a necessidade de se ordenar a
propriedade como bem com valores intrínsecos e extrínsecos que devem
ser por todos respeitados.
Quando se falou ao fim do tópico anterior que estava criada uma celeu-
ma, isto se diz no sentido de que as cidades já existiam, e na sua maioria,
nascidas e criadas de forma desordenada, sem planejamento.
De acordo com GRACIA: “os instrumentos oriundos da Constituição Fe-
deral tinham como objetivo, fundamentalmente, uma ampliação do controle
público sobre a ocupação do solo, permitindo um aumento da eficiência da
ação governamental, e garantindo a destinação adequada dos investimentos
de infraestrutura e serviços”. 13
Para cumprir o disposto na Constituição coube aos municípios absorver

1155
essa legislação inovadora, eram muitas obrigações, e um grande ônus não
só político, pois envolveria diversos interesses, como também econômico,
no sentido de que teriam que despender recursos para a implantação na
prática desses dispositivos. A missão era tentar equilibrar os interesses
dos diversos setores e classes sociais, a obrigação era integrar a cidade.
Visando a aplicabilidade da inovadora legislação, os municípios pas-
saram a se valer de instrumentos de controle normativo, por exemplo,
inserindo em suas leis orgânicas modos e limitações ao direito de proprie-
dade e ao direito de construir, prevendo o modo de uso da propriedade; e
em seus planos diretores a forma de expansão das cidades, criando, por
exemplo, distritos industriais.
Ainda assim, havia dificuldades e dúvidas até porque não havia a re-
gulamentação específica, o que somente se deu em 2001 com o advento
da Lei federal n. 10.257 que ficou conhecida como Estatuto da Cidade,
mais de doze anos após a apresentação de seu projeto junto ao Senado
em junho de 1989.
Exemplificando, entre os importantes instrumentos para assegurar
a Função Social da Propriedade, o Estatuto da Cidade regulamentou a
questão do Imposto Territorial Urbano (IPTU) progressivo, que é uma
forma de coibir a especulação imobiliária e a subutilização de proprieda-
des urbanas, evitando a criação de vazios urbanos, através da sobretaxa
à propriedade ociosa, tal como foi implantado através de Lei Municipal
na cidade de Ponta Grossa/PR. Está em acordo com o Princípio à medida
que o proprietário paga conforme a devida utilização da sua propriedade,
forçando o proprietário a dar um fim digno à sua propriedade.
No bojo desta política intervencionista, imprescindível ressaltar que
ainda pouco antes da promulgação do Estatuto da Cidade, a Emenda
Constitucional n. 29, de 13 de setembro de 2000, mediante alteração do
texto do art. 156, §1‒, caput, e inserção dos incisos I e II do respectivo
artigo da Carta Magna, autorizou a instituição de IPTU progressivo em
razão do valor do imóvel, bem como a instituição de alíquotas diferentes
em razão da localização e uso do imóvel14.

1156
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Outrossim, a Lei 11.977/09, conhecida como Lei Minha Casa Minha


Vida, estabeleceu um tratamento especial para a regularização fundiária
de interesse social. O Provimento n. 18/12, de 25 de junho da Correge-
doria do Tribunal de Justiça de São Paulo, instituiu formas de viabilizar e
efetivar a legislação atinente. Segundo a Assessoria de Imprensa do TJSP:

O provimento extraiu o máximo de efetividade dos instrumentos


da Lei Minha Casa Minha Vida, regulamentou os procedimentos
de regularização fundiária nos Cartórios de Registro de Imóveis
e uniformizou os procedimentos em todo o Estado. Diversas
espécies de regularização foram acolhidas, como a de condo-
mínios de frações ideais, de glebas urbanas parceladas antes
da Lei 6766/79, a abertura de matrícula para a área pública em
parcelamento não registrado, a abertura de matrícula de imóvel
público do Estado e a regularização dos conjuntos habitacionais
não registrados. Também se aprofundou no exame da demar-
cação urbanística e da legitimação de posse.” (Registradores de
São Paulo, 2012)

Importante também citar, no âmbito do Estado de São Paulo, a implan-


tação do Programa Estadual de Regularização de Núcleos Habitacionais
- Cidade Legal.
O programa fornece, mediante convênio de cooperação técnica,
orientação e apoio técnico aos municípios para regularização fundiária,
através do Comitê de Regularização. Tal programa foi criado pelo Decreto
Estadual n. 52.052/07.
A finalidade do referido programa estadual é apoiar a regularização de
parcelamentos do solo e de núcleos habitacionais públicos e privados, para
fins residenciais, localizados em áreas urbanas ou de expansão urbana,
assim definidas pela legislação municipal. Os núcleos habitacionais enqua-
drados no Programa Cidade Legal são loteamentos e desmembramentos
para fins residenciais, conjuntos e condomínios habitacionais e reurba-
nização de assentamentos precários e favelas. (Secretaria de Habitação
do Estado de São Paulo, 2009).
Cabe dizer que se utilizaram casos de programas especialmente na área
de habitação e moradia para ilustrar tipos de instrumentos normativos
que vêm se valendo a Administração nas três esferas de governo, existem

1157
outros instrumentos em outras áreas, tais como o transporte, por exemplo.
Mas este trabalho não visa esgotar o assunto, mas sim abrir a discussão.

4.CONCLUSÕES

Como visto, desde a década de 60 existe a preocupação com a questão


urbanística, que se tornou ainda mais premente na década de 80 com
a expansão das cidades e a pressão social principalmente pela falta de
moradia e a expansão das habitações precárias e irregulares, culminando
com um capítulo especial na vigente Constituição Federal destinado à
questão da política urbana.
Inegavelmente a legislação trouxe importantes avanços no sentido
do planejamento estratégico das cidades e na criação de instrumentos
de controle para criar um ambiente mais saudável e garantir o bem-estar
dos habitantes.
Percebe-se, entretanto, que esse uso de instrumentos de controle,
pensar a cidade de forma ordenada e planejá-la a fim de garantir boas
condições de vida aos cidadãos, além de ser algo muito difícil (por conta
da situação já desordenada quando do advento da CF/88), é muito custoso
aos cofres públicos, principalmente aos cofres de cidades pequenas e sem
fontes de arrecadação, dentre essas cidades muitas sobrevivem através
da verba do Fundo de Participação dos Municípios, o que fez com que
se multipliquem exemplos de cidades no país que até hoje não tenham
efetivamente se adaptado, ou consigam aplicar as normas.
Assim, é cada vez mais importante a gestão participativa, que as
pessoas progressivamente se interessem a conheçam os princípios que
norteiam o planejamento da cidade, principalmente o maior deles que é o
bem-estar social, e assim contribuam para pensar e planejar uma cidade
melhor, a cidade não pode ser vista como guetos, os guetos onde se auto-
-segregam os ricos e onde se amontoam os pobres, a cidade é de todos,
e deve ser vista como direito transindividual que é – a cidade pertence a
todos. E é somente através do avanço da conscientização, da participação

1158
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

e pressão coletiva é que os direitos da cidade encontrarão ambiente fértil


para crescer e, de fato, efetivarem-se.
As leis vigentes garantem o acesso à titulação da propriedade, sobre-
tudo a Lei nº 11.977/2009 que instituiu o programa minha casa minha
vida. Estabeleceu-se um cronograma de prioridades com a presença de
várias instituições públicas com o objetivo de regularizar o instituto da
concessão de uso especial para fins de moradia, desde a Medida Provisó-
ria nº 2.220 de 2001. Nesse sentido pode-se vislumbrar progresso no que
tange à regularização fundiária. Em contrapartida ainda são tímidos os
investimentos em infraestrutura capazes de refletir um bom planejamento
e o desenvolvimento regional e local.

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NOTAS

1 Professor Doutor do Programa de Doutorado e Mestrado da UNISANTOS. Professor da Universidade Paulista.


Consultor do MDS e IBAMA. Professor da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Email: ricasal@
uol.com.br
2 Mestranda em Direito Ambiental pela UNISANTOS. Advogada em São Paulo. Email: Silmara.veiga@gmail.com.
3 Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo.2002- 2012, SEMPLA (org) São Paulo: Ed. SENAC; Pre-
feitura Municipal de São Paulo, 2004, p. 29
4 BOLAFFI, Gabriel. Para uma nova política habitacional e urbana: possibilidades econômicas, alternativas ope-
racionais e limites políticos. In Habitação em questão. Coordenado por VALLADARES, Licia do Prado. Rio de
Janeiro: Zahar Ed., 1980. Páginas 167-196.
5 KAPLAN, R. S. NORTON, D. P. The balanced scorecard - Measures that drive performance. Harvard Business
Review, Balanced Scorecard. Mapas Estratégicos: convertendo ativos intangíveis em resultados tangíveis.
Tradução de Afonso Celso da Cunha Ser, v. 70, no. 1, 1992.
6 Disponível em: www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/.../index.php. Lei 10.041 - 25 de
Fevereiro de 1986 - Acrescenta ao § 2º do artigo 25, da Lei......Lei nº 11.228/92 - Código de Obras e Edificações
do Município de São Paulo. Acessado em 16.08.2013.
7 GRAZIA, Grazia de. Reforma urbana e Estatuto da Cidade. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO,
Adauto Lúcio (org.) Reforma urbana e gestão democrática: promessas e desafios do Estatuto da
Cidade. Rio de Janeiro: Revan: FASE, 2003.
8 SABOYA, Renato. Estatuto da Cidade – breve histórico. Disponível em: http://urbanidades.arq.br/2008/02/
estatuto-da-cidade-breve-historico/. Acesso em 3 mar 2013.

1160
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

9 GRAZIA, Grazia de. Op. Cit.


10 FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA – CEPAM. Estatuto da cidade, coordenado por Mariana Moreira. São
Paulo, 2001. P. 32. Disponível em: http://www.cepam.sp.gov.br/arquivos/conhecimento/Estatuto_da_cidade.
pdf Acesso em 3 mar 2013.
11 - idem.
12 LEME MACHADO, Paulo Afonso. Estudos de direito ambiental. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 127.
13 Op. Cit. p. 39.
14 Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:I – propriedade predial e territorial urbana; § 1‒
Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 40, II, o imposto previsto no inciso I
poderá: I – ser progressivo em razão do valor do imóvel; e II – ter alíquotas diferentes de acordo com a loca-
lização e o uso do imóvel.

1161
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A efetivação do
direito ao lazer na
cidade de Belém

Luana Nunes Bandeira Alves1

1. INTRODUÇÃO

O direito social manifestado em relação ao lazer está reconhecido


tanto na Carta Magna de 1988 da República Federativa do Brasil, como
nos demais documentos jurídicos de caráter infraconstitucional, dentre os
quais, pode-se destacar como principal, o Estatuto da Cidade.
A Constituição Federal de 1988 garante o direito ao lazer, o que
representa um marco para a sociedade. No entanto, não é necessário
somente reconhecer, mas também efetivar e, por isso, o Estatuto da
Cidade visa determinar a competência municipal para a implementação
de políticas públicas voltadas à promoção do lazer de forma a atingir
todos os seus cidadãos.
Nesse sentido, o Município de Belém tem promulgado instrumentos
normativos, cujo principal é o Plano Diretor do Município. Todavia, como
poderá se verificar, este aparato normativo ainda é escasso e as formas de
efetivação do lazer são incipientes, pois mesmo que haja locais destinados
a esta finalidade, os mesmos apresentam problemas que, via de regra, se
devem ao desempenho da gestão pública.

2 CONCEITUAÇÃO DOUTRINáRIA SOBRE O DIREITO AO LAZER

O reconhecimento dos direitos sociais ou direitos de segunda geração,


bem como as outras espécies de direitos, foi resultado de lutas que se

1163
perfizeram no decorrer da história humana. Eles se referem à consagra-
ção de direitos desejados para a esfera individual, mas que, devido sua
importância, devem ser efetivados no âmbito coletivo, objetivando atender
os interesses mais necessários à uma coletividade.
Eles tiveram, oficialmente, sua origem relacionada a um momento his-
tórico predominantemente marcado por revoluções sociais, econômicas
e políticas, foram elas as chamadas revoluções burguesas. Nesse sentido,
foram positivados, ou seja, exteriorizados através do texto jurídico escri-
to, por meio de uma série de documentos que compõem um marco na
história do direito2.
Este gênero de direitos contempla uma série de espécies que seriam re-
lacionadas à educação, saúde, previdência social, proteção à maternidade
e à infância, assistência aos desamparados, ao trabalho e ao lazer. Dessa
forma, tendo em vista o caráter de essencialidade destes não somente
quanto ao âmago individual de cada cidadão, mas quanto à coletividade
social, conforme já dito anteriormente, é dever do Estado garanti-los em
seu ordenamento jurídico, bem como efetivar políticas públicas para que
os mesmos sejam realizados na prática3.
Em conformidade com a concepção apresentada, pode-se dizer também
que os direitos sociais seriam uma das faces dos direitos fundamentais – ou
seja, dos direitos humanos recepcionados pela Constituição da República
Federativa do Brasil – e devem ser oferecidos pelo Estado a fim de propor-
cionar aos seus cidadãos uma melhor qualidade de vida4.
A partir deste contexto, o direito ao lazer é um dos vieses sociais a ser
garantidos pelo Estado. A possibilidade de usufruto do lazer está relacio-
nada às atividades que podem ser exercidas pelo cidadão em seu tempo
livre, mas para que isso de fato ocorra deve a sociedade estar consciente
do seu papel de fiscalizadora das prestações estatais5.
De acordo com Dias (2009, p. 81), “o lazer é uma conquista decorrente
da redução da jornada de trabalho”, sendo esta conquista consagrada em
dos principais documentos jurídicos trabalhistas, em âmbito nacional, que
é a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, Decreto-Lei nº. 5.452, de 1º

1164
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de maio de 1943. Dessa forma, o direito ao lazer tem relação direta “com
as condições de trabalho e com a qualidade de vida, donde sua relação
com o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado” (SILVA, 2011, p. 316).

3. DIREITO AO LAZER A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO


FEDERAL DE 1988 E DA LEI Nº 10.257/01

Os direitos sociais e, consequentemente, o direito ao lazer são cha-


mados de constitucionais, pois estão consolidados na norma de maior
superioridade hierárquica dentro do ordenamento jurídico positivado em
um Estado de Direito – seja este em sua forma: liberal, social ou demo-
crática. Eles estão dispostos na Constituição da República Federativa do
Brasil – CF/88, promulgada em 1988, também chamada de “Constituição
Cidadã” justamente por legitimar os anseios mais imprescindíveis não
somente a pequenos grupos, mas a todo o corpo social6.
O direito ao lazer encontra-se reconhecido, conjuntamente com os
demais direitos sociais oponíveis ao Estado, no Título II, Dos Direitos e
Garantias Fundamentais; Capítulo II, Dos Direitos Sociais; art. 6º, bem
como há também referência a ele no art. 227 da CF/88, direcionando-o
mais especificamente à criança e ao adolescente. E, por fim, o art. 217, §
3º, da CF/88, ratifica a importância do fomento a este direito, por parte
do Estado, como forma de “promoção social”.
Embora estejam, estes direitos, constitucionalmente garantidos, eles
devem ser observados de forma mais reflexiva e crítica, pois a sua real
eficácia não se deve somente à produção do texto legislativo, mas princi-
palmente da iniciativa do Poder Executivo, por meio de políticas públicas,
tornarem todos os direitos palpáveis. Nesse sentido, Dias (2009, p. 83) diz
que “a eficácia do direito ao lazer depende de espaços e equipamentos
destinados a esse fim”, outro sim, o Poder Público deve garantir não so-
mente a infraestrutura destinada ao lazer, mas também o acesso à ela por
intermédio de transportes adequados às necessidades coletivas7.

1165
No âmbito infraconstitucional a Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001,
também conhecida como “Estatuto da Cidade” - que regulamenta os arts.
182 e 183 do Capítulo II – Da Política Urbana, da própria legislação consti-
tucional -, tem como finalidade consagrar a competência do Município no
sentido de legislar e implementar as variáveis constituintes das diretrizes
do planejamento e da gestão urbanística municipal através de um plano
diretor e de outras leis de competência municipal.
O Estatuto da Cidade reconhece a importância do direito ao lazer em
seu art. 26, inciso VI e art. 2º, inciso I. Nesse sentido, a política urbana
exercida em conjunto pelas esferas da União, dos Estados e, em especial,
dos Municípios deve objetivar efetivar a todos os cidadãos, independen-
temente de quaisquer distinções que possam existir entre estes, o pleno
desenvolvimento e acesso às funções sociais da cidade de forma demo-
crática e participativa, tal como preleciona Lei Fundamental de 1988.
Nesse sentido, pode-se dizer que tanto o reconhecimento de insti-
tutos relacionados à política urbana quanto a sua forma de aplicação à
realidade devem ser discutidos de maneira democrática entre o Poder
Público e todos os seguimentos da sociedade, pois será ela quem fará uso
destes benefícios e, por isso, cabe a ela dizer quais são as necessidades e
particularidades existentes entre os seus componentes. Contudo, não há
como pensar em instrumentos jurídicos que sejam impostos, pois estes
não seriam eficazes, bem como também seriam ilegítimos.

3.1 Instrumentos Municipais

Na esfera municipal há um aparato escasso no que diz respeito à


legislação destinada à matéria do lazer, sendo um de seus principais ins-
trumentos, que tem por diretriz básica o Estatuto da Cidade, a Lei nº 8.655
de 30 de julho de 2008 que dispõe, preponderantemente, sobre o Plano
Diretor do Município de Belém. Nesta norma, o lazer é posto como: uma
das diversas diretrizes básicas da Política de Desenvolvimento Econômico
do Município, conforme determina o art. 8º, inciso xxIII; um dos meios

1166
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

pelo qual se objetiva ampliar o tempo de permanência dos estudantes na


escola, tal como almeja a Política Municipal de Educação, vide art. 12,
inciso VII; é também diretriz básica da Política Municipal de Educação,
pela qual deve ser parte integrante do currículo escolar as políticas de
lazer. Além disso, neste mesmo instrumento, há no Título III - Dos Obje-
tivos e das Diretrizes Setoriais da Política de Gestão Urbana, no Capítulo
II - Das Políticas Sociais, uma seção denominada “Da Política de Esporte
e Lazer” destinada especificamente a tratar deste direito social; esta po-
lítica, de acordo com o art. 24, caput, é “entendida como direito social
básico à garantia da cidadania e de inclusão social” e nela estão definidas
como diretrizes, por exemplo: a elaboração de programas e projetos que
visem sua própria melhoria, a implementação de atividades de lazer que
proporcionem oportunidade de integração aos indivíduos que se encon-
trem em situação de risco social. Há de se ressaltar que, de acordo com
art. 25 da referida lei municipal, deveria ser elaborado um projeto de lei
instituindo o Plano Municipal do Desporto e Lazer para a apreciação da
Câmara Municipal de Belém, no prazo de no máximo doze meses – este
limite, pela lógica, deveria ser contado a partir da data da publicação da
Lei que dispõe sobre o Plano Diretor de Belém –, porém, mesmo com esta
determinação e a criação da Secretaria Municipal de Esporte, Juventude e
Lazer – SEJEL, instituída por uma lei ordinária seis meses antes da publi-
cação do Plano Diretor, o referido Plano Municipal do Desporto e Lazer
ainda não foi elaborado.
Além do Plano Diretor, há um conjunto de leis municipais que se des-
tinam a tratar do direito ao lazer8.
Verifica-se, dessa forma, que há no Município de Belém instrumentos
normativos, porém, como já foi dito outrora, é necessário que exista uma
materialização dessas normas. Contudo, mais do que o reconhecimento
formal do direito ao lazer e todas as suas implicações, é preciso que haja
uma real efetivação destas normas, através de políticas públicas, para
que, assim, possa se falar em uma plena realização direito à cidade e às
suas funções mais essenciais.

1167
4. PARANORAMA VISUAL DO DIREITO AO LAZER
NO ESPAÇO URBANO DO MUNICÍPIO DE BELéM

A partir de um trabalho de campo realizado em determinados espaços


públicos dentro da cidade de Belém, foram capturadas algumas imagens
através das quais é possível evidenciar que, mesmo com a existência de
uma série de problemas neste município, há determinados locais – que,
em geral, são de fácil acesso pela população e se encontram em diferen-
tes bairros - que têm por finalidade efetivar o direito ao lazer, mas ainda
assim necessitam de modificações para a sua própria melhoria e benefício
da sociedade.
O primeiro espaço visitado foi a Avenida João Paulo II, entre as traves-
sas Lomas Valentina e Barão do Triunfo, no bairro do Marco. Nesse local
encontra-se uma das instalações do projeto municipal “Academia ao Ar
Livre” (vide figura 1), de competência da SEJEL. De acordo com informa-
ções da Prefeitura Municipal de Belém, em cada uma dessas instalações
do Projeto há 21 equipamentos9. Neste sentido, a iniciativa é válida, porém,
não foram encontrados dados sobre com que frequência é realizada a
manutenção dos equipamentos, bem como não havia, no local, instrutores
para auxiliar quem viesse utilizar os aparelhos.

Figura 1. Local: Avenida João Paulo II. Data e hora de captura da imagem: 20 de novembro de 2011 às 15h12min.

1168
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O segundo local visitado foi a Praça da República (vide figura 2), uma
das mais antigas e belas da cidade. No dia da visita, se pode perceber que
havia funcionários da Prefeitura realizando limpeza no local, bem como a
presença de guardas municipais. Apesar disso, foi perceptível a presença
de pessoas em situação de risco, tais como: moradores de rua. Embora,
haja informações veiculadas pela Prefeitura10 de que está sendo realizada
uma revitalização da iluminação pública deste local e haja uma placa da
Prefeitura neste espaço divulgando a mesma informação (vide figura 3),
não foram vistos funcionários competentes realizando este serviço.

Figura 2. Local: Praça da República. Data e hora de captura da imagem: 20 de novembro de 2011 às 16h09min.

Figura 3. Local: Praça da República. Data e hora de captura da imagem: 20 de novembro de 2011 às 16h13min.

1169
O terceiro espaço a ser visitado foi o cinema Olympia que em 24 de abril
de 191211 foi a primeira sala de cinema a ser inaugurada em Belém. Ainda
hoje está em funcionamento, destacando-se a boa preservação interna
do local e o seu corpo de funcionários que prestam um bom atendimento
ao público. No entanto, a fachada apresenta pichações e uma pintura já
desgastada (vide figura 4).

Figura 4. Local: Olympia. Data e hora de captura da imagem: 20 de novembro de 2011 às 16h32min.

O Complexo Feliz Luzitânia foi o quarto local visitado. Nele encontram-


-se um conglomerado de prédios históricos, dentre os quais está a Igreja
de Santo Alexandre (vide figura 5) que, de acordo com as narrações de
funcionários do prédio, abrigava, no século xVIII, uma capela e uma escola
da Companhia Missionária Jesuítica. Atualmente, a igreja continua fun-
cionando – a fim de realizar casamentos e outros eventos que contribuam
para a manutenção do local –, porém no lugar em que se encontrava a
escola funciona o Museu de Arte Sacra. Embora seja um local de lazer
público - com exceção das terças-feiras, dia em que a visitação é gratuita
– é cobrada uma taxa de R$ 4,00 para a visitação do Museu.

1170
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Figura 5. Local: Museu de Arte Sacra de Belém (MAS). Fonte: Revista Museu.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito ao lazer, tal como os demais direitos sociais, conforme pode-se


perceber, é deveras importante dentro do espaço da cidade, pois implica
na qualidade de vida dos citadinos. A efetivação deste direito influencia,
por exemplo, no desenvolvimento de adolescentes que se encontram em
situação de risco social.
Embora o Plano Diretor do Município de Belém reserve a este direito
um espaço importante em seu escopo, as políticas públicas municipais não
têm sido percebidas por aqueles que visitam os locais históricos destinados
ao lazer na cidade, tais como aqueles nos quais foi realizada a pesquisa
de campo para este estudo.
É preciso que o ordenamento jurídico seja eficaz e isso só é possível
quando o Poder Executivo implementa políticas públicas. Dessa forma,
não há acesso às funções da cidade sem que sejam propiciados pelo Es-
tado os meios para isso. Nesse contexto, Belém é uma cidade que ainda
tem um longo caminho a percorrer para tornar-se uma “cidade cidadã”.

1171
REFERÊNCIAS

DIAS, Gilka da Mata. CIDADE SUSTENTáVEL. Natal: 2009.


LOCALIZAÇÃO DE LEIS/DECRETOS. Disponível em: <http://www.belem.pa.gov.
br/semaj/app/Sistema/form_leis.php>. Acesso em: 24 nov. 2011.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL. 4 ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
REVISTA MUSEU. O Renascimento dos Museus no Norte do País. Disponível
em: <http://www.revistamuseu.com.br/naestrada/naestrada.asp?id=1697>. Acesso
em: 20 nov. 2011.
SILVA, José Afonso Da. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO.
São Paulo: Malheiros, 2011.

NOTAS

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará - UFPA, estagiária do Tribunal Regional do Trabalho
da 8ª Região, e-mail: luananunes_bandeira@hotmail.com.
2 Nesse sentido, Mendes; Coelho; Branco (2009, p. 759) dispõem que: Declaração de Direitos de Virgínia, na
América do Norte, em 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, em1789; e, mais
tarde, lograram expandir-se em documentos de abrangência internacional, como a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, aprovada pela Organização das Nações Unidas em 1948.
3 Assim, Mendes; Coelho; Branco (2009, p. 760) colocam que: Assim concebidos, isto é, como direitos a que
correspondem obrigações de fazer, a cargo não apenas do Estado, mas da sociedade, em geral — não por
acaso, ao enunciar alguns desses direitos (e. g., saúde e educação), a nossa Carta Política afirma que eles
constituem “direitos de todos e dever do Estado” —, a primeira e radical indagação que suscitam esses novos
direitos é saber como torná-los efetivos (…).
4 Para corroborar com esta tese, Silva (2011, p. 286) diz que: (...) podemos dizer que os direitos sociais, como
dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta
ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos
mais fracos, direitos que tendem a realizar a equalização de situações sociais desiguais.
5 Dias (2000, p. 82) faz o seguinte apontamento, colocando que: (...) “é preciso exigir”: superfície verde ne-
cessária à organização racional dos jogos e esportes das crianças, dos adolescentes e dos adultos; instalações
de centros de entretenimento intelectual ou de cultura física, salas de leitura ou de jogos, pistas de corrida ou
piscina ao ar livre; parques, florestas, áreas de esporte, estádios, praias (...).
6 Nesse sentido, temos o apontamento de Mendes; Coelho; Branco (2009, p. 9): Essa opção, é evidente, advém
da compreensão de que a Constituição, para ter estabilidade e duração, não pode constitucionalizar matérias
sujeitas a oscilações quotidianas, nem cristalizar interesses, relevantes embora, que digam respeito apenas a
grupos particularizados e não à nação como um todo.
7 A fim de ratificar essa visão crítica a estes direitos, MENDES; COELHO; BRANCO (2009, p. 762) colocam que:
(...) o que significa dizer em conformidade com o disposto no Título VIII — Da Ordem Social, no qual esses
distintos direitos encontram seu desenvolvimento, os mecanismos de sua eficácia ou de seu sentido teleológico
e a previsão de ações afirmativas para a sua realização prática, embora ainda longe de serem satisfatórias.
8 Nesse liame, dentre elas, podem ser apresentadas as seguintes leis municipais:
Lei nº. 8.022 promulgada em 10 de julho de 2000. Dispõe sobre a criação, composição, competência e fun-
cionamento do Conselho Municipal de Esporte e Lazer de Belém;
Lei nº. 7.630 de 24 de maio de 1993. Esta dispõe os estádios, cinemas, teatros e estabelecimentos de lazer ou
cultural, licenciados ou fiscalizados pelo Município de Belém. A partir de 25 de junho 2002, teve os seus arts.
1º e 2º modificados pela Lei nº. 8.148;
Lei nº. 8.629 promulgada em 21 de janeiro de 2008. Ela destina-se, prioritariamente, à criação da Secretaria

1172
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Municipal de Esporte, Juventude e Lazer – SEJEL; e


Decreto Municipal nº. 55.669 de 4 de junho 2008. Ele versa sobre as alterações nas estruturas da Secretaria
Municipal de Educação – SEMEC e da Fundação Cultural do Município de Belém – FUMBEL.
9 Dado retirado do sítio da Prefeitura Municipal de Belém. Disponível em: <http://www.belem.pa.gov.br/app/
c2ms/v/index.php?id=1&conteudo=3400>. Acesso em: 23 nov. 2011.
10 Dado retirado do sítio da Prefeitura Municipal de Belém. Disponível em: <http://www.belem.pa.gov.br/
app/c2ms/v/apoio.php?id=1&conteudo=3253>. Acesso em: 23 de nov. de 2011.
11 Dado retirado do sítio da Prefeitura Municipal de Belém. Disponível em: <http://www.belem.pa.gov.br/
app/c2ms/v/?id=15&conteudo=2664>. Acesso em: 23 nov. 2011.

1173
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A técnica disciplinar da
informalidade no Centro de
São Paulo na contemporaneidade
(2006-2012)1

Afonso Soares de Oliveira Sobrinho2

INTRODUÇÃO

Em 2007, durante seminário realizado entre setembro/outubro no


Sesc (Serviço Social do Comércio), na capital paulista, o ilustre professor
Francisco de Oliveira, em análise das “revoluções e mutações”, parecia
já prever os acontecimentos por vir, quando, em brilhante palestra, fez
críticas ao modelo de globalização e apontou o fracasso da política diante
da economia. Em suas palavras, a partir da desestruturação das relações
sociais em grande escala, tornam-se “obsoletos os Estados Nacionais”
(Oliveira, 2007). A política (criada para resolver assimetrias, embora
hoje ocorra o contrário: a economia regula a política) é irrelevante para
mover ações do governo. Dois grandes grupos de transformações podem
ser situados: 1) No campo da revolução técnico-científica: Intensificação,
transformação que atinge toda a escala mundial; Iminência temerosa a
um passo de replicar seres vivos como de criar seres vivos; Para otimiza-
ção do progresso, realização plena. 2) A globalização ou mundialização
afeta o cotidiano (rol de novas configurações na existência humana).
(Oliveira, 2007).
No contexto das mutações globais e locais das grandes cidades, São
Paulo vivencia um processo de boom na construção civil, acompanhado
de vertiginoso aumento na especulação imobiliária e consequente reflexo
na vida das pessoas, especialmente quanto à questão social da pobreza.

1175
Nesse sentido, o centro, como local privilegiado na oferta de bens e ser-
viços, passa a ser objeto da cobiça das corporações nacionais e interna-
cionais, aliado a eventos midiáticos, como a Copa do Mundo de 2014, e
a escassez de outras áreas da cidade com grandes áreas para construção
civil e megaprojetos.
Porém, indaga-se: os espaços públicos do centro de São Paulo deveriam
atender a uma perspectiva de vida com dignidade a toda a população ou
ao estímulo às privatizações elitistas? Essa indagação tem como cenário
o tratamento dispensado por governos locais, nos últimos anos, com a
informalidade3 no centro, em especial na tradicional área situada nas
imediações da Estação da Luz, denominada de Cracolândia4, bem como
o tratamento dispensado pelos governos locais a quem trabalha na infor-
malidade no centro: moradores em situação de rua, vendedores ambu-
lantes, sem-teto, imigrantes ilegais; Ora reprimindo a quem necessita de
trabalho, ora fazendo vistas grossas para a exploração da pobreza alheia.
A Constituição Federal nos ajuda a entender essa questão. O artigo
5º, inciso xxIII, é taxativo quando dispõe que a propriedade atenderá
a sua função social. Portanto, uma cidade plural envolve o acesso aos
espaços públicos para todos: ricos e pobres. A Emenda Constitucional
26/2000 inseriu o direito à moradia, no art. 6º, entre os direitos sociais.
Numa interpretação principiológica, há a sinergia desse dispositivo, com
o princípio da dignidade da pessoa humana, mediante garantia de mora-
dia digna para todos, e não apenas para alguns endinheirados. Além do
direito à saúde, alimentação, trabalho, maternidade, infância, assistência
aos desamparados.
A partir da perspectiva ético-jurídica, o poder público deveria observar
os princípios fundamentais que balizam o próprio Estado de Direito capi-
talista. Temos as cláusulas pétreas expressas na Constituição Federal que,
em seu artigo 1º, caput, II, III e IV, apresenta como fundamentos do Estado
Democrático de Direito: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, aliado
aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Também o artigo 3º,
caput da CF/88, aponta, como objetivos fundamentais da República Fed-

1176
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

erativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária,


a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a
marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, além
da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Entre os direitos e garantias fundamentais do artigo 5º, temos à in-
violabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade. Em consonância com o artigo 6º, temos, entre os direitos
sociais, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança,
a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
social aos desamparados, na forma da Constituição.
Por sua vez, o artigo 170 da Constituição Federal traz, entre outros
princípios gerais da ordem econômica e financeira, a função social da
propriedade, a redução das desigualdades regionais e sociais, busca do
pleno emprego.
Contrariamente, à concepção plural de cidade se identifica, nos
últimos anos, um processo de “limpeza social” no centro, mediante
ações repressivas, como “toque de despertar5”, “Operação delegada6”,
“Operação Centro legal7”. Ao mesmo tempo, o discurso oficial associa
pobreza à marginalidade, com vistas à concepção de cidade voltada aos
endinheirados. Em especial, pelo fato de a área central ser locus privile-
giado de bens, serviços, mobilidade, com o discurso de cuidar da saúde
dos cidadãos e para garantir-lhes o Direito à vida. Os governos locais
passam à adoção de medidas que visam retirar de circulação os depen-
dentes químicos da “Cracolândia”, pela aplicação da lei 10.216/2001,
que prevê a internação voluntária, involuntária ou compulsória a esses
casos. Isso, no entanto, não garante políticas de longo prazo quanto à
vida digna para essas pessoas.
Tramita no Congresso Nacional o PL 7663/20108, que estabelece uma
nova política antidrogas, incluída a internação involuntária declarada por
médico a pedido da família (acrescenta e altera a Lei 11.343 de 2006).
Porém, para além do endurecimento das leis, o direito à vida com digni-

1177
dade diz respeito às garantias, pelo Estado, de que o indivíduo não lhe dê
fim com seus próprios meios; além de assegurar-lhes proteção mediante
condições adequadas de vida para todos: educação de qualidade, saúde,
moradia, emprego, renda e uma política de assistência social de laços
de solidariedade, com vistas à reinserção social e familiar do individuo.

1. AS MEDIDAS DISCIPLINARES DA
POBREZA NO CENTRO DE SÃO PAULO
à LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Observa-se, nos jornais de grande circulação (Folha de S. Paulo, O


Estado de S. Paulo), e demais fontes impressas oficiais na contempora-
neidade, período 2006-2012, na gestão municipal e estadual, um discurso
com acentuado tom saneador9 da pobreza, especialmente quanto às polí-
ticas públicas voltadas ao disciplinamento dos espaços da região central
da cidade, via “revitalização”, em especial a partir do projeto Nova Luz.
Recentemente, teve início operações policiais contra os dependentes quí-
micos da denominada “Cracolândia”, com imagens, na mídia, de policiais
utilizando balas de borracha, gás de pimenta e cassetetes contra sujeitos
desarmados, na conhecida operação de “dor e sofrimento”. Também, o
pânico gerado a partir dessas ações, nos moradores e comerciantes das
imediações, mediante a migração dos dependentes para outras áreas, bem
como reações violentas de seguranças armados com “tacos de beisebol”
para espantá-los.
Isso causou dúvidas acerca da legalidade da Operação Integrada Cen-
tro Legal, desencadeada pelos governos locais na “Cracolândia, com o
discurso de cuidar da vida e saúde desses usuários de droga. Além disso,
ações policiais de “dor e sofrimento” aos dependentes químicos, situados
nas imediações do “Projeto Nova Luz” (sub judice). Todo esse processo,
em curso de internação compulsória, pela administração estadual, visa
“limpar o centro” dos pobres, e promover a especulação imobiliária, bus-
cando atrair novos segmentos sociais, com maior poder aquisitivo para o

1178
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

centro, por ser área privilegiada na oferta de bens e serviços.


No entanto, se discute a possível violação aos Direitos e Garantias
Fundamentais nessas ações. Conforme o artigo 5º, nos incisos e art. 6º
da Constituição Federal de 1988, bem como os princípios fundamentais
do Estado de Direito:

Art. 1º A República federativa do Brasil, formada pela união indis-


solúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-
-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
[...] II. A cidadania
III. A dignidade da pessoa humana [...].
[...] Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qual-
quer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...] III - Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento
desumano ou degradante;
[...] xV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de
paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar,
permanecer ou dele sair com seus bens;
[...] xxIII – a propriedade atenderá a sua função social;
[...] xLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos
direitos e liberdades individuais;
[...] xLIII- a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis
de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entor-
pecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes
hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores
e os que, podendo evitá-los, os omitirem; [...].
Art. 6º São direitos sociais, a educação, a saúde, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, à maternidade
e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição (BRASIL, 2004, p. 17-25).

As ações policiais desastrosas, em janeiro de 2012, na “Cracolândia”


resultaram em ações por danos morais coletivos, pela responsabilização
do Estado de São Paulo por meio de ações próprias.

Cracolândia resiste após 1 ano de operação

[...] A Operação Centro Legal completa nesta quinta-feira, 3, um


ano e, segundo o governo estadual, foram realizadas 1.363 inter-
nações de dependentes químicos na cracolândia, após 152.995
abordagens durante o período. As ruas da região central de São
Paulo permanecem, porém, repletas de usuários, sem nenhum
indicativo de que o controverso método de impor ‘dor e sofri-

1179
mento’ implementado no início de 2012 para afastar as pessoas
do crack tenha surtido efeito [...]. A operação terminou também
em ação na Justiça, com o Ministério Público Estadual pedindo ao
governo paulista R$ 40 milhões de indenização por danos morais
coletivos. Segundo a ação, os usuários foram alvo de bombas,
pancadas, cachorros e das caminhadas forçadas. (CARDOSO, O
Estado de S. Paulo, 2013).

Há que se questionar se as medidas policialescas estariam associadas


a práticas de tortura, cerceamento do direito de ir-e-vir, entre outras viola-
ções de direitos e garantias fundamentais, adotadas pelas administrações
locais contra pessoas desarmadas. Não há política pública efetiva que
garanta o tratamento digno aos dependentes químicos, moradores em
situação de rua, entre outros que se encontra em situação de vulnerabili-
dade social, e, muito menos, projeto de reinserção social desses sujeitos
na sociedade, como trabalho, renda fixa, moradia, educação, entre outros
direitos sociais. Isso poderia gerar possível responsabilidade objetiva dos
agentes públicos em função do previsto no artigo 5º, inciso III, xV, que
expressa taxativamente:

[...] III - Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento de-


sumano ou degradante [...]. xV - É livre a locomoção no território
nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos
da lei, nele entrar, permanecer [...] (BRASIL, 2004, p.19-20).

2. O DISCIPLINAMENTO DA INFORMALIDADE
A PARTIR DO DISCURSO ELITISTA

Numa perspectiva disciplinar da pobreza, a cidade seria como um


organismo doente, numa alusão à saúde e à higiene, especialmente os
informais dependentes químicos que se encontram em situação de rua e
necessitam de cuidados permanentes. Portanto, disciplinar, como técnica
administrativa, em princípio, está no campo das ideologias difundidas na
cidade (criação de leis, discursos, propaganda, projetos urbanísticos) e
visa atender a uma utopia da elite.
O disciplinamento dos dependentes químicos, por sua vez, ocorre pelas

1180
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

práticas da administração local, impondo a ordem acima da lei, mediante


padrões de comportamento, costumes, hábitos, atuação policial, repressão,
interferindo na liberdade de ir-e-vir, fazendo-os migrar para outras áreas
do centro como Bom Retiro, Santa Ifigênia, Campos Elíseos, Santa Cecília.
Acerca da idéia de vigilância permanente, pela disciplina, Foucault
(2008), identifica a figura do Panóptico10.
Entre as técnicas de disciplina, podemos situar a revitalização, regu-
lação, modificação, fiscalização, repressão, “tortura física e psicológica”
e controle dos espaços públicos ou privados. A segregação, o isolamento
e a violência também são formas de disciplina do corpo social. Entre as
técnicas disciplinares, a mais utilizada é a lei, mas como instrumento coer-
citivo a serviço das elites, para promover a especulação imobiliária da área
do projeto Nova Luz e afastar sujeitos indesejados. Porém, o preconceito,
a discriminação e os estereótipos são formas mais sutis de disciplina.
A questão do saneamento envolve um plano ideológico nas medidas
da municipalidade, o grande instrumento é a propaganda oficial, em
especial nos meios de comunicação de massa, quanto à necessidade de
tratar as “doenças sociais” de determinadas áreas da cidade. Cria-se uma
ética e uma estética como padrão de embelezamento da cidade no projeto
hegemônico11 das elites, promovido pela municipalidade.
A disciplina entra como forma concreta de realizar a limpeza, um valor
moral, estabelecendo padrões de aceitação ou não, dentro de determi-
nada área de convívio, ou seja, regras de condutas e comportamentos
nos territórios. Ela vai além dos fatos sociais gerados e se estabelece um
critério de valoração. Passa-se à criação e à aplicação de leis por meio
dos governos locais, como acentua Miguel Reale (1994), em sua teoria
tridimensional do direito FATO+VALOR=NORMA. A partir da repercussão
dos fatos sociais e sua valoração se criam as normas.
Porém, há que se considerar alguns aspectos ideologizantes nesse
processo legislativo, como fatos sociais advindos de interesses criados
a partir da pressão social e que a mídia contribui grandemente, com a
repercussão que lhes dá, o que acaba por realizar os desejos e ações de

1181
setores dominantes, com a aparência do benefício a todos. Inclusive, ganha
ares de legitimidade perante a maioria da população. Refiro-me, aqui, às
ideologias presentes nas leis como instrumento de realização de vontades.
A disciplina se realiza nas ações de apropriação dos territórios das
áreas central, pelo uso da técnica (leis, polícia 24 horas, câmeras, armas,
balas de borracha, helicópteros), como instrumento de poder e controle
sobre o corpo e a mente das pessoas e suas ações. A sanidade e a loucura
passam pela disciplina, pela expulsão de sujeitos considerados “estranhos”
a determinados territórios, utilização dos meios repressivos pelos rigores
da aplicação da lei, da ação policial e, mesmo, em extensão, pela popula-
ção que legitima esse processo por meio da hostilidade aos dependentes
químicos que migram para seu bairro.
Em última análise, é pelo controle dos acessos, a identificação, a se-
paração e o isolamento dos considerados “doentes dos sadios”, que se
realiza o projeto disciplinar permanente. Como exemplo, temos a inter-
nação compulsória em discussão entre judiciário, executivo e sociedade
civil. A vigilância é o grande instrumento disciplinar que permite todo o
controle social. Entre as ações disciplinares, identificamos: a criação de
leis, operações urbanas, fiscalização e repressão policial, instalação de
câmeras em áreas centrais e seu entorno e privatização dos espaços, com
destaque para a “comunidade” enquanto parceira da polícia e do poder
público, na realização de uma utopia de cidade.
As contradições sociais ficam mais evidentes. No entanto, quando se
estabelece um status crescente na onda de violência e ampliação midiática
de programas policialescos na busca por audiência a qualquer custo, passa
a sensação de insegurança insustentável do “cidadão de bem” (acima de
qualquer suspeita). Aponta-se, pois, mais uma vez, na direção das perife-
rias o lócus das ações policiais no combate aos “criminosos”.
A análise dos conteúdos de jornais revelam a “violência como ins-
trumento de poder”12, no processo de “segregação espacial” da cidade
pelos governos em sintonia com as elites locais. Procura-se legitimar
uma nova ordem social calcada no moralismo elitista conservador e
autoritário na condução social das políticas governamentais impulsio-
nadas pela mídia local.

1182
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em todo esse processo de disciplina da pobreza na tradicional na região


da Luz, no centro de São Paulo, algumas questões são relevantes pontuar:
1) Atende a uma lógica global-local de interesses políticos e econômicos
para controle social sobre os sujeitos indesejados aos padrões de mora-
lidade burguesa: dependentes químicos, moradores em situação de rua,
vendedores ambulantes, sem-teto, imigrantes ilegais pobres e toda sorte
de informalidade, que prejudica a arrecadação de impostos por governos
locais e federais; 2) Promove-se a especulação imobiliária da área, sob o
artifício da “revitalização”, com vistas a atender setores endinheirados e
se naturaliza a retirada dos pobres do centro de São Paulo, a partir de um
projeto de utopia de civilidade, para a cidade pelas elites locais.
A partir do exposto ao longo do artigo, em confronto com questões
apresentadas, entende-se que há, sim, políticas públicas de disciplina-
mento da pobreza, consideradas como “limpeza social”, promovidas na
contemporaneidade em São Paulo, no período 2006-2012. Inclusive, a
questão dos dependentes químicos representaria um entrave pela presença
indesejada, na área do Projeto Nova Luz.
A ocupação dos territórios, pela disciplina da área denominada “Cra-
colândia”, parece uma solução imediatista, visando atrair os endinheira-
dos. Porém, como fica a função social da propriedade e, principalmente,
a dignidade e cidadania dessas pessoas em vulnerabilidade social, ante
o direito à vida digna previsto na Constituição Federal? Certamente, não
há efetividade dos direitos fundamentais básicos. E tais medidas vão de
encontro à concepção de cidade plural.
Entende-se, portanto, haver clara violação à dignidade humana, pela
falta de políticas públicas que tratem a pobreza no centro da cidade e
assegurem o mínimo existencial do cidadão, o que inclui: saúde e edu-
cação de qualidade, liberdade, moradia digna, renda fixa. As implicações
legais das ações dos governos locais não se coadunam com princípio
fundamental a dignidade humana (at.1º, III da CF/88), bem como com os

1183
direitos fundamentais e sociais, respectivamente do artigo 5º e 6º e seus
incisos da Constituição Federal (explicitados ao longo do artigo), diante
das ideologias presentes nas mesmas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República federativa do Brasil. 9ª ed.


São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 315p.
_______. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos
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LEIS_2001/L10216.htm>. Acesso em 21 de nov. de 2011.
CARDOSO, William. Cracolândia resiste após 1 ano de operação. In.: O Estado de S.
Paulo. Disponível em: < http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,cracolandia-
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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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OLIVEIRA SOBRINHO, Afonso Soares de. A Concepção saneadora da pobreza nas
políticas públicas contemporâneas (2006-2011) na Cidade de São Paulo: análise crítica
do processo de disciplinamento da informalidade. São Paulo: UNICSUL, 2011. (Dis-
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São Paulo por meio de convênio celebrado com o Município de São Paulo. Disponível
em: < http://www3.prefeitura.sp.gov.br/cadlem/secretarias/negocios_juridicos/
cadlem/integra.asp?alt=12092009L%20149770000%20%20%20%20%20%20%20%20
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Sandra Guardini Vasconcelos. Prefácio Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Boitempo,
2007.

NOTAS

1 Artigo elaborado a partir da Dissertação de Mestrado em Políticas Sociais pela Universidade Cruzeiro do Sul
com o título “A Concepção saneadora da pobreza nas políticas públicas contemporâneas (2006-2011), na Cidade
de São Paulo: análise crítica do processo de disciplinamento da informalidade” (OLIVEIRA SOBRINHO, 2011).
2 Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP. Advogado. E-mail: affonsodir@
gmail.com.
3 “O termo informalidade, para fins de estudo e análise, foi utilizado para referir-se aos excluídos dos espaços
da cidade, em especial: moradores em situação de rua, mendigos, flanelinhas, catadores de material para
reciclagem, dependentes químicos, entre outros que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Esse
termo, portanto, para fins metodológicos de pesquisa, obedece a um critério restritivo diante da complexidade do
fenômeno social que o termo envolve e do universo de pessoas que se encontram em situação de pobreza
em uma Cidade das dimensões estruturais e espaciais como São Paulo” (OLIVEIRA SOBRINHO, 2011, p.14).
4 Cracolândia: região central conhecida como Luz, objeto de operação urbana denominada Nova Luz (incluído
tradicional centro de compras como Santa Ifigênia), em parceria entre governos municipal, estadual e a inicia-
tiva privada que trabalha no sentido de retirada dos dependentes químicos da área pela ideia de revitalização,
incluída a desocupação de parte da área para realização do chamado Projeto Nova Luz. Essa área, conhecida
como Nova Luz, é objeto de especulação imobiliária, por ser o centro de São Paulo, um local privilegiado no
acesso a bens e serviços, e que tem atraído os olhares da nova classe média por grandes projetos imobiliários
para área. Em janeiro de 2012, teve início a operação centro legal, uma parceria entre governo municipal,
estadual e polícia militar para coibir o consumo de drogas por parte dos dependentes químicos em nome da
defesa do direito à vida e à saúde, com forte repressão policial, inclusive com uso de balas de borracha, sirenes
24 horas correndo atrás da multidão de usuários, na chamada operação dor e sofrimento, em que sempre que
ocorre a aglomeração de viciados ocorre a dispersão policial, fase denominada “dor e sofrimento”.

1185
5 “[...] ‘Limpeza’ do Centro? Depois da desastrada reforma do sistema de albergues, que vem reduzindo as
vagas disponíveis para moradores de rua e causou espanto por sua insensibilidade no trato de uma questão
particularmente delicada, tendo em vista seus aspectos sociais e humanos, a Prefeitura da capital acaba de
tomar uma segunda medida igualmente infeliz em relação a essa população desamparada. Portaria publicada
no dia 1º de abril regulamenta os procedimentos a serem observados pela Guarda Civil Metropolitana (GCM)
no trato com os moradores de rua, cabendo-lhe ‘contribuir para evitar a presença de pessoas em situação de
risco nas vias públicas da cidade e locais impróprios para a permanência saudável das pessoas’. Isto deverá
ser feito por meio da ‘abordagem e encaminhamento das pessoas, observando as orientações da Secretaria
Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social’. Isto quer dizer, como explica Bruno Paes Manso em re-
portagem publicada no Estado de quarta-feira, que os guardas poderão incomodar os moradores de rua, para
levá-los a deixar essa condição. Uma das formas de fazer isso é o chamado ‘toque de despertar’. Em vários
locais do centro da cidade – como a Praça da Sé e em frente à Bolsa de Valores –, os guardas estão acordando
diariamente os que dormem deitados nas calçadas. Eles podem ficar ali, desde que sentados [...]” (Editorial,
O Estado de S. Paulo, 16/04/2010).
6 “Lei nº 14.977, de 11 de setembro de 2009. Cria a Gratificação por Desempenho de Atividade Delegada, nos
termos que especifica, a ser paga aos Policiais Militares e Civis que exercem atividade municipal delegada ao
Estado de São Paulo por meio de convênio celebrado com o Município de São Paulo”. Disponível em: < http://
www3.prefeitura.sp.gov.br/cadlem/secretarias/negocios_juridicos/cadlem/integra.asp?alt=12092009L%20
149770000%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20&secr=&depto=&descr_tipo=LEI>. Acesso em:
23/11/2011 às 20h40. “A operação Delegada – também conhecida como ‘bico oficial’ – é um convênio entre
a Polícia Militar e a Prefeitura, em que militares fardados, mas de folga, patrulham regiões determinadas da
capital – deverão ser 20 endereços até o fim de novembro. Os agentes recebem por hora trabalhada os valores
de R$ 12,33 para os praças (soldados, cabos e sargentos) e de R$ 16,45 para os oficiais (tenentes e capitães).
Todos os participantes podem atuar até 96 horas por mês – divididas em turnos de oito horas por dia [...]”
(HADDAD, O Estado de S. Paulo, 28/10/2010)
7 “Impacto da recente ‘Operação Cracolândia’: Em janeiro deste ano foi iniciada a ‘operação cracolândia’ no
centro da cidade de São Paulo (principalmente na Rua Helvetia), onde até o mês de março de 2012 (momento
em que este relatório é composto) a polícia está restringindo a circulação de usuários e traficantes de drogas
naquela região. Dos indivíduos em situação de rua entrevistados, 83,2% ficaram sabendo ou assistiram a ope-
ração, 16,0% não e 0,8% não lembravam. Para os 83,2% que responderam afirmativamente, 40,9% circulavam
ou pernoitavam próximo a Região da Cracolândia. (57,4% não e 1,7% se recusaram a responder). Para estes a
vida dos indivíduos em situação de rua foi afetada por essa operação de forma positiva (para 10,5%), de forma
negativa para 17,2% e os restantes 72,3% acham que não interferiu na sua vida, foi, portanto, indiferente [...]”
(FESPSP; PMSP, 2012, p. 80).
8 “Acrescenta e altera dispositivos à Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, para tratar do Sistema Nacional
de Políticas sobre Drogas, dispor sobre a obrigatoriedade da classificação das drogas, introduzir circunstâncias
qualificadoras dos crimes previstos nos arts. 33 a 37, definir as condições de atenção aos usuários ou depen-
dentes de drogas e dá outras providências”. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fi
chadetramitacao?idProposicao=483808 >. Acesso em 19/07/2013.
9 O discurso saneador se revela como potencial instrumento que legitima as demandas do privado sobre o
público; como técnica, visa limpar a cidade da pobreza extrema, por, nessa ótica, não contribuir para a utili-
dade produtiva dos territórios como ordem hegemônica (das leis, vontades e utopia da cidade limpa e ordeira).
Nesse sentido, o saneamento se traduz em caso de saúde pública do ponto de vista das condições de vida e
trabalho dos dependentes químicos, moradores em situação de rua, prostitutas que, em última análise, não se
enquadram no padrão de moralidade burguesa. Mas, por outro lado, assume também ares de higienização de
ruas, avenidas e logradouros públicos pela ideia de degradação física e social, associados a sujeitos doentes
que precisam passar por medidas de tratamento como a internação compulsória aos dependentes químicos.
O grande instrumento promotor da assepsia é o poder público que usa da técnica (pelas leis, polícia, projetos
de revitalização) para a garantia da ordem e bem-estar da elite pela purificação da sociedade dos vícios e das
degenerações humanas. Por outro lado, a mídia atua como instrumento difusor de ideologias a serviço da
ordem global e local. Tem, assim, função mediadora de atuação dos interesses privados sobre o público e do
poder econômico sobre o político.
10 “[...] O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto,
sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto. Dispositivo importante, pois automatiza
e desindividualiza o poder. Este tem seu princípio não tanto numa pessoa quanto numa certa distribuição
concertada dos corpos, das superfícies, das luzes, dos olhares; numa aparelhagem cujos mecanismos internos
produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos. As cerimônias, os rituais, as marcas pelas
quais se manifesta no soberano o mais-poder são inúteis [...]. Uma sujeição real nasce mecanicamente de uma
relação fictícia. De modo que não é necessário recorrer à força para obrigar o condenado ao bom comporta-
mento, o louco à calma, o operário ao trabalho, o escolar à aplicação, o doente à observância das receitas [...].

1186
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação,
ganha em eficiência e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber
vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as
superfícies onde este se exerça [...]” (FOUCAULT, 2008, p. 167-169).
11 No caso de São Paulo, o projeto hegemônico envolve ideologias difundidas pelos governos locais e a iniciativa
privada, que promove o saneamento da pobreza pela apropriação dos espaços, criação de leis, regulamentos,
propaganda. Também pelo disciplinamento dos dependentes químicos, moradores de rua como segmento que
incomoda a concepção elitista de cidade ordeira, culta e civilizada.
12 Envolve a violência simbólica e física, a partir da negação dos direitos básicos do cidadão como moradia
aos sem-teto, enquanto não atendimento da função social da propriedade; as intervenções urbanas, a partir
de medidas saneadoras da pobreza e disciplinamento da informalidade como: bancos antimendigo, “toque
de despertar” e o fechamento de albergues nas áreas centrais; a perseguição policial aos vendedores ambu-
lantes pela Operação Delegada; o Projeto Nova Luz e as medidas disciplinares como a internação forçada
aos dependentes químicos. E o conjunto de ações disciplinares e ideologias saneadoras a serviço das elites
pela administração municipal e estadual em parceria com a iniciativa privada, enquanto constituidoras de
exclusão aos informais que se encontram em condição de vulnerabilidade social. Entre os sintomas recentes
da violência, temos a formação de novos espaços de segregação a partir da especulação imobiliária, para
atender a demanda de setores das classes médias emergente em condomínios fechados enquanto consumo
que alimenta corporações, entre as quais a indústria da segurança privada. Também, a violência aos informais
se dá no campo da atuação truculenta da polícia, em relação às manifestações sociais contra trabalhadores
informais, estudantes e população pobre em geral.

1187
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

As favelas e o direito à cidade:


histórico de negação e perspectivas
para implementação futura

Tarcyla Fidalgo Ribeiro1

1. INTRODUÇÃO

As cidades historicamente assumiram um importante papel no


processo de desenvolvimento humano, se mostrando como “criadoras e
criaturas” das sociedades que abrigam. Por certo, as influências recípro-
cas entre a cidade como território físico e a sociedade que nela habitam
são decisivas no estabelecimento das relações sócio-espaciais que irão
determinar a qualidade de vida dos seus habitantes.
Deste modo, ao longo dos anos, o estudo das cidades ganhou impor-
tância, destacando-se a análise de suas funcionalidades, sempre dirigidas
ao fim de equilibrar as condições de vida de seus habitantes, melhorando
a condição de todos, mas especialmente dos moradores de áreas menos
valorizadas e constantemente esquecidas pelo poder público. Surge então
o chamado “direito à cidade”, definido como “o usufruto equitativo das
cidades dentro dos princípios da sustentabilidade e da justiça social”2.
O direito à cidade recebeu especial destaque em nosso ordenamento
jurídico com o advento da Constituição de 1988 que, em seu artigo 1823,
dispões sobre o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade,
associadas à garantia do bem estar de seus habitantes, in verbis:

“A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder


Público Municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem
por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais
da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes.”

Posteriormente, com a missão de regulamentar o dispositivo constitu-


cional acima transcrito, foi promulgada a Lei n. 10.257/01, denominada

1189
Estatuto da Cidade, estabelecendo diretrizes gerais para a política urbana
visando à garantia da funcionalização da cidade e promoção do bem estar
de seus habitantes.
Entre as funções sociais da cidade estabelecidas pelo Estatuto da Ci-
dade, se destacam a habitação, o trabalho, a circulação e o lazer, visando
a plena integração dos seres humanos, seu crecimento educacional e
cultural, num ambiente saudável e ecologicamente equilibrado.4
No presente trabalho, iremos analisar o direito à cidade, e sua con-
sequente funcionalização, do ponto de vista dos territórios “excluídos”.
Deste modo, trataremos dos efeitos deste “novo” direito sobre as políticas
públicas implementadas nestes territórios, moradia em geral dos menos
favorecidos e mais carentes de implementação de políticas que lhes garan-
tam melhores qualidades de vida e a acesso à cidade em sentido amplo.

2. hISTóRICO DA SEGREGAÇÃO
ESPACIAL NAS CIDADES BRASILEIRAS

A análise do atual cenário de exclusão sócio-espacial que se repete


nas metrópoles nacionais, e até mesmo em cidades menores, consubstan-
ciado no crescimento de inúmeras áreas de construções irregulares, deve
passar, necessariamente, por uma análise histórica da utilização da terra
no Brasil a fim de desvendarmos não apenas as causas, mas também de
fixar os prognósticos para tal cenário.
A incursão histórica relativa à exclusão urbana deve se iniciar ainda no
século xIx, com a abolição da escravatura e a crescente preocupação dos
antigos senhores em manter os escravos como mão de obra dependente
e barata, para o que era fundamental garantir que esses escravos recém
libertos não alcançassem a posição de proprietários.
Vale ressaltar que, neste momento histórico, o Brasil vinha de um longo
período de abandono de suas terras que, considerando o abrandamento
do controle exercido sobre as sesmarias, passaram a ser livremente ocu-
padas, gerando uma leva de pequenos proprietários que cultivavam a

1190
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

terra para sua subsistência ou para o desenvolvimento de uma pequena


atividade comercial.
Deste modo, a solução encontrada foi o endurecimento da legislação
fundiária por meio da criação da Lei de Terras, em 1850, e de outras leis
que a regulamentaram com a imposição da compra e venda como a única
forma de aquisição da terra no país.
A partir daí, considerando que somente as elites possuíam rendimentos
suficientes para adquirir a terra, fixa-se o latifúndio como principal forma
de organização do território, com a conseqüente expulsão dos pequenos
proprietários e exclusão dos negros do processo de utilização da terra,
ganhando força a repercussão territorial da exclusão sócio-econômica
vigente na sociedade da época.
Com a proclamação da república, as cidades ganham importância não
só por atrair um número crescente de pessoas, incluindo os pequenos
proprietários e escravos recém libertos, impedidos de se fixarem nas terras
conforme anteriormente exposto, mas também por se transformarem no
cartão postal do novo governo, com um processo de embelezamento e
de auto promoção intenso.
Havia uma necessidade, naquele momento, de que o território deixasse
de se configurar como uma colônia, com o mínimo de construções sufi-
cientes para o cumprimento de seu papel de intermediadora de matéria
prima, e passasse a mostrar a imponência de uma jovem república. Para
isto, era necessário afastar os mais pobres das áreas centrais, que passa-
riam a receber investimentos e obras de infra-estrutura e embelezamento.
Neste contexto, identificamos a primeira movimentação para a realiza-
ção de remoções das populações de baixa renda das áreas centrais para
a periferia da cidade, que não foi acompanhada de qualquer política de
infra-estrutura para tal população.
Em grande parte, esta política de retirada dos mais pobres das áreas
centrais foi facilitada por meio da crescente legislação urbanística, que es-
tabeleceu normas bastante restritivas para a habitação nas áreas centrais.
Como conseqüência de todo este processo, as periferias passaram a

1191
concentrar grande parte da população sem qualquer infra-estrutura para
tanto, dando origem a incontáveis favelas e loteamentos clandestinos,
vistos como a única solução de moradia para a população de baixa renda.
Este processo se tornou ainda mais intenso com a industrialização e
a crescente demanda por mão de obra nas grandes cidades. Iniciou-se, a
partir daí, um forte movimento de êxodo do campo e das cidades menores
para as metrópoles em busca de oportunidades e melhores condições de
vida, o que só agravou os já grandes problemas de infra-estrutura nas
periferias, com o aumento expressivo do seu número de habitantes.
Destaque-se que nestes lugares se estabeleceram fortes redes sociais
de cooperação entre os moradores na tentativa de suprir, de certa maneira,
a carência de infra-estrutura gerada pelo abandono do Estado em relação
a estas áreas, redes estas que se tornaram uma característica sociologi-
camente peculiar destes territórios.
Com os inúmeros problemas gerados pelo excesso populacional nos
centros urbanos, já na metade do século xx - mais precisamente em
1964 - foi criado o Banco Nacional de Habitação – BNH, com a preten-
são de estabelecer uma política pública de moradia para os mais pobres
tendo na prática, entretanto, se mostrado uma mera estratégia do go-
verno para ampliar a indústria de construção subsidiando, em verdade,
o capital imobiliário.

Nas palavras de Erminia Maricato5:

Combinando investimento publico com a ação reguladora, o esta-


do garante a estruturação de um mercado imobiliário capitalista
para uma parcela restrita da população, ao passo que para maio-
ria restam as opções das favelas, dos cortiços ou do loteamento
ilegal, na periferia sem urbanização de todas as metrópoles.

Esta afirmação se fundamenta nos dados que demonstram o aumento


das favelas, mesmo após a implantação das políticas do BNH. Empirica-
mente, é possível perceber que a política pública de moradia do governo foi
implementada sem a oitiva da população envolvida, acabando por incidir

1192
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

em equívocos que atrapalharam sobremaneira sua adaptação à realidade


dos menos favorecidos. Somado a isso, era impossível para uma população
de baixa renda, repentinamente, arcar com todos os custos da “moradia
legalizada”, água, luz, telefone e a própria prestação dos imóveis tornava
praticamente impossível sua permanência nos “conjuntos habitacionais”
construídos pelo governo.
Outro fator deve ser destacado pela sua fundamental contribuição
para a falha da política pública de moradia, qual seja, o custo social das
novas moradias. Conforme anteriormente destacado, nas periferias se
construiu uma grande e peculiar rede social de mútua cooperação entre
seus habitantes, rede esta que se perde com as remoções, dificultando a
sobrevivência da população.
Além disso, as remoções propiciavam a desintegração das famílias,
tendo em vista que muitas vezes o pai tinha que ficar no lugar de residên-
cia anterior para manter o emprego e com o tempo acabava arrumando
uma nova companheira e abandonando a antiga família, obrigando
mulher e filhas a se sustentarem por conta própria, muitas vezes por
meio da prostituição.
Todos esses fatores foram responsáveis pelo abandono dos imóveis
construídos pelo governo pela população de baixa renda, que acabou
retornando para a favela, não mais em seu lugar original, próximo da
região central, mas em áreas cada vez mais distantes.
Além disso, outro fator a ser considerado na construção deste cená-
rio, é que pode-se dizer que as grandes cidades brasileiras, no final do
século xx, se caracterizavam por uma notória divisão territorial baseada
nas diferenças de classe social e cor, principalmente. Neste prisma, as
metrópoles nacionais passaram a ser divididas entre a “cidade formal”,
alvo dos investimentos e políticas públicas, e a “cidade informal”, esque-
cida pelo poder público e abandonada ao poder paralelo e à violência
urbana crescente.

1193
A exemplificação deste fenômeno na cidade de Salvador – BA é feita
por Ângela Gordilho6 , senão vejamos:

Espacialmente, observa-se uma nítida separação na cidade entre


áreas formais e informais, situação que se agrava ao serem ana-
lisadas as condições de habitabilidade, anteriormente apontadas.
Cruzando-se essas informações com os dados de renda, identifi-
ca–se claramente, um divisor entre as zonas sudeste e noroeste
da ocupação urbana, sendo esta concentradora de menor renda
e condições urbanístas deficientes.

Com a clara cisão do território urbano, podemos afirmar que o plane-


jamento urbano, bem como os investimentos públicos, se direcionaram
à cidade formal, local de moradia das elites, acentuando a cisão sócio-
-espacial nos territórios urbanos.
Esse ciclo vicioso, associado ao aumento da miséria com o advento
da globalização no fim do século xx, ampliou a segregação espacial
tornando-a estrutural no sistema e propiciando o surgimento de outros
graves problemas, como o impressionante aumento da violência urbana
e o surgimento de um poder paralelo ao Estado nestas áreas.

3. A NEGAÇÃO DO DIREITO à CIDADE: SITUAÇÃO


DAS FAVELAS NOS ÚLTIMOS DOIS SéCULOS

De acordo com a Carta Mundial pelo Direito à Cidade7: “o direito à


cidade democrática, justa, equitativa e sustentável pressupõe o exercício
pleno e universal de todos os direitos econômicos, sociais, culturais, civis
e políticos previstos em Pactos e Convênios internacionais de Direitos
Humanos, por todos os habitantes tais como: o direito ao trabalho e às
condições dignas de trabalho; o direito de constituir sindicatos; o direito
a uma vida em família; o direito à previdência; o direito a um padrão de
vida adequado; o direito à alimentação e vestuário; o direito a uma habi-
tação adequada; o direito à saúde; o direito à água; o direito à educação;
o direito à cultura; o direito à participação política; o direito à associação,
reunião e manifestação; o direito à segurança pública; o direito à convi-

1194
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

vência pacífica entre outros.


No entanto, o caráter histórico-estrutural da segregação sócio-espacial
e o abandono completo das periferias pelo Estado, com o conseqüente
crescimento da violência urbana e da guerra urbana instaurada entre
Estado e criminosos pelo “domínio” destas áreas, relega a população
residente nas áreas mais pobres a um estágio inferior da cidadania, além
de lhes negar direitos básicos como a moradia digna e a liberdade de ir
e vir, entre outros.
Esta premissa pode ser confirmada por meio de nossa percepção em-
pírica cotidiana. De fato, são diárias as notícias de vítimas de violência
residentes nestes territórios segregados, bem como é clara a tentativa
dos moradores das áreas mais valorizadas de afastar os moradores das
favelas e assentamentos ilegais de seu convívio.
Porém, a negativa do direito à cidade aos moradores destas áreas não
pára na ideologia social estigmatizadora ou em fatores externos como a
violência. É importante destacar que a quase totalidade das residências
situadas nas favelas e assentamentos informais não possui saneamento
básico e nem serviço de coleta de lixo. A luz elétrica é conseguida através
de ligações ilícitas e as moradias apresentam, em regra, problemas estru-
turais ligados à precariedade do seu processo de construção.
Além disso, essa população não tem endereço formal, não conta
com pavimentação ou iluminação pública nas ruas, muitas vezes tem
dificuldade de acesso aos meios de transporte, e sequer possui o título de
propriedade de seu imóvel.
Por certo, uma das características destas localidades é a informalidade
do processo de transmissão imobiliária que é feito, em regra, informal-
mente por intermédio da associação de moradores, completamente a
margem das normas imobiliárias e de registro, fragilizando a posição dos
moradores que ficam sujeitos às mais variadas pressões, e até mesmo
coações, para manter sua moradia.
Como se pode ver a partir do breve panorama da realidade nas favelas
e nos assentamentos ilegais, a prática vem impondo a esta população a

1195
negação completa ao direito à cidade, entendido como o conjunto de suas
potencialidades, sendo imperiosa a modificação de tal cenário em obser-
vância ao disposto no artigo 183 da Constituição Federal, regulamentado
pelo Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01.
O fato que se impõe, e que merece estudos visando a sua solução, é
que, mesmo com todas as políticas públicas de controle e muitas vezes
até de remoção desta população, as favelas e os assentamentos ilegais
continuam crescendo em ritmo bastante superior aos da população da
“cidade formal”. Desta forma, ao longo das últimas décadas a reformulação
das políticas públicas destinadas a estas áreas mostra-se urgente, sendo
necessário repensar seus objetivos e sua efetividade real na solução do
problema de habitação no país, sob o novo prisma da garantia do direito
à cidade, previsto constitucionalmente e regulamentado pelo artigo 2 º,
inciso I, do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01).

4. PERSPECTIVAS DE GARANTIA DE ACESSO AOS


DIREITOS FUNDAMENTAIS E àS POTENCIALIDADES
DA CIDADE ENqUANTO TERRITóRIO

Conforme já exposto, com o advento da Constituição de 1988 houve


uma mudança no paradigma de interpretação das cidades, que passa-
ram a ser encaradas como um todo funcional por meio da importância
dispensada aos institutos da função social e do direito à cidade sob uma
ótica inclusiva, para todos os seus habitantes, tornando-se necessária a
implementação de políticas públicas que minimizassem gradualmente, até
o fim definitivo, a cisão entre cidade “formal” e “informal”, ampliando o
acesso aos espaços, serviços e direitos oferecidos no território.
No entanto, as políticas públicas até então implementadas mostraram-
-se falhas ou insuficientes para resolver o problema na medida em que
muito se preocupam com o embelezamento e com a promoção de inter-
venções pontuais nos territórios, que não se sustentam em médio/longo
prazo e, portanto, não garantem aos moradores o acesso à infraestrutura,
ao direito e à cidadania que lhes são devidos.

1196
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Na tentativa de adequar as políticas públicas às garantias constitu-


cionais no âmbito urbano, houve a tentativa legislativa de promover a
integração completa da cidade por meio de diversas medidas, dentre elas
políticas de melhoria das condições de habitabilidade dos moradores da
cidade “informal”, guiadas por um redimensionamento da gestão territorial,
permitindo uma maior ingerência das instâncias locais de poder sobre o
território urbano.
No entanto, a falta de avanço no que se refere ao reconhecimento da
legitimidade social dos espaços das favelas e dos assentamentos ilegais
vem impedindo o alcance dos objetivos fixados pela Constituição. Esse
não reconhecimento implica a ausência de participação da população
residente nestas localidades nos processos decisórios que envolvem seu
território, bem como na não consideração do ordenamento espacial criado
por ela nestas localidades.
Por certo, existe uma ordenação própria, “jurídica” e física, no território
das favelas e assentamentos ilegais, expressão espontânea do modelo de
vida adotado pela população que ali reside, que não pode ser simplesmente
ignorada. A tentativa de impor a ordenação típica da “cidade formal” para
a “cidade informal” ao invés de produzir integração, agrava o abismo exis-
tente entre as duas realidades, se mostrando absolutamente ineficiente.
Além disso, a participação popular deve ser vista como ponto chave
para o efetivo sucesso do processo de integração dos territórios até então
marginalizados nas regras que ordenam o território formalizado. Isto por-
que, além de possibilitarem a adaptação dos regramentos para a realidade
em que serão inseridos, evitando a falta de efetividade pela inadaptação
social, garantem o compromisso social dos habitantes para com as novas
regras, representando mais um ganho em termos de efetividade.
Importante destacar que o incremento da participação popular está
intrinsicamente relacionado com a questão do reconhecimento da legitimi-
dade social do espaço das favelas e assentamentos, que deve ser iniciado
pelo Estado a partir da legitimação e manutenção da produção própria e
característica do espaço ocupado por esta população.

1197
Outro aspecto importante que deve ser observado necessariamente
para o sucesso das políticas de integração é a necessidade de permanência
do Estado nestes territórios “informais”, até então tidos como esquecidos.
Por certo, as intervenções cirúrgicas do Estado nestes territórios pro-
piciam um panorama de melhorias limitado, sendo certo que, a medida
em que o Estado se retira, a comunidade precisa encontrar soluções al-
ternativas para a manutenção das estruturas criadas, constituindo apenas
melhorias de curto prazo, o que demonstra uma maior preocupação dos
governos com a visibilidade política do que com a efetiva melhoria das
condições de vida da população.
Esta postura estatal de promoção de intervenções cirúrgicas, em ge-
ral com fins eleitoreiros, nas favelas e assentamentos informais apenas
contribui para a manutenção de sua população numa condição inferior
de cidadania e para o aumento da segregação espacial.

Nas palavras de Lenise Lima Fernandes8:

[..] a ausência de articulação entre as intervenções urbanísticas


desenvolvidas nas favelas em tela e outras políticas voltadas para
o atendimento das múltiplas carências que marcam o cotidiano
de seus moradores configura-se não apenas como obstáculo para
que esta camada da população possa ser efetivamente alçada a
melhores condições de vida, mas também como elemento que
ameaça, em médio e longo prazo, a prevalência dos avanços
inicialmente computados àquelas mesmas intervenções.
[...] observa-se que as intervenções recentes têm priorizado a
redução de índices que atestam as péssimas condições de vida
dos moradores das favelas, negligenciando o reconhecimento dos
elementos que dão tessitura e que particularizam a identidade
da produção destes espaços de moradia precários.

Este ciclo vicioso mantém essa população refém das práticas cliente-
listas, impedindo sua afirmação como grupo e integração com o território
da “cidade formal”. Além disso, impede seu acesso a diversos direitos
prescritos como fundamentais pela Constituição Federal.
Deste modo, faz-se necessária uma intervenção de longo prazo do
Estado, não apenas promovendo melhorias físicas no território e sua

1198
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

manutenção, como também atuando na promoção de infraestrutura em


atendimento às múltiplas carências da população destes territórios. Tudo,
é claro, tendo por base o reconhecimento da ordenação já existente nestas
áreas, garantindo, ao mesmo tempo, o respeito às especificidades desta
população, e o seu direito à cidade em suas múltiplas potencialidades.
Apenas este tipo de intervenção, mais ampla, duradoura e respeitosa,
será capaz de garantir as condições necessárias para um desenvolvimento
sustentável desta população, integrando-a não apenas ao território da
cidade formal, mas também à rede de direitos e obrigações que ali vige,
típica da cidadania plena.

5. CONCLUSÃO

Considerando todo o panorama brevemente descrito neste artigo, fica


clara a necessidade de uma alteração substancial das políticas públicas
direcionadas a estas áreas e sua população.
É preciso mudar a ótica sob a qual é vista a moradia, de bem de con-
sumo cada vez mais valorizado na lógica mercadológica capitalista para
direito básico do ser humano, com destaque para o seu valor de uso. Nas
palavras de Lenise Lima Fernandes9:

No âmbito das relações sociais capitalistas, o valor de troca


atribuído à moradia se sobrepõe ao valor de uso associado a
este bem. Tratada como mercadoria, a moradia é posta em cir-
culação associada a outra, a terra, sendo esta valorizada a partir
de beneficiamentos diversos. O acesso a ambas é determinado,
então, pelo potencial de compra do consumidor, em primeira
instância. Em decorrência disto, as contradições inerentes ao
modo de produção capitalista, bem como as desigualdades que
o caracterizam, expressam-se na produção do espaço urbano e
geram disputas por sua ocupação e uso.

Além disso, e como conseqüência deste novo enfoque, é preciso


reconhecer a legitimidade destes territórios e da produção típica de sua
população. A partir daí, deve ser prioridade a participação dos moradores
na definição das políticas públicas nos âmbitos sociais e territoriais. Este

1199
tipo de comportamento propiciará a inclusão desta população e a com-
pleta integração dos territórios até então segregados, não com o ônus de
torná-los iguais à cidade formal, mas sim com a positivação do diferente,
passando a ser visto como um elemento integrador e enriquecedor da
cidade como um todo.
Neste contexto, o direito e a função social da cidade, previstos consti-
tucionalmente, devemm pautar as políticas públicas a serem aplicadas a
estes territórios, garantindo a integração entre cidade formal e informal
com respeito às peculiaridades das áreas de assentamento informais e
fornecendo aos seus habitantes as condições mínimas de fruição das
potencialidades da cidade em que vivem.

BIBLIOGRAFIA

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Carta Mundial pelo Direito à Cidade. In V FORUM SOCIAL MUNDIAL, 2005, Por-
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crática no século xxI. In III Jornada Internacional de Políticas Públicas, Questão
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Disponível em: http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppIII/html/Trabalhos/
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GORDILHO, Angela. Legalidade e exclusão urbanística nas grandes cidades brasi-
leiras: um estudo de caso, Salvador – BA. A Lei e a Ilegalidade na Produção do
Espaço Urbano, Belo Horizonte:Del Rey, 2003.
MARICATO, Erminia. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade,
desigualdade e violência. São Paulo:Hucitec, 1996.
MEDAUAR, Odete. Estatuto da Cidade: comentários, 2. Ed., São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004.

1200
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

NOTAS

1 Bacharel em Direito e mestranda em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Email: tarcylafidalgo@gmail.com
2 Carta Mundial pelo Direito à Cidade. In V FORUM SOCIAL MUNDIAL, 2005, Porto Alegre. Disponível em
<http://www.forumreformaurbana.org.br/index.php/documentos-do-fnru/41-cartas-e-manifestos/133-carta-
-mundial-pelo-direito-a-cidade.html>
3 BRASIL. Constituição (1988). Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/consti-
tuicaocompilado.html>
4 MEDAUAR, Odete. Estatuto da Cidade: comentários, 2ª. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
5 MARICATO, Erminia. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência.
São Paulo: Hucitec, 1996.
6 GORDILHO, Angela. Legalidade e exclusão urbanística nas grandes cidades brasileiras: um estudo de caso,
Salvador – BA. A Lei e a Ilegalidade na Produção do Espaço Urbano, Belo Horizonte:Del Rey, 2003.
7 Op. Cit.
8 FERNANDES, Lenise. A Favela e o Direito à Cidade: desafios à integração democrática no século xxI. In III
Jornada Internacional de Políticas Públicas, Questão Social e Desenvolvimento no século xxI, 1997, Maranhão.
Anais. Maranhão: 2007. Disponível em: <http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppIII/html/Trabalhos/
EixoTematicoJ/bd7c591ba6b0641bb8bcLenise.pdf>
9 Op.cit.

1201
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Direito à Cidade, Estado e direito:


práticas insurgentes e o caso Nova
Costeira (São José dos Pinhais –PR)

Glaucia Pereira do Nascimento1


Leandro Franklin Gorsdorf 2
Luana Paz Dornelles Silva3
Luisa Winter Pereira4
Marina Carvalho Sella5
Paulo Henrique Piá de Andrade6

1. INTRODUÇÃO

Os movimentos sociais urbanos em âmbito internacional em 2005


firmaram a Carta Mundial do Direito a Cidade, para avançar com o pro-
cesso de exigibilidade destes direitos, ao trazer parâmetros universais de
garantia do Direito a Cidade. Enfatiza a ideia das “cidades como espaços
onde o usufruto coletivo de riqueza, cultura, bens e conhecimentos sejam
garantidos a todos os seus habitantes, em oposição a proteção discrimi-
natória assegurada somente para aqueles que são donos de propriedades,
bens e capitais”.7
Transformá-lo em referencial político, social econômico e social, para
os Estados, movimentos sociais e comunidades tem sido objeto de dis-
cussão de planejadores e juristas, o que inclusive tem apontado para os
limites quanto a sua efetividade. Mas é no dialogo com a experiência e
história de comunidades afetadas por violações ao seu Direito a Cidade é
que encontramos aquele direito, não somente em relação ao acesso mas
à possibilidade de transformar as cidades.

1203
É com esta finalidade que este artigo traz algumas considerações
sobre a dimensão urbanística e social do Direito a Cidade e sua relação
mediada pelo direito para a efetivação, para depois abordar como, através
do relato da experiência da comunidade Nova Costeira, em São José dos
Pinhais, podemos identificar práticas insurgentes que informam novos
contornos deste direito.

2. DIREITO à CIDADE: DA SENTIDO


URBANÍSTICO AO SENTIDO JURÍDICO

O primeiro a falar em direito à cidade foi o filósofo francês Henri Lefe-


bvre, em seu seminal livro Le droit à la ville – que, publicado pouco antes
do turbulento maio de 1968, soube guardar e transmitir muito da energia
do período. Inspirado por uma invulgar consciência da qualidade de obra
das cidades e manejando criativamente as categorias marxistas de valor
de uso e valor de troca – tornadas estandartes antagônicos que entram em
conflito no e pelo espaço urbano –, o autor chegou à formulação desta
“forma superior dos direitos”8 que é o direito à cidade. Com isso, quis-se
fazer referência tanto a um “direito à vida urbana, transformadora, renova-
da”9, bem como ao “direito à liberdade, à individualização na socialização,
ao habitat e ao habitar”, e implicando ainda direitos “à obra (à atividade
participante) e [...] à apropriação (bem distinto do direito à propriedade)”10.
Logo torna-se claro que Lefebvre não se preocupa em conformar-se
ao sentido jurídico de “direito”, mas sim manipula livremente o conceito a
partir de uma plataforma político-filosófica. Edésio Fernandes nota como
ele “não explora diretamente de que maneira, ou em que medida, a ordem
jurídica determina a natureza excludente do urbanismo”11; igualmente, o
professor norte-americano de planejamento urbano Peter Marcuse identi-
fica na divisa uma reivindicação moral e social, em que a cidade aparece
como metáfora a uma nova sociedade12. Dada a radical amplitude da
elaboração original, não é de se estranhar o embaraço com que muitos
teóricos tentam vertê-la à gramática rigorosa da linguagem jurídica: ao

1204
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

passo em que Marcuse, por exemplo, admite a possibilidade de se con-


siderar o direito à cidade como um complexo total de direitos, análogo
à cidadania, e, pois, sempre transbordante aos direitos individualmente
demandáveis em juízo13, há quem mencione interpretações do direito à
cidade até mesmo como direito de liberdade civil face ao arbítrio estatal14.
No entanto, seria enganador recorrer apenas ao legado intelectual
de Lefebvre – por importante que ele seja – a fim de explicar a atenção
que muitos intelectuais têm voltado para o assunto15. Na medida em que
“a ideia do direito à cidade não emerge primariamente de fascinações e
modas intelectuais [...], [mas sim] desponta das ruas e das periferias”16,
é ao que lá ocorre que devemos ir em busca de explicações. O interesse
renovado na temática – e, portanto, na obra de Lefebvre – pode ser, sob
este aspecto, atribuído ao turbilhão dos movimentos sociais urbanos das
últimas décadas17.
A consagração do direito à cidade como palavra de ordem entoada
por diversas organizações e díspares movimentos sociais18 não se faz,
todavia, sem custo. Escreve Marcelo Lopes de Souza que, a partir do mo-
mento em que o direito à cidade passa a ser usado como uma “expressão
guarda-chuva”, existe o risco de que o termo perca sua força contestatória,
domesticando-se no vocabulário de instituições conformes ao status quo19.
Não parece ter sido este o caso da experiência brasileira. A trajetória
da luta pelo direito à cidade no Brasil – que vem desde os movimentos
organizados em torno da reforma urbana na década de 6020 – chama a at-
enção por ela ter, sem deixar de lado seu caráter essencialmente político21,
atingido também o campo jurídico. Responsável por articular o cenário de
participação popular durante a Constituinte de 1988, o Movimento Nacional
pela Reforma Urbana – “grupo heterogêneo, cujos participantes atuavam
em diferentes e complementares temáticas do campo urbano”22 – conse-
guiu fazer aprovar, ainda que não em sua integralidade, a Emenda Popular
da Reforma Urbana, que contou com cerca de 200 mil assinaturas23. De
maneira inédita na história constitucional do país, passava a constar na lei
fundamental um capítulo referente à política urbana, em que se reconhece,

1205
entre outras coisas, a função social da cidade e da propriedade urbana.
O marco seguinte para uma compreensão jurídica e não apenas sócio-
política do direito à cidade foi a Lei Federal nº 10.257/200124, o Estatuto
da Cidade, que vem regulamentar o capítulo da política urbana da Con-
stituição Federal. A sua aprovação tardia – depois de 11 anos tramitando
entre Câmara e Senado – se explica pelos interesses de grupos embutidos
no Estado em postergar ao máximo sua definição, tendo em vista que a
grande mobilização dos movimentos populares no início da década de 90
lhes desenhava um panorama político pouco favorável25. Não obstante, o
Estatuto sinaliza um entendimento renovado do direito urbanístico, não
mais colocado em separado da gestão urbana, mas sim ali onde sempre
pertenceu: no coração dos processos políticos26. Para Edésio Fernandes,
não devemos subestimar “o impacto que a nova lei pode ter sobre a ordem
jurídica e urbanística no Brasil, uma vez que suas possibilidades sejam
assimiladas e suas disposições efetivamente postas em prática”27.
A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik distingue três campos em que se
concentram as inovações do Estatuto: além da já mencionada renovada
compreensão da gestão urbana, que deve agora incorporar “a ideia de
participação direta do cidadão em processos decisórios sobre o destino das
cidades”28 – manifestando-se, pois, em políticas urbanas que se afastem
da “ficção tecnocrática dos velhos Planos Diretores de Desenvolvimento
Integrado, que tudo prometiam”29, apesar de não disporem do mínimo
necessário à própria efetivação –, ele traz também um conjunto de novos
instrumentos urbanísticos voltados à normatização e, principalmente, à
indução e ao controle do uso do solo urbano, no sentido de uma justa dis-
tribuição de cidade a todos. O terceiro campo de inovações é a normativa
respeitante à regularização dos assentamentos informais, matéria em que
o Estatuto é bem sucedido já por retirar das sombras conflitos que antes
caíam em ambíguo ecótono entre o legal e o ilegal30. A cidade real, deste
modo, deixa de ser ficção na letra da lei: reconhece-se a existência e, mais
que isso, a legitimidade das ocupações de terras para moradia, bem como
a possibilidade – e o dever – de sua legalização jurídica31.

1206
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

No entanto, alguns obstáculos à aplicação eficaz do Estatuto não foram


por ele transpostos. Poder-se aponta algumas restrições do paradigma de
planejamento calcado nos limites político-administrativos dos munícipios,
em que o Estatuto ainda aposta, como debilitantes; igualmente, a atribuição
ao poder municipal de legislar somente sobre o uso do solo urbano interpõe
barreiras à “utopia espacial” que deveria ele representar32. Detendo-se à
escala municipal, o Estatuto resta incapaz de apreender a dinâmica urbana
em sua complexidade33, e faltam-lhe instrumentos aplicáveis às diversas
formas de associação de municípios. Mais que isso, o Estatuto é omisso
quanto ao planejamento integrado de regiões metropolitanas34. Essas
mesmas dificuldades em trabalhar com escalas ao nível da organização
política da região metropolitana estão presentes também nas análises de
esquerda sobre a urbanização capitalista, que, de acordo com David Har-
vey, acabam procurando em vão mágicas concordâncias que garantam,
de algum modo, a repercussão global das ações locais35. A insuficiência
do Estatuto em dar conta destas questões somente endossa a necessidade
de um novo debate sobre o significado das regiões metropolitanas.
Esboçada esta rápida análise a respeito do Estatuto da Cidade, vale lembrar,
para arrematar – por ora – a questão, as seguintes linhas de Erminia Maricato:
“[a] lei dá instrumentos para o avanço da luta contra a apropriação desigual
do espaço urbano, mas não a substitui como pensam alguns. Certamente
haverá interpretações diversas (e até opostas) para a implementação dos
instrumentos urbanísticos previstos36”.
O direito à cidade, em sua efetivação, insurge-se contra a segragação
social e espacial. Cabe trazer sempre à vista sua importância, discutindo
a questão urbana como uma problemática atual e premente – e não como
um problema meramente administrativo ou técnico. É imperioso pensar
coletivamente a cidade, para que o exercício pleno da cidadania venha a se
cumprir e para que se tenha a apropriação democrática do espaço urbano.

1207
3. DIREITO à CIDADE, ESTADO CAPITALISTA
E MECANISMOS DE DISPERSÃO

Contra o sempre presente risco de decair em letra morta, afirma-se


a efetividade de um direito como sua prova dos nove. Se a experiência
brasileira de levar a luta pelo direito à cidade também às usualmente ári-
das paragens jurídicas surge como exemplo a ser seguido37 – produto de
exportação –, cabe a pergunta quanto às reais chances dessa virtuosidade
ganhar viço e robustez no inóspito terreno em que busca se inserir pra-
ticamente: o processo de urbanização capitalista e periférico. Sobre ele,
seguem-se rápidos apontamentos.
“Em última análise, a cidade capitalista não tem lugar para os pobres”
– assim condensa Paul Singer a problemática.

“A propriedade privada do solo urbano faz com que a posse de


uma renda monetária seja requisito indispensável à ocupação
do espaço urbano. Mas o funcionamento normal da economia
capitalista não assegura um mínimo de renda a todos”, de modo
que “parte da população acaba morando em lugares em que, por
alguma razão, os direitos da propriedade privada não vigoram”38.

O diagnóstico não é novo: Engels, em um texto de 1872, já escrevia que


“não pode existir sem falta de habitação uma sociedade em que a grande
massa trabalhadora depende exclusivamente de um salário, ou seja, da
soma de meios indispensáveis para sua existência”39. David Harvey, por
sua vez, divisa no cerne da urbanização sob o capitalismo um permanente
processo de deslocamento e desapropriação dos mais pobres, com o fim
de abrir espaço para os fluxos de capital40.
Identifica-se o elo que existe entre a dinâmica do urbanismo e o modo
de produção capitalista na ordem hierárquica que assumem lugares e
atividades no interior da divisão sócio-espacial do trabalho41, de modo
que a cidade e o urbanismo podem funcionar como estabilizadores de
um modo de produção, garantindo-lhe condições de autopreservação42.
No entanto, para que as cidades tomem este papel é necessário algum
suporte institucional – resultando em que “os processos sociais que se

1208
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

desenvolvem no meio urbano [sejam], também, dirigidos, organizados (e


por vezes criados) por ‘planos’”43 –, uma vez que

[a]s tendências predominantes do processo de urbanização não


são simples acaso. As formas e as dinâmicas hegemônicas nas
cidades não são frutos da espontaneidade do mercado, como se
fosse possível creditar o “sucesso” ou o “azar” de uma cidade
(e de um “lugar” na cidade) meramente à álea econômica. Pelo
contrário, as manifestações e exigências do mercado são contro-
ladas e por vezes assumidas pelas instituições, de forma que as
próprias contradições econômicas são incorporadas no sistema
político-jurídico44.

Fica claro que, se a dinâmica urbana é substancialmente determinada


pelo mercado fundiário e imobiliário – de natureza essencialmente espe-
culativa45 –, uma análise mais detida não pode deixar de apontar o nexo
orgânico existente entre informalidade urbana e políticas públicas: ou
seja, entre ela e a atuação do Estado46. Tanto contra a hipótese do dis-
curso dominante, que vê os agentes não capitalistas – os que produzem
a cidade com autoconstrução, ocupações coletivas etc. – como únicos
causadores dos problemas urbanos47, bem como contra a hipótese que
afasta a responsabilidade do Estado48 (ou, quando muito, a admite apenas
com relação às suas aparentes omissões), é possível identificar as origens
da informalidade, em alguma medida, em ações positivas do Estado.
Conforme M. Smolka, incluem-se aí desde “programas assistenciais mal
concebidos [...] [e] ações de caráter clientelístico, em que se faz ‘vista
grossa’ à ocupação e/ou disponibilização do patrimônio público”, até a
“ regulação excessiva, excludente, elitista [...] que impõe condições não
razoáveis – impossíveis de cumprir pelos pobres – de ocupação do solo
urbano”49. Tornando endógena à política urbana parte da responsabilidade
pela informalidade, atenta-se também a como a ordem jurídica determina
a natureza excludente da urbanização50.
Boaventura de Sousa Santos, em um interessante texto da década de
80, ocupa-se de investigar a atuação do Estado capitalista sobre o espaço
urbano. Para tal, avança o que chama de teoria da dialética negativa do
Estado capitalista, segundo a qual o Estado – que é capitalista não por

1209
configurar qualquer espécie de monolítico instrumento de uma classe
contra a outra, mas sim por ser informado pela lógica do capital51 e por
seu papel constitutivo no processo de acumulação52 – tem por função
política geral o “dispersar” das contradições e das lutas sociais suscitadas
pelo modo de produção capitalista, de modo a “mantê-las em níveis ten-
sionais funcionalmente compatíveis com os limites estruturais impostos
pelo processo de acumulação”53. Com este fim, o Estado lança mão de
um conjunto articulado e complexo de “mecanismos de dispersão”, que
podem ser internamente diferenciados em mecanismos de socialização/
integração, de trivialização/neutralização, e de repressão/exclusão54.
Sendo a pacificação global das tensões inatingível, a mobilização destes
mecanismos é vária e assimétrica, à dependência das condições históricas
concretas. O direito, contudo, sob a condição de privilegiada mediação
entre o político e o econômico55, é o principal responsável por acionar
tais mecanismos56.
Estas categorias guardam grande potencial explicativo, revelando-o
quando postas em movimento sobre um recorte contextual. Vem a pro-
pósito fazê-lo agora, brevemente, a partir das vicissitudes em torno da
Vila Nova Costeira, situada em São José dos Pinhais, município da Região
Metropolitana de Curitiba – cujo caso será explorado com maior vagar
adiante. Neste ponto, basta-nos o enfoque sobre a atuação estatal face
à comunidade.
O Poder Público de São José dos Pinhais protagonizou falsas resoluções
e a recorrente irresolução dos problemas da comunidade, articulando, em
conjunto ou alternadamente, mecanismos de integração e de trivializa-
ção. Com isso, prolongou-se a despolitização do conflito, ainda que sob
o assomo nunca ausente de eventual recurso à remoção.
O surgimento da Vila Nova Costeira reconduz já a uma integração:
sua ocupação deu-se através da realocação emergencial, em 1995, de
residentes de outro assentamento, atingido por enchente. O terreno em
que se fixou a população, concedido com permissão do Poder Municipal,
trazia já um histórico de desacertos: votado à União para fins de expansão

1210
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do aeroporto (que serve também Curitiba), retornou logo ao município,


uma vez que o projeto não se efetivou. A ambiguidade perpetou-se com
relação às pessoas reassentadas, que nunca tiveram sua situação jurídica
regularizada. Do mesmo modo, o município omitiu-se quanto à provisão
de infraestrutura: embora hoje o assentamento esteja consolidado, itens
como o asfalto e as manilhas – bem como as unidades habitacionais –
foram todos custeados pelos próprios moradores. Temos aí os elementos
de trivialização pelo Poder Público. A dialética manteve-se estável: a cada
promessa de integração, seguiu-se seu pontual desatendimento57 – exem-
plos são o procedimento de regularização fundiária encerrado sem nenhum
resultado e a decretação da área da comunidade como ZEIS, à qual não se
seguiu qualquer política consequente58. A falta de informações contribui
para a insegurança da população, que fica como à deriva. Cumpre ressaltar,
por fim, que, ante a iminência de uma desapropriação59 e contando com o
apoio do Comitê Popular da Copa de Curitiba, houve maior reorganização
política da comunidade nos últimos dois anos, centrando-se esta inclusive
em torno a traduções jurídicas de suas demandas – o que traz novamente
à tona o caráter nem automático nem unívoco das relações que se travam
entre o político e o jurídico60.

4. PRáTICA INSURGENTE: DO ABANDONO


à VISIBILIDADE DA NOVA COSTEIRA

A comunidade Nova Costeira, situada na cidade de São José dos Pinhais,


na Região Metropolitana de Curitiba, está consolidada há mais de vinte
anos. São em torno de trezentas famílias que ocuparam a área no início
dos anos 90, após uma desapropriação anterior.
A ocupação iniciou-se através de realocação para esta área atual. O
processo foi gerido pela COMEC – Coordenação da Região Metropolitana
de Curitiba. As famílias realocadas situavam-se, antes, na região da Cos-
teira, em área de risco pelas obras de construção de canal extravasor do
Rio Iguaçu. A transferência se deu para área de propriedade do município,

1211
sendo que, na época, os realocados receberam da prefeitura títulos de
concessão de uso precários, datados para vencimento dali a cinco anos.
Além disso, a distribuição por parte da Secretaria de Habitação de núme-
ros prediais referentes aos lotes estava individualizada por “proprietário”
(conforme termo utilizado).
A prefeitura de São José dos Pinhais nunca contestou a posse dos lotes
individuais ou da gleba como um todo, durante os cinco anos de validade
dos termos de uso; igualmente, nunca investiu na infraestrutura da área,
abandonando-a por completo. Todas as benfeitorias que se observam na
comunidade são fruto da construção de cada morador, sendo apenas estes
os responsáveis pela pavimentação das ruas, implantação de calçadas e
manilhas, além de aquisição de postes para receber iluminação pública.
Esta comunidade avança no sentido da busca insurgente dos seus di-
reitos, construindo uma cidadania que não tem como fonte a legalidade
estatal, mas suas práticas sociais que vão conformando um projeto próprio
– da comunidade para a comunidade.
Os moradores utilizam os serviços públicos a que têm direito, como es-
colas e unidades de saúde, porém, não podem usufruir do serviço dos
correios, uma vez que não possuem o Código de Endereçamento Postal
pelo fato de seus imóveis não estarem devidamente regularizados. Isto
implica em dificuldades com as correspondências, mas não impede o
recebimento das faturas de cobrança das taxas dos serviços essenciais,
como água, esgoto e luz. Além disso, reforça a informalidade, já que difi-
culta a comprovação de residência (necessária para abertura de conta em
bancos, por exemplo) e acentua a pobreza, negando o acesso ao trabalho
àqueles que não dispõem de endereço formal.61
Tal realidade permaneceu ignorada até o ano de 2008 quando, através
do decreto 2.347 de primeiro de setembro, a prefeitura reconheceu a área
como Zona Especial de Interesse Social.
Tal reconhecimento, que serviria a abrir as portas da regularização da
área, bem como poderia responder a esse histórico de reiteradas restrições
e violações de direitos dos “invisíveis” de Nova Costeira, é esquecido e

1212
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

enterrado em 2011, quando do anúncio da construção da terceira pista


do Aeroporto Internacional Afonso Pena.
Com a escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014 e sub-
sequente escolha de Curitiba como uma das cidade-sede, uma série de
obras de infraestrutura urbana é anunciada nesta cidade, sublocadas à
matriz de responsabilidade do Programa de Aceleração do Crescimento II,
o “PAC Copa”, destinado a obras de mobilidade urbana que constituiriam
um “legado” para as populações locais, do governo federal.
A construção da terceira pista é peculiar nesse contexto. Em realida-
de, trata-se de um projeto antigo do governo estadual que, entretanto, se
arrasta no papel há três décadas. Na primeira metade de 2011, porém,
a promessa foi de que, finalmente, ele fosse executado, com o anúncio
oficial de execução da obra. E isso aconteceu, justamente, com inserção
do projeto na matriz de responsabilidade do “PAC Copa” num primeiro
momento, como forma de “antecipação” das obras, dada a necessidade
da mesma ante o megaevento esportivo62.
Esta oportunidade se insere no modelo capitalista de apropriação
do espaço das cidades, que se utiliza de intervenções de grande porte
relacionadas a novos circuitos de economia globalizada, reforçando a
cidade como mercadoria, como produto de exportação para a atração
de investimentos. E são as regiões metropolitanas têm sido o cenário
ideal destas soluções pontuais e localizadas que incrementam a idéia de
competitividade.63
É nesse contexto que tem lugar o decreto 3.409 de dezembro de 201164,
declarando a área no entorno do aeroporto, incluindo dentre outros bair-
ros a comunidade Nova Costeira, como de utilidade pública para fins de
desapropriação pelo Estado do Paraná.
Porém apesar da retomada do projeto da 3ª pista do Aeroporto Interna-
cional Afonso Pena com a discussão sobre a realização da Copa do Mundo,
este megraprojeto foi retirado da Matriz de Responsabilidade em razão do
prazo para o termino das obras em 2014, o qual se tornou inviável para
o Poder Público. Mas o projeto se manteve assim mesmo e com recursos
liberados, mas prazo estendido.

1213
Da mesma forma que em outras cidades que irão hospedar jogos
do mundial, formou-se em Curitiba um Comitê Popular da Copa (CPC),
articulação da sociedade civil construída por organizações, entidades e
pessoas independentes, com o objetivo de acompanhar e fiscalizar as
ações movidas em função dos jogos, assessorando aqueles que venham
a ter seus direitos violados por elas. O caso da Nova Costeira se destaca
no contexto de Curitiba, primeiramente por se tratar de uma comunidade,
um agente coletivo, e, em segundo lugar, dado o seu histórico e por ser,
dentre aquelas áreas a serem desapropriadas, a única em situação irre-
gular, o que aprofunda o drástico de sua situação, dificultando a sua luta
na lógica de um Estado burocrático. Desde o anúncio das obras, a vida
na comunidade mudou radicalmente, pelo sentimento de insegurança e
ameaça sempre presente, ao mesmo tempo que se iniciaram os processos
de mobilização por direitos que compõem o Direito à Cidade.
O diálogo entre a comunidade e o Comitê se inicia em 2012, através
de reuniões na comunidade entre a equipe do CPC e, primeiramente, a
Associação de Moradores, buscando diagnosticar o impacto das obras.
Disso, resultou o oficiamento da Infraero, Prefeitura Municipal de São José
dos Pinhais e Governo do Estado do Paraná, demandando-se acesso ao
projeto e esclarecimentos quanto ao modo de sua execução, com deli-
mitação da área atingida, bem como acesso ao projeto de regularização
fundiária da área.
Mesmo com a assessoria jurídica do CPC e o oficiamento desses ór-
gãos, o acesso à informação mostrou-se muito restrito. O que ocorreu foi
um mero repasse de competências interórgãos ou o absoluto silêncio na
resposta desses ofícios. Diversas reuniões foram feitas entre a Comissão
de Moradores, assessorada pelo Comitê, e estes órgãos oficiais, na entrega
desses ofícios e como meio de pressão e exigência do acesso à informação.
Estudando alternativas de regularização da área, a equipe do Comitê
chegou à Concessão Uso Especial Para Fins De Moradia como instrumen-
to adequado a responder à realidade da Nova Costeira e ao contexto de
desapropriação eminente.

1214
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A estratégia de mobilização dos agentes comunitários se deu pela


formação de uma Comissão de Moradores ampliada, que ficaria respon-
sável pelo contato mais direto e constante com o CPC, cujos membros
fossem referências para o resto da comunidade buscar informações e
tirar dúvidas. Esse grupo de moradores também seria o responsável por
centralizar os documentos necessários à formulação das CUEMs. A partir
daí, uma grande mobilização foi feita na comunidade, com panfletagem
e carro de som, chamando-a a participar de uma oficina para conhecer
a CUEM e a situação da comunidade quanto à segurança da posse, dado
o novo contexto.
A estratégia interna à comunidade se concentrou, portanto, na referên-
cia das pessoas da Comissão de Moradores, responsáveis pela mediação
entre a comunidade e assessoria do CPC, bem como o diálogo com órgãos
públicos. Nesse sentido cabe ressaltar a estratégia externa, organizada ba-
sicamente em duas frentes, uma de denúncia e outra de pressão. Atuou-se,
de um lado, pela assessoria do CPC e apoiados no direito à informação e
participação regulamentados pelo decreto estadual 8020 de 16 de abril de
2013, pelo oficiamento do Ministério Público, através do CAOP – Centro de
Apoio Operacional das Promotorias de Justiça, de Habitação e Urbanismo,
requerendo-se parecer e acompanhamento do caso, o qual foi deferido.
De outra parte, como já apontado, atuou-se pela oficiamento dos órgãos
públicos envolvidos no caso, no sentido de pressioná-los pelo acesso a
informações, bem como pelas diversas reuniões marcadas, na qual a pre-
sença da Comissão de Moradores empoderada de seus direitos explicitou
o absurdo da situação e expôs as contradições daquele Estado burocrático.
Assim, em 20 de outubro de 2012 foi realizada uma oficina na comuni-
dade expondo as informações até então obtidas sobre a obra e a possibili-
dade do pedido administrativo da CUEM. Em 10 de novembro de 2012 e os
três finais de semana seguintes foram ocupados com idas à comunidade,
com passagens de casa em casa explicando aos moradores a situação de
fragilidade da comunidade e os requisitos da CUEM, incluindo a coleta de
documentos para a sua execução. Os meses de janeiro e fevereiro de 2013

1215
foram consagrados à elaboração do pedido, que contou com a adesão,
até aquele momento, de 85 famílias. Outras oficinas foram realizadas em
março de 2013 para a coleta final de documentos e assinatura dos pedidos
administrativos de CUEM, culminando com o protocolo de 63 pedidos na
Prefeitura de São José dos Pinhais no dia 06 de maio, em reunião oficial
entre a Comissão de Moradores e a Prefeitura.
O caso da Nova Costeira é emblemático por articular, a um só tempo,
todo um histórico de violação do direito à cidade e da função social da
propriedade, bem como a sistemática violação de direitos da população
fragilizada nos contextos de megaprojetos. Nesse sentido, dado os grandes
interesses que a cercam no atual contexto – econômicos e políticos –, a
visibilidade, após anos de completo abandono, é sintomática, mas deve
também servir de estratégia, como forma de denúncia.
É nesse marco que o Comitê Popular da Copa viabilizou a visita à
comunidade da Relatora Especial da ONU para Moradia Adequada, Ra-
quel Rolnik, em outubro de 2012. O Grupo de Trabalho sobre Moradia
Adequada, vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República, do qual faz parte o professor Nelson Saule Júnior, também
visitou a comunidade em setembro de 2012. Além destas, durante feve-
reiro de 2013, a Nova Costeira recebeu, ainda, a equipe de Auditoria Par-
ticipativa da Secretaria de Controle Interno da Presidência da República,
responsável por detectar e monitorar violações de direitos decorrentes
de obras públicas associadas à Copa do Mundo de 2014, consequência
do trabalho dos Comitês Populares da Copa em todo o Brasil, no traba-
lho de assessoria e resistência das comunidades atingidas, dando voz e
visibilidade a suas histórias.
Realiza-se com este processo outro Direito a Cidade, que visa romper
a lógica do Estado com seus mecanismos de dispersão, de integração e,
portanto de desmobilização. Ao mesmo tempo em que a comunidade
busca a visibilidade externa, perante o Estado e a sociedade, busca o seu
próprio reconhecimento e legitimidade como sujeitos de direitos, e de fonte
de conformação do espaço urbano. Trata-se de uma forma insurgente

1216
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do social, atuando tanto por “meio de manifestações de base quanto em


práticas cotidianas que, de diferentes maneiras, legitimam, parodiam,
desordenam ou subvertem as agendas do estado.”65
Existe a mutabilidade do Direito à Cidade, expandindo seu alcance em
razão das mudanças da cidadania decorrentes de novas reivindicações.
Nova Costeira pode ser considerada um lugar de insurgência, isto é, um
destes “lugares que introduzem na cidade novas identidades e práticas
que perturbam histórias estabelecidas.”66 Os novos espaços de cidadania
que daí resultam são principalmente um produto de reterritorialização de
tantos novos residentes com novas histórias, culturas e demandas que
rompem com categorias normativas e aceitas da vida social.
Dessa forma deve-se considerar que não podemos falar num direito
à cidade único, aquele imposto e produzido tão somente por parte do
Estado, mas em direitos a cidades, que se constroem historicamente e
partir desses novos espaços coletivos de insurgência e de cidadania, ob-
jetivando as demandas que devem ser consideradas. O Direito deve estar
permeado e ser permeável para a incorporação destes direitos. O Estatuto
da Cidade como norma genérica e abstrata garante esta abertura quando
impõe, como princípio transversal a todas as políticas de desenvolvimento
urbano, a busca da efetivação do direito à cidade.
O Direito a Cidade não deve ser considerado apenas um projeto utópico,
mas, diferentemente, deve calcar-se “naquilo que já existe e anuncia sua
existência – as potencialidades de transformação do futuro.”67

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A continua vigilância dos movimentos sociais e das comunidades em


torno do Direito a Cidade deve procurar garantir que este direito não seja
capturado pela dimensão jurídica estatal e conformado e domesticado
pelo Estado, arrefecendo as lutas urbanas pela transformação da cidade.
As gestão governamental que viabiliza os grandes projetos e os mega-
eventos incide diretamente nas comunidades às quais sempre foi negado

1217
o Direito a Cidade, ocasionando uma tensão, um conflito em seu lado
mais positivo, de liberação de práticas para além do estatal, em que se
organizam as dimensões emancipatórias do Direito a Cidade.
A comunidade da Nova Costeira que antes fora invisibilizada – seja
pela omissão do Estado ou por seus mecanismos de integração – hoje
constrói em sua prática cotidiana o seu entendimento sobre o Direito a
Cidade a partir das suas demandas concretas, presentes que irradiam para
um futuro de transformação de sua cidade.

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NOTAS

1 Graduanda do Curso de Geografia da Universidade Federal do Paraná e bolsista do projeto de extensão


PROExT “Cidade em Debate: questões metropolitanas”, e-mail: glauciapnascimento@gmail.com
2 Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, Pro-
fessor de Direitos Humanos do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Federal do Paraná, coordenador do
projeto de extensão PROExT “Cidade em Debate: questões metropolitanas” e pesquisador do Observatório
das Metropoles, e-mail: leandrofranklin@ufpr.br .
3 Graduanda do Curso de Direito da Universidade Federal do Paraná e bolsista do projeto de extensão PROExT
“Cidade em Debate: questões metropolitanas”, e-mail: luanapazdornelles@gmail.com .
4 Graduanda do Curso de Direito da Universidade Federal do Paraná e bolsista do projeto de extensão PROExT
“Cidade em Debate: questões metropolitanas”, e-mail: luisa.w.pereira@gmail.com
5 Graduanda do Curso de Direito da Universidade Federal do Paraná e bolsista do projeto de extensão PROExT
“Cidade em Debate: questões metropolitanas”, e-mail: marina.c.sella@gmail.com

1220
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

6 Graduando do Curso de Direito da Universidade Federal do Paraná e bolsista do projeto de extensão PROExT
“Cidade em Debate: questões metropolitanas”, e-mail: andradepia1@gmail.com
7 OSÓRIO, Leticia Marques. Direito a Cidade como Direito Humano Coletivo. In: FERNANDES, Edésio, ALFONSIN,
Betânia. Direito Urbanistico: estudos brasileiros e internacionais. Editora Del Rey: Belo Horizonte, 2006, P. 195.
8 LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Farias. São Paulo: Moraes, 1991, p. 135
9 Idem, p. 118
10 Idem, p. 135
11 FERNANDES, Edésio. Constructing the ‘Right to the City’ in Brazil, p. 208. Disponível em:
http://law.gsu.edu/jjuergensmeyer/spring2013/Edesio.Fernandes.Right.City.pdf.
12 MARCUSE, Peter. „Du kannst nicht bis zur Revolution warten, wenn du gerade einen Schlafplatz brauchst“:
depoimento. [24 de maio, 2012]. Jungle World. Entrevista concedida a Moritz Wichmann. Disponível em: http://
jungle-world.com/artikel/2012/21/45520.html.
13 MARCUSE, Peter. Whose right(s) to what city?. In: BRENNER, Neil; MARCUSE, Peter; MAYER, Margit (orgs.).
Cities for people, not for profit: critical urban theory and the right to the city. Nova York: Routledge, 2012, p. 35
14 ATTOH, Kafui A.. What kind of right is the right to the city?, p. 670.
15 HARVEY, David. Rebel Cities: from the Right to the City to the Urban Revolution. Londres, Nova York:
Verso, 2012, p. xi
16 Idem, p. xiii
17 Idem, p. xii
18 Vale lembrar que “movimentos sociais” não se confundem, de pronto, com “movimentos populares”.
19 SOUZA, Marcelo Lopes de. Which right to which city? In defence of political-strategic clarity, p. 316. Disponível
em: http://interfacejournal.nuim.ie/wordpress/wp-content/uploads/2010/11/Interface-2-1-pp315-333-Souza.
pdf. No mesmo sentido, Marcuse diagnostica, em sua entrevista, uma gradual “socialdemocratização” da ex-
pressão assim que o horizonte do direito à cidade perde lugar às exigêncios de direitos à cidade: à habitação,
aos serviços urbanos, ao meio-ambiente, etc.
20 SAULE JÚNIOR, Nelson; UZZO, Karina. A trajetória da reforma urbana no Brasil. Disponível em: http://www.
redbcm.com.br/arquivos/bibliografia/a%20trajectoria%20n%20saule%20k%20uzzo.pdf.
21 Diferentemente, anota Carlos Frederico Burnett que, quanto à “posição legalista” adotada pelo Fórum
Nacional da Reforma Urbana após a aprovação da Constituição, “provavelmente, a velha crença positivista
na neutralidade do Estado perante as classes sociais e em sua suposta racionalidade, capaz de resolver o
caos urbano, pesou decisivamente na estratégia política”. Ver BURNETT, Carlos Frederico Lago. Da tragédia
urbana à farsa do urbanismo reformista: a fetichização dos Planos Diretores Participativos. Tese de Doutorado,
UFMA, 2009, p. 230.
22 Idem, p. 260
23 Idem, p. 262
24 FERNANDES, op. cit., p. 202. Em seu art. 2º, inciso I, consta como diretriz geral da política urbana o “direito
a cidades sustentáveis”.
25 BURNETT, op. cit., p. 227
26 FERNANDES, op. cit., p. 218
27 Idem, p. 212
28 ROLNIK, Raquel. Estatuto da Cidade – Instrumento para as cidades que sonham crescer com justiça e beleza.
In: ROLNIK, Raquel; SAULE JÚNIOR, Nelson. Estatuto da Cidade: novos horizontes para a reforma urbana. São
Paulo, Pólis, 2001, p. 5
29 Idem, p. 7
30 RODRIGUES, Arlete Moysés. Estatuto da Cidade: função social da cidade e da propriedade. Alguns aspec-
tos sobre população urbana e espaço, p. 12. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/metropole/
article/view/8807/6528.
31 Idem, p. 13
32 Idem, p. 16 e 17
33 Idem, p. 20
34 Idem, p. 19
35 HARVEY, op. cit., p. 80
36 MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 113
37 FERNANDES, op. cit., p. 218.
38 SINGER, Paul. O uso do solo urbano na economia capitalista. In: MARICATO, Erminia (org.). A Produção
Capitalista da Casa (e da Cidade) no Brasil Industrial. 2ª ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1982, p. 33
39 ENGELS, Friedrich. Para a Questão da Habitação. Disponível em:
http://ciml.250x.com/archive/marx_engels/portuguese/portuguese_engels_para_a_questao_da_habita-
cao_1873.pdf. Embora matéria repisada, vale lembrar quão distante da realidade está o rol de necessidades
básicas que o salário-mínimo é suposto atender, de acordo com o art. 7º, IV, da CF.

1221
40 HARVEY, op. cit., p. 18
41FRANZONI, Júlia Ávila. Política urbana na ordem econômica: aspectos distributivos da função social da
propriedade. Dissertação de Mestrado, UFPR, 2012, p. 67
42 Idem, p. 66
43 Idem, p. 63
44 Idem, p. 78
45 SANTOS, Boaventura de Sousa. O Estado, o Direito e a Questão Urbana. In: FALCÃO, Joaquim de Arruda
(org.). Conflito de Direito de Propriedade. Invasões Urbanas. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 35
46 SMOLKA, Martim O.. Regularização da Ocupação do Solo Urbano: o problema que é parte da solução, a
solução que é parte do problema, p. 2. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. A lei e a ilegalidade na
produção do espaço urbano. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2003.
47 RODRIGUES, Arlete Moysés. Desigualdades socioespaciais – A luta pelo Direito à Cidade. p, 74. Disponível
em: http://revista.fct.unesp.br/index.php/revistacidades/article/viewFile/571/602
48 Hipótese de que toma parte Paul Singer no texto citado. Ver SINGER, op. cit., p. 36.
49 SMOLKA, op. cit., p. 2 e 3. Segundo Jacques Távora Alfonsin, tais intervenções públicas – que não são ca-
pazes de alterar as regras do jogo imobiliário urbano – constituem “visível capitulação diante dos mecanismos
de mercado e expressa confissão da sua própria impotência política”. In: ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso
à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2003, p. 97. Boaventura de Sousa Santos, por sua vez, percebe três limites estruturais
que votam ao fracasso (com relação aos fins explicitamente formulados) toda política urbana dos Estados
capitalistas: a defesa da propriedade privada, o funcionamento da renda fundiária, e os recursos financeiros
tornados disponíveis pelo processo de acumulação. Ver SANTOS, op. cit., p. 61
50 FERNANDES, op. cit., p. 208
51 SANTOS, op. cit., p. 10
52 Idem, p. 12
53 Idem, p. 15
54 Idem, p. 16
55 Idem, p; 10
56 Idem, p. 18
57 Como anota Boaventura de Sousa Santos, “tanto o anúncio e a promulgação [de uma reforma], por um lado,
como o não seguimento e a inaplicação, por outro, devem ser concebidos como mecanismos de dispersão”.
Idem, p. 67.
58 BACHTOLD, Martha Villwock. Produção de habitação de interesse social e direito à moradia – o caso da vila
Nova Costeira em São José dos Pinhais. Monografia de Graduação, UFPR, 2012, p. 84.
59 Ver adiante.
60 “Estas lutas jurídicas são colectivas e políticas, embora utilizem as formas e as instituições jurídicas indivi-
dualistas do Estado liberal e tenham de partir da separação entre o jurídico e o político para, com base nela,
gizar estratégias várias de articulação entre ambos”. SANTOS, ob. cit., p. 72.
61 SMOLKA, op. cit., p.07
62 Conforme lê-se em notícia oficial do governo do estado, disponível em: http://www.aen.pr.gov.br/modules/
noticias/article.php?storyid=62797&tit=Governo-articula-movimento-para-antecipar-construcao-da-terceira-
-pista-no-Afonso-Pena
63 SANCHEZ, Fernanda et all. Produção de Sentido e Produção do Espaço: Convergências discursivas sobre
grandes projetos. xI Encontro Anual da ANPUR, 2005.
64 ESTADO DO PARANÁ. Decreto 3.409 de dezembro de 2011 que declara de utilidade pública área destinada
à implantação da nova pista de pouso e decolagens do Aeroporto Internacional Afonso Pena, Publicado no
Diário Oficial Nº 8606 de 09/12/2011. Disponível em: http://celepar7cta.pr.gov.br/SEEG/sumulas.nsf/2b0
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de agosto de 2013.
65 HOLSTON, James. Espaços de Cidadania Insurgente. Revista de IPHAN nº 24. 1996, p. 243. Disponível em :
docvirt.no-ip.com/docreader.net/WebIndex/WIPagina/RevIPHAN/8870‒ . Acessado em 02 de agosto de 2013.
66 Idem, p. 250.
67 RANDOLPH, R. Formação de planejadores subversivos no Brasil? Um pequeno confronto entre uma nova
proposta do planejamento e a prática de formação de planejadores urbanos nos cursos de pós-graduação no
Brasil. In: xIII Encontro Nacional da ANPUR, 2009, Florianópolis / SC. Planejamento e gestão do território.
Escalas, conflitos e incertezas. Florianópolis : ANPUR - UFSC, 2009. v. 1.

1222
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Direitos e defeitos na salvaguada


do ambiebnte urbano tombado:
um estudo sobre a luta pela moradia
na area urbana patrimonial

Lysie Reis1

O DIREITO A qUAL CIDADE?

Henri Lefebvre, em seu livro “Direito à Cidade” de 1969, expõe, dentre


outros temas intrínsecos à problemática urbana, seu pensamento sobre o
valor de uso e o valor de troca expressos no espaço urbano. Adverte-nos
que a Cidade preexiste à industrialização, a qual define como o motor
das transformações na sociedade, embora não se deva subordinar a vida
urbana ao desenvolvimento da indústria. Com a configuração da cidade
para a indústria, muda-se a percepção dos valores cotidianos da vida
citadina. Muito se perde já que a própria cidade, para este autor, era, até
então, experimentada como uma criação coletiva, na qual se impunham
não só as obras de arte, mas a própria cidade, em si, era uma obra de arte.
A generalização da mercadoria e o valor de troca passam a ser atribuídos
a tudo e a conferir um novo sentido à vida citadina. Muda-se a relação de
mercado e, com esse movimento, mudam as relações do corpo social com
a cidade. Cidades e rede de cidades são redesenhadas pelas necessida-
des da nova economia industrial e surgem as conurbações, as periferias,
os subúrbios, as favelas. A cidade, que até então era a obra de arte, é
apropriada como “centro histórico” e torna-se produto de consumo para
suburbanos, estrangeiros e turistas. Para Lefebvre é o lugar do consumo
e o consumo do lugar.

1223
De fato, uma leitura pouco atenta do livro “Direito à Cidade” de Lefeb-
vre pode apontar para um manifesto, o que justifica-se pela ambiência de
protestos libertários que vivia o autor na França de 1968. O livro refere-se
mais à Cidade do que ao Direito, mas abre uma discussão que pretende
superar a idéia do bem estar social e da universalização do acesso à cidade
capitalista. O Direito ao qual se refere propõe uma ruptura com a desigual-
dade do processo de urbanização e apela para que seja priorizada a vida
urbana e não a cidade em si. Sua proposta, baseada na transformação
social em prol de uma sociedade urbana mais justa, defende a autogestão
local e, sobretudo, a democracia. Em 2006, David Harvey, na publicação
“A Produção Capitalista do Espaço”, retoma o ideário do “Direito à Cidade”
como estratégia de ruptura aos ditames da condição pós moderna que,
em seus processos de flexibilização econômica, vem acentuando a crise
capitalista2. Harvey atesta que Lefebvre estava certo ao insistir que a re-
volução tem de ser urbana, no sentido mais lato do termo.
Voltemos ao caso brasileiro em uma breve retrospectiva sobre os
avanços nesse campo. Antes da promulgação da Constituição, constitui-se
um fórum de debates que dá origem a uma proposta de Emenda Popular
de Reforma Urbana. Novas organizações sociais surgem para lutar contra
a exclusão e as desigualdades nas cidades e essa articulação solidifica a
base para o Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU), que, em
1987, dá origem a uma rede, o Fórum Nacional de Reforma Urbana, que
hoje está presente em todos os estados brasileiros. Da Emenda Popular
de Reforma Urbana a constituinte de 1988, absorveu apenas dois artigos,
o 182 e 183, que formaram o capítulo sobre política urbana. Dois princí-
pios fundamentais foram organizados no artigo 182: a função social da
propriedade, que submete o direito de propriedade ao interesse coletivo,
e a função social da cidade, indicando que a política de desenvolvimento
urbano deve pautar-se no desenvolvimento das funções sociais das cida-
des. A partir de então torna-se obrigatório o Plano Diretor para cidades
com mais de vinte mil habitantes e regulamenta-se os seguintes instru-
mentos jurídicos e urbanísticos: parcelamento, edificação ou utilização

1224
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

compulsórias do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado;


imposto sobre propriedade predial e territorial urbana progressivo no
tempo, que visa punir proprietários de terrenos edificados ou não, cuja
ociosidade seja prejudicial à população; e a desapropriação de imóvel ou
terreno com pagamento mediante títulos da dívida pública. Em 2000, a
Emenda Constitucional número 26 inclui o direito à moradia no conjunto
dos direitos sociais a serem assegurados pelo Estado e, em 2001, após
dezoito anos de tramitação, é aprovado o Estatuto da Cidade, que regu-
lamenta os artigos 182 e 183 na Constituição Federal. Em 2003 é criado
o Ministério das Cidades, visto que todas as políticas urbanas estavam
dispersas por vários ministérios.
Há outro dado a ser ressaltado tendo em vista a discussão específica
desse texto, que será a intervenção pública em uma área urbana tombada
como patrimônio. Até 1988, a Lei estabelecia que o patrimônio histórico
e artístico nacional constituía-se pelo conjunto de bens móveis e imóveis
existentes no País, cuja conservação fosse de interesse público, quer por
sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”.
No artigo 216 da Constituição de 1988, a expressão “patrimônio cultural”
substitui a ideia de “patrimônio histórico e artístico”, e refere-se ao con-
junto de bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em seu conjunto, portadores de referência a identidade, a ação, a me-
mória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Ou seja,
se antes a preocupação era definir valores históricos e artísticos a serem
preservados, busca-se, na amplitude do termo “cultural” o equacionamento
das questões relativas às políticas de salvaguarda da tradição nacional.
Isso contribui para ativar o interesse pela requalificação do espaço antigo
das cidades, obviamente pelo viés do capital, no qual os bens culturais
devem ser integrados ao circuito das mercadorias. Essa saída, veiculada
nas sociedades como uma alavanca ao desenvolvimento econômico, foi
amplamente difundida em Convenções, normas e cartas internacionais so-
bre a salvaguarda. Isso fez com que as políticas públicas se interessassem

1225
cada vez mais por requalificar o patrimônio edificado, principalmente os
mais apropriados à indústria turística. Não houve discussão sobre como
seria trabalhada a questão da função social sobre a especificidade dessas
área, nas quais o número de edificações ou terrenos baldios em estado
de vacância é considerável.

A VIOLAÇÃO DO DIREITO à MORADIA


NO CENTRO ANTIGO DA CIDADE DE SALVADOR

Fragmentos de bairros revitalizados, bem como o núcleo original da


cidade, funcionam isolados como cenários destinados à indústria do turis-
mo, ávida pelo efêmero e pela história do lugar. Neste sentido, a exclusão
social se manifesta no próprio fenômeno do planejamento urbano que se
repete no bojo de ideário de reverter o estado físico e social do Centro
Antigo de Salvador, parte de uma grande estratégia política que pretende
solucionar os problemas de habitação popular da classe média mediante
a retirada dos antigos moradores, na grande maioria, pobres e negros,
que sobrevivem da economia informal. A remoção dessas pessoas vem-se
traduzindo numa forma de renovação urbana. Tais planos não deslocam
apenas os condenados pelo “crime” de estarem ocupando lugares tornados
bons demais para eles. Carregam junto uma quantidade enorme de hábitos
culturais e atividades econômicas julgados desprezíveis.
A preocupação em configurar como patrimônio este conjunto arqui-
tetônico e urbanístico esteve presente em diversas instâncias, tais como:
no tombamento federal do Instituto do Patrimônio histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), em 1959 ( que delimitou três subáreas – Largo do Sto
Antônio, a zona central da cidade alta, entre o Largo da Cruz do Pascoal
e o Terreiro de Jesus e, mais ao sul, na Cidade Baixa e encosta, a zona
envoltória da igreja Nossa Senhora da Conceição da Praia e do Convento
de Sta Teresa, sede do atual museu de arte sacra); na criação do Instituto
do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC) pelo governo do Estado, em
1968; no convênio que deu origem ao ETELF, em 19833, quando a pre-

1226
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

feitura delimitou a área de proteção rigorosa, intitulada Centro Histórico


de Salvador (CHS), bem como a de proteção contínua, Centro Antigo de
Salvador. Posteriormente a delimitação do CHS é tombada pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1984, e tem sua
condição de “Patrimônio da Humanidade” conferida pela Unesco, em 02
de dezembro de 1985; e na criação da Fundação Gregório de Matos e do
Parque do Centro Histórico em 19864.
Desde então, o discurso baseado em uma suposta eficácia no binômio
patrimônio-turismo conferiu, majoritariamente, entre os diversos planos
idealizados para o território, o sustentáculo para atingir o alvo perseguido:
a efetiva caracterização do espaço enquanto lócus da história da cidade.
Para tanto, e considerando o grande contingente de sujeitos que nos
anos anteriores apropriaram-se e (re)significaram o lugar como o de sua
moradia, do seu trabalho, do seu lazer, enfim, do seu estar na cidade, tais
planos foram indutores de muitas expulsões e remoções de moradores.
Em 2003, a restauração e a recuperação do “Centro Histórico de Sal-
vador”, com destaque para as obras realizadas no Pelourinho, ganharam
o 3° Prêmio Internacional Rainha Sofia de Conservação e Restauração do
Patrimônio Cultural, pelo Ministério de Assuntos Exteriores da Espanha.
O prêmio inclui US$ 42 mil, uma escultura do artista espanhol Gustavo
Torner e uma bolsa para curso de especialização em conservação de pa-
trimônio. Na época, a diretora-geral do Instituto do Patrimônio Artístico
e Cultural (IPAC) ressaltou que era a primeira vez que o Brasil recebia a
premiação e por unanimidade. Salientou ainda que a premiação, além de
ser internacional, abria portas para outras iniciativas, transcendendo a
questão patrimonial, a vertente arquitetônica. Ou seja, a restauração do
Pelourinho, segundo a diretora, tinha um “forte conteúdo social, que inclui
a recuperação de áreas para moradia e a criação de empregos” 5, mérito que
justificava o prêmio6. Bem, isso aconteceu em julho de 2003, 10 anos de-
pois que a faixa inaugural da “restauração do Centro Histórico de Salvador”
foi cortada. Em 1993, na cerimônia de inauguração, autoridades, artistas,
convidados (muitos deles colocavam seus sapatos naquelas ladeiras de

1227
pedra pela primeira vez) aplaudiam a gerência técnica e política da obra
que teve o Governo do Estado, por meio de duas de suas instituições, o
IPAC7 e a CONDER8, como único gestor do recém-inaugurado Pelourinho,
como é popularmente chamado o Bairro.
Voltemos ao passado para compreender o presente. Até 1991, mais
de 20 planos e ações tinham sido endereçados à reversão do estado de
abandono em que se encontrava o lugar. Cabe aqui a ressalva de que o
abandono, tanto físico quanto social, advém dos poderes públicos e não
das pessoas que ali moraram. Estas se apropriaram do casario abandonado
e o revitalizaram segundo suas ordens, possibilidades e expectativas. As
estratégias anteriores refletem-se sobre a última intervenção como ex-
periências de um aprendizado. Este aprendizado se dá através das ações
do próprio Estado, que, apesar das limitações, encontradas ao longo dos
anos em que atuou na área, conseguiu criar um lastro de fragmentos
de operações pontuais e a implantação de um número considerável de
equipamentos culturais. Além disso, constituiu um corpo técnico que
experimentou, nos caminhos que se mostraram ineficazes, um conjunto
de medidas abandonadas na última intervenção.
Desde a década de setenta do século passado, a reivindicação política
de segmentos culturais - que atuavam na conscientização e autoestima
da população local - vai estimulando o reinvestimento simbólico desse
espaço. Na década seguinte, a afirmação da identidade negra torna-se mais
evidente e passa a ser articulada como produto cultural apto a ingressar
nos circuitos nacionais e internacionais do mercado cultural. Por outro
lado, o investimento no turismo, já uma tendência global, é apreendido
intensa e decisivamente como “vocação” da Cidade do Salvador e como
vetor de seu projeto de desenvolvimento.
O poder público percebeu a atratividade cultural que despontava no
centro antigo e como esta poderia ser aproveitada na requalificação
local. O Pelourinho, hierarquicamente, já tinha assumido o “[...] papel
central de uma rede de territórios estruturada a partir da organização e
multiplicação de grupos formadores de uma dinâmica cultural na cidade”

1228
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

(GOMES;FERNANDES,1993,p.12). Este papel passa a ser o maior lastro


sobre o qual se erigiu a atual intervenção, pois é também sobre este novo
atrativo cultural que o Estado desenvolve, por meio de alianças estratégicas
e transitórias, o formato que vai dar ao produto que entrega ao consumo:
‘o novo Pelourinho’. Para Boaventura de Souza Santos (1996), o ideário
modernista, centrado na dicotomia entre alta cultura e cultura popular,
rompe-se no pós-guerra, resultando na emergência da cultura de massas.
Agora, temos que levar em conta que, além de distribuir informações, a
mídia produz consenso, idéias e ideais, instauração e intensificação de
uma linguagem comum no social.
Apesar de todos os esforços políticos e dos mecanismos de financia-
mento para que a revitalização, ao longo do tempo, deixasse de depender
do Estado, ou seja, que a intervenção desencadeasse uma reapropriação
da localidade por parte de segmentos mais abastados da sociedade, esta
não foi a realidade do Pelourinho pós-intervenção. Dois anos após o início
do empreendimento, notava-se uma desaceleração nas obras, que já não
corriam segundo os prazos da estratégia política. Nas etapas concluídas,
muitas edificações, após um ano, já necessitavam de trabalhos de manu-
tenção. Muitos empresários, inicialmente entusiasmados por estarem no
‘novo Pelourinho’, já haviam repassado os pontos alugados. Outro fato
que merece ser ressaltado é o de que, enquanto as obras eram realizadas,
o turismo, na Bahia, apresentava uma queda significativa nas temporadas
de veraneio, o que se deve tanto à competição de outros destinos turísticos
em todo o globo, quanto pelo elevado custo que caracteriza o turismo local.
No balanço das atividades implantadas nas quatro primeiras etapas, a
maioria das atividades tinha características mais sofisticadas porque eram
destinadas a um público de alta renda, fato que teve como conseqüência
a brevidade do funcionamento de boa parte dos estabelecimentos. As
medidas tomadas por esses comerciantes durante as “Terças da Bênção”9
foram extremamente contraditórias pois, nesse dia em que o Pelourinho
tinha suas ruas abarrotadas de pessoas, o comércio fechava suas lojas e
restaurantes em torno das 17 horas, além de ser limitado o acesso apenas

1229
a alguns espaços, especialmente as praças, chegando, inclusive, a “[...]
não comercializar bebidas populares a preços acessíveis”(PELOURINHO,
a pós-recuperação, 1994, p 15). Cabe a ressalva de que quem enchia as
ruas era um público de baianos, especificamente jovens e negros.
Após a função habitação ter sido consideravelmente reduzida na área
“restaurada”, outros espaços, no próprio núcleo antigo, começaram a
receber ex-moradores, que ocupavam edificações abandonadas, faziam
adaptações e lá começavam a construir nova relação com bairro e vizi-
nhança. De alguma forma surgem novos conflitos sociais e um certo mal-
-estar social que chega a “perturbar”, em certos períodos, o ambiente de
lazer, oferecendo perigo ao visitante desavisado que circula pelas áreas
circunvizinhas ao “novo” espaço, como, por exemplo, o bairro do Salda-
nha, tendo em vista, como atesta a própria CONDER, a “[...] transferência
da marginalidade que se localizava nas áreas recentemente restauradas”
(BAHIA, 1995 ,p 08).
Entre 1995 e 1997, mesmo em ritmo lento, a “operação Pelourinho”
continuou na promoção de eventos culturais nas áreas semipúblicas,
como as praças, sendo toda a verba subsidiada pela Secretaria de Cultura
do Estado. Portanto a intervenção aparentemente se manteve, só que
inserida numa perspectiva de ampliação da infraestrutura turística de
Salvador; perspectiva esta vinculada à tentativa de elevar a atratividade
de toda a região do Estado da Bahia, marcado por atributos culturais e
paisagísticos. A própria Cidade do Salvador recebeu o ‘novo Pelourinho’
e muitos outros subespaços de atividades de turismo e manifestações
socioculturais com grandes potencialidades paisagísticas e recursos na-
turais. Outros fatores impulsionaram a não continuidade do dinamismo
revelado após a inauguração. Entre estes, destaca-se o surgimento, na
própria Cidade do Salvador, de outras áreas com boa capacidade de
atração, infraestrutura e diversidade de ofertas tão competitivas quanto
as do Pelourinho, que, de resto, continuava sendo uma forte referência
cultural na cidade. Por outro lado, a atratividade deste local não conseguia
atingir a clientela de classe média e média alta da cidade, que continu-

1230
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ava a imprimir, com mais frequência, dinamismo aos seus tradicionais


locais de lazer, tais como Rio Vermelho, Patamares e alguns trechos da
Barra. Também ocorreu um processo de descentralização e expansão na
direção do Litoral Norte, incorporando novos municípios à área urbana,
“[...] formando uma mancha conurbada, que hoje se constitui na nova
cidade Salvador Ampliada” (PORTO;CARVALHO,1995,p 38). Nesta nova
estrutura, ocorreram outras concentrações de atividades terciárias, arti-
culadas e com papéis diferenciados na vida urbana da metrópole. Assim,
depois da curiosidade inicial de conhecer o espaço “requalificado”, os
investimentos estatais não tiveram capacidade de manter a atratividade
dessa fatia do centro antigo, muito menos de retomar um modelo anterior
de única centralidade nem, tampouco, conseguiu romper as tendências
espontâneas de crescimento da cidade.
Diante desses fatos, em 1996, a CONDER encomenda com o Instituto
Futura uma nova avaliação das etapas concluídas. Nesta, há a previsão
de três tipos de possibilidades para o Pelourinho pós-intervenção. Hoje,
é possível dizer que essas previsões constituíram-se, na época, em ad-
vertências aos empresários e ao próprio Governo do Estado. A primeira
advertência dizia respeito à incorporação definitiva do papel de centro
cultural à área recuperada; isto se daria no intuito de redefinir o valor do
uso do solo urbano e por decorrência, equiparar a atratividade imobiliária
local com outros espaços valorizados na cidade, o que poderia estender a
sua valoração ao Comércio e à Baixa dos Sapateiros. Nesse caso, o Governo
do Estado poderia reduzir sua ação, já que a área seria co-gerida pelos usu-
ários, principalmente os comerciantes, ficando a cargo do Estado apenas
a regulamentação do uso do solo. A expectativa da CONDER era que essa
estratégia aumentasse o nível de renda da população envolvida e, conse-
quentemente, aumentasse o número de empregos10; o que serviria de “[...]
exemplo a vários outros centros históricos do Brasil” (PALÁCIOS,1996,p.8).
Caso o volume de recursos financeiros aplicados pelo Governo do Estado
fosse reduzido, o documento indicava a possibilidade de “[...] transferência
da responsabilidade de gestão do ‘Centro Histórico’ para seus usuários,

1231
ou um sistema de co-gestão”(FUTURA,1996:s.p). Desde então, os comer-
ciantes locais deixaram de acreditar nesta possibilidade, tendo em vista
que, dessa forma, estariam dando espaço ao retorno da marginalidade,
o que, segundo Palácios já estava acontecendo na área da Praça da Sé
e do Paço; além disso, havia a diminuição do turismo e a redução do
uso da área pela própria população de Salvador (PALÁCIOS,1996). O
estudo previa que, se ocorresse paralisação das obras, haveria perda do
investimento até então empenhado e o retorno da antiga marginalidade.
Provavelmente, isto acarretaria a evasão dos comerciantes e a ocupação
da área “restaurada” pelo comércio informal. O referido relatório alerta
para uma possível perda do estoque imobiliário pela sua rápida degrada-
ção e, conseqüentemente, queda no valor dos imóveis. Por fim, o estudo
diz que este panorama influenciaria o aumento do desemprego e pouca
confiabilidade do setor público em investimento sociocultural e do patri-
mônio local. Depois de dois anos de conclusão da 4ª etapa, a 5ª etapa é
iniciada. O ano é 1997 e as obras em questão inseriam monumentos de
caráter religioso de grande porte, como o Convento de São Francisco e a
Catedral Basílica, além de quarteirões circundantes da Praça da Sé11. Esta
etapa perdurou por três anos em ritmo lento.
Mesmo tendo sido idealizado em dez etapas, com fim previsto para
2000, o projeto de revitalização do centro histórico, só no início de 2000,
tem as obras da 6ª etapa iniciada. Foram realizadas intervenções em al-
guns edifícios isolados na área do Passo e Carmo, tal como a revitalização
do Convento do Carmo, que até hoje está parada. Foram feitas obras na
Igreja de São Francisco, além de 62 casarões, apesar de terem anunciado
a intervenção em 115 imóveis. Durante estes anos vão surgindo coletivos
que endereçam críticas ao modelo adotado pelo Estado. A presidente da
Associação dos Moradores e Amigos do Carmo (AMACAP), a aposentada
Maria de Lourdes de Oliveira critica o gerenciamento da 6ª etapa: “[...]
Aqui ninguém sabe de nada, o que é CONDER ou o que é IPAC e como as
coisas estão sendo feitas”. Os associados da APITO12 também reclamam
de “falta de transparência” (apud, 2004 c, p.3).

1232
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A novidade desta etapa estava nas escavações do sítio arqueológico da


Sé e na inserção de um chafariz e uma escultura de 10 metros de altura
feita com chapas de aço inox escovado13. Mesmo sem ter sido concluída a
6ª etapa, o processo da 7ª etapa foi iniciado. Em contraste com as etapas
anteriores, a atual etapa de obras (e de expulsão) não é conduzida pelo
IPAC. Quem manda agora é a CONDER.

EXPULSÕES, ENTRE PLANOS URBANÍSTICOS


E LEIS DE PROTEÇÃO AO PATRIMôNIO EDIFICADO

Pelo menos nos quarteirões das seis primeiras etapas, o cenário


consolidou-se. Berimbaus à venda, baianas vestidas de baianas, rodas de
capoeira e, ao fundo, o baticum do Olodum. Parece fácil identificar o miolo
do centro histórico de Salvador, o Pelourinho, como um shopping-center
turístico a céu aberto. Uma espécie de Disneylândia tupiniquim, com ares
de parque temático. Neste caso, o tema é a História, ainda vitrine, depois
das seis etapas que investiram na requalificação de parte deste território.
A 7ª etapa englobava inicialmente 10 quarteirões e, nestes, 130 imóveis
desdobrar-se-iam em 360 unidades habitacionais de um ou dois quartos.
Ainda hoje a área é conhecida como “Cracolândia”, por ser uma das mais
degradadas do “Centro Histórico”, ponto de encontro de traficantes e usu-
ários de drogas. Em 2001 tinha vazios urbanos que guardavam destroços
de antigas casas, onde dependentes químicos se reuniam. Para uma des-
tas lacunas estava previsto um estacionamento privado com vagas para
visitantes e novos moradores.
A nova etapa veio anunciada por um novo slogan. Numa entrevista
dada à revista Veja, Mário Gordilho, presidente da CONDER, diz que “[...] os
turistas agora poderão ver as pessoas da terra do jeito que elas realmente
vivem” (apud, 2002, p.68). Em declaração dada em 2002, o responsável
pelo gerenciamento das obras disse que, “em breve”, seria possível ver
antigos sobrados recuperados e seus interiores ocupados por “famílias
verdadeiras de baianos”. A nova estratégia desistia de amontoar no local

1233
restaurantes típicos e as lojas de artesanato, hoje abundantes nas áreas
já requalificadas. O mix-funcional rendia-se a um dos aspectos mais efi-
cazes para conferir vitalidade ao local, ou seja, inseriria, num dos atos
do espetáculo, o cotidiano, a vida como ela é. Esperava-se por crianças
jogando bola pelas ruas, pelo cheiro da comida caseira exalando, pais e
mães chegando do trabalho, idosos nas calçadas e talvez, com alguma
sorte e absorvido pela atmosfera de fantasia, o turista veja, atravessando
alguma esquina, Dona Flor, Pedro Archanjo ou, até mesmo, Tereza Batista.
A previsão era de que mais de 120 prédios fossem reformados a um cus-
to de 29 milhões de reais financiados pela Caixa Econômica Federal (CEF).
Mas não era qualquer um que poderia morar nos casarões tombados do
século xVII e xVIII. O privilégio estaria restrito às famílias de funcionários
públicos estaduais e municipais concursados, com renda mensal compro-
vada de dois a seis salários mínimos. A Prefeitura não concederia alvará a
novos pontos comerciais na região, exceto a um estacionamento e a um
mini shopping, com padaria, farmácia, salão de beleza, banca de jornal.
Os novos moradores estariam nas proximidades de verdadeiros ícones da
arquitetura erudita da Bahia, como o Seminário de São Dâmaso, um solar
do século xVII, e a Igreja e Convento de São Francisco, do século xVIII.
Mas quem ocupava estes casarões? Aqueles que os guardaram nos
anos de abandono, enquanto o poder público endereçava suas verbas
ao crescimento, expansão e melhoramentos de outras áreas da cidade.
Durante este longo tempo, o cotidiano fez sua história. Famílias pobres
amontoadas em cortiços, prostitutas, mães de família, traficantes e ho-
mens trabalhadores viviam segundo seus próprios códigos sociais. Para
o governo, estas pessoas não eram donas dos imóveis, restando-lhes
duas opções: ou recebiam o que Governo chama de “auxílio-relocação”
ou alugam as casas do Governo na periferia. Talvez a mudança do termo
intencione a desconstrução da idéia de propriedade, ou seja, para o não-
-proprietário cabe o tal auxílio, enquanto que, ao proprietário, caberia a
indenização. A questão da propriedade tem sido, até agora, o cerne do
embate que mistura moradores que se apropriaram do que estava esque-

1234
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

cido (mas que são chamados de invasores pelo Governo), proprietários


desaparecidos, inquilinos que viveram sublocando espaços e pessoas que
receberam o “auxílio-relocação” mas retornaram, ou seja, aqueles que o
Governo achava que estavam satisfeitos.
Se antes os moradores enxotados nas primeiras etapas podiam migrar
para a parte onde a “revitalização” ainda não havia começado, agora,
o “rolocompressor” os alcançou. A maioria são famílias pobres e sem
conhecimento dos seus próprios direitos. A ação de desapropriação foi
publicada no Diário Oficial do Estado e questionada posteriormente pelo
Ministério Público que, sem entender a rapidez das relocações e antes
que não houvesse viva alma para contar o que houve, ajuizou uma Ação
Civil Pública com pedido de ordem liminar contra o Governo do Estado
e a CONDER14. Objetivando conter o processo de relocação, o Ministério
Público entendeu que o Governo e a CONDER estavam promovendo uma
“assepsia social”, ou seja “[...] uma espécie de faxina em que a pobreza
do Pelourinho é a sujeira” (CASTRO, 2004, p.3). O Ministério Público foi
adiante, questionou o decreto assinado pelo governador autorizando a
desapropriação dos imóveis da 7ª etapa15. O promotor de Justiça e Cida-
dania do Ministério, Lidivaldo Reaich Raimundo Brito, declarou ser a pri-
meira vez que se deparava com desapropriações realizadas com pessoas
dentro dos imóveis e questionou: “[...] por que não deixam os moradores
no local e cobram deles também uma quantia, como fazem em Coutos?”
(CASTRO, 2004 d, p.7) O Promotor considerava que a desapropriação de
imóveis para destinação à outra pessoa viola as regras da própria lei de
desapropriação16. Para tanto, caberia uma outra ação, a de usucapião
urbano, levantada pelo Estatuto da Cidade e prevista na Constituição Fe-
deral do Brasil de 1988, e que assegura “[...] a aquisição de domínio para
aquele que possuir área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição,
utilizando-a para sua moradia ou de sua família, com a ressalva de que não
seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural” (Capítulo II, artigo 183).
Neste caso, é legítimo que aqueles que se tornam proprietários tenham

1235
o direito de vender seus imóveis. Conclamar todos a uma ação conjunta
tornou-se impossível. Grande parte dos moradores estava desemprega-
da, vivendo de pequenos bicos. Por consequência acabaram aceitando o
“auxílio-relocação” pago pela CONDER para que deixassem o local. Eram
quantias que variavam entre R$ 700 e R$ 2,8 mil, nada além dos R$ 4 mil
no ano de 2005, já que estas famílias não tinham escritura de posse do
imóvel. E, apesar de não garantir a compra de outra moradia ou mesmo
o compromisso com um aluguel, os moradores a aceitavam. Resultado:
gastavam tudo e passavam a morar em piores condições e, muitas vezes,
na rua. A CONDER, procurada para esclarecer o episódio, afirmou que as
famílias que possuíam toda a documentação do imóvel, inclusive escritu-
ra, tinham recebido valores superiores a R$ 20 mil de indenização. Além
disso, a assessoria da CONDER informava que a todos foram oferecidas
moradias no subúrbio a uma mensalidade de pouco mais de R$ 50 para
que não ficassem desamparados, porém a maioria não aceitou, interes-
sada no dinheiro (SANTOS, 2002)17. Quem aceitou ir para Coutos, tratou
de tirar seus filhos da escola no meio do ano letivo e, até hoje, as duas
escolas existentes no “Centro Histórico” estão vazias.
Os moradores que ficaram organizaram a AMACH18, e uma de suas
representantes explicava que as famílias que ainda estavam no Centro
Histórico não queriam impedir a recuperação dos casarões, mas também
não querem sair de lá. E afirmava:

“[...] Somos parte deste patrimônio, nossas famílias ajudaram a


fazer a história da Bahia e imortalizou [sic] obras famosas como
a de Jorge Amado, que retrata muito bem nossa história. Ao
invés de querer nos expulsar, por que não protegem os velhos e
amparam nossas crianças, dando-lhes escola e atividades para
que ocupem o tempo aqui mesmo no bairro como é feito com
outras comunidades, para que não precisem roubar ou se dro-
gar?”, questiona (apud, 2002a, p.18).

A opção pelo dinheiro justificava-se pelo fato de essas pessoas viverem


miseravelmente, sem condições de compreender os limites das irrisórias
quantias oferecidas. Tanto é que os que receberam indenização para deixar

1236
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o imóvel já não possuem mais nada, “[...] como a maioria é ambulante,


acabaram empenhando o dinheiro na aquisição de mercadoria para render
o capital e assim poder adquirir, algo melhor. Deram-se mal, quebraram
a guia, e ficaram sem nada. Hoje, doentes, dormem sob as marquises da
Baixa dos Sapateiros e pedem esmolas durante o dia. Muitos já, morreram”,
disse Sandra Regina (apud, 2002 b, p.23).
O Estado, mais uma vez, investia na construção de conjunto de ca-
sas populares no subúrbio para receber os relocados do Pelourinho, de
áreas condenadas pela CODESAL, moradores de zonas alagadiças e
ex-ocupantes dos albergues públicos. Eram 750 unidades imobiliárias
distribuídas em dois conjuntos habitacionais batizados de Moradas da
Lagoa II e Jardim Valéria II. Localizam-se em Fazenda Coutos. Lá, blocos
de casas contíguas foram dispostos simetricamente no terreno, que tem
pouca ocupação no seu entorno imediato. As unidades habitacionais, que
até hoje lá estão, têm 16 metros quadrados e restringem-se a um vão,
com uma área externa que permite “puxadinhos”, acessórios já inerentes
à arquitetura popular brasileira.
O Estado levou para o “não-lugar” os incômodos da cidade real, mas
não se preocupou em dotar esta periferia de infra-estrutura física e social.
Nos loteamentos não havia delegacia, centros de capacitação profissio-
nal, posto de saúde, creches, escolas, área de lazer etc19. Para quem viu
o conjunto habitacional do bairro “Cidade de Deus”, no início do filme
homônimo, a relação é imediata. Tanto é que um dos presidentes da
AMORES20, Lorenilson de Souza Cerqueira, que atende por “Internet”,
numa associação aos seus dotes de articulador, desabafou: “[...] Aqui tá
virando a Cidade de Deus e não é pior porque o pessoal quando se arma,
revoltado, dizendo que vai fazer e acontecer, eu ainda consigo conversar
e fazer com que desistam disso mas não sei até quando [...] tô quase ven-
dendo minha casa e voltando para as ruas porque lá rola dinheiro. Muitos
já estão fazendo isso aqui dentro”21 Muitos outros fizeram coro às recla-
mações de “Internet” , tal como Romildo Mota, proprietário da mercearia
“Balança mas não cai” que dizia o seguinte: “[...] tá tão ruim que o pessoal

1237
chega aqui e pede 30 ou 50 centavos de farinha ou de açúcar, eles não tem
dinheiro nem para comprar um quilo”. Muitos mantiveram vínculo com
o antigo bairro, como é o caso de Edivaldo Amorin que todo dia volta ao
Pelourinho para vender cerveja junto a uma baiana de acarajé. O Presi-
dente da CONDER não avaliava de forma negativa a relocação e atestava
que “[...] as dezoito famílias que optaram por morar em Coutos estão
inseridas socialmente e melhorarão sua condição por conta de parcerias
entre a CONDER e ONGs que atuam na área”. O jornal A Tarde procurou
os ex-moradores do Pelourinho que moram nos conjuntos habitacionais
e nenhum reconhecia tais benesses. “ONG? Que é isso? Questionou um
deles” (CASTRO, 2004b,p.4) 22.
As ocorrências nos fazem perceber que, na prática, a “recuperação”
desse “centro histórico” é uma medida segregadora, que visa o sane-
amento moral de uma fatia do corpo social à proporção que entende
embelezamento, restauração, como uma prática elitista e autoritária.
Mas nada disto estava previsto no Termo de Referência que anuncia-
va os moldes da intervenção em 1991, que prometia, “[...] sobretudo
atenção com o habitante, “[...] efetiva participação das comunidades
residentes” (TERMO DE REFERêNCIA, 1991, s.p). Pouco depois, o IPAC
justificou a expulsão alegando que a população pobre e marginal não
era compatível com o turismo, o que prejudicaria a manutenção do
acervo arquitetônico e urbanístico.
Para pedir o financiamento ao BID para a 7ª etapa , o discurso oficial
abaixa o tom e retoma os ideais do Termo de Referência de 1991. Na car-
ta de intenções diz que vai avaliar a vulnerabilidade da população local,
com vistas a determinar prioridades de ação que considerem os anseios e
necessidades definidos pela comunidade e vai “[...] identificar a população
residente na área a fim de fornecer subsídios para a elaboração de projetos
visando sua fixação, seu reassentamento e indenização”. Na mesma carta,
diz-se que todas as esferas do poder público serão chamadas a participar,
bem como a sociedade civil, [...] que será representada principalmente
pelo capital imobiliário, que vem sinalizando através de propostas de al-

1238
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

teração nos coeficientes urbanísticos em zonas centrais para viabilização


de investimentos em empreendimentos residenciais”. De novo as garras
se encolhem e a carta prossegue, desta vez afirmando que na “7ª etapa”
[...] não deve ser deixado de lado o elemento humano que ali vive e tra-
balha: [...] a sétima etapa precisa de mudanças que tornem mais digna e
sustentável a vida de seus habitantes, permitindo que eles participem dos
benefícios dos impactos positivos do processo de desenvolvimento econô-
mico que ali se desenrola”. (CONDER, 2000,p.3). Agora, vamos aos dados
reais. Segundo Montoya (1999), a intervenção no Pelourinho já expulsou
95% dos antigos moradores. Dos 14 quarteirões com 223 imóveis, havia
1.314 chefes de família com 3.200 dependentes, dos quais mais de 1.081
chefes foram despejados, com 2.706 pessoas, permanecendo apenas 233
chefes (e 494 dependentes) (CONDER, 2000).
Comparada a uma cirurgia num corpo adoentado, pode-se dizer que
a operação “Centro Histórico” chegava até a ulceração mais profunda, no
local em que residem os excluídos de todos os tipos, fora ou dentro da lei.
O Ministério Público ajuizou a Ação Civil Pública e o Partido dos
Trabalhadores (PT) ajuizou uma ação de Inconstitucionalidade (ADIN)
questionando o decreto estadual de desapropriação e nesta, a argumen-
tação central defendia o ponto de vista de que os moradores da área
eram “patrimônio imaterial”. O governo não concorda e o Tribunal Pleno
em novembro de 2003 indeferiu a ADIN23. Atualmente, o Monumenta-Bid
decidiu que, enquanto houvesse litígio, nenhum centavo seria enviado às
ações da 7ª etapa que estiverem sob suspeição. Mesmo assim, a CONDER
continuava pressionando moradores com o auxílio-relocação e a oferta
de casas para locação na periferia.
A contestação oficial da ADIN pela Procuradoria Geral do Estado (PGE)
dizia que a promoção da reinserção social da população, segundo ela,
“[...] cujo modo de vida certamente não é cultural e muito menos digno” é
feita com a transferência dela para casas populares (em Coutos). A réplica
dos cultos da PGE foi além atestando que na área “[...] existe tão-somente
um estilo de vida determinado pela pobreza, indigno de ser considerado

1239
como expressão da dignidade da pessoa humana [...] Não há, na hipótese,
cultura popular a ser protegida!” (BAHIA, 2003,p.15;18). Está claro que a
implicação do conceito de pobre como aquele que é incapaz de conservar
tornou-se uma máxima, “não sabem conservar, mas sabem depredar”.
Mas a pior, certamente, é a de que eles não têm cultura.
Uma das maiores vitórias da AMACH aconteceu no dia 1º de junho de
2004, às 10h30, quando foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta
(TAC), firmado pelo promotor de justiça da cidadania Lidivaldo Reaiche
Raimundo Britto e pelos procuradores Mariana Matos Oliveira e Eduardo
Carrera, respectivamente do Estado e da CONDER. Garantir a permanência
de cerca de 103 famílias nos imóveis que estão sendo recuperados para
o uso habitacional na 7ª etapa de revitalização do Centro Histórico de
Salvador foi seu objetivo em resposta à peleja que se instaurou entre o
Estado e a AMACH, depois que o Ministério Público, em 2002, instaurou
um Inquérito Civil para apurar a desocupação dos imóveis. Nenhuma
associação de moradores do Brasil havia, até então, alcançado conquista
semelhante em relação às áreas urbanas de caráter patrimonial.
Por conta da pressão da associação de moradores foi incluído no pro-
jeto inicial o Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social – PSH,
atualmente batizado de PHIS, que abrange famílias com renda inferior a
três salários mínimos. Assim, o que estava previsto para ser destinado
ao Programa Pro - Moradia, atual ProHabit, teve que ser redistribuído. Os
investimentos passaram a ser do Ministério das Cidades, do programa
Monumenta e do Governo do Estado da Bahia.
Os ideais do TAC, composto por 17 itens, resultaram de diversas reu-
niões dessa Associação que, mesmo não tendo sede, teve acolhimento
em diversos bares e casas da área. A luta caminhou e se intensificou, pois
a condição de permanência está vinculada ao pagamento das moradias.
Mas, como morar na área sem ter o antigo comércio? Para sobreviver
no local, que receberá também novos moradores oriundos do programa
PROHABIT, será necessário dar direito às vidas que foram desestrutura-
das com extermínio de suas relações de vizinhança, de lazer e trabalho.

1240
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Resgatar, recuperar, reabilitar são termos impróprios para o bairro em


questão. Sempre houve dinamismo, qualificação e habilidades por parte
da comunidade que ali estava.
Desde o início desse processo, os ex-moradores sobreviventes se
espalharam pelas periferias. Mas muitos retornam pela dependência da
centralidade. Alguns ocupam casas de antigos moradores que aceitaram
as ofertas da CONDER e outros ocupam as encostas que, de longe, con-
formam o símbolo desta cidade, seu cartão-postal. De perto, a paisagem
traduz, com perfeição, a segregação citadina. Pode ser que, em breve, além
de cidade alta e baixa, o “centro histórico” tenha uma “cidade do meio”, já
que é grande o processo de favelização nos interstícios urbanos, fendas
abertas por aqueles que sempre ficaram com a sobra da cidade, locais
abandonados, destituídos de infra-estrutura urbana. Esse contingente
populacional que ocupou a encosta, conferindo-lhe uma nova visualidade,
também começou a incomodar. Abordados com o pretexto de que suas
casas iriam desabar, em pouco tempo tornaram-se alvo de mais um Plano
de Remoção da CONDER.
Um dos segmentos populacionais que vem ocupando a encosta desde
a década de 50 do século xx, portanto, antes de qualquer tombamento,
tornou-se um coletivo, a AMACHA (Associação dos Moradores e Amigos
da Chácara Santo Antônio) que vem, através de cartas denúncias, ma-
nifestações culturais e diversos outros tipos de mobilização, tentando
chamar a atenção para o seu pertencimento ao território, sua justificativa
baseia-se, especialmente, no fato de que:

A Chácara Santo Antônio é uma ocupação de mais de cinquenta


anos, localizada na descida da escadaria ao lado do forte de
Santo Antônio. Vivemos nesse local e os órgãos públicos jamais
se preocuparam conosco; enfrentamos todos os problemas em
um bairro onde não havia atuação dos poderes públicos, porém
com a “revitalização” e empreendimentos passamos a incomo-
dar. Parece que depois da “revitalização”, não interessava aos
especuladores imobiliários ter como vizinhos comunidades de
negros pobres que resistiram por tanto tempo num lugar tão
bonito. (Carta dirigida ao Ministério das Cidades em Março de
2012, Acervo da AMACHA).

1241
Seu manifesto teve, no ano passado, a seguinte resposta da Regional
do IPHAN na Bahia:

Ao longo do tempo, partes da encosta foram sendo descaracteri-


zadas, seja sob a forma de ocupações irregulares, seja por meio
da destruição da mata nativa. Tais intervenções, principalmente
a ocupação indiscriminada da encosta, quebram a relação de
assimetria entre as cidades altas e baixa, fundamentais para com-
preender a ocupação do sítio e as relações existentes entre tais
áreas, tornando-se um risco ao patrimônio cultural especialmente
protegido, na medida em que compromete a ambiência da coisa
tombada. (Oficio nº 0866-12 IPHAN/BA)

Entre as duas manifestações pode-se encontrar sujeitos opostos, ocu-


pando cada qual seu lugar numa sociedade multifacetada. As motivações
de cada uma das partes não se restringe a um embate sobre o capital
simbólico, mas sim ao financeiro, o que nos explicaria o motivo pelo qual
uns moram em condomínios luxuosos no centro da cidade, na área de
proteção contígua, com teleférico ligando seu apartamento às marinas
particulares, onde lanchas e veleiros os aguardam para um passeio pela
Baía de Todos os Santos.
Paradoxalmente é do outro grupo, que com suas mãos e hábitos cul-
turais fazem com que a cidade seja Salvador, não só aquela que foi e é
explorada pelos expoentes artistas que registraram a saga de pessoas
comuns (como a D. Flor, de Jorge Amado), que emergem memórias e
patrimônios. E é exatamente isso que costuma ser enquadrado como um
oásis na competição por uma boa posição na rede de cidades globais: de
um lado um potente centro tecnológico e financeiro, do outro, um pitoresco
“Centro Histórico”, talvez gentrificado pelas classes mais abastadas, cujas
aspas aqui evocam o outro lado da moeda. A descaracterização apontada
pelo órgão que existe para elencar, proteger e preservar os bens culturais,
analisada no seu caráter stricto, não ocorre apenas nas partes legalmente
protegidas da encosta que são ocupadas por moradores pobres, vai além,
muito além.

1242
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trajetória de luta dessa associação de moradores, que acompanho


desde a formação como assessora, tem sido de derrotas e vitórias. Acre-
dito ser a existência da AMACH a maior vitória. O processo ainda está
em curso, mas a intenção do presente texto foi a de instigar a discussão,
pois, enquanto se expulsavam humanos do Patrimônio da Humanidade,
alardeava-se a restauração do acervo arquitetônico e urbanístico. Além
da AMACH, existem outras comunidades locais se organizando para par-
ticipar do planejamento urbano, mas os abismos entre a teoria e a prática
ainda estão enormes, o que faz com que os técnicos dos órgãos públicos
envolvidos não saibam lidar com o coletivo popular.
Tendo em vista o princípio da lei n. 10.257 de 10 de julho de 2001 – Es-
tatuto da Cidade – que vem regulamentar os artigos 182 e 183 da Constitui-
ção Federal de 1988, na composição do capítulo relativo à política urbana,
ressalta-se o 2º artigo do capítulo 1, no qual estão inscritas as diretrizes
gerais para o desenvolvimento das funções sociais da cidade, dentre es-
tas, destaca-se o inciso 2 : “Gestão democrática por meio da participação
da população e de associações representativas dos vários segmentos da
comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, pro-
gramas e projetos de desenvolvimento urbano”. Desta forma, o Estatuto
da Cidade legitima a participação da comunidade, não só na elaboração
dos planos urbanísticos, bem como no seu acompanhamento e revisão.
O exercício dessa participação deveria desdobrar-se nos processos de
discussões das potencialidades e identificação dos problemas pertinentes
à escala local por meio de conselhos, comitês, comissões representativas
dos variados segmentos incorporados à área em questão.
O planejamento territorial foi intensamente renovado no Brasil nos
últimos anos: a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade estabeleceram
novas regras e instrumentos que devem ser implementados. Em 2003, foi
criado o Ministério das Cidades, significando o fortalecimento da idéia de
que os assuntos de política urbana e territorial local devem ser tratados

1243
de forma prioritária no país. Também em 2003, a Conferência das Cida-
des instituiu o Conselho Nacional das Cidades, instância de participação
que faz parte das principais ações do Ministério. A partir dessa estrutura,
incentiva-se a criação de espaços de participação para o planejamento
territorial nos níveis estadual e municipal.
Nessa perspectiva, o dispositivo legal regulamenta aquilo que, no âm-
bito do urbanismo contemporâneo, já é conhecido: a ineficácia das ações
que excluem das discussões aquele que distintivamente vive o lugar nas
suas dimensões cotidianas. Vale destacar que o ápice da concordância
sobre a gestão participativa ocorreu em 1996 no Habitat II. Nesse fórum,
foram destacadas as vantagens gerenciais e sociais da participação popu-
lar, sendo esta, ao final, uma prática amplamente recomendada. Houve um
alerta sobre a manipulação política das metodologias implementadas que
levam as populações excluídas a interiorizarem o estigma da incapacidade
e dependência, o que as faz apresentar, diante dos métodos tradicionais
de elaboração técnica de planejamento, dificuldade de cognição e inex-
periência nas ações democráticas.

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NOTAS

1 Mestre em Arquitetura e Urbanismo, Doutora em História Social (UFBA); Professora Adjunta da Universidade
Estadual da Bahia, lotada no colegiado de Direito (Campi I) ; e-mail Lysie60@hotmail.com
2 Em sua recente visita ao Brasil pela ocasião do seu mais novo livro “Para entender o Capital”, Harvey defendeu
formas de organização econômica, política e social de natureza anti-capitalista, visto que o cenário mundial
aponta um panorama nada satisfatório, que inclui o aumento da desigualdade social, a crescente violação
da democracia, o alinhamento da mídia com poderosos carteis que alimentam a corrupção e a consequente
destruição do meio ambiente.
3 Em 1983, um convênio firmado entre a quinta DR do IPHAN - pró-memória, o IPAC e a Prefeitura Municipal,
criou o ETELF (Escritório Técnico de Licenciamento e Fiscalização) que tem como atribuição a aprovação dos
projetos específicos de intervenção em áreas de interesse histórico e cultural do município, além da elaboração
de parâmetros que devem nortear a execução desses projetos. Consultar lei municipal nº 3289/83.
4 Tendo em vista a manutenção e administração dessa área, foi criada, através da Lei 3.688/86, a Administração
Regional do Centro. Até 1990 não existia uma definição clara dos papéis inerentes às duas administrações
criadas: a Fundação Gregório de Matos e o Parque Histórico, sendo ambas gerenciadas pelo Administrador
Regional do AR-Centro; nesse mesmo ano, após sancionados os decretos, a estrutura da Fundação foi alterada.
Surge a figura do administrador do Parque Histórico e o novo Regimento da AR-Centro.
5 “Pelourinho ganha Prêmio Rainha Sofia na Espanha” disponível em http://www.revistamuseu.com.br/
noticias/not.asp?id=2530&MES=/8/2003&max_por=
6 Tal prêmio foi instituído há 22 anos com ênfase para a poesia, literatura e medicina. Há treze, a premiação
é concedida para a área de patrimônio. Já receberam o prêmio, São Domingos, no Caribe, e Cartagena das
Índias, na Colômbia.
7 Sigla para Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural.
8 Sigla para Companhia de Desenvolvimento Urbano. Atualmente, esta é a empresa estatal que também
administra os programas habitacionais do governo do Estado.

1246
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

9 Festa de toda terça-feira no Pelourinho, já marcada pela tradicionalidade de uma missa realizada na Igreja
de S. Francisco, seguida do ensaio musical do Grupo Cultural Olodum. Nesse dia, é enorme o público composto
por populares que se espalham pelas ruas do bairro em busca de lazer e diversão.
10 Para a população local, o Pelourinho oferece ainda poucos postos de trabalho no setor de serviço e nas
pequenas e médias empresas. Segundo pesquisa do Sebrae (1994), 63% das empresas do Pelourinho empregam
de 1 a 5 pessoas; 16,1% empregam de 6 a 10 pessoas e 6,4% empregam de 11 a 20 pessoas.
11 Nesse conjunto, estavam 62 casarões e o custo total anunciado, incluindo as igrejas, esteve em torno de
R$ 10 milhões.
12 Sigla para Associação dos Proprietários de Imóveis Tombados.
13 Mais uma vez, dezenas de famílias foram retiradas e foram gastos R$ 12,4 milhões.
14 Ação de número 38.148-7/2002.
15 Decreto nº 8.218/02 assinado pelo então Governador Otto Alencar em 8 de abril de 2002.
16 A referência se dirige à Regra do Decreto-lei de Desapropriação de número 3.365/41. Enquanto isso, o
Governo do Estado alega que não há inconstitucionalidade no ato da desapropriação, pois a intenção é cumprir
a Lei nº 8.218/02 que autoriza o Poder Executivo a “[...] doar à CONDER os imóveis que indica, assim como
a CONDER a alienar imóveis no Centro Histórico de Salvador”. Não é a primeira vez que o Ministério Público
interfere na briga entre moradores do “Centro Histórico” e CONDER. Há sete anos, um grupo de oito famílias
do prédio 34 da Rua Ribeiro dos Santos foi retirado do prédio pelo IPAC, sob a alegação de que iriam fazer a
reforma. O prazo marcado para o reassentamento das famílias no mesmo local foi de oito meses. Descumprido
constantemente, o atraso motivou os moradores a procurarem o Ministério Público que pressionou. Durante
as obras, o IPAC alugou casas menores para os moradores nas imediações. Após o mês de agosto de 2003, a
CONDER prometeu ao Ministério Público pagar um salário mínimo por cada mês de atraso, acumulados hoje
em R$ 1.680,00, até agora em negociação. No dia 8 de março de 2004, a CONDER devolveu a edificação aos
seus moradores (CASTRO, 2004 d, p.7).
17 Depois de seis anos ininterruptos de pagamento desta mensalidade, o(a) contribuinte tem direito à posse
legal da casa.
18 Associação dos Moradores e Amigos do Centro Histórico.
19 O único módulo policial fica em Lagoa I e o colégio ainda não está pronto. Para sair do conjunto habitacional
e chegar até a Escola Municipal Fazenda Coutos, as crianças fazem um caminho perigoso.
20 AMORES é a sigla para Associação dos Moradores de Rua de Salvador.
21 O “Internet” também morou na área que hoje engloba a 7ª etapa, na Rua do Bispo, 69, depois foi para o
albergue da Baixa dos Sapateiros e através da SETRADS, conseguiu a casa no Moradas da Lagoa II.
22 O jornal também tentou ter acesso a lista dos 18 relocados, mas foi vetado com a justificativa de que a em-
presa não queria alimentar polêmica, já estando este assunto na esfera do Ministério Público Estadual (MPE).
23 Mesmo assim, a juíza da 7ª vara da Fazenda Pública terá de deliberar sobre o caso, enquanto isso, os R$
29 milhões do Monumenta-Bid não saem para a continuidade das obras.

1247
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Entre a uniformização e o
multiculturalismo: o Programa
Vila Viva à Luz do Reconhecimento1

Ananda Martins Carvalho


Fábio André Diniz Merladet
Isabella Gonçalves Miranda
Lívia Bastos Lages
Thaís Lopes Santana Isaías

INTRODUÇÃO

Historicamente, no Brasil, o modelo de planejamento urbano vem


sendo pautado por projetos hegemônicos e uniformes, que culminam na
produção de cidades excludentes. Diante da falta de inserção em projetos
urbanísticos oficiais, grupos marginalizados que vivem nas cidades pro-
duziram, tradicionalmente, territorialidades locais e uma diversidade de
formas de ocupação do espaço, de acordo com questões de cunho sócio-
-histórico, econômico e cultural. Se no passado essas áreas marginaliza-
das foram ignoradas pelo poder público, na atualidade diversos projetos
vêm sendo implementados nas áreas de vilas e favelas com o intuito
de urbanizá-las. No contexto de Belo Horizonte, destaca-se o Vila Viva,
programa de urbanização e regularização fundiária de vilas e favelas que
abarca “obras de saneamento, remoção de famílias, construção de unida-
des habitacionais, erradicação de áreas de risco, reestruturação do sistema
viário, urbanização de becos, implantação de parques e equipamentos
para a prática de esporte e lazer.” (Prefeitura de Belo Horizonte, 2013).
O programa prevê também a participação direta da comunidade, por
meio das etapas de levantamento de dados, elaboração de diagnóstico

1249
integrado e definição das prioridades e ações locais. Porém, vem-se cons-
tatando, por meio dos estudos realizados no Aglomerado da Serra e na
Vila São Tomás, que a participação popular no programa é restrita, não
atendendo-se, portanto, a demandas centrais das comunidades, o que cul-
mina na construção de lógicas perversas de intervenção no espaço urbano.
O trabalho em questão se insere no contexto do grupo de pesquisa bi-
nacional “Cidade e Alteridade: Convivência multicultural e justiça urbana”,
iniciativa interdisciplinar da Universidade Federal de Minas Gerais e do
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em parceria com
a Universidade Federal de Viçosa e a Universidade de Itaúna. Utilizou-se
como método investigativo a pesquisa etnográfica, a qual inclui os proce-
dimentos de anotações em caderno de campo, coleta de histórias de vida,
observação direta do cotidiano e das ações dos diversos atores sociais
envolvidos em políticas públicas de urbanização, registros fotográficos,
entrevistas semi-estruturadas individuais ou coletivas (gravadas ou não),
respeitado seu consentimento à realização da pesquisa.
Toma-se como ponto de partida a concepção de que os diferentes
grupos sociais criam e ressignificam o espaço urbano de acordo com o
contexto social, cultural, econômico e político em que vivem. Constroem-
-se, assim, grupos territorializados por meio de processos que envolvem a
formação de laços de identificação entre os seus moradores e entre estes
e o espaço que habitam. Nesse sentido, a cidade abriga uma diversidade
de formas de viver, conviver e de se conceber o ambiente urbano.
Constata-se, porém, que no âmbito das intervenções públicas urbanas
em áreas consideradas vulneráveis se desconsidera o multiculturalismo
intrínseco aos ambientes de convivência social. Ao partir-se da imposição
de modelos homogeneizantes de intervenção, o que se tem como resul-
tado é a institucionalização de políticas opressoras, marcadas pelo não
reconhecimento do sujeito e da diversidade constituidora de suas relações
e de suas possibilidades de ocupação do espaço. Importante destacar aqui
o desafio trazido por Boaventura Santos (2003), em seu livro “Reconhecer
para libertar, os caminhos do cosmopolitismo cultural” o qual preleciona

1250
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

que ao mesmo tempo em que se exija o reconhecimento da diferença, é


essencial que as pessoas possam ser tratadas como iguais. Para tanto, é
preciso, dentre outras coisas, reinventar o conceito de multiculturalismo
e outros vocabulários e instrumentos emancipatórios que permitam a
invenção de novas cidadanias.
Partindo-se da premissa da relevância de se considerar o multicultu-
ralismo inerente à vida urbana, o presente trabalho visa, então, lançar
luz sobre as diferentes concepções de morar ou habitar a cidade. A atual
relatora especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Mo-
radia Adequada, a urbanista Raquel Rolnik (2012), explica que o conteúdo
desse direito está muito além da ideia de quatro paredes e um teto. O
conceito adotado pela relatoria é complexo e ainda não foi plenamente
incorporado pelas políticas públicas de habitação ou de reassentamentos,
especialmente no que concerne à ideia ali contida de não discriminação
e adequação cultural. Argumenta-se, aqui, que não é possível conceber
um conceito restrito de moradia, menos ainda de estilo de viver, diante da
diversidade social e cultural presente nas cidades brasileiras. Incorporar
pressupostos como o da ‘adequação cultural’ torna o conteúdo do direito
à moradia variável conforme a constituição sociocultural de determinado
grupo. Tal compreensão é vital para a composição de políticas públicas
não discriminatórias diante da diversidade de modos de vida.
A desvalorização do aspecto cultural do espaço construído se faz refletir
na execução das políticas públicas de habitação social, as quais tendem
a produzir moradias homogêneas e padronizadas, com negligência às
características e dinâmicas sócio-espaciais dos lugares a que tais políticas
se destinam. Tendo em vista que a efetivação plena do direito à moradia
tem como requisito a adequação cultural, é inevitável considerar os as-
pectos coletivos do exercício desse direito. Ora, se as moradias refletem
e modificam o estilo de vida de cada comunidade, a sua padronização
implica, também, na homogeneização da cultura urbana. Uma política
pública que desconsidera a diversidade das moradias e, consequente-
mente, dos espaços de convivência social, ao padronizar a moradia,

1251
inevitavelmente escolhe um modelo, um estilo de vida que será imposto
aos demais grupos sociais. Destarte, o resultado dessas intervenções são
cidades uniformizadas.
Ainda é flagrante, portanto, a incompreensão da moradia como di-
reito subjetivo e a falta de entendimento acerca da sua complexidade,
em especial no que tange à atuação prestacional do Estado voltada à
concretização do direito de grupos socialmente excluídos. De forma mais
ampla, pode-se afirmar que as falhas citadas se estendem às políticas de
efetivação do direito à cidade. Percebe-se, portanto, que o conteúdo das
políticas voltadas à construção de moradias e do espaço urbano devem
compreender a diversidade sociocultural do ambiente sob pena de estas
representarem formas de violência contra os próprios detentores do direito.
Tem-se como exemplo flagrante dessa política pública padronizante
de intervenção urbana o Vila Viva, concebido pela prefeitura de Belo Ho-
rizonte como um programa de urbanização de vilas e favelas, que elenca
como principais objetivos a regularização fundiária e a urbanização, que
reivindica uma atuação multidimensional, tanto no âmbito jurídico e
urbano quando no social e econômico, tendo por alicerce a participação
popular. Contrariamente a essa afirmação de que a política seria multidi-
mensional e participativa, o que se observa repetidamente ao longo das
investigações realizadas pelo projeto Cidade e Alteridade é que programa
tem sido marcado pela falta de informação dos afetados e pela não possi-
bilidade de deliberação sobre aspectos centrais da política. Tal aplicação
tem conduzido à desconfiguração do modo de viver das populações desses
territórios e a uma grande quantidade de remoções forçadas de famílias,
com a realização de obras que não atendem aos principais anseios e
necessidades das comunidades. A imposição de uma concepção padroni-
zada de morar, com a construção de unidades habitacionais uniformes e
padrões de urbanismo pré-determinados desrespeita, de maneira frontal,
as particularidades das comunidades atingidas.
O que se pretende ressaltar nesse artigo é que a efetiva participação
das comunidades desde a fase de planejamento dos programas públicos

1252
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de intervenção urbanística, até a fase de execução e avaliação destes é


imprescindível para que as políticas públicas sejam realizadas de forma
democrática, em que os sujeitos das comunidades tenham voz ativa na
definição de suas demandas, necessidades e prioridades. Somente assim
alcançar-se-á o reconhecimento verdadeiro dos mais diversos estilos de
viver que integram o espaço urbano.

TERRITóRIO URBANO: ABORDAGEM SóCIO-hISTóRICA

A elaboração e aplicação das políticas públicas de habitação e urba-


nização no Brasil seguem um modelo uniforme e padronizante, sendo
marcadas pela lógica do Estado Nacional moderno, que produz a he-
gemonia de sua administração com base no domínio e controle sobre a
escala político-administrativa das fronteiras do território nacional e suas
delimitações internas. Os diferentes grupos humanos, no entanto, produ-
zem territorialidades próprias, que se distinguem dos mapas oficiais não
apenas quanto às suas delimitações, mas também quanto aos sentidos e
significados que permeiam a vida das pessoas nos espaços. Tais territo-
rialidades ficam invisibilizadas quando o Estado exerce o planejamento
de suas intervenções de forma centralizadora, sendo incapaz de reconhe-
cer a diversidade inerente à construção dos espaços urbanos. Segundo
Boaventura, a modernidade e suas instituições, entre as quais o Estado,
produziu uma cegueira de escalas, que a impede de enxergar e reconhe-
cer os espaços territoriais que não se enquadram dentro da cartografia
homogeneizante do Estado Nacional (SANTOS, 2010, 2011).
O Estado Moderno, para o professor José Luiz Quadros, é marcado
pela ideia de uniformização e pela sistemática negação da diversidade
(MAGALHAES, 2012, p. 119). Historicamente, a centralização do poder foi
importantíssima para o desenvolvimento do capitalismo, já que permitiu a
unificação das leis, a criação da moeda nacional, que facilitava a circulação
de riquezas e o desenvolvimento do exército nacional, apto a defender os
interesses do mercado. A legitimidade de um Estado soberano, que exerce

1253
sua vontade em um vasto território, só foi possível com a padronização
das pessoas sob sua jurisdição e controle.
A homogeneização da população dentro de um mesmo território na-
cional e a invenção de uma identidade patriótica se deu de forma a igualar
os menos diferentes e a excluir os mais diferentes do status de cidadão. Na
Europa, a religião, em especial, exerceu importante papel nessa uniformi-
zação de comportamento e valores, possibilitando, assim, a criação dos
primeiros Estados Nacionais modernos. Sobretudo em Portugal e Espanha,
foi marcante a atuação do Tribunal de Inquisição para a padronização
dos menos diferentes e a expulsão, por meio de guerras, dos mouros e
outros “mais diferentes”. Na América Latina a religião também foi o gran-
de mecanismo da conquista colonial: o Vaticano legitimou a invasão da
América e concedeu, a partir da emissão de Bulas papais, aos portugueses
e espanhóis “o direito de invadir, conquistar e subjugar a quaisquer [...]
inimigos de Cristo, suas terras e bens e a todos reduzir à servidão e tudo
praticar em utilidade própria e dos seus descendentes”(RIBEIRO, 1995, p.
67). A imposição da religião católica tinha o sentido uniformizador, de
destruir o povo originário e construir neles a cultura europeia. Em todos
os lugares onde se formou, o Estado moderno se assentou na exclusão
política de todos aqueles que não se enquadravam em seus critérios para
aceder ao estatuto de cidadão. A exclusão social e política é, portanto,
fundacional à modernidade ocidental(SANTOS, 2008, 2010).
O modelo colonialista e capitalista brasileiro historicamente conduziu
um processo violento de expropriação de terras e desterritorialização de
povos em favor de um sistema específico de acumulação e apropriação
das riquezas por determinados grupos políticos e econômicos. O geno-
cídio e o etnocídio das populações brasileiras indígenas, camponesas,
quilombolas, negras, formou um povo desterrado, um povo que hoje vive,
majoritariamente, nas cidades, um povo que resiste aos novos processos
de expropriação de terras na medida em que avançam os interesses da
especulação imobiliária nas cidades.
Nas periferias das cidades, pessoas, vindas das mais diversas raízes,

1254
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

reconstruíram espaços de moradia e de convivência comunitária. As


vilas e favelas, em grande medida autoconstruídas, estão permeadas de
histórias, sentidos e significados impregnados na identidade individual
e coletiva das pessoas que ali vivem. É importante ressaltar que não se
trata aqui de fazer um simples elogio à diversidade, uma idealização da
estética de espaços construídos, muitas vezes, de forma precária, mas de
chamar a atenção para o fato de que existe na cidade uma pluralidade de
formas de construir e conceber os territórios, concepções estas que ficam
invisibilizadas pelas intervenções urbanísticas hegemônicas.
Embora a Constituição Federal de 1988 (CF/88) abra espaço para o
reconhecimento do patrimônio histórico e cultural das formas próprias
de trato com o urbano que as comunidades instituem e, embora o direito
à cidade nos artigos 182 e 183 preveja a participação no planejamento
urbano como fundamental ao exercício do direito à cidade, o poder público
ainda não foi capaz de estabelecer outro padrão no trato com as plurais
experiências urbanas.
Segundo Boaventura de Sousa Santos, “o conhecimento exprime-se
territorialmente e o território é a expressão material da rede de relações
que constrói o conhecimento” (SANTOS, 2005, p. 300). Diferentes co-
nhecimentos produzem diferentes cartografias da realidade e servem a
objetivos e interesses diversos. Os mapas oficiais estabelecem fronteiras,
conceitos e definições do espaço que servem aos objetivos específicos do
Estado, ou seja, se referem à divisão político administrativa da cidade, aos
espaços de controle social, fiscal, policial e urbano (SANTOS, 2011). Nesses
mapas, que representam a forma como o Estado concebe os territórios na
execução de políticas públicas, a pluralidade de concepções de território
fica invisibilidade por uma cartografia única das cidades, e por uma es-
tética homogeneizante, que não reconhece os espaços informais e muito
menos as formas como os seus habitantes o concebem e o constroem.
O grande problema da paulatina negação da diversidade é a negação
contínua de direitos já consolidados no ordenamento brasileiro. No caso
em análise, o programa Vila Viva, executado pela prefeitura de Belo Ho-

1255
rizonte, ao negar a diversidade cultural, não garante (e até mesmo viola)
o direito à moradia.
O território com o qual o programa Vila Viva lida é a favela, local onde
a vida cultural é intensa e não hegemônica. A moradia, por sua vez, é
componente intrínseco da identidade dos moradores com o espaço, posto
que é determinante na organização social e no estilo de vida das pessoas.
A partir de pesquisa de campo envolvendo um intenso diálogo com
a comunidade local do aglomerado Serra e São Tomás, a equipe de pes-
quisadores do projeto Cidade e Alteridade concluiu que a grande maioria
dos atingidos pelo programa rejeitavam a proposta de reassentamento
habitacional da prefeitura. Para Lefebvre, os técnicos urbanistas “não per-
cebem [...] que todo espaço é produto, e [...] que esse produto não resulta
do pensamento conceitual [mas] das relações de produção a cargo de um
grupo atuante” (Silva, 2013, p.1230).
A partir do cenário de implementação do Programa Vila Viva, pretende-
-se demonstrar com esse artigo a permanência da lógica uniformizadora
do Estado Nacional, que não atende à diversidade do meio urbano. No
caso, impõe-se, a partir do modelo de urbanização, uma única concep-
ção de vida urbana aceitável: àqueles que não se adaptarem a ela, resta
resignar-se à parca indenização oferecida pelo Município e à migração
para a zona metropolitana de Belo Horizonte, longe do trabalho e, muitas
vezes, de serviços essenciais, como saúde e educação. Nesse processo, é
clara a superposição de um modo de vida a outro: expulsam-se os mais
diferentes e uniformizam-se os menos diferentes.

CENáRIO ATUAL DA POLÍTICA


hABITACIONAL EM BELO hORIZONTE

O cenário atual das políticas públicas, apesar do histórico de negli-


gência com relação a grupos e localidades ditos vulneráveis, vem sendo
marcado pela implantação de programas de urbanização voltados para
vilas e favelas. Toma-se aqui como parâmetro de análise o Programa

1256
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Vila Viva realizado no Aglomerado da Serra e na Vila São Tomás, ambos


localizados em Belo Horizonte.
O objetivo-fim das políticas de habitação, neste caso políticas de inter-
venção em vilas e favelas, é a melhoria da qualidade de vida dos habitantes
e a garantia do exercício de seus direitos fundamentais, tal como o direito à
moradia, previsto na Constituição Federal. Para serem inclusivas e efetivas,
as políticas públicas devem compreender e responder às necessidades,
demandas e anseios das populações nas quais intervém, sob a ótica da
diversidade social e cultural presente nas cidades brasileiras.
Após inúmeras incursões em campo e entrevistas com os afetados
pelo Programa Vila Viva tem-se constatado que este negligencia aspectos
sociais e culturais das comunidades envolvidas. Em que se pese o relevo
dos recursos empregados pelo programa em melhorias físicas nas comu-
nidades, a visão restrita de urbanismo produz processos de planejamento
e execução excludentes, dados por meio da relação vertical de poder
entre o ente público e os moradores envolvidos. Tem-se como resultado
a imposição de uma concepção hegemônica de moradia e de urbano que
não se enquadram no estilo de viver das comunidades, tomando-se como
exemplo paradigmático os prédios construídos pela Urbel.
Os apartamentos, denominados popularmente como “predinhos”, não
se adequam à concepção de moradia comum às vilas pesquisadas, já que
não incorporam elementos essenciais à reprodução do espaço de vida das
comunidades. Traz-se, a título demonstrativo dessa inadequação aspec-
tos como o tamanho reduzido dos apartamentos quando comparados ao
parâmetro das casas de vilas e favelas, a não possibilidade de expansão
dos pequenos apartamentos, a inacessibilidade ao segundo andar por
pessoas especiais, a verticalização da vizinhança, o impedimento de
cultivo de hortas, jardins, criação de animais e promoção de festejos ou
espaços interativos entre os moradores, o que afronta de maneira violenta
os hábitos constitutivos da cultura própria da favela. Ressalta-se, que um
projeto de interesse público nunca deve deteriorar as condições de vida
das comunidades atingidas, inclusive em seu aspecto subjetivo.

1257
Outro exemplo de afronta à cultura local é a desconstituição do capital
social das favelas à medida que o programa, ao remover as moradias,
desconsidera os laços sociais e referenciais espaciais construídos em
determinada localidade. (GUSTIN, 2012) Há, portanto, impacto direto no
sentimento de pertença dessas populações, que são desenraizadas de seu
contexto e história. Esse desenraizamento produz sofrimento humano e
injustiça social.
Segundo Fraser (2005) a compreensão de injustiça cultural ou simbólica
passa por padrões sociais de representação, interpretação e comunicação.
Assim, o não reconhecimento dos sujeitos, que se constitui a partir da
imposição e da dominação cultural, subalterniza determinadas pessoas
a padrões de interpretação e de comunicação associadas à outra cultura,
estranha e hostil. A injustiça cognitiva, que ocorre quando os sujeitos
são considerados invisíveis pelos entes representativos, produz exclusão
social, cultural e política, ou seja, produz injustiça social. (SANTOS, 2008)
O que acontece no âmbito da política pública Vila Viva é exatamente
isso: o estilo de morar das comunidades é desvalorizado em virtude dos
padrões sociais dominantes. A sistemática pública cultural-valorativa,
que promove exatamente a imposição de padrões “superiores”, produtos
da ausência de reconhecimento, tem resultado em injustiças estruturais.
Pode-se dizer ainda que o Vila Viva, apesar de propor o contrário, não
é participativo, pois não se assenta no verdadeiro reconhecimento dos
moradores das áreas onde é implementado. Conforme se constatou nas
entrevistas, os espaços de reuniões e planejamento da execução das obras
de urbanização da comunidade não são verdadeiramente deliberativos,
mas meramente informativos na medida em que é extremamente reduzida
a capacidade de os moradores alterarem os planos inicialmente esboçados
pelo município e seu corpo técnico. Além disso, as reuniões avaliadas
foram marcadas pela condução autoritária de funcionários companhia
urbanizadora, a Urbel, bem como pela falta de um diálogo horizontal
entre técnicos e moradores, o que se agravava pelo uso ostensivo de uma
linguagem técnica de difícil cognição por aqueles.

1258
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Ao manter os diretamente afetados pela política à margem dos proces-


sos decisórios, impediu-se a construção de projetos que reconhecessem
seus anseios e necessidades. Tornou-se impossível para estes, portanto,
mudar os rumos das obras considerando-se a falta de flexibilidade quan-
to às negociações frente às remoções, indenizações e planejamento das
obras que seriam realizadas.
Segundo Fraser (2009), em que pese a falta de reconhecimento, isso se
dá ainda por outra faceta da injustiça, que envolve as questões políticas,
mais especificamente de representação. Ela trabalha esse aspecto em seu
texto ”Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado”, propondo
uma teoria da justiça tridimensional, incorporando a dimensão política
da representação, ao lado da dimensão econômica da distribuição e da
dimensão cultural do reconhecimento. Para a autora

a justiça requer arranjos sociais que permitam que todos parti-


cipem como pares na vida social. Superar a injustiça significa
desmantelar os obstáculos institucionalizados que impedem
alguns sujeitos de participarem, em condições de paridade com
os demais, como parceiros integrais da interação social. Por um
lado, as pessoas podem ser impedidas da plena participação por
estruturas econômicas que lhes negam os recursos necessários
para interagirem com os demais na condição de pares; nesse
caso, elas sofrem injustiça distributiva ou má distribuição. Por
outro lado, as pessoas também podem ser coibidas de interagi-
rem em termos de paridade por hierarquias institucionalizadas
de valoração cultural que lhes negam o status necessário; nesse
caso, elas sofrem de desigualdade de status ou falso reconheci-
mento. (Fraser, 2009, p.17)

Como já dito, ela então completa seu raciocínio trazendo a tona


exatamente a terceira dimensão da justiça, a política. Essa estaria in-
timamente ligada às questões de redistribuição e reconhecimento à
medida que consistiriam exatamente no cenário em que os debates e
deliberações acerca desses dois pontos se dão. Assim, o cenário político
também seria determinante já que em seu seio que se estabeleceria não
somente o “que” (redistribuição e/ou reconhecimento), mas também o
“quem” das políticas públicas. Trazendo esse conceito para a presente
discussão, os rumos das políticas públicas, mecanismos promotores de

1259
redistribuição e (falso) reconhecimento, seriam definidos exatamente por
nesse espaço político, no caso, onde se definiria “quem” está incluído
ou não nos espaços de discussão acerta do “que” será feito e “como”
será feito. Assim,

Ao estabelecer o critério de pertencimento social, e, portanto,


determinar quem conta como um membro, a dimensão política
da justiça especifica o alcance daquelas outras dimensões: ela
designa quem está incluído, e quem está excluído, do círculo
daqueles que são titulares de uma justa distribuição e de reconhe-
cimento recíproco. Ao estabelecer regras de decisão, a dimensão
política também estipula os procedimentos de apresentação e
resolução das disputas tanto na dimensão econômica quanto na
cultural: ela revela não apenas quem pode fazer reivindicações
por redistribuição e reconhecimento, mas também como tais
reivindicações devem ser introduzidas no debate e julgadas.
(Fraser, 2009, p.19)

Fica evidente, aqui, que a discussão se dá então em torno da represen-


tação, que decide pautas procedimentais anteriores às questões materiais,
mas que terão impacto direto nelas. No âmbito das políticas públicas, a
maneira como se dará a representação das afetados, pautada na inclusão
ou na exclusão da comunidade formada por aqueles legitimados a fazer
reivindicações recíprocas de justiça, vão interferir diretamente na possi-
bilidade de expressarem suas reivindicações e decidirem suas demandas.
Ocorre que, infelizmente, como já discutido acima, os envolvidos são
mantidos à margem dos processos decisórios à medida que o poder público
atua de maneira insatisfatória no desempenho de seu papel representativo.
Fraser divide a questão da representação em três, na política-comum, no
mau enquadramento e na metapolítica:

A falsa representação ocorre quando as fronteiras políticas e/


ou as regras decisórias funcionam de modo a negar a algumas
pessoas, erroneamente, a possibilidade de participar como um
par, com os demais, na interação social – inclusive, mas não
apenas, nas arenas políticas. Longe de poder ser reduzida à má
distribuição ou ao falso reconhecimento, a falsa representação
pode ocorrer até mesmo na ausência dessas outras injustiças,
apesar de estar frequentemente conectada a elas. Pelo menos dois
níveis diferentes de falsa representação podem ser distinguidos.
À medida que as regras de decisão política equivocadamente

1260
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

negam a alguns dos incluídos a chance de participar plenamente,


como pares, a injustiça é o que eu chamo de falsa representação
política-comum.
Menos óbvio, talvez, seja o segundo nível da falsa representação,
que diz respeito ao aspecto do estabelecimento das fronteiras do
político. Aqui, a injustiça surge quando as fronteiras da comu-
nidade são estabelecidas de uma forma que, equivocadamente,
exclui de algumas pessoas todas as chances de participarem
dos debates autorizados sobre a justiça. Em tais casos, a falsa
representação ganha uma forma mais severa, que eu chamarei
de mau enquadramento...2 (Fraser. 2009, p.21)

Em que pese a importância de discutir-se a injustiça política de pri-


meira ordem, qual seja a política-comum e de segunda ordem, o mau
enquadramento, o que se pretende, aqui, é levantar-se com mais aten-
ção a terceira dimensão trazida por Fraser, a injustiça metapolítica. Essa
consistiria no fracasso de institucionalizar a paridade de participação
exatamente nos espaços em que se delibera o “quem” pode participar.
O que está em jogo aqui, então, é o “como”, o processo preliminar por
meio do qual o espaço político de representação é constituído. Quando
o poder público monopoliza a atividade do estabelecimento do enqua-
dramento, negando voz àqueles que podem ser afetados no processo e
impedindo a criação de arenas democráticas em que as reivindicações
destes últimos possam ser avaliadas e contempladas, inevitavelmente
o processo se dará então com falsa representação. O efeito é a exclu-
são da grande maioria das pessoas da participação que determinam a
divisão oficial do espaço político. Na ausência de arenas institucionais
para tal participação, e submetida a um tratamento antidemocrático
do “como”, é negada à maioria a chance de se envolver, em termos
paritários, no processo de tomada de decisão sobre o “quem”.
O que se reivindica aqui, portanto, não é somente que os moradores
afetados pelas políticas públicas de urbanização integrem os espaços
de decisão sobre planejamento e execução delas, mas antes disso,
componham também os espaços em que vai se decidir o “como” se
dará esses espaços de decisão e “quem” os integrará. Somente assim

1261
a representação seria de fato transformativa à medida que, nesses
quadros, os envolvidos

Procuram democratizar o processo através do qual os enquadra-


mentos da justiça são desenhados e revisados. Afirmando o seu
direito de participar na constituição do “quem” da justiça, eles,
simultaneamente, transformam o “como” – o que eu entendo cor-
responder aos procedimentos aceitos para determinar o “quem”.
Nesse sentido, os movimentos transformativos, em sua atuação
mais reflexiva e ambiciosa, demandam a criação de novas arenas
democráticas para a formulação de argumentos sobre o enqua-
dramento. Em alguns casos, além disso, eles mesmos criam tais
arenas. (FRASER, 2009, p.32)

Sustenta-se então que somente revisando e redesenhando todos os


espaços de decisão, inclusive os metapolíticos que envolvem o “como”
se dará o “quem”, pode-se falar efetivamente em participação. Somente
assim dar-se-á verdadeiramente voz aos moradores, permitindo-lhes
reivindicar a moradia e uma comunidade que se adeque ao seu estilo de
vida, que reconheça o esforço de sua conquista e seus direitos de posse,
garantindo-lhes a prometida dignidade a pessoa humana.

RECONhECIMENTO DA DIVERSIDADE E
EXERCÍCIO DEMOCRáTICO DO PODER POPULAR

Como um dos aportes teóricos ao presente estudo, utiliza-se con-


ceitos delineados pelo professor Boaventura de Sousa Santos, a saber:
linhas abissais, multiculturalismo e a díade igualdade e diferença. Sobre
o primeiro desses conceitos, é importante destacar que a consideração
das linhas abissais assume centralidade para explicar a existência de de-
sigualdades e exclusões radicais entre os diferentes espaços das cidades
e seus habitantes. De acordo com Santos (2008) o pensamento ocidental
moderno é um pensamento abissal, pois ele assenta a sua hegemonia na
produção de ausências, na invisibilização, subalternização e ridiculariza-
ção das modernidades alternativas insurgentes e do imenso universo de
conhecimentos e lógicas que delas advém.

1262
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

As linhas abissais são separações simbólicas fundadas no conhecimen-


to, no poder e no direito moderno ocidental hegemônico que invisibilizam
e desacreditam toda uma diversidade de formas de conhecimento, relações
sociais e legalidades existentes no mundo, assim como seus sujeitos. Es-
sas linhas são simbólicas, porém se tornam objetivas quando aplicado o
conceito a determinado fenômeno social. É possível falar em cartografias
abissais do poder político, da legalidade e do conhecimento que estabele-
cem os termos da distinção entre “esse lado da linha” e “o outro lado da
linha”, onde nada que existe é considerado relevante ou compreensível.
Transpondo esse conceito para o tema do presente estudo, pode-se afir-
mar que as linhas que formam relações dicotômicas entre legalidade e
ilegalidade, formalidade e informalidade, ou ainda conhecimento técnico
e conhecimento popular, costumam não ser transpostas nos momentos
de concepção e implementação de políticas públicas.
Contrapondo-se à existência e perpetuação das linhas abissais, Santos
(2003) propõe a reinvenção de conceitos e vocabulários emancipatórios,
baseados na sociologia das ausências, a qual permite a identificação de
silêncios e ignorâncias que definem as incompletudes das culturas, expe-
riências e saberes. A sociologia das ausências parte do reconhecimento da
diversidade de formas de se conceber o mundo, fazendo emergir práticas
e saberes até então silenciados. Ela permite, enfim, o tratamento igual
entre os diversos grupos, mesmo reconhecendo que entre eles existem
diferentes práticas e concepções de mundo.
A partir da sociologia das ausências, o autor redefine também o con-
ceito de multiculturalismo, considerando-o em sua possibilidade eman-
cipatória. O multiculturalismo enquanto prática de convivências e trocas
respeitosas entre os grupos permite tornar visível a diversidade de culturas
e lutas políticas, além de formas de resistências que se opõem a parâme-
tros modernos ocidentais, que trazem consigo visões limitadas de cultura.
Em se tratando do contexto urbano, a diversidade social é mais um
elemento da complexidade do sistema. Em termos de luta por direitos, o
reconhecimento desta diversidade precede à própria luta pela efetivação

1263
do direito, como no caso do direito à moradia. O conceito de reconheci-
mento, segundo Axel Honneth, vem da tradição filosófica hegeliana para a
qual o reconhecimento significa ver o outro como seu igual, mas separado
deste, isto é, uma pessoal se torna um indivíduo, constitui sua subjetivi-
dade, ao reconhecer o outro (Honneth 2003). Neste contexto, reconhecer
a diversidade social e seu reflexo no ambiente construído é necessidade
precedente à efetivação do direito à moradia. E essa diversidade deve
ser não apenas reconhecida pelos demais grupos urbanos, mas efetivada
como um outro diverso e autônomo (GUSTIN, 2003).
Nancy Fraser (2003) aponta que o reconhecimento visa combater injus-
tiças de matriz cultural, com raízes em padrões sociais de representação,
interpretação e comunicação, tais como: 1) dominação cultural (hostil à
própria cultura); 2) não-reconhecimento (invisibilidade); 3) desrespeito
(estereotipação). Constata-se, porém, infelizmente com relevância, que
tais injustiças são flagrantes em programas habitacionais, que pretendem
efetivar o direito à moradia: há uma dominação cultural que visa à impo-
sição de um padrão de moradia – refletindo um estilo de vida diverso da-
quele existente -; há também, por parte dos gestores de políticas públicas,
um não reconhecimento da diversidade, provocando a invisibilidade dos
grupos como sujeitos de direito. A conclusão não pode ser menos óbvia:
urge necessário, então, a reestruturação dessas programas públicas, sendo
imprescindível o reconhecimento da diversidade da cidade para implan-
tação de políticas democráticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As políticas públicas de habitação, reassentamento e urbanização de


vilas e favelas, em geral, são implementadas com base em uma análise
técnica dos espaços que não é neutra, mas antes baseada em uma forma
de entender o urbano e o morar sob um ponto de vista hegemônico, que
dificilmente dá conta do multiculturalismo presente nas cidades.
O caso estudado, referente ao Programa Vila Viva, demonstra que mes-

1264
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mo que esta política se proponha participativa e redistributiva, persistem


inúmeras limitações na definição de seus critérios sobre “quem” pode
participar, em que condições, e “como” serão os espaços de participação.
Por exemplo, se serão amplamente deliberativos, com um amplo poder
de definição de quais intervenções serão executadas e em que condições,
ou se serão espaços mais informativos, onde a deliberação por parte dos
moradores é sempre contraposta por argumentos técnico-institucionais
que impossibilitam que todos participem como pares nos espaços de
decisão. Tais limitações decorrem não apenas do não reconhecimento
do espaço das favelas como local habitável, mas principalmente, do não
reconhecimento de seus moradores como sujeitos políticos capazes de
planejar, e deliberar como pares sobre a implementação da política em
suas comunidades.
Em decorrência, os projetos de intervenção do Município, previamente
estruturados e padronizados deixam de atender às peculiaridades dos
locais em que serão implementados, bem como às verdadeiras demandas
dos moradores. Violações do direito à cidade e do direito à moradia de
muitas pessoas ocorrem então como consequência de injustiças ligadas
ao não-reconhecimento dos moradores
Conforme ressaltado no decorrer do trabalho a efetivação dos direitos
das populações e a produção de uma vida em dignidade, com qualidade
de uma vida, é possível apenas na medida em que as necessidades e
vontades dos grupos são verdadeiramente reconhecidas. Ao se trabalhar
com projetos previamente estruturados e padronizados, perde-se a aten-
ção às peculiaridades das populações para as quais esses projetos são
destinados e deixa-se de reconhecer a diversidade intrínseca às formas
de se habitar a cidade. A política pública deveria, ao contrário, buscar
assegurar o direito à igualdade dos moradores, integrando-os à cidade,
ou seja, tornando possível o acesso à saúde, educação, segurança, lazer,
cultura, mobilidade, bem como o direito à diferença, o direito de morar
onde se escolhe morar, e segundo suas concepções próprias de moradia
adequada e de dignidade.

1265
Ainda, a qualidade de uma vida, e especialmente de morar, se faz per-
ceber quando esta atende às necessidades e vontades de seus habitantes,
tendo reconhecidas, porém, as suas diferenças, bem como assegurada a
igualdade em relação à integração na cidade, com acesso, por exemplo,
a serviços públicos e às redes de acesso à educação, saúde, transporte,
cultura e lazer. Ao se trabalhar com projetos como o Vila Vila, previa-
mente estruturados e padronizados, perde-se a atenção às peculiaridades
das populações para as quais esses projetos são destinados e deixa-se
de reconhecer a diversidade intrínseca às formas de se habitar a cidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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versidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013

NOTAS

1 Ananda Martins Carvalho. Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora
do Projeto Cidade e Alteridade da UFMG.
Fábio André Diniz Merladet, bacharel em Ciências Sociais (UFMG) e pesquisador do Projeto Cidade e Alteridade
da UFMG. E-mail: fabioandredm@hotmail.com
Isabella Gonçalves Miranda, bacharel em Ciências Sociais (UFMG) e pesquisadora do projeto Cidade e Alteridade
da UFMG. E-mail: bellagm2@hotmail.com
Lívia Lages. Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora do Projeto Cidade
e Alteridade da UFMG. E-mail: lblages07@gmail.com
Thaís Lopes Santana Isaías. Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora
do Projeto Cidade e Alteridade da UFMG. E-mail: thaislopes@hotmail.com.br
2 O problema do mau enquadramento tem um caráter mais profundo em função da importância crucial do
enquadramento para todas as questões de justiça social. Longe de ter significância marginal, o estabeleci-
mento do enquadramento está entre as decisões políticas mais consequentes. Ao constituir tanto os membros
quanto os não membros de uma única vez, essa decisão efetivamente exclui os últimos do universo daqueles
a serem considerados dentro da comunidade em questões de distribuição, reconhecimento e representação
política-comum. O resultado pode ser uma grave injustiça. Quando questões da justiça são enquadradas de
uma forma que, erroneamente, exclui alguns indivíduos do âmbito de consideração, a consequência é um
tipo específico de metainjustiça, em que se negam a esses a chance de formularem reivindicações de justiça
de primeira ordem em uma dada comunidade política. Semelhante à perda do que Hannah Arendt chamou
de “direito a ter direitos”, esse tipo de mau enquadramento é uma espécie de “morte política” (Arendt, 1973,
pp. 269-284). Aqueles que o sofrem podem se tornar objetos de caridade ou benevolência. Desprovidos da
possibilidade de formular reivindicações de primeira ordem, eles se tornam não-sujeitos em relação à justiça.

1267
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Imóveis ociosos na
implementação de políticas
Habitacionais para idosos

¹ Luzia Cristina Antoniossi Monteiro


² Marisa Silvana Zazzetta
³ José Francisco

INTRODUÇÃO

A intensa e desordenada urbanização, por si só, embaraça o direito


à cidade. Aliada à essa questão, juntam-se, a problemática dos imóveis
ociosos existentes no espaço urbano, e o acelerado processo de envelhe-
cimento populacional.
Levando-se em conta que o Brasil apresenta a transição demográfica
mais acelerada da America Latina (CAMARANO, 2011), pode-se afirmar
que nesse cenário, o direito à cidade fica ainda mais restrito para idosos
de baixa renda, com vínculos familiares enfraquecidos ou inexistentes.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE,
em 2010 a população idosa atingiu mais de vinte milhões de pessoas,
representando, aproximadamente, 10% da população total. Esse número
tende a aumentar, atingindo no ano de 2050, aproximadamente 50 milhões
de pessoas com 60 anos ou mais.
O aumento da proporção de pessoas idosas na população dá-se de-
vido à redução da mortalidade, que tem experimentado a maior queda,
o aumento da expectativa de vida e a redução da taxa de fecundidade
(CAMARANO, 2011). Corrobora também com o envelhecimento popula-
cional a transição epidemiológica, caracterizada pelas modificações em
longo prazo dos padrões de morbidade, invalidez e morte que caracte-
rizam uma população específica e que, em geral, ocorrem em conjunto

1269
com outras transformações, como as demográficas, as sociais e as
econômicas (OMRAM, 2001). Atrelam-se ainda, outros fatores como as
altas taxas de crescimento da população nas décadas de 1950 e 1960
(SCAZUFCA et al, 2002).
Além do aumento do número de idosos na população, estudos mos-
tram uma tendência crescente de pessoas maiores de 60 anos morarem
sozinhas. De acordo com Debert e Simões (2011) em países como Ale-
manha, Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Japão a coresidência está
em declínio. Para Prado e Perracini (2011), pesquisas recentes revelam a
diminuição do número de idosos morando com filhos nos Estados Unidos
e na Europa. No Brasil essa tendência também aumenta. No estado de São
Paulo, segundo o IBGE, no ano 2000, 19,4% dos idosos viviam sozinhos.
Debert e Simões (2011: 1574) defendem os estudos que mostram que
morar sozinho na velhice provoca a “segregação espacial dos idosos que
possibilita a ampliação de sua rede de relações sociais, o aumento do
número de atividades desenvolvidas e a satisfação na velhice”. Os auto-
res afirmam que é essa a conclusão que chegam os estudos sobre idosos
vivendo em conjuntos residenciais e condomínios fechados com serviços
e outras facilidades, ou ainda, em hotéis ou congregate housings.

Ainda segundo Debert e Simões (2011: 1574)

novas comunidades são criadas, papéis sociais anteriormente


perdido são reencontrados, redes de solidariedade, de trocas de
afeto são desenvolvidas de maneira intensa e gratificante, pro-
movendo uma experiência de envelhecimento positiva, mesmo
para aqueles cujos vínculos com filhos e parentes são tênues.

A tendência de idosos morarem sozinhos reflete os novos tipos de


arranjos familiares formados na contemporaneidade, seguindo os padrões
do mundo globalizado, a produção e o consumo preconizados nos países
capitalistas. No caso de idosos de baixa renda, morar sozinho depende
da articulação de políticas públicas habitacionais. Por esse motivo, no-
vas modalidades como alternativas de morar precisam ser estudadas e

1270
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

implementadas nas cidades brasileiras.


Com a nova sistemática jurídica advinda com a Constituição Federal
de 1988, Estatuto da Cidade (lei 10.257/2001), e ainda, no caso do idoso,
Estatuto do Idoso (lei nº 10.741/2003), é dever do Estado fiscalizar para
que o proprietário do imóvel cumpra a função social da propriedade, e
não deixá-lo ocioso. Neste sentido, utilizamos nesse trabalho a expressão
espaços desconstruídos livres, conforme proposto por Francisco (2002) para
designar os imóveis ociosos, abandonados ou vagos existentes no espaço
urbano, de acordo com a teoria da desconstrução espacial.
A desconstrução espacial faz parte da inexorabilidade do ser huma-
no. Toda vez que se transforma o espaço promove-se a desconstrução.
Percebida em imóveis ociosos, é desconstrução máxima, porque traz
ônus à sociedade. Por outro lado, ocupando-se o espaço desconstruído
livre, para fins de moradia a desconstrução é mínima, pois reaproveita o
espaço transformado.
Nesse sentido, a ocupação de imóveis ociosos, considerados espaços
desconstruídos livres, pode contribuir para mitigar a demanda por mora-
dia digna para o idoso. Exemplo é a política adotada pela Secretaria de
Assistência e Desenvolvimento Social do município de São Paulo, que vem
requalificando hotéis abandonados no centro da cidade para moradia.
Outras modalidades de políticas públicas habitacionais demonstradas
neste estudo, podem ser implementadas em espaços ociosos.
Esse artigo teve como objetivo a analise de algumas modalidades de
moradia para idosos que podem ser implementadas utilizando os imóveis
ociosos (espaços desconstruídos livres) contidos no espaço urbano.
Concluiu-se que, como forma de atender a heterogeneidade do idoso,
diferentes etnias, costumes e aspectos culturais, as tipologias habitacio-
nais devem ser variadas. Portanto o poder público prescinde de avaliação
no momento de optar por determinada política habitacional, de acordo
com o perfil do idoso e as necessidades identificadas em cada localidade.

1271
2 MODALIDADES hABITACIONAIS PARA IDOSOS

2.1 A Portaria 73/01 do Ministério


da Previdência e Assistência Social

Os novos desafios gerados pelo envelhecimento da população brasileira


repercutem no espaço urbano e políticas públicas sociais. As demandas de
saúde, habitação, trabalho, educação, lazer, tendem a crescer e a requerer
soluções adequadas dos governos locais, estaduais e federal.
Com vistas a essas questões, o antigo Ministério da Previdência e As-
sistência Social, hoje denominado Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome, por meio da Secretaria de Políticas de Assistência
Social, em 10 de maio de 2001, promulga um importante docu-
mento, a Portaria 73.
Esse documento, constitui importante suporte para ações, programas
e projetos instituídos na Política Nacional do Idoso, a ser implementado
no âmbito dos estados e municípios, respeitando os indicadores sócio-
-econômicos, o perfil dos idosos e as peculiaridades sócio-culturais de
cada localidade.
A Portaria 73 aponta nove modalidades de projetos que podem ser
implementados nos municípios: Família Natural, Família Acolhedora,
Residência Temporária, Centro Dia, Centro de Convivência, Casa Lar,
República, Atendimento Integral Institucional, Assistência Domiciliar/
Atendimento Domiciliar. Algumas das modalidades contemplam formas
de morar para o idoso, descritas a seguir:
1 - Programa residência temporária: É um serviço em regime
de internação temporária, público ou privado, de atendimento ao idoso
dependente que requeira cuidados biopsicossociais sistematizados, no
período máximo de 60 dias.
2 - Família natural: tem como descrição o atendimento prestado
ao idoso independente pela sua própria família, com vista à manutenção

1272
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da autonomia, permanência no próprio domicílio, preservando o vínculo


familiar e de vizinhança. A família pode ser entendida como um conjun-
to delimitado de relações sociais baseadas em elos de sangue, adoção e
aliança socialmente reconhecidos. Reconhecimentos este que tanto pode
ser costumeiro como legal. Enquanto instituição, a família pode ser enten-
dida como um conjunto de normas e regras historicamente constituídas,
que regem as relações de sangue, adoção e aliança, definindo a filiação,
os limites do parentesco e outros fatos presentes.
3 - Família acolhedora: é um Programa que oferece condições para
que o idoso sem família ou impossibilitado de conviver com a mesma re-
ceba abrigo, atenção e cuidados de uma família cadastrada e capacitada
para oferecer este atendimento. As famílias deverão ser cadastradas e
capacitadas para oferecer abrigo às pessoas idosas em situação de aban-
dono, sem família ou impossibilitada de conviver com as mesmas. Esse
atendimento será continuamente supervisionado pelos órgãos gestores.
4 - República: é alternativa de residência para os idosos independen-
tes, organizada em grupos, conforme o número de usuários e co-financiada
com recursos da aposentadoria, benefício de prestação continuada, renda
mensal vitalícia dentre outras.
Em alguns casos a república pode ser viabilizada em sistema de auto-
-gestão, com o objetivo de proporcionar ao idoso integração social e
participação efetiva na comunidade.
Os trabalhos de Fortes (2010) e Oliveira (2009) analisam essa política
pública municipal na cidade de Santos-SP, e apontam que atualmente
são quatro casas-república: Bem-Viver, Fraternidade, Vitória e Renascer.
Segundo Fortes (2010), as Repúblicas Vitória e Renascer funcionam no
mesmo prédio, cada uma tem cinco quartos, com dois moradores cada,
dois banheiros, sala, copa, cozinha. A moradia tem um custo barato para
os moradores, em torno de cem reais, incluindo aluguel, que custa em
torno de setenta reais, mais água e luz.
A República para Idosos também é colocada no âmbito da gestão esta-
dual pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano – CDHU,

1273
órgão da Secretaria de Habitação do Estado de São Paulo. Em divulgação
do panorama habitacional de interesse social, nos anos 2007/2008, na
modalidade intitulada “Programas Habitacionais para Demandas Espe-
ciais”, a CDHU coloca a moradia para idosos dividida em três tipos de
políticas habitacionais: Vila Dignidade, República da Melhor Idade e Cota
para Idosos em todos os Conjuntos.
5 - Casa Lar: é uma alternativa de residência, cujo atendimento pro-
porciona uma melhor convivência do idoso com a comunidade, contribuin-
do para sua maior participação, interação e autonomia. É uma moradia
participativa destinada a idosos que estão sós ou afastados do convívio
familiar e com renda insuficiente para sua sobrevivência.
6- Atendimento Integral Institucional: é o atendimento prestado
em uma instituição asilar, prioritariamente aos idosos sem famílias, em
situação de vulnerabilidade, oferecendo-lhes serviços nas áreas social,
psicológica, médica, de fisioterapia, de terapia ocupacional, de enferma-
gem, de odontologia e outras atividades específicas.
São estabelecimentos com denominações diversas, correspondentes
aos locais físicos equipados para atender pessoas com 60 anos e mais,
sob regime de internato, mediante pagamento ou não, durante um perío-
do indeterminado e que dispõe de um quadro de recursos humanos para
atender às necessidades de cuidados com assistência, saúde, alimentação
higiene, repouso e lazer dos usuários, além de desenvolver outras ativi-
dades que garantam qualidade de vida. São exemplos de denominações:
abrigo, asilo, lar, casa de repouso, clínica geriátrica ancianato. Estes es-
tabelecimentos poderão ser classificados segundo as três modalidades,
observando a especialização de atendimento, sendo:
- modalidade I: é a instituição destinada a idosos independentes para
atividades da vida diária, mesmo que requeiram o uso de algum equipa-
mento de auto-ajuda, isto é, dispositivos tecnológicos que potencializam
a função humana, por exemplo andador, bengala, cadeira de rodas, adap-
tações para vestimenta, escrita, leitura, alimentação, higiene etc. Com
capacidade máxima recomendada para 40 pessoas, com 70% de quartos

1274
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

para 4 idosos e 30% para 2 idosos.


- modalidade II: é a instituição destinada a idosos dependentes e inde-
pendentes que necessitam de auxilio e de cuidados especializados e que
exijam controle e acompanhamento adequado de profissionais de saúde.
Não serão aceitos idosos com dependência física acentuada e com doen-
ça mental incapacitante. A capacidade máxima recomendada é para 22
pessoas, com 50% de quartos para 4 idosos e 50% para 2 idosos.
- modalidade III: é a instituição destinada a idosos dependentes que
requeiram assistência total, no mínimo, em uma atividade da vida diária.
Necessita de uma equipe interdisciplinar de saúde. Sendo recomendada
a capacidade máxima de 20 pessoas, com 70% de quartos para 2 idosos
e 30% para 4 idosos.

2.2 Cota Para Idoso em Conjuntos habitacionais


Construídos Ou Subsidiados Com Recursos Públicos

A Cota para idosos em todos os conjuntos para pessoas com 60 anos


e mais, com renda entre um e cinco salários mínimos, têm prioridade no
atendimento pela Secretaria da Habitação/Companhia do Desenvolvimen-
to Habitacional e Urbano-CDHU, que reserva 5% das moradias construídas
para idosos, desde 1999.
Caso o morador seja viúvo, pode morar com até quatro familiares na
casa; se for casado, pode residir com mais três familiares na mesma casa
para contar com apoio e assistência dos familiares.
Esse tipo de moradia não pode ser comercializada. O idoso paga uma
taxa pela ocupação que varia entre 15% e 20% de acordo com a sua faixa
de renda, que tem um desconto de 20% sobre o valor calculado.
As bases legais dessa política estão explícitas no artigo 37 do Estatuto
do Idoso, afirmando que o idoso tem direito a moradia digna, no seio da
família natural ou substituta, ou desacompanhado de seus familiares,
quando assim o desejar, ou, ainda, em instituição pública ou privada.
Mais aprofundado, o artigo 38 do Estatuto do Idoso diz que, nos pro-

1275
gramas habitacionais, públicos ou subsidiados com recursos públicos, o
idoso goza de prioridade na aquisição de imóvel para moradia própria,
observado o seguinte: reserva de pelo menos três por cento (3%) das
unidades habitacionais residenciais para atendimento aos idosos.
Embora a lei determine esse direito, nas nossas cidades é preciso
averiguar se a gestão pública, por meio de seus órgãos competentes,
está exercendo a fiscalização, imprescindível para minimizar a demanda
habitacional da população idosa.

2.3 Dos Albergues Aos hotéis Sociais: Nova


Política habitacional Da Secretaria De Assistência e
Desenvolvimento Social Do Município De São Paulo

Os albergues são centros de acolhidas provisórias presentes em todas


as cidades brasileiras. Dentre os usuários desses espaços de pernoite,
constata-se a presença de um grande número de idosos. Na cidade de
São Paulo encontram-se mais de oito mil vagas permanentes de acolhida,
distribuídas por, aproximadamente, sessenta albergues, conforme infor-
mações da secretaria municipal de assistência social. Dessas vagas, em
torno de setecentas são ocupadas por idosos.
Ocorre que, por não possuir vínculos familiares e não ter para onde ir,
muitos idosos, por estarem em situação de vulnerabilidade, permanecem
nos albergues. Assim, o espaço inicialmente transitório passa a ser a mo-
radia da pessoa. Para melhorar essa situação, uma política habitacional
que está sendo implantada pelo município de São Paulo, com iniciativa da
Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social; são os hotéis sociais.
Esses locais funcionam em antigos hotéis desativados, comprados,
ou alugados pela prefeitura, requalificados, que transferem os idosos
moradores de albergues para a nova casa, contribuindo para sua rein-
serção ao convívio social por meio da construção de novos vínculos com
outros moradores.
Os hotéis sociais constituem equipamentos voltados à assistência

1276
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de pessoas com 60 anos ou mais, sendo que o primeiro equipamento,


chamado Morada Nova Luz, tem dois anos de existência e consiste na
moradia de cem idosos.
Outro, denominado “Morada São João”, inaugurado em 2010, em imó-
vel onde funcionava o antigo hotel Atlântico, abriga duzentos idosos, em
sessenta suítes espalhadas pelos cinco andares do prédio, uma construção
dos anos de 1930, tombado pelo Conselho Municipal de Preservação do
Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental.
Seguindo a mesma tipologia, onde funcionava o antigo hotel Alperge,
nas décadas de 1950 a 1970, atualmente está o Centro de Acolhida Especial
para Idosos do Jardim Umuarama, inaugurado em 2010, com capacidade
para atender, aproximadamente, sessenta idosos, cuja gestão é realizada
em parceria com a ONG Espaço Aberto.
Essa nova tipologia para morar, conta com o respaldo de profissionais
da Secretaria de Assistência Social e funcionários que trabalham nos de-
terminados locais. Os idosos têm disponíveis salas de estar com televisão,
banheiros adaptados, refeitório e lavanderia.

2.4 Moradia Assistida

A moradia assistida não é exatamente uma modalidade de moradia


para o idoso, mas ela pode estar presente no contexto do modelo adotado,
por conta de programas, projetos e ações de acompanhamento de idosos
independentes por profissionais na respectiva moradia.
Esse conceito é muito antigo, sendo utilizado, inicialmente, com o
movimento da Reforma Psiquiátrica, numa tentativa de humanizar os trata-
mentos dados às pessoas com doenças mentais, rechaçadas da sociedade.
Durante muito tempo essas pessoas eram segregadas, colocadas de
forma indiscriminada em hospitais psiquiátricos. Tratamentos eram reali-
zados de forma até mesmo violenta, com instrumentos que podemos con-
siderar de tortura. As condições dos hospitais psiquiátricos foram alvos de
diversas manifestações, com denúncias de tratamentos altamente hostis.

1277
Com o movimento a favor da Reforma Psiquiátrica (e Reforma Sanitá-
ria), surgiu também o conceito de Moradia Assistida, uma das formas de
tratamento daqueles internos.
Embora o modelo de Moradia Assistida possa variar em suas regras,
basicamente consiste num sistema onde o usuário usufrui de uma resi-
dência (localizada na zona urbana) e deve tomar conta de si, praticando
os atos necessários para a sua subsistência, manutenção da residência e
para a sua reinserção social, quando necessário, havendo acompanha-
mento multidisciplinar, pautado, entretanto, pela liberdade do assistido.
Há um acompanhamento, normalmente uma forma de gestão, para
saber se o morador respeita as regras do local. Trata-se de um auxílio
aos necessitados, dotando-os de estrutura suficiente para exercerem suas
atividades cotidianas.
A ideia é que há nas moradias um número pequeno de habitantes,
atividades culturais, profissionalizantes, sociais etc., tudo visando ao
bem-estar e à reinserção social, dando um tratamento mais humanizado
aos necessitados, os quais devem desenvolver senso de auto-cuidado e
responsabilidade.
Pode haver algumas variáveis, como no caso de moradia para depen-
dentes químicos, para alcoolistas, moradores de rua, cada qual com suas
peculiaridades.
Dependendo do modelo, a residência pode ser mantida pelos familiares
dos usuários ou até mesmo pelo poder público, como é o caso dos antigos
hospitais psiquiátricos.
Dessa forma, não se trata de cuidar de excluídos (tal qual acontecia
nos manicômios), e sim de diferentes, por assim dizer, gerando, pelo seu
modelo, uma maior possibilidade de recuperação e inserção social, já que
são tratados em residências, com diversas atividades e maior senso de
responsabilidade, tudo conforme o instituto proposto.
Nesse sentido, para a CDHU, responsável pela implantação das Vilas
Dignidade no Estado de São Paulo a “moradia assistida pelos serviços de
saúde e proteção social, acessibilidade, conforto e segurança”, tem por

1278
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

objetivo “garantir que o idoso seja capaz de manter sua independência


em moradia apropriada às condições do seu ciclo de vida”.

2.5 Nova política habitacional para


o idoso desenhada pela CDhU

Em visita à CDHU no mês de maio de 2012, tivemos a oportunidade de


conhecer o novo desenho de política habitacional para o idoso que está
sendo estudada para ser implementada nos próximos anos. A política tem
como meta priorizar a independência do idoso:

A política habitacional deve focar a promoção de moradia inde-


pendente, de forma a garantir que o idoso seja capaz de garantir
sua independência pelo maior tempo possível, numa moradia
apropriada ao seu ciclo de vida (CDHU, 2012)4.

Essa assertiva leva em conta a seguinte formulação: quanto maior a


autonomia, a renda e a assistência familiar, menor a necessidade de o
Estado intervir. Quanto menor a autonomia, a renda e a assistência fa-
miliar, maior a necessidade da intervenção estatal na criação e execução
de políticas habitacionais.
Conforme consta no manual da CDHU, a promoção de moradia inde-
pendente pode dar-se em várias modalidades que requerem diferentes
concepções de desenho arquitetônico e urbanístico. São elas:

Cota para idosos nos conjuntos habitacionais: idosos, só ou com


sua família, em unidade adaptada, selecionado por sorteio;
Residenciais horizontais (tipologia Vila Dignidade): idosos sem
vínculos familiares e independentes para as atividades da vida
diária, nas cidades do interior;
Condomínios verticais (município de São Paulo): cidades da Re-
gião Metropolitana, bastante adensadas, com demanda elevada
de idosos em situações de extrema vulnerabilidade (sós, em
situação de rua, vivendo em cortiços).
República: pequenos grupos de idosos que compartilham uma
residência e a administram por autogestão. Regiões metropoli-
tanas onde é possível, inclusive, adaptar imóveis existentes no
mercado (quatro ou cinco dormitórios compartilhados, banheiros
e demais dependência de uso comum). Para idosos sós, requer-se
um acompanhamento social intenso e diferenciado. Essa política

1279
é aplicada no município de Santos e é definida como um dos
eixos da política nacional de assistência social;
Reforma de moradias isoladas: bastante solicitada por prefeituras
para dar condições a idosos de permanecerem na sua residência
com mais segurança e conforto, evitando sua institucionalização.
Ação que possibilita melhorar o estoque habitacional existente,
concebido, em geral, sem as condições de acessibilidade para a
velhice e a deficiência.

Todas essas são modalidades que, de alguma forma, já existiam, mas


nesse momento, são retomadas em função do reconhecimento da hete-
rogeneidade da demanda de idosos de baixa renda, e das características
peculiares de cada município. Há necessidade de serem realizadas de
acordo com os parâmetros do desenho universal, bem como, contendo
itens de conforto e segurança (piso antiderrapante, barras no banheiro,
altura adequada de interruptores e tomadas, acessibilidade, etc).

2.6 Condomínios Exclusivos para idosos

O termo condomínio segundo o dicionário Aurélio, significa, “domínio


exercido juntamente com outrem; co-propriedade”. Monteiro (2012) utiliza
a denominação “condomínios exclusivos para idosos” para identificar as
casas ou apartamentos circunscritos em área delimitada por muros, cercas,
ou alambrados, construídos por meio de política pública habitacional para
idosos de baixa renda, independentes para realizar as atividades da vida
diária, e que sejam sozinhos, ou seja sem família ou com laços familiares
enfraquecidos.
Para designar essa tipologia habitacional, pode-se também, utilizar
os termos, núcleo habitacional, conjunto habitacional, ou ainda, a ter-
minologia adotada pela CDHU, equipamentos públicos, de acordo com o
Decreto 56.448, de novembro de 2010. Esse Decreto estadual possibilitou
que os condomínios fossem tratados como equipamentos públicos para
conseguir a aquisição de materiais e móveis, além da construção de o
próprio condomínio ser realizada em áreas institucionais.
Os condomínios exclusivos para idosos consistem uma nova forma

1280
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de morar para a população maior de 60 anos de idade. A Companhia de


Desenvolvimento Habitacional e Urbano – CDHU do estado de São Paulo
fez um mapeamento para verificar quantos existem no estado, antes de
implementar o Programa Vila Dignidade. Segundo informações coletadas
na própria CDHU, identificou-se que apenas algumas cidades possuem
essa modalidade habitacional: São Paulo, Santos, São João da Boa Vista,
Tupã, Tarumã e Araras.

2.7 Vila Dignidade: nova política


habitacional do estado de São Paulo

Atento à nova sistemática legal no que diz respeito à moradia para


idoso, o Programa Vila Dignidade foi instituído pelo Estado de São Paulo
pelo Decreto nº 54.285, de 29 de abril de 2009, para oferecer atendimento
às pessoas na faixa etária acima dos sessenta anos de idade, com baixa
renda. Este programa tem por objetivo a construção de pequenas vilas,
ou núcleos habitacionais, termo a que se refere o Decreto, com até 24
moradias e uma área de convivência social.
Em 29 de dezembro de 2010, o decreto em questão foi alterado pelo
Decreto 56.448, que trouxe um novo objetivo e conceito ao Programa
Dignidade, declarando que ele possui o objetivo de promover equipa-
mento público (nova expressão legal que permitiu a utilização de áreas
institucionais e a aquisição de mobiliários básicos) de moradia assistida
e subsidiada, adequado às necessidades das pessoas idosas.
O Programa visa a atender às diretrizes do Plano Estadual de São Paulo
para a Pessoa Idosa, denominado Futuridade, coordenado pela Secretaria
Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social, com objetivo de asse-
gurar melhor qualidade de vida.
O plano Futuridade, dentre outros objetivos, tem a intenção de contri-
buir para a prevenção do asilamento, promovendo sua independência e
sua autonomia, concebendo a moradia como um componente da atenção
integral à pessoa idosa.

1281
Os requisitos para idosos entrarem no Programa Vila Dignidade são:
possuir 60 anos ou mais, independentes para a realização de atividades
de vida diária; ter renda mensal de até 01 salário mínimo (alteração dada
pelo decreto 56.448 – a redação original dizia 02 salários mínimos); ser
preferencialmente sós ou sem vínculos familiares sólidos (o Decreto de
2010 traz a expressão “vínculos familiares extremamente fragilizados, em
decorrência de abandono, situação de vulnerabilidade e risco pessoal e
social); ser residente no município há pelo menos dois anos.
O programa é implementado nas cidades que aderirem e compromete-
rem-se com as regras estabelecidas pelo governo do estado. Os recursos
do tesouro são repassados pela secretaria estadual da habitação à CDHU,
que executa a construção em terreno próprio ou da Prefeitura.
A Secretaria de Habitação também realiza o acompanhamento técnico
e financeiro dos recursos repassados, articulando-se com outros órgãos
públicos e entidades da sociedade civil na busca de ações integradas para
a segurança da aplicação e execução do programa.
A CDHU, após elaborar os projetos, sempre observando as especifi-
cações técnicas, contrata e executa as obras, doando para a prefeitura o
terreno (caso seja seu), as edificações, bem como o mobiliário das casas
e da área comum.
As prefeituras identificam e selecionam os idosos que serão os futuros
moradores, de acordo com as diretrizes estabelecidas pela CDHU, esco-
lhendo dentre eles os que precisam de moradia, os que se adéquem mais
ao perfil estabelecido, considerando ainda o critério de necessidade dentre
a demanda do município.
Além disso, cuidam da aprovação da legislação pertinente e dos pro-
jetos, nos respectivos órgãos, elaborando, inclusive, um projeto social
obrigatório, conforme modelo e diretrizes estabelecidos pela Secretaria
Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social.
O projeto social, após elaborado, deve ser aprovado pela própria se-
cretaria, que também presta à prefeitura uma acessoria técnica na sua
execução, monitorando e avaliando o processo de gestão sócio-municipal,
inclusive, pós-ocupação das moradias.

1282
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

As prefeituras realizam a gestão social dos núcleos “Vila Dignidade”,


podendo também envolver o conselho municipal do idoso, sempre bus-
cando a articulação com outros órgãos e entidades sociais visando ao
fortalecimento e ampliação do atendimento e proteção aos idosos.
Conforme dados colhidos em 22 de fevereiro de 2012 na CDHU, exis-
tem 05 municípios com empreendimentos entregues do programa Vila
Dignidade: Avaré, Itapeva, Caraguatatuba, Presidente Prudente, e Ribei-
rão Preto, totalizando o número de 102 unidades habitacionais. Desses,
apenas Avaré e Itapeva estão devidamente ocupados e em processo de
consolidação dos programas multiprofissionais que identificam o perfil
da moradia assistida.
O Estado de São Paulo ainda conta com 03 condomínios em obra; Ara-
raquara, São José do Rio Preto e Mogi Mirim, vindo a acrescentar mais 58
unidades habitacionais. Porém, esses três projetos estão, atualmente, com
problemas no andamento das obras e encontram-se paralisados. Ainda,
há 08 empreendimentos com contratos assinados e projetos concluídos
aguardando a licitação; Botucatu, Itapetininga, Ituverava, Jundiai, Laranjal
Paulista, Limeira, Sorocaba e Tupã, que acrescentarão mais 150 unida-
des habitacionais. Ainda existem mais 02 empreendimentos aguardando
análise documental, Jaú e Mogi das Cruzes.

3. OCUPANDO ESPAÇOS DESCONSTRUÍDOS


LIVRES PARA IMPLEMENTAR MODALIDADES
hABITACIONAIS PARA IDOSO DE BAIXA RENDA

As modalidades habitacionais podem/devem ser implantadas pela


gestão pública a fim de atender a população idosa carente que necessita
de moradia digna, direito constitucionalmente garantido. A efetivação
dessas políticas depende de fatores preponderantes, como vontade
política, orçamento público, preocupação real com o processo do enve-
lhecimento populacional brasileiro, dentre outras questões relacionadas
à burocracia administrativa.

1283
As modalidades podem ser implementadas em construções novas ou
adaptadas em imóveis ociosos. De fato, há de se considerar o enorme po-
tencial humano em fazer, desfazer e refazer construções. Mas deve-se ter
a preocupação com a constante remexida dos espaços existentes, sejam
naturais, sejam já transformados, pois a ausência de ação criteriosa do
homem desconstrói o existente. As modificações normalmente implicam
transtornos socioespaciais.
Assim do velho cria-se o novo. Segue-se a lógica dominante dos países
capitalistas, cuja máxima é atender aos interesses do mercado; segundo
Topalov (1979), quanto mais metros quadrados construídos, mais lucros.
As políticas habitacionais não devem se prestar a esse papel.
A prática do abandono de imóvel nas cidades impõe pesado ônus ao
meio ambiente e à população, especialmente a mais carente, provocando,
além de outros problemas sociais, a formação de vazios urbanos e de um
enorme estoque de prédios ociosos. Esses imóveis também são chamados
de espaços desconstruídos livres (FRANCISCO, 2002), como sinônimo de
vagos, ociosos, abandonados, desocupados.
Os espaços desconstruídos livres, segundo a teoria da desconstrução,
podem ser reutilizados, ou requalificados. Maricato (2001) ensina que as
intervenções no imóvel ocioso podem significar renovação ou reabilitação
(ou requalificação). Segundo a autora, à renovação pode-se atribuir uma
ação “cirúrgica” destinada a substituir edificações envelhecidas, desvalo-
rizadas, que apresentam problemas de manutenção, por edifícios novos,
maiores [...] (MARICATO 2001: 125). Nesse caso há uma mudança no uso
e ocupação do solo e quem ganha é o grande capital imobiliário.
Já na reabilitação ou requalificação, os maiores interessados são a
população residente, e prevalece o esforço comum, traduzido na parti-
cipação social e na solidariedade, atribuindo-se uma ação que preserva,
o mais possível, o ambiente construído existente (MARICATO, 2001).
Requalificando-se um imóvel, resgata-se a totalidade-essência da cons-
trução, praticando-se a desconstrução engajada, aquela que remexe os
espaços minimamente, permitindo que eles continuem vivos e cheios de
história (FRANCISCO, 2002).

1284
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A lógica empregada deve ser a de preservação do máximo possível


do espaço físico e social já transformado, obtendo-se um novo espaço
organizado com acuidade, garantindo a sua continuidade sem rupturas
absolutas (FRANCISCO, 2002).
Quando se pratica a desconstrução mínima, se emprega o princípio da
função social da propriedade, que se contrapõem aos espaços desconstruí-
dos livres, que devem ser ocupados para mitigar, por exemplo, a demanda
habitacional para idosos existente no espaço urbano.
Pode-se afirmar que a principal relação entre desconstrução mínima,
função social e moradia é a seguinte: a moradia digna é um direito, enquan-
to os prédios ociosos constituem uma afronta. Por isso, sobre os imóveis
ociosos devem recair procedimentos administrativos ou judiciais que os
vinculem à efetiva aplicação do princípio da função social da propriedade.
Para execução dessa prática, a gestão pública e o judiciário dispõem de
aparato e instrumentos modernos que visam a coibir o abandono. O prédio,
reutilizado para habitação de idoso de baixa renda, dispensa a construção
de novas moradias de modo que a ação antrópica cuide apenas de refazer
no imóvel, já construído, os reparos necessários. Ocorrendo minimamente,
a transformação é consciente e preserva o máximo do espaço.
Um bom exemplo, são os hotéis sociais implementados na cidade de
São Paulo. Promovem a ocupação de imóveis ociosos no centro antigo
de São Paulo, onde existem muitos prédios abandonados, caracterizados
como espaços desconstruídos livres, que, quando reutilizados, devolvem
a vida a lugares cheios de história.
Para a realização dessa prática o arcabouço legal é eficiente. Basta
apenas que a gestão pública conjugue esforços para atender a Consti-
tuição Federal, o Estatuto da Cidade, Estatuto do Idoso, dentre outras
leis relacionadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todo cenário de especulação imobiliária, retenção da propriedade


nas mãos de poucos, má distribuição de renda, clientelismo, delineados
ao longo da história no Brasil, repercutem diretamente em questões que

1285
dificultam alcançar o direito à cidade. Os imóveis ociosos que permeiam
o espaço urbano e a deficiência nas políticas públicas habitacionais são
reflexos disso.
Às camadas mais carentes, ou aos grupos específicos da população,
como os idosos, especialmente os de baixa renda, sem família, e sem
moradia, essa problemática reflete na qualidade de vida e bem estar
do cidadão.
Com o envelhecimento populacional acelerado, esse cenário delinea-
do no espaço urbano não será mais suportado, uma vez que aumentará
de forma exponencial a demanda por moradia para pessoas com mais
de sessenta anos. No mesmo sentido, os espaços desconstruídos livres,
caracterizados pelos imóveis ociosos, abandonados necessitam ser requa-
lificados e ocupados, atendendo à função social da propriedade.
Necessário implementar modalidades de moradia digna que contem-
plem não só a casa, mas que reforcem a qualidade de vida e o sentido
de pertencimento do idoso ao local que habita. São formas de inclusão
socioespacial e alcance do direito à cidade. Para tanto, imprescindíveis
mudanças de atitude da sociedade, do Estado e da própria família que
deverão organizar-se para minimizar a demanda com alternativas inte-
ligentes e acolhedoras.
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a legislação
brasileira tem feito sua parte. Nesse sentido, modalidades habitacionais
e tipologias de serviços de atendimento ao idoso estão delineadas em
diversas leis. Por exemplo, a Portaria 73 do Ministério da Previdência e
Assistência Social (2001) apresenta projetos de moradia e serviços, o ar-
tigo 38 do Estatuto do Idoso estipula as cotas para idosos nos conjuntos
habitacionais públicos, já praticadas no estado de São Paulo desde 1999
pela CDHU, bem como a Vila Dignidade, programa do governo de São
Paulo criado em 2009. Essas, dentre outras soluções de moradia digna,
estão postas na legislação, esperando saírem do papel e serem executadas
nas cidades; os instrumentos já estão devidamente regulamentados no
Estatuto da Cidade.

1286
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

As modalidades habitacionais apresentam potencialidades e fragili-


dades, por isso, devem ser avaliadas no momento de optar-se por uma
ou outra tipologia, de acordo com o perfil do idoso e as necessidades
identificadas em cada localidade. Essa observação legitima o sentido da
própria cidade: diversidade com equidade.

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NOTAS

1 Mestre e Doutora em Engenharia Urbana pela UFSCar. Professora Adjunta do Departamento de Gerontologia
– UFSCar. Advogada. cristinaantoniossi4@gmail.com
2 Mestre e Doutora em Serviço Social pela PUC/RS. Professora Adjunta do Departamento de Gerontologia –
UFSCar. Assistente Social. marisazazzetta@yahoo.com
3 Doutor em Geografia-UNESP. Professor Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Urbana-
PPGEU-UFSCar. Arquiteto. jfran@ufscar.br
4 Entrevista realizada com a gerente de pesquisa habitacional da CDHU em maio/2012.

1289
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Meio ambiente, legislação,


patrimônio histórico e cultural:
um estudo sobre danos da Cidade
Velha e entorno – Belém Pará

Sandra Regina Alves Teixeira1

INTRODUÇÃO

Este trabalho trata-se de um estudo sobre os Danos contra o Meio


Ambiente Urbano e Urbanístico - Patrimônio Histórico e Cultural da
Cidade Velha e áreas circunvizinhas, região localizada na cidade de
Belém do Pará. O escopo central da pesquisa é focalizar os possíveis ou
efetivos prejuízos/destruição causados nos prédios históricos (tomba-
dos ou não), assim como as heterogêneas legislações legitimadas em
tutelar os direitos transindividuais e interesses difusos, coletivos e ho-
mogêneos, no qual está inserido o Meio Ambiente Histórico e Cultural.
Destarte, é necessário evidenciar que este artigo não representa
algo definitivo, e sim, uma produção inicial e em construção, como
todo conhecimento científico, proporcionando novas possibilidades
de análises e problematizações para a compreensão das abordagens
teórico-jurídica presentes no hodierno mundo do Direito Ambiental
Urbano e Urbanístico, transformando, portanto, o conhecimento
acadêmico/científico em conhecimento jurídico, tendo por escopo a
intervenção na preservação e valorização do Patrimônio Histórico e
Cultural da sociedade belenense.

1291
CONSIDERAÇÕES SOBRE O
CONCEITO DE DANO AMBIENTAL

O conceito de dano, relacionado à teoria do interesse, no ordenamento


jurídico brasileiro, é definido como: “lesão de interesses juridicamente
protegidos”. No que concerne à concepção de dano no sistema jurídico
infere-se que:

Dano é toda ofensa a bens ou interesses alheios protegidos


pela ordem jurídica. O interesse, nesta concepção, representa
a posição de uma pessoa, grupo ou coletividade em relação ao
bem suscetível de satisfazer-lhe uma necessidade. Bem deve
ser entendido, em sentido amplo, como o meio de satisfação de
uma necessidade. Pelo que se depreende desta definição, dano
abrange qualquer diminuição ou alteração de bem destinado
à satisfação de um interesse. Isso significa como regra, que as
reparações devem ser integrais, sem limitações quanto à sua
indenização, compreendendo os danos para patrimoniais e
extrapatrimoniais.2

Neste sentido, com base no excerto mencionado acima, decompõem-


-se que, dano é um fator indispensável à aspiração de um ressarcimento,
e sem este fator não há como pronunciar um dever de indenizar. Des-
te modo, o dano dever ser analisado como hipótese indispensável da
obrigação de indenizar e, portanto, fator insubstituível para instituir a
responsabilidade civil.
Diante disso, ao examinar a problemática do Dano Ambiental, nota-
-se que a mesma, relaciona-se à noção de abuso de direito, ou seja, um
abuso de conduta que transborda as demarcações determinadas pela
norma positivada, suscitando prejuízos iminentes ao meio ambiente e
fomentando a instabilidade ecológica.
Dessa forma, ao investigar sobre dano ambiental como violação ao
meio ambiente, assevera-se que:

Considera-se dano ambiental qualquer lesão ao meio ambiente


causada por ação de pessoa, seja ela física ou jurídica, de direito
público ou privado. O dano pode resultar na degradação da qua-
lidade ambiental (alteração adversa das características do meio
ambiente), como na poluição, que a lei define como a degradação
da qualidade ambiental resultante da atividade humana3.

1292
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Contudo, destaca-se o dano ambiental autônomo em relação aos danos


privados, sendo tratado como “dano ecológico puro” definindo-o como:

Uma perturbação do patrimônio natural - enquanto conjunto


dos recursos bióticos e abióticos e da sua interação - que afete a
capacidade funcional ecológica e a capacidade de aproveitamento
humano de tais bens tutelados pelo sistema jurídico-ambiental.4

Destarte, no que concerne a acepção de dano ambiental, o preceito


jurídico brasileiro, não determina de forma concludente, o dano ambien-
tal, mas esclarece as suas peculiaridades fundamentais, visto que, a Lei
de Política Nacional do Meio Ambiente - Lei 6.938/81 em seu artigo 3º,
I, prevê que o poluidor, ou seja, o agente que estimula a poluição tem o
dever de indenizar os danos ocasionados ao meio ambiente e a terceiros,
em conformidade com o art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81.
O artigo 3º, II da Lei 6.938/81, discorre sobre a compreensão da catego-
ria degradação ambiental, a qual é “a alteração adversa das características
do meio ambiente”, ou seja, tal explicação é claramente indeterminada,
pois: “Tal definição é evidentemente vaga, exigindo certo esforço de in-
terpretação, a fim de determiná-la. Denota que a degradação ambiental
é a alteração adversa ao equilíbrio ecológico”5.
O conceito de dano ambiental como latu sensu, relativo aos interes-
ses de toda a coletividade, envolvendo “todos os componentes do meio
ambiente, inclusive o patrimônio cultural”. A cerca da temática abordada
observa-se que:

{...} dano ambiental deve ser compreendido como toda lesão


intolerável causada por qualquer ação humana (culposa ou não)
ao meio ambiente, diretamente, como macrobem de interesse da
coletividade, em uma concepção totalizante, e indiretamente, a
terceiros, tendo em vista interesses próprios e individualizáveis
e que refletem no macrobem. 6

Por conseguinte, nota-se que o conceito ou categoria analítica de dano


ambiental e a palavra degradação têm um sentido muito extenso, cingin-
do a ação de danificar, desgastar, deteriorar, desperdiçar, no entanto, a

1293
norma legal pretendeu uma visão mais ampla, deste modo, tutelando das
violações ambientais materiais e imateriais.

O DANO AMBIENTAL NO PATRIMONIAL


CULTURAL à LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO

O dispositivo 14 § 1º da Lei 6.938/81, é rigoroso ao aludir que a res-


ponsabilidade do degradador do meio ambiente é objetiva, pois aquele
que é lesionado, sendo vítima do dano individual, não terá que provar
culpa do ocasionador do prejuízo, ou seja, a lei ajusta somente, sobre os
ilícitos penais e administrativos contra o meio ambiente.
A Lei 9.605/98, intitulada de Crimes Ambientais, na sessão IV, em seus
dispositivos 62 a 65, prevê a inclusão de crimes contra o ordenamento
urbano e o patrimônio cultural, o que possibilita o robustecimento para
a tutela do meio ambiente urbano, por conseguinte, consolidando seus
princípios jurídicos, aplicáveis no “caput” do art. 216 da CF/88, o qual o
mesmo, é possuidor de informações a cerca da identidade, ação e memória
dos heterogêneos grupos que constituem a sociedade brasileira.
O bem jurídico protegido é o meio ambiente, o agente pode ser qual-
quer indivíduo, sendo proprietário ou não, e o sujeito passivo, é o poder
público, encarregado de conservar tal ordenamento urbano, o qual deve
ser acautelado de violações e decomposições em seu equilíbrio ambiental.
Contudo, suscitar uma crítica às condutas criminosas aos bens mate-
riais ou intangíveis assegura-se que:

Destarte, não encontramos na Lei 9.605 a criminalização de con-


dutas atentatórias aos bens imateriais ou intangíveis, malgrado
sua tutela constitucional nos incisos I, II e, até certo ponto, III do
sempre citado artigo 216 da Lei Maior.
Verifica-se também a timidez com que foi tratada a tutela penal
do ordenamento urbano, contemplada com uma única infra-
ção, aquela prescrita no artigo 65 e parágrafo. Seria importante
punir-se criminalmente as condutas de desrespeito às leis de
uso do solo, aos planos diretores, lamentavelmente tão comuns
em nosso país e que se incluem entre as maiores responsáveis
pela caótica situação ambiental das grandes e médias cidades
brasileiras.7

1294
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Portanto, em relação ao novo Código Civil de 2002, tal legislação


exprime a possibilidade de reparação do prejuízo concreto em face do
risco criado, pois adquire “status de norma genérica”, tal como prevê o
dispositivo abaixo:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano
a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá
obrigação de reparar o dano independentemente de culpa, nos
casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco
para os direitos de outrem.8

Neste sentido, no que se refere ao patrimônio cultural, o mesmo faz


parte, e a doutrina o insere na acepção do meio ambiente, devendo ser
analisado de forma proeminente, por conseguinte elucida-se que:

Se assim é, se o patrimônio cultural é elemento integrante do


meio ambiente, importa concluir que o dano a ele infligido se
regula pela teoria da responsabilidade objetiva, onde tão-somente
a lesividade é suficiente a provocar tutela judicial, a teor do que
dispõe os art. 14, § 1º da Lei nº 6.938/81 e 225, § 3º, da Consti-
tuição Federal.9

Desta maneira, observa-se que: “nos danos causados ao patri-


mônio cultural, a responsabilidade será objetiva se a lesão coincidir com
ofensa ao meio ambiente, na sua ampla conceituação legal”10. Todavia
as obras arquitetônicas particulares ou não, pertencentes ao patrimônio
cultural, os quais são formados por bens de natureza material e imate-
rial, são dignos de obter a tutela do direito ambiental, pois evidencia os
elementos singulares da identidade, à ação, à memória dos heterogêneos
grupos de um povo, visto que estão inseridos ao meio ambiente cultural.
Em relação aos instrumentos internacionais normativos de tutela do
patrimônio mundial cultural, tem-se em 1972, a publicação da Convenção
da Conferência das Nações Unidades para a Educação, Ciência e Cultura
(UNESCO), e que posteriormente foi adotada pelo governo brasileiro,
a Convenção para a Proteção Mundial, Cultural, aprovada por meio do
Decreto de nº 80.978/77.

1295
Neste caso, ao fazer referência ao artigo 1º da Convenção da UNESCO,
em relação ao patrimônio cultural, prevê que:

a) os monumentos – obras de arquitetura, de escultura ou de


pintura monumentais; elementos ou estruturas de caráter ar-
queológico: inscrições, grutas e grupos de elementos, que têm
um valor universal excepcional do ponto de vista da História,
Arte ou da Ciência;
b) os conjuntos – grupos de construções isoladas ou reunidas,
que, em razão de sua arquitetura, de sua unidade ou de sua
integração na paisagem, têm um valor universal excepcional do
ponto de vista da História, Arte ou da Ciência;
c) os sítios – obras do ser humano, ou obras conjugadas do
homem e da Natureza, bem como as zonas, incluindo os sítios
arqueológicos, que têm um valor universal excepcional do ponto
de vista estético, etnográfico ou antropológico.11

No tocante, este proeminente documento histórico elencado acima,


apresenta princípios de solidariedade planetária, vinculando resguardar
e transmitir às futuras gerações, um patrimônio cultural que pertence
a todos, pois assevera que natureza e cultura estão interligadas, assim
como a identidade cultural está excessivamente relacionada ao meio
ambiente natural.

CIDADE VELhA E ENTORNO: CONTEXTUALIZANDO


UM POUCO DE SUA hISTóRIA

Em relação à constituição da sociedade paraense amazônica, especifi-


camente no bairro da Cidade Velha e circunvizinhança, a cidade de Belém
foi formada por grupos indígenas que viveram anteriormente ao século
xVII, e em 1616, foi fundada e colonizada por portugueses, os quais foram
os principais responsáveis pelo processo de urbanização colonial, e que
posteriormente possibilitou a transformação e adaptação do espaço e da
formação amazônica, o que irá perfazer um relevante elemento para a
configuração do patrimônio histórico cultural na região amazônica.
O espaço geográfico da Cidade Velha é considerado como o bairro
mais antigo da cidade de Belém, com quase 400 anos persistindo desde

1296
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sua fundação até os dias atuais, foi desvelada e fundada por Francisco
Caldeira Castelo Branco em 12 de janeiro de 1616, e deu origem ao seu
primeiro núcleo urbano.
A Cidade Velha foi o primeiro núcleo urbano de Belém e era denomi-
nada por muitos de “Cidade”, com o processo de construção do Forte do
Presépio, sendo um ponto de estratégia de defesa e limite de ocupação
dos portugueses na Amazônia12.
Com o processo do fortalecimento da colonização e jurisdição portu-
guesa, a cidade Velha, se propala para área não fortificada, de casas de
construções de taipa e cal, posteriormente vai delineando-se em diversos
prédios de arquitetura colonial são adornados de azulejos portugueses.
O século xVII é assinalado por construções de inúmeras igrejas e
catedrais tais como: São João (antiga Catedral de Belém), Carmo, Santo
Antônio, das Mercês, São Francisco xavier, atualmente denominada de
Santo Alexandre, as mencionadas construções estavam vinculadas ao
assentamento das ordens religiosas no referido bairro, configurando como
o espaço geográfico de Belém como maior número de igrejas existentes13.
Na segunda metade do século xIx e início do século xx, Belém vivencia
o boom da borracha, que estava relacionada à expansão e exportação da
economia gomífera para a Europa e Estados Unidos, o qual vai repercutir
em um desenvolvimento urbano da cidade de Belém, e terá como princi-
pais características a modernização, remodelação e embelezamento da
cidade, nos moldes da influência européia mais precisamente francesa.
O período do século xIx, foi marcado por notáveis construções tais
como: Palacete Azul ou Palácio Antonio Lemos, Mercado Bolonha, hoje
denominado de Mercado de Ferro de Belém, loja Paris N’América (onde
atualmente funciona uma loja de tecidos), Museu Paraense Emílio Goeldi,
algumas construções de Praças como Batista Campos, Praça Siqueira Men-
des (atual Praça do Relógio), Praça Dom Pedro II, e Praça Felipe Patroni.14
O relatado bairro é caracterizado pelo Largo da Sé ao Carmo, em di-
reção à Rua Siqueira Mendes, defendida por muitos historiadores como
a primeira Rua de Belém. Outro patrimônio edificado de grande expres-

1297
sividade existente no bairro é a Catedral de Belém de autoria de Joaquim
Manuel da Rocha artista de prestígio na corte portuguesa no século xVIII.
Segundo o arquiteto Flávio Sindrim Nassar em entrevista intitulada:
“Cidade Velha revela seus tesouros” o mesmo contextualiza que:

O bairro abriga também um único exemplar da história da arte


brasileira: a pintura de quadratura da Igreja de São João Batista.
Projetada e provavelmente executada por Landi, o obra ‘enga-
na’ os olhos do observador, que tem a ilusão de estar diante de
objetos reais. O painel com jarros, flores e colunas que ornam o
altar-mor foi redescoberto na década de 90 na restauração feita
pelo IPHAN. Há tesouros que se perderam para sempre e que
só subsistem na memória. É o caso do conjunto arquitetônico
que havia na Rua Padre Champagnat inteiramente demolido na
década de 1960.15

No entanto, o periódico O Liberal de 23 de maio de 1998 veiculou uma


reportagem designada: “Cidade Velha reencontra origem”, na qual con-
textualiza o espaço geográfico da Cidade Velha e entorno, asseverando
que o mesmo também é circunscrito e constituído hodiernamente, por
diversos museus, Praça do Relógio, do comércio, Feira do Açaí, Forte
do Castelo, Feliz Lusitânia, o Centro do poder paraense concentrando
a sede da Prefeitura Municipal de Belém e a Justiça Estadual. Ressalta a
importância do bairro, pois está presente o Palácio Lauro Sodré, antiga
sede do Governo Estadual e hoje Museu do Estado do Pará, exemplos de
resistência e grandiosidade arquitetônica.16
A reportagem mencionada acima, também faz referência aos pré-
dios comerciais antigos, que manifestam fazer parte da história local. A
existência da Fábrica Soberano, a Rua Siqueira Mendes, na qual estão
repletas de azulejos e lampiões acautelados por águias de ferro. Igual-
mente reportam-se aos prédios da drogaria Cardoso, da Tabaqueira e da
Bechara Mattar, todos no Largo da Praça do Relógio e a Feira do Ver-o-
-Peso, considerado como cartão postal de Belém, assim como a Igreja de
Santo Alexandre Arcebispado, no qual funciona o Museu de Arte Sacra
do Pará, integrantes do Projeto Feliz Lusitânia vivenciando um processo
de restauração e revitalização no final da década de 90.

1298
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A extensão da Cidade Velha, também abriga imemoráveis e impo-


nentes obras arquitetônicas, como o antigo Solar do Barão de Guajará,
construído no século xVII, e restaurado por Antônio Landi, no qual hoje
foi instalado o Instituto Histórico e Geográfico do Pará, salienta-se outras
proeminentes obras arquitetônicas realizadas ou restauradas por Antônio
Landi no século xVIII, tais como: Hospital (hoje Casa das Onze Janelas),
Palácio Lauro Sodré.17

PATRIMôNIO hISTóRICO CULTURAL DETERIORADO


VERSUS hISTóRIA DA CIDADE VELhA AMEAÇADA

Concernente ao entorno da Cidade Velha tem-se o bairro do Comércio


com dezenas de prédios, o qual é circunscrito por importantes e históricas
ruas e avenidas tais como: João Alfredo, Portugal, Manoel Barata, 13 de
maio, Travessas Campos Sales e Padre Eutíquio, além do memorável bairro
da Trindade. Sob o título de: “Poluição Visual ataca prédios históricos”, o
periódico O Liberal editou matéria no dia 03 de março de 2010, referente
ao tema da poluição visual do Bairro do comércio, fato que ocasiona a
descaracterização quase total dos imóveis seculares do centro, como pode
ser visualizado na imagem abaixo:

Fonte: www.carlosaugusto.com

1299
Neste sentido, em 13 de janeiro de 1993 a Prefeitura Municipal de
Belém publicou a Lei 7.603/93, no qual preceitua a respeito do Plano
Diretor Urbano de Belém, estabelecendo princípios e diretrizes, visando
promover a função social da cidade prevista na Carta Magna, seu artigo
1º institui a seguinte norma:

O poder público promoverá o desenvolvimento de Belém pela


melhoria da qualidade de vida de seus habitantes e usuários,
resultante do fortalecimento de sua base econômica, da partilha
de bens, serviços e qualidade ambiental oferecidos, obedecendo
às diretrizes gerais abrangentes e específicas estabelecidas nesta
lei, e cumprindo as determinações constantes da Constituição
Federal e Estadual, e da Lei Orgânica do Município de Belém. 18

É imprescindível ressaltar que no dia 18 de maio 1994, foi editada a


legislação de nº 7.709/94, a qual em seu artigo 1º, alínea V, preceitua sobre
a regulamentação do Centro Histórico constituído pelos bairros da Cidade
Velha e entorno, normatizando a sua Preservação e Proteção do Patri-
mônio Histórico, Artístico, Ambiental e Cultural do Município de Belém.
A finalidade da Lei 7.709 de 1994 é a instrução da Prefeitura Municipal
de Belém aos moradores para a concessão do benefício que incentiva a
preservação do Centro Histórico da cidade proporcionando desconto do
IPTU dos imóveis.
No tocante, à acepção de Centro Histórico,19 examina-se que: “implica
a presença de uma cidade de diversidade étnica, portadora de processos
históricos conflituosos, com milhares de anos de existência em permanente
contradição”20. Destarte, ao fazer um estudo sobre o Centro Histórico de
Belém, infere-se que:

O Centro Histórico de Belém, de acordo com a Lei de Desenvol-


vimento Urbano (Lei 7.401/88) que dispõe sobre as diretrizes de
estruturação espacial da Região Metropolitana de Belém (RMB), é
constituído pelos bairros da Cidade Velha e Campina (conhecido
popularmente como bairro do Comércio), os quais materializam
no espaço o processo de ocupação e apropriação dos coloniza-
dores portugueses em Belém. Em 1994, foi criada a Lei 7.709 que
regulamenta o Centro Histórico de Belém e o seu entorno, além de
estabelecer diretrizes que devem nortear e estimular elaborações
de projetos de intervenção naquela área.21

1300
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Neste sentido, compreende-se que em relação ao Centro Histórico


“são valorizados os lugares geográficos, os elementos arquitetônicos
(religiosos e civis) e, por extensão, urbanos (estrutura urbana e bairros),
em detrimento do conteúdo social”.22
Desta forma, o processo de marginalização ocorrido no Bairro da Ci-
dade Velha exprime em razão do novo paradigma de ocupação de Belém,
consubstanciado nos bairros do Umarizal, Batista Campos, Marco, Nazaré,
os quais suscitaram inúmeras consequências no Bairro da Cidade Velha
tais como: baixo valor do solo urbano; da baixa densidade de ocupação;
e da pequena capacidade de tráfego. Consequentemente, ficou compro-
vado a inadvertência, o desprezo, os danos contra o patrimônio histórico
cultural tombado ou não do referido bairro. Entretanto, sobre a relevância
do patrimônio histórico e cultural argumenta-se que:

[a] destruição e ruína inútil é a lei e a natureza. A cultura inter-


vém para anular ou retardar esta lei, em nome de imperativos
mais elevados. Mas então o que será do imenso ‘parque’ de
capelas e igrejas, pouco a pouco privadas do suporte natural
que é a presença dos fiéis. Essenciais à paisagem, elas não de-
vem desaparecer. Uma solução de reuso deve ser encontrada.
Será a hora de lembrar que em toda sociedade o patrimônio se
reconhece no fato de que sua perda constitui um sacrifício e que
sua conservação supõe sacrifícios? É a lei de toda sacralidade.23

Todavia, em relação aos danos ambientais vivenciados no cotidiano do


patrimônio histórico cultural da Cidade Velha, e também sobre o desapa-
recimento quanto a sua importância residencial e comercial, na década de
80 e 90 a imprensa divulgou cotidianamente matérias com especialistas no
assunto. Contudo, de acordo com a historiadora Leila Mourão, professora
da UFPA no que concerne à destruição do patrimônio histórico, a mesma
manifesta que:

A destruição leva ao desaparecimento do patrimônio histórico e,


em alguns momentos, pode levar a perda da identidade histórica.
Se houver uma destruição de tudo o que existe na Cidade Velha,
você corre o risco de que as gerações futuras não encontrem
elementos que comprovem a história. 24

1301
Na mesma edição intitulada de: “O místico, o sagrado a História de
Belém: Cidade Velha, a sombra da origem que não pode se esvair”, a an-
tropóloga Anaíza Vergolino, concedeu entrevista a cerca do conjunto de
prédios históricos existentes no bairro da Cidade Velha, os quais acarretam
para Belém uma necessidade de conservação da identidade quanto ao
patrimônio histórico, cultural edificado.

Como se percebe, nós todos, quer moremos neste ou naquele


lugar de Belém, nos vinculamos, de uma forma ou de outra, à
Cidade Velha. Daí a importância de uma política de preservação
cultural, não apenas como restauração arquitetônica de prédios,
propriamente ditos, mas preservação entendida como resguardo
e valorização do sentimento do povo. 25

Neste sentido, a cerca das deteriorações, o aviltamento e a falta de


políticas públicas, os quais proporcionaram a depreciação expressiva do
Centro Histórico do Comércio, Cidade Velha, e áreas circunvizinhas, por
conseguinte, assevera-se que:

Nos últimos anos, este conjunto histórico cultural que perfaz todo
o bairro, vem sofrendo intensa descaracterização, provocada
não somente pelos moradores do bairro, mas pelos empresários
locais. O bairro da Cidade Velha é hoje quase o porão da cidade, o
lugar de guardar mercadorias. Tem movimento comercial durante
o dia, nos fins de semana fecha a porta e silencia.26

Fonte: www.google.imagens.com.br

1302
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Em entrevista concedida ao Jornal Amazônia em 09 de março de 2008,


Dulce Rocque, presidente da “Associação Cidade Velha, Cidade Viva”,
entidade que atua desde janeiro de 2007, com a missão de incentivar a
participação dos moradores e comerciantes em favor dos interesses do
bairro quanto ao processo de revitalização e valorização do patrimônio
cultural, e responsável pela entidade, elenca algumas formas de danos
contra o patrimônio histórico da Cidade Velha em que o Poder público
poderia agir com prioridade:

A primeira é a violência e a delinquência após a retirada do PM


Box na praça do Carmo; o fechamento das ruas Félix Rocque,
Dom Bosco e travessa Joaquim Távora, as quais davam acesso à
Baía do Guajará; o abandono do antigo Porto do Sal; a pichação
do patrimônio histórico; estacionamento irregular de carros nas
calçadas da praça Felipe Patroni; calçadas em péssimas condi-
ções; poluição sonora; esgotos a céu aberto e prostituição infantil
(...).Na avenida Tamandaré não temos espaço de lazer. Tínhamos
uma quadra de esporte que está em péssimas condições. E o
pessoal vem jogar bola na praça do Carmo. 27

Nesta mesma matéria difundida no Jornal Amazônia, a presidente da


Associação Cidade Velha, Cidade Viva, retrata de forma evidente algumas
características elementares que contribuem para os danos contra o patri-
mônio histórico cultural do bairro da Cidade Velha e entorno, tais como:
enchentes ocorridas em anos anteriores; falta de lixeiras nas calçadas,
o que faz com que os moradores do bairro disponham os sacos com
restos de lixos no chão, e consequentemente, os animais abandonados
reviram tais sacos, alastrando os detritos ao redor dos prédios históricos,
dilapidando-os.

Fonte: www.diárioonline.com.br

1303
Assim sendo, conforme ilustra a imagem acima certifica-se que:

Percebe-se o porquê da Cidade Velha ter passado por um pro-


longado período de descaso por parte do poder público, bem
como, da comunidade local, posto que as relações sociais de
produção que explicam a origem da dinâmica da organização de
seu espaço geográfico não se reproduzem mais. Percebe-se que
a importância do bairro da Cidade Velha enquanto materialidade
das práticas espaciais construídas pelos mais diversos agentes
sociais, que ao longo dos anos produziram o espaço geográfico
que hoje configura o Centro Histórico de Belém ficou por muito
tempo relegada ofuscada pelo descaso e falta de cuidados com
o seu patrimônio. 28.

Dessa maneira, ao conceituar teoricamente sobre a noção de espaço,


o qual deve ser adaptado ao Centro Histórico da Cidade Velha e seu en-
torno, interpreta-se como:

O espaço não é nem uma coisa, nem um sistema de coisas,


senão uma realidade relacional: coisas e relações juntas (...). O
espaço dever ser, considerado como um conjunto indissociável
de que participam de um lado, certo arranjo de objetos geográ-
ficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro a vida que
os preenche e os anima, ou seja, a sociedade em movimento. O
conteúdo (da sociedade) não é independente da forma de (objetos
geográficos), e cada forma encerra uma fração do conteúdo. O
espaço, por conseguinte, é isto: um conjunto de formas contendo
cada qual frações da sociedade em movimento. As formas, pois
tem um papel de realização social. 29

Destarte, ao analisar sobre patrimônio demonstra-se que em relação à


concepção de patrimônio cultural conservam-se adstritas às recordações
e reminiscências de uma classe que indica um patamar na condição das
ações patrimonialistas, no sentido de que os bens culturais são resguarda-
dos no exercício das representações que manifestam relação que assente
as identidades culturais.30

1304
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

INSTRUMENTOS DE TUTELA DO
PATRIMôNIO hISTóRICO E CULTURAL
DA CIDADE VELhA E ENTORNO

Em 28 de fevereiro de 2011 o jornal Amazônia editou uma entrevista


autorizada pelo Sr. Reginaldo Ferreira, o qual ocupa o imóvel que o seu
avô, Nilson Carneiro, alugou da igreja há mais de 30 anos, e mesmo re-
tratou sobre as circunstâncias do conjunto de Casas da Ladeira do Forte
do Presépio, afirmando que:

Por muitos anos a nossa família pagou pra igreja o aluguel. Mas
faz tempo que não pagamos. O salão alto e mal cuidado con-
serva o forro de madeira original e os azulejos no piso e serve
como depósito de sal. A fachada, muito desgastada, apresenta
marcas de infiltração. Os vidros das janelas estão quebrados e
as luminárias de vidro, suspensas em gancho foram roubadas.31

Destarte, os órgãos públicos têm a responsabilidade pela proteção


dos bens, realizada através da catalogação de inventários dos bens que
reputam ser necessário e de grande valor para serem resguardados nas
delimitações do entorno e áreas tombadas em um espaço urbano, neste
caso o Centro Histórico da Cidade Velha e Campina, os quais não poderão
ser aceitas desfigurações que transformem suas particularidades arquite-
tônicas. As delimitações podem ser demarcadas pelas três competências
(União, Estado e Município), com a exatidão de cumprir as distinções do
estilo das construções, os quais sejam conciliáveis e vinculados em deter-
minados contextos históricos. Neste sentido, assevera-se que:

Em relação ao inventário, questiona-se a ação do Estado, pois é


necessário comunicar aos proprietários dos imóveis, que legal-
mente as consequências advirão do fato de um bem ser incluído
no inventário. No caso dos imóveis, a complicação, se amplia,
porque o fato do proprietário desconhecer o procedimento pode
gerar problemas ao tentar obter licenças e descobre que o bem
está inventariado.Por outro lado, a realização do inventário é feita
de forma criteriosa, estabelece uma referência de identidade e
especificação do bem, cujo efeito jurídico é no mínimo prova de
necessidade de sua preservação.32

1305
No dia 02 de março de 2008, foi publicada no periódico, “Amazônia”
a matéria denominada: “Memória da Cidade que o tempo apaga”, a qual
discorre sobre a Lei 7.709 de 1994, que regula sobre o Centro Histórico de
Belém, orientando o morador a conservar o seu imóvel, para a concessão
do benefício com desconto do IPTU, através do Programa Monumenta o
qual esclarecia:

O Monumenta é uma outra maneira de resgatar a história do


bairro. O programa do Governo Federal financia obras de restau-
ração em imóveis que preservem suas características originais
ou que seus proprietários tenham o interesse em reconstruir
nos moldes originais partes de seus prédios. Apenas um na Rua
João Alfredo tem o apoio do programa, que financiou na gestão
anterior a construção de boxes padronizados para camelôs, a
reconstrução dos trilhos e a restauração dos paralelepípedos, nos
moldes da antiga João Alfredo um projeto esquecido, chamado
Via dos Mercadores.33

Todavia, em 07 de dezembro de 2008, o jornal precitado veicula ma-


téria sobre a burocracia do Programa Monumenta, no qual em entrevista
concedida pelo fotógrafo e professor Mariano Klautau Filho, proprietário
de um casarão no bairro da Campina, faz crítica ao programa do Governo
Federal afirmando que:

Eu desisti do Monumenta por causa da burocracia. Para você


conseguir os recursos tem que passar por um processo muito
lento e, às vezes, caro que poderia ser mais simples. A cada seis
meses, pelo menos três casarões antigos desaparecem daqui sem
que a prefeitura faça nada.34

Assim sendo, as reportagens mencionadas acima imputam à Lei Fe-


deral de nº 4.320/64 que estabelece regras a fundos especiais, entre eles
o Fundo Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural, o
qual é um documento legal produzido pelo Programa Monumenta.
O Programa Monumenta/Instituto do Patrimônio Histórico Artístico
Nacional- IPHAN dispõe de financiamento do BID e apoio técnico da
UNESCO, é vinculado a um programa estratégico do Ministério da Cultura,
o qual combina a conservação de conjuntos urbanos das cidades históri-

1306
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

cas brasileiras sob o amparo do Governo Federal com desenvolvimento


econômico e social.
Na cidade de Belém Pará, o Programa Monumenta (que existe desde
2000), teve inauguração no ano de 2004, e foi acrescido ao Projeto Boule-
vard, que incorporava um Plano Setorial de Revitalização do Centro Histó-
rico de Belém implementado pela Prefeitura Municipal de Belém, e tinha
como propósito determinar a regulamentação da área central da cidade.35
O reportado projeto significou uma estratégia para que a metrópole be-
lenense aspirasse apresentação ao Programa Monumenta. Um documento
institucional (FUMBEL), analisa que o projeto da Prefeitura Municipal de
Belém compreendia o subsequente fragmento:

A partir da poligonal que se inicia na orla, junto atravessa Dom


Bosco, pela qual se desloca até a rua Dr. Assis. Desta, segue até a
Praça Frei Caetano Brandão, passa pela Rua Padre Champagnat,
seguindo pela Rua Tomázia Perdigão, até chegar à rua São João
Batista, de onde retorna para a Rua João Diogo. Segue a Avenida
Inácio Guilhon até a Rua Conselheiro João Alfredo. Desta segue
até a Rua Santo Antônio, no ponto em que esta última encontra
a Avenida Presidente Vargas, pela qual segue em direção ao rio
até finalizar no cais.36

Desse modo, a escolha do espaço geográfico37 aconteceu em virtude


de existirem muitos prédios e monumentos pertencentes ao patrimônio
histórico e cultural que foram tombados pelo IPHAN – Instituto do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional.
No que diz respeito, ao conceito de Tombamento encontra-se a se-
guinte definição:

Tombamento é a declaração pelo Poder Público do valor históri-


co, artístico IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Manual Informativo. Ministério da Cultura. Brasília –
DF, paisagístico, turístico, cultural e científico de coisas ou locais
que, por essa razão, devam ser preservados, de acordo com a
inscrição em livro próprio38.

Sobre a acepção de Tombamento “de maneira singela, é o ato adminis-


trativo por meio do qual a Administração Pública manifesta sua vontade
de preservar determinado bem”.39

1307
Neste sentido, revelam-se proeminentes construções arquitetônicas,
verdadeiros patrimônios histórico cultural edificados tais como: o “Casarão
do Ferro de Engomar”, pois após ser espoliado violentamente no dia 28
de janeiro de 2012 e com parte de sua estrutura danificada permanente-
mente, o jornal Diário do Pará publicou no dia 12 de fevereiro de 2012,
uma matéria denominada de: “Memória Ameaçada”, a qual retratou a
condição do prédio histórico “Casarão do Ferro de Engomar”, ou seja, a
ausência de precaução e de políticas efetivas de preservação do mesmo40.
O prédio histórico Palacete Vitor Maria da Silva, que por estar localizado
na Praça de Ferro de Engomar, na Travessa Veiga Cabral com Presidente
Pernambuco, ficou conhecido como “Casarão do Ferro de Engomar ”, é
uma construção do final do século xIx, tendo em sua arquitetura painéis
de azulejos estilo art noveau, criados pela empresa francesa A. Arnoux e
Bouanger & Cie, os quais, parte dos azulejos e das grades foram aniqui-
ladas e extraviadas.

Fonte: www.defender.org.br

Segundo informação publicada em 12 de fevereiro de 2012, sob o título


de: “Memória Ameaçada”, o jornal o Diário do Pará, afirma que no dia
10 de fevereiro, o juiz da 2ª Vara da Fazenda da Capital, Marco Antonio
Castelo Branco, concedeu liminar em Ação Civil Pública movida pelo
Ministério Público do Estado do Pará, a qual obrigou o proprietário do
imóvel adquirido em 2005, a arcar com os danos do patrimônio, ou seja,

1308
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

providenciando a restauração integral do Casarão no prazo de um ano e


que contrate segurança “guarda armada”, durante 24 horas, pois caso haja
o descumprimento da liminar, a multa diária é de R$ 5 mil.41
O Procurador Regional da República José Augusto Torres Potiguar ao
conceder entrevista afirmou:

O município de Belém tem pleno conhecimento da necessidade


de restauração do Palácio Antônio Lemos. E mais, chegou mesmo
a iniciar os serviços na cobertura do Palácio, serviços esse que,
na própria afirmativa da Procuradoria, continuam sendo execu-
tados de maneira irregular. Em duas vistorias, em 2006 e 2007
o próprio IPHAN constatou que a cobertura de toda a edificação
encontra-se em estado precário de conservação, apresentando
telhas quebradas, peças estruturais comprometidas, sistema de
captação e escoamento de águas pluviais danificado, que vem
ocasionando infiltrações constantes nos forros de quase todos
os ambientes do andar superior.42

Desta forma, nesta mesma edição de 16 de março de 2012, mediante a


argumentação do Procurador Regional da República, sobre a condição do
elencado patrimônio permeado de danos, a FUMBEL, ratifica que:

Os serviços de restauração da cobertura do palácio Antônio Le-


mos continuam sendo executados de maneira irregular, compro-
metendo a qualidade e funcionalidade dos materiais empregados
na reforma, além dos prejuízos irreversíveis ao bem tombado.43

No tocante, recentemente no dia 10 de maio de 2012, o Diário Oficial


da União publicou uma portaria do Ministério da Cultura homologando
o Tombamento do conjunto arquitetônico urbanístico e paisagístico dos
bairros da Cidade Velha e Campina, no Centro Histórico de Belém. Neste
sentido, o tombamento ocorreu em virtude de:

A ocupação da região remonta à conquista da foz do Rio Ama-


zonas, no início do Século xVII. No apogeu do ciclo da borracha,
entre 1890 e 1920, Belém foi uma das cidades mais prósperas do
mundo. A área protegida alcança três mil edificações nos bairros
de Cidade Velha e Campina. O processo de tombamento foi ela-
borado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), vinculado ao Ministério da Cultura. Para o tombamento,
levou-se em conta, ainda, que o conjunto formado pela trama da
cidade consolidada entre os séculos xVII e xVIII – com igrejas

1309
e suas torres, largos e praças, coretos, mercados e feiras - em
interação com a Baía de Guajará, é suficientemente expressivo
para retratar a história urbana de Belém.44.

Por conseguinte, os danos causados ao patrimônio histórico cultural


edificado nos bairros da Cidade Velha e entorno, implicam no esfacela-
mento da memória individual e coletiva, além do detrimento da identidade
de uma sociedade, que deveria dispor em preservar e difundir seus bens
culturais, para suscitar o desenvolvimento de um ethos cultural, e cons-
trução de um exercício de cidadania.45

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2008. Gerais, p. 4-5.

1311
NOTAS

1 MBA em Organização e Gestão no Terceiro Setor na Amazônia (UNAMA), Especialista em História Social
da Amazônia (UNAMA), Especialista em Docência do Ensino Superior na Amazônia (UFPA), Bacharela em
Direito (UNAMA), Especializanda em Processo: Constitucional, Civil, Penal e Trabalhista (OAB/PA Mauricio de
Nassau). Licenciada e Bacharela em História (UFPA). Docente Colaboradora e Pesquisadora UFOPA/PARFOR.
Docente SEDUC-PA e Técnica em Gestão Cultural - História- SECULT-PA. sandra.educacao@hotmail.com

2 COSTA, 1994 apud LEITE; AYLA, 2010, p.91.


3 GUERRA; CUNHA, 2001 apud OLIVEIRA, 1995, p.350.
4 STEIGLEDER, 2011 apud SENDIN, 1998, p. 123.
5 LEITE E AYALA, 2010, p. 100.
6 LEITE, 2000, p. 100.
7 FIGUEIREDO, 1998 apud RODRIGUES,1998, p. 224.
8 NERY JUNIOR, 2002, p. 322.
9 MILARÉ, 2001, p. 47.
10 MAZZILLI, 2004, p.45
11 KISHI; SILVA; SOARES, 2005 apud CUREAU, 2005, p. 731.
12 BRITO, 2007, p. 49-50.
13 BRITO, 2007, p. 51.
14 BRITO, 2007, p 56-57.
15 NASSAR, 2006, p.13.
16 LEITAO, 1998, p.11.
17 BRITO, 2007, p. 53.
18 BELEM, 1993.
19 BRITO, 2007, p. 34.
20 BRITO, apud VARGAS; CASTILHO, 2006, p. 3.
21 BRITO, 2007, p. 34-35.
22 BRITO, 2007 apud VARGAS; CASTILHO, 2006, p. 3
23 MIRANDA, 2006 apud CHASTEL, 1997, p 39.
24 O LIBERAL, 1985, p.1.
25 O LIBERAL, 1985, p.1.
26 BRITO, 2007 apud SILVA, 1995, p. 82.
27 SOUSA, 2008, p.4-5.
28 BRITO, 2007, p. 62.
29 SANTOS, 1997. 26-27.
30 SACHES, 2006, p 116.
31 SACHES, 2011, p. 9.
32 RIBEIRO, 2009, p 56-57.
33 SACHES, 2008, p. 4-5.
34 SACHES, 2011, p. 9.
35 RIBEIRO, 2009, p. 149.
36 BELÉM, 1999, p. 8.
37 RIBEIRO, 2009, p 149.
38 SILVEIRA, 2011 apud MEIRELES, 2006, p . 574.
39 FIGUEIREDO,1998, p. 261.
40 CORRêA, 2012, p. 16.
41 CORRêA, 2012, p. 16.
42 MPF, 2012, p.1.
43 MPF, 2012, p.2.
44 AGêNCIA BRASIL
45 LE GOFF, 1997, p.138

1312
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Movimentos sociais,
assessoria jurídica popular
e direito à cidade

Linda Maria de Pontes Gondim1


Kauhana Hellen de Sousa Moreira2

INTRODUÇÃO

Este texto é fruto de uma pesquisa 3


que tem como um de seus ob-
jetivos compreender, em uma perspectiva multidisciplinar, o papel das
assessorias jurídicas populares (AJPs) nos conflitos relacionados ao direito
à cidade. As informações aqui apresentadas são procedentes de um estu-
do de caso, ainda em andamento, sobre o Escritório Frei Tito de Alencar
(EFTA), mantido pela Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, o qual
vem assessorando movimentos sociais e comunidades de baixa renda em
suas lutas pela habitação digna e pelo meio ambiente saudável. A análise
é baseada em levantamento bibliográfico e documental e entrevistas com
profissionais e estagiários do EFTA.
Para entender os princípios e modos de atuação das AJPs, é necessário
situar sua origem no contexto das mobilizações ocorridas nas grandes
cidades brasileiras durante a ditadura militar, a partir da década de 1970.
Como se sabe, o regime ditatorial restringiu drasticamente a organização
dos trabalhadores nos marcos da legalidade instituída. O descontenta-
mento com as precárias condições de vida expressava-se no cotidiano
dos bairros populares, mediante articulações cuja dimensão política não
era explícita, tais como clubes de mães, associações de moradores, Co-
munidades Eclesiais de Base, etc. As reivindicações se davam em torno de
interesses relativos à esfera da reprodução, como nas campanhas contra
o alto custo de vida, pelo acesso à posse da terra e por serviços de saúde,
saneamento e transportes coletivos4.

1313
Em meados dos anos 1970, o modelo econômico concentrador e o
autoritarismo do regime começam a ser questionados não somente por
estudantes e intelectuais, mas também pela Igreja Católica, por associações
profissionais como a Ordem dos Advogados do Brasil e a Associação Bra-
sileira de Imprensa, e até por empresários insatisfeitos com a intervenção
do Estado na economia. Inicia-se um novo movimento sindical no ABC
paulista, enfatizando sua autonomia em relação a partidos políticos e a
estruturas burocráticas5. As mobilizações originadas nas periferias urbanas
adquirem visibilidade, expressando-se em ações diretas como ocupações,
abaixo-assinados, ida de comissões a órgãos públicos, marchas etc. Na
época, outros movimentos sociais (MS) também se constituíram, trans-
cendendo o nível local e tendo como sujeitos categorias transversais às
classes sociais: mulheres, negros, homossexuais, ecologistas e outros.
Esses “novos movimentos sociais” tinham em comum a articulação entre
as dimensões da política, da cultura e da economia, expressas numa nova
concepção de cidadania, vinculada a interesses e valores historicamente
definidos. Houve um “alargamento do âmbito da cidadania”, no sentido de
ir além de reivindicar pertencimento ao sistema político, para se constituir
em uma “proposta de sociabilidade”, ou seja, mudar o foco da relação entre
Estado e indivíduos, para as relações que se dão na sociedade civil6. Esta
concepção combinava-se com uma postura espontaneísta e “anti-Estado”,
que preconizava a democracia direta, resistia à presença de militantes de
partidos políticos e recusava a institucionalização7.
Durante a década de 1980, essa postura começou a arrefecer. Não se
tratava apenas de uma tendência interna, mas de uma resposta a mu-
danças mais amplas advindas do processo de redemocratização, como o
pluripartidarismo, o retorno da dinâmica eleitoral e, consequentemente, a
maior aproximação entre os partidos políticos e os movimentos sociais8.
De parte do Executivo, a transformação expressou-se na abertura de certas
agências para formas participativas de elaborar e implementar políticas
públicas, incentivando a formação de associações locais9. A ascensão de
administrações de esquerda em grandes cidades enfatizou a “participa-

1314
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ção popular”, ainda que enfrentassem a oposição de certos setores dos


movimentos sociais, temerosos de que a inserção na institucionalidade
os tornaria vulneráveis à cooptação10.
O processo constituinte criou oportunidades para a expressão da nova
cultura política trazida pelos MS, sintetizada no “direito a ter direitos”11.
Tratava-se não apenas de reivindicar a efetivação de direitos abstratos,
previamente existentes, mas da “invenção” de novos direitos, do que são
exemplos o direito à igualdade entre os gêneros, ao meio ambiente sau-
dável e à habitação. Além disto, passou-se a reconhecer que não somente
indivíduos, mas também coletividades, são titulares de direitos: mulheres,
homossexuais, negros, idosos, crianças e outros12.
A Constituição Federal de 1988 deu condições institucionais para a
efetividade dos novos direitos, criando, para tanto, instrumentos políti-
cos (plebiscito, referendo, iniciativa popular de leis e outros) e de gestão
participativa (conselhos de saúde, da criança e do adolescente, de assis-
tência social, etc.). Chamados a participar de programas e projetos do
setor público, os MS entram em uma nova fase, confrontando-se com a
necessidade de maior capacitação técnica e política – o que, por sua vez,
reforça o papel das entidades que prestam assessoria e treinamento, como
organizações não governamentais (ONGs), centros de pesquisa, associa-
ções profissionais e outras13. No âmbito jurídico, a Constituição fortaleceu
o Ministério Público e deu-lhe a função de defensor dos direitos difusos e
coletivos14, por meio de ação civil pública (ACP)15.
Tudo isso ocorreu justamente num período de crise econômica e he-
gemonia do modelo neoliberal de “Estado mínimo”, com graves conse-
qüências para o escopo das políticas públicas. A expansão dos direitos no
plano jurídico-formal contrastava, portanto, com a baixa efetividade de sua
implementação, numa sociedade que restituíra aos cidadãos os direitos
civis e políticos, mas acumulava considerável dívida social. Nesse quadro,
ficam mais evidentes as carências e as exclusões, levando à multiplicação
dos litígios e à sua politização, já que se tratam de interesses pelos quais
diferentes grupos entram em conflito, exigindo a presença do Estado16.

1315
A ordem jurídica vigente passa a sofrer pressões internas e externas por
mudanças no modelo de justiça liberal e formalista, o que leva a concep-
ções inovadoras, como o pluralismo jurídico e o “direito achado na rua” 17.

MUDANÇAS POLÍTICAS E
INSTITUCIONAIS PóS-CONSTITUIÇÃO DE 1988:
NOVOS DIREITOS, NOVOS ATORES

No quadro político-institucional pós-constituição de 1988, profissionais


do campo jurídico apresentam-se como aliados dos movimentos sociais
na defesa de interesses pertinentes a grupos sociais desfavorecidos. As
organizações não-governamentais fortalecem sua atuação na esfera do
judiciário, contando com advogados e estudantes de direito que passam a
atuar junto a elas, como profissionais, estagiários ou voluntários. O judici-
ário e o Ministério Público18 têm sido onipresentes nos conflitos urbanos,
pois as leis e sua interpretação constituem matrizes de referência para
os discursos dos diferentes atores19. Ainda que essa eficácia ideológica
não seja intrínseca à lei – uma vez que depende de como é utilizada no
contexto argumentativo – os discursos dos operadores do direito gozam,
em geral, da legitimidade advinda da própria natureza do conhecimento
jurídico. Para Bourdieu20, trata-se de

“[...] um sistema de normas e de práticas que aparece como fun-


damento a priori na equidade de seus princípios, na coerência
de suas formulações e no rigor de suas aplicações, quer dizer,
como participando ao mesmo tempo da lógica positiva da ciência
e da lógica normativa da moral, portanto, como podendo impor-
-se universalmente ao reconhecimento por uma necessidade
simultaneamente lógica e ética”.

Dadas essas características do discurso jurídico, os movimentos sociais


encontram-se, em princípio, em situação desvantajosa em face de outros
atores políticos com acesso a consultoria jurídica ou advocacia, como é o
caso de empresários, associações de moradores de classe média ou alta e
o próprio Poder Público. Daí a importância da assessoria jurídica prestada

1316
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

gratuitamente por entidades capazes de acionar recursos judiciários e


extrajudiciários, em defesa dos direitos dos grupos subordinados.

ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR:


PRINCÍPIOS E FORMAS DE ATUAÇÃO

Como foi mencionado, a AJP é uma alternativa às práticas tradicionais


que se identificam com o viés positivista, conservador e tecnicista do Direi-
to. Trata-se de uma práxis21 desenvolvida por advogados e estudantes de
direito, geralmente por meio de ONGs, redes e articulações, com o intuito
de atuar jurídica e politicamente junto a grupos que sofrem violações em
seus direitos (movimentos sociais, associações de moradores, comunida-
des de baixa renda, quilombolas, indígenas, homossexuais etc.). Assim, a
advocacia popular apresenta-se como uma alternativa profissional para
aqueles que aspiram a uma nova dimensão da ciência jurídica, respaldada
no reconhecimento de novos produtores de direitos (pluralismo jurídico), o
qual se contrapõe ao Direito eminentemente estatal e positivista (monismo
jurídico). O pluralismo jurídico reconhece o surgimento de direitos extra-
-estatais, ou seja, a possibilidade de o Estado não ser o centro de produção
de normas. Portanto, essa teoria reconhece a legitimidade das relações
jurídicas criadas por movimentos sociais no plano da reivindicação por
moradia, cidadania, liberdade de expressão etc. Nas palavras de Wolkmer22,

“Ao contrário da concepção unitária, homogênea e centralizado-


ra, denominada de ‘monismo’, a formulação teórica e doutrinária
do pluralismo designa a existência de mais de uma realidade,
de múltiplas formas de ação prática e da diversidade de campos
sociais com particularidade própria, ou seja, envolve o conjunto
de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se
reduzem entre si. O pluralismo enquanto concepção ‘filosófica’ se
opõe ao unitarismo determinista do materialismo e do idealismo
modernos, pois advoga a independência e a inter-relação entre
a realidade e princípios diversos”.

A produção teórica no campo da assessoria jurídica popular ainda é


escassa23, principalmente no que se refere a uma literatura que goze de

1317
aceitação plena na comunidade jurídica. Não é comum o acesso a essa
temática nas faculdades federais de direito, como evidencia a grade cur-
ricular de grande parte dos cursos de Direto das universidades federais do
país24, onde são poucas as disciplinas sobre assessoria jurídica popular,
pluralismo jurídico, teorias críticas do direito ou outros temas afins. Isto
reflete a ênfase que é dada à educação jurídica formalista e tradicionalista.
No caso da assessoria jurídica popular, o profissional, além do aporte
técnico, desempenha um papel político, como ressaltou uma das entrevis-
tadas para a pesquisa realizada pelas autoras: “a assessoria jurídica popular
parte de uma opção política, de uma visão do fazer Direito e da autonomia
[do] profissional enquanto advogado. Trabalhar com movimentos sociais
é uma opção de prática, uma opção de visão de mundo”. (Entrevista rea-
lizada em 17 de julho de 2013)25. O “advogado popular” exerce o papel de
educador junto aos grupos assessorados, em consonância com a proposta
emancipatória desenvolvida por Paulo Freire, segundo a qual “ninguém
educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam
entre si, mediatizados pelo mundo”26.
Assim, é fundamental que a relação entre educadores (advogados po-
pulares) e educandos (movimentos sociais e comunidades assessoradas)
seja pautada por uma perspectiva dialógica, pela qual estes últimos não
sejam simplesmente “clientes”, mas sujeitos de uma práxis. O uso do termo
práxis, aqui, não é casual, pois, como já foi destacado, não se trata apenas
de uma atuação com fins utilitários, mas sim, de uma atividade criativa e
transformadora27. É nessa linha que o EFTA tem procurado atuar, como
será visto a seguir.

O ESCRITóRIO FREI TITO DE ALENCAR (EFTA)

O Escritório Frei Tito de Alencar (EFTA) surgiu em 2000, vinculado à


Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do
Ceará (ALCE), mediante um convênio entre esta última e o Tribunal de
Justiça do Estado do Ceará (TJCE), a Ordem dos Advogados do Brasil-Seção

1318
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Ceará (OAB-CE), a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Universidade


de Fortaleza (Unifor). A cláusula terceira expõe o objetivo do escritório:

“[...] prestar assessoria jurídica a comunidades marginalizadas


do Ceará, atuando em juízo na defesa de demandas coletivas e
individuais (que, devido a sua relevância, tenham repercussão
coletiva), diretamente, através de seus advogados, mediante
representação ao Ministério Público ou, ainda, acompanhando
subsidiariamente processos em curso, buscando também efeti-
var, junto às comunidades, uma educação jurídica popular e um
treinamento paralegal capaz de habilitar a comunidade para a
autodefesa dos seus direitos, não somente perante o Poder Judi-
ciário, mas também junto ao Executivo e ao Legislativo, criando
uma nova mentalidade, ao invés do simples assistencialismo do
Estado, buscando uma sociedade civil bem mais justa e parti-
cipativa. (CV N° 05/2000 – Assembléia Legislativa do Ceará)”28.

O convênio previa, em sua cláusula oitava, a vigência de 12 me-


ses, podendo haver renovação por iguais períodos e denunciação por
quaisquer das partes com antecedência mínima de 60 dias. Na prática,
a renovação não ocorria regularmente, porém as atividades do EFTA
prosseguiam, como se o convênio vigente fosse (entrevista realizada
em 17 de julho de 2013).
O escritório era formado por advogados com experiência em núcleos
de assessoria jurídica universitária durante sua formação acadêmica e por
estudantes de Direito pertencentes a programas de assessoria levados a
efeito por universidades: Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária (NA-
JUC), Centro de Assessoria Jurídica Universitária (CAJU), ambos da UFC,
e Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da Universidade
de Fortaleza (Unifor). Em meados de fevereiro de 2011, os advogados e
estagiários do EFTA foram surpreendidos por ato do Presidente da ALCE
exonerando a todos, sob a alegação de que seria necessário reformular o
EFTA, uma vez que este contava com recursos e infra-estrutura precários
diante da demanda por seus serviços. Diversos parceiros e apoiadores do
escritório, como movimentos sociais, ONGs e estudantes universitários,
mobilizaram-se contra essa decisão, manifestando-se publicamente para
que o escritório fosse mantido dentro dos princípios que norteavam a

1319
sua atuação29. Face à repercussão negativa, o Procurador Geral da ALCE,
Reno ximenes, declarou que a exoneração fora decorrente de um “lapso
de processamento de dados”, face à solicitação de cortes nas despesas
da ALCE: “o presidente [da Assembleia] chegou pra mim e falou: ‘Reno,
eu preciso de um corte de 30% do que é supérfluo’. Eu fiz e entreguei pra
ele” 30. Ressaltou que

“não houve nenhum ato deliberado da Presidência da Assembleia,


nem da Comissão de Direitos Humanos, no sentido de ‘enfraque-
cer’ ou ‘ferir’ a autonomia do Escritório Frei Tito. O procurador
adiantou que a situação ‘deve ser revista’ para não haver perda
de continuidade dos trabalhos”31.

Ainda segundo o Procurador, a Comissão de Direitos Humanos da


ALCE não demandou a permanência dos advogados e estagiários do EFTA
porque “ainda estava sendo eleita”32. Entretanto, o mais provável é que a
exoneração tenha sido motivada pela relação que o Escritório mantinha
com movimentos sociais que questionavam posturas do governo, como
afirmou uma das entrevistadas:

[...] no ano de 2011 mesmo, houve uma quebra, um fechamento


do escritório, por conta da Assembléia Legislativa, em razão,
provavelmente, de divergências de alguns deputados com a
nossa atuação, que é junto a movimentos sociais. O escritório
foi fechado e toda a equipe foi exonerada, os três advogados e
os seis estagiários foram exonerados subitamente (entrevista
realizada em 11/01/2013).

Graças à pressão dos apoiadores, foi realizada a seleção de uma nova


equipe por uma comissão formada por membros do Ministério Público e
da Defensoria Pública e representantes de movimentos sociais, da ALCE
e da OAB. Ainda que a experiência prévia em assessoria jurídica popular
tenha deixado de ser um critério eliminatório para o ingresso no EFTA,
todos os atuais de advogados compartilham essa experiência desde a
sua graduação. Esse resultado foi fruto de uma estratégia utilizada pelos
partidários da manutenção do viés de assessoria jurídica no EFTA:

“[...] no site da Assembléia [ALCE] se inscreveram, se eu não me


engano, umas 600 pessoas. [...] nós que trabalhamos com asses-

1320
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

soria jurídica popular, nós que já tínhamos estagiado no escritório,


os advogados que foram exonerados, [...] a gente ficou com muito
medo de quem estava se habilitando a isso [a trabalhar no EFTA],
podiam ser pessoas complicadas, com posicionamento conser-
vador, o que iria ser uma quebra, uma perda para o escritório.
Então, a gente combinou entre nós, nos grupos de e-mail e cada
um ligou para várias pessoas para combinar de todo mundo se
inscrever. Pessoas que não tinham se formado se inscreveram,
pessoas que moram em outros Estados se inscreveram, para ver
se isso filtrava as inscrições, para ver se quando a comissão de
seleção fosse olhar, excluísse então os que não tinham nada a
ver. [...]”. (entrevista realizada em 11/01/2013).

A ALCE não cumpriu a promessa de melhorar as condições do EFTA


no que tange à escassez de pessoal e à precariedade da infraestrutura.
Tanto é que o número de estagiários, em vez de aumentar de três para seis,
restringe-se hoje a apenas três voluntários, estudantes de Direito que par-
ticipam do Serviço de Assessoria Jurídica (SAJU) da Unifor. As instalações
do Escritório continuam inadequadas e a ALCE não disponibiliza veículos
para transportar os advogados no exercício do seu trabalho.
Em que pese essas limitações, o EFTA tem logrado manter sua atua-
ção como assessoria jurídica popular, como evidencia o perfil dos casos
acompanhados pela equipe, nos quais prevalecem demandas coletivas
ou individuais de repercussão coletiva. Quando há demandas por acom-
panhamento a casos individuais, o Escritório indica o órgão competente,
muitas vezes a Defensoria Pública. É relevante destacar, aqui, que os pa-
peis desempenhados por esta última e pelo EFTA são distintos, mas não
antagônicos. Os dois prestam serviços gratuitos e atendem a grupos ou
indivíduos que carecem de acesso a justiça, ditos hipossuficientes. Ambos
oferecem serviços gratuitos e atendem a grupos ou indivíduos que care-
cem de acesso a justiça, ditos hipossuficientes. A Defensoria Pública é um
serviço público garantido pela Constituição Federal de 1988, estreitamente
ligado ao direito fundamental à isonomia e ao acesso a justiça33; portan-
to, possui um regramento legal específico que norteia sua competência,
jurisdição e prerrogativas34. Enquanto membros de um órgão público, os
defensores são representantes do Estado, não podendo se desvencilhar
da esfera de interesses dele. Já os assessores jurídicos populares atuam

1321
como profissionais liberais que assumem a opção política de defender os
grupos marginalizados, até mesmo quando os interesses desses grupos
transpõem a esfera do jurídico e vão de encontro ao poder instituído.
Outra marca específica da assessoria jurídica popular é o perfil dos
sujeitos que majoritariamente buscam o EFTA: movimentos sociais, co-
munidades e associações que já conhecem o histórico de sua atuação
em defesa dos direitos humanos. Esse reconhecimento da identidade do
Escritório ocorre também devido ao acompanhamento extrajudicial dos
casos. Um dos advogados entrevistados esclarece:

“[...] sempre que em um caso nós constatamos que é o perfil do


escritório, o primeiro passo é visitar a comunidade para conhe-
cer a realidade, mesmo que a gente não consiga conhecer toda
a realidade com apenas uma visita, duas ou dez visitas. A gente
precisa viver o dia-a-dia, mas nós procuramos nos integrar à
rotina da comunidade, participar de uma reunião de associação
de moradores, de uma reunião que é chamada na igreja onde a
comunidade reúne. E, a partir dali, traçar estratégias junto com
a comunidade, jamais impondo, ‘vocês vão ter que fazer isso,
aquilo e aquilo outro’. Não. A gente chega, discute o problema
que a comunidade está passando e a partir daí a gente traça
objetivos e estratégias para superar essa situação”. (entrevista
em 17 de julho de 2013).

A maioria dos casos acompanhados pelo Escritório, hoje, é relacio-


nada a violações ao direito à habitação, especialmente desapropriações
e remoções decorrentes de obras de mobilidade urbana associadas a
Copa das Confederações (2013) e à Copa do Mundo de Futebol (2014).
Esse acompanhamento inclui não apenas a assistência direta aos sujeitos
cujos direitos estão ameaçados de violação, mas também articulações
com outros sujeitos que se identificam com a defesa do direito à cidade,
como movimentos sociais, ONGs, partidos políticos e outros. Atualmente,
o EFTA compõe o Comitê Popular da Copa e a Frente de Luta em Defesa
da Moradia, que são exemplos desses espaços de articulação.
A influência da concepção de assessoria jurídica popular incide na re-
lação entre os integrantes do EFTA e os sujeitos atendidos, especialmente
os movimentos sociais, que pressionam a ordem jurídica pelo reconheci-

1322
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mento de direitos de cidadania. Para os assessores jurídicos populares,


não há apenas um processo, uma relação exclusivamente jurídica, mas
uma identidade com a causa que mobiliza a atuação em outras frentes,
como mobilizações, educação em direitos humanos e articulações com
outros atores sociais. Foi ressalvado que os aspectos jurídicos não são
renegados nesse processo, mas desenvolvidos com o objetivo, a longo
prazo, de transformação social.

CONCLUSÃO

Este artigo discutiu a concepção de assessoria jurídica popular, a partir


de uma pesquisa sobre a práxis do Escritório Frei Tito de Alencar. Os dados
coletados na pesquisa permitiram reconstruir o histórico do Escritório, a
partir de um esforço de síntese feito especialmente por profissionais mais
antigos, que foram estagiários do EFTA quando estudantes de Direito.
Conforme se verificou nas entrevistas, a atividade do advogado engajado
na AJP é, geralmente, resultante de sua participação em projetos de ex-
tensão universitária dessa natureza, durante sua formação acadêmica. A
relação entre assessores jurídicos populares e movimentos sociais nasce
de uma linha histórica comum, uma vez que ambos se entrelaçam no bojo
das lutas contra o cerceamento de direitos, durante o período ditatorial no
Brasil. Essa relação criou novos horizontes paradigmáticos, alicerçados
em práticas inovadoras dos movimentos sociais, as quais fomentaram a
busca por alternativas teóricas e práticas no âmbito dos estudos jurídicos,
em oposição ao arcabouço teórico positivista, tecnicista e conservador.
Assim, desenvolveu-se a concepção pluralista do Direito, que norteia a
práxis em AJP e tem contribuído para dar legitimidade às pautas pleiteadas
pelos movimentos sociais.

1323
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NOTAS

1 Socióloga, Doutora em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Ceará, Professora Asso-
ciada, pesquisadora do CNPq. E-mail: lindagondim@uol.com.br
2 Graduanda em Direito, Universidade Federal do Ceará, bolsista de Iniciação Científica do CNPq. E-mail:
kauhanahsm@gmail.com
3 Trata-se do projeto “guarda-chuva” intitulado Habitação e meio ambiente em conflito: novas configurações
dos conflitos socioambientais em Fortaleza-CE. Tal projeto, apoiado pelo CNPq e pela Fundação Cearense de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP), vem sendo desenvolvido no Laboratório de Estudos da
Cidade (LEC)/UFC, sob a coordenação da prof.ª Linda Gondim e com a participação da estudante Kauhana
Moreira, que é bolsista de Iniciação Científica do CNPq.
4 DOIMO, Ana Maria. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70.
Rio de Janeiro: Relume Dumará: ANPOCS, 1995.
5 SADER, Eder. quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalha-
dores da Grande São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
6 DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: ______.
(Org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 108.
7 GONDIM, Linda M. P. Os movimentos sociais urbanos: organização e democracia interna. Sociedade e Estado,
v. VI, n. 2, p. 129-159, jul.-dez. 1987; DOIMO, 1995, op. cit.
8 CARDOSO, Ruth Correa Leite. A trajetória dos movimentos sociais. In: DAGNINO, Evelina (Org.). Anos 90:
política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 81-90.

1326
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

9 TATAGIBA, Luciana. Os conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no Brasil. In: DAGNINO,
Evelina (Org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 47-103.
10 SOARES, José Arlindo; GONDIM, Linda. Novos modelos de gestão: lições que vêm do poder local. In:______;
CACCIA-BAVA, Silvio. Os desafios da gestão municipal democrática. São Paulo: Cortez, 1998. p. 61-96.
11 TELLES, Vera da Silva. Sociedade civil e a construção de espaços públicos. In: DAGNINO, Evelina (Org.).
Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 91-102.
12 BOBBIO, BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. São Paulo, Campus. 1978; SILVA, Cátia Aida. Promotores
de justiça e novas formas de atuação em defesa de interesses sociais e coletivos. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, São Paulo, v.16, n. 45 . fev. 2001.
13 ALBUQUERQUE, Maria do Carmo. Participação cidadã nas políticas públicas. In: HERMANNS, Klaus (Org.).
Participação cidadã: novos conceitos e metodologias. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2004.
p. 15-60.
14 Vale lembrar que direitos coletivos são aqueles relativos a coletividades cujos membros são identificáveis,
tendo entre si uma relação jurídica – como, por exemplo, os moradores de um conjunto habitacional. Tais
direitos têm como característica distintiva a indivisibilidade, ou seja, não é possível identificar a parte que
cabe a cada indivíduo quando os interesses são atendidos. Os direitos difusos são também indivisíveis, mas
é impossível identificar individualmente seus sujeitos, que se vinculam apenas em relação a um fato exter-
no – como no caso de pessoas que sofrem os efeitos de uma atividade poluente. Para uma discussão mais
aprofundada, ver: MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.
15 Note-se que a ACP já fora regulamentada em 1985 pela lei n.º 7347, mas sua aplicação limitava-se à defesa
dos interesses relacionados à preservação do meio ambiente e do patrimônio artístico, histórico, paisagístico
e turístico. Em 1990, a Lei n.º 8078 (Código de Defesa do Consumidor) tornou mais abrangente o alcance da
ACP, incluindo a proteção a “[...] qualquer outro interesse difuso ou coletivo” (art. 111, inciso II). Mais de dez
anos depois, a Lei n.º 10.257 (Estatuto da Cidade) agregou a “ordem urbanística” (art. 53). Podem propor ações
civis a União, Estados, Municípios, empresas públicas, autarquias, fundações, sociedades de economia mista e
associações com pelo menos um ano de existência, além do Ministério Público; somente este último, porém,
pode determinar a instauração do inquérito civil que antecede a ACP.
16 SANTOS, Boaventura Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo:
Cortez, 1994; SILVA, Cátia Ainda, 2011, op. cit.; SOUSA FILHO, José Geraldo. Direito como liberdade: o direito
achado na rua – experiências populares emancipatórias de criação do direito. Tese de doutorado. Universidade
de Brasília. Brasília, 2008; TELLES, Vera da Silva, 1996, op. cit.
17 SANTOS, Boaventura Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. In: SOUTO, Claudio; FAL-
CÃO, Joaquim (Orgs.). Sociologia e Direito. São Paulo: Pioneira, 1980; SOUSA FILHO, José Geraldo. Direito
como liberdade: o direito achado na rua – experiências populares emancipatórias de criação do direito. Tese
de doutorado. Universidade de Brasília. Brasília, 2008.
18 Cumpre lembrar que no ordenamento jurídico brasileiro, o MP tem autonomia funcional e administrativa
tanto em relação ao Judiciário, como ao Executivo. Seus membros ingressam na carreira por concurso público e
têm as mesmas garantias que os magistrados (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos).
KERCHE, Fabio. O Ministério Público e a Constituinte de 1987/88. In: SADEK, Maria Tereza (Org.). O sistema
de justiça. São Paulo: Sumaré, 1999. p. 61-75.
19 FUKS, Mário. Conflitos ambientais no Rio de Janeiro: ação e debate nas arenas públicas. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2001.
20 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. p. 213.
21 Aqui, distinguimos prática e práxis, considerando este último termo no sentido marxista, ou seja, “atividade
livre, universal, criativa e autocriativa, por meio da qual o homem cria (faz, produz) e transforma (conforma)
seu mundo humano e histórico e a si mesmo” (BOTTOMORE, 1997). Já o conceito de prática se refere a ape-
nas uma dessas dimensões da práxis: a atividade de caráter utilitário-pragmático, muitas vezes, vinculada às
necessidades imediatas.
22 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 7 ed. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 171-172.
23 Entre os principais autores que trabalham nessa perspectiva, podemos citar: Vladimir Luz, Roberto Lyra,
Boaventura Sousa Santos e Antônio Wolkmer.
24 Este dado foi obtido através da consulta aos sites das seguintes universidades:
UFPB (<http://www.ufpb.br/sods/consepe/resolu /1990/Rsep9013.htm> Acesso em: 08 jun. 2013);
UFPE (<http://www.ufpe.br/proacad/images/cursos_ufpe/direito_perfil_0805.pdf>. Acesso em: 08 jun. 2013),
USP (< http://www.direito.usp.br/grade_curricular.pdf>. Acesso em: 08 jun. 2013),
UFRN (< http://www.sigaa.ufrn.br/sigaa/link/public/curso/curriculo/100840> Acesso em 08 jun. 2013),
UFPI (< http://www.ufpi.br/subsiteFiles/direito/arquivos/files/Grade%20Curricular%20-%203020_5%20e%20
3020.pdf> Acesso em: 08 jun. 2013),

1327
UFRJ (<http://www.direito.ufrj.br/index.php? option=com_content&view=article&id=16:grade-curricular-
2010&catid=12:graduacao-2010&Itemid=26>. Acesso em: 08 jun. 2013),
UFPR(<http://www.direito.ufpr.br/index.php?option=com_content&view=category&id=127&layout=blog&It
emid=261> Acesso em: 08 jun. 2013).
25 Os nomes das pessoas entrevistadas não são mencionados, a fim de preservar sua privacidade, como
estabelece o Código de Ética da Associação Internacional de Sociologia.
26 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 45 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. p. 37.
27 BOTTOMORE, op. cit.
28 O texto do convênio é reproduzido em DIÓGENES, Christianny. Assessoria Jurídica Popular – Teoria
e prática emancipatória. 2007. Dissertação (Mestrado em Ordem jurídica constitucional) – Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, 2006.
29 Na Carta dos movimentos sociais pelo fortalecimento da assessoria jurídica e em defesa do escritório Frei Tito
de Alencar (março, 2011), constam assinaturas de 49 movimentos sociais, comunidades, entidades não go-
vernamentais, pastorais da Igreja Católica e organizações estudantis. Esse documento foi dirigido ao então
presidente da ALCE, Roberto Cláudio Rodrigues Bezerra, e à presidente da Comissão de Direitos Humanos e
Cidadania, deputada Eliane Novaes.
30 Exoneração dos advogados do Escritório Frei Tito foi “lapso”, diz procurador. Disponível em: http://www.
portaldomar.org.br/blog/portaldomar-blog/categoria/noticias/ce-exoneracao-dos-advogados-do-escritorio-
-frei-tito-foi-lapso-diz-procurador. Acesso em: 01 fev. 2013.
31 Ibid.
32 Ibid.
33 “Art. 5.º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LxxIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita
aos que comprovarem insuficiência de recursos. [...] Art. 134.º - A Defensoria Pública é instituição essencial
à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos
necessitados, na forma do art. 5º, LxxIV”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm>. Acesso em: 13 ago 2013.
34 A Lei Complementar n.º 80, de 12 de janeiro de 1994, organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito
Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados. No Ceará, a Defensoria
Pública Geral do Estado foi criada pela Lei Complementar n.º 06, de 28 de abril de 1997.

1328
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O direito à cidade e à Justiça


Ambiental interfaces e possíveis
contribuições da educação
ambiental de tendência crítica

Miguel Etinger de Araujo Junior1


Luciana Aranda Barrozo2

1. INTRODUÇÃO

A reivindicação do direito à cidade, o combate a todas as formas


de racismo, incluindo o racismo ambiental, devem ser bandeira dos
movimentos que lutam por justiça social e ambiental. No caso do Brasil,
é fundamental que se supere o “mito da democracia racial”, que surge
como “expressão particular do mito mais amplo da sociedade aberta, em
que os homens pobres ou ricos, de qualquer raça, sexo ou religião, são
definidos como iguais”. 3
A ocupação das áreas periféricas, mais expostas à degradação ambien-
tal, pelas camadas mais pobres da sociedade não é justa. Um modelo de
ocupação pautado nos interesses privados para o acesso aos bens am-
bientais e às melhores áreas de moradia não pode ser modelo aceitável
em qualquer espaço do mundo, pois reproduz uma lógica de exclusão dos
outros em benefício de alguns. Talvez nem mesmo Charles Darwin supu-
sesse que parte dos seres humanos pudesse naturalmente ser sobrepujada
por outra camada. Hitler certamente.
A lógica da relação entre seres humanos ultrapassa uma análise mera-
mente biológica ou química, abarcando variáveis como solidariedade ou
fé, conceitos que um pensamento excessivamente individualista poderia
considerar como lana caprina. Nesta disputa entre diferentes modos de

1329
pensar e viver a vida em sociedade, Ermínia Maricato expõe o que re-
almente está em jogo nos ambientes urbanos: de um lado aqueles que
desejam um local adequado para viver, do outro aqueles que pretendem
somente extrair lucros4.
Esta e outras situações geram cenários de injustiça. A reação compõe,
dentre outros aspectos, o movimento por “Justiça Ambiental”. A identifi-
cação dos conflitos socioambientais respalda a compreensão do conceito
de justiça ambiental, que, por sua vez, se fundamenta na “análise ética
para a eliminação das condições e decisões sem equidade, procurando
incorporar o direito dos indivíduos e comunidades de serem protegidos da
degradação ambiental, da poluição hídrica, da efetiva defesa dos direitos
humanos”5, do direito à cidade.
Assim, o presente trabalho tem por objetivo aproximar os campos
de atuação do movimento por justiça ambiental e o direito à cidade,
apresentando pontos de convergência e divergência entre ambos e
sugerindo que esta aproximação possa fortalecer o campo de ação de
ambos os movimentos.
A luta por direitos e por acesso à justiça social e ambiental demanda
da implementação de um projeto educativo orientado para o exercício
e ampliação do conceito de cidadania, para a formação de uma cultura
que reforce a organização e a mobilização social. É neste sentido que a
educação ambiental se apresenta, com ênfase em sua tendência crítica,
como possibilidade político pedagógica para a construção da cidadania
ambiental, de sociedades mais justas e sustentáveis.

2. O DIREITO à CIDADE E à JUSTIÇA AMBIENTAL

Como direito social, o direito à cidade 6 é inerente a todo e qualquer


cidadão, uma vez que é no espaço urbano, por excelência, que se estabe-
lecem as relações sociais e a interação com o ambiente. Este direito inclui
também o acesso ao meio ambiente equilibrado, garantindo a todos uma
vida digna e com qualidade.

1330
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A legislação internacional e a brasileira estampam normas que regula-


mentam o direito à cidade e a proteção ambiental. No Brasil, a Constituição
Federal de 1988, não por acaso chamada “Constituição Cidadã”, embora
apresente um resquício do modo patrimonialista de produção das cidades,
traz em grande parte do seu texto as marcas das lutas sociais, movimentos
engajados nas questões urbanas.
A Lei n. 10.257/2001, autodenominada “Estatuto da Cidade”, procura
dar efetividade aos artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 e
estabelece normas de ordem pública e interesse social “que regulam o
uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do
bem-estar dos cidadãos”. 7 A Constituição Brasileira traz ainda, no Artigo
225, caput, a afirmação de que “todos têm o direito ao ambiente ecolo-
gicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida8”.
De uma forma geral, se compreende que a degradação ambiental
atinge toda coletividade, ferindo os direitos dos cidadãos de terem acesso
ao ambiente ecologicamente equilibrado. Contudo, ao aproximarmos o
campo de visão e fazer a análise desta questão, é possível constatar que
em uma sociedade desigual, nem o acesso aos bens ambientais e nem
degradação consequente da exploração destes bens são distribuídos de
forma igualitária.
Segundo Carvalho9, “os modos de acesso aos bens ambientais e seu
uso, prevalecendo os interesses privados, além de ocasionarem agressões
ambientais, ferem seu caráter coletivo”. É diante desta perspectiva que se
definem os “conflitos socioambientais”, compreendidos como a tensão que
se instaura entre os interesses privados e coletivos no acesso e utilização
dos bens ambientais.

Os conflitos socioambientais têm se perpetuado ao longo da his-


tória pelo domínio de uma racionalidade instrumental e utilitária,
em detrimento a uma postura de reciprocidade ante a natureza
enquanto alteridade a ser respeitada, entendendo- a não só como
as formações florestais, os mananciais e outros ecossistemas,
mas também como a base natural dos ambientes da vida social,
ou seja, a base natural do nosso dia a dia. 10

1331
É neste contexto que surge o movimento por Justiça Ambiental nos
Estados Unidos, a partir da década de 1960, partindo da denúncia de tra-
tamento diferenciado em alguns bairros para a questão do saneamento e
disposição final de rejeitos tóxicos e perigosos. Ele toma força na década
de 1980, buscando demonstrar que os impactos ambientais negativos
se distribuíam de forma desigual em função de gênero, raça e condição
econômica11.
Esta ideia reforça as afirmações de Acselrad et.al.12, que consideram que
o movimento por justiça ambiental “defende posições anticapitalistas” e se
posiciona de forma contrária ao pensamento ambientalista conservador,
dominante na atualidade, para o qual

a crise ambiental é democrática, isso é, a humanidade como um


todo, indistintamente, estaria igualmente sujeita aos efeitos noci-
vos da degradação ambiental planetária, independentemente de
qualquer tipo de recorte social. Todos os humanos seriam igual-
mente responsáveis e vítimas da crise ambiental contemporânea.

Não é difícil constatar que os impactos ambientais têm atingido as


populações carentes de forma desproporcional. Contudo, é importante ir
além. “A história do povo revela que há diversidades raciais que são criadas
e recriadas no interior das desigualdades sociais”13. É neste sentido que
Rocha14 situa as problemáticas de raça e gênero, sugerindo as mulheres e
os negros como grupos socialmente vulneráveis. Esta condição evidencia
o que na atualidade se define por racismo ambiental.
Este termo, “racismo ambiental”, foi apresentado pela primeira vez por
Benjamin Chavis, em 1982, “significando discriminação na aplicação e no
cumprimento da política ambiental, tendo em vista o referencial racial,
configurando uma apartheid ambiental15”. Para Rocha:

O racismo ambiental aprofunda a estratificação das pessoas (por


raça, etnia, status social e poder) e o lugar (nas cidades, bairros
periféricos, áreas rurais, reservas indígenas, terreiros de can-
domblé, comunidades quilombolas, marisqueiras e pescadores).
O próprio ambiente de trabalho aponta para a exposição despro-
porcional e elevada de determinadas categorias de trabalhadores
que se expõem a insalubres condições de trabalho e segurança 16.

1332
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A ocorrência de racismo ambiental no Brasil é evidente, sobretudo


entre as comunidades e povos tradicionais, como os quilombolas e os
indígenas. Causas relacionadas ao desenvolvimento econômico, como
o agronegócio e a construção de barragens, têm promovido degradação
ambiental, cultural e social, abarcando muitas vezes comunidades inteiras.
No espaço urbano, a situação não é diferente. A defesa do direito à
propriedade marcou de forma significativa a história da formação das
cidades brasileiras e latino-americanas17. Embora fosse reconhecido o
princípio da função social da propriedade e a ideia de sua subordinação
ao interesse coletivo, prevaleceu a liberdade de mercado em detrimento
do controle do estado18, possibilitando que

as áreas mais urbanizadas e melhor localizadas em relação ao


centro da cidade sempre fossem reservadas para as camadas
médias e altas, aqueles segmentos cujo poder de inserção no
mercado de consumo é alto o suficiente para a aquisição da
terra urbanizada. Nesse cenário marcado pela não intervenção
do Estado no mercado de terras, as grandes propriedades não
desempenhavam efetivamente nenhuma função social, mas
sim econômica, ou seja, o enriquecimento de seus detentores. 19

Em contrapartida, as camadas mais pobres da população foram sendo


privadas da possibilidade de participar do mercado formal de habitação,
ocupando, muitas vezes de forma ilegal, as áreas mais precárias do ponto
de vista da infraestrutura urbana e mais distantes em relação às melhores
localizações da cidade20.
Para Maricato21, essa “opção” trouxe também como consequência a
degradação ambiental, uma vez que a maior parte das moradias informais
era construída nas margens de córregos, mananciais e encostas de morros,
“contribuindo para a ocorrência de desastres que ceifam centenas ou até
milhares de vidas periodicamente”.
Diante deste contexto, a conivência do poder público com as ocupações
se instaura como estratégia para dissolver possíveis tensões sociais. Po-
rém, “há uma condição implícita para que essa tolerância ocorra de fato:
as terras ocupadas precisam estar fora dos planos do mercado privado
de habitação”. 22

1333
A garantia do direito à cidade e, por conseguinte, a possibilidade de
enfretamento das condições que caracterizam a injustiça ambiental, de-
mandam por parte do estado, da adoção de uma “política urbana rigoro-
samente pautada pela defesa dos interesses coletivos em detrimento dos
interesses individuais de propriedade”. 23
Do ponto de vista jurídico, isso requer a incorporação do princípio da
função social da propriedade, “razão de ser” do direito à cidade, uma vez
que é capaz de regular o uso da propriedade e do solo urbano e coibir a
especulação imobiliária. 24
Indo além, a efetivação direitos dos sociais resultam “da eventual
capacidade das lutas populares de impor às classes dominantes um
compromisso sobre novos direitos; direitos esses que, por si mesmos,
não destroem o capitalismo, mas que nem por isso são desejados pelas
classes dominantes”.
É diante destas constatações que se prestigia Loureiro e Layrargues ao
proporem os princípios que orientam para um novo modelo societário,
que conduza à justiça ambiental:

- equidade na distribuição das consequências ambientais ne-


gativas, de forma que nenhum grupo social, étnico ou de classe
suporte uma parcela desproporcional dessas consequências;
- justo acesso aos bens ambientais do país;
- amplo acesso às informações relevantes sobre as atividades
poluentes, tais como o uso dos recursos naturais, o descarte de
seus rejeitos e a localização das fontes de risco;
- fortalecimento e favorecimento da constituição de sujeitos co-
letivos de direitos, isto é, de movimentos sociais e organizações
populares capazes de interferirem no processo de decisão da
política e da economia. 25

A construção deste novo modelo societário passa pela educação, pelo


seu potencial de promover práticas capazes de contribuir para a assimila-
ção de seus princípios, para a cidadania e formação de uma nova coletivi-
dade, capaz de fazer valer os seus direitos perante as classes dominantes.
A educação pode ser um mecanismo adequado para a construção de
uma sociedade crítica, mas também ela, precisa ser construída como uma
atividade que permita ao cidadão confrontar ideias diferentes, e não apenas

1334
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ser mais um reprodutor de um pensamento dominante. É neste sentido


que o presente trabalho defende a educação ambiental de tendência crí-
tica, por favorecer à criticidade de educadores e educandos, por incluir
a dimensão socioambiental e a luta por direitos como caminhos para a
construção de sociedades mais justas e sustentáveis.
Contudo, vale salientar que ele não tem a intenção de oferecer uma
compreensão hierarquizada, indicar que exista um projeto “melhor que
outros”. As ideias aqui expostas têm o objetivo de contribuir para que
a educação ambiental, e sobretudo, a educação ambiental de tendência
crítica, reafirme a sua identidade e compromisso com a construção de um
novo modelo societário em um território onde o conflito de interesses se
faz constante.

3. A EDUCAÇÃO AMBIENTAL CRÍTICA NA CONSTRUÇÃO DA


CIDADANIA AMBIENTAL

A educação ambiental busca provocar processos de mudanças sociais


e culturais que visam o reconhecimento, a sensibilização em face da crise
ambiental e o despertar para a necessidade urgente de mudar os padrões
de uso dos bens ambientais. Esse movimento se caracteriza pela “busca
de um novo ponto de equilíbrio, nova relação de reciprocidade entre as
necessidades sociais e ambientais”. 26
A educação ambiental tem um forte potencial de mobilização, o que
muitas vezes coopera para que ela seja utilizada como “estratégia de con-
servação e perpetuação das relações atuais de poder em nossa sociedade,
se constituindo como uma Educação Ambiental Conservadora”. 27
Romper discursos e práticas que concebem a educação ambiental
como estratégia para mudanças de comportamento é um de seus maiores
desafios. Para Loureiro28,

[...] é frágil querer mudar internamente uma pessoa desconsi-


derando o contexto, pois isso é ignorar que nos constituímos
como ser, em nossas individualidades, a partir de mediações e
condições históricas concretas (cultura comunitária e familiar,

1335
identidade de classes e de pertencimento a grupo social, insti-
tuições, relações econômicas, etc.).

A educação ambiental crítica propõe superar as abordagens conser-


vadoras que pregam, como exemplos, a somatória de boas práticas am-
bientais e a remediação de impactos negativos ao ambiente, por meio das
maravilhas da tecnologia, como estratégias para “salvar o planeta”. Ela
busca romper, ainda, com “a transmissão de conhecimentos ecológicos
ou conteúdos científicos estanques, sem correlação com o panorama e o
cenário político do contexto sócio histórico que vivemos”.29
De acordo com Loureiro, a educação ambiental crítica “parte do en-
tendimento de que a crise ambiental é indissociável do modelo social
vigente e das desigualdades sociais decorrentes deste”. Ela é contrária à
concepção ecológica da crise ambiental, que desconsidera que “a causa
constituinte da questão ambiental tem origem nas relações sociais, nos
modelos de sociedade e de desenvolvimento prevalecentes.”30

Para a macrotendência crítica, não basta lutar por uma nova


cultura na relação entre o ser humano e a natureza; é preciso
lutar ao mesmo tempo por uma nova sociedade. Não se trata de
promover apenas reformas setoriais, mas uma renovação multidi-
mensional capaz de transformar o conhecimento, as instituições,
as relações sociais e políticas, e os valores culturais e éticos31.

A educação ambiental crítica busca, por meio de sua proposta polí-


tico pedagógica, a mudança de valores e atitudes, formando um sujeito
ecológico capaz de identificar questões socioambientais e agir sobre
elas32”. Para tanto, faz-se necessária a busca por pelo menos três situ-
ações pedagógicas:

- efetuar uma consistente análise da conjuntura complexa da


realidade a fim de ter os fundamentos necessários para ques-
tionar os condicionantes sociais historicamente produzidos
que implicam a reprodução social e geram a desigualdade e os
conflitos ambientais;
- trabalhar a autonomia e a liberdade dos agentes sociais ante
as relações de expropriação, opressão e dominação próprias da
modernidade capitalista;
- implantar a transformação mais radical possível do padrão so-

1336
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

cietário dominante, no qual se definem a situação de degradação


intensiva da natureza e em seu interior, da condição humana33.

Objetivamente, significa dizer que o conceito central do ato educativo


deixa de ser a transmissão de conhecimentos34. Ele se orienta pela defesa
e produção de um ambiente educativo e social democrático e dialógico35,
que se pauta na busca pelo “desvelamento das relações de poder, dos
mecanismos ideológicos estruturantes da realidade e se instrumentalize
para uma inserção política no processo de transformação da realidade
socioambiental36”. Apoia-se ainda na práxis educativa, na atividade hu-
mana consciente dos processos de transformação do mundo e de auto-
transformação37.
A complexidade é um dos paradigmas que fundamentam a educação
ambiental crítica. Para Morin 38:

(...) a um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus:


o que é tecido junto) de constituintes heterogêneos inseparavel-
mente associados: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo.
Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido
de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações,
acasos, que constituem nosso mundo fenomênico [...].

O pensamento complexo coaduna com a multidisciplinaridade e a mul-


tidimensionalidade das questões ambientais, que não podem ser abordadas
por “olhares disciplinares e reducionistas39”. O pensamento complexo se
estabelece como requisito para o exercício da interdisciplinaridade, uma
vez que defende

a possibilidade de mover, conjugar, articular os diversos saberes


compartimentados nos mais variados campos do conhecimento,
sem perder a essência e a particularidade de cada fenômeno,
religando matéria e espírito, natureza e cultura, sujeito e objeto,
objetividade e subjetividade, arte, ciência, filosofia. Considera
igualmente o pensamento racional-lógico-científico e o mítico-
-simbólico-mágico. 40

A Teoria Crítica de Marx e da Escola de Frankfurt marcam os seus


fundamentos essenciais. De acordo com Layrargues: 41

1337
Do ponto de vista da teoria crítica, as relações sociais tendem
a ser assimétricas, desiguais, injustas, porque uns, para manter
os privilégios historicamente conquistados, valem-se do poder
econômico, político, jurídico e cultural, que têm a seu dispor,
enquanto outros se encontram cada vez mais pressionados pela
vulnerabilidade social e econômica, e agora também ambiental,
em um frágil equilíbrio para manter a coesão social.

Nesta perspectiva, a educação é um espaço político, campo de disputa


que cumpre o papel de ruptura com a alienação ideológica das condições
sociais, “evidenciando que as coisas nem sempre foram assim, e que não
têm por que continuarem assim sendo”. 42
As influências da teoria crítica chegam à educação ambiental por meio
da sua aproximação com a educação popular,

[...] que congregou e articulou diversas tradições político-ideoló-


gicas e pedagógicas, comprometidas com as lutas de resistência
e a emancipação das populações desfavorecidas e oprimidas,
como o camponês, o indígena, a mulher, o afro-americano, o
analfabeto e o operário indústria. 43

É neste contexto que a EA crítica pode oferecer “elementos para a


formação de um sujeito capaz tanto de identificar a dimensão conflituosa
das relações sociais que se expressam em torno da questão ambiental e
posicionar-se diante delas44”.
Assim, a educação ambiental crítica se volta para a ampliação do
conceito de cidadania, compreendido como “algo que se constrói perma-
nentemente, não possui origem divina ou natural, nem é fornecida por
governantes, mas que se constitui ao dar significado ao pertencimento
do indivíduo a uma sociedade em cada fase histórica45”.
Nota-se que este modelo de educação deve estar desprendido de
somente conquistar adeptos a determinada causa, na medida em que se
propõe a formar um cidadão crítico, que consegue enxergar as causas e
consequências das condutas do cotidiano, escolhendo qual trilha melhor
lhe convém.

1338
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A aproximação entre as temáticas do direito à cidade, justiça ambiental


e educação ambiental crítica, conforme o exposto, demonstra afinidade
quando levada em conta as situações que levam à expropriação de direitos
relacionada às camadas mais pobres da população.
Fica evidente que a questão financeira vendo sendo determinante ao
longo da história na definição dos locais de moradia e, em contrapartida
à exposição a situações de maior degradação ambiental. Perante esta ló-
gica, operada na perspectiva do modelo capitalista de desenvolvimentos,
os mais ricos monetariamente têm maior acesso às melhores parcelas da
cidade e poder para usufruir dos bens ambientais, o que inclui o consumo
de toda forma ou produto que a tecnologia atual é capaz de oferecer.
A conta a ser paga pelo uso dos bens ambientais é de todos. Entretanto,
as discussões levantadas a partir do presente trabalho evidenciam razões
pelas quais é possível afirmar que a conta tem sido “mais cara” para os
menos favorecidos. Para estas pessoas, sobra a possibilidade de instalar
suas moradias em encostas de morros, próximo aos lixões e ao esgoto a
céu aberto, tornando-se as vítimas das injustiças ambientais.
O movimento por justiça ambiental, assim como a tendência crítica
da educação ambiental, atuam na perspectiva da Ecologia Política, que
incluiu as questões sociais ao debate e ambiental e defende posições cla-
ramente anticapitalistas46. Parte da doutrina47 entende que a efetivação
do Estatuto da Cidade e, portanto, do direito à cidade, não implicaria em
ruptura com a lógica capitalista e mercantil de produção da cidade, mas
por certo restringiria as possibilidades de especulação imobiliária.
É neste contexto que se defende que, embora tenham posições contrá-
rias à ótica capitalista no que tange ao direito à propriedade reconhecer
a impossibilidade de se unir forças contra um modelo que não agrada a
ambos, é desistir de uma batalha. Não existem modelos perfeitos de Estado
e/ou de cidades, aliás, o próprio conceito destas expressões pressupõe um
cenário dinâmico, um permanente movimento de sístole e diástole, ora

1339
pendendo para um maior individualismo, ora pendendo para um maior
sentimento de coletividade. Os excessos, de ambos os lados, deixam ci-
catrizes profundas, difíceis de serem curadas.
A busca por pontos de encontro entre os temas abordados aponta para
um núcleo comum de ideias, indicando a possibilidade de fortalecimento
dos laços comuns. É incontroverso que as temáticas do direito à cidade,
da justiça ambiental e da educação ambiental crítica rejeitam a fatalidade
dos acontecimentos naturais, que alijam parte da população de direitos
garantidos a outros. Assim, como “ter que morar em uma encosta de mor-
ro” não é destino natural de uma pessoa, também o deslizamento desta
mesma encosta não é um fenômeno natural imprevisível. Uma família só
escolhe este lugar para morar porque não tem outro mais adequado, de
acordo com as circunstâncias do momento. E a permissividade do poder
público da manutenção daquela situação, indica ao menos, a falta de uma
política habitacional adequada, e no mais, a consciência de que se trata
de área fora de comércio.
Embora a educação não seja o único caminho capaz de promover
transformações sociais, sem ela estas transformações se tornam impos-
síveis. Neste sentido, é fundamental difundir um projeto político pedagó-
gico capaz de abarcar a dimensão social das questões ambientais, a sua
multidimensionalidade. Este projeto educativo não pode assumir o estado
de neutralidade, mas defender práticas que favoreçam a leitura crítica da
realidade, o posicionamento contrário ao saberes instituídos, que perpe-
tuam a degradação social e ambiental. A educação ambiental crítica nos
traz este olhar e propõem ampliar o exercício de cidadania, por meio do
qual indivíduos e comunidades se tornam capazes de intervir no ambiente
e contribuir para a construção de um modelo societário que possibilite o
acesso aos direitos e caminhe na construção da justiça ambiental.
Por fim, é importante destacar que gestão democrática de todos os
interesses da sociedade é um pilar que sustenta as teorias apresentadas.
É por meio do diálogo que elas se posicionam e defendem novas formas
de interação entre ambiente e sociedade. Adotar uma posição contrária

1340
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ao diálogo seria defender uma ideia de pensamento e modelo de desen-


volvimento que seja universal, desrespeitando o caráter diverso e mul-
tidisciplinar que configura o debate socioambiental e a luta por direitos
em nossa sociedade.

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NOTAS

1 Doutor em Direito da Cidade pela UERJ. Professor dos cursos de Graduação e Mestrado em Direito da UEL
– Universidade Estadual de Londrina. E-mail: miguel.etinger@gmail.com.
2 Médica Veterinária, MSc. Especialista em Educação Ambiental (CRHEA/USP São Carlos, SP). Professora do
Curso de Especialização em Economia do Meio Ambiente – Valoração, Licenciamento e Educação Ambiental
da UEL – Universidade Estadual de Londrina. Consultora em Educação Ambiental.
3 IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 132.
4 MARICATO, Ermínia. “Porque as metrópoles brasileiras rebelaram-se”. Outras mídias. Disponível em:
<http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/por-que-as-metropoles-brasileiras-rebelaram-
-se/>. Acesso em 27 ago 2013.
5 ROCHA, Júlio César de Sá. Direito às águas e racismo ambiental: gênero e raça/etnia e a extensão da cidadania
pelas águas. In: LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo (Org.). Gestão pública do ambiente e educação
ambiental: caminhos e interfaces. São Carlos: RiMa Editora, 2012, p. 104.
6 O “direito à cidade” pode ser caracterizado nos termos do artigo I.2 da Carta Mundial pelo Direito à Cidade,
redigido por diversas organizações ao redor do mundo, como: “O Direito a Cidade é definido como o usufruto
equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social; é um direito que
confere legitimidade à ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar
o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente a todos os
direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente e inclui os direitos civis, políticos,
econômicos, sociais, culturais e ambientais Inclui também o direito a liberdade de reunião e organização, o
respeito às minorias e à pluralidade ética, racial, sexual e cultural; o respeito aos imigrantes e a garantia da
preservação e herança histórica e cultural”.
7 BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade.
8 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
9 CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. “Educação, cidadania e justiça ambiental: a luta pelo direito à existên-
cia”. In: CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação Ambiental a Formação do Sujeito Ecológico.
São Paulo: Cortez, 2011, p. 166.
10 Ibid. p. 164.
11 ACSELRAD, Henri. Justiça Ambiental – novas articulações entre meio ambiente e democracia.
Disponível em: <http:www.justicaambiental.org.br>. Acesso em 14 ago. 2013.
12 ACSELRAD, Henri et.al. O que é justiça ambiental? São Paulo: Garamond, 2008.
13 IANNI, op. cit., p.7.
14 ROCHA, Júlio César de Sá. Direito às águas e racismo ambiental: gênero e raça/etnia e a extensão da
cidadania pelas águas. In: LOUREIRO, 2012, p. 111.
15 Ibid, p. 104.

1343
16 Ibid. p. 105.
17 TRINDADE, Thiago Aparecido. Direitos e cidadania: Reflexões sobre o direito à cidade. In: Lua Nova, São
Paulo, 87, p. 2012, p.8.
18 Ibid. p.8.
19 MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência.
São Paulo: Hucitec.1996, apud TRINDADE, op. cit., p.9.
20 TRINDADE, op. cit., p.11.
21 MARICATO, Ermínia. “Metrópoles desgovernadas”. Estudos Avançados, 2011, v.25, n.71, p.7-22.
22 MARICATO, Ermínia. O estatuto da cidade periférica. In: CARVALHO, Celso Santos; ROSSBACH, Ana Clau-
dia. (orgs.). O estatuto da cidade: comentado. São Paulo: Ministério das Cidades/ Aliança das Cidades,
2010, p.5-22.
23 TRINDADE, op. cit., p.11.
24 Ibid. p. 153
25 LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo; LAYRARGUES, Phlippe Pomier. Ecologia política, justiça e educação
ambiental crítica: perspectivas de aliança contra-hegemônica. In: Trab. Educ. Saúde, Rio de Janeiro, v. 11
n. 1, jan./abr. 2013, p. 64.
26 CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. “Educação ambiental no debate das ideias: elementos para uma EA
crítica”. In: CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação Ambiental a Formação do Sujeito Ecológico,
São Paulo: Cortez, 2011, p. 158.
27 ACCIOLY, Inny; SÁNCHEZ, Celso. “A educação ambiental crítica no enfrentamento dos desafios da política
ambiental contemporânea no parlamento brasileiro”. In: Rev. Eletrônica Mestr. Educ. Ambient. v.27, jul-
-dez.2011, p. 93.
28 LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo. “Problematizando conceitos: contribuição à práxis em educação
ambiental”. In: LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo; LAYRARGUES, Phlippe Pomier; CASTRO, Ronaldo Souza
de (orgs.). Pensamento complexo, dialética e educação ambiental. São Paulo: Cortez, 2.ed., 2011, p.154.
29 ACCIOLY; SÁNCHEZ, op. cit. p. 105.
30 LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo; LAYRARGUES, Phlippe Pomier. “Ecologia política, justiça e educação
ambiental crítica: perspectivas de aliança contra-hegemônica”. In: Trab. Educ. Saúde. Rio de Janeiro, v. 11
n. 1, p. 64, jan./abr. 2013, p.64.
31Ibid., p.68.
32 CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação ambiental no debate das ideias: elementos para uma EA
crítica. In: CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação Ambiental a Formação do Sujeito Ecológico.
São Paulo: Cortez, 2011, p. 157.
33 LOUREIRO; LAYRARGUES, op. cit., p.64.
34 GUIMARÃES, Mauro. Educação ambiental crítica. In: LAYRARGUES, Phlippe Pomier (ccord.). Identidades
da educação ambiental brasileira. Ministério do Meio Ambiente. Diretoria de Educação Ambiental. Brasília:
Ministério do Meio Ambiente, 2004, p. 31.
35 LIMA, Gustavo Ferreira da Costa. “Educação ambiental crítica: do socioambientalismo às sociedades sus-
tentáveis”. In: Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.1, jan./abr. 2009, p.148.
36 GUIMARÃES, op. cit., p. 33.
37 LOUREIRO; LAYRARGUES, op. cit., p.65.
38 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina; 2006.
39 LIMA, op. cit., p.148.
40 SANTOS, Silvana Sidney Costa; HAMMERSCHMIDT, Karina Silveira de Almeida. “Complexidade e a religação
de saberes interdisciplinares: contribuição do pensamento de Edgar Morin”. In: Rev Bras Enferm. Brasília,
jul-ago; 65(4): 561-5, 2012, p.564.
41 LAYRARGUES, Philippe Pomier. “Muito além da natureza: educação ambiental e reprodução social”. In:
LOUREIRO; LAYRARGUES; CASTRO, (orgs.). Pensamento complexo, dialética e educação ambiental.
São Paulo: Cortez, 2.ed., 2011, p. 77.
42 Ibid. p. 77.
43 LIMA, op. cit., p.148.
44 CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. “Educação, cidadania e justiça ambiental: a luta pelo direito de exis-
tência”. In: CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação Ambiental a Formação do Sujeito Ecológico.
São Paulo: Cortez, 2011, p. 163.
45 LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo. “Educação ambiental e movimentos sociais na construção da cida-
dania ecológica e planetária”. In: LOUREIRO; LAYRARGUES; CASTRO, op. cit., p.75.
46 Lima, op.cit.
47 Trindade, op. cit.

1344
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O direito à cidade e o fenômeno


da violência urbana formulações
teóricas em perspectiva multidisciplinar

Petrus Rodrigues Cabral1


Sâmara Iris de Lima Santos2
Orientadores: Luciano Nascimento Silva3
Xisto Serafim de Santana de Souza Junior4

1. O DIREITO à CIDADE E A VIOLÊNCIA


URBANA: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR

Os efeitos da revolução industrial sobre a cidade corresponde ao


surgimento de fenômenos complexos superando questões tradicionais
como moradia e infraestrutura tem repercutido em uma verdadeira crise
do ambiente urbano. Entre os “novos” problemas sociais desses espaços
destacam-se a violência, segregação e mobilidade. Esta crise, decorrente
do forte adensamento populacional, associado à falta de infraestrutura e
planejamento adequado às novas velocidades na cidade, tem propiciado
novas conjunturas quanto à produção e ao consumo do espaço urbano. O
imediato, em detrimento da vivência, tem sido um dos principais fatores
que vêm modificando o “sentir a cidade” e, consequentemente, o pensar
sobre o seu futuro. Mais ainda, uma “cegueira” social quanto ao império
do tempo presente, o tempo presente da cidade.
O fato é que o direito à cidade, que durante um bom tempo esteve limi-
tado ao acesso aos serviços, infraestrutura e equipamentos, necessidades
básicas para a vivência no habitat urbano, torna-se, na atualidade, algo
mais complexo e de difícil acessibilidade, devido, principalmente a falta
de sensibilidade do poder público que na busca incessante pelo desen-

1345
volvimento tem disponibilizado a cidade aos interesses mercadológicos
dos empreendedores. Por outro lado, a sociedade civil sente- se cada vez
mais deslocada do cotidiano urbano, tendo em vista que seu direito ao
uso e acesso a este espaço marginaliza-se com a atuação dos agentes
empreendedores. Não obstante, o binômio público-privado tem se apre-
sentado como entrave ao reproduzir um sentido de cidade problemática
e defeituosa, facilitando, com isso, a perda da memória sobre o espaço
urbano e a criação de perspectivas para o seu futuro.
Em contraposição a isso, surgem alguns nichos de resistência que, pau-
tados na valorização do imaginário, tentam reproduzir novas perspectivas
para o desenvolvimento da cidade e a reestruturação de sua identidade.
Ao estimular o uso da cidade como de interesse comum – uso comum –,
esses nichos passam a volver o estudo sobre o desenvolvimento urbano,
tendo como ponto de partida o pensar o futuro desses espaços, que a cada
dia ganham mais adeptos. Tais nichos correspondem às redes de desen-
volvimento urbano, subdivididas em três grandes eixos: redes de cidades
saudáveis, redes de cidades educativas e redes de cidades na luta contra a
pobreza; todas pautadas na perspectiva do desenvolvimento sustentável,
caracterizando-se, portanto, como rede de cidades sustentáveis.
O direito à cidade ou à cidadania passa a ser, portanto, um dos princi-
pais vetores das propostas de desenvolvimento urbano, uma vez que as
propostas de planejamento passam a levar em consideração a valoriza-
ção do indivíduo uma vez que segmentos da sociedade organizada são
chamados a pensar o futuro e a exercer o papel de coadministradores dos
espaços públicos, especialmente nos grandes centros, que contam com
uma sociedade ideologicamente mais ativa e compromissada com a luta
pelos interesses coletivos.
Nesse sentido, no âmbito do planejamento urbano, é possível eviden-
ciar pelo menos três estágios de políticas públicas: o primeiro, voltado
para criação de regulamento de uso e de responsabilidade pelo uso e
ocupação dos espaços; o segundo, voltado para a montagem de estrutura
de proteção e de reparação das áreas modificadas; e, o terceiro, voltado

1346
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

para a influência da sociedade, qualificando-a como corresponsável pelo


desenvolvimento sustentável.
O direito a cidade que pareceu durante muito tempo como utópico
na sociedade pós- revolução industrial, reaparece no debate acadêmico
e político como um ideal de sustentabilidade para o espaço urbano. Essa
nova realidade aparece especialmente nas cidades contemporâneas, com
o advento dos movimentos socioespaciais, que passaram a reivindicar a
cidade, não apenas como matéria física, mas o seu sentido urbano (rela-
ções imateriais). Neste sentido, o pensamento de Lefebvre (2001a), sobre
o direito à cidade, começa a ser delineado, deixando apenas de se colocar
no campo filosófico.

Das questões da propriedade da terra aos problemas da se-


gregação, cada projeto de reforma urbana poe em questão as
estruturas, as da sociedade existente, as das relações imediatas
(individuais) e quotidianas, mas também as que se pretende
impor, através da via coatora e institucional, aquilo que resta da
realidade urbana [...] A estratégia urbana baseada na ciência da
cidade tem necessidade de um suporte social e de forças políti-
cas para se tornar atuante. Ela não age por si mesma. Não pode
deixar de se apoiar na presença e na ação da classe operária, a
única capaz de pôr fim a uma segregação dirigida essencialmente
contra ela. (Lefebvre, 2001b, p. 112)

A Constituição Federal de 1988, destinada a assegurar o exercício


dos direitos coletivos e individuais, prevê como garantias fundamentais
a igualdade, a segurança e a propriedade, esta última, engloba o sentido
expresso da função social. É preciso evidenciar que, o caráter de função
social abrange acima de tudo aspectos qualitativos que vão “além da
dinâmica do uso do solo, outras dinâmicas entre as quais culturais, ques-
tões de gênero, de etnia, do trabalho e suas relações, do uso do espaço
público, da apropriação e uso do espaço coletivo, da segurança de vida”.
(RODRIGUES, 2005, p.107).
No que se refere à violência urbana esta remonta às organizações so-
ciais mais antigas. De fato, durante as invasões Bárbaras, na Idade Média,
a ausência de segurança nas cidades, os mais fortes passaram a dominar
a terra pelo fato de apresentarem mais técnicas de guerra, resistência e

1347
defesa. Sendo assim, os que não se encaixavam nos ditames sócias pré-
-estabelecidos, eram excluídos das cidades, que, cercadas de muralhas e
em constante vigilância, expulsavam os mesmos, e obrigava-os a construir
suas vidas fora da convivência social antes formada.
O espaço urbano da cidade capitalista tem cada vez mais apresentado
em sua estrutura características complexas, a exemplo dos processos
segregacionistas. Todavia, a realidade das segregações e novas feições
urbanas, deixaram de ser apenas relacionadas com o todo urbano, aden-
trando inclusive os espaços de uso e acesso coletivos.
Em uma de suas frases, Henri Lefebvre afirmou, que “A cidade não é
apenas uma linguagem, mas uma prática” (BASSUL, 2002a). Compreen-
demos que esse conceito traduz totalmente a ideia de direito à cidade,
mesmo porque, como a produção do espaço urbano vem sendo formada
e, consequentemente distribuída, em função do modelo de sociedade em
construção, o direito tem a finalidade de pensar e esquematizar a função
social das cidades, bem como a concretização da ação cidadã, das polí-
ticas urbanas, do controle social dos membros da sociedade e luta pela
ausência da exclusão social, se não o faz, pelo menos deixou positivado
o direito à cidade, com as garantias coletivas e individuais descritas na
Constituição Federal.
Já no século xVIII, Jean-Jacques Rousseau conceituava e defendia a
ideia da terra como fator de injustiça social: “O primeiro que, cercando
um terreno, lembrou-se de dizer: “Isto me pertence”, fundando, portanto,
a estruturação da sociedade civil; deixando claro de que guerras, crimes,
impurezas e tragédias teria poupado ao gênero humano aquele que,
arrancando as cercas e atulhando os fossos, tivesse gritado aos seus se-
melhantes: “Guardai-vos de escutar este impostor. Estais perdidos se vos
esqueceis de que os frutos a todos pertencem e a terra não é de ninguém”
(ROUSSEAU, 1973).
Embora as lutas travadas no transcorrer de dois séculos tenham trans-
formado as relações sociais, estas, em sua maioria advindas das causas
iníquas identificadas por Rousseau, pois se naquele tempo os homens

1348
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

brigavam e dividiam-se por consequência das propriedades fundiárias,


atualmente divergem com as cidades, dividindo-as, e exclui os que as
fizeram e procuram nelas abrigo.
O Pós-Revolução Industrial, trouxe preocupações centralizadoras aos
que sofrem e combatem a injustiça social como, por exemplo, a questão
fundiária urbana que, remanescia por enfatizar o polo da riqueza que
migrou da terra para os sistemas de máquinas e fábricas, logo depois,
vem à revolução informacional com a tradução do conhecimento e da
tecnologia. Tal influencia repercutiu na necessidade de se promover a
luta pela reforma urbana.
Segundo Maricato (1997), no Brasil o Movimento pela Reforma Urbana
surgiu “de iniciativas de setores da igreja católica, como a CPT - Comissão
Pastoral da Terra”, que se dedicava a lutar pela classe dos trabalhadores
no campo, passando, a promover encontros destinados a “auxiliar a
construção de uma entidade que assessorasse os movimentos urbanos”
no Rio de Janeiro, isso, no final da década de 70.
Portanto, em meados de 2001, as associações e entidades que outrora
se articulavam, obtiveram assim, depois de doze anos de tramitação, a
aprovação de uma lei federal capaz de modificar a reforma urbana. Nasce
então, o chamado “Estatuto da Cidade” (Lei Nº. 10.257, de 10 de julho de
2001)5 propiciando um amontoado de expressivos instrumentos que, se
praticados pelos governantes e movimentos sociais transformam o “direito
à cidade” (Lefebvre, 2011c) num efeito substancialmente concreto, pois
a lei define esse direito como sendo “o direito à terra urbana, à moradia,
ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gera-
ções”. Mesmo que as estruturas legais, usadas isoladamente, não tenham
eficácia nem sejam eficientes para transformar as condições ou situações
sociais, acreditamos que o Estatuto da Cidade tem utilidade totalmente
especial para reduzir o “apartheid social” imposto as cidades brasileiras,
mesmo que essa missão seja imensa, cansativa e interminável.
Um ponto primordial nesse eixo é pensar como as cidades estão sendo

1349
apresentadas. Milton Santos percebeu que, no curso da globalização tecno-
lógica precisava-se de “renascimento do sentido de Nação”, concordando,
portanto, com Henri Lefebvre, que em 1969 denominou as cidades como
lugar do “encontro”, como espaço de formação e construção. Para ambos,
a cidade não poderia ser desassociada do “urbano”, pois seria esta última,
que projeta a realidade do “uso”. Assim, são as práticas socioespaciais
que dariam concretude ao que chamamos de cidade.
Entretanto, as cidades ao mesmo tempo em que são apresentadas como
espaço provocador de identidades, são também apontadas como objeto
manipulável do mercado territorial, ao realizar ações segregacionistas.
Segundo Seixas (2003a, p.10) os ‘equipamentos urbanos’ apresentam-se
como ‘dúplices’, por ter como funções principais o “consumir, habitar,
trabalhar” contrapondo com a visão do “divertir-se; imaginar-se; realizar-
-se”, o autor define ainda que “esta nova formula que se aplica na cidade
contemporânea nos modelos arquiteturais que enformam as principais
funções sociais: habitar, trabalhar e divertir-se”.
O que vivenciamos cotidianamente como pura prática é o percurso
“trabalho-casa-trabalho” (SEIxAS, 2003b, p.6,). Porém, nas sociedades
urbanas atuais, o medo tem favorecido a construção de novas práticas
socioterritoriais e socioespaciais. Esse novo modelo, tornou- se expressa-
mente notável por conta do medo, resultado tanto da violência física como
aquela de origem imaterial. Assim, os lugares ora assolados pelos convívios
familiares, passam a ser territorializados por novos grupos sociais, que
ao exercerem neste espaço suas condutas, influenciam o distanciamento
dos espaços da cidade, devido a suas práticas criminosas.
A violência, portanto, se caracteriza como um fenômeno que não
apenas atua na administração de bens e comprometendo a integridade
física, como também a partir de simbolismos.

Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários


atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa,
causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis,
seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral,
em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais
(MICHAUD, 2001, p. 10).

1350
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Desse modo, a violência passa a ter domínio sobre a população e nos


diversos espaços da cidade. Percebe- se que além das múltiplas relações
territoriais que são agora, configuradas no ambiente urbano, tem-se a
relação de depredação, inclusive dos espaços públicos, tendo em vista que
são, na maioria das vezes, os espaços que mais sofrem com o abandono
das práticas territoriais. “A vida nas cidades se transforma [portanto] num
estado da natureza caracterizado pelo domínio do terror, acompanhado
pelo medo onipresente” (BAUMMAN, 2007, p. 78).
Ao tornar-se uma realidade comum a todos os espaços urbanos, a
violência passou a ser concebida como um dos principais “problemas
para a sustentabilidade urbana”. Percebe-se, com isso, um isolamento
sutilmente implícito, construído a partir da ineficácia das políticas públi-
cas, políticas essas que, ao invés de serem majoradas e consolidadas em
normas constitucionais, não respeitam o estado democrático de direito,
previsto em nossa Constituição Republicana.
Conforme José Roberto Bassul, o objetivo da política urbana, definida no
Estatuto da Cidade como sendo a de “ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade”, subdivide-se em quatro propósitos essenciais,
são eles: “promover a gestão democrática das cidades; oferecer mecanis-
mos para a regularização fundiária; combater a especulação imobiliária;
e assegurar a sustentabilidade ambiental, social e econômica dos núcleos
urbanos” (BASSUL, 2002b).
No Brasil, de acordo mapa do Instituto Sangari (2012a)6, o fenômeno da
violência passou a ser caracterizado como uma disseminação da violência,
deixando de ser exclusiva das capitais adentrando em estados interioranos.
O perfil da violência mudou, tendo em vista que determinados estados que
detinham índices alarmantes passaram a combater com tecnologias avan-
çadas a criminalidade, paralelamente, estados interioranos têm crescido
economicamente, porém sem conseguir combater os focos da violência,
consequentemente, tornam-se alvos de atração desse fenômeno.
Diante disso, pode- se observar a realidade da Paraíba que passou a
ocupar a 6ª posição no ranking dos estados com mais índices de homicí-

1351
dios, ficando à frente inclusive da Bahia (7ª) e Rio de Janeiro que ocupa a
17ª posição (WAISELFISZ, 2012, p. 25). Comprovando assim, o novo perfil
da violência no país.
A cidade de Campina Grande apresenta, conforme o IBGE (2010), uma
população em torno de 385.213 habitantes. Entretanto, o fenômeno da
violência também tem fornecido mudanças socioespaciais significantes
na cidade. De acordo com Santos (2011a, 2012)7, a presença de crimes,
especialmente em bairros centrais da cidade, tem resultado em novas
práticas socioterritoriais por parte dos habitantes. O Mapa do Instituto
Sangari (2010), mostrou que a posição de Campina Grande com relação
a homicídios de jovens ficou em 10º lugar, ficando a frente de Vila Velha
- ES (20º), Diadema – SP (27º), ambas, cidades com número aproximado
de habitantes. O mapa também mostra que está a frente de países como
Costa Rica, com 4 milhões de habitantes e 16 homicídios; Japão, com
126 milhões de habitantes e 57 homicídios; Espanha, com 43,3 milhões
de habitantes e 27 homicídios; e, Itália, com 58 milhões de habitantes e
31 homicídios.
Apesar de interiorana, Campina Grande possui em seu histórico retra-
tos de uma cidade impulsionada para o desenvolvimento. Tornou-se um
“espaço socioeconômico significativo no conjunto do Estado da Paraíba
entre o final do século xIx e o começo do século xx, a partir, da redefinição
do eixo dos transportes e a consolidação da matriz comercial-algodoeira”
(OLIVEIRA, 2009, p. 12). Porém, durante o período do Estado Novo, a
cidade passou a evidenciar a crise do ciclo regional agroexportador, sua
descapitalização, migração, regressão e estagnação. Com a crise do ciclo
do algodão, a cidade passa a atuar no setor industrial, o que acarretou em
transformações importantes (DINIZ, 2009), especialmente com formação
de duas zonas industriais nas décadas de 1940 e 60, ambas localizadas
em eixos rodoviários, próximo ao Açude Velho e outra no Açude de Bo-
docongó, cruzando a cidade. Com isso começou a ocorrer os primeiros
sinais de descentralização de algumas de suas atividades econômicas.
Na atualidade, a cidade apresenta- se como importante espaço urbano

1352
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

estratégico para a Paraíba, atraindo cotidianamente pessoas advindas de


diversas cidades para usufruírem de seus serviços de saúde, educação e
comércio. Contudo, no mesmo momento em que presencia tais práticas
territoriais, vivencia por outro lado, os resultados da violência interferin-
do no direito a cidade, seu uso e consequentemente na reprodução de
práticas socioespaciais.
Ao incidir sobre a cidade de Campina Grande, a violência passa a in-
terferir na reprodução da identidade urbana, por construir no imaginário
dos habitantes sentimentos que os fazem excluir os espaços da cidade,
assim, as práticas de mobilidade urbana, pertencimento com os locais,
acessibilidade entre outras, tornam- se reféns das sensações que são
proporcionadas pelo medo, assumindo posições contrárias a realidade
do direito à cidade.
Esse fato é notório em Campina Grande, onde foi possível evidenciar,
através de pesquisas sobre violência urbana (SANTOS, 2011b, 2012) que
de fato a violência tem contribuído na perca com a identidade dos mais
diversos espaços da cidade. Neste sentido, a cidade acaba tornando- se
produto e refém do medo e insegurança, ao serem observadas novas prá-
ticas territoriais em decorrência desse fenômeno, corroborando na perca
de sustentabilidade urbana.

2. ANáLISE SOBRE A INFLUÊNCIA DA VIOLÊNCIA URBANA


NA REPRODUÇÃO DE PRáTICAS SOCIOESPACIAIS EM
CAMPINA GRANDE-PB: TENDÊNCIAS E DESAFIOS EM
BUSCA DO DIREITO à CIDADE SUSTENTáVEL

Ao se configurar como um fenômeno complexo, a violência reproduz


não apenas a falta de segurança do indivíduo com o restante da cidade,
mas interfere na promoção do seu direito a viver a cidade. Isso quer dizer
que, ao interferir no espaço urbano, a violência, seja ela material ou físi-
ca, provoca a insustentabilidade da cidade, ao retirar do cidadão o pleno
direito de uso e acesso aos diversos espaços da cidade, inclusive aqueles

1353
de uso público. Assim, ao se materializar na cidade, esse fenômeno passa
a desconstruir as relações de identidade, provocando a disseminação de
novas práticas socioterritoriais.
Entretanto, é interessante salientar que a violência deixou de ser ex-
clusiva dos grandes centros urbanos e passou a caracterizar a realidade
também, de cidades médias e pequenas. Segundo Hughesa (2004), a partir
dos anos 90, a violência surgiu como tema central nas discussões sobre
seu crescimento e abrangência, bem como, um dos principais questiona-
mentos acerca das condições sociais e urbanísticas das cidades. Com a
exclusão social e a precária condição da periferia, começa-se a eclodir os
riscos, notadamente advindos da vulnerabilidade em que a sociedade se
encontrava, a criminalidade passa a ser traduzida em ambiente de rede,
tendo como figura tipológica principal o homicídio, a tradução maior é a
elevação do índice de homicídios, é como se fosse um “efeito dominó”,
ou seja, a violência no meio urbano e os homicídios estão vinculados ao
desabrochar do trafico de drogas e a disseminação de armas de fogo.
Em alguns países, como é o caso do Brasil a violência urbana tem
emitido mais vítimas do que países em guerra. Assim, o direito à vida,
assegurado pela Constituição tem se tornado cada vez mais longe da
realidade dos aglomerados urbanos. Além disso, o art. 3.º, incisos I, II, III
e IV da Constituição Federal/1988, apresenta os objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil, garantindo, portanto, “a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária; o desenvolvimento nacional, a
erradicação da pobreza e a marginalização, redução das desigualdades
sociais e regionais; e por fim, promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discrimina-
ção”. Estes objetivos foram disciplinados de maneira infraconstitucional
pelo Estatuto da Cidade, adotando uma soma de instrumentos e medidas
para o alcance de uma democracia participativa, partindo da gestão de-
mocrática das cidades. Dessa forma, os habitantes teriam liberdade de
acesso às condições e melhorias, dignidade de vida e, consequentemente,
o desenvolvimento qualitativo das cidades sustentáveis e do direito.

1354
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Entretanto, a realidade é que a violência quando materializada no


espaço urbano, tende a desconstruir no imaginário do individuo as rela-
ções de identidade, esse fato é comprovado quando se identifica a ma-
terialização de novas formas de mobilidade urbana, ou seja, a violência
além de provocar processos significativos de reestruturação nos modos
de viver a cidade, também tem favorecido na “desurbanização”, fruto da
desorganização no modo de habitar dos grandes condomínios fechados,
isolando assim, a ideia funcional urbanística, quais sejam: de trabalhar,
morar, circular livremente e ter acesso à cultura e lazer. Neste sentido,
pautados a partir do marketing territorial, estes “novos produtos urbanísti-
cos”, especialmente os conjuntos habitacionais, a exemplo dos Alphavilles,
acabam desestruturando a ordem urbana, ao apresentarem modelos de
moradia dotadas de segurança e todas as funções necessárias para que
os indivíduos acabem não usufruindo a cidade “exterior” aos seus muros.
Conforme relatado no Mapa do Instituto Sangari (2012b) essa nova
realidade é cada vez mais presente em território nacional, onde os
grandes centros têm, especialmente através de recursos tecnológicos,
diminuído os índices de criminalidade. Porém, o resultado disso, tem
sido o aumento da violência em cidades interioranas. Não é à toa, que
a cidade de Campina Grande localizada no interior paraibano, apesar
de possuir porte médio, tem sido apontada no Mapa da violência, com
crescente aumento da criminalidade.
O fato do aumento da violência na cidade pode ser constatado tam-
bém, através de pesquisas sobre violência urbana (SANTOS, 2011c, 2012).
Diante de pesquisas, tendo como base Dados Oficiais da Delegacia de
Polícia Civil da cidade, questionários aplicados junto à população (total
de 100), uma hemeroteca (realizada a partir de dois jornais de circulação
estadual) e entrevistas individuais (população), observou- se índices eleva-
dos de homicídios, tráfico de drogas e assaltos em determinados bairros,
especialmente o Centro da cidade e o bairro do Catolé (MAPA 01)8. Este
último se configura como um dos bairros mais importantes da cidade, por
possuir comércios importantes, a exemplo de shoppings centers e por ser
próximo do Centro da cidade.

1355
Autoria: SANTOS, 2011.

Diante de pesquisas (SANTOS, 2011d- 2012) sobre a violência na cida-


de de Campina Grande, observou- se que o perfil da mesma tem nos três
últimos anos, deixado de ser exclusiva de bairros marginalizados e tem
adentrado em espaços importantes no contexto urbano da cidade. O fato
é que, foi possível constatar que a violência tem aumentado nos bairros
do Centro da cidade e do Catolé (próximo ao Centro). Ambos os bairros
são destaque no contexto urbano por serem, ao mesmo tempo, locais de
comércio e detentores de espaços públicos importantes.
Como podemos observar a propagação frenética da violência e da cri-
minalidade na cidade de Campina Grande, vem, nos últimos anos, sendo
instigada, de modo determinante, por ter vinculo imediato com a proble-

1356
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mática socioeconômica e no âmbito histórico (cultural e educacional),


evidenciando assim, o sistema desarmônico da urbanização.
A maioria dos casos de criminalidade evidenciada no período de
2010–2012 tem estreita ligação com o tráfico de drogas na cidade, assim
os crimes de assaltos e homicídios aparecem como resultado dessa prática
criminosa. Entretanto, a violência tem deixado apenas de interferir na vida
de suas vítimas diretas favorecendo a diminuição das práticas socioterri-
toriais, ou seja, tem favorecido a não vivencia de diversos espaços, espe-
cialmente aqueles de uso e acesso coletivo, fazendo com que as pessoas
passem a reproduzir novas condutas diante do medo e da insegurança.
Conforme também foi fitado, os principais sentimentos das pessoas na
cidade tem sido de fato, insegurança e medo. Segundo a maioria dos pes-
quisados, eles não possuem mais o direito de andar livremente na cidade,
assim, se tornam reféns do medo, ocasionando, portanto, a reedição de
novas condutas diante das “paisagens de risco” que vislumbram.

(...) em uma sociedade marcada por profundas desigualdades,


os padrões de dominação que de maneira severa e recorrente
permearam a vida do país, pautaram-se, ao longo de quase toda a
história, por um não reconhecimento da intensa heterogeneidade
e diversidade que marca as classes populares brasileiras. (SILVA,
1990 apud O’DONNEL, 1988).

Segundo as entrevistas da pesquisa, os moradores da cidade acreditam


que a cidade de Campina Grande é de fato, uma cidade em desenvolvi-
mento. Porém, existe uma conjuntura de problemas que por serem plurais
acabam se interligando e contribuindo com o fenômeno de violência na
cidade. Conforme as palavras de um dos entrevistados9: “tem os seus
problemas e que precisam ser resolvidos. São problemas plurais, pro-
blemas de violência, problemas de falta de habitação que não deixa de
ser uma violência, problema de crianças abandonadas, de pessoas sem
teto, o desemprego também é outro problema na cidade”. Mesmo sendo
presente o discurso de que a violência é algo característico de diversas
cidades do mesmo porte, existe a imagem de que a cidade é violenta, sendo
consequência inclusive do desemprego que acaba afetando a população,
destacando o grupo de jovens.

1357
Vale ressaltar que o discurso da falta de segurança nos espaços da
cidade tem haver, conforme os resultados obtidos, na falta de medidas
preventivas, principalmente aquelas advindas do poder público no não
cumprimento das leis, assim não existem medidas preventivas, corrobo-
rando no aumento dos focos de violência na cidade.
A norma existe como espécie de punição para os infratores que não a
cumpre, submetendo os mesmos às exigências da lei por órgãos institu-
cionalizados pelo Estado. A lei torna-se mais eficaz e efetiva se realizada
de forma participativa, sendo, sua execução e elaboração reguladas além
dos direitos, ou seja, trazendo consigo, também, o cumprimento dos
deveres. Em uma de suas colocações, Raffaele de Giorgi atentou que “os
princípios possibilitam um tratamento diferenciado, variável, da valora-
ção social do ilícito” (2007a, p.32), ou seja, por causa do direito que nos
é imputado é que surgem as ações, o direito só “caminha” por ter como
canal primordial as ações, sendo assim, essas ações executam-se ao ser
imposta a lei aos indivíduos.
A democracia brasileira progrediu na medida em que gerou as leis, por
exemplo, o Estatuto da Cidade, corroborando com o direito à participação,
institucionalizando desse modo, ductos para o diálogo entre a sociedade
civil e o poder público, tornando viável o exercício colaborador das fun-
ções do Estado. Por outro lado, “a legitimidade da atuação desses canais
de participação, que é diretamente proporcional à sua apropriação pela
sociedade civil, ainda representa um desafio”. (DIDIER; ZANETI, 2009,
p.226- 227).
Outro fato é que as pesquisas demonstraram que, as práticas criminosas
como o aumento do tráfico de drogas em alguns espaços têm favorecido
interferências quanto à mobilidade das pessoas, as mesmas não estão
sentindo mais segurança em se locomover com tranquilidade nos ambien-
tes de Campina Grande. De acordo com um dos sujeitos entrevistados10:
“Tamanha a turbulência que existe hoje na cidade, não tem mais a tran-
quilidade. Eu particularmente me sinto torturado”. De acordo com outro
entrevistado “A gente não tem mais o direito de andar livremente, a gente

1358
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

fica preso de si mesmo”. Comprovando a relevância que tal fenômeno


reproduz para o fomento das práticas sócioespaciais dentro da cidade.
Assim, a reprodução no imaginário social de que os ambientes fechados
são aqueles que fornecem segurança, tem se tornado uma realidade no
cotidiano da cidade. Principalmente espaços públicos abertos, a exemplo
de praças, são aqueles onde a vulnerabilidade de atos criminosos é maior,
conforme um dos entrevistados na pesquisa “hoje em dia ninguém pode
ta numa praça, que a violência é enorme. Senta hoje em dia numa praça
dessas, mas quando pensa que não é abordado”.
Isso se deve ao fato do aparecimento constante de grupos que por causa
do tráfico de drogas especialmente, tem ameaçado e efetuado pequenos
delitos na cidade. Desse modo, as pessoas relatam que com a insegurança
em Campina Grande, preferem não andar livremente, ficando aprisionadas
inclusive, em suas próprias casas que na maioria contém características de
verdadeiras fortalezas dotadas de segurança. Assim, os espaços públicos
são distanciados do convívio dos habitantes retirando a conotação real
de espaços destinados ao livre acesso e circulação.
O pensamento de Lefebvre é considerar que os espaços podem influen-
ciar e fomentar comportamentos danosos à sociedade urbana, perigo este
presente nos atos criminosos. Tal fato é observado em Campina Grande,
segundo as pesquisas, os espaços públicos abandonados, a exemplo das
praças, ao se apresentarem com “paisagens de risco”, acabam sendo des-
povoados e degradados, contribuindo com a impressão de insegurança,
beneficiando, consequentemente, os diversos acontecimentos de violência
urbana. Já nos espaços não excludentes e seguros que seriam, portanto,
espaços “semi- públicos” (Shoppings Centers, Galerias etc.) dispõe- se de
harmonia e integração social, representando assim a “segurança” para as
práticas socioespaciais.
Neste sentido, a violência é apresentada na cidade especialmente nos
espaços abertos a exemplo das praças, onde as pessoas sentem-se mais
vulneráveis a atos criminosos. A violência tende a afetar também no co-
tidiano dos cidadãos, pressionando-os a fomentarem novas condutas no

1359
espaço para que não venham a se tornar vitimas do mesmo, conforme
ressaltado pelo entrevistado11 “então evitar os espaços públicos hoje é uma
maneira de inibir o ataque de criminosos”. Pode- se analisar também, que
de fato a violência tem interferido no uso dos espaços públicos, uma vez
que não apenas os delitos de maior complexidade, mas também os meno-
res e até mesmo a própria reprodução do fenômeno no imaginário social,
contribui no distanciamento quando as práticas espaciais e territoriais.
Além da violência psicológica que sofrem os habitantes em decorrên-
cia do medo, existe também o aumento da depreciação de determinados
espaços de Campina Grande, com destaque aos abertos, tendo em vista
a falta de segurança e a ocorrência constante de pequenos delitos efetu-
ados especialmente por usuários de drogas, que apesar de não afetarem
com maior intensidade os habitantes, também os inibem e propagam o
medo, pois embora criados para que os habitantes possam contemplar a
cidade e desempenharem o livre lazer, tem na verdade sido distanciados
do cotidiano dos cidadãos, uma vez que, a inibição de seu uso é a única
maneira encontrada para que não venham a ser vitimas de atos criminosos
que possam gerar danos a suas vidas.
Aqui devem ser colocadas em destaque as políticas públicas estabele-
cidas pela Constituição Federal de 1988 que, trouxe normas específicas,
estas, voltadas à construção e desenvolvimento das funções sociais da
cidade que têm nas ações promovidas pelo poder estatal a tradução do seu
exercício legítimo pela comunidade. A ideia é a supremacia do interesse
público que figura como exercício de um direito público normativizado
na Constituição.
Sendo assim, pode-se analisar que a violência tem contribuído para a
expansão do medo. O que significa dizer que se identifica uma consequente
redução dos espaços públicos como locais destinados ao livre acesso e
lazer na cidade, tornando-se espaços de depreciação e distantes no con-
vívio dos habitantes. Em detrimento desse efeito, tem-se expandido na
violência urbana o que chamamos de “medo social”. Apesar desse medo
ser edificado por parcela da sociedade, acaba gerando reações adversas,

1360
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

atingindo a coletividade como um todo. O instrumento de coerção aplicado


por determinados grupos é o medo, este, é consequência imediata devido
à ausência de segurança, propiciando por sua vez, a modificação brusca
do território que altera a vida cotidiana da população (LEFEBVRE, 2011d).
Logo foi possível identificar, segundo as pesquisas (SANTOS, 2011e -
2012), que os principais espaços públicos que refletem o medo são praças
centrais (Praça Clementino Procópio e Praça da Bandeira), entretanto
apesar da atração que exercem no cotidiano dos cidadãos, por represen-
tarem espaços de lazer e, principalmente, acesso a transportes públicos.
No entanto, a efetivação do Tráfico de drogas no Centro da cidade, tem
reproduzido pequenos furtos que são destacados pela população, bem
como homicídios que foram citados nos Dados Oficiais. Toda essa con-
juntura, tem colocado em risco a própria função que o mesmo exerce,
tornando- se espaço onde o medo tem sido propagado e novas territoria-
lidades têm emergido.
O direito à cidade surgiu para apontar que a simples ligação entre
espaço e sociedade não é satisfatório para instruir a realidade da vida ur-
bana. Todavia, essa semelhante ligação não pode mais ser vivenciada de
forma desconhecida no núcleo científico. A missão primária do direito à
cidade é erigir um urbanismo fundamentalmente garantidor de melhorias
qualitativas para a população, asseverando espaços seguros e aptos para
o uso da sociedade de maneira integralizada.
Com referência à política urbana, o Estatuto da Cidade ingressou no
mundo jurídico como forma de consolidar as leis aos ditames constitu-
cionais, ampliando então, a operacionalidade jurídica para a ação muni-
cipal, antes instituída pela Constituição Federal. A partir da edificação da
denominada “Carta Mundial do Direito à Cidade”, alicerçou-se o direito à
cidade, reparando a urgência de um protótipo sustentável de sociedade e
de vida urbana. Em se tratando de sustentabilidade urbana, o Estatuto da
Cidade determina o direito à cidades sustentáveis como sendo o direito
à “terra urbana, ao transporte e serviços públicos, ao trabalho, ao lazer,
ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, programas e planos

1361
de desenvolvimento urbano, realização e acompanhamento de projetos,
e a gestão democrática por via participativa da população” (Fórum Social
Mundial/ 2001)12.
O direito à cidade determina-se como desfrute justo das cidades, in-
corporado aos princípios de sustentabilidade e da justiça social. Como
direito coletivo dos habitantes urbanos, em especial dos grupos desajuda-
dos e vulneráveis, objetiva-se em alcançar o referto exercício do direito,
conferindo-lhes legitimidade de ação e organização para um modelo de
vida apropriado.
O que nos deixa perplexos com relação ao amontoado de aconteci-
mentos, advindos da violência e da criminalidade na cidade de Campina
Grande, é que, além da população explicitar o sentimento de medo e
insegurança vividos habitualmente por ausência principal de serviços
públicos como segurança, essa sensação correlaciona-se com a impressão
deixada pela atuação dominante de novos grupos, estes, criminosos. A
atuação desses grupos repele o direito à cidade, direito antes adquirido
pela população através do Estatuto da Cidade, ou seja, além da ocorrência
de eventos criminosos como, por exemplo, fixação do tráfico de drogas,
o alto índice de roubos, furtos e homicídios; estão sendo abduzidas as
condições que os habitantes têm de satisfazer-se de tal direito.
Assim, foi possível perceber de acordo com as pesquisas que, de fato,
a violência tem interferido no uso e direito à cidade, uma vez que o direito
a mesma vai além da mera existência de seus objetos fixos. Corresponde
também em favorecer aos habitantes o livre acesso, com segurança aos
diversos equipamentos urbanísticos para que possam desempenhar e
reproduzir práticas socioterritoriais sustentáveis nestes ambientes.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das pesquisas realizadas na cidade de Campina Grande e dos


resultados obtidos, foi possível identificar que de fato a violência tem
retirado à reprodução de práticas socioespaciais e socioterritoriais dos

1362
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

habitantes. Observou-se que a violência durante os anos de 2010-2012 se


“geografiza” em setores estratégicos da cidade de Campina Grande, criando
uma sensação de insegurança e consequente redução no uso dos espaços,
comprometendo a inclusão desta cidade na rede de cidades sustentáveis.
De acordo com os Dados obtidos através da Delegacia de Polícia Civil,
questionários, hemeroteca e relatos qualitativos, identificou-se que os
bairros com maiores índices de criminalidade foram o Centro da cidade e
bairro do Catolé, ambos se destacam em Campina Grande por exercerem
centralidades, perfil socioeconômico e deterem importantes equipamentos
urbanos, especialmente os de uso e acesso público.
Entretanto, apesar de serem espaços estratégicos no contexto urbano
da cidade, são também identificados como os bairros que mais apresentam
espaços públicos degradados materialmente e distanciados do convívio
dos habitantes, pois representam locais onde o medo restringe o direito ao
uso e acesso irrestrito, condicionando assim, a exclusão dos mesmos no
cotidiano dos cidadãos e favorecendo a reprodução de práticas territoriais
de grupos que propagam pequenos delitos (assaltos) em decorrência do
tráfico de drogas.
A situação de insegurança urbana acaba se configurando como um
problema de ambiência urbana, que acaba interferindo na mobilidade ur-
bana e acessibilidade, condicionando a degradação dos espaços públicos.
Os espaços abertos a exemplo das praças (Praça Clementino Procópio e
Praça da Bandeira) se colocam como os principais espaços onde a sen-
sação de medo e insegurança é maior para os moradores.
Desse modo, existe a emergência de se efetivarem políticas públicas que
possam prevenir os atos criminosos nestes bairros. Os delitos de menor
potencial ofensivo acabam sendo diários e refletem o distanciamento dos
cidadãos para com os ambientes.
A busca por um Estado democrático de direito é, ao mesmo tempo,
considerada como uma objetividade para criar um fundamento. Ao que nos
remete Raffaele De Giorgi (2007b), o direito se revela por ser fundamenta-
do no poder. Daí, o autor extrai duas condições diferentes de conectar o

1363
futuro através do direito, são, portanto: o ‘Direito do Exercício do Direito’
e o ‘Direito da Sanção’. No pensamento do autor é o povo que surge como
‘fonte de poder’, por ter sido o seu poder privado e violentado.
Portanto, a busca incessante pelo direito à cidade leva, consequente-
mente, a existência de contínuos conflitos. O direito vem para manifestar
a sua vontade, pesar o que se exclui e “cortar” as arestas. Esse mesmo
direito não deve apenas dizer a sociedade qual o modelo ideal de dignidade,
mas, acima de tudo, trazer o direito concreto para o concreto. Excluir toda
forma de exclusão. Ser justo por banir toda injustiça. Pois o direito rico
em justiça expulsa de si toda forma de injustiça, como define Raffaele De
Giorgi: “o direito exclui de si o que não é direito” (DE GIORGI, 2007c, p.38).

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WAISELFISZ. Júlio Jacob. Mapa da violência dos municípios brasileiros. Brasília:
MJ/MS: RITLA/ Instituto Sangari, 2012.

NOTAS

1 Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB-CH) e estagiário do Ministério Público
do Estado da Paraíba. E-mail: petrus_cabral@hotmail.com
2 Licenciada em Geografia pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail: samarairis_santos@
hotmail.com.
3 Pós-Doutorando em Teoria do Direito e Sociologia do Direito no Centro di Studi sul Rischio dalla Facoltà di
Giurisprudenza dell`Università del Salento - CSR-FG-UNISALENTO (2013-2015); Doutor em Ciências Jurídico-
-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra FDUC (2003-2007), Professor Titular da
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail: lucianonascimento@hotmail.com.
4 Doutor em Geografia Urbana (2008) pela Universidade pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), câm-
pus de Presidente Prudente, Professor Titular da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail:
xtojunio@hotmail.com
5 BRASIL. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade e Legislação Correlata. 2. ed., atual. Brasília
: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002. 80 p.
6 As bases quantitativas desses registros podem ser consultadas na página do Instituto Sangari (http://www.
institutosangari.org.br/mapadaviolencia).
7 Pesquisas de iniciação científica (PIBIC/ CNPq) realizadas durante o período de 2010 à 2012, onde realizou-se
um mapeamento da violência urbana em Campina Grande e a análise da interferência da violência no uso e
reprodução de práticas socioespaciais em espaços públicos da cidade.
8 Mapa elaborado a partir da pesquisa (SANTOS, 2011) sobre o Mapeamento da violência urbana em Campina
Grande- PB, premiada em 3º lugar, categoria estudante do ensino superior no Prêmio Jovem Cientista.
9 Entrevista individual realizada com representante da sociedade civil para a pesquisa sobre a influência da
violência urbana nos espaços públicos de Campina Grande (SANTOS, 2012). As considerações foram realizadas
partindo da análise qualitativa do discurso do sujeito coletivo.
10 Entrevistas individuais obtidas através da pesquisa sobre a interferência da violência urbana nos espaços
públicos de Campina Grande-PB (SANTOS, 2012).
11 Entrevistas individuais obtidas através da pesquisa sobre a interferência da violência urbana nos espaços
públicos de Campina Grande-PB (SANTOS, 2012).
12 O documento do Fórum Nacional de Reforma Urbana sobre a Carta Mundial pelo Direito à Cidade encon-
tra- se disponível em: http://www.forumreformaurbana.org.br/index.php/documentos-do-fnru/41-cartas-e-
-manifestos/133-carta-mundial-pelo-direito-a-cidade.html

1366
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O direito à cidade enclausurado


em condomínios fechados: a análise
do programa minha casa minha vida
no município de joão pessoa

Phillipe Cupertino Salloum e Silva1


Maria Luiza Alencar Mayer Feitosa2

1 INTRODUÇÃO

O déficit habitacional e as políticas públicas que visam erradicá-lo


vem despertando o interesse da comunidade acadêmica, especialmente,
após a Conferência das Nações Unidas Habitat II, tendo em conta a sua
relação com o meio ambiente, direitos humanos, desenvolvimento social
e as questões demográficas. Este espaço deu origem a Declaração de Is-
tambul, documento assinado no Brasil em 1996, momento que a moradia
ainda não se encontrava entre os direitos sociais fundamentais expresso
na Constituição.
Enquanto vários trabalhos científicos festejaram a inserção da moradia
no rol de direitos sociais do art. 6 da Constituição Federal, por meio da
emenda constitucional nº 26, optamos por um caminho ousado: relacionar
a padronização da habitação, voltada para as camadas mais populares,
proporcionada por meio de políticas públicas e o surgimento de novos
produtos imobiliários, os enclaves fortificados. Fenômenos que nos levam
a questionar o direito à cidade em diferentes dimensões, seja entre aqueles
que optam pela segregação espacial, seja entre aqueles não tem escolha.
Nesse contexto surge o Programa Minha Casa Minha Vida, que,
por meio de subsídios estatais, a produção de moradia popular passa a
despertar o interesse do mercado imobiliário. São lançados, em regra,

1367
conjuntos habitacionais padronizados em regiões periféricas e em grande
série. Embora sejam construídos, geralmente, em formato de condomí-
nios fechados, não se pode igualá-los ao mesmo fenômeno dos demais
enclaves fortificados, como os condomínios de luxo, shopping center,
empresariais etc.
O presente artigo objetiva lançar reflexões críticas sobre o direito à
cidade e o direito à moradia, apontando semelhanças e distinções entre
os condomínios fechados de luxo e aqueles voltados para as camadas
populares veiculada ao Programa Minha Casa Minha Vida no município
de João Pessoa.
Para isso se recorrerá a vertente jurídico-sociologica, mediante
levantamento bibliográfico, documental e estatístico e por meio do
método materialista-histórico dialético, cuja contradição é fundante
no processo de desmascaramento da psedoconcreticidade. Objetiva-
-se garantir um acúmulo teórico-político que possa apontar direções
para tratar o déficit habitacional como mais um elemento de uma crise
maior, que é a crise urbana.

2. A PSEDOCONCRETICIDADE DO ESPAÇO PÚBLICO

É fundamental ter a compreensão que o espaço público atual, su-


postamente possibilitador de encontros impessoais e anônimos e de co-
-presença dos diferentes grupos sociais é herdeiro da modernidade e no
plano concreto assumem, por outro lado, a desigualdade e a segregação
como valores estruturantes. Isto é, representa a psedoconcreticidade que
Karel Kosik denominou de “fetichista e aparente objetividade do fenômeno”
(1976, p. 51). Logo, exige-se a análise da realidade dos fatos a partir da
totalidade cuja “a inexistência de contradições a tornaria vazia e inerte”,
ao mesmo tempo que “as contradições fora da totalidade são formais e
arbitrárias” (KOSIK, 1976, p. 51).
Marx vislumbra o moderno como sendo a ascensão da burguesia, o
crescimento econômico, o estabelecimento do capitalismo, suas mani-

1368
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

festações políticas, e, sobretudo, a análise crítica deste conjunto de fatos


históricos. Também o percebe quando discute a abstração do Estado como
um produto moderno, tendo em vista que a abstração da vida privada
pertence, necessariamente, aos tempos modernos.

A filosofia moderna revelou uma grande verdade: o homem não


nasce jamais em condições que lhe são ‘próprias’, ele é sempre
‘jogado’ no mundo, cuja autenticidade ou inautenticidade ele
tem de comprovar por si mesmo, na luta, ‘na praxis’, no proces-
so da história da vida, no curso do qual a realidade é possuída
e modificada, reproduzida e transformada. (KOSIK, 1982, p. 75,
grifo do autor)

A busca pela moradia, emprego, educação, saúde, isto é, a luta pela


sobrevivência na sociedade moderna representa mais um dos fenôme-
nos elementares e supostamente banais da vida cotidiana. Num exame
posterior demonstra ser apenas uma aparência superficial, determinada
e mediada por profundos e essenciais processos da sociedade capitalista,
isto é, pela existência do trabalho mercenário e a exploração deste cuja
escassez da moradia e a segregação espacial, por exemplo, são fatores
determinantes no sistema vigente.
O caráter dialético da práxis imprime uma marca indelével em todas as
criações humanas. Logo também sobre a cidade, seja nos espaços públi-
cos ou privados. Seus habitantes não só reproduzem geograficamente a
realidade da modernidade, mas, ao mesmo tempo, a produz geografica-
mente. Portanto, toda cidade e os sujeitos que nela habitam apresentam
um duplo caráter em indissolúvel unidade: é expressão da realidade, e,
ao mesmo tempo criador da realidade. Uma realidade que não existe fora
da cidade, ou antes da cidade, mas precisamente na cidade. Contudo, a
condição de sujeito protagonista da construção da realidade é mascara-
da para o povo, que nas palavras de Gramsci, representa “o conjunto de
classes subalternas de cada tipo de sociedade que existiu até hoje” (apud
PORTELLI 1977, p. 27).
Ocorre que a concepção moderna do espaço público o colocava como
um possibilitador de encontros impessoais e civilizados, noção que repro-

1369
duz o paradigma liberal surgido no final do século xVIII que, mediante a
afirmação de princípios como da igualdade, assegurava, abstratamente,
a cada pessoa igualdade de oportunidade para seguir um determinado
modo de vida e alcançar ascensão social e econômica.
Por sua vez, a conformação dos espaços públicos são inevitavelmente
desiguais, tendo em vista que entre as transformações da modernidade,
está o desenvolvimento do sistema capitalista, que se fundamenta na
desigualdade e depende da escassez, inclusive moradia, para sua manu-
tenção e reprodução.

[…] a riqueza é produzida num sistema que se fundamenta na


escassez, para seu funcionamento. Segue-se que se a escassez é
eliminada, a economia de mercado, que é a fonte de riqueza pro-
dutiva no capitalismo, desapareceria. Além disso, o capitalismo
está continuamente incrementando sua capacidade produtiva.
Para resolver esse dilema muitas instituições e mecanismos
se formam para garantir que a escassez não desapareça. [...]
a escassez não pode ser eliminada sem também eliminar-se a
economia de mercado. (HARVEY, 1980, p. 120)

Nesse sentido, o individualismo, a neutralidade e a competição, valores


presentes no mundo moderno capitalista e fundantes na conformação dos
princípios liberais, reforçam a mediocridade, permitindo que as grandes
decisões políticas, econômicas, culturais, existenciais e mesmo espirituais
permaneçam ao sabor dos agentes mandantes. É por meio da mediocridade
que “o cotidiano se normaliza ao gosto das classes dominantes” (CARVA-
LHO, 2000, p. 23). Permite que o homem e a mulher ignorem a escassez
(moradia, alimentos, recursos energéticos etc) inerente ao sistema vigente
e ao em vez de se reivindicarem enquanto seres emancipados, optam pelo
status de consumidores.

[…] a vida cotidiana é em si o espaço modelado (pelo Estado e


pela produção capitalista) para erigir o homem em robô: um robô
capaz de consumismo dócil e voraz, de eficiência produtiva e que
abdicou de sua condição de sujeito, cidadão. É assim que a vida
cotidiana é, para o Estado e para as forças capitalistas, fonte de
exploração e espaço a ser controlado, organizado e programado.
(CARVALHO, 2000, p. 24)

1370
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

As ruas dos centros das cidades, enquanto espaço público, trans-


formaram-se, por exemplo, em rede organizada para e pelo consumo.
A velocidade da circulação dos seres humanos é então pensada e de-
terminada pela possibilidade de perceber as vitrines, de comprar as
mercadorias expostas. Logo, o tempo torna-se o tempo-mercadoria e a
rua passa a ser regida sobre essa mesma lógica, o do rendimento e do
lucro. É dessa forma que a vida cotidiana torna-se também o espaço da
mediocridade, determinando, por meio da massificação, comportamentos
acríticos e anônimos.

3. A NATUREZA EMBALADA EM ENCLAVES FORTIFICADOS

A cidade representa um produto, no sentido amplo, assumindo a


característica de obra, muito além de um simples produto material. Nas
cidades se produzem objetos, coisas, mas o fundamental é que nela se
produzem as relações sociais, ou seja, a produção e a reprodução de seres
humanos por seres humanos, assim como a sua própria consciência. Logo,
a cidade como um resultado do trabalho alienado de homens e mulheres
produzem consciências alienadas.
A dimensão de espaço recortado, vendido aos pedaços, remete ao
desenvolvimento do mundo da mercadoria que alcança o espaço. O
espaço social, produto do trabalho social de homens e mulheres, torna-
-se elemento gerador de mais-valia. Portanto, “o espaço inteiro entra na
produção como produto através da compra, da venda, da troca de parcelas
do espaço” (LEFEBVRE, 1999, p. 142).
Observa-se que o espaço público, isto é, determinadas ruas e bairros
com uma boa infraestrutura são tornados raro para que alcance um valor
mais elevado no circuito da compra e venda. Ocorre que o Estado, mo-
tivado por interesses privados, pode representar um papel determinante
neste processo ao proporcionar uma infraestrutura diferenciada das
demais localidades, possibilitando, portanto, a manutenção da escassez
em outros espaços.

1371
O próprio poder público torna-se criador privilegiado de escassez;
estimula, assim, a especulação e fomenta a produção de espaços
vazios dentro das cidades; incapaz de resolver o problema da
habitação, empurra a maioria da população para as periferias;
e empobrece ainda mais os mais pobres, forçados a pagar caro
pelos precários transportes coletivos e a comprar caro bens de
um consumo indispensável e serviços essenciais que o poder
público não é capaz de oferecer. (SANTOS, 2005, p. 123)

Por sua vez, a raridade produzida no espaço é de natureza contraditória,


já que o raro não significa único ou incomum, pelo contrário, a raridade
localmente manifestada nos espaços urbanos compreende a repetição
de padrões arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos, possíveis de se
encontrar em qualquer espaço urbano mundial que passe por dinâmicas
parecidas.
Os condomínios fechados, assim como os shopping centers, represen-
tam produtos que expõem e reúnem novas formas e práticas para antigas
ações (consumo, lazer e moradia) conformando na sua materialização para
o processo de acumulação de capital. Em termos gerais, esses produtos
imobiliários formam parte de uma categoria mais ampla, aqui denomi-
nado por enclaves fortificados, isto é, espaços privatizados, fechados e
monitorados para moradia, consumo, lazer e trabalho.

Enclaves fortificados são espaços privatizados, fechados e mo-


nitorados para residência, consumo, lazer ou trabalho. Esses
espaços encontram no medo da violência uma de suas principais
justificativas e vêm atraindo cada vez mais aqueles que preferem
abandonar a tradicional esfera pública das ruas para os pobres,
os “marginais” e os sem-teto. Enclaves fortificados geram cidades
fragmentadas em que é difícil manter os princípios básicos de
livre circulação e abertura dos espaços públicos que serviram de
fundamento para a estruturação das cidades modernas. (CAL-
DEIRA, 1997, p. 155, grifo do autor)

Os enclaves fortificados respondem aos anseios de um segmento


da população, a partir da década de 80, principalmente de maior poder
aquisitivo, de se diferenciar, dispondo de seus espaços próprios que não
precise ou evite interagir com os espaços urbanos existentes, onde estão

1372
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

presentes, ainda que em desarmonia, todas classes sociais. Além disso,


Corrêa relaciona o surgimento desses produtos “como sinônimo de pro-
gresso e bem-estar”, tornando-se, graças à massiva publicidade, “o mais
importante e genérico objeto de consumo” (2010, p. 150).
Portanto, por seu intermédio, a acumulação de capital estabelece
uma de suas bases de continuidade. Isto é, representa parte da tendência
do processo de acumulação de capital em busca de um espaço global e
homogêneo presente que possa surgir em diferentes realidades urbanas.
Embora sejam menos frequentes em cidades pequenas esses empreendi-
mentos podem ser encontrados nas diversas cidades brasileiras. Significam
uma nova forma de auto-segregação socioespacial que contribuem para
a produção de territórios exclusivos e apartados da cidade.
O espaço da periferia urbana ou um de seus setores constitui-se em
local privilegiado para os condomínios fechados de luxo, tendo em vista a
necessidade de amplos espaços disponíveis, mais facilmente encontradas,
na periferia urbana e não nas áreas mais antigas, que se caracterizam, em
geral, por uma muito fragmentada propriedade da terra.

As inúmeras ‘cidadelas’ ou condomínios de luxo, cercados e


protegidos por uma cada vez mais e eficiente sistema de vigi-
lância, são locais onde vive uma classe média, constituída por
descendentes das antigas famílias de ato status que residiam nos
bairros nobres tradicionais, ou por uma classe média emergente,
procedente de bairros de menor status social. (CORRêA, 2010, p.
157, grifo do autor)

Observa-se que as referidas cidadelas têm poucas ou nulas relações


com as suas adjacências, há uma vida comum interna, onde a relação
com o mundo extra-muro é restrita a certos locais, preestabelecidos e ex-
tremamente rotineiros. Encontram-se, geralmente, em espaços afastados
da malha urbana onde são malservidos de transporte público. Portanto,
a circulação de ônibus nestes espaços é limitada aos empregados que
trabalham localmente e residem em outros locais.
Os enclaves fortificados representam uma auto-segregação espacial
com o objetivo de se hierarquizar em relação aos demais lugares da ci-

1373
dade, uma vez que a reprodução do capital separa e tende a ressaltar as
especificidades dos lugares para facilitar a sua comercialização. Trata-se,
nas palavras de Corrêa, “de algo antigo metamorfoseado em novo” (2010,
p. 157).
Nesse sentido, os enclaves fortificados tendem a se conformar, espe-
cialmente no plano simbólico, a partir de sua valorização diferenciada,
como a forma moderna de morar, própria dos grupos de maior poder
aquisitivo ou daqueles que se esforçam para fazer parte desse segmento.
Ainda mais, em cidades menos desenvolvidas, onde os menores preços
da terra urbana (influenciados pela maior disponibilidade de áreas lote-
áveis) e os custos de vida e de construção comparativamente menores
facilitam o acesso a esse tipo de produto imobiliário até para grupos de
poder aquisitivo médio.
É possível observar, inclusive, que o direito à natureza (ao campo e à
suposta natureza pura) adentrou para a prática social há algum tempo em
favor de lazeres associados as moradias privilegiadas, como é possível de
ser observado em alguns enclaves fortificados. Nos dizeres de Lefebrve,
“a natureza entra para o valor de troca e para a mercadoria; é comprada
e vendida” (1969, p.107).
Ocorre que os lazeres comercializados, industrializados, conformados
institucionalmente, no contexto do sistema capitalista, destroem essa
“naturalidade”. Logo, os referidos produtos imobiliários se apropriam da
escassez de “naturalidade”, por se tornarem uma especificidade, e a ofe-
recem nestes empreendimentos, onde seus possuidores ou proprietários
possam usufruir e trafegar por ela.
O condomínio Bosque das Orquídeas, localizado no bairro de luxo
Altiplano Cabo Branco, do município de João Pessoa, representa um exem-
plo clássico de enclaves fortificados que se apropria do marketing verde
para oferecerem a natureza como mais um valor de troca. Isto é, uma
mercadoria a ser consumida por aqueles puderem pagar pelo privilégio de
morar num condomínio fechado em contato com a suposta naturalidade,
conforme exposto na citação abaixo.

1374
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O Orquídeas tem como destaque um bosque repleto de verde,


com árvores nativas, uma “casa de Tarzan” e trilhas para ca-
minhadas. É um lugar abençoado pela natureza e uma escolha
perfeita para quem valoriza uma vida saudável em contato com
o meio ambiente)3.

Em tempos de combate ao aquecimento global e ao efeito estufa, a


valorização e o uso de elementos do meio ambiente natural, inclusive
no próprio prefixo do referido empreendimento citado acima, são táticas
mercadológicas cada vez mais comuns em anúncios publicitários como
também ocorre em relação ao condomínio Gameleiras, localizado no
mesmo bairro supracitado de João Pessoa, que se autoproclama em com-
promisso com “o meio ambiente e com a sustentabilidade”4.
Nesse contexto, os habitantes dos espaços urbanos transportam o
urbano consigo, ainda que não carreguem a urbanidade. Tais espaços
supracitados, antes parte da zona rural ou áreas pouco habitadas, onde
ainda é possível ser encontrado elementos do meio ambiente natural, por
esses empreendimentos passam a ser colonizados, onde o contato com
campo perde as qualidades e encantos da vida camponesa. Conforme
afirma Lefebrve “o urbano assola o campo; este campo urbanizado se opõe
a ruralidade sem posse, caso extremo da grande miséria do habitante, do
habitat, do habitar” (1969, p. 108).
A reivindicação da natureza e o desejo de aproveitar dela representam
um evidente desvios do direito à cidade. Conforme defende Lefebrve, “esta
última reivindicação se anuncia indiretamente, como tendência de fugir
à cidade deteriorada e não renovada, a vida urbana alienada antes de
existir realmente” (1969, p. 107). Portanto, a influência do estilo de vida
mais próximo da natureza, e afastado do universo concentracionista das
cidades (enquanto a cidade apodrece ou explode), pode ser visto como um
ótimo argumento para a propagação dos condomínios fechados enquanto
produto imobiliário diferenciado.

1375
4. O PRIVILéGIO DA CASA PRóPRIA

A questão habitacional no Brasil vem sendo, atualmente, objeto de


uma política pública de abrangência nacional, com participação de todos
os entes federativos. O programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) foi
lançado oficialmente em 25 de março de 2009, pela edição da Medida
Provisória 459, de mesma data, que foi convertida na Lei 11.977, de 7
de julho de 2009. O referido pacote parte da premissa de que o acesso à
moradia regular é condição básica para que todas as famílias, inclusive
para as de baixa renda, superem suas vulnerabilidades sociais e possam
obter efetiva inclusão social.
A efetivação do direito à moradia, por meio do pacote habitacional em
tela, envolve paralelamente dois fatores que se complementam: a espe-
culação imobiliária promovida nos circuitos rentistas e financeiros que
operam sobre a expectativa de valorização imobiliária e a consolidação
do padrão periférico de urbanização, por meio da construção de grandes
conjuntos habitacionais, em regra, localizado nas zonas periféricas.
Um dos principais objetivos deste pacote habitacional é, finalmente,
fazer o mercado habitacional incorporar setores da população que até
então não tiveram como adquirir a mercadoria moradia de modo regular e
formal, isto é, “ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de
baixa renda”, conforme expresso no inciso I, do art. 48, da Lei 11.977/2009.
Por sua vez, Shimbo avalia que o MCMV apenas “formalizou o espírito já
corrente, desde meados dos anos 1990, de incentivo à provisão privada
de habitação, por meio das medidas regulatórias e do financiamento ha-
bitacional” (2012, p. 95).
O processo instalação das unidades habitacionais do MCMV no muni-
cípio de João Pessoa, especialmente entre as famílias que possuem uma
renda média até três salários mínimo, vem optando pelo padrão periférico
de urbanização que contribui, inevitavelmente, para segregação espacial.
A título de exemplificação, pode-se afirmar que, entre as unidades habi-
tacionais do MCMV5 direcionados para as camadas mais populares no

1376
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

município em tela, todos estão localizados em bairros periféricos, isto é,


bairro das Indústrias, Gamares Colinas do Sul, Jardim Veneza e Paratibe6.
O padrão periférico de urbanização soma-se ao formato dos lotea-
mentos fechados que funcionam em sistema de condomínio, isto é, são
murados e possuem uma guarita, como ocorre nos residenciais Manacá,
Irmã Dulce, Anayde Beiriz, Jardim Veneza e Jardim das Colinas, todos
construídos por meio do MCMV5. Por sua vez, a arcação física e o isola-
mento por muros que caracterizam estes conjuntos habitacionais, embora
deem ênfase ao valor do que é restrito e privado, desvalorizando o que é
público e aberto na cidade, não permite os envolverem na categoria dos
enclaves fortificados, isto é, no mesmo universo de um shopping center ou
condomínios de luxo, conforme expostos no tópico anterior.
As unidades habitacionais do MCMV são, em regra, apresentadas de
forma padronizada, isto é, possuem a mesma fachada e configuração in-
terna semelhantes, isto é, por volta de 40 a 60 metros quadrados para cada
família. A quantidade de unidades habitacionais, localizado no mesmo
loteamento, variam entre 244 (Residencial Manacá) à 1240 (Residencial
Irmã Dulce) apartamentos.
A conformação massificada de habitações em zonas periféricas e em
grandes loteamentos são justificadas por seu baixo custo e celeridade na
conclusão. Por outro lado, conforma, visualmente, a criação de verdadeiros
blocos de cidades, como é o caso do Residencial Irmã Dulce, composto por
três empreendimentos, Irmã Dulce A que contempla 440 apartamentos,
distribuídas em 110 blocos, Irmã Dulce B com 480 apartamentos em 120
blocos e o Irmã Dulce C com 320 famílias em 120 blocos. Frisa-se que as
unidades deste residencial possuem apenas 42,03 m² de área privativa7.
Conforme ilustrações em anexo, a concentração destas unidades
habitacionais num mesmo espaço pode passar a impressão de um mar
uniforme de moradias onde não há entre elas elementos de uma vida urba-
na, inclusive aqueles mais banais, como pequenos mercados, mercearias,
padarias, etc. São blocos de cidades para as classes populares, criadas e
entregues unilateralmente pelas construtoras para serem meros dormi-

1377
tórios que subjugam a criatividade e o improviso dos homens e mulheres
em intervirem na realidade que os rodeiam.
O Residencial Irmã Dulce, descrito acima, envolve uma quantidade
de unidades habitacionais que supera aproximadamente 23% dos 223
municípios do estado da Paraíba, em relação a presença de domicílios
permanentes nestas localidades (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA
E ESTATÍSTICA, 2010). Representa uma constatação fática que justifica o
termo ‘bloco de cidades’ usado anteriormente por exibirem uma quanti-
dade exorbitante de moradias localizada num mesmo espaço em formato
de enlatados.
Ainda assim, o pacote habitacional aqui observado é bem recepcio-
nado, especialmente pelas classes mais populares, incluindo os setores
médios que podem ter acesso as unidades habitacionais voltados para
famílias com uma renda entre três e dez salários mínimo. Por outro lado,
a acessibilidade e boa localização das unidades habitacionais envolvidos
ao MCMV melhoram progressivamente na medida que a renda familiar
dos beneficiários aumentam.
Em João Pessoa há três empreendimentos do MCMV entre a faixa de três
a seis salários mínimo e outros três entre a faixa de seis a dez salários mí-
nimo. Contudo, alguns destes apresentam particularidades que permitem
apontar contradições do princípio da igualdade proposto na Constituição
Federal mediante a execução de políticas públicas habitacionais.
O Residencial Eleonora Coutinho é um empreendimento, assim como
o Irmã Dulce, veiculado ao Programa Minha Casa Minha Vida, mas com
distinções exorbitantes, tanto geograficamente como em relação a estética.
Localizado num dos bairros mais valorizado no mercado imobiliário de
João Pessoa, o referido residencial é ainda composto por um único edifício
vertical, distinto dos demais ao seu redor. Não obstante ter o privilégio de
possuir, nos espaços comuns, área de lazer com piscina, salão de festas,
terraço aberto e ainda está próximo da praia, é, destacadamente, na sua
embalagem publicitária para o mercado, localizado ao lado de um sho-
pping center8.

1378
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A existência de empreendimentos distintos relacionados ao Programa


Minha Casa Minha Vida mostra que o privilégio de ter a casa própria, que
não se confunde mas está relacionado ao direito à moradia, já devem
bastar para as classes mais baixas, enquanto aqueles e aquelas que são
melhores remunerados podem, isto é, merecem ter o privilégio de viver
em melhores bairros e com lazeres. A moradia que se manifesta abstrata-
mente nos tratados internacionais de Direitos Humanos como um direito
de todos, e no plano concreto de forma desigual variando de acordo com
a renda familiar. Logo, a desigualdade está permitida, autorizada, isto é,
institucionalizada pelo próprio Estado em sintonia com as leis de mercado.
Não seria uma surpresa, portanto, que o Residencial Waldemar Nobre-
ga, que envolve famílias com renda entre três e seis salários mínimo, isto
é, na zona intermediária do MCMV, estar localizado num bairro periférico
(bairro das Indústrias) e ainda ser composto por diversos edifícios verticais
de dois andares padronizados. Diferentemente do Residencial Eleonora
Coutinho ou do Residencial Spazio di Napoli (seis a dez salários mínimo)
que está situado próximo a principal avenida da cidade, a Epitácio Pessoa,
num dos bairros mais valorizado, o Tambauzinho e composto por um
único edifício vertical9.
A composição de iguais edifícios ou unidades habitacionais padro-
nizadas num mesmo espaço é praticamente uma condicionante para a
realização de moradia populares, isto é, a garantia de políticas habita-
cionais para a classe trabalhadora urbana. A criatividade, a inovação, o
pensamento urbanístico com valores democráticos e populares, isto é,
que pense a cidade para todos e todas, não orientam a principal política
pública habitacional vigente no Brasil que, para garantir sua execução, se
rendem aos interesses das construtoras civis privadas.
Os financiamentos do MCMV estimulam e fortalecem o mercado formal
de produção de moradia que é o mais importante filão da indústria da
produção do urbano e um dos motores do desenvolvimento capitalista no
Brasil. Ocorre que este estímulo ao mercado formal não implica necessa-
riamente “uma redução do mercado informal, tampouco um arrefecimento

1379
dos antigos mecanismos de espoliação urbana” (BASTOS, 2012, p. 78).
Além de enfrentar o déficit de habitação, o plano visa mitigar os efeitos
do desaquecimento da economia produzidos pela crise mundial instau-
rada em 2008, assim como o Plano Nacional de Habitação Popular do
BNH coincidiu com a crise do petróleo em 1973, mediante o aumento de
investimentos no setor da construção civil e a possibilidade de geração
de emprego e renda. A relação entre crises econômicas e o lançamento
de grandes pacotes habitacionais não se limitam a realidade brasileira
conforme afirma Harvey.

Dentro das nações as políticas estatais tem consequências con-


sideráveis para aforma edificada da metrópole contemporânea.
A legislação da Administração Federal da Moradia (AFM) nos
Estados Unidos, por exemplo, foi elaborada para amparar o
financiamento de hipoteca de moradia nos anos 30, mas seu
efeito principal foi sustentar as instituições financeiras que fo-
ram profundamente abaladas pela repercussão da depressão.
(HARVEY, 1980, p. 236)

O contexto econômico e político vivenciado pelo Brasil a partir de 2008


vem sendo chamado por alguns estudiosos de neodesenvolvimentismo,
cujo o programa Minha Casa Minha Vida, constitui um exemplo clássico
por envolver a conciliação de interesses de duas classes antagônicas: a
iniciativa privada, representada especialmente pelas construtoras civis e
parte das camadas mais populares da população. Logo, o MCMV estaria
envolvido na perspectiva do direito ao desenvolvimento que pode se
concretizar “no direito à instituição de programas e/ou políticas públicas”
(FEITOSA, 2013, p. 143).
O Estado busca recompor sua função social mediante políticas públicas
que atendam interesses imediatos do povo, ainda que de forma desigual,
bem como possibilite a geração de empregos e o crescimento econômico
do país, isto é, o direito do desenvolvimento. No entanto, nas palavras de
Feitosa, se o direito ao desenvolvimento e o direito do desenvolvimento
entrarem em choque, apenas um deles, “se estabelece, naturalmente o
mais forte, aquele que ordena em torno de si interesses mais potentes e
meios mais conhecidos e ágeis de efetivação” (2012, p. 112).

1380
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A perspectiva produtivista predominante no contexto do MCMV que


atua simplesmente na construção de ‘mais casas’ rompe com qualquer
possibilidade das pessoas, para quem serão disponibilizadas tais unida-
des habitacionais, participarem do processo construção de suas próprias
moradias e de também serem sujeitos construtores dos espaço público,
isto é, da realidade que os e as rodeiam.
O Estado e a empresa, apesar de possuírem diferentes naturezas,
convergem para a segregação. Estes procuram se apoderar das funções
urbanas, assumi-las e assegurá-las ao destruir a forma do urbano, isto é,
por meio dos novos produtos imobiliários representados pelos enclaves
fortificados ou mediante o Programa Minha Casa Minha Vida, em geral,
representado por condomínios fechados em forma de conjuntos habita-
cionais que resultam na absorção do espaço público recortado da cidade
mediante muros e grades.

O Estado age sobretudo por cima e a Empresa por baixo (asse-


gurando a habitação e a função de habitar nas cidades operárias
e os conjuntos que dependem de uma “sociedade”, assegurando
também os lazeres, e mesmo a cultura e “promoção sociais”).
(LEFEBRVE, 1968, p. 90)

Por outro lado, esse processo, conforme defende Sobarzo, “também


modifica as práticas de consumo comandadas por valores subjetivos e
ideológicos que expressam o desejo de dispor desses novos espaços, que
passam a ser conceituados como indicadores da modernização” (2006, p.
101). O novo está sempre nos bens de consumo de um determinado público
e naqueles que conferem distinção social. Entre as camadas populares,
o fato de possuir a casa própria já lhe confere distinção social, em meio
a tantos brasileiros e brasileiras morando de aluguel ou em aglomerados
humanos subnormais (assentamentos irregulares, invasões, grotas, bai-
xada, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros).
Essa noção de privilégio manifesta-se de forma intensa na realidade
brasileira onde 11,4 milhões de pessoas (6,0%) vivem em aglomerados
humanos subnormais e especialmente para microrregião de João Pessoa

1381
que são 101.888 pessoas (8,5%), acima da média nacional (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010). Enquanto a escas-
sez for predominante, elemento fundante para o sistema capitalista, as
condições mínimas de moradias promovidas pelo MCMV, padronizadas,
em zonas de periferias ou não, para muitas pessoas ainda representarão
uma conquista de direitos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cidade vendida aos pedaços converte-se em parte integrante da re-


produção capitalista, não só porque nela são confeccionados e trocados
bens materiais e imateriais, ou porque dentro dela, num sentido amplo, a
sociedade como um todo é reproduzida. Mas também, num sentido que
poderíamos considerar restrito, porque a cidade vem a ser um produto
consumido, comprado e vendido, assumindo uma função fundamental na
circulação e acumulação de capital.
Os novos produtos imobiliários direcionados para moradia, em for-
ma enclaves fortificados, envolvem especificidades que permitam a sua
valorização diferenciada. Não obstante a tão reivindicada segurança nos
tempos modernos, a suposta proximidade com elementos da natureza
(bosques, áreas verdes, tranquilidade etc) representa mais um fator de
diferenciação, acessível para os grupos de maior poder aquisitivo.
Enquanto a contemplação e convivência com a naturalidade constituem
mais um privilégio própria das elites consumidoras dos condomínios de
luxo, para as camadas populares beneficiadas pelo Programa Minha Casa
Minha Vida, o privilégio para esta família está reservado ao fato de ser
contemplada por uma casa própria, não importando suas particularidades
ou a localização do imóvel.
A forma que o referido pacote habitacional se conforma no município
de João Pessoa despreza a possibilidade tratar o déficit habitacional por
meio de políticas que envolva toda cidade, isto é, aproveitando os espaços
já existente e promovendo uma melhoria na vida urbana, por meio de pro-

1382
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

jetos que ampliem a mobilidade urbana, espaços culturais, infraestrutura


e serviços públicos em todos bairros.
A lógica produtivista que promove a construção em blocos de habita-
ções populares em zonas periféricas é uma manifestação clara que o fator
econômico, ou seja, os interesses da iniciativa privada da construção civil,
ainda são postos acima do pensamento urbanístico. Põem-se um limite
ao direito à cidade em nome da possibilidade de transformar a moradia
popular em mais uma mercadoria lucrativa.
A existência de privilégios no acesso aos novos produtos imobiliários
e a escassez de moradia são elementos próprios do sistema capitalista,
contudo não podem ser vislumbrados como realidades intactas. A luta
pelos Direitos Humanos deve se apegar a um pensamento urbanístico
que descarte as políticas públicas que negam o direito à cidade ao povo e
que perceba a democratização e o acesso crescente aos espaços públicos
como um importante elemento potencializador da elevação da consciência
humana e da superação do trabalho alienado.
É preciso acreditar na mudança na qual trabalhadores, sem tetos,
camponeses, homossexuais, mulheres, sujeitos historicamente oprimidos,
sejam protagonistas deste processo que ocorrerá nos espaços urbanos,
onde a vida humana vem, hegemonicamente, acontecendo.

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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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Geousp – Espaço e Tempo. São Paulo, n. 19, p. 93-111, 2006. Disponível em: http://
www.geografia.fflch.usp.br/publicacoes/Geousp/Geousp19/Artigo_Sobarzo.pdf .
Acesso em: 29 jul. 2013.

1385
ANEXO

Figura 1 – Conjunto residencial Irmã Dulce.

Fonte: Endereço eletrônico da Prefeitura Municipal de João Pessoa10.

Figura 2 – Anúncio publicitário do Residencial Eleonora Coutinho.

Fonte: Endereço eletrônico da Construtora OLx11.


Figura 3 – Anúncio publicitário do Residencial Waldemar Nobrega.

1386
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Fonte: Anúncio publicitário do Central Habitar12.

Figura 4 – Residencial Jardim Veneza.

Fonte: Endereço eletrônico da Prefeitura Municipal de João Pessoa13.

Figura 5 – Residencial Manacá.

Fonte: Endereço eletrônico da Prefeitura Municipal de João Pessoa14.

1387
NOTAS

1 Bacharel em Direito. Mestrando em Ciências Jurídicas na Universidade Federal da Paraíba. E-mail: phillipe-
cupertino@hotmail.com. Telefone: (83) 96678359.
2 Pós-Doutora em Ciências Jurídica-Econômicas. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: mluizalencar@gmail.com. Telefone: (83) 8879 2122.
3 Informações extraídas do endereço eletrônico do empreendimento Ecomax, referente ao condomínio Bosque
das Orquídeas, 2013.
4 Id., 2013.
5 Informações extraídas do site oficial da Prefeitura Municipal de João Pessoa, 2013
6 Id.,2013.
7 Informações extraídas do site oficial da Prefeitura Municipal de João Pessoa, 2013.
8 Informações extraídas de anúncio publicitário em anexo.
9 Informações do anúncio publicitário em anexo, 2012.
10 Disponível em: <http://www.joaopessoa.pb.gov.br/prefeito-entrega-residencial-anayde-beiriz-e-benefi-
cia-584-familias-carentes/ >. Acesso em: 29 jul. 2013.
11Disponível em: <http://www.olx.com.br/395-residencial-eleonora-coutinho-3-quarto-s-joao-pes-
soa-r-184000-00-iid-447290760>. Acesso em: 29 jul. 2013.. Acesso em: 29 jul. 2013.
12 Disponível em: <http://twitpic.com/52pyop >. Acesso em: 29 jul. 2013.. Acesso em: 29 jul. 2013.
13 Disponível em: <http://www.guiamais.com.br/guia-de-bairros/jardim+veneza-joao+pessoa-pb >. Acesso
em: 29 jul. 2013.
14 Disponível em: <http://op.joaopessoa.pb.gov.br/?p=1439>. Acesso em: 29 jul. 2013.

1388
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O papel da legislação
como instrumento de
regulação urbanística
Luiz Alberto Souza1

1.A TRAJETóRIA DO DIREITO URBANÍSTICO NO BRASIL:


DA GÊNESIS SANITARISTA AO ESTATUTO DA CIDADE

O campo disciplinar do direito não deve ser visto apenas como um


ramo da ciência social, mas sim o que ele representa nos dias atuais,
como um importante e fundamental instrumento de transformação social.
O renomado jurista Clóvis Beviláqua2 defendia que o vocábulo direito
podia ser empregado em dois sentidos: 1) o direito - norma, como sendo
a própria lei ou regra de ação e, 2) o direito – faculdade, como poder de
ação, ou como prerrogativa. Com o desenvolvimento da sociedade e de
suas relações sociais, o direito passou a comportar outros significados,
principalmente quando ele se apresenta como elemento na defesa e na
garantia dos direitos difusos e coletivos.
Historicamente a evolução do direito urbanístico no Brasil acompanhou
de forma tímida as transformações sociais. A formação do arcabouço jurídi-
co brasileiro no campo da legislação urbanística remonta ao final do século
xIx quando da instauração do sistema republicano. Até então, o sistema
jurídico brasileiro de forma geral, se alicerçava em leis e procedimentos
esparsos sem qualquer articulação. A primeira experiência no campo da
codificação foi levada a termo no ano de 1916 com a consolidação das
leis de natureza civil até então em vigor no Brasil3.
No âmbito das questões urbanísticas, nossa legislação tem seu gênesis
na tentativa de solucionar problemas advindos do acelerado processo
de urbanização, seguindo a mesma tendência verificada na Europa do
século xIx.

1389
Conforme estudos de Raquel Rolnik (1997), para se compreender o
processo de construção do sistema de normatização urbanística das
cidades brasileiras é preciso, não somente contextualizar a questão da
imposição da lei no cenário urbano, mas e principalmente, entender os
mecanismos que originaram o conceito de legalidade urbana, que de certa
forma, contribuiu para produzir as diversas formas espaciais da estrutura
interna das nossas cidades.
A tese mais corrente sobre as origens do direito urbanístico vincula
sua raiz ao nosso Direito Administrativo (Meirelles, 1989), sendo estuda-
do pioneiramente pela Faculdade de Direito do Recife em 1851 e tendo a
primeira obra sistematizada sobre o assunto publicada em 18574.
Com o advento da republica (1889), o sistema jurídico brasileiro passou
a se inspirar no direito público norte-americano, produzindo importan-
tes reflexos na estruturação futura de nosso arcabouço jurídico. Nesse
momento, é fundamental ressaltar que a formação e consolidação dos
estados brasileiros passam a se constituir em importante elemento de
equilíbrio do poder político. Inspirado na teoria da separação dos poderes
de Montesquieu5, o modelo republicano instaurado no Brasil, optou pelos
postulados vigente nos Estados Unidos baseado no princípio do “rule of
law” e no “judicial control” 6.
Sobre a filiação do direito administrativo no Brasil, o jurista Hely Lopes
Meirelles (1989:48) faz a seguinte observação:

[...] é de suma importância essa filiação histórica para compre-


endermos o Direito Público Brasileiro, especialmente o Direito
Administrativo, e não invocarmos inadequadamente princípios
do sistema francês, como informadores do nosso regime político-
-administrativo e da nossa organização judiciária, quando, nesses
campos, só mantemos vinculação com o sistema anglo-saxônico.

Entretanto, essa tese não se aplica ao campo específico do direito ur-


banístico brasileiro cuja tradição está apoiada fortemente em princípios
legislativos de origem francesa. De modo geral, podemos aceitar que para
os defensores do direito urbanístico como ramo autônomo do direito a
influência francesa sobre as questões urbanas, tanto na esfera do planeja-

1390
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mento como no âmbito do direito, é sem dúvida nenhuma, predominante


(Fernandes, 2001).
Uma das primeiras legislações considerada de caráter urbanístico foi
à instituição em 1886 do Código de Posturas do Município de São Paulo,
que estabelecia a obrigatoriedade de se seguir um padrão para novos
arruamentos e às novas construções na cidade (Rolnik, 1997). Outra ca-
racterística importante dessa legislação promulgada no final do período
imperial brasileiro se deve ao fato de ser considerada a primeira a adotar
dispositivos normativos precursores do instrumento do zoneamento no
Brasil. Um dos seus requisitos tratava explicitamente da proibição da
“construção de casas populares e operárias no perímetro do comércio da
cidade” (Nery Jr., 2002).
Neste período a principal preocupação do poder público era disciplinar a
malha urbana viária e mais especificamente estabelecer regras para conter
os avanços dos cortiços sobre áreas centrais da cidade. Era o início da fase
do urbanismo sanitarista (Villaça, 1999) e seus efeitos marcariam por um
longo tempo, não só o pensamento e a prática da visão urbanística, mas
e principalmente, a paisagem de nossas cidades. As preocupações com
padrões de higiene e de beleza nortearam o projeto urbanístico elaborado
pelo engenheiro Aarão Reis para a implantação da nova capital do Estado
de Minas Gerais no final do século xIx.
A preocupação com a saúde da população passa a fazer parte do dis-
curso hegemônico do poder público e a servir de pretexto para as poucas
ações concretas exercidas sobre o território urbano. A estratégia do em-
belezamento e da higienização das cidades serviu como combustível para
acelerar o processo de segregação espacial das cidades brasileiras (Ribeiro
& Cardoso, 1996). Por outro lado, do ponto de vista sociológico, as cidades
começavam a exercer um papel central de consolidação do poder e das
decisões políticas, face ao aumento considerável da população urbana e
do surgimento de uma emergente burguesia com origem na ascensão do
capital comercial.

1391
O Código Civil de 19167 pioneiramente introduziu dispositivos legais
visando disciplinar questões referentes ao uso do solo urbano e do direito
de construir. Aos poucos, a legislação com fins urbanos é introduzida no
cotidiano de nossas cidades, sem, no entanto, uma política oficial capaz
de dar rumos e orientar de forma ordenada o processo de urbanização
em curso. Sem dúvida, a trajetória da legislação urbanística brasileira está
fortemente vinculada às origens do urbanismo sanitarista.
Marco regulatório fundamental e, uma espécie de divisor de águas, foi
à aprovação da Lei Federal n°. 6.766 em 1979, denominada de Lei de Par-
celamento do Solo Urbano, considerada precursora no âmbito jurídico de
regras para disciplinar as relações do uso do solo para fins urbano. O fato
importante desta lei foi que ela passou a criminalizar a conduta de quem
implantasse loteamentos de forma irregular ou clandestina e substituiu
o arcaico Decreto Lei n°. 58/378 que já não atendia mais às necessidades
da regulação da produção do solo urbano em nossas cidades.
É a partir da década de 1970 que o país através dos movimentos sociais
organizados inicia uma longa luta em prol da chamada Reforma Urba-
na, que entre tantos pleitos, clamava pelo acesso a terra urbanizada e à
moradia digna. A incorporação pela Constituição Federal de 1988, de um
capítulo específico para a Política Urbana, consolidada nos artigos 182 e
183 e, pelo entendimento do artigo 24, inciso I, o ordenamento jurídico
brasileiro reconhece o direito urbanístico como um ramo autônomo do
direito quando declara ser competência concorrente da União, dos Estados
e do Distrito Federal legislar sobre esse assunto.
A continuidade do movimento pela Reforma Urbana aposta suas
fichas na aprovação de uma lei que fosse capaz de instrumentalizar os
municípios em suas políticas públicas, com força para reverter o quadro
especulativo instaurado nas grandes cidades pela apropriação do espaço
urbano. Após onze anos de tramitação legislativa é aprovada a Lei Federal
nº 10.257/2001, denominada de Estatuto da Cidade, que se apresentava
como a possível tábua de salvação das cidades, pois serviam de estimulo
e instrumental para a construção de novos Planos Diretores, desta vez,

1392
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de forma participativa. Entretanto, passado mais de uma década de sua


aprovação, ainda são tímidos as conquistas e os efeitos de seus meca-
nismos jurídicos em prol de transformações espaciais que efetivamente
tenham contribuído na busca de uma maior justiça social e territorial nas
cidades brasileiras.

2. A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO URBANÍSTICO: PLANOS E


LEIS INSPIRADORAS DA REGULAÇÃO URBANÍSTICA NO BRASIL

No Brasil, o debate sobre planejamento urbano começa a surgir so-


mente no início do século xx e de forma ainda muito incipiente nas po-
líticas públicas. O senso comum costuma muitas vezes denominar ações
diferentes, mas utilizadas com significados iguais como, por exemplo:
urbanismo, planejamento urbano e desenho urbano.
O surgimento do termo urbanismo, que posteriormente passa a ser
um importante campo disciplinar de estudos da cidade tem início com as
teses em defesa do plano de expansão urbana da cidade de Barcelona do
engenheiro espanhol Idelfonso Cerdá9 (1815 – 1876). Conforme define F.
Choay (1980) é a partir deste período que a chamada teoria urbanística
encontra na Europa capitalista o terreno fértil para a difusão das suas
primeiras utopias10.

Em outras palavras, ignoramos ou conhecemos mal o fato de que


a constituição e a autorização de um discurso fundador do espaço
são de origem recente e ocidental. Sua disseminação era inevi-
tável desde que, mercê da revolução industrial, o padrão cultural
do ocidente se impunha, de bom ou mau grado. Pois, somente a
partir da segunda metade do século xIx é que o discurso fundador
de espaço enunciou suas pretensões científicas e designou seu
campo de aplicação com o termo urbanismo (Choay, 1980:03).

Progressivamente, o urbanismo começa a ser estudado com mais


profundidade, na tentativa de estabelecer relações entre seus efeitos e o
modo de produção capitalista que a cada dia se expandia com mais força
e impactos sobre as cidades. A deterioração das condições de vida da

1393
classe trabalhadora nas grandes cidades preocupava os pensadores da
época. Marx e Engels são uns dos principais críticos do sistema capitalis-
ta vigente que impõe péssimas condições de vida aos trabalhadores das
cidades industriais inglesas na metade do século xIx.
No início do século xx, o biólogo e filósofo Patrick Geddes (1910) publi-
ca sua obra “Cities in Evolution”, considerada como um dos marcos teórico
no enfrentamento das questões urbanas e regionais. Um de seus méritos
foi de introduzir o pensamento do planejamento regional como uma das
formas necessárias de compreender a expansão das cidades. Para Geddes,
através do seu conceito de região natural, o crescimento da cidade pode-
ria ser distribuído a partir de um território mais amplo, aproveitando-se
melhor os “recursos naturais em equilíbrio com a agricultura e os bosques,
formando um todo lógico e esparso” (Jacobs, 2000:19).
Mais recentemente, o urbanismo contou com a contribuição da visão
socioeconômica, com destaque para pensadores como Milton Santos e
David Harvey. O enfoque socioeconômico prevalece, onde a produção da
cidade é vista a partir das relações de troca e como o locus ideal para a
reprodução do capital.

O urbanismo pode ser encarado como uma forma particular ou


padronizada do processo social. Esse processo desenvolve-se
num meio espacial estruturado, criado pelo homem. A cidade
pode, por isso, ser olhada como um ambiente tangível constru-
ído – um ambiente que é um produto social (Harvey, 1980:168).

No Brasil, a influência francesa foi preponderante na iniciação dos es-


tudos práticos de planejamento urbano. Primeiramente, a vinda da Missão
Artística Francesa em 1816, sob a influência de Dom João VI propiciou
incursões no cenário urbano brasileiro, mais precisamente na arquitetu-
ra, com a introdução do estilo neoclássico nas artes e no paisagismo da
cidade do Rio de Janeiro (Reis, 1978). O projeto do engenheiro Aarão Reis
para a cidade de Belo Horizonte (1893) para sediar a nova capital de Minas
Gerais marca o início das grandes intervenções urbanas no Brasil. No Rio
de Janeiro, as reformas urbanas na área central da cidade feitas pelo Pre-

1394
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

feito Pereira Passos entre 1903 e 1906 provocou reações diversas, a favor
ou contra, mas sem dúvida se constituíram em um importante marco na
história da prática do urbanismo higienista no Brasil.
Mais tarde, a participação do urbanista francês Alfred Agache foi fun-
damental para que o campo disciplinar do planejamento urbano passasse
a ser visto com mais interesse no Brasil. Agache junto com outros colegas
arquitetos e engenheiros, fundou em 1911 em Paris, a SFU - Société Fran-
çaise des Urbanistes11. Sob a influência da SFU, a França aprova em 1919 a
sua primeira lei nacional cujo objetivo visava ordenar o planejamento de
seu território, intitulada de “l’Aménagement, l’embellissement et l’extension
des villes”, mais conhecida como Lei Cornudet12 que se tornaria o embrião
do sistema francês de planejamento.
No ano de 1923, a SFU organiza na cidade de Strasbourg, o primeiro
Congresso Internacional de Urbanismo e de Higiene Municipal, que contou
com numerosa participação de estudiosos e autoridades francesas e tam-
bém estrangeiras, que discutiram propostas para tornar as cidades mais
saudáveis e funcionais, através da utilização do urbanismo como um
instrumento de planejamento. Até então, os limites disciplinares entre o
urbanismo e o planejamento urbano permaneciam muito tênues.
Nessa época, o urbanismo começava a ser introduzido no Brasil, princi-
palmente por engenheiros e arquitetos que retornavam de seus estudos na
Europa, como o arquiteto carioca Atílio Correia Lima e pelos paulistanos,
Luiz Ignácio de Anhaia Mello e Francisco Prestes Maia.
Em 1930, é elaborado pelo engenheiro Prestes Maia para a cidade de
São Paulo, o denominado Plano de Avenidas que mais tarde o ajudaria
a se eleger prefeito da cidade de São Paulo para um longo mandato
(1938 – 1945).
Bastante convicto de suas teses, em 1932 o urbanista francês D. Alfred
Agache afirma o caráter multidisciplinar dessa nova prática que emergia
no âmbito das políticas públicas, num misto de ciência, arte e filosofia:
“L’Urbanisme – nous l’avons souvent dit dans nos conférences – est à la fois
une science, un art et une philosophie.”

1395
Ao mesmo tempo, para se caracterizar como ciência, defendia que os
estudos urbanísticos precisavam ser precedidos de métodos científicos e
de um minucioso trabalho de análise, bem como em elaborar uma síntese
geral para que se possam prever os melhoramentos necessários para o
desenvolvimento futuro das cidades. Nessa época, o campo disciplinar do
urbanismo cresce acompanhando o avanço da cidade fordista, sobretudo
nos Estados Unidos e em alguns países da Europa. Surgia então, a neces-
sidade de adaptar a emergente ciência urbanística aos novos tempos da
produção em massa. É, sobretudo com base nas teorias sociológicas dos
integrantes da Escola de Chicago, entre os quais Louis Wirth (1897-1952),
que o urbanismo era utilizado como categoria explicativa dos fenômenos
socioespaciais. O fenômeno da urbanização passou a ser visto como
um novo e revolucionário “modo de vida13” e a cidade era reconfigurada
pela sociedade industrial, abrindo espaços para a imposição de novos
costumes e padrões.
O advento do automóvel veio então sacramentar ainda mais esse
novo estilo, gerando demandas e necessidades cada vez mais ao gosto
dos novos tempos (Jacobs, 2000). Para os integrantes da Escola de Chi-
cago, a “ecologia humana” servia de base para seus estudos empíricos
centrados na estrutura urbana e tendo como cenário, a própria cidade
de Chicago (Coulon, 1995). Esses estudos tornaram evidente que as
contradições inerentes ao capitalismo se materializavam no ambiente
construído das cidades.
A introdução da técnica e da racionalidade até então, somente utili-
zada no interior dos espaços físicos industriais, passa a compor o arse-
nal de ferramentas à disposição nas pranchetas dos urbanistas, agora
também, imbuídos do objetivo de “disciplinar” o crescimento da cidade
através do projeto.
Começava a ser gestado o embrião do campo disciplinar do plane-
jamento urbano quase que como uma extensão do modo de produção
industrial vigente e que serviu de inspiração para o movimento moder-
nista-funcionalista. A cidade se torna assim uma espécie de laboratório

1396
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do urbanismo, e necessita criar novas condições para proporcionar não


apenas a (re)produção do capital, mas também simbolizar uma certa
qualidade de vida para seus habitantes. Esse desafio aos poucos foi se
tornando uma tarefa quase que “quixotesca”.
O ano de 1933 marcaria definitivamente o campo disciplinar do ur-
banismo com a realização do IV Congresso Internacional de Arquitetura
Moderna - CIAM14 na cidade de Atenas, tendo como tema central, “a cidade
funcional” e sob o comando da figura polêmica do arquiteto Le Corbusier
(1887 – 1965). Durante a realização do CIAM, criado para debater os rumos
da arquitetura e do urbanismo, foram analisados estudos de casos sobre
trinta e quatro cidades e formulado propostas das possíveis soluções para
seus problemas urbanísticos. As conclusões do CIAM foram compiladas
e posteriormente tornadas públicas através do controverso manifesto
denominado de Carta de Atenas.
Ao adotar princípios originários do modo de produção industrial, como
por exemplo, a visível separação entre os espaços destinados à moradia,
ao trabalho e ao lazer, a Carta de Atenas definia claramente os objetivos
do urbanismo modernista traduzindo-se na proposta do modelo ideal da
cidade do futuro cujo desenho clássico de Le Corbusier denominou-a de
“La Ville Radieuse”.
A influência modernista e funcionalista de Le Corbusier encontrou no
Brasil um solo extremamente fértil, com filiações de peso à sua corrente
de pensamento. Entretanto, a maioria de suas ideias quase nunca se
concretizou, apesar de toda sua insistência mundo afora, mas sem dúvi-
da nenhuma despertou em alguns arquitetos brasileiros uma espécie de
sedução (Hall, 2002).
Como no caso de Lúcio Costa (1902 – 1998), autor do projeto escolhido
para a construção de Brasília, seria um dos que adotaria quase que plena-
mente em seus projetos os dogmas do urbanismo funcionalista, apesar de
não se considerar um modernista.15 Primeiramente no projeto do Parque
Guinle (1948), mais tarde no projeto vencedor do concurso do Plano Piloto
de Brasília (1957) e no Plano Diretor da Barra da Tijuca (1969), na cidade
do Rio de Janeiro.

1397
Nesse período pós-segunda guerra, o debate teórico predominante
não procurava responder qual era a cidade necessária para as pessoas,
mas sim como ela devia ser para proporcionar o seu possível desenvol-
vimento econômico. A forma da cidade devia contemplar a possibilidade
de expansão das atividades produtivas.
O predomínio da divisão técnica do trabalho e da produção industrial
expressava-se nas intervenções urbanísticas levadas a efeito principal-
mente nas novas cidades que surgiam na América do Norte. O automóvel
já dominava a paisagem urbana das principais cidades mundiais e se
constituía de certa forma, num novo e ”imprescindível” símbolo de prospe-
ridade, além de marcar o novo estilo de vida que moldaria definitivamente
o ambiente construído (Maricato, 2001).
A experiência prática do planejamento industrial passa então a fazer
parte da rotina do urbanismo e contribui para a aceitação da ideia da ado-
ção do planejamento como um instrumento a enfrentar os problemas do
contexto urbano. Esse processo seria então visto não apenas e somente
como mais um instrumento de trabalho, mas e principalmente como sím-
bolo de uma nova ordem dominante de pensamento e como uma forma
de controle social sobre a cidade, a serviço da reprodução do capital.
O advento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) interrompe, mesmo
que parcialmente, o emergente debate acerca da função do urbanismo e do
planejamento urbano das cidades. Nesse período predomina, a partir dos
Estados Unidos, a importante contribuição teórica através dos integrantes
da chamada Escola de Chicago, que passa a utilizar análises sociológicas
para interpretar o modo de vida urbano e a estrutura interna das cidades.
Enquanto isso no Brasil, entusiasmados com o movimento modernista,
expoente da arquitetura brasileira, Oscar Niemeyer apresenta em 1940 o
projeto para a construção do novo bairro da Pampulha na cidade de Belo
Horizonte, e que se constitui no primeiro marco da nossa arquitetura
modernista alinhada fortemente às diretrizes preconizadas pelos CIAMs.
Idealizado pelo então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubistchek,
que posteriormente seria também o executor do plano da cidade de Bra-

1398
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sília, o Conjunto da Pampulha16 foi concebido às margens de uma lagoa


artificial e abrigou intencionalmente uma série de obras arquitetônicas
em estilo modernista visando constituir um novo marco territorial para
a cidade de Belo Horizonte. Esses mesmos personagens voltariam vinte
anos mais tarde como principais protagonistas da construção de Brasília
juntamente com Lúcio Costa (Holston, 1993).
Com certeza, a construção de Brasília é para o urbanismo brasileiro
o grande marco de referência modernista. A favor ou contra, é inegável
que a partir de sua inauguração, todas as contradições ali presentes pas-
sariam a ser alvo de diversos estudos disciplinares que a transformaria
num inesgotável laboratório de análise dos processos e das relações entre
o homem, a natureza e o espaço social.
É importante lembrar, que nesse período o país atravessava um mo-
mento em que era praticamente consenso de que as cidades brasileiras
precisavam de um marco regulatório urbanístico que contribuísse para o
ordenamento da crescente expansão urbana que se verificava no país. Até
então, o que prevalecia era que a maioria das leis municipais e algumas
poucas estaduais, tratavam distintamente das questões relativas ao uso do
solo. Devido à fragilidade do poder de fiscalização dos municípios, aliado
ao forte lobby impetrado pelos interesses de grupos econômicos locais, a
apropriação do espaço urbano se tornava um objeto de fácil manipulação.
A necessidade da redefinição das competências entre os entes federa-
tivos obrigou que a União, Estados e Municípios promovessem uma nova
adequação de suas funções, processo esse que ainda se encontra em fase
de consolidação.
No Brasil, a criação do Ministério das Cidades (2003) é visto como
um grande avanço no enfrentamento das questões urbanas, fruto do
processo desencadeado pela aprovação do Estatuto da Cidade (2001) e
defendida desde há muito tempo pelo Movimento Nacional pela Reforma
Urbana - MNRU. Mesmo revestido das melhores intenções, o Ministério
das Cidades enfrenta desde sua criação, dificuldades em conseguir atuar
de forma sistemática e colocar em prática ações eficazes na resolução
das questões urbanas.

1399
Até mesmo entre os pontos positivos como, a criação do Conselho
Nacional das Cidades durante a Conferência Nacional das Cidades de
2003, cujo objetivo central é de orientar e formular a Política de Desen-
volvimento Urbano para o país, nestes dez anos de atuação ainda busca
o fortalecimento desta instância, face à fragilidade política no âmbito do
Ministério das Cidades.

3. (RE) PENSANDO O PLANEJAMENTO URBANO BRASILEIRO: A


RACIONALIDADE NORMATIVA E A REGULAÇÃO URBANÍSTICA

O mundo tem acompanhado com especial atenção à acelerada trans-


formação socioespacial que vêm ocorrendo em nossas cidades nessas
últimas décadas. Ao observar essa realidade que se agrava a cada dia, po-
demos nos perguntar: quais são as possibilidades de mudar o(s) cenário(s)
que se apresenta(m)? ; qual o papel do planejamento urbano no futuro
das cidades? O plano urbano ainda pode ser um instrumento norteador
do desenvolvimento das cidades ou, se trata de um mero instrumento
de controle urbanístico? Essas e muitas outras perguntas continuam na
ordem do dia e ainda estão à procura de respostas.
Este artigo não tem a pretensão de apresentar soluções ou respostas
acabadas para tais indagações. Ao contrário, pretendemos a partir delas
discutir possibilidades e possíveis caminhos para o planejamento de nossas
cidades através do questionamento crítico aos usuais métodos e processos
utilizados em seu dia a dia.
Como já vimos, o acelerado fenômeno da urbanização transformou as
médias e grandes cidades em um complexo objeto de análise social. As
inerentes disputas políticas pelo poder, sua estrutura interna de funcio-
namento, seus processos sociais e os conflitos pela ocupação do espaço
acontecem a cada dia de forma mais intensa. A todo o momento, o territó-
rio da cidade adquire novas formas e configurações que desafiam qualquer
possível interpretação lógica e, ao mesmo tempo expõe as cicatrizes das
desigualdades socioespaciais.

1400
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

No âmbito do atual debate acadêmico se reconhece cada vez mais que


os fenômenos e processos vinculados à produção da cidade, face suas
particularidades socioespaciais, exige um complexo esforço analítico para
sua compreensão e tomada de decisões. Acreditamos que o objetivo é a
prática de um exercício de forma transversal para análise e construção
interdisciplinar que reconheça o planejamento urbano como instrumento
de transformação e que suas relações sociais devam ser pensadas e ali-
cerçadas a partir da adoção de novas premissas conceituais e de práticas
urbanas inovadoras, que construam um novo modo de se viver a cidade.
Para muitos, ainda predomina a ideologia de que o planejamento urba-
no é capaz de resolver todo e qualquer problema da cidade (Villaça, 1999).
Essa arraigada cultura tecnicista que remonta ao período dominado pelo
pensamento modernista-funcionalista, precisa sofrer uma transposição
paradigmática e ser alçada a um novo patamar não só de pensamento,
mas de prática urbanística. A justa pressão social que emerge no contexto
das cidades força a expansão da informalidade bem como, alimenta o
fenômeno da ilegalidade urbana que passa a exigir algo além da nossa
simples reflexão e que necessariamente busca novos aportes teóricos e
adoção de processos e de condutas participativas no âmbito do planeja-
mento urbano.
No Brasil as poucas conquistas sobre as questões urbanas foram im-
pulsionadas principalmente pelos movimentos sociais (Ribeiro & Santos
Jr, 1997) e que voltaram com mais força neste início de século xxI, com as
intensas manifestações em prol de moradia digna, transporte de qualida-
de e pelo fim da corrupção. A já cansada e desacreditada figura do plano
diretor passou a ser vista não mais como um mero e formal instrumento
urbanístico normativo – e na maioria dos casos de caráter estritamente
regulador e punitivo, mas como um possível e necessário instrumento
político de transformação social e territorial.
Sem a pretensão de propor qualquer fórmula mágica, mas reconhe-
cendo ser urgente e necessário estabelecer novas formas de práticas
urbanísticas adequadas à realidade brasileira, defendemos a necessidade

1401
de realimentar o debate sobre o papel que o planejamento urbano pode
e deve desempenhar nos dias atuais bem como, numa perspectiva de
visão futura.
No Brasil ainda é urgente discutir como fomentar e redirecionar a
compreensão do papel a ser desempenhado pela desgastada figura do
plano diretor17 e como o direito urbanístico pode exercer sua fundamental
função mediadora, aliado a um novo e necessário papel do Estado que
deve priorizar políticas socialmente territorializadas. Essa nova postura
de exercitar o planejamento urbano deve primar por uma maior inclusão
social ao reconhecer à necessidade de uma política direcionada para
uma construção de justiça territorial nas cidades. Esse princípio ainda
pouco discutido (e muito menos utilizado) precisa ser reforçado e conso-
lidado com a ratificação do conceito ainda incipiente da função social da
propriedade e da cidade. Acreditamos que, a insana prática de cada vez
mais aumentar o nosso já inchado arcabouço jurídico relativo às questões
urbanísticas, não se mostra suficiente para garantir uma perspectiva de
justiça social em nossas cidades e muito menos em garantir procedimentos
participativos e democráticos.
A interpretação literal da lei positiva é ainda um dos entraves que
precisa ser superado. A constante judicialização do planejamento urbano
ultrapassa as fronteiras da sua pretensa racionalidade para assumir um
papel quase que penalizador, ao invés de disciplinador. Para Hobbes (1988)
pensador inglês do século xVI apesar de sua postura política a favor da
utilização da força da lei como instrumento de controle do poder, quanto
indagado sobre a racionalidade jurídica assim se expressou:

Que a lei nunca pode ser contrária à razão é coisa com que
nossos juristas concordam, assim como com que não é a letra
(isto é, cada uma de suas frases) que é a lei, e sim aquilo que é
conforme a intenção do legislador. Isto é verdade, mas subsiste
a dúvida quanto àquele cuja razão deve ser aceite como lei.
Não pode tratar-se de nenhuma razão privada, porque nesse
caso haveria tantas contradições nas leis como há nas escolas
(Hobbes, 1988:164).

1402
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Hobbes talvez tenha exagerado em sua crítica. Mas de certa forma, ela
se enquadra no âmbito do planejamento urbano, uma vez que muitas legis-
lações urbanísticas é o puro reflexo da ideia individual de seu idealizador.
A defesa de Hobbes18 passava pela garantia do poder racional atribuído
a um Estado legislador, que sendo “uma só pessoa, não é fácil surgir qual-
quer contradição nas leis, e quando tal acontece à mesma razão é capaz, por
interpretação ou alteração, de eliminar a contradição” (Hobbes, 1998:164).
A nossa tradição brasileira de planejamento urbano está historicamente
atrelada ao império do pretenso racionalismo. No âmbito dos problemas de
natureza urbana vivenciamos uma constante busca pelos seus estudiosos
de aplicar a teoria da racionalidade técnica como forma de “solucionar”
seus conflitos. Essa falsa sensação do poder da técnica em transformar
as relações socioespaciais, contribuiu em muito, não só para o agrava-
mento dos problemas de natureza urbana, como também para aumentar
o descrédito no próprio planejamento urbano.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se reconstruir a trajetória da regulação urbanística no Brasil há


a percepção de que o estágio atual do nosso urbanismo ainda busca
consolidar sua maturidade. Ao mesmo tempo, o papel da legislação no
processo de construção e de transformação das nossas cidades, princi-
palmente neste momento pós-Estatuto da Cidade proporcionou algumas
conquistas nesta área. A pesquisa realizada pelo Ministério das Cidades
em 524 municípios brasileiros19 para aferir o conteúdo dos planos diretores
inspirados no Estatuto da Cidade constataram que houve sim avanços
(Santos Jr. & Montandon, 2011).
No Brasil, a principal mudança está na participação social. Na grande
maioria dos municípios pesquisados, Os movimentos sociais em defesa do
direito à cidade ganham cada vez mais força mundo afora. A publicação e
o referendo à Carta Mundial pelo Direito à Cidade (2010)20 estabeleceu um
marco na luta pela universalização deste conceito como um importante

1403
direito social. Inúmeros episódios recentes mundo afora reconhecem
que a população está cada vez mais disposta a exigir sua participação em
processos decisórios que garantam, não somente uma possível melhoria
na qualidade de vida nas cidades, mas e principalmente, o seu direito em
participar de seus processos decisórios.
Entre esses movimentos, destaque para os eventos ocorridos em 2013
na Turquia, onde milhares de pessoas ocuparam durante semanas o Par-
que Taksim Gezi em Istambul como protesto contra a sua destruição para
dar lugar a mais um empreendimento comercial. Em seu livro Rebel Cities
(2012), o geógrafo David Harvey prevê que novas e profundas mudanças
urbanas acontecerão a partir de movimentos sociais em defesa do direito
à cidade. Segundo ele, “... a revolução será urbana ou não será” e volta a
reconhecer de forma explícita a atualidade da tese defendida nos anos
de 1960 por Henry Lefebvre em seu clássico livro Direito à Cidade (1967),
onde já defendia que as possíveis transformações urbanas aconteceriam
a partir de intensas manifestações sociais para impor novas práticas ur-
banas nas grandes cidades.
O exemplo do movimento em defesa do Parque Taksim na Turquia é
bastante emblemático e, de certa forma, situa o atual momento em que
também se encontra esse tema na pauta e na agenda do movimento no
Brasil. O poder judiciário brasileiro aos poucos, avança na compreensão da
importância dos direitos urbanos. Progressivamente, algumas conquistas
na defesa de direitos das minorias, na defesa do acesso a terra urbani-
zada, à moradia digna e ao transporte eficiente vem sendo concedidas
pelo judiciário.
Os diversos planos diretores municipais elaborados pós Estatuto da
Cidade demonstram que, em sua grande maioria incorporou os instrumen-
tos jurídicos e urbanísticos que em tese, possibilitam garantir mecanismos
de controle social mais efetivo dos processos de planejamento urbano,
em particular, com a implantação dos conselhos municipais da cidade21.
Entretanto, ainda foram tímidos os avanços e conquistas no âmbito da
qualificação urbana das nossas cidades. Ao mesmo tempo, o que preocupa

1404
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

e que pode se tornar um problema mais adiante, é a crescente judiciali-


zação das decisões formuladas por órgãos colegiados de planejamento.
Não se trata aqui de questionar tais decisões e postura. Sabemos que é
função constitucional do Ministério Público agir quando há suspeição em
relação a qualquer procedimento ou decisão que por ventura não tenha
obedecido aos trâmites preconizados pela legislação ou pautados pela
ética que norteia a função pública. O fato é que, os constantes recursos
judiciais são, na maioria das vezes, manobras protelatórias que visam
reverter decisões que foram contra os interesses do recorrente.
Essa prática tem produzido um efeito colateral nos processos de fun-
cionamento dos conselhos, pois a insegurança imposta pela judicialização
torna o papel voluntário dos conselheiros uma tarefa de risco. Em muitas
cidades, conselheiros vêm sendo processados, como pessoa física, em
face de decisões tomadas no exercício de seus mandatos. E não se trata
de decisões que envolvem ilegalidades, mas contra posições e posturas
tomadas perante as propostas votadas e deliberadas pelos Conselhos.
Para exemplificar essa preocupação, citamos um caso acontecido
em Joinville/SC, onde houve embate judicial em função do Conselho da
Cidade formado pelo Plano Diretor de 2008 ter proposto que sua compo-
sição seria feita de forma paritária. Algumas vozes entenderam que isto
seria ilegal. O argumento utilizado neste caso é que seria obrigatória a
composição no formato de 60% dos membros serem obrigatoriamente da
sociedade civil e, dessa forma acionaram o Ministério Público. O fato é que
essa ação paralisou por meses a atuação do Conselho da Cidade e gerou
uma insegurança na atuação de seus membros. Até a periodicidade das
reuniões foi motivo de questionamento judicial. São questões como essas
que, quando judicializadas, acabam por colocar tanto o processo, como
as pessoas envolvidas, em um desgaste que compromete a continuidade
de sua atuação.
A vigilância e o controle social das ações relativas aos Conselhos
Municipais são fundamentais e imprescindíveis. Nosso questionamento é
relativo ao excesso e ao preciosismo de determinados questionamentos,

1405
bem como da morosidade que a justiça se manifesta nestes casos. Como
a maioria dos Conselhos é de caráter deliberativo, as decisões no âmbito
das suas atribuições deveriam prevalecer.
Por fim, defendemos a urgência da retomada de um debate mais amplo
sobre o papel dos Planos Diretores e da legislação urbanística na constru-
ção de cidades melhores e o alcance de seus resultados. Talvez ainda seja
um pouco cedo. Mas nunca é tarde para ter essa esperança.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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BRASIL. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília:
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NOTAS

1 Arquiteto e Advogado. Doutor em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ. Professor da Universidade de Blumenau – FURB. E-mail: lasouza@furb.br
2 Além do clássico, Teoria Geral do Direito Civil de 1890, Beviláqua foi também o principal mentor do projeto
que deu origem ao primeiro Código Civil Brasileiro em 1916.
3 A primeira experiência de codificação das leis é datada de 1804, na França, com a compilação do Code Civil
des Français, que ficou mais conhecido como Código de Napoleão.
4 Meirelles, Hely L. (1989). Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais.
5 Na clássica obra L’ Esprit des Lois de 1748, Montesquieu, formulou a teoria da separação dos poderes entre
Executivo, Legislativo e Judiciário.
6 O princípio do “rule of law”, de tradição anglo-saxônica, fundou as bases conceituais do Estado de Direito
sob a ótica liberal e positivista do domínio da lei. O “judicial control”, de tradição americana, tem sua origem
como instrumento na defesa dos direitos individuais, e como característica que o poder judiciário atua na
interpretação dos conflitos sociais.
7 O Código Civil Brasileiro de 1916 vigorou até 10/01/2003, quando entrou em vigor o novo Código Civil,
instituído pela Lei n.º 10.406, de 10/01/2002.
8 O Decreto-lei n. 58/37 teve vigência até ser promulgado o Decreto-lei n. 271/67 em 28/02/1967, que tratava
das disposições sobre o parcelamento do solo urbano, porém ele nunca foi regulamentado, o que tornou suas
disposições sem efeito.

1407
9 Considerado como o primeiro urbanista do ocidente, o engenheiro Idelfonso Cerdá, escreveu em 1867 sua
obra denominada de Teoria Geral da Urbanização, considerada a primeira a dar um tratamento científico à
técnica de organização das cidades. Conforme artigo de Francine Founier, disponível no site, www.unesco.
org/most/cerda.htm e acessado em 03/11/2004.
10 Para Choay, a utopia nas teorias urbanísticas, passou a incluir dois traços comuns: a abordagem crítica de
uma realidade presente e a modelização espacial de uma realidade futura. A utopia urbana elabora, numa
perspectiva não prática, em termos quase lúdicos, um instrumento que poderia servir efetivamente para a
concepção de espaços reais (1980).
11 A história da SFU e os principais momentos desse movimento podem ser encontrados no site www.
urbanistes.com.
12 A Lei Cornudet, foi implantada pela necessidade do disciplinamento da reconstrução da França depois da
assinatura do armistício que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. Ela foi inspirada na legislação sobre o uso
do solo existente em países vizinhos, como a Suécia (1874), Grã-Bretanha (1909) e Países – Baixos (1901).
13 O sociólogo norte-americano Louis Wirth, foi um dos fundadores da Escola de Chicago e defendia o uso
da sociologia como instrumento para compreender as transformações sociais e culturais promovidas pelo
fenômeno da urbanização, e publicou em 1938 seu famoso artigo intitulado “Urbanism as a way of life”.
14 Os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAMs, ocorreram entre os anos de 1928 - 1956 e
foram os grandes espaços de discussão e difusão do urbanismo modernista, na defesa do racionalismo e do
funcionalismo no planejamento urbano das cidades.
15 “Não sou, jamais fui, modernista. Aliás, tenho horror a esse conceito que me soa falso, mas sempre participei
dos movimentos de renovação válidos.” Frase de Lúcio Costa contida no livro: Lucio Costa Um Modo de Ser
Moderno. Nobre, Ana L. e outros (orgs.) (2002). São Paulo: Editora Cosac & Naify.
16 O início do Conjunto da Pampulha foi composto pela Igreja de São Francisco de Assis, do Museu de Arte, da
Casa de Baile e do Iate Clube. Além de Oscar Niemeyer, participaram outros artistas como Portinari, Ceschiatti
e do paisagista Burle Marx.
17 O termo “plano diretor” já não atende mais a ideia e a concepção ideológica do instrumento. Para tanto,
somos partidários que não se empregue mais esse termo, sendo que a terminologia mais apropriada é de
“plano de desenvolvimento urbano”.
18 O pensamento de Hobbes estava baseado no absolutismo político do Estado monarca. Esse poder seria
derivado de contratos estabelecidos entre os indivíduos e capazes de transformar o estado de natureza, segundo
na sociedade, todos os homens viveriam em guerra contra todos os homens.
19 A pesquisa abrangeu 524 municípios de todos os estados brasileiros e pode ser acessada através do site:
www.observatoriodasmetropoles.org.br.
20 A Carta Mundial pelo Direito à Cidade pode ser acessada em sua íntegra através do site: www.forumre-
formaurbana.org.br
21 A pesquisa realizada pelo Ministério das Cidades em 512 municípios brasileiros entre 2008 e 2010 atestou que
a maioria dos municípios brasileiros contava com Conselho da Cidade e o Plano Diretor previa instrumentos
como ZEIS e mecanismos de regulação fundiária.

1408
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O retrocesso do direito à moradia


adequada em porto alegre/rs: um
estudo sobre a Vila Chocolatão1

Giani Camargo Cazanova2

1. INTRODUÇÃO

Há mais de vinte anos, estava assentada, no centro de Porto Alegre/


RS, uma pequena vila. Constituída, em 2009, por 225 famílias, a Vila
Chocolatão estruturava-se em torno do lixo. A maioria de seus morado-
res retirava seu sustento da catação, da triagem e da comercialização do
material reciclável proveniente da região central da capital gaúcha.
Ao longo da ocupação, a infraestrutura daquela comunidade, situada
em área federal, pouco foi alterada. Não havia acesso às instalações hi-
drossanitárias. A energia elétrica era obtida informalmente o que facilitava
os recorrentes incêndios.
Em 2000, a União ajuizou uma ação reivindicatória com intuito de
retomar o imóvel de sua propriedade. Da decisão que determinou o re-
assentamento até a retirada definitiva das famílias decorreram dez anos.
Durante esse período, a municipalidade propôs um projeto de realocação
que tinha por intuito promover a inclusão social da Vila Chocolatão e ser,
por conseguinte, uma referência para reassentamentos de famílias de baixa
renda. Diante dessa proposta e da relevância da temática da moradia, a
presente pesquisa investiga a efetividade do direito à moradia no reas-
sentamento da Vila Chocolatão, tendo como base o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Comentário Geral n°4 e o
Estatuto da Cidade.

1409
Optou-se pelo método de abordagem dialético a partir do qual se anali-
sou a aplicação da referida normativa à situação em concreto. Assim, para
a realização do estudo foram empregados os métodos de procedimento
monográfico e estudo de caso.
Por fim, além de incitar o debate acerca do caso da Vila Chocolatão, o
presente estudo propõe-se a analisar em que medida foram observadas
as recomendações e garantias protetivas do direito à moradia previstas
tanto no plano nacional quanto internacional.

DA hABITAÇÃO à MORADIA ADEqUADA

O direito à moradia tem como fonte originária a Declaração Universal


dos Direitos Humanos (DUDH), que, em seu artigo xxV3, reconheceu a
habitação como uma necessidade básica para um padrão de vida ade-
quado. Apesar desse documento não ter uma natureza vinculativa para
os Estados, contém um núcleo de direitos da pessoa humana que foram
incorporados em diversos tratados e convenções internacionais de direitos
humanos, bem como em regulamentações e resoluções dos organismos
internacionais responsáveis pela proteção destes direitos4.

2. O DIREITO à MORADIA ADEqUADA

O direito à habitação, previsto na DUDH, foi aperfeiçoado através dos


Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).
Embora o PIDCP tenha significativa importância ao dispor, em seu artigo
17, sobre a inviolabilidade de domicílio; o PIDESC foi o marco do direito
à moradia ao conferir um tratamento específico aos direitos previstos na
Declaração Universal.
O PIDESC – ao trazer, em seu artigo 11, § 1°, o conceito “moradia ade-
quada” – prevê o reconhecimento da moradia como um direito humano,
gerando ao estado signatário a obrigação legal de promovê-la e protegê-la5.

1410
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Analisando esse dispositivo, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e


Culturais das Nações Unidas6 elaborou o Comentário Geral n°4, que, ao
tratar dos elementos constitutivos do direito à moradia, cria os parâmetros
para a avaliação do grau de proteção e promoção desse direito.
Ao elencar esses preceitos norteadores, o Comentário Geral n°4 trans-
forma-se no principal instrumento legal internacional de interpretação
do direito à moradia adequada7 Assim, é fundamental a incorporação do
conteúdo desse documento nas políticas nacionais de desenvolvimento
urbano para garantir a real efetividade do direito à moradia.
Já nas primeiras linhas, o Comitê refere que o acesso à moradia é um
direito humano essencial para a concretização dos demais direitos eco-
nômicos, sociais e culturais (art.1). Destaca, ainda, que seu exercício não
deve estar sujeito a qualquer forma de discriminação (art.6). O organismo,
também, é categórico ao afirmar que a moradia não deve ser interpretada
de forma restritiva e/ou isolada não podendo ser considerada meramente
como “um teto sobre a cabeça dos indivíduos”, tampouco julgada exclu-
sivamente como mercadoria. Enfatiza que habitação adequada significa
o direito a viver com segurança, paz e dignidade. Ademais, reafirma a
vinculação necessária entre o direito à moradia e os demais direitos hu-
manos e princípios fundamentais previstos no PIDESC (art.7, 9).
No Comentário, são apresentados de forma precisa os elementos cons-
titutivos do direito à moradia adequada (art.8). São eles:

Segurança Jurídica da Posse: independente do tipo de posse, todos


têm o direito de morar sem o receio de sofrer remoções, despejos,
ameaças indevidas ou inesperadas;
Disponibilidade dos serviços, materiais, benefícios e infraestrutura:
devem estar disponíveis os serviços essenciais à saúde, segu-
rança, conforto e nutrição, como o acesso à água potável, à
energia elétrica, às instalações sanitárias, à iluminação pública,
à coleta de lixo;
Custo acessível: os custos financeiros relacionados à moradia
(aquisição, aluguel, manutenção) não devem impedir nem com-
prometer a satisfação de outras necessidades básicas;
Habitabilidade: a moradia deve oferecer um espaço físico con-
dizente com o número de habitantes, bem como protegê-los
do frio, calor, umidade e outras ameaças à saúde, à vida e à
segurança física;
Acessibilidade: os grupos em situação de vulnerabilidade8 devem

1411
ter acesso pleno, sustentável e prioritário aos recursos adequados
para obter moradia;
Localização: a moradia adequada deve estar em local que permita
o acesso às opções de emprego, ao transporte público eficiente,
aos serviços de saúde, às escolas e creches, à cultura e ao lazer;
Adequação cultural: os usos e os costumes das comunidades
e dos grupos sociais devem ser respeitados nas construções e
reformas das habitações.

Além das observações relativas a conteúdo do direito à moradia, o


Comentário Geral n°4 inclui considerações relacionadas à aplicabilidade
desse direito. O Comitê refere, por exemplo, que é indispensável garantir
à população a oportunidade de participação na tomada das decisões pú-
blicas (art.9). Prevê, também, que os estados signatários apliquem o má-
ximo de recursos disponíveis para alcançar a plena efetividade do direito
à moradia, sendo que os grupos em situação de vulnerabilidade devem
ser priorizados (art.10,11). Reconhece, ainda, a compatibilidade entre os
componentes da moradia adequada e os remédios legais internos (art.17),
que, por sua vez, poderão ser utilizados para evitar despejos forçados, os
quais são incompatíveis com os requisitos do PIDESC, sendo justificados
unicamente em casos excepcionais (art.18).
As normas previstas no PIDESC, e, por conseguinte, o conceito de mo-
radia adequada desenvolvido no Comentário Geral n°4 foram ratificados
pelo Brasil e incorporados ao ordenamento jurídico pelo artigo 5°, § 2°,
da Constituição Federal, trazendo, portanto, a moradia como indicador
de um padrão de vida adequado.
Em relação à amplitude desse direito, Nelson Saule afirma:

Quanto à abrangência do direito à moradia, esta deve ser com-


preendida com base nos preceitos do direito internacional dos
direitos humanos, considerando-o indivisível, interdependente e
inter-relacionado com os demais direitos humanos, como direito
à vida, direito à igualdade, direito de não sofrer nenhuma forma
de discriminação, de liberdade de expressão e associação, direito
à inviolabilidade de domicílio, direito à saúde, à segurança e ao
meio ambiente saudável.
Cabe às instituições, aos organismos do Estado brasileiro e à
comunidade jurídica tratar o direito à moradia de forma justa e
equitativa, em pé de igualdade com a mesma ênfase com que
os demais direitos, como o direito de propriedade e o direito ao
meio ambiente.9

1412
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O direito fundamental à moradia é caracterizado como um típico di-


reito social ou de segunda geração, constituindo-se em uma pretensão
do indivíduo ou da coletividade perante o Estado. Logo, como os demais
direitos fundamentais, não pode ser interpretado de forma isolada.

2.2. Direito à Moradia e à Cidade no Brasil

A moradia foi reconhecida expressamente como direito fundamental


pela Emenda Constitucional n° 26/2000, que a inseriu no rol dos direitos
sociais elencados no artigo 6° da Constituição Federal.
Além da previsão literal, esse direito pode ser identificado em vários
dispositivos a partir de uma interpretação sistêmica do texto constitucio-
nal10, tendo por referência o artigo 1°, que aponta a dignidade da pessoa
humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. A
partir disso, é possível compreender que tudo o que impede ou dificulta
o acesso à moradia nega esse bem jurídico11.
Dentre os dispositivos relacionados à moradia destacam-se, na Carta,
aqueles que compõem o capítulo da Política Urbana. Enquanto o artigo
182 estabelece que a política de desenvolvimento urbano deve guiar-se
pelas funções sociais da cidade (art. 182, caput) e da propriedade (art.
182, § 2°), bem como aponta uma série de instrumentos para garantir o
cumprimento da função social da propriedade12; o artigo 183 indica duas
possibilidades legais de acesso à moradia segura: o usucapião urbano e
a concessão de uso especial.
De fato, o capítulo da Política Urbana representou uma inovação, con-
tudo o grande impacto veio por meio de sua regulamentação através da
Lei n° 10.257/2001, conhecida como o Estatuto da Cidade, que incorporou
o direito à cidade à ordem jurídica brasileira, transformando-se no eixo
da política urbana.
Como apontado por Nelson Saule13, há uma clara conexão entre a ci-
dade atender suas funções sociais e seus habitantes exercitarem o direito
à cidade. Em relação a isso, o autor frisa:

1413
As funções sociais da cidade, como interesses difusos, devem
compreender o acesso de todos ao direito à cidade para os atuais
e futuros habitantes das cidades, considerando os componen-
tes deste direito como à moradia, os equipamentos e serviços
urbanos, o transporte público, o saneamento básico, à cultura,
e o lazer14.

Dentre as diretrizes gerais inauguradas pelo Estatuto destacam-se:


a garantia do direito às cidades sustentáveis, entendido como direito
à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura
urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, às
presentes e futuras gerações (art. 2, I); a gestão democrática por meio da
participação da população e de associações representativas dos vários
segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento
de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (art. 2, II);
a oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte, serviços
públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às ca-
racterísticas locais (art. 2, V); a regularização fundiária e urbanização de
áreas ocupadas por população de baixa renda (art. 2°, xIV). Além disso,
prevê ferramentas de política urbana, que podem (e devem) ser utiliza-
das pelo Poder Público, especialmente pelo Município, para garantir as
funções sociais da propriedade e da cidade. São indicados instrumentos
urbanísticos15, de regularização fundiária16, bem como meios para coibir
a retenção especulativa de terrenos urbanos17.
Assim, o direito à cidade deve ser interpretado como o direito à cida-
de sustentável, o que significa que o planejamento territorial das áreas
urbanas e rurais deve respeitar o meio ambiente, bem como promover o
acesso à moradia adequada, aos bens e serviços públicos18.
Conforme destaca Nelson Saule, “o direito à moradia é o núcleo cen-
tral do direito à cidade sustentável” 19. Essa intersecção ocorre por ambos
disporem dos mesmos elementos, tais como o acesso à terra urbana, à
moradia adequada, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana,
ao transporte e aos serviços públicos.
Deste modo, para a realização do direito à cidade, é fundamental que

1414
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o acesso à moradia esteja à disposição de quem dela necessite. Como


menciona Lígia Melo, “não há que se falar em direito à cidade quando
um Município possui grande número de pessoas sem ter onde morar, sem
moradia adequada” 20.
Constata-se, portanto, que o Estatuto da Cidade remete aos elementos
constitutivos da moradia adequada elencados no Comentário Geral n° 4,
uma vez que não limita a moradia unicamente à existência de espaço
físico, condicionando-a, também, ao acesso aos serviços e equipamentos
oferecidos pela cidade.

3. A VILA ChOCOLATÃO E O DIREITO à MORADIA

Há mais de vinte anos, instalaram-se as primeiras famílias na área que


posteriormente seria conhecida como Vila Chocolatão, constituindo, no
centro de Porto Alegre/RS, uma das primeiras ocupações do País formada
essencialmente por pessoas em situação de rua21.
O assentamento situava-se em um terreno federal, sendo cercado pelos
os prédios da Receita Federal, do Ministério da Agricultura, do Serpro,
do IBGE, da Justiça Federal e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Nas proximidades, estavam o Centro Administrativo do Estado, a Câmara
Municipal de Vereadores, o Parque Harmonia, a Usina do Gasômetro, o
Shopping Praia de Belas, a Catedral Metropolitana, a Assembleia Legis-
lativa e o Palácio Piratini22. Evidentemente, a Vila Chocolatão destoava
bastante do cenário ao seu entorno.

1415
Figura 1: Centro de Porto Alegre

Fotografia: PMPA, 2012.

Figura 2: Vila Chocolatão e Justiça Federal

Fotografia: arquivo interno GAJUP, 2010.

A Vila era formada por 225 famílias, totalizando 732 pessoas, que so-
breviviam, em sua maioria, da catação, da triagem e da comercialização
de material reciclável23. Embora existissem outras atividades econômicas,
a lógica24 da comunidade girava em torno do lixo que lá era ressignificado,
transformando-se em fonte de renda25.

1416
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A localização privilegiada era um atrativo para a população que retirava


seu sustento da reciclagem. Na área central, é produzida diariamente uma
quantidade significativa de “lixo limpo” pelos condomínios, escritórios,
lojas e, principalmente, pelos órgãos públicos situados nas proximidades26.
Em 2009, o Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB) realizou
um levantamento das características socioeconômicas dos moradores
da Vila Chocolatão. Além da população residente, foram analisadas as
construções existentes e as condições habitacionais. Posteriormente, em
2011, um novo estudo técnico foi realizado. Desta vez, foi conduzido pela
Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB), em parceria com o Grupo de
Assessoria Justiça Popular (GAJUP)27.
A autarquia observou que a comunidade era formada, principalmente,
por jovens dentre os quais 45% estavam em idade escolar e 54% encon-
travam-se em idade ativa28.Em relação à população em idade escolar, a
maioria das crianças e adolescentes freqüentavam as escolas situadas nas
proximidades da Vila. Esses estabelecimentos de ensino apresentavam um
número reduzido de alunos por classe o que tornava o ambiente bastante
favorável ao aprendizado29.
As coletas de material reciclável eram realizadas tanto ao longo das
vias públicas quanto em pontos fixos. Essa última modalidade costuma-
va ser bastante disputada entre os papeleiros, pois facilitava o trabalho
e aumentava a renda. Nesses casos, normalmente, além do material, o
catador recebia doações diversas como mobílias, roupas, cestas básicas.
O fato da Vila Chocolatão situar-se no centro de Porto Alegre conferia,
também, maior facilidade de acesso aos equipamentos públicos de saúde.
Os moradores contavam tanto com os serviços prestados pelos principais
hospitais da cidade quanto com o atendimento oferecido pela Unidade
de Saúde Santa Marta, que disponibiliza aos seus pacientes uma grande
variedade de serviços30.
A maioria dos domicílios foram autoconstruídos com sobras de mate-
riais e encontravam-se em situações precárias, apresentando risco para
seus moradores. O assentamento era formado por muitos becos estreitos

1417
e locais alagadiços nos quais havia significativo acúmulo de lixo, gerando
condições extremas de insalubridade para a população31.

Figura: Beco Figura: Área entre as casas

Fotografia: Strohaecker, 2011. Fotografia: arquivo interno GAJUP, 2010.

Por não terem acesso às redes formais de água e energia elétrica, os


moradores utilizavam-se de ligações clandestinas32. Além disso, por não
contarem com a rede de esgoto formal, os moradores serviam-se dos ba-
nheiros coletivos, constituídos de quatro cabines e duas pias, instalados
no centro da comunidade pelo Poder Público.

Figura 3: banheiro coletivo Figura 4: tanques coletivos

Fotografia: arquivo interno GAJUP, 2009. Fotografia: arquivo interno GAJUP, 2010.

1418
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

De fato, os moradores da Vila Chocolatão estavam situados em um


contexto de grande vulnerabilidade, vivendo em condições habitacionais
extremamente precárias. Apesar disso, tinham acesso facilitado a diver-
sos serviços e equipamentos públicos, tais como instituições de educação
infantil, escolas de ensino fundamental e médio, hospitais, postos de
saúde e unidades de assistência social; bem como às áreas de lazer è às
opções de emprego33. Logo, estavam presentes vários componentes da
moradia adequada que não poderiam ser ignorados no reassentamento
da comunidade ali consolidada há mais de vinte anos.

3.1 O Reassentamento

O processo de reassentamento foi desencadeado pela Ação Reivindi-


catória n°2000.71.00.000973-1/RS34, proposta pela União com intuito de
reaver, de imediato, o imóvel de sua propriedade. Em 11 de dezembro de
2001, foi determinada, em sede recursal, pela Terceira Turma do Tribunal
Regional Federal da 4° Região a retomada da área com a consequente
retirada das famílias ali residiam.
Da decisão que determinou o reassentamento até a retirada definitiva
das famílias, em maio de 2011, decorreram dez anos. Durante esse perí-
odo, estabeleceu-se uma mesa de negociações que pouco contou com a
participação dos maiores interessados: os moradores.
Ao longo do tempo, houve um crescimento populacional significativo.
Entre os anos de 2000 a 2006, a cada dia, novas famílias instalavam-se na
comunidade com a expectativa da aquisição de uma habitação digna. Em
relação a esse fenômeno, Martin Smolka35 já alertava que os períodos de
mais intensa afluência de ocupantes em assentamentos informais coin-
cidem, em muitos casos, com aquelas em que os assentamentos foram
objeto de programas de regularização de qualquer natureza.
Esse processo foi desconsiderado pelo Poder Público. Assim, enquanto
os entes públicos, em seus gabinetes, negociavam terrenos, pensavam

1419
em projetos e buscavam recursos, a Chocolatão crescia. Seus moradores
permaneciam vivendo em condições de absoluta precariedade.
Durante a tramitação da ação reivindicatória, foi elaborado pelo DE-
MHAB o projeto posteriormente divulgado tanto pela autarquia quanto
pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA) como um modelo a ser
seguido para os casos de reassentamento da população de baixa renda.
A execução do projeto foi conduzida principalmente pela Secretaria
Municipal de Governança Solidária Local, a qual fomentou a organização
de diferentes entidades públicas e privadas na Rede para a Sustentabilidade
da Vila Chocolatão, que tinha por principal objetivo promover a remoção
daquela comunidade.
A municipalidade reconhecia a extrema vulnerabilidade social da Vila
Chocolatão e sua dependência da região central. Isso, contudo, não foi
suficiente para que fossem realizados esforços para reassentar a comu-
nidade em uma área mais próxima.
A Governança Solidária acreditava que seu projeto seria suficiente
para garantir a sustentabilidade da comunidade no novo assentamento,
evitando, dessa forma, o abandono das casas e o retorno à irregularidade.
Assim, divulga na mídia e em meio acadêmico que:

O objetivo do projeto de sustentabilidade da Vila Chocolatão é o


desenvolvimento humano e a educação emancipadora da comu-
nidade. Capacitar previamente os moradores do assentamento ou
do reassentamento. Preparar a comunidade a nova realidade na
futura moradia, resgatando a sua dignidade humana. Garantir o
direito aos serviços básicos, ensinar a assumirem as responsabi-
lidades de todos os melhoramentos adquiridos. Reduzir o índice
de refluxo e reduzir a inadimplemência dos permissionários e
concessionários. Apoiar a comunidade e buscar novos projetos
e ações para garantir a emancipação, a verdadeira inclusão
socioespacial e a sustentabilidade do complexo habitacional36.

O interesse internacional se deve à preocupação em dar aos


moradores do local não apenas novas casas, mas também um
novo estilo de vida por meio da união de esforços de uma ampla
rede de órgãos públicos, ONGs e empresas. A prefeitura firmou
parcerias a fim de oferecer cursos profissionalizantes e meio de
sobrevivência para as famílias envolvidas37.

1420
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Esse projeto foi amplamente divulgado pela cidade como um modelo


de habitação de interesse social sustentável. Ganhou repercussão inter-
nacional. Foi selecionado pelo UN Global Compact Cities Programme38,
apresentado na Expoxangai 2010 e em países como a China, Austrália,
África do Sul, Angola, Moçambique. Entretanto, um olhar um pouco mais
atento à realidade local perceberia que o projeto de reassentamento não
era tão perfeito quanto aparentava.
A Vila Chocolatão, formada por 225 famílias, estava assentada, há
mais de vinte anos, na região central de Porto Alegre. Desconsiderando
essas informações, foram construídas 181 unidades habitacionais no novo
assentamento, localizado na Avenida Protásio Alves n°9.099, a cerca de
dez quilômetros da ocupação original39.

Figura 5: mapa

Fotografia: DEMHAB, 2010.

Após ser firmado um Termo de Compromisso40 entre o DEMHAB, a


PMPA, o DMLU, a União e as Associações de Moradores e de Catadores
da Vila Chocolatão, o reassentamento teve início no dia 12 de maio de

1421
2011, estendendo-se até o dia 24 daquele mês. A retirada das famílias,
em virtude da peculiaridade do caso, contou com forte aparato policial.

Figura 6: a remoção

Fotografia: Comitê Popular da Copa, 2011.

Em 13 de maio de 2011, ocorreu a inauguração do Residencial Nova


Chocolatão, marcada por uma grande festividade. Aparentemente “o final
feliz para uma história triste”, como anunciavam as manchetes dos princi-
pais jornais da cidade. Entretanto, decorrido dois anos do reassentamento,
percebe-se que durante o processo de transferência daquela comunidade
alguns direitos foram “esquecidos” ao longo do caminho.

3.2 O Residencial Nova Chocolatão


e o Direito à Moradia Adequada41

Ao contrário do divulgado pelo Município42, inexistiu participação da


comunidade na fase de elaboração e na execução do projeto de reassen-
tamento, contrariando a diretriz da gestão democrática, prevista no art.
2°, inciso II, do Estatuto da Cidade43. Essa postura tornou propícia a ocor-
rência de problemas que poderiam ser evitados caso as características e

1422
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

as expectativas daquela comunidade fossem consideradas na construção


do projeto em questão.
Além disso, os elementos constitutivos do direito à moradia não foram
completamente observados, o que, na prática, tem causado a perda de
direitos que já estavam consolidados na antiga área.
Entre todos os componentes do direito à moradia, a localização foi
aquele que, com mais evidência, foi ignorado no reassentamento da
Vila Chocolatão. Isso interferiu não apenas na forma de locomoção dos
moradores pela cidade, mas também afetou diretamente os direitos ao
trabalho, ao lazer.
Muitos moradores que viviam da reciclagem tiveram sua fonte de
renda significativamente prejudicada, pois existe pouca possibilidade da
atividade ser exercida no loteamento. Como reconhecido pela própria
Associação de Catadores e Recicladores44, a Unidade de Triagem não
comporta todos os trabalhadores. Além disso, carece de capacitação e
infraestrutura adequadas.
Embora tenham sido construídas, no loteamento, áreas para lazer
(quadra poliesportiva e praça) não foram planejadas em conjunto com a
comunidade, o que acarretou a não identificação e o freqüente abandono
destes espaços. Portanto, o acesso ao lazer foi prejudicado tanto pela
distância quanto pelo planejamento arquitetônico do loteamento.

Figura 7: praça Figura 8: praça e quadra poliesportiva

Fotografia: arquivo interno GAJUP, 2012. Fotografia: arquivo interno GAJUP, 2012.

1423
Assim, também, não foi considerada a adequação cultural, uma vez
que a comunidade tinha geografia e costumes próprios que não foram
observados no momento de elaboração do projeto do loteamento.
Além disso, não foi preenchido o requisito da disponibilidade de
serviços e equipamentos públicos, o que afetou significativamente o
direito à saúde e à educação. Conforme reconhecido pela própria munici-
palidade, a região de reassentamento já contava com uma grande carência
de equipamentos e serviços públicos45. A transferência da Vila Chocolatão
para esta localidade incrementou o já deficitário sistema de saúde local.
Segundo os moradores, a qualidade do serviço de saúde prestado nas
proximidades do loteamento é muito aquém daquela oferecida na região
central. O acesso ao sistema é dificultado pelas longas filas, pela limitação
no número de atendimentos, bem como pela carência de profissionais e
de infraestrutura.
Além dos empecilhos relacionados à saúde, os moradores comentaram
sobre questões relacionadas ao ensino. Existem relatos sobre a dificulda-
de de adaptação de crianças e adolescentes da antiga Vila às escolas da
região. Outra queixa bastante recorrente diz respeito à creche construída
no loteamento, a qual está sendo mantida por entidade externa que tem
cobrado mensalidades e ameaçado vedar a matrícula dos filhos de pais
inadimplentes. Além disso, o horário de funcionamento, muitas vezes, é
incompatível com a rotina laboral dos pais. Foi mencionado, ainda, que
crianças estranhas à comunidade estão ocupando as vagas que deveriam
ser destinadas aos filhos dos moradores do loteamento.
Na Nova Chocolatão, também, não está contemplado o custo acessí-
vel, pois os gastos envolvidos na manutenção das habitações aumentaram
consideravelmente, sendo, frequentemente, incompatíveis com a renda
da população reassentada. No loteamento, os moradores depararam-se
com custos que não existiam no antigo local, tais como a luz, a taxa das
casas, o transporte, a creche.
Durante boa parte do processo de reassentamento, o requisito da aces-
sibilidade foi ignorado, pois as famílias da Chocolatão, caracterizadas, em

1424
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sua maioria, por uma situação de vulnerabilidade, tiveram seu acesso pleno
à moradia dificultado pela cobrança de uma taxa pela posse da casa46.
Diante desse contexto, as lideranças comunitárias, assessoradas pelo
GAJUP, comunicaram ao Ministério Público Federal uma série de descum-
primentos do que fora pactuado com a municipalidade, dentre os quais
estava a cobrança das taxas das casas. Em razão disso, recentemente, foi
suspensa a cobrança desses valores por parte do Município.
Cabe enfatizar que a suspensão da taxa das unidades habitacionais
ocorreu devido à mobilização comunitária. Essa cobrança é originalmente
prevista no projeto. Sua existência, portanto, afetava o requisito da aces-
sibilidade, bem como comprometia o elemento do custo acessível, uma
vez que esse gasto é computado juntamente com os demais existentes
no núcleo familiar.
Até a suspensão do valor das moradias, eram realizadas sucessivas
cobranças dos moradores inadimplentes sob pena extinção contratual,
comprometendo, portanto, o requisito da segurança da posse. O fato
de essa postura ter ocorrido representa uma afronta ao direito à moradia e
uma distorção das supostas finalidades do projeto divulgado como modelo.
Por fim, em relação às condições de habitabilidade dos domicílios,
realmente, houve uma melhora significativa em comparação com a situ-
ação anterior, conforme apontado pelos próprios moradores.

Figura 9: loteamento vista I Figura 10: loteamento vista II

Fotografia: arquivo interno GAJUP, 2012. Fotografia: arquivo interno GAJUP, 2012.

1425
O resultado já era o esperado, uma vez que as novas moradias são
constituídas de alvenaria em um ambiente salubre e dispõem de rede de
esgoto, de fornecimento de água potável, de energia elétrica. Ainda em
relação à infraestrutura, os moradores levantaram observações interessan-
tes. As construções concluídas há dois anos já apresentavam problemas
na infraestrutura e na rede de esgotos.
Foi relatado, também, que, nos dias de chuva, há alagamentos em al-
gumas áreas do loteamento. Segundo os moradores, isso ocorre em razão
do entupimento dos bueiros pelo lixo que, na falta de local específico, é
depositado nas esquinas.

Figura 11: lixo na esquina. Figura 12: cesta de lixo autoconstruída.

Fotografia: arquivo interno GAJUP, 2012. Fotografia: arquivo interno GAJUP, 2012.

Por fim, a desrespeito dos elementos constitutivos do direito à moradia


adequada e o descumprimento do pactuado em documentos oficiais tem
gerado a violação de direitos que já estavam garantidos na região central.
A combinação entre a redução e dificuldades de obtenção de renda, a
elevação dos custos com a moradia e a dificuldade de acesso aos serviços
e equipamentos públicos impulsionou muitas famílias a deixar suas ca-
sas. Segundo os relatos, poucos moradores da antiga comunidade ainda
permanecem na Nova Chocolatão.

1426
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Conforme os moradores, no máximo, metade da população original-


mente contemplada permaneceu no loteamento. Logo, o projeto ampla-
mente divulgado pelo DEMHAB e pela PMPA restringiu-se à velha con-
cepção de moradia unicamente como uma unidade habitacional. Diante
da continuidade dessa lógica, o projeto modelo não promoveu, de fato, a
inclusão social daquela comunidade.
Hoje, os moradores da Chocolatão reivindicam aqueles direitos que
foram perdidos durante o processo de reassentamento. A comunidade,
por meio de seus representantes, informou ao Ministério Público Federal
sobre sua insatisfação diante da inobservância das promessas realizadas
antes do reassentamento, dentre as quais está a falta de capacitação para
a geração de renda, o tarifamento da creche comunitária, os elevados
custos das habitações, a sobrecarga dos postos de saúde da região, a
ausência de sede para a Associação de Moradores; bem como requereu
o cumprimento do Termo de Compromisso. Assim, apesar de todas as
dificuldades, eles vêm tentando se organizar e reivindicar seus direitos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Havia um contexto normativo bastante favorável para promover a re-


gularização e a urbanização da Vila Chocolatão. Essa hipótese, entretanto,
em nenhum momento foi cogitada. Ao contrário do recomendado pela
doutrina especializada e pela normativa existente, o reassentamento foi
considerado como primeira e única opção.
A remoção para dez quilômetros da região central de Porto Alegre
interferiu não apenas na forma de locomoção daquela comunidade, mas
também na principal fonte geradora de renda: a reciclagem. Além disso,
afetou os direitos à saúde, à educação, ao lazer.
A combinação dos elevados custos de manutenção das habitações com
as dificuldades de obtenção de renda impulsionou muitos moradores a
vender suas casas e retornar à ilegalidade. Dois anos após a transferência,
já havia grande refluxo da população original ao centro da cidade. Estima-

1427
-se que menos da metade dos moradores beneficiados pela realocação
permaneceram no loteamento.
Diante disso, constata-se que o projeto da Vila Chocolatão vai de
encontro à concepção atual do direito à moradia prevista tanto no plano
nacional quanto no internacional. Observa-se que não foram plenamen-
te atendidos os elementos constitutivos do direito à moradia adequada
elencados no Comentário Geral n° 4 do Comitê de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, o que acarretou a supressão de direitos que já estavam
garantidos na antiga área de ocupação. Além disso, verifica-se que não
foram observadas as recomendações e garantias previstas na Constituição
Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade.
A remoção da Vila Chocolatão desconsidera, portanto, a construção
doutrinária e legislativa inaugurada com a Constituição de 1988 e, na
prática, reproduz a velha lógica da expulsão da população de baixa renda
para as áreas periféricas e não valorizadas da cidade. Ela representa, por-
tanto, um retrocesso na política urbana porto-alegrense e uma violação
do direito à cidade.

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-modelo-de-transferencia-de-comunidades-insalubres-3308088.html>. Acesso
em:09/08/2013.

NOTAS

1 O presente artigo originou-se do trabalho de conclusão de curso apresentado pela autora em dezembro
de 2012.
2 Bacharela em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP). Pós-graduanda em Direito
Municipal pela Escola Superior de Direito Municipal (ESDM). Integrante do Grupo de Assessoria Justiça Po-
pular (GAJUP-SAJU/UFRGS) e do Grupo de Extensão e Pesquisa em Direito Urbanístico da FMP. E-mail: giani.
cazanova@gmail.com.
3 Art. xxV Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948): Toda pessoa tem direito a um padrão de vida
capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados
médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez,
viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
4 Alguns exemplos são o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966); a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver
(1976); a Agenda Habitat (1996); os Comentários Gerais nos 4 e 7 do Comitê das Nações Unidas de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais.
5 Art. 11,§1º, PIDESC: Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de
vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas,
assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apro-
priadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da
cooperação internacional fundada no livre consentimento.
6 O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, instituído em 1985, é um órgão das Nações Unidas
responsável pelo controle dos tratados em matéria de Direitos Humanos. ALFONSIN, Betânia; FERNANDES,
Edésio. Coletânea de Legislação Urbanística: normas internacionais, constitucionais e legislação ordinária.
Belo Horizonte: Fórum, 2010, p.33.
7 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à Moradia Adequada na América Latina. In: ALFONSIN, B; FERNANDES,
E. (Org.). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e
processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2006. p.33.
8 São citados como exemplo no Comentário Geral n° 4: idosos, crianças, mulheres, portadores de deficiências,
vítimas de desastres naturais, moradores de áreas de risco, segmentos empobrecidos.
9 SAULE JÚNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre:
Fabris, 2004, p.133.
10 Art. 5, xxIII; Art.6; Art. 7; Art. 21,xx; Art.23,Ix; Art. 30, VIII; Art. 182; Art. 183.
11 MELO, Lígia. Direito à moradia no Brasil: política urbana e acesso por meio da regularização fundiária.
Belo Horizonte:Fórum, 2010, p.40-42.
12 Parcelamento e edificação compulsórios; IPTU progressivo no tempo; desapropriação sanção (art. 184, § 4°).
13 SAULE JÚNIOR, Nelson. Direito Urbanístico: vias jurídicas para políticas urbanas.Porto Alegre: Fabris,
2007, p.52.

1430
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

14 Ibidem, p.54.
15 São eles: os direitos de superfície e preempção; a outorga onerosa do direito de construir; a transferência
do direito de construir; as operações urbanas consorciadas; o estudo de impacto de vizinhança.
16 São eles: as zonas especiais de interesse social; a usucapião especial de imóvel urbano; a concessão de
direito real de uso; a concessão de uso especial para fins de moradia.
17 São eles: o parcelamento e edificação compulsórios; o IPTU progressivo no tempo; a desapropriação com
títulos da dívida pública; o consórcio imobiliário.
18 MELO, Op.Cit. p.33
19 SAULE JÚNIOR, 2007, p.52
20 MELO, Op.Cit. p.32
21ASSOCIAÇÃO DE GEÓGRAFOS BRASILEIROS – SEÇÃO PORTO ALEGRE. Laudo técnico sócio-econômico
do processo de reassentamento da Vila Chocolatão. Porto Alegre, 2011, p.8. Disponível em: <http://
www.agb.org.br/documentos/LaudoTecnico.pdf>. Acesso em 09/08/2012.
22 SANTINI, Giovana. Vila do Chocolatão: encontros da collage na arquitetura. Dissertação de Mestrado no
Programa de Pós Graduação em Arquitetura. Porto Alegre: UFRGS, 2007, p.37.
23 DEMHAB. Projeto de trabalho técnico social: Vila Chocolatão. Porto Alegre, 2010, p.6.
24 Ao todo existiam seis galpões na Vila Chocolatão. Alguns donos dos depósitos eram proprietários, também,
de moradias e de carrinhos. Em muitos casos, o dono de galpão cedia ao papeleiro a utilização do carrinho.
Em contrapartida, este deveria vender àquele o material coletado. A mesma relação se estendia às moradias.
25 AZAMBUJA, Marcelo Andrade de.; ALT, Júlio Picon. Uma história de Assessoria Popular: o trabalho do
GAJUP na Vila do Chocolatão. In: Anais do II Seminário de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais.
Goiáis: IPDMS, 2012, p.5.
26 SANTINI, Op.Cit. p.43.
27 O Grupo de Assessoria Justiça Popular (GAJUP) é um dos quinze diferentes grupos integrantes do progra-
ma de extensão Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Desde agosto de 2009, o grupo realiza atividades de Assessoria e Educação Popular na Vila
Chocolatão. AZAMBUJA; ALT, Op.Cit.p.01.
28 DEMHAB, Op.Cit.p.10,13.
29 ASSOCIAÇÃO DE GEÓGRAFOS BRASILEIROS – SEÇÃO PORTO ALEGRE. Laudo técnico sócio-econômico
do processo de reassentamento da Vila Chocolatão. Porto Alegre, 2011, p.28 Disponível em: <http://
www.agb.org.br/documentos/LaudoTecnico.pdf>. Acesso em 09/08/2013.
30 Ibidem, p. 36.
31 DEMHAB, Op.Cit.p. 11.
32 Ibidem, p.12.
33 AGB, Op.Cit.p.25-36.
34 Uma minuciosa análise da tramitação da Ação Reivindicatória em questão foi realizada no estudo de
Adriana Strohaecker (2011, p.70-74).
35 SMOLKA, Martim. Regularização da ocupação do solo urbano: a solução é parte do problema, o problema
é parte da solução. In: ALFONSIN, B; FERNANDES, E. (Org.). A Lei e a ilegalidade na produção do espaço
urbano. Belo Horizonte: DelRey, 2003. p.279.
36 COSTA, Denise Souza; SOUZA, Vânia Gonçalves de. Direito à moradia digna e educação emancipadora: o
paradigma da rede de sustentabilidade da Vila Chocolatão. In: Anais do II Congresso de Direito Urbano-
-Ambiental: congresso comemorativo aos 10 anos do Estatuto da Cidade. v. 2. Porto Alegre: Exclamação,
2011, p.1118.
37 ZERO HORA. Remoção de vila da Capital coloca à prova modelo de transferência de comuni-
dades insalubres. Disponível em: < http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2011/05/remocao-
-de-vila-da-capital-coloca-a-prova-modelo-de-transferencia-de-comunidades-insalubres-3308088.html>.
Acesso em:02/05/2013
38 Disponível em: <http://citiesprogramme.com/cities/americas/brazil/porto-alegre/social-inclusion-project-
-for-vila-chocolatao>. Acesso em: 09/08/2013.
39 O loteamento está situado no Bairro Mário Quintana, caracterizado por um indicie de vulnerabilidade social
bastante elevado. A região, anteriormente chamada Chácara da Fumaça, tornou-se, na década de 80, o local de
destino das remoções promovidas pelo Poder Público. Foram deslocados para o local um número significativo
de populações retiradas de áreas de risco e de ocupações irregulares. Em razão disso, o bairro sofreu um surto
populacional que ocasionou muitas demandas de equipamentos e serviços urbanos. DEMHAB, Op.Cit.p.8.
40 O documento foi firmado, por intermédio do Ministério Público Federal, em 09 de maio de 2011. Foram
pactuados meios para assegurar os direitos ao trabalho, à saúde, à educação, ao lazer. Disponível em:
<http://www.prrs.mpf.mp.br/home/bancodocs/cac/poa/termo_compromisso_anexos_chocolatao.pdf/
view?searchterm=vila%20chocolat%C3%A3o>. Acesso em: 09/08/2013.
41 Nesta pesquisa, para que fosse possível analisar os reais efeitos do reassentamento, optou-se pela utilização

1431
de uma metodologia de produção de dados de forma direta, através da técnica de observação e da técnica
de realização de entrevistas junto à população afetada. Por esse motivo, foram realizadas, entre os dias 18
de agosto a 10 de novembro de 2012, dezessete entrevistas com os moradores da antiga Vila Chocolatão.
Apesar das limitações dos resultados obtidos devido ao reduzido número de entrevistas, o material coletado
mostrou-se muito revelador.
42 “Os esforços conjuntos da prefeitura de Porto Alegre, órgãos públicos, moradores e parceiros privados para
a transferência dos moradores da Vila Chocolatão se transformaram num modelo de reassentamento reco-
nhecido em diversas outras cidades”. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/portal_pmpa_novo/
default.php?p_noticia=142576&CHOCOLATAO+MODELO+DE+GOVERNANCA+RECONHECIDO+INTERNACI
ONALMENTE.
43 Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: [...] II – gestão democrática por meio da parti-
cipação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação,
execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
44 Em ofício encaminhado em 17/10/2012 à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, a Associação de
Catadores comunicou que a Unidade de Triagem conta com apenas 40 vagas e acrescentou que essa limitação
advém da carência de infraestrutura e de capacitação adequada.
45 DEMHAB, Op.Cit. p.8
46 Conforme o Contrato de Concessão de Direito Real de Uso, firmado entre os moradores e o DEMHAB, “os
concessionários pagarão mensalmente pela concessão instrumentada a título de contribuição obrigatória em
face da renda familiar declarada”. Além disso, o “inadimplemento injustificado por mais de 180 (cento e oitenta
dias) acarretará a extinção da Concessão”.

1432
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Para quem projetamos? Uma


discussão sobre o direito a cidade
a partir do plano para Brasília

Viviane Manzione Rubio1

INTRODUÇÃO

Mera coincidência ou não, na semana seguinte as palestras da Sema-


na de Atividades Programadas do Curso de Pós-graduação da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
estivemos em uma rápida visita a Brasília, para participar do II Encontro
dos Municípios com o Desenvolvimento Sustentável – Desafios dos novos
governantes locais2, e apresentar o trabalho realizado na secretaria de
Habitação e Desenvolvimento Urbano de Osasco, dentro da politica Ha-
bitacional do Município.
Dez anos haviam passado desde nossa ultima visita à cidade e como
surpresa vivenciemos ali alguns dos problemas que afligem os cidadãos
cotidianamente em outras cidades do Brasil, o trafego intenso de veícu-
los que provoca dificuldades de circulação e de acesso a equipamentos
importantes como o aeroporto Juscelino Kubitschek.
Ouvimos de um motorista de taxi, que as pessoas que moram nas
cidades satélites e que trabalham no centro administrativo ou na espla-
nada dos ministérios não utilizam o transporte público coletivo devido ao
péssimo estado de conservação dos veículos. Fato que aliado à facilidade
que o brasileiro tem na atualidade de adquirir um automóvel só acentua
as dificuldades encontradas para circular na cidade, esta que foi projetada
preferencialmente para a circulação dos veículos.
O projeto de Brasília emblemático e marco referencial do planejamento
urbano brasileiro nasceu planejada, e segue respeitando o desenho de seu

1433
plano inicial, mas apresenta senão todos, a maior parte dos problemas
das demais cidades que possuem suas dimensões.

A graduação social poderá ser dosada facilmente, atribuindo-se


maior valor a determinadas quadras, como, por exemplo, às
quadras singelas contíguas ao setor das embaixadas, setor que
se estende de ambos os lados do eixo principal paralelamente
ao eixo rodoviário, com alameda, de acesso autônomo, e via de
serviço para o tráfego de caminhões comum às quadras residen-
ciais. Essa alameda, por assim dizer, privativa dos bairros das
embaixadas e legações, se prevê edificada apenas num dos lados,
deixando-se o outro com a vista desimpedida sobre a paisagem,
excetuando-se o hotel principal localizado nesse setor e próximo
do centro da cidade. No outro lado do eixo-rodoviário-residencial,
as quadras contíguas à rodoviária serão naturalmente mais va-
lorizadas que as quadras internas, o que permitirá as gradações
próprias do regime vigente; contudo, o agrupamento delas, de
quatro em quatro, propicia, em certo grau, a coexistência social,
evitando-se assim uma indevida e indesejável estratificação.
(LUCIO COSTA, 1957)

O texto acima é um dos trechos do memorial de projeto escrito por


Lucio Costa na ocasião do concurso para o plano piloto de Brasília. Nele
o arquiteto apresenta as intenções com o projeto que em resumo eram
as de ordenar espacial e socialmente o espaço da cidade.

Imagens dos croquis que acompanham o memorial descritivo do plano de Lucio Costa disponíveis em: http://
arquitetandoblog.wordpress.com/2009/04/17/lucio-costa-brasilia-50-anos-memorial-do-plano-piloto-e-o-
-pensamento-de-lucio-costa/

1434
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Brasília se estabelece como um marco ideológico e politico dentro


de um contexto onde figurava o pensamento modernista que abarcava
a ideia de organização espacial e social por meio da reconstrução total
das cidades e o controle através do projeto, portanto dentro do espectro
de cidades brasileiras é um caso de cidade planejada, bem diferente da
maioria das cidades que conhecemos.
Diferente das cidades, as quais temos tido oportunidade de conhecer,
trabalhar e estudar até aqui e por isso um tanto mais difícil escrever sobre
ela, pode servir de base para a discussão sobre o direito a cidade que vem
sendo discutido a partir do ano de 2004.
Brasília, a cidade projetada para ter, em um limite máximo, 500 mil
habitantes, hoje conta com uma população, somando a capital e suas
cidades satélites de aproximadamente 3 Milhões (IBGE, 2010).
A desigualdade social também é outro problema grave da capital,
embora tenha um Índice de Desenvolvimento Humano - IDH de 0,844,
maior do que a média brasileira que é de 0,813, é a quarta cidade mais
desigual do Brasil e a 16ª mais desigual do mundo, segundo relatório da
Organização das Nações Unidas - ONU.
E se ainda não pode ser considerada uma Metrópole, caminha a pas-
sos largos para reunir o rol de problemas comuns a cidades deste porte.
No texto de Mario Barata escrito em 1960 contextualizando o pano-
rama do país a época da inauguração, traça um perfil, quase que como
uma previsão pessimista para a nova cidade, mas que conclui enxergan-
do, apesar de seu negativismo que Brasília “é, realmente, um exemplo de
cidade nova e pelos seus aspectos concretos e positivos já é na verdade um
êxito urbano e nacional, na escala brasileira” (BARATA, 1960, in xavier e
Katinsky, 2012 – p. 81).
A construção de Brasília ocorre no momento preciso em que se ve-
rifica o despertar da consciência nacional, nessa hora matutina, em que
emergindo do sono secular o povo brasileiro se descobre a si mesmo e
começa a dar passos decisivos no caminho da verdadeira emancipação.
(ibidem p.77) Mas podemos considerar que era cedo demais para previsões

1435
e considerações positivas e ou negativas, afinal ela ainda era um plano,
um projeto de cidade.
Mas apesar de um projeto, a ideia de mudar a capital e localiza-la no
eixo de expansão do país era uma ação audaciosa que havia sido mate-
rializada pelo trabalho de um arquiteto.
Por outro lado Carlos Nelson em Brasília – belo sonho ideológico que se
tornou um pesadelo, texto escrito em 1979, discute o fato de que ao mesmo
tempo em que a cidade quando foi concebida representou muito para o
Brasil, “tornara-se um instrumento ambíguo que servia para nos dar orgulho
com uma força tão avassaladora que era capaz de impor ordem a desertos
e nos provocar medo.” (SANTOS, 1979 in xavier e Katinsky, 2012 – p. 199).
Ambos os autores aparentam leve deslumbre com a ideia e o projeto
para a nova cidade, mas o que está apresentado nos dois textos é a am-
biguidade que representavam o projeto para a mudança da capital e a
construção de Brasília no cenário nacional na década de 1960.
“Brasília idealizada como cidade igualitária, um lugar para os iguais”,
onde os filhos dos funcionários e os filhos dos ministros andassem e
brincassem lado a lado, 20 anos mais tarde é uma cidade e como toda
a cidade brasileira enfrenta praticas de pesadelo, como comenta Carlos
Nelson, que diz ainda que os arquitetos que a projetaram imaginaram que
mudando a forma poderiam mudar a realidade.
Vivemos nas cidades brasileiras, na atualidade, e toda a cidade bra-
sileira que se preza enfrenta praticas de pesadelo como já informava
Carlos Nelson em 1979 e talvez esses nossos pesadelos tenham crescido
em projeção geométrica.
Podemos então argumentar que apesar de Brasília partir de um projeto
que considerava a organização da ocupação e da setorização dos usos
na cidade não escapou de seguir o mesmo caminho da maior parte das
cidades brasileiras que foi o crescimento desordenado – vide a perma-
nência e o crescimento das cidades satélites – o qual produziu elevado
grau de desigualdade seja ela territorial, ou social. E desta forma deve ser
objeto de estudo para a reavaliação da participação e do desempenho do

1436
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

l arquiteto frente ao planejamento das cidades, este que é o profissional


que sempre esteve e está envolvido nas decisões e ações para a melhoria
e o desenvolvimento do país.
No Brasil os dados do IBGE (2010) apontam para um percentual que
gira entorno de 80% da população do país vivendo nas áreas urbanas das
cidades, que não estão preparadas e nem foram adequadas para recebê-la.
Jan Ghel (2013) considera que a dimensão humana tem sido um tópico
esquecido quando planejamos nossas cidades, ou seja, o uso das cidades
pelo homem não tem sido considerado no seu planejamento.

Uma característica comum de quase todas as cidades-indepen-


dentemente da localização, economia e grau de desenvolvimen-
to – é que as pessoas que usam o espaço da cidade em grande
número são cada vez mais maltratadas. (GHEL, op. Cit.)

A legitimidade de ação e de organização a ser concedida aos habitan-


tes das cidades passa necessariamente pelos elementos que compõem
o conceitos de direito a moradia adequada e direito à cidade, os quais
estabelecem as condições mínimas para uma vida adequada.
Podemos entender então que esta legitimidade somente pode ser
efetivada a partir da participação popular como elemento fundamental
na formulação dos planos, programas, projetos e nas decisões sobre os
rumos que tomarão as cidades.

MORADIA PRECáRIA NO BRASIL

A intensa urbanização ocorrida durante o século xx, aliada às ações do


poder público para o embelezamento e modernização das áreas centrais
e à tímida atuação no setor habitacional, entre outros, contribuíram para
o crescimento e adensamento informal em diversas áreas das cidades
brasileiras.
O modelo de crescimento adotado pelo país no período pós 1964, no
contexto do Governo Militar, era alcançar a eficiência econômica em todos
os setores de atuação, mesmo que para isso os custos políticos e sociais

1437
fossem altos. A atuação do Estado era então exacerbadamente empresarial,
ressaltando a preocupação com o retorno financeiro de seus investimentos.
Desta forma, os investimentos e obras foram sempre voltados aos locais
que asseguravam esse retorno financeiro, melhor dizendo, às áreas mais
ricas das cidades.
Ainda no início da década de 1970 a população brasileira torna-se pre-
dominantemente urbana, 56% da população total passa a viver nas cidades,
contra 45% em 1960, conforme dados do Censo do IBGE daquele ano.
A crescente urbanização aliada à insuficiência da infraestrutura refor-
çaram os mecanismos de segregação social e espacial da população mais
pobre, acentuando a distância entre os diferentes grupos sociais que, por
sua vez, fragmentaram a cidade (ANTONUCCI, et al,2010.)
De um modo geral, quase a metade da população brasileira que re-
side em centros urbanos convive com a deficiência na infraestrutura de
saneamento básico e no atendimento dos serviços públicos, não sendo
apenas característica exclusiva dos assentamentos precários. Indicadores
urbanos do Censo Demográfico do IBGE de 1991 apontavam para o núme-
ro absoluto das carências habitacionais naquela ocasião: 10,17 milhões
de domicílios não estavam conectados à rede de água, 5,4 milhões dos
domicílios urbanos não eram atendidos por coleta de lixo urbano e 16,5
milhões não dispunham de instalações sanitárias adequadas.
Desde os anos 1980, o número de habitantes em favelas tem sido
expressivo e crescente. Considerando a taxa média de 04 habitantes por
domicílios nas favelas em 1980, o Censo do IBGE registrou 480.595 domi-
cílios, o que correspondia a 1,89% dos domicílios brasileiros; em 1991 este
número sobe para 1,14 milhões de domicílios em favelas, representando
3,28% do total dos domicílios brasileiros. Em 2000 o número de domicílios
passa a ser cerca de 1,65 milhões, 3,04% dos domicílios do país.

1438
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Fonte: Maricato, 2001.

A tabela 1.1 sintetiza os dados do déficit habitacional no Brasil em 2000


e o numero de domicílios em favelas.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD (2005) apontava
para um numero de 11,3 milhões de moradias afetadas por falta de algum
tipo de infraestrutura urbana. 1,9 milhões de moradias encontrava-se
em assentamentos precários, sendo 73,5% delas instaladas em regiões
metropolitanas.
Os dados do último Censo Demográfico do IBGE em 2010 apontam para
uma população urbana do Brasil que atinge 86,62% do total, 160.879.708
milhões de habitantes em números absolutos. O numero de habitantes
residente em aglomerados subnormais, como são identificados os assen-
tamentos precários pelo IBGE, totalizaram aproximadamente 11 milhões
de habitantes, sendo só em São Paulo 2.175.067. (IBGE, 2010)

1439
Em 2010, o país possuía 6.329 aglomerados subnormais (assentamentos irregulares conhecidos como favelas,
invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros)em 323 dos 5.565
municípios brasileiros. Eles concentravam 6,0% da população brasileira (11.425.644 pessoas), distribuídos
em 3.224.529 domicílios particulares ocupados (5,6% do total). Vinte regiões metropolitanas concentravam
88,6% desses domicílios, e quase metade (49,8%) dos domicílios de aglomerados estavam na Região Sudeste.
(IBGE, 2010)

1440
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

E Brasília figura entre as cidades possuidoras de favelas, contando


com 0,5% dos domicílios do país nessas condições. Esta informação nos
remete ao panorama comum de desenvolvimento e crescimento do espaço
urbano brasileiro, onde a ocupação desordenada independe da origem e
da formação da cidade.

DO DIREITO à MORADIA AO DIREITO à CIDADE

A questão da moradia adequada já vinha sendo discutida desde o início


do século xx, frente à crescente urbanização das cidades europeias e a
crise habitacional que se acentuou principalmente após a Primeira Guerra
Mundial (1914-1918).
Em novembro de 1933, a habitação foi um dos temas centrais dos
Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna - CIAM que defendiam
a arquitetura como um potencial instrumento político e econômico, que
deveria ser usado pelo poder público como forma de promover o progresso
social e resolver a eminente crise habitacional da época (HALL, 2002).
Mesmo defendendo que a solução para as cidades seria reconstruí-las
do “zero”, ou melhor, a partir do esquecimento e do arrasamento das
estruturas existentes, a questão da moradia adequada foi amplamente
discutida pela Carta de Atenas, documento resultante da assembleia do
IV Congresso Internacional de Arquitetura. Nessa ocasião, arquitetos e
urbanistas já discutiam os problemas do déficit habitacional na Europa e
consideravam que o provimento da habitação seria de responsabilidade
do poder público.

Em 1933, na cidade de Atenas, Grécia, é realizado o IV Congresso


Internacional de Arquitetura Moderna - CIAM, que resulta em
um manifesto urbanístico que expressa o pensamento sobre o
meio urbano na época. A Carta de Atenas, como foi chamado este
documento, trata as cidades sob o ponto de vista de arquitetos,
que reunidos, buscam responder aos problemas urbanísticos
causados pelo rápido crescimento das cidades. A Carta, de modo
geral, analisa o estado atual e crítico das cidades, propondo as-
pectos que deveriam ser respeitados para a melhoria da estrutura
urbana. (GALBIERI, 2008)

1441
No âmbito da Carta de Atenas foram estabelecidos parâmetros para
a melhoria da qualidade das habitações precárias, enfatizando aspectos
que deveriam ser alterados:

Insuficiência de superfície habitacional por pessoa; Mediocridade


das aberturas para o exterior; Ausência de sol; Vetustez e pre-
sença permanente de germes mórbidos (tuberculose); Ausência
ou insuficiência de instalações sanitárias; Promiscuidade prove-
niente das disposições internas da moradia, da má orientação do
imóvel, de presença de vizinhanças desagradáveis. (CIAM, 1933.
Segunda Parte - Estado Atual Crítico das Cidades – Habitação -
Observações.)

Mesmo não sendo o foco do presente ensaio o aprofundamento sobre


os preceitos da Carta de Atenas sobre a questão da habitação, é impor-
tante destacar a intensa participação dos arquitetos na discussão sobre as
condições das cidades e das moradias naquele momento, muito embora
predominasse uma visão ligada à remoção da precariedade, que acabou
por influenciar diversos países, inclusive o Brasil.
O direito à moradia adequada terá origem na Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948, quando se tornou um direito humano
universal, aceito e aplicável em todas as partes do mundo como um dos
direitos fundamentais para a vida das pessoas.
No sentido amplo, moradia deveria ser entendida não somente como
um abrigo frente às intempéries, mas como o lugar do reconhecimento
da cidadania.

[...] casa de um homem é não apenas o lugar de que ele tem a


chave, a posse, mas o elemento que marca pelo qual o lugar que
ele ocupa na cidade. A moradia de um homem referenda seu
pertencimento à cidade e sua cidadania e, portanto, os direitos
e deveres que ali lhe competem [...] (CRITELLI, 2003. n. p.)

Embora na ocasião da Declaração de Direitos Humanos Universais


o conceito de direito à moradia se mostrar amplo, abarcando inúmeros
elementos que não só o abrigo das intempéries, este conceito foi ampliado
e atualizado ao longo de décadas e evoluindo para o conceito de Direito

1442
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

à Cidade na década de 2000.


Para atualizar o alcance e a abrangência do conceito de moradia ade-
quada, utilizaremos aquele discutido pela Relatoria Especial do Conselho
de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada3. Nesta,
considera-se que a moradia adequada deva incluir alguns elementos con-
siderados importantes, sendo remetidas, em grande parte, às moradias
construídas no ambiente urbano formal. São eles:

• Uma condição de ocupação estável, ou seja, morar em


um local sem o medo de remoção ou de ameaças indevidas ou
inesperadas;
• Acesso a serviços, bens públicos e infraestrutura, como
energia elétrica, sistema de esgoto e coleta de lixo;
• Acesso a bens ambientais, como terra e água, e a um meio
ambiente equilibrado;
• Moradia a um valor acessível ou com subsídios ou financia-
mentos que garantam custos compatíveis com os níveis de renda;
• Boas condições de habitação, respeitando um tamanho mí-
nimo, com proteção contra frio, calor, chuva, vento ou outras
ameaças à saúde, riscos estruturais e suscetibilidade a doenças;
• Acesso prioritário à moradia para grupos em situação de
vulnerabilidade ou desvantagem;
• Localização adequada, com acesso a médicos e hospitais,
escolas, creches e transporte, em áreas urbanas ou rurais;
• Adequação cultural, construída com materiais, estruturas e
disposição espacial que viabilizem a expressão da identidade
cultural e a diversidade dos vários indivíduos e grupos que a
habitam. (DIREITO A MORADIA, 2004, n. p.)

Os anos de 1990 marcaram o reconhecimento do protagonismo da


cidade, onde diversos eventos significativos no âmbito mundial irão dis-
cutir a questão da moradia no meio urbano. Se por um lado as cidades
representavam, na ocasião, um quadro crítico e problemático, uma vez
que a “quinta parte da população mundial encontrava-se sem moradia
nem acesso a infraestrutura básica”, por outro lado, as cidades passam a
representar a alternativa dinâmica, positiva e competitiva para o desen-
volvimento humano e social (ALVIM, 2009).
No âmbito da II Conferência Mundial dos Assentamentos Humanos,
o Habitat II, ocorrida em 1996 em Istambul, na Turquia, dois importantes
objetivos contribuíram para ampliar o conceito para o Direito à Cidade:
Moradias Adequadas para Todos e Desenvolvimento de Assentamentos

1443
Humanos Sustentáveis num mundo em urbanização.
A Agenda Habitat II4, resultado desta Conferência, estabeleceu um
conjunto de diretrizes políticas e compromissos entre os governos de
diversas nacionalidades, visando melhoria das condições de moradia nas
áreas urbanas e rurais, e estabeleceu como princípio fundamental a com-
pleta realização do direito à habitação adequada e, consequentemente,
o direito à cidade.
Apenas no início do século xxI, é que de fato o direito à cidade passa
a ser uma palavra-chave que irá nortear e articular as proposições urba-
nísticas em prol de um ambiente urbano com qualidade.
A Carta Mundial do Direito à Cidade (2004), do Fórum das Américas5,
define o direito à cidade “como o usufruto equitativo das cidades dentro
dos princípios da sustentabilidade e da justiça social”. Segundo o docu-
mento, o direito à cidade refere-se ao:

[...] direito coletivo dos habitantes das cidades em especial dos


grupos vulneráveis e desfavorecidos, que se conferem legitimida-
de de ação e de organização, baseado nos usos e costumes, com
o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão
de vida adequado (Carta Mundial do Direito à Cidade, 2004)

PRODUÇÃO DE MORADIAS NO BRASIL

A habitação social somente passou a ser objeto de alguma atenção


após 1930, no Governo de Getúlio Vargas (a Era Vargas). Nesta ocasião o
então denominado Estado Novo6 começa a desenvolver políticas de mo-
dernização do país, além de tentar ganhar apoio popular com atendimento
de diversos aspectos da vida urbana, inclusive os do setor habitacional.
No início da década de 1960, durante o governo do Presidente Jânio
Quadros, foi instituído o Plano de Assistência Habitacional, que propunha
linhas de ação de curto e longo prazo. O Plano não saiu do papel por
questões políticas.
Em 1964, com o regime militar, a antiga política habitacional foi extin-
ta, e a nova pretendeu auxiliar a recuperação da economia e favorecer a

1444
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

estabilidade social, facilitando o acesso à casa própria por meio da cons-


trução de habitações populares e da eliminação das favelas. (FEST, 2005)
A Lei nº. 4.380 / 64 criou o Banco Nacional da Habitação – BNH como
órgão financeiro inicialmente voltado à definição de uma política habita-
cional e à criação dos instrumentos que permitissem sua implementação.
Azevedo (1988, apud FEST, 2005, p. 7) cita que a criação do BNH foi
uma estratégia política que serviria para que o governo ganhasse popu-
laridade junto à massa7: nesse projeto, encontrava-se implícita a ideia de
que “a casa própria poderia desempenhar um papel ideológico importante,
transformando o trabalhador, de contestador a aliado da ordem”.
Já em 1970 a atuação do BNH, movida pelo alto índice de inadimplên-
cia observada, muda a direção dos financiamentos passando a atender
a classe média com empreendimentos de padrão diferente do popular,
elitizando assim o sistema.
A crise habitacional já instalada se intensifica por conta da pífia atu-
ação do SFH na solução do déficit habitacional observado na época. Os
números revelam que, das unidades construídas no país entre os anos de
1964 e 1986, somente 26% foram financiadas pelo BNH até o ano de sua
extinção. Deste total financiado somente 33% das habitações eram para
a população de baixa renda, sendo, deste montante, 5,9% destinados a
famílias de renda de até três salários mínimos, num total de 250 mil uni-
dades, em números absolutos. (DENALDI, 2003).
Pode-se afirmar que durante duas décadas a política habitacional
atendeu somente a demanda gerada pelas remoções das ocupações
indesejáveis, as favelas, deslocando as populações para conjuntos habi-
tacionais construídos em áreas distantes dos centros, transformadas em
verdadeiras cidades dormitórios. Esse tipo de ocupação também gerou a
precarização das ditas localidades, uma vez que nem sempre eram pro-
vidas de acessibilidade8, infraestrutura de saneamento básico, de bens,
serviços e programas públicos; e sua população de baixo poder aquisiti-
vo, sem capacitação para a vida em condomínios e sem recursos para a
manutenção do bem recebido. Desta maneira reforça-se a ocupação das

1445
periferias e a expansão espraiada do território das grandes cidades.
Essa autora reforça que a política habitacional e o planejamento urbano
caminhavam lado a lado e perseguiam um duplo objetivo: dar lugar a uma
ordem espacial e social racional e construir uma cidadania moderna, em
que a população contribuiria para a melhoria e a educação. Neste discurso
havia uma contradição, uma vez que, na prática, a participação popular
se limitava a decisões locais e pontuais, e nem sempre era acompanhada
e esclarecida quanto à atuação dentro dos programas.
A década de 1980 é um marco na mudança da visão sobre as cidades.
Dois elementos importantes modificam o panorama: a participação popu-
lar e a questão do meio ambiente. O problema da habitação nas grandes
cidades não é mais o acesso das massas marginalizadas à moradia, e sim
o da proteção dos sítios. (Ibidem)
No interior do processo de redemocratização do país nos anos de 1980
é retomado o Movimento de Reforma Urbana. Durante a campanha de
elaboração da nova Constituição Federal, o Movimento Nacional pela Re-
forma Urbana - MNRU encaminha à Assembleia Constituinte uma emenda
popular contendo a crítica à política habitacional, indicando que o governo
federal, até então, não tinha como foco o atendimento às famílias de baixa
renda e convocando ao debate popular.
No período que antecedeu a promulgação da Constituição Federal de
1988 ocorre a implementação dos programas de mutirões, onde a inserção
da atuação da população frente à problemática habitacional faz aumentar
a participação e a mobilização popular. A partir de então emergem no país
as primeiras experiências de urbanização de favelas.
Para França (2009), a urbanização de favelas faz parte da construção
de um modelo de intervenção do Brasil da década de 1980, alternativo
aos padrões estabelecidos pelo governo federal em parceria com estados
e municípios nos anos de 1960 e 1970, por meio do SFH e do BNH.
Apesar das várias ações do poder público, relacionadas ao provimen-
to de unidades habitacionais no Brasil, a criação do Sistema Financeiro
de Habitação e dos programas definidos no âmbito do BNH, não foi

1446
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

capaz de amenizar o quadro de crise que se instalou e que perdura até


os dias de hoje.
A produção de unidades habitacionais diminutas em locais com péssi-
mas condições de permanência, ou seja, sem infraestrutura de saneamento
básico, sem acesso aos bens e serviços públicos, distante dos núcleos
urbanos mais estruturados, contribuiu para intensificar a degradação das
áreas mais centrais e, consequentemente, induzindo o adensamento das
favelas na cidade, naquelas localidades onde havia a oferta de trabalho e
empregos, gerando ambientes construídos precários.
O grande avanço da Constituição de 1988 foi o fortalecimento dos
governos locais por meio da promoção da descentralização político-
-administrativa. O Município é então definido como um ente federativo,
juntamente com o Estado e a União, e que deve reger-se por uma Lei
Orgânica própria.
Ele tem sua autonomia ampliada: política, administrativa e financeira
(artigo 30), sendo então, o principal responsável pela formulação e im-
plementação das políticas urbanas nas cidades.
Denaldi (2003) salienta que o discurso coincide com as reivindicações
dos movimentos populares, com posições mais progressistas e com pro-
postas que coadunavam com as esperanças da população mais pobre.
No início dos anos de 1990, grandes mudanças no panorama mundial
trouxeram a necessidade da abertura dos mercados e da participação social
efetiva, impelindo a configuração de um novo modelo de planejamento
que entrou em choque com a ideia da racionalidade, que regia o formato
conhecido até então. O conceito de déficit habitacional utilizado no cál-
culo da demanda por habitação no país até a década de 1990 era aquele
que tratava somente do número de moradias faltantes para acomodar a
população que crescia. A fundação João Pinheiro publicou um trabalho
no ano 2000 que tratava da mudança do conceito do déficit habitacional
e, passava a considerar a inadequação das moradias, o que transformava
os números do déficit, apontando para um panorama diferente do conhe-
cido até então.

1447
A visão sobre a moradia é amplificada, em 2004, reconhecendo que
a habitação é casa e cidade, portanto não se podia mais ignorar que as
favelas eram uma alternativa habitacional para a população de baixa
renda, bem como não se poderia mais pensar a construção de unidades
habitacionais desvinculadas da implantação de infraestrutura de sanea-
mento ambiental e do atendimento pelos bens e serviços públicos.
2007 é o ano do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, que
abarcava as ações para melhoria das condições de habitabilidade, onde
o projetos para urbanização de favelas contemplavam a construção de
unidades habitacionais para o reassentamento das famílias moradoras
dos assentamentos precários objeto das intervenções.
Em 2009, o Governo Federal do Programa Minha Casa Minha Vida -
PMCMV, com o objetivo de produzir unidades habitacionais com vistas a
diminuição do déficit habitacional que girava entorno de 7 Milhões, em
números absolutos e de modo a enfrentar a crise econômica por meio da
dinamização das atividades da construção civil.
Dois anos após o lançamento do Programa, cerca de 1 milhão de uni-
dades já haviam sido contratadas, grande parte no segmento econômico,
o qual abarca principalmente a faixa de renda entre três e dez salários
mínimos. Os números mostram, portanto, que a produção imobiliária
brasileira recente foi fortemente impulsionada pelo programa, que envol-
veram importantes recursos públicos.
O PAC entra em 2010 na sua 2ª etapa, sendo em 2011 selecionados
494 empreendimentos no eixo PMCMV/ Urbanização de Assentamentos
Precários. O PMCMV investiu R$ 129,3 bilhões em empreendimentos na
segunda fase do PAC. Desde seu lançamento, 1,8 milhões de casas e
apartamentos foram contratados. Desse total, 53% foram concluídas. Até
2014 está prevista a contratação de dois milhões de moradias.
Dos R$ 324,3 bilhões aplicados até 2012 no PAC2, R$ 108,6 bilhões são
na área de financiamento habitacional, com verba liberada pelo Ministé-
rio das Cidades – Mcidades. Estes números foram divulgados no quarto
balanço do PAC II.

1448
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Comparando os dados divulgados pelo IBGE no CENSO 2010 e pelo


Ministério das cidades, apresentados acima, podemos observar que apesar
dos esforços das três esferas governamentais do país e o volume de recur-
sos aplicados no setor habitacional ainda não se conseguiu estabelecer
um modelo de intervenção que coíba a ampliação dos assentamentos
precários e a diminuição das moradias precárias.

Que cidade queremos para as gerações futuras? A dificuldade na mudança do padrão de urbanização esbarra,
ainda mais, no fato de que a ideia da “cidade justa” não foi ainda assimilada pela sociedade. Ao contrário,
e infelizmente, os elementos de status que caracterizam e supostamente embelezam a péssima produção
habitacional do segmento econômico são razão de grande procura e satisfação, mesmo ambientalmente tão
questionáveis. Em geral, os aspectos que alimentam os panfletos de vendas de imóveis e embasam o sonho
da casa própria da classe média, embutem equívocos arquitetônicos e urbanísticos que parecem, à primeira
vista, muito sedutores para o consumidor. (FERREIRA, 2012)

Mesmo com os movimentos populares como um dos protagonistas da


mudança na visão sobre a moradia popular, ainda encontramos conjuntos
implantados distantes das áreas urbanas consolidadas com um grande
número de unidades habitacionais mínimas (39,00m2) construídas e ofer-
tadas a população que monta a maior parte do déficit.
Os dados apresentados acima, apesar de enunciarem uma mudança
na visão sobre a moradia precária e para a população de baixa renda,
também reforçam a necessidade e a urgência da reavaliação das propostas
e seus investimentos para a produção de unidades habitacionais, mesmo
aquelas implantadas dentro das favelas localizadas em áreas atendidas por
infraestrutura nos projetos de urbanização, para que possamos construir
cidades e não somente produzir casas, como considera Ferreira (2012).
Observando os projetos dos conjuntos implantados pelo PMCMV espe-
cifico para provisão habitacional, ainda estamos reproduzindo um modelo
retrogrado e desconectado com a realidade da cidade contemporânea.

1449
A CIDADE E O ARqUITETO

Então qual é o papel do arquiteto no desenho da cidade, o de pretenso


organizador apenas?
Carlos Nelson considera que a arquitetura tem uma vantagem em
relação a outras áreas do conhecimento, pois ela existe quando se reali-
za e quando se realiza se revela por completo. “O espaço proposto como
nivelador, anulador de privilégios e criador de felicidade é o modelo mais
bem acabado de uma sociedade urbana rígida, onde se alcança a felicidade
mediante o poder de consumir sua cara infraestrutura.” (SANTOS, 1979, in
xavier e Katinski, 2012 – p. 201)
Este autor como tantos outros arquitetos participou do concurso
para o Plano Piloto e indica que nem mesmo a equipe da qual ele fazia
parte acreditava em seu projeto como alternativa real e entendia que
as propostas eram inovadoras e revolucionarias, mas continham uma
serie de problemas.
Em a Republica, Platão (2007) defende que a organização da cidade
ideal apoia-se numa divisão racional do trabalho. Como reformador
social, Platão considera que justiça depende da diversidade de funções
exercidas por três classes distintas: a dos artesãos, dedicados à produção
de bens materiais; a dos soldados, encarregados de defender a cidade; a
dos guardiões, incumbidos de zelar pela observância das leis. Produção,
defesa, administração interna – estas são as três funções essenciais da
cidade. Na reorganização da cidade, para transforma-la em reino da jus-
tiça, exigem-se naturalmente reformas radicais. A efetivação desta utopia
social dependeria fundamentalmente, por outro lado, de um cuidadoso
sistema educativo, que permitisse a cada classe desenvolver as virtudes
indispensáveis ao exercício de suas atribuições. Mas a cidade ideal só
poderia surgir se o governo supremo fosse confiado a reis-filósofos.
O arquiteto como Platão organizador pretende produzir espaços per-
feitos nos quais os cidadãos exerceram suas atividades de maneira plena
sem nem mesmo questionar sua forma ou tentar modifica-la.

1450
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Henri Lefebvre (1991) considera que o cidadão é sujeito atuante na


realidade urbana e os estudiosos não podem tirar do nada novas formas
de relações, já que as relações não advém de projetos científicos elabo-
rados a partir de ideologias.
Hillier e Hanson (in Holanda, 2012) sugerem que existe um problema
nas analises sobre os assentamentos urbanos “...a cidade é continuamente
entendida a partir do aspecto social ou do aspecto físico” e a eles parece
faltar a conexão entre estes dois. Há que se construir uma ponte, “uma
sintaxe”, entre a cidade humana e a cidade física, preenchendo o hiato
entre os pensamentos de sociólogos e arquitetos que estudam e projetam
os espaços sem se dar conta de que a configuração espacial das cidades e a
forma dos ambientes construídos influenciam e induzem comportamentos.
Sintaxe esta, que somente será possível por meio da apropriação por
aquele que projeta, das informações dos que vivenciam a cidade planejada
e ou construída.
Nos processos de transformação na cidade, como expressão da so-
ciedade, onde a construção é compartilhada, e coletiva (MAGALHÃES,
2007) devemos observar a participação do cidadão para que o modelo de
cidade reflita suas necessidades, desejos e vontade. As intervenções na
cidade contemporânea, submetida a significativos e particulares processos
de transformações sociais e culturais, requerem a revisão das ações e de
suas resultantes espaciais, bem como dos modos de sua compreensão.

A cidade é ela mesma, um universo social, econômico e político.


Ela produz riquezas e reproduz relações. Em outras palavras: a
cidade não é apenas uma reprodução, localizada e reduzida, da
estrutura social; ela é também, um complexo de relações sociais
– relações econômicas e sócias, mas também de relações poder.
(VAINER, 2010)

Portanto, para produzir espaços na cidade contemporânea é preciso


entender o conceito de participação popular e analisar os conceitos de
direito a cidade e da gestão democrática da cidade, onde a participação
aparece como direito e elemento fundamental para a efetivação das pro-
postas de intervenção.

1451
CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto do movimento moderno cuja ideologia preconizada era


a do arrasamento e reconstrução das cidades do zero para a solução dos
problemas, o espaço desenhado e a ser produzido em Brasília pretendia
estabelecer uma organização social nunca antes experimentada. Quando
esta deixa de ser intenção e passa a ter pessoas vivenciando e atividades
se desenvolvendo no espaço, passa de ideologia a realidade dentro do
contexto sócio-político e econômico brasileiro.
Para quem projetamos afinal no contexto urbano brasileiro? A
perspectiva de que a atuação do arquiteto na construção das cidades pres-
cinda da participação de seus habitantes, pressupõe que ele é o detentor
do poder da solução ideal nos bolsos de sua camisa, o que é inverossímil.
Diante desta ideia, nos parece inclusive, em função do modelo de habi-
tação reproduzido, que a produção de moradias para a população de baixa
renda no Brasil a partir de 2010 desconsidera as experiências vivenciadas
e o panorama de precariedade e desordenamento que o território urbano
das cidades brasileiras adquiriu ao longo das últimas décadas.
Devemos lembrar que o conceito de déficit habitacional foi reconfi-
gurado a partir da pesquisa da Fundação João Pinheiro no ano de 2000,
sendo a ele agregado uma série de elementos que acabaram por compor
os conceitos do direito a cidade em 2004, o qual considera que a constru-
ção de cidade deve prever materiais, estruturas e disposição espacial que
viabilizem a expressão da identidade cultural e a diversidade dos vários
indivíduos e grupos que a habitam.
Considerando que cidadão é sujeito atuante na realidade urbana, e que
na atualidade no contexto da cidade contemporânea, onde a construção
é compartilhada e coletiva não há como prescindir de sua participação de
forma efetiva nos processos de transformação.
Podemos concluir que seja na sua concepção inicial, seja no seu pla-
nejamento ou transformação, o arquiteto deve pensar a cidade a partir
de um processo que inclua a discussão sobre as experiências e vivencias
de quem e para quem o projeto se destina.

1452
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

REFERENCIAS BIBLIOGRáFICAS

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NOTAS

1 Arquiteta, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade


Presbiteriana Mackenzie, doutoranda, Professora de Planejamento Urbano – 2º semestre - Faculdade de Ar-
quitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenadora de Projetos do Departamento
de Projetos e Obras da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento urbano do Município de Osasco. Email:
vivianerubio@hotmail.com
2 Evento promovido pela organização não governamental Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sus-
tentáveis dentro do Programa Cidades Sustentáveis que oferece aos gestores públicos uma agenda completa
de sustentabilidade urbana, um conjunto de indicadores associados a esta agenda e um banco de práticas
com casos exemplares nacionais e internacionais como referências a serem perseguidas pelos municípios. O
objetivo é sensibilizar e mobilizar as cidades brasileiras para que se desenvolvam de forma econômica, social
e ambientalmente sustentável.
3 Disponível em: http://direitoamoradia.org/pt/conheca/implementando-o-direito-a-moradia. Acesso em
24/08/ 2010.
4 A Agenda Habitat, documento aprovado por consenso pelos países participantes do Habitat II, é uma plataforma
de princípios que deve se traduzir em práticas por diversos países, entre eles o Brasil, que se comprometeram
a implementar, monitorar e avaliar os resultados do seu Plano Global de Ação. (ANTONUCCI et al, 2010)
5 Carta Mundial do Direito à Cidade. Fórum Social das Américas – Quito – Julho 2004; Fórum Mundial Urbano
– Barcelona – Setembro 2004; V Fórum Social Mundial – Porto Alegre – Janeiro 2005. Disponível em: http://
www.quintacidade.com/wp-content/uploads/2008/04/carta_mundial_direito_cidade.pdf. Acesso em: 08
maio de 2009.
6 Estado Novo foi o regime político centralizador e autoritário fundado por Getúlio Vargas em 1937 que durou
até 1945.
7 Entende-se por massa um grande número de pessoas, em geral a população de baixa renda.
8 Entende-se por acessibilidade a disponibilidade de transporte e vias de acesso aos centros estruturados.

1454
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Preservação do
patrimônio cultural:
direito à cidade?

Maria Cristina Rocha Simão1

INTRODUÇÃO

A formulação da política pública de proteção ao patrimônio cultural


brasileiro remete a um tempo delimitado. Ainda sob a denominação de
“patrimônio histórico e artístico”, o processo de proteção dos bens con-
siderados como referenciais à memória do país encontrou, no início do
século xx, respaldo político, ideológico e teórico para ser implantado.
Elaborado por Mário de Andrade, o documento que serviu de base para
as discussões que consolidaram o instrumento legal, o Decreto-lei 25/37,
foi gestado no bojo do movimento modernista, obedecendo a um quadro
teórico contemporâneo aos paradigmas europeus.
Entretanto, ao ser finalizado, já sob o primeiro governo getulista, o ins-
trumento legal priorizou as obras de arte, materializadas nos monumentos
arquitetônicos e nos bens móveis e integrados, iniciando o processo de
salvamento do acervo colonial que se encontrava em processo de esque-
cimento e arruinamento no advento da república.
O Decreto-lei 25, ainda vigente na atualidade, baseou legal e conceitual-
mente as ações do Estado na proteção do patrimônio “histórico e artístico”
até o início da década de 70, quando algumas alterações ocorreram no
quadro conceitual da instituição nacional responsável – o Instituto do Pa-
trimônio Histórico e Artístico Nacional/ IPHAN. Neste momento, as noções
de patrimônio “cultural” retornaram à cena, esquecidas lá nos princípios
norteadores do documento de Mário de Andrade. Não podemos afirmar,

1455
todavia, que estas mudanças conformaram novas políticas públicas, na
medida em que foram gestadas e praticadas no âmbito interno institucio-
nal, pouco refletindo em suas ações externamente.
A Constituição Federal de 1988 evidenciou uma ruptura com os con-
ceitos até então vigentes. Em seu artigo 216 formulou nova conceituação
para o patrimônio, agora definido como cultural, abrangendo o acervo
material, tanto o monumental como o vernacular, e também as diversas
manifestações consideradas intangíveis, ou imateriais. Deliberou, ainda, o
compartilhamento de responsabilidade pela tutela dos bens culturais entre
os três entes federativos – União, Estados e Municípios e, também, com
as comunidades envolvidas. Alguns anos mais tarde, ao regulamentar a
política urbana, o Estatuto da Cidade elenca várias diretrizes para garantir
o “pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana” (artigo 2º, Lei nº 10.257, de 10/07/2001) e inclui a proteção do
patrimônio cultural neste rol.
Entretanto, analisando a trajetória das políticas públicas de proteção
do patrimônio cultural, principalmente o urbano, podemos considerar que
têm contribuido para o desenvolvimento das funções sociais da cidade?
Em que medida a proteção do patrimônio cultural é vista e vivenciada
como promotora de cidadania? Existe relação direta entre direito à cidade
e proteção do patrimônio cultural?
Estas questões são o tema de reflexão deste artigo, que não tem a pre-
tensão de esgotar o assunto, mas de reforçar a necessidade da proteção
do patrimônio cultural entrar na pauta de discussão do direito urbanístico
e, principalmente, da abordagem político-teórico-conceitual se estender
para além da questão cultural, compondo o rol de variáveis garantidoras
do direito à cidade.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO à CIDADE


E SUA RELAÇÃO COM O PATRIMôNIO CULTURAL URBANO

Importante elucidar, inicialmente, o entendimento adotado sobre o


patrimônio cultural urbano, a necessidade de sua preservação e conse-
qüente proteção. A patrimonialização de um bem não deve se basear tão

1456
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

somente em sua materialidade ou na importância histórico-artístico que


possua, mas principalmente nas possibilidades e potência em se fazer
presente, em participar da vida cotidiana, na ressignificação permanente e
cotidiana pela sociedade. Ou seja, “a preservação se faz nesses meandros
da relação entre o objeto e o sujeito, nas dimensões material e imaterial
do patrimônio, na sua presença física e nos significados, valores e fun-
ções que a sociedade lhe concede.” (CARSALADE, 2008, p. 246). O papel
da preservação do patrimônio urbano como mero registro do passado,
como representação monumental e simbólica das vitórias do poder e as-
sim perpetuada, é relativizado e minimizado. Desta forma, o patrimônio
cultural, precipuamente aquele conformado em tecidos urbanos, parte
de cidades vivas e, por isto, dinâmicas, caóticas, conflituosas, somente
pode ser assim considerado se contiver significados contemporâneos que
permitam e justifiquem a sua sobrevivência.
Por outro lado, as cidades viveram e vivem um processo de transfor-
mação visceral motivada pela industrialização. As mudanças ocorridas
não somente no tecido urbano, mas principalmente nas relações sociais
citadinas, motivam novas formas de compreender e lidar com “o fenôme-
no urbano (que) manifesta hoje sua enormidade, desconcertante para a
reflexão teórica, para a ação prática e mesmo para a imaginação.” (LEFE-
BVRE, 2001, p. VII) As cidades pós-industrialização, inseridas no processo
de produção capitalista, induziram à perda, por parte da população, da
motivação precípua e característica da urbanidade, a sua utilização como
centros de vida social e política. Segundo Léfèbvre (2001, p. 6) “a cidade
e a realidade urbana dependem do valor de uso. O valor de troca e a
generalização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, ao
subordiná-las a si, a cidade e a realidade urbana (...).” E as malhas urbanas
pré-industriais carregam, ainda, formas e símbolos que permitem uma
vivência diferenciada dos lugares. Entretanto, esvaziadas de sentido, ex-
cluídas da realidade e desvalorizadas frente aos novos arranjos, em nada
contribuem para a melhoria da vida urbana.
Mas, em que podemos relacionar o “direito à cidade” com a manuten-

1457
ção da morfologia urbana, das edificações, das manifestações culturais
urbanas? Ao refletir sobre o processo dialético da industrialização e da
urbanização e as conseqüentes transformações urbanas, Henri Léfèbvre
(2001, p.12) constata que

“(...) os núcleos urbanos não desaparecem, roídos pelo tecido


invasor ou degradados na sua trama. Esses núcleos resistem
ao se transformarem. Continuam a ser centros de intensa vida
urbana (...). As qualidades estéticas desses antigos núcleos de-
sempenham um grande papel na sua manutenção. Não contêm
apenas monumentos, sedes de instituições, mas também espaços
apropriados para as festas, para os desfiles, passeios, diversões.
O núcleo urbano torna-se, assim, produto de consumo de alta
qualidade para estrangeiros, turistas, pessoas oriundas da peri-
feria, suburbanos. Sobrevive graças a este duplo papel: lugar de
consumo e consumo do lugar. Assim, os antigos centros entram
de modo mais completo na troca e no valor de troca, não sem
continuar a ser valor de uso em razão dos espaços oferecidos
para as atividades específicas. (...)”

Por outro lado, o mesmo autor argumenta que o processo de subur-


banização oriundo destas mudanças, criando moradias longe do centro
urbano, descentraliza a própria cidade e, principalmente, “afastado da
Cidade, o proletariado acabará de perder o sentido da obra” 2 (LEFEBVRE,
2001, p.17), esvaziando o sentimento de pertencimento e de apropriação
sobre o espaço cotidiano. Entendemos, assim, que o sentido de lugar
presentifica a própria obra, trazendo para a contemporaneidade a força
herdada do passado.
Por fim, o direito à cidade, que somente será garantido pela fusão e
pelo atendimento a vários fatores, está condicionado, também, à quali-
dade do ambiente urbano a que todos têm acesso e possibilidades reais
de utilização. O Estatuto da Cidade3, em suas diretrizes gerais, aponta a
proteção do patrimônio cultural e natural como partícipe da política ur-
bana, visando o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
da propriedade urbana, relacionando este quesito ao rol de variáveis que
garantem o direito à cidade. Assim, a defesa da preservação do patrimônio
cultural, aqui ressaltado o urbano, torna-se fundamental para garantir
que as cidades sejam tomadas em seu valor de uso, sejam consideradas

1458
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

como “obra”, apropriadas pelos cidadãos. Como colocado por Milton San-
tos, as relações estabelecidas pelos homens com os espaços construídos
dependem do grau de cumplicidade e do sentimento de pertencimento a
eles atribuído, pois

“Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a


criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse
lugar é a sede de uma vigorosa alienação. Mas o homem, um ser
dotado de sensibilidade, busca reaprender o que nunca lhe foi
ensinado, e vai pouco a pouco substituindo a sua ignorância do
entorno pelo conhecimento, ainda que fragmentário. O entorno
vivido é lugar de uma troca, matriz de um processo intelectual”.
(SANTOS, 2002, p.81)

A TRAJETóRIA DA POLÍTICA PÚBLICA DE PROTEÇÃO


DO PATRIMôNIO CULTURAL BRASILEIRO – DO
FINAL DA DéCADA DE 1930 A 1980

Sob a iniciativa dos intelectuais modernistas4 que movimentaram a


cena brasileira no início do século xx, o patrimônio histórico e artístico,
representado pelas cidades e monumentos erigidos à época da coloniza-
ção portuguesa, foi eleito como a representação da identidade nacional,
tão buscada naquele momento definidor da vida nacional. Para viabilizar
esta política, foi editado o Decreto-lei 25/37, norma que estabeleceu os
critérios para a proteção do “patrimônio histórico e artístico nacional”.
Considerando que “as políticas públicas são criadas e postas em prática
a partir de uma determinada concepção de sociedade ou de um funda-
mento teórico” (BONETI, 2007, p. 19), a política formulada neste primeiro
momento atendia às exigências de um governo de um país recém saído
dos domínios coloniais, que precisava se afirmar identitariamente frente
ao mundo considerado civilizado.

“O período iniciado com a Revolução de 30, em que se estabe-


leceram as bases do nacional-desenvolvimentista no país (...)
correspondeu à definição de um novo papel para o Estado: o
de indutor do desenvolvimento nacional e de articulador da
construção de uma identidade nacional.” (FARAH, 2006, p. 43)

1459
Inspirada na metodologia européia de proteção do patrimônio, de-
senvolvido no decorrer do oitocentos, a legislação nacional estabelece
o tombamento como o principal instituto de proteção do patrimônio. O
Decreto-lei 25/37 define “patrimônio histórico e artístico nacional” os
bens materiais que se vinculam a fatos “memoráveis” ou que tenham
“excepcional” valor, recortando com clareza quais os critérios a serem
utilizados para a seleção das coisas a serem patrimonializadas, assim
como estabelece a necessidade da inscrição dos bens nos Livros do Tombo
para a efetivação da proteção.

Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o


conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja
conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação
a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcio-
nal valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
(grifo meu)
§ 1º Os bens a que se refere o presente artigo só serão considera-
dos parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional,
depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro
Livros do Tombo, de que trata o art. 4 desta lei.
§ 2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e
são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais,
bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger
pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza
ou agenciados pela indústria humana. (MEC/SPHAN/FNpM,
1980, p. 115)

Percorrendo os diversos períodos políticos e os diferentes e conturbados


governos vivenciados pela nação brasileira, a primeira fase da política de
proteção do patrimônio, correspondente ao final da década de 1930 ao
início de 1980, valeu-se da atuação pessoal e personalizada dos intelec-
tuais modernistas, baseados nos princípios iluministas, principalmente da
infalibilidade da ciência, materializados no conhecimento técnico destes
profissionais. Boneti (2007, p. 25) esclarece que “a idéia da infalibilidade
da ciência acarreta implicações sobre a elaboração e o estabelecimento
de políticas públicas sob duas principais dimensões”, sendo que, para o
nosso referencial em questão, interessa-nos que

“a utilização do pressuposto de que a ciência, enquanto ciência,


não erra e é uma só em qualquer parte do universo, e que é a
partir dela que se atribui as carências humanas e as estratégias

1460
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

para superá-las, em qualquer parte do mundo. Este pensamento


leva a alguns equívocos, como é o caso da adoção de modelos
de condições sociais que não representam a realidade (...)” (BO-
NETI, 2007, p. 25)

Assim, no decorrer do século xx a atuação do Iphan5 baseou-se na


delimitação legal impressa no decreto-lei 25/37, assim como na ação
“heróica”6 de salvaguarda dos monumentos nacionais que se encontra-
vam em estado de ruína. As escolhas dos monumentos que mereceram
ser inscritos nos Livros do Tombo eram feitas pelos técnicos intelectuais
que aportaram no Iphan, conhecedores que eram da história e da impor-
tância dos monumentos e das obras de arte para a cultura nacional. “Os
critérios adotados pelo Sphan eram sustentados não tanto por estudos e
pesquisas, pouco acessíveis à opinião pública, mas pela autoridade dos
agentes e da instituição que respondia pelos tombamentos.” (FONSECA,
2005, p. 109). Refletindo a postura política da época, os processos de tom-
bamento eram realizados conforme o instituto legal, porém sem contar
com o apoio nem tampouco a participação das populações envolvidas e
diretamente responsáveis pelos bens. Fonseca (2005, p. 109-110) reafirma
esta postura, ao concluir que

“(...) o Sphan respondia com o compromisso de sua atuação com


a verdade, e não com a opinião ou com a aparência. Tinha-se
então plena convicção não só do caráter pioneiro da criação do
Sphan, como também do fato de que sua importância só era
evidente para um grupo restrito de pessoas, basicamente das
camadas mais cultas. Nesse sentido, os intelectuais do Sphan
consideravam legítimo o exercício desta autoridade, na medida
em que cabia ao Estado, naquele momento, o papel de intérprete e
guardião dos valores culturais da nação, uma vez que a sociedade
ainda não tinha alcançado a consciência desses valores. Essa
concepção, como se pode perceber, era compatível com o papel
assumido pelo Estado Novo em outras esferas da vida social”

Esta atuação acarretou, na práxis da relação entre as populações en-


volvidas e o patrimônio protegido, um sentimento de exclusão do processo
desenvolvimentista, cujo modelo foi amplamente divulgado e defendido
neste período, principalmente pela industrialização, ainda frágil, mas
já em andamento no país. É possível detectar reflexos desta política no

1461
comportamento e na percepção das populações, pela existência de “(...)
um sentimento ambíguo com relação ao patrimônio: ao mesmo tempo
que ele remete ao passado e a uma relação de afetividade, ele indica
impossibilidade de mudanças e, consequentemente, de progresso (...)”
(SIMÃO, 2006, p. 44).
Além disto, o exercício da cidadania, já bastante diminuído e contra-
posto pelo Estado neste período, resultou quase inexistente em relação ao
patrimônio urbano e sua proteção. Intimidada pelo desconhecimento do
valor “histórico e artístico” de seu próprio lugar, as populações recuaram
de ações coletivas e assumiram uma reação individual à ação impositiva do
Estado, na medida em que os proprietários ou responsáveis pelos imóveis
destruíam ou alteravam seus imóveis à revelia das determinações legais.
Esta fase da vida nacional, que sofreu significativas mudanças no reco-
nhecimento de direitos e na conformação da cidadania, seja em relação
à questão social, trabalhista e, inclusive, ambiental, não vivenciou, para
a proteção do patrimônio cultural, a mesma dinâmica.

O CENáRIO ATUAL DA POLÍTICA PÚBLICA


DE PROTEÇÃO DO PATRIMôNIO CULTURAL

Já no final do século xx, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu


nova interpretação à ação do estado na preservação do patrimônio, as-
sim como ampliou o conceito de “histórico e artístico” para “cultural”. O
parágrafo 1º do artigo 216, da atual Carta Magna, estabelece que “o poder
público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o pa-
trimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e
preservação.” No atual quadro político brasileiro, de estado democrático
de direito, definido pela Constituição Federal de 19887, era esperado o
comprometimento dos três entes federativos conjuntamente à popula-
ção nos diversos processos de consolidação da cidadania e da melhoria
das condições de vida nacional. A ampliação do conceito de patrimônio,

1462
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

expresso no artigo 216 da Constituição Federal de 1988, também reflete


a perspectiva de democratização brasileira, com a tentativa de inclusão
dos diversos segmentos sociais e manifestações culturais no universo
identitário nacional:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de


natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à me-
mória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,
nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

A título de comparação, importante lembrar que o patrimônio histó-


rico e artístico, conforme art. 1º do decreto-lei 25/37, limita-se aos bens
móveis e imóveis, vinculados a fatos memoráveis da história ou de
valor excepcional. Corroborando estas alterações no corpo político-
-jurídico, importante compartilhar estas colocações de Edésio Fernandes
(2010, p. 26):

“De fato, da noção original de que somente “bens de valor monu-


mental” mereciam proteção jurídica à noção contemporânea de
que também “bens de valor local” devem ser protegidos; da pro-
teção jurídica de bens individuais à proteção jurídica de conjuntos
de bens; do conceito ainda dominante do “patrimônio material”
ao conceito, hoje mais difundido mas ainda em construção, de
“patrimônio imaterial”; da ação dominante do governo federal às
ações cada vez mais significativas dos governos estaduais e es-
pecialmente dos governos municipais, com abertura significativa
de espaços para o envolvimento da sociedade nos processos de
decisão: dentre muitas outras formas de deslocamentos concei-
tuais e legislativos importantes, esses novos conceitos propõem
toda uma outra maneira de se pensar a relação entre políticas
públicas de proteção do patrimônio cultural, o instituto jurídico
tradicional do tombamento, os direitos de propriedade privada
e a ação dos mercados imobiliários, bem como a relação, no
contexto das políticas públicas de proteção do patrimônio cultu-
ral, entre a ação institucional dos vários níveis governamentais
e os processos sociopolíticos mais amplos que tem marcado a
redemocratização do país.”

1463
A Constituição Federal define no título dedicado à política urbana, em
seu artigo 182, que será o poder público municipal o responsável pela
política de desenvolvimento urbano, que “tem por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-
-estar de seus habitantes”. Considerando que, nas últimas décadas do
século xx, os documentos internacionais sobre a proteção do patrimônio
já abordam a fundamental integração entre preservação e planejamento
urbano8, entendemos que, repassando aos municípios a responsabilidade
pela gestão urbana, o Estado brasileiro reforça o compartilhamento do
dever da preservação do patrimônio cultural urbano. O papel do instituto
federal preservacionista – o IPHAN, soberano e paternal, começa a se
transformar, na medida em que as municipalidades e os estados-membros
também podem e devem abarcar como função constitucional a proteção
do patrimônio cultural.
Em 2001, ao regulamentar a Constituição Federal, o Estatuto da Ci-
dade define as diretrizes gerais para a garantia das cidades sustentáveis
e aponta a proteção do patrimônio cultural e natural como partícipe da
política urbana, confirmando normativamente a condição imbricada entre
planejamento urbano e patrimônio cultural. Além disto, entre os instru-
mentos de política urbana elencados neste estatuto, alguns são aplicáveis
à preservação do patrimônio cultural, como o parcelamento, edificação
ou utilização compulsórios, o IPTU progressivo no tempo e a desapropria-
ção por títulos da dívida pública; o Estudo de Impacto de Vizinhança; a
Transferência do Direito de Construir; a Operação Urbana Consorciada9
e outros que porventura sejam identificados pela Municipalidade como
passíveis de utilização em seus Planos Diretores.
Estas definições indicam alterações bastante significativas na concei-
tuação da política pública da proteção do patrimônio cultural urbano, ao
integrá-la com o planejamento urbano. O que constatamos, atualmente,
é a existência de normativas específicas municipais e estaduais versando
sobre a proteção do patrimônio cultural, assim como planos diretores
urbanos em cujo escopo encontra-se também a temática do patrimônio

1464
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

cultural, principalmente o urbano. Não obstante, importante registrar que


grande parte destes documentos de planejamento não fazem parte, ainda,
do dia-a-dia das administrações públicas como práxis, mas tão somente
como obrigação cumprida frente a normas superiores.
Por outro lado, vários movimentos populares pela preservação do pa-
trimônio cultural podem ser encontrados nos mais diversos lugares deste
país. A obrigatoriedade da Gestão Democrática da Cidade, que também
consta do Estatuto da Cidade, pode ser indicativa de mudanças frente à
realidade anterior de planejamento urbano e preservação do patrimônio
cultural. O marco regulatório nacional postula que a população deve ter
acesso às informações produzidas e propostas e, além disto, vincula a
legalidade dos atos dos gestores na esfera do planejamento urbano à
existência de fóruns de participação popular. Sobre isto, Núria Martín
(2010, p. 26) afirma que

“(...) a participação política é considerada um instrumento fun-


damental para a realização de uma cidadania ativa. Mesmo
reconhecendo os benefícios que a democracia tem trazido para
os cidadãos, em ordem, as regras e mecanismos de represen-
tação plural, de participação e controle, não pode deixar de se
observar a pouca capacidade de resolução que mostram os me-
canismos democráticos de tomada de decisões. Formalismos,
distanciamento entre representantes e representados, falta de
transparência, etc., são algumas das críticas que se apresentam
no debate político direcionadas ao funcionamento atual dos
nossos sistemas democráticos.”

Além disto, considerando a formulação de políticas públicas numa “ló-


gica de partilha de recursos públicos” (BONETI, 2007, p. 69), ao patrimônio
cultural tem sido alocados alguns programas específicos que destinaram
e destinam montantes consideráveis de verbas, principalmente para as
cidades e lugares tombados. Ressalte-se o Programa Monumenta10, que
atuou do final da década de 1990 até a década passada, sob a gestão do
Ministério da Cultura e do IPHAN, nos últimos anos, e o Programa de
Aceleração do Crescimento para as Cidades Históricas11, ainda em procedi-
mento de implantação, também sob a coordenação do IPHAN. Os recursos
à preservação do patrimônio têm sido, principalmente nestes programas,

1465
destinados a obras e ações de caráter urbanístico, além das tradicionais
obras de restauração e conservação em monumentos reconhecidos, o que
pode ser considerado um reflexo das mudanças ocorridas na compreensão
da natureza da preservação do patrimônio cultural, integrada às questões
urbanas. Talvez este entendimento esteja ainda restrito ao âmbito insti-
tucional e técnico; ainda não temos dados suficientes para concluir se as
populações já compreendem a extensão destas alterações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Deparamo-nos, no contexto atual, com a formulação de novas abor-


dagens teóricas para compreender as relações e significações estabeleci-
das entre a sociedade e as políticas públicas de proteção do patrimônio,
facilmente identificadas pelos instrumentos de proteção do patrimônio,
precipuamente o tombamento. Rosângela Cavallazzi (2010, p. 139-140),
relacionando paisagem urbana12 e tombamento, entende que este “como
instrumento isolado tem gerado efeitos perversos, tem congelado a re-
alidade, a história, a dinâmica da vida, tem realizado um pacto com a
fotografia: ao capturar a vida, inviabiliza a contínua transformação da pai-
sagem urbana”; entretanto, refletindo sobre a dialética deste instrumento,
esclarece que “ao contrário desse reconhecido efeito, a sua vocação maior
será sempre tutelar a vida, com relação à identidade, à ação, à memória,
em outras palavras, a tudo o que está em movimento, em contínuo pro-
cesso de construção, de transformação.” Este princípio dialoga com as
teorias contemporâneas sobre preservação13, onde a utilização dos bens
patrimoniais e sua interseção com o significado a eles atribuído – ou seja,
a dimensão “imaterial” do patrimônio – são elementos centrais e implicam
na integração efetiva das populações usuárias no processo de preservação
e, consequentemente, nas ações de proteção.
Estas abordagens teórico-conceituais indicam novos caminhos para a
gestão do patrimônio cultural urbano, possibilitando outras possibilidades
na formulação das políticas públicas, objetivando inserir a temática na

1466
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

pauta do direito à cidade. A desvinculação da preservação do patrimônio


cultural das outras questões urbanas somente demonstrou, no desenrolar
da experiência brasileira, quase centenária, que as conseqüências são
bastante danosas. Prejudiciais às cidades, na medida em que propiciam
um descolamento destes tecidos antigos do cotidiano urbano, motivando o
abandono ou a substituição destes lugares; estas ações em nada colaboram
para a melhoria da qualidade urbana, nem social nem ambientalmente.
Perniciosos, também, às populações, pois acirram a perda do sentido de
lugar e, consequentemente, a apropriação e o sentimento de pertença; a
ausência destes significados contribui para que o direito à cidade torne-se
distante e inatingível para grande parte da sociedade.
Enfim, as políticas públicas a serem reformuladas ou elaboradas pre-
cisam refletir estas novas tendências teóricas e, principalmente, adotar e
permitir os usos cotidianos e significantes destes bens, possibilitando a
apropriação destes lugares pelas populações.

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1468
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

NOTAS

1 Maria Cristina Rocha Simão é arquiteta (1983) e mestre em Geografia (2000) pela UFMG, doutoranda em
Urbanismo pelo PROURB/ UFRJ; professora efetiva do Curso de Conservação e Restauro do IFMG Campus
Ouro Preto; cristina.simao@ifmg.edu.br.
2 Henri Lefebvre, no livro O Direito à Cidade, utilizado como base para estas reflexões, trabalha com o con-
ceito de cidade como “obra”, contrastando com “produto”. Desta forma, relaciona a obra com valor de uso e
o produto com valor de troca.
3 No início do terceiro milênio foi aprovado o Estatuto da Cidade, instituto nacional que regulamenta a política
urbana, estabelecendo “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urba-
na em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”
(parágrafo único, artigo 1º, Lei nº 10257, de 10/07/2001).
4 A atuação dos intelectuais brasileiros nos movimentos modernistas e preservacionista, ambígua numa primeira
leitura, é questão debatida e estudada por muitos pesquisadores. Eduardo Jardim de Moraes (apud FONSECA,
2005, p. 90) considera que “em países de formação mais recente, como o Brasil, cuja tradição ainda estava por
construir, a adesão imediata ao novo descaracterizaria a produção artística no que ela teria de particular – o
seu caráter nacional – perdendo assim também o seu valor universal, enquanto arte.”
5 Para aprofundamento deste tema, ver FONSECA (2005), onde a trajetória da política federal de preservação
no Brasil é estudada detalhadamente.
6 Os primeiros 30 anos de atuação do instituto são assim conhecidos por refletir uma postura obstinada, uma
“devoção completa e desinteressada de uma equipe ao trabalho da instituição” (FONSECA, 2005, p.126), enca-
beçada pelo intelectual mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade, que o presidiu desde a fundação até 1967.
7 O Estado Democrático de Direito é estabelecido no artigo 1º da Constituição Federal de 1988: “A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-
-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa
humana”; o parágrafo único do mesmo artigo dita que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Ainda, no artigo 5º é garantido
a todos igualdade perante a lei, nos seguintes termos: “xxIII – a propriedade atenderá a sua função social;
LxxIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo (...) ao meio
ambiente e ao patrimônio histórico e cultural (...)”
8 Corrobora esta afirmação o artigo 1º da Carta de Washington: “Para ser eficaz, a salvaguarda das cidades e
bairros históricos deve ser parte integrante de uma política coerente de desenvolvimento econômico e social, e
ser considerada no planejamento físico-territorial e nos planos urbanos em todos os seus níveis.” (CURY, 2000,
p. 282). A Carta de Washington – Carta Internacional para a salvaguarda das cidades históricas, foi resultado
de reunião do ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, realizada em Washington em 1986.
9 Os instrumentos regulamentados pelo Estatuto da Cidade podem e devem ser usados nas situações em que
o município identificar a necessidade de intervenção, motivados pela questão social, ambiental, cultural ou
estratégica, por meio do Plano Diretor. “Nesse sentido, o Estatuto da Cidade oferece um conjunto de instrumentos
que, incorporados a avaliação dos efeitos da regulação sobre o mercado de terras, oferece ao poder público uma
maior capacidade de intervir – e não apenas normatizar e fiscalizar – o uso, a ocupação e a rentabilidade das
terras urbanas, realizando a função social da cidade e da propriedade.” (Brasil, Estatuto da Cidade, 2002, p. 62)
10 O Monumenta foi um programa estratégico do Ministério da Cultura, com financiamento do Banco Intera-
mericano de Desenvolvimento e apoio da Unesco. Objetivava garantir condições para a sustentabilidade do
patrimônio e, nos últimos anos, atuou em 26 municípios, todos possuidores de acervo tombado pelo IPHAN.
Fonte: http://www.monumenta.gov.br/site/?page_id=164; acessado em 15/08/13
11 “O PAC Cidades Históricas é uma ação intergovernamental articulada com a sociedade para preservar o
patrimônio brasileiro, valorizar nossa cultura e promover o desenvolvimento econômico e social com susten-
tabilidade e qualidade de vida para os cidadãos. (...) Ampliar a abrangência dessa estratégia de desenvolvi-
mento, para posicionar o patrimônio cultural como eixo indutor e estruturante, é o objetivo do PAC Cidades
Históricas que atuará, inicialmente, em 44 cidades, de 20 estados da federação, com a disponibilização de R$
1 bilhão de reais até 2015, em obras públicas. Outros R$ 300 milhões estão destinados a uma linha de crédito
para proprietários de imóveis de cidades tombadas pelo IPHAN.” Fonte: http://portal.iphan.gov.br/portal/
montarPaginaSecao.do?id=14926&retorno=paginaIphan; acessado em 15/08/13.
12 DIDONET (2012, p. 31) cita Rosângela Cavallazzi ao explicar que “a paisagem urbana materializa os conflitos
sociais em um processo complexo, produto da conjugação dos elementos naturais e artificiais, conceito que
participa da construção do espaço urbano com a força dos seus valores simbólicos”.
13 Os estudos de Salvador Muñoz Viñas (2003) têm sido referenciais na atualidade. Ver também a tese de
CARSALADE (2007), que apresenta uma análise detalhada do fenômeno patrimonial, sob uma abordagem
fenomenológica.

1469
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

TAC: garantia do
direito à cidade?

Thaís de Miranda Rebouças1


Glória Cecília dos Santos Figueiredo2

INTRODUÇÃO

O direito à cidade é versado em diversas instâncias (teórica, prática,


jurídica) e as estratégias para sua efetivação são igualmente diversificadas
(embora muitas vezes complementares). Lefebvre afirma que “o direito à
cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade,
à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar” (2008, p. 134).
Essa definição extrapola as premissas materiais (acesso à infraestrutura e
a serviços urbanos adequados, à moradia digna e à mobilidade urbana),
também fundamentais à vida digna nos centros urbanos, e incorpora a
essa discussão “o direito à obra (à atividade participante) e o direito à
apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no
direito à cidade” (LEFEBVRE, 2008, p. 134).
No campo da política urbana, o marco da regulamentação desses direi-
tos no Brasil é o Estatuto da Cidade3, que estabelece uma série de diretrizes
e instrumentos com o objetivo do pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana. Esses instrumentos dependem,
muitas vezes, de regulamentação específica no âmbito municipal, muitos
deles através do Plano Diretor. Essa remissão a legislação municipal es-
pecífica, em muitos casos, inviabiliza sua aplicação e a implementação
dessa legislação federal no território local. No caso de Salvador, nota-se
a inexistência de alguns desses instrumentos ou a utilização inadequada
de outros no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (Lei 7.400/2008).

1471
Nos casos de violação do direito à cidade, onde é explicitado conflito
entre a sociedade civil e o poder público local (Prefeitura ou Governo do
Estado, no caso de Salvador) ou a iniciativa privada, um instrumento que
pode ser utilizado para garantia desse direito, no âmbito local, é o Termo de
Ajustamento de Conduta, do qual discorreremos mais adiante, na maioria
dos casos, proposto e mediado pelo Ministério Público. Este instrumento
não está previsto no Estatuto da Cidade ou mesmo na legislação local,
porém, na maior parte dos casos comentados, foi ele o responsável por
assegurar os direitos de comunidades frágeis, do ponto de vista da proteção
dos interesses sociais e urbanísticos.
O presente artigo é, pois, um convite à discussão desse instrumento,
o TAC (instrumento/procedimento extrajudicial destinado a adequar a
conduta do descumpridor da lei), na sua utilização pelo Ministério Público
pela garantia do direito à cidade. E, como elementos para essa discussão,
trazemos à baila três exemplos de TACs utilizados para esse fim: o dos
Alfaiates da Rua da Misericórdia nº 1, o dos moradores da 7ª Etapa de
Recuperação do Centro Histórico de Salvador e o da Rede de Associações
de Saramandaia (este último aguardando finalização).

TAC – finalidades e prerrogativa

O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) é procedimento previsto na


Lei da Ação Civil Pública, que define que “os órgãos públicos legitimados
poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua
conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de
título executivo extrajudicial” (Lei 7.347/85, Art. 5º, § 6°). É, portanto, um
procedimento extrajudicial, utilizado após verificação da existência de
irregularidades4, utilizado antes de ingressar com ação perante o judiciário.
Segundo CAZETTA,

Os modelos processuais, forjados pela ótica individualista, neces-


sitavam de uma nova conformação, criando-se mecanismos que
permitissem, sem o uso das clássicas teorias da representação,
ou a substituição processual, o acesso ao Poder Judiciário para a
defesa dos interesses amplos da sociedade (2005, p. 346).

1472
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

É nesse contexto que surge a Lei da Ação Civil Pública, um instrumento


“cuja destinação era exatamente a permitir a manifestação da cidadania
na defesa dos interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos.”
(CAZETTA, 2005, p. 346).
Podem ingressar com Ação Civil Pública (ACP) na justiça: o Ministério
Público, a Defensoria Pública, a União, os Estados, o Distrito Federal, os
Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações ou sociedades de
economia mista e associações que atendam às especificações da Lei (Lei
7.347/85, Art. 5º). Porém, essa mesma Lei define que “o Ministério Pú-
blico, se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente
como fiscal da lei” (Art. 5º, § 1º), o que torna obrigatória a participação
do Ministério Público (MP) nas ACPs, mesmo nos casos em que esse não
seja propositor5.
O Ministério Público é um órgão constitucional autônomo, ou seja, não
deve subordinação a nenhum dos três poderes, que atua na área cível,
no que se denomina tutela coletiva, defendendo os interesses difusos6,
coletivos7 e individuais homogêneos8. Nesses casos, o MP age por meio
da ação civil pública, da ação civil coletiva ou da ação de improbidade ad-
ministrativa9. Esse mesmo MP “pode propor, comprovada a irregularidade,
antes de ingressar com a ação, a assinatura de termo de ajustamento de
conduta (TAC)”10, exceto nos casos de improbidade administrativa.
A finalidade do TAC é adequar “a conduta do ofensor ao mínimo previs-
to pela legislação em vigor, através da estipulação de fazer e de não fazer
sob pena de cominação de multa pecuniária em caso de descumprimento”
(FERREIRA, 2011, P. 107). A assinatura do TAC é sempre facultativa às
partes, porém, de modo geral, mesmo os considerados ofensores não
se recusam a assinar esses termos, uma vez que, no caso de recusa, é
ajuizada ação civil pública contra o causador do dano (FERREIRA, 2011).

1473
O TAC DOS ALFAIATES

O Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador é iniciado


em 1992 e estava pautado na requalificação da área para desenvolvimento
do setor turístico no Estado. A proposta então era transformar o Centro
Histórico em um shopping center a céu aberto, dotando-o da infra-estrutura
e dos serviços necessários para a realização do consumo e do lazer, tendo
como público alvo as classes média e alta e turistas estrangeiros11. Esse
programa dividiu-se em sete etapas, e suas primeiras cinco etapas, de 1992
a 1999 foram gastos aproximadamente R$ 92 milhões com a reforma de
cerca de 600 imóveis e da infra-estrutura instalada, com a construção de
três estacionamentos e com a restauração de nove monumentos tomba-
dos, além do agenciamento de seis praças (SANT’ANNA, 2003). A sexta
etapa é iniciada em 2000 e se estende até os dias atuais, entrando pelo
décimo segundo ano de elaboração e execução. As remoções de famílias
moradoras contabilizadas da primeira à sexta etapas alcançaram o número
de 2.195 famílias (MOURAD, 2011).
O processo de recuperação do Centro Histórico de Salvador, embora
grandemente criticado por determinados setores da sociedade, nunca
havia sido questionado ou, melhor, confrontado diretamente. Isso até a
realização da sexta etapa, quando, nos imóveis localizados na extensão da
Rua da Misericórdia, os moradores do imóvel de nº. 1 decidiram reivindicar
seu direito à moradia. Residiam nesse edifício 44 pessoas (distribuídas em
15 domicílios) e, pela predominância de alfaiates que moravam e exerciam
suas atividades no imóvel12, este ficou popularmente conhecido como
“Prédio dos Alfaiates” (ver Figura 1).
No ano de 1999, o Governo do Estado decretou o imóvel como de
utilidade pública para fins de desapropriação. O passo seguinte ao decre-
to seria a expulsão dos seus moradores, com o pagamento de irrisórios
auxílios-relocação, prática já estabelecida desde o início do processo de
recuperação do CHS, em 1992. Mas os moradores se recusaram a deixar
o imóvel e buscaram o apoio da assessoria jurídica de um deputado esta-

1474
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dual13 e do Ministério Público da Bahia, o que resultou, entre outras ações,


ação de inquérito civil público aberta pelo Ministério Público da Bahia, com
a realização de audiências públicas com o objetivo de “apurar, junto ao
Estado, a sua concepção de patrimônio histórico e a destinação que seria
dada ao imóvel” (BARROS; PUGLIESE, 2011, p. 14). Nessa ação judicial,
requereu-se a reforma imediata do prédio e sua posterior destinação aos
alfaiates, a relocação provisória dos seus ocupantes até a finalização da
reforma e o acompanhamento do processo de desapropriação em curso.

Figura 1 – Prédio dos Alfaiates

Fonte: Pablo Vieira Florentino, 10 de abril de 2012.

Na ocasião, como continuava havendo resistência por parte dos mo-


radores em desocupar o edifício, o Governo do Estado aceitou participar
de uma negociação direta com os alfaiates, intermediada pelo Ministério
Público, que resultou na assinatura de um Termo de Ajustamento de
Conduta (TAC), em dezembro de 2001. O TAC garantiu aos moradores
do edifício de nº 1 da Rua da Misericórdia o direito de retornar ao imóvel
após a conclusão da reforma e também “o pagamento de indenizações
– agora baseadas em justos critérios – pelo ato da desapropriação em si”

1475
(BARROS; PUGLIESE, 2011, p. 14). Nessas condições, conforme destaca
Fernandes, os moradores deixaram o edifício com o objetivo de viabilizar
a reforma e ainda:

- parte dos moradores que ocupavam a construção receberam


uma compensação pecuniária (com valores variando entre R$
1,2 mil a R$ 11 mil); outros firmaram contrato em comodato de
20 anos para um novo endereço; e oito do grupo de alfaiates
preferiram a mudança provisória para retornarem ao antigo
endereço tão logo este seja reformado;
- os alfaiates conseguiram também que fossem transferidos pro-
visoriamente para uma casa na Rua Saldanha da Gama (próxima
à Misericórdia);
- além disso, faz parte do TAC que, caso se ultrapasse o prazo
estabelecido no contrato de comodato para a reforma do “Prédio
dos Alfaiates”, os alfaiates possam continuar suas atividades
(FERNANDES, 2006, p. 51).

Próximo a completar dez anos da conquista do direito à permanência


no imóvel, somente neste ano de 2011 pôde-se observar a conclusão das
obras no imóvel, o último da sexta etapa de recuperação do CHS. No en-
tanto, não se nota nenhum sinal de reocupação pelos antigos moradores
ou mesmo sua ocupação por outros serviços. Os alfaiates ainda aguardam
o retorno para o edifício de número um da Rua da Misericórdia e alguns
já morreram sem usufruir da realização do seu direito.

O TAC DA 7ª ETAPA DE RECUPERAÇÃO DO ChS

O projeto da 7ª Etapa do Programa de Recuperação do Centro Histórico


de Salvador começa a ser elaborado no ano de 2000 e carrega consigo o
peso das críticas que assolaram os processos das etapas anteriores. Isso
estava claro desde os estudos e avaliações realizados na segunda fase do
Programa (que avaliava suas quatro primeiras etapas) às recentes críticas
aos dez anos de concepção e implementação do programa, agravadas pela
repercussão na mídia pela tentativa de expulsão dos Alfaiates. Um estudo
contratado pela CONDER em 2000 alerta para o fato de as etapas anteriores
não terem surtido o efeito multiplicador desejado, e que, “portanto, esta

1476
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

etapa é uma oportunidade de reavaliação e redirecionamento das ações


efetuadas naquelas etapas” (SETEPLA/TECNOMETAL, 2002b, p. 6).
Um convênio com o Ministério da Cultura (MinC ) é assinado em
2002 com o objetivo de recuperação física, social e econômica, de forma
“sustentável”, do patrimônio cultural, através do Programa Monumenta.
A área do projeto, conhecida como Saldanha, é considerada “uma reali-
dade marcada por marginalidade social, econômica e urbana” (SETEPLA/
TECNOMETAL, 2002b, p. 8), motivo preponderante para a definição da
área de intervenção, juntamente com sua importância arquitetônica e
histórico-cultural. Sua poligonal possui 16 quadras, englobando as ruas
José Joaquim Seabra, do Tesouro, das Vassouras, Visconde do Rio Branco
/ Ladeira da Praça, José Gonçalves, Saldanha da Gama, Monte Alverne /
Rua do Bispo e Thomé de Souza/Rua da Ajuda (Ver Mapa 3).
Após diversos ajustes e reformulações, fica estabelecido que nessa eta-
pa serão recuperados 130 imóveis (localizados nas ruas descritas acima)
para dar origem a 316 unidades habitacionais e 65 unidades comerciais,
sete monumentos tombados isoladamente, requalificadas a pavimentação
e as redes elétrica e de drenagem das ruas e construído um estacionamen-
to, com a criação de 200 vagas (FERNANDES, 2006). O valor total inicial
do projeto era de R$33.801.881,00.
Ainda em junho de 2000, a CONDER elabora uma Pesquisa Sócio-
-Econômica e Ambiental na área da 7ª Etapa, que identificou 1.674 famílias
que ocupavam, com fins de moradia, 73 de um total de 130 imóveis, além
de 55 comerciantes que atuavam na área (SETEPLA/TECNOMETAL, 2002).
Essas famílias, na sua maioria, possuíam rendimentos de até um salário
mínimo (55%), sendo que sua imensa maioria (81%) possuía rendimentos
de até três salários mínimos (MOURAD, 2011) e eram predominantemente
(cerca de 64% quando somados) biscateiros, trabalhadores domésticos e
vendedores ambulantes (MOURAD, 2011). E esse foi, de início, o grande
desafio do projeto: remover as famílias que ocupavam os imóveis da
área sem a segurança da posse. Assim, foi elaborado pela CONDER um
Plano Preliminar de Reassentamento, em atendimento às indicações do

1477
Regulamento Operativo do Programa Monumenta, que começou a ser
implementado em 2001. Entre julho de 2001 e fevereiro de 2002 já haviam
sido pagos 1.023 auxílios relocação a uma média de R$ 1.882 por família
(SETEPLA/TECNOMETAL, 2002). Em 2003, o total de famílias indenizadas
chegava a 1.292.
Como a grande preocupação do projeto da 7ª Etapa era a sua susten-
tabilidade14 econômica, financeira e institucional, e esse era o critério
para caracterizá-lo como bem sucedido ou não, a justificativa para a
necessidade de substituição da população era a sua incapacidade de pa-
gamento das prestações das moradias a serem habilitadas na área e sua
subseqüente manutenção.
Dando seguimento ao projeto, em abril de 2002 é publicado o decreto
de desapropriação dos imóveis privados da área da 7ª Etapa15, mesmo
com 698 moradores ainda residindo no local. Essas pessoas se recusa-
ram a deixar seus imóveis, não aceitaram receber os auxílios-relocação
nem as ofertas de reassentamento oferecidos pela CONDER e resolveram
lutar pela sua permanência na área. A intenção do Estado era agilizar o
andamento do projeto e, em poder da imissão de posse, ter respaldo legal
para expulsar os moradores da área.
Esse é o contexto para a criação da Associação dos Moradores e Ami-
gos do Centro Histórico (AMACH), formalizada em 3 de julho de 2002. A
partir de então, uma série de ações é iniciada pela AMACH no sentido de
impedir a expulsão dessa população, entre elas a ação civil pública (n.
38.148-7/2002) ajuizada pelo Ministério Público, com pedido de ordem de
liminar contra o governo do Estado e a Conder, com o objetivo de barrar
o processo de relocação, por ele classificado como de assepsia social.
Assim, a negociação, intermediada pelo Ministério Público da Bahia, en-
volvia a AMACH, o Governo do Estado da Bahia, através da Secretaria de
Desenvolvimento Urbano (SEDUR) e da CONDER e o Ministério da Cultura.
Esse processo de negociação resultou na criação de um Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC) em 1º de junho de 2005, firmado entre a
AMACH, a CONDER, o MinC, com a mediação do Ministério Público da

1478
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Bahia. Esse termo garantia o direito à permanência de 103 famílias na área


da 7ª Etapa com sua inclusão no projeto através de subsídios do Governo
do Estado e do Ministério das Cidades para a construção das unidades
de habitações de interesse social, através do Programa de Habitação de
Interesse Social (PHIS)16. Dos 317 apartamentos construídos na 7ª Eta-
pa, 103 seriam de habitação de interesse social e 234 para funcionários
públicos (financiados pelo Programa de Habitação para Servidores Esta-
duais – PROHABIT)17. Também foram projetados 55 pontos comerciais,
dos quais 13 deveriam ser destinados às famílias da 7ª Etapa, além de um
imóvel para instalação de equipamentos comunitários (sede da AMACH e
creche comunitária). No total, serão recuperados para habitação, comércio
e serviços 76 imóveis, 21 pelo PHIS e 55 pelo PROHABIT. Abaixo, a Figura
2 mostra a composição e distribuição territorial do projeto.

Figura 2 – Programa Monumenta. 7ª Etapa de Recuperação do CHS (2005)

Fonte: MOURAD, 2011.

1479
O TAC, além da garantia da permanência das famílias, objetivo maior
do acordo, ainda compromete as partes envolvidas a viabilizar: a reloca-
ção provisória dos moradores durante o tempo de execução das obras,
a discussão do projeto de recuperação da 7ª Etapa com os moradores
visando à compatibilização das unidades à composição das famílias, a
instalação da sede da associação na área, a contratação de mão-de-obra
local. No caso de descumprimento de alguma das cláusulas do TAC, o
compromissado infrator será obrigado a pagar multa diária de mil reais,
enquanto durar a irregularidade. Ficou ainda instituído um Comitê Gestor,
responsável pelo controle social do processo. Definido como “instância
participativa efetiva da comunidade no projeto” (TAC, 2005, p. 2), o Comitê
tem por objetivo a análise e deliberação sobre as solicitações realizadas
pelas famílias cadastradas e possui um representante de cada entidade
a seguir citada: CONDER, Secretaria de Combate à Pobreza do Estado da
Bahia, SEDUR, AMACH, do CEAS, Universidade Estadual de Feira de San-
tana e Cooperação para o Desenvolvimento da Morada Humana – CDM.
O que se viu, no entanto, foi um grande atraso nas obras dos imó-
veis de habitação de interesse social, chegando-se ao ponto de, como
destaca Mourad,

Em 2010, após 5 anos da assinatura do Termo de Ajustamento


de Conduta (2005), somente foram concluídos 8 imóveis do
Programa de Habitação de Interesse Social, abrigando apenas
36 famílias. Nenhum equipamento de apoio à função residencial
foi implantado, embora o Ministério Público tenha mobilizado
em 2008 e 2009 inúmeras vezes representantes da CONDER, do
IPHAN, do IPAC, do ERCAS, da PMS, da COELBA e da EMBASA
visando ao cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta
– TAC (2011, p. 142).

Embora nessa audiência a CONDER e a SEDUR tivessem se comprome-


tido a viabilizar a implantação de um equipamento comunitário (creche
comunitária) e a agilizar as obras, priorizando a conclusão das habitações
de interesse social, Pró Cida afirma que nenhum dos pontos estabelecidos
na audiência foi cumprido. Mourad (2011) afirma que muitos moradores
deixaram seus pontos comerciais na área quando foram relocados tempo-

1480
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

rariamente (para que fossem executadas as obras de reforma nos imóveis


por eles ocupados) o que compromete seu sustento e posterior capacidade
de permanência na área, considerando que, após a ocupação definitiva
dos seus apartamentos, incidirão sobre os moradores inúmeras taxas que
antes não compunham suas despesas domésticas (taxa do financiamento,
luz, água, esgotamento sanitário e IPTU, por exemplo).

A morosidade na execução do projeto, sobretudo no que se refere


ao uso residencial, evidencia a falta de prioridade do governo
em relação a 7ª Etapa. Dos 75 imóveis somente 8 (10,6%) foram
efetivamente entregues. No entanto as obras relacionadas aos
monumentos de referência nacional foram quase todas realizadas
ou se encontram em fase de conclusão (MOURAD, 2011, p. 146).

As obras na 7ª Etapa se estendem há tanto tempo (já são sete anos) que
já nem é possível mensurar o desgaste da população e do próprio Estado
nesse processo. 68 famílias ainda vivem em imóveis alugados, muitos em
condições igualmente precárias às que viviam antes de serem relocados.
Pró Cida conta que os moradores já passaram e continuam passando por
situações constrangedoras com os freqüentes atrasos no pagamento dos
aluguéis dos imóveis onde vivem, compromisso da CONDER no TAC até
quando durarem as obras e os moradores possam ocupar seus aparta-
mentos definitivamente.

O TAC DE SARAMANDAIA

Saramandaia é um bairro vizinho à Rodoviária ao Departamento de


Transito (DETRAN) de Salvador, e teve sua ocupação iniciada de maneira
informal ainda na década de 1970, por conta da construção da Rodoviá-
ria. Além da vizinhança imediata a esses dois grandes equipamentos da
cidade, também localiza-se próximo ao atual centro financeiro e eco-
nômico da capital, ao Shopping Center Iguatemi, além de diversos outros
equipamentos de serviços. Sua população gira em torno de 10 mil pessoas
e encontra-se em alto grau de vulnerabilidade sócio-ambiental. Além dos
baixos rendimentos registrados pela maioria de sua população, o acesso

1481
a serviços e infraestuturas básicas como água, esgotamento sanitário,
coleta de lixo, saúde e educação é bastante precário. Agravante dessa
situação, parte da ocupação encontra-se abaixo da rede de transmissão
de energia elétrica de alta voltagem da Companhia Hidro Elétrica do São
Francisco, área non aedificandi definida por lei. Por esses motivos, o Bairro
é definido como Zona Especial de Interesse Social pelo Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano desde 2008.

Figura 3: Localização da ZEIS SARAMANDAIA.

Fonte: PLANARQ, 2010.

1482
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Além de todos os exemplos acima citados, um recente agravante da


situação de vulnerabilidade enfrentada pelos moradores de Saramandaia
é a construção do empreendimento Horto Bela Vista, um empreendimento
de urbanização integrada de uso misto – comercial, residencial e serviços,
constituído de: 19 (dezenove) torres residenciais, contendo 3.046 aparta-
mentos, 1 clube privativo dos condomínios residenciais com 14.405,07 m²
de área privativa, 3 prédios comerciais, contendo 1.280 conjuntos comer-
ciais, 1 torre para residencial com serviços, tipo Flat com 448 unidades,
1 Shopping Center com área construída de 196.210,57 m² e uma Escola
Particular com 14.765,99 m² de área útil (PLANARQ, 2010).
Tendo em vista a desconformidade do projeto e da construção do
empreendimento Horto Bela Vista com a legislação ambiental vigente, o
Ministério Público do Estado da Bahia (MPE) abriu inquérito civil e procedeu
na elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado
pelo MPE e a JHSF Salvador Empreendimentos e Incorporações S/A (em-
presa empreendedora) em 21 de outubro de 2009 (Nº. 003.0.176305/2008).
Esse TAC prevê a elaboração de um Estudo de impacto Urbano-ambiental
(EIUA), e sua elaboração foi contratada pela empresa PLANARQ - Plane-
jamento Ambiental e Arquitetura Ltda.
Durante o processo público e participativo da elaboração do EIUA pela
empresa PLANARQ, verificou-se a participação pujante da população
moradora de Saramandaia, por meio das suas associações organizadas
em rede (a RAS – Rede de Associações de Saramandaia), que preocupada
com os impactos que esse empreendimento poderia causar no seu bairro,
reivindicou ações e medidas mitigatórias desse empreendimento. Após
diversas reuniões do EIUA, o MPE inicia o processo de termo aditivo ao
TAC já firmado com a JHSF, de forma a garantir a inclusão das medidas
mitigatórias identificadas pelo EIUA no entorno do empreendimento. Aqui,
destacaremos as medidas destinadas à redução do impacto do Horto Bela
Vista no bairro de Saramandaia (e por essa razão denominamos esse
termo de TAC de Saramandaia).
Nessas negociações, ficou definido que constará do termo aditivo

1483
(ainda não assinado até o presente momento) firmado com a JHSF, além
das medidas mitigadoras da mobilidade urbana, de permeabilidade social
e integração espacial e de conforto urbano ambiental para o entorno da
área (com destaque às medidas específicas ao bairro de Saramandaia): a
requalificação do largo contíguo à Escola Marisa Baqueiro Costa, um curso
de capacitação profissional / lideranças comunitárias e educação am-
biental para mil pessoas (incluindo, além dos moradores de Saramandaia,
moradores de Pernambués) e a implantação de uma quadra poliesportiva
em área de 500 m2 no bairro de Saramandaia.
Uma cláusula penal desse termo garantirá que o descumprimento com-
provado das cláusulas do TAC aditivo acarretará no pagamento de multa
no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por dia útil de descumprimento.

O TAC DA OCUPAÇÃO DA PRAÇA DE


ONDINA PELO CAMAROTE SALVADOR

No ano de 2010, a Prefeitura Municipal de Salvador e a empresa Pre-


mium Produções firmaram contrato administrativo que concedia o uso e a
fruição de uma área pública (9.837,00 m2) no Município de Salvador, para
exploração de camarote e / ou serviços especiais durante o período do
carnaval, pelo quinquênio de 2011 a 2015 (Edital de Licitação N.º 02/2010
publicado pela Prefeitura de Salvador), mediante o pagamento de R$ 1
milhão para todo o período de exploração. Além do pagamento pelo uso e
fruição da área, a contrapartida ao município seriam benfeitorias na área
a ser explorada, bem como a instalação de arquibancadas populares, cuja
gerência ficaria a cargo da Prefeitura. A praça permaneceria, segundo os
termos do contrato, cedida à Premium Produções pelo período de quatro
meses, tempo considerado necessário para montagem e desmontagem
da estrutura do camarote.
Em 2011, atendendo a uma solicitação dos moradores do bairro de
Ondina a uma denúncia do Jornal A Tarde de que a praça ainda perma-
necia ocupada pela estrutura do camarote para além do prazo definido

1484
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

em contrato (já havia se passado mais de um mês do prazo regulamentar,


totalizando cinco meses de privatização da praça), o Ministério Público
Estadual da Bahia (MPE) abriu um inquérito civil para investigar as pos-
síveis ilegalidades do contrato. Nessa investigação, verificou-se, além do
descumprimento do prazo, que a reforma da praça não havia sido feita
pela Premium, tal como descrito no contrato, que mais da metade da área
cedida pela Prefeitura municipal se tratava de área da União, cedida à
revelia do seu órgão gestor, a Superintendência Regional do Patrimônio
da União (SPU) e que o acesso à praia que estava comprometido com a
estrutura do camarote, fosse garantida a toda a população. Para que a
conduta da Premium e da Prefeitura fossem “ajustadas”, o MPE promoveu
a assinatura de um TAC que se propunha a garantir o cumprimento do
prazo de ocupação da praça pelo Camarote Salvador18 de dezembro até
o término do carnaval e a liberação do acesso à praia.
Em 2012, persistindo o abuso na ocupação da Praça pela Premium e ob-
servando o descumprimento do TAC pelas partes envolvidas, a Defensoria
Pública da União dá entrada numa Ação Civil Pública que exigia a anula-
ção do contrato de concessão da praça, questionando a cessão indevida
de uma praça, pública e bem de uso comum do povo, para ser explorada
comercialmente no carnaval, período do ano em que essa praça é mais
utilizada pela população. Antes que a ACP fosse julgada pelo Tribunal de
Justiça (TJ), o Ministério Público interpõe ao processo mais uma proposta
de TAC, dessa vez assinado apenas pelos Ministérios Públicos Estadual e
Federal, pela Prefeitura de Salvador e pela SPU, com vistas a suspender
o trâmite e retirar do julgamento a Ação Civil Pública que tramitava no
TJ. Esse TAC previa apenas a redução do tempo de ocupação da Praça de
Ondina pela Premium Produções, com a ameaça de pagamento de multa
diária de R$ 20 mil enquanto fosse descumprido o prazo. Esse TAC, além
de suspender a ACP, ratificou a ocupação da Praça no carnaval por um
ente privado, legitimando a privatização do espaço público promovida
pela Prefeitura de Salvador.

1485
A praça é classificada como bem de uso comum do povo pelo atual
Código Civil, o que implica a sua afetação como bem público. Essa des-
tinação pública de uso implica a inalienabilidade, imprescritibilidade,
impenhorabilidade e não-oneração da praça. Caso haja sua utilização por
particulares a sua finalidade pública deveria permanecer.
Contudo, esses pressupostos não foram observados na Praça de On-
dina, desde que a Prefeitura, através da Superintendência de Controle e
Ordenamento do Controle e Uso do Solo (SUCOM), concedeu sua utili-
zação para a instalação de camarote de carnaval pela empresa Premium
Produções no contrato referido.
O fato de parte da área da praça integrar o patrimônio da União, exigia
ainda uma prévia cessão da área federal ao Município, que não foi ob-
servada. Soma-se ainda a esse conjunto de ilegalidades e irregularidades
a inexistência de licitação regular que legitimasse a outorga de área à
empresa Premium.
Além da ilegalidade em ceder um bem de uso comum do povo para
exploração comercial, através de sua utilização como camarote, destaca-
-se que essa é uma das poucas praças do bairro de Ondina19, fato que por
si já enseja um uso mais democratizado da mesma.
O Plano Diretor de Salvador (Lei No 7.400/2008) estabelece que a praça
é uma das modalidades de Espaço Aberto Urbanizado (EAU), definido como
área pública urbanizada destinada ao convívio social, ao lazer, à prática de
esportes e à recreação ativa ou contemplativa da população (Art. 241, §2°).
Porém, as funções de uma Praça vão muito além dessa definição oficial.
Enquanto elemento de urbanização, a praça é um espaço público comum
de convivência, que deveria contar com ampla acessibilidade, permitindo a
fruição, o encontro e ou a troca entre os seus diferentes usuários. A praça
é ao mesmo tempo espaço cívico, de lazer, de esportes, mas também de
manifestações culturais e políticas.
Neste sentido, considerando o contexto de uma manifestação cultural
tão popular, como o carnaval de Salvador, a Praça de Ondina deveria, estar
sendo pensada em termos de qualificação da programação do carnaval,

1486
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

permitindo mais espaço e acessibilidade aos foliões, artistas e cidadãos.


Nos carnavais anteriores à instalação do camarote, essa praça era mas-
sivamente ocupada por foliões pipocas, já que se constituía em um dos
poucos espaços livres e amplos desse circuito.
Outra questão é que no caso dos camarotes, para muito além dos lu-
cros obtidos com a comercialização de bens e serviços oferecidos nesses
espaços públicos, tornado privativos, há uma renda altamente especula-
tiva e não tributada, gerada em função da localização e venda de status
de distinção. Nota-se com isso, para o caso do Camarote Salvador, o não
cumprimento da função social da cidade, como disposto nas diretrizes do
Estatuto da Cidade. Paradoxalmente, a ação pública conduz a segregação,
ao permitir a utilização de uma praça como camarote privado.

Figura 4 – Manifestação contra privatização da Praça de Ondina.

Fonte: Movimento Desocupa, 2012.

CONCLUSÕES

Embora a estrutura do TAC deva prever multa pecuniária em caso de


descumprimento do termo (FERREIRA, 2011), observamos nos casos dos
Alfaiates e da 7ª Etapa que as multas e sanções nunca foram levadas a
termo. No caso dos Alfaiates, conforme dito acima, alguns dos seus bene-
ficiários já morreram à espera do direito de retornar à Rua da Misericórdia

1487
nº 1 sem que seu direto conquistado em termo seja efetivado. Na 7ª Etapa,
as obras se arrastam, atrasando a entrega dos apartamentos aos seus be-
neficiários, fragilizando a AMACH e as relações sociais do lugar. No caso
do TAC de Saramandaia, apesar de ainda não se registrar a extrapolação
dos prazos instituídos para a execução das medidas compensatórias e de
reversão de impactos pelo empreendimento Horto Bela Vista, também
não há sinal de que tais medidas estejam em curso de implementação.
O TAC é instrumento importante na garantia do direito à cidade, po-
rém, não o efetiva, quando não leva a cabo a execução das suas cláusu-
las penais. A cobrança das multas garantidas nesses termos poderia ser
o impulso necessário ao Estado (nos casos dos Alfaiates e da 7ª Etapa)
para dar celeridade às obras e ao cumprimento das demais cláusulas
dos termos. Verificamos, nesses casos, que o TAC não prevalece sobre a
incompetência e inoperância do Estado, nem tampouco se impõe a ele.
Assim, o TAC, esse instrumento utilizado para evitar a judicialização dos
processos e sua característica morosidade (face a lentidão dos processos
judiciais hoje na Bahia), não têm servido como procedimento de garantia
amigável e célere dos direitos.
Na experiência dos três primeiros TACs nota-se um descompasso entre
a garantia de direitos que esses instrumentos se propõem a instaurar e a
efetividade de tais direitos, que não chegam a ganhar materialidade. Já o
caso do TAC estabelecido devido à ocupação da Praça de Ondina por um
camarote, a situação é extremamente controversa, na medida em que é
proposto um ajustamento de conduta que regulariza uma situação eivada
de ilegalidades e que viola o direito à cidade, através da privatização de
um bem de uso comum do povo. Trata-se de uma guinada conservadora
na utilização do TAC.
Estas experiências evidenciam que o TAC enquanto um instrumento,
não garante por si mesmo avanços sociais e políticos, colocada a pers-
pectiva do direito à cidade. Seus sentidos são constituídos e disputado no
curso da ação social, em torno de diferentes, e frequentemente divergentes
interesses, conforme os agentes envolvidos.

1488
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Para nós, é importante reforçar a utilização e aprimoramento do TAC


como instrumento que não só afirma direitos comuns, mas também os ins-
taura num plano territorial, a partir de conflitos que explicitam demandas
de coletividades vulneráveis e ou dissonantes das ordens hegemônicas.
Assim, embora ainda não tenham sido efetivados os direitos dos Alfaia-
tes, dos moradores da 7ª Etapa ou de Saramandaia, não se pode considerar
perdidos os ganhos da causa desses movimentos junto ao Ministério Pú-
blico, sobretudo se os analisamos pela ótica da irreversibilidade da ação
humana, nos pressupostos colocados por Hannah Arendt. Para a autora,
uma vez iniciada, uma ação não se extingue nela mesma. E não pode
mesmo extinguir-se, já que ela se desenvolve por um encadeamento de
ações e reações, levadas a cabo por diferentes indivíduos (e em diferentes
momentos), que são tocados de maneiras distintas por cada ação iniciada.

A ação, embora possa provir do nada, por assim dizer, atua sobre
um meio no qual toda reação se converte em reação em cadeia,
e todo processo é causa de novos processos. Como a ação atua
sobre seres que também são capazes de agir, a reação, além de
ser uma resposta, é sempre uma nova ação com poder próprio
de atingir e afetar os outros. Assim, a ação e a reação jamais
se restringem, entre os homens, a um círculo fechado, e jamais
podemos, com segurança, limitá-la a dois parceiros. (ARENDT,
2007, p. 203)

Essas ações movidas no Ministério Público ou na Defensoria Pública


(como é o caso de alguns) têm incentivado diversos outros movimentos
sociais, que têm procurado o Estado, a Defensoria Pública e o Ministério
Público para assegurarem seu direito à moradia em Salvador, a exemplo
da comunidade da Rocinha, da ocupação do antigo prédio da Prefeitura na
Ladeira da Praça e do Edifício Lord, na Av. Carlos Gomes, dos moradores
de Saramandaia, entre outros, que iniciaram ações em parceria com a
defensoria pública para garantir o direito à permanência nas ocupações
onde residem.
O desejo aqui manifestado é que esse instrumento, o TAC, tão im-
portante na garantia do direito à cidade pelos movimentos sociais, seja
potencializado e efetivado a partir do cumprimento da sua cláusula que

1489
penaliza pecuniariamente os infratores da lei. Para o caso do desvirtua-
mento da perspectiva do direito à cidade no TAC relacionado à ocupação
da Praça de Ondina pelo Camarote Salvador, a intensificação da mobili-
zação da sociedade na cobrança do seu cumprimento podem contribuir
para a ruptura no caminho de descrédito que esse instrumento parece
trilhar nos dias atuais.

REFERÊNCIAS BOBLIOGRáFICAS

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sitária, 2007.
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mórias indesejáveis: Opressão e resistência no Centro Histórico de Salvador. Dis-
ponível em <ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/download/7022/4998>
Acesso em 15/02/2011.
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RIOS, Antônio Virgílio Veiga e IRIGARAY, Carlos Teodoro Hugueney. O direito e
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SETEPLA TECNOMETAL ENGENHARIA, consultoria – projeto- gerenciamento –
contratada pela Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia, 2002

NOTAS

1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBA,


Comissão Espacial de Desenvolvimento Urbano da Assembleia Legislativa da Bahia, Urbanista, thaisreboucas@
gmail.com.
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da
UFBA, gloriaceciliaf@gmail.com.
3 Lei 10.257 de 10 de julho de 2001.
4 Antes de propor as ações perante o Judiciário, o MPF adota medidas administrativas, como o inquérito civil
público ou o procedimento administrativo cível, usados para coletar provas (informação disponível na página
virtual do Ministério Público Federal <http://www.pgr.mpf.gov.br/conheca-o-mpf/sobre-a-instituicao/atuacao-
-na-area-civel/?searchterm=TAC>, em 10 de agosto de 2012).
5 Os TACs analisados neste artigo tiveram o MP como propositores/compromitentes dos ajustamentos de
conduta firmados e, por isso, será dado destaque à atuação desse órgão na sua celebração.
6 Interesses difusos: que não são específicos de uma pessoa ou grupo de indivíduos, mas de toda a sociedade,
como o direito de todos respirarem ar puro.
7 Interesses coletivos: de um grupo, categoria ou classe ligados entre si ou com a parte contrária por uma
relação jurídica.
8 Interesses individuais homogêneos: que têm um fato gerador comum, atingem as pessoas individualmente
e da mesma forma, mas não podem ser considerados individuais, como os direitos do consumidor.
9 Informação retirada da página virtual do Ministério Público Federal <http://www.pgr.mpf.gov.br/conheca-
-o-mpf/sobre-a-instituicao/atuacao-na-area-civel/?searchterm=TAC>, em 10 de agosto de 2012

1491
10 Informação retirada da página virtual do Ministério Público Federal <http://www.pgr.mpf.gov.br/conheca-
-o-mpf/sobre-a-instituicao/atuacao-na-area-civel/?searchterm=TAC>, em 10 de agosto de 2012.
11 “Documento da CONDER, já em janeiro de 1992, explicita o caminho da realização do projeto em direção a
uma solução pelo mercado, que resolveria, sem comoção social, o problema da vizinhança indesejável. O uso
habitacional para qualquer faixa de renda estava praticamente excluído do projeto” (FERNANDES, 2006, p. 15).
12 Os domicílios existentes no imóvel eram chefiados por 07 alfaiates, 01 auxiliar de alfaiate, 01 comerciante,
01 doméstica, 02 vendedoras, 01 ambulante, 01 cozinheiro e 01 garçom (FERNANDES, 2006).
13 O deputado em questão era Zilton Rocha (PT).
14 “Por recuperação sustentável entende-se a execução de obras de conservação e restauro e de medidas
econômicas, institucionais e educativas, para ampliar o retorno econômico e social dos investimentos do
programa, aplicando-os em sua conservação permanente” (SETEPLA/TECNOMETAL, maio de 2002).
15 Decreto n. 8218/02.
16 Embora as unidades sejam subsidiadas, será cobrada uma taxa proporcional ao rendimento de cada família
pelo prazo de dez anos.
17 A Caixa Econômica Federal foi o agente financeiro responsável pela operacionalização dos financiamentos.
18 Aqui cabe um parênteses acerca do empreendimento Camarote Salvador: é o camarote de acesso mais
caro no carnaval, com os preços dos ingressos variando entre R$ 900 e R$ 2.900 nos seis dias da festa. Se
fizermos a conta considerando a média dos valores dos ingressos multiplicados pelo número de “associados”,
temos uma arrecadação mínima de ingressos de R$ 6 milhões, isso sem contar os valores dos patrocínio que
o camarote recebeu.
19 De acordo com informações do Sistema Cartográfico e Cadastral do Município do Salvador (SICAD), a Praça
de Ondina, denominada oficialmente de Praça Luiz Sande, é a única que integra a relação de logradouros
públicos dessa localidade (ver Mapa Digital de Salvador, disponível em <http://www.mapadigital.salvador.
ba.gov.br/src/php/app.php>. Acesso, jul, 2013).

1492
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Ativismo digital: para


além da participação em
espaços institucionalizados

Sandra Marília Maia Nunes1

INTRODUÇÃO

No processo de redemocratização do País, a participação cidadã, foi


definida na Constituição Federal , entre outros, no seu artigo 1°: “todo
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos
ou diretamente nos termos desta Constituição” (Art. 1º, Parágrafo Único);
no artigo 29, incisos x e xI: “cooperação das associações representati-
vas no planejamento municipal” e “iniciativa popular de projetos de lei
de interesse específico do município, da cidade ou de bairros, através
da manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado”2. Em
2001, o Estatuto da Cidade(Lei 10.257/01)3 traria alguns instrumentos de
gestão democrática: (i)órgãos colegiados de política urbana, nos níveis
nacional, estadual e municipal; (ii) debates, audiências e consultas pú-
blicas; (iii) conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis
nacional, estadual e municipal;(iv) iniciativa popular de projeto de lei
e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. .Esta
última lei, tornou obrigatória a gestão orçamentária participativa, para
aprovação nas câmaras municipais. Desde a promulgação dessas leis, o
país e os municípios têm exercitado essas determinações democráticas,
com maior ou menos esforço, via orçamentos participativos e conselhos
gestores de políticas públicas.
Vale salientar, no entanto, que vinte e cinco anos depois da constitui-
ção, a democracia busca e pode se fortalecer com novos modos mobili-

1493
zação e manifestação, na busca da transparência sobre os destinos das
cidades e, consequentemente, dos cidadãos. Esses novos modos, aqui
referem-se, principalmente, às redes sociais existentes na internet.
Esse é o foco do texto, que procura trazer, a partir de uma experiência
na cidade do Recife, o relato de um processo democrático, na aprovação
de um empreendimento de impacto na cidade, mostrando as tensões e
conflitos e os atores que o protagonizaram: o executivo (Prefeitura do Re-
cife - PR); o judiciário (Tribunal de Justiça de Pernambuco – TJPE; a Justiça
Federal, em Pernambuco – TRF 5), o Ministério Público Estadual e Federal;
o Conselho de Desenvolvimento Urbano – CDU (órgão, vinculado à Prefei-
tura, de representação paritária entre o poder público e a sociedade civil),
e a sociedade civil, abrigada nas redes sociais da internet, notadamente,
o movimento Direitos Urbanos – DU. O relato baseia-se em documentos
obtidos na internet - nas páginas dos órgãos oficiais e nas redes sociais
nela abrigadas.

1. DEMOCRACIA, SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇOS PÚBLICOS

No século xIx, sociedade civil foi uma expressão adotada por Hegel,
em 1821 , na sua obra Filosofia do Direito, para a sociedade natural ou
sociedade pré-política, ao contrário dos filósofos precedentes a ele, que
consideravam a sociedade civil como a sociedade política. Esta sociedade
deveria ser regulada, dominada e anulada na ordem superior do Estado.
Em Engels esta situação se inverte: a sociedade civil, onde se processam
as relações econômicas, é o elemento decisivo; o Estado, a ordem política,
é o elemento subordinado. A sociedade civil se confunde, na perspectiva
de Engels e Marx, com a estrutura ou a base material, cuja antítese é a
superestrutura (o político-jurídico e ideológico) ou a antítese Socieda-
de Civil/Estado; em Marx a sociedade civil congrega a luta de classes.
Gramsci entende a sociedade civil de outra forma, estabelecendo uma
terceira antítese, na medida em que coloca dois planos superestruturais:
sociedade civil e sociedade política, sendo que o primeiro refere-se aos

1494
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

organismos privados e o segundo, ao Estado. A sociedade exerce um


papel fundamental nas duas dicotomias, na primeira a luta “se volta para
a superação das condições materiais que operam na estrutura, ao passo
que a outra se volta contra a falsa superação dessas condições através da
pura dominação sem consenso” 4. Em Gramsci a luta de classes ocorre,
em outros setores; no cultural, além do plano econômico e “expressa o
poder de uma determinada classe de dirigir moral e intelectualmente o
conjunto da sociedade”5
Em outra vertente, mas ainda na tentativa de entender a sociedade
civil no início deste século, Nogueira apresenta três tipos ou conceitos de
sociedade civil. A primeira seria a sociedade civil (gramsciana) democrático-
-radical onde a ênfase é política; há uma estratégia de poder e hegemonia
política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade, “espaço
onde são construídos projetos globais de sociedade [...] disputam-se o
poder e a dominação [...] espaço de luta, governo e dominação, no qual
se formam vontades coletivas” 6. Neste conceito o Estado é máximo, de-
mocraticamente radical e participativo, balizador dos diversos interesses
sociais. O segundo tipo seria a sociedade civil liberal, a qual é comandada
pelo mercado, onde a competição é realizada em termos exclusivamente
privados, sem maiores interferências públicas ou estatais; o Estado que lhe
corresponde é o Estado mínimo. A sociedade civil aparece como um espaço
fora do Estado e contraposto a ele, “não há ações visando à conquista do
Estado, mas ações contra o Estado [...] mais liberal e representativo do
que democrático e participativo”7.
O mesmo autor expõe outra ideia, a da sociedade civil social, situada
entre as duas anteriores. A política está presente e se destaca, mas esta
sociedade não integra o sistema político e partidário; os novos movimentos
sociais (ligados às questões étnicas, culturais e de gênero) que se situam
entre o Estado e o mercado são características dessa sociedade. Aparece
como um espaço situado além da política, do mercado e do Estado. As duas
últimas, sociedade civil liberal e sociedade civil social, estão no centro do
debate sobre o papel do Estado e são decorrentes da expansão da cultura

1495
democrática na sociedade, fruto da crise da democracia representativa,
com o surgimento de novos movimentos sociais e de novos sujeitos sociais.
Gohn apresenta três formas de compreensão de sociedade civil. A
primeira corresponde à forma pós-medieval, pós-hobbesiana, tratada
por Locke, Rousseau, Hegel, até Tocqueville, em que a sociedade civil
abrangia uma série de instituições fora do Estado, incluindo o mercado
capitalista, associações e organizações públicas e privadas. A segunda
corresponde às teorias de Marx e seus seguidores, na qual as atenções
se concentram no Estado, refluindo a importância da sociedade civil e da
participação democrática, em favor de discussões sobre lutas de classe e
pobreza, nas ciências sociais. A terceira forma corresponde ao retorno às
teorias democráticas, em função de mudanças que estavam ocorrendo no
mundo, na busca pela democratização; nesta, a sociedade civil passa a
ser compreendida não “apenas como espaço para ações individuais, mas
ela deve construir um senso coletivo de obrigações sociais, de responsa-
bilidade social que declinaram na segunda etapa”8.
Essa terceira forma de sociedade civil se constrói no contexto da ex-
pansão da cultura democrática ocorrida na América do Sul e leste europeu,
que se fez junto com o crescimento e o fortalecimento das respectivas
sociedades civis nacionais. Essa época, final dos anos 60 e a década de
70, corresponde a um período em que ocorrem profundas transformações
na sociedade, do ponto de vista econômico, político e cultural. Do ponto
de vista econômico coloca-se esse período como a crise do fordismo e
passagem para o chamado modelo da acumulação flexível, quando se
apresentara a crise do Estado, chamado de Estado do bem-estar social
ou Estado-providência.
No contexto da crise do Estado do bem estar e da oposição ao sistema
político existente no leste europeu, na América Latina e, em particular no
Brasil, alguns autores, como Avritzer9 apresentam este processo como
o nascimento da sociedade civil, já que nos períodos anteriores esta era
caracterizada pela falta de autonomia em relação ao Estado. A concepção
de sociedade civil é a que a reconhece em sua heterogeneidade, que de-

1496
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

corre da existência de diferentes setores organizados da sociedade, tendo


o “papel de assegurar o caráter público do Estado por meio da participação
e do controle social [...] é nela que se daria o debate entre interesses di-
vergentes e a construção de consensos provisórios que possam configurar
o interesse público”10.
No Brasil e na América Latina, o conceito de sociedade civil teve vários
significados. Na década de 70, até meados de 80, era sinônimo de partici-
pação e organização contra o regime militar e pela luta na reivindicação
de bens, serviços e direitos sociopolíticos, com uma característica de
autonomia em relação ao Estado. Saindo os militares do poder, instalado
o processo constituinte e promulgada a nova Constituição, que trouxe a
garantia dos direitos civis e políticos, se apresenta uma nova caracterís-
tica para a sociedade civil, a cidadania que vem substituir a autonomia.
Essa ideia vem abranger a noção de direitos sociais e também de certa
forma, permitir a formação de espaços públicos11. Os espaços públicos,
segundo Gohn12,

[...] situam-se para usufruto da sociedade civil – nos fóruns de


entidades, nas redes de movimentos sociais, nas plataformas de
propostas e projetos de setores organizados da sociedade civil
para fins de debates, demandas e proposições coletivas desta
mesma sociedade civil.

Os espaços públicos surgem, então, na expectativa de um novo rela-


cionamento com o Estado e visam à promoção da discussão de temas de
interesse da sociedade e a ampliação da gestão pública. São espaços que,
por sua heterogeneidade, por refletirem a pluralidade social e política, são
os locais adequados para a explicitação dos conflitos, onde podem ser
reconhecidos diferentes interesses e opiniões e onde se possa discuti-los
em igualdade de condições e de poder. São lugares de debates, de expo-
sição e confronto de ideias e projetos diferentes, que possibilitam revisão
de opiniões e posições13.
Alguns desses espaços são os conselhos gestores de políticas públicas,
definidos constitucionalmente, que, em geral, apresentam a heterogeneida-

1497
de da sociedade civil, por exigência legal. Neles, apresenta-se um desafio:
“construir mecanismos capazes de minorar os efeitos das desigualdades
sociais no interior dos processos deliberativos, de forma a permitir que a
construção dos acordos não esteja sujeita à influência de fatores endóge-
nos como o poder, a riqueza e as desigualdades pré-existentes”14. Esses
conselhos apresentam uma característica assumida pelos movimentos
sociais, na busca da participação cidadã – a institucionalização, entendida
como a vinculação desse processo à estrutura governamental.
Esses espaços democráticos, conquistados no processo constituinte,
são responsáveis pela ampliação da esfera pública, ampliação que, se-
gundo Gohn15 , tem três origens: a conquista de espaços na constituição,
pela pressão da sociedade civil organizada; as determinações constitucio-
nais sobre a participação institucionalizada e, desenvolvimento de novas
redes de atuação na questão social, pelo terceiro setor, em parceria com
as políticas públicas. A autora destaca que esses espaços são locais para
os cidadãos exercerem a fiscalização sobre o governo eleito e neles, a
participação cidadã tem ocorrido num contexto de tensões e conflitos, de
explicitação de interesses, onde há, por um lado, a busca da democratiza-
ção, maior acesso às informações e igualdade de participação, por outro,
há a tentativa de destacar apenas as obrigações, os deveres dos cidadãos.

2. A AMPLIAÇÃO DA DEMOCRACIA

Os Conselhos Gestores de Políticas Públicas são instrumentos de


representação e participação da população, decorrentes de exigências
constitucionais para a descentralização das políticas públicas, nos vários
níveis de governo. Na década de 90, assistiu-se a proliferação destes
conselhos em todo o País, estabelecidos com um caráter deliberativo
e paritário, em função da exigência da legislação federal de vincular o
repasse de recursos à existência dos conselhos. Estes são considerados
como a principal inovação nas políticas públicas no contexto da redemo-
cratização brasileira; são “canais mais expressivos da emergência de um

1498
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

novo regime de ação pública no plano local, caracterizados pela abertura


de novos padrões de interação entre governo e sociedade em torno da
definição de políticas sociais”.16
Gohn17 afirma que os conselhos gestores são “espaços de interlocução
entre a sociedade política e a sociedade civil organizada”. Com a pers-
pectiva da democratização da gestão, além dos conselhos criados como
decorrência de exigência constitucional, outros foram instituídos por ini-
ciativa dos governos municipais, com caráter deliberativo ou consultivo
e paritário. A mesma autora18, a respeito do debate sobre os conselhos,
ressalta algumas questões limitadoras. Dentre estas limitações, aponta
a existência de duas posições a respeito do papel central dos conselhos;
uma os coloca no caráter consultivo, preocupando-se com sua relação
com o legislativo e, outra, propõe que atuem como órgãos fiscalizadores
do poder público e, também, na discussão sobre o caráter das políticas
públicas. De acordo com a mesma autora, outras questões limitadoras
seriam: a) a falta de mecanismos ou estruturas jurídicas que deem amparo
legal e garantam o cumprimento de suas decisões, mesmo tendo natureza
deliberativa; b) a representatividade qualitativa dos diferentes segmentos,
fruto da diferenciação de capacitação dos conselheiros e na possibilidade
de acesso às informações que influencia na questão da paridade. Neste
caso, a autora observa que os representantes do poder público, além de
terem acesso privilegiado às informações, são remunerados para exer-
cerem as atividades relativas aos conselhos, ou seja, têm facilidades que
muitos dos representantes da sociedade civil não têm. Assim, não se
pode considerar a paridade apenas do ponto de vista numérico, se não
há a igualdade na capacitação e no acesso às informações. Outros limi-
tes decorrem da própria heterogeneidade da sociedade civil, presente e
necessária aos conselhos.
Não obstante esses limites, há a expectativa, mediante este e outros
instrumentos de participação, de se alcançar um aprofundamento da de-
mocracia na direção de um ideal de democracia direta. Com efeito, com
os conselhos, objetivava-se a democratização na formulação e controle

1499
das políticas públicas, através do diálogo, da negociação de conflitos,
do compartilhamento do poder e, ainda, uma maior eficácia e eficiência
administrativa. Mas, mesmo com os referidos limites, “os conselhos não
podem ser vistos como substitutos da democracia representativa nem
como braços auxiliares do executivo, nem como substitutos da participa-
ção popular em geral.” 19
Para além dos conselhos, outros canais de ampliação da democracia
tem surgido, como fóruns e conferências de políticas públicas. Há, no
entanto, um novo modelo de participação, que busca a transparência na
ação pública: são as redes sociais na internet. Segundo Lemos20

as mídias sociais difundido-se cada vez mais, multiplicam-se as


questões substantivas e a possibilidade de responsabilização dos
agentes públicos de maneira contínua. Isso obviamente abre um
descompasso entre os mecanismos formais de legitimação com
a possibilidade permanente de debate substantivo das políticas
públicas.

Esse autor afirma que “para além das formas de participação amplia-
das, acredito que a tecnologia abre o caminho para o compartilhamento
de responsabilidades pela tomada de decisões políticas”.
Castells21 coloca que os usos de CMC(comunicação mediada por
computador) já alcançam toda esfera de atividades sociais: telebanco;
compras on-line; o ensino universitário à distância; as comunicações
pessoais por correio eletrônico; o sexo e a política. No caso da política, o
autor observa que é crescente o uso do correio eletrônico para difundir
a propaganda política e a criação de sites para divulgar promessas. Em
relação ao tema deste trabalho, a democracia, o autor ainda expõe que
esta tem sido influenciada por experimentos de participação eletrônica
dos cidadãos, citando os exemplos da Cidade Digital de Amsterdã, criada
na década de 1990; de Seattle e outras cidades dos Estados Unidos, que
construíram “redes comunitárias com a finalidade de fornecer informações,
incentivar o debate entre os cidadãos e reafirmar o controle democrático
sobre questões ambientais e política local.”
Gohn22 , tratando dos movimentos sociais na atualidade, no Brasil

1500
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

e na América Latina, com destaque para os movimentos em educação,


afirma que, “os principais movimentos sociais atuam por meio de redes
sociais, locais, regionais, nacionais e internacionais ou transnacionais, e
utilizam-se muito dos novos meios de comunicação e informação, como
a internet.”
ROSSI23 (s/ data) cita o exemplo da Islândia, que submeteu a nova
constituição à consulta popular pela internet. A autora observa que

as tecnologias digitais de comunicação mostraram capaci-


dade de mobilizar, rapidamente e com baixo custo, pessoas de
diferentes localidades. Em muitos casos, nota-se a potencialidade
da internet de articular pessoas que, muitas vezes, não se carac-
terizavam como militantes de uma causa nem estavam dispostas
a participar de reuniões presenciais periódicas.

CASTELLS24 afirma

A coexistência pacífica de vários interesses e culturas na rede


tomou a forma da World Wide Web – WWW (Rede de Alcance
Mundial), uma rede flexível formada por redes dentro da internet
onde instituições, empresa, associações e pessoas físicas criam
os próprios sítios (sites) (…) .Com base nesses agrupamentos,
pessoas físicas e organizações eram capazes de interagir de
forma expressiva no que se tornou, literalmente, uma Teia de
Alcance Mundial para comunicação individualizada interativa.

Citando William Mitchell, o mesmo autor coloca que estão emergindo,


on-line, novas formas de sociabilidade e novas formas de vida urbana,
adaptadas ao novo meio ambiente tecnológico25. Rossi (s/data) afirma
que o espaço público está sendo reconstituído fora das instituições, por
movimentos espontâneos, que até desestabilizam governos, passando por
cima dos partidos e das regras do jogo. A autora assevera que

As tecnologias digitais de comunicação mostraram capaci-


dade de mobilizar, rapidamente e com baixo custo, pessoas de
diferentes localidades. Em muitos casos, nota-se a potencialidade
da internet de articular pessoas que, muitas vezes, não se carac-
terizavam como militantes de uma causa nem estavam dispostas
a participar de reuniões presenciais periódicas.

1501
3. A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE
NO PROJETO NOVO RECIFE

A mais recente e polêmica tentativa de ampliação da democracia, em


Recife, foi durante a aprovação, pela Prefeitura, de um empreendimento
de impacto, em um dos bairros do centro da cidade, por um consórcio das
maiores construturas de pernambuco.
A área em discussão compreende um terreno de 10,1 hectares entre
os dois conjuntos de galpões ao longo do Cais José Estelita – do início do
Iate Cube do Cabanga ao viaduto das Cinco Pontas, que passa por cima
do forte de mesmo nome, no bairro de São José. O terreno abriga antigos
galpões, estações ferroviárias e a segunda linha de trem mais antiga do
Brasil. Segundo os empreendedores 6,5 hectares serão destinados à cons-
trução de 12 edifícios – oito residenciais, dois empresariais e dois hotéis e
30% desse espaço será verde. Os outros 3,6 hectares serão públicos, com
a implantação de vias, ciclovias, jardins, quiosques e polo marítimo, entre
outros serviços. A área foi arrematada pelo consórcio responsável pelo
projeto em um leilão, em 2008. A antiga proprietária era a extinta Rede
Ferroviária Federal S/A.

3.1 A Participação Institucionalizada – O Conselho


de Desenvolvimento Urbano do Recife – CDU

O CDU – Conselho de Desenvolvimento Urbano, definido pela Lei Or-


gânica do Município do Recife, foi instituído pela Lei Municipal 15.735,
de 21/12/92 e regulamentado pela lei 15.945, de 26/08/94, como órgão
institucional de participação paritária entre o Poder Municipal e a Socie-
dade Civil, tendo por objetivo deliberar, no âmbito do poder Executivo,
nos processos de elaboração, atualização, acompanhamento, avaliação e
controle do Plano Diretor de Desenvolvimento da Cidade do Recife (PDCR)
e da Lei de Uso e Ocupação do Solo (LUOS). Outras atribuições lhe foram
conferidas, pelo próprio plano diretor e lei de uso e ocupação do solo;
entre elas, a análise dos Empreendimentos de Impacto -EI

1502
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Os EI foram definidos pela Lei 17511/08, que instituiu o Plano Diretor


do Recife, como construções, públicas ou privadas, residenciais ou não
residenciais, que podem causar impacto no ambiente natural ou cons-
truído, ou sobrecarga na capacidade de atendimento da infraestrutura
básica, na mobilidade urbana ou ter repercussão ambiental significativa.
São: as edificações não-habitacionais situadas em terrenos com área
igual ou superior a 2,0 ha (dois hectares) ou com área construída igual ou
superior a 15.000 m² (quinze mil metros quadrados); as edificações habi-
tacionais situadas em terrenos com área igual ou superior a 3,0 ha (três
hectares) ou cuja área construída ultrapasse 20.000 m2 (vinte mil metros
quadrados); as escolas de qualquer modalidade, colégios, universidades e
templos religiosos em terrenos acima de 1.000m² (mil metros quadrados)
e, ainda, aqueles que por sua natureza ou condições requeiram análise
ou tratamento específico por parte do Poder Municipal, de acordo com
a Lei de Uso e Ocupação do Solo – LUOS (LEI 16176/96), que estabelece
alguns tipos de uso que configuram um EI.
A legislação em vigor estabelece que os EI devam ser analisados pelo
CDU, embora sejam antes analisados por outros órgãos, como a Comissão
de Controle Urbanístico – CCU. A CCU instituída pela Lei de Uso e Ocupação
do Solo - LUOS de 1996, é o órgão consultivo, que tem por objetivo opinar
sobre as questões relativas à aplicação da legislação urbanística. A CCU
tem, entre outras atribuições, dar pareceres sobre os EI, devendo, porém,
submetê-lo ao CDU. Ao chegar ao CDU, o processo é encaminhado para
um relator, escolhido pela presidência do Conselho, que deve apresentar
um relatório sobre o andamento de todo o processo em questão, baseado
em um roteiro definido por resolução do conselho, dando um parecer
favorável ou contrário. A votação é feita sobre o parecer do relator.
O projeto Novo Recife foi apresentado pela primeira vez ao CDU, ju-
lho de 2011, ainda sem discussão. Em 30//11/2012, o empreendimento
entrou na pauta do Conselho. A reunião, divulgada na mídia e nas redes
sociais, diferente do usual, contou com um expressivo contingente de
interessados, da sociedade em geral e membros do legislativo federal e
do Ministério Público de Pernambuco.

1503
Como de praxe, inicialmente, haveria uma apresentação do projeto,
feito pelo requerente, mas, no início da reunião, o Ministério Público
(que não tem assento no conselho) pediu a palavra para informar que
tramitava nas promotorias, estadual e federal, um inquérito civil que trata
exatamente desse processo.

Ontem à tarde, decidimos participar desta reunião e elaboramos


um documento que gostaríamos que fosse lido antes mesmo da
análise dos processos. Neste documento, pontuamos algumas ir-
regularidades do Projeto Novo Recife. São irregularidades formais
na condução do processo, que para nós se torna impossível a sua
aprovação pelo CDU (Fala do MPPE. Ata Reunião Extraordinária,
30/11/2012).

A Universidade, representada pelo Programa de Pós-graduação em


Desenvolvimento Urbano – MDU, também se posicionou na mesma dire-
ção, apresentando um parecer jurídico em que apontava irregularidades
na condução do processo, centrando-se na falta de paridade do conse-
lho, em função da vacância de algumas representações. As inquietações
e indagações foram acompanhadas por outros membros do conselho,
representantes da sociedade civil, como IAB-PE e Conselho de Econo-
mia- CORECON. Após a apresentação do projeto pelo empreendedor e a
leitura do parecer (favorável) do relator, houve a discussão e três entidades
representadas no Conselho pediram vista ao processo: IAB-PE – Institutos
dos Arquitetos, Secretaria de Assuntos Jurídicos da Prefeitura, MDU/UFPE
e Conselho de Economia - CORECON/PE. De acordo com Resolução do
CDU sobre pedido de vista, o prazo é de 20 dias para apresentação do
parecer. Ainda de acordo com a mesma resolução, anteciparam os votos
favoráveis ao parecer sobre o projeto: SINDUSCON, CUT/PE, ABIH, FIJ -
Federação Ibura-Jordão, CDL/Recife, Câmara Municipal do Recife, URB/
Recife. A próxima reunião foi marcada para o dia 21/12/12.
No dia programado e com a presença de 24 dos 28 conselheiros, após
a leitura do parecer da SAJ, que havia pedido vista ao processo, a reunião
foi suspensa por uma liminar da justiça,. Na ocasião, foi manifestado por
alguns conselheiros o apoio ao conselheiro da CUT (que havia antecipa-

1504
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do o voto favorável) e o descontentamento pela decisão da direção da


entidade de o destituir da representação no conselho. Nova reunião foi
programada para o dia 28/12/12.
Na 203ª reunião do conselho, em 28/12/12, com a presença de 20
conselheiros, o processo retornou à pauta. Foi lido o parecer do conse-
lheiro do IAB/PE que havia pedido vista (na verdade, o mesmo parecer
apresentado pelo MDU, já que o IAB/PE havia sido signatário do mesmo
documento). Os outros dois conselheiros que haviam pedido vista - UFPE-
-MDU e CORECON não compareceram à reunião. O processo foi aprovado
por 21 votos, computados os votos antecipados dos votantes que não
estavam presentes na reunião. Foi pedido o registro em ata, pelo repre-
sentante da Agência CONDEPE/FIDEM, que consta no processo Carta de
Anuência Prévia da Agência, sobre o parcelamento do solo. Esta é uma
das ilegalidades apontadas por alguns conselheiros (IAB/PE, UFPE- MDU)
nos processos que tramitam na justiça.
Embora as colocações e pareceres de duas entidades representadas no
conselho (UFPE/MDU E IAB/PE) sobre a questão da paridade, o conselho
prosseguiu em suas deliberações e aprovou o empreendimento.

3.2 A luta pela ampliação da democracia:


O Ministério Público – MPPE, as redes sociais
na web e a resposta do Judiciário

O Projeto Novo Recife foi objeto de intensos e acalorados debates, em


vários fóruns, saindo do âmbito do poder público, em todos os níveis, pas-
sando pelo CDU, para a discussão pelas entidades nele representadas, até a
população de modo geral. A imprensa, com os jornais e blogs de jornalistas,
as redes sociais na internet e o Ministério Público de Pernambuco - MPPE
desempenharam um importante papel, trazendo suas opiniões contra ou
a favor e alimentando com informações a sociedade, de maneira geral.
Destaca-se, aqui, pelo MPPE, a ação de uma promotora, que se utilizava
das redes socais na internet, para divulgar suas ações e opiniões, no exer-

1505
cício da função, e o movimento Direitos Urbanos – DU, que se utilizando
da internet e das redes sociais, criou um site e um grupo no facebook. As
informações que subsidiam este texto, foram, então, obtidas na web, no
referido site, e no mural do grupo e da promotora, no Facebook. A autora
havia aderido ao grupo, anteriormente, o que veio a facilitar a obtenção
de informações; quanto ao mural da promotora, ele é visível para todos,
mas só permite postagens de amigos por ela adicionados.
A promotora do MPPE publicou:

Foi precisamente com o intuito de conferir transparência à atua-


ção do Ministério Público em matéria que a todos interessa (ou ao
menos deveria interessar), que houve disponibilização nas redes
de algumas atividades que poderiam ser simplesmente encontra-
das no Diário Oficial. A finalidade maior era, sem dúvidas, colher
informações, prestar contas e, por que não, alimentar, estimular
e disseminar o trabalho do Ministério Público?
Em algumas oportunidades providências foram adotadas an-
tecipadamente em razão de denúncias veiculadas nas redes e,
somente algum tempo depois, chegaram por escrito à Promo-
toria. Outras vezes, nunca chegaram…(http://direitosurbanos.
wordpress.com/about/)

O grupo Direitos Urbanos, como colocado no seu blog

surgiu da articulação de pessoas interessadas em política e


preocupadas com os problemas da cidade do Recife. A partir de
um grupo de pessoas que se conheciam offline, o grupo foi se
expandindo através das redes sociais e começou a transformar
suas preocupações em ação pelo menos desde a reivindicação
do tombamento do Edifício Caiçara (http://direitosurbanos.
wordpress.com/about/)

Diante das inquietações explicitadas pela sociedade e por profissionais


de diversas áreas, mas, principalmente da área de arquitetura e urbanismo,
o grupo começou a mobilizar a sociedade, pelas redes sociais na internet,
para discutir o Projeto Novo Recife, organizando debates e eventos de ocu-
pação da área, como forma de sensibilizar a opinião pública e o governo.
Foi, então, criado o #ocupeEstelita - Ato da sociedade civil, orga-

1506
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nizado de forma descentralizada através da internet, com o objetivo de


protestar contra o projeto intitulado “Novo Recife”, que prevê a constru-
ção de torres empresariais e residenciais de luxo na área.26. O primeiro
#ocupeEstelita aconteceu em 15 de abril, com a presença da mais de 1000
pessoas. Nesse dia, as calçadas do cais e ao longo dos armazéns foram
ocupadas pela população, numa forma de protesto pacífico. O sucesso
levou a realização de outras edições do movimento, com a realização de
debates, com a presença de professores da universidade, ligados à área
de urbanismo, sobre a política urbana empreendida pelo poder público
municipal. Houve outras edições do evento em 22 de abril e 11 de maio.

A defesa do Cais José Estelita tornou-se um símbolo para uma


pauta que se amplia, do uso dos lotes urbanos de forma ambien-
talmente responsável e que seja socialmente justo, à noção do
direito às cidades sustentáveis. A ocupação faz parte do conjunto
de ações que vêm sendo tomadas por grupos da sociedade civil
diante da urgência dessa responsabilização do poder público
sobre essas pautas.27

O movimento #ocupeEstelita espelha-se no movimento Occupy, que


é um movimento de protesto contra a desigualdade econômica e social,
iniciado no norte da África, estendendo-se pela Europa, na Espanha,
Grécia e Londres e ocupou Wall Street, nos Estados Unidos28 . Harvey29,
afirma que esse movimentos mostram “como o poder coletivo de corpos
no espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição,
quando o acesso a todos os outros meios está bloqueado”.
Para o evento do mês de maio, aproveitou-se a oportunidade do evento
mundial 12M, que seria a chamada para eventos globais, com o objetivo
de reunir pessoas que defendem novas formas de viver e conviver em
sociedade. O 4º Ocupe Estelita aconteceu no dia 28 de abril, organizado
pelo DU, utilizando-se das redes sociais, como um evento sociocultural de
ocupação e defesa do Cais José Estelita. Além de organizar o movimento
#ocupeEstelita, o DU solicitou uma audiência pública na Câmara Municipal
do Recife, em março de 2012.

1507
O projeto Novo Recife levantou o interesse sobre os destinos da cidade.
Segundo o DU, vários movimentos organizados participam do debate:
movimentos como o SOS Corpo, o Centro D. Hélder Câmara,o IAB - PE, o
Conselho de Arquitetura e Urbanismo, os Comitês Populares da Copa, a
Associação Caranguejo Uçá da Ilha de Deus e as associações de morado-
res do Coque, além de especialistas, professores universitários e políticos.
Durante uma audiência no legislativo, foi entregue uma petição on-line
com mais de 1,6 mil assinaturas, o que mostra a capacidade de mobiliza-
ção que os movimentos têm, com o uso da internet. A jornalista Mariana
Moreira que entregou a petição, afirmou: “Conseguimos essa mobilização
em uma semana e, se for preciso, nos vamos às ruas. Isso é só o começo”30
Na tentativa de ampliar a participação e influenciar nas decisões,
o DU entregou um carta à Prefeitura, solicitando a transferência, para
um auditório, da reunião extraordinária do CDU, a ser realizada no dia
30/11/2012, já que a sala do Conselho não comporta um número maior
de observadores. O pedido não foi atendido e houve tumulto, do lado
de fora da reunião, com a presença da guarda municipal, para conter
os manifestantes. O DU havia organizado, via Facebook, o movimento
#Ocupe12oAndarDaPrefeituraAs9DaManhaDoDia30! Na véspera, o evento
tinha mais de 600 confirmações.
Em 19/12/2012, dois integrantes do grupo DU entraram com Ação
Popular com pedido de liminar à 7ª Vara da Fazenda Pública do Recife,
pedindo a nulidade de todos os atos praticados, em relação ao processo
e suspensão da reunião do CDU, marcada para o dia 21/12/2012. No dia
da reunião, o grupo obteve decisão favorável, o que significou a suspen-
são da reunião do CDU, já iniciada. Uma nova reunião foi marcada para
o dia 28/12/12.
Em 27/12/2012, o DU entra com uma 2ª Ação Popular propondo a
nulidade dos atos que viessem a ser praticados até que se regularizasse
a composição do CDU e, ainda, a suspensão da nova reunião marcada
para o dia 28/12/2012. O Juízo de Plantão concedeu parecer favorável,
na mesma data. Ao mesmo tempo , os empresários entram com Ação de

1508
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Mandado de Segurança perante ao TJ/PE, em relação à decisão do juízo


da 7ª Vara da Fazenda Pública. O Presidente do TJPE decide pela legalidade
da composição do CDU para julgar o projeto, suspende os efeitos do ato
judicial da 7ª Vara da fazenda Pública da Capital e determina continuidade
da análise dos processos.
Após a aprovação do projeto pelo CDU, em 28/12/2013, o movimento
continuou. Em 27/02/2013, já houvera uma audiência púbica na Assem-
bleia Legislativa de Pernambuco. Na ocasião, os moradores do entorno se
fizeram presentes e geraram alguns momentos de tensão. Os moradores
dos Coelhos, bairro vizinho, levaram faixa de apoio ao projeto. Um morador
se manifestou: “Temo que o projeto seja uma expulsão branca. E este Polo
Jurídico que vão construir também. Ninguém é contra o projeto, mas não
participamos da discussão”, reclama o integrante do Grupo Comunitário
do Coque (Grupão).31
A luta contra o projeto e a busca pela ampliação das discussões teve
a participação de outro ator - o Ministério Público do Estado de Pernam-
buco. Segundo a Constituição de 1988, o Ministério Público é instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais
e individuais indisponíveis (Art. 127). Entre suas funções institucionais,
destaca-se a que se relaciona com o que se apresenta neste texto: “pro-
mover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimô-
nio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos”. Segundo Carvalho e Leitão32 o papel assumido pelo Ministério
Público, a partir de 1988, decorre da alegação de que a sociedade brasileira
seria hipossuficiente, ou, pouco organizada para defender seus direitos
e interesses. Neste sentido, o Ministério Público surge como a instituição
responsável por defender os interesses da sociedade.
Nessa perspectiva de defender os interesses da sociedade e conscien-
te das questões que o projeto Novo Recife levantava na cidade, o MPPE
passou a acompanhar mais de perto o andamento dos processos. Do final
de abril de 2010 até início de dezembro de 2010, o MPPE solicitou infor-

1509
mações à Prefeitura do Recife e realizou duas audiências com os órgãos
da Prefeitura, IPHAN, Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de
Pernambuco e os empreendedores. Já em maio de 2012, realizou mais
duas audiências com os órgãos da Prefeitura. Em 2012, também foram
realizadas mais três audiências, com a presença da Prefeitura, Agência
CONDEPE/FIDEM e empreendedores.
Em 17/12/2012, depois de ter tentado influenciar, sem sucesso, a
reunião, com o argumento que o conselho estava ferindo a lei, já que a
paridade não estava sendo respeitada, o MPPE propôs uma Ação Civil
Pública, solicitando a nulidade dos processos referentes aos projetos ar-
quitetônicos do empreendimento imobiliário Novo Recife, sob a alegação
de o processo ser incompleto, não tendo a análise de órgãos de outros
níveis de governo, como FUNDARPE, Agência CONDEPE/FIDEM, DNIT e
IPHAN.O projeto foi analisado a provado na reunião do Conselho, do dia
28/12/2012. Após a aprovação do processo, o MPPE solicita a suspensão
dos processos administrativos, que é concedida, em 20/02/2013, pelo
TJPE; esta decisão foi revogada em 27/03/2013.
A polêmica não ficou restrita ao âmbito da justiça estadual. Em
06/02/2013, o Ministério Público Federal em Pernambuco propõe uma
Ação Civil Pública, com pedido de liminar, contra empresários, Prefeitura
e IPHAN, e suspensão da decisão do CDU e paralisação da demolição dos
galpões. A Justiça Federal em primeira instância suspende a decisão do
CDU, em 26/02. Na mesma data é realizada uma audiência no TRF 5, com
o Ministério Público Federal, Prefeitura, IPHAN e empreendedores. O TRF
5 suspende a liminar concedida pela primeira instância, em 15/03/2013.
Em 22 de março, o MPF apresenta Agravo Inominado, solicitando recur-
so da decisão, a fim de restaurar a eficácia da liminar objeto do pedido e
suspensão de sua execução. Em 08/05/2013, o pleno do TRF 5, nega o
recurso e mantém a suspensão da liminar. Em 05/08/2013, o Procurador
Regional da República contesta a decisão do pleno do TRF 5 por meio
de Embargo de Declaração nº 12311/2013. Quer dizer, o processo ainda
tramita na justiça.

1510
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A promotora do MPPE, já referida foi dispensada, em 01/03/2013, das


atribuições junto à 12ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania da
Capital (Meio Ambiente e Patrimônio Histórico-cultural) e designada para
a Promotoria da Infância de Jaboatão dos Guararapes. Em 20/03/2012 foi
publicada a remoção do Promotor da 35ª Promotoria de Justiça de Defesa
da Cidadania da Capital (Habitação e Urbanismo), que entrara junto com
a promotora com a Ação Civil Pública, em 17/12/2012.

CONCLUSÃO

Os conselhos são importantes instrumentos de democratização da


gestão das políticas públicas; porém, há outros instrumentos de partici-
pação da sociedade na gestão pública. Com efeito, o desejo e as pressões
pela ampliação da democracia contribuíram para a constituição de outros
espaços de discussão. São as conferências, os fóruns, o orçamento par-
ticipativo, etc., que necessitam articular-se, para evitar que o resultado
seja o inverso do esperado: dividir, ao invés de somar; diminuir ao invés
de ampliar o debate democrático. Além desses espaços, mais ou menos
institucionalizados, agora tem-se os movimentos articulados pelas redes
sociais. O país experimentou a força destes movimentos, nos episódios
recentes, contra a corrupção, pela luta por melhores condições de saúde,
educação, etc.
As redes sociais vêm tentar superar o distanciamento existente entre
a sociedade e a gestão pública, sempre agravada pela falta de publicidade
das ações e decisões, o que dificulta cobranças, resultando numa baixa
legitimidade das ações do setor público.
As questões apontadas no texto levam à reflexão sobre a pertinência
dos modelos de ampliação da democracia, que foi o que coube no momento
do processo de redemocratização brasileira. É necessária uma ação para a
articulação dos diversos modelos, aqueles instituídos constitucionalmente
e outros estabelecidos pelas várias gestões, para que os instrumentos da
democracia participativa não fiquem disputando o poder, para que se possa

1511
ampliar, efetivamente, a democratização da gestão pública. No caso em
questão, mesmo sem ter conseguido(ainda) alcançar os resultados que
pretendia, o povo mostrou que está atento sobre os destinos da cidade,
que sabe se mobilizar, se posicionar e usar os recursos que dispõe. Isto
tudo faz parte do aprendizado de viver e exercer a democracia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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cial com Ronaldo Lemos. http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.
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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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NOTAS

1 Arquiteta. Prefeitura do Recife. Mestre em Sociologia. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em De-


senvolvimento Urbano. UFPE
2 BRASIL, 1988
3 BRASIL, 2001
4 BOBBIO, 1999, p. 51
5 GOHN, 2005, p. 64
6 NOGUEIRA, 2003, p.224
7 Id., 224
8 GOHN, 2005, p. 68
9 AVRITZER,1994
10 DAGNINO, 2006, p. 51
11 GOHN, 2005, p. 70 et seq.
12 GOHN, 2004, p. 71
13 DAGNINO 2006, p. 24
14 TATAGIBA, 2006, 71
15 GOHN, 2004, p. 74
16 SANTOS JÚNIOR, 2001, p.205.
17 GOHN, 2004, p. 66
18 GOHN, 2003, p. 89 et seq.
19 GONH, 2003, p. 89 et seq.

1513
20 http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_canal=41&cod_noticia=18864, Acesso
em 02/05/2013
21 CASTELLS (2012, p. 448
22 GONH, 2011, Pp.336
23
24 CASTELLS, 2012: 443
25 CASTELS, 2012:440.
26 http://direitosurbanos.wordpress.com/about/
27 (http://direitosurbanos.wordpress.com/about/)
28 CARNEIRO, 2012, p.7
29 Harvey, 2012, p. 61
30 http://direitosurbanos.wordpress.com/about/
31 http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/noticias/2013/01/11/vizinhos_do_novo_recife_morado-
res_do_coque_desconhecem_o_projeto_144278.php. Acesso em 20/05/2013
32 CARVALHO; LEITÃO. 2010: 405

1514
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Da luta por um plano diretor


participativo à cidade-sede da Copa:
reflexões sobre a luta coletiva pelo
direito à cidade em Fortaleza

Valéria Pinheiro1

INTRODUÇÃO

O Brasil tem um notável histórico de movimentos sociais urbanos, no


que diz respeito à sua força, número, diversidade, criatividade e impacto.
Desde já pontua-se a referência da luta pelo “direito à cidade” no decorrer
desta análise, conceito ainda em vias de consolidação, mas que acumula
um sentido histórico e atual bem afinado com as lutas urbanas.
A chegada do governo Lula à presidência representou uma mudança
no tocante às políticas urbanas federais, tanto no que diz respeito aos seus
arranjos institucionais como na aprovação de novos marcos regulatórios
e leis federais, no lançamento de projetos de grande impacto e na desti-
nação de vultosos investimentos para as cidades, bem como a criação do
Conselho Nacional das Cidades (CONCIDADES), demanda histórica dos
movimentos sociais urbanos.
Esta reorientação da atuação dos movimentos urbanos a nível federal
tem rebatimentos locais, gerando processos sociais dinâmicos e com-
plexos, que englobam um conjunto de fatores objetivos e subjetivos, que
importam pra sua interpretação.
Com o passar dos anos das gestões Lula e com a eleição da presidenta
Dilma, uma certa lógica governamental parece aprofundar-se. Para alguns
autores, as políticas urbanas estariam sendo entregues aos interesses
imobiliários e financeiros privados. Tais deliberações tendem a passar ao
largo dos espaços institucionais desenhados para gestão democrática das
políticas urbanas (como o CONCIDADES, por exemplo).

1515
Neste meio tempo, em 2007, o Brasil é escolhido como sede da Copa
2014 (sendo, em 2009, também selecionado para receber as Olimpíadas
2016). Houve uma euforia da população e de setores econômicos que
já vinham sendo beneficiados com as políticas urbanas federais. Estes
anúncios dos megaeventos no país parecem prenunciar a consolida-
ção de um modelo de planejamento urbano baseado na realização de
grandes projetos, com a perspectiva de atrair enormes investimentos e
promover significativas mudanças nas cidades (OLIVEIRA, 2012; ROLNIK
& RIBEIRO 2012).
Fortaleza foi uma das 10 cidades brasileiras escolhidas como sedes da
Copa de 2014. Nas cidades-sede, sob o argumento de modernizar suas in-
fraestruturas e promovê-las mundialmente, tem-se presenciado processos
de violações de direitos e de desrespeito a pactos firmados em espaços
institucionais de discussão sobre a cidade. Isso pode ser constatado em
documentos de denúncias elaborados por entidades da sociedade civil,
como é o caso do dossiê Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no
Brasil2 e de recomendações feitas pela Relatoria Especial da Organização
das Nações Unidas (ONU) para o Direito a Moradia3.
Viu-se então surgir local e nacionalmente reações a este modelo de
intervenção urbana. Surgiram novas articulações e movimentos urbanos
tradicionais incorporaram o tema dos megaeventos nas suas agendas.
Estamos diante de um contexto que levanta a hipótese de que as formas
de lutas sociais urbanas em Fortaleza, notadamente a partir do da luta
por um plano diretor participativo, efetivaram mudanças nas estruturas e
redes, nos significados atribuídos e nos equilíbrios e correlações de força.

FORTALEZA E A EMERGÊNCIA DOS SEUS SUJEITOS POLÍTICOS

A cidade de Fortaleza conta atualmente com 2.452.185 habitantes,


sendo a mais densa capital em termos populacionais e a quinta cidade
mais populosa do Brasil. Tem o maior Produto Interno Bruto (PIB) do
Nordeste, é a capital brasileira mais próxima da Europa e a cidade que

1516
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

possui a terceira maior influência regional em população4, sendo supe-


rada apenas por Rio de Janeiro e São Paulo. Em 2010 alcançou a marca
de quarto destino mais procurado por viajantes nacionais. Compõe uma
região metropolitana que, com mais 14 municípios, concentra perto de
40% da população do Estado.
Diante de dados tão superlativos, deduz-se a importância de Fortaleza
no cenário nacional. Tem uma concentração cada vez maior de investi-
mentos públicos e privados, mas ao mesmo tempo, a cidade sempre con-
viveu com uma conjuntura de desigualdades socioespaciais de dimensões
assustadoras5.
Para tanto, faz-se necessário iniciar com um olhar pra a história do
crescimento da cidade e para a constituição de parte da sua população
enquanto sujeitos políticos.
Diversos estudiosos dos movimentos sociais urbanos indicam o iní-
cio dos anos 60 como o despontar das experiências de lutas nos bairros
populares em Fortaleza. É neste âmbito – mais do que nas fábricas – que
os problemas urbanos ficavam em evidência, pois o movimento comuni-
tário era a forma de organização alternativa às formas históricas de luta
do operariado.
A década de 70 foi bastante significativa no que diz respeito ao avanço
das lutas comunitárias em Fortaleza. De episódios dispersos, de conversas
esporádicas nos locais de moradia, passa-se a ganhar as ruas, as manche-
tes dos jornais, pauta nos debates dos partidos políticos. De reivindicações
específicas e localizadas, percebe-se a construção de um discurso que já
considera a dimensão dos direitos.
Nos anos 80, a conjuntura nacional já favorecia a reorganização das
forças populares, com o movimento pela anistia, candidaturas populares
surgindo e replicando as reivindicações locais, uma certa abertura para
reorganização das categorias profissionais e uma maior clareza quanto aos
direitos pouco assegurados e não efetivados. Nessa década acompanha-se
a escala ascendente de organização comunitária, mas também fica mar-
cada pelas políticas preponderantemente clientelistas e assistencialistas
empreendidas pelas gestões municipais no trato da questão urbana.

1517
Nacionalmente, o momento pós-abertura é de construção de uma
nova Constituição Federal. Até então, os interlocutores dos processos de
planejamento e regulação do solo eram os setores empresariais que têm
o crescimento urbano como negócio principal (loteadores, construtores,
incorporadores, consultoria), a tecnoburocracia do setor público e agentes
políticos (vereadores e gestores municipais).
Então é neste período que convencionou-se considerar o (re)surgimen-
to6 do Movimento de Reforma Urbana (como um conjunto enunciado de
conceitos e propostas, vinculados a uma articulação de sujeitos políticos
organizados e unificados), cuja articulação adquiriu visibilidade quando
da proposição da emenda popular da reforma urbana, que obteve 200 mil
assinaturas e foi apresentada à Assembléia Nacional Constituinte.
O Movimento de Reforma Urbana torna-se Fórum Nacional de Reforma
Urbana (FNRU) em 1987, sendo composto por diversos segmentos inte-
ressados no debate e proposição sobre as cidades brasileiras, tais como:
movimentos populares, organizações não governamentais, entidades
acadêmicas e de pesquisa e entidades profissionais.
Villaça (1999) demarca este período como importante para o planeja-
mento urbano, que até então, era despolitizado. Com os primeiros debates
públicos sobre o uso do espaço urbano entre os diversos segmentos, os
interesses vinculados a este mesmo espaço foram explicitados.
A atuação do FNRU também concretiza-se no plano local, com a cons-
tituição de fóruns regionais, estaduais e municipais de Reforma Urbana,
com tempos de fundação e características que variavam de acordo com
o contexto local.
E isso nos remete de volta à Fortaleza, cujos agentes da luta pelo direito
à cidade encontraram, nesse período, no discurso do campo da reforma
urbana identidade e convergência e terão atuação destacada no âmbito
do poder local.
Os anos 90 trazem um agravamento das condições de precariedade
na periferia da cidade. Mas nesta década cabe ressaltar, para fins dessa
análise, o surgimento de várias entidades mediadoras (surgimento ou a

1518
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mudança na forma de organização das entidades, que passaram a ser


mediadoras), que buscam se fortalecer para se posicionar na cena polí-
tica. Por “mediadores”7 entende-se as organizações com a capacidade e
objetivo de coordenar e impulsionar as agendas dos seus membros e, em
alguns casos, representá-los perante a imprensa, poder público, outras
articulações, etc.
Nesse sentido, também as organizações não governamentais (ONGs)
adquirem um novo papel diante dos desafios sociais colocados. Este dire-
cionamento tem estreita relação com a tentativa de diminuição do papel
do Estado no enfrentamento das desigualdades e poderia oferecer um risco
aos avanços obtidos na CF/88, na qual foram assegurados direitos dos
cidadãos e deveres do Estado. Disseminava-se a idéia de que o modelo de
administração das cidades, cujas decisões e iniciativas são centralizadas
pelo Estado, seria ultrapassado e falido. E as ONGs seriam o sujeito ideal
para manifestar-se e trabalhar pela inclusão social.

A REVISÃO DO PLANO DIRETOR DE


FORTALEZA E O CAMPO DA REFORMA URBANA

O início dos anos 2000 trazem a novidade, no âmbito federal, da regu-


lamentação do capítulo da política urbana da Constituição Federal de 1988.
Após mais de uma década de discussões e controvérsias foi aprovado o
Estatuto da Cidade, lei federal nº 10.257/01. A pressão do Fórum Nacional
de Reforma Urbana (notadamente) foi imprescindível para o desengave-
tamento do projeto de lei, para retomada do debate e para o caráter final
deste instrumento legislativo.
A aprovação da lei federal de desenvolvimento urbano levou à uma
reorientação das ações dos movimentos do campo da reforma urbana.
No município de Fortaleza, os movimentos e entidades ligados ao FNRU
fundam em 2001 o fórum local, chamado de Núcleo de Habitação e Meio
Ambiente (NUHAB) e que tinha como uma das principais diretrizes de
atuação a implementação do Estatuto da Cidade. Sua missão era “pro-

1519
mover a gestão democrática da cidade e a reforma urbana, monitorando
e influenciando as políticas públicas de habitação e meio ambiente por
meio de uma atuação conjunta com os movimentos sociais e populares
na luta pela efetivação do direito à cidade” (NUHAB, Folder Construindo
uma cidade de tod@s, 2003).
Composto por movimentos populares de luta pela moradia (que tinham
representação nacional no FNRU – FBFF, CMP, MCH, MLB), ONGs (CDVHS,
CEARAH Periferia, Centro Socorro Abreu, as duas primeiras filiadas ao
FNRU), pastorais sociais (Cáritas e CEBs), projetos universitários de asses-
soria jurídica popular (CAJU, NAJUC, SAJU), escritório de Direitos Humanos
(EFTA), o NUHAB foi o ator político de mais destaque na luta pelo direito
à cidade em Fortaleza durante a década de 20008.
Pretende-se citar o caso da revisão do Plano Diretor pois esta foi a
principal atuação das entidades do campo da reforma urbana nesta década
e como a concretização de vários avanços estabelecidos na lei federal
de desenvolvimento urbano dependem fundamentalmente do Plano Di-
retor, a sua revisão foi vista pelo NUHAB como uma ótima oportunidade
de explicitar os conflitos urbanos e disputar um outro modelo de cidade.
Desde o início do processo de revisão do PDDU ocorreram questiona-
mentos por parte de entidades da sociedade civil, pelo falta de diagnóstico,
pela equipe responsável, pela falta de participação popular.
Nos quase oito anos em que se desenrolou o processo, milhares de
pessoas participaram de eventos ligados à revisão do plano diretor, sejam
promovidos pela Prefeitura, Câmara, ou organizados pela sociedade civil.
Apostando na oportunidade da difusão do tema do Direito a Cidade e
tentando tornar possível a centralidade deste nas diversas lutas empre-
endidas em Fortaleza, diante da omissão da prefeitura em promover as
discussões públicas sobre a proposta de legislação urbanística que estava
sendo elaborada, é o NUHAB que passa a promover debates sobre o Plano
e o Estatuto da Cidade em algumas comunidades, na universidade e junto
a outros fóruns e redes.
Assim o tema da participação popular ganha centralidade e polariza os

1520
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

debates, evidenciando concepções diferentes sobre a capacidade decisória


das classes populares. Importa registrar também um outro ator político de
destaque nesse processo que foi o Movimento dos Conselhos Populares
(MCP), que surgiu em 2000. Não compunha o NUHAB, mas muitas ações
foram feitas em conjunto.
A Campanha por um Plano Diretor Participativo de Fortaleza, iniciada
em 2003, foi pioneira e acabou tornando-se referência nacional.
Ao observar-se a campanha desenvolvida pela rede, observam-se fa-
tores interessantes que denotam a forma de atuação das entidades locais
na luta pelo direito à cidade – concretizado, naquele momento, na luta
por um plano diretor participativo.
Em primeiro lugar, a mobilização da sociedade civil significou orga-
niza-la e fortalecê-la, para que conseguisse influenciar políticas públicas
democráticas. Por conta dos limites de recurso, tempo e capacidade das
entidades da rede, buscou-se priorizar a capacitação de lideranças comu-
nitárias, no sentido de torná-las multiplicadoras do tema nas bases. Foram
desenvolvidos materiais de comunicação, textos, artigos, metodologias
que transformaram a pauta do plano diretor em algo concreto para os
moradores da periferia da cidade. Neste contexto de aparente democra-
tização da gestão local, os movimentos se viram impelidos a ocupar de
modo qualificado os espaços conquistados e para isto as entidades de
assessoria fizeram toda a diferença.
O fortalecimento ocorreu também no nível dos assessores da rede. Os
temas pertinentes à nova legislação urbana eram desconhecidos e um
intensivo processo de estudo e intercâmbio com outros Estados permitiu
que técnicos (notadamente do Direito e Arquitetura e Urbanismo) obtives-
sem domínio sobre os novos instrumentos de desenvolvimento urbano e
suas formas de aplicação.
A boa capilaridade das entidades do NUHAB nas comunidades da
periferia geraram um grande número de pessoas mobilizadas direta e
indiretamente, que passaram a ficar atentos à revisão do Plano Diretor.
Chegou-se então, em meados de 2009, ao fim do longo processo de

1521
revisão da lei municipal de desenvolvimento urbano que movimentou o
debate sobre “a cidade que temos e a cidade que queremos”. E, apesar
de altos e baixos9, houve em todos estes anos a afirmação do campo
da reforma urbana – representado pelo NUHAB - como mediador/arti-
culador dos movimentos sociais urbanos em torno do eixo da luta pelo
direito a cidade.
E o que fica depois disso, em termos de continuidade das práticas
democráticas? Segundo opina Machado,

por si só, o processo de revisão do PD não efetivou transfor-


mações profundas nos arranjos e nas estruturas institucionais
do planejamento urbano de Fortaleza. Dizer que nada mudou
é exagero, e talvez represente desconhecimento dos esforços e
das lutas individuais e coletivas travadas. Porém, avalia-se que a
mudança efetiva do campo do planejamento urbano em Fortaleza
depende de dois aspectos ainda pendentes: 1) a recriação efetiva
das estruturas institucionais da Prefeitura, abrindo espaço para
outros agentes ocuparem posições chaves de poder, consoli-
dando redes alternativas e difundindo padrões governamentais
democráticos; 2) a manutenção da mobilização e da articulação
dos agentes sociais do pólo popular, pelo menos articulando
interesses e demandas particularistas e setoriais às bandeiras
e lutas gerais, universais e coletivas (MACHADO, 2010, p.417)

A constatação de que o Estado não é monolítico, que está sujeito a


pressões dos diversos segmentos e que suas decisões variam de acordo
com o campo de forças do momento político; a constatação de que a
população da periferia de Fortaleza, por mais que sofra com problemas
urbanos gravíssimos e por mais que tenha movimentos organizados pró-
ximos, não necessariamente estará engajada na luta coletiva; a consta-
tação de que os movimentos têm interesses diversos quando se engajam
em alguma causa e não podem ser classificados de forma estanque entre
institucionalistas/cooptados ou autônomos; a constatação da centralidade
dos mediadores no estabelecimento de vínculos e estratégias junto aos
movimentos populares e na definição das ações coletivas; a constatação
da ambiguidade constitutiva da ordem urbanística brasileira, cujas leis
são aplicadas de acordo com a conveniência política ou pressão popular;
todas essas reflexões que saem do caminho já percorrido até aqui ajudam

1522
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

a pensar sobre os limites e possibilidades da luta pelo direito a cidade


empreendida pelo movimento de reforma urbana.
As impressões sobre esse histórico de processos de ações coletivas
recentes na dinâmica dos movimentos populares de Fortaleza oscilam,
por um lado, entre a constatação de que eles sofreram refluxo, desapa-
receram ou foram fragilizados após isso, e, por outro, na constatação da
emergência de novos movimentos, de ações de mobilização e organização,
no contexto dos megaeventos.
No momento, enfrenta-se na cidade uma conjuntura diferente a partir
do anúncio da cidade como sede da Copa 2014, e a nossa hipótese é que
esta situação tem levado uma mudança nas formas e sentidos das ações
coletivas em Fortaleza. A pluralidade de sujeitos e, consequentemente,
de interesses, que constituem a cidade, foram visibilizados na revisão do
PDPFor. As formas em que esses sujeitos se relacionam também foram
múltiplas.

CONSTATAÇÕES PRELIMINARES SOBRE AS AÇÕES


COLETIVAS NO CONTEXTO DOS MEGAEVENTOS

A aprovação da lei do Plano Diretor na Câmara de Vereadores talvez


não tenha sido o fato mais importante de 2009 para a cidade de Fortaleza.
Três meses depois deste acontecimento, a Federation Internationale de
Football Association (FIFA) anuncia que Fortaleza será uma das 12 sedes
do campeonato mundial de futebol que será realizado no Brasil em 2014.
A notícia foi recebida com bastante euforia pela população e pelo
poder público, por conta da perspectiva de visibilidade da cidade a nível
mundial, de investimentos em grandes proporções e oportunidades de
concretização de megaprojetos de intervenção urbana.
Mas os projetos e direcionamentos que os megaventos esportivos
proporcionam para os países em desenvolvimento são bastante diferen-
tes das expectativas que os mesmos criam. A partir da observância do
que ocorreu em países em preparação para campeonatos anteriores, se

1523
vislumbra o grande impacto sobre a estruturação das cidades e o alinha-
mento do Estado com os interesses do capital, desconhecendo as práticas
de planejamento urbano.

Tão ou mais grave que esta verdadeira farra privada com recursos
públicos é a instauração progressiva do que vem sendo qualifi-
cado como cidade de exceção. Decretos, medidas provisórias, leis
votadas ao arrepio da lei e longe do olhar dos cidadãos, assim
como um emaranhado de sub-legislação composto de infinitas
portarias e resoluções constroem uma institucionalidade de ex-
ceção. Nesta imposição da norma ad hoc, viola-se abertamente
o princípio da impessoalidade, universalidade e publicidade da
lei dos atos da administração pública. Interesses privados são
favorecidos por isenções e favores, feitos em detrimento do
interesse público. Empresas privadas nacionais e internacionais
submetem a nação e as cidades a seus caprichos - melhor dizer,
interesses. Nestas operações, que a linguagem oficial chama de
parcerias público-privadas, o público, como é sabido, fica com
os custos e o privado com os benefícios. Afinal de contas, os
promotores dos mega-eventos falam de esporte mas tratam de
negócios. (Dossiê Megaeventos e Violação de Direitos Humanos
no Brasil, 2011, p. 7)10

Assim quase todas as obras têm sido acompanhadas de processos de


remoções forçadas, desalojando grandes contingentes de moradores de
baixa renda de suas casas. Na maior parte destes processos, percebe-se
a falta de transparência nas ações promovidas pelo poder público, a não
discussão prévia dos projetos e das remoções necessárias, a ausência de
diálogo e de negociação sobre as alternativas às remoções, a ocorrência
de avisos de remoções emitidos com pouquíssima antecedência, a reali-
zação de despejos de forma violenta e um baixo valor das indenizações e
dos valores de bolsa-aluguel pagos, que podem implicar na inadequação
das soluções habitacionais das pessoas atingidas e, inclusive, no aumento
de famílias sem teto ou moradoras em áreas de risco no país. Some-se
a isso processos de criminalização dos movimentos, flexibilização das
legislações, obras superfaturadas, privatização dos espaços públicos, etc.
Os movimentos sociais urbanos que colocaram desde o primeiro
momento fortes críticas e receios quanto ao Brasil sediar a Copa 2014
tiveram ainda que lidar contra a consolidada opinião pública favorável
ao mesmo, que apregoava o desenvolvimento que tal megaevento traria,

1524
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

em forma de obras, empregos, inovações tecnológicas, modernização,


enfim, progresso11.
Aqui cabe lembrar o conceito nuclear da reforma urbana, que é o
da função social da cidade e da propriedade – a cidade deve funcionar
prioritariamente para atender às necessidades sociais, e não à lógica da
mercantilização da cidade. Mas na prática, o que se vive é um processo
de remercantilização da cidade. Assim, há uma dinâmica de gestão da
cidade absolutamente contraditória ao que defende o movimento de re-
forma urbana.
O Fórum Nacional de Reforma Urbana, cuja influência na definição das
políticas urbanas dos últimos anos já foi citada neste trabalho, enfrenta
um período de menor expressividade e, consequentemente, menor poder
político. Some-se a isto a gradativa mudança que vinha sofrendo o Minis-
tério das Cidades, com a saída paulatina dos técnicos ligados ao campo
da reforma urbana, por insatisfação com os rumos das políticas para as
cidades, e que culminou com a saída do Ministro Olívio Dutra para a en-
trada de Márcio Fortes (PP) e a definitiva perda de hegemonia do ideário
da Reforma Urbana no interior do Estado brasileiro e maior esvaziamento
político do Conselho Nacional das Cidades (Machado).
Ainda nesse esboço de cenário nacional, importa registrar a realiza-
ção de grandes obras do PAC nas cidades nos últimos anos, sem que as
mesmas tenham sido discutidas no MCidades dentro de uma perspectiva
de integração das políticas urbanas e democratização das gestão. Por fim,
tem-se o Programa Minha Casa Minha Vida que tem elevado o grau de
precarização e segregação urbana.

“A nova e ampliada escala e poder de atuação do setor privado


na urbanização atual é parte do que chamo ‘novo patamar da
reprodução espacial do capitalismo’. Neste momento, a política
urbana vem sendo abandonada ou sendo entregue nas mãos dos
interesses imobiliários e financeiros privados, sendo o Programa
Minha Casa, Minha Vida a manifestação mais acabada desse
processo”, reflete Danilo Volochko (trecho de reportagem da
Revista Caros Amigos, janeiro de 2013, p.11)

1525
Direcionando o olhar para a cidade de Fortaleza, todos esses problemas
têm sido constatados e replicados.
A partir dos embates no longo processo da revisão do plano diretor, se
conclui que as lutas empreendidas não se materializaram em mudanças
efetivas na institucionalidade, em forma de avanços legislativos, projetos
e espaços de gestão democrática. O tão aclamado pacto pela cidade não
ocorreu e, ao fim do processo, houve inclusive uma inflexão nas práticas
de transparência e controle social.
O início da preparação da cidade para a Copa 2014 – e as ameaças ao
direito à cidade advindos dela - encontra então os movimentos sociais
urbanos desgastados entre si, além de desacreditados da gestão municipal.
Mas a ameaça ao direito à cidade das pessoas é agravada nesse contexto
de megaeventos.
Isso nos leva então a perceber as perspectivas de surgimento de novas
articulações (ou reconfiguração das existentes), na busca por ampliação
do seu poder no espaço social, discorrendo sobre a capacidade dos movi-
mentos comporem uma base mais ampla para fazer frente ao acirramento
das violações de direito contemporâneas.
O que já se pode constatar em Fortaleza é a existência de dois atores
políticos centrais nessa luta: o Comitê Popular da Copa e o Movimento
de Luta em Defesa da Moradia. Ambos têm como principal bandeira a
defesa das comunidades ameaçadas de remoção por conta dos projetos
da Copa 2014, mas também pautam questões relacionadas à trabalho
formal e informal, exploração sexual, falta de transparência, aumento da
dívida pública, legislações de exceção... Desde 2010, com destaque para o
Comitê, têm obtido importantes vitórias na proteção do direito à moradia
de centenas de moradores e na visibilização das críticas à falsa promessa
de progresso e desenvolvimento que o megaevento traria para a cidade.
Tais articulações são compostas por pessoas e entidades que sem dúvida
encontram referência no espaço de debate promovido pelo campo popular
quando da revisão do Plano Diretor. Mas há pouca ou nenhuma referência
ao campo da reforma urbana, como costuma-se conhece-lo.

1526
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O repertório de ação se modifica, as entidades mediadoras são outras


(ou desaparecem) e a disputa não considera fortemente os espaços tra-
dicionais de gestão democrática das cidades, como conselhos, conferên-
cias, fóruns, etc. Há que se apurar o olhar para estes novos movimentos
sociais, a fim de compreendermos e fortalecermos a disputa por cidades
mais justas, sustentáveis e solidárias.

REFERÊNCIAS

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urbana para quem? Proposta (FASE). Numero 121.
GOHN, Maria da Glória. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 4a. ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2012. v. 3000. 166p .
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LOUREIRO, J. M. B.; PINHEIRO, V.; SAID, P. de A. Luta da sociedade civil pela
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Disponível em <http://www.cidades.gov.br> Acesso em 10 de jan de 2011.
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2012. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional)–Instituto de Pesquisa
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bana no Ministério das Cidades (2003-2010), 2013. Tese (Doutorado em
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In Déak, C. e Schiffer, S. R. (orgs.). O processo de urbanização no Brasil. São
Paulo: Fupam/Edusp, 1999.

NOTAS

1 Bacharel em Direito pela UFC/CE, especialista em Gestão de Projetos Sociais pela UNIFOR e Mestranda em
Planejamento e Regional pelo IPPUR/UFRJ; pacienciarevolucionaria@gmail.com
2 Elaborado pela Articulação Nacional dos Comitês Populares (ANCOP), reúne informações sobre impactos
de obras e transformações urbanas realizadas para a Copa do Mundo de 2014 e para as Olimpíadas de 2016.
3 Como exemplo: Resolução13/2010 sobre megaeventos e direito à moradia, disponível em http://direitoa-
moradia.org/?page_id=1200&lang=pt, acessado em 03 de março de 2013.
4 De acordo com os estudos do IBGE sobre as Regiões de Influência de Cidades (2007).
5 A capital cearense foi apontada como a quinta cidade mais desigual do mundo, de acordo com o relatório
State of the World’s Cities 2012/2013 (ONU)
6 Discursos e ações da sociedade civil para reivindicação da solução de problemas urbanos já aconteciam
nacionalmente desde a década de 60, mas giravam preponderantemente em torno do tema da moradia strictu
sensu. Quando se considera o surgimento do movimento de reforma urbana apenas no fim dos anos 80 é
dessa perspectiva de uma articulação com um perfil mais estruturado de críticas e propostas para as cidades.
7 Exemplos de mediadores: ONGs, partidos políticos, Igrejas...
8 Outras entidades fizeram parte do NUHAB em algum momento, como a ONG Oficina do Futuro e o Civita (proje-
to de extensão da Arquitetura UFC), mas as listadas acima foram as que mais duraram e atuaram enquanto rede.
9 Notadamente a partir de 2007 a mobilização perdeu dinamicidade, principalmente pela longa duração do
processo e pelo cansaço das pessoas das comunidades que não conseguiam mais convencer os moradores a
participar das atividades, pois estes não viam resultados. Além disso, as lideranças comunitárias mais ligadas
à rede eram as mesmas que acompanhavam outras discussões puxadas pela gestão, como o Projeto Orla,
Orçamento Participativo, as diversas conferências, o que causou um acúmulo de demandas para as mesmas.
A imprensa também passou a não dar mais muito espaço para o assunto.
10 Elaborado pela Articulação Nacional dos Comitês da Copa (ANCOP), que tem representações nas doze
cidades-sede.
11 Em reportagem à Revista Caros Amigos, Maricato trata ironicamente deste viés: “Há um conceito popular de
que verticalização, especulação imobiliária, valorização do preço da terra e dos imóveis é progresso” (Revista
Caros Amigos, janeiro de 2013)

1528
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Experiências de participação
popular nas contradições de um
ensaio democrático: mesas técnicas
de água e comitês de terra urbana
na Venezuela
Flávio Higuchi Hirao1

1. INTRODUÇÃO

Em 1997 foi realizada na cidade de Caracas a Cátedra “Descentralizaci-


ón, Gobierno y Futuro Democrático en Venezuela”, que tinha como propósito
avaliar o processo de descentralização política pelo qual passava o país.
Naquela ocasião, o historiador Manuel Caballero, professor da Universidad
Central de Venezula (UCV), finalizou sua palestra citando alguns possíveis
candidatos às eleições presidenciais que iriam ocorrer no ano de 1998. A
menção ao então candidato Hugo Chávez Frias foi da seguinte forma: “Y
hay otra persona cuya centralización ha ido más lejos todavía, porque no ha
partido de la alcadía sino que viene, nada más nada menos, que del centro
del universo” (CABALLERO, 1998). Tal era a imagem do candidato Chávez:
sua origem, enquanto líder político, não encontrava paralelo com as outras
figuras políticas que vinham dos partidos políticos tradicionais. Na sua
ironia Caballero fazia refêrencia à origem de Chávez fora das instituições
tradicionais e ao seu centralismo - o “centro do universo”.
Fato é que Chávez, depois de vencer as eleições de 1998, convocou um
processo constituinte com a proposta de “refundar” a república a partir da
idéia de Democracia Participativa e Protagônica. A concomitância entre
práticas centralizadoras - no executivo federal e especialmente no chefe
de Estado - e as propostas de democracia participativa e protagônica
marcaram a complexidade do fenômeno Chávez na Venezuela.

1529
Este artigo pretende colocar em relevo esta complexidade, por meio do
exemplo de práticas e propostas relacionadas à democracia participativa
e protagônica durante as gestões de Chávez de 1999 a 2013. Serão apre-
sentadas as experiências dos Comités de Tierra Urbana (CTU), voltados à
regularização fundiária e urbanização das favelas e as Mesas Técnicas de
Água (MTA), que tinham como objetivo envolver a comunidade das favelas
no projeto e execução de obras hidráulicas. Com o objetivo de contextu-
alizar essas experiências participativas dentro do processo histórico de
descentralização na Venezuela, o artigo aborda de forma introdutória o
processo de descentralização anterior a Chávez, iniciado em 1984 com a
formação da Comisión Presidencial para la Reforma del Estado (COPRE). Esta
contextualização histórica será fundamental para que possamos abordar
a complexidade política venezuelana para além da figura de Chávez.

2. CRISE POLÍTICA, REFORMA DO ESTADO, E DESCENTRALI-


ZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA

Desde a derrubada do ditador Marcos Pérez Jimenez em 1958 a Vene-


zuela apresenta o mais longevo período democrático da América Latina.
Em tendência contrária ao resto do continente, o país passou pelas déca-
das de 1960, 1970 e 1980 como exceção democrática latinoamericana. O
período compreendido entre a queda do ditador em 1958 e a ascenção de
Chávez em 1999, hoje conhecido como IV República2, foi marcado por um
pacto entre as elites do país, sobretudo em torno dos únicos dois partidos
que chegariam ao poder nessas 4 décadas: Acción Democrática (AD) e o
social cristão COPEI. Este pacto, que na prática se dava pelo revezamento
entre os dois partidos, era conhecido como Pacto de Punto Fijo3, e propunha
o consenso entre as principais forças do país. Tal pacto de governabilidade
possibilitava a estabilidade política da estrutura democrática, mas por outro
freiava mudanças estruturais no âmbito econômico e social.
O modelo de democracia do Pacto mantinha a estrutura centralista do
Estado venezuelano. Carmo et. al. (2011), a partir da tese de “capitalismo

1530
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

rentístico” de Asdrúbal Baptista (2010) argumentam que a manutenção


da estrutura centralista se relaciona diretamente com a renda petroleira,
entendida como renda internacional da terra. Segundo os autores, “Uua
vez que o poder central centralizou os mecanismos de arrecadação da renda
da terra ainda no século XIX e aumentou os critérios de discricionariedade
de sua distribuição no século XX, o governo nacional goza de margens de
ação extraordinárias, sendo a principal delas a própria definição dos cri-
térios para distribuição dos recursos. Ou seja, produziu-se uma convergência
entre a concentração do poder econômico, resultante do poder de tributação,
e o poder político”.
A queda do preço do petróleo no mercado internacional no final da
década de 1970 e início de 1980, somada aos vícios administrativos de
duas décadas de pacto político, geraram um progressivo desequilíbrio da
estrutura que sustentava o Pacto. A partir de então, as décadas de 1980 e
1990 serão marcadas pela instabilidade política e social na Venezuela. A
crise política e econômica se aprofundou a partir do conjunto de medidas
macroeconômicas que o presidente Luís Herrera Campíns (1979-1984),
tomara em 21 de fevereiro de 1983 - data que viria a ser conhecida como
Viernes Negro. Este conjunto de medidas, que vinha como uma resposta
drástica a uma situação econômica insustentável desde a década de 1970,
incluía a desvalorização da moeda nacional, o bolívar, e a redução dos
investimentos sociais, e teve impacto profundo e imediato no conjunto
da sociedade venezuelana. Cabe destacar que durante o governo Herrera
Campíns ocorreram as primeiras eleições para os conselhos municipais,
em 1979, fato que já indicava uma incipiente flexibilização do modelo
centralista do puntofijismo.
No ano de 1984 o governo do presidente Jaime Lusinchi, de acordo
com as demandas sociais e as promessas que fizera durante sua campa-
nha em 1983 decretou a abertura de um processo de “reforma integral
do Estado venezuelano”, criando então a Comisión Presidencial para la
Reforma del Estado, conhecida como COPRE (LÓPEZ MAYA, 2005: 45). A
proposta de reforma do Estado que se iniciava em 1984 buscava resta-

1531
belecer a legimitidade das instituições republicanas e manter o modelo
de democracia do pacto (SILVA MENDES, 2012: 89). A COPRE criou uma
rede de “Copres regionais”, cujas atividades avivaram as manifestações
a favor da descentralização (URBANEJA, 2009, p.74 em CARMO et. al.);
entre suas exigências estava incluída a eleição direta dos governadores
dos estados, então designados pelo Presidente da República.
Quando a COPRE publicou suas propostas em 1986 o próprio executi-
vo que havia criado a Comissão se opôs frontalmente a ela, resistindo às
transformações políticas propostas (LÓPEZ MAYA, 2005: 48). As condições
favoráveis para a aprovação de algumas reformas se deram durante as
eleições de 1988 quando os candidatos Carlos Andrés Pérez pelo partido
AD e Eduardo Fernándes pelo partido COPEI se comprometeram a incluir
em seus programas de governo as reformas políticas propostas pela COPRE
(CONTRERAS NATERA, 2003).
O acontecimento que mudou radicalmente os rumos da história política
venezuelana ocorreu em 27 de fevereiro de 1989. Nesta data uma revolta
popular de magnitude sem precedentes tomou a capital Caracas e todas
as grandes cidades do país. Conhecido como Caracazo, a revolta durou
cinco dias em Caracas, e teve como saldo mais de 400 mortos. Diante de
tamanha desestabilização social, o aprofundamento das reformas políti-
cas se tornou imperativo. Assim, ainda no ano de 1989 foram aprovadas
leis fundamentais de de reforma do Estado, entre as quais destacamos:
Ley sobre Elección y Remoción de Gobernadores de Estado, Ley Orgánica de
Descentralización, Delimitación y Transferencia de Competencias de Poder
Público (LODDTC) e a Ley Orgánica de Régimen Municipal.
A lei que tratava dos governadores de Estado estabeleceu as eleição
direta para governadores, que então eram designados pelo presidente da
república. A lei orgânica de descentralização transferia ao nível regional
competências até então atribuídas ao governo federal. A lei que tratava
do regime municipal separou as funções do executivo e do legislativo, até
então reunidas no Consejo Municipal. Ressalta-se que esta lei criou as
parroquias e juntas parroquiales, com o objetivo de propiciar a descentrali-

1532
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

zação administrativa no interior do território do município, reconhecendo


as associações de vizinhos como atores locais (LÓPEZ MAYA, 2006: 117).
Nas palavras de Margartia López Maya, essas reformas atuaram como
um oportuno “salva-vidas” do sistema político de então. A Venezuela en-
trava na década de 1990 com uma nova base institucional e em meio a uma
grave crise social, econômica e política. Estavam dadas as condições para
a emergência de novas forças políticas e uma nova complexidade social, o
que inclui a figura de Hugo Chávez, cuja primeira aparição pública fora na
tentativa de tomada de poder por meio de um golpe de Estado em 1992.
Entre as novas forças políticas que emergiram nesta nova conjuntura
se destacava o partido La Causa Radical, mais conhecido como La Causa
R (LCR). A LCR, que era um partido pequeno na década de 1980, se tornou
no início da década de 1990 a terceira força política do país, realizando
experiências progressistas em prefeituras e governos do Estado.
A LCR ganhou as eleições na cidade de Puerto Ordaz em 1989, com
Clemente Scotto, onde
inovaria a partir da proposta de mesas técnicas e assembléias. Contra-
riando todas as expectativas, a LCR venceu as eleições na capital Caracas
em 1992, com Aristóbulo Istúriz, que viria a realizar importantes práticas
de democracia direta na capital a baseados na partir da experiência de
Puerto Ordaz.
(LÓPEZ MAYA, 2011:19).
Muitos dos princípios defendidos pelas forças políticas emergentes da
nova conjuntura iriam reaparecer na proposta do candidato Chávez em
1998, e seriam consolidadas a partir da Constituição aprovada em 1999.

3. A proposta de Refundação do Estado e a experiência dos


Comités de Terras Urbanas e Mesas Técnicas de água.

Hugo Chávez venceu as eleições de 1998 prometendo refundar


o Estado e chamar a Constituinte. Em sua posse, com as mãos sobre a
Constituição de 1961, dizia “jurar sobre essa moribunda Constituição”.

1533
Eleito, Chávez convocou uma Assembléia Constituinte, e a nova Carta
Magna foi aprovada em dezembro de 1999 sob Referendo Popular. Em
seu preâmbulo, a Constitución de la República Bolivariana de Venezuela
(CRBV) afirma que tem como fim “refundar la República para establecer una
sociedad democrática, participativa y protegónica, multinétnica y pluricultural
en un Estado de justicia, federal y descentralizado (...)”. Além dos poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário foram instituídos o Poder Cidadão e
o Eleitoral. O Poder Legislativo se tornou unicameral, estabelecendo a
Assembléia Nacional.
Se por um lado o governo de Chávez indicava o fortalecimento da des-
centralização e da democracia participativa, por outro era criticado pela
concentração de poderes em suas mãos. Segundo Villa (2005), “dentre as
críticas à nova Constituição, destaca-se a excessiva concentração de poder
nas mãos do presidente, que passou inclusive a ter o poder de legislar por
meio da lei habilitante a respeito de qualquer matéria. Em finais do ano 2000,
a Assembléia Nacional aprovou um pacote de 49 leis habilitantes” (grifo no
original). Entre as leis habilitantes, as mais polêmicas eram a Lei de Terras
e a Lei de Hidrocarbonetos4.
Quanto ao território nacional, o novo governo apresentava a proposta
da descentralização-desconcentrada, tese defendida pelo então ministro
de Planificación y Desarrollo Jorge Giordani. Segundo Contreras Nanteras
(2003), “en palabras de sus principales portavoces, la política de descen-
tralización-desconcentrada tiene como propósito fundamental aprovechar
las potencialidades del país para lograr una distribución más equilibrada y
sostenible de las actividades productivas, las inversiones y la población a lo
largo del territorio nacional”. A nova Constituição criou o Consejo Federal
de Gobierno que, segundo a Exposição de Motivos da Assembléia Nacional
Constituinte, terá como funções “planificar y coordinar horizontalmente
las políticas y acciones para el desarrollo del proceso de descentralización
y la administración del Fondo de Compensación Interterritorial destinado al
financiamiento de inversiones públicas con el fin de promover el desarrollo
equilibrado de las regiones de menor desarrollo relativo” (VENEZUELA, 2009).

1534
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

No decorrer das gestões chavistas, várias foram as estratégias de pro-


mover a participação direta da sociedade civil na gestão, planejamento
e execução de políticas públicas, com destaque para as Missões Sociais5.
Segundo a PDVSA, “estas iniciativas contam com recursos extradordinários,
sua coordenação é interintitucional e interministerial e um dos elementos
fundamentais para seu planejamento, execução e acompanhamento é a
participação ativa e protagônica das comunidades organizadas”6. No âm-
bito produtivo, o governo buscou incentivar a criação de cooperativas e
Empresas de Produção Social (EPS)7, cujas produções estejam associadas
às demandas da comunidade na qual se insere. Neste artigo iremos nos
deter em duas formas de participação popular vinculadas diretamente
ao território urbano, os Comitês de Terras Urbanos (CTU´s) e as Mesas
Técnicas de Água (MTA).
Miguel Lacabaña e Cecília Cariola (2005: 117) explicam que, com as
mudanças institucionais, sobretudo após a Constituição Bolivariana de
1999 e a aprovação da Ley Orgánica para el Servicio de Agua Potable y
Saneamiento (LOPSAPS) em 2001, houveram mudanças substanciais no
Sistema de Agua Potable y Saneamiento (SAPS), que ampliou o serviço
sob o critério de “equidad”, incrementando o atendimento dos setores
populares, e a “incorporación de la participación comunitária en la gestión
del servicio y el desarrollo de una nueva cultura del agua”; segundo os au-
tores, “una nueva cultura del agua en Venezuela se refiere a la participación
comunitaria en la provisión y acceso al servicio, pero también a la raciona-
lización de su uso y preservación, a la visión integrada de cuencas y de su
ciclo completo, así como derechos humano y social”.
É importante salientar que essas práticas participativas não nasceram
de forma unilateral a partir das instituições. Ao contrário, são resultado de
um dinâmico processo político de duas mãos: de um lado, a mobilização
social das favelas, e de outro a resposta institucional de governos locais
(particularmente da LCR antes de 1998) e do governo federal após a elei-
ção de Chávez. Como exemplo da mobilização e organização social dos
moradores das favelas, 3 anos depois da revolta do Caracazo, quando a

1535
população das favelas “desceu ao vale” a saquear comércios, foi organi-
zada em 1991 a primeira Asamblea de Barrios de Caracas (ABC). Segundo
Andrés Antillano (2005), “la Asamblea de Barrios tuvo un aporte muy im-
portante en definir algunos elementos de lo que podría ser un programa de
luchas de los barrios de Caracas. El planteamiento de regularización de la
tenencia de la tierra ocupada por los pobladores de las comunidades popu-
lares, las discusiones sobre la rehabilitación física de barrios, la propuesta
de cogestión del servicio de agua de la ciudad, la demanda de autogobierno
local, contribuyeron, entre otros, a enunciar y forjar el itinerario de lucha de
los barrios caraqueño”. As ABC duraram até o ano de 1993 e chegaram a
reunir dirigentes de mais de 200 favelas da capital (ANTILLANO, 2005).
Segundo Daniel Matos, Enrique Torres e Alejandro Fermín (2011: 63),
“de las discusiones realizadas en las ABC surge un conjunto de propuestas
que, siguiendo a Antillano (2005), podemos afirmar que contribuyeron a
forjar e enunciar el itinerario de lucha de los barrios caraqueños. Las pro-
puestas eran diversas y algunas de ellas fueron puestas en marcha, desde el
año 2000, con el mandato del presidente Hugo Chávez Frías. Tal es el caso
de los Comités de Tierra Urbana (CTU) y su lucha por la regularización de
la tierra urbana, las Mesas Técnicas de Água y su lucha por la cogestión del
servicio de agua de la ciudad, los Consejos Comunales y la demanda por el
autogobierno local, etcétera”.
O conceito de Mesas de Trabalho surgiu em Puerto Ordaz na gestão do
partido LCR nos anos 1990, como um lugar de encontro de funcionários
locais com suas comunidades com o objetivo de resolver problemas de
maneira conjunta. As MTA podem ser compreendidas como um desenvol-
vimento dessas mesas de trabalho, especialmente para o tema da água,
promovidas pelo prefeito de Caracas Aristóbulo Istúriz8, do mesmo LCR,
em sua gestão de 1993 a 1996 (LÓPES MAYA, 2011: 29).
Segundo Santiago Arconada (2006), “básicamente, lo que se le planteaba
a todas las comunidades era los elementos básicos de un diagnóstico parti-
cipativo. Se planteaba la necesidad de elaborar el censo de la comunidad, de
comprender el problema que se tenía en términos de suministro, para lo cual

1536
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

fue planteado a la conveniencia de la realización de planos o croquis por parte


de las mismas comunidades, experiencia ésta que fue tremendamente rica y
mucho más profunda de lo que imaginamos en un principio, en la medida
en que esta incorporación de las comunidades a los planos de la empresa
hidrológica era una verdadera victoria política (...) Con este diagnóstico fue
posible comenzar a comprender las implicaciones de la ausencia de plani-
ficación en la vida cotidiana de los barrios y de las zonas populares en las
cuales se hacía ese trabajo”.
As reunião de várias MTA de determinada região (parroquia ou bacia
hidrográfica) formam um Consejo Comunitário de Agua (CCA), que se re-
úne a cada 15 dias com técnicos da empresa estatal. De fato, em termos
de organização social, a água apresenta a interessante capacidade de
ampliá-la à escala da bacia hidrográfica, território adequado para o pla-
nejamento hidrográfico. Além disso, ao trabalharem com a infraestrutura
urbana, a participação social na questão da água propicia um importante
aprendizado político junto às instituições. O fato da água ser um serviço
em rede, que engloba a cidade em seu conjunto, amplia a discussão da
comunidade ao urbano como um todo. O relato da engenheira Manuela
Zerpa, entrevista por Mato et. al. (2011), exemplifica esse processo: “Los
proyectos que se hagan, las propuestas que quiera desarrollar la comunidad
no pueden estar fuera de lo que es el ´Plan Maestro´, porque no van a tener
efecto. (...) Se quiere solventar el problema en Las Casitas, pero hay otras
comunidades que tienen la [misma] problemática. Entonces tienes que tener
una visión de comunidad, no es solamente un sector. Las propuestas - por
eso se les dice ´Plan Maestro´ - engloban soluciones para varias comunidades
cercanas que van a tener una solución con el desarrollo, con la construcción
de propuestas”.
Em visita a uma reunião na favela do Petare, na ocasião da confor-
mação de uma MTA no setor José Felix Ribas, tivemos a oportunidade de
presenciar a explicação de uma liderança comunitária sobre a necessidade
de reunir todas as comunidades que viviam dentro da bacia hidrográfi-
ca, pois essa era a única forma de resolver o problema da água. A bacia

1537
hidrográfica em questão era o setor José Félix Ribas, onde habitam mais
de 100 mil pessoas, e constitui uma das 4 partes que formam o complexo
do Petare - considerada uma das maiores favelas do mundo. No início da
intervenção, esta liderança, que também faz parte dos CTU, comparou a
bacia hidrográfica do José Félix Ribas com a bacia em frente ao Petare,
um bairro formal de classe média, onde segundo ela não há falta água
em nenhum dia da semana. Naquele momento, a liderança acabara de
ampliar a discussão da pequena comunidade à rede urbana como um todo,
passando antes pela escala intermediária da bacia hidrográfica.
O aprendizado político dentro de uma experiência em uma MTA se
alimenta da amplitude de questões técnicas e políticas que acabam se de-
senvolvendo a partir da questão da água, conforme descrevem Lacabaña
e Cariola (2005: 127): “el proyecto constituye un paso fundamental para la
comunidad ya que da una visión de futuro concreto y permite organizar la
participación para lograrlo. Además, las MTA se encargan de cogestionar el
financiamiento de los proyectos ante diversas instituciones y de regularizar el
pago del agua, como una responsabilidad que la comunidad debe comprender
y asumir. En este proceso se crean relaciones entre las comunidades y las
instituciones que dan cuenta no solamente de un cambio en la gestión del
servicio, sino también en la cultura ciudadana: el desarrollo de valores propios
de la ciudadanía –entre otros: la tolerancia, la tenacidad, la responsabilidad–, el
aprendizaje de derechos y deberes, el encuentro de saberes técnico y popular”.
Na opinião de Margarita López Maya, a contribuição da MTA, como
conceito e como prática, à melhora da qualidade da democracia venezuela
parece inquestionável (LÓPEZ MAYA, 2011: 56). A autora lembra que a
experiência inspirou outras inovações, como as mesas técnicas de gás,
eletricidade, etc.
A experiências das MTA foram sem dúvida fundamentais para o desen-
volvimento dos Comités de Tierra Urbana. Ao tratar da questão da regulari-
zação fundiária, os CTU trazem à tona a questão do reconhecimento. Este
é um tema especialmente destacado entre os militantes dos CTU, sendo
expressa no título do artigo Lucha por Reconocimiento, de Andrés Antillano

1538
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

(2005), liderença que partipa dos CTU desde sua fundação. A consideração
da coincidência dos termos com a obra de Axel Honnet (2003), também
intitulada Luta por Reconhecimento, pode ser profícua, dado o interessante
quadro conceitual fornecido pelo filósofo alemão para a interpretação dos
conflitos e movimentos sociais na atualidade9.
O não reconhecimento da população moradora nos assentamentos pre-
cários se evidenciava na ausência destes nos mapas da cidade de Caracas.
O nível de conflitividade desta situação pode ser compreendido quando
tomamos em conta que mais de 50% da população da Venezuela vive em
assentamentos precários (CILENTO, 1996 em ANTILLANO, 2005). Tratava-
-se, portanto, do não reconhecimento de metade da população do país10.
Cabe ressaltar que a Ley de Ordenación Urbanística (LOU), aprovada em
1987, reconhecia a existência dos assentamentos precários, denominados
como “asentamientos no controlados”, que poderiam ser objeto de planos
especiais. No entanto, a lei não criava instrumentos que permitissem, na
prática, a regularização dos assentamentos.
O ponto de inflexão na questão dos assentamentos precários foi o
Decreto 1666, promulgado pelo presidente Hugo Chávez em fevereiro de
2002. O Decreto apresentava como objetivo “iniciar, con la participación
protagónica de las comunidades organizadas, el proceso para regularizar la
tenencia de las tierras urbanas ocupadas por barrios y urbanizaciones popu-
lares, procurando la debida coordinación interinstitucional”. Também neste
Decreto se intitucionalizaram os Comitês de Terras Urbanas11.
Na Venezuela existem cerca de 7000 CTU´s, sendo que cada Comitê
representa uma poligonal com uma quantidade próxima a 200 famílias
(MADERA, 2010). Os Comitês são eleitos em assembléias públicas em sua
comunidade, entendida como um território “não maior do que 200 famílias
e que por sua origem, idiossincrasia, espaço geográfico, constitua uma
unidade” (ANTILLANO, 2006: 203), ou seja, um território limitado onde
seja possível haver uma identificação enquanto comunidade.
Andrés Antillano explica que a participação no processo de regulariza-
ção urbana integral conformaram a base para uma “nova forma de poder”,

1539
construída sobre a participação direta das pessoas, a relação ‘cara a cara’
sobre um território definido, para decidir sobre problemas comunitários
e cotidianos, e sua superação. Se trata de “criar uma relação ‘conviven-
cial’ de participação e poder, longe das formas burocráticas e formalistas
tentadas até agora” (ANTILLANO, 2006: 204).
O instrumento da Carta del Barrio consolida o reconhecimento daquela
comunidade. Se entendermos que o reconhecimento parte da dialética
entre a identidade interna (os fatores comuns que formam um determi-
nado coletivo) e externa (o que diferencia aquela comunidade das outras),
perceberemos a importâncias das Cartas. Em relação ao externo, o barrio
se distingue por não ser “formal” ou “regular”, e sua identidade se afirma
enquanto comunidade que luta pelos direitos da formalidade. Segundo
Garcia-Guadilla (2006), “la Carta del Barrio que debe elaborar el CTU expresa
la identidad de los CTU pues en ella se recoge la historia del barrio desde su
fundación y de la comunidad que allí se estableció, su idiosincrasia y tradi-
ciones, así como las normas de convivencia acordadas colectivamente por
la comunidad. El valor político de la Carta del Barrio radica en que, además
de dotarles de una identidad común, el acuerdo que establece la comunidad
en torno a estas normas mínimas de convivencia compromete a todos los
miembros en un proyecto colectivo”.
Os CTU assumiram uma importância para além das favelas, ao forma-
rem a base de uma ampla articulação de movimentos urbanos, denomina-
da Movimiento de Pobladoras e Pobladores12 (MPP). O MPP congrega, além
dos CTU, o movimento de ocupantes de edifícios, a Red Metropolitana de
Inquilinos13 e os Campamentos de Pioneros-Nuevas Comunidades Socia-
listas14 (MOVIMIENTO DE POBLADORAS Y POBLADORES, 2010).
Desde a sua formação, os CTU têm atuado ativamente na definição
dos rumos da política urbana, tendo participado da formulação das leis
posteriores ao Decreto 1666, com destaque para a Ley Especial de Regu-
larización Integral de la Tenencia de la Tierra de los Asentamientos Urbanos
Populares, aprovada em 2006, e sua revisão no ano de 2011. Nas palavras
da própria organização, em referência à revisão da lei de 2011, “hemos

1540
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

estructurado la ley atendiendo a principios pedagógicos de técnicas legislativas


dirigidos a hacerla más comprensible y facilitar su aplicación, simplificando
procedimientos y trámites, desburocratizando el proceso de regularización,
otorgándole carácter protagónico y vital a la acción de los Comités de Tierra
Urbana (...)” (COMITÉS DE TIERRA URBANA-MOVIMIENTO DE POBLA-
DORES, 2009: 45).
Nos últimos anos os CTU têm se concentrado na proposta de Transfor-
mación Integral de Barrios, que devem abranger, para além da regularização
fundiária, obras de infra-estrutura e espaços sócio-produtivos. Para tanto,
reivindicam a instalação, dentro das comunidades, de equipes técnicas
permanentes, que possam acompanhar os processos de diagnóstico, pla-
nejamento, execução e controle dos planos, projetos e obras, assim como
assessoria na área de construção paras as famílias que necessitarem. Os
principais projetos neste sentido estão concentrados na cidade de Cara-
cas, especificamente no município Libertador, onde estão se iniciando
projetos pilotos.

4. CONTRADIÇÕES DE UM ENSAIO DEMOCRáTICO

“Dentre todos os modelos de democracia que havia apenas um per-


maneceu: a democracia liberal, representativa. As outras formas de de-
mocracia desapareceram, não se fala mais delas. Assim, pois, a primeira
ideia que quero lhes comunicar é que, assim como temos biodiversidade
e a vamos perdendo, creio que nos últimos vinte anos também perdemos
´demodiversidade´: perdemos a diversidade de formas democráticas alter-
nativas em que o jogo, a competição entre elas de alguma maneira deva
força à teoria democrática”.

Boaventura de Souza Santos


(SANTOS, 2007: 87)
Em pesquisa realizada no ano de 2006 por Hellinger (2008), realizou-
-se a seguinte pergunta aos entrevistados: “você crê que há democracia

1541
na Venezuela?” Entre os residentes em favelas, 85% responderam que
sim. Entres os residentes na cidade “formal” 55% disseram crer que havia
democracia no país.
É comum ouvirmos que na Venezuela encontramos a mais avançada
democracia, pois participativa e protagônica. Tão comum quanto ouvirmos
que a Venezuela é uma ditadura populista e autoritária. Tais extremos são
expressões da polarização e da intensa disputa de projetos políticos. Em
cada extremo podemos vislumbrar claramente os discursos exagerados
e caricaturais produzidos por ambos lados da disputa política.
Se por um lado tais discursos reduzem a realidade política a esquemas
explicativos primários - da ditadura populista à democracia perfeita - por
outro a coexistência e disputa de discursos tão díspares indicam a comple-
xidade do processo político. Não seria exagero dizer que o chavismo existe
sob o signo da contradição, parafraseando André Singer em sua análise
sobre o lulismo (SINGER, 2012). São certamente contradições de outra
natureza. Tais contradições, em lugar de deslegitimarem os processos
políticos dos países em questão, se mostram como o resultado inevitável
do avanço da democracia em países de altíssima desigualdade social.
No Brasil, as experiências do Orçamento Participativo em algumas
prefeituras petistas indicavam a possibilidade de uma democracia de alta
intensidade (SANTOS, 2007) quando o Partido dos Trabalhadores (PT)
assumisse o governo federal. Apesar dos avanços nos sistemas basea-
dos em conselhos, fundos e planos locais, o protagonismo político da
sociedade civil nos assuntos do Estado ainda é extremamente limitado.
Tal distanciamento está sendo, inclusive, pauta de muitas interpretações
sobre as manifestações que tomaram as ruas das grandes cidades do país
no mês de junho de 2013.
No tema urbano, a morosidade dos efeitos do Estatuto da Cidade e
a avassaladora eficácia do programa habitacional Minha Casa Minha
Vida cujo formato não prevê a participação popular15 freiaram as ex-
pectativas de quem imaginava o aprofundamento da democracia direta
nas cidades brasileiras.

1542
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Se Luiz Inácio Lula da Silva entrou no poder amparado por uma ins-
tituições sólidas como o PT, sindicalismo, movimentos sociais urbanos
e campesinos, Comunidades Eclesiais de Base, etc., para muitos Hugo
Chávez assumiu o poder em 1998 vindo, no discurso caricatural citado na
introdução deste artigo, “do centro do universo”. De fato, Chávez criara
seu próprio partido para concorrer às eleições no ano de 1998, com o
qual conseguiu desbancar o bipartidarismo de 40 anos de AD e COPEI. No
entanto, a partir de uma gestão centralizada em sua figura, levou adiante
um processo político que incluía formas ousadas e criativas de democracia
participativa, das quais abordamos neste artigo apenas duas delas.
O lema de Simón Rodriguez, professor do libertador Simón Bolívar,
“ou inventamos ou erramos” é repetidamente utilizado nos discursos
chavistas, e não é incomum a denominação do atual processo como
“experimento bolivariano”. De fato, parece ser mesmo um ensaio de
novas formas de democracia, com invenção, acertos e também erros16.
O atual processo político venezuelano iniciado desde Chávez contém
contradições que demandam um grande esforço interpretativo, prejudi-
cado pela hiper-polarização política e pela dificuldade de análise de um
processo em andamento - em criação e em disputa. Cabe, no entanto,
colocar em relevo as contradições, próprias de qualquer democracia no
continente, que contribuam no debate sobre os caminhos democráticos
na América Latina.

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NOTAS

1 Arquiteto graduado pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), mestrando em Arquitetura e Ur-
banismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e pesquisador da
Missão do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) na Venezuela. Membro do Coletivo Usina-CTAH
(coletivo de profissionais que atuam junto aos movimentos populares urbanos de São Paulo).
e-mail: flavio.higuchi@gmail.com.
2 Denominado desta forma durante após a ascenção de Chávez ao poder, o termo é tema de debate.
3 Referência ao nome da fazenda onde fora firmado.
4 Segundo Villa (2005), “o governo passou a exigir que o capital venezuelano tivesse maioria acionária nas
parcerias com petroleiras estrangeiras atuantes no país, o que os defensores da liberalização do setor viram
como retrocesso”.
5 Foram criadas mais de 20 missões sociais desde o início da década de 2000, que contemplam um amplo
espectro da proteção social. Na tema educacional, foi criada a Misión Robinson I, destinada à alfabetização.
Uma mostra contundente do impacto da missão foi a declaração em 2005, por parte da UNESCO, da Venezuela
enquanto “Território Livre do Analfabetismo” pela UNESCO. Misión Robinson II, destinado à educação básica,
Misión Ribas, e Misión Sucre, voltada aos estudos universitários. Ainda no tema da educação, foram criadas
as missões Robinson I, Ribas, e Sucre, destinadas à educação básica, média e universitária respectivamente.
6 Retirado de www.pdvsa.com em novembro de 2012. A PDVSA, empresa estatal de petróleo, financia e
inclusive gerencia grande parte das missões sociais.
7 Em discurso em seu programa semanal Alo Presidente, Chávez definiu da seguinte forma as EPS: “Empresas
de Producción Social: son aquellas entidades económicas dedicadas a la producción de bienes o servicios, en las
cuales el trabajo tiene significado propio, no alienado, auténtico; en las cuales no existe discriminación social en el
trabajo y de ningún tipo de trabajo, no existen privilegios en el trabajo asociados a la posición jerárquica. Aquellas
entidades económicas con igualdad sustantiva entre sus integrantes, basada en una planificación participativa y
protagónica, y bajo régimen de propiedad estatal, propiedad colectiva o la combinación de ambas” (EL TROUDI,
H., MONEDERO, J. C. , 2006: 91).
8 Atualmente Istúriz é governador do Estado de Anzoátegui, pelo PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela).
9 Axel Honnet (2003), tido como o principal expoente da terceira geração da Escola de Frankfurt, a partir a

1546
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

teoria de reconhecimento de Hegel busca formular um quadro interpretativo dos conflitos sociais com base na
luta pelo reconhecimento intersubjetivo, que se daria a partir da experiência de desrespeito. Segundo Salvadori
(2011), essa luta ocorre “devido à experiência do desrespeito que se dá desde a luta pela posse da propriedade
até à pretensão do indivíduo de ser reconhecido intersubjetivamente pela sua identidade. (...) As mudanças
sociais podem ser explicadas por meio do desrespeito, gerador de conflitos sociais. Os conflitos surgem do
desrespeito a qualquer uma das formas de reconhecimento, ou seja, de experiências morais decorrentes da
violação de expectativas normativas. A identidade moral é formada por essas expectativas. Uma mobilização
política somente ocorre quando o desrespeito expressa a visão de uma comunidade. Portanto, a lógica dos
movimentos coletivos é a seguinte: desrespeito, luta por reconhecimento, e mudança social”.
10 Boaventura de Souza Santos nos lembra de que “a principal característica estrutural dos mapas reside em
que, para desempenharem adequadamente as suas funções, têm invevitavelmente que distorcer a realidade”.
O autor se referia à necessidade intrínseca dos mapas de trabalhar com escala, projeção e simbolização, ou
seja, distorções da realidade. Santos continua seu racicínio explicando que “a distorção da realidade que isso
implica não significa automaticamente distorção da verdade, se os mecanismos de distorção da realidade
forem conhecidos e puderem ser controlados”. (SANTOS, 1988: 142, 143)
11 Segundo o Decreto 1666, os CTU devem se organizar a fim de:
“a. Fomentar la participación de los miembros de la comunidad en el análisis y formulación de observaciones,
propuestas, opiniones y comentarios sobre el Anteproyecto de Ley de Regularización de la Tenencia de la Tierra en
los Asentamientos Urbanos Populares,
b. Recopilar información que facilite la realización del inventario de las viviendas y edificaciones que conforman
los barrios y urbanizaciones populares; así como el levantamiento de planos provisionales, que definan los límites
geográficos donde se asienta la comunidad, identificando el ordenamiento urbanístico espontáneo, natural e
histórico e indicando el parcelamiento y sus usos, a los fines de su incorporación en el registro de asentamientos
urbanos especiales;
c. Elaborar los listados de familias que integran la comunidad del barrio o urbanización, o sectores dentro de los
mismos, a los fines de la suscripción de la Carta del Barrio, como instrumento de reconocimiento del barrio suscrito
en forma colectiva por los vecinos.
d. Iniciar procesos de discusión a fin de definir y decidir las medidas que deben adoptarse en el barrio o urbaniación
popular para mejorar el hábitat, y elevar dichas propuestas a la municipalidad u demás entes competentes, con el
fin de contribuir en la formación, ejecución y control de las políticas públicas para la rehabilitación integral de los
asentamientos urbanos, a partir de la regularización de la tenencia de la tierra”.
12 Um marco importante da influência das experiências latino-americanas para os movimentos de moradia
da Venezuela foi o Fórum Social Mundial de 2006, sediado em Caracas. Nesta ocasião foi possível estreitar os
laços com as organizações irmãs da América Latina. A partir de então o MPP se tornou membro da Secretaria
Latinoamericana de la Vivienda Popular – SELVIP, que articula organizações populares de base latinoameri-
canas, como a Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua – FUCVAM (Uruguai), o
Movimiento de Ocupantes e Inquilinos – MOI (Argentina), a Federación de Tierra e Vivienda – FTV (Argenti-
na), a União Nacional por Moradia Popular - UNMP (Brasil), e o Movimiento de Pobladores en Lucha (Chile).
13 A Red Metropolitana de Inquilinos é formada por famílias que enfrentam situações de despejo, o alto custo
dos alugueis, e a especulação (MOVIMIENTO DE POBLADORAS Y POBLADORES, 2010: 21).
14 Os Campamentos de Pioneros-Nuevas Comunidades Socialistas são organizações de luta pelo acesso ao
solo urbano, para a construção de habitação sob um modelo autogestionário de planejamento participativo
de projetos integrais de habitat, propriedade coletiva e trabalho solidário (MOVIMIENTO DE POBLADORAS Y
POBLADORES, 2010: 21). Em termos organizativos, os Campamentos se assemelham com as organizações
vinculadas à União dos Movimentos de Moradia (UMM) no Brasil. Os Campamentos nasceram da experiência
dos CTU.
15 Com exceção da modalidade Minha Casa Minha Vida Entidades, pequena em termos proporcionais.
16 Um sociólogo ligado ao governo, a respeito de frase de Simón Rodriguez, emitiu a seguinte opinião em uma
conversa informal: na Venezuela se inventa, se acerta muito e se erra muito. O que suporta o erro é o petróleo.

1547
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Grupos de trabalho de apoio à


produção social da moradia -
introdução de um novo modelo
democrático e participativo na
gestão do patrimônio da União

Cristiane Siggea Benedetto1

1. INTRODUÇÃO

A SPU - Secretaria do Patrimônio da União, órgão do executivo fe-


deral ligado ao Ministério do Planejamento, a partir de 2003 delineou sua
nova política de Gestão do Patrimônio da União, redefinindo a sua missão
institucional para “conhecer, zelar e garantir que cada imóvel da União cum-
pra sua função socioambiental, em harmonia com a função arrecadadora,
em apoio aos programas estratégicos da nação.” A partir de então, esta
Secretaria vem implantando um novo modelo de gestão, direcionando
as suas ações para cumprimento desta missão, visando inverter a lógica
histórica marcada pela centralização na tomada de decisões e pela visão
meramente arrecadatória do patrimônio imobiliário público.
Neste sentido, a SPU empreendeu um amplo processo de descentrali-
zação e delegação de competências, que inclui a gestão democrática e o
controle social como princípios norteadores da gestão do patrimônio da
União e tem trabalhado ativamente em apoio aos programas prioritários
do Governo Federal, entre os quais os programas de habitação de interesse
social do Ministério das Cidades, destinando imóveis públicos federais
ociosos, bem localizados, dotados de infraestrutura urbana.
Esta ação tem respaldo na Lei Federal nº 11.481/2007 que dispõe sobre
a Regularização Fundiária em Terras da União, estabelecendo, no art. 23,

1549
que a SPU deverá realizar levantamento dos imóveis públicos federais que
possam ser destinados a políticas habitacionais direcionadas à população
de menor renda, no âmbito do SNHIS - Sistema Nacional de Habitação de
Interesse Social. Isto enseja na atribuição de que o Patrimônio da União
assuma protagonismo na política habitacional federal, devendo alimentar
o SNHIS para viabilizar o acesso a terra urbanizada para população de
menor renda, efetivando o direito à moradia digna e à cidades sustentáveis,
visando também minimizar os impactos negativos gerados pelo padrão
essencialmente especulativo do crescimento urbano.
Este dispositivo, que é um dos pilares da Lei nº 11.481/2007, é fruto de
intensas discussões entre órgãos do governo federal com os movimentos
sociais e representantes de setores da sociedade civil organizados no
Conselho Nacional das Cidades e foi debatido na mesma ocasião em que
se discutia a constituição do Sistema Nacional de Habitação de Interesse
Social, instituído por meio da Lei Federal nº 11.124/2005.
Dados oficiais do Ministério das Cidades2 demonstram que o déficit
habitacional brasileiro, em 2011, foi estimado em cerca de 5,4 milhões de
moradias. Estudo do IPEA aponta que cerca de 3,9 milhões se concentram
na faixa de renda de 0 a 3 salários mínimos3. O mesmo estudo aponta que
houve queda do déficit habitacional em 12% entre os anos de 2007 e 2011.
Contudo, dados oficiais apontam que continuamos a ter no Brasil mais de
5 milhões de imóveis ociosos, sub utilizados em e áreas urbanas dotadas
de infra estrutura. Soma-se a esta proporção absurda a incipiente oferta
de áreas bem localizadas com preço acessível, especialmente nas cidades
com maior demanda de habitação, fato que tem dificultado o acesso a
terra urbanizada para efetivação das políticas de provisão habitacional
para a população de menor renda. O que temos visto é a construção em
massa de empreendimentos habitacionais nas franjas das grandes cidades,
em áreas sem infraestrutura, sem equipamentos públicos, sem transporte
público adequado.
Um das prioridades do Governo Federal atualmente é o êxito do Progra-
ma Minha Casa Minha Vida. Isso se evidencia pelo conjunto de programas

1550
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

e ações existentes, com recursos de diversos fundos nacionais: Fundo


de Arrendamento Residencial (FAR), Fundo de Desenvolvimento Social
(FDS), Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), Fundo Nacional
de Habitação de Interesse Social (FNHIS), bem como, Oferta Pública de
Recursos (OPR) em Municípios com até 50 mil habitantes, e Orçamento
Geral da União (OGU).
Nesse contexto, os bens imóveis da União, bem localizados, ociosos,
inseridos em áreas dotadas de infraestrutura, passaram a ter papel estra-
tégico na tentativa de se superar esta equação excludente. A demanda
para que a União assuma este protagonismo no âmbito das políticas de
desenvolvimento urbano, tanto nas ações de regularização fundiária para
famílias de baixa renda, quanto nas destinações para empreendimentos
de provisão habitacional de interesse social, tem crescido, e provocado
permanente reflexão na SPU de necessidade de modernização, incremento
no seu quadro técnico, aumento na sua capacidade de respostas.
Ainda longe de chegar a uma situação ideal, a SPU tem colaborado
com as políticas públicas afetas ao desenvolvimento urbano. A alteração
da sua legislação arcaica abriu as portas para que a destinação de imóveis
da União para habitação tivesse fluxo simplificado e desburocratizado. A
participação social, conhecendo todos os gargalos, travas e dificuldades
nos procedimentos afetos à regularização fundiária e à destinação de imó-
veis para habitação, fez a pressão necessária nas instâncias de discussão
e formulação das políticas afetas ao tema, no caso, no Conselho Nacional
das Cidades, para institucionalização de mecanismos que assegurassem a
melhora dos fluxos internos e a garantia de que houvesse mínima gestão
democrática dos processos, visando, além de criar oferta de imóveis públi-
cos em apoio aos programas do Ministério das Cidades, institucionalizar
padrão novo de destinação do patrimônio imobiliário federal.

1551
2 . GTN - GRUPO DE TRABALhO NACIONAL
DE APOIO à PRODUÇÃO SOCIAL DA MORADIA

O que foi estabelecido no artigo 23 da Lei 11.481/2007, efetivamente


possibilitou a criação, em março de 2008, no âmbito da SPU, do Grupo de
Trabalho Nacional – GTN, para definir critérios para destinação de imóveis
da União para programas de provisão habitacional de interesse social e
ações de regularização fundiária, bem como para promover o fortaleci-
mento da gestão democrática do patrimônio da União. O GTN foi instituído
por meio de Portaria da Secretaria do Patrimônio da União (Portaria nº 80,
de 27/03/2008)4, e na sua origem formado por representantes da SPU,
do Ministério das Cidades e da CAIxA e pelos segmentos com assento
do Conselho Nacional das Cidades – ConCidades.
À época havia muito conflito e desinformação a respeito das possibili-
dades de destinação do Patrimônio Imobiliário Federal, apesar de amplo
esforço nesse sentido do Governo Federal, com ênfase na atuação do
Ministério das Cidades, do Conselho Nacional das Cidades e na própria
atuação da SPU que sempre dispendeu bastante energia para que o Grupo
de Trabalho fosse institucionalizado e se tornasse instância permanente
de discussão.
A Lei Federal nº 11.481/07, editada a partir de duas Medidas Provisórias
do Executivo editadas em 2006 (MP 292, sucedida pela MP 335), possibi-
litou à União destinar imóveis públicos federais em apoio aos programas
habitacionais promovidos por entes federados – estados e municípios, e
também à entidades sem fins lucrativos que faziam parte do SNHIS, com
vistas a ampliar as possibilidades de fomento à provisão habitacional de
interesse social.
Esta destinação pode se dar gratuitamente ou em condições especiais,
a pessoas físicas ou jurídicas, em se tratando de interesse público ou
social, dispensando-se o procedimento licitatório para entes federativos,
associações e cooperativas que se enquadrem nos critérios legais.
Como fruto das reuniões e esforços do GTN, no ano de 2008 foram

1552
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

feitas vistorias participativas em 31 imóveis, dos quais 21 foram indicados


para seleção pública de entidades com a possibilidade de beneficiar até
1.500 famílias de baixa renda5.
A opção que se fez no GTN foi de reserva desses imóveis para proje-
tos habitacionais desenvolvidos por fundações, sociedades, sindicatos,
associações comunitárias, cooperativas habitacionais e quaisquer outras
entidades privadas que desempenhassem atividades na área habitacional,
afins ou complementares, todos na condição de agentes promotores das
ações no âmbito do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social.
No que diz respeito aos instrumentos de transferência de direitos sobre
os imóveis da União, optou-se pela cessão sob o regime de CDRU, na qual a
entidade cessionária se comprometeria, entre outras coisas, a conceder os
títulos de CDRU aos beneficiários finais do empreendimento habitacional,
sendo esta cessão resolúvel, o que significa que, se não cumprida a fina-
lidade expressa no contrato a que se destina, esta será automaticamente
extinta e o imóvel será revertido ao patrimônio da União.
Destaca-se, aqui, que a Lei nº 11.481/2007 ampliou o rol de situações
em que há faculdade de aplicação da Concessão de Direito Real de Uso
(CDRU), estendendo-a aos terrenos de marinha e explicitando como
possíveis cessionários, além das associações e cooperativas de interesse
público, as comunidades tradicionais.
A mesma Lei alterou a Lei de licitações públicas (nº 8.666/1993), pos-
sibilitando a destinação de bens da União com dispensa de licitação nos
casos de alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito
real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis residenciais
construídos, destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de progra-
mas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social.
A metodologia utilizada, que será adiante detalhada, se mostrou
eficiente e inovadora na simplificação da análise técnica de imóveis da
União. Na ocasião foram disponibilizadas áreas nas capitais do Rio de
Janeiro (RJ), Belém (PA), Porto Alegre (RS), e nas cidades de Caxias do Sul
(RS), Gravataí (RS), Caruaru (PE), Cristalina (GO), Morrinhos (GO), Pirapora
(MG) e Manhuaçu (MG).

1553
3. GTES – GRUPOS DE TRABALhO ESTADUAIS

O êxito do formato estabelecido no GTN, combinado com a forma des-


centralizada de gestão da SPU resultou, no ano seguinte, 2009, na criação
dos Grupos de Trabalho Estaduais - GTEs no âmbito das 27 Superinten-
dências do Patrimônio da União nos estados e Distrito Federal (Portaria
nº 436, de 28/11/2008)6.
Os GTEs foram criados para ampliar o modelo empreendido no GTN,
de identificação de imóveis da União sob a jurisdição da SPU com vocação
para habitação, assim como na descentralização da tomada de decisão
sobre a forma mais indicada para destinação dos imóveis identificados
nos estados, visando dar mais agilidade e apoio efetivo aos projetos geri-
dos por entidades sem fins lucrativos nos empreendimentos de produção
social da moradia.
Os Grupos de Trabalho Estaduais – GTEs foram criados, inicialmente,
para atender aos seguintes objetivos:
propor estratégias para identificação e avaliação dos imóveis da União
com vocação para a provisão habitacional de interesse social e que se
encontram vazios, ociosos, subutilizados;
propor critérios para a transferência dessas áreas para associações e
cooperativas de interesse social, sem fins lucrativos, que operam no setor.
Com a criação dos GTEs se intensificou a atuação da SPU nas parcerias
com as entidades sem fins lucrativos, o que demandou o Órgão Central
a formulação de orientações, criação de fluxograma da destinação e a
sua adaptação à realidade dos programas habitacionais instituídos pelo
Governo Federal.
I. Passo a passo – Fluxo das ações dos GTEs
As Superintendências do Patrimônio da União nos estados e DF indicam
imóveis em áreas urbanizadas e dotadas de infraestrutura urbana, passíveis
de destinação para o desenvolvimento de projetos de empreendimentos
habitacionais de interesse social. Após a apresentação desses imóveis
no âmbito dos GTEs, são selecionados aqueles que, à primeira vista, são
adequados à provisão habitacional.

1554
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O passo seguinte é a realização das vistorias participativas com técnicos


da SPU, CAIxA e representantes do GTEs, por meio das quais são elabora-
dos relatórios simplificados, hábeis a justificar a vocação dos imóveis para
os fins sugeridos. É utilizado um roteiro mínimo e preenchida uma ficha
de vistoria participativa que compreende diagnóstico prévio do imóvel,
regularidade fundiária e legislação incidente.
A partir da seleção dos imóveis que apresentam aptidão para abrigar
empreendimentos habitacionais de interesse social, a SPU realiza a publi-
cação no D.O.U. de Portaria de Declaração de Interesse do Serviço Público
(PDISP) do(s) imóvel(is) selecionado(s) no âmbito do GTE e, por meio deste
instrumento, faz o chamamento público das entidades interessadas em
empreender projeto de HIS nos imóveis reservados.
Os critérios obrigatórios para seleção das entidades são: estar a en-
tidade habilitada no Ministério das Cidades com entidade organizadora
(EO) no âmbito dos programas de habitação de interesse social direcio-
nados ao atendimento da demanda organizada por EO e executadas com
recursos do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) , em conformidade
com a resolução CCFDS nº 194/2012 e nº 291/2012; ter sede na unidade
da federação do GTE. Esses critérios são obrigatórios e determinantes
para pré-classificação das entidades que apresentarem manifestação de
interesse sobre os imóveis reservados. Outros critérios classificatórios
são elencados na Portaria, hábeis a auxiliar no processo seletivo das
entidades e dar transparência ao formato utilizado pela Secretaria do
Patrimônio da União, justificando, inclusive, a dispensa de licitação7
neste tipo de destinação.
Uma vez selecionada a entidade que apresentar melhor proposta e
atender aos critérios classificatórios, a SPU/UF dá publicidade da seleção
no âmbito do GTE/UF, emite Termo de Anuência autorizando a entidade
tomar todas as providências necessárias para dar andamento ao pedido
de financiamento habitacional junto à CAIxA, etapa que compreende
também a elaboração e aprovações dos projetos, vistorias e levantamen-
tos de campo, se comprometendo a destinar o imóvel à entidade até a

1555
contratação do financiamento desta junto à CAIxA.
Enquanto a Entidade elabora o projeto, leva à aprovação da prefeitura e
órgãos ambientais e toma as demais providências necessárias para obter o
financiamento aprovado junto à CAIxA, a SPU promove todas as medidas
necessárias para regularização patrimonial do imóvel, tornando-o livre e
desimpedido para a destinação proposta e assina o contrato de destina-
ção com a entidade, prioritariamente, por meio de Cessão, sob o regime
de Concessão de Direito Real de Uso – CDRU, com cláusulas resolutivas.
Os 26 estados e o Distrito Federal formaram seus GTEs em 2009, sendo
que houve renovação dos seus membros a partir de 2011, quando ocorreu
renovação dos membros do Conselho Nacional das Cidades e dos Con-
selhos Estaduais das Cidades. A lógica de composição dos GTEs é que na
ausência de indicação da sua composição pelos segmentos representados
nos Conselhos Estaduais das Cidades nos estados e DF, os segmentos com
assento no Conselho Nacional das Cidades indicam os seus representan-
tes pra os GTEs. Vale ressaltar que, em meados de 2011, em função da
nova composição do Conselho Nacional das Cidades, o GTN passou por
processo de recomposição de seus representantes.
II. Resultados alcançados:
Após quatro anos de trabalho, mais de 150 imóveis da União foram
vistoriados, dos quais 132 foram selecionados pelos GTEs com o propósito
de serem destinados, prioritariamente, a entidades sem fins lucrativos
para produção social da moradia com recursos dos programas federais
PSM – FNHIS e MCMV Entidades - FDS.
Até julho de 2013, 38 imóveis da União foram destinados. Após a cons-
trução dos empreendimentos habitacionais nesses imóveis a previsão é
que mais de 8.000 famílias serão diretamente beneficiadas nos estados
da BA, DF, GO, PA, PE, PI, RJ, SP e TO.
Os contratos de destinação desses imóveis apresentam cláusulas re-
solutivas condicionando prazos e regras específicas para cumprimento da
finalidade para a qual o imóvel foi destinado. Caso ocorra descumprimento
do acordado, o imóvel será revertido ao patrimônio da União.

1556
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

IMÓVEIS DESTINADOS PARA HIS - ENTIDADES

Além dos processos de destinação concluídos, 66 imóveis da União


estão em processo de destinação às entidades no âmbito dos GTEs, alguns
deles ainda pendentes de regularização patrimonial nos estados do AC,
BA, ES, GO, MG, PB, PE, PI, PR, RJ, RO, SC e SE.

IMÓVEIS EM PROCESSO DE DESTINAÇÃO PARA HIS – ENTIDADES

Estima-se neste momento, com a conclusão dos demais processos


em andamento pelos GTEs, que será possível beneficiar mais de 10.000
famílias, por meio dos programas federais de produção social da moradia
em apoio às entidades sem fins lucrativos8.
Outros 14 imóveis estão sendo vistoriados e podem vir a ser destinados
no próximo ano nos estados do AM, MA, MG, MT, PI, RJ, RN, RR, SE e TO. O
que se espera é que este processo seja contínuo e permanente no âmbito
dos GTEs, ampliando a oferta e a produção habitacional.

1557
4. PRINCIPAIS AVANÇOS:

Os principais avanços identificados decorrentes da ação dos Grupos


de Trabalho estão relacionados a:
Criação de novos procedimentos no âmbito da gestão pública para
destinação de imóveis da União diretamente para entidades sem fins
lucrativos e definição de instrumentos de ação e intervenção, como as
vistorias participativas e a publicação de portarias de declaração de in-
teresse do serviço público com o propósito de reservar a área objeto do
empreendimento habitacional, bem como “gravar” a área de interesse da
União para fins habitacionais.
Democratização da gestão dos imóveis da União por meio da par-
ticipação direta e controle social resultantes do compartilhamento da
tomada de decisões na SPU. Troca de informação sobre as possibilidades
e dificuldades atuais da gestão do patrimônio da União. Disseminação
de informações sobre a situação de regularização do imóvel - do ponto
de vista cadastral, cartorial, físico, urbanístico-ambiental, fundiário - que
condiciona a identificação e destinação dos bens da União.
Gestão compartilhada entre a Administração Pública Federal, repre-
sentantes da sociedade civil, governos locais, entidades de classe, entre
outros atores locais, facilitando o diálogo permanente durante as etapas
da identificação, seleção e destinação de imóveis da União, fomentando
articulações e parcerias entre os diferentes atores envolvidos, visando
superar as dificuldades de recursos internos.
Integração de procedimentos entre SPU/MCidades/CAIxA e definição
de fluxos e cronogramas para destinação de imóveis da União para projetos
de habitação de interesse social, com vista a harmonizar tais procedimen-
tos e compatibilizar os prazos a serem seguidos pelos órgãos federais.
Fortalecimento de novos sujeitos coletivos, pois a destinação de imó-
veis públicos e o repasse de recursos financeiros direto para entidades
privadas sem fins lucrativos no âmbito da política urbana federal é um
procedimento relativamente novo. A prioridade de destinação dos imó-

1558
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

veis da União selecionados pelos GTEs para as entidades privadas sem


fins lucrativos visa ao fortalecimento de tais sujeitos coletivos, ao mesmo
tempo em que dá apoio a implementação de projetos com melhor padrão
arquitetônico, soluções tecnológicas inovadoras e modelo de gestão
diferenciada. Muitas vezes os projetos são discutidos diretamente pelos
beneficiários finais organizados sob o sistema de autogestão ou mediante
parcerias com assistências técnicas e Universidades.
Contribuição, ainda que não na escala pretendida, para diminuição
da exclusão territorial urbana e efetivação da função social da proprie-
dade pública.
Perspectiva de ampliação na destinação de imóveis vagos para uso
a projetos habitacionais de interesse social, efetivando a função social
desses imóveis, evitando que ocorram ocupações irregulares que resultem
em assentamentos precários que futuramente demandarão intervenções
custosas de urbanização e regularização fundiária.

5. DIFICULDADES PARA DESTINAÇÃO

Dentre as dificuldades identificadas para o ato da destinação em si,


destacam-se:
A complexidade de situações relacionadas aos imóveis que vão desde
a sua à identificação física e documental, avaliação da vocação, até a
sua caracterização física, estudo de viabilidade, regularização cadastral
e regularização jurídico-cartorial, ou seja, para tornar um imóvel dispo-
nível muitas vezes se percorre um longo caminho para se chegar à sua
regularização patrimonial. Parte destes procedimentos, necessários para
tornar o imóvel da União livre e desimpedido para ser destinado, depen-
de exclusivamente da Secretaria do Patrimônio da União. É importante
esclarecer que o ato da destinação de um imóvel da União trata-se da
etapa final deste um complexo fluxo de procedimentos administrativos.
Existência de discrepância entre a situação de fato e a situação ideal
que o imóvel da União deve apresentar para ser efetivamente destinado.

1559
Ele deve apresentar inicialmente características físicas, urbanísticas e
ambientais adequadas para atender à finalidade habitacional, estar re-
gistrado no Cartório de Registro de Imóveis e apresentar disponibilidade
cadastral no Sistema Integrado de Administração Patrimonial – SIAPA,
que é o sistema de gestão dos imóveis dominiais do patrimônio da União.
Dificuldades afetas diretamente à SPU, entre as quais: a escolha e reser-
va, por meio dos GTEs, de imóveis inadequados para atender a demanda
habitacional, sendo necessário estabelecer como rotina a capacitação per-
manente da equipe técnica da SPU e padronização das orientações sobre
os procedimentos a serem adotados nas vistorias, bem como na análise
de viabilidade técnica dos imóveis para abrigar empreendimentos de HIS.
Ausência ou imprecisão de informações sobre os imóveis da União e
pouca ou nenhuma oferta de imóveis em alguns estados, devido à ine-
ficiência e desatualização das informações nos Sistemas de Gestão dos
Imóveis da União e nos processos administrativos.
Morosidade e dificuldades técnicas para realização de trabalhos de
campo, de elaboração de peças técnicas, como memorais descritivos, des-
membramentos de áreas, etc.; morosidade dos procedimentos de cartório
e dificuldades internas do órgão na definição de prioridades e estratégias
para regularização patrimonial dos imóveis.
Dificuldade de identificação de imóveis que não estão ociosos nos
Sistemas de Gestão de Imóveis da União, mas de fato estão vagos para
uso, sub- utilizados ou utilizados por quem não tem registro nenhum na
SPU, de imóveis com inscrições de ocupação inadimplentes, de imóveis
da ex RFFSA e de outros órgãos extintos, etc. ou ainda, de imóveis que
não estão sendo utilizados por entes públicos (casos de imóveis entregues
às forças armadas ou a órgãos da administração pública federal) e falta
de estratégia que dê agilidade aos procedimentos para cancelamento de
ocupantes existentes.
Dificuldades para acessar elementos técnicos (como plantas aerofoto-
gramétricas, levantamentos topográficos, laudos de contaminação, entre
outros) necessários para caracterizar imóveis e que poderiam ser utilizados

1560
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

para subsidiar análises de viabilidade desses imóveis para projetos de


HIS, tendo em vista a restrição orçamentária e o tempo que se leva para
a contratação de tais serviços.

6. DIFICULDADES IDENTIFICADAS
qUE TRANSCENDEM à ESFERA DA SPU

Falta de pactuação prévia entre os agentes locais promotores da po-


lítica habitacional (poder municipal, estadual, as Gerências da CAIxA,
entre outros) que dificultam e impedem a efetivação de empreendimentos
de HIS em áreas da União promovidos por entidades sem fins lucrativos;
impasses enfrentados pelas entidades quando não é possível conciliar a
destinação de áreas da União com a política local de habitação, quando a
Prefeitura não tem interesse em viabilizar determinados empreendimentos
de HIS e as entidades se deparam com dificuldades para aprovar projetos
e obterem os licenciamentos exigidos.
Morosidade para aprovação dos projetos e efetivação dos contratos de
financiamentos na CAIxA, por falta de padronização dos procedimentos
a serem adotados, ou falta de conhecimento técnico.

7. CONCLUSÃO

Esse trabalho partiu de questionamentos que tem sido feitos acerca


das atividades do GTN e dos GTEs. A institucionalização do modelo de
destinação vem sendo aprimorada ao longo desses 6 anos de existência
dos grupos. Anteriormente não havia parâmetro que pudesse subsidiar a
ação, tanto por falta de previsão legal, quanto pela ausência de demanda
ou de programas habitacionais geridos por entidades. Por sua vez estes
são muito novos e estão em contínuo processo de reformulação ao longo
desses anos. Sua origem vem com a criação do Ministério das Cidades
e as próprias entidades foram aperfeiçoando as suas ações e atividades.
Apesar da institucionalização do GTN e GTEs, pretende-se elaborar,

1561
a partir desta análise, uma orientação normativa, para que sirva como
ferramenta de trabalho no âmbito das Superintendências do Patrimônio
da União nos estados e DF. Além disso, há necessidade de melhorar a
fiscalização dos contratos, para que efetivamente seja cumprida a função
social da propriedade pública. Não é papel do órgão do Patrimônio da
União fiscalizar a indicação das famílias pelas entidades, mas sim fazer
cumprir a função social do patrimônio imobiliário da União, em apoio às
políticas públicas prioritárias do Governo Federal.
No caso, a sua atribuição é dar efetividade na destinação de áreas da
União para empreendimentos geridos por entidades sem fins lucrativos,
tanto para ampliação da escala de destinações de imóveis da União,
quanto para ampliar a oferta da produção social da moradia em imóveis
públicos federais. Para tanto, é fundamental definir estratégias para
enfrentamento das dificuldades levantadas acima, visando ao aperfeiço-
amento dos procedimentos internos à SPU, da relação com as entidades
organizadoras (EO) habilitadas pelo Ministério das Cidades, bem como
entre os parceiros da administração pública federal e local, visando à
construção de uma pactuação federativa sólida, e estabelecimento de
compromissos que sejam efetivamente cumpridos.

BIBLIOGRAFIA

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gulares, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2004
GOUVêA CORREA, Ricardo de, Direito à Terra e à Habitação, Vol II, Uma Experiência
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FERNANDES, D. M. RIBEIRO, V.L. A questão habitacional no Brasil: da criação do
BNH ao programa Minha casa Minha Vida. In: ENCONTRO NACIONAL DA AMPUR,
14., 2011, Rio de Janeiro, Anais, Rio de Janeiro: Ampur, 2011.

1562
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

NOTAS

1 Advogada, com especialização em Direitos Difusos e Coletivos, Ministério do Planejamento, Secretaria do


Patrimônio da União, Coordenadora Geral de Habitação e Regularização Fundiária, crisbenedetto@gmail.com.
A autora agradece a colaboração de Fernanda Accioly Moreira.
2 Brasil, Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação, 2011.
3 Brasil, IPEA, Nota Técnica, Estimativas do déficit habitacional brasileiro (2007-2011) por municípios (2010)
4 DOU de 27.03.2008, pg 62 e 63, seção I
5 DOU, Portaria 388, de 22/10/2008, seção I, pg 94
6 DOU, de 02/12/2008, seção I, pg 83
7 Lei 8.666/93, art. 17, I, f.
8 As informações apresentadas abaixo estão baseadas em dados de julho de 2013. Esclarecemos que há
possibilidade de haver processos de destinação iniciados ou em andamento nas SPUs dos quais ainda não
tivemos ciência e, por conseqüência não entraram nessa contabilidade.

1563
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Novas formas de
participação popular

Jacqueline Custódio1

INTRODUÇÃO

Estamos vivenciando um período de intensas transformações nas


mais variadas esferas de nossa existência. Tais mudanças refletem-se em
nosso cotidiano quer como indivíduo, quer como segmentos da sociedade
nas relações com poder estatal e, mesmo, entre os variados grupos que
compõem nossa estrutura social. A cidade, como uma teia onde concre-
tamente se dão tais relações, é palco de embates de forças, muitas vezes
antagônicas, que, como resultado, a modelam segundo os conceitos
ideológicos da parte vitoriosa.
Contudo, esse modelo de construção da cidade vem, também ele,
sofrendo transformações decorrentes do empoderamento da população,
trazido de forma concreta pela legislação brasileira, a partir da própria
Constituição Federal, e pelas novas ferramentas e formas de organização
da população. As redes sociais, hoje, tem um papel preponderante dentro
dos movimentos sociais. Aliado a isso, o acesso quase ilimitado às infor-
mações fundamentam uma nova forma de manifestação de cidadania,
observada em muitas das cidades brasileiras.
A cidade de Porto Alegre, berço do Orçamento Participativo, pro-
posto no final dos anos 1980, vem experimentando todas as formas de
participação popular na sua gestão, desde as mais tradicionais, como as
trazidas pelo Estatuto da Cidade, até as mais contemporâneas, como os
movimentos sociais horizontais, formados a partir das redes sociais. To-
dos esses elementos contribuem de diferentes formas para que a cidade
seja concebida de modo a concretizar um direito social: o direito à cidade

1565
democrática, justa, equitativa e sustentável2. Assim, passa-se a analisar
esses instrumentos de participação, identificando quais são mais efetivos,
de forma a ampliar e sistematizar seus efeitos.

1 CIDADE: CONCEITO E DIRETRIZES


PARA A POLÍTICA URBANA

Para situar melhor a discussão, buscou-se uma das conceituações


de cidade, entre as inúmeras existentes. Tomou-se o conceito de José
Afonso da Silva, concebido do ponto de vista sociológico e elaborado a
partir de três concepções: a demográfica, a econômica e a de sistemas.
Segundo o autor, as duas primeiras não têm força para definir as cidades
brasileiras, por serem muito restritas, atendo-se a dimensões e densidade
populacional ou a fatores econômicos que a reduzem à “localidade de
mercado” (2008, p.24-25).
Já a concepção que se utiliza de sistemas é mais compatível com nossa
realidade, posto que se fundamenta nas relações entre diversas esferas,
como a administrativa, a comercial, a industrial e a sociocultural. Ainda
para SILVA,

Cidade, no Brasil, é um núcleo urbano qualificado por um conjunto


de sistemas político-administrativo, econômico não-agrícola,
familiar e simbólico como sede do governo municipal, qualquer
que seja a sua população. A característica marcante da cidade no
Brasil consiste no fato de ser um núcleo urbano, sede do governo
municipal. (2008, p.25-26)

No Brasil, o município recebeu status de ente de terceiro grau (SAN-


TIN e MATTIA, 2008, p. 188) na Federação brasileira com a Constituição
Federal de 1988, atribuindo-lhe autonomia política, administrativa e
financeira. Com isso, o município tem o poder de se autogerir, determi-
nando como estruturará seu território e elaborando diretrizes de desen-
volvimento urbano. Mas, para executar essa atribuição, o Poder Público
municipal, conforme determinação constitucional, deverá se guiar por
disposições que se encontram no ordenamento infraconstitucional, bus-

1566
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

cando como objetivos, de acordo com art. 182 da CRFB/88, “ordenar o


pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-
-estar de seus habitantes”.
A regulamentação do preceito constitucional se deu com a edição
da Lei 10.257, de 10-07-2001, conhecida com Estatuto da Cidade, que
veio a estabelecer as diretrizes gerais da política urbana. Nela, podemos
observar a vocação democrática e social (PIRES e COSTA, 2012, p.255),
princípios decorrentes da nossa Carta Magna, já em seu artigo inaugural.
No parágrafo primeiro do referido artigo, percebe-se tal submissão, na
medida em que essa lei “estabelece normas de ordem pública e interesse
social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coleti-
vo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio
ambiental”. E para garantir que esses objetivos sejam alcançados, a lei
enumera vários instrumentos para implementar a gestão democrática,
como será demonstrado a seguir.

2 PARTICIPAÇÃO POPULAR: NA LEI E NA PRáTICA

A gestão democrática da cidade pressupõe, necessariamente, a par-


ticipação de seus cidadãos nas decisões que vão conformar o local em
que vivem. E essa participação, além de ser garantia, também pode ser
considerado um direito fundamental.
No aprofundado estudo sobre os direitos fundamentais, Sarlet (2009,
p.50-51) discorre sobre suas dimensões, referindo haver uma tendência
a reconhecer a existência de um direito de quarta dimensão. No direito
pátrio, Paulo Bonavides entende que tais direitos decorram da globalização
dos direitos fundamentais, apontando para uma fase de institucionaliza-
ção do Estado Social (SARLET, 2009, p.50), universalizando-os no campo
institucional (BONAVIDES, 2008, p.571). Segundo Paulo Bonavides,

São direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à


informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretiza-
ção da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima
universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano
de todas as relações de convivência (2008,p.571).

1567
Bonavides vai além, quando argumenta que a democracia positivada,
enquanto direito de quarta geração há de ser, necessariamente, uma
democracia direta, só tornada possível através dos avanços tecnológicos
de comunicação, acesso à informação correta e às aberturas pluralistas
do sistema (2008, p.571).
Assim sendo, a participação popular já está consagrada na doutrina
e na legislação como direito e determinação a ser seguida pelo poder
público, aqui em especial, pelo poder público municipal, já que se trata
da gestão democrática da cidade. Legalmente, o Estatuto da Cidade enu-
mera, de forma exemplificativa, os instrumentos capazes de implementar
a participação da população na gestão e nas políticas urbanas, conforme
será analisado mais adiante.
Tais meios, não obstante serem de fundamental importância, muitas
vezes, não têm sido suficientes para dar efetividade às decisões populares
(FERNANDES, 2008), ocorrendo, inclusive, resultado diverso, ao legitimar
propósito contrário à vontade dos cidadãos. Ainda assim, são instrumentos
legais e devem ser bem conhecidos para sua perfeita utilização.
2.1 Observações sobre os instrumentos de gestão democrática
Sem a intenção de esgotar a análise de todos os meios de garantir a
gestão democrática relacionados no Estatuto da Cidade, o texto limitou-
-se a formular algumas observações sobre alguns deles, em especial sob
a perspectiva da experiência na cidade de Porto Alegre.
Na cidade do Orçamento Participativo (OP), muitas mudanças ocorre-
ram no que diz respeito à participação popular. Com a troca de partido no
governo municipal, a tendência foi esvaziar de certa forma essa instância,
sem, contudo, eliminá-la, posto que tal iniciativa foi consagrada mun-
dialmente, tendo sido selecionado pela ONU como uma das 40 melhores
experiências de gestão local em 1995 (BOKLAGE, 2011, p.241). Hoje se tem
uma representação mais burocrática, com uma inclinação à partidarização
das lideranças, ditas, comunitárias3.
Evidentemente, a participação popular não ficou restrita ao OP, visto
que está prevista, de forma mais ampla, no Estatuto da Cidade. Já nas

1568
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

diretrizes para a elaboração de plano diretor, no art. 40, § 4º, I, é possível


perceber a necessidade de audiências públicas e debates com a população
e setores representativos da sociedade, tanto para sua concepção quanto
para sua fiscalização. Para sua melhor instrumentalização, a resolução
25 do Conselho Nacional das Cidades, detalha o processo, tornando a
participação da comunidade prévia e obrigatória (OLIVEIRA FILHO e
VASCONCELLOS, 2011, p. 214).
Ainda, no capítulo dedicado à gestão democrática da cidade, a referida
lei elenca os instrumentos para implementá-la:

Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão


ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:
I – órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional,
estadual e municipal;
II – debates, audiências e consultas públicas;
III – conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis
nacional, estadual e municipal;
IV – iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano;

A cidade de Porto Alegre, obedecendo à determinação do art. 41, do


Estatuto da Cidade, elaborou seu plano diretor e, a partir dele, constituiu
o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CDMUA).
Tem realizados audiências públicas, sendo exemplo recente os debates
sobre o novo Código de Convivência Urbana (atualização do Código de
Posturas, Lei Complementar 12 de 7 de janeiro de 1975), além de promover
conferências e seminários sobre assuntos de interesse urbano, como os
Congressos da Cidade, entre outras iniciativas que se pretendem incenti-
vadoras da participação popular.
Contudo, em que pese existirem essas instâncias, a efetiva intervenção
da população nas políticas urbanas e consequente influência na confor-
mação da cidade está longe de ser uma realidade. Nas palavras de João
Telmo de Oliveira Filho e Carla P. Vasconcellos, “disponibilizar espaços
de participação é fácil, o difícil é garantir a qualidade desta participação,
em razão dos interesses envolvidos” (2011, p.217). Caso emblemático
ocorreu na revisão do Plano Diretor de Porto Alegre em 2007, quando o

1569
Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul solicitou a anulação de
uma audiência pública através de uma ação civil pública, por encontrar
irregularidades na realização das reuniões, em razão da cooptação de
participantes, através da distribuição de alimentos por empresas privadas,
e restrição da participação de entidades4.
Mesmo em espaços em que se supõe a existência de um poder de de-
cisão por parte da população, como é o caso do CDMUA, não é o que se
observa na prática. A composição deste conselho é de 25 membros, sendo
oito representantes de entidades governamentais que tratam de matéria
afim (um representante em nível federal, um, estadual e seis, municipais),
oito representantes de entidades não governamentais, constituídas por
entidades de classe e afins ao planejamento urbano (como IAB, Sindicato
da Construção Civil, OAB/RS, entre outras) e oito representantes das Regi-
ões de Gestão do Planejamento (membros das comunidades, eleitos pelo
voto direto dentro de cada região). Por fim, o titular do órgão responsável
pelo gerenciamento do Sistema Municipal de Gestão do Planejamento
(SMGP), na qualidade de Presidente do conselho5. Essa composição, por
si só, já traz certo desequilíbrio de forças, pois coloca a comunidade em
desvantagem numérica em relação aos representantes do poder público.
Além disso, em termos de representação legislativa, os interesses de
grupos com maior poder econômico, como construtoras, incorporadoras
e imobiliárias, têm sido defendidos, muitas vezes, em decisões contrárias
ao interesse manifestado pela população. Constata-se esse poder pela
nominata de doadores dos vereadores que tiveram as campanhas mais
caras. Segundo notícia veiculada em jornal local, “os números revelam
ainda que incorporadoras e construtoras integram, isoladamente, o setor
que mais abriu os cofres para candidatos que lideram o ranking” 6.
Somada aos fatores já referidos, encontra-se a exigência de conheci-
mento, muitas vezes técnico e específico, para instrumentalizar a participa-
ção de representantes da comunidade nas discussões e decisões referentes
ao planejamento urbano. Também nesse sentido é possível detectar um
desequilíbrio de forças entre comunidade e administração pública, uma

1570
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

vez que o domínio da informação é determinante para fundamentar argu-


mentos e propor soluções viáveis dentro das possibilidades fáticas e legais.
Por fim, constitui-se elemento importante a motivação da população
para participar dos processos políticos de construção social. Para que um
cidadão comum participe das discussões acerca de temas relativos ao seu
bairro, por exemplo, ele deverá ser bastante atuante, dispor de tempo e
estar próximo ao representante da região, para estar informado sobre datas
de reuniões, uma vez que a divulgação é, na maioria das vezes, precária
(BOKLAGE, 2011, p.248).
Em relação espaços legalmente constituídos para que ocorra a parti-
cipação popular, tem se visto um descrédito decorrente da falta de con-
fiança dos representantes quanto ao compromisso do poder público com
a deliberação dos conselhos (BOKLAGE, 2011, p.251). Associado a esse
fato, identificam-se dificuldades em sensibilizar e mobilizar grandes con-
tingentes de pessoas desorganizadas, dispersas, indiferentes ou ignorantes
quanto ao processo participativo (BOKLAGE, 2011, p.248).
Observa-se que ainda não existe uma cultura de participação e uma
educação efetiva para a cidadania em nosso país. O Estatuto da Cidade
trouxe elementos de democracia representativa e participativa para apli-
cação na gestão democrática do município, possibilitando a interação de
pareceres técnicos com anseios populares, estimulando o caráter peda-
gógico da participação do cidadão nesses espaços (SANTINI e MATTIA,
2008, p.197).

3 NOVAS FORMAS DE PARTICIPAÇÃO

As transformações pelas quais tem passado nosso planeta nos últimos


anos são intensas e extraordinárias. O monopólio econômico de grandes
conglomerados comandando determinados setores em escala mundial, a
degradação acelerada do meio ambiente em nível global e a difusão ins-
tantânea de informações em formas alternativas de comunição constituem
um imagem parcial, mas já reveladora, de nosso tempo.

1571
3.1 Características dos novos movimentos sociais

Manuel Castells7, já em 1996, propôs o conceito de sociedade em rede


para caracterizar a estrutura social emergente na era da informação, subs-
tituindo gradualmente a sociedade da era industrial. Hoje, a sociedade em
rede é global, mas com características específicas de cada país, de acordo
com suas peculiaridades decorrentes de sua cultura e instituições (MO-
REIRA, 2013, p.3). Castells vai além em suas considerações, discutindo
o impacto da estrutura em rede das sociedades em suas configurações
políticas, direcionando seu foco, em especial, aos movimentos sociais
(BITTENCOURT, 2013, p.2).
Muitos dos movimentos que têm sido observados em Porto Alegre, e
possivelmente por outras cidades brasileiras, poderiam ser classificados
como micromovimentos ou movimentos de base, que, segundo D.L. Sheth
(2002, p. 127), caracterizam-se como

grupos constituídos por pessoas que vivem em diferentes áreas


geográficas e provêm de meios socioculturais diversos, mas que
sofrem a situação comum de diminuição de poder causada pelo
desenvolvimento errado e pelas formas contemporâneas de
governo que são arrogantemente distantes, ainda que suficien-
temente próximas para
fazerem sentir sua face coercitiva.

Esses movimentos criam um novo espaço de discussão e de tomada


de decisão pelas comunidades em assuntos que afetam diretamente seu
cotidiano, concebendo a democracia participativa como uma política
paralela de intervenção social (SHETH, 2002, p.127).
A partir da análise dos movimentos na última década, Castells (2012)
identifica um número de características comuns dentro desta nova forma
de relação encontrada no século xxI e que serão enumeradas a seguir,
pela imediata identificação que têm com a mobilização popular a qual
temos assistido nos últimos meses. A primeira referida por Castells (2012,
p.221) é que os movimentos sociais utilizam múltiplas formas de conexão.
O uso da internet e de celulares é essencial, mas além das conexões que

1572
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

se estabelecem online e offline, existem redes sociais pré-constituídas,


bem como formadas durante as ações dos movimentos.
Uma segunda característica é que, apesar de os movimentos usu-
almente iniciarem nas redes sociais da internet, eles só se tornam um
movimento quando ocupam o espaço urbano. Esse espaço de ocupação
se dá em lugares ou prédios simbólicos e, com a possibilidade de intera-
ção entre os participantes através de acesso à internet, dá origem a um
terceiro espaço, híbrido de espaço virtual e espaço urbano, que Castells
(2012, p.222) denomina de espaço de autonomia, uma nova forma espacial
de movimentos sociais em rede.
Outra característica apontada por ele é que os movimentos são locais
e globais ao mesmo tempo (Castells, 2012, p.222). Eles se iniciam por
questões locais, em contextos específicos, construindo seu espaço público
através da ocupação urbana e da articulação das redes da internet. Mas
também são globais, pois são conectados ao mundo, aprendendo com
outras experiências e, até mesmo, inspirados nessas, de forma a propiciar
um maior engajamento em suas próprias mobilizações.
Segundo Castells (2012, p.224), em termos de gênese, esses movimen-
tos são largamente espontâneos em sua origem, usualmente disparados
por uma centelha de indignação, relacionada a um evento específico ou
ao somatório de insatisfações com relação aos governantes. Em ambos
os casos, são originados de um chamado à ação, criando uma comuni-
dade de insurgentes. A origem de tal chamado é menos relevante que o
impacto da mensagem nos múltiplos e indeterminados receptores, que
se conectam emocionalmente com a forma e o conteúdo da mensagem.
Destaca-se que as mensagens que contêm imagens têm um potencial
maior de mobilização.
Para Castells (2012, p.224), os movimentos são virais, seguindo a lógica
das redes de internet. Não só pela característica da difusão das mensagens,
mas pelo efeito dos movimentos surgindo em diversos locais. Assistir e
tomar conhecimento dos protestos em outros lugares, mesmo que em
contextos distantes e em diferentes culturas, inspira a mobilização, porque
acena com a esperança da possibilidade de mudança.

1573
A transição da indignação para a esperança é acompanhado de deli-
beração no espaço de autonomia, que ocorre através de assembleias ou
comitês designados em assembleias. Isso se justifica pela já comentada
ausência de líderes e pelo sentimento de descrédito na representação
política vigente e conhecida. No entendimento de Castells (2012, p.225),
a questão chave para o movimento é a união, sentimento através do qual
as pessoas vencem o medo e descobrem a esperança. A união é ponto
de partida e fonte de empoderamento, que se estabelece numa rede ho-
rizontal, sustentada pela cooperação e solidariedade, prescindindo de
lideranças formais.
Além disso, conclui Castells (2012, p.226), tais movimentos são alta-
mente autorreflexivos, questionando-se indivíduo e coletivo, raramente
programáticos, não violentos e políticos em sentido amplo. Eles projetam
uma nova utopia de democracia em rede, baseada nas comunidades lo-
cal e virtual em interação. Acrescenta, ainda, que utopias não são meras
fantasias. A maioria das ideologias políticas modernas têm suas raízes
em sistema políticos originados de utopias (Castells, 2012, p.228). O que
esses movimentos estão propondo em suas práticas é uma nova utopia no
cerne da cultura da sociedade em rede: a utopia da autonomia do sujeito
em face às instituições da sociedade.

3.2 Aplicação das novas formas de


participação na construção urbana

Como tem se discutido ao longo deste artigo, paralelamente aos ins-


trumentos tradicionais de participação popular, definidos na Constituição
Federal e demais leis, emergem novas formas de participação, diretas
e desvinculadas da estrutura estatal. Com acesso a inúmeras fontes de
informação e possibilidade de comunicação instantânea, grupos sociais
já estabelecidos, como organizações não governamentais (ONG) e as-
sociações de moradores, e outros que se estabelecem nas redes sociais
a partir de uma causa específica têm conseguido se mobilizar, obtendo
alguns resultados e interferindo na construção da cidade.

1574
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A interferência se dá através de ações diretas, resolvendo causas es-


pecíficas, episódicas, ou promovendo uma ideia, sem nenhuma deman-
da direta ao poder público. No primeiro caso, podem ser eventos cujo
objetivo primário é bem concreto, como limpar um determinado local,
utilizar algum espaço público abandonado ou preservar uma área verde.
Mas também podem ter, como no segundo caso, o propósito de chamar
a atenção das pessoas e/ou da administração pública sobre demandas
sociais ou para incentivar a convivência e cidadania. São conhecidos os
casos de intervenção urbana, como “Aqui bate um coração”8, “Projeto
Vizinhança”9 e “Raiz Urbana”10. Em comum, um grupo de cidadãos com
o objetivo de (re)construir o espaço convivência urbana.
Além disso, foram criados sites, chamados de plataformas digitais, em
que há participação da administração pública direta ou indiretamente.
Nessas plataformas, a população é convidada a participar, sugerindo me-
lhorias e discutindo problemas. PortoAlegre.cc é um exemplo de realização
conjunta da sociedade organizada e da prefeitura de Porto Alegre. Segundo
a apresentação do site11, é um espaço de colaboração cidadã, onde se pode
conhecer, debater, inspirar e transformar a própria cidade. Existe, também,
em nível estadual, o chamado Gabinete Digital12, totalmente gerido pelo
Governo do Estado, cujo objetivo é incorporar novas ferramentas de par-
ticipação, oferecendo diferentes oportunidades ao cidadão de influenciar
a gestão pública e exercer maior controle social sobre o Estado.
Essas são formas de aprimorar a participação política, a gestão de
conhecimento e a comunicação horizontal entre representantes e repre-
sentados, constituindo uma espécie de “democracia eletrônica”. É um
importante instrumento de representação, decisão, controle e fiscalização,
ainda que privilegie uma camada da população que tem acesso à infor-
mação e aos meios eletrônicos (BERARDI, 2008, p.173).
A opção pela atuação direta da sociedade tem sido a resposta ao des-
crédito nas instituições aptas a permitir a participação popular no que
diz respeito à burocracia e à desigualdade de forças. Concordando com
Castells (2012), a insatisfação tem sido a gênese desses movimentos. Com

1575
a possibilidade da difusão dessa insatisfação através da potente ferramenta
que é a internet, torna-se palpável a identificação entre os participantes e
o sentimento de união transforma-se em fonte de empoderamento (Cas-
tells, 2012, p.225). A cidade, como base sobre a qual se desenvolve a vida
urbana (NYGAARD, 2010, p.49), é o palco onde tais ações efetivamente
produzem efeitos, retroalimentando a cadeia de atos voltados à construção
da cidade dentro da perspectiva de cidadania.
Os grupos se mobilizam entorno de uma causa, divulgam-na através
de redes sociais, ampliando seu campo de atuação, e determinam um dia
e local para desenvolver a ação proposta. Conforme a natureza da cau-
sa, haverá ou não uma interação com a administração pública. Existem
causas que se propõem a incentivar a cidadania e a convivência urbana,
promovendo a integração entre a população e estimulando condutas de
urbanidade. São eventos de formação de participação, sem demandas
diretas ao poder público, que disseminam o pensamento coletivo e con-
sequente preparação dessa comunidade como agente de transformação,
atuando diretamente nos espaços de participação e exercendo o direito/
dever de fiscalizar.
Um segundo tipo de causa é aquele em que existe um problema a res-
peito do qual o poder público encontra-se omisso ou contrário ao anseio
da população. São ações que necessitam da atuação concreta da adminis-
tração municipal, no sentido de fazer ou de deixar de fazer determinada
atividade, como conservação de um espaço público ou não edificação em
local representativo para determinada comunidade, como, por exemplo,
um parque. Tais ações podem envolver atividades colaborativas, onde o
grupo desempenha a função que deveria ser da administração pública,
com intuito de chamar a atenção para o assunto, exigindo uma solução
definitiva para o problema. Também, podem apenas ser mobilizações no
sentido de pressionar o poder público para que suas decisões estejam de
acordo com as demandas populares sobre questões pontuais.
Quando nem os canais institucionalizados de participação, nem as
formas alternativas de intervenção mostram-se capazes de fazer valer os

1576
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

anseios da população, essa tem se utilizado da via judicial para questionar


as decisões da administração. Os questionamentos podem ser levados ao
Ministério Público, que através de suas promotorias especializadas instau-
ram o procedimento de inquérito civil, a fim de verificar irregularidades
dos atos. Desse inquérito civil, pode resultar uma ação civil pública ou um
termo de ajustamento de conduta. Independente disso, qualquer cidadão,
através de ação popular (Lei Federal 4.717 de 29 de junho de 1965), pode
questionar judicialmente os atos do poder público que julgar lesivos ao
patrimônio público.

CONCLUSÃO

Com a instituição da nossa atual Constituição Federal, que tem com


referência a cidadania, a participação popular ganhou destaque e proteção
na construção das cidades brasileiras. O direito à cidade, que congrega o
direito urbanístico e o direito ambiental, encontra acolhida constitucional
no art. 182, que prevê como objetivo o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes.
Estabelecida legalmente, a participação da população nas decisões
que conformarão a cidade não tem se dado de forma efetiva. Agravado
pela crise conjuntural pela qual passa a democracia representativa, as
instituições não têm disponibilizado canais capazes de dar conta das
demandas populares, muitas vezes cedendo a interesses econômicos
de determinados grupos. A insatisfação da população, aliada às novas
tecnologias e acesso quase irrestrito às informações, tem criado espaços
alternativos de participação.
Essa nova forma de participação que vem se estabelecendo tem como
características a autonomia e a inexistência de liderança. A participação
é direta e espontânea, tendo como objetivo uma causa específica. As
decisões são tomadas em grupo, através das redes sociais ou de forma
presencial, e se exteriorizam através das manifestações trazidas aos espa-
ços públicos. Os resultados das ações podem ser a concretização de uma

1577
demanda por parte do poder público ou, ainda, a formação de consciência
social em relação à cidade e aos espaços de convivência.
A alternativa de democracia participativa não prescinde do modelo
representativo. São, isso sim, formas complementares de participação po-
pular. Da mesma forma, a participação nas instâncias postas pelo Estatuto
da Cidade não é incompatível com a participação direta e pontual, oriunda
da nova formatação da sociedade. E, com o acesso cada vez maior da
população às novas tecnologias, a tendência é que essa participação direta
assuma maior importância no cenário decisório. É crescente a percepção
que o Estado Democrático começa a ser dependente da tecnologia, pois
essa amplifica o alcance da informação e facilita o acesso do cidadão aos
seus representantes.
Os resultados que vêm sendo obtidos até o momento, tendo como base
alguns movimentos ocorridos em Porto Alegre, são díspares. Algumas vi-
tórias importantes, algumas derrotas marcantes, mas, indiscutivelmente,
um ganho imenso no que diz respeito à construção da cidadania. E as
atuais mobilizações que perpassam o país demonstram que a população
já começa a assumir uma postura ativa na defesa e exercício de seus
direitos. Resta saber se essas formas de mobilização vão conseguir dar
respostas satisfatórias para as questões relativas à construção de nossos
centros urbanos.

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NOTAS

1 Graduada em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público RS, delegada eleita para o Fórum
da Região de Planejamento 6 do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental – Prefeitura de
Porto Alegre. Email: jacquecustodio@gmail.com.
2 Conforme a Carta Mundial pelo direito à cidade. Disponível em http://www.forumreformaurbana.org.
br/index.php/documentos-do-fnru/41-cartas-e-manifestos/133-carta-mundial-pelo-direito-a-cidade.html.
Acesso em 08.06.2013.
3 Concorda com essa percepção Marco Aurélio Costa apud OLIVEIRA FILHO (2011, p.216), quando tece
comentário sobre experiência de institucionalização da participação popular: “As experiências brasileiras de
planejamento participativo a nível local têm se institucionalizado mais por exigências das outras instâncias
governamentais (obrigações decorrentes das leis federais e do repasse de recursos de órgão governamentais),
do que por iniciativas próprias, ocasionando um comportamento formalista e o que poderíamos denominar
prefeiturização de muitos conselhos.”
4 Notícia completa disponível no site do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul: http://www.mp.rs.
gov.br/imprensa/noticias/id11204.htm?impressao=1. Acesso em 13.06.2013.
5 Art. 40 do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto Alegre (PPDUA).
6 Texto do artigo As 10 campanhas mais caras para vereador na eleição de Porto Alegre. Disponível em http://
zerohora.clicrbs.com.br/rs/politica/eleicoes-2012/noticia/2012/09/as-10-campanhas-mais-caras-para-
-vereador-na-eleicao-de-porto-alegre-3892958.html. Acesso em 23.06.2013.
7 Manuel Castells é professor de sociologia e diretor do Instituto Interdisciplinar de Internet na Universidade

1580
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Aberta da Catalunha (UOC), em Barcelona. Notabilizou-se por ser um dos principais pensadores de influência
da Tecnologia da Informação na sociedade. Entretanto, em relação à concepção de modelos de planejamento
urbano, ao lado de Jorgi Borja, filia-se ao do planejamento estratégico, cujo case de sucesso é a cidade de Bar-
celona, tendo produzido vários trabalhos difundindo as virtudes desse modelo. E nesse sentido, recebe forte
crítica de alguns autores, como Carlos B. Vainer, para o qual tal estratégia de marketing urbano transforma
a cidade em mercadoria a ser vendida, tendo na perspectiva econômica seu alicerce. Mas em função de sua
inquestionável influência teórica para a reflexão sobre as cidades contemporâneas e, acima de tudo, por es-
tudar o papel das novas tecnologias de informação e comunicação nas transformações econômicas, políticas
e sociais do mundo, não poderia deixar de ser citado.
8 Página do movimento disponível em: <https://www.facebook.com/AquiBateUmCoracaoPortoAlegre>.
Acesso em 22.06.2013.
9 Página do movimento disponível em: <https://www.facebook.com/ProjetoVizinhanca?fref=ts>. Acesso em
22.06.2013.
10 Página do movimento disponível em:<https://www.facebook.com/raizurbanars?fref=ts>. Acesso em
22.06.2013.
11 Página disponível em:<http://portoalegre.cc/>. Acesso em 22.06.2013.
12 O Site pode ser visitado em: <http://gabinetedigital.rs.gov.br/>. Acesso em 22.06.2013.

1581
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Orçamento participativo:
participação popular efetiva
no planejamento urbano

Ana Beatriz Oliveira Reis1


Frederico Augusto d’Avila Riani2

O qUE é A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA?

Para as pretensões deste estudo, faz-se necessário destacar o que é


a Democracia Participativa a partir da concepção de seus autores. Mui-
tos poderão considerar o termo “participativo” redundante uma vez que,
de acordo com o senso comum, o regime democrático já pressupõe a
participação da população na gestão e no planejamento das atividades
do Estado. Na democracia, o povo é quem detém o poder político e não
os seus representantes eleitos, conforme a Constituição Federal de 1988
expressa no seu artigo 1º. Logo, o processo eleitoral seria a manifestação
concreta dessa participaçãoem que o povo exerceria seu poder político
de maneira a influenciaras decisões do Estado. Mas não somente a parti-
cipação no processo eleitoral designa uma democracia participativa. Ela
vai muito além, exigindo a participação da sociedade na gestão cotidiana
dos interesses públicos.
É fato que não é tarefa simples se estabelecer uma definição de de-
mocracia participativa que atenda a todas as concepções ideológicas. O
cientista político Robert A. Dahl, diante da dificuldade de estabelecer uma
definição sobre o que é a democracia, elege alguns critérios essenciais
para se ter um processo democrático, dentre eles a Participação Efetiva.
De acordo com esse critério,

antes de ser adotada uma política pela associação, todos os


membros devem ter oportunidades iguais e efetivas para fazer
os outros membros conhecerem
suas opiniões sobre qual deveria ser esta política3.

1583
Contudo, a verdadeira essência da democracia, que consiste na “autori-
dade da cidadania popular e soberana exercitada em termos decisórios de
verdadeira instância” 4não poderá ser encontrada em muitos dos modelos
atuais de exercício do poder democrático.
Na tentativa de construir uma definição de democracia participativa,
pode-se afirmar que ela não coincide com a noção de democracia re-
presentativa, que surge como uma possível solução à impossibilidade
fática do exercício da democracia direta por cada indivíduo. No modelo
representativo, a população, por meio de um processo eleitoral, escolhe
seus representantes, que irão exercer diretamente o poder democrático. O
pressuposto da democracia representativa é a ideia de que “esses repre-
sentantes eleitos serão fiéis aos interesses dos cidadãos durante o período
em que exercerem o mandato eletivo”.5
No entanto, isto não é o que realmente acontece. As limitações desse
modelo podem ser destacadas no próprio processo eleitoral. Os cidadãos
que pretenderem serem representantes da população no exercício do poder
democrático não possuem condições de igualdade na disputa eleitoral. É
discrepante a desigualdade entre as campanhas dos grandes partidos e
aqueles que não possuem recursos suficientes para competir em condições
de igualdade no processo eleitoral. Não há no sistema político brasileiro,
por exemplo, mecanismos que realmente proporcionem maior equidade
entre os candidatos durante o processo eleitoral. Além disso, a grande
maioria dos partidos recebe individualmente doações do setor privado
que, com certeza, irá cobrar sua “bondade para o processo democrático”
durante o mandado daqueles que ajudaram, financeiramente, a eleger.
Isso já compromete a independência da atuação dos representantes do
povo, comprometendo a legitimidade do processo eleitoral como definidor
dos representantes do povo.
Contudo, durante o mandato existem outros problemas que aumentam
a distância entre a verdadeira vontade popular e o que é decidido pelos
representantes eleitos. Uma das causas deste distanciamento é a “incapa-
cidade dos partidos políticos de canalizarem adequadamente os múltiplos

1584
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

interesses da sociedade para a formação da vontade geral”. 6 Os partidos


políticos se tornaram reféns de interesses privados e estão cada vez mais
distantes da sua base política. Importantes decisões sociais são tomadas
nos gabinetes dos políticos em detrimento de um necessário debate com
a população. Essas decisões são travestidas de legítimas ao passarem por
um processo legislativo que, em grande medida, é mera formalização dos
interesses privados constituídos previamente ao debate no Congresso
Nacional, costurados pelas lideranças políticas.
Nesse contexto, o poder de influenciar diretamente a formação da
vontade do Estado fica cada vez mais distante da população e o interesse
público é esquecido em detrimento dos interesses dos partidos políticos e
de seus membros, que, durante o processo eleitoral, já estão comprome-
tidos com interesses distintos do interesse público propriamente.
Ainda que uma reforma política se faça necessária para que o processo
eleitoral seja mais equânime bem como para que, durante o exercício do
mandato eletivo, os políticos representem de fato a vontade popular, são
imprescindíveis mecanismos a partir dos quais o povo exerça diretamen-
te o poder democrático nas deliberações estatais de interesse público e
não apenas por meio dos tradicionais mecanismos existentes no direito
brasileiro: plebiscito, referendo e iniciativa popular.
A democracia participativa também não se confunde com a Demo-
cracia Semi-Direta e seus instrumentos de participação popular previstos
na Constituição Federal no artigo 14, I, II e III, quais sejam o plebiscito,
o referendo e a iniciativa popular, respectivamente. Através dos dois
primeiros mecanismos, os eleitores vão às urnas escolher entre opções
predefinidas sobre determinado assunto. Esses mecanismos não estão
isentos dos problemas do processo eleitoral, dentre eles a manipulação
da consciência pública anterior ao processo de votação, em detrimento
de um debate plural e profundo que construa soluções coerentes para
determinados problemas. O debate se dá entre o “sim versus não” ou
entre propostas vazias que não representam e muito menos sintetizam
a complexidade da problemática que se quer enfrentar (se é que isso é

1585
possível). Já a iniciativa popular possibilita que um universo enorme de
cidadãos, em conjunto, proponha um projeto de lei, que, não necessaria-
mente, será votado pelo Legislativo.
Feitas essas considerações e ponderadas às diferenças e deficiências
da democracia representativa e da democracia semi-direta, surge à demo-
cracia participativa como “único modelo capaz de pôr cobro ao ludíbrio
do poder popular”.7 A democracia participativa é aquela presa pelo real
exercício do poder soberano do povo. Só através do exercício autônomo
e efetivo do poder democrático por meio da participação popular é que
se poderão concretizar os objetivos da sociedade brasileira expressos na
Constituição. E, como logo será tratado, muitos desses objetivos serão
concretizados através da implementação de políticas públicas pelo Estado.
A inserção da participação popular na criação e gestão dessas políti-
cas públicas é uma das determinações na nossa Constituição e um dos
inúmeros benefícios do exercício democrático participativo.

2. PLANEJAMENTO URBANO: AS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO


FORMA DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NO ESPAÇO URBANO

2.1 A transformação do espaço urbano como


um dos objetivos da Constituição de 1988

A Constituição Brasileira promulgada em 1988 consagra o Estado So-


cial como objetivo a ser construído pela sociedade brasileira. A atuação
deste Estado social tem uma orientação finalística tendo em vista a im-
plementação de condições básicas de igualdade entre os diversos grupos
sociais. Para isso, o Estado deve buscar o planejamento e a promoção de
“programas normativos finalísticos”.8
Nesse sentido, faz-se necessário um planejamento estratégico através
da criação e implementação de políticas públicas que garantam o acesso
da população aos direitos consagrados constitucionalmente. E não é di-
ferente com relação às políticas públicas destinadas à solução dos graves

1586
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

problemas urbanos existentes nos municípios brasileiros.


As cidades brasileiras são marcadas pela desigualdade. A segregação
do espaço urbano entre locais de ricos e locais pobres pode ser percebida
através de inúmeros aspectos. Enquanto os locais em que as populações
ricas habitam são dotados de maior infra-estrutura, aos pobres são desti-
nados os guetos que não têm condições mínimas de salubridade. Em sua
grande maioria, não há saneamento básico! O transporte público, que é
utilizado em sua grande parte pelas classes média e baixa, encontra-se
em estado de calamidade na maioria absoluta das cidades brasileiras,
seja pelas altas tarifas, seja pelo sucateamento da frota, seja pela falta
de atendimento às diversas localidades do município. O meio ambiente
é degradado pelo próprio Estado. Equipamentos públicos de educação,
saúde e lazer faltam em todos os lugares, de norte a sul do Brasil. Os
grandes especuladores imobiliários “compram” o direito de usar a terra,
o espaço urbano, fora dos padrões estabelecidos pelas leis urbanísticas
de uso e ocupação do solo.
É preciso mudar este estado de coisas. E como não há recursos para
todas as mudanças acontecerem ao mesmo tempo, é preciso um plane-
jamento estratégico e democrático dos municípios.
O Estado, nesse contexto, é o grande interventor na realidade das
cidades brasileiras. Sem desconsiderar o espaço urbano como local onde
se evidencia a desigualdade intrínseca gerada pelo sistema de produção
capitalista, deve-se perceber que o Estado muitas vezes contribui para
que esse espaço seja mais desigual. Isso se dá quando o Município cria
planos diretores essencialmente excludentes, tratando desigualmente os
particulares ao privilegiar certas áreas com mais equipamentos urbanos
e destinando usos indesejáveis aos bairros da periferia ou ainda quando
isola a população carente dos centros de prestação de serviços ao construir
moradias populares em locais afastados, em um verdadeiro e condenável
processo de “higienização” social.
A omissão do Estado no que tange à execução dos planos urbanísticos
também contribui para a perpetuação das desigualdades do espaço urbano.

1587
Muitas vezes o que foi planejado e pactuado socialmente é deixado de
lado devido ao seu caráter fortemente intervencionista. Ainda que exista
um plano (transformado em lei) que, na sua essência, vise diminuir as
desigualdades da cidade, sua execução é ignorada. Um exemplo disso se
dá com a instituição do IPTU progressivo no tempo. Esse imposto marcado
pela extra-fiscalidade tem como objetivo principal forçar que a propriedade
cumpra a sua função social. Ele é previsto em inúmeros planos diretores e
tem respaldo tanto na Constituição Federal no artigo 182, §4º, II bem como
no Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001. Porém, muitos planos diretores
deixam sua regulamentação para lei específica que, propositalmente,
nunca é criada tornando esse instrumento urbano progressista ineficaz.
Quando a Constituição estabelece o Estado Social como objetivo a ser
perseguido pela República Federativa Brasileira e que uma das finalida-
des desse Estado é diminuir as desigualdades entre os indivíduos, será
necessária a intervenção estatal para diminuir essas diferenças do espaço
urbano a fim de se atender ainda ao Princípio da Justa Distribuição dos
Benefícios e Ônus derivados da atuação urbanística9.
O planejamento urbano é, portanto, um dos instrumentos pelo qual o
Estado irá intervir na realidade urbana para concretizar os objetivos sociais
definidos pelo povo no exercício do poder soberano.

2.2 Formas de intervenção do Estado no espaço urbano:


as leis urbanísticas e a execução de políticas públicas

O resultado de um planejamento urbano municipal é a promulgação


de leis urbanísticas, que vinculam (ou deveriam vincular) a Administração
Pública e o próprio particular naquilo que lhe afeta. Essas leis têm como
principal característica a intervenção do Estado na propriedade privada.
A Constituição de 1988, embora consagre o Estado Social como mo-
delo de sociedade a ser construído, é marcada pelo pluralismo ideológico.
Nesse sentido, consagra como direito fundamental a propriedade privada
no artigo 5º, xxII ao mesmo tempo em que determina no inciso seguinte

1588
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

(xxIII) que a propriedade atenderá a sua função social. Sendo direito fun-
damental, qualquer restrição ao direito de propriedade deverá atender ao
Princípio da Reserva Legal. De acordo com esse princípio, toda restrição
aos direitos fundamentais deverá ser feita através de Lei em sentido estrito,
ou seja, é necessário que restrições a esses direitos sejam aprovadas pelo
Poder Legislativo.
As leis urbanísticas têm como principal característica o intervencionis-
mo no direito de propriedade privada para condicionar o exercício deste
ao interesse da coletividade (interesse público propriamente). Fato é que,
ao criar leis como o Código de Obras ou a Lei de Uso e Ocupação do Solo,
o Estado passa a limitar o exercício do Direito de Propriedade, atingindo
as faculdades inerentes a esse direito.
Essas limitações presentes nas leis urbanísticas e nos planos diretores
são fundamentais para que a propriedade urbana cumpra a sua função
social e para que a coletividade não seja prejudicada pelos abusos dos
particulares no exercício do direito de propriedade. Contudo, as restri-
ções ao exercício do direito de propriedade só serão legítimas se forem
justificadas pelo interesse público.
O outro viés do planejamento urbano, não menos intervencionista, se
evidencia através da execução de políticas públicas, como um desdobra-
mento do planejamento urbano.
Compreende-se, aqui, políticas públicas como “programas de ação
governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as
atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes
e politicamente determinados”.10 Os objetivos dessas políticas públicas,
notadamente as de caráter urbanístico, estão definidos, na esfera local,
nos Planos Diretores Participativos dos municípios brasileiros.
A criação de políticas públicas e o planejamento urbano possuem uma
relação íntima uma vez que essas políticas irão buscar concretizar aquilo
que foi determinado nos planos urbanísticos e irão interferir diretamente
na configuração do espaço urbano.
Para que essa política seja criada e executada ela dependerá de outro

1589
importante instrumento de gestão pública, o Orçamento Público. Não será
possível a implementação das políticas públicas no espaço urbano sem a
anterior previsão das receitas para sua execução. Logo, a concretização
dos objetivos sociais e politicamente determinados dependerá de previsão
orçamentária.
Pode-se considerar que, no contexto do Estado Social, o orçamento
público não é mera peça formal necessária para se realizar uma despesa
pública. O Orçamento Público é também “instrumento de gestão urbana”11.

3. ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: PARTICIPAÇÃO


EFETIVA NO PLANEJAMENTO URBANO

3.1 O orçamento público como instrumento de gestão urbana

O orçamento público é o instrumento de gestão pública no qual estão


previstas as receitas e as despesas do Estado. No Estado brasileiro, para
se realizar uma despesa pública é necessária sua prévia autorização legal
através da Lei Orçamentária Anual, bem como sua compatibilidade com
o Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Todas essas leis,
previstas no art. 165 da Constituição Federal, terão seus projetos elabo-
rados pelo Poder Executivo, que inicia o processo legislativo ao enviá-los
ao Legislativo.
É importante salientar que, nada obstante o caráter jurídico do orça-
mento, bem como sua feição econômica e contábil, ele tem claro conte-
údo político, uma vez que determina quais programas serão priorizados
pelo governo, onde o Estado irá investir seus escassos recursos, ou seja,
traduz escolhas. Como nossa constituição consagra o Estado Social, o
orçamento público deverá contemplar na sua criação e execução recursos
financeiros para a realização das políticas públicas de caráter social, que
garantirão o acesso da população aos inúmeros direitos prestacionais
consagrados no nosso ordenamento jurídico, a fim de se concretizar os
objetivos da república brasileira. Isto porque, como já foi dito, não há

1590
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

recursos financeiros para a satisfação de todas as necessidades públicas


simultaneamente. Escolhas são feitas. Prioridades são eleitas. Estas esco-
lhas não são deliberações técnicas (jurídicas, econômicas ou contábeis).
São decisões políticas!

Como essa atividade financeira é definida politicamente, a im-


plementação de políticas públicas, em especial as sociais, fica na
dependência das relações políticas que definem as prioridades
orçamentárias12.

Como é essencialmente político, o orçamento público deverá ser


construído coletivamente em detrimento de uma elaboração meramente
técnica. Como Maria Paula Dallari Bucci ressalva, “as soluções exclusiva-
mente técnicas, centradas no aspecto da gestão, que não contemplam os
problemas da dominação política em sua magnitude real, serão necessa-
riamente insatisfatórias.” 13
Em relação ao planejamento urbano, Marcelo Lopes de Souza pondera
sobre a participação exclusiva dos técnicos ao afirmar que

uma abordagem tecnocrática típica preconiza o primado dos


‘especialistas’, pretensamente neutros e imparciais, a eles ca-
bendo tanto a elaboração da proposta como o diagnóstico que,
muitas vezes, antecede a elaboração da proposta (ainda que o
diagnóstico seja, frequentemente, superficial, e não considere
a percepção e a vivência dos usuários dos espaços).Como já se
viu, a proposta de intervenção é elaborada parcialmente com
base no diagnóstico, mas sobretudo condicionada por modelos
normativos referentes à “cidade ideal” (sem contar, é evidente,
as injunções políticas)14.

Esse planejamento, apesar da democracia participativa no Estado


brasileiro estar consagrada em termos formais, é ainda, segundo o autor,
“Impermeável a participação popular, ou na melhor das hipóteses, redu-
zido esta a uma participação despida de verdadeiro poder decisório” 15.
A partir dessas considerações, não se pretende defender que a Admi-
nistração Pública deverá abrir mão da participação dos técnicos na gestão
e no planejamento das políticas públicas estatais. Contudo, a atuação dos
técnicos deverá se limitar à execução e ao aprimoramento daquilo que foi

1591
deliberado pela sociedade democraticamente. Essa participação da popula-
ção, contudo, não se confunde com uma participação formal que se realiza
muitas vezes para se atender certas exigências legais, exclusivamente. A
participação popular na criação e gestão das políticas públicas deverá ser
realmente capaz de decidir os rumos da atuação estatal.
É necessário que a vontade popular esteja presente no orçamento
público para que seja possível realizar as transformações sociais que se
almeja do espaço urbano. Cabe ao povo o protagonismo na elaboração
do orçamento. Com a participação efetiva será possível concretizar os
objetivos definidos democraticamente e traduzidos em políticas públicas
criadas e executadas conforme a vontade popular soberana.

3.2 Orçamento Participativo: uma alternativa


necessária e possível de participação popular
efetiva no planejamento urbano.

Gomes Canotilho afirma que Democracia Participativa é

a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efectivas


possibilidades de aprender a democracia, participar nos processos
de decisão, exercer controlo crítico na divergência de opiniões,
produzir inputs políticos e democráticos16.

Logo, o Orçamento Participativo é, na atualidade, o melhor instrumento


de exercício real do poder democrático pelo povo.
O orçamento participativo surge como “uma abertura do aparelho de
Estado à possibilidade de a população participar, diretamente, das deci-
sões a respeito dos objetivos dos investimentos públicos”17 . É um grande
avanço em termos de democracia, pois ele permite que a população, de
fato, influencie na atuação estatal determinando quais serão as prioridades
de investimento do poder público.
Em apertada síntese, o Orçamento Participativo se realiza da seguinte
maneira. A população é organizada em bairros ou unidades espaciais e,
a partir dessa divisão, são realizados fóruns deliberativos nos quais as

1592
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

pessoas debatem e deliberam sobre quais deverão ser as prioridades de


investimento para aquele local, ou seja, quais políticas públicas18 deverão
ser implementadas com base na disponibilidade financeira do Município
informada pelo Poder Executivo anualmente.
A partir dessa deliberação, o Poder Executivo se torna “refém” da
vontade popular devendo prestar contas da execução orçamentária do
ano anterior. No modelo de Orçamento Participativo da cidade de Porto
Alegre/RS, por exemplo, a população de cada unidade espacial irá eleger
conselheiros que irão acompanhar a execução orçamentária através de
um Conselho Municipal.
A importância da relação entre planejamento urbano e orçamento
público foi evidenciada com a promulgação do Estatuto da Cidade que
determina a realização de audiências públicas para que sejam aprovadas
as leis orçamentárias (art. 44).
O orçamento público como um instrumento de gestão é fundamental
para se atingir os objetivos do planejamento urbano, uma vez que toda
intervenção do poder público demandará previsão orçamentária com re-
cursos suficientes para que seus objetivos sejam alcançados. A participação
da população na escolha das prioridades orçamentárias irá contribuir para
a melhor aplicação dos recursos estatais através de uma escolha coletiva
de quais ações atenderão melhor as necessidades sociais, precedida de
um verdadeiro debate, e irá, consequentemente, promover o bem estar
social nas cidades.
Cada experiência de orçamento participativo,nas diferentes cidades,
terá suas peculiaridades e o grau de efetiva participação poderá variar.
Contudo, a adoção desse instrumento se faz necessária numa sociedade
que almeja transformar o espaço urbano e que quer ver a população como
principal protagonista dessas mudanças.
A aliança entre planejamento urbano e o orçamento participativo é um
caminho possível, viável e necessário para se promover as transforma-
ções sociais no espaço urbano que diminuam as desigualdades na cidade.
É ainda um modelo de exercício do poder democrático, que diminui as

1593
distâncias entre a real vontade popular e a atuação estatal. Através do
orçamento participativo, o povo poderá realmente decidir quais são os
objetivos da sociedade pensados localmente.

4. CONCLUSÃO

Em breve síntese, é possível afirmar que o exercício da democracia


participativa é uma determinação constitucional, bem como o meio
mais intenso do exercício do poder soberano pelo povo. Sendo assim,
pode-se concluir:

Os atuais mecanismos de Democracia Representativa e Democra-


cia Semi-Direta não garantem que a verdadeira vontade popular
determine a atuação do Estado.
Nossa Constituição consagrou o estado social, que tem por
objetivo diminuir as desigualdades sociais entre os indivíduos
através da atuação estatal finalisticamente dirigida, de acordo
com os objetivos definidos nesse mesmo texto constitucional.
Para se atingir os objetivos constitucionais, será necessária a
atuação estatal a fim de transformar o espaço urbano, marcado
pela desigualdade,através do planejamento urbano.
O planejamento urbano se realiza por meio das leis urbanísticas
e da implementação de políticas intervencionistas. Essas políticas
demandam recursos financeiros que deverão ser previstos no
orçamento público.
A elaboração do orçamento público é um ato político. Ela traduz
escolhas. O orçamento define prioridades de gastos. Devido a este
caráter político, a participação popular será fundamental na ela-
boração do orçamento (e na sua execução) diante da necessidade
de que sejam contemplados os gastos públicos essenciais para se
alcançar as transformações almejadas pela Constituição, dentre
elas, a construção de um espaço urbano inclusivo.
Através do orçamento participativo, a população participa efeti-
vamente do planejamento urbano ao definir diretamente quais
as políticas públicas são prioritárias para o local onde se vive.
Essa participação ainda proporciona a melhor aplicação dos
recursos públicos uma vez que o povo acompanha a execução
orçamentária tornando a Administração Pública “refém” do in-
teresse coletivo definido através de um profundo e democrático
debate entre os próprios cidadãos.

Conclui-se que não há ninguém melhor que a própria população para


diagnosticar quais são os problemas do espaço urbano bem como apontar
soluções construídas coletivamente que serão traduzidas em políticas

1594
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

públicas, com o auxílio da Administração Pública, a fim de se promover


as transformações essências, cujas diretrizes se encontram na Consti-
tuição Federal. Nesse sentido, o orçamento participativo se mostra um
meio eficaz de promover essas transformações através da participação
efetiva da população na construção de soluções para os problemas das
cidades. Esse instrumento se faz necessário e urgente uma vez que são
muitos os desafios para se construir um espaço urbano mais democrático
e menos desigual.

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_____.A vinculação do chefe do Executivo à Lei Orçamentária no cumpri-
mento das determinações constitucionais. 2005. Tese (Direito). Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Urbanístico. 6ed. São Paulo: Malheiros,
2010.
SOUZA, Marcelo Lopes. Mudar a Cidade: uma introdução crítica ao Planeja-
mento e à Gestão Urbanos. 4ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

1595
NOTAS

1 Graduanda em Direito Pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: reis.aboliveira@gmail.com


2 Mestre e Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Professor
do Departamento de Direito Público Material da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF). E-mail: frederico.riani@ufjf.edu.br.
3 Robert A. Dahl, 2009, p. 49.
4 Paulo Bonavides, 2001, p. 25.
5 Patrícia Baptista, 2003, p. 122.
6 Ibidem, p. 123.
7 Paulo Bonavides, 2001, p. 25.
8 Fábio Konder Comparato, 1997, p. 218.
9 José Afonso da Silva, 2010, p. 45.
10 Maria Paula Dallari Bucci, 2002, p. 241.
11 Marcelo Lopes de Souza, 2006, p. 338.
12 Riani, 2012, p.149.
13 Maria Paula Dallari Bucci, 2002, p. 244.
14 Marcelo Lopes de Souza, 2006, p. 182.
15 Idem.
16 J. J. Gomes Canotilho, 2012, p. 288.
17 Marcelo Lopes de Souza, 2006, p. 344.
18 Utiliza-se aqui um sentido amplo, ou mesmo vulgar, de políticas públicas como sendo toda e qualquer ação
do estado voltada a solução de problemas públicos.

1596
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Os desafios da política habitacional


brasileira, a partir do estudo do
Conselho Municipal de Habitação
de Belo Horizonte
Maria Tereza Fonseca Dias1
Stéfane Rabelo Pereira da Costa2

1 INTRODUÇÃO

A questão habitacional é um dos desafios mais importantes para as


atuais e futuras gestões municipais, estaduais e federais. A enorme ex-
plosão demográfica brasileira em meados do Século xx levou a que, num
período de aproximadamente 60 anos, a população crescesse quatro vezes
e a população urbana aumentasse mais de sete vezes (BRASIL, 2007).
Esse crescimento populacional acelerado nos grandes centros urbanos
não encontrou respostas eficientes nas políticas e planejamentos gover-
namentais que, ao longo das décadas, trataram os terrenos e espaços
urbanos da cidade como mercadoria. Além disto, a omissão do Estado em
garantir à população carente acesso aos seus direito fundamentais, dentre
eles o direito à moradia adequada, levou a um lento e gradual processo
de gentrificação urbana3, resultando em baixos índices de distribuição de
renda e qualidade de vida. Em 2004, o déficit habitacional brasileiro era
de 5,8 milhões de domicílios, sendo que 82% destes se concenvam nas
áreas urbanas e em torno de 90% na faixa da população que ganha até três
salários mínimos (MINAS GERAIS, 2010). Pesquisa mais recente, realizada
pela Fundação Getúlio Vargas com dados da PNAD para o SindusCon-SP,
estimou este déficit em 5,461 milhões, em 2011 (SINDUSCON, 2013, p. 12).
Este número, conforme o resultado apurado, “[...] representa recuo de 1,3%

1597
entre 2007 e 2011 em termos relativos (proporção entre os domicílios que
faltam e o número de famílias existentes).” (LOUZAS, 2013)
A coabitação compreendeu cerca de 30% do déficit habitacional, o
que corresponde a 1,674 milhão de famílias compartilhando o mesmo
domicílio, mas com intenção de obter sua própria residência; o mesmo
percentual aproximado de 30% foi encontrado para domicílios em condi-
ções inadequadas, ou seja, aqueles que têm suas paredes ou teto feitos
de material não-durável, o que corresponde a 1,677 milhão de domicílios.
Os domicílios em aglomerados subnormais (favelas), corresponde a 60%
do total do déficit, estimado em 2,175 milhões nestas áreas (SINDUSCON,
2013, p. 5;11).
A recente pesquisa também reafirma a conclusão do resultado anterior
ao afirmar que “A falta de moradias aflige, sobretudo, as famílias de menor
renda.” (SINDUSCON, 2013, p. 11)
No entanto, na contramão do problema, identificou-se que de 2000
a 2002 “[...] praticamente 60% dos recursos sob gestão federal foram
destinados às famílias que ganhavam mais de 5 s. m. [salários mínimos]
que representavam 8% do déficit habitacional.” (MARICATO, 2005, p. 1).
Assim, parece claro que o grande desafio do Estado e da sociedade nas
próximas décadas será como solucionar a questão habitacional e todas
as outras dela decorrentes, tais como escassez de terrenos, mobilidade
e poluição ambiental.
A esse desafio acrescenta-se um fato que torna os problemas ainda
mais prementes: a conhecida influência do capital imobiliário sobre as
decisões políticas voltadas para os problemas urbanos. Desde a elaboração
de planejamentos urbanos até a alocação de recursos, essa influência faz
com que se privilegie o interesse de grupos econômicos mais influentes
em detrimento da população carente que mais precisa destes recursos
(Cf. MENDONÇA; COSTA, 2011).
Este trabalho é fruto da pesquisa científica intitulada “A participação
popular nos conselhos gestores de políticas públicas: estudo de caso do
Conselho Municipal de Habitação de Belo Horizonte”, realizada no período

1598
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de julho de 2012 a julho de 2013, na Faculdade de Direito da Universidade


Federal de Minas Gerais (UFMG). O objetivo geral da pesquisa foi analisar
o Conselho Municipal de Habitação (CMH) do Município de Belo Horizonte,
com o escopo de verificar de que modo ele foi criado, estruturado e como
ele atua, hoje, como canal de participação representativa das demandas
sociais e de legitimação das políticas urbanas da capital do Estado de
Minas Gerais.
O Conselho Municipal de Habitação de Belo Horizonte foi instituído no
contexto de abertura política brasileira após mais de duas décadas regime
ditatorial. Desta forma, toda a Política Municipal de Habitação de Belo
Horizonte tem sido discutida por intermédio deste instrumento dialógico
de deliberação entre sociedade civil organizada e Poder Público, a partir
de meados da década de 1990. Passados quase vinte anos da criação
deste mecanismo de participação foi possível analisar com mais clareza
de que modo tal Conselho atua na realidade urbana e habitacional de
Belo Horizonte.
Esse trabalho parte de dois principais referenciais teóricos: a noção da
gestão democrática das cidades e da função social da cidade, considerados
pontos basilares de consolidação da democracia participativa no âmbito
das políticas urbanas (Avritzer, 2002; Cohen e Arato, 1992 e Habermas,
2002). Ao definir que a população deveria participar dos processos de
formulação, execução e acompanhamento das políticas públicas, além de
por quais meios e canais essa participação deveria ocorrer, o Estatuto da
Cidade dá início a novo paradigma, reinventando a democracia urbana,
que deixa de possuir limites representativos formais para participação em
direção a arranjo mais inclusivo que exige a participação social efetiva
como critério de legitimidade. Nesse sentido, os canais institucionais de
participação não só podem se diferenciar e se esquivar da complexidade
estabelecida pela Administração Pública, mas também não são neces-
sariamente cooptados, podendo ser palco de ações inovadoras e eman-
cipadoras do ponto de vista democrático a partir da ligação entre esses
canais e canais não institucionalizados de participação e comunicação.

1599
A pesquisa foi desenvolvida em três etapas e focos de análise: a primei-
ra tratou da estrutura, composição e competência do Conselho (DIAS &
COSTA, 2013; DIAS, 2013); a segunda analisou da qualificação estrutural,
representatividade e atuação do CMH, segundo a ótica dos representantes
da sociedade civil (DIAS; COSTA, 2013).
Nesta terceira etapa e, dando continuidade aos estudos anteriores, este
trabalho tem por escopo aprofundar o estudo institucional do Conselho,
a partir da análise das atas das suas reuniões, como explicitado adiante.

2 BELO hORIZONTE: O hISTóRICO DA CAPITAL PLANEJADA

O objetivo deste estudo é demonstrar como a formação elitista e se-


gregacionista de Belo Horizonte possibilitou ou influenciou o surgimento
de uma consciência política em prol da disputa habitacional da população
com o Poder Público, culminando com a formação do Sistema Municipal
de Habitação de Belo Horizonte.

2.1 Planejamento da Cidade e os primeiros problemas

Diferentemente de grandes metrópoles, como o Rio de Janeiro ou São


Paulo, Belo Horizonte foi uma cidade planejada e construída a partir de
um modelo rigorosamente elaborado e padrões arquitetônicos avançados
para a época de sua criação, no final do século xIx. Dentro do contexto
de uma República recém-instaurada (1889), havia a necessidade de dar
continuidade à centralidade e à autonomia do Estado de Minas Gerais no
cenário político nacional. A capital de Minas Gerais até então, Ouro Preto,
não era considerada uma “cidade grande” (TORRES, 1962), pois não exercia
o papel de verdadeira capital, ou seja, de constituir um centro político e ad-
ministrativo do estado, com atratividade econômica e social (GUIMARÃES,
1991). Para viabilizar esse desenvolvimento, era imperativo proporcionar
melhor escoamento à produção e atração de mão de obra estrangeira por
meio da construção de uma nova capital (GUIMARÃES, 1991)

1600
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A decisão de mudança da capital foi uma decisão política do governo


do Estado de Minas Gerais, à época, que ficou incumbido não só da tarefa
de construir a cidade, mas também de ordenar o processo de ocupação e
desenvolvimento do território (GUIMARÃES, 1991, p. 45). Foi escolhido,
em 1993, o arraial de Bello Horizonte como local para construção da
capital, sendo que muitos autores (OZORIO, 1981; GUIMARÃES, 1991)
apontam que o local foi escolhido pela elite ouro-pretana não por ser a
melhor opção para sua construção, mas por ser considerado precário o
suficiente para que o projeto da capital não fosse levado a cabo. O local
era, por volta de 1893, desprovido de estradas de ferro ou recursos, o que
fez com que muitos duvidassem da sua viabilidade para a concretização
do projeto no curto prazo de quatro anos (BARRETO, 1950).
O plano e a construção da cidade foram executados por uma Comissão
de arquitetos, imbuídos pela crença na racionalidade científica positivista,
que planejou a cidade para ser, exclusivamente, a sede do aparato gover-
namental do Estado de Minas Gerais, sendo desaconselháveis atividades
econômicas na cidade, pelo menos no curto prazo (GUIMARÃES, 1991).
Um dos primeiros desafios da comissão foi quanto à acomodação da
população de baixa renda, encarregada de construir a cidade que, em
princípio, foi alojada em uma hospedaria provisória que previa abrigar 200
trabalhadores civis, mas que se mostrou insuficiente para acolher todos
os trabalhadores que chegavam de todas as partes do estado. Entre “[...]
1890-1893, sob impacto da formação do canteiro de obras, a população
do arraial passou de 600 para 2650 habitantes, o que representou taxa de
crescimento de 64,1%.” (GUIMARÃES, 1991, p. 66).
Preocupado em garantir a inauguração da cidade até 1897, o poder
público não fez oposição direta à proliferação de moradias irregulares e
precárias dos trabalhadores encarregados da construção da cidade por
toda sua extensão. Na verdade, houve certo incentivo para construção
de moradias próximas aos canteiros de obra. Além dos moradores da
região, que foram atraídos pela possibilidade de emprego, também foi
estimulada a vinda de estrangeiros para o Estado (GUIMARÃES, 1991).

1601
A falta de previsão de um local próprio para essa população se instalar
fez com que, em 1895, dois anos antes da inauguração da cidade, Belo
Horizonte já possuísse duas áreas de ocupações definidas, além de cafuas
e barracos4 proliferados por toda a cidade, com cerca de três mil pessoas
(GUIMARÃES, 1991).
O zoneamento da cidade foi dividido em Zona Urbana, Zona Suburbana
e Seção Agrícola. A Zona Urbana, delimitada pela Avenida 17 de Dezembro
– que mais tarde seria denominada Avenida do Contorno – constituía o
centro da cidade, em que se instalariam a maior parte da população (pro-
prietários e funcionários públicos) e os prédios da administração pública. A
Zona Suburbana, instalada logo em volta da Zona Urbana, seria designada
para futura expansão da malha urbana assim que a Zona Urbana estives-
se plenamente ocupada. Já a Seção Agrícola, instalada ao redor da Zona
Suburbana, foi pensada como um cordão verde que abasteceria a cidade,
destinada à elite do interior do Estado habituada a esse tipo de atividade.
Como se pode notar pelo zoneamento da cidade, não foi reservado
local adequado para a população operária encarregada de construir Belo
Horizonte ou para a população de baixa renda que foi atraída pelas novas
oportunidades de emprego na capital, pois tal população era considerada
meramente temporária na cidade que, uma vez construída, não iria mais
necessitar dessa mão de obra. Os trabalhadores de baixa renda, assim “[...]
não eram considerados adequados para o modelo de capital moderna que
se pensava para Belo Horizonte.” (BAESSO, 2006).
Como ocorreu no Rio de Janeiro e em São Paulo, a população estrangei-
ra na cidade influenciou de modo decisivo na formação de organizações
e associações operárias, o que ocorreu, no caso de Belo Horizonte, logo
nos primeiros anos de existência da cidade, visando ao mútuo socorro e à
educação moral de seus membros (GUIMARÃES, 1991, p. 85). Assim como
no resto do país, “[...] é frequente, na historio da Belo Horizonte, o registro
sobre greves, protestos e movimento de diversas categorias profissionais
nos primeiros anos da cidade.” (GUIMARÃES, 1991, p. 86).

1602
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

2.2 A concretização da cidade modelo e a consolidação dos


movimentos sociais de reforma urbana em Belo horizonte

A cidade de Belo Horizonte foi inaugurada em 1897, mesmo que com


diversos edifícios ainda em construção e grandes vazios urbanos (BAESSO,
2006). A primeira remoção de favela em Belo Horizonte (a favela do Lei-
tão), ocorreu logo em seguida, em 1900, sendo que muitas das remoções
que ocorreram nos anos seguintes foram precedidas da designação de um
local para a moradia dos trabalhadores, a denominada Área Operária5,
dentro da Zona Urbana.
A instauração de área própria para a população de baixa renda nos
limites nobres da cidade foi iniciativa inédita no país: enquanto em outras
capitais a população de baixa renda era expulsa das áreas centrais através
do poder de polícia, em Belo Horizonte era designado um local para essa
população. A iniciativa que, em um primeiro momento, foi sinônimo de
evolução, foi descaracterizada nos anos seguintes, com a redução e poste-
rior extinção dessa população da Zona Urbana. Criou-se, em substituição,
uma dinâmica informal de ocupação da cidade: os trabalhadores ocupavam
irregularmente áreas onde era necessária mão de obra na construção civil
até serem expulsos pelo Poder Público ou pela especulação imobiliária.
Como afirma Berenice Guimarães,

À medida que eram expulsos de uma área, parte da população


conformava-se em mudar para o lugar destinado pelo Poder Pú-
blico, em geral locais mais distantes, sem infraestrutura urbana
e equipamentos, e parte rebelava-se indo formar novas favelas
em área próxima a que moravam e de onde, mais tarde, eram
novamente expulsos. (GUIMARÃES, 1992, p. 2).

Esse processo de expulsão tem como marco a criação da Seção de


Higiene, em 1900, que oficialmente inviabilizou a permanência da popu-
lação de baixa renda na Zona Urbana, ao estabelecer regras que proibiam
a construções de casas cobertas de capim nas áreas nobres, mas sem
estabelecer restrições parecidas nas Zonas Suburbanas, demarcando,
assim, o local da população de baixa renda.

1603
Alguns autores (TORRES, 1962; GUIMARÃES, 1991) apontam que foi em
meados da década de 1920 que a população de baixa renda de Belo Hori-
zonte assume postura de disputa pelo território urbano com a Prefeitura. As
primeiras lutas de moradores de baixa renda para melhoria de condições da
infraestrutura urbana como água, energia elétrica e transporte ocorreram
nos bairros da Zona Suburbana como Santa Efigênia, Floresta, Lagoinha e
Calafate (SOMARRIBA, 2004). Em função dos problemas de infraestrutura
da periferia da cidade surgiam cada vez mais intensamente organizações e
movimentos associativos que buscaram reivindicar melhorias de estrutura,
assim como a população de muitas favelas se organizou para enfrentar
o Estado e, mesmo após as contínuas remoções, reestruturaram diversas
vezes ocupações próximas as áreas nobres.
Em meados da década de 1910, a população da Zona Suburbana
representava 70% dos 38.000 habitantes da cidade (ANDRADE; MAGA-
LHÃES,1998, p. 47). Assim, o projeto de cidade moderna pensada para a
capital, associado à ideia elitista de espaços reservados para uma determi-
nada camada da sociedade, fez com que “[a]o contrário das expectativas
dos idealizadores da capital, o crescimento do tecido urbano deu-se no
sentido periferia-centro.” (BAESSO, 2006, p. 10).
A partir da década de 1930 os interesses econômicos industriais
recaíram sob a Zona Suburbana da cidade, levando a um processo de
ordenação do caos existente até então (GUIMARÃES, 1991). Ainda sim,
a década de 1930 foi marcada por diversas manifestações populares que
exigiam infraestrutura urbana para os bairros periféricos sendo, muitas
delas, incentivadas por movimentos partidários (SOMARRIBA, 2004).
Com a implantação do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937), devido à
repressão política e à censura de impressa, não há dados de manifestações
urbanas no período, configurando um retrocesso social para história dos
movimentos sociais em todo o país (SOMARRIBA, 2004).
Com a abertura política, em 1945, diversos movimentos se reorganiza-
ram, além de surgirem novos movimentos e comitês com base partidária
que voltaram a estabelecer posição de cobrança por melhorias urbanas

1604
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da Prefeitura (SOMARRIBA, 2004). A partir da resistência e organização da


população residente nas favelas, a Prefeitura começa a tratar o problema
habitacional da cidade como questão social. Em 1955, através de pressões
de diversos movimentos organizados, a Prefeitura criou o Departamento de
Bairros Populares (DBP). O DBP definiu que as remoções em vilas e favelas
só poderiam ocorrer se houvesse a construção de conjuntos habitacionais
para os quais pudessem ser transferidas as populações removidas (GUI-
MARÃES, 1991). O que ocorreu, na realidade, foi a contínua remoção e a
construção de apenas um conjunto habitacional neste período.
Em 1955, através de um levantamento da “Comissão de Desfavela-
mento da Prefeitura de Belo Horizonte”, conclui-se que existiam na capital
mineira 9.343 domicílios em favelas no município, abrigado por 36.432
pessoas (FINEP, 1983, p. 66).
Em 1963, os movimentos em prol da reforma urbana se unem para
construção de uma proposta de política nacional de habitação popular.
Como resposta, Minas Gerais assume essa responsabilidade e destina uma
área para a construção de um conjunto habitacional que atenderia 120 mil
pessoas e a urbanização de quatro favelas – atendendo as reivindicações
dos movimentos dos moradores que queriam permanecer nos locais, mas
com a implementação de infraestrutura urbana (FINEP, 1983). O projeto
foi elaborado e chegou a ser assinado pelo governador do Estado, mas o
governo voltou atrás com o Golpe Militar de 1964 (FINEP, 1983).
O Golpe Militar de 1964, pautado pelo combate direto ao socialismo,
teve como diretriz maior a segurança à propriedade, considerando a favela
como objeto de ação da polícia e os seus movimentos associativos como
subversivos. Neste período, foi criado em Belo Horizonte um órgão espe-
cífico para a remoção de favelas, a Coordenação de Habitação de Interesse
Social (CHISBEL), realizando um “[...] desfavelamento sem precedentes na
cidade, justificado pela implantação de obras como sistema de vias etc. e
outros motivos nem sempre justificáveis” (GUIMARÃES, 1992, p.14). De
1971 a 1983, a CHISBEL removeu 10 mil moradias, o que representa cerca
de 40 mil pessoas (GUIMARÃES, 1992).

1605
Com o processo de abertura política, foram reestruturados em Belo
Horizonte muitos movimentos de interesse da população favelada e sem
casa, como, por exemplo, a União dos Trabalhadores de Periferia (GUI-
MARÃES, 1992).
Pela ação e pressão desses movimentos sociais foi elaborado o Projeto
de Lei pelo qual Belo Horizonte ficou reconhecida como a capital emanci-
padora no trato com a questão urbana. Pode-se dizer que a gestão voltada
prioritariamente para os problemas habitacionais no Município de Belo
Horizonte teve início somente em 1983, com a Lei nº 3.532 que criava o Pró-
-Favela (Programa Municipal de Regularização de Favelas). O Pró-Favela
visava à urbanização e à regularização jurídica de algumas vilas e favelas
do Município. O principal ponto desse programa foi o reconhecimento do
direito de a população favelada permanecer na sua moradia. Apesar de ter
gerado poucos resultados efetivos, o Programa ficou conhecido no Brasil
como um modelo pioneiro de gestão urbana preocupada com questões
sociais (FERNANDES & DOLABELA, 2010).
É importante salientar que a história dos movimentos sociais, princi-
palmente os não institucionalizados e de menor abrangência, em Belo
Horizonte, é de difícil mapeamento. A maior parte dos estudos históricos
em relação à formação da cidade e dos movimentos sociais trata apenas
da dita história formal, ou seja, a levantada a partir de dados oficiais, abor-
dando apenas de modo marginal esses movimentos. As dinâmicas sociais
mudam com grande velocidade e se não forem registradas desaparecem
sem deixar rastro na história. Por muito tempo, a atuação dos movimentos
sociais sem casa ou em prol do direito à moradia em Belo Horizonte não
foi foco de estudos na Universidade. A riqueza e diversidade dos movi-
mentos sociais no período de formação de Belo Horizonte provavelmente
são de uma diversidade muito maior do que os estudos empreendidos
até o momento puderam catalogar e descrever, como demonstrado pela
revisão da literatura sobre o assunto.

1606
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

2.3 A gestão democrática das cidades por intermédio


dos conselhos gestores de políticas públicas

Ao final do período ditatorial de 1964-1985, no bojo do processo de


luta pela redemocratização e por uma nova Constituição, os movimentos
sociais em prol da reforma urbana – que já vinham se organizando e cres-
cendo há algumas décadas – tornaram-se atores importantes na produção
do novo Texto Constitucional. A maior vitória desses movimentos foi a
inclusão do capítulo “Da Política Urbana” na Constituição Federal de 1988
e a posterior aprovação do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que
introduziram instrumentos sem precedentes em relação à antiga lógica da
gestão urbana feita dentro de gabinetes fechados por políticos, técnicos e
especialistas. O novo paradigma urbano – baseado nos princípios constitu-
cionais, no marco jurídico do Estatuto da Cidade e na gestão democrática
das cidades como diretriz para o ordenamento e para o desenvolvimento
das cidades – representou a introdução da possibilidade de participação
direta do cidadão na produção de políticas públicas, sendo essa possibi-
lidade tomada como critério de legitimidade das mesmas.
Desse modo, cabem aos cidadãos não só exigir que os atuais proble-
mas urbanos sejam solucionados, mas participar ativamente da produção,
execução e fiscalização das políticas voltadas para essas soluções. Nesse
sentido, o Estatuto da Cidade estabelece diversos mecanismos que pos-
sibilitam essa atuação social. Dentre eles, estão os conselhos gestores de
políticas públicas.
Estes tipos de Conselhos foram instituídos, no Brasil, dentro do novo
paradigma de descentralização política e participação popular estabe-
lecido com a Constituição Federal de 1988. Após mais de 20 anos de
regime ditatorial, marcado pela falta de liberdade de expressão, pelo
cerceamento da participação popular nos processos políticos e por outros
retrocessos democráticos, os Conselhos surgem como resposta às lutas
sociais por participação e abertura política. Eles se constituem, assim,
como instrumento inovador que permite a participação da sociedade na

1607
definição das agendas políticas por meio de um canal institucionalizado
de atuação coletiva.
Os Conselhos foram um dos mecanismos encontrados para gerar a
reaproximação do Estado e da sociedade, levando à ampliação do espaço
público, através da construção de redes de cooperação e troca de infor-
mações. Para Calazans (2012, p. 15), por intermédio dos Conselhos “[...]
o Estado se torna [...] mais permeável às demandas da sociedade [...].”
Eles passaram a se constituir, por lei, como uma espécie de Assembleia,
a partir da qual a Sociedade Civil e o Estado debatem as mais diversas
temáticas de interesse público, tendo, na maioria dos casos, poder deli-
berativo, ou seja, poder para decidir de forma concreta e obrigatória as
políticas públicas e ações governamentais.
Tais Conselhos foram organizados nas três esferas federativas (União,
Estado-membro e Município), em que participam o poder público (ge-
ralmente representantes do Poder Executivo e do Poder Legislativo) e
diversos segmentos da sociedade civil, entre outros atores, a depender
da área do Conselho.
A década de 90 pode ser considerada o período de “explosão” dos
conselhos, tendo sido adotados na maior parte dos Municípios brasileiros,
nas mais diversificadas áreas e matérias. Dados divulgados pelo IBGE, em
2001, somente corroboram com essa informação, já que em 1999 mais
de 90% dos 5.564 Municípios brasileiros possuíam Conselhos na área da
saúde e da educação (BRASIL, 2001). Em 2011, por sua vez, foi apurado
que de “[...] 2009 a 2011, 1.041 novos conselhos municipais foram criados
no Brasil, totalizando 15.719.” (BRASIL, 2012). Ou seja, os Conselhos, que
na década de 90, eram vistos como uma oportunidade de democratiza-
ção das políticas públicas, são, hoje, uma realidade na gestão e dinâmica
sociopolítica da maior parte dos Municípios brasileiros.
Apesar de permitir a participação da população interessada nos proces-
sos políticos ligados às mais diversas áreas, é importante ressaltar que a
participação nos Conselhos se faz através da representatividade, ou seja:
a sociedade deve se organizar para eleger membros que a representem

1608
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dentro deste instrumento de participação. Assim, o seu funcionamento


correto e democrático depende – como sustenta a Teoria Discursiva do
Direito e da Democracia de Jürgen Habermas (2002) – não só dos processos
dentro das esferas institucionalizadas de participação, mas também da
ligação dos participantes com os canais periféricos não institucionalizados
e mais amplos, que permitem que as demandas sociais sejam elencadas e
discutidas antes de chegarem aos Conselhos. Dessa forma, o Conselho é o
locus onde essas demandas da base social seriam novamente tematizadas,
a fim de serem levadas ao Sistema Administrativo com uma decisão, de
adoção obrigatória, já definida em processo de dialógico amplo.

2.4 O Sistema Municipal de habitação de Belo horizonte

O nascimento e crescimento dos movimentos sociais em prol da refor-


ma urbana ou em prol da moradia digna não possuem desenvolvimento
linear e gradual, assim como a própria política municipal voltada para a
habitação e para as questões urbanas em Belo Horizonte. No entanto, é
possível afirmar que esse desenvolvimento foi impulsionado pelo modelo
segregador da origem e evolução da cidade, levando ora ao fortalecimento
destes movimentos, ora a sua desestruturação por políticas autoritárias,
ora a sua reestruturação a partir de novos modelos políticos.
A maior vitória destes movimentos ocorre, sem dúvida, após a abertura
política e a promulgação da Constituição de 1988, momento em que se
pode considerar que Belo Horizonte, através da pressão exercida por tais
movimentos sociais, reestruturou sua política urbana em uma plataforma
democrática e participativa que permitiu a participação direta da popu-
lação na discussão e resolução das questões urbanas. Em 1993, criou-se
do Fundo Municipal de Habitação, que pode ser considerado o primeiro
marco legislativo para a criação do Sistema Municipal de Habitação (SMH)
e do Conselho Municipal de Habitação (CMH) na capital mineira.
O Sistema Municipal de Habitação de Belo Horizonte prevê uma
estrutura complexa de gestão urbana que engloba o planejamento, o

1609
financiamento e a execução das atividades por meio da coordenação
de órgãos diversificados, sendo possível, ao menos formalmente, a par-
ticipação social em quase todas as etapas. Toda a PMH se organizaria
em torno da participação de grupos organizados, chamados Núcleos de
Moradias. Os Núcleos de Moradia são associações, geralmente regionais,
ligadas à luta pela moradia, criados como mecanismos de participação
nos Orçamentos Participativos Habitacionais (OPH). A função dos OPH
era a de definir quais famílias deveriam ser priorizadas nos programas
habitacionais do município. Para participar dos OPHs a pessoa deveria
se filiar a um Núcleo, participar de todas as reuniões da associação, na
qual eram indicadas, pelos próprios associados, como família prioritária
através de uma auto-organização.
O Fundo Municipal de Habitação teria a função de financiar os pro-
gramas de iniciativas habitacionais do município, que seriam executadas
e planejadas, pela Urbel (Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte) e
pela Secretaria Municipal de Habitação.
O CMH constituiu um dos principais canais institucionais de partici-
pação da sociedade civil na Política Municipal de Habitação e, logo, um
dos pilares mais importantes do SMH. O CMH foi concebido como órgão
deliberativo e competente para analisar, discutir e aprovar os objetivos,
diretrizes e prioridades da Política Municipal de Habitação de Belo Hori-
zonte. Criado pela lei municipal nº 6.508 de 12 de janeiro de 1994, o CMH
pauta-se pela lógica participativa do Sistema Municipal de Habitação, ao
chamar os setores representativos da população de baixa renda do mu-
nicípio para participar e deliberar sobre suas políticas urbanas.
De acordo com o Art. 10 da Lei nº 6.508/94, o CMH tem caráter de-
liberativo e competência para analisar, discutir e aprovar, dentre outros
os objetivos, diretrizes e prioridades da Política Municipal de Habitação,
inclusive propondo a reformulação ou revisão de planos e programas,
a captação e aplicação de recursos para a produção de moradia, além
do acompanhamento e avaliação da gestão econômica e financeira dos
recursos voltadas para habitação.

1610
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Em 1994, antes da promulgação do Estatuto da Cidade e da afirmação


do princípio da Gestão Democrática da Cidade, pode ser considerado
inovador o fato do Conselho ter definido as diretrizes fundamentais da
Política Municipal de Habitação de Belo Horizonte, de maneira aberta e
participativa. A ideia que permeia tal atribuição de responsabilidade é a
descentralização das decisões, de modo que a população, que é a principal
atingida e interessada por essas diretrizes, pudesse participar de modo
ativo na sua definição.
O CMH agiu, desde meados da década de 1990, como canal de partici-
pação popular, tendo influência direta em diversos ganhos da população de
baixa renda de Belo Horizonte, como a criação do Orçamento Participativo
Habitacional, a afirmação dos programas de produção habitacional a partir
da co-gestão e auto-gestão, o Programa de Reassentamento de Famílias
Removidas em Decorrência da Execução de Obras Públicas (PROAS) que
foi atuante no município durante muitos anos, entre outros.

3 O CONSELhO MUNICIPAL DE hABITAÇÃO DE BELO


hORIZONTE: ANáLISE INSTITUCIONAL E FUNCIONAMENTO

3.1 Aspectos metodológicos

A primeira parte da análise consiste na observação da estrutura ins-


titucional do Conselho Municipal de Habitação. Seu escopo é avaliar se
há falhas formais na sua estrutura e se elas podem atrapalhar ou impedir
a atuação democrática do Conselho. Foram utilizadas na para a análise
institucional do CMH as mesmas variáveis de Faria e Ribeiro (2010) em seu
estudo de 123 Conselhos, a saber: grau de institucionalização, democrati-
zação e representação. Como grau de institucionalização foram analisados
os seguintes indicadores: o acesso às informações sobre o Conselho e
seu Regimento Interno, frequência das reuniões e a existência de estru-
turas organizacionais. Na análise do grau de democratização avaliou-se
os seguintes indicadores: a composição do Conselho, em relação a sua

1611
pluralidade e proporcionalidade; como se dá a formulação das regras de
funcionamento e definição da pauta. No grau de representação sopesou-se,
como indicadores, como são definidas as entidades que podem concorrer
ao assento no Conselho; o número de cadeiras por segmento e como são
escolhidos os conselheiros.
Na segunda parte da análise foi realizada análise de conteúdo das
atas do Conselho. Essa análise baseou-se nas atas divulgadas no Diário
Oficial do Município de Belo Horizonte e nas atas disponibilizadas pela
Secretaria do CMH no período de abril de 2010 a março de 2013. O perío-
do em questão foi selecionado por abranger dois mandatos diferentes do
Conselho (o 2010/2011 e o 2012/2013).
Como explicita CUNHA (2007), a análise do conteúdo dessas atas pode
levar a uma compreensão qualitativa e quantitativa das reuniões do Con-
selho. Para a realização desse estudo foi empreendida a análise das atas,
categorizando os temas das reuniões, as falas dos participantes, assim
como os contextos em que elas foram expressas. A partir dessa catego-
rização foi possível classificar e agregar os temas adotados no Conselho,
avaliando-os tanto sob a perspectiva qualitativa, assim como quantitativa
mediante a verificação da frequência com que os temas foram abordados.
Durante o período selecionado para efetuar a análise das atas, de abril
de 2010 a junho de 2013 (39 meses), foram realizadas 32 reuniões do CMH,
sendo que uma delas foi a Conferência Municipal de Habitação de 2011
e, no período, ocorreram quatro reuniões extraordinárias. Os meses em
que as reuniões não ocorreram, concentraram-se no segundo semestre
de 2012, no qual, em um período de seis meses, somente ocorreram
duas reuniões. Apenas 17 das 32 atas analisadas foram publicizadas por
intermédio do Diário Oficial do Município de Belo Horizonte (DOM/BH).
As outras 15 atas analisadas foram disponibilizadas em meio digital pela
Secretaria do CMH em março de 2013 para fins desta pesquisa.
Das 32 atas analisadas, só em 18 constou lista de presença. Nas outras
14, concentradas a partir de meados do segundo semestre de 2011, não
houve lista dos presentes nas reuniões, sendo que, neste caso, somente
foi avaliada a presença dos conselheiros no biênio 2010/2011.

1612
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

3.2 Análise institucional

Como grau de institucionalização, verificou-se que as informações


técnicas sobre o CMH são de fácil acesso, pela internet, no Portal da
Prefeitura de Belo Horizonte (BELO HORIZONTE, 2013) assim como a
existência de estruturas organizacionais em sua composição, tais como
Conselho de Ética, Câmara Técnica de Controle e Avaliação e Câmara
Técnica Legislativa. No que diz respeito à frequência das reuniões, a partir
da análise das atas percebeu-se que, no segundo semestre de 2012, várias
reuniões não foram realizadas, fato que será posteriormente explorado.
Considerando os dados coletados tem-se que o CMH possui elevado grau
de institucionalização.
Como grau de democratização, verificou-se que o Conselho não é
paritário, já que há nove representantes da Sociedade Civil e 11 repre-
sentantes do Poder Público (nove do Poder Executivo e dois do Poder
Legislativo). Apesar de ser discutível o fato de que o conselho poderia ser
considerado paritário já que teria 9 representantes da sociedade civil, 9
do Poder Executivo e 2 do Poder Legislativo, realizando uma espécie de
contrapeso entre a base do Poder Público e da Sociedade Civil, o que se
verificou na análise dos dados desta pesquisa, é que esse contrapeso não
ocorre na prática, sobretudo no momento das votações para as decisões
do Conselho. Por esse motivo, os dois representantes do Poder Legislati-
vo foram incluídos na base de representação do Poder Público. Quanto a
definição das pautas para as reuniões do CMH, verificou-se que elas são
elaboradas pela presidência do Conselho, não havendo liberdade para que
os conselheiros participem dessa elaboração. A sistemática atual apre-
senta um retrocesso em relação às práticas anteriores, vez que no biênio
de 2010/2012, por exemplo, verificou-se que os temas a serem discutidos
nas reuniões seguintes eram votados no final de cada reunião. No entanto,
essa prática não se repetiu no biênio seguinte. Considerando o problema
da paridade e da definição da pautas das reuniões, conclui-se que o grau
de democratização do CMH é baixo.

1613
Acerca do critério do grau de representação averiguou-se que podem
indicar e votar em candidatos para concorrer ao assento do Conselho
as entidades que se inscreverem junto à Companhia Urbanizadora de
Belo Horizonte (URBEL). O número de cadeiras por segmento é definido
na lei instituidora do Conselho e os conselheiros da sociedade civil são
escolhidos em plenária aberta na qual votam as entidades cadastradas.
Os conselheiros do Poder Público são indicados pelo Poder Executivo
(nove membros) e os do Poder Legislativo (dois membros) pela Câmara
de Vereadores. Assim, conclui-se que o grau de representação formal do
Conselho é alto.
A análise estrutural do Conselho apresentou alguns resultados que
poderiam, a princípio, deturpar o processo democrático de formação de
vontade na gestão da política pública municipal de habitação. Em primeiro
lugar, foi averiguado que, de julho de 2012 até março de 2013, o Conse-
lho se reuniu apenas duas vezes, nos meses de outubro e dezembro de
2012. A falta das reuniões foi justificada pelo Conselho devido, primeiro,
a questões burocráticas envolvendo a substituição dos representantes do
Poder Legislativo à época das eleições legislativas e, no início de 2013,
envolvendo a mudança de governo no Poder Executivo, do qual vários
membros saíram do Conselho em virtude de mudanças de secretarias.
Quanto a estas justificativas, é importante salientar dois pontos. O primeiro
diz respeito à cobrança dos Conselheiros para que as reuniões voltassem
a ocorrer, como foi salientado por muitos deles em entrevistas realizadas
para essa pesquisa, demonstrando uma pressão dos mesmos sobre a
Prefeitura, pelo seu direito de deliberar. O segundo ponto diz respeito ao
fato de que a maior parte dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas
de Belo Horizonte não deixou de funcionar devido aos fatos ocorridos
(mudanças no período pré e pós-eleitoral), mesmo que todos eles tenham
a participação do Poder Executivo e, alguns deles, do Poder Legislativo.
Outro grave déficit democrático detectado é o fato de o Conselho não
possuir uma agenda previamente divulgada das reuniões em meios de
grande circulação para a população em geral, como ocorre com outros

1614
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Conselhos do Município, como o Conselho Municipal de Política Urbana


ou o Conselho Municipal de Cultura. Há uma agenda municipal disponível
no Portal da PBH na qual se apresenta um cronograma das reuniões da
maior parte dos Conselhos da cidade, no entanto, o CMH não está incluído
nesta agenda. A necessidade dessa inclusão e de uma agenda planejada
é uma das reivindicações dos Conselheiros que ainda não foi atendida.
O fato de não haver liberdade de decisão sobre os temas que serão
abordados nas reuniões do Conselho representam, igualmente, grande
estreitamento de seu funcionamento democrático, já que impedem que
assuntos de importância social sejam propostos para discussão profunda
pelos representantes. Assim como será verificado na análise das atas, a
seguir, muitos temas são meramente citados durante as reuniões e, por
não serem pauta da reunião, são abordados de forma superficial, sem se-
rem discutidos ou gerarem alguma decisão. Por vezes, durante a reunião
do Conselho, os representantes são impedidos de discutir determinados
assuntos porque eles não estão incluídos na pauta de discussão. Em que
pese haver, supostamente, liberdade de indicação de assuntos para as pau-
tas das reuniões, uma vez que todos podem sugerir assuntos para serem
tratados nos encontros seguintes, no entanto, é função da presidência da
Urbel decidir se os assuntos sugeridos são pertinentes, ou não, de serem
discutidos e, logo, incluídos na pauta.

3.3 Análise do funcionamento do Conselho,


a partir do estudo das atas das suas reuniões

Acerca das presenças nas reuniões, as 18 listas de presença analisadas


do biênio 2010/2011, demonstraram que, em média, 11 Conselheiros da
Sociedade Civil – sejam suplentes, sejam titulares - compareciam às reuni-
ões. O número total de Conselheiros da Sociedade Civil era composto por
9 titulares e 9 suplentes. Em relação ao Poder Executivo percebe-se que,
em média, 8 Conselheiros compareceram às reuniões, sendo frequentes
(em 9 das 18 reuniões analisadas) as reuniões em que não havia número

1615
mínimo de titulares ou suplementes deste seguimento (9 representantes).
Em relação ao Poder Legislativo percebe-se que em média houve repre-
sentação deste seguimento em apenas 3 reuniões do CMH.
Nas reuniões do Conselho são tratados, ou ao menos citados, em mé-
dia, 5 assuntos por reunião. Em relação ao conteúdo destes assuntos, O
Quadro 1 resume os principais assuntos tratados e o número de reuniões
em que tais assuntos foram abordados:

Quadro 1
Assuntos tratados nas reuniões do CMH de Belo Horizonte (2010-2013)

Fonte: Atas de 32 reuniões do Conselho Municipal de Habitação de BH (Abril de 2010 a Março de 2013)

Os dados apresentados nas atas estudadas podem ser vistos como uma
continuação ou reflexo dos resultados da análise institucional. A primeira
conclusão obtida do Quadro 1 é que o CMH atua de modo restrito no que
concerne aos assuntos que deveria tratar.
Os movimentos em prol da moradia em Belo Horizonte podem ser
divididos em dois grupos distintos. O primeiro são os movimentos envol-
vidos com a política institucional de produção de moradia no município,
organizada a partir de Núcleos de Moradia. O segundo grupo social são
os movimentos em prol da reforma urbana de Belo Horizonte, como o
Movimento das Brigadas Populares ou o Fórum de Moradia do Barreiro,
que atuam, dentre outros modos, com a ocupação de terrenos subutili-

1616
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

zados para fins de moradia social e participando da dinâmica das Vilas e


Favelas do Município.
Na estruturação do SMH os Núcleos foram criados como uma forma de
organizar a chamada “fila habitacional”, de modo que o déficit habitacional
pudesse ser sanado a partir de uma ordem de prioridade entre as famílias.
Tais Núcleos adentraram a política institucional de produção de moradia
através do OPH e são a representação popular dentro do CMH. Já os outros
movimentos sociais permaneceram em posição de enfrentamento à Pre-
feitura, como maneira de pressão por uma atuação habitacional e urbana
mais efetiva, mas foram excluídos dos canais institucionais de participa-
ção. Deste modo, assuntos como o Programa Vila Viva6 e as ocupações
urbanas surtem pouca discussão ou deliberação dentro do Conselho, pois
tais Núcleos não são ligados ao movimento das ocupações urbanas, ou
mesmo aos movimentos relacionados às favelas. Por outro lado, assuntos
como o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), programa federal
voltado para produção de moradia, foi tema do Conselho em mais de 20
reuniões, sendo tratada em quase todas as reuniões desde meados de 2011.
Desde a adesão do município ao PMCMV, em 2009, o CMH tem discutido
critérios para priorização das famílias a serem atendidas pelo Programa
que mudaram de forma significativa a dinâmica desta escolha, dando a
mesma chance hipotética de conseguir a habitação para os integrantes
e não integrantes dos Núcleos de Habitação. Pode-se também avaliar, a
partir da análise das atas, que apesar de muitos assuntos serem verda-
deiramente discutidos e deliberados, o CMH participa apenas do último
momento de decisão sobre as políticas públicas habitacionais, ou seja,
ele não está incluído no processo de formação ou discussão das políticas
sobre as quais delibera desde a base, mas somente participa do processo
para legitimar o processo administrativo de tomada de decisões desta
política. Assim, por exemplo, toda a discussão do PLHIS foi caracterizada
como uma capacitação com o tema “o que é o PLHIS?” e, apesar desta
capacitação ter ocorrido durante várias reuniões do CMH, contou com
poucas intervenções, sugestões ou participação direta dos Conselheiros
no processo de construção do Plano7.

1617
Da mesma forma, quando o CMH tratou da venda de terrenos públicos
para destinação do dinheiro ao Fundo Municipal de Habitação, as princi-
pais ideias vieram do Poder Público que apenas necessitava do aval dos
Conselhos para legitimar esta decisão. Não houve significativa discussão
em torno do assunto, que foram abordados durante as reuniões de junho,
julho e novembro de 2011, e a aprovação do projeto de lei que autorizou
a venda dos terrenos em junho de 2012. No entanto, o projeto teve uma
repercussão negativa na mídia, entre os movimentos sociais em prol da
reforma urbana e no Ministério Público Federal, que denunciou o proje-
to como uma tentativa de privatização dos espaços públicos da cidade
(NASSIF, 2012)
Outro ponto importante diz respeito à capacidade propositiva do Con-
selho. Em uma primeira análise percebeu-se que houve vinte e quatro reu-
niões em que surgiram proposições ou encaminhamentos, configurando
alto teor propositivo do CMH. No entanto, analisando-se mais atentamente
foi possível perceber que somente quatro destas vinte e quatro propostas
foram, ao menos, devidamente discutidas, mesmo que não gerassem reso-
luções normativas. As quatro propostas que foram efetivamente discutas
em outro momento foram: a criação de oficina para esclarecimento de
dúvidas do PLHIS, o adiamento da entrega do PLHIS para possibilidade
de maoires esclarecimentos, construção de uma cartilha do PLHIS de
esclarecimento para os Núcleos de Moradias e aprovar em resolução os
critérios para as entidades se cadastrarem na PMH. Os outros vinte enca-
minhamentos ou proposições foram esquecidos, demonstrando, assim,
a incapacidade do Conselho encaminhar e levar a discussão as ideias
e proposições que não dizem respeito a assuntos meramente técnicas.
Dentre eles podem-se citar importantes proposições que afetam diremente
a dinâmica municipal e de organização do CMH, como: a mudança das
reuniões para um local mais acessível aos conselheiros; a sugestão de
que famílias do mesmo Núcleo obtivesssem apartamentos próximos,
para manutenção de laços sociais; a criação de uma ouvidoria do CMH;
a criação e distribuição de um jornal do CMH; a solicitação que os gastos

1618
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o orçamento do Fundo Municipal de Habitação fosse apresentado para


aprovação e não somente as contas do mesmo.

4 CONCLUSÃO

O resultado alcançado pela pesquisa é de que o CMH de Belo Horizonte,


apesar de antigo e relativamente consolidado, possui falhas institucionais
intrínsecas na sua formação, como a não paridade e a não liberdade de
proposição da ata que, se não impedem, certamente dificultam a realização
de uma atuação verdadeiramente democrática.
As conclusões da primeira análise se ligam ao fato do o Conselho não
dispor de composição paritária e das pautas de reunião serem de respon-
sabilidade da Urbel, fato que pode resultar em problemas de distorção dos
resultados do Conselho favorecendo o ponto de vista do Poder Público8.
Deste modo, se o CMH tem adotado no discurso a posição da Urbel e da
Prefeitura de Belo Horizonte isto pode ser explicado, ao menos em parte,
por tais fatores. A segunda análise detectou que as discussões do CMH
são feitas de modo superficial, abrangendo poucas temáticas e excluindo
muitos assuntos de grande importância do rol de discussões do Conselho.
O trabalho não detectou participação social nula ou a busca de coop-
tação das opiniões, dentro dos canais democráticos de participação, para
silenciá-las. Ao contrário, o trabalho demonstra que tal ideia é reducionista
de uma realidade de participação muito mais complexa, com aspectos
positivos e negativos. O conselho é um espaço de discussão democrático,
mas hoje mantém sua estrutura de participação restrita a uma única espé-
cie de movimento social, não possibilitando abranger todos os assuntos
que mereciam ser tratados pelo mesmo.
O Conselho Municipal de Habitação, criado como fruto e conquista
dos movimentos sociais organizados de Belo Horizonte, durante muitos
anos foi importante na delimitação da Política Municipal de Habitação do
Município. Se, de alguma forma, durante esse trajeto de quase 20 anos,
o Conselho está perdendo sua capacidade de interferir de modo positivo

1619
na realidade urbana da cidade, deve-se começar a repensar sua lógica e
estrutura de funcionamento.
Os referenciais teóricos deste trabalho partem dos pressupostos que
os canais institucionais de participação podem funcionar de forma de-
mocrática e inclusiva sem serem cooptados pelo sistema administrativo
ou pelos processos políticos clientelistas. Se algum desses fatores ocorre
é porque é chegada a hora da sociedade, como principal interessada nas
medidas tomadas por esse canal, se reapropriar desse espaço participativo
através da pressão pela sua reestruturação e reorganização para que ele
volte a ser sinônimo de democracia e representatividade.

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NOTAS

1 Mestre e doutora em Direito Administrativo pela UFMG. Professora do Departamento de Direito Público da
Faculdade de Direito da UFMG e da Universidade Fumec. Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq.
E-mail: mariaterezafdias@yahoo.com.br.
2 Graduanda de Ciências do Estado na Faculdade de Direito da UFMG, bolsista de iniciação cientifica pelo
CNPq. E-mail: stefane.rabelo@yahoo.com.br.
3 A gentrificação urbana pode ser entendida como um processo de elitização que gera grande especulação
imobiliária em áreas antes ocupadas pela população socialmente carente, resultando na mudança em tais
localidades em relação a hábitos e valores econômicos (NOBRE, 2003). Quando uma área se torna atraente
para uma população mais abastarda ocorre a valorização geral nos preços da terra e custo de vida. Tal pro-
cesso, também chamado de expulsão branca, faz com que o preço de vida em tais locais não seja acessível
para a população carente antes residente, levando à sua mudança para outras localidades, geralmente mais
distantes do centro e com custo de vida mais barato.
4 De acordo com Berenice Guimarães (1991, p. 64), “[...] as cafuas são casas de barro, coberta de capim; os

1623
barracos são feitos de tábuas e cobertos de capim ou zinco e ambos podem estar localizados em áreas invadidas.”
5 A área operária se localizou, espacialmente, na região central-sul onde, atualmente, se situa o Barro Preto.
6 O Programa Vila Viva visa a reestruturação física e ambiental dos assentamentos de baixa renda de Belo
Horizonte, a partir de diagnóstico integrado dos principais problemas da área em com definição das prioridades
locais e das ações necessárias para atendê-las, com a participação da comunidade em todas as etapas (PIMEN-
TA, 2008). O Programa teve inicio em 2005 no maior complexo de favelas de Belo Horizonte, o Aglomerado
da Serra e até hoje o Vila Viva já foi executado em 12 comunidades da região central de Belo Horizonte. Das
diversas críticas levantadas sobre a implementação do Vila Viva, as principais são a cerca da falta de partici-
pação efetiva da população, falhas na regularização fundiária, morosidade para pagamento das indenizações
das pessoas removidas, pressão para abandona das casas entre outros. A esse respeito consultar documentário
“Uma Avenida no Meu Quintal” (PROGRAMA PÓLOS DE CIDADANIA, 2011).
7 O tema do PLHIS foi tratado nas reuniões de junho e julho de 2010, de setembro de 2010 a janeiro de 2011,
de março a maio de 2011e em junho, julho e novembro de 2011.
8 De acordo com a Lei 6508/94, o Conselho é constituído de 20 membros titulares, sendo 6 representantes das
entidades populares, 2 representantes vinculados à produção de moradia, 9 representantes do poder executivo,
2 do poder legislativo e 1 membro escolhido pelo Executivo em listas tríplices apresentadas por entidades de
profissionais liberais relacionadas com o setor.

1624
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Para levar a sério a democracia


participativa: diagnóstico dos entraves
da participação popular na gestão
democrática da cidade
Wilson Levy1

INTRODUÇÃO

Defender o tema da democracia participativa – de um modo geral – e a


participação pública – em particular – no Brasil do século xxI, por incrível
que pareça, ainda exige a necessidade de empreender enorme esforço
argumentativo, com chance igualmente grande de insucesso.
Situação que não deixa de causar estranheza, na medida em que o
país exerceu, desde a volta do regime democrático, em meados dos anos
80, verdadeiro protagonismo nessa seara. De acordo com Denise Vitale,
no quadriênio imediatamente posterior à promulgação da Constituição
Federal de 1988 (89-92), cerca de 12 municípios brasileiros (inclusive duas
capitais – Belo Horizonte-MG e Porto Alegre-RS) adotavam mecanismos
de controle, intervenção e participação popular na gestão de parte de seus
orçamentos2, no já notabilizado Orçamento Participativo, a indicar um
prenúncio alvissareiro, que nunca se concretizou totalmente.
Não se verifica, de forma consistente, um consenso social – e prin-
cipalmente disposição institucional3 – acerca da importância de desen-
volver ferramentas congêneres em outros contextos. É o caso da gestão
democrática das cidades (art. 2, II, da Lei Federal n. 10.257/2001), que,
como a própria disciplina legal enuncia, não prescinde da “participação da
população e de associações representativas dos vários segmentos da comu-
nidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas
e projetos de desenvolvimento urbano”. Comando geral, que atinge todo o
planejamento e a gestão das cidades, com impacto Embora inserido no

1625
ordenamento jurídico há mais de 10 anos, tal dispositivo ainda não encon-
trou correspondência prática na realidade da grande maioria das cidades
brasileiras (a confirmar a desabonadora citação de Jürgen Habermas4).
Parece não haver dúvidas de que a principal razão está na persistência
de um modelo de representação política fracassado, responsável por agre-
gar à jovem democracia brasileira os mesmos sintomas de esgotamento
de democracias maduras europeias. Tal fracasso se funda em padrões
disfuncionais de comportamento, que mesclam a existência de uma le-
gislação avançada acerca da matéria, descumprida pelo Poder Público,
passando por iniciativas ainda pouco consistentes de mobilização popular,
a despeito das grandes manifestações públicas organizadas em torno
do problema da mobilidade urbana nas grandes metrópoles brasileiras,
ocorridos em junho de 2013.
Esse, porém, não será o enfoque do presente trabalho, que pretende
se debruçar, ainda que sem a pretensão de esgotar o assunto, sobre a
seguinte questão: por que a democracia participativa, a despeito desse
retrospecto histórico e no contexto do direito à cidade – e mais espe-
cificamente em sua gestão democrática – ainda encontra significativa
dificuldade de realização?
Tentarei enfrentar essa pergunta em três etapas, ao apresentar o fun-
damento filosófico e normativo-legal da democracia participativa (1) e,
em seguida, verificar se seus pressupostos encontram correspondência
prática ou se há limitações estruturais, de um ponto de vista institucional,
para a participação e quais são as dificuldades individuais e coletivas de
acesso à esfera pública (2), e a como medir a qualidade da participação
(3). Estou convencido que a principal contribuição deste ensaio será o de-
talhamento do problema, o que poderá dar abertura a novas investigações
que se voltem a discutir formas de superação.
Para tanto, recorrerei às principais contribuições teóricas de autores
como Jürgen Habermas e John Rawls acerca do tema da deliberação públi-
co, e também a estudos empíricos acerca da participação. Espera-se como
resultado enriquecer o debate contemporâneo acerca da participação,

1626
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sobretudo no planejamento das cidades, sem olvidar do dever de fazê-lo


a partir de uma matriz interdisciplinar, responsável pela ampliação de seu
horizonte reflexivo.

1. OS FUNDAMENTOS DA DEMOCRACIA
PARTICIPATIVA: ENTRE A LEGITIMIDADE
PROCEDIMENTAL E A JUSTIÇA SUBSTANTIVA

Em artigo recente, publicado na Revista Trans/Form/Ação, intitulado


“Sobre o caráter ‘abstrato’ da democracia deliberativa”, Luiz Paulo Rou-
anet retorna a uma questão que já havia discutido no célebre “O debate
Habermas-Rawls: uma apresentação”5, qual seja, as diferenças sutis entre
os projetos procedimental (habermasiano, ligado à noção de legitimidade)
e substantivo (rawlsiano, ligado à dimensão da justiça). Justamente em
razão dessa sutileza, a contraposição dos programas filosóficos dos dois
autores se assemelharia a uma “fraterna” briga de família, afinal, de acordo
com Rawls, ainda que Habermas enfatize a dimensão procedimental de
justiça – ou seja, a forma, o processo – ele não abre mão de um conteúdo
substantivo, associado ao resultado do procedimento.
Com isso, é possível dizer que os dois filósofos apresentam bons
argumentos em favor de um projeto democrático denso, no qual o
procedimento mira em referências substanciais concretas. E como se-
ria esse projeto? Para Habermas, em seu seminal Direito e Democracia
(Faktizität und Geltung), tal projeto principiaria, basicamente, na máxima
de que a legitimidade do Direito deriva de procedimentos nos quais as
normas encontram o assentimento dos envolvidos, gestado no debate
de várias idéias e concepções de mundo que produzem, a partir de seu
confrontamento em contextos intersubjetivos, um conceito construído
de forma procedimental.
O locus gerador do caráter procedimental da democracia é a esfera
pública e o medium, a ação comunicativa, que propicia uma orientação
na base de pretensões de validade. Ela não é informativa e nem prática,

1627
razão pela qual não fornece prescrições de como agir concretamente
para o desempenho das tarefas práticas, não sendo, portanto, normativa.
A normatividade da razão comunicativa está na obrigatoriedade de
quem age comunicativamente apoiar-se em pressupostos pragmáticos
contrafactuais, empreendendo idealizações e atribuindo significados idên-
ticos a enunciados, e levantando pretensões de validade ao que profere.
Deve também considerar imputáveis os destinatários, ou seja, enxergá-los
como verazes consigo mesmos e com os outros. Com Habermas:

ao fazer isso, o que age comunicativamente não se defronta com


o “ter que” prescritivo de uma regra de ação e, sim, com o “ter
que” de uma coerção transcendental fraca – derivado da validade
deontológica de um mandamento moral, da validade axiológica
de uma constelação de valores preferidos ou da eficácia empírica
de uma regra técnica. Um leque de idealizações inevitáveis forma
a base contrafactual de uma prática de entendimento factual, a
qual pode voltar-se criticamente contra seus próprios resultados,
ou transcender-se a si própria. Deste modo, a tensão entre idéia
e realidade irrompe na própria facticidade de formas de vida
estruturadas lingüisticamente. Os pressupostos idealizadores
sobrecarregam, sem dúvida, a prática comunicativa cotidiana;
porém, sem essa transcendência intramundana, não pode haver
processos de aprendizagem.6

A perspectiva da auto-organização democrática, nesses termos, de-


termina também o próprio sentido do Direito, quando viabiliza em seu
bojo que “A concepção republicana vincula a legitimidade da lei ao pro-
cedimento democrático da gênese dessa lei, estabelecendo assim uma
conexão interna entre a prática da autodeterminação do povo e o império
pessoal da lei”7.
Já para John Rawls, o conteúdo ideal da prática discursiva deve atender
aos requisitos da imparcialidade, igualdade, abertura (no sentido de acesso
à informação), falta de coerção e unanimidade8, que parece convergir para
o projeto habermasiano, ainda que com premissas e objetivos distintos.
É o que sustenta Rouanet, ao recordar que, para Rawls, “Habermas não
deixa inteiramente de fora, e não pode deixar, questões substantivas. Mesmo
na especificação das regras da comunicação ideal, há também conteúdo
substantivo”9, ou seja, a própria noção de comunicação ideal.

1628
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Num primeiro olhar, não parece haver incompatibilidade entre uma


forma amadurecida de democracia, calcada na dimensão da participação,
e o texto do art. 2, II, do Estatuto da Cidade. Ao determinar que a gestão
democrática das cidades se dá através da “participação da população e
de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na
formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos
de desenvolvimento urbano”, o dispositivo apenas traduz, no plano legal e
na situação concreta do planejamento das cidades, o que preconiza parte
significativa da teoria democrática contemporânea.
Onde está o problema, então? Talvez o reconhecimento de Haber-
mas, citado por Rouanet, de que seu projeto democrático é abstrato, o
que conduziria a um caráter essencialmente substancial da democracia
deliberativa. Com ele:

No mundo que nós conhecemos, as comunicações e decisões


ocupam normalmente seções próprias de espaços e de tempo,
consomem energia própria, exigem um investimento próprio
em termos de organização, etc. A escolha de temas e de con-
tribuições, que acontece sob a pressão do tempo, implica, além
disso, custos em termos de decisões proteladas ou perdidas. Além
disso, a produção do saber, organizada conforme uma divisão
de trabalho, gera uma distribuição desigual de competências
e de conhecimentos. E os meios de comunicação, dotados de
uma seletividade própria, também se imiscuem. De outro lado,
as estruturas da esfera pública refletem assimetrias inevitáveis
no tocante às informações, isto é, quanto ás chances desiguais
de intervir na produção, validação, regulação e apresentação de
mensagens. E é preciso acrescentar a essas limitações sistêmicas
a distribuição casual e desigual das capacidades individuais. As
fontes de participação em comunicações políticas são geral-
mente escassas, ou seja: o tempo do qual cada indivíduo dispõe
é exíguo; a atenção prestada aos temas, que têm a sua própria
história, é episódica; a disposição e a capacidade de dar contri-
buições próprias para esses temas é pouca; finalmente, existem
enfoques oportunistas, afetos, preconceitos etc., que prejudicam
uma formação racional da vontade10.

Talvez não tenha sido a intenção do filósofo de Starnberg, mas a


citação, cheia de pormenores, abre um amplo horizontes de temas que,
transpostos à realidade brasileira, adquirem relevante significado e, de
certa forma, responde parcialmente ao ponto seguinte do texto.

1629
2. LIMITAÇÕES ESTRUTURAIS,
DIFICULDADES INDIVIDUAIS E COLETIVAS

O ponto anterior trouxe os delineamentos teóricos e o desenho norma-


tivo legal da participação no contexto da gestão democrática das cidades,
mas não respondeu à pergunta: qual a razão desse conteúdo não encontrar
correspondência prática que o confirme como prática institucional? Em
outras palavras: por que ele não é efetivo?
Para avançar nessas questões é necessário recordar algumas informa-
ções. Como se afirmou na introdução, há grande bagagem histórica em
torno do tema da participação. A própria disciplina constitucional acerca
da política urbana é consequência de um dos capítulos mais sublimes da
história recente do Brasil, na medida em que se calcou em ampla mobi-
lização de vários atores institucionais e movimentos sociais em torno da
questão da reforma urbana.

De acordo com James Holston,

Protestos contra os aumentos no custo de vida e a insuficiência


do salário mínimo se expandiram dos bairros para a cidade, para
o estado e para a organização nacional nos anos 1980, reunindo
milhões de assinaturas por várias iniciativas nesse trajeto. O
Primeiro Encontro Nacional do Movimento do Custo de Vida,
em 1979, reuniu mais de duzentos representantes da cidade e
de confederações estaduais. Esse movimento foi pioneiro em
novas estratégias de mobilização, no que foi chamado de nova
pedagogia da cidadania. Patrocinava teatro de rua, grupos de
jovens, petições de porta em porta, comissões de fábrica e pro-
duções musicais, além de fóruns de discussão e debates. Esses
novos métodos de participação cívica contribuíram de forma
significativa para o desenvolvimento de uma nova compreensão,
entre os pobres urbanos, de que necessidades socioeconômicas
fundamentais poderiam ser repensadas em termos dos direitos
humanos dos cidadãos11.

Nada obstante, o que parecia ser o coroamento dessa mobilização, con-


sequência de uma rica atividade dos movimentos sociais, não caminhou
como devia. Embora traga o imperativo da participação democrática na
gestão das cidades (no Estatuto da Cidade), a lei não especifica – e portanto

1630
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

deixa em aberto – a forma como se dará essa participação. E isso mesmo


diante do fato de que seu fundamento, a Constituição Federal de 1988,
tenha, através inserido esse modelo de democracia como um dos funda-
mentos da República (ao instituir, por exemplo, que “Todo o poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição” – o grifo é nosso – nos termos do art. 1º,
Parágrafo Único), o seu caráter disfuncional, já aludido no início do tra-
balho, torna a efetividade desse comando um projeto de difícil concreção.
Dar concretude ao comando constitucional é dever do Poder Executivo
que, contudo, “joga” com seu caráter abstrato e prefere litigar ao invés de
(a) incentivar a regulamentação da matéria ou (b) encontrar mecanismos
políticos de torná-lo efetivo. E o faz através de um fabuloso aparelho de
representação de seus interesses em juízo, com enorme corpo de pro-
curadores judiciais em todas as esferas (federal, estadual e municipal).
Isso mesmo passados mais de 11 anos da edição do Estatuto da Ci-
dade. Paga o Brasil a conta da imaturidade em relação a esse debate,
pese embora o proativismo dos movimentos sociais, que culminou na
redação dos arts. 182 e 183 da Constituição, o que repete a assertiva
da introdução: enquanto não houver certeza de que a participação é
imprescindível, não será dado o passo adiante, no sentido de qualificar
e disciplinar essa participação.
Sem cumprimento e regulamentação, os espaços de deliberação se
tornam verdadeiras sessões de catarse coletiva. É o caso das audiências
públicas: quem se sente estimulado a participar de uma audiência a respei-
to de um tema de interesse do bairro em que vive, por exemplo, além de
não receber previamente uma pauta bem definida de discussão, se depara
com um espaço caótico, que não raro termina por decisão arbitrária de
quem a convocou, sem que os objetivos (mesmo os gerais) instituídos de
início tenham sido atingidos, e sem que conclusões procedimentalmente
construídas – para recorrer a Habermas – tenham sido definidas.
Nem sempre, também a audiência pública vincula a ação governamen-
tal, o que torna ainda mais vazio seu resultado prático. Sem o atendimento

1631
dessa premissa, desestimula-se o participante de opinar e dedicar seu
tempo a defender suas posições, sobretudo quando o Estado se vê como
dissociado da sociedade civil organizada, ou, quando muito, devedor de
satisfação nos períodos que antecedem as eleições, no esquema clássico
da representação.
Ainda que observados os critérios discursivos para que os resultados
da deliberação sejam legítimos, nem sempre eles atendem à finalidade
de tensionar a esfera política à tomada de decisão. Eis, então, o decisivo
problema estrutural da participação, que abre caminho para outra disfun-
cionalidade típica da experiência democrática brasileira, na medida em
que, enquanto as iniciativas de participação da sociedade civil organizada
patinam e encontram dificuldade para ecoar nas esferas de decisão polí-
tica, essa dificuldade não é encontrada pelos grandes players econômicos
do mercado imobiliário que, ao concentrarem significativa quantidade de
recursos, financiarem campanhas eleitorais e terem condições reais de
intervenção, colonizam o planejamento das cidades. Não espanta, então,
que as grandes metrópoles brasileiras se transformaram em verdadeiros
laboratórios de problemas urbanos, tais como o binômio especulação
imobiliária/espoliação urbana, (i)mobilidade urbana, precariedade legal
de parcela significativa das habitações, déficit habitacional etc, todos im-
bricados com questões como meio ambiente, violência urbana e outros.
No entanto, superada essa falha, mediante a regulamentação do artigo
que dispõe sobre a gestão democrática das cidades, estaria resolvido o
problema da participação? Seguramente que não. Há dificuldades coletivas
e individuais – algumas já evidenciadas por Habermas na última citação –
que impedem o efetivo acesso à esfera e ao debate público.
Nas grandes cidades, a questão da mobilidade - tema unificador dos
movimentos populares que tomaram suas ruas em junho de 2013 - é res-
ponsável por subtrair tempo precioso dos cidadãos. Deslocar-se de casa
para o trabalho e para lá retornar ao final do expediente é, por vezes, ta-
refa que consome 3, 4 horas. Como dedicar tempo, então, à participação?
Não há, também, o reconhecimento do valor público deste ato. Dificil-

1632
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mente empregadores e patrões serão complacentes com faltas e atrasos,


ainda que decorrentes da participação do subordinado numa audiência
pública. Haveria que se normatizar essa situação, tornando sua prática
institucional tal como ocorre com a participação de um cidadão em lista
de jurados nos tribunais?
Como em muitos casos haverá a reunião de componentes com perfis
diferentes (econômicos, sociais, nível de instrução). Há que se estar pre-
parado para isso, afinal é recorrente a existência de profundas assimetrias
nas condições de fala dos atores envolvidos. A dimensão da linguagem,
aqui, ganha relevo: deverá ser tecnicamente adequada, mas não pode ser
inacessível ao não-especialista. O risco de se perder em termos de partici-
pação pela não compreensão dos resultados pelos envolvidos é enorme.
Uma saída possível, mas de complexa execução, é a elaboração de
uma etapa posterior às discussões públicas, nas quais representantes téc-
nicos dos diversos atores coletivos envolvidos ficassem responsáveis pela
elaboração de documentos adequados às várias situações de aplicação:
elaboração de lei, postulação em juízo, criação de uma política pública etc.
Outro ponto coligado é a composição das audiências públicas. Há espa-
ço apenas para atores coletivos que preencham as regras de legitimidade
da representação ou será possível aos indivíduos atomizados participarem?
Há como conceber um modelo misto? Ou a qualidade da participação está
diretamente relacionada à diversidade de sujeitos atuantes? Como tornar
esse esquema operacional?
Evidente, portanto, que uma série de questões - e o rol apresentado
aqui não é exaustivo - precisa ser respondida antes de se efetuar a escolha
por um modelo de participação que, nada obstante, precisa ser escolhido,
desde que atendidos critérios normativos mínimos.

3. COMO MEDIR A qUALIDADE DA PARTICIPAÇÃO?

Superadas as dificuldades estruturais, coletivas e individuais, restaria


discutir as formas de aferição da qualidade da participação. Tal medida é

1633
importante porque permite aprimorar a participação, otimizar os indica-
dores obtidos nas sessões públicas de discussão e orientá-los para formas
mais efetivas de intervenção e controle social.
O primeiro passo é assumir que seria simplista demais defender que a
totalidade de cidadãos tenha acesso irrestrito a um microfone numa audi-
ência pública. Há uma limitação física, posto que não há espaço disponível
para reunir eficazmente todos os habitantes de São Paulo, à maneira da
democracia direta ateniense. E não se obteria, ainda isso fosse possível,
um resultado prático adequado.
Daí que é necessário fazer uma pergunta anterior: dentro do processo
deliberativo participativo, quem tem legitimidade representativa para
falar em nome da diversidade de componentes sociais interessados na
resolução dos problemas urbanos?
Inúmeros são os envolvidos. São associações de bairros, de mulheres,
são coletivos, sindicatos. São estudantes, associações de imigrantes (legais
e ilegais). São indígenas e sua representação legalmente prevista. São
associações de classe, empresários. São pesquisadores, clubes de serviço,
igrejas. Daí emana a qualidade da participação, embora seja necessário
especificar um pouco mais os critérios definidores dessa participação. Em
primeiro lugar, é certo que há grupos nos quais se observa identidade de
propósitos. Então, como garantir a qualidade representação no contexto
da participação? Há que se construir, então, um critério de aferição legi-
timidade. É necessário que as organizações exerçam eficaz fiscalização
acerca da coerência do discurso de seu representante.
Antes disso, é necessário que a Administração Pública, notadamente
do Poder Executivo, garanta transparência à agenda de ações políticas
dentro de um recorte temporal razoável (p. ex.: um ano), suscetível de
entrar na agenda da deliberação pública. Esse será o ponto de partida
para fomentar os processos participativos, que terão maior impacto, de
início, nas questões que envolvam um público específico e limitado (p. ex.:
mudança nas regras de zoneamento de um determinado bairro).
Questões complexas, como a discussão de um Plano Diretor, decerto

1634
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

representam um incremento de detalhes no contexto da participação. Por


isso, é preciso haver tempo para que os atingidos problematizem a questão.
Tudo Tempo e prazo, de modo a não tornar o exercício da participação de-
masiado extenso e ineficaz, tal como as formas de assembleísmo nas quais
a reunião serve como espaço discutir quando será a próxima assembleia.
Há que se ter uma agenda de debates prévios, mas também há que se
exigir dos participantes conhecimento mínimo acerca do que se está a
discutir e também aderência, no momento da participação, com da mani-
festação com o tema em pauta. E, para saber antes o que será discutido,
é preciso elaborar uma engenharia que considere etapas prévias de for-
mulação de propostas, a partir de um fio condutor central, seguidas, após
prazo razoável, de outros encontros destinados a discutir o que restou
estabelecido como tema de pauta. A depender da complexidade do tema
e do quadro de divergências, deve ser facultada a possibilidade de novos
encontros, até que as questões ecoem a opinião de maioria (qualificada?).
Melhor operacionalidade se observará se os debates forem setoriais
e específicos no âmbito dos grupos de interesse. Cada qual, responsável
pela produção de um diagnóstico associado às suas particularidades. Mas,
novamente, estes pontos correspondem apenas a um diagnóstico inicial,
sem a pretensão de esgotar o assunto.

ALGUMAS CONCLUSÕES

O presente estudo pretendeu levantar algumas questões acerca da


participação. De maneira colateral, o objetivo foi evidenciar que o tema é
controvertido e longe de estar concretizado, mesmo após, reitere-se, mais
de 10 anos da edição do Estatuto da Cidade e 25 anos da promulgação da
Constituição Federal de 1988.
Em meio ao calor das reivindicações populares do mês de junho de
2013, porém, o tema ganha maior significado, na medida em que repre-
senta um caminho para um maior controle social da gestão das cidades,
ao mesmo tempo que apresenta novos problemas e desafios. O amadure-

1635
cimento da ideia e dessas questões laterais é de fundamental importância
para que a participação democrática atinja sua finalidade. Por isso, é papel
da Universidade atuar como caixa de ressonância das vozes da rua, ao
traduzi-la em reflexão transformadora, da mesma forma que é dever do
Estado oferecer espaços e respaldo institucional para que o tema perma-
neça na pauta de discussões públicas.
É passado o tempo do protagonismo estatal divorciado da sociedade
civil. Mais de 70% da população brasileira mora nas cidades. As grandes
metrópoles estão, cada vez mais, se tornando fonte de transtornos e en-
traves ao desenvolvimento humano. Com o crescimento da complexidade
do problema urbano, pensar a cidade se tornou dever de todos. Esse o
desafio do porvir, do qual depende toda a posteridade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

COELHO, Vera Schattan P. e NOBRE, Marcos. Participação e Deliberação – Teoria


Democrática e Experiências Institucionais no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Edi-
tora 34, 2004.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia v. 2. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
__________. Três modelos normativos de Democracia. In. Lua Nova, n. 36, 1995.
__________. Verdade e justificação – Ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota.
São Paulo: Loyola, 2002.
HOLSTON, James. Cidadania Insurgente - disjunções da democracia e da modernidade
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ROUANET, Luiz Paulo. O debate Habermas-Rawls: uma apresentação. In. Reflexão
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__________. Sobre o caráter ‘abstrato’ da democracia deliberativa. In. Trans/Form/
Ação (Marília) v. 36, 2013.

1636
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

NOTAS

1 Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela Univer-
sidade de São Paulo. Professor convidado da Escola Paulista da Magistratura. E-mail: wilsonlevy@gmail.com.
2 VITALE, Denise. Democracia direta e poder local: a experiência brasileira do orçamento participativo. In. CO-
ELHO, Vera Schattan P. e NOBRE, Marcos. Participação e Deliberação – Teoria Democrática e Experiências
Institucionais no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 243.
3 Coincidência ou não, situação análoga ocorre nas discussões sobre o papel e o alcance das chamadas co-
missões da verdade, o que diz muito sobre a maturidade de nossa sociedade civil para a discussão de temas
de interesse nacional. Afinal, ainda nas comissões da verdade, ainda não conseguimos compreender que há
uma diferença fundamental entre as infrações legais cometidos por agentes estatais e os delitos praticados
por indivíduos ou grupos de pessoas, qual seja, a de que a violação de direitos pelo Estado, a estrutura insti-
tucional que se justifica em razão da preservação de direitos e garantias fundamentais, representam, por sua
natureza, crimes de lesa-humanidade. O resultado desse impasse, que perdura mesmo após quase 30 anos do
fim do período de exceção (de 1964 a 1985), é evidente por si e muito danoso para, simbolicamente, superar
os traumas do passado e impedir a repetição de erros históricos. Com efeito, enquanto o país patina no debate
sobre a necessidade de uma reflexão que olhe com cuidado sobre aquilo que aconteceu, não se consegue
avançar no debate sobre os meios e limites destinados a aprimorá-la.
4 Com ele: “(...) o problema de Hegel retorna de outra maneira, quando consideramos aquelas sociedades em
que o teor imaculado do texto constitucional não é mais do que a fachada simbólica de uma ordem jurídica
imposta de forma altamente seletiva. Nesses países, a realidade social desmente a validade das normas, para
cuja implementação faltam as condições efetivas e a vontade política. Uma semelhante tendência à ‘brasilização’
poderia até mesmo se apossar das democracias estabelecidas do Ocidente”. HABERMAS, Jürgen. Verdade e
justificação – Ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2002, p. 222.
5 ROUANET, Luiz Paulo. O debate Habermas-Rawls: uma apresentação. Reflexão (PUC-Campinas), v. xxV, n.
78, 2000, p. 111-117.
6 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de Democracia. In. Lua Nova, n. 36, 1995, p. 20.
7 Idem, p. 42.
8 Essa a lista fornecida por Luiz Paulo Rouanet em “Sobre o caráter ‘abstrato’ da democracia deliberativa”,
com base na obra RAWLS, John. Reply to Habermas, p. 425. Op. Cit., p. 185.
9 ROUANET, Luiz Paulo. Op. Cit., p. 185.
10 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia v. 2. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p. 54. Assinale-se a força da citação. De certa forma, ela abala a convicção, que este autor
compartilha, de que a obra de Habermas padece de intransponíveis déficits sociológicos, na esteira do pensa-
mento, entre outros, de Axel Honneth.
11 HOLSTON, John. Cidadania Insurgente - disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. Trad. Claudio
Carina. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 323.

1637
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Participação e cooptação nos


Conselhos de Política Urbana
do Município de Campos
dos Goytacazes - RJ
Rodrigo Anido Lira1
Ludmila Gonçalves da Matta2

1 - INTRODUÇÃO

A Constituição de 1988 é o marco histórico para entendermos a nova


dinâmica da gestão municipal. A descentralização ocorrida no modelo
público pós-constituição transferiu o poder decisório para instâncias me-
nores, especialmente os municípios, que enfrentam o desafio de gerir seus
próprios orçamentos e com autonomia para a criação de políticas públicas
com alcance social sintonizadas aos anseios sociais. Outro argumento
favorável a descentralização é que a esfera de poder local permite maior
atendimento as demandas sociais e possibilita o acompanhamento das
ações e políticas públicas por parte da sociedade, criando um ambiente
propício ao exercício democrático.
Por outro lado, segundo Serra e Terra3 o aumento dos encargos sociais
a cargo dos municípios e a recente tendência de recentralização de receitas
exclusivas da união dificultam a sustentabilidade financeira dos municípios
também potencializadas pela Lei Responsabilidade Fiscal. Terra, Oliveira
e Givisiez4 afirmam que a maior parte dos municípios, por não apresen-
tarem fontes de receitas próprias, dependem quase que exclusivamente
dos repasses dos fundos de participação dos municípios – FPM.
Santos, Costa e Andrade5 ampliam esta questão afirmando que o critério
de transferência de recursos dos fundos municipais privilegia os estados
com maior número de municípios não levando em conta os que realmente

1639
precisam de complementação financeira às suas receitas próprias para
equilibrar o orçamento.
Fugindo a tendência da maioria dos municípios brasileiros encontram-
-se aqueles que se beneficiam de rendas compensatórias vindas da ex-
ploração de recursos naturais como royalties e participações especiais
que potencializam a criação de políticas redistributivas e um ambiente
democrático que possibilite investimentos mais igualitários na cidade. É o
caso de Campos dos Goytacazes que foi escolhida como alvo da pesquisa.
Neste contexto, A discussão sobre a democracia no âmbito da gestão
municipal ganha novas dimensões ao se analisar alguns mecanismos de
participação da sociedade como, por exemplo, os conselhos municipais,

(...) cuja orientação central é a busca do aumento da participação


direta da sociedade na gestão municipal e da eficiência e da efe-
tividade das políticas públicas que vêm sendo descentralizadas
desde a segunda metade dos anos 806.

Ainda assim, os próprios autores alertam para os riscos decorrentes


deste processo sendo o mais crítico a possibilidade do conselho municipal
se transformar numa estrutura burocrática formal, com agentes cooptados
pelo executivo municipal.
Neste contexto, pretende-se neste artigo analisar como participam os
atores, quais os mecanismos de controle utilizados no processo de par-
ticipação, os mecanismos de poder assim como também a força política
de determinadas questões.

2 - CANAIS DEMOCRáTICOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL

Segundo Nunes7, as experiências inovadoras, no Brasil, em termos


de participação popular e de gestão voltada para o social, ocorreram na
segunda metade dos anos 70, ainda em plena ditadura militar. A partir
da segunda metade da década de 1980, Lages, em Santa Catarina, Boa
Esperança, no Espírito Santo e Piracicaba, em São Paulo, são algumas
das prefeituras que vão inspirar um conjunto de experiências de política

1640
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

participativa que se desenvolverão no Brasil ao longo dos anos.


Os movimentos sociais representaram um papel central em todo esse
processo. As práticas participativas deles oriundas (os Conselhos Populares
de Saúde da Zona Leste de São Paulo, a Assembleia do Povo, de Campinas,
o Conselho Popular do Orçamento, de Osasco) também colaboraram para
o arcabouço de ações que motivaram as gestões municipais a implementar
políticas mais inclusivas.
Além disso, houve experiências internacionais que tiveram influên-
cia no Brasil, principalmente ligadas a gestões locais com governos de
esquerda. É o caso das prefeituras italianas geridas por representantes
do partido comunista italiano e, um pouco mais tarde, na Espanha, a ex-
periência de Barcelona que, a partir de 1979, teve sucessivas gestões de
esquerda (PSOE- Partido Socialista Obrero Español), com grande sucesso
administrativo e social 8.
O fator preponderante para o surgimento de tais práticas participativas
foi a insurgência, nas décadas de 1970 e 1980, de “novos atores sociais que
resgataram o termo sociedade civil e inauguraram, através de um amplo
processo reivindicativo, novas formas de práticas políticas e formatos de
sociabilidade, fundados em bases mais igualitárias” (GECD)9
Essa participação política, segundo Dias10, é o meio pelo qual o cidadão
comum incorpora-se aos processos de formulação, decisão e implemen-
tação de políticas públicas, em outras palavras, a participação política é
uma forma dos indivíduos influenciarem nas decisões políticas que são
tomadas por seus representantes. Essa influência pode ser medida desde
a pressão política realizada por protestos da opinião pública, incluindo
a mídia, até a incorporação de demandas populares por meios de canais
institucionalizados entre o Estado e a Sociedade Civil.
Até o surgimento destas inovações, as práticas políticas, historicamente
no Brasil, se pautavam, quase que exclusivamente, por esquemas popu-
listas, clientelistas e por mecanismos de cooptação política. O primeiro
sinal de ruptura com este modelo é a emergência dos Movimentos Sociais
Urbanos (MSU) dos anos 1970. Segundo Scherer-Warren11, o desenvol-

1641
vimento dos MSUs constituiu-se num marco de mudanças nas formas
tradicionais de atuação das classes populares havendo uma separação
entre o tradicional e o novo.
Neste cenário, o tradicional estaria, destacadamente, ligado às práticas
políticas clientelistas das sociedades amigos de bairros (SABs) do final
da década de 1940. Já o novo modelo de atuação das classes populares
caracteriza-se por meio de uma atuação política baseada: i) na autonomia
frente ao Estado e aos partidos políticos; ii) na negação e no combate às
práticas clientelistas e às estratégias de cooptação política; iii) no enfren-
tamento direto com o poder público.
De acordo com Calderón12, os MSUs emergentes responsáveis por este
novo modelo organizavam-se em torno da verificação do cumprimento
dos acordos firmados com o poder público, tendo como instrumento de
pressão frente aos governantes as mobilizações públicas quando da não
consecução de tais compromissos. Tornaram-se assim,

(...) germens de irradiação de uma nova cultura política-demo-


crática que redefiniu as relações Estado-sociedade civil, concre-
tizadas na atuação de uma série de administrações municipais
estaduais e municipais progressistas que, ao longo da década
de oitenta, esboçaram novos padrões de relacionamento com
as classes populares13.

Os novos padrões institucionais de relacionamento entre a sociedade


organizada e o Estado possibilitaram o surgimento de novos canais de
natureza poliárquica, nos quais se destacam: o Orçamento Participativo
e a criação dos Conselhos Municipais, esta última a partir da Constituição
de 1988. Tais mecanismos possibilitaram não só aos movimentos sociais,
mas também à sociedade organizada, uma forma de participação mais
ampla, que alcançava, para além das negociações de bens públicos, as
formulações de diretrizes para determinadas políticas públicas, bem como
a interferência direta na alocação dos recursos municipais.
Em um país onde tradicionalmente se observa a hierarquização das
relações sociais e a apropriação do público pelo privado, a criação destes
espaços institucionalizados de interação revela-se fundamental para o

1642
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

fortalecimento da qualidade democrática e para construção de novos


parâmetros que possibilitam a concepção de uma mudança na gramática
política de até então.
A Constituição de 1988 é o marco histórico-político para entendermos
a nova dinâmica da gestão municipal. A descentralização ocorrida no
modelo federativo pós-constituição transferiu parte do poder decisório
para instâncias menores, especialmente os municípios, que, agora autô-
nomos, enfrentam o desafio de gerir com seus próprios orçamentos (lato
sensu) políticas públicas setorizadas advindas das novas competências
constitucionais.
Ressalte-se que o conceito de descentralização utilizado neste trabalho
segue o entendimento de Marta Arretche14:

“Descentralização” aqui significa genericamente a “institucionali-


zação no plano local de condições técnicas para a implementação
de tarefas de gestão de políticas sociais”. Assim, é indiferente se
a descentralização da política sob análise toma a forma da esta-
dualização e/ou da municipalização. A noção “local” estará, na
verdade, referida à unidade de governo para a qual se pretende
transferir atribuições.

A descentralização como transferência de competências referente


ao pacto federativo, instituído pelo artigo 18 da Constituição Federal de
1988, encontra na autonomia dos entes federados a discricionariedade
necessária à atuação de suas novas atribuições.
Essa autonomia assume quatro contornos essenciais: i) autonomia
política – eleição direta para os cargos dos Poderes Executivo e Legislativo;
auto-organização através da elaboração da própria lei de organização
político-administrativa; impossibilidade de intervenção de outras esferas
de governos, salvo em casos previstos na Constituição Federal; ii) autono-
mia administrativa – capacidade de organizar suas atividades, criar seus
quadros de servidores, gerir e prestar os serviços de sua competência;
iii) autonomia financeira – capacidade de gerir e arrecadar seus próprios
tributos; iv) autonomia legislativa – capacidade para legislar sobre os as-
suntos de sua competência, seja ela privativa, exclusiva ou concorrente.

1643
Dentro deste contexto, o tema acerca da gestão municipal e da demo-
cracia ganha novas dimensões quando se somam os recentes mecanismos
de participação da sociedade organizada e os interesses que entram em
conflito pelos recursos críticos, agora geridos pelos municípios. Em uma
perspectiva normativa, os conselhos municipais se apresentam como
uma das maiores mudanças institucionais da descentralização federativa,

(...) cuja orientação central é a busca do aumento da participação


direta da sociedade na gestão municipal e da eficiência e da efe-
tividade das políticas públicas que vêm sendo descentralizadas
desde a segunda metade dos anos 80.15

Assim, os conselhos municipais por poderem atuar em certos setores


de ação governamental como saúde, educação, direitos da criança e do
adolescente, patrimônio cultural, desenvolvimento urbano entre outros,
com o poder para formular propostas de programas e políticas publicas,
assim como para fiscalizar o setor ao qual está envolvido16, acabam se
tornado, em certa medida, uma das referências:

(...) ao aperfeiçoamento e ao aprofundamento das instituições


democráticas, com vistas a permitir sua operação nos interstícios
eleitorais, acoplando aos mecanismos clássicos da representação
formas institucionalizadas de participação política, que permi-
tam a ampliação do direito de vocalização das preferências dos
cidadãos e o controle público do exercício do poder17.

Dentre as características observadas nos conselhos e que são importan-


tes para o atendimento das expectativas sobre tais órgãos, pode-se citar “a
sua função deliberativa ou consultiva, sua composição interna e seu grau
de flexibilidade para incorporar novas representações coletivas”18. Estes
atributos sugerem maiores ou menores chances de êxito para a resposta
ao desafio da democracia. Sob essa perspectiva, a participação e a repre-
sentação são as variáveis em torno das quais as demais questões gravitam.
Conceitualmente, os conselhos municipais são órgãos públicos do Po-
der Executivo local19. Segundo Di Pietro20, órgão público é “uma unidade
que congrega atribuições exercidas pelos agentes públicos que o integram

1644
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

com o objetivo de expressar a vontade do Estado”. Por conseguinte, os


conselhos municipais, no que tange ao resultado de suas deliberações,
fazem com que as vontades, os interesses agregados ou consensualiza-
dos dos participantes, inseridos na arena de discussão, passem a ser a
vontade do próprio Estado.
Deste modo, se os conselhos gestores são órgãos públicos, estes são,
como conceitua Bucci21 “órgãos públicos de natureza sui generis”, uma
vez que, apesar de as atividades dos conselhos darem-se em um con-
texto sócio-político de descentralização, eles acabam inseridos em outro
processo, o de desconcentração, por meio do qual há a distribuição de
competências dentro de uma mesma pessoa jurídica, organizada hierar-
quicamente. “As atribuições administrativas são outorgadas aos vários
órgãos que compõem a hierarquia, criando-se uma relação de coordenação
e subordinação entre uns e outros” 22.
Ainda assim, Santos Junior, Ribeiro e Azevedo23 alertam para os riscos
decorrentes deste processo sendo, o mais crítico, a possibilidade do con-
selho municipal se transformar numa estrutura burocrática formal, com
agentes cooptados pelo executivo municipal.
Este cenário sinaliza que a simples existência dos conselhos não garan-
te a sua eficácia. A promoção da experiência de participação e de gestão
democrática das políticas públicas no âmbito local não é consequência
natural da implantação dos conselhos. É fundamental que se perceba com
clareza as dificuldades para a consolidação de espaços públicos verda-
deiramente participativos.
Estas dificuldades se justificam, nas palavras de Teixeira24 referentes
ao novo cenário democrático, pois “o coronelismo acaba se adaptando
às novas estruturas gerenciais e às novas exigências democráticas, pre-
valecendo firme, sobrevivendo aos novos tempos políticos”. Ao longo
do tempo as práticas políticas participativas na vida pública assumiram
diversas matizes no processo de interlocução Estado-sociedade organi-
zada, a partir dos comportamentos políticos que também oscilavam entre
processos de cooptação e representação democrática.

1645
3–O ESTATUTO DAS CIDADES E OS
MECANISMOS PARTICIPATIVOS LOCAIS

Em 10 de julho de 2001 foi sancionado pelo então Presidente da Repú-


blica Fernando Henrique Cardoso o “Estatuto das Cidades”, Lei n0 10.257
que tem como objetivo estabelecer
as diretrizes gerais da política urbana, como expõe o texto: “estabelece
normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da proprie-
dade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos
cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” 25. Esse projeto resultou de
um longo movimento social em prol de uma política urbana com gestão
democrática. Os principais capítulos (e que também causaram mais polê-
mica) dessa lei tratam da função social da propriedade; da obrigatoriedade
do estado em garantir aos cidadãos direitos urbanos e do desenvolvimento
de uma gestão democrática da cidade.
No intuito da efetivação do Estatuto das Cidades foi criado em 01 de
janeiro de 2003 o Ministério das Cidades, órgão responsável por superar
o recorte setorial das políticas urbanas. De acordo com texto da Contro-
ladoria Geral da União:

A criação do Ministério das Cidades constituiu um fato inovador


nas políticas urbanas, na medida em que superou o recorte
setorial da habitação, do saneamento e dos transportes para
integrá-los levando em consideração o uso e a ocupação do solo.
Sua estrutura constitui hoje um paradigma, não só em território
brasileiro, mas como em toda a América Latina. Outro aspecto
fundamental de sua criação está na busca da definição de uma
política nacional de desenvolvimento urbano em consonância
com os demais entes federativos (Municípios e Estados), demais
Poderes do Estado (Legislativo e Judiciário) além da participação
da sociedade, visando a coordenação e a integração dos inves-
timentos e ações nas cidades do Brasil.26

Esse entendimento é compartilhado por Maricato (2007) apud Bernhardt


(2009), para a autora as estruturas administrativas urbanas do Brasil eram
carentes, deficientes e fragmentadas e precisavam passar por reformas
que redefinissem atribuições operacionais na tentativa de aproximar as
políticas urbanas da realidade urbana brasileira.

1646
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Junto ao Ministério, foi elaborada a Política Nacional de Desenvolvimen-


to Urbano (PNDU) que define diretrizes para a participação da sociedade
civil no planejamento urbano regulamentando o que já estava previsto
no Estatuto das Cidades. Como vimos, a importância do Estatuto está
também em estabelecer os mecanismos para uma gestão democrática por
meio da participação da população e de associações representativas dos
vários segmentos da comunidade. O estatuto prevê essa participação na
formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e pro-
jetos de desenvolvimento urbano. Como exposto no Art.43. para a gestão
democrática da cidade, deverão ser utilizados os seguintes instrumentos
: I – órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e
municipal; II – debates, audiências e consultas públicas; III – conferências
sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e mu-
nicipal; IV – iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano.
Em 26 de maio de 2006 entrou em vigor o Decreto n0 5.790 que re-
gulamenta os Conselhos das Cidades - ConCidades, órgão colegiado de
natureza deliberativa e consultiva, integrante da estrutura do Ministério
das Cidades, que tem por finalidade estudar e propor as diretrizes para
a formulação e implementação da Política Nacional de Desenvolvimento
Urbano, bem como acompanhar e avaliar a sua execução. Entretanto, a
formação do ConCidades é anterior a este decreto, ele teve início com a 10
Conferência das Cidades realizada em 2003. Essa Conferência teve como
objetivo definir as diretrizes da criação do ConCidades dando lhe atribui-
ções, estrutura e composição, assim como também realizar as votações
dos membros titulares e suplentes do Conselho. Todavia, a criação do
ConCidades estava condicionada a uma medida provisória, além desse
não possuir caráter deliberativo, sendo apenas consultivo. Em pesquisa
realizada junto aos conselheiros Bernhardt27 atenta:

Apesar de um nítido desenvolvimento em prol da participação da


sociedade na elaboração das políticas públicas urbanas, muitos
conselheiros levantam a questão do caráter do Conselho. Por
não ter caráter deliberativo e apenas consultivo, seu real poder
dentro da estrutura de decisões é questionada.

1647
Com o Decreto n0 5.790, o cenário muda, o ConCidades torna-se de-
liberativo, fator relevante no que tange a uma democracia participativa.
Como expõe Fedozzi et al:

Ora, em princípio, o resultado de uma deliberação deve atender


a dois critérios: fidelidade e univocidade. Por um lado, deve
refletir do modo mais fidedigno possível todo o processo que o
precedeu. Por outro, sua conclusão precisa ser suficientemente
clara e inequívoca de modo a poder comunicar eficazmente, ao
público externo, os resultados alcançados.28

Ele acrescenta ainda o pensamento de Conhen “que entende a de-


liberação como um modelo ideal do qual as instituições devem tentar
se aproximar”29. O caráter deliberativa constitui a efetivação do modelo
de democracia participativa, para Fedozzi et al é possível vislumbrar o
impacto das mudanças das instituições formais na prática política, nas
identidades, valores, poderes e estratégias.
Por outro lado, os estudos realizados têm demonstrado um dis-
tanciamento entre aquilo que é proposto e o que de fato é efetivado no
que tange a participação da sociedade na gestão pública.
O objeto de estudo dessa pesquisa retrata bem esse distancia-
mento, apesar de haver uma indicação do Ministério das Cidades quanto
a criação e efetivação do ConCidades, no Município de Campos dos
Goytacazes a criação do ConCidades ainda não é uma realidade, apesar
da ocorrência das Conferências Municipais das Cidades ( fórum dedica-
do a eleição dos conselheiros) o consenso sobre a criação e eleição dos
membros do ConCidades ainda não foi estabelecido.

4 – A POLÍTICA URBANA EM CAMPOS DOS GOYTACAZES

O Município de Campos dos Goytacazes está situado na Região Norte


do Estado do Rio de Janeiro, sendo o maior município fluminense em área
territorial. De acordo com o censo de 201030 Campos dos Goytacazes tem
uma população de 463.731habitantes.
Por ser o maior município das regiões norte e noroeste fluminense,

1648
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Campos ocupa um papel de grande relevância para o desenvolvimento


do interior do Estado do Rio de Janeiro, ela é considerada uma cidade
com inúmeras fontes de oportunidades e de condições de progresso, em
diversas atividades setoriais, desde as do setor primário até o setor ter-
ciário, perpassando pelos polos universitários, do setor sucroalcooleiro
até o petróleo, combustível que sustenta não só a condição de vida de
diversos munícipes, mas também da administração pública municipal que,
por sua vez, recebe uma arrecadação vultosa dos chamados royalties da
exploração do petróleo. Todavia, a imagem que se projeta em diversos
cantos da região, senão a nível nacional, é da existência de um oásis de
prosperidade econômica que motiva diversas pessoas a um êxodo regional
rumo a uma cidade que, se por um lado guarda oportunidades nos setores
de construção civil, petrolíferos, serviços e formações acadêmicas das
mais diversas, por outro guarda uma relação de periferização que vem
crescendo nos últimos anos31.
Apesar do grande montante de recurso que Campos recebe, em 2012
recebeu de royalties e participações especiais R$1.354.233.313,47 (In-
foroyalties, 2013), o município não é nenhum exemplo de qualidade de
vida, os indicadores sociais sinalizam para graves problemas, como o da
educação. Em 2011 Campos ficou em último lugar no Estado na nota do
IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Estudos como de
Piquet32 demonstram que o recebimento de recursos não reverbera em
melhorias concretas para a população, o mau uso dos recursos públicos é
frequentemente propalado na mídia e em outros canais de comunicação.
Em relação ao desenvolvimento urbano, o debate se inicia na constru-
ção de um novo Plano Diretor para cidade, o último é de 2007. Conforme
estabelecido nas diretrizes da construção do Plano Diretor esse deve ser
construído mediante a participação da sociedade civil. Em Campos a so-
ciedade civil no que tange as questões urbanas está organizada por meio
dos Conselhos Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo; de Habitação
e de Transportes. Todavia, apesar da indicação do Ministério das Cidades
para a criação do Conselho Municipal das Cidades, no Município de Cam-

1649
pos, apesar de haver um movimento em prol da criação desse Conselho,
ele ainda não foi efetivado.
A 50 Conferência Municipal das Cidades realizada nos dias 28 e 29 de
maio de 2013 foi o palco do embate da polêmica construção do ConCidades
no Município. A 50 Conferência Municipal das Cidades teve como tema
“Quem muda a cidade somos nós: Reforma Urbana já!” e foi realizada
como etapa preparatória para a Conferência Nacional. Em Campos a
Conferência foi organizada pelos secretários municipais de Meio ambiente
Wilson Rodrigues Cabral Filho, que presidiu o evento, e pelo Secretário
de Planejamento e Gestão Fábio Augusto Viana Ribeiro e contou com a
participação de representantes da sociedade civil, das associações de
classe, partidos políticos e membros de instituições acadêmicas, assim
como também de outros representantes do governo.
Nesse ínterim, alguns participantes utilizaram a realização da 50 Con-
ferência para postular a efetivação do ConCidades através da posse dos
membros que foram eleitos na conferência anterior. Na 40 Conferência
Municipal da Cidades houve uma eleição para o ConCidades, todavia,
essa eleição está envolvida numa forte polêmica. Por um lado, as pessoas
que foram eleitas pleiteiam a posse no ConCidades, por outro, temos
o poder público Municipal deslegitimando essa eleição alegando que a
mesma ocorreu quando a plenária estava esvaziada não tendo quórum
suficiente para eleição.
Todavia, ficou clara a posição do poder público municipal em não dar
posse aos conselheiros, assim como também não efetivar o ConCidades.
Outra alegação do poder público é que os Conselhos Municipais de Meio
Ambiente e Urbanismo, Habitação e Transportes já efetivados serviriam
como substitutos do ConCidades.
Em contrapartida, os representantes que foram eleitos conselheiros na
conferência anterior pleiteavam que se fosse feita outra eleição durante
a 50 Conferência. Entretanto, como eles haviam impetrado uma ação na
justiça para que fosse dada a eles a posse, os representantes do governo
determinaram que a nova eleição ficasse suspensa até decisão judicial. Isso

1650
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

posto, analisamos que apesar de haver um movimento por parte da socie-


dade civil em participar, os canais de participação estão restritos. Como
colocado, há no município os Conselhos de Meio Ambiente e Urbanismo,
Habitação e Transportes. Desses três Conselhos o único que está de fato
em funcionamento é o de Meio Ambiente e Urbanismo, os demais apesar
de existirem legalmente não existem na prática. Os conselheiros não se
reúnem, não participam, fato este comprovado durante a 50 Conferência,
na qual a participação dos membros desses Conselhos não foi observada.
O Conselho de Meio Ambiente e Urbanismo apesar de estar em fun-
cionamento encontra-se cooptado. Percebe-se que a existência e per-
manência deste conselho no cenário local tem como base o interesse do
município em manter uma entidade que respalde as suas ações e iniciativas
políticas comumente questionadas pelo Ministério Público e/ou Tribunal
de Contas. A certeza do endosso das ações públicas por parte do conselho
se dá em função da fragilidade da estrutura deste órgão que, conforme
Lira33 apresenta, a maioria dos conselheiros com potencial significativo
de cooptação. Em alguns casos os que apresentam baixo potencial de
cooptação estão alheios aos debates mais técnicos por desconhecimento
da área temática do conselho.
Esta capacidade de articulação e poder do município no âmbito deste
conselho é evidenciado por meio de um caso que retrata uma das poucas
vezes em que o Conselho de Meio Ambiente de Campos pareceu ter uma
atuação eficiente (porém não isenta) relacionada a construção de uma
ponte localizada no centro da cidade que ficou conhecida como ponte “Ro-
sinha”. O conselho se posicionou contra a construção do empreedimento
de iniciativa do governo do estado alegando localização inapropriada.
A governadora na ocasião era a atual prefeita do município, Rosinha
Garotinho (que deu nome a ponte) e o prefeito municipal do período do
impasse era um desafeto político, Arnaldo Vianna. A articulação do gover-
no municipal junto ao conselho de meio ambiente conseguiu paralisar as
obras por alguns meses até que o governo estadual ganhasse na justiça
a autorização para continuar a obra.

1651
Este exemplo denota claramente que o conselho possui potencial de
funcionamento alinhado a sua finalidade original, mas este depende das
“intenções democráticas” e interesses do Executivo Municipal que coor-
dena os mecanismos decisórios participativos locais possuindo, desta
forma, poder para interferir por meio da cooptação impactando direta-
mente no conjunto de liberdades que asseguram o exercício dos direitos
de cidadania, comprometendo o processo democrático. No município, a
força política do governo é proporcional a sua capacidade de cooptação,
assim quanto maior a cooptação mais recursos para manter o controle
de suas bases.

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A promoção da experiência de participação e de gestão democrática


das políticas públicas, no âmbito local não é conseqüência natural da im-
plantação dos conselhos, ou seja, apesar de se constituir em um avanço no
tocante a democracia a simples existência dos conselhos municipais não
garante a sua eficácia. Assim, é fundamental que se perceba com clareza
as dificuldades para a consolidação de espaços públicos verdadeiramen-
te participativos sendo o risco mais crítico decorrente deste processo, a
possibilidade do conselho municipal existir somente em lei como no caso
do ConCidades e do Conselho de Habitação não funcionando na prática
ou ainda se transformar numa estrutura burocrática formal, com agentes
cooptados pelo executivo municipal como no caso do Conselho de Meio
Ambiente de Campos.
O objeto de estudo alia-se a análise da participação popular como de-
safio para efetivação de uma gestão democrática no Município de Campos
dos Goytacazes. Apesar das diretrizes colocadas no Estatuto da Cidade, a
participação da sociedade civil é objeto de controvérsias. Quando não, a
criação de fóruns colegiados é objeto de disputas e controle por parte do
poder público. A não efetivação do ConCidades é um importante exemplo
de como o poder público age em relação aos canais de participação na

1652
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

gestão das questões urbanas.


Tendo em vista o vultoso orçamento do Município, observamos que
nesse contexto as disputas e a luta pelo controle desses recursos ficam
evidentes, por um lado, temos o poder público “maquiando” uma situação
de transparência e gestão democrática, e por outro, membros da sociedade
civil alijados da participação e do debate sobre o uso dos recursos públicos.

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NOTAS

1 Doutor em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF. Professor da Univer-
sidade Candido Mendes/Campos. rodrigoanidolira@gmail.com
2 Doutora em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF. Professora da
Universidade Candido Mendes/Campos.ludmatta@yahoo.com.br
3 Notas sobre a região petro-rentista da Bacia de Campos. In: CARVALHO, A. M e TOTTI, M. E. F. Formação

1655
Histórica e Econômica do Norte Fluminense. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. p.275-307.
4 Os Municípios novos ricos do petróleo são mais solidários com sua população? Disponível em http://www.
royatiesdopetroleo.ucam-campos.br. Acesso em 05/09/07.
5 Federalismo no Brasil: análise da descentralização financeira da perspectiva das cidades médias. Disponível em:
http://www.nemesis.org.br/docs/thomp7.pdf> Acesso em: 12/10/2006.
6 SANTOS JUNIOR, O.A.; RIBEIRO, L. C. Q. AZEVEDO, S. Democracia e gestão local: a experiência dos con-
selhos municipais no Brasil. In: __. (orgs). Governança democrática e poder local. A experiência dos conselhos
municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan. 2004.p.12
7 Gestão Municipal e Equidade: Reflexões a partir de duas cidades de porte médio. Caderno CEDEC n.23. 1991.
8 BORJA apud LESBAUPIN, I. Poder Local x Exclusão Social. A experiência das prefeituras democráticas no
Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
9 Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática. Os movimentos Sociais e a Construção Democrática:
Sociedade Civil, Esfera Pública e Gestão Participativa. Idéias – Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Hu-
manas. São Paulo, 1999.p.35.
10 Sob o signo da vontade popular. O Orçamento Participativo e o dilema da Câmara Municipal de Porto Alegre.
Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ. 2002.
11 O caráter dos novos movimentos sociais. In: SCHERER-WARREN, I.; KRISCHKE, P. J. (Org.) Uma revolução
no cotidiano? Os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1987.
12 Conselhos Municipais: representação, cooptação e modernização da política patrimonialista. In: SOUZA,
D. B.. Conselhos Municipais e Controle Social da Educação. São Paulo: xamã. 2008.
13 Ibdem.
14 Mitos da descentralização: mais democracia e eficiência nas políticas públicas. Revista Brasileira de Ciências
Sociais. São Paulo, nº 31, ano 11, junho de 1996. p.16
15 Democracia e gestão local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. In: __. (orgs). Governança
democrática e poder local. A experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan. 2004.p.12
16 Patrimônio cultural e gestão democrática em Belo Horizonte. In: Varia Historia. Belo Horizonte, n. 18, Set,
p.83-98. 1997,p.96.
17 AZEVEDO, S; ANASTASIA, F. Governança, accountability e responsividade: reflexões sobre a institucio-
nalização da participação popular em experiências desenvolvidas e Minas Gerais. In: Encontro da Associação
Brasileira de Ciência Política, 2, PUC/São Paulo, nov, 2000,p.03.
18 CUNHA, F.S..Patrimônio cultural e gestão democrática em Belo Horizonte. In: Varia Historia. Belo Horizonte,
n. 18, Set, p.83-98. 1997,p.96.
19 GOHN, M, G. Papel dos conselhos gestores na gestão pública. São Paulo: Informativo CEPAM, ano I, n.3, p. 07-
17. 2001.p.11. AVRITZER, L. Reforma política e participação no Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.p.39.
20 Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas. 2004.p.428.
21 Gestão democrática da cidade. In: DALLARI, A. A.; FERRAZ, S. (orgs.). Estatuto da Cidade. São Paulo: Ma-
lheiros, p. 322-341. 2002.p.329
22 Ibdem 20 p.349.
23 Ibdem 6
24 Voto e Clientelismo na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado (Políticas Sociais). PUC-SP. São Paulo:
1999.
25 BRASIL. Lei n0 10.257 de 10 de julho de 2001- Estatuto das Cidades. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 01/07/2013
26 BRASIL. Controladoria Geral da União http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/BGU/2003/Volume1/V23%20-
-%20MCID.pdf. Acesso em: 01/07/2013.p.01
27 Participação no espaço público: o caso do Conselho das Cidades. Dissertação de Mestrado (Sociologia)
UNB/Brasília,2009.p.41
28 Participação, Cultura Política e Cidadania. Sociologias, Porto Alegre, ano 14, n.30, mai/ago. 2012,p.25
29 COHEN, J. Deliberation and Democratic Legitimacy. In: HAMLIN. A e PETTIT, P.(eds.). The Good Polity: Nor-
mative Analysis of the State. Oxford: Basil Blackwell,1989, p. 19 apud FEDOZZI, Luciano et al. Participação,
Cultura Política e Cidadania. Sociologias, Porto Alegre, ano 14, n.30, mai/ago. 2012,p.26
30 IBGE. Censo demográfico 2010. Disponível em: http://censo2010.ibge.gov.br/. Acesso em: 01/07/2013.
31 PIQUET, Rosélia. Da Cana ao Petróleo: uma região em mudança. In PIQUET, Rosélia (org.) Petróleo, Royalties
e Região. Petrópolis: Garamond, 2003, p. 219.
32 Ibdem 31
33 Representação, Participação e Cooptação nos Conselhos Municipais em Campos dos Goytacazes. Tese de
Doutorado (Sociologia Política) UENF/RJ: 2012.

1656
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Participação popular e
judicialização de conflitos
ambientais em Aracaju-SE

Sarah Lúcia Alves França1


Vera Lúcia F. Rezende2

INTRODUÇÃO

A urbanização da cidade em direção às áreas ambientalmente frágeis


traz efeitos desastrosos aos recursos naturais e à saúde da população.
Desencadeia sérios conflitos socioambientais de amplas proporções,
devido ao distanciamento entre planejamento e gestão como ocorre em
Aracaju, capital de Sergipe.
Em locais de interesse do capital imobiliário e diante da possibilidade
de investimentos públicos, a administração municipal adota uma forma
pragmática de gestão, omitindo-se quanto à implantação de saneamento
ambiental, concentrando-se em melhorias de acessibilidade e construção
de conjuntos habitacionais no espaço urbano de Aracaju. Prevalece então,
a lógica de infraestrutura posterior à ocupação, assim como ocorre em
outras cidades brasileiras.
Diante disso, os moradores tem buscado, junto ao Ministério Público,
a garantia dos seus direitos através de reivindicações respaldadas na
Constituição Federal de 1988, fundamentadas no direito à cidade, no
cumprimento da função social da propriedade (artigos n°182 e 183) e nos
preceitos da participação popular na gestão pública, reforçados em 2001
pelo Estatuto da Cidade (Lei n°10.257/2001). É uma nova forma de luta e
de conquistas pela cidade democrática.
Conforme expressa Maricato (2000), as políticas de uso e ocupação
do solo são em sua maioria meros planos-discursos, concebidos a partir

1657
de uma lógica normativa, na qual o aparato regulatório contrapõe-se à
realidade da produção do espaço capitalista. Diante disso, consideram-se
quão intensos são os conflitos sócioambientais na configuração urbana e
refletem a busca por melhores condições de vida da população da ZEU.
Os conflitos sociais desencadearam em Aracaju, com mais intensida-
de nos últimos anos na Zona de Expansão Urbana - ZEU, repercutindo
a necessidade de intensa mobilização dos moradores sob a forma de
movimentos sociais. Estes, organizados de forma descentralizada, con-
trariam o modelo tradicional de gestão centralizada implantado, ausente
de canais de participação popular, embora existam conselhos municipais,
mas com nenhuma ou pouca inserção dos moradores. O objetivo da luta
é a obtenção da distribuição de oportunidades igualitárias e transparência
nas decisões dos problemas urbanos.
A luta pela democracia no planejamento urbano traduz-se no enfren-
tamento das desigualdades sociais, através de uma maior participação
da sociedade no processo de decisão das políticas públicas, visando à
promoção de melhor distribuição de serviços e resolução dos conflitos
socioambientais.

1. CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E
PARTICIPAÇÃO DA POPULAÇÃO NA
ZONA DE EXPANSÃO URBANA DE ARACAJU

O conceito de conflito, seja social, ambiental e/ou urbano, pode ser


qualquer disputa relativa à infraestrutura, habitação, serviços comuni-
tários, áreas de preservação ambiental, isto é, elementos que afetam à
vida dos moradores, que envolvam atores coletivos e/ou institucionais
(inclusive o Estado) e se manifestam no espaço público.
Para Acselrad os conflitos ambientais constituem

aqueles envolvendo grupos sociais com modos diferenciados


de apropriação, uso e significação do território, tendo origem
quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das for-
mas sociais de apropriação do meio que desenvolvem ameaçada

1658
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

por impactos indesejáveis – transmitidos pelo solo, água, ar ou


sistemas vivos – decorrentes do exercício das práticas de outros
grupos (2004, p.26).

Os conflitos sociais que vem ocorrendo nas metrópoles brasileiras


contribuem para que os grupos sociais se organizem, no sentido de buscar
a evolução da qualidade de vida. Diante dessas necessidades, os grupos
menos favorecidos se mobilizaram na luta pelos seus direitos, sobretudo a
partir da década de 1980. Essas experiências “apontam para a possibilidade
de soluções dos problemas da cidade por meio da construção de uma nova
cultura política democrática e um novo desenho nas relações Estado-sociedade
civil”. (BAVA, 2002, p.76).
É importante afirmar que a participação popular nas ações de plane-
jamento e gestão urbana tem apresentado avanços em função da diver-
sidade de momentos políticos que o país tem atravessado. A sociedade
civil e suas formas de organização e manifestação vieram se modificando
ao longo do tempo.
Em Aracaju, o surgimento dos conflitos é resultado da ausência de
ações de planejamento na gestão urbana, sobretudo nas áreas ambien-
talmente mais fragilizadas, como a Zona de Expansão Urbana – ZEU. No
campo da disputa por interesses divergentes, de um lado, estão aqueles
que de alguma forma são causadores do problema e, de outro, os que se
sentem prejudicados e partem para o enfrentamento da questão.
Diante da carência de ações por parte do Poder Público, a população
passa a desenvolver novas práticas democráticas, desencadeando então,
uma mobilização social na conquista pelos seus direitos, ainda que de for-
ma incipiente no final dos anos 1990. Desse modo, surgiram as primeiras
associações de moradores na ZEU, com a função de auxiliar na tomada
de decisões acerca dos problemas urbanos, contribuindo para a resolução
dos entraves ambientais (Figuras 1 e 2).

1659
Figuras 1 e 2: Protesto dos moradores da ZEU – cobrança pelo direito à cidade

Fonte: adcarrobalo.blogspot.com, acesso em: 28 jun. 2011

Alguns movimentos sociais criados nos últimos vinte anos na Zona de


Expansão Urbana – ZEU merecem destaque, como a Associação Desporti-
va, Cultural e Ambiental do Robalo - ADCAR, responsável pelo Fórum em
Defesa de Aracaju e por debates sobre a atual revisão do Plano Diretor;
a Associação de Donos de Bares e Moradores da Praia de Aruana – AD-
BAMA, que combateu durante anos a apropriação do espaço da Praia de
Aruana; a Associação dos Moradores do Aruana – AMAR, que desempe-
nhou papel fundamental na preservação ambiental da região. Por fim, o
Conselho das Associações dos Bairros Aeroporto e Zona de Expansão de
Aracaju – COMBAZE, criado em 2005.
Essa mobilização popular tem surgido em função dos diferentes con-
flitos, cuja maior parte das reivindicações está fundamentada na forma
como vem ocorrendo o parcelamento do solo, em função dos interesses
capitalistas do mercado imobiliário. Esses movimentos sociais exigem
a estruturação da ZEU pelo Governo Municipal, responsável por dotar a
área com intervenções que favorecem outros atores sociais, que não são
os moradores.
Na tentativa de equalizar os prejuízos de uma ocupação (permitida
pelos órgãos públicos, por meio das licenças concedidas para construção)
e, mediante a carência de uma política integrada de investimentos em
saneamento ambiental, iniciaram-se em 2005, as reivindicações da comu-
nidade com mais intensidade, com a constituição de um dos movimentos

1660
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mais ativos da área, o Conselho das Associações dos Bairros Aeroporto


e Zona de Expansão de Aracaju - COMBAZE.
Este conselho articula-se com catorze associações de bairros filiadas
que nascem em função das contradições, emergindo da produção do
espaço e intensificação da deteriorização ambiental. A reunião desses
representantes ocorre pela indignação contra as condições de vida dos
moradores, proveniente da consciência dos seus direitos.
Criado oficialmente em 2007, o conselho visa atrair a atenção dos
governantes quanto à falta de planejamento e de promoção do bem estar
social. A sua atuação tem sido considerada de grande valia para a con-
quista de projetos e ações na área, contribuindo para a afirmação de uma
série de acordos firmados entre o Ministério Público, Prefeitura e Estado,
na condução e resolução dos conflitos sociais, conforme apresentados
abaixo (Quadro 1).

Quadro 1 - Zona de Expansão Urbana de Aracaju atuação do COMBAZE

Fonte: França, 2011.

Os instrumentos mais utilizados atualmente são o Termo de Ajusta-


mento de Conduta – TAC e a Ação Civil Pública – ACP que se constituem
em acordos judiciais que permitem solução negociada. Os responsáveis
pelos danos se comprometem a reparar as irregularidades em prazo
determinado, especialmente a ocupação indevida de espaços públicos
ou privados (áreas de preservação, faixas de domínio de rodovias). Isso
decorre da deficiência de canais de participação na Prefeitura Muni-

1661
cipal, o que se constitui um dos sérios obstáculos para o exercício da
gestão democrática.
Fruto das reivindicações do COMBAZE, talvez o maior ganho para a
área seja a conscientização dos gestores públicos e do poder legislativo,
quanto à atenção com vistas à ocupação da ZEU, perante as necessidades
locais. Os próprios moradores são os maiores fiscais das irregularidades e
denunciam os desastres provocados pela ação de outros agentes.
A razão da participação, segundo a diretora do COMBAZE, reside no
fato da população ter começado

a sentir na pele, a ver que as lagoas que foram aterradas e áreas


de mangues que foram desmatadas, fizeram com que suas casas
fossem inundadas, fossem alagadas, e isso é o maior receio. [...]
Isso faz com que aquela pessoa se torne mais sensível à realidade
local [...], mesmo que a sua casa não tenha sofrido, mas ela pensa
que se não fizer nada, aquilo pode acontecer com ela (Entrevista
Karina Drumonnd, 2011).

Um documento enviado pelo COMBAZE ao Congresso Nacional, em


2009, reflete a indignação dos moradores diante do descaso do governo:

Porque todos os moradores todos os anos terão que contabilizar


em sua economia familiar prejuízos com enchentes, quando a
causa é a falta de infraestrutura autorizada pelo poder público em
suas esferas de competências? Estes são os pontos x da questão...
[...] A omissão dos Governos Federal e Estadual, quanto a seu
exclusivo papel de promover o bem estar social da população
deixou os moradores do local sofrerem e terem prejuízos finan-
ceiros neste ultimo período de chuvas em Aracaju. (combaze.
blogspot.com/2009/07/encaminhamento-texto-camara-federal.
html, acesso em 15 abr. 2010)

A prática da democracia continua sendo um grande desafio. As narra-


tivas expressam a necessidade de suprir a ausência de canais de participa-
ção popular para a efetivação da interação entre governo e sociedade. Os
representantes dos moradores buscam a interlocução com outros atores
(Prefeitura Municipal, Governo do Estado e Ministério Público) e cobram
que sejam efetivados os direitos da coletividade.

1662
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

2. JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS SOCIAIS


NA ZONA DE EXPANSÃO URBANA DE ARACAJU

Apesar do município de Aracaju dispor de legislação para tais situações,


vários atores como o Ministério Público – MP, Estado, Prefeitura e orga-
nizações civis, têm procurado novos contornos urbanísticos, jurídicos e
ambientais na tentativa de encontrar soluções, em função da existência de
uma “defasagem entre a ordem jurídica e a realidade ambiental”, conforme
mostra FERNANDES (2002, p.52). Assim, o Ministério Público tem opera-
do, sobretudo, nas “ocupações indevidas, desmembramentos, loteamentos,
uso do solo, impactos ambientais, levantando as irregularidades, propondo
acordos, movendo ações para viabilização de intervenções de melhoria”
(ÁVILA, 2009, p.29).
A procura deste ator para a resolução de entraves sociais em Araca-
ju, especialmente na ZEU, tem-se acentuado cada vez mais e acontece
“quando as demandas não são atendidas em outras instâncias, por políticas
públicas ou solicitações diretas à administração pública” (POLI; NOGARA,
2008, p.4). O Ministério Público tem atuado para garantir a tutela de di-
reitos coletivos e difusos entre eles, meio ambiente e urbanismo, “sobre
os conflitos de ordem política, quanto à influência sobre as resoluções e as
políticas públicas, controvérsias a respeito de normas, além dos conflitos de
cunho social” (idem).
De fato, o tema ambiental desencadeou novas vertentes, a partir das
quais a população, junto ao Ministério Público, tem se organizado para
exigir melhoria das condições ambientais, legislação e carência de infra-
estrutura, cujas reivindicações, convertidas em instrumentos judiciários,
têm evidenciado o desempenho da população na luta pelos seus direitos,
conforme pode ser observada no Quadro 2.

1663
Quadro 2 - Zona de Expansão Urbana de Aracaju
Participação do Ministério Público

Fonte: França, 2011.

Os instrumentos jurídicos como os Termos de Ajuste de Conduta – TAC


utilizados em Aracaju para atender à garantia de direitos, traz soluções
a médio prazo para a população. Segundo Martins (2006, p.102), esses
acordos judiciais significam um “reconhecimento de cada parte que se
compromete de que teve, de alguma forma, responsabilidade na ilegalidade
e que, juntos, devem chegar a um entendimento e a ações de recuperação,
que seriam praticamente impossíveis sem esse compromisso.”
A sociedade, junto ao Ministério Público tem a função de cobrar do
Poder Público que o planejamento seja efetivado e substituído pelas in-
tervenções marginais que buscam apenas minimizar os impactos atuais
(AVILA, 2009). Entretanto, é pertinente evidenciar que quando a denúncia

1664
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ocorre e que as irregularidades são expostas e analisadas, os danos am-


bientais já estão consolidados, muitas vezes inclusive de forma irreversível.

2.1 Caso Orla da Praia de Aruana:


anos e anos de disputa judicial

A Praia de Aruana, localizada na Zona de Expansão Urbana – ZEU,


no trecho da Petrobrás (Terminal de Carmópolis - TECARMO), definida
como Área de Preservação Ambiental e terreno da União, foi caracterizada
pela ocupação irregular de quiosques/bares para fins comerciais, que na
culminou em um processo judicial que tramitou entre os órgãos Federais
e Estaduais, de 1994 até 2011 (Figura 3).

Figura 3: Implantação do Projeto “Orla da Aruana”

Fonte: França, 2011

1665
Em 1994, a primeira tentativa de tratamento paisagístico na Praia de
Aruana foi realizada pela Secretaria Municipal de Planejamento – SEPLAN.
Nessa época, contabilizaram-se 64 edificações construídas na faixa lito-
rânea com uso misto, residencial e comercial. A fiscalização deficiente e
o gerenciamento inadequado do projeto fizeram com que equipamentos
como quiosques fossem utilizados posteriormente como bares (MINISTÉ-
RIO PÚBLICO FEDERAL, 1999).
Em 1998, o Departamento de Estradas e Rodagens – DER/SE executou
a obra da Rodovia José Sarney e indenizou vários bares que se localizavam
na faixa de domínio da rodovia, sendo que a maior parte deles melhorou
as suas edificações, acarretando o aumento do valor da indenização
recebida. A Associação dos Moradores do Aruana – AMAR, insatisfeita
com as condições do uso, iniciou a Campanha SOS-Aruana Urgente,
contando com o apoio do Ministério Público Federal, que resultou num
Termo de Ajuste de Conduta – TAC, dando 90 dias aos barraqueiros para
se adaptarem às exigências, como a não utilização das barracas para fins
residenciais (idem).
Em 2000, foi assinado um Termo de Ajuste de Conduta no MPF entre
a ADBAMA e os comerciantes da Praia de Aruana que determinava que
os bares que não apresentassem o registro de ocupação perante a União
e à Prefeitura e licença ambiental da ADEMA deveriam desocupar o local
(idem). Segundo informações da PMA/ SEPLAN, dos 73 bares existentes
em 2001, nenhum tinha registro de ocupação que legitimasse sua perma-
nência, ou qualquer título que lhes concedesse posse ou propriedade. Além
disso, verificou-se que os barracos contrariavam aspectos urbanísticos,
como desrespeito à faixa de domínio da rodovia, ligação clandestina de
energia, ausência de rede de água e esgoto.
Após diversos embates e ausência de soluções foi assinado, em 2004,
outro Termo de Ajustamento de Conduta entre MPF, Prefeitura e os proprie-
tários, que obrigou o município a desenvolver um projeto de construção
e de padronização das edificações e seu entorno. Desse convênio surgiu
o Projeto de Reurbanização da Orla de Aruana.

1666
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Nessa proposta, os donos dos estabelecimentos comerciais se compro-


meteram a demolir voluntariamente seus bares, para que fossem cons-
truídos 17 novos quiosques sob a forma de concessão durante dez anos.
Findo o prazo, o próprio concessionário demoliria seu estabelecimento
e replantaria a área com vegetação nativa. Vale lembrar que, até então,
nenhum dos bares havia sido demolido esporadicamente pelo seu próprio
dono, conforme firmado no TAC de 2000.
Entretanto, a questão do tratamento do esgoto não pôde ser resolvida,
por não ser permitido legalmente que os efluentes fossem jogados no mar.
Em 2007, foi apresentado e aprovado um novo projeto pela Prefeitura, sem
utilização de banheiros, decorrente também, da assinatura de um TAC
entre o Ministério Público Estadual e a ADEMA que não autoriza qualquer
tipo de infiltração no solo pelo sistema de esgoto, na ZEU.
Esses antigos bares, além de estarem instalados numa área de restrição
ambiental, funcionavam de maneira precária, devido à inexistência do sis-
tema de esgotamento sanitário cujos despejos eram levados diretamente
ao mar. Portanto, não configurava só um problema de ocupação irregular,
mas principalmente, de poluição da Praia de Aruana. Assim, decidiu-se
que, perante o não cumprimento dos TAC’s, com a demolição voluntária
dos bares, através de determinação da Justiça Federal em 2010, os antigos
bares seriam demolidos, para que fossem iniciadas as obras da nova Orla,
definida no projeto desenvolvido pela SEPLAN (Figura 4).

Figura 4: Bares antes da demolição e a demolição

Fonte: skyscrapercity.com, acesso em: 14 set. 2010

1667
Apesar de drástica, a medida pode ser em parte creditada na omissão
do poder público municipal, que contribuiu para a expectativa por parte
dos comerciantes de que a situação se arrastaria sem definições por longo
tempo, em verdade por mais de oito anos. Observa-se, ainda, que o des-
fecho se deu após a inclusão da administração municipal como parte no
Termo de Ajustamento de Conduta e, por decisão final da Justiça Federal.

2.2 Caso dunas da Praia de Aruana, abertura da Rodovia José


Sarney e o tão “sonhado” Plano de Macrodrenagem

É importante destacar que a qualidade paisagística como uma das


fortes características da Zona de Expansão Urbana de Aracaju. Os va-
riados elementos naturais presentes, como dunas, mangues, lagoas de
drenagem e rios, fazem parte do cenário local e o valorizam de forma
paradoxal, constituindo um dos maiores obstáculos à sua ocupação, e
por consequente, objeto de vários conflitos sociais. A degradação do
ecossistema tem sido cada vez mais célere, seja provocada pelos produtos
do mercado imobiliário ou pelas intervenções do Estado, evidenciando a
necessidade de planejamento e controle da ocupação da área, sobretudo
no tocante ao desmonte de dunas, aterros e ausência de drenagem.
Os conjuntos dunares são destacados, principalmente nos terrenos do
NUCAT/Petrobrás, no Loteamento Aruana (norte) e nas proximidades do
rio Vaza Barris (sul). Essas áreas são protegidas por três parques ecológi-
cos (Aruana, Mosqueiro e Farol do Mosqueiro), pelo significado relevante,
no conjunto do ecossistema, e por ser o elemento da paisagem que mais
chama a atenção (Figura 5).
Outro caso de aliança entre a população e a Justiça nos embates na
Zona de Expansão Urbana de Aracaju teve início em 1999, com o Minis-
tério Público Federal, que propõs a Ação Civil Pública referente à cons-
trução de um condomínio edificado em área de preservação permanente
(duna). Segundo os autos do processo (JUSTIÇA FEDERAL DO ESTADO
DE SERGIPE, 2003), a falta de um Plano de Manejo Ambiental e de um

1668
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Estudo de Impacto Ambiental realizados previamente às obras fez com


que o Ministério Público se manifestasse, solicitando informações aos
órgãos competentes.
O debate incluía a questão dos parâmetros para o desmonte das dunas
da ZEU, diferentes daqueles propostos pelo Plano Diretor. Nesse momento,
o MPF solicitou à ADEMI a elaboração de um estudo sobre zona “que pre-
serve o seu desenvolvimento sustentável, numa visão, hoje universal, de ser
muito menos dispendioso prevenir um dano ambiental, do que deixar que
ele aconteça para repará-lo depois” (idem, p.11)
Pelo Estudo de Impacto Ambiental - EIA ficou estabelecido como

fio condutor para todo e qualquer licenciamento na região sul


do Município de Aracaju, ressalvadas as dunas com altura de
até 2,5m, que deverão ser preservadas apenas na hipótese de
apresentarem alguma função ambiental, como biodiversidade,
cuja avaliação deverá ser procedida pelo IBAMA, quando do
licenciamento de cada loteamento. Fica determinado que as
dunas preservadas com essas características devem ser consi-
deradas áreas verdes, compensando-se com o percentual a ser
exigido pela Prefeitura de Aracaju, para cada empreendimento
(idem, 2003, p.15).

A sentença final da Justiça Federal sugeriu que a cada pedido de auto-


rização de novos empreendimentos imobiliários, o IBAMA deve apontar
quais as dunas com dimensão menor que 2,5m de altura em relação ao
greide da Rodovia José Sarney que tem importância ambiental, podendo
autorizar ou não o desmonte.

1669
Figura 5: Realidade Ambiental da ZEU

Fonte: França, 2011.

Outro conflito vem sendo enfrentado pelo Ministério Público Federal


e também Estadual desde 2005, relacionado à inexistência do sistema
de coleta de esgoto sanitário na área. O MPF obrigou em junho de 2007,
através de um Termo de Ajuste de Conduta conduzido pelo MPE e assinado
entre as partes (Prefeitura, Governo do Estado), a elaboração do Estudo
Técnico da 1° Bacia de Macrodrenagem pela esfera pública. Nesse Termo,
foram estabelecidas condições para o licenciamento de empreendimentos

1670
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

imobiliários da zona.
O Ministério Público Estadual assinou mais um TAC em 2006, desta vez,
junto à ADEMA (órgão estadual licenciador ambiental), que definiu critérios
para licenciamento ambiental na ZEU, dividindo-a em duas áreas: a Zona
Crítica, “considerada àquela que atualmente apresenta os maiores problemas
de drenagem natural”, cujo órgão “não licenciará nenhum empreendimento
com sistema de tratamento dos esgotos cuja disposição final dos efluentes
seja através de infiltração no solo” (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE
SERGIPE, 2006a, p.4). Na outra área, correspondente ao restante da zona,
somente serão licenciados aqueles empreendimentos

com sistema de tratamento de esgotos cuja disposição final seja


a infiltração no solo desde que seja implantada na área a rede
de drenagem, bem como o empreendedor apresente estudo
específico, comprovando tecnicamente, através de ensaios de
infiltração realizados em época de alta pluviosidade, que não
ocorrerá comprometimento do lençol freático e atendendo ainda
as normas técnicas e a legislação vigente (idem).

Apesar de o estudo ter sido apresentado, nenhuma ação efetiva para


amenizar tal problema foi realizada, senão a dragagem dos canais Costa
do Sol, inundados durante as chuvas de inverno. A Prefeitura Municipal e a
ADEMA, embora cientes da gravidade da problemática da macrodrenagem,
concedem licenças para construção de empreendimentos, não levando
em consideração os impactos desse adensamento na ZEU.
Durante o procedimento administrativo, foram realizadas 35 reuni-
ões no MPF e MPE (até 2009), com a presença de moradores e demais
envolvidos (COMBAZE, 2011). Como resultado das enchentes de 2009,
o Ministério Público Federal convocou construtoras, Caixa Econômica
Federal, Prefeitura, Companhia Estadual de Saneamento de Sergipe –
DESO, Petrobrás, ADEMA (responsável pelo licenciamento ambiental) e
União (Procuradoria da União no Estado de Sergipe) para intervir na área.
A partir de uma Ação Civil Pública, assinada em junho de 2009, a Justiça
Federal determinou bloqueio temporário de licenciamento, construção
e inauguração de quaisquer empreendimentos (JUSTIÇA FEDERAL DO
ESTADO DE SERGIPE, 2009).

1671
Entretanto, as maiores restrições diziam respeito referente às empresas
de construção civil, pois a Empresa Municipal de Obras e Urbanização
- EMURB não poderia conceder novos alvarás e negar o “Habite-se” às
construções em andamento que não obedecessem ao TAC. Essas, ainda,
deveriam apresentar cronograma de execução dos projetos e obras e re-
solver de forma emergencial, os problemas resultantes dos alagamentos.
O Governo Municipal e o Estadual foram condenados a solucionar o
entrave da drenagem e do esgotamento sanitário, resultado da ausência
de comprometimento com a questão ambiental. No auto de decisão está
anunciado que esses problemas

decorrem da falta de planejamento na urbanização daquela


área, com a preparação necessária de sistemas de drenagem e
de esgoto adequados para o local e para os tipos de empreen-
dimentos que foram licenciados para edificação. Observa-se,
também, não sem uma grande perplexidade, que os réus têm
conhecimento dos problemas e das amargas conseqüências em
não resolvê-los, mas não se empenham como deveriam e como a
população corretamente espera (JUSTIÇA FEDERAL DO ESTADO
DE SERGIPE, 2009, p.11).

A situação da ZEU é extremamente preocupante, lamentável


mesmo, tanto pela potencialidade de poluição do meio ambiente,
quanto pelo grave problema de saúde pública para a população
que lá vive, fazendo-se necessária a adoção de céleres e eficazes
medidas para solução urgente das situações mais calamitosas, ao
lado de providências de médio e longo prazo, visando a solucio-
nar definitivamente os problemas de drenagem e esgotamento
sanitário da região (Idem, p.12).

Após audiência realizada no Ministério Público Federal, a partir de 1°


de setembro de 2009, ficam liberados os empreendimentos cujo pedido
de alvará de construção tenha sido protocolado antes de 12/06/20009,
desde que estejam de acordo com a solicitação do TAC com a condição
de que a rede interna de drenagem do empreendimento esteja interligada
à macrodrenagem existente, bem como a rede de esgoto utilize o sistema
DAFA (Digestor Anaeróbio de Fluxo Ascendente) com filtro (idem).
Parece ficar clara, a orientação do Ministério Público para a correção
das desigualdades socioespaciais e para o interesse coletivo. Todavia, a

1672
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

judicialização dos conflitos aqui é contextualizada como sendo a extensão


da atuação do MP com a transferência de responsabilidades e decisões
políticas à promotoria, para o cumprimento de determinações do plane-
jamento e do Plano Diretor. Nota-se, uma inversão de papéis, quando o
Poder Executivo (municipal ou estadual) deixa de planejar e/ou aplicar
as leis, e entram em ação, o promotor ou o juiz, através de termos de
conduta ou decisões judiciais.

3. A PARTICIPAÇÃO POPULAR é O CAMINhO


PARA A RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS?

O planejamento de Aracaju tem sido cada vez mais substituído pela


gestão estratégica, baseada em referendar caminhos espontâneos do cres-
cimento das cidades, além de concretizar as tendências e expectativas de
grupos ligados ao setor imobiliário. As ações acarretam uma produção do
solo fragmentada, distanciada do tecido urbano consolidado.
Para SOUZA,
participar, no sentindo essencial de exercer a autonomia, é a mes-
ma alma de um planejamento e de uma gestão que queiram se
credenciar para reivindicar seriamente o adjetivo democrático(a).
(2003, pág. 335)

Essa é a nova concepção de planejamento participativo, em que a


cidade, produzida por vários agentes, deve ser planejada através de uma
ação coordenada em torno de um pacto social que reflita os anseios da
sociedade e os interesses públicos, e não em função de um modelo fechado
desenvolvido em escritórios.
O reflexo da ineficiência do planejamento na gestão municipal em
Aracaju somado à carência de um processo democrático de gestão tem
agravado cada vez mais os aspectos locais e a vida dos moradores. A legis-
lação vigente é ineficiente quanto à possibilidade dada pelos instrumentos
de planejamento e regulação do solo na resolução dos conflitos entre a
ocupação de áreas na Zona de Expansão e a manutenção das caracterís-

1673
ticas ambientais. Além disso, o controle e a fiscalização da execução das
normas tem se mostrado insuficiente.
Na prática, em Aracaju, principalmente na Zona de Expansão Urbana,
ocorre um antagonismo na legislação, que reconhece o acentuado déficit
de infraestrutura e serviços públicos e, ao mesmo tempo, define coeficiente
de aproveitamento na área igual a três. Ao possibilitar ao mercado imo-
biliário a criação de maior área construída, o resultado é o adensamento
populacional, a degradação das dunas, lagoas de drenagem e mangues,
a ocorrência das calamidades naturais, como alagamentos e inundações,
prejudicando as condições de vida da população e distanciando-se do
ideal da “capital da qualidade de vida” difundido como slogan da gestão
municipal atual.
Como decorrência, a população tem se organizado e acionado a Justiça
que, através dos Termos de Ajustamento de Conduta, exigem a resolução
dos problemas. Esses TAC´s tem substituído a função de planejamento
na gestão pública no que se refere às questões urbanas e ambientais.
Entretanto, as exigências impostas não têm sido concretizadas em sua
totalidade, devido à indisponibilidade de recursos e à exiguidade dos
prazos solicitados.
A Zona de Expansão Urbana de Aracaju é marcada pela degradação
das suas condições urbanas e ambientais, pela atuação do Poder Executivo
municipal ou estadual, que estimula a ocupação através dos investimentos
em intervenções e pela lógica do mercado imobiliário, em busca de novas
fronteiras de valorização fundiária. Embates entre diferentes interesses,
que se resumem em ocupar ou não áreas e dotar as áreas já ocupadas de
infraestrutura, dão os contornos da luta pela apropriação do espaço na
ZEU de Aracaju.
Em meio às frágeis condições ambientais, as inúmeras tensões refle-
tem o repúdio da população à fraca atuação do Poder Público. As mani-
festações são intensas, a cobrança é ativa. Os moradores participam, ao
exigir não somente intervenções, mas um planejamento integrado que
sirva, efetivamente, para auxiliar no desenvolvimento local. Isto permite

1674
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

que adquiram capacidade para propor mudanças e “reforça a necessidade


de identificar os papéis e as responsabilidades dos diversos atores face aos
temas ambientais, e a necessidade de construir consensos em torno deles”
(JACOBI, 2006, p.10).
De fato, o surgimento das associações de moradores, como Conselho
das Associações dos Bairros Aeroporto e Zona de Expansão de Aracaju
– COMBAZE, Associação Desportiva, Cultural e Ambiental do Robalo -
ADCAR, tem merecido destaque diante das conquistas em prol da ZEU.
Ainda que de forma incipiente, nos últimos dez anos, a população tem
denunciado crimes ambientais, auxiliando no monitoramento e no com-
bate à degradação. Isso porque à “medida em que as pessoas se unem para
reivindicar, há um avanço no espaço urbano: contribuem para o desenvol-
vimento da ação, a partir da discussão, identificação de seus problemas e
experiências de organização” (CARLOS, 1994, p.194).
Por outro lado, as associações têm conquistado espaço relevante junto
ao Ministério Público e à Justiça. O direito do cidadão de participar das
decisões públicas, dado pela Constituição Federal, a fim de se alcançar
justiça e transparência da governança e identificar os interesses da socie-
dade (ACSELRAD, 2001), tem se concretizado na atuação do Ministério
Público. As assinaturas de Termos de Ajuste de Conduta e de Ações Civis
Públicas obrigam os órgãos e instituições responsáveis a arcar com as
sequelas da ineficiência da administração pública no trato das complexas
condições ambientais locais.
Mais que isso, esses instrumentos judiciais têm sido importantes para a
construção da cidadania participativa, na resolução das tensões e conflitos
de forma pacífica em que o agressor firma compromisso de reparação ao
dano causado ou de execução da política urbana e ambiental (no caso
macrodrenagem) estabelecida em legislação. Entretanto, os papéis se
inverteram. O Ministério Público tem tomado as rédeas na solução dos
os problemas, uma vez que tem sido visto como guardião dos interesses
coletivos e difusos.
As determinações da Justiça impõem ao Poder Público o cumprimen-

1675
to de seus deveres, quando esses são substituídos pelo planejamento
integrado e pela implementação da política urbana municipal. A ordem
judicial de paralisar a emissão de licenças, numa área deficiente de sa-
neamento ambiental, foi tardia, mas essencial. Isso porque as discussões
sobre a necessidade do Plano de Macrodrenagem começaram junto aos
órgãos competentes, antes mesmo do Plano Diretor de 2000. Em realidade,
passaram-se onze anos e medidas como a preparação e a implementação
do plano não haviam sido tomadas.
Contudo, mesmo com o desempenho do Ministério Público, ainda se
observa morosidade no andamento das ações e na reparação dos danos
causados pelo Poder Público com a implementação de atividades nocivas
à sociedade. Ainda assim, os moradores tem se valido desta instituição
como estratégia para se fazer ouvir e garantir sua cidadania.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Hoje, o panorama se transforma. Verifica-se que a participação da


população na resolução dos conflitos socioambientais em Aracaju foram
de fundamental importância, mas ainda falta percorrer um caminho muito
longo de conquistas, para que se tenha no futuro, uma cidade ideal, sem
desigualdades e injustiças urbanas.
A democratização das decisões apoiada pelo Ministério Público nas
conquistas pelo desenvolvimento da Zona de Expansão Urbana tem sido
de grande valia para a guinada do cenário ambiental local. O desafio é
ainda, criar condições de moradia, avaliando e controlando a ocupação
sem impactar negativamente o meio ambiente e evitar a continuidade da
degradação das dunas, das lagoas e dos mangues.

1676
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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gem da Zona de Expansão de Aracaju, Aracaju.

NOTAS

1 Arquiteta e Urbanista, Universidade Federal Fluminense/UFF-RJ, Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação


em Arquitetura e Urbanismo. E-mail: sarahfranca@ig.com.br
2 Arquiteta e Urbanista, Universidade Federal Fluminense/UFF-RJ, Professora Associada do Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. E-mail: vrezende@openlink.com.br

1678
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Participação pública no Estatuto


da Cidade: uma reavaliação
do conteúdo do Instituto

Pedro Henrique Ramos Prado Vasques1

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como principal objetivo reavaliar o conteúdo


da participação pública na formulação de políticas públicas urbanas e pro-
por uma delimitação alargada para esse instrumento a fim de possibilitar
que haja efetiva interação da sociedade com a administração pública.
O tema aqui abordado merece destaque, uma vez que a participação
pública deve ser parte essencial nos processos de gestão do espaço urbano.
Assim, sua utilização esvaziada (i.e., como mera formalidade) deve ser
questionada para que tal tipo de apropriação seja evitada e os objetivos
reais oriundos da participação pública atingidos.
Para melhor apresentar as questões aqui abordadas, o trabalho foi di-
vidido em três etapas. Na primeira, traça-se, ainda que superficialmente,
um esboço da evolução da normativa urbanística a partir da República, em
especial dos mecanismos de participação pública, conferindo particular
atenção à Constituição Federal de 1988, ao Estatuto da Cidade e a previsão
da gestão democrática como condição do planejamento urbano local.
Em seguida, analisa-se de forma breve e sucinta a construção do Es-
tado Constitucional, o desenvolvimento da democracia representativa e a
necessidade de sua interlocução com mecanismos de participação direta,
tendo em vista que o controle social exercido pela cidadania é um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil.

1679
No terceiro estágio, após apresentação do histórico da legislação urba-
nística e definições teóricas pertinentes, o presente trabalho busca redefinir
o conceito de participação pública contido na legislação analisada para
incluir em seu conteúdo a necessidade vinculante de transferência de poder
decisório. Destaca-se, ainda neste capítulo, a associação do conceito de
participação pública com os limites de atuação do Poder Público – adstrito
do princípio da legalidade. Por fim, os conceitos trabalhados são aplicados
à previsão de participação pública contida no Estatuto da Cidade.

1. EVOLUÇÃO NORMATIVA URBANÍSTICA


E O DESENVOLVIMENTO DA PREVISÃO DE
PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA LEGISLAÇÃO

1.1. Breves comentários sobre a evolução


normativa urbanística brasileira a partir da República

No início da República brasileira, a legislação urbanística era verificada


apenas de forma indireta2, sem representações consolidadas acerca do
regramento urbano. Isso, dentre outros, decorre do sistema predominante-
mente agrário que predominava no país3. Entre os regramentos existentes
à época – que indiretamente afetavam o espaço urbano – verificam-se
previsões como, por exemplo, a possibilidade de desapropriação por uti-
lidade pública, prevista no art. 72, §17 da primeira Constituição brasileira4.
As Constituições seguintes até a Carta de 1969 incluíram no rol de
competências da União a obrigação de elaboração do plano nacional de
viação férrea e de estradas de rodagem e asseguraram a competência dos
municípios no que fosse associado ao seu interesse local, sem, contudo,
realizar qualquer menção expressa às questões de cunho urbanístico5.
Será somente a partir da década de 1960 que, efetivamente, haverá
tentativas de implantação de uma política urbana no país, por meio da Lei
n. 4.380/64, que criou o Banco Nacional da Habitação (BNH), as Sociedades
de Crédito Imobiliário e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SER-

1680
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

FHAU). A referida lei determinava em seu art. 1º que o Governo Federal,


por meio do Ministério do Planejamento, formulasse a política nacional de
habitação e de planejamento territorial, além de ter conferido ao SERFHAU
atribuições associadas ao desenvolvimento urbano6.
Dessa forma, a partir da Lei n. 4.380/64, que, além de haver introdu-
zido normas gerais de urbanismo, definiu a competência do BNH para
promover e estimular o planejamento local integrado e as obras e serviços
de infra-estrutura urbana, é que foram elaborados os Programas de De-
senvolvimento Urbano com o objetivo principal de ordenar o crescimento
do meio urbano brasileiro. Contudo, foi através do II Plano Nacional de
Desenvolvimento que foram definidos objetivos e diretrizes do desenvolvi-
mento urbano nacional, bem como o controle da poluição e a preservação
do meio ambiente.
Ocorre que, analisando a legislação que tratava da matéria urbanística
até aquele momento, predominava, quase que integralmente, a visão in-
tervencionista estatal como forma de condução das alterações no espaço
urbano. Essa prática de atuação praticamente unilateral valia-se majorita-
riamente de questões exclusivamente técnicas avaliadas por especialistas
da máquina pública para legitimar sua atuação.
Tal modelo de intervencionismo e a substancial influência da escola
francesa nas alterações promovidas no espaço urbano brasileiro (do início
e até meados do século xx) vão refletir na produção de reformas como, por
exemplo, a realizada por Pereira Passos durante o governo de Rodrigues
Alves (1905-1910), que derrubou grande parte das edificações coloniais no
centro do Rio de Janeiro, ou, ainda, durante o governo de Carlos Sampaio
(1920-1922), com o desmonte do morro do Castelo, local de residência de
moradores cariocas pobres, que foi removido e lentamente urbanizado7.
Somente a partir da Constituição Federal de 1988 (CFRB)8 que a ten-
dência intervencionista unilateral por parte do Estado será paulatinamente
reduzida no âmbito da legislação em vigor. Essa mudança de paradigma
está associada a diversos fatores, dentre eles, pode-se destacar a deter-
minação constitucional para que a política de desenvolvimento urbano

1681
seja executada em âmbito local – através do Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei – e que seu principal objetivo é
o de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem-estar de seus habitantes (art. 182, CFRB). Nesse mesmo
sentido destaca-se a figura do Plano Diretor que – a despeito da sua real
eficiência9 – cumpre o papel de principal instrumento de planejamento
urbano local.
Ao passo que a gestão do espaço urbano deve ser executada pelos
municípios, a CFRB declarou ser competência da União a elaboração de
diretrizes gerais para orientar o desenvolvimento urbano, inclusive no
que se refere à habitação, saneamento básico e transportes urbanos (cf.
art. 21, xx)10.
Assim, com base nos referidos dispositivos constitucionais é que o
Estatuto da Cidade, instituído por meio da Lei n. 10.257/01, encontra
fundamento. É nesse instrumento normativo que as diretrizes gerais da
política urbana, conforme arts. 21, xx, 182 e 183 da CFRB.
O Estatuto da Cidade apresenta a expressão ordem urbanística como
um novo valor/bem a ser defendido por meio da Ação Civil Pública. Se-
gundo Machado, apesar de não haver uma definição acerca da expressão
acima, seria possível extrair do art. 1º, §1º, do Estatuto, uma orientação
para estabelecer seu conceito. Nesse sentido, afirma o referido autor:
Ordem urbanística é o conjunto de normas de ordem pública e de interesse
social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo,
da segurança, do equilíbrio ambiental e do bem-estar dos cidadãos11. Ainda
segundo Machado, a ordem urbanística seria a institucionalização do justo
na cidade.
Como será detalhado a seguir, a forma utilizada pelo legislador para
buscar atingir o justo foi, dentre outros, imbuir no Estatuto da Cidade o
princípio da participação pública. Assim, o controle social foi previsto
como requisito obrigatório, garantidor da implementação adequada do
regramento da Lei n. 10.257/01.

1682
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

1.2. O Estatuto da Cidade e a gestão democrática


como condição do planejamento urbano local

Como mencionado, uma das bases do Estatuto da Cidade é a partici-


pação pública. Isto é, o legislador definiu que o controle social é condição
indispensável para a gestão do meio urbano, como a seguir será demons-
trado. Nesse sentido, ao justificar a necessidade de participação como
forma do exercício da cidadania plena Milaré12 afirma que

se o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um


direito fundamental, que tem associados a si outros direitos e
também deveres (...), o exercício da cidadania ambiental não
pode separar-se do meio ambiente urbano e da sua respectiva
qualidade de vida.

A Lei n. 10.257/01, em seu art. 2º, define postulados para guiar o Poder
Público indicando as finalidades a serem atingidas, os caminhos a serem
percorridos e os atos que devem ser evitados. Segundo Carvalho Filho13,
diretrizes gerais da política urbana seriam o conjunto de situações urba-
nísticas de fato e de direito a serem alvejadas pelo Poder Público no intuito
de constituir, melhorar, restaurar e preservar a ordem urbanística, de modo
a assegurar o bem-estar das comunidades em geral. Dentre as diretrizes
gerais associadas direta e indiretamente à participação publica (e.g. art.
2º, II, III, V, xIII, etc.) destaca-se a

gestão democrática14 por meio da participação da população


e de associações representativas dos vários segmentos da co-
munidade na formulação, execução e acompanhamento de
planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.
(grifos nossos)

Além das diretrizes gerais, a participação pública também pode ser


evidenciada nos instrumentos previstos para fins de implementação dos
objetivos do Estatuto da Cidade (art. 4º)15. Nesse sentido, destacam-se a
previsão do orçamento participativo (art. 4º, III, f), o referendo popular (art.
4º, V, s), o Estudo Prévio de Impacto Ambiental – EIA e o Estudo Prévio de

1683
Impacto de Vizinhança – EIV16 (art. 4º, VI), e, em especial, a previsão que
determina que os instrumentos que demandam dispêndio de recursos por
parte do Poder Público devem ser objeto de controle social (art. 4º, §3º).
A gestão participativa é verificada ainda no principal mecanismo para
a gestão urbanística local, o Plano Diretor. Com a função, dentre outros,
de conferir conteúdo à função social da propriedade urbana, a elaboração
e a fiscalização do Plano deve incluir a sociedade civil por meio de audi-
ências públicas, debates com a população e associações representativas,
acesso e publicidade aos documentos e informações produzidos (art. 40,
§4º, I, II, III).
Por fim, o Estatuto dedicou, ainda, capítulo específico sobre a gestão
democrática da cidade. O capítulo IV do Estatuto, além de exemplificar os
instrumentos que podem ser utilizados para incluir a sociedade no debate
sobre o urbano (i.e., através de órgãos colegiados, debates, audiências
públicas, consultas públicas, conferências e autorizando a iniciativa po-
pular de projeto de lei, planos, programas e projetos de desenvolvimento
urbano – art. 43, I, II, III), prevê a inclusão obrigatória e significativa da
sociedade nos organismos gestores das regiões metropolitanas e demais
aglomerações urbanas visando garantir o controle direto das atividades
desses organismos e o pleno exercício da cidadania (art. 45).
Segundo Fiorillo17, o capítulo IV romperia com a visão administrativis-
ta que visa disciplinar as cidades através de regramentos impostos pelo
Poder Público para permitir, com base nos fundamentos constitucionais
da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CFRB) e da cidadania (art. 1º,
II, CFRB), a garantia da tutela do urbano através da participação direta.
Carvalho Filho18 complementa a visão acima ao afirmar que a gestão
democrática prevista no Estatuto exclui a tradicional gestão exclusiva
do Poder Público que, segundo o autor, acabou por ensejar uma série de
descalabros na ordem urbanística, e continua ao afirmar que, se um plano
urbanístico resulta apenas de pareceres técnicos elaborados em gabinetes de
autoridades administrativas, as ações que dele provierem não representarão,
com certeza, os anseios das comunidades. Nota-se, em nenhum momento

1684
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

é defendida a substituição da técnica e do conhecimento científico, pelo


contrário, defende-se a conjugação de ambos (popular e técnico) para
gerir o espaço urbano.
Por fim, orienta Bonizzato19 no sentido de que, apesar de a doutrina
especializada majoritariamente considerar a gestão participativa como
condição indispensável e de suma importância para administração dos
espaços urbanos brasileiros, sua utilização maculada (i.e., da participação
direta), manipulada para a consecução de interesses escusos e desvinculada
do interesse da coletividade interessada deve ser continuamente combatida.
Como rapidamente apresentado, o princípio da participação pública
permeia integralmente a principal norma nacional sobre a gestão do
espaço urbano. A partir da CFRB e mais intensamente depois da promul-
gação do Estatuto da Cidade não é possível vislumbrar qualquer forma
de planejamento e/ou implementação de políticas públicas urbanas
sem – obrigatoriamente – considerar a participação pública no processo.
Todavia, como será detalhado a seguir, mesmo que o Estatuto se calasse
a respeito da atuação popular no desenvolvimento do urbano, ainda sim
sua presença e participação efetiva seriam condições para o exercício
democrático da administração pública.

2.REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO: O CONTROLE


SOCIAL COMO GARANTIA DO ESTADO DEMOCRáTICO

2.1.O Estado Constitucional, o exercício


da democracia e a participação pública

A despeito das discussões sobre o conceito e a justificação do Estado,


para fins da presente análise, concebe-se o Estado contemporâneo (in-
clusive o brasileiro) como Estado Constitucional, isto é, nas palavras de
Canotilho, uma tecnologia de política de equilíbrio político-social através da
qual se combateram dois arbítrios ligados a modelos anteriores, a saber: a au-
tocracia absolutista do poder e os privilégios orgânico-corporativo medievais20.

1685
Segundo Moraes21, o Estado Constitucional configura-se como uma das
grandes conquistas da humanidade. Nesse sentido, as grandes qualidades
desse modelo seriam: (i) o Estado de direito, e (ii) o Estado democrático.
O Estado de direito caracteriza-se por apresentar, dentre outras, as
seguintes premissas: (i) primazia da lei; (ii) separação de poderes como
garantia da liberdade ou controle de possíveis abusos; (iii) reconhe-
cimento e garantia dos direitos fundamentais incorporados à ordem
constitucional, etc.
O Estado democrático, que possui, dentre outras, a função de afastar
a tendência humana ao autoritarismo e à concentração de poder, deve
ser regido por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e
pelo povo. Nesse sentido, a Carta Magna brasileira, no parágrafo único
do art. 1º adota o princípio democrático ao afirmar que todo poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição, e, mais adiante o corrobora por meio do art. 14,
a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e
secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei. O princípio demo-
crático exige a participação de todos na produção da vida política, a fim
de garantir respeito à própria soberania popular22. Em outras palavras, o
pressuposto democrático, em tese, serviria como garantia de legitimação
e limitação do poder.
Todavia, o exercício da democracia representativa por si só não garante
que todos que tenham direito a voto sejam efetivamente representados23.
Dessa forma, para que não se verifique verdadeira ditadura da maioria, o
exercício do poder democrático – isto é, a forma pela qual o povo participa
do poder – deverá se valer não só dos mecanismos de representação, mas
também dos mecanismos participativos24.
Segundo Bobbio, Matteucci e Pasquino25

O ideal democrático supõe cidadãos atentos à evolução da coisa


pública, informados dos acontecimentos políticos, ao corrente
dos principais problemas, capazes de escolher entre as diversas
alternativas apresentadas pelas forças políticas e fortemente
interessados em formas diretas ou indiretas de participação.

1686
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Por outro lado, democracia participativa é caracterizada pela partici-


pação direta e pessoal do cidadão na formação e gestão dos atos de go-
verno. Dentre as formas de exercício do mecanismo participativo pode-se
destacar, dentre outros, (i) a iniciativa popular; (ii) o referendo popular;
(iii) o plebiscito; (iv) a ação popular26. Cabe ressaltar, ademais, que outra
forma de participação que deve ser destacada é a atuação de atores ou
entidades da sociedade civil na formulação de políticas públicas, presentes
na CFRB especialmente nos capítulos da seguridade social (art. 194, PU,
VII; art. 204, II; art. 227, §1º) e da reforma urbana (art. 186).
Em uma análise sobre a evolução da participação pública, Avritzer
aponta que a sociedade civil teria se organizado autonomamente em
relação ao Estado a partir do final da década de 1970, reivindicando par-
ceria nas políticas públicas nos anos 1980 e, finalmente, expandiu sua
participação nessas áreas na década de 1990. Contudo, o autor observa
que a sociedade civil participativa reproduz as desigualdades e heterogenei-
dades da sociedade brasileira. Ainda sim, segundo o autor, seria possível
afirmar que a qualidade de certas políticas públicas específicas melhora com
a participação da sociedade civil e que, há evidências de que nos casos nos
quais há participação da sociedade civil nas políticas públicas elas têm mais
efeitos distributivos e de redução da pobreza27.
Todavia, como aponta Avritzer, essa combinação entre representação
e participação não quer dizer que as duas foram concertadas de forma
adequada e na proporção correta. Nesse sentido, o autor aponta que, (i)
com relação aos mecanismos de participação semidireta (e.g. plebiscito,
referendo e as leis de iniciativa popular) permanecem essencialmente
vinculadas ao Legislativo, diferentemente do que ocorre em outros países,
e (ii) sobre as formas de participação local (e.g. conselhos e orçamentos
participativos), cumpre ressaltar que essas instituições raramente têm
se articulado de forma eficiente com os legislativos locais e, em regra,
acabam sendo colocadas em segundo plano, ou seja, a incapacidade de
articulação tem gerado uma perda de legitimidade na política local. Assim,
conclui afirmando que, apesar de o legislador constituinte prever formas

1687
híbridas de relação entre a representação e a participação, esse objetivo
ainda não foi alcançado no Brasil democrático28.
Ao concluir, Avritzer afirma que as formas de participação precisam
de meios de articulação com o legislativo sob pena de possuírem redu-
zida eficiência, inviabilizando a tarefa de complementação de déficits ou
incompletudes presentes tanto no sistema representativo como no direto.
Por outro lado, há quem critique o crescimento da participação da
sociedade civil que, em diversos momentos, não se sente efetivamente
representada pelos mecanismos formais. Nesse sentido, Leydet afirma que,
apesar de a sociedade civil29 aparecer como o lugar possível de um projeto
verdadeiramente democrático, sua atuação é questionável. Primeiro, se-
gundo a autora, porque essa situação configuraria um paradoxo, eis que
não sendo eleitos pelo conjunto dos cidadãos, dificilmente a sociedade
civil poderia pretender uma melhor representatividade que a dos eleitos.
Em segundo lugar a autora identifica a ocorrência de dois sintomas: (i)
a desvalorização da eleição como princípio fundamental de legitimação
democrática; e (ii) o questionamento da qualidade de representante(s) do
governo eleito30.
A despeito da pertinência das críticas levantadas ao modelo republi-
cano, esse trabalho se filia a corrente que segue na direção apontada por
Avritzer nas obras já mencionadas. Isto é, no sentido de que a participação
pública pode influenciar positivamente a qualidade de determinadas po-
líticas públicas, possuindo efeitos distributivos e de redução da pobreza.

2.2. A participação pública como


fundamento da República Federativa do Brasil

Seguido e fundamentado pelo conceito de soberania (art. 1º, I, CFRB),


definido por Marcelo Caetano como um poder político supremo e indepen-
dente, entendendo-se por poder supremo aquele que não está limitado por
nenhum outro na ordem interna e por poder independente (...) está em pé
de igualdade com os poderes supremos de outros povos31, a cidadania é in-

1688
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

troduzida na CFRB como o segundo fundamento da República Federativa


do Brasil (art. 1º, II, CFRB). Após a identificação da República como poder
soberano, o constituinte sustenta esse império ao justificar sua origem
através do povo. Segundo Moraes, a cidadania como alicerce representa
um status e apresenta-se simultaneamente como objeto e como direito
fundamental das pessoas32.
O constituinte foi prudente e, além de afirmar ser a cidadania um dos
fundamentos da República, expressamente ressaltou a origem do poder
soberano ao dizer, no parágrafo único do art. 1º que todo o poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição. Extremo preciosismo sequer seria necessário se
o conceito de República (moderna) fosse devidamente interpretado. Isto é,
como forma de oposição à monarquia, em que o chefe do Estado, é eleito
pelo povo direta ou indiretamente33. Sobre a interpretação da cidadania
como fundamento da República Silva afirma:

A cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o de ti-


tular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do
Estado, o reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada
na sociedade estatal (art. 5, LxxVII). Significa aí, também, que o
funcionamento do Estado estará submetido à vontade popular.
E aí o termo conexiona-se com o conceito de soberania popular
(parágrafo único do art. 1º), com os direitos políticos (art. 14) e
com o conceito de dignidade da pessoa humana (art.1º, III), com
os objetivos da educação (art. 205), como base e meta essencial
do regime democrático.34

Segundo os constitucionalistas citados, tanto a origem como o funcio-


namento do Estado brasileiro (foram) são (e, espera-se, serão) submetidos
à vontade popular através da participação direta ou indireta. Tentativas
que busquem tornar ineficaz a participação violam esse pressuposto.
Como apresentado, a participação pública é fundamento da República
Federativa do Brasil. Identificada por meio do exercício da cidadania ou
através da fundamentação do próprio Estado Democrático, cuja criação
decorre do poder detido pelo conjunto popular, o sadio funcionamento do
Estado brasileiro ocorrerá na medida em que for capaz de refletir a vontade

1689
popular. Para tanto, instrumentos de representação e participação deverão
ser complementarmente utilizados. Contudo, em momento algum essa
participação pode ser adjetivada para excluir, reduzir, mitigar ou mascarar
seus efeitos. Conforme acima entendido, qualquer tentativa de redução
do exercício da democracia vai de encontro à própria fundamentação do
Estado brasileiro.

3. PARTICIPAÇÃO PÚBLICA EFETIVA:


REINTERPRETANDO A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

3.1. (Re)pensando o conteúdo da participação pública

Dessa forma, a participação pública não só permeia todo o Estatuto


da Cidade, como também é um dos fundamentos do Estado Democrático
de Direito. Isso porque, é por meio da primeira forma de participação –
uma convergência de vontades – que é possível verificar o primeiro passo
teórico para a constituição do Estado. Assim, da mesma forma que nesse
momento inicial – ainda que fictício – a participação dos indivíduos é
substantiva, em todos os momentos futuros que ela for exigida/solicitada
não poderá ser considerada efetivamente cumprida caso ocorra apenas
sob o ponto de vista formal.
Nesse sentido, importante destacar a definição de Rios que, apesar de
poder ser interpretada como uma crítica extensiva a socialistas e capita-
listas (note que a publicação é datada de 1987), que exerciam o controle
do Estado de forma rígida conferindo – no caso dos capitalistas – apenas
um papel formal aos mecanismos democráticos, é clara ao definir o papel
dos cidadãos no processo decisório em regimes democráticos:

Participação
Lema e tópico central em programas e doutrinas reformistas ge-
neralizadas a partir dos anos 60, quando se pensou em contrapor
à massificação, à centralização burocrática e aos monopólios de
poder o princípio democrático segundo o qual todos os que
são atingidos por medidas sociais e políticas devem participar
do processo decisório, qualquer que seja o modelo político ou
econômico adotado35. (grifos nossos)

1690
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Conforme a definição de Rios, quando medidas sociais e políticas


produzirem efeitos sobre determinados indivíduos, surge sobre eles um
necessário dever de participação popular no processo decisório. Essa
definição pode ser complementada pelo entendimento desenvolvido pela
Associação Internacional de Participação Pública (IAP2), que ao deliberar
sobre seus valores determina conceitua public participation como:

Public participation is based on the belief that those who are


affected by a decision have a right to be involved in the decision-
making process. Public participation is the process by which an
organization consults with interested or affected individuals,
organizations, and government entities before making a decision.
Public participation is two-way communication and collabora-
tive problem solving with the goal of achieving better and more
acceptable decisions36. (grifos nossos)

Apesar de a definição da IAP2 ser estreita ao afirmar que a participação


pública se restringe à participação da sociedade através de mecanismos de
consulta, ela é clara ao afirmar que a participação ocorre por meio de um
mecanismo de mão dupla. Para que se caracterize a participação pública
como tal é necessário que haja colaboração por parte da sociedade. Em
outras palavras, qualquer medida social ou política que requeira a partici-
pação pública como parte de seu processo de planejamento ou execução
deverá, necessariamente, receber contribuições substantivas, sob pena
de não cumprimento do requisito da participação.
Ao afirmar sobre a necessidade de contribuições substantivas no proce-
dimento de participação pública, é necessário esclarecer que esse conteúdo
está relacionado aos conceitos de empowerment37 e citizen power38. Para
integrar as definições acima apresentadas, destaca-se trecho do trabalho
de Arnstein que conceitua o termo citizen participation:

citizen participation is a categorical term for citizen power. It is


the redistribution of power that enables the have-not citizens,
presently excluded from the political and economic processes, to
be deliberately included in the future39. (grifos nossos)

1691
Na definição acima apresentada, a autora destaca que a necessária
transferência de poder e sua capacidade inclusiva são conteúdos primor-
diais da participação pública. Ao inserir cidadãos desprovidos de poder
decisório (no âmbito da representação), a participação possibilita a esses
indivíduos que colaborem no desenvolvimento de um horizonte futuro.
Essa possibilidade de participação na formulação e implementação de
políticas públicas produz efeitos positivos, como a redução de desigual-
dades sociais, segundo Avritzer40.
Arnstein cria, ainda, uma tipologia de oito níveis de participação41.
Apesar de a escala ser uma simplificação da realidade, por meio dela é
possível constatar – como a própria autora o faz – que formas de “ma-
nipulação”, “terapia”, “informação”, “consulta” e “apaziguamento”, em
verdade, não podem ser caracterizados como participação. Isso porque,
esses mecanismos de suposta intervenção popular se limitam – no má-
ximo – a ouvir as eventuais colaborações, sem, no entanto, garantir que,
efetivamente, a população será atendida. Assim, a participação será veri-
ficada somente nas situações em que houver transferência de poder, caso
contrário, resultará em um procedimento vazio e frustrante para aqueles
desprovidos de poder.

3.2. A participação como condição de


validade para atos do Poder Público

Toda a Administração Pública – inclusive a inserida no âmbito dos


Poderes Legislativo e Judiciário – está subordinada ao princípio da legali-
dade, devendo agir estritamente nos limites do que o legislador lhe atribui
competência42. Dessa forma, sempre que o legislador incluir o requisito
da participação pública como condição para a produção de qualquer ato
do Poder Público, sua obediência substantiva será condição para a vali-
dade do ato em questão, sob pena – inclusive – de violação do princípio
da legalidade43.

1692
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Todavia, esclarece-se que a participação não depende de previsão


pelo legislador. Isso porque, como identifica e afirma Dal Bosco, há – na
essência dos Estados Democráticos contemporâneos – o princípio da de-
mocracia e da participação na administração pública que provoca efeitos
de subordinação da máquina administrativa às exigências da legalidade e da
racionalidade, assim como o acesso dos cidadãos aos mecanismos de partici-
pação44. Assim, a atuação da Administração deverá observar não apenas
a lei, mas também respeitar os princípios fundamentais, que incluem a
garantia de efetiva participação dos administrados.
Assim, nas hipóteses em que (i) não haja previsão expressa na legis-
lação de participação pública; (ii) a participação pública – em função de
circunstancias excepcionais – não seja verificada; ou (iii) os mecanismos
jurídicos de participação previstos forem insuficientes para extrair a
vontade dos cidadãos – condição também admitida em caráter de ex-
cepcionalidade –, deve ser garantido o direito (a todos os seguimentos
sociais) a um tratamento justo e igualitário no processo de produção dos
atos decorrentes do Poder Público, sob pena de afronta ao princípio da
democracia e participação.
Sobre a necessidade de se obter essa substantiva participação popular,
menciona-se o modelo notice and comment45 norteamericano. Ao comen-
tar as limitações do referido modelo, Sinaiko entende que os seguintes
mecanismos são possíveis para tentar reduzir o déficit de apropriação das
idéias populares pelos instrumentos de participação. O primeiro seria a
inclusão de ferramentas de proteção dos interesses dos participantes (i.e.,
ampliar as formas de participação para atingir grupos minoritários e classes
sociais variadas). O segundo permitiria a revisão dos atos administrativos
pelo Poder Judiciário a fim de verificar se os interesses em conflito foram
efetivamente considerados46.
Apesar de o trabalho mencionado referir-se apenas às normas pro-
duzidas pelo Executivo, interessante notar que o argumento utilizado
para a revisão judicial é a ausência de um tratamento justo e igualitário
no processo. Esse argumento se fundamenta na não observância ao

1693
princípio da democracia e da participação, atingindo diretamente o
princípio da legalidade. Essa idéia pode ser preliminarmente extraída
de Fagundes ao afirmar que é preciso, ainda, que [a atuação da Admi-
nistração Pública] se exerça segundo a orientação dela [da lei] e dentro
dos limites nela [da lei] traçados47.
Tendo em vista a obrigação de o Poder Público observar o princípio da
democracia e da participação, avalia-se para fins da presente análise, duas
possíveis situações em que se poderia questionar a validade de seus atos:
(i) quando o mecanismo de participação – previsto na legislação – não é
observado (ou é insuficientemente observado); ou (ii) quando não se veri-
ficar um tratamento justo e igualitário na produção dos atos estatais. Em
ambos os casos, haverá violação do princípio da legalidade. No primeiro,
verificar-se-á desobediência à própria legislação em vigor. No segundo,
a atuação do Poder Público colidirá com o princípio da democracia e da
participação, fundamento do próprio Estado Democrático de Direito.

3.3. Reinterpretando a previsão de


participação pública no Estatuto da Cidade

Como anteriormente afirmado, para que se considere o requisito da


participação pública cumprido é necessário que a atuação da sociedade
participante esteja imbuída de poder. A ausência de transferência de poder
decisório implica em não caracterização daquele ato de interação entre
sociedade e Poder Público como “participação pública”.
Ademais, a participação pública encontra-se alojada nos limites da
atuação do Poder Público segundo o princípio da legalidade. Isso porque,
é a participação pública – via direta ou indireta – condição necessária
para a validade dos atos praticados pela Administração, restringindo sua
atuação ao dever de corresponder aos anseios da sociedade civil. Assim,
sua inobservância com base nos critérios anteriormente descritos implica
na possibilidade de questionamento da legalidade dos referidos atos.
Antes da análise da previsão de participação pública no Estatuto da

1694
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Cidade, são apresentados trechos da Declaração de Vancouver sobre


assentamentos humanos que refletem a idéia de participação desenvol-
vida48. Primeiramente, no rol de princípios gerais listados, a Declaração
afirma no Princípio 13 que, todas as pessoas possuem o direito e o dever
de participar, individual e coletivamente na elaboração e implementação de
políticas e programas de seus assentamentos humanos (tradução livre)49.
Ao propor os mecanismos de solução, a Declaração direciona a atuação
dos governos nacionais e da comunidade internacional para, dentre outros,
a criação de possibilidades para a participação efetiva de todas as pessoas no
planejamento, construção e gestão de seus assentamentos urbanos (grifos
nossos e tradução livre)50.
Ao definir as diretrizes para ação, a Declaração é contundente ao definir
basic human dignity como o direito das pessoas, individual e coletivamente,
de participar diretamente na definição das políticas e programas que afetam
suas vidas (tradução livre)51. E, o processo de escolha e execução de uma
determinada linha de atuação para a melhoria dos assentamentos humanos
deve ser concebida expressamente para cumprir esse direito (tradução livre)52.
Breve análise dos trechos transcritos permite identificar a necessidade
de interação efetiva da população na formulação das políticas públicas
relacionadas a assentamentos urbanos. Em outras palavras, há o con-
senso – ao menos na legislação internacional – de que a atuação da so-
ciedade civil não pode ficar restrita ao caráter formal, isto é, restrita aos
critérios de “não participação” listados por Arnstein53. O mesmo deve ser
entendido quando da interpretação da legislação nacional, inclusive do
Estatuto da Cidade.
Para realizar a tarefa proposta neste item, isto é, de reinterpretação
dos dispositivos associados à participação pública no Estatuto da Cidade,
optou-se por destacar os seguintes dispositivos (mencionados no capítulo
1) entendidos como elementos chave na gestão da cidade: (i) art. 2º, II; (ii)
art. 40, §4º; (iii) art. 43; e (iv) art. 45.
Como já apresentado, o art. 2º, II, introduz a idéia de que a política
urbana só atingirá de forma plena seus objetivos se a gestão da cidade

1695
for conduzida de maneira democrática. Contudo, essa interação entre
sociedade e Poder Público na formulação de políticas públicas urbanas
não se resume aos mecanismos formais de participação. A expressão
“democrática” não foi utilizada de forma descuidada, pelo contrário, a
opção pelo emprego do referido termo tem a finalidade de garantir que
o Poder Público obrigatoriamente inclua a sociedade, de forma direta, na
gestão do domínio urbano. Isso significa dizer que os assuntos locais liga-
dos à ordem urbana devem passar pelo controle social. Note que não há
espaço para a discricionariedade do ator público, a intervenção popular é
obrigação legal. Ou seja, a inobservância desse comando legal implica na
extrapolação dos limites do agir público, violando, assim, dentre outros,
o princípio da legalidade.
Não há que se falar, todavia, que a listagem contida no art. 43, por
exemplo, vincule e limite o significado da expressão “gestão democrática”.
Em verdade, pode-se extrair exatamente o contrário, isto é, a opção pela
utilização da expressão “entre outros” no referido artigo reforça a idéia
de que o legislador em jamais pretendeu restringir a participação, forne-
cendo – em contraste – ampla margem para o desenvolvimento de outros
instrumentos para melhor permitir a inclusão da sociedade na formulação
de políticas públicas urbanas.
Nesse mesmo sentido pode-se analisar a previsão de participação pú-
blica na elaboração do Plano Diretor. Inclusive interessante notar que, no
art. 40, §4º, o legislador incluiu pelo menos um efetivo instrumento de
participação direta, ao afirmar que os Poderes Legislativo e Executivo têm
o dever de garantir não só a informação (através das audiências públicas),
como também, a realização de debates, instrumento que pressupõe efetiva
interação da sociedade civil interessada com o Poder Público.
Por fim, a leitura do legislador sobre a participação pública foi tão am-
pla que, no art. 45, fez questão de incluir a intervenção popular quando
as questões urbanas locais forem tratadas por organismos regionais (e.g
regiões metropolitanas e as aglomerações urbanas). Nesse artigo, há a
utilização da expressão “controle direto” evidenciando uma vez mais a

1696
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

obrigatoriedade legal para que haja – como defendido neste trabalho –


efetiva transferência de poder para a sociedade no âmbito da formulação
das políticas públicas urbanas.
A estrutura de princípios e declarações internacionais, como a de
Vancouver, somada ao arcabouço legislativo confirma a obrigatoriedade
de efetiva participação pública na formulação das políticas urbanas bra-
sileiras. Atos e instrumentos de administração da cidade que ignorem a
necessidade de compartilhamento do poder de gestão – leia-se efetivo
empoderamento da sociedade civil – são considerados ilegais pela legisla-
ção e representam uma afronta aos fundamentos do Estado Democrático
de Direito.

CONCLUSÃO

Até 1988, a legislação urbanística brasileira estava predominantemente


voltada para uma perspectiva técnica, que não previa o envolvimento
direto da sociedade na formulação das políticas públicas urbanas. Com a
promulgação da CFRB, a perspectiva burocrática do planejamento urbano
cedeu lugar a um olhar voltado para o diálogo com a população brasilei-
ra. Todavia, somente em 2001, com a edição do Estatuto da Cidade, que
essa via democrática será efetivamente materializada no ordenamento
jurídico brasileiro.
Essa evolução, tanto do planejamento urbano quanto da própria legis-
lação urbanística, está associada, dentre outros, com a própria evolução da
concepção de Estado e dos limites do modelo de democracia representati-
va. Nesse sentido, como demonstra Avritzer54, a utilização de mecanismos
de participação direta tem provocado a redução de desigualdade – quando
aplicados em determinadas políticas públicas – reforçando a idéia de que
é preciso ampliar ainda mais os instrumentos de controle social.
Esse modelo de intervenção direta por parte da sociedade encontra
sustentação nos alicerces do Estado brasileiro. A cidadania, na CFRB, é um
dos fundamentos da República Federativa do Brasil e só poderá ser atingida

1697
em sua plenitude se, entre outros, os instrumentos de participação forem
amplos e irrestritos, sendo vedada sua utilização para outros fins, senão
o de permitir o controle social pelos grupos deficitários de representação
pelo modelo representativo tradicional.
Exatamente pela necessidade de conceber a participação como verda-
deiro instrumento de transferência de poder, como defende Arnstein55, é
que este trabalho optou por adjetivar a participação como “efetiva”. Apesar
de essa qualificação poder ser considerada um equívoco, este artifício
tem por finalidade contrastar a utilização do referido instituto apenas
formalmente, como mais um requisito previsto na legislação. Assim, é
possível concluir que, nos casos em que não houver essa transferência
de poder decisório – e ai poder-se-á avaliar o nível de permuta –, será
incorreto considerar que houve participação pública e, por conseguinte,
preenchido o requisito legal.
Considerando essa acepção de participação pública, e tendo em vis-
ta que a atuação do Poder Público está adstrita ao limite definido pelo
princípio da legalidade, nos casos em que houver a previsão legal de
participação e não se verificar transferência de poder, o ato em questão
será ilegal e ilegítimo.
Mesmo diante da dificuldade de implementação56 decorrente da elevada
complexidade dos problemas urbanísticos, a participação deve ser sempre
um elemento de destaque quando da elaboração das políticas públicas
urbanas. Isso porque, a necessidade de ampla e efetiva participação dos
envolvidos no processo de construção do espaço urbano está relacionada,
dentre outros, com o elevado grau de interação entre o território e as rela-
ções sociais, como claramente expõe Rosa no trecho a seguir destacado:

O planejamento urbano reflete as relações sociais, e indiretamen-


te as reproduz. Há, sem dúvida, uma sinergia muito clara entre
as relações sociais desenvolvidas no seio de um espaço urbano
e a sua própria concepção de desenvolvimento organizacional. A
cidade retrata o perfil urbano daquele que a habita como também
influencia na formação de sua personalidade, no seu jeito de ser
e de falar. Projetamos em nossa cidade o que somos e pensamos
e assimilamos dela a sua emanação própria57. (grifos nossos)

1698
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Como defende Maricato, é impossível esperar que uma sociedade como a


nossa, radicalmente desigual e autoritária, baseada em relações de privilégio
e arbitrariedade, possa produzir cidades que não tenham essas característi-
cas58. A participação na gestão do urbano visa, portanto, reduzir a relação
desigual de poder na formulação das políticas públicas para possibilitar
a produção de cidades que atendam às necessidades de seus habitantes.
Por fim, conclui-se que, ao definir a necessidade de participação da
sociedade na formulação de políticas públicas urbanas, o legislador re-
conheceu essa pluralidade de relações do meio urbano e também a in-
capacidade do modelo tradicional de democracia representativa em lidar
com todas as demandas associadas à sociedade contemporânea. A opção,
nesse caso, veio servir como freio externo para evitar que políticas públicas
urbanas de natureza autoritária ou que privilegiem apenas determinados
grupos sociais sejam adotadas, violando o próprio conteúdo do Estado
Democrático de Direito.

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NOTAS

1 Mestrando em Direito da Cidade (UERJ), especialista em Direito Ambiental Brasileiro (PUC-Rio), bacharel em
Direito (PUC-Rio); Advogado; pedrohvasques@gmail.com
2 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5ª ed.. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 54-55.
3 PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 130-168;
PRADO JUNIOR, Caio. história Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1998. p. 225-256.
4 A desapropriação por utilidade pública veio a ser prevista na Carta Magna para fundamentar regramentos
anteriores que autorizavam desapropriações para, por exemplo, construção de vias férreas por meio da Lei n.
816/1855. A referida lei, apesar de ser anterior à República, foi sendo ampliada por meio da edição de outras
normas para incluir a previsão de desapropriação para outras finalidades públicas (e.g. as obras de renovação
urbana no Rio de Janeiro no início do século xx).
5 Art. 15. A autonomia municipal será assegurada: (...)
II - pela administração própria, no que respeite ao seu peculiar interesse, especialmente quanto:
a) à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e à aplicação de suas rendas, sem prejuízo da
obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; e
b) à organização dos serviços públicos locais
6 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 56-57.
7 FREITAG, Barbara. Teorias da Cidade. Campinas: Editora Papirus, 2006. p. 125-149.
8 A CFRB, por sua vez, conferiu considerável atenção à matéria urbanística/ambiental ao longo de seu texto
(arts. 21, xx; 23, III, IV, VI e VII; 24, VII e VIII; 182; e 225, etc.).
9 Sobre as críticas acerca da concepção e do uso do instrumento plano diretor ver: VILLAÇA, Flávio. Uma
contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In: O processo de urbanização no Brasil.
DEÁK, Csaba. SCHIFFER, Sueli Ramos. (org.). São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999. p. 171-243.
10 Como intermediário nessa situação encontram-se os Estados (art. 24, I, CFRB) que, concorrentemente,
possuem a competência para legislar sobre direito urbanístico.
11 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
376-377.
12 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 4ª ed. São Paulo: Revista dos

1701
Tribunais, 2005. p. 714-715.
13 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen
Juris, 2005. p. 20-21.
14 Segundo Carvalho Filho, a participação da coletividade seria classificada como uma diretriz social, ou
seja, que visa proporcionar algum tipo de benefício direto à coletividade, individual ou coletivamente, ou que
admitem a participação da comunidade no processo de urbanização (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op.
cit., p. 23). Como se demonstrará no decorrer desse trabalho, a previsão de participação pública contida no
Estatuto da Cidade não é facultativa ou tampouco mero requisito formal. O controle social efetivo é obrigatório
e indispensável para a gestão do espaço urbano.
15 Nota-se que o caput do art. 4º, que define os instrumentos, não é taxativo, autorizando o legislador e/ou
administrador vislumbrar outras ferramentas para a gestão da cidade.
16 Deve-se destacar o EIA e o EIV como exemplos de instrumentos que contemplam a participação pública,
pois há em seu processo de elaboração momento específico e obrigatório em que deve haver participação da
sociedade civil (em audiência pública, ou na fase de comentários públicos aos estudos).
17 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2008. p. 126-127.
18 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen
Juris, 2005. p. 37-38.
19 BONIZZATO, Luigi. O advento do Estatuto da Cidade e conseqüências fáticas em âmbito da pro-
priedade, vizinhança e sociedade participativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 168.
20 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed. Lisboa:
Almedina, p. 87.
21 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2008. p. 05.
22 Sobre o princípio democrático, interessante destacar a definição de democracia de Schmitt: As a state
form as well as governmental or legislative form, democracy is the identity of ruler and ruled, governing and
governed, commander and follower (SCHMITT, Carl. Constitutional Theory. North Carolina: Duke University
Press, 2008. p. 264).
23 No caso da representação dos interesses das gerações futuras, faz-se necessário observar que, mesmo
apesar destes (que não existem e que poderão existir) não possuírem direito ao voto, seus interesses devem
ser considerados, sob pena, dentre outros, de violação ao art. 225 da Constituição Federal de 1988.
24 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
p. 136-142.
25 BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola. PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol. 2. 5ª ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p. 889.
26 Outras formas de participação direta são asseguradas ao longo do texto constitucional, como, por exemplo:
arts.10, 11, 194, VII, 206, VI, 216, §1º, etc.
27 AVRITZER, Leonardo. Sociedade Civil e Participação Social no Brasil. <http://www.democracia-
participativa.org/files/AvritzerSociedadeCivilParticipacaoBrasil.pdf> (acessado pela última vez em 01.08.12)
28 AVRITZER, Leonardo. Reforma política e participação no Brasil. In: AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA,
Fátima (org). Reforma política no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p. 35-42
29 A própria autora esclarece que o conceito de sociedade civil por ela utilizado no trabalho em referência
corresponde ao esquema tripartite adotado por Jürgen Habermas e discípulos (e.g. Jean Cohen e Andew Arato),
em que se distingue a sociedade civil tanto do mercado quanto do Estado.
30 LEYDET, Dominique. Crise de representação: o modelo republicano em questão. In: Retorno ao republi-
canismo. CARDOSO, Sérgio. (org.) Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 67-92.
31 CAETANO, Marcelo. Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1987. p. 169.
32 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2008. p. 21.
33 BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola. PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol. 2. 5ª ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p. 1107.
34 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
p. 104-105.
35 RIOS, José Arthur. Participação. In: SILVA, Benedicto. (coord.). Dicionário de Ciências Sociais. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 1987. p. 869-870.
36 INTERNATIONAL ASSOCIATION FOR PUBLIC PARTICIPATION – IAP2. Core Values, 2007. <http://www.
iap2.org/> (acessado pela última vez em 05.08.12)
37 PERKINS, Douglas D.; ZIMMERMAN, Marc A. Empowerment Theory, Research, and Application. In: American
Journal of Community Psycholoy, Vol. 23 n.5 1995. p. 569-579.
38 ARNSTEIN, Sherry R. A Ladder of Citizen Participation. In: Journal of the American Institute of Plan-
ners, Vol. 35, n. 4, July, 1969. p. 216-224.
39 ARNSTEIN, Sherry R. Op. cit., p. 216-224.

1702
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

40 AVRITZER, Leonardo. Sociedade Civil e Participação Social no Brasil. <http://www.democracia-


participativa.org/files/AvritzerSociedadeCivilParticipacaoBrasil.pdf> (acessado pela última vez em 01.08.12)
41 A escala é iniciada através da forma mais tênue de participação (entendida, em verdade, como não parti-
cipação) e se encerra com a forma mais intensa de transferência de poder: Manipulation, Therapy, Informing,
Consultation, Placation, Partnership, Delegated Power.
42 A submissão à ordem jurídica não atinge apenas os atos do Poder Executivo. Dentro dela se hão de exercer
todas as atividades estatais. (FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder
Judiciário. 7ª ed. atualizada por Gustavo Binenbojm. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. p. 116)
43 Deve-se ressalvar, no entanto, que essa subordinação ao princípio da legalidade é mitigada quando da
produção de normas pelo Legislativo que, por sua natureza, detém autorização para inovar. Essa condição,
em teoria, é inexistente no exercício dos demais Poderes.
44 DAL BOSCO, Maria Goretti. Discricionariedade em Políticas Públicas. Curitiba: Juruá, 2007. p. 158.
45 Trata-se de um procedimento de criação de regramentos (rulemaking) em que determinada regra – antes de
ser aprovada – é publicada no Federal Register (Diário Oficial do Governo Federal norteamericano) e, durante
determinado tempo, fica aberta para comentários.
46 SINAIKO, Evelyn R. Rights of Participation in Administrative Rulemaking. In: California Law Review. Vol.
63 n. 4. (jul.) California: California Law Review, Inc., 1975. p. 915-916.
47 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 7ª ed. atua-
lizada por Gustavo Binenbojm. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. p. 115.
48 ANTONUCCI, Denise; ALVIM, Angélica Benatti; ZIONI, Silvana; KATO, Volia Costa. UN-habitat: das de-
clarações aos compromissos. São Paulo: Romano Guerra, 2010. p 29-44.
49 All persons have the right and the duty to participate, individually and collectively in the elaboration and
implementation of policies and programmes of their human settlements.
50 Creating possibilities for effective participation by all people in the planning, building and management of
their human settlements.
51Basic human dignity is the right of people, individually and collectively, to participate directly in shaping the
policies and programmes affecting their lives.
52 The process of choosing and carrying out a given course of action for human settlement improvement
should be designed expressly to fulfill that right.
53 ARNSTEIN, Sherry R. Op. cit., p. 216-224.
54 AVRITZER, Leonardo. Sociedade Civil e Participação Social no Brasil. <http://www.democracia-
participativa.org/files/AvritzerSociedadeCivilParticipacaoBrasil.pdf> (acessado pela última vez em 01.08.12)
55 ARNSTEIN, Sherry R. Op. cit., p. 216-224.
56 MARICATO, Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.
57 ROSA, Elianne M. Meira. A cidade antiga e a nova cidade. In: A cidade e seu Estatuto. GARCIA, Maria.
(org.). São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005. p. 13.
58 MARICATO, Ermínia. Limitações ao Planejamento Urbano Democrático. In: Temas de Direito Urbanístico
3. FREITAS, José Carlos de. (org.). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001. p. 49.

1703
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Planejamento urbano: uma


visão cética sobre o pensamento
abissal da administração pública

Frederico Garcia Guimarães*


Marinella Machado Araújo**

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho se assenta, do ponto de vista metodológico, na


descrição teórica e fática do planejamento enquanto função da Adminis-
tração Pública e seu conteúdo participativo, especificamente, no que toca
ao planejamento urbano.
Parte das teorias que versam sobre tal instituto e sobre o seu viés
participativo aliando-se a dados concretos, práticos e do mundo da vida,
com fundamento histórico. Para tanto, se baseia numa leitura do instituto
sob o ponto de vista filosófico/sociológico, sem trata o objeto com o dis-
tanciamento aristotélico. Apregoa, entretanto, a dialógica, somando-se
teorias num processo pós-estruturalista.
Boaventura Souza Santos apresenta em uma de suas obras, que é uma
das ideias condutoras do presente artigo, a concepção do visível e invisível
que se separam por um abismo, definindo aquela no campo do lado desse
lado do abismo e aquele do outro lado do abismo. Tudo para justificar a
atual conjuntura epistemológica e jurídica do mundo, que separa o Norte
do Sul. Esse pensamento conclui, portanto, que o que está do outro lado
do abismo, não sendo reconhecido, não existe no mundo, caracterizando-
-se um pensamento também Nietzchiniano.
A partir disso, desenvolve-se a concepção do olhar cético sobre o
próprio Direito Administrativo, sobre a própria Administração Pública e
sobre o modelo de Administração.

1705
Não obstante a previsão constitucional e legal do instituto do plane-
jamento e seu viés participativo, o que se observa é que o Direito Admi-
nistrativo não o vê, sendo ele, então inexiste: esta é a primeira crítica.
Num segundo momento, traz à discussão acerca da própria Adminis-
tração Pública que também, mesmo diante das previsões normativas do
planejamento, não o reconhece de forma plena, o que se traduz que não
vê esse objeto na sua inteireza. Isto se assevera e específica quando do po-
sicionamento do Supremo Tribunal Federal através de Repercussão Geral.
Por fim, numa quarta parte, o trabalho apresenta uma possibilidade de
que o planejamento participativo não pode ser distanciado de um nível de
procedimento dentro de um modelo atual da Administração Pública que
busca o resultado como garantia da eficiência da Administração Pública.

2. O PENSAMENTO ABISSAL E O OLhAR


CéTICO: DUAS IDEIAS CONDUTORAS

Boaventura Souza Santos desenvolveu a pensamento abissal e o pen-


samento pós-abissal no capítulo 1 da obra denominada Epistemologia dos
Sul3. Este trabalho foi desenvolvido para observar a existência ou mesmo
inexistência jurídico e epistemológica do que se encontra do outro lado
do abismo, baseado na distinção entre a sociedade metropolitana e a
sociedade colonial4.
Defini-se este pensamento num sistema de distinções visíveis e invisíveis,
sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis.5 Assim, essa divisão se
caracteriza de tal forma que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto
a realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente.6
Assim, ao se impor tal divisão, por esse lado de cá do abismo frente ou
outro lado de lá, vislumbra-se a própria inexistência de tudo que se encon-
tra do outro lado, firmando-se uma divisão que somente afirma esse lado
do abismo em oposição ao outro lado da linha que é, em si, inexistente.

[...] as divisões levadas a cabo pelas linhas globais são abissais


no sentido em que eliminam definitivamente quaisquer realidades
que se encontrem do outro lado da linha. Esta negação radical
de copresença fundamenta a afirmação da diferença radical
que, deste lado da linha, separa o verdadeiro do falso, o legal

1706
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do ilegal. O outro lado da linha compreende uma fasta gama de


experiências desperdiçadas, tornadas invisíveis, tal como seus
autores, e sem localização territorial fixa.7

O que se compreende é que este lado do abismo ao ignorar o outro


lado, o caracterizar como sendo invisível, que, por sua vez, não estabelece
um reconhecimento da diferença, do diverso. O que está do outro lado do
abismo não é reconhecido como um no mundo real, um mundo das coisas,
justificando o pensamento abissal pela impossibilidade da copresença8.
Mas a obra em destaque apresenta uma proposta que se baseia no
pensamento pós-abissal, que ao contrário do abissal, reconhece a copre-
sença. Mas aquele pensamento somente poder-ser-á ocorrer a partir do
momento em que haja o reconhecimento desse pensamento abissal, por
meio de um pensamento crítico9. A partir disso, o lado de cá do abismo
aceita a existência do outro lado do abismo o que leva à copresença, sendo
que este lado de cá do abismo aprende como o lado de lá10.
A aceitação da existência do outro lado do abismo é também a aceitação
da diferença ou do diverso, sendo que se reconhece a própria pluralidade
que irá sustentar essa chamada coexistência de ambos os lados11.
Com isso, o pensamento pós-abissal não se baseia uma síntese dos
dois lados do abismo, mas a partir da “aceitação” desse lado do abismo
da existência do outro lado, da construção dialógica dos dois pontos de
vista epistemológicos: O pensamento pós-abissal pode ser sumariado como
um aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul.12
Boaventura traz, desta forma, uma concepção teórica que se revela
existente não apenas no sistema social, para conceituar a relação entre
o hemisfério norte e o hemisfério sul, mas, em um contexto geral, para
apontar que em todas as relações existentes, sejam puramente pessoais,
sejam científicas. Nestas relações o que se estabelece é um lado “domi-
nante” que não vê e nega a existência de um outro olhar, de uma outra
realidade, mesmo que essa realidade retrate a vida, o próprio pensamento
científico, uma previsão normativa, um procedimento, uma essencialidade.
Negar a existência daquilo que não integra à maneira ortodoxa de se

1707
ler o sistema, por que poderá inclusive comprometer a estrutura desse
mesmo sistema noutra ótica, é uma forma abissal, homogênea que não
se pode ser recepcionado num mundo hoje que é plural.
As coisas existem quando falamos sobre elas, como já dito por Nieztche,
mas é imperioso que o cientista, que o pesquisador tenha olhos para ver
todo o mundo, todo o objeto, a realidade da vida.
O planejamento pode se enquadrar nessa perspectiva. O planejamento
como instituto do direito, que é uma função da Administração Pública,
que deve ser construído de forma participativa, que deve ser tratado como
inerente a atuação do Estado não pode ser não visto, ou mesmo inexistente
seja pelo Direito Administrativo, seja pelo Administrador, seja pelo próprio
Poder Judiciário. Isto porque, o planejamento participativo, principalmente,
urbano, é o retrato da realidade dos habitantes de uma cidade, é o retrato
da própria cidade, é o que melhor pode expressar do Direito à Cidade, é
o que poderá atingir as funções sócias da cidade.
Demonstrar, assim, que o planejamento está do outro lado do abismo
e mesmo propor um pensamento pós-abissal demanda uma leitura cé-
tica do próprio Direito Administrativo e de como a Administração trata
esse instituto.
Carlo Ari Sundfeld bem coloca essa visão cética em um de seus re-
centes trabalhados13.
O autor destaca na sua apresentação que os céticos preferem olhar en-
viesado para as coisas14. Isto quer dizer que esse olhar cético proposto, do
qual esse trabalho se alia, apresenta essa definição de cético como uma
forma de testar as coisas, de irritá-las, que brinca com as convenções, que
inventa, que não se receia da realidade15.
O olhar cético se fundamenta numa crítica, no apontar uma determina
aspecto que a maioria daqueles que constroem o Direito Administrativo
ou mesmo o aplicam no mundo real, como a Administração Pública, ou
mesmo o Poder Judiciário, o não o fazem. É incentivar a um pensamento

1708
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ou uma abordagem epistemológica que não está dentro de uma convenção


ou de um conceito já determinado, construída por meio de um pensamento
puramente abissal:

apontar a existência do objeto, sua perspectiva histórica, seu con-


ceito cultural e principalmente sua definição legal, em contrapo-
sição a inexistência dentro do estudo teórico é é sim caracterizar
a sua inexistência. E mais, é negar a importância, é desconhecer
o seu conceito pleno, as suas características e funcionabilidades
de um objeto. O planejamento como função da Administração
Pública merece esse olhar cético;
e mesmo que se reconheça tal objeto, mas não é ele aplicado da
forma como ele mesmo se fundamenta é também negar a sua pró-
pria existência, é negar que ele de fato exista no mundo da vida;
propor, também, a construção de um pensamento pós-abissal
para o planejamento é também um proposta cética, quando se
apresenta um novo modelo de administrar.

Tudo isso, para que seja confirmado um Estado verdadeiramente, de-


mocrático e de direito, destacando-se a importância de uma Administração
Pública realmente eficiente, que garanta a participação social, que conhece
do mundo da vida e que concretize direitos fundamentais, em especial
aqueles que se relacionam com as funções sociais da cidade.

3. O OBJETO: O PLANEJAMENTO COMO FUNÇÃO


DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PARA O DIREITO
ADMINISTRATIVO – VISÃO CRÍTICA DO INVISÍVEL

O contexto histórico do planejamento dentro da Administração Pú-


blica nos revela que desde o primeiro governo de Getúlio já havia a sua
previsão. Previsão essa puramente estratégica, que se repetiu na era
JK16.Com o advento da Lei 4.320/64, mesmo sendo editada num período
não democrático, em razão do seu caráter científico, foi tal norma bem
recepcionadas pelos administrativas pátrios como instrumentos jurídicos
capazes de dar à Administração Pública um caráter organizacional e pla-
nejado, como bem destaca Carlos Ari Sundfeld17.
A Constituição de República de 1988 trouxe novas dimensões para o

1709
Estado de Direito, dando-lhe ainda o caráter de Democrático, o que impul-
sionou uma nova relação de poder, de organização social e de estrutura
do direito. Trouxe, portanto, em seu conteúdo, vários dispositivos que
fazem menção ao ato de planejar que deve ser procedido pelo Estado na
definição e construção de direitos que versem sobre os mesmos diver-
sos bens jurídicos. A título de exemplo para o presente trabalho pode-se
destacar: habitação e saneamento básico (23, Ix); reforma agrária (184,
§4o); transporte (Artigo 208, VII); o art. 182, parágrafo 1º (Plano Diretor).
O planejamento, então, dá um primeiro salto com relação a seu re-
conhecimento quanto um instrumento/fim para garantir direitos funda-
mentais através de implementações de políticas públicas, definindo –o
planejamento- princípios, diretrizes, objetivos.

O planejamento, assim, não é mais um processo dependente da


mera vontade dos governantes. É uma previsão constitucional
e uma provisão legal. Tornou-se imposição jurídica, mediante a
obrigação de elaborar planos, que são instrumentos consubstan-
ciadores do respectivo processo.18

Além dessa constitucionalização do planejamento como função da


Administração Pública essencial, o que se deflagrou com a nova ordem
jurídica democrática posta, foi um planejamento que é construído não
apenas como um instrumento que resguarda os interesses dos grupos
dominadores e homogêneos.
A Constituição da República de 1988 assegura, ainda, um Estado De-
mocrático de Direito plural e participativo (art. 1º, IV e parágrafo único).
Com isso, tem-se um novo modelo constitucional que pretende romper
com o antigo Estado ditatorial.
Com isso o planejamento deve ter a suas gêneses e características
fundantes na participação social da sua construção. Sendo o planejamento
um instrumento que irá se substanciar numa norma legal, a construção
dessa a partir daquela deve se fundamentar na Teoria Discursiva, para
assegurar a democracia e legitimidade:

1710
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização


jurídica – a figura de um princípio de democracia, o qual passa
a conferir força legitimadora ao processo de normalização. A
ideia básica é a seguinte: o principio da democracia resulta a
interligação que existe entre o principio do discurso e a forma
jurídica. Eu vejo esse entrelaçamento como uma gênese lógica de
direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. Ela começa
com a aplicação do principio do discurso ao direito a liberdades
subjetivas de ação em geral – constitutivo para a forma jurídica
enquanto tal- e termina quando acontece a institucionalização
jurídica de condições para um exercício discursivo da autono-
mia política, a qual pode equipar retroativamente a autonomia
privada, inicialmente abstrata, com forma jurídica. Por isso o
principio de democracia só pode aparecer como núcleo de um
sistema de direito.19

Portanto, a Administração Pública deve-se basear num planejamento


participativo e o que leva a outra lógica no sentido de que a Administração
Pública é em si participativa. Neste sentido, Diogo de Figueiredo Moreira
Neto elenca inúmeras razões referentes à importância da participação da
população nas decisões da Administração Pública:

Primeiro, pela simples e óbvia razão de alcançar o aprimoramento


da governança (eficiência); segundo, para propiciar mais freios
contra o poder de interesses escusos sobre o Governo (legalida-
de); terceiro, para garantir, sempre mais, que nenhum interesse
foi negligenciado ou excluído na consideração governamental
para a tomada de decisões (justiça); quarto, para garantir, pela
participação de mais pessoas informadas e sábias, que se chegue
a uma “sabedoria coletiva”, à maneira aristotélica, que sobrepasse
mesmo a do mais sábio e prudente governante (legitimidade);
quinto, pela responsabilidade que, assim, se infunde aos indiví-
duos, pelas conseqüências de suas ações políticas, aprimorando-
-os pelo equilíbrio, que isto importa, entre a realização de seus
interesses pessoais e do interesse coletivo (civismo); sexto, para
tornar o produto governamental mais aceitável e, portanto, de um
lado, garantindo o mais fiel cumprimento de suas determinações
e, de outro, reduzindo o risco de descontentamentos (ordem).20

Ainda que diante dessa realidade constitucional ou mesmo infra-


-constitucional, a se lembra aqui o disposto no art. 2º, II, do Estatuto da
Cidade, que apregoa a cidade democrática revelada pelo planejamento
participativo, a doutrina administrativista ainda considera que o plane-
jamento está do outro lado do abismo, sem reconhecer sua existência e
sua modalidade participativa.

1711
Em relatório elaborado pelo Núcleo Jurídico de Políticas Públicas – NU-
JUP, do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, revelou-se que os Manuais de
Direito Administrativos não tratam do planejamento como uma função
da Administração Pública.
Foram consultados 39 (trinta e nove) manuais de Direito Administrativo,
de 1956 até 2012, partindo-se da premissa de que o planejamento compõe
uma das funções da Administração Pública. Identificou-se o seguinte: (i)
muitos autores tratam função da administração pública como sendo ati-
vidade da administração pública; (ii) a grande maioria ainda, versam de
forma genérica sobre as funções do próprio Estado, apontando elas como
aquelas dos Três Poderes que o formam; (iii) a maioria também destaca
como sendo funções da Administração Pública aquelas relacionadas ao
serviço público, ao poder de política, a intervenção e ao fomento21, o que
se repete quando uns autores fazem menção a outros que assim as define,
por fim: (iv) há aqueles que apresentam uma classificação das funções
administrativa, desenvolvem outras teorias como a função administrati-
va formal ou material, típica ou atípica, orgânica e inorgânica, mas sem
tratar do planejamento como uma destas; (v) há os que fazem menção ao
planejamento, mas ou tratando como um instrumento que não pertence
do sistema jurídico, sendo puramente estratégico, ou apenas citando-o.
Dentre esses últimos, inicia-se com Álvaro Lazzarini, que afirma que o
planejamento seria inviável sob o ponto de vista dos princípios jurídicos
que informam as atividades de Administração Pública:

É nesse campo que, de fato, atua o Direito Administrativo que


não pode dissociar-se dos modernos princípios e técnicas ditadas
pela Ciência da Administração, no seu enfoque de Administra-
ção Pública. Não basta, bem por isso, que se domine o Direito
Administrativo para ter-se uma Administração Pública eficiente
e eficaz. Mister se torna também dominar-se toda uma teoria da
Administração Pública, sendo a recíproca verdadeira. O ordena-
mento jurídico pode ser tecnicamente perfeito, mas inoperante
pelo desconhecimento dos princípios e técnicas da Administração
Pública. O planejamento administrativo, igualmente, pode ser
incensurável à vista dos princípios e técnicas da Administração
Pública, mas inviável por violentar os princípios jurídicos que
informa as atividades da Administração Pública.22

1712
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Toshio Mukai23 admite o planejamento como instrumento de interven-


ção na economia.
Já DI PETRO faz uma breve citação:

Há ainda, outra distinção que alguns autores costumam fazer, a


partir da ideia de que administrar compreende planejar e executar:
a) em sentido amplo, a Administração Pública, subjetivamente
considerada, compreende tanto os órgãos governamentais
supremos constitucionais (Governo), aos quais incumbe traçar
os planos de ação, dirigir, comandar, como também os órgãos
administrativos, subordinados, dependentes (Administração Pú-
blica, em sentido estrito), aos quais incumbe executar os planos
governamentais; ainda em sentido amplo, porém objetivamente
considerada, a Administração Pública compreende a função
política, que traça as diretrizes governamentais e a função ad-
ministrativa, que as executa; (...)24

Odete Medauar25 apenas aponta o instituto do planejamento como


atividade citando como exemplo a elaboração de planos de desenvolvi-
mento e urbanístico. Também o administrativista Lucas Furtado Rocha,
faz referência ao planejamento, quando o colocar como “planificar”26.
A partir da obra de Robertônio Santos, pode-se notar uma maior im-
portância no tratamento do instituto do planejamento, sendo que ele o
alia à eficiência:

A) eficiência e planejamento - Uma das características da Admi-


nistração Pública atual é seu caráter preponderantemente cole-
tivo. Mais do que a prática de atos administrativos isolados (que
não deixaram de existir), Administração Pública se caracteriza
pela sua dimensão social. Importa cada vez mais os efeitos ou
resultados que a atuação administrativa produz relativamente à
sociedade em seu conjunto, nos mais diversos setores da vida,
de tal forma a garantir satisfatória ‘qualidade de vida’ tanto a
sociedade presente como a sociedade futura (futuras gerações).
A atividade deve ser necessariamente eficiente (princípio da
eficiência), produzindo resultados concretos para o conjunto
da sociedade.Exigência desta envergadura demandam, forçosa-
mente, a necessidade do planejamento. Proliferam em todos os
níveis da atividade administrativa (federal, estadual e municipal)
práticas de programação ou de planejamento (pleno de desen-
volvimento, planejamento financeiro, planejamento urbanístico,
planejamento educacional, plano isso, plano daquilo etc.) Fala-se
cada vez mais em ‘políticas públicas’, associando-se à necessi-
dade de planejamento. O planejamento e a eficiência assumem
uma crescente importância na organização e na atuação admi-
nistrativa, com reflexos no Direito Administrativo.27

1713
Hely Lopes Meirelles, que mesmo tendo sua obra Direito Administrativo
reeditada e atualizada, sendo a última edição de 2012, tratou o planeja-
mento no âmbito intrínseco da própria Administração Pública, ainda que
sob a ótica de ser ele definidor de metas:

Planejamento é o estudo e estabelecimento das diretrizes e metas


que deverão orientar a ação governamental, através de um plano
geral de governo, de programas globais, setoriais e regionais de
duração plurianual, do orçamento-programa anual e da progra-
mação financeira de desembolso, que são seus interesses bási-
cos. Na elaboração do plano geral, bem como na coordenação,
revisão e consolidação dos programas setoriais e regionais, de
competência dos Ministros de Estado nas respectivas áreas de
atuação, o Presidente da República é assessorado pelo Conselho
de Governo.28

Esta pesquisa revela três aspectos: o primeiro, na grande maioria dos


manuais de Direito Administrativo o planejamento sequer é mencionado,
ou seja, é o instituto inexistente; o segundo, para aqueles doutrinadores
que tratam de tal tema que, o fazem de uma forma muito tímida, não
havendo o devido destaque para essa função da Administração Pública,
revelando-se ainda um pensamento abissal, pois não descreve em toda
a sua definição – não descreve todo o objeto; o terceiro, somente um dos
autores que citam o planejamento, fazem menção expressa a participação
social, que deve ocorrer justamente para identificar o que a sociedade
almeja no sentido de que lhe seja garantido direitos fundamentais, o que
revela também em si a não definição completa do instituto sob uma ótica
que é hoje imperiosa, visto que confirma o caráter democrático dessa
função, especificamente, no que concerne ao planejamento urbano que
afeta todo um contexto social urbano.
Isto leva à conclusão de que o planejamento não é reconhecido pela
Doutrina que se apresenta nos manuais de Direito Administrativo a ine-
xistência desse objeto/instituto, ou mesmo em razão de que ele ainda
que citado não se apresenta com todos os aspectos que o formam, ou
seja, o objeto sem a sua definição completa, é ainda considerado como
inexistente. Nestes sentido a concepção de Boaventura Souza Santos é

1714
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

que melhor define o papel do planejamento: inexistência significa não existir


sob qualquer forma de ser relevante e compreensível29.
Nisto, revela-se que o planejamento, como instituto verdadeiramente
jurídico, como função essencial da Administração Pública e como sendo ele
um instrumento de participação social figura-se como invisível ao Direito
Administrativo através de seus manuais que formam alunos, fundamentam
decisões, é objeto de estudos e publicações, são fonte de conhecimento
para o Administrador e estudiosos. Essas externalidades, diante da in-
visibilidade do planejamento, podem levar a consequências inevitáveis.

4. O MUNDO DA VIDA: A ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA E REPERCUSSÃO DO STF:
CéTICO OU AINDA é UM OLhAR ABISSAL?

O art. 182, da Constituição da República de 1988, determina que


a política de desenvolvimento urbano deve se pautar para assegurar
as funções sociais da cidade e o bem estar de seus habitantes. O seu
parágrafo primeiro determina assim que os princípios e diretrizes de tal
política dar-se-á por meio do Plano Diretor. Já o Estatuto da Cidade veio
regulamentar tal norma constitucional que descreve como um de suas
diretrizes a cidade democrática que se revela por meio do planejamento
participativo. O art. 40 e seguintes da mesma norma, ao regulamentar o
Plano Diretor, especificamente, também, impõe essa participação social.
Reconhecido assim, no instrumento constitucional e infraconstitucional
o instituto do planejamento e mais, o planejamento participativo.
Mas, mesmo diante disso, o que se revela no mundo da vida, ou neste
lado do abismo é que o Administrador não reconhece o planejamento
como uma de suas funções ou mesmo que a participação social na sua
construção visa a garantir legitimidade para as políticas públicas inerentes
às funções sociais da cidade.
Na mesma pesquisa realizada pelo Núcleo Jurídico de Políticas Pú-
blicas foram levantados dados estatísticos acerca da implementação de

1715
políticas públicas que visam garantir direitos fundamentais e sociais por
meio de planos, planejamentos e programas que garantam as funções
sociais da cidade.
Estes dados foram colhidos junto ao IBGE/MUNIC30, dados referentes
a municípios brasileiros, tendo como base o ano de 2011 e apenas os
municípios do Estado de Minas Gerais. Foram destacadas as tabelas que
descrevem políticas públicas relacionadas à função social da cidade, à
exceção das funções de trabalho e lazer, que não se encontrou programas
ou plano ou planejamento a elas relacionados direta ou indiretamente.
Foi, então, analisado três tipos de tabela: aquela que versa sobre moradia/
habitação; aquela que versa sobre alguma forma de circulação/mobilidade
urbana e sobre saneamento básico.
O outro dado utilizado no presente trabalho como retrato do mundo
da vida, foi o Relatório do Observatório das Metrópoles, datado de 2011
em conjunto com o IPPUR/UFRJ, intitulado Os planos diretores munici-
pais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectiva31. Este trabalho
se assentou na análise de vários Planos Diretores de cidades escolhidas
dentre 27 Estados-Membros, sendo realizada uma seleção de alguns mu-
nicípios que culminou em 526 relatórios, referentes ao mesmo número de
municípios com Plano Diretor. Ainda, houve 27 relatórios referentes aos
Estados-Membros, mais 26 estudos de casos.
Colhidos os dados extraídos dos próprios planos, vários profissionais
apresentaram relatos em que tem caráter demonstrativo e de diag-
nóstico dos planos, apontando seus dados qualitativos e apontando
algumas soluções.
A quarta e última parte do presente trabalho é justamente extrair desse
relatório analítico e crítico três capítulos que versem sobre as funções da
cidade e que foram diretamente abordados na obra em comento: habita-
ção/moradia, circulação/mobilidade e saneamento.
Pelas tabelas constantes, no IBGE/MUNIC, com relação à habitação/
moradia apresenta-se diversos dados, visto que existentes diversas po-
líticas púbicas nesse sentido, seja no que concerne a Planos Diretores,

1716
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

seja para implementação de moradias, seja para auxílio na construção


de moradias.
Em relação aos Planos Diretores existentes 190 municípios já o imple-
mentaram e 237 ainda encontram-se em elaboração. No entanto, quanto
a planos ou programas de implementação de unidades habitacionais,
existem 470 municípios, ou seja, essa política pública encontra-se disso-
ciada de um Plano Diretor que a define, em razão daqueles existentes. O
mesmo ocorre com programas para a melhoria das unidades habitacio-
nais que são de 445 municípios. Mas o contrário existe no que tange os
programas ou planos que versam sobre assentamentos urbanos, que são
apenas 80 municípios. Por fim, quanto a moradias precárias, como favelas,
mocambos, assentamentos, o total é de 393, ou seja, estes números não
se coadunam com o número de municípios com Plano Diretor.
Assim, quanto aos demais aspectos relacionados à interação dos Planos
Diretores com a política de habitação, prevalece a ausência de estratégia so-
cioterritoriais, a quase totalidade dos Planos analisados se limitando a tratar
genericamente o assunto [...]32.
Concernente ao saneamento básico tem-se duas tabelas, a primeira
versa sobre a existência de um Plano Municipal para Saneamento Básico,
sendo que em Minas Gerais existem 112 municípios. A outra tabela tem
como índice municípios com estrutura organizacional para tratar de po-
lítica urbana, que aponta o total de 851 municípios. Há duas conclusões:
não há correlação entre o número de municípios com Plano Diretor e com
o número de planos de saneamento básico, visto que este é um número
menor; não há convergência entre municípios com determinado plane-
jamento de saneamento básico e estrutura organizacional para tratar de
política de saneamento básico, ou seja, há estrutura organizacional, mas
não há um plano ou programa que possa lhe servir de norte.

Da mesma forma, a construção de interfaces entre política fundiá-


ria/habitacional e política de saneamento – que permitem que se
incentive a ocupação e o adensamento de áreas infraestruturadas,
de forma evitar a ociosidade, e que coíba a expansão urbana para
áreas com deficiência de serviços de saneamento – também fica
comprometida sem esse diagnóstico consubstanciado.33

1717
Por fim, no que concerne a circulação/mobilidade urbana, encontrou-
-se apenas uma tabela que versa sobre plano ou programa de acesso a
pessoas com deficiência. Nela existente em Minas Gerais 116 municípios
que o possuem, sendo que também não converge para o número de Planos
Diretores, que é menor.
Com isso, não inexistente um planejamento no que toca a tal função
da cidade integrado as demais políticas urbanas:

O planejamento viário deve estar acompanhado do planejamento


e das políticas urbanas, assim como estar a elas intimamente
ligado, envolvendo os instrumentos de regulação urbanística,
as preocupações ambientais e os princípios da acessibilidade
universal.34

O que se extrai destes dados estatístico e analíticos é que o plane-


jamento urbano, como espécie do planejamento geral, mesmo sendo
imposto normativamente e ainda que ocorrendo no mundo da vida, não
é de toda forma construído de forma a lhe dar a devida destinação e atin-
gir os objetivos que lhe são inerentes. Com isso, o planejamento urbano
como função da Administração Pública não atinge o seu fim, na medida
em que as políticas públicas relacionadas às funções da cidade não são
planejadas e programas sob o ponto de vista integrado, já que o instituto
tem a conceituação de ser racional na sua composição e na atuação, para
que se possa garantir ao cidadão o seu bem-estar na cidade.
Ainda que esses dados sejam públicos e de livre acesso, retratando o
mundo da vida, somente agora o Poder Judiciário estaria se posicionando
no sentido de ver, dar existência de forma plena ao instituto do planeja-
mento urbano.
Mesmo diante das previsões constitucionais e legais acerca do plane-
jamento urbano participativo, de uma nova forma de governança também
participativa tendo como base teorias que asseguram a democracia na
sua plenitude, o Supremo Tribunal Federal – STF - reconhece tal institu-
to, chancelando a sua existência e somente agora podendo lançar seu
olhar cético. Isto porque, somente em 2011, este órgão julgador acatou

1718
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

a Repercussão Geral nos autos do Recurso Extraordinário (607.940/RG/


DF) a ele dirigido pelo Ministério Público do Distrito Federal e Território
em face do Distrito Federal e da Câmara Legislativa do Distrito Federal.
O fato é que o Ministério Público do Distrito Federal e Território ajui-
zou a ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei Complementar
distrital n. 710/2005 que versava sobre a criação de estabelecimento de
condôminos fechados. O argumento do Ministério Público é que este ato
legal cria tais condomínios de “forma isolada e desvinculada de estudos
urbanísticos globais, os quais deverão ser realizados quando da elaboração
do plano diretor de ordenamento territorial e dos planos locais”. Assim,
a forma procedida pelo Distrito Federal iria de encontra o disposto nos
parágrafos 1º e 2º, do art. 182, da Constituição da República.
Fundamentou o Ministro Relator da Repercussão Geral no sentido
de que:
7. Nessa contextura, tenho que a questão constitucional debatida
na causa em exame – obrigatoriedade do plano diretor como
instrumento da política de ordenamento urbano – ultrapassa os
interesses das partes [...]. Demais disso, a controvérsia é relevan-
te sob os pontos de vista econômico, político, social e jurídico.
8. Por outra volta, pontuo que a tese a ser fixada pelo Supremo
Tribunal Federal orientará a política de desenvolvimento urbano
a ser executada por todos os Municípios brasileiros.35

Observa-se que somente a partir dessa Repercussão Geral é que a mais


alta Corte brasileira irá tratar do tema do planejamento como uma função
da Administração Pública tendo como base a participação social em ra-
zão de versar sobre à cidade. Sob um aspecto cético, somente agora no
mundo da vida, que se apresenta nos textos normativos já citados, é que
um instituto dessa importância e uma de suas características mais mar-
cantes – planejar a cidade com a participação de seus habitantes – poderá
ser analisado pelo STF e irá influenciar todos os demais tribunais pátrios
quando o tema for o mesmo, visto que como destacado tem esse assunto
relevância sob o ponto de vista econômico, político, social e jurídico. Ora,
a vida como ela é retrata-se em boa parte nestes quatros contextos. Mas
há que se frisar que no mundo da vida jurídica, o planejamento urbano

1719
participativo há muito está previsto, o que revela que somente agora, mais
de vinte dez anos da edição do Estatuto da Cidade, é que este aspecto do
planejamento é tratado sob essa maneira mais ampla.

5. O DIáLOGO E A COPRESENÇA: UMA PROPOSTA PARA O


MODELO DA ADMINISTRAÇÃO – PLANEJAMENTO URBANO
PARTICIPATIVO – VISÍVEL, EXISTENTE E ACéTICO.

O planejamento no mundo da vida – aqui destacando o mundo jurídico


da vida – teve sua ascensão a partir do novo modelo de Administração
Pública instaurado com a Emenda Constitucional 19/98, rompendo-se
assim, com o antigo: Decreto-Lei 200/67. Este modelo foi batizado de
gerencial com fundamento na flexibilidade e eficiência, contrapondo ao
primeiro no formalismo36.
Carlos Ari Sundfeld37 traz seu olhar cético sobre a dicotomia entre
esses dois modelos de gestão, “apelidando” o antigo paradigma de Ad-
ministração de Direito Administrativo de Clipes (DAC) e novo de Direito
Administrativo de Negócios (DAN).38
O autor destaca assim que diante desses dois modelos, o Direito Ad-
ministrativo brasileiro hoje tem uma característica que ele denominou
bipolar o que leva um só pólo como dogma e lançando o outro às feras.39,
concluindo que o DAN não sendo invenção recente, pode estar nele algumas
das soluções para os impasses governamentais recentes e para fazer nosso
ramo o direito do desenvolvimento que tanto se clama.40
Como se pode observar o planejamento como função da Administração
Pública é estabelecido por norma constitucional e infraconstitucional,
nessa caso se destacando o planejamento urbano. Da mesma forma o
seu caráter integrativo e, principalmente, participativo é assegurado pelo
Sistema Jurídico brasileiro, conforme explanado.
Ainda, assim, o que vislumbra é que o objeto do planejamento, mesmo
diante das previsões normativas e advindo desse novo modelo de gover-
nança, é invisível aos olhos dos doutrinadores nos Manuais de Direito Ad-

1720
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ministrativo, o que demonstra, em alguma medida, um caráter dogmático


em afastar um possível instrumento desse novo modelo de Administração
Pública, talvez por entender que o planejamento faça parte de um conceito
novo que não cabe da relação entre Administrador e Administrado.
Na mesma medida, esse mesmo instituto do planejamento, sendo in-
visível, não é reconhecido pelo mundo da vida administrativa, pois não é
implementado e quanto o é, especificamente no que toca ao planejamento
urbano, exclui-se uma integração das políticas públicas relacionadas às
funções da Administração Pública, além de não ser procedido com a devida
participação social. Isto porque, na busca da “eficiência”, baseando em um
paradigma menos formalista e flexível, o novo modelo de Administração
Pública ao implementar uma determinada política pública de natureza
urbanista desconsidera a participação social, que se baseada em um
procedimentalismo dialógico na busca de uma convergência de interesses.
Ora, um fundamento de um novo modelo de Administração Pública se
torna invisível aos olhos dos que criam o Direito Administrativo – teoria
e práxis -, mas ao mesmo tempo ao se estabelecer uma “meta” do novo
paradigma administrativo, em prol de uma finalidade de eficiência e flexi-
bilidade, rejeita-se procedimento essencial que tem um fundamento social
que é a participação popular na conceituação do direito que a ele é dirigido.
Assim, o objeto planejamento urbano participativo é inexistente e
quando ele ocorre no mundo da vida não o é de forma a obedecer a todos
os seus princípios norteadores, que se assentam numa Administração
Pública fincada na aliança entre Estado e Sociedade, definindo a própria
a atuação daquele ao conceituar os instrumentos de políticas públicas
urbanas que irão garantir os direitos fundamentais relacionados às fun-
ções sociais da cidade. E este procedimento se torna essencial a própria
democracia, visto que preparam o terreno para diferentes conceitualizações
de Estado e sociedade.41
Portanto, não há como não ver o planejamento como instrumento de
concretização e aperfeiçoamento do Direito Administrativo na busca da
eficiência em prol do próprio cidadão, sendo esse instituto presente no

1721
mundo da vida. Noutro giro, sendo ele estabelecido no mundo da vida
jurídico por meio do novo modelo de Administração pública, a formali-
dade participativa, principalmente na definição das políticas públicas que
estabelecem as funções sociais da cidade, não pode ser negada para dar
força a uma flexibilidade ou uma eficiência imediata.
Há que se evitar assim uma guerra santa na melhor definição de
Sundfeld42 entre esses dois tipos de modelo no que concerne ao instituto
do planejamento ou mesmo ter um Direito Administrativo com caracte-
rísticas esquizofrênicas.
A solução para esse conflito se baseia, portanto, na copresença43 desses
dois mundos, sendo ela estabelecida de um lado no reconhecimento desse
lado do abismo desse instituto, do outro na busca da melhor compreensão
e aplicação da finalidade participativa quando se está a definir uma política
pública que busca o bem estar dos habitantes de uma cidade (art. 182, do
CR/88), afastando alguns privilégios que possam advir de ações flexíveis.
O planejamento urbano não foge a essa condição quando o Estatuto
da Cidade impõe uma gestão democrática da cidade nos planejamentos,
programas e planos que visam concretizar as funções sociais da cidade.
Ora, o que se estabelece a partir disso é que a cidade seja de todos e
conceituada por todos. E isto somente ocorre através de um determina-
do procedimentalismo baseando um mínimo formalismo para se atingir
um máximo de eficiência, dando transparência e democracia à política
pública44, além garantir uma cidade mais inclusiva:

O Estatuto da Cidade tem com fundamento para o modelo de


planejamento que reforça a necessidade de planejar o desenvol-
vimento das cidades de forma participativa e inclusiva. O estatuto
é, portanto, uma lei que estabelece diretrizes e instrumentos para
a formulação de uma política pública de inclusiva na medida em
que estabelece que o planejamento urbano tem como objetivo
garantir as funções sociais da propriedade e as funções sociais
da cidade. O estatuto detalha o sentido que o texto constitucional
teria considerado como política de desenvolvimento urbano e os
instrumentos, como os planos diretores, deve ser realizado. Não
apenas isso, mas também diz para os cidadãos brasileiros e para
os operadores do Direito (sejam eles administradores públicos
ou não) que o desenvolvimento do espaço urbano não pode ser
visto (e nem produzido) apenas a partir de um viés econômico.

1722
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Esse desenvolvimento tem de ser pensado de forma a incluir ca-


tegorias, grupos sociais ou parcelas da sociedade que não teriam
seus direitos fundamentais mínimos garantidos se o Estado não
interviesse sobre os direitos de uso do solo urbano.45

6. CONCLUSÃO

O planejamento não pode ser renegado ou mesmo invisível aos olhos


dos doutrinadores brasileiros quando apresentam eles seus manuais
que versem sobre o Direito Administrativo e toda a sua estrutura.
A participação social no âmbito do planejamento urbano não pode
ser renegada e desconsiderada pelo próprio administrador público,
nem mesmo pode ser considerada de forma tímida como sendo esse
instrumento, e este seu viés, essenciais à uma cidade democrática.
Isto também se impõe ao próprio Poder Judiciário que deve criar a
uma cultura no campo do saber do Direito Administrativo e da própria
Administração Pública um conceito pleno do que seja o planejamento
urbano e a devida participação social.
Necessário que o Direto Administrativo e a Administração Públi-
ca, com um olhar cético, reconhecem o planejamento. A partir disso,
aqueles devem também, buscando a aplicação do planejamento em
sua plenitude democrática, construí-lo com base em uma legitimidade
social a partir da participação de todos, principalmente quando este
verse sobre políticas públicas inerentes ao meio urbano.
O Direito Administrativo e a Administração Pública, o velho e novo,
o formal e o eficiente, o inclusivo e puramente econômico, não podem
se definir em lados opostos ao abismo, principalmente quando se vive
uma cidade democrática, sob pena de não coadunar com a realidade
urbana e não promover o bem estar de seus habitantes o que leva a
não concretização de direitos fundamentais relacionados às funções
sociais da cidade.

1723
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1724
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

são, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras


formas. 8ª ed. São Paulo: editora Atlas. 2011.
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Legislativo. ALMG, BH 3 (3), 105-122, jan/jun. 1995. Disponível em <http://consulta.
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IBGE. Disponível em < http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/per-
filmunic/2011/default.shtm> acesso em 11/03/2013;
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PESSOA, Robertônio Santos, Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de
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no Brasil e ressemantização das atividades de planejamento e articulação governa-
mentais à luz do paradigma democrático. in Nova organização administrativa
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Fórum. 2010, p.175/197.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas
globais a uma ecologia de saberes. Epistemologias do Sul. SANTOS, Boaventura
de Souza. MENESES, Maria Paula (coord.) SP: 2010. Ed. Cortez. 31-67.
SANTOS Jr, Orlando Alves; MONTANDON, Daniel Todtamann (org.) Os planos di-
retores municipais pós-estatudo da cidade: balanço crítico e perspectivas.

1725
Rio de Janeiro: Ed. Letra Capital: Observatório das Metrópoles: IPPUR/UFRJ, 2011.
SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Melhora-
mento. 2008.
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para céticos. São Paulo: Ed.
Malheiros. 2012.

NOTAS

*
Mestrando em Direito Público do Programa de Pós-graduação em Direito da Escola Mineira de Direito da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/Minas; pesquisador/extensionista do Núcleo Jurídico
de Políticas Públicas – NUJUP – da PUC/Minas; fredguimaraes31@hotmail.com.
**
Doutora em Direito. Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Direito da Escola Mineira de Direito
da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/Minas; Coordenadora Geral do Núclo Jurídico de
Políticas Públicas – NUJUP – da PUC/Minas; marinella.araujo@hotmail.com.
3 SANTOS, Boaventura Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes.
In: Epistemologias do Sul. SANTOS, Boaventura Souza; MENESES, Maria Paula (org.). São Paulo: Cortez
ed., 2010. p. 30-67.
4 Idem. p. 32.
5 Idem, p. 32/33.
6 Idem, p. 33.
7 Idem, p. 34.
8 Idem, p. 32.
9 Idem, p. 52/53.
10 Idem, p. 53.
11 Sobre a identificação do diverso e da pluralidade recomenda-se a leitura do texto Lucrécio e o Simulacro,
de Gilles Deleuze, na sua obra: Lógica do Sentido. 4ª ed. SP: Ed. Perspectiva, 1998.
12 SANTOS, Boaventura, Souza. Ob. Cit. p. 53.
13 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: Malheiros, 2012.
14 Idem, 13.
15 Idem, 13.
16 Este histórico se encontra bem descrito na seguinte obra: PIRES, Maria Coeli Simões. Esgotamento do mo-
delo de desenvolvimento excludente no Brasil e ressemantização das atividades de planejamento e articulação
governamentais à luz do paradigma democrático. in Nova organização administrativa brasileira. MODESTO,
Paulo (org.). 2a ed. revista e ampliada. Belo Horizonte: Ed. Fórum. 2010, p.175/197.
17 SUNDFELD, Carlos Ari. Ob. Cit. p. 114/117.
18 SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Melhoramento. 2008, p. 90
19 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I; tradução: Flávio Breno
Siebeneichier. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 158.
20 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito de Participação Política: legislativa, administrativa,
Rev. Disc. Jun. Campo Mourão, v. 4, n° i, p. 124— 140, jan./jul. 2008. p. 136
21 Como exemplo, citamos: GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 17ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo: parte introdutória, parte geral e
parte especial. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense: 2009. CUNHA Jr., Direy. Curso de Direito Administrativo.10ª
ed. Florianópolis: Ed. Podium. 2011. ALExANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Direito Administrativo
Descomplicado. 18ª ed. São Paulo: Forense, 2010. PESTANA, Márcio. Direito Administrativo Brasileiro.
Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2008.
22 LAZZARINI. Álvaro. Estudos de Direito Administrativo. CAHALI, Yussef Said (coord.) São Paulo: Ed.
RTr. 1996. p. 31.
23 MUKAI, Toshio. Direito Administrativo. São Paulo: editora Saraiva, 1999. p. 76.
24 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª ed. atualizada por Fabrício Motta. São Paulo:
editora Atlas, 2010. p. 49.
25 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 14ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2010. p. 54.
26 FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2012. p. 78.
27 PESSOA, Robertônio Santos, Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 40.
28 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 38ª ed. São Paulo: Editora Malheiros. 2012.

1726
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

p. 817.
29 SANTOS, Boaventura Souza. Idem, p. 32.
30 Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/2011/defaulttab_pdf.shtm
31 SANTOS Jr, Orlando Alves; MONTANDON, Daniel Todtamann (org.) Os planos diretores municipais pós-
-estatudo da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Ed. Letra Capital: Observatório das Metró-
poles: IPPUR/UFRJ, 2011.
32 CARDOSO, Antônio Lúcio, SILVEIRA, Maria Cristina Bley. O plano diretor e a política de habitação. Idem,
p. 122.
33 BRITTO, Ana Lúcia. Saneamento Ambiental nos Planos Diretores. Idem. p. 151/152
34 BURN, Liane Nunes. A política de mobilidade urbana e os planos diretores. Idem. p. 167.
35 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 607.940/RG/DF, publicado no DJU em 08/06/2011. Disponível em
< http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=623934 > acesso em 15/08/2013.
36 Maria Sylvia Zanella Di Pietro estabelece a diferença com base em documentos estatais produzidos à época
da implementação nesse novo modelo. Para maiores informações: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias
na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada
e outras formas. 8ª ed. São Paulo: editora Atlas. 2011, p. 30/36.
37 SUNDFELD, Carlos Ari. Ob. Cit. p. 85/92.
38 Idem. p. 87/88.
39 Idem. p. 92.
40 Idem. p. 92.
41 HABERMAS, Jürgen. Três modelos de normativos de democracia. Cadernos do Legislativo. ALMG, BH 3
(3), 105-122, jan/jun. 1995. Disponível em <http://consulta.almg.gov.br/opencms/export/sites/default/consul-
te/publicacoes_assembleia/periodicas/cadernos/arquivos/pdfs/03/habermas.pdf > acesso em maio de 2013.
42 SUNDFELD, Carlos Ari. Ob. Cit. p. 92.
43 SANTOS, Boaventura Souza. Ob. Cit. p. 32.
44 BRAGA, apud BLANC, Priscila Ferreira. Plano Direto Urbano & Função Social da Propriedade. Curitiba:
Juruá Editora, 3ª tiragem. 2006.p. 108.
45 ARAÚJO, Marinella Machado. Políticas Públicas de Inclusão: as função estratégia da política de desenvol-
vimento urbano e a efetividade de direitos sociais. In: BERNARDES, Wilba Lúcia Maia; CHAVES, Glenda Rose
Gonçalves, MOUREIRA, Digo Luna (orgs). Direito Público: Perspectivas e Atualidades. Belo Horizonte:
Del Rey, 2010. P. 77.

1727
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Reflexões sobre o Conselho Municipal


da Cidade de Curitiba: dilemas e
desafios da participação democrática
na construção da política urbana

Andréa Luiza Curralinho Braga1


Clarice Metzner2
Leandro Franklin Gosrdorf3

NOTAS INTRODUTóRIAS

Como o próprio nome de artigo escrito por Ermínia Maricato , ‘Nunca 4

fomos tão participativos’, nos anuncia que a participação popular está na


agenda do Estado, seja por meio da construção e promoção dos espaços
públicos de controle social, conferências e conselhos de políticas públicas,
seja por meio de outros instrumentos de participação direta, como audiên-
cias públicas, isto é, nos encontramos num momento de “participativismo”.
Em sua crítica, aponta que há uma atração muito forte pelo espaço
institucional ou pela institucionalização de práticas participativas, como
se isso se constituísse um fim em si mesmo.
Mas logo depois assevera que se versa de uma experiência fundamen-
tal, principalmente as reivindicações concretas dos movimentos sociais
e comunidades urbanas, não se tratando de reformismo. É diante deste
possível paradoxo, que se deve operar uma análise sobre o contexto de
realização desta participação popular e que concomitantemente não
exclua a complexidade do Estado, seja em razão de sua conformação de
origem autoritária, ou, da sua relação intrínseca com os agentes deten-
tores do capital.

1729
Com a finalidade de avançar na construção de parâmetros de monitora-
mento da participação popular, para avaliação ou mesmo de exigibilidade,
faz-se necessária a análise a partir de casos concretos de funcionamento
de instrumentos, mecanismos de participação popular, aprofundar o con-
teúdo de um direito à participação em construção.
Por isso, o itinerário a ser percorrido, pretende partir da discussão sobre
democracia, em especial a deliberativa-participativa e sua conformação
legal, repassando sobre o caso do Conselho Municipal das Cidades de
Curitiba - CONCITIBA, para ao término, iniciar um esboço do que pode-
riam ser indicados como diretrizes a serem cumpridas para uma efetiva
participação popular.

2. DEMOCRACIA DELIBERATIVA, GESTÃO


DEMOCRáTICA DAS CIDADES E ESTATUTO DA CIDADE

O tema da democracia está presente na Constituição Brasileira em


dois aspectos: pela representação tradicional (voto, eleição e partidos) e
pela ampliação de novos espaços e instrumentos participativos, onde os
cidadãos têm oportunidade de interferir na formulação e no controle das
políticas públicas, inclusive a respeito das deliberações do Estado sobre
programas, ações governamentais e orçamento público.
Podemos dizer que a Constituição Federal brasileira contempla a
demodiversidade, na medida em que enuncia no Parágrafo Único do
Artigo 1º que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente” e propõe a existência de Conselhos
de Políticas Públicas, das modalidades que constituem outras formas de
democracia, que não a representativa. Implica em divisão de poder entre
sujeitos eleitos pelo sistema representativo e novos atores sociais oriundos
de movimentos organizados, institucionalizados, ou não.
A possibilidade da demodiversidade, ou seja, uma luta por democracias
diferenciadas em cada localidade, respeitando as diferenças, mas tendo
como base a igualdade, é condição para a radicalização da democracia.
Esta coexistência pode ser pacífica ou conflitual.

1730
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Preliminarmente, a experiência brasileira de demodiversidade parece


aportar no sentido da democratização da democracia – especialmente
quanto à consolidação de novas formas de interação entre a sociedade civil
e o Estado (para além do voto individual na urna) que não estão presas às
limitações impostas pelo modelo liberal representativo. Porém associado
a este processo deve-se propor a descolonização e a desmercantilização
da relação vertical entre os cidadãos e o Estado e a relação horizontal
entre os cidadãos5.
O formato e as potencialidades dos novos canais participativos con-
tribuem para a construção de um novo padrão democrático, que deve
trazer o debate e a deliberação pública, pela inserção de novos e múltiplos
atores sociais, onde o elemento central destes arranjos deliberativos passa
a ser sua diversidade e não sua unidade. Na democracia de alta intensi-
dade (democracia participativa, deliberativa) o indivíduo participa mais
em questões de seu interesse, pressupõe uma cidadania ativa, isto é, o
cidadão participa do processo de opinião e tem potencial emancipatório.
Este formato democrático possibilita que as identidades minoritárias se
expressem e problematizem por meio da esfera pública, uma atuação
de discussão e de debate, definindo agendas. É um exercício coletivo de
poder, de articulação da sociedade civil com o sistema político, onde as
primeiras influencia a segunda, participam da tomada de decisões de
modo institucionalizado (conselhos gestores de políticas públicas) ou
não-institucionalizados (fóruns, marchas, movimentos sociais). Incorpora
novos atores sociais e novos temas na política, questiona a gramática
societária, estatal e propõe alternativa mais inclusiva, dá novo significado
de participação.
O caráter epistêmico da democracia deliberativa é importante porque,
ainda que pressuponha um fundamento substantivo, é o procedimento
democrático de decisão que mais abre espaço à participação coletiva,
à incorporação, antes e depois do voto, de momentos e espaços para a
argumentação pública sobre as razões que justificam a adoção de uma
decisão (ou sua revisão, uma vez tomada tal decisão).6

1731
É imprescindível para se avançar quanto à participação popular e no
fortalecimento da democracia deliberativa, contrapor as várias objeções
que se construíram para a garantia da democracia direta, como tal temos
a entender que os indivíduos aspiram, na verdade, ser liberados do far-
do de terem de ocuparem-se, eles mesmos, dos negócios coletivos7 em
detrimento da delegação para os políticos e por isso mesmo de uma de-
mocracia representativa. Outros entendem que o povo, a sociedade, não
tem capacidade técnica para participar de decisões sobre os assuntos de
interesses coletivos. E por último, a alegação que no Brasil, por ser um país
de contornos continentais, e que seria apenas um ideal, sendo realizável
apenas em pequenas coletividades.
Todas estas afirmações tendem a deslegitimar movimentos sociais,
comunidades urbanas como interlocutores junto ao Poder Público e de-
tentores de um poder para a transformação de demandas em direitos.
Mudança em nossa concepção do que seja participação e povo,
são essenciais para pensar o direito a participação e as condições de
monitoramento de implementação deste direito no âmbito de nossas
cidades. Para este trabalho, partirmos do que não é, para se construir,
algumas diretrizes que serão defendidas. Por isso, têm-se que povo
não é mais aquilo que, se ideologicamente abarca todos os que vivem
dentro de um território, politicamente se contrapõe a uma elite dirigen-
te: não havendo mais assimetrias estruturais de poder e instituições
garantidoras dessas assimetrias.
Já em relação à participação, esta não será mais a participação como
também prevê do povo como um ator cuja presença é tolerada sob certas
conjunturas, mas que continua, no essencial e/ou maior parte do tempo,
alienado em relação ao exercício do poder8.
Para avançar em balizas do nosso entendimento sobre a participação
popular temos que nos afastar dessas concepções, aproximando-se de um
conceito ampliado, onde povo é a “totalidade do corpo de cidadãos, sem
a distinção entre cidadãos de primeira classe e cidadãos de segunda ou
terceira classe”9 e participação será quando nenhum grupo, seja estrutural
e essencialmente, excluído do exercício do poder”10.

1732
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

No âmbito do direito à cidade, a gestão democrática alicerçada na de-


mocracia deliberativa implica na participação dos cidadãos e habitantes
nas funções de planejamento, controle e avaliação das políticas urbanas.
É a garantia para que os instrumentos de política urbana, conquistados e
inscritos no Estatuto da Cidade sejam de fato instrumentos de promoção
deste direito para todos e não se caracterizem como meras ferramentas
a serviço da tecnocracia elitista e excludente. Justifica-se, na perspectiva
da superação das desigualdades sociais expressas na segregação espa-
cial e nas relações políticas da cidade. Os mecanismos transparentes de
democratização dos processos decisórios e o controle público da política
urbana, como a iniciativa popular, o referendo, o plebiscito, as consultas
e audiências públicas, os conselhos de gestão e políticas públicas visam
o rompimento de práticas pontuais e clientelistas na gestão das cidades.
O Estatuto da Cidade, em seu artigo 2º, prevê a participação popular,
medida de democracia direta, como instrumento de garantia da justiça
distributiva. O inciso II preceitua a “gestão democrática por meio da par-
ticipação da população e de associações representativas dos vários seg-
mentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de
planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”. Estes artigos
iniciais do Estatuto da Cidade trazem os princípios norteadores da apli-
cação dos diversos instrumentos constantes desta lei, e por isso possuem
um caráter genérico e abstrato. Outra característica é quanto a sua função
interpretativa que emana para todo esse microssistema jurídico, na qual
toda norma ao ser aplicada deve estar em consonância com o principio
da gestão democrática.
Nos artigos 43 e 44 do Estatuto da Cidade, há ainda um elenco sobre
as mais variadas formas de democracia deliberativa que permitem a
participação popular, porém com caráter exemplificativo, permitindo aos
governantes a estipulação de outros mecanismos e instrumentos.
As premissas legais da participação devem ser entendidas como uma
das estratégias, principalmente pautadas pelos movimentos populares,
para se reverter o que historicamente se constituiu, num processo cen-

1733
tralizador, tecnocrata e de defesa de interesses de grupos restritivos, na
formulação e implementação de políticas públicas.
Diante deste panorama, tem sido frequente nas experiências de demo-
cracia deliberativa e de participação popular, a utilização desses espaços
e instrumentos como lugar de discussão (formalizado) da esfera pública e
de legitimação do poder de grupos de interesses, onde participação nesta
forma de gestão pode tornar-se muito mais simbólica do que efetivamente
inclusiva.
De forma a conferir maior força teórica a estas evidências acima citadas,
colaciona-se a análise do processo de participação popular no Conselho
Municipal de Curitiba - CONCITIBA no período de 2010 a 2012, indicando
os limites e possibilidades da gestão democrática das cidades, mas princi-
palmente aspectos para conformar um direito à participação dos cidadãos.

3. ANáLISE DE CASO: CONSELhO


MUNICIPAL DA CIDADE DE CURITIBA, CONTEXTO
hISTóRICO E PERFIL DOS CONSELhEIROS

A construção da democracia brasileira enfrenta dilemas e desafios, que


exigem a força atuante, propositiva e criativa de diversos atores sociais.
Isto para que de fato se possa avançar e efetivar um projeto de cidades
pautado na ampliação de espaços públicos, na crescente participação de
grupos populares e na incidência destes na discussão, tomada de decisões
e monitoramento da política urbana.
Deste modo, os princípios da participação entre sociedade civil e Estado
e a formação dos espaços institucionalizados da gestão democrática por
diversos canais, expressam-se como temas centrais da atualidade para se
compreender os desafios da democracia participativa no país.
Entre os espaços implementados, destacam-se os Conselhos Gestores
de Políticas Públicas.
Em análise sobre a organização dos Conselhos da Cidade é importante
considerar, que a Resolução nº13 de 16 de junho de 2004, prevê diretrizes

1734
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

para a estruturação dos conselhos e indica a implementação destes em


cada esfera do governo.
De tal modo, evidencia-se como prerrogativa dessa resolução, que
todos os atores (governamentais e da sociedade civil) devem se empenhar
na edificação de uma cultura democrática e participativa. Define-se assim,
que os conselhos instituídos devem ter como atribuição principal, avaliar,
propor, debater e aprovar a política de desenvolvimento urbano no Brasil.
No município de Curitiba, capital paranaense, a implantação do Con-
selho Municipal da Cidade, CONCITIBA, ocorreu por meio da Lei nº 12.579
de 18 de dezembro de 2007, sendo realizada a primeira reunião apenas
em julho de 2008, com frequência bimensal desde então.
O CONCITIBA é um órgão colegiado, fiscalizador e consultivo, vinculado
por linha de tutela e subordinação ao Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano de Curitiba – IPPUC e tem como prerrogativas, promover maior
integração entre iniciativas no âmbito da política urbana no município.
Compreende-se que o estudo sobre conselhos relacionados à política
urbana ainda é incipiente, e no caso dos canais de gestão democrática em
Curitiba, há investigações embrionárias no que se refere à participação
na política urbana no município, explicitando, por exemplo, o processo
de revisão do Plano Diretor Participativo11.
Buscando propor ampliar a discussão do Conselho Municipal da Ci-
dade de Curitiba, o projeto de extensão e pesquisa denominado Cidade
em Debate, vinculados ao Curso de Direito e Arquitetura da Universidade
Federal do Paraná, Curso de Direito e Arquitetura da Universidade Positivo
e Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado
do Paraná em parceria com o Observatório das Metrópoles, sob a coor-
denação geral do IPPUR - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro inicia um estudo
de caso sobre a implantação da política de desenvolvimento urbano no
espaço institucionalizado participativo em Curitiba.
Assim, este texto apresenta-se como o resultado parcial dos dados
levantados na pesquisa intitulada ‘Estudos de Caso sobre a Política de

1735
Desenvolvimento Urbano’, coordenada pelo Observatório das Metrópoles.
Destarte que a produção deste escrito tem por objetivo, trazer o recorte
de alguns dados da pesquisa, a partir dos seguintes aspectos: (i) represen-
tação das organizações e representações entrevistadas no CONCITIBA;
(ii) escolaridade e renda dos conselheiros; (iii) quem elabora a pauta e
como ocorre esse processo; (iv) capacidade deliberativa do CONCITIBA.
Para tal investigação foram realizados como procedimentos, o trabalho
de campo, articulado pelo grupo do projeto Cidade em Debate, que acom-
panhou as reuniões do Conselho Municipal, levantamento de legislações
e atas do conselho e a aplicação do questionário junto aos conselheiros.
No primeiro procedimento procurou-se realizar o acompanhamento
das reuniões para compreensão da dinâmica de funcionamento e relações
entre os conselheiros, no segundo momento buscou-se a aplicação direta
dos questionários, em agendamento individual com os representantes.
Quanto à aplicação dos questionários, foi utilizado o método quanti-
-qualitativo de análise. Para Martinelli12 as pesquisas quantitativas são im-
prescindíveis para trazer retratos da realidade, dimensionar os problemas
que se investiga. As metodologias qualitativas aproximam pesquisador e
sujeitos pesquisados, permitindo ao primeiro conhecer as percepções dos
segundos, os significados que atribuem a suas experiências, seus modos de
vida, ou seja, oferece subsídios para trabalhar com o real em movimento,
em toda a sua plenitude.
A decisão de trabalhar com tipos de metodologias diversas, se deve a
importância da integração das mesmas no processo de investigação na
área de pesquisa social diante dos grandes debates que permeiam a gestão
democrática da política urbana.
Além disso, promulga-se como relevante utilizar o método da obser-
vação participante, pois no acompanhamento das reuniões e discussões
entre os atores sociais, há análises essenciais que somente podem ser
dimensionadas em contato direto com a realidade a ser investigada.
A observação participante segundo Minayo13 é o momento em que se
ressaltam as relações informais do pesquisador no campo. Neste sentido,

1736
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

pretende-se realizar uma coleta de elementos narrativos, valorizando os


aspectos subjetivos, preocupando-se com um mínimo de controle imposto
pelo pesquisador.
Na pesquisa social, essa miscigenação de métodos colabora para a
realização de uma análise mais ampla por meio de diversas possibilidades
de análise.
No CONCITIBA, foram realizadas 16 entrevistas entre os conselheiros
titulares e suplentes. Após a coleta dos dados, os questionários foram ta-
bulados e incluídos em banco de informações com o auxílio do software
Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), o qual servirá poste-
riormente para ampliar análises comparativas.
De tal maneira, o trabalho incide em compreender preliminarmente
a participação e a representatividade ocorridas no cenário político insti-
tucional pelos membros que compõem o CONCITIBA. Também analisar
como as práticas conselhistas se articulam com a gestão pública, e como
se dão as ações exercidas pelo executivo na fomentação, implementação
da política de desenvolvimento urbano na cidade.

3.1 DADOS DA PESqUISA

Ao evidenciar os movimentos e atores envolvidos no Conselho, Dag-


nino14 afirma que a consideração da heterogeneidade da sociedade civil
e, também, do Estado, na análise do processo de construção democrática
parece, portanto, fundamental para elucidar o dificultoso jogo de forças
que se estabelece no terreno de disputa onde se dá esse processo.
Essa é uma constatação predominante entre os autores que trabalham
com o tema15, a heterogeneidade da sociedade civil e a possibilidade de
influências de determinados grupos e desigualdades sociais, como fato-
res limitantes ou determinantes ao pleno exercício da democracia nos
conselhos gestores.
Sobre o universo da pesquisa, é possível perceber, entre os conselheiros
que compõem a amostra, 66% pertencem à sociedade civil (entidades em-

1737
presariais, entidades de trabalhadores, entidades profissionais, acadêmicas
e de pesquisa e ONGs) e 34% pertencem a instituições do poder público
municipal. Mesmo com várias tentativas de contato com os representantes
dos movimentos sociais para aplicação do formulário de pesquisa, não se
obteve êxito para coleta das informações com estes.
Deste modo, a pesquisa teve um maior desenho de respondentes da
sociedade civil, principalmente as entidades profissionais, acadêmicas e
de pesquisa e trabalhadores representados por suas entidades sindicais.
A composição do CONCITIBA em sua segunda gestão imputa 57% das
vagas para membros da sociedade civil e 43% para representantes do
poder público.
Outro elemento considerado como destaque na pesquisa é à distri-
buição dos conselheiros do CONCITIBA quanto à escolaridade. Todos os
conselheiros que responderam os questionários possuem pelo menos o
ensino superior incompleto. Além disso, 42% dos conselheiros têm ensino
superior completo, sendo que 34% destes possuem algum tipo de espe-
cialização ou pós-graduação. O que revela um conselho com alto grau de
escolaridade dos participantes.
Referente ao padrão de renda individual dos Conselheiros é identificado
que o maior percentual refere-se à renda entre 05 a 10 salários mínimos,
47%, seguido de expressivo quantitativo de conselheiros que recebem entre
10 a 20 salários mínimos, 25%. O menor percentual de renda identificado
na pesquisa foi de 03 a 05 salários, 8%. Ressalta-se deste modo, que os
conselheiros têm um padrão de ganhos individuais acima dos parâmetros
de renda familiar da maioria dos brasileiros, em dados definidos pelo IBGE,
na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), tal qual medida pelo IBGE
(2010). A pesquisa, que abarcou uma amostra de domicílios urbanos e
rurais, demonstra que a família brasileira tem um rendimento médio de R$
2.763,47, sendo identificado nos dados da pesquisa que a renda individual
da maioria dos conselheiros, já supera este valor.
A heterogeneidade na composição, verificada pela diversidade das
organizações representadas nos conselhos, caminha, assim, ao lado de

1738
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

uma tendência à elitização da participação. Ainda sobre o perfil, uma in-


formação que chama a atenção é referente à elitização16 dos conselheiros
no que se refere ao grau de escolaridade e renda. A partir dos dados da
pesquisa, pode-se conceber um perfil característico de um quantitativo
amplo de conselheiros, sendo uma tendência evidenciada por alguns
autores que discutem o tema17.
Referente à representatividade das organizações que compõem o
Conselho, a maioria das respostas indica que as organizações que atuam
na gestão do Conselho são razoavelmente representativas dos setores
sociais existentes na cidade 58%, seguido dos dados que afirmam a ampla
representatividade das organizações participantes 25% e os que avaliam
de pouca representatividade somam 17% dos entrevistados.
A representatividade do Conselho é expressa, não somente na com-
posição do conselho no que está relacionado ao aspecto quantitativo
(número de associados ou componentes da entidade). 18. A sua capacidade
de expressar os interesses do respectivo segmento social, revelada pelo
seu engajamento na condução das lutas específicas. Em termos de con-
junto, a composição reflete a presença dos diversos atores sociais, não
só aqueles tradicionalmente inseridos na estrutura social, mas também
as forças emergentes. Assim, é importante levar em conta, por exemplo,
experiência, capacitação técnico-política, expressão social do segmento,
engajamento da organização nas lutas dos seus associados e no processo
de democratização
Deste modo, a indicação de que há razoável representatividade entre as
organizações participantes, expõe que os sujeitos entrevistados identificam
que há mediana relação constante com seus representados. Isto porque a
representação não é uma relação de substituição, em que o representante
fala o que o representado falaria, mas, sim, como é colocado por Yong,
como um relacionamento diferenciado entre atores plurais, e a conexão
entre os atores determina a qualidade da representação. Ou seja, é pos-
sível ponderar que a representação pode pender mais da assiduidade e
característica do contato entre representantes e representados do que do
pertencimento ou não ao grupo representado.19

1739
Referente à proposta das pautas a serem discutidas em cada reunião
do conselho, há identificação na pesquisa, que a maioria dos respon-
dentes compreende que quaisquer conselheiros poderão propor a pauta
no Conselho.
É importante demonstrar que em análise a Ata da 12ª reunião ordinária
do Conselho no ano de 2010, sendo a primeira reunião com a 2ª gestão do
Conselho, houve a definição dos principais assuntos a serem trabalhados
no primeiro ano de mandato e também determinada a metodologia das
reuniões e escolha das pautas. Nesta reunião, foi solicitado pelos conselhei-
ros, que os materiais e apresentações referentes à pauta de cada reunião
seriam encaminhadas juntamente com a convocação, tendo o intuito de
apreensão prévia sobre os temas a serem debatidos.
Em análise a Ata da 16ª reunião ordinária, identifica-se que foi realizada
avaliação e a definição de novos procedimentos metodológicos para as
reuniões. Sobre a escolha das pautas, definiu-se trabalhar 02 assuntos
por reunião, mediante a complexidade dos temas tratados. Ficou também
decidido, que os temas listados seriam validados de uma reunião ordinária
para a outra.
No processo de análise pela observação participante, comprova-se
que, no Conselho essa ratificação das pautas em cada reunião dificilmente
ocorreu e quando ocorria, por muitas vezes não era cumprido o que ficou
definido na plenária da reunião anterior, diversas vezes a mudança de pau-
ta das reuniões aconteceu sem o conhecimento prévio dos conselheiros.
Outro dado relevante identificado na pesquisa está relacionado ao
número de decisões ou deliberações propostas pelo conselho, sendo
constatado nas entrevistas que, 57% dos participantes identificam que
há um baixo número de decisões ou deliberações pelo Conselho e 41%,
identificando como médio número de decisões, não havendo respostas
para a indicação de altos números de deliberação.
No processo de análise preliminar nos dados evidenciados na pes-
quisa, aponta que ainda há uma capacidade pequena de decisões pelo
CONCITIBA. Evidencia-se que capacidade propositiva de um conselho

1740
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

diz muito sobre o seu verdadeiro potencial de se inserir no debate de


determinada política pública. Este dado é significativo considerando que
as respostas dadas confirmam que a capacidade propositiva do conselho
precisaria melhorar.
Em relação a estas mesmas deliberações, a desvinculação com os ins-
trumentos jurídicos urbanísticos é um reflexo do descolamento das capaci-
dades deliberativas nas políticas urbanas, por exemplo, 50% responderam
que parcialmente tem relação com Plano Diretor, Lei de Zoneamento ou
qualquer outro instrumento do Estatuto da Cidade, sendo que 25% dizem
não ter relação alguma.
Relacionado também ao processo de deliberação, os conselheiros na
proporção de 50%, não tem acesso ao acompanhamento das fontes de
recursos, além do fundo, utilizadas para implementação das deliberações.
E a propósito da ação que o Poder Público tem sobre as deliberações,
apresenta-se a percepção de que o comprometimento com as deliberações
tem média intensidade expressada pela resposta de 41,7%, enquanto 33,3%
têm entendimento que o governo municipal tem pouco compromisso,
em sua maioria é expressivo o distanciamento entre a efetividade das
deliberações relacionadas à política urbana.
Soma-se a esta realidade, a análise geral que os conselheiros têm sobre
os obstáculos e bloqueios o funcionamento do Conselho, elencando como
os principais problemas: (i) falta de capacitação de Membros do Conselho;
(ii) não cumprimento das decisões pelo Poder executivo; (iii) e a falta de
articulação com o poder legislativo nas questões referentes ao arcabouço
legal necessário à implementação das deliberações.
Os dados elementares da pesquisa apresentam que a análise de caso
do CONCITIBA, demonstra que muito há ainda para se investigar sobre
a qualidade dos processos de democratização e os efeitos atribuídos à
participação na política urbana da capital paranaense.
Há constatações, que são restritas as experiências de gestão municipal
que possuem uma radicalidade democrática na gestão pública e desen-
volvem concretamente o potencial da gestão participativa.20

1741
Essas informações podem advertir sobre a caminhada pela democra-
tização do Conselho, questionando se, realmente este espaço contribui
para os grupos sociais historicamente excluídos do processo de decisão
e possam ter oportunidade de determinar a respeito da política urbana,
ou, se consolida a reprodução de ações de grupos que sempre estiveram
no poder da capital e assim prevalecem na defesa dos interesses elitistas.

4. DOS OBSTáCULOS A CONSTRUÇÃO


DO DIREITO A PARTICIPAÇÃO POPULAR

Os elementos trazidos pela análise deste caso concreto apenas corro-


boram com reflexões já realizadas por pesquisadores que estudam canais
de participação popular. A partilha do poder é um dos problemas centrais
da participação nas cidades.
Duas são as formas mais recorrentes de manifestação dos conflitos
nesta partilha do poder, uma delas são as queixas relativas à fragmentação
e a setorialização das políticas, que resultam dos espaços que envolvem
a participação da sociedade civil e significam que, essa partilha do poder,
mesmo quando existe, tem um caráter limitado e restrito, sem ampliar-se
para decisões sobre políticas públicas mais amplas, que pudessem ter um
impacto significativo para a sociedade como um todo.21
Outro fator é o isolamento dos instrumentos de participação popular
em relação à estrutura administrativa, por isso acabam se organizando
como ‘ilhas’ separadas, em institucionalidades paralelas, conservadas a
margem e com difícil comunicação com o resto do aparato estatal.22
De forma complementar, outros autores também organizaram alguns
traços comuns de obstáculos da efetiva participação popular. Trazido por
Marcelo Lopes de Souza, Abers os autores elaboram de forma sintética
algumas problemáticas comuns que são obstáculos quanto à implemen-
tação da participação popular. Três são as problemáticas: implementação,
cooptação e desigualdade.23
Temos neste caso, que a problemática da implementação se refere às

1742
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dificuldades da administração pública em construir processos participa-


tivos, que vão desde a resistência dos técnicos da burocracia estatal até
a falta de capacitação dos participantes do processo participativo. Ao se
referir a problemática da cooptação, temos quando o poder político estatal
instrumentaliza a participação para eliminar as oposições. Por último, o
problema da desigualdade, que implica na dificuldade quanto a recursos
financeiros para viabilizar a participação da população pobre.24
Urge uma discussão de como melhorar a qualidade da representação
e sua legitimidade no interior dos conselhos, de modo que realmente es-
tejam articulados com outras organizações e movimentos da sociedade
civil, na perspectiva de construção de agendas públicas, onde o debate
gire em torno de idéias e opiniões apresentadas politicamente não em
torno de posicionamentos pessoais ou corporativos.
As possibilidades dos conselhos das cidades somente se transformarão
em potencialidades – dando-lhes aplicabilidade, se de fato se constituírem
como espaços legítimos de deliberação pública, se houver convergência
para o interesse público, forte articulação de coletivos em rede e de redes
de movimentos sociais que dêem conta de fazer as pressões necessárias
para a implantação das políticas previstas coletivamente. Importante con-
dição também para a mudança dos paradigmas é a verdadeira disposição
do Poder Executivo e Legislativo, de modo que os institutos democráticos
não se caracterizem como mera legitimação de propostas pré-concebidas
e de acordos definidos em gabinetes.
Diversas são as variáveis de análise da participação popular nos espa-
ços públicos de política pública em geral, e em especial do planejamento
urbano. Um dos desafios está em transformar estas análises políticas e
sociológicas em parâmetros jurídicos para monitoramento da implemen-
tação do princípio da gestão democrática em nossas cidades.
Por não haver definição legal da forma como deve ser implementado
os instrumentos de participação, as discussões em torno deste tema giram
em regra sob o manto da discricionariedade do poder público e do subje-
tivismo dos agentes envolvidos nos processos participativos.

1743
Hoje, diante do acúmulo da discussão quanto o que se entende por
participação popular é preemente a qualificação e aprofundamento da sua
exigibilidade jurídica, inclusive trazendo contornos do que poderíamos
chamar de um Direito à Participação.
Ao se propor estipular parâmetro de realização do Direito à Participa-
ção, que possam ser generalizáveis e abstratos que possam ser aplicáveis
a situações concretas diversas, não retira a margem de discussão e deli-
beração da própria sociedade, comunidade de uma cidade em estabelecer
outros critérios para o seu cumprimento, que sejam adequados cultural-
mente ao seu contexto histórico no tempo e no espaço.
Pensar em articular um conteúdo próprio do Direito de Participação
Popular é em primeiro lugar viabilizar uma força coerciva sobre os ges-
tores públicos quando da implementação de mecanismos de participação
popular, mas também no desenvolvimento do de processo participação,
inclusive sobre as formas e assuntos de deliberação.
A outra face é que simultaneamente pode-se falar em responsabili-
dade administrativa pelo descumprimento destes parâmetros, ensejando
possíveis ações judiciais administrativas, para a garantia deste direito.
Por entender que o sistema jurídico é formado por um conjunto de
princípios e regras, como assevera Dworkin, em relação à democracia
deliberativa nas cidades, pode-se encontrar no Estatuto das Cidades, o
principio da Gestão Democrática, como vimos anteriormente, mas a ausên-
cia de regras sobre esta Gestão Democrática, se atendo apenas no elenco
de instrumentos. Por isso, faltam regras que garantam uma dimensão
normativa mais eficaz e detalhada sobre o Direito à Participação, regras
aplicáveis à maneira do tudo ou nada.25
As regras e princípios possuem funções importantes e distintas, ne-
cessitando o sistema jurídico de ambos para o alcance dos objetivos
traçados no próprio sistema, por isso a importância para a garantia do
Direito à Cidade a composição de princípios e de normas especificas so-
bre a democracia deliberativa em nossas cidades, pois acarretaria maior
segurança jurídica aos cidadãos, principalmente aqueles grupos que em

1744
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

regra são marginalizados do processo de deliberação. Se nosso sistema


fosse apenas de princípios, com facilidade pode se acarretar discriciona-
ridade e consequentemente injustiça social. Esta situação é a que se tem
configurado em nossas cidades no Brasil, quando das violações
ao princípio da Gestão Democrática, principalmente quando o poder pú-
blico alega ter havido participação popular e o que houve realmente foi
à utilização dos instrumentos de participação para legitimar as decisões
governamentais. Por outro lado, não é possível ter um sistema apenas de
regras, porque engessaria a discussão sobre participação popular, devendo
ser coadunada com outros princípios orientadores do Estatuto da Cidade.
Ao se estipular as regras do Direito à Participação, se estabelecerá al-
gumas funções próprias das características normativas, como coordenar
interesses numa sociedade complexa, estipular o conhecimento sobre o
que é proibido ou permitido e por último, garantir a impessoalidade do
aplicador da regra e dos seus destinatários de forma a garantir uma uni-
formidade de tratamento.
Quais podem ser os parâmetros da construção do Direito a Parti-
cipação?
Para esta empreitada parte-se do trabalho de Faria & Ribeiro26, que
após analisarem diversas metodologias de avaliação de instrumentos
participativos apontaram para um conjunto de dimensões que permitem
servir de régua normativa para as dinâmicas deliberativas.
As dimensões são: (i) desenho institucional, ou seja, as regras e pro-
cedimentos que determinam a atuação e dinâmica do espaço público; (ii)
contextuais, que se referem ao grau de associativismo civil, representa-
ção, situação administrativa e financeira dos lugares que abrigam estas
instituições; (iii) política, ou seja, a constelação de forças sócio-políticas
em torno das instituições e a vontade da elite política em delegar poder
aos atores sociais e por último, (iv) accountability: a transparência e a
responsabilidade oferecidas por estes espaços públicos à sociedade.27
A tensão existente ao estabelecer estes critérios é quanto à busca por
uma democracia deliberativa que não seja tão somente procedimentalista,

1745
mas que garante uma democracia substantiva que amplie a participação,
nos termos já defendidos aqui.
Em relação ao primeiro item, do desenho institucional, têm-se os
principais parâmetros no tocante a sua institucionalidade e condições de
discussão e deliberação, e mais permeáveis de que haja sua juridicização.
Pode-se dividir este parâmetro em duas dimensões, estática e dinâ-
mica. A estática, quanto ao arcabouço institucional e de funcionamento
e condições de participação, e a dinâmica, sobre os processos decisórios.
Na dimensão estática especificamente ao arcabouço institucional,
podem-se deduzir os seguintes aspectos: necessidade de um marco legal
que institua o instrumento de participação, que seja protegido contra as
mudanças políticas advindas das eleições; que seja estipulado de forma que
as suas decisões não tenham apenas caráter consultivo, mas deliberativo
para determinadas questões de planejamento; que possua estrutura admi-
nistrativa e financeira própria e autônoma, que seja destinado um espaço
físico adequado para o trabalho da equipe de apoio dos instrumentos de
participação; permanência e continuidade da prática deliberativa; e por
último que haja uma obrigatoriedade no marco legal, que a administra-
ção pública considere os debates realizados na formulação das políticas
públicas urbanas e sua vinculação orçamentária.
Enquanto na dimensão dinâmica temos o processo decisório em si, que
deve garantir os seguintes aspectos: permitir que a fala dos participantes
seja livre e autônoma, que a linguagem no processo de argumentação não
seja tecnocrática, mas popular de fácil compreensão e entendimento; que
se estabeleça a construção de um diálogo e que se evite a decisão por
maioria dos participantes; que se estabeleça igualdade de legitimidade
entre os técnicos do poder público, os movimentos sociais e comunidades
urbanas, deve ser estipulado anteriormente às regras do debate para co-
nhecimento de todos os cidadãos; que seja garantido o tempo necessário
para discussões que vem a ter impacto para a toda a sociedade de uma
cidade; clareza nos encaminhamentos posteriores a discussão com o esta-
belecimento de responsabilidades para os representantes governamentais

1746
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

e que seja estabelecido percentuais de participação, que se não forem


alcançados não possam legitimar as decisões políticas, por exemplo, nos
casos de conselhos, a porcentagem de participação referente à sociedade
civil, quando de audiências públicas, deverá ter um público de no mínimo
de 10% da população beneficiaria da política pública urbana.
Quanto às variáveis de análise contextuais pode-se dizer que são as
mais difíceis de transformar em critério jurídico de exigibilidade, por se
tratar de aspectos com o grau de associativismo e de conformação dos
grupos dirigentes, que normalmente se ampara na legitimação das deci-
sões pelo discurso da competência técnica.28
O alcance da representação e o poder de deliberação são itens refe-
rentes ao aspecto de análise da política. Em relação à representação, o
importante dentro de uma cidade é que primeiramente ocorra em diversas
escalas, desde por meio de entidades representativas, organizadas como
por meio da ação coletiva ou individual, não organizadas; que garanta a
presença dos diversos segmentos nas cidades e que estes possuam uma
distribuição geográfica na cidade. Por outro lado, campo do Poder Público,
é imprescindível a presença dos mais diversos órgãos responsáveis pela
execução das políticas afins a reforma urbana, não somente dos técnicos,
mas daqueles que tem o poder de deliberação dentro de suas instâncias
governamentais. Isso se deve ao fato que para maiores efetividades das
deliberações nos espaços participativos, é necessário o envolvimento da
classe política e sua responsabilidade imediata sobre as decisões.
Relacionado a este tema, temos ainda o poder de deliberação, e este
fator pode e deve servir de parâmetro jurídico, principalmente ao prescre-
ver que as deliberações devem ser operadas por meio de políticas públicas,
programas sociais e ações governamentais, inclusive se estipulando tempo
máximo para esta operacionalização e sua vinculação orçamentárias a
alguns dos instrumentos do ciclo orçamentário, como Plano Plurianual,
Lei de Diretrizes Orçamentárias ou Orçamento Anual.
Para finalizar, temos ainda a dimensão do accontability, que vem a
ser a transparência na prestação de contas, do processo de deliberação,

1747
de maneira a permitir que a posterior implementação da decisão seja
monitorada pelos participantes do processo decisório, mas também para
aqueles que estiveram ausentes do processo possam acompanhar e tomar
ciência das discussões e por isso também se sentirem responsáveis pela
deliberação.
A ideia era trazer algumas reflexões para a eventual construção de um
Direito à Participação que seja efetiva e possibilite aprimorar a democracia
deliberativa em nossas cidades, implementando o princípio da Gestão De-
mocrática das nossas cidades, fortalecendo assim a cultura democrática.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Independentemente do cumprimento dos parâmetros formais-proce-


dimentais e substanciais acima estipulados, tem se garantido o avanço
numa cultura democrática (mesmo que limitado), ainda que os resultados
quanto ao impacto mais geral nas políticas publicas da reforma urbana
sejam restritivos.29
Isso se evidencia principalmente em razão do contato com posições
diversas e agentes múltiplos nestes processos de participação popular,
onde contribui para o reconhecimento dos outros como portadores de
direitos, e por isso reforçando a dimensão constitutiva da democracia e
do direito.30
Ainda no sentido de se apostar na participação popular nos espaços
instituídos pelo Estado, se deve pelo fato que estes processos não podem
ser compreendidos como o lugar último da realização da política, mas
como complementares a outras formas de fazer a política, que se baseie
na disputa, no debate e na deliberação em torno do Direito à Cidade.
A discussão da construção de um Direito à Participação Popular vem
se somar a discussão sobre o acesso e a transformação das Cidades, que
garanta que setores que foram excluídos historicamente das decisões
sobre o presente e futuro sejam amparados primordialmente no direito a
decidir sobre quais direitos querem ter direitos.

1748
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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YOUNG, I. M. Representação Política, Identidade e Minorias. Lua Nova, 2006, Nº
67, p.139-190.

NOTAS

1 Assistente Social, Mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Paraná, integrante do Projeto
de Extensão e Pesquisa Cidade em Debate, e-mail: andrea.braga@ufpr.br.
2 Assistente Social, Especialista em República, Democracia Participativa e Movimentos Sociais da Univer-
sidade Federal de Minas Gerais, integrante do Projeto de Extensão e Pesquisa Cidade em Debate, e-mail:
clarice0707@gmail.com.
3 Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Direitos Humanos do
Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Federal do Paraná, integrante do Projeto de Extensão e Pesquisa
Cidade em Debate, e-mail: leandrofranklin@ufpr.br.
4 MARICATO, E. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011, p.89.
5 SANTOS, N. R. Democracia Participativa e Política Pública no Contexto Neoliberal: o caso do Conselho da Crian-
ça e do Adolescente de Curitiba. Paper no xxVII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu – MG, 2003, p. 237-280
6 GODOY, M. G. Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto
Gargarella. 139 f. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) – Pós-graduação em Direito do Estado da
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011, p.75.
7 SOUZA, M. L. Mudar a Cidade: Uma Introdução Critica ao Planejamento e à Gestão Urbana. Bertrand, Brasil,
Rio de Janeiro, 2004, p. 328.
8 Ibid., p.333.
9 SOUZA, 2004, p. 333.
10 SOUZA, op. cit., p. 333.
11No estudo foi promovida análise que mostra a participação popular para a discussão sobre a adequação
do Plano Diretor ao Estatuto das Cidades em 2004. O relatório apresentado, em diversos momentos exibe
em seu conteúdo à limitação na ação organizativa e participativa do município de Curitiba, no que se refere
aos preceitos de participação e gestão democrática prescritos no Estatuto das Cidades (OBSERVATÓRIO DAS
METRÓPOLES, 2010, pág. 34-37).

1750
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

12 MARTINELLI, M. L. (Org.). O uso das abordagens qualitativas na pesquisa em Serviço Social: um instigante
desafio. São Paulo: Veras Editora, 1994, p. 30.
13 MINAYO, M. C. de S. O Desafio do Conhecimento: Pesquisa Qualitativa em Saúde. São Paulo: Hucitec-
-Abrasco, 1992.p. 10.
14 DAGNINO, E. Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 38.
15 Além de Dagnino (2006), há identificação de outros autores que realizam abordagem semelhante: Tatagiba
(2002), Teixeira (2002) e Silva (2002).
16 Evidencia-se o relatório de pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA,
titulada, perfil socioeconômico e participativo dos conselheiros nacionais, que trazem dados desta elitização
de diversos conselhos de políticas públicas no Brasil. (RELATÓRIO DE PESQUISA CONSELHOS NACIONAIS
PERFIL E ATUAÇÃO DOS CONSELHEIROS, pág. 17-29, 2013);
17 A descrição referente à elitização dos conselheiros há também estudos de Fuks (2004), Perissinotto (2004)
& Souza, (2004).
18 TEIxEIRA, E. C. Movimentos Sociais e Conselhos. Cadernos Abong, nº 15, julho de 1996, p. 10.
19 YOUNG, I. M. Representação Política, Identidade e Minorias. Lua Nova, 2006, Nº 67, p. 149.
20 JACOBI, P. Ampliação da cidadania e participação: desafios na democratização da relação poder público,
sociedade civil no Brasil, tese de Livre Docência, USP, São Paulo. 2006, p. 445.
21 DAGNINO, 2002, p. 283.
22 DAGNINO, op. cit. p. 283.
23 ABERS, R. Inventing Local Democracy: neighborhood Organizing and participatory Policy-Majing in Porto
Alegre, Brazil. Los Angeles. In: SOUZA, M. L. Mudar a Cidade: Uma Introdução Crítica ao Planejamento e à
Gestão Urbana. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 2004, p.387.
24 SOUZA, op. cit., p.387.
25 DWORKIN, R. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.42-43.
26 FARIA, C. F.; RIBEIRO, U. C. Entre o legal e o real: o que dizem as variáveis institucionais sobre os conselhos
municipais de políticas urbanas? In: AVRIZTER, Leonardo. (org). A Participação Local no Brasil, 2010, p. 42-43.
27 Ibid., p. 45.
28 SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de
Ciências Sociais 63, 2002, p. 237-280, p. 20-25.
29 DAGNINO, 2002, p.295.
30 DAGNINO, op. cit, p. 295.

1751
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A influência do coeficiente
de aproveitamento: a experiência
de Belo Horizonte

Jane Aparecida Gonçalves das Neves*


Paola Moraes de Miranda**

1. INTRODUÇÃO

O problema do adensamento populacional é algo patente em grande


parte das capitais brasileiras, não sendo diferente na cidade de Belo Hori-
zonte. A preocupação com o fim social da propriedade e com a escassez
de recursos, atrelado ao crescimento desordenado das cidades se mostra
cada vez mais atual e necessária.
A exemplo de outras grandes capitais, a cidade de Belo Horizonte viu,
ao longo dos anos, seus edifícios ficarem cada vez mais altos e os cor-
redores de circulação do grande centro sofrerem um quase colapso pelo
excesso populacional.
Em meio a um cenário caótico, a busca pelo equilíbrio entre as funções
que a cidade possui, como forma de garantir a qualidade de vida do cidadão
e a preservação do meio ambiente, passou a ser imperativa. O Município
começou a perceber que eram necessárias intervenções mais ostensivas,
desenvolvendo instrumentos de políticas públicas urbanas e promovendo
adequações legislativas, de forma a conter o adensamento populacional,
favorecer uma melhora na qualidade de vida e a proteção ambiental.
Nesse contexto, pergunta-se: como utilizar os instrumentos de política
urbana de modo a equilibrar as situações de adensamento populacional
e conformar o desenvolvimento e a sustentabilidade na capital mineira?
Nesse estudo defende-se que a aplicação desses instrumentos devem
se dar em consonância com as dimensões da sustentabilidade, a fim de
efetivar as funções da cidade: habitação, circulação, trabalho e lazer.1

1753
Alvo de grandes críticas, a alteração legislativa pontual trazida pelo
art. 16 da Lei 9.950/10, acrescentou à Lei 7.165/96 – estabelece o Plano
Diretor (PD) do Município de Belo Horizonte – em seu Título IV, dentre
outros, o Capítulo Ix, que no art. 74-J, §§2º e 4º, estabeleceu os Coeficien-
tes de Aproveitamento Básico (CAb) e Máximo (CAm), bem como fixou os
valores relativos aos Coeficiente de Aproveitamento (CA), ocasionando a
redução do potencial construtivo dos imóveis belo horizontinos.
A referida alteração, ainda em seu art. 50, alterou os incisos I, III e
xVII do art. 46 da Lei 7166/96 – Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do
Solo (LPOUS) – estabeleceu novas diretrizes para fins de computação do
cálculo do CA, o que gerou, e ainda gera, muitas especulações e polêmicas
acerca do tema.
Todavia, tem-se neste trabalho, que esta alteração busca atender
ao princípio do desenvolvimento sustentável, pois pode ser visto como
instrumento de contenção ao crescimento desordenado da cidade, em
alguns pontos, a longo prazo, haja vista que a redução do CA ocasionará
a redução do número de unidades habitacionais em determinadas regiões
da capital, e consequentemente haverá a redução do número de pessoas
e automóveis circulando nesses locais.
Por esta razão, pensar a alteração legislativa que ora se discute apenas
pelo seu viés econômico, deve ser considerada uma atitude precipitada,
que denota ao crítico uma visão míope da realidade que de vê por detrás
da referida alteração.
Defende-se ainda, que a mudança legislativa pontual deste instrumento
de política urbana deve ser feita em consonância com o PD e a LPOUS,
a fim de propiciar um planejamento integrado e sustentável do espaço
público urbano; sendo esta a única maneira de alcançar um desenvolvi-
mento sustentável, de modo a cumprir as funções da cidade.

1754
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

2. DAS FUNÇÕES DA CIDADE: hABITAÇÃO, CIRCULAÇÃO,


TRABALhO E LAZER E O PANORAMA DOS INSTRUMENTOS
DE POLÍTICAS PÚBLICAS URBANAS.

O processo de formação da maior parte dos espaços urbanos metro-


politanos no Brasil, ocorrido até o início da década de oitenta, teve como
característica o acentuado e contínuo crescimento demográfico e espacial.
Atrelado a tal crescimento, o caráter desigual e excludente, visível na
sociedade brasileira, viralizou-se, tornando tais espaços extremamente
heterogêneos. Costa2 afirma que ainda nos anos setenta ocorreu a con-
solidação no espaço urbano de um padrão centro-periferia de ocupação,
acoplado a um crescente adensamento das regiões centrais, que também
são mais valorizadas, e que trouxeram consigo a verticalização do uso do
solo, acoplado a graus variáveis por parte do poder local.
Por derradeiro, tais áreas também são as detentoras da maior parcela
dos investimentos públicos e privados, onde estão concentrados os princi-
pais meios de comunicação, os núcleos de comércio e serviços produtivos,
os mais modernos equipamentos e serviços urbanos, a maior parte dos
empregos urbanos, assim como a maior parte dos espaços destinados à
sociabilidade e ao lazer.
Em função da histórica falta de planejamento, até então considerado
fator de pouca ou quase nenhuma relevância nessa área, juntamente com
a conseqüente alta dos níveis de urbanização descontrolado, a cidade de
Belo Horizonte enfrenta hoje sérios problemas para fazer garantir a efe-
tividade das funções da cidade, direito pertencente a todos e já previsto,
segundo Costa3 na Carta de Atenas, ainda na década de 30.
As funções da cidade, segundo prevê a referida carta, dividem-se em
quatro grupos, quais sejam: habitação, circulação, trabalho e lazer, que
devem ser interpretadas sob o ponto de vista da sustentabilidade, pois
estas se completam, não sendo possível realizar um sopesando de uma
sobre as demais.
A habitação, segundo Garcias e Bernardi4, é o refúgio do núcleo familiar,

1755
sendo um direito que se concretiza quando o Poder Público implementa
políticas para que as populações de baixa renda tenham acesso a moradia
em áreas urbanizadas; tal temática encontra-se prevista na segunda parte
da referida carta, que trata do atual estado crítico em que se encontram
as cidades, possuindo maior relevância a questão do adensamento popu-
lacional, que pode ser observado na quantidade de pessoas x altura dos
prédios dos grandes centros urbanos.
Diante do congestionamento de pessoas as condições de moradia
acabam por ficarem prejudicadas, em razão, principalmente, da condição
de pobreza que afeta grande parte da população, associada ao fato de que
quanto mais a cidade cresce, menor é a preocupação com o meio ambiente.
Em contrapartida, nas áreas consideradas nobres, existe um cuidado extra
com a questão ambiental, notadamente de ordem paisagística.
O trabalho é atividade fundamental para a sustentabilidade econômica
de uma cidade, tendo sido observado, no congresso que culminou com
a elaboração da Carta de Atenas, que a divisão das áreas destinadas a
cada situação, como moradia, comércio, indústria e outros, é feita através
do zoneamento, inclusive na atualidade, o qual permite que cada área
da cidade receba uma destinação e uma limitação de aproveitamento,
diferente do ocorre que os locais de trabalho nem sempre estão dispostos
racionalmente na cidade.
Há bem pouco tempo atrás as oficinas estavam ao lado das moradias,
mas com o crescimento acelerado das cidades e dos meios de produção
que necessitavam escoamento de seus produtos, houve um afastamento
dos locais de trabalho em relação as moradias, passando a ser necessário
a utilização de meios de transporte, que dependem de vias de acesso que
comporte o fluxo de veículos, as quais são usadas por um número cada
vez maior de pessoas.
O lazer é importante para a realização integral do ser humano, sendo
estimulado através da criação de espaços de recreação. Entretanto, este
teve de ser adaptado em razão do adensamento populacional, eis que o
lazer, antes pensado como convivência com outros indivíduos através

1756
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de atividades de recreação que, na sua maioria, ocorriam em parques e


grandes áreas verdes, agora ficaram reduzidos a pequenos espaços verdes
e outros espaços artificiais que acabam por afetar as condições de vida
e de saúde pública.
Por último, a circulação, que segundo Garcias e Bernardi5, hoje tratada
como mobilidade urbana, é um processo integrado de fluxos de pessoas e
bens que considerem todas as formas de deslocamento dentro do ambiente
urbano, seja o transporte público ou individual.
As cidades deveriam ser pensadas calculando a exponencial possi-
bilidade de crescimento para se evitar uma sobrecarga no sistema de
circulação dos grandes centros. Ocorre que o adensamento populacional
é que gera os conflitos entre pedestres e motoristas, em razão de uma
falta de compatibilidade de interesses.
Com a Constituição da República de 1988, para além de considerar o
Município um ente federativo, o conceito de função social da propriedade
foi deslocado para o título que trata dos direitos e garantias individuais.
Para cumprimento desta função social, a Constituição destinou a
competência para os municípios através do §1º do art. 182 da CR/88, no
qual trata da obrigatoriedade da aprovação do Plano Diretor pela Câmara
Municipal. Somente em 2001, com a aprovação do Estatuto da Cidade, Lei
Federal n. 10.257, foram fixadas as diretrizes gerais de que trata o art. 182
da CR/88, tendo sido estabelecidas normas gerais de direito urbanístico,
vinculando o objetivo da política urbana ao desenvolvimento das funções
sociais da cidade.
Com o intuito de garantir estas funções, de modo a fazer com que
esta se torne sustentável, o poder público lança mão da implementação
de instrumentos de políticas públicas urbanas, previstos no Estatuto da
Cidade, em seu capítulo II, como meio de efetivação desses direitos, haja
vista que, em Belo Horizonte, a situação de caos já consolidada em função
do adensamento populacional em diversas áreas é um problema real, que
impede que a cidade cumpra sua função. Desta forma, para minimização
do problema, o poder público tem utilizado políticas públicas urbanas

1757
que tragam resultado a curto e médio prazo, e que são previstas no Plano
Diretor da cidade.

O plano diretor, como instrumento de atuação da função ur-


banística dos Municípios, constitui um plano geral e global que
tem, portanto, por função sistematizar o desenvolvimento físico,
econômico e social do território municipal, visando ao bem-estar
da comunidade local. 6

O Plano Diretor delimita os instrumentos de atuação urbanística que


serão utilizados para contenção dos problemas atinentes à função das
cidades, retirados estes do Estatuto das Cidades, que estabeleceu vários
instrumentos de política pública para as cidades, notadamente na esfera
municipal, e estão descritos no art. 4º, III, da Lei 10.257/10.
O Estatuto das cidades é uma ferramenta para aplicação deste plano.
Assim, coube a este moldar as funções da cidade através de normatiza-
ção envolvendo a ocupação do solo e as prioridades políticas, bem como
áreas de interesse ambiental, turístico e social. Outra de suas funções era
determinar as áreas que já possuem ocupação consolidada e as áreas em
que a construção já se mostra inviável.
Frise-se que o estudo específico sobre cada um dos vários instrumentos
de política pública urbana, contido no Estatuto da Cidade, não é o objeto
do presente artigo. O presente artigo levará em consideração apenas o
instrumento de planejamento municipal que disciplina o parcelamento,
uso e ocupação do solo previsto na referida alteração legal.

3. AS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS PROMOVIDAS


NA BUSCA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTáVEL.

Uma recente e polêmica alteração legislativa municipal vem sendo alvo


de críticas e discussões nos últimos tempos. Isto porque, no ano de 2010,
foi promulgada a Lei 9.950/10, que, dentre outras mudanças, culminou
com a redução do potencial construtivo dos imóveis da capital mineira,
tendo reduzido o coeficiente de aproveitamento - CA - estabelecido no
Plano Diretor - PD.

1758
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Não obstante, a mesma legislação ainda estabeleceu novas diretrizes


para computação do cálculo do CA, como medida de controlar edificações
e conter o adensamento em algumas regiões de BH.
O coeficiente de aproveitamento, nada mais é, que um número – previs-
to no PD – que, multiplicado pela área de um terreno, indica a quantidade
de metros quadrados passíveis de construção em determinada região,
sendo este, o potencial construtivo do imóvel.
Segundo uma matéria veiculada pelo jornal Estado de Minas em
fevereiro do corrente ano, estima-se que a implementação da referida
legislação fará os imóveis da capital encarecerem em até 30% no prazo
de dois anos, como conseqüência da diminuição do potencial construtivo
dos lotes de Belo Horizonte.
Representantes do setor afirmam que o preço dos terrenos não sofreu
redução desde que a lei foi alterada, o que tem tornado a construção dos
empreendimentos imobiliários existentes na cidade cada vez mais caros,
cujo valor possivelmente será repassado para o consumidor.7
Enquanto a preocupação e as críticas se voltam para a questão econô-
mica, que de fato sofrerá com a referida mudança, as demais dimensões
da função da sustentabilidade vêm sendo ignoradas pela maior parcela
da população que ainda não visualizou o aspecto positivo da alteração.
Segundo preceitua Mukai8:

A disciplina do uso do solo urbano, objeto precípuo do denomi-


nado direito urbanístico, visa, atualmente, o desenvolvimento
integrado das comunidades. Não mais, como antigamente,seu
objeto deixou de se consubstanciar no arranjo físico-territorial
das cidades. Passou, como vimos, de um lado, a ser compo-
nente essencial da proteção do meio ambiente, e de outro, do
desenvolvimento econômico-social, nacional, regional e, espe-
cialmente, local.

Sanchs9 afirma que o princípio do desenvolvimento sustentável abarca


cinco dimensões, que são a econômica, a social, a ecológica, a espacial
e a cultural.
A dimensão social é entendida como a criação de um processo de

1759
desenvolvimento que seja sustentado por outro crescimento e subsidiado
por uma visão do que seja uma sociedade boa. A meta é construir uma
civilização com maior equidade na distribuição de renda e de bens, de
modo a reduzir o abismo entre os padrões de vida dos ricos e dos pobres.
A dimensão econômica deve ser tornada possível através da alocação
e do gerenciamento mais eficiente dos recursos e de um fluxo constante
de investimentos públicos e privados. A eficiência econômica deve ser
avaliada em termos macrossociais, e não apenas através do critério da
rentabilidade empresarial de caráter microeconômico.
A dimensão ecológica, através do uso de ferramentas ampliativas,
busca intensificar o uso do potencial de recursos dos diversos ecossis-
temas, com um mínimo de danos aos sistemas de sustentação da vida,
além da redução do volume de resíduos e de poluição, promovendo a
intensificação da pesquisa para a obtenção de tecnologias de baixo teor de
resíduos e eficientes no uso de recursos para o desenvolvimento urbano,
rural e industrial.
A dimensão espacial deve ser dirigida para a obtenção de uma confi-
guração rural-urbana mais equilibrada e uma melhor distribuição terri-
torial de assentamentos urbanos e atividades econômicas, reduzindo a
concentração excessiva nas áreas metropolitanas e freando a destruição
de ecossistemas frágeis, mas de importância vital, através de processos
de colonização sem controle.
A dimensão cultural inclui processos que busquem mudanças dentro
da continuidade cultural e que traduzam o conceito normativo de eco-
-desenvolvimento em um conjunto de soluções específicas para o local,
o ecossistema, a cultura e a área.
Após uma análise das dimensões da sustentabilidade, fica clara a
conclusão que nenhuma dimensão pode se sobressair sobre as demais.
Antes, estas devem ser analisadas de forma sistêmica e integradora.
Assim, apenas a priori a alteração possui aspecto negativo, pois quando
analisada conjuntamente a conclusão será diversa.
O princípio da sustentabilidade, previsto constitucionalmente na norma

1760
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do art. 225, abarca as cinco dimensões anteriormente mencionadas e que


não podem ser entendidas dissociadamente.
Sob a ótica da dimensão ecológica, quanto mais adensamento houver
em determinadas regiões, maior será a poluição existente naquele local.
De igual modo, o crescimento desordenado da cidade impede que esta
cumpra com sua função social em toda a sua integralidade, isto porque uma
cidade cujo crescimento, principalmente verticalizado, não é controlado,
não atende a qualquer das dimensões da sustentabilidade, tão pouco as
funções da cidade, notadamente a de mobilidade.
As regiões de Belo Horizonte cujo adensamento não foi contido ainda
na sua formação, sofrem com a ausência de locais adequados e que com-
portem a população para as atividades de cultura e lazer. De igual modo,
nestas regiões a propriedade privada e o direito a habitação possuem
conotação diversa da legal, sendo em grande parte áreas favelizadas onde
os serviços públicos tornam-se precários e quase inacessíveis.
No que se refere à circulação, o problema não é diferente. Em pesquisa
realizada pelo Sindicato Nacional de Arquitetura e Engenharia (Sinaenco),
e publicada no jornal O Tempo10 em maio de 2013, 83% dos entrevistados
elegeram a mobilidade urbana como problema que mais impacta a vida
da população. A reclamação possui fundamento, pois Belo Horizonte
apresenta o maior crescimento na frota de veículos particulares entre as
capitais brasileiras, sendo a única onde o direito a meia passagem não
alcança a todos os estudantes. Para SILVA, “não se compreenderia aglo-
merado urbano sem meios regulares de circulação. Seriam impensáveis
os assentamentos urbanos sem vias de circulação”.11
O grande adensamento já consolidado em determinadas áreas torna-se
um problema cuja resolução se mostra ainda mais complexa, pois nessas
regiões, muitas vezes, faz-se necessária a realização de desapropriação de
determinadas áreas para que a cidade possa atender a sua função. Todavia,
nem sempre o poder público possui condições de indenizar os moradores
já estabelecidos no local, o que impede a recuperação destas áreas.
Com base nos argumentos expostos, vê-se que a pontual alteração da

1761
legislação municipal é um instrumento válido para a contenção, a médio e
longo prazo, do crescimento desordenado da cidade. A referida alteração
equaliza as dimensões, de modo a permitir que todas as funções da cidade
sejam alcançadas de forma sustentável.
Apesar da diminuição do CA reduzir o potencial construtivo dos terre-
nos em Belo Horizonte, o aumento no valor dos imóveis reduzirá consi-
deravelmente o número de habitantes nestas regiões, com conseqüente
diminuição no número de veículos circulando na região, o que acarretará
a redução da emissão de poluentes, tanto por parte dos veículos quanto
por parte dos pedestres, permitindo, ainda, moradias mais dignas, maior
mobilidade e melhora na qualidade de vida da população.

4. O PLANEJAMENTO INTEGRADO COMO INSTRUMENTO


DE CONTENÇÃO DA ESPECULAÇÃO IMOBILIáRIA

O Estado Democrático de Direito, deflagrado com o advento da Cons-


tituição de 1988, estabelece a existência de uma política pública urbana,
competente a garantir o pleno desenvolvimento das funções da cidade
sustentável, de modo a garantir o bem-estar de seus habitantes.
A edição do Estatuto da Cidade, denominação dada a Lei Federal nº
10.257/10, fixou normas gerais de ordem pública e interesse social que
regem o uso da propriedade urbana em favor da coletividade e do equi-
líbrio ambiental.
Neste diapasão, tem-se que:

Ao regulamentar o capítulo da Constituição Federal de 1988 que


trata da política urbana (artigos 182 e 183 da CF/88), a referida
lei ofereceu o suporte jurídico
necessário ao planejamento urbano. (...) O Estatuto da Cidade
consiste, pois, em um marco para o Direito Urbanístico brasileiro
por oferecer possibilidade jurídicas efetivas para que a ordenação,
o planejamento e a estruturação regional se contraponham ao
desordenado fenômeno da urbanização.12

1762
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O Estatuto da Cidade aliado aos instrumentos constitucionais já


existentes

(...) possibilitam ao Poder Municipal uma intervenção direta na


construção de uma ordem urbana justa e democrática (no primei-
ro conjunto – dos novos instrumentos urbanísticos – a evidente
interação entre regulação urbana e a lógica de formação de
preços do mercado imobiliário é enfrentada através de disposi-
tivos que procuram coibir a retenção especulativa de terrenos e
de instrumentos que consagram a separação entre o direito de
propriedade e o potencial construtivo dos terrenos atribuído pela
legislação urbana.)13

O Plano Diretor prevê uma série de instrumentos de política urbana,


que visam regular e garantir o adequado uso do solo urbano, de modo a
resguardar os direitos da coletividade e o bom funcionamento da cidade,
através de mecanismos próprios, para que as funções da cidade sejam
cumpridas sem que, contudo, o valor do imóvel seja elevado a um patamar
superior ao que a maior parte da população pode pagar.
Dentre outros instrumentos previstos no PD, podem ser assinalados a
Transferência do Direito de Construir (TDC), a Operação Urbana Consor-
ciada (OUC), e a Outorga Onerosa do Direito de Construir (ODC).
A TDC14 consiste no direito de alienar ou de exercer em local diverso
o potencial construtivo previsto na LPOUS; já a OUC15, espécie do gênero
Operação Urbana, é um instrumento consistente em um conjunto de in-
tervenções e medidas coordenadas pelo Poder Executivo Municipal, envol-
vendo os moradores, usuários e proprietários, que possui como objetivo
alcançar transformações urbanísticas estruturais, valorização ambiental e
melhorias sociais, podendo esta se dar através da modificação de índices
e características de parcelamento, ocupação e uso do solo e subsolo, bem
como da alteração de normas edilícias; já a ODC16 permite que o direito
de construir possa exercido acima do CAb adotado, desde que haja, por
parte de seu beneficiário, uma contrapartida.
O art. 74-J, da Lei 7.165/96, ainda prevê, em seu parágrafo terceiro,
que uma vez alcançado o CAm através da utilização da ODC, o imóvel
ainda poderá receber o potencial construtivo advindo da recepção de TDC.

1763
Por esta razão, apesar de reduzido o valor do CA em determinadas
regiões, ainda será possível, considerando os demais instrumentos de
política urbana, que os imóveis da capital alcancem o potencial construtivo
em igual proporção ao antes existente.
É indiscutível que a definição de políticas públicas governamentais
possui como objetivo a realização de preceitos existentes na CF/88, mas
é indispensável que as políticas públicas sejam integradas para que haja
a efetivação dos direitos constitucionais consagrados.
Celso Ferrari17 ensina:

Em sentido amplo, planejamento é um método de aplicação,


contínuo e permanente, destinado a resolver, racionalmente, os
problemas que afetam uma sociedade situada em determinado
espaço, em determinada época, através de uma previsão orde-
nada capaz de antecipar suas ulteriores consequências.

O planejamento integrado abrange, segundo o referido autor, duas


etapas. A primeira engloba pesquisa, análise, diagnose, prognose, plano
básico e programação. A segunda abrange realização ou execução do
programa, controle, fiscalização e avaliação, revisão e atualização.18
Ferrari19, ainda afirma que

(...) o planejamento deve ser integral, abrangente, isto é, deve


envolver os aspectos econômicos, sociais e físico-territoriais da
realidade a ser planejada. Tais aspetos são apenas diferentes de
um só e mesmo sistema e não diversos sistemas.

Para a formulação das políticas públicas, orientadas pelas necessidades


humanas em todas as suas dimensões, a municipalidade deve estabelecer
a ordenação para que esta cumpra com sua função social, de modo a
garantir o bem estar de sua população.
Por derradeiro, afirma Justem Filho: “A administração pública é uma
espécie de atividade, caracterizada pela adoção de providências de diver-
sa natureza, visando a satisfação imediata dos direitos fundamentais.”20
Marques, Barcelos e Teixeira21 entendem que o planejamento gover-
namental deve ser pensado como um processo de construção, cujas re-

1764
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

percussões se darão no futuro. Esclarecem que os atos da Administração


incidem sobre a sociedade que coexiste com a Administração Pública,
sendo esta, por sua vez, igualmente produtora de atos e ações que também
interferem nos resultados da Administração. Assim, o critério da necessi-
dade do planejamento incide sobre quais as decisões eficazes que devem
ser tomadas hoje para se evitar resultados negativos no futuro.
Através de um planejamento integrado, bem desenvolvido e devida-
mente avaliado, é possível a implantação dos projetos aprovados pelo
município, como forma de mitigar os impactos ambientais e promover o
desenvolvimento sustentável através das várias ferramentas que o Mu-
nicípio dispõe, como foi o caso da mencionada alteração legislativa que
ora se discute.
Rizzo Júnior22, afirma que:

Políticas pública são microssistemas de Direito, integrados entre


si, que obrigam, ao mesmo tempo, o legislador, o administrador,
o juiz e a própria sociedade a concretizar princípios e programas,
explicita ou implicitamente contidos no texto constitucional, para
a efetiva legitimação de aspirações resultantes de projetos sociais
ideológicos. Eles são a cristalização e a efetiva concretização de
uma verdadeira do Estado. Nesse aspecto, a constituição passa a
ser considerada muito mais Omo estatuto político do que jurídico,
já que determina fins capazes de transformar e moldar o estado,
não se limitando a fixar um estatuto organizatório de compe-
tências, limites e declarações abstratas de garantias e direitos
fundamentais. Ela procura conformar um Estado Novo, não fixar
normas de regulação para um Estado existente.

A referida alteração busca combater os problemas da especulação imo-


biliária e impor o cumprimento da função social da propriedade urbana,
funcionando como meio de defesa para enfrentar a expansão horizontal
e verticalizada ilimitada, que avançam vorazmente sobre áreas com alto
índice de saturação ou de preservação ambiental – afinal, a implantação
de uma política urbana eficiente não pode, nos dias atuais, ignorar a atual
questão ambiental – com vistas à melhor ordenação do espaço urbano.
Para Araújo23

A efetividade de direitos fundamentais sociais tais como o direito


à cidade sustentável e os que dela decorrem, direito à moradia,
por exemplo, não depende apenas (i) da existência de boas leis

1765
ou da interpretação concretizadora pelo Poder Judiciário, mas
também de políticas públicas que garantam a realização concreta
desses direitos.

Por esta razão, a alteração legal não pode ser considerada degrau para
a especulação imobiliária, devendo o valor sofrer um aumento razoável
para que o este não fique inacessível para a maior parcela da população.
Ademais, o planejamento urbano integrado passa a exercer papel diretivo,
de modo a possibilitar que o poder público impeça que o capital imobiliário
continue determinando livremente que grupo de pessoas ocupará as áreas
urbanas estruturalmente privilegiadas.24
Segundo Bertolo25 esse propósito de sustentabilidade das funções so-
ciais da cidade, em suas diversas dimensões, não devem estar ligados a
modelos externos, apesar de ser possível aprender com eles. As políticas
públicas devem ser desenvolvidas de acordo com as peculiaridades da
realidade cultural, ambiental, socioeconômica e política de cada cidade.
Somente quando o direito à cidade puder ser exercido em sua plenitude
será possível a efetivação da função social da cidade: “isto inclui o direito
a vida com dignidade, a moradia, a alimentação, a saúde, a segurança,
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”26
Isto porque a política urbana aqui estudada não constitui um fim em si
mesmo, não existindo de forma isolada, esta deve, coordenar-se com as
demais políticas do município e com as demais inúmeras políticas setoriais.
Sundfeld apud Costa27 afirma:

A política urbana, enquanto política espacial, precisa necessa-


riamente coordenar-se com a política econômica do país e com
as políticas de transportes, saneamento, energia, agrária etc.
Assim, um dos aspectos da política urbana é o de sua “coor-
denação externa”, isto é, a definição dos modos pelos quais se
compatibilizará com as demais políticas.

Como se vê, a política municipal urbana deve se compatibilizar com


as demais políticas públicas de maior abrangência, quais sejam: estaduais
e federais. Partindo deste pressuposto, a mudança legislativa pontual do
instrumento de política pública urbana que ora se discute, deve ser feito

1766
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

em consonância com o Plano Diretor da cidade e as demais políticas se-


toriais, haja vista que só o planejamento integrado.
Decerto, a alteração legal não pode ser degrau para a especulação
imobiliária, não sendo plausível que o valor dos imóveis sofram reajuste
acima do que se entende razoável, e se torne inacessível para a maior
parcela da população.
Por esta razão a mudança legislativa pontual deste instrumento de
política urbana foi, e deve ser, feita em consonância com o PD e LPOUS,
a fim de propiciar um planejamento integrado e sustentável do espaço
público urbano, pois somente através de processo de planejamento, aqui,
considerado “instrumento de democratização da gestão da cidade”28será
possível enfrentar problemas emergenciais envolvendo a questão da
moradia, aqui entendido como o direito de acesso à moradia digna, que
engloba não apenas o direito à habitação

5. CONCLUSÃO

O momento atual é propicio para que, inclusive a sociedade repense


as alternativas legislativas disponíveis ao Município, para que este possa
efetivar o desejo coletivo de prosperidade e, ao mesmo tempo, favorecer
o bem estar social e garantir o respeito e proteção ao meio ambiente.
Em tempos em que a pergunta central é: que planeta será deixado para
as futuras gerações, sustentabilidade e mobilidade urbana são questões
a serem discutidas de maneira pontual e propositiva, por encabeçarem
o topo da lista dos grandes problemas enfrentados na maior parte dos
municípios brasileiros, notadamente as capitais.
A alteração legislativa, que ora se discute, foi utilizada como instru-
mento de política pública urbana voltada à contensão do adensamento
populacional, que já é um problema vivenciado pela capital mineira e que
apenas vem se agravando ao longo do tempo.
Permitir que a cidade continue a crescer de maneira desordenada traz,
como conseqüência, um agravamento desta situação já consolidada em

1767
muitas regiões, e o estabelecimento de novas situações de adensamento
ainda inexistentes, que geram poluição, falta de mobilidade, ausência de
qualidade de vida, dentre outros tantos problemas que o poder público,
dificilmente, consegue resolver após estabelecidos, por contemplarem
caras soluções.
Apesar de muito criticada, sobretudo pelos empresários do ramo da
construção civil e por alguns consumidores, a alteração, a longo prazo,
trará melhoria da qualidade de vida daqueles que transitam ou vivem na
capital, isto porque a mesma, pretende reduzir o número de pessoas e
veículos circulando em determinadas regiões, consideradas já saturadas
ou com potencial de crescimento demográfico reduzido.
Por esta razão, a alteração não deve ser analisada sob uma única
ótica, mas deve ser vista de forma integrada, com todas as dimensões
que a sustentabilidade possui. Ver a mudança exclusivamente pelo viés
econômico denota ao crítico um olhar míope e viciado; que atrapalha a
visão de um universo mais amplo. Assim, a medida que foi apresentada
no presente artigo busca apenas garantir que os direitos básicos previstos
constitucionalmente sejam alcançados, através do pleno exercício das
funções da cidade.
O Município trabalha para que seus munícipes possam ter toda uma
gama de atendimentos e possam usufruir, da forma mais equilibrada pos-
sível, de todas as funções que a cidade possui e deve oferecer. Para tanto,
os instrumentos de políticas públicas existem e necessitam de adequação
de acordo com as mudanças necessárias para cada cidade, que vão se
modificando ao longo do tempo.
Decerto, poucos foram os empreendimentos já concluídos sob a égide
da nova legislação, razão pela qual ainda é cedo para afirmar que esta
encarecerá os imóveis na proporção divulgada. Entretanto, já é possível
concluir que a medida surge como uma tentativa do poder público em
tentar controlar um problema que é cada vez mais crescente e que é a
fonte de todos os demais problemas que as grandes cidades possuem.

1768
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Conclui-se que somente através do planejamento poderá ser alcançada


todas as funções da cidade, para que esta de fato seja tida como sustentá-
vel, e o Estatuto da Cidade, ao enfatizar a necessidade de que a gestão da
cidade se dê de forma democrática, estabeleceu uma forma de inclusão
social e minimização dos problemas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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da Cidade: em que realmente avançamos com o modelo de planejamento regulado
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BH nos próximos anos. Belo Horizonte: Estado de Minas. Disponível em: http://
estadodeminas.lugarcerto.com.br/app/noticia/noticias/2013/02/01/interna_no-
ticias,46924/mudanca-em-legislacao-deve-aumentar-preco-dos-imoveis-em-bh-
-nos-proximos-anos.shtml. Acesso: 18 ago. 2013
_________ Trânsito e transporte são os maiores problemas de Belo Horizonte, segun-
do pesquisa. O Tempo. 21/05/2013. Disponível em: http://www.otempo.com.br/
cidades/tr%C3%A2nsito-e-transporte-s%C3%A3o-os-maiores-problemas-de-belo-
-horizonte-segundo-pesquisa-1.649673. Acesso em 16 ago. 2013.

NOTAS

* Advogada. Pesquisadora do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas - NUJUP – do Programa de Pós-Graduação


Stricto Sensu em Direito da PUC Minas, sob orientação da prof. Dra. Marinella Machado Araújo. Pós-Graduanda
em Direito Ambiental pelo CAD/UGF. Email: janeagn@msn.com
**Advogada. Pesquisadora do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas Pública – NUJUP – do Programa de Pós-
-Graduação Stricto Sensu em Direito da PUC Minas, sob orientação da prof. Dra. Marinella Machado Araújo.
Pós-Graduanda em Direito Público pelo CAD/UGF. Email: paola.miranda@yahoo.com.br
1 As ideias defendidas neste texto partem das pesquisas e discussões havidas no âmbito do Observatório de
Justiça - grupo de pesquisa criado no âmbito do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas – NUJUP – vinculado ao
curso de pós-graduação da PUCMinas, GT Justiça Intergeracional, o qual possui como objetivo o monitoramento
e a análise das decisões judiciais do STJ e STF em matéria urbanística ambiental, as quais têm como ponto de

1770
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

partida os conceitos norteadores formulados pela Dra. Marinella Machado Araújo, coordenadora do Núcleo.
2 COSTA, Heloisa Soares de Moura. Processos recentes de expansão metropolitana e implicações socioam-
bientais: a experiência de Belo Horizonte. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana
no Brasil.Belo Horizonte: Del Rey. 2001, p.388ss
3 Idem, p.389.
4 GARCIAS, Carlos Mello. BERNARDI, Jorge Luiz. As funções sociais da cidade. Unibrasil. Revista de Direitos
Fundamentais & Democracia. Vol. 4. 2008. Disponível em:
http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/48. Acesso em 16 ago. 2013.p.11
5 Idem. p.12
6 SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Malheiros. 1995. p.124
7 SOUZA, Clarisse. Mudança em legislação deve aumentar preço dos imóveis em BH nos próximos anos.
Belo Horizonte: Estado de Minas. Disponível em: http://estadodeminas.lugarcerto.com.br/app/noticia/
noticias/2013/02/01/interna_noticias,46924/mudanca-em-legislacao-deve-aumentar-preco-dos-imoveis-
-em-bh-nos-proximos-anos.shtml - Último acesso em 16/08/2013
8 MUKAI, Toshio. Direito urbano e ambiental.4ª ed. Belo Horizonte: Fórum.2010. p.109
9 SANCHS, Ignacy. Desenvolvimento Includente, Sustentável, Sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2008,
p. 37/38.
10 Trânsito e transporte são os maiores problemas de Belo Horizonte, segundo pesquisa. O Tempo. 21/05/2013.
Disponível em: http://www.otempo.com.br/cidades/tr%C3%A2nsito-e-transporte-s%C3%A3o-os-maiores-
-problemas-de-belo-horizonte-segundo-pesquisa-1.649673. Acesso em 16 ago. 2013.
11 SILVA. p.162
12 SILVA; Ana Paula Chahim da; ARAÚJO, Marinella Machado de. O planejamento urbano como ação afirmativa
para inclusão sócioespacial. 2007. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/
ana_paula_chahim_da_silva.pdf. Acesso em: 28 ago. 2013. p.1335
13 Idem. p.1335
14 BELO HORIZONTE, Lei Municipal que Institui o Plano Diretor. 7165, de 27 de agosto de 1996. art. 60
15 Idem. art. 69
16 Idem. art.74-J
17 FERRARI, Celso. Curso de Planejamento Municipal Integrado – Urbanismo. São Paulo: Pioneira. 1977. p.110
18 COSTA, Camila Maia Pyramo. Parelamento e Edificação Compulsórios: uma (re)leitura do planejamento
integrado e participativo das políticas públicas urbanas e habitacionais. Belo Horizonte: Programa de Pós
Graduação em Direito. PUC Minas. 2012.p.156
19 Idem. p.110
20 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva. 2005. p.90
21 MARQUES, Ana Ivone Salmon; BARCELOS, Guilherme Lucas; TEIxEIRA, Regis Mattos. A experiência de
planejamento integrado, com o foco em resultados, do espírito santo. II Congresso Consad de Gestão Pública
– Painel 4: Desenvolvimento equilibrado: um desafio regional. Disponível em: http://www.consad.org.br/
sites/1500/1504/00000031.pdf Acesso em: 17 ago. 2013
22 RIZZO JÚNIOR, Ovídeo. Controle Social efetivo de políticas públicas. 2009. 207f. Tese (Doutorado) Univer-
sidade de São Paulo. p.104
23 ARAÚJO, Marinella Machado de. Política de desenvolvimento urbano no estatuto da cidade: em que realmente
avançamos com o modelo de planejamento regulado pela Lei nº 10257, de 10 de julho de 2001? In: COSTA,
Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes de. (Org.). Planejamento Urbano no Brasil: trajetória, avanços e
perspectivas. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2008, p.179
24 Idem. 2007. 1336
25 BERTOLO, Rozangela Motiska. Das funções sociais dos institutos jurídicos às funções sociais da cidade.
Porto Alegre: LUME Repositório Digital. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://www.
lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/13148/000598345.pdf?sequence=1. Acesso em 17 ago. 2013. p.145
26 ROCHA, Júlio César de Sá da. Função ambiental da cidade. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p.36.
27 Idem. 2012, p.158
28 Idem. 2007.p.1330

1771
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Apontamentos iniciais sobre a


revisão da Legislação Urbanística do
Município do Rio de Janeiro: Nova Lei
de Parcelamento do Solo

Juliana da Silva Hereda 1


Madalena Alves dos Santos 2

1. INTRODUÇÃO

No último dia 12/04/2013, a Prefeitura do Rio de Janeiro deflagrou o


processo de regulamentação e/ou implantação do Plano Diretor da cidade
(editado com a Lei Complementar nº 111, de 1º/02/2011). Isto se deu por
meio da remessa, à Câmara Municipal, de cinco projetos de lei comple-
mentar (os PLCs 29 a 33), todos publicados em diário oficial em 19/04, que
versam sobre as seguintes matérias, intimamente relacionadas ao acesso
à terra urbanizada: parcelamento do solo; uso e ocupação; obras e edifica-
ções; licenciamento e fiscalização; código ambiental municipal. Trata-se
da mais profunda proposta de revisão da normativa urbanística carioca
jamais proposta na história da cidade, uma vez que os cinco projetos de
lei, somados, totalizam um calhamaço de quase 900 artigos, estimando-se
que venha a produzir impactos significativos no ordenamento da cidade
e em sua trajetória de desenvolvimento socioeconômico.
Diante desse cenário, o trabalho ora proposto tem por objeto siste-
matizar as primeiras impressões e análises que podem ser extraídas do
pacote proposto pelo Prefeito Eduardo Paes, a fim de alimentar e estimu-
lar o debate e a pesquisa sobre o tema, no âmbito acadêmico e social. A
análise inicial aqui pretendida toma como referência fundamental o texto
dos projetos de lei supracitados, além de informações resultantes de ob-

1773
servação participante de reuniões públicas voltadas à discussão desses
projetos, que começam a ocorrer tanto no âmbito de audiências públicas,
em realização nas quatro Macrozonas, como no Conselho Municipal de
Política Urbana (COMPUR) e em organizações da chamada sociedade
civil. Como primeira etapa de um trabalho de análise mais ampla, que
se deseja desenvolver ao longo do ano em curso – inclusive em caráter
de pesquisa aplicada, isto é, voltada ao oferecimento de contribuições e
subsídios ao processo público de apreciação e discussão dos projetos de
lei em questão – o presente artigo será dedicado ao caso da proposta de
nova lei de parcelamento do solo.

2. O SENTIDO DA LEGISLAÇÃO
URBANÍSTICA NOS MARCOS DO
CAPITALISMO AVANÇADO

A lei de parcelamento do solo, como toda legislação urbanística, é um


instrumento de regulação do espaço urbano. Através dela, pretende-se
intervir na forma de distribuição e de uso da cidade pela população. A
legislação urbanística e seus instrumentos não são ontologicamente
bons ou ruins: são ferramentas criadas com certa finalidade, que po-
dem ou não alcançar os objetivos pretendidos, dependendo da forma
de sua implementação.
Entretanto, a concepção das normas e instrumentos urbanísticos sem-
pre atende a uma determinada concepção de cidade, que abrange aspectos
econômicos, sociais e políticos. Por isso, a análise de uma lei urbanística
deve ser contextualizada na realidade em que ela se insere.
As leis urbanísticas brasileiras têm em comum, entre outros aspectos, o
fato de serem elaboradas e aplicadas em um espaço e em relações sociais
condicionados pelo capitalismo dito avançado. A constatação, embora
óbvia, tem consequências relevantes. A cidade desse capitalismo possui
características marcantes, que permitem identificar a racionalidade própria
que os processos de ocupação e utilização do solo urbano aí assumem.

1774
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Embora possua variações significativas entre diferentes cidades, alguns


pontos comuns podem ser identificados.
O primeiro ponto que merece destaque é a necessidade constante de
expansão do sistema. A reprodução do capital exige espaços de acumula-
ção para que possa se expandir. Isso leva a uma crescente busca pela ex-
pansão da ocupação humana, o que se reflete no processo de urbanização,
que constantemente incorpora novas áreas às cidades3 Este movimento
encontra respaldo na legislação urbanística, que estabelece, por exemplo,
o perímetro urbano, sua área de expansão, bem como as zonas da cidade
que devem (ou não) ser ocupadas e/ou adensadas.
De outro lado, na cidade capitalista, em princípio, existe uma grande
liberdade para apropriação de áreas urbanas (através da compra e venda
etc.) por parte dos diferentes segmentos e classes sociais. Essa liberdade,
meramente formal, não propicia a todos o acesso à infraestrutura e aos
benefícios da urbanização; ao contrário, ela transfere ao mercado imobili-
ário a possibilidade de determinação da alocação de pessoas e atividades,
hierarquizando as possibilidades de acesso à cidade de acordo com os
recursos – de diversas ordenas – detidos pelos agentes sociais. A grande
maioria da população, desprovida de recursos para desfrutar do mercado
formal, fica à margem da decisão sobre a conformação do espaço urbano.
Neste sentido, percebe-se que:

(...) na estruturação do espaço urbano como um todo se dá uma


divisão social do espaço que, na sociedade capitalista concorren-
cial, se processa através de mecanismos de mercado. Estamos no
âmbito da concorrência, da competição e, portanto, do conflito
potencial e real. Essa concorrência se dá entre agentes utilizado-
res do espaço urbano que têm diferenças de poder econômico e
político. A localização real de cada um deles é fruto do jogo das
necessidades locacionais com as suas possibilidades em termos
econômicos e políticos, isto tanto para as unidades produtivas
(empresas e fábricas) como para as classes sociais e os próprios
indivíduos.4

Assim, nota-se que a diferença de poder econômico e político exis-


tente entre as classes integrantes da sociedade gera uma divisão social
expressa espacialmente. Esta segregação acaba por reafirmar e aumentar

1775
as desigualdades, uma vez que as áreas ocupadas pelas classes mais
poderosas recebem, em geral, mais recursos em infraestrutura do Poder
Público e contam com vantagens urbanísticas e de localização captadas
ou criadas pelo mercado imobiliário. Nas áreas ditas populares, por sua
vez, percebe-se que a dificuldade de acesso aos meios de transporte e
à infraestrutura de habitabilidade onera os moradores, além de causar
prejuízos à sua saúde e qualidade de vida.
É este o contexto no qual se inserem as leis urbanísticas. A regula-
mentação do espaço urbano é um elemento importante neste processo,
podendo atuar de duas formas distintas:

a) Basicamente legitimando a segregação social e a apropriação


do espaço urbano pelas classes mais favorecidas;
b) Servindo como contraponto e/ou redirecionamento à atuação
das forças de mercado, estabelecendo normas que compensem
e mitiguem as desigualdades sociais e promovendo a redistri-
buição de riquezas.

3. A REVISÃO DOS MARCOS LEGAIS NACIONAIS


DO PARCELAMENTO DO SOLO URBANO

No Brasil, ao menos desde a emergência dos movimentos de reforma


urbana, na década de 1960, veio se desenvolvendo, em distintas esferas,
uma vasta legislação que busca a intervenção estatal para democratizar
o espaço urbano. São marcos emblemáticos, nesse sentido, o capítulo da
política urbana da Constituição Federal e das Constituições Estaduais, além
do Estatuto da Cidade. Entretanto, grande parte da legislação urbanística
estadual e municipal ainda não está adaptada a estes marcos fundamen-
tais, reproduzindo a lógica das leis urbanísticas de caráter meramente
legitimador das dinâmicas pré-ordenadas pelo mercado. Este tipo de re-
gulação contempla “aqueles que já estão contemplados, ou seja, a minoria
de alta renda. A tecnocracia, ou a impermeabilidade à política, na verdade
favorece a captura dos mecanismos legais por parte dos mais poderosos”.5
A lei federal de parcelamento vigente no país – Lei nº 6.766 – data de
1979. Não foi informada, portanto, pela Constituição Federal de 1988. Ainda

1776
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

assim, trouxe algumas inovações importantes e pode-se afirmar em gran-


de medida recepcionada por esta, dada a congruência dos princípios que
orientam ambas. Antes dela, a norma que incidia sobre o parcelamento
do solo urbano era o Decreto-Lei Federal nº 58/1937, que, em que pese
a sua preocupação com a proteção contratual dos adquirentes de lotes, a
fim de por cabo aos processos mais rudimentares de extração de rendas
fundiárias, era bastante lacônico em relação às questões urbanísticas,
não tratando a atividade econômica de parcelamento da terra como uma
questão de natureza pública, sujeita a diversos tipos de controle público,
especialmente ao planejamento urbano.
A Lei nº 6766/1979 trouxe uma série de inovações importantíssimas,
tais como a obrigatoriedade do projeto e de sua aprovação pela munici-
palidade, previamente à sua execução, as regras sobre doação obrigatória
de áreas ao Município e sobre a implantação de infraestrutura básica pelo
loteador, e as primeiras regras de que temos notícias em nosso ordena-
mento a respeito da regularização de parcelamentos implantados em
desconformidade à legislação. Estabelece os padrões urbanísticos para a
implantação de loteamentos, dentre os quais as áreas para o sistema de
circulação, para equipamentos urbanos e comunitários, áreas públicas,
área mínima para traçado de lote, estabelece áreas não edificáveis às
margens de águas correntes e dormentes. Define também as responsabi-
lidades dos agentes privados e do Poder Público tipificando contravenções
de ordem urbanísticas.
As modificações à Lei de Parcelamento do Solo são discutidas há muito
tempo, colocando em xeque seu caráter elitista, que dificultaria o setor
privado e o público na construção de habitação de baixa renda. Atribuía-se
ainda à Lei a demora na aprovação nos projetos de parcelamento e, por
fim, as exigências exacerbadas quanto à expansão urbana, que gerariam
uma maior irregularidade na ocupação do solo. Com base nessas premis-
sas, já houve quem imputasse a essa lei a matriz de um processo que já
foi definido como de “produção legal da ilegalidade”.
Segundo Victor Carvalho Pinto6, tais críticas são exacerbadas, uma

1777
vez que a competência para esse controle (de acordo com o art. 30 da
Constituição, corroborada pelo Estatuto da Cidade) é dos Municípios, cuja
legislação elitista, burocrática e, muitas vezes, desatualizada também
contribui que decisivamente para dificultar o acesso ao lote regular por
parte da população de baixa renda. Isto contribuiu para o aumento de
favelas e cortiços nas grandes cidades brasileiras, e induz à periferização
de considerável parcela da população.
Nelson Saule, defende que a Lei nº 9.785/99, que altera a Lei nº
6.766/79, trouxe importantes mudanças em relação à política de mora-
dia e proteção da posse para a população moradora de assentamentos
urbanos informais. O autor enumera dois objetivos centrais introduzidos
pela nova lei7:

a) a regularização do registro público dos parcelamentos popu-


lares implantados em áreas desapropriadas pelo Poder Público,
destinados à população de baixa renda, permitindo a dispensa
do título de propriedade, de acordo com a posse judicial, pelo
Poder Público;
b) a alteração dos requisitos e critérios urbanísticos para o licen-
ciamento de loteamentos urbanos, respeitando as determinações
do Plano Diretor, como também as responsabilidades e obriga-
ções do agente parcelador.

Esse mesmo autor ainda cita outras mudanças importantes trazidas


pela Lei nº 9.785, dentre as quais se pode destacar aquela que possibilita, no
caso da desapropriação por interesse público promovida para regularizar
loteamento de baixa renda, que os adquirentes dos lotes disponham de um
procedimento legal para converter suas posses em propriedade, superando
uma situação de grande vulnerabilidade quanto à segurança da moradia.
Contudo, o grande avanço, de fato, foi a reafirmação da competência do
município para regular o parcelamento do solo, além da determinação de
que o parcelamento deve atender a zona urbana ou de expansão urba-
na, sem impor restrições na regularização de moradia popular informal.
De outro lado, a Lei nº 9.785/99, no seu art. 3º, define a infra-estrutura
básica dos parcelamentos situados em Zonas Habitacionais de Interesse
Social (ZHIS) – nomenclatura que veio a se firmar na política urbana bra-

1778
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sileira, com pequena modificação, como abordaremos adiante – dando


uma demonstração clara do reconhecimento jurídico dos assentamentos
populares de baixa renda com características urbanísticas precárias.
Entre os anos de 1999 e 2012, cinco leis federais introduziram modi-
ficações pontuais na Lei nº 6.766, que pode se dizer parcialmente refor-
mada ao longo de sua vigência. Desde o ano 2000, tramita no Congresso
Nacional o PL nº 3057, que visa instituir uma nova lei de parcelamento
urbano, agora concebida como uma lei de responsabilidade territorial. Pen-
sado inicialmente como mais uma reforma pontual a alguns dispositivos
da lei de parcelamento vigente, o projeto sofreu sucessivas ampliações,
que o converteram numa revisão completa - logo, ab-rogatória - da
normativa em vigor.
O projeto traz profundas alterações e inovações, mas careceria de
algumas modificações para se adequar ao Estatuto da Cidade e à Cons-
tituição Federal. Dentre as inovações, destacava-se o título destinado à
regularização fundiária sustentável em áreas urbanas, indubitavelmente
compatível com os diplomas mencionados. Entretanto, estas disposições
foram incorporadas à Lei nº 11.977, promulgada em 11 de agosto de 2009,
esvaziando significativamente a legitimidade do PL nº 3.057/2000.
Ainda assim, o projeto trata de outros temas importantes. Em primeiro
lugar, estabelece como modalidade de parcelamento do solo, além do
loteamento e do desmembramento previstos na Lei nº 6766/1979, o con-
domínio urbanístico. Inclui, ainda, sorrateiramente, no título destinado às
disposições complementares e finais, a modalidade “loteamento para fins
urbanos com controle de acesso”, institucionalizando uma das mais agres-
sivas práticas das classes poderosas sobre o espaço urbano, consistente
no fechamento de vias públicas, normalmente em nome da “segurança”
de seus moradores. COSTA & PRIETO (2009) incluem entre as modalida-
des de parcelamento também o parcelamento integrado à edificação e
o parcelamento de pequeno porte, embora o artigo 4º do projeto não os
contemple como uma modalidade propriamente dita.

1779
Os conceitos de loteamento e desmembramento já estavam com-
preendidos na lei em questão e não são alterados. O parcelamento
integrado à edificação é aquele no qual a construção de edificações é
feita simultaneamente à realização das obras de urbanização. O par-
celamento de pequeno porte é o executado em área inferior a dez mil
metros quadrados, ou quando do desmembramento que resulte em, no
máximo, 5 (cinco) unidades.
Os conceitos de condomínio urbanístico e loteamento com controle de
acesso são figuras semelhantes, mas com distinções substanciais. Dentre
elas, pode-se destacar:

a)no condomínio fechado, cada proprietário possui uma fração


ideal; no loteamento com controle de acesso, a área é loteada.
na primeira modalidade, as áreas verdes e de equipamento co-
munitários são externos ao condomínio; na segunda, podem ser
internos ou externos;
b)no primeiro, as áreas internas (inclusive vias) são privadas e,
portanto, sobre elas incide o dever de pagar o Imposto Predial
e Territorial Urbano; na segunda, as vias internas são públicas,
concedidas pelo Município à associação de moradores do local.

A modalidade loteamento com controle de acesso tem sido muito ques-


tionada8, porque ela legítima o fechamento e apropriação privada de áreas
públicas, o que não encontra fundamento na ordem legal.
Outra inovação trazida pela lei é a possibilidade da municipalidade
exigir do empreendedor uma contrapartida pelo parcelamento, sob a
forma da outorga onerosa prevista no Estatuto da Cidade. Não se esta-
belece, entretanto, em quais hipóteses isto poderá ser feito, ficando a
cargo do Município definir os casos e a forma de sua aplicação, e o que é
interessante é que esta contrapartida não precisa ser pecuniária (COSTA
& PRIETO, 2009). O projeto de lei propõe também a alteração do Estatuto
da Cidade, para incluir entre os tipos de contrapartida, na outorga one-
rosa, dentre outros, a doação de imóvel para implantação de programas
sociais e ambientais.
De qualquer forma, a proposta ainda é tímida. Medida mais eficaz
para a mitigação da segregação espacial e das desigualdades sociais seria

1780
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

estabelecer como obrigatória, em todos os empreendimentos destinados


às classes de média e alta renda, a destinação de parte da área objeto
de parcelamento à habitação de interesse social ou de outra modalidade
de contrapartida9. A proposição, elaborada pelo Movimento Nacional da
Reforma Urbana, é justificada através da experiência de outros países e da
necessidade da existência de terras disponíveis e infraestruturadas para
se promover a habitação de interesse social:

Praticamente nenhum país que resolveu o déficit habitacional


prescindiu de reservas de terras públicas para Habitação de In-
teresse Social impondo políticas de doação de terras para este
fim. Na Inglaterra, por exemplo, o sistema de Planning Obligations
(Section 106 of the Town & Country Planning Act 1990) se des-
tina a conseguir reservas de terra onde o preço do solo é alto,
garantindo o aceso à terra para futura produção de Habitação de
Interesse Social com mistura de diferentes classes sociais, através
do equilíbrio entre as necessidades habitacionais, planejamento
e políticas públicas e contrapartida dos empreendedores urba-
nos. Para que este objetivo seja cumprido, todo empreendedor
deve pagar uma contrapartida proporcional aos impactos que
os empreendimentos terão no trânsito e na demanda de equi-
pamentos e serviços públicos da cidade. Cada prefeitura deter-
mina e negocia com o empreendedor os percentuais de doação
de terras, valores ou outras formas de contrapartida podendo
exigir porcentagens de terra do empreendimento; contrapartidas
financeiras, pagamentos à vista ou em parcelas; ou contribuições
combinadas, tanto de áreas públicas, como de equipamentos,
serviços ou terra10.

Embora o projeto de lei contemple a possibilidade de cobrança desta


contrapartida, ela não é obrigatória, nem se estabelece em quais casos
ela será exigível.
A medida poderia ser instituída tanto por lei federal quanto por lei de
municipal de parcelamento, ainda que o projeto de lei sob exame não
venha a ser aprovado. Isto porque é reconhecida a competência muni-
cipal para a promulgação de leis urbanísticas11. Na prática, entretanto, a
maioria das leis municipais de parcelamento do solo é pouco inovadora
em relação à legislação federal.

1781
4. A REVISÃO DA LEI DE PARCELAMENTO
NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO

No Município do Rio de Janeiro também tramita na casa legislativa


um projeto de revisão da legislação municipal de parcelamento do solo:
trata-se do Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 29/2013, de iniciativa
do Prefeito, enviado à Câmara Municipal em abril de 2013 juntamente
com quatro outros projetos de lei, que configuram o amplo pacote de
reforma de legislação urbanística carioca. Esses cinco projetos versam
sobre as matérias fundamentais da ordenação da cidade, somente per-
dendo em importância para o próprio Plano Diretor, do qual constituem
complementações necessárias, reclamadas em seus artigos 327 a 333,
que fixam prazos não somente para sua submissão ao legislativo, como
acaba de ocorrer, mas também para a sua aprovação pelos parlamenta-
res, denotando o seu tratamento como matérias urgentes e prioritárias
da política urbana carioca.
O PLC nº 29/2013, se aprovado, substituirá o vetusto Decreto nº 3.800,
promulgado em 20/04/1970 pelo então governador Francisco Negrão de
Lima, quando o município ainda constituía o extinto estado da Guanabara,
em vigor até os dias de hoje a despeito da Lei Orgânica de 1990 e do Plano
Diretor de 1992 já imporem a sua revisão, isto sem falar nas profundas
transformações no desenvolvimento da cidade, impulsionadas desde a
mudança da capital federal em 1960 e do processo de fusão com o antigo
estado do Rio de Janeiro, concluído em 1975.
O Projeto de Lei Complementar em questão foi discutido no Conselho
Municipal de Política Urbana do Município do Rio de Janeiro (COMPUR),
em 20/05/2013. Na oportunidade, prevaleceu o debate sobre questões
técnicas e não estruturais do projeto, tais como a necessidade (ou não)
de pavimentação de toda a faixa de calçada – a fim de garantir certa taxa
de permeabilidade – e a questão da largura de vias públicas.
Um dos destaques do projeto proposto são as inovações em relação
aos temas de meio ambiente, áreas de risco e acessibilidade. Percebe-se,

1782
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

por exemplo, a presença de vários artigos que se ocupam da questão das


inundações, estabelecendo medidas para preveni-las (artigos 4º ao 7º).
No tocante à acessibilidade, houve uma preocupação em ampliar a lar-
gura mínima das calçadas, para proporcionar o livre acesso de pessoas
portadoras de deficiência ou restrições de locomoção, preocupação que
já mereceu sensível ênfase no Plano Diretor de 2011. Segundo o Decreto
nº 3.800/1970, a largura mínima das calçadas era de 1,5m (um metro e
meio); já o PLC 29/2013 prevê que esta medida deve ser de, no mínimo,
2,5m (dois metros e meio), com uma faixa mínima de 1,5m (um metro e
meio) totalmente desobstruída (artigo 31).
O projeto de lei traz como novidade, também, modificações em relação
ao tema da doação obrigatória, em favor do município, a cargo do lote-
ador. Prevê que, nos loteamentos de áreas superiores a 30.000m² (trinta
mil metros quadrados), deverá ser doada ao Município uma porção de
terra equivalente a 35% da área loteável, mantendo, portanto, o percen-
tual consagrado, em 1979, pela Lei Federal nº 6.766. Este percentual foi
formalmente revogado em 1999 (via Lei nº 9.785), quando a legislação
nacional preferiu deixar a definição desse percentual a cargo dos muni-
cípios, permitindo que ele seja variável em função da densidade de ocu-
pação prevista para a zona em que o loteamento se localize (atual art. 4º,
I da Lei nº 6.766). Em que pese a homenagem da legislação à autonomia
municipal e à sua competência para definir as questões de interesse local,
tal mudança não deixou de ser alvo de críticas, por não garantir padrões
mínimos de qualidade urbanística dos loteamentos.
No PLC 29, define-se que as áreas reservadas a fins públicos serão
destinadas:

a) à instalação de praças, jardins e espaços públicos, na proporção


de 6% da área loteável;
b) à construção de equipamentos públicos, em 8% da área lo-
teável;
c) o restante (21%), por exclusão, ficaria destinado a implantação
do sistema viário (vias de comunicação ou logradouros públicos).

1783
Determina-se, ainda, que não poderão ser destinados à doação obri-
gatória as faixas consideradas como non aedificandi.
Segundo a explanação, feita na aludida reunião do COMPUR, pela equi-
pe da Secretaria Municipal de Urbanismo, atualmente, a área destinada
a equipamentos públicos deve abrigar, necessariamente, uma escola. O
projeto de lei pretende dar mais flexibilidade à utilização do local, tendo
em vista que existem áreas da cidade que já possuem escolas em nú-
mero suficiente. Poderão, então, ser instalados equipamentos públicos
de qualquer tipo, a depender da análise das necessidades da população
residente na localidade.
Mas esta não é a única alteração. O Decreto nº 3.800/1970 continha
não só a exigência de doar áreas ao Município, mas também a de construir
escolas-padrão (artigo 54). Esta obrigação não foi reproduzida no projeto
de lei em discussão. Permanece a obrigatoriedade da doação, porém se
abriu mão da prerrogativa de exigir que o equipamento público seja cons-
truído pelo loteador, retrocedendo-se em relação a uma exigência pública
que, em virtude dos mais de quarenta anos de sua vigência, já se poderia
considerar como absorvida pelos loteadores. Transfere-se, portanto, esse
custo à coletividade, interferindo a legislação projetada na distribuição dos
ônus e benefícios da urbanização, que constitui uma das pedras de toque
da política urbana contemporânea, consagrada pelo próprio Estatuto da
Cidade (art. 2º, Ix)
O PLC reafirma o seu propósito de conferir maior flexibilidade aos
modos de satisfação da obrigação de doação de áreas ao permitir que
a área doada se localize fora do loteamento, em qualquer localidade do
Município. Neste caso, entretanto, três critérios deverão ser observados:

a) o tamanho da área doada deverá atender ao percentual mínimo


estipulado para a doação obrigatória (35%);
b) o valor da área deverá ser equivalente;
c) a hipótese só pode ser utilizada quando houver interesse do
Município na área oferecida.

De outro lado, muito embora o projeto incorpore importantes inovações


em relação à arborização e acessibilidade, deixa a desejar no tocante à

1784
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

habitação de interesse social e de regularização de loteamentos, reme-


tendo à legislação específica a sua normatização, rompendo com uma
unidade que vinha sendo cultivada desde a edição da Lei nº 6.766, em
1979. É verdade que existem outros meios legislativos que podem suprir
as omissões da lei de parcelamento, mas o ideal seria que o projeto de lei
já incorporasse estas questões, a fim de propiciar uma melhor sistema-
tização da matéria e garantir um tratamento uniforme e articulado das
várias facetas inerentes à regulação do parcelamento. De outro lado, esta
concentração temática possivelmente inibiria os tratamentos excepcionais
e privilegiados, de baixo ou nenhum interesse coletivo e de questionável
legalidade e legitimidade, que são realizados costumeiramente por meio
de pequenas peças legislativas, institucionalizadoras do tratamento legal
desigual denunciado desde a famosa máxima orwelliana: “todos são iguais,
mas alguns são mais iguais do que outros”12.
De outro lado, existem disposições que podem até comprometer a
futura legislação específica sobre habitação de interesse social e regu-
larização fundiária. É o caso do artigo 14, que determina: “É permitido o
remembramento de lotes existentes mesmo que o lote resultante possua área
inferior ao limite mínimo exigido para a zona em que o mesmo se encontre”.
Restringe-se o remembramento apenas em função da largura do logradou-
ro, independente de se tratar de Área de Especial Interesse Social (AEIS)13,
conforme se observa nos artigos 15 e 16 do projeto:

Art. 15 Em logradouros com largura igual ou inferior a 8,00m


(oito metros) somente serão permitidos remembramentos que
resultem em lotes de 7ª categoria. [Testada mínima de 5,00m
(cinco metros) e área mínima de 125,00m² (cento e vinte e cinco
metros quadrados)]

Art. 16 Em logradouros com largura igual ou inferior a 9,00m


(nove metros) somente serão permitidos remembramentos que
resultem em lotes de 7ª ou 6ª categoria. [Testada mínima de
9,00m (nove metros) e área mínima de 225,00m² (duzentos e
vinte e cinco metros quadrados)]

Tais disposições são problemáticas quando implantadas em áreas


ocupadas por população de baixa renda, a exemplo das inúmeras AEIS

1785
criadas no município desde o ano de 1993, que até hoje ainda não dispõem
– nenhuma delas! – de uma legislação própria de parcelamento da terra,
o que permite inferirmos que tal norma será aplicável a essas áreas em
virtude da inexistência de qualquer outra, aliado ao fato de o projeto de
lei em discussão não excluir a sua própria incidência em AEIS.
Possibilitar o remembramento significa legitimar a apropriação de
vários pequenos lotes regularizados para a implementação de um grande
empreendimento ou de edificações com padrões de classe média / alta, por
exemplo. Amparado por este dispositivo, o empreendedor poderá adquirir
uma série de lotes, remembrá-los e destinar o novo lote à implantação
de habitação para classes mais altas ou de usos e atividades com fortes
discrepâncias em relação aqueles tradicionalmente encontrados em fa-
velas14. Com isso, todo o investimento do poder público em regularizar e
garantir o direito à moradia da população de baixa renda ali residente fica
comprometido, vindo a beneficiar aqueles que, em tese, estariam excluídos
do público-alvo dessas políticas. O ideal seria vedar expressamente a pos-
sibilidade do remembramento em AEIS, deixando para as leis específicas
(regulamentadoras do parcelamento, uso e ocupação no caso particular
de uma determinada área) apenas a determinação das características
específicas à localidade, tais como as áreas mínimas dos lotes, a fim de
orientar o processo oposto – o de desmembramento.
Outro ponto a destacar, talvez o principal de todos eles, é a insuficiên-
cia no que tange a participação popular no processo da aprovação desse
pacote de leis. Os projetos foram enviados à Câmara sem a realização
de qualquer evento destinado à permitir a participação da população na
sua elaboração. Posteriormente, foram realizadas 4 (quatro) reuniões no
COMPUR e agendadas 4 (quatro) audiências públicas, uma em cada uma
das macrozonas da cidade. Até o momento, duas destas audiências já
foram realizadas. O que se percebeu no acompanhamento destes espa-
ços, no entanto, é que a participação popular não tem sido efetiva. Boa
parte das reuniões ocorreu durante o dia, quando a maioria da população
está trabalhando e não pode comparecer. Além disso, a divulgação das

1786
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

audiências foi realizada de forma tímida, não havendo real empenho da


Prefeitura em disseminar a informação e o debate acerca da aprovação
destas leis. É notável, também, o silêncio dos meios de comunicação de
massa a respeito de um tema tão relevante.
A noção de Plano Diretor Participativo não se encerra com a promul-
gação deste, ela consiste em um processo que também deve ser estendido
às leis que disciplinam e especificam seu conteúdo. Ademais, a gestão
democrática da cidade, consagrada no Estatuto da Cidade (art. 52, inciso
VI) - além da Lei Federal nº 8.429/1992 e Resoluções do Conselho Nacional
das Cidades - exige que haja participação popular em qualquer decisão ou
promulgação de lei que envolva o espaço urbano, com possibilidade de
deslegitimação do processo e imputação de improbidade administrativa
ao Prefeito.
Compreendemos que a falta de interesse político na construção de
espaços públicos de participação, seja algo recorrente no cenário nacio-
nal atual e representa um retrocesso frente aos avanços, grande maioria,
oriundos de mobilizações sociais. Espaços meramente consultivos que
privilegiam uma atuação tecnicista, não primam pela linguagem e debate
acessível de modo a inserir o maior número de interessados.
Por isso, entende-se que é precipitada e violadora do direito à cidade
a aprovação de projetos de leis pouco debatidos nas esferas públicas
da sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em uma leitura inicial do projeto que visa instituir a nova lei de parce-
lamento do solo no município do Rio de Janeiro, o que se destaca em sua
análise é que ele praticamente ignora a temática da habitação de interesse
social e da regularização fundiária, que correspondem a duas ações es-
truturantes no quadro da política urbano-ambiental da cidade, conforme
definição do próprio Plano Diretor (artigo159), deixando de aproveitar a
oportunidade de progredir no tratamento integrado destas matérias no

1787
âmbito do planejamento urbano. Trata-se de uma lacuna incompatível com
o estado da arte do desenvolvimento conceitual e das políticas urbanas
nos últimos dez anos, bem como com o anunciado intuito de regulamentar
e efetivar o recente Plano Diretor carioca, editado em 2011.
Os cinco PLCs submetidos pela Prefeitura à Câmara Municipal, em
abril de 2013, demandam, ainda, muitas reflexões e discussões. Reco-
nhecemos a necessidade da ocupação desses espaços de participação em
parceria com os agentes e organizações da sociedade civil já engajados
nesse processo15, com o objetivo que a futura lei possa contemplar os
anseios sociais, contribua para a democratização da cidade e possibilite
a efetivação de direitos fundamentais, como é o caso do direito à cidade.
Em que pese a dificuldade de concretizar a prática participativa, acre-
ditamos ser indispensável a cobrança do poder público no sentido de
ampliar a discussão para diversos segmentos da sociedade e qualificar as
arenas públicas de debate. Longe de reforçar “fetichismos” vinculados aos
mecanismos de participação, a superação da cultura política meramente
representativa é um desafio posto, onde a própria construção metodológica
se sustenta na participação popular.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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so em 18/jun de 2013. Acesso em 18/06/2013.

NOTAS

1 Advogada. Discente de Especialização – IPPUR / UFRJ. E-mail: juliana.hereda@gmail.com


2 Advogada. Discente de Especialização – IPPUR / UFRJ. E-mail: santo.madalena@hotmail.com
3 HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005, p. 49-50.
4 CAMARGO, Azael Rangel; LAMPARELLI, Celso Monteiro e George, Pedro Conceição Silva. Nota introdutória
sobre a construção de um objeto de estudo: “o urbano”. Etc, espaço, tempo e crítica: revista eletrônica de
ciências sociais aplicadas e outras coisas, n. 1(1), v. 1, mai-2007, p. 10.
5 ROLNIK, Raquel. Regulação Urbanística no Brasil: conquistas e desafios de um modelo em construção.
In: Anais do Seminário Internacional: gestão da terra urbana e habitação de interesse social. Campinas,
PUCCAMP, 2000, p. 5.

6 PINTO, Victor Carvalho. O parcelamento do solo urbano e a Lei 9785/99. In: SAULE Jr., Nelson (Org.), Direito
à cidade: trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 239-262.
7 SAULE JUNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre:
Sergio Fabris, 2004, p. 357-358.
8 SAULE JUNIOR, Nelson. Agenda da Reforma Urbana no Projeto de Lei 3.057/00. Disponível em:http://
www.forumreformaurbana.org.br/index.php/artigos-de-interesse/68-urbanismo/128-agenda-da-reforma-
-urbana-no-projeto-de-lei-305700.html. Acesso em 18/jun de 2013. Acesso em 18/06/2013.
9 ROLNIK, Raquel; SAULE JUNIOR, Nelson. Temas estratégicos da Reforma Urbana no Projeto de Lei
3057/2000: revisão da Lei 6766/1979. Disponível em: http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=pl%20
3057%20raquel%20rolnik&source=web&cd=1&cad=rja&ved=0CCoQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.unmp.
org.br%2Findex.php%3Foption%3Dcom_docman%26task%3Ddoc_download%26gid%3D57%26Itemid%3D66&
ei=Z03DUeH_OsP00gGNpYDICw&usg=AFQjCNGV4zTPY1REL6PiYzQojjsanx35qg&bvm=bv.48175248,d.dmg.
Acesso em 18/06/2013, sem paginação.
10 Ibidem.

1789
11 Segundo Diógenes Gasparini, “A disciplina dos aspectos urbanísticos do parcelamento de glebas localizadas
nas zonas urbanas ou de expansão urbana, por dizer de perto com o interesse local, cabe, como de há muito
asseguram os municipalistas, ao Município” (GASPARINI, 1988, p. 2).
12 Máxima extraída da obra “A Revolução dos Bichos”, um romance satírico do escritor inglês George
Orwell, publicado no Reino Unido em 1945.
13 Em alguns municípios, e no Estatuto da Cidade, essas unidades do zoneamento da cidade são denominadas
ZEIS, isto é, zonas de especial interesse social.
14 Tal como seria o caso da casa noturna e do empreendimento hoteleiro que há algum tempo instalaram-se
na favela do Vidigal, conforme noticiado em http://altovidigal.com/novosite/?p=897.
15 Como seria o caso da Federação de Associações de Moradores do Município do Rio de Janeiro (FAM-RIO)
e do Sindicato dos Engenheiros (SENGE). Para além, também reconhecemos a necessidade de ampliação da
participação para outros setores da sociedade nem sempre organizados.

1790
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Condomínios fechados de luxo:


entre o ilegal e o permissivo, a
caminho de uma anticidade

Juliana Campos de Oliveira1


Rafaela Campos de Oliveira2

INTRODUÇÃO

Presencia-se, contemporaneamente, nas metrópoles brasileiras,


crescimento acelerado de empreendimentos imobiliários denominados
condomínios fechados, sobretudo aqueles com caráter de luxo. Na cidade
de Salvador, metrópole provida de alto potencial turístico, tal tendência
igualmente se verifica. Esta realidade demonstra a emergência de um
urbanismo preocupado em atender as exigências do mercado imobiliário
voltado para o público de alto poder aquisitivo e estrangeiro, situação
em que o Poder Público se mostra permissivo, ao incentivar e viabilizar
a difusão destes empreendimentos, desprezando os problemas que deles
podem advir para a população majoritária, em nome de um suposto de-
senvolvimento local.
Verifica-se que os condomínios fechados de luxo, além de burlar a
legislação urbanística brasileira, são responsáveis por graves impactos
de vizinhança e processos de auto-segregação e exclusão social, que
negam a cidade, ensejando a formação de anticidade, à medida em que
restringem as ideias de heterogeneidade, diversidade social, multiplicidade,
trocas culturais, criam obstáculos para o encontro e a reunião de pessoas,
para o consumo coletivo de objetos, de ideias, fatores caracterizadoras
das cidades tradicionais.

1791
Diante de tal realidade, o presente artigo objetiva ensejar o debate
acerca da pertinência dos condomínios fechados no ambiente urbano bra-
sileiro, enfatizando as consequências advindas destes empreendimentos
para o conceito tradicional de cidade, ressaltando a postura dos Poderes
Públicos e a situação de leis urbanísticas, tais como o Estatuto da Cidade
e os Planos Diretores diante de tais empreendimentos, atribuindo, ao
final, enfoque especial ao tema, na cidade de Salvador, capital do Estado
da Bahia, no Brasil.

1. URBANISMO E DIREITO URBANÍSTICO


BRASILEIRO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Palavra proveniente do Latim urbs(cidade), o urbanismo tem concei-


tuação estreitamente ligada à cidade e às necessidades conexas com
o estabelecimento humano neste espaço. Por esta razão, o urbanismo
evoluiu com a cidade, sobretudo a partir da primeira metade do século
xIx3. Do ponto de vista urbanístico, é possível considerar que um centro
populacional caracteriza uma cidade quando possui: a) unidades edilícias;
b) equipamentos públicos4. A cidade constitui um resultado coletivo, que
envolve aspectos sociais, econômicos, políticos, historicamente deter-
minados pelas forças que impulsionam a produção humana5. Configura
espaço de liberdade e mobilidade social6. Assim sendo, cumpre-se o pa-
pel social da cidade quando é garantido o bem-estar de seus habitantes,
oferecendo moradia, transporte, recreação e condições satisfatórias de
trabalho7. A cidade, enquanto construção humana, produto social (...)
apresenta-se enquanto formas de ocupações. O modo de ocupação (...)
se dá a partir da necessidade de realização de determinada ação, seja de
produzir, consumir, habitar ou viver”8.
Hoje, a cidade brasileira não é meramente uma versão maior da
cidade tradicional, mas uma nova e diferente forma de assentamento
humano, denominado “conurbação”, “megalópole”, “metrópole mo-
derna” que se formou por via de uma ocupação caótica, irracional e

1792
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ilegal do solo urbano, resultante de um processo histórico de ocupação


excludente e concentradora9.
Sobretudo a partir da década de 90 do século passado, as cidades
brasileiras passaram a ter sua imagem associada à violência, poluição,
criança desamparada, tráfego caótico, entre outros, retrato de um intenso
crescimento econômico associado a um processo de urbanização com
crescimento da desigualdade social10.
Diante dos fatos, o processo de urbanização das cidades tem provoca-
do desorganização social, existindo carência de habitação, desemprego,
problemas de higiene e de saneamento básico, modificando a utilização
do solo e transformando a paisagem urbana11.
Devido a essa complexidade de fatores, deu-se origem ao urbanismo
enquanto técnica e ciência, tendo como objeto a) ocupação do solo; b)
organização da circulação; c) legislação. Adicionalmente, emergiu o Di-
reito Urbanístico, com o escopo de tutelar as ações destinadas a ordenar
os espaços habitáveis, ou seja, as atividades urbanísticas12.
As normas urbanísticas, no Brasil, se encontram espalhadas em vários
diplomas legais federais, estaduais e municipais. Na Constituição Federal
Brasileira de 1988 (CF/88), estão presentes diversos dispositivos acerca
da matéria urbanística, abordando as diretrizes do desenvolvimento urba-
no, sobre a preservação ambiental, sobre planos urbanísticos e a função
urbanística da propriedade urbana.

1.1 Estatuto da Cidade

Cabe destacar a Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada


Estatuto da Cidade, que regulamenta os arts. 182 e 183 da CF/88, esta-
belece as diretrizes gerais da política urbana, normas de ordem pública
e interesse social que têm por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e de propriedade urbana em prol do bem
coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como o equi-
líbrio ambiental13.

1793
O Estatuto da Cidade introduz avanços jurídicos e urbanísticos im-
portantes que regulamentam, redefinem ou detalham instrumentos tais
como: o imposto sobre a propriedade predial e territorial; a desapropriação
e tombamento de imóveis; a concessão de uso especial para fins de mo-
radia; o parcelamento ou edificação compulsórios, o usucapião especial
e contribuição de melhoria, o direito de superfície, o direito de preemp-
ção; a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso; a
transferência do direito de construir; as operações urbanas consorciadas;
a regularização fundiária; a assistência técnica gratuita para as comuni-
dades e grupos sociais menos favorecidos, as unidade de conservação e
zonas especiais de interesse social, entre outros. Além disso, o Estatuto
da Cidade defende a existência do Direito à Cidade e à Moradia, do IPTU
progressivo e da Função Social da Propriedade14.
Dallari15 considera que o Estatuto da Cidade configura marco ex-
tremamente relevante para o desenvolvimento dos estudos de Direito
Urbanístico, uma vez que representa o ponto de partida para uma futura
sistematização normativa desta matéria. Acrescenta não haver possibi-
lidade de que a legislação do Município, sobretudo o Plano Diretor, atue
em descompasso com suas normas.
Villaça16 afirma que o Estatuto da Cidade foi muito aguardado, por re-
presentar uma frente, talvez das mais importantes, na tentativa de impor
credibilidade aos Planos Diretores municipais.

O Estatuto da Cidade coroa um longo período de experiências,


críticas e sugestões relacionadas ao planejamento urbano no
Brasil, além de procurar dar suporte às administrações municipais
ao favorecer a flexibilização de ações no trato com a coisa pú-
blica, quando preserva o interesse social, mas introduz a política
como a chave das negociações no palco dos conflitos que são
intrínsecos aos processos espaciais17.

O Estatuto da Cidade indica o estudo de impacto de vizinhança


(EIV) (arts. 36 a 38), documento técnico a ser exigido, com base em lei
municipal, para a concessão de licenças e autorizações de construção,
ampliação ou funcionamento, configurando importante instrumento de
controle social e democrático18.

1794
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Na elaboração do EIV é obrigatório considerar, em conformidade com


o art. 37 do Estatuto da Cidade, os efeitos positivos e negativos sobre a
qualidade de vida da população residente na área e proximidades, devendo
aferir o impacto sobre o adensamento populacional e os equipamentos
urbanos e comunitários, o uso e a ocupação do solo, aquilatar a valori-
zação imobiliária, a geração de tráfego e demanda de transporte público,
aspectos de ventilação e aeração, assim como as influências sobre a
paisagem urbana e os patrimônios natural e cultural19.
Moraes20 considera o EIV instrumento fundamental para se evitar a
implantação de empreendimentos ou atividades potencialmente causa-
doras de degradação à vizinhança imediata e ao meio ambiente urbano,
prevenindo a ocorrência de desequilíbrio urbano-ambiental. Todavia, ainda
é pouco conhecido e aplicado nos municípios brasileiros.
Na faixa litorânea, onde grande parte dos condomínios fechados de
luxo se instala, Scheinowitz21 destaca que se a ação dos equipamentos que
são implantados nestes setores não for bem estudada, as consequências
podem ser drásticas.
Ressalta-se que, para haver melhor aplicabilidade do EIV, é indis-
pensável que a lei municipal o estabeleça de forma clara e precisa. Isto
porque, Sampaio22 salienta o fato de ser comum observar em leis de uso
e ocupação do solo, em códigos de obras, entre outros dispositivos nor-
mativos, “princípios gerais”, “objetivos” e “conceitos” de difícil aplicação
na prática, o que torna mais habitual a transgressão, e menos comum a
obediência às leis urbanísticas.
Matos23 destaca que o Estatuto da Cidade permite o exercício de ino-
vações no planejamento urbano, embora parte dessas inovações possa
produzir resultados diferentes do esperado. E reforça:

é evidente que o Estatuto pode esconder insuficiências só elu-


cidadas com o tempo, já que a força dos poderosos e a pobreza
dos pobres podem aumentar, não obstante a premissa da ne-
gociação, dos consórcios e parcerias supraclassistas, figuras de
gestão menos radicais que as idealizadas no passado – quando a
polaridade ideológica direita versus esquerda era mais evidente24.

1795
1.2 Plano Diretor

O Plano Diretor constitui o instrumento pelo qual se efetiva o processo


de planejamento urbanístico local, obrigatório para cidades com mais
de vinte mil habitantes (art. 182, § 1º, CF/88). Adicionalmente à previ-
são constitucional, o Plano Diretor está prescrito no Estatuto da Cidade,
havendo capítulo próprio (Capítulo III) estabelecendo as diretrizes gerais
(entre os arts. 39 e 42), além de diversos outros artigos que estabelecem
a necessidade de consulta aos Planos. O estatuto da Cidade, conforme
Matos25, requalifica, fundamenta juridicamente, estabelece instrumentos
e dá consistência técnica aos planos diretores. Fernandes considera que
o Plano Diretor,

muito mais do que instrumento técnico e/ou método de organi-


zação territorial, é processo sociopolítico pelo qual se determina
e se preenche o conteúdo para o exercício dos direitos individuais
de propriedade imobiliária urbana. O Plano Diretor, portanto, não
se reduz à mera lei reguladora do uso, parcelamento e ocupação
do solo urbano, mas também, e sobretudo, deve ser uma lei fun-
diária essencial, responsável pela garantia das funções sociais
da cidade para a totalidade do território municipal26.

Villaça27 destaca que o Plano Diretor surgiu no Brasil em 1930, com


o Plano Agache para acidade do Rio de Janeiro, embora o seu conceito
tenha se desenvolvido por volta dos anos de 1950. A partir da década de
1970 com a inserção da Participação Popular no planejamento urbano,
fortalecida na década de 1980, devido à abertura politica e a impulsão dos
movimentos populares, e, em 1990, com a democratização e politização do
planejamento urbano, os planejadores urbanos passaram a tentar incluir
a participação popular no processo de elaboração dos planos diretores.
Ressalta, entretanto, que a inclusão, na Constituição Federal de 1988,
da obrigatoriedade de elaboração do Plano Diretor nos municípios com
população superior a 20 mil habitantes, veio a afastar os movimentos popu-
lares dos debates e representou entrave de natureza burocrática nas lutas
populares por terra, moradia, transportes etc. O combate à especulação

1796
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

imobiliária, por exemplo, já foi dificultado pelo fato de que os governos


municipais ficaram impossibilitados de implementar diretamente uma
política de combate, necessitando, previamente, contemplar a questão
na Lei Orgânica e depois no Plano Diretor28.
Diante da obrigatoriedade de existência, nas cidades brasileiras, de
um corpo legislativo em matéria urbanística, admite-se ser fundamental,
para a realização de um projeto, a existência de embasamento jurídico
sólido, mas, em conformidade com Scheinowitz “sem aplicação, as mais
belas leis do mundo são inúteis”29.
Nos anos seguintes ao da promulgação da Constituição Federal de
1988, passou a se desenvolver, no Brasil, linha de pensamento, vinculada,
sobretudo ao setor imobiliário, defensora da ideia de que as propostas
de um Plano Diretor deveriam se limitar a políticas, objetivos e diretrizes
gerais, o que isentaria a existência de dispositivos auto-aplicáveis nos
Planos Diretores30.

A elite econômica brasileira – no caso, representada pelos inte-


resses imobiliários – não quer saber de Plano Diretor, pois ele
representa uma oportunidade para debater os ditos ‘problemas
urbanos’ da maioria, que ela prefere ignorar, embora busque
aparentar o contrário (...) Nesse sentido, essas forças e interesses
vêm propugnando por um Plano Diretor apenas de princípios
gerais. Com isso conseguem um Plano Diretor inócuo31.

Cota e Mol32 ressaltam, ainda, que os mecanismos que regulam o uso


e a ocupação do solo urbano não tem interferido de maneira eficaz no
controle urbano, o que vem a reforçar o modelo segregador da urbani-
zação brasileira.
Diante do caráter principiológico, abstrato, ambíguo e não auto-apli-
cável dos Planos Diretores brasileiros, emergem discussões no âmbito da
sua eficácia. Matos33 esclarece que os planos diretores, no Brasil, possuem
uma história geralmente associada a equívocos, fracassos e autoritaris-
mo, não obstante a importância dos esforços de leitura e interpretação
de aspectos urbanísticos e relações sociais existentes nas cidades. O viés
antidemocrático sempre foi evidente, como se os interesses do Estado
fossem assunto de poucos, incompreensível à população.

1797
Considera que “a questão da democracia nos planos diretores e no
processo de planejamento territorial é complexa, desgastante, requer muita
paciência dos atores e continuará um desafio por muito tempo”34. E reforça
que “a intensidade e o ‘peso’ das diferentes forças políticas e econômicas
que interferem no plano podem desequilibrá-lo irreversivelmente e/ou
condená-lo à ineficácia”35.

2. OS CONDOMÍNIOS FEChADOS DE LUXO


FRENTE AO URBANISMO E AO DIREITO URBANÍSTICO

No contexto urbanístico atual, emergem certas tendências que são


comuns e dominantes na dinâmica das megalópoles brasileiras, entre as
quais, decréscimo demográfico das antigas áreas centrais, o que acentua
uma metropolização estendida, responsável por prolongar a cidade para
várias direções; a difusão de artefatos urbanos de grande impacto na estru-
tura, como edifícios corporativos, shoppings, centros empresariais, hotéis
de luxo, e, restringindo-se ao tema em discussão, a mudança nos padrões
habitacionais, com a proliferação de condomínios fechados protegidos e
de luxo, para onde as camadas sociais de média e alta renda se dirigem,
em busca de segurança e qualidade de vida, desencadeando aumento da
auto-segregação dos ricos e isolamento dos pobres36.
De acordo com Carvalho e Pereira37, no Brasil e em outros países, onde
a segurança se converteu de atributo público indivisível, para elemento
ligado ao poder aquisitivo de cada um, a violência e o medo da violência
têm levado à fortificação física do espaço, transformando-se em um dos
princípios organizadores das cidades contemporâneas.
Ivo38 salienta que a atual estrutura morfológica das cidades envolve
processos de seleção, distribuição e regulação que afetam a vida social e o
espaço público, num contexto marcado pelos fluxos globais da economia,
no qual o mercado imobiliário e as estratégias de marketing são vetores
importantes. Amendola, apud Carvalho e Pereira afirma que

com a decadência dos critérios reguladores da distribuição


territorial da violência e a afirmação, em seu lugar, do princípio
da ubiqüidade e causalidade absoluta e a mescla da violência

1798
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

real com a reconstruída pela mídia e pelo imaginário, o cidadão


aterrorizado busca viver em uma bolha protetora no interior da
cidade, que deseja igualmente protegida, permanecendo o mais
possível no interior de áreas fortificadas e blindando tanto a casa
como a própria vida39.

Diante de tal realidade, as atenções do mercado imobiliário, em di-


versas cidades brasileiras, há cerca de cinquenta anos, têm se voltado
para os denominados condomínios fechados. Os condomínios fechados,
também denominados loteamentos em condomínio, loteamentos prive,
loteamentos integrados, loteamentos especiais, loteamentos fechados,
loteamento condominial, condomínio de lotes ou condomínio especial,
são, via de regra, luxuosos empreendimentos que acontecem principal-
mente nas grandes regiões metropolitanas, nas capitais e grandes cidades,
sobretudo, em cidades turísticas litorâneas ou interioranas, estas últimas,
em regiões de serra40.
Mais recentemente, os condomínios fechados de luxo têm adotado
uma característica mais complexa, uma vez que, além de garantir convívio
com a natureza, passam a disponibilizar áreas destinadas às compras, à
hospedaria, entre outras opções de lazer que ultrapassam o limite de uma
área recreativa e uma natureza a contemplar41.
Este novo modelo de habitação estabelece, conforme esclarece Ivo42,
novas relações entre a cidade e seus habitantes e contribui para o enfra-
quecimento da cidade como espaço coletivo e espaço público. “A cidade
é privatizada, e os novos ordenamentos e articulações espaciais expres-
sam movimentos de homogeneização de redes entre iguais, apartadas
da cidade real”43.

2.1 Os condomínios fechados de luxo


se adequam ao urbanismo e suas leis?

Desenvolvendo-se análise associativa de tais empreendimentos imobili-


ários aos objetos do urbanismo elencados por Silva44, tutelados pelo Direito
Urbanístico, comentados no item anterior, quais sejam: a) a ocupação do

1799
solo; b) a organização da circulação; e, c) a legislação, é pertinente tecer
algumas considerações.
Primeiramente, quanto à ocupação do solo, os condomínios fechados
de luxo não obedecem aos ditames legais, uma vez que, dentre outros
fatores, muitas vezes são construídos em áreas socialmente vulneráveis,
ambientalmente frágeis, consideradas Áreas de Preservação Perma-
nente (APP), Áreas de Proteção Ambiental (APA), algumas vezes, sob a
incumbência de realizar ações de responsabilidade ambiental, conforme
salienta Henrique45.
Para agravar tal situação, presencia-se uma postura permissiva por
parte do Poder Público das metrópoles brasileiras, frente aos movimen-
tos especulativos do mercado imobiliário, que submete a organização do
espaço urbano aos interesses e demandas do capital imobiliário46.
No que concerne à organização da circulação, estes empreendimentos
fechados, muitas vezes, configuram entraves à livre circulação da popu-
lação das cidades em que são construídos. Henrique47, fazendo referência
a um condomínio construído no município de Mata de São João, litoral
norte da Bahia, destaca que o empreendimento atua como uma barreira
para a comunidade local usuária da praia, uma vez que dificulta o acesso
a este setor da cidade.
Neste contexto, citam-se, ainda, a existência das denominas “ruas
particulares”, fechadas com correntes ou cancelas que impedem o uso
público. A Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/1979) não ad-
mite a existência de ruas particulares, pois as normas de urbanificação não
permitem transformar áreas públicas obrigatórias em áreas privatizadas.
Quanto ao terceiro objeto do urbanismo, qual seja, a legislação, tem-
-se que os condomínios fechados inexistem na legislação, segundo a qual
o parcelamento do solo urbano pode ser feito na forma de loteamento e
de desmembramento, com a obrigatoriedade de oferecimento do siste-
ma de circulação, equipamentos urbanos e comunitários (equipamentos
públicos de educação, cultura, saúde e lazer) e espaços livres para uso
público, definidos e mensurados em relação à densidade de ocupação do
empreendimento48.

1800
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Em conformidade com Silva49, condomínios fechados não se tratam


de parcelamento urbanístico do solo; constitui modalidade especial de
aproveitamento condominial de espaço para fins de construção de casas
residenciais térreas ou assobradadas ou edifícios, que vem criando sérios
problemas jurídico-urbanísticos por falta de regulamentação adequada.
Pessoa, apud, Silva50, afirma que as questões suscitadas por essa modali-
dade imobiliária são: a ocorrência de praças e ruas particulares; possibi-
lidade de bloquear o acesso ao condomínio aos comuns do povo, através
de porta ou portaria; impedir a passagem para a praia.
Os condomínios fechados não podem ser regidos pelas regras de
condomínio de puro interesse privado; é indispensável estabelecer uma
legislação que os inclua como uma espécie de loteamento que, além da
dimensão civil (quanto às relações negociais sobre parcelas de terrenos),
abranja uma dimensão urbanística, devido às suas características de
instrumentos de desenvolvimento urbano e de urbanificação, passando
a existir o que Silva51 denomina “condomínio urbanístico”.
Freitas52 esclarece que os condomínios fechados não podem utilizar
a Lei nº 4.591/ 1964, que dispõe sobre o condomínio em edificações e as
incorporações imobiliárias, porque, na realidade, ela trata de parcelamento
de solo comum. Entretanto, os empreendedores de tais condomínios têm
utilizado de forma abusiva os preceitos da Lei nº 4.591/1964, em especial
o seu artigo 8º, estabelecido para possibilitar o aproveitamento de áreas
de dimensão reduzida no interior de quadras, que, sem arruamento, per-
mitam a construção de conjuntos de edificações, em forma de vilas, sob
regime condominial53.
O que ocorre é uma tentativa de definir “roupagem diferente” aos pre-
ceitos da Lei, para se esquivarem das obrigações que são impostas pela
Lei de Parcelamento do Solo, tais como a obrigação de abertura de vias
públicas, implantação de infraestrutura, implantação de áreas verdes e
criação de áreas para implantação de equipamentos públicos54.
Desta forma, afirma Freitas55, que o empreendedor normalmente busca
burlar a legislação iludindo os compradores e o poder público, o qual por

1801
vezes é extremamente omisso em seu dever de fiscalizar os empreendi-
mentos e esclarecer a população.
Scheinowitz considera que a vida urbana pode ser “atrapalhada” por
“leis inadequadamente aplicadas, leis laxistas, representantes da autorida-
de que não têm idéia do que seja organização, que não fiscalizam e que,
em verdade, são amadores no pior sentido da palavra”56.
Vasconcelos57 salienta que os condomínios fechados são ilegais.
Silva58 ressalta que há extrapolação dos limites conferidos pela Lei nº
4.591/1964, quando se realiza o arruamento de glebas e posterior divisão
das quadras em lotes, ou subdivisão de quadras inteiras em lotes, com
aproveitamento das vias de circulação oficial preexistentes. Nesses casos,
ocorre parcelamento urbanístico do solo, o que requer obediência às leis
federais sobre loteamento e leis municipais relativas à matéria urbanística,
de viés público, diferentemente da Lei nº 4.591/1964, de caráter privado.

Tais ‘loteamentos fechados’ juridicamente não existem. Não


há legislação que os ampare, constituem uma distorção e uma
deformação de duas instituições jurídicas: do aproveitamento
condominial de espaço e do loteamento ou do desmembramento.
É mais uma técnica de especulação imobiliária, sem as limita-
ções, as obrigações e os ônus que o direito urbanístico impõe
aos arruadores e loteadores do solo59.

Atualmente existe o Projeto de Lei nº 3.057/2000 destinado a discipli-


nar os condomínios fechados, sob o nome de “condomínio urbanístico”.
Este Projeto de Lei reformula a Lei nº 6.766/1979 e define o condomínio
urbanístico como sendo a divisão de imóvel em unidades autônomas desti-
nadas à edificação, às quais correspondem frações ideais das áreas de uso
comum dos condôminos, sendo admitida a abertura de vias de domínio
privado e vedada a de logradouros públicos internamente ao perímetro do
condomínio. O Projeto de Lei considera os condomínios fechados ilegais60.
Freitas61 lembra ainda que, sejam os condomínios fechados de natu-
reza pública ou privada, devem atender à função social da propriedade,
cabendo ao Poder Público municipal verificar de que forma a propriedade
deverá ser utilizada para atender a essa função social.

1802
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Sendo assim questionamos: aqueles (os condomínios fechados de luxo)


atendem? E este (o Poder Público), verifica?
Vê-se que a mazela urbana no Brasil não está prioritariamente na
falta de leis, mas numa questão política, que ora adequa as disposições
normativas aos interesses escusos das classes dominantes, ora permite
aos agentes imobiliários ludibriar as leis em prol daquele setor da socie-
dade e em prejuízo da classe excluída das benesses do poder econômico.

2.2 Os condomínios fechados de luxo convêm a uma cidade?

Além de problemas de ordem legal-urbanística, os condomínios fe-


chados de luxo ensejam entraves em termos social-urbanísticos, como a
auto-segregação e a exclusão.
De acordo com Vasconcelos62, a palavra segregação transmite a ideia
de cercamento, consistindo a “auto-segregação” em processo pelo qual
determinados grupos sociais preferem se separar dos demais em decor-
rência de razões de ordem étnica, religiosa, cultural, econômica, entre
outras. Segundo o autor, os condomínios fechados configuram formas
mais recentes de auto-segregação. “Exclusão”, Vasconcelos63 entende
tratar-se de rejeição física, como ocorre com o racismo; geográfica, com
a formação dos guetos; e material, quando se consideram questões de
natureza econômica, sendo, a exclusão, considerada sinônimo de bani-
mento e de expulsão.
Verifica-se que os processos de auto-segregação e de exclusão ocorrem
quando da implantação de condomínios fechados de luxo nas cidades
brasileiras64. Sangodeyi-Dabrowski65 esclarece que, no espaço da cidade,
os grupos sociais estão separados pelos muros e dispositivos de segu-
rança, onde não há circulação se não houver razões para interação nas
áreas comuns.
Henrique66considera que os condomínios fechados instigam os desejos
humanos, garantindo uma pseudoexclusividade, e, no que se refere aos
empreendimentos de luxo, negam que o público geral possa ter acesso

1803
aos imóveis, à medida que sua aquisição requer o dispêndio de altos va-
lores monetários. Do ponto de vista geográfico, o autor os define como
territórios excludentes.

A conflitividade inerente a essas novas formas de produção do


espaço construído se expressa no aumento da insegurança ur-
bana, seguida por novas formas de controle e regulação privada
do espaço, nas quais os dispositivos privados de segurança,
articulados à oferta do mercado imobiliário, reorganizam o
padrão do convívio das cidades, gerando formas particulares de
segregação espacial e social67.

A segurança configura principal motivo que leva o mercado imobiliário


a idealizar condomínios fechados que, adicionalmente, possuem caráter
de auto-suficiencia. Via de regra, são empreendimentos luxuosos e exclu-
sivistas, que visam possibilitar aos seus moradores necessitar cada vez
menos se correlacionar com o mundo exterior.
O principal foco de venda dos condomínios fechados de luxo, segundo
Henrique68, está no mercado internacional, ressaltando que a ocupação do
espaço litorâneo nordestino pelo mercado imobiliário internacional tem
provocado expulsão e exclusão das comunidades locais dos benefícios
advindos do desenvolvimento socioespacial.
Conforme Carvalho e Pereira69, nas metrópoles brasileiras, está havendo
o crescimento do “turismo-imobiliário” nos espaços metropolitanos da orla
atlântica, com a implantação de equipamentos e serviços de consumo,
cultura e lazer que se somam ao surgimento de um segmento imobiliário
de segunda residência para europeus.
Esta realidade é preocupante. Sobretudo porque, a cidade passa a ser
considerada enquanto mercadoria e não mais como ambiente de convívio
dos cidadãos. À medida que o valor de uso subordina-se ao valor de troca
e a mercadoria generaliza-se no urbano, a cidade e a realidade urbana
tendem a ser destruídas, pois a cidade não é vivida em sua totalidade,
e sim fragmentariamente e através de crescentes constrangimentos a
seus habitantes70.

1804
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Se a cidade é palco de oportunidades, é também espaço de


conflito e exclusão. Com a exclusão e o aumento das desigual-
dades torna-se anticidade, lócus de cerceamento, interdições,
segregação e pobreza. A pergunta sobre qual cidade a maioria
dos residentes quer é (...) recorrente. Um espaço mais perme-
ável à criação humana, ao encontro, ao usufruto de todos, aos
eventos em instalações e equipamentos leves? Ou um espaço
mais rígido, menos suscetível a flexibilidade, que venha consa-
grar ocupações e usos tradicionais, monumentais, pesados em
termos paisagísticos?71.

Neste sentido, presume-se que os condomínios fechados de luxo con-


vêm aos “nobres”, prováveis compradores, que almejam obter exclusivida-
de, segurança e conforto; ao mercado imobiliário, que muito vem lucrando
com tais empreendimentos; aos poderes públicos, que fazem “vista grossa”
e agem de forma permissiva, munindo-se do questionável e enfadonho
discurso “dos esforços pelo desenvolvimento econômico e progresso da
cidade”.... Mas, certamente, não convém aos milhares de habitantes das
cidades que não auferem qualquer vantagem, senão prejuízos e limitações
provenientes de tais empreendimentos, tanto quanto à cidade como um
todo, ate então entendida como local de heterogeneidade, trocas e fluxo.

3. CONDOMÍNIOS FEChADOS DE LUXO EM SALVADOR:


INDAGAÇÕES ACERCA DA EMERGÊNCIA DE ANTICIDADE

A cidade de Salvador, entre os anos de 1940 e 1950, devido, sobretudo,


a um processo migratório intenso, sofreu crescimento demográfico e gerou
modificação da sua estrutura espacial, em decorrência de fatores como
a reestruturação funcional do centro da cidade. Este processo ensejou a
expansão para a periferia urbana72. Nos anos de 1980 iniciou-se o delinear
de um novo centro urbano na cidade, com a construção da Avenida Para-
lela, do Centro Administrativo da Bahia, da nova Estação Rodoviária e do
Shopping Iguatemi, impulsionado por grandes empreendimentos públicos
e privados realizados na década anterior. Essa mudança de localização
do centro urbano direcionou a expansão urbana no sentido da orla norte
e contribuiu para o gradativo esvaziamento do centro tradicional73.

1805
A ampliação dos investimentos imobiliários na região metropolitana de
Salvador desencadeou na construção de empreendimentos habitacionais
mais qualificados no setor. Um exemplo é o “Vilas do Atlântico”, projetado
como novo conceito de moradia, que associava uma vida saudável inte-
grada à natureza, idealizando comunidade homogênea que viveria longe
da criminalidade e de outros males urbanos. A partir de então, diversos
loteamentos e condomínios fechados passaram a se instalar na região,
atraindo segmentos de média e alta renda74.
Atualmente, Salvador apresenta-se enquanto uma metrópole nacional,
detentora de grande potencial turístico, devido, sobretudo, ao fato de dispor
de diversificada riqueza natural. Vem incrementando crescentemente a
metropolização turística, destacando-se no cenário nacional e mundial75.
No que se refere ao fomento do turismo na Bahia, tem-se que, em 1973,
foi elaborado o primeiro plano turístico para o Estado, além de planos
de cunho urbanístico e regional, que incluíam a recuperação de bairros
históricos de Salvador, e o planejamento de vários trechos da sua orla
marítima (Plano da Orla Marítima)76.
Com quase 3 milhões de habitante, 3ª capital do Brasil, Salvador dispõe
de aproximadamente 14% de áreas aptas a novas ocupações habitacio-
nais – o que demonstra a existência de déficit habitacional –, além de
estar sofrendo gradativo aumento nos seus índices de violência. Estes
dados demonstram que a cidade apresenta dois vetores de estruturação
do espaço urbano: as favelas (ou ocupações espontâneas), e os condomí-
nios fechados. Ambos se destacam por explicitar as tensões sociais que
caracterizam a ocupação desigual do espaço da cidade e as contradições
entre a dimensão do público e do privado77.
Setores como o da Avenida Paralela, Horto Florestal, Iguatemi, Orla
Atlântica, entre outros, estão sendo apropriados pelo mercado imobiliário,
muitos com capital estrangeiro, produzindo loteamentos – muitos dos
quais, destinados à construção de condomínios fechados – adquiridos
por estrangeiros, sobretudo, portugueses e espanhóis78. Ressalte-se que
grande parte destes imóveis de alto padrão adquiridos por compradores

1806
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nacionais (não soteropolitanos) e estrangeiros, são utilizados apenas em


curtos períodos, para férias, por exemplo, como segunda residência79.
Costa apud Cota e Mol80 salienta que a produção de imóvel para uso
residencial ocorre em função de quem pode comprá-lo, nem sempre em
função de quem precisa dele. Neste ínterim, é cada vez mais comum a
atuação dos poderes públicos incentivando e viabilizando a difusão dos
empreendimentos nos moldes de luxuosos condomínios fechados, sob a
justificativa de promover o desenvolvimento local. Em contrapartida, as
áreas da cidade que não interessam ao mercado imobiliário permanecem
à margem dos investimentos públicos e privados81.
Diante dos fatos, é importante acrescentar que, o atual Plano Diretor de
Salvador (Lei nº 7.400/2008) não impõe limites ao domínio especulativo
do mercado imobiliário que, atua no sentido de moldar a cidade de acordo
com os interesses econômico-turístico internacionais, mesmo que para
isso seja necessário sacrificar os interesses da população local e impor
limites ao seu direito a uma cidade de todos os cidadãos, igualitária em
oportunidades e justa em termos de acesso aos benefícios.

Na esfera política, os municípios têm aprovado Planos Diretores


que viabilizam o investimento do capital imobiliário, impulsio-
nados pelo desejo de aumento de arrecadação de IPTU, pela
criação de novos empregos e pelo recebimento de recursos
oriundos da outorga onerosa, relacionada com a construção de
áreas maiores82.

Ocorre o que Scheinowitz considera uma “falta de filtragem” por parte


tanto dos poderes públicos quanto das normas urbanísticas locais, o que
pode ser interpretado enquanto uma “atitude laxista não digna de uma
grande metrópole que pretende ser dona de seu futuro”83.
Sangodeyi-Dabrowski84 salienta o fato de Salvador ser uma cidade
dual tendo, de um lado, áreas que concentram as classes média e alta e,
consequentemente, a maior parte dos investimentos urbanos e projetos
de urbanização, e, de outro lado, a região periférica, marcada pela dificul-
dade econômica de seus habitantes, que sofrem o desprezo e abandono
por parte dos poderes públicos, que não investem em serviços básicos de

1807
urbanização nesses setores. Em Salvador existem “ilhas da modernidade” e
vastas áreas marcadas pela precariedade, pela pobreza e pela segregação85.
Diante dos fatos, constata-se o emergir de uma anticidade no município
de Salvador, em decorrência da expansão dos condomínios fechados de
luxo, isto porque, estes empreendimentos, dentre outros fatores, criam
rupturas no “tecido urbano” e são responsáveis por obstaculizar ou impe-
dir a livre circulação86. Os condomínios fechados, sobretudo os de luxo,
negam a realidade cotidiana das cidades, que consiste na interação dos
bairros, na diversidade cultural, no encontro de cidadãos nas ruas, praças,
comércio, anulando a experiência da vida pública, múltipla e diversa87.

O boom imobiliário recente que ocorre nas grandes cidades do


país, incluindo Salvador, (...) vem atender a demanda reprimida
das classes médias, mas, por outro lado, tem implicado na ele-
vação dos custos de construção e de valores dos imóveis, o que
traz impactos negativos para a premente produção de imóveis
de interesse social, diante da intensa especulação fundiária sobre
os vazios remanescentes88.

Scheinowitz89 esclarece ser fundamental haver domínio do fator fundi-


ário, conseguido através de zoneamento que objetive o controle do preço
da terra e a preservação de espaços intermediários non edificandi, evitando
o que o autor denomina as “muralhas litorâneas”.
Neste âmbito, faz-se referência à necessidade da existência de políticas
públicas que contemplem, também, a população carente de subsídios,
além da definição de um Plano Diretor de abrangência metropolitana, que
aborde o conjunto de relações da cidade-região90.
Adicione-se, as políticas públicas deveriam priorizar a inclusão social e
abolir qualquer forma de segregação ou exclusão social91, o que não ocorre,
visto que o Estado atua a favor das classes média e alta, desprezando, as
mazelas enfrentadas pela população carente, formando o que Gordilho-
-Souza92 considera “cidades” distintas para “cidadãos” diferenciados.
Observa-se que decorridas quatro décadas das primeiras discussões
acerca de um planejamento para a orla de Salvador, reconhece-se que
a cidade ainda não tem supridas as suas reais necessidades, sobretudo,

1808
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

quando se considera a região costeira, em particular, o litoral norte de


Salvador, incluindo sua região metropolitana, que requerem maiores
cuidados, devido ao fato de configurarem setores de cobiça por parte dos
grandes empreendedores imobiliários. Além disso, a temática referente
aos condomínios fechados de luxo, que são tão frequentes na cidade,
primordialmente, na orla Norte, não é claramente abordada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, verifica-se que os condomínios fechados de luxo,


têm se expandido de forma cada vez mais célere nas metrópoles brasileiras,
munidos do duvidoso anteparo de propostas de segurança e qualidade de
vida junto à natureza mas, em verdade, apropriando-se do solo urbano
de modo indiscriminado, por meio do ludíbrio à legislação urbanística
vigente. Tal tendência é igualmente verificada em Salvador e sua região
metropolitana. Esta prática é concretizada devido, sobretudo, ao fato de
que os planos diretores, assim como os demais dispositivos normativos
urbanísticos, via de regra, padecem de linguagem dúbia, pouco clara e obje-
tiva. Em muitos casos, omitem referencia a aspectos reais e crescentes nas
cidades, como é o caso dos condomínios fechados que, pela complexidade
e dimensão dos impactos que podem causar, deveriam estar previstos nas
leis urbanísticas, além de fiscalizados e limitados pelos Poderes Públicos
locais. Fatores como tais, tornam o corpo de leis e normas de interesse
urbanístico inconsistentes, pouco confiáveis e de raro cumprimento.
Considera-se que os condomínios fechados de luxo vão de encontro
ao conceito de cidade, entendida enquanto espaço público e coletivo,
organização complexa, heterogênea, múltipla, imprevisível, onde estão
presentes diferenças e trocas culturais, sociais, econômicas. Neste sentido,
negam o conceito de cidade e ensejam a formação de anticidade, a partir
do momento em que representam uma realidade de auto-segregação e
exclusão social. Além disso, acentuam as diferenças sociais no espaço
construído, dividem a cidade em pedaços distintos, gerando diferenciação

1809
no direito à cidadania, à moradia digna, à liberdade ir e vir, ao conforto
ambiental. Ademais, a instalação de condomínios fechados de luxo nas
cidades, tem gerado impactos de vizinhança, causado danos à natureza
local. Provoca a expulsão e exclusão das comunidades locais das benesses
do desenvolvimento sócio-espacial.
Diante da problemática suscitada pelos condomínios fechados de luxo,
ressalta-se a postura permissiva que o Poder Público tem assumido, par-
ticularmente, em Salvador, perante tais empreendimentos imobiliários,
possibilitando o delinear de anticidade, contrariando a lógica do urbanismo
democrático, enquanto, na realidade, deveria priorizar a inclusão social
e abolir qualquer forma de exclusão. Cogita-se anticidade, ainda, devido
ao fato de que condomínios fechados intensificam a segregação sócio-
-espacial no urbano, criando obstáculos para o encontro e a reunião de
pessoas, para o consumo coletivo de objetos, de ideias. Os condomínios
fechados, de modo geral, promovem rupturas no tecido urbano e vão de
encontro à diversidade caracterizadora das cidades. Além disso, à medida
que são projetados visando atender ao público estrangeiro e de alto poder
aquisitivo, restringem a possibilidade de construção de habitação popular,
tão indispensável nas metrópoles brasileiras, onde o déficit habitacional e
a consequente proliferação de moradias informais é crescente.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


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Acesso em 20.04.13.
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Nobel, 2012.

NOTAS

1 Mestre em Direito Público (PPGD/UFBA), Especialista em Direito do Estado (FFD/UFBA), UNIVERSIDADE


FEDERAL DA BAHIA (UFBA), Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
UFBA, julipbp@yahoo.com.br
2 Especialista em Direito ambiental (FFD/UFBA), UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (UFBA), Mestranda
pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, rafinhabmcampos@yahoo.com.br
3 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
4 IDEM
5 SAMPAIO, Antônio Heliodório Lima. 10 necessárias falas: cidade, arquitetura e urbanismo. Salvador:
Edufba, 2010.
6 SANGODEYI-DABROWSKI, Delphine. As raízes ideológicas da segregação no Brasil: o exemplo de Salvador.
In: ESTEVES JUNIOR, Milton; URIARTE, Urpi Montoya (orgs.). Panoramas Urbanos: reflexões sobres a cidade.
Salvador: Edufba, p. 165 – 184, 2003.
7 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade. Salvador: Edufba, 2009.;
SANT’ANNA, Mariana Senna. Planejamento Urbano e Qualidade de Vida – da Constituição Federal ao Plano
Diretor. In: DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Lobório (coord.). Direito Urbanístico e
Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, p. 117 – 136, 2011.
8 CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2011.
9 MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do Capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1996.
10 IDEM.
11 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro..., cit.;
DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. Competência constitucional em matéria de urbanismo. In: DALLARI, Adil-
son Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Lobório (coord.). Direito Urbanístico e Ambiental. Belo Horizonte:
Fórum, p. 61 – 93, 2011.
12 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro..., cit.
13 IDEM
14 MATOS, Ralfo Edmundo da Silva. Plano Diretor, gestão urbana e participação: algumas reflexões. In: COSTA,
Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes de (orgs.). Planejamento urbano no Brasil trajetória, avanços
e perspectivas. Belo Horizonte: C/Arte, p. 156-168, 2008.
15 DALLARI, Adilson Abreu. Solo criado – constitucionalidade da outorga onerosa de potencial construtivo. In:
DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Lobório (coord.). Direito Urbanístico e Ambiental.
Belo Horizonte: Fórum, p. 20 – 42, 2011.
16 VILLAÇA, Flávio. Reflexões sobre as cidades brasileiras. São Paulo: Studio Nobel, 2012.
17 MATOS, Ralfo Edmundo da Silva. Plano Diretor, gestão urbana e participação..., cit.,, p. 156.
18 SILVA, José Carlos Alves da. Favelas e meio ambiente urbano. In: DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Da-
niela Campos Lobório (coord.). Direito Urbanístico e Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, p. 223-244, 2011.
19 IDEM
20 MORAES, Isaac Ribeiro de. O processo de urbanização e o estudo prévio de impacto de vizinhança
– EIV. . Disponível em:
<http://www.miniweb.com.br/geografia/artigos/hidrografia/isaac_ribeiro_de_moraes.pdf.> Acesso em
10.10.11.
21 SCHEINOWITZ, A. S. O macroplanejamento da aglomeração de Salvador. Salvador: Secretaria da
Cultura e do Turismo – EGBA, 1998.
22 SAMPAIO, Antônio Heliodório Lima. 10 necessárias falas..., cit.
23 MATOS, Ralfo Edmundo da Silva. Plano Diretor, gestão urbana e participação..., cit.
24 IDEM, p. 157

1813
25 IDEM.
26 FERNANDES, Edésio. Estatuto da Cidade: razão de descrença ou de otimismo? Adicionando complexidades
à reflexão sobre a efetividade da lei. FDUA – Fórum de Direito Urbano e Ambiental. n. 47, 2009, p. 22.
27 VILLAÇA, Flávio. Reflexões sobre as cidades brasileiras..., cit.
28 IDEM
29 SCHEINOWITZ, A. S. O macroplanejamento da aglomeração de Salvador..., cit., p. 147.
30 VILLAÇA, Flávio. Reflexões sobre as cidades brasileiras..., cit.
31 IDEM, p. 189
32 COTA, Daniela Abritta; MOL, Natália Aguiar. Produção imobiliária e regulação urbana em Belo Horizonte
(1997-2002). In: COSTA, Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes de (orgs.). Planejamento urbano no
Brasil trajetória, avanços e perspectivas. Belo Horizonte: C/Arte, p. 229-247, 2008.
33 MATOS, Ralfo Edmundo da Silva. Plano Diretor, gestão urbana e participação..., cit.
34 IDEM, p. 160
35 IDEM, P. 167
36 CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de; PEREIRA, Gilberto Corso. As “cidades” de Salvador. In: CARVALHO,
Inaiá Maria Moreira de; PEREIRA, Gilberto Corso (orgs.). Como anda Salvador e sua região metropolitana.
Salvador: Edufba, p. 81 – 107, 2008.
37 IDEM
38 IVO, Any Brito Leal. Jardins do Éden: Salvador, uma cidade global-dual. Caderno CRh. Salvador, n. 64,
p. 131-146, 2012.
39 CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de; PEREIRA, Gilberto Corso. As “cidades” de Salvador..., cit., p. 97.
40 FREITAS, Willian de Souza. A impossibilidade jurídica da instituição do loteamento fechado. In: DALLARI,
Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Lobório (coord.). Direito Urbanístico e Ambiental. Belo Hori-
zonte: Fórum, p. 245 – 267, 2011.
41 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit.
42 IVO, Any Brito Leal. Jardins do Éden: Salvador, uma cidade global-dual..., cit.
43 IDEM, p. 133
44 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro..., cit.
45 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit.
46 CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de; PEREIRA, Gilberto Corso. As “cidades” de Salvador..., cit.; HENRIQUE,
Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit.
47 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit.
48 IVO, Any Brito Leal. Jardins do Éden: Salvador, uma cidade global-dual..., cit.
49 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro..., cit.
50 IDEM
51 IDEM
52 FREITAS, Willian de Souza. A impossibilidade jurídica da instituição do loteamento fechado..., cit.
53 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro..., cit.
54 FREITAS, Willian de Souza. A impossibilidade jurídica da instituição do loteamento fechado..., cit.
55 IDEM
56 SCHEINOWITZ, A. S. O macroplanejamento da aglomeração de Salvador..., cit., p. 71
57 VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Processo e formas sócio-espaciais das cidades: propostas para avançar
no debate. In: SILVA, Sylvio Bandeira de Melo e (org.). Estudos sobre dinâmica territorial, ambiente e
planejamento. João Pessoa: Grafset, 2011.
58 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro..., cit.
59 IDEM, p. 347
60 IDEM
61 FREITAS, Willian de Souza. A impossibilidade jurídica da instituição do loteamento fechado..., cit.
62 VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Processo e formas sócio-espaciais das cidades..., cit.
63 IDEM
64 CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de; PEREIRA, Gilberto Corso. As “cidades” de Salvador..., cit.
65 SANGODEYI-DABROWSKI, Delphine. As raízes ideológicas da segregação no Brasil..., cit.
66 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit.
67 IVO, Any Brito Leal. Jardins do Éden: Salvador, uma cidade global-dual..., cit., p. 134
68 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit.
69 CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de; PEREIRA, Gilberto Corso. As “cidades” de Salvador..., cit.
70 LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. Tradução: Rubens Eduardo Frias. 5.ed. São Paulo: Centauro, 2011.
71 MATOS, Ralfo Edmundo da Silva. Plano Diretor, gestão urbana e participação..., cit., p. 160.
72 CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de; PEREIRA, Gilberto Corso. As “cidades” de Salvador..., cit.
73 SCHEINOWITZ, A. S. O macroplanejamento da aglomeração de Salvador..., cit.

1814
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

74 CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de; PEREIRA, Gilberto Corso. As “cidades” de Salvador..., cit.
75 SILVA, Sylvio Bandeira de Mello; SILVA, Barbara-Christine Nentwig; CARVALHO, Silvana Sá de Carvalho.
Metropilização e turismo no litoral norte de Salvador: de um deserto a um território de enclaves?. In: CARVALHO,
Inaiá Maria Moreira de; PEREIRA, Gilberto Corso (orgs.). Como anda Salvador e sua região metropolitana.
Salvador: Edufba, p.189-211,2008.
76 SCHEINOWITZ, A. S. O macroplanejamento da aglomeração de Salvador..., cit.
77 IVO, Any Brito Leal. Jardins do Éden: Salvador, uma cidade global-dual..., cit.
78 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit.
79 SILVA, Sylvio Bandeira de Mello; SILVA, Barbara-Christine Nentwig; CARVALHO, Silvana Sá de Carvalho.
Metropilização e turismo no litoral norte de Salvador..., cit.
80 COTA, Daniela Abritta; MOL, Natália Aguiar. Produção imobiliária e regulação urbana..., cit.
81 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit.
82 IDEM, p. 161
83 SCHEINOWITZ, A. S. O macroplanejamento da aglomeração de Salvador..., cit., p. 107
84 SANGODEYI-DABROWSKI, Delphine. As raízes ideológicas da segregação no Brasil..., cit.
85 CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de; PEREIRA, Gilberto Corso. As “cidades” de Salvador..., cit.
86 VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Processo e formas sócio-espaciais das cidades..., cit.
87 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit.
88 GORDILHO-SOUZA, Angela. Limites do habitar: segregação e exclusão na configuração urbana contem-
porânea de Salvador e perspectivas no final do século xx. 2. ed. Salvador: Edufba, 2008, p. 435
89 SCHEINOWITZ, A. S. O macroplanejamento da aglomeração de Salvador..., cit.
90 GORDILHO-SOUZA, Angela. Limites do habitar..., cit.
91 SILVA, José Carlos Alves da. Favelas e meio ambiente urbano..., cit.,
92 GORDILHO-SOUZA, Angela. Limites do habitar..., cit.

1815
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Dispensa de reserva de área


institucional em projetos de
loteamento: o caso do Projeto
de Lei Complementar 13/2012
no Município de Piracicaba-SP.1

Roberto Braga2
Denise Helena Baldisseri3

1. INTRODUÇÃO

A reserva de áreas institucionais em loteamentos urbanos é impor-


tante para a manutenção da qualidade de vida no processo de crescimento
urbano, para a qual a disponibilidade de áreas púbicas para a implantação
de equipamentos comunitários e de áreas verdes é fundamental. Portanto
tais áreas cumprem um papel importante não só para os futuros morado-
res dos loteamentos, mas para a cidade como um todo, na medida quem
que a sua supressão geraria um aumento na demanda em outras áreas, o
que, além de sobrecarregar os equipamentos existentes, geraria também
pressões negativas sobre a mobilidade urbana. Assim sendo, a reserva
dessas áreas em projetos de loteamento se coaduna com o princípio geral
constitucional da política urbana que é a garantia do direito à cidade e do
bem estar de seus habitantes.
O presente trabalho discute o caso do Projeto de Lei Complementar
(PLC) 013/2012, que Autoriza a Prefeitura do Município de Piracicaba a
aprovar os loteamentos “Condomínio Terramérica Home Premium – Taquaral
I” e “Jardim América”, implantados nos Bairros Taquaral e Nova Piracicaba,
dispensando a reserva de área institucional, mediante compensação por
permuta com terrenos localizados em outro bairro da cidade.4

1817
A legislação municipal de parcelamento do solo (Lei Complementar nº
207/2007) determina que os projetos de loteamentos para fim residencial
devem reservar o percentual de 5% da área total do empreendimento (ex-
cluída a Área de Preservação Permanente – APP - quando houver) a serem
doadas para a Prefeitura Municipal para a implantação de equipamentos
comunitários. Essas áreas constituem 15.903,715 m2 para o loteamento
“Condomínio Terramérica Home Premium – Taquaral I”, e 4.370,045 m2
para o loteamento “Jardim América”, perfazendo o total de 20.273,76 m2.
Pelo processo autorizado pelo PLC 013/2012, a Prefeitura Municipal
dispensaria a reserva de áreas institucionais dos dois loteamentos em
troca da doação de duas partes de um imóvel localizado no Bairro Chicó,
na periferia sul da cidade, uma com 34.024,57 m2, e outra com 98.317,13
m2, perfazendo um total de 132.341,70 m2. O PLC 013/2012 também
autorizaria o Município a afetar 20.300 m2 dessa área para destinação à
implantação de Equipamentos Comunitários, ficando os 112 mil m2 res-
tantes com destinação aberta.

2. AS áREAS INSTITUCIONAIS EM
PROJETOS DE LOTEAMENTO

A obrigatoriedade da reserva de áreas destinadas à implantação de


equipamentos sociais em projetos de loteamentos, as chamadas áreas
institucionais, foi definida em 1979 pela Lei Federal 6.766, também co-
nhecida como Lei Lehmann. Esta lei determinava originalmente que os
loteamentos deveriam obrigatoriamente reservar, no caso de loteamentos
residenciais, o percentual de 35% da gleba para a implantação de sistema
viário, de equipamentos urbanos e comunitários, bem como de espaços
livres de uso público.
Muito embora a Lei Lehmann estabelecesse que os percentuais específi-
cos para cada modalidade de uso devessem ser definidos pelos municípios
em função da densidade de ocupação, as leis municipais de parcelamento
adotaram uma proporcionalidade fixa, estabelecendo usualmente o requi-

1818
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sito mínimo de 10% para os espaços livres de uso público (área verdes) e
5% para as áreas institucionais (equipamentos urbanos e comunitários).
Em 1999, com a Lei Federal 9.785/99, a exigência do percentual mínimo
de 35% foi revogado, ficando os municípios livres para definirem os per-
centuais para essas áreas.
No município de Piracicaba, o parcelamento do solo urbano é regi-
do pela Lei Complementar 207/2007, que determina a destinação do
percentual mínimo de 5% da área total da gleba (excluídas as áreas de
preservação permanente) à implantação de Equipamentos Comunitários,
podendo tal percentual ser ampliado em função da densidade de ocupa-
ção. A lei determina também que as áreas institucionais deverão possuir
declividade inferior a 10%.

3. A DISPENSA DA RESERVA DE áREAS


INSTITUCIONAIS EM PROJETOS DE LOTEAMENTOS

A reserva de áreas institucionais em projetos de loteamento é obriga-


tória e sua dispensa não está prevista objetivamente em nenhuma outra
lei. No entanto, o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) ao instituir a figura
da Operação Urbana Consorciada abre espaço para essa possibilidade.
Esse tipo de operação consiste em intervenções e medidas coordenadas
pelo poder público municipal, com a participação do setor privado (pro-
prietários, empreendedores e investidores) nas quais o setor público pode
modificar índices e características de parcelamento, de uso e ocupação
do solo ou normas edilícias, como contrapartida à intervenções ou ações
do setor privado de interesse da coletividade, considerando o impacto
ambiental decorrente.
Assim sendo, em tese, a municipalidade poderia reduzir a zero o per-
centual de áreas institucionais em um projeto específico de loteamento,
tendo como contrapartida uma melhoria social ou ambiental promovida
pelo loteador, que fosse considerada de interesse público.
Para Maricato e Ferreira (2002) a operação urbana consorciada é uma

1819
modalidade de parceria público-privada cuja implantação tem gerado
certa polêmica na medida em que, ao mesmo tempo em que pode trazer
melhorias sociais e ambientais, pode também ser fonte de operações
imobiliárias lucrativas, em detrimento do interesse público. Nesse último
aspecto, vale citar o caso da Operação Urbana Faria Lima, instituída no
final da década de 1990 na cidade de São Paulo, cujo beneficiário maior foi
o capital imobiliário. Assim, uma operação urbana só pode ser justificada
na medida em que traga efetivamente benefícios sociais e ambientais
para a cidade e que haja um equilíbrio entre o benefício público e o ganho
privado resultantes.
No município de Piracicaba, o Plano Diretor (Lei Complementar
186/2006) também prevê a possibilidade da realização de Operações Ur-
banas Consorciadas. Nesse caso, a lei específica que aprovar a operação
deverá conter, conforme seu artigo 150:

I - definição da área a ser atingida;


II - coeficiente máximo de aproveitamento da Operação Urbana;
III - critério e limites de estoque de potencial construtivo;
IV - programas e projetos básicos de ocupação da área;
V - programa de atendimento econômico e social para a
população diretamente
afetada pela operação;
VI - solução habitacional dentro do seu perímetro ou vizinhança
próxima, nos casos
de remoção dos moradores de favelas;
VII - finalidades da operação;
VIII - Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e, quando
necessário, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA);
Ix - contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários
permanentes e investidores privados, em função da utilização
dos benefícios previstos no art. 146 da
presente Lei Complementar;
x - forma de controle e monitoramento da operação, obrigato-
riamente compartilhado
com representação na sociedade civil;
xI - conta ou fundo específico que deverá receber os re-
cursos de contrapartidas financeiras decorrentes dos benefícios
urbanísticos concedidos.

Desse modo, a dispensa de reserva de área institucional em projeto de


loteamento só é possível mediante Operação Urbana Consorciada, confor-
me o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor Municipal e por força de uma

1820
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

lei específica para cada caso, em que deverá haver interesse público com-
provado e considerando os impactos urbanísticos e ambientais gerados.

4. ESTUDO DE CASO

Piracicaba é uma cidade paulista de porte médio, com 370 mil habitan-
tes, e localizada a 170 km da Capital do Estado, na região administrativa
de Campinas. Na última década vem apresentando forte expansão do
mercado imobiliário associada à tendência nacional e ao crescimento
econômico industrial que vive o município.
Em novembro de 2012, a Prefeitura Municipal de Piracicaba encami-
nhou projeto de Lei Complementar (PLC 13/2012) à Câmara Municipal
autorizando a dispensa do percentual de 5% destinado à implantação de
equipamentos comunitários em dois projetos de loteamentos, o “Condo-
mínio Terramérica Home Premium – Taquaral I”, no Bairro Taquaral e o
“Jardim América”, no Bairro Nova Piracicaba. Como compensação pela
dispensa das áreas institucionais, os loteadores doariam à municipalidade
duas áreas localizadas no Bairro Chicó (ver Figura 1).

Figura 1 – Localização das áreas de estudo.

1821
As áreas institucionais dispensadas nos loteamentos totalizariam 20,2
mil m2 e as áreas a serem doadas em compensação totalizariam 127,3
mil m2 (ver tabela 1). À primeira vista, a permuta seria vantajosa para
o município, que ganharia uma área seis vezes maior do que a original.

Tabela 1 – áreas institucionais e de


compensação previstas no PLC 13/2012.

A Municipalidade justificou a proposta de permuta alegando que o


projeto seria de interesse público em função de:

1) A área a ser doada ao Município de Piracicaba situada no Bairro


Chicó seria muito superior à reserva legal que seria destinada
originalmente nos projetos dos loteamentos (6,5 vezes maior).
2) Nessa nova área seria possível destinar área equivalente aos
projetos originais para a implantação de equipamentos comu-
nitários (20.300 m2).
3) Restariam para a Prefeitura, ainda, 112.067,94 m2, que pode-
riam ser destinados à implantação de outros equipamentos de
interesse público, ou mesmo habitações populares do programa
Minha Casa Minha Vida.

Não obstante os argumentos da municipalidade, o PLC 13/2012 não


conduz o processo de acordo com as determinações do Plano Diretor do
município. O instrumento adotado não é a Operação Urbana Consorcia-
da, mas uma simples operação de permuta entre os empreendedores e
a prefeitura, o que não é admissível. No entanto, mesmo que o referido
projeto de lei utilizasse o instrumento da Operação Urbana, ainda assim a
operação apresentaria problemas quanto à valorização social e ambiental
resultante do acordo, bem como do equilíbrio econômico da operação,
como se pode observar adiante.

1822
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

4.1. A aptidão à urbanização das áreas


a serem doadas em compensação.

As áreas que seriam doadas em compensação situam-se no Bairro


Chicó, entre o Ribeirão Piracicamirim e os bairros Residencial Água Bran-
ca (I e II), Jardim Oriente e Residencial Serra Verde (ver Figura 2). Essas
áreas são ocupadas por vegetação natural e canaviais (ver Figuras 3 e 4)
e situam-se na várzea (leito maior e menor da calha fluvial) do Ribeirão
Piracicamirim, sendo que cerca de 30% das mesmas são Áreas de Preser-
vação Permanente (APPs), portanto inaptas à quaisquer tipos de edificação.

Figura 2: Localização aproximada das áreas 1 e 2 em consideração para permuta no Bairro Chicó.
Área 1 - 98.317,13 m2
Área 2 – 34.024,57 m2
Fonte: http:// www.Google Earth.com. (Acessado em 03/04/2013)

1823
Conforme pôde ser verificado, por meio de análise de material carto-
gráfico, visitas de campo e depoimento de moradores, tais áreas sofrem
inundações periódicas devido à própria dinâmica fluvial do Ribeirão Pira-
cicamirim, bem como em função do tipo de solo e vegetação ali presentes.
Desse modo, essas áreas possuem severas restrições à urbanização, o
que as torna inadequadas à implantação de Equipamentos Comunitários
ou mesmo de habitações populares, fatos que contrariam os argumentos
propostos pela Municipalidade para a aprovação do PLC 13/2012.

Figura 3: Bairro Chicó (fotos da área 1), margem esquerda do Ribeirão Piracicamirim.
Fotos: Roberto Braga. Data: 30/03/2013

1824
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Figura 4: Bairro Chicó (fotos da área 2), margem esquerda do Ribeirão Piracicamirim.
Fotos: Roberto Braga. Data: 30/03/2013

4.2. Sobre a equivalência econômica da operação

Assim como as áreas que seriam oferecidas em permuta às áreas ins-


titucionais dos loteamentos não se configuram como áreas adequadas à
urbanização, também não se observa equilíbrio econômico na operação.
Conforme se pode observar na tabela 2, as áreas institucionais possuem
valor de mercado superior às áreas que seriam doadas em compensação.

1825
Tabela 2 – Valor estimado das áreas
institucionais e de compensação

* estimativa feita pelos autores com base nos valores médios para os bairros em questão anunciados divul-
gados pelo mercado imobiliário local
** estimativa feita pela Prefeitura

Percebe-se que a operação beneficiaria de maneira desproporcional


os empreendedores, ficando a municipalidade com o ônus de uma área
desvalorizada e pouco adequada à urbanização.

5. CONCLUSÕES

O processo de dispensa de áreas institucionais em projeto de lotea-


mentos pretendido pela Prefeitura Municipal de Piracicaba, por meio do
PLC 013/2012, revelou-se repleto de irregularidades, a saber:
Primeiramente, o não cumprimento do Estatuto da Cidade e do Plano
Diretor Municipal ao não utilizar o instrumento da Operação Urbana Con-
sorciada, único meio possível para operações desta natureza.
Em segundo lugar, as áreas a serem doadas em compensação apre-
sentavam sérias restrições à urbanização, comprometendo a viabilidade
urbanística e ambiental da permuta.
Em terceiro lugar não ficou demonstrado o equilíbrio econômico da
operação, antes pelo contrário, na medida em que haveria uma vantagem
econômica desproporcional para os empreendedores.
Tais conclusões compuseram um parecer apresentado pelos autores à
Câmara Municipal de Piracicaba, que resultou no arquivamento do referido
Projeto de Lei Complementar.

1826
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Este caso exemplifica a importância da participação cidadão na con-


dução da política urbana, sem a qual, tanto o Estatuto da Cidade, quanto
os Planos Diretores Municipais tendem a tornar-se letra morta. Do mesmo
modo, fica evidenciada a necessidade de controle social em operações
que envolvam parceria público privado, como é o caso das operações
urbanas consorciadas.
O caso aqui analisado exemplifica também uma das tendências ne-
gativas da proliferação dos loteamentos fechados, que é a diminuição da
oferta de áreas institucionais nas cidades brasileiras embora, no caso em
questão, não se tenha concretizado devido aos problemas apontados.

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NOTAS

1 Trabalho desenvolvido com apoio da FAPESP (Processo 2013/02853-0)


2 Professor Adjunto do Departamento de Planejamento Territorial e Geoprocessamento da UNESP/Campus
de Rio Claro, rbraga@rc.unesp.br.
3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UNESP/Campus de Rio Claro, debaldisseri@
yahoo.com.br.
4 As análises contidas no presente trabalho compuseram um parecer encaminhado pelos autores à Câmara
Municipal de Piracicaba, que resultou no arquivamento do PLC 013/2012.

1827
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O Estatuto da Cidade e a (in)eficácia


do planejamento participativo. Uma
necessária releitura dos instrumentos
de participação popular nos Planos
Diretores Brasileiros

João Telmo de Oliveira Filho1


Carla Portal Vasconcellos2

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo discutir elementos da política


urbana previstos nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal e no Es-
tatuto da Cidade (Lei 10.257/01)3, especialmente os referentes à “gestão
democrática da cidade”, em processos como os de elaboração e revisão
de planos diretores municipais, bem como na realização de audiências
e consultas públicas em questões vinculadas ao planejamento urbano.
Com a conformação do capítulo da política urbana na Constituição Fe-
deral de 1988 e a edição do Estatuto da Cidade em 2001 muito se avançou
no sentido de promover a democratização do planejamento especialmente
nos processos de elaboração e revisão dos planos diretores. Entretanto,
a realidade tem demonstrado uma série de dificuldades em promover e
qualificar a efetiva participação das populações.
Este artigo inicia com breves referências sobre a constitucionalização
da política urbana até a edição do Estatuto da Cidade em 2001 detalhan-
do os processos previstos no Estatuto e nas orientações da Resolução 25
do Conselho das Cidades e, por fim, apresentar discutir a efetividade dos
processos participativos na elaboração e gestão dos planos diretores bra-
sileiros. O objetivo deste artigo é, assim, promover uma discussão acerca
dos instrumentos de participação disponibilizados pelo Estatuto da Cidade
e da necessidade de revisão e atualização de alguns destes instrumentos.

1829
2. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA POLÍTICA
URBANA E A EDIÇÃO DO ESTATUTO DA CIDADE

As práticas históricas de planejamento urbano no Brasil fundadas no


modelo intervencionista, tecnocrático e autoritário não acompanham as
mudanças políticas e culturais do país no período pós-redemocratização.
O modelo tradicional de planejamento entra em declínio no país no fim
da década de 1980, pela crise fiscal e as dificuldades econômicas, bem
como pelo próprio desinteresse político nas questões que envolvem o
planejamento urbano.
A necessidade promover alterações na forma de governar e planejar as
cidades e a pressão de profissionais e dos movimentos sociais na Assem-
bléia Nacional Constituinte fez com que na Constituição Federal de 1988
fosse formatado um capítulo específico para tratar do tema da “política
urbana”. Conforme disposto no artigo 182, a política de desenvolvimento
urbano deve ser fundada nos princípios da função social da cidade e da
propriedade urbana e que terá suas diretrizes previstas em lei.
Com base no artigo 24, inciso I, a União, no âmbito da competência
concorrente sobre direito urbanístico, tem como atribuição estabelecer as
normas gerais de direito urbanístico por meio de lei federal de desenvolvi-
mento urbano, que deve conter as diretrizes do desenvolvimento urbano
e regional, os objetivos da política urbana nacional, a regulamentação
dos artigos 182 e 183 da Constituição, além de instituir os instrumentos
urbanísticos e o sistema de gestão desta política.

“ Constituição da República Federativa do Brasil


(...)
Art. 182 A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder
Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei tem por
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem estar de seus habitantes. (grifei)

O Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10.07.2001) é a lei federal de desen-


volvimento urbano exigida constitucionalmente. O Estatuto regulamenta

1830
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

os instrumentos de política urbana que devem ser aplicados tanto pela


União, como pelos Estados e Municípios e que passa a servir de diretriz
para o planejamento e gestão das cidades.
Ao mesmo tempo, as diretrizes gerais da política urbana fixadas pelo
artigo 182, § 1º e depois pelo Estatuto da Cidade obrigam os municípios
com mais de vinte mil habitantes, municípios integrantes das regiões
metropolitanas e aglomerações urbanas, áreas de interesse turístico e
de empreendimentos de impacto ambiental a que tenham seus “novos”
planos diretores aprovados ou revisados até outubro de 2006, prazo pos-
teriormente alterado para junho de 2008.

3. O ESTATUTO DA CIDADE, A RESOLUÇÃO 25 DO


CONSELhO NACIONAL DAS CIDADES E A EXPLICITAÇÃO
DO PRINCÍPIO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

O princípio da democracia participativa está inserido no artigo 1°,


parágrafo único da Constituição brasileira que acolhe os postulados da
democracia representativa e participativa. Em que pese o sistema repre-
sentativo ser o elemento nuclear do conceito de democracia – expressão do
princípio da maioria, o texto constitucional acabou por estabelecer a com-
patibilidade entre democracia representativa e democracia participativa,
de forma que estas não se excluem ou concorrem, mas se complementam.
O planejamento urbano proposto pelo Estatuto da Cidade insere-se na
dimensão participativa: A redação do inciso II, do artigo 2°, do Estatuto da
Cidade aponta a participação popular como diretriz fundamental dentro
do sistema de gestão democrática proposto.

Artigo 2°
(...)
II - gestão democrática por meio da participação da população e de
associações representativas dos vários segmentos da comunidade,
na formulação e acompanhamento dos planos, programas e projetos
de desenvolvimento urbano;

1831
O Estatuto prevê uma série de instrumentos para a efetivação do princí-
pio da democracia participativa como a obrigatoriedade da ocorrência
de audiências e consultas públicas, na elaboração e gestão do
plano diretor e no acesso público a todas as informações dos processos,
conforme disposto no artigo 40, § 4o 4. (grifei)

Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento


básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
(...)
§ 4o No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de
sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais
garantirão:
I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação
da população e de associações representativas dos vários segmentos
da comunidade;
II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;
III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informa-
ções produzidos.

A instrumentalização normativa da participação popular nos planos


diretores municipais é uma questão bastante complexa. O princípio da
participação popular, nos termos do Estatuto da Cidade, instrumentaliza-se
através de audiências e de consultas públicas, processo que é detalhado
na Resolução 25 do Conselho Nacional das Cidades:

Art. 3º O processo de elaboração, implementação e execução do


Plano Diretor deve ser participativo, nos termos do art. 40, § 4º
e do art. 43 do Estatuto da Cidade.
§1º A coordenação do processo participativo de elaboração do
Plano Diretor deve ser compartilhada, por meio da efetiva parti-
cipação de poder público e da sociedade civil, em todas as etapas
do processo, desde a elaboração até a definição dos mecanismos
para a tomada de decisões.
(...)
Art. 4º No processo participativo de elaboração do plano diretor,
a publicidade, determinada pelo inciso II, do § 4º do art. 40 do
Estatuto da Cidade, deverá conter os seguintes requisitos:
I – ampla comunicação pública, em linguagem acessível, através
dos meios de comunicação social de massa disponíveis;
II- ciência do cronograma e dos locais das reuniões, da apre-
sentação dos estudos e propostas sobre o plano diretor com
antecedência de no mínimo 15 dias;
III- publicação e divulgação dos resultados dos debates e das
propostas adotadas nas diversas etapas do processo.

1832
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Conforme os artigos sexto e sétimo da Resolução, na elaboração do


plano diretor as deliberações das audiências públicas devem ser conside-
radas quando da discussão e aprovação do plano diretor.

Art.6º O processo participativo de elaboração do plano diretor


deve ser articulado e integrado ao processo participativo de ela-
boração do orçamento, bem como levar em conta as proposições
oriundas de processos democráticos tais como conferências,
congressos da cidade, fóruns e conselhos.
(...)
Art.7º No processo participativo de elaboração do plano diretor
a promoção das ações de sensibilização, mobilização e capaci-
tação, devem ser voltadas, preferencialmente, para as lideranças
comunitárias, movimentos sociais, profissionais especializados,
entre outros atores sociais.

Na leitura dos dispositivos do Estatuto da Cidade e da Resolução 25 do


Conselho das Cidades a aprovação pública dos planos diretores participa-
tivos pressupõe a prévia e obrigatória realização obrigatória de audiências
e/ou de consultas públicas. O funcionamento das audiências públicas e
amplamente detalhado no artigo oitavo da Resolução:

Art. 8º As audiências públicas determinadas pelo art. 40, § 4º,


inciso I, do Estatuto da Cidade, no processo de elaboração de
plano diretor, têm por finalidade informar, colher subsídios, de-
bater, rever e analisar o conteúdo do Plano Diretor Participativo,
e deve atender aos seguintes requisitos:
I – ser convocada por edital, anunciada pela imprensa local ou, na
sua falta, utilizar os meios de comunicação de massa ao alcance
da população local;
II – ocorrer em locais e horários acessíveis à maioria da popu-
lação;
III – serem dirigidas pelo Poder Público Municipal, que após a
exposição de todo o conteúdo, abrirá as discussões aos presentes;
IV – garantir a presença de todos os cidadãos e cidadãs, indepen-
dente de comprovação de residência ou qualquer outra condição,
que assinarão lista de presença;
V – serem gravadas e, ao final de cada uma, lavrada a respectiva
ata, cujos conteúdos deverão ser apensados ao Projeto de Lei,
compondo memorial do processo, inclusive na sua tramitação
legislativa.

Na prática, os dispositivos do Estatuto e da resolução forçam a imple-


mentação de processos participativos com objetivo de efetivar práticas
de planejamento e gestão urbanas democráticas5. Percebe-se uma clara

1833
disposição legislativa de superação da ideologia autoritária, centralizadora
e paternalista que permeia as práticas de planejamento urbano no país e
obrigando os administradores ao cumprimento das tarefas no sentido de
promover a democratização do planejamento e da gestão.
Podemos considerar a participação popular como fundamento jurí-
dico e normativo do planejamento urbano como um todo e nos planos
diretores em especial. Entretanto, muitos destes requisitos tidos como
obrigatórios raramente têm sido cumpridos na elaboração dos planos
diretores municipais6.
Há uma série de argumentos favoráveis aos modelos políticos de
participação popular como evolução do sistema democrático7: Há de se
destacar que promove a reflexão crítica sobre a realidade, o compar-
tilhamento e maior responsabilização sobre o público e os interesses
coletivos, a priorização dos aspectos a partir do olhar do cidadão e dos
seus interesses, o aprendizado e o crescimento da cidadania, do mesmo
modo que evita privilégios a grupos restritos da sociedade e a corrupção
através da transparência dos processos.
As inovações legislativas trazidas pela Constituição Federal e pelo
Estatuto da Cidade e outros dispositivos legislativos ainda são, na práti-
ca, muito limitadas em relação à efetividade da participação popular nos
processos. As administrações municipais embora incorporem, por força
de lei, a idéia da participação popular na elaboração dos planos diretores
e na formalização de “instâncias participativas” como fóruns, conferên-
cias e conselhos, pouco avança, no sentido de ampliar e qualificar esta
participação.
Embora tenha ocorrido a ampliação dos canais de participação como
os Conselhos e órgãos colegiados e a institucionalização dos orçamentos
participativos a partir do Estatuto da Cidade, o resultado desta ampliação
é ambíguo:

é possível sugerir que mesmo nas experiências mais avançadas


de participação popular na gestão pública [...], as duas correntes
históricas do associativismo brasileiro (mais assistencialista ou
mais reivindicatória) continuam presentes e entrelaçadas nas

1834
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

práticas associativas do município. [...] na medida que a corrente


denominada participacionista [...] institucionalizou instâncias
de participação direta na gestão de políticas públicas, o ideário
difuso e híbrido parece se reconstruir e impregnar grande parte
dessas experiências inovadoras e experiências associativas
(RICCI, 2002, p. 69-70).

Conforme COSTA (2008) as experiências brasileiras de planejamento


participativo a nível local têm se institucionalizado mais por exigências
das outras instâncias governamentais (obrigações decorrentes das leis
federais e do repasse dos recursos de órgãos governamentais), do que
por iniciativas próprias, ocasionado um comportamento formalista com a
manipulação dos processos, o que, é somado ao que poderíamos denomi-
nar de “prefeiturização” de instâncias como os conselhos e conferências.
Esta situação de cooptação política das instâncias pelos políticos e
pela burocracia estatal tem fundamento no desconhecimento e na rela-
tiva desconfiança quanto aos espaços participativos. Outra questão diz
respeito à questão dos recursos e capacidades dos atores sociais para se
engajar nessas práticas: Pessoas e grupos sociais com menos recursos
tenderiam a participar menos, o que influi na composição das instâncias
participativas e o que ocorre significativamente em relação aos conselhos.
No dizer de RICCI (2002, p. 72-96):

[...] os conselheiros não apresentam o perfil médio da população.


Os conselhos atraem e envolvem segmentos mais organizados
da sociedade. Assim, as práticas participacionistas não conse-
guiram, até o momento, se enraizar na cultura e práticas da
política nacional. Nem mesmo nas localidades onde elas foram
implementadas por governos locais parece ocorrer uma mudança
significativa na cultura política local, podendo-se sugerir que
nos encontramos numa transição ou relação intrincada entre os
modelos formais e tradicionais e modelos participativos de gestão
pública. [...] a lógica seletiva da política formal brasileira [que]
parece contaminar vários mecanismos de participação popular
na gestão pública, e a renda aparece como fator de seleção ou
exclusão política.

Como acima referido, nos espaços formais de participação, majorita-


riamente participam e tem poder de decisão os representantes do execu-

1835
tivo e legislativo municipal, e/ou os membros de grupos organizados da
sociedade, especialmente os grupos econômico-empresariais8, ocorrendo
um misto da “prefeiturização” com um modelo de mediação de interesses
com o de grupos empresariais9.
Mantêm-se em geral, o centralismo das decisões no poder executivo,
tanto poder de nomear representantes quanto na possibilidade de in-
fluenciar na organização e na composição de órgãos como os Conselhos
dos Planos Diretores e os Conselhos da Cidade. A forma de escolha dos
representantes nestas instâncias não está imune às influências políticas
e dos grupos de pressão, especialmente dos grupos econômicos que tem
grande interesse nos valores relativos à terra urbana.
Estas questões alcançaram especial interesse em razão do adensa-
mento construtivo e a valorização dos estoques imobiliários nas cidades,
que vem ocorrendo nos últimos anos. A capacidade das prefeituras e os
Conselhos Municipais decidirem sobre questões como os índices constru-
tivos, estoques do solo criado, localização e liberalização de empreendi-
mentos, dentre outros, fazem com que em muitos processos ocorra um
interesse velado de grupos empresariais e a cooptação e manipulação da
participação por parte de políticos locais e empresários10.
Embora se perceba gradativamente, avanços em relação à tomada de
consciência e pressão da sociedade civil bem como nas decisões judiciais
referentes aos temas do planejamento e gestão das cidades11, a partici-
pação das populações nestes processos tem sido restringida pelas admi-
nistrações locais, que salvo exceções, tem pouco interesse na ampliação
e qualificação efetiva da participação popular12.

4. CONCLUSÕES

A partir da leitura dos instrumentos de participação previstos no Es-


tatuto da Cidade percebe-se a dificuldade de efetivar tais dispositivos.
Disponibilizar e fomentar espaços de participação é fácil, o difícil é ga-
rantir a qualidade desta participação, em razão dos interesses políticos

1836
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

e econômicos envolvidos. Um dilema a ser enfrentado para a efetivação


de uma política urbana realmente democrática e participativa é a de não
transformar a participação em um modelo de decisão a serviço de inte-
resses políticos particulares e demandas de grupos mais organizados da
sociedade e, ainda pior, legitimado pelo discurso democrático.
A história e o processo do planejamento e da gestão urbanos revelam
muito da ideologia política dominante das administrações públicas do
país, muitas voltadas para a manutenção dos interesses das classes mais
favorecidas e pelo processo autoritário e tecnocrático de decisão. Os
modelos de planejamento e gestão das cidades têm evoluído no sentido
de possibilitar a ampliação da participação das populações e na transpa-
rência na gestão.
Do ponto de vista normativa, a partir da promulgação da Constitui-
ção Federal de 1988 estão dispostos uma série de instrumentos para a
efetivação de uma política urbana democrática, em um processo que
necessariamente possibilita a ampla participação popular, como critério
de legitimidade. Neste sentido, os atuais planos diretores, fundados nas
diretrizes e do discurso da democracia participativa prevista no Estatuto
da Cidade, rompem com padrões de planejamento estabelecidos, devol-
vendo, em muitos dos seus aspectos, a titularidade do poder de decisão
política a sociedade.
Os atuais planos diretores municipais, por força da lei, deveriam nesta
dimensão avançar no sentido de democratização dos processos decisórios,
entretanto, tem ocorrido uma série de problemas na efetividade de muitos
dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, tanto do ponto de vista
do acesso da população quanto do controle popular destes processos.
A intenção normativa expressa nos dispositivos do Estatuto da Cidade
mescla instrumentos do planejamento estratégico com o do planejamento
participativo e aponta no caminho de democratizar o planejamento, atra-
vés da maior abertura a participação e, ao mesmo tempo, mediar diversos
interesses como empresariais e populares. Esta mediação é complexa e
necessita tomada de decisões políticas corajosas do administrador público
para garantir estes instrumentos.

1837
Pode-se afirmar que mesmo em documentos com intenções democráti-
cas como muitos dos atuais planos diretores “participativos”, as práticas de
planejamento, e especialmente as de gestão, ocorrem de forma restritivas
à participação popular. Estes problemas guardam relação a problemas
estruturais da própria democracia, como na dificuldade de criar “cultura
participativa” quanto no descompromisso dos administradores públicos
quanto às demandas populares.
Entendemos assim que a validação das expectativas democráticas pas-
sa pela ampliação e reestruturação dos ambientes de participação direta
e, também na melhoria dos sistemas deliberativos como os Conselhos
Municipais que tratam das questões urbanas. Certamente ampliaram-se
os instrumentos de democracia participativa nas decisões urbanas, só que
estas determinações democráticas para tornarem-se efetivas, dependem, e
muito, da organização e pressão da sociedade, de um comportamento ético
democrático do administrador, bem como da efetividade dos controles
do Ministério Público e do Poder Judiciário e da ampliação da vinculação
normativa das administrações municipais.
O Estatuto da Cidade é uma lei avançada sob muitos aspectos e que
disponibiliza elementos para a conformação de um planejamento de-
mocrático e participativo, entretanto, entre o “discurso” normativo e as
práticas políticas ainda há um grande distanciamento, especialmente em
relação à qualidade e efetividade da participação. A Resolução 25 do Con-
selho das Cidades, embora não tenha o “status” de lei, apresenta elementos
de materialidade normativa que merecem ser consideradas como norma
jurídica de eficácia plena.
Passados mais de dez anos da promulgação do Estatuto da Cidade se faz
necessária uma releitura crítica dos instrumentos e dos institutos
democráticos previstos, ampliando e “explicitando” ainda mais o
sentido da participação proposta e incluindo regras de efetivida-
de destas expectativas, especialmente considerando as previstas nas
resoluções do Conselho Nacional das Cidades, incorporando-os no texto
do Estatuto da Cidade, bem como na obrigatoriedade da existência de

1838
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

planos diretores participativos em todas as cidades brasileiras e,


ainda, ampliando as formas de controle público e efetivando as sanções
pelo não cumprimento destas disposições, para só assim podermos falar
na instituição formal de um modelo de planejamento e gestão efetivamente
democrático a participativo para as cidades brasileiras.

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NOTAS

1 Advogado, doutor em planejamento urbano e regional (Propur-Ufrgs), pós-doutor em Direito pelo Centro
de Direito de Ordenamento do Território e do Urbanismo – CEDOUA da Universidade de Coimbra - Portugal,
professor universitário (IMED). E-mail: joaotelmofilho@uol.com.br.
2 Carla Portal Vasconcellos. Arquiteta. Doutoranda em planejamento urbano e regional (Propur-Ufrgs), Pro-
fessora universitária (UPF). E-mail: carlaportal@upf.br.
3 Podemos citar, dentre outros, os dispositivos referentes aos direito reais, à posse e a propriedade no novo
Código Civil Brasileiro, os dispositivos da Lei 6766/76 (Lei do Parcelamento do Solo Urbano e suas alterações),
do Código Florestal Brasileiro as Resoluções 001 do Conselho Nacional do Meio Ambiente e a Resolução 25
do Conselho Nacional das Cidades.
4 Vide recentes decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no provimento das Ações Direta
de Inconstitucionalidade n.º 70002576072, referente a Lei Complementar Municipal n.º 44/2001 da cidade de
Bento Gonçalves, em razão da violação aos princípios da democracia participativa e da separação dos Poderes
pela iniciativa legislativa de vereador para alteração da lei do Plano Diretor e, do provimento da Ação Direta

1840
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de Inconstitucionalidade nº 70008224669 em razão da ausência de participação de entidades comunitárias, da


falta de divulgação e da devida publicidade no processo de elaboração do Plano Diretor da cidade de Guaíba-RS.
5 No guia Plano Diretor Participativo. Guia para elaboração pelos municípios e cidadãos, editado pelo Ministério
das Cidades em 2004, são propostas as seguintes etapas para elaboração dos planos diretores participativos:
leituras técnicas e comunitárias, formulação e pactuação de propostas; definição dos instrumentos e deter-
minação do sistema de gestão.
6 O artigo 53 do Estatuto da Cidade altera o artigo 1° da Lei 7.347/85 - lei da ação civil pública de responsa-
bilidade por danos causados ao meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos - o artigo inclui na lei,
a possibilidade de acionar na Justiça os responsáveis por danos à ordem urbanística, podendo incidir sobre o
Prefeito a sanção de improbidade administrativa e obrigar, em liminar ou no mérito (art. 3.°). A ação poderá
ser promovida por associação civil legalmente constituída há pelo menos um ano e que tenha a previsão de
promover a ação civil pública em seu estatuto, bem como pelo Ministério Público.
7 Sobre a teoria da democracia e a democracia participativa vide os textos de Robert Dahl. Um prefácio à te-
oria democrática. John Gaventa. Triumph, deficit or contestation? Deepening the “deepening democracy”. Jurgen
Habermas. Três modelos normativos de democracia. David Held. Modelos de democracia. C. B. Macpherson. A
Democracia Liberal. Origens e evolução. Boaventura de Souza Santos. Democratizar a Democracia. Os caminhos
da democracia participativa, dentre outros.
8 Vide SOUZA, Marcelo Lopes de, Mudar a Cidade, uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos.
Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002.
9 Vide OLIVEIRA FILHO, João Telmo. A participação popular no planejamento urbano. A experiência do plano
diretor de Porto Alegre. Tese de Doutorado. Propur-Ufrgs, 2009.
10 Vide o processo de revisão do atual plano diretor de Porto Alegre em que o Ministério Público do Estado
do Rio Grande Sul solicitou a anulação de audiência pública para a revisão do plano. O Ministério Público
do Estado, através da Promotoria de Defesa das Questões Fundiárias e Ordem Urbanística, ingressaram com
Ação Civil Pública no Foro Central, com pedido liminar de anulação da audiência pública realizada no dia 26
de maio que tratam da revisão do Plano Diretor de Porto Alegre, indicando uma série de irregularidades na
realização das reuniões, em razão de cooptação de participantes e restrição da participação de entidades.
11 Do ponto de vista institucional, o poder judiciário no país, como um todo, tem trabalhado mais no sentido de
responder às demandas nos casos concretos, quando provocado, e não tem, salvo exceções, criado canais espe-
cíficos de comunicação com entidades comunitárias e a sociedade para tratar de questões urbano-ambientais..
Como exemplo positivo temos os provimentos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, como o
More Legal e mais recentemente a criação de vara especializada para tratar de questões urbano-ambientais.
12 O Ministério das Cidades, através da Secretaria Nacional de Programas Urbanos, oferece uma série de
programas para a capacitação técnica de municípios, tais como o programa de apoio à implementação e
elaboração de planos diretores, bem como o repasse de recursos para a elaboração de planos diretores com
metodologia participativa. Além desse, uma série de programas federais, como o Programa Habitar Brasil,
Programa Reabilitação de Áreas Centrais, Programa de Apoio na Realização de Planos Diretores Participativos,
Programa de Regularização Fundiária, Projeto Monumenta (Ministério da Cultura), Programa de Desenvolvi-
mento do Turismo - Prodetur (Minstério do Turismo) e Programa Nacional de Apoio e Financiamento à Gestão
dos Municípios PNAFM (Ministério daFazenda).

1841
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Plano Diretor – crítica


histórica e proposta
de reconstrução

Tiago Alves de Figueirêdo1

1. INTRODUÇÃO

A Constituição de 1988 determinou, em seu art. 182, § 1.º, a obriga-


toriedade do plano diretor para as cidades com mais de 20 mil habitantes.
Da mesma forma, estabeleceu, no § 2.º do artigo em tela, que a proprie-
dade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências de
ordenamento do plano diretor.
Complementando este dispositivo, o Estatuto da Cidade (Lei
10.257/2001) determinou ser o plano diretor obrigatório, também, para as
cidades integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas,
para aquelas integrantes de áreas de especial interesse turístico e para
as que estão inseridas em área de influência de empreendimentos ou
atividades com significativo impacto ambiental. A obrigatoriedade existe
ainda para o município que queira utilizar os mecanismos de sanção à
propriedade descumpridora de sua função social (art. 41).
Independente da adequação destes dispositivos, o plano diretor está
posto como um dos instrumentos mais importantes do ordenamento da
cidade. É verdade que esta obrigatoriedade não surgiu, necessariamente,
de forma espontânea e democrática, já que não fazia parte das reivin-
dicações apresentadas pelo Movimento Nacional de Reforma Urbana à
Assembleia Constituinte. A história do plano diretor no Brasil, ademais,
dá conta de um instrumento utilizado precipuamente como discurso,
trazendo dispositivos que, por motivos diversos, não se destinavam à
aplicação e implementação.

1843
Apesar desta constatação, é preciso repensar o plano diretor e seu
papel. Já que sua importância e obrigatoriedade são inarredáveis, é mister
transformar a prática histórica deste instituto, aproximando-o da realidade
das cidades brasileiras e atribuindo-lhe a possibilidade de ser, de fato,
eficaz para os problemas urbanos. Neste sentido, mostra-se necessário
definir o que é característico desta atividade planejadora do Estado, o
que implica também em estabelecer qual o conteúdo necessário do plano
diretor. Todavia, o plano diretor só pode descolar-se do plano de legisla-
ção simbólica, influindo diretamente na realidade urbana, se incorporar
mecanismos de gestão e participação democrática.
Este trabalho, assim, propõe-se a fazer, em primeiro lugar, a apre-
sentação das críticas ao instituto do plano diretor e aos principais pro-
blemas que a atividade planejadora apresentou em sua história para, em
seguida, buscar um conteúdo para tal instrumento, algo que justifique
a importância dada a ele pela Constituição e pelo Estatuto da Cidade.
É necessário não perder de vista, contudo, as peculiaridades locais na
elaboração do plano diretor, para que ele não se torne um instrumento
meramente enunciativo e teórico.

2. A CRÍTICA AO PLANO DIRETOR


A PARTIR DA hISTóRIA DO INSTITUTO

Flávio Villaça divide a história do planejamento urbano brasileiro – e


as origens do atual plano diretor – em três grandes períodos, nos quais
predominou certo tipo de plano. Assim, convém fazer um breve resumo de
suas ideias a respeito para entender o que, para ele, é o grande problema
dos planos diretores: por que eles não são respeitados?
O primeiro período, que vai até a década de 1930, é o período dos pla-
nos de melhoramento e de embelezamento. A expressão “embelezamento
urbano”, segundo Villaça, teve uma grande recepção em todo o mundo,
inspirando intervenções urbanas em cidades europeias e americanas e o
movimento conhecido como “City Beautiful”, cujo ponto de partida foi o

1844
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

projeto do arquiteto Daniel Burnham para a Feira Mundial de Chicago em


18932. Em São Paulo, este movimento teve sua expressão na construção
do conjunto do Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga.
A expressão “embelezamento urbano” não se limitava, assim, ao
discurso, e refletia a ação concreta do Estado3, sendo talvez uma das úl-
timas manifestações no Brasil de um plano urbano que foi efetivamente
realizado. Significou também, claro, a expulsão de grandes parcelas da
população mais pobre das áreas mais centrais da cidade. Inicialmente,
eram obras realizadas por meio de concessões ao setor privado, que,
aparentemente, logo se desinteressou pela atividade4. Surgiu, assim, a
atividade planejadora do Estado, normalmente associada, na época, às
prefeituras de algumas cidades. No Rio de Janeiro, por exemplo, as refor-
mas de Pereira Passos (1903-1906) são emblemáticas deste período. Em
seguida, contudo, estes “planos de melhoramento” entrarão em declínio,
com o discurso do planejamento substituindo a prática:

O período 1875-1930 representou a época na qual a classe domi-


nante brasileira tinha uma proposta urbana, que era apresentada
com antecedência e debatida abertamente. Suas condições de
hegemonia eram tais que lhe permitia fazê-lo. Manifestações
dessa hegemonia foram, por exemplo, o slogan ‘O Rio civiliza-
-se’, referindo-se às reformas de Passos, cunhado e difundido
na época; [...].
O plano de Pereira Passos representa o ápice desse período.
A partir de então as condições de hegemonia da nossa classe
dominante no trato do urbano serão cada vez mais difíceis. As
transformações sofridas pelo planejamento urbano representarão
formas de adaptação do discurso hegemônico à nova realidade
urbana o sentido de sempre ter uma versão para explicar e jus-
tificar o fracasso da classe dominante na solução dos problemas
que se agravavam nas cidades.5

Neste primeiro período, o planejamento urbano era assunto eminen-


temente de engenheiros e arquitetos (Pereira Passos era engenheiro e
estudou na renomada École des Ponts et Chaussées na França); em se-
guida, passou a chamar a atenção também de economistas, sociólogos,
geógrafos, advogados etc. É o período que marca o aparecimento do
Urbanismo e do plano diretor6. Surgem, da mesma forma, discursos que

1845
buscam não mais justificar obras de embelezamento, mas explicar a falta
de solução dos “problemas urbanos”. As explicações vêm sob expressões
como “crescimento descontrolado”, “caos urbano”7, dentre outras, ressal-
tando, portanto, que o mal estava na própria cidade e na maneira como
ela se formava.
Assim, o período seguinte que merece destaque no presente traba-
lho é associado por Flávio Villaça8 ao “planejamento integrado” e aos
“superplanos”. É o período em que se afirma que os problemas urbanos
não são apenas de ordem física (e, portanto, sujeitas a intervenções de
engenheiros e arquitetos); em consequência, surgem os volumosos diag-
nósticos técnicos e interdisciplinares. É este divórcio entre a técnica e a
prática política da administração da cidade que explica uma das razões de
seu fracasso de implementação: os planos eram elaborados por técnicos
fora da rotina da administração e, portanto, sem considerar os aspectos
políticos das demandas urbanas.
Ou talvez a causa do fracasso está na análise feita por Peter Hall9 quan-
do estuda o desenvolvimento da teoria do planejamento: “o planejamento
se espalhara em camada tão fina sobre área tão vasta que praticamente
se esvaziara de sentido; é o que reza o título do famoso escrito de Aaron
Wildavsky, ‘If Planning is Everything, maybe it’s Nothing’.”
Assim, muitos desses planos continham apenas “recomendações”,
que não eram endereçadas a nenhum órgão específico, o que dificultava
sua execução10. A denominação de “superplanos”, ou de “comprehensive
planning”, para usar a expressão em inglês, advinha do fato de que os
planos tornavam-se complexos, englobando uma variada gama de ques-
tões sociais e urbanas que não tinham a menor penetração nos interesses
políticos da administração municipal. Muitos desses estudos eram feitos
por escritórios privados, em decorrência da deterioração da administra-
ção pública municipal11, o que causava um distanciamento ainda maior
entre a técnica e a realidade política das cidades. O resultado são “planos”
gigantescos – o Plano Urbanístico do Município de São Paulo (PUB), por
exemplo, tinha 3.400 páginas –, quase sempre lançados no final das gestões

1846
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dos prefeitos, cujo destino inevitável eram as gavetas e as prateleiras dos


órgãos de planejamento12.
Outro famoso exemplar deste período foi o chamado “Plano Doxiadis”
para o Estado da Guanabara, elaborado pelo escritório urbanista grego
Constantin A. Doxiadis, sediado em Atenas. A versão final do plano foi
apresentada em inglês, no final da gestão do prefeito Carlos Lacerda (em
1965), impressa em Atenas13, tudo indicando que não se destinava a ser
conhecido pela população e implementado.
Como reação a estes “superplanos”, surge talvez o que seja o seu in-
verso, o que Flávio Villaça chama de “plano sem mapa”. É o planejamento
surgido na época da ditadura militar, inaugurado, de acordo com o pro-
fessor da FAU/USP, pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado do
Município de São Paulo (PDDI-71)14. Este plano era uma simples lei, sem
o volumoso diagnóstico técnico – os técnicos da administração paulistana
basearam-se em conhecimentos já estocados na prefeitura e considerados
suficientes15. Em 1977, foi concluído o PUB-Rio, que apresentava carac-
terísticas semelhantes:

Nos anos de 1970, os planos passam da complexidade, do re-


buscamento e da sofisticação intelectual para o plano singelo,
simples – na verdade, simplório – feito pelos próprios técnicos
municipais, quase sem mapas, sem diagnósticos técnicos ou com
diagnósticos reduzidos se confrontados com os de dez anos antes.
Seus dispositivos são um conjunto de generalidades. Novamente,
o plano inconsequente. [...]
O Plano sem Mapa em geral enumera objetivos, políticas e di-
retrizes os mais louváveis e bem-intencionados possíveis. Com
isso elimina as discórdias e oculta os conflitos.16

Portanto, ao limitar-se a trazer enunciados genéricos e meramente


indicativos, sem resolver os verdadeiros conflitos urbanos existentes,
os “planos sem mapa” também destinam-se às gavetas e prateleiras dos
órgãos de planejamento. São planos baseados na ideia de “posterior de-
talhamento”, que, em geral, nunca acontece17.
Pensando na tipologia apresentada por Marcelo Neves de legislações
simbólicas (baseada em estudos de Kindermann), é possível identificar

1847
características de todas elas nos tipos de planos apresentados por Flávio
Villaça. Com efeito, tais planos servem por vezes para “adiar a solução de
conflitos sociais através de compromissos dilatórios [...], exatamente por-
que está presente a perspectiva da ineficácia da respectiva lei”18. Notam-se
também elementos do que Neves chama de “legislação-álibi”, na qual “o
legislador, muitas vezes sob pressão direta do público, elabora diplomas
normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, sem que com
isso haja o mínimo de condições de efetivação das respectivas normas”19.
Há que se considerar, também, que a legislação urbanística tem estabe-
lecido padrões que são seguidos apenas por uma minoria das construções
realizadas, gerando o que se chama de “cidade irregular” ou “cidade pre-
cária”, muitas vezes a maior parte do que se produz no território urbano20.
Este descompasso pode ser resumido no que Marcelo Neves chama de
legislação simbólica destinada a confirmar valores sociais, “uma forma
de reconhecimento da ‘superioridade’ ou predominância social” da con-
cepção valorativa de um determinado grupo, sendo “secundária a eficácia
normativa da respectiva lei”21. De qualquer sorte, em qualquer uma das
três tipologias citadas, é importante destacar o papel de legislação sim-
bólica, que “se restringe a formular uma pretensão de produzir normas,
sem tomar nenhuma providência no sentido de criar os pressupostos para
a eficácia”22.
Tal concepção parece ser compartilhada por Flávio Villaça, para quem
o plano diretor transforma-se em pura ideologia, desvinculada das práti-
cas da administração municipal e da efetiva realização de obras urbanas.

Exceção feita ao zoneamento – o único aspecto do planejamento


urbano brasileiro que tem sido vivo e consequente, embora sa-
bidamente elitista –, o planejamento urbano no Brasil tem sido
fundamentalmente discurso, cumprindo missão ideológica de
ocultar os problemas das maiorias urbanas e os interesses domi-
nantes na produção do espaço urbano. Consequentemente, ele
não deve ser estudado na esfera da ação do Estado, das políticas
públicas, mas sim na da ideologia.23

Peter Hall, embora não parta de uma matriz marxista como parece ser
o caso de Flávio Villaça, apresenta uma conclusão semelhante sobre o
divórcio entre teoria e prática. Para o autor inglês, enquanto os teóricos

1848
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

fechavam-se no mundo acadêmico, os profissionais voltaram-se para


um planejamento cada vez mais não-teórico, pragmático e até mesmo
fisiológico. Este divórcio provocou uma redução do enfoque voltado para
as ciências sociais no estudo do planejamento. “O relacionamento entre
o planejamento e a universidade azedou, e essa é a questão primordial,
não resolvida, a que se precisa agora dar atenção.”24
Chega-se, assim, ao período da Constituição de 1988 e aos planos
elaborados posteriormente a ela. A inclusão do capítulo da Política Urba-
na na nova carta política (arts. 182 e 183) foi em grande medida obra do
Movimento Nacional pela Reforma Urbana, que apresentou uma Emenda
Popular à Constituinte então instalada25, com as reivindicações de estudio-
sos e de movimentos sociais populares. Flávio Villaça26 e Erminia Marica-
to27 alertam, porém, que entre as propostas encaminhadas não estava a
obrigatoriedade dos planos diretores. A razão primordial é que se tratava
de instituto já bastante desgastado no cenário nacional, o que não é difícil
de entender considerando-se o histórico acima apresentado. Pouca gente
acreditava no seu papel para, de fato, mudar a realidade urbana brasileira.
Erminia Maricato defende que a tradição dos planos diretores no Brasil “é
marcada pela afirmação do projeto da elite, expulsão dos pobres das áreas
mais valorizadas, alienação em relação à realidade social”28.
Flávio Villaça29 destaca que, após a nova Constituição, nos anos de
1990, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto
Alegre tentaram politizar o plano diretor e introduzir temas do movi-
mento da reforma urbana. Entretanto, esbarraram em forças políticas
contrárias e dependiam fortemente de regulamentação subsequente30,
mantendo, portanto, seu papel de legislação simbólica de adiar a so-
lução de conflitos.

1849
3. qUATRO MOMENTOS DO PLANEJAMENTO
URBANO: DO SANITARISMO AO EMPREENDEDORISMO

Ângela Moulin Penalva Santos, sem se afastar de um viés crítico, indica


quatro momentos do planejamento urbano, apresentando uma nova ten-
dência da atualidade: o planejamento urbano como empreendedorismo.
Para a autora, o planejamento urbano moderno surge da necessidade de
se enfrentar as transformações sociais e econômicas da nova sociedade
urbano-industrial; assim, sua primeira faceta encarava os problemas das
cidades como problemas sanitários. “No Brasil, assim como na França, o
planejamento urbano surgiu como uma necessidade emanada das políticas
de saúde coletiva que justificavam a destruição das construções decadentes
e urbanisticamente desordenadas, que favoreciam a disseminação de do-
enças infecto-contagiosas.”31 Tal movimento teve por consequência óbvia
a expulsão de largas parcelas da população de áreas centrais da cidade.
O segundo momento é o do planejamento tecnocrático-modernista,
baseado numa concepção de que o planejamento urbano deve ser rea-
lizado por técnicos (especialmente do aparelho burocrático estatal) que
estudassem e apresentassem soluções para os problemas urbanos, es-
pecialmente os de moradia. Não por outro motivo, a autora identifica na
criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), em 1964, o ápice deste
movimento32. Tal concepção, contudo, mostrou-se insuficiente, como
mostra o já mencionado surgimento da “cidade ilegal”.
Porém, para os críticos marxistas de língua inglesa, mencionados por
Peter Hall33, o papel do Estado nesta seara servia para fazer frente às cri-
ses recorrentes do capitalismo tardio, em várias vertentes: corrigindo a
desorganização na produção, típica das cidades; ajudando a reprodução
da força de trabalho por intermédio dos serviços sociais, o que causava
a desintegração social; provendo a infra-estrutura urbana imprescindível
ao capital; reduzindo as externalidades negativas.

Uma escola agora poderosa, e mesmo dominante, afirma que o


planejamento, em todas as suas manifestações, é uma resposta

1850
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do sistema capitalista – e particularmente do Estado capitalis-


ta – ao problema da organização da produção e, em especial,
ao dilema das crises constantes. Segundo tal interpretação, a
ideia de planejamento será adotada – e com ela as visões dos
pioneiros – exatamente quando o sistema precisar dela, nem
antes nem depois.34

O terceiro momento identificado por Ângela Moulin Penalva Santos


é o planejamento que emerge dos movimentos sociais urbanos, o qual,
por meio de associações de moradores ou de outros movimentos sociais
organizados, opôs ao planejamento técnico a visão das pessoas que, de
fato, habitavam a cidade. O movimento é identificado com a publicação
do livro Morte e Vida das Grandes Cidades35, da americana Jane Jacobs, que
“colocou em xeque as razões técnicas para demolir bairros onde há muito
viviam comunidades que sofreriam com a destruição física do espaço
urbano e que não conseguiriam reproduzir tais experiências de convi-
vência comunitária em outras localidades”36. Jacobs também defendia a
vida na grande cidade como um valor em si, com aportes que não podiam
ser reproduzidos, por exemplo, nos espaçosos subúrbios americanos. A
crítica ao planejamento técnico-burocrático passava, em consequência,
por seu autoritarismo, pela ausência de discussão com os indivíduos e
movimentos sociais interessados.
Ou, como destaca Peter Hall37, nas críticas de esquerda havia uma
desconfiança em relação ao planejador-perito, cujas decisões eram im-
postas de cima para baixo, bem como no uso de uma pseudociência para
fundamentar políticas eticamente reprováveis. A reação veio com os
planejadores-orientadores, ou advocacy planners, que deveriam praticar o
planejamento de baixo para cima, ouvindo-se as demandas dos diferentes
grupos e orientando o público sobre as alternativas existentes38.
O fato é que todo este processo, segundo Ângela Moulin Penalva San-
tos, desembocou no movimento do empreendedorismo urbano39.

Esse encarecimento da terra urbana torna ainda mais difícil a


realização de obras públicas num contexto de fragilidade das
finanças governamentais. A incapacidade financeira do Estado
de arcar com o custo da realização de obras, mesmo aquelas

1851
consideradas necessárias para ordenar o crescimento urbano,
tem levado ao estabelecimento de parcerias com o empresa-
riado local.40

Tal movimento, portanto, identifica-se com o oferecimento de incen-


tivos à iniciativa privada para realizar obras urbanas. O outro lado da
moeda é o incremento da guerra fiscal entre os municípios e o fato de
que o empreendedor privado tem critérios próprios de avaliação dos in-
vestimentos, que não passam, necessariamente, pela visão da cidade do
ponto de vista coletivo41. Como destaca David Harvey42, em muitos casos
de “aplicação” do empreendedorismo urbano, o setor público assumiu os
riscos dos investimentos, enquanto o setor privado colheu a maior parte
dos benefícios deles decorrentes, provocando um desequilíbrio entre a
justa distribuição dos ônus e dos benefícios decorrentes da urbanização.
Por tudo isso, Ângela Moulin Penalva Santos43 identifica o enfraqueci-
mento do Estado como protagonista do planejamento urbano, que exige
novas formas de arranjos territoriais e de mecanismos de intervenção
urbana. Por isso, a autora aponta duas agendas distintas do planejamento
na atualidade, em permanente disputa: a agenda do empreendedorismo
urbano, que vê a cidade como uma “empresa”, e a do ativismo democrá-
tico, que envolve mecanismos de participação popular44.

4. qUAL DEVE SER O CONTEÚDO DO PLANO


DIRETOR? POR UMA DEFESA JURÍDICA DO INSTITUTO
E UMA IDENTIFICAÇÃO DO SEU CONTEÚDO

As discussões apresentadas nos tópicos acima apontam para reflexões


necessárias na avaliação da figura do plano diretor. Não se pode ignorar a
realidade histórica brasileira que promoveu um divórcio entre o discurso
do plano e a prática da intervenção urbana, nem as demandas populares
por mecanismos mais efetivos de reforma urbana, os quais não passam,
necessariamente, pelo plano diretor.
Por outro lado, o operador do direito não pode ignorar o fato de que

1852
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o art. 182, § 2.º, da Constituição Federal, erigiu o plano diretor como


instrumento-chave da política urbana, estabelecendo que a função so-
cial da propriedade urbana depende, obrigatoriamente, deste instituto.
Destarte, parece necessário reconhecer e assimilar as críticas feitas ao
plano diretor, não para descartá-lo, mas para pensá-lo de forma diferente,
para tentar afastá-lo do plano da legislação simbólica e aproximá-lo da
realidade urbana. A importância do atividade planejadora, em si, não está
descartada, como adverte Fernando Alves Correia:

Embora, actualmente, se considere ultrapassada a euforia plani-


ficadora (Planungseuphorie) dos anos sessenta, devido ao facto
de se ter adquirido consciência de que a evolução social não se
deixa determinar antecipadamente de modo exacto e, conse-
quentemente, não pode ser objecto de uma planificação rigorosa,
ninguém hoje contesta a necessidade de uma planificação da
actividade estadual em geral e da actividade administrativa em
particular.45

Portanto, não parece correta a afirmação de que o problema, em si,


está na figura do plano diretor – embora seja forçoso reconhecer que o
simbolismo criado por tantas décadas de formulações equivocadas seja
difícil de superar. Mesmo o crítico Flávio Villaça aponta que, nos Estados
Unidos e na Europa, “os planos refletem as políticas públicas”46. A mu-
dança, assim, há de ser de perspectiva.
Com base nas críticas apresentadas nos itens anteriores, mostra-se
necessário estabelecer o conteúdo do plano diretor. Ou talvez a pergunta
que se deve fazer é: para que serve o plano diretor? Há algo que todo
plano diretor deve trazer, ou seu conteúdo é eminentemente aberto, depen-
dendo das realidades locais de cada município? Tais questionamentos são
reflexos diretos das críticas já apresentadas que são feitas ao plano diretor.
Pensando na categoria genérica dos planos urbanísticos, Fernando
Alves Correia47 identifica quatro funções para eles: 1) inventariação da
realidade urbanística; 2) conformação do território; 3) conformação do
direito de propriedade do solo e 4) gestão do território.
No primeiro ponto, importa “fazer um levantamento da situação exis-

1853
tente, bem como das respectivas causas”48, identificando-se os problemas
da cidade e as principais demandas da população local. É aqui também que
entram diagnósticos sociais, econômicos, fundiários, demográficos etc. É
de se questionar, porém, se a função de diagnóstico integra o próprio plano
ou apenas faz parte do processo de planejamento. De outro lado, embora
não negue a correição de um diagnóstico da realidade urbana – principal-
mente em cidades cada vez maiores e complexas – Flávio Villaça questiona
o papel técnico destes “estudos” dentro do processo de planejamento:

No tocante à metodologia, cabe destacar a recusa ao diagnóstico


técnico como o mecanismo ‘revelador’ dos problemas. A popu-
lação está cansada de saber quais são os seus problemas. [...]
Os problemas a serem atacados num plano diretor, bem como
suas prioridades [...], são uma questão política e não técnica.
[...] O diagnóstico técnico servirá, isto sim, e sempre a posteriori
(ao contrário do tradicional), para dimensionar , escalonar ou
viabilizar as propostas, que são políticas, nunca para revelar os
problemas.49

A segunda função apresentada por Fernando Alves Correia (ordena-


ção do território) consiste “numa definição dos princípios ou das regras
respeitantes à organização do território e à racionalização da ocupação e
utilização do espaço”50. Esta é a função precípua do plano diretor: sendo
eminentemente um plano territorial, é nele que deve ser organizado as
principais funções das diferentes áreas do município. Como o plano diretor
é um plano global e diretivo, esta função diz respeito principalmente ao
macrozoneamento.

O macrozoneamento estabelece um referencial espacial para


o uso e a ocupação do solo na cidade, em concordância com
as estratégias de política urbana. Define inicialmente grandes
áreas de ocupação: zona rural (por exemplo, para produção
de alimentos, exploração de minérios, produção de madeira)
e a zona urbana (residências, indústrias, comércio e serviços,
equipamentos públicos). [...] A partir da definição do perímetro
urbano, o macrozoneamento define, ainda em grandes áreas de
interesse de uso, as zonas onde pretende incentivar, coibir ou
qualificar a ocupação.51

1854
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Assim, o Plano Diretor não precisa descer às minúcias de um zonea-


mento, mas deve estabelecer as grandes zonas de desenvolvimento da
cidade: aquelas que merecem incremento da população (considerando-
-se, claro, a estrutura existente e disponível), aquelas cuja ocupação deve
ser apenas consolidada, aquelas que devem ser repovoadas, aquelas que
merecem alguma proteção especial. O plano diretor deverá também,
por óbvio, estabelecer os instrumentos gerais que serão utilizados para
atingir estas finalidades, embora detalhamentos devam ser feitos em
leis específicas.
A este respeito ainda, José Afonso da Silva52 destaca um aspecto dúplice
da ordenação do território: “a) o problema de localizações, referente aos
equipamentos públicos; e b) o problema das divisões em zonas, referente
aos edifícios privados”. Assim, a divisão do território em zonas tem re-
flexos diretos no direito de propriedade, o que será a seguir esmiuçado.
A terceira função (conformação do direito de propriedade do solo)
pode trazer certa estranheza, já que a definição do direito de propriedade
é feita pela legislação civil, cuja competência para elaboração é exclusi-
va da União (art. 22, I, da Constituição). Acontece que o plano diretor (e
outros planos urbanísticos) exercem a função de conformar o direito de
propriedade do solo, como destaca Fernando Alves Correia53. A propósito,
a regra do art. 182, § 2.º, da Constituição Federal estabelece que “a pro-
priedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.”
Não é objetivo deste trabalho entrar na discussão sobre a função social
da propriedade (urbana) e seu conteúdo; de qualquer sorte, é importante
destacar que a função social integra o próprio núcleo do direito de proprie-
dade. Neste sentido, embora a legislação civil (e a própria Constituição)
garantam o direito de propriedade, estabelecendo suas características
mais genéricas e as formas de aquisição e perda deste direito, várias leis
cumprem o papel de conformar este direito, e aí se incluem a legislação
urbanística municipal54. Assim, por exemplo, se um plano diretor define
uma zona de consolidação urbana, atinge uma gama de propriedades

1855
privadas que se incluam naquele perímetro. Não obstante, seus titulares
não perderão seus respectivos direitos de propriedade, embora não possam
promover adensamentos em descompasso com a zona de consolidação.
A última função apresentada por Fernando Alves Correira55 diz res-
peito à gestão do território. Incluem-se aqui os instrumentos que serão
utilizados para atingir-se os objetivos elencados no plano diretor, tais
como aqueles definidos no Estatuto da Cidade e os instrumentos de ges-
tão democrática. De acordo com o autor português, é aqui que o plano
conecta-se com a execução concreta de suas prescrições, apesar do seu
caráter eminentemente diretivo.
Nesse sentido, o art. 42 do Estatuto da Cidade traz algumas diretrizes
sobre o conteúdo do plano diretor, em especial sobre seus instrumentos
de gestão. Em primeiro lugar, o plano diretor é exigido caso o município
queira aplicar os mecanismos de controle do uso do solo estabelecidos
pelo art. 182, § 4.º, da Constituição Federal (consoante regra do art. 41,
III, do Estatuto) e, claro, estes mecanismos devem estar previstos como
instrumentos de gestão no plano diretor. Além disso, o plano diretor deve
abordar os instrumentos do direito de preempção, da outorga onerosa do
direito de construir, das operações urbanas consorciadas e da transferên-
cia do direito de construir (inciso II do art. 42). A propósito, o Estatuto da
Cidade disciplinou diversos institutos jurídicos, alguns dos quais inéditos
em nosso ordenamento jurídico; isto não significa, porém, que os planos di-
retores não possam estabelecer adaptações próprias à sua realidade local.
Finalmente, o inciso III do art. 42 estabelece a necessidade de o plano
diretor conter mecanismos de acompanhamento e de controle de seus
próprios dispositivos, e aí entram, por certo, os instrumentos de gestão
democrática da cidade, previstos nos arts. 43 e 44 do Estatuto.
Ainda quanto à função de gestão do território, José Afonso da Silva
destaca seu caráter institucional:

O aspecto administrativo-institucional do PD é fundamental para


a atuação urbanística do Município. O plano deve prever os
meios institucionais necessários à sua implementação, execução,
continuidade e revisão. O processo de planejamento há de ser

1856
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

contínuo, por isso, o plano, como seu instrumento fundamental,


há de estar sempre aperfeiçoando-se. [...] O plano há de prever as
mudanças institucionais, organizatórias e jurídicas, necessárias
ao seu funcionamento. Deve prever a institucionalização do órgão
de planejamento local, o preparo de funcionários locais para sua
elaboração, revisão, implementação e execução, [...].56

Ou como afirmava o planejador inglês Patrick Abercrombie, citado por


Peter Hall57, a elaboração do plano era apenas a metade do trabalho do
planejador; a outra seria sua implementação.
Flávio Villaça58, por sua vez, distingue o que chama de planejamento
urbano stricto sensu, representado na atualidade pelo plano diretor, de ou-
tras formas de planejamento urbano lato sensu, tais como o zoneamento,
o planejamento de cidades novas e o chamado “urbanismo sanitarista”,
ou seja, medidas que visam melhorar as condições sanitárias dentro do
perímetro urbano. Tal distinção é importante para que o plano diretor não
venha abraçar questões que são melhor tratadas em outros mecanismos
de gestão urbana e acabe englobando tudo que diz respeito ao planeja-
mento urbano. O autor, contudo, reconhece uma tendência atual de se
fundir no plano diretor o zoneamento59 – embora não se possa dizer que
tal fusão seja “errada”, entende-se que certos pormenores do zoneamento
não precisariam ser tratados já ao nível do plano diretor.
Finalmente, é sempre bom lembrar a advertência feita por Flávio Villaça,
no sentido da simplificação do plano diretor, para que este limite-se, de
fato, a gerir o território do município e as questões locais:

[...] O plano diretor não é o lugar adequado para ‘as cidades’ tra-
tarem, por exemplo, dos problemas que as ‘crises do capitalismo’
ou ‘a globalização contemporânea’ vêm trazendo para elas. [...]
É claro que as propostas urbanísticas podem ter – e, em geral,
têm – implicações econômicas e financeiras. Entretanto, aquelas
referentes ao desenvolvimento econômico, dadas as limitações
do governo municipal, são de alcance muito restrito num plano
diretor. [...]
O plano diretor inovador dos anos de 1990 elegeu como objeto
fundamental o espaço urbano de sua produção, reprodução
e consumo. Para tanto, seus instrumentos fundamentais, li-
mitados aos da alçada municipal, são, basicamente, os de
natureza urbanística, tributária e jurídica. A terra urbana, a
terra equipada, eis o grande objeto do plano diretor. [...]

1857
A superestimação dos poderes de um plano diretor ainda é um
dos mecanismos mais utilizados pela ideologia dominante para
desmoralizar o planejamento urbano.60

É verdade que, de acordo com alguns autores61, a política de planeja-


mento desenvolvida pelos governos locais serve, em geral, para legitimar
o modelo do empreendedorismo urbano, acima apresentado. Contudo,
dadas as suas características e sua posição dentro da distribuição de
competências no federalismo brasileiro, não parece restar outro campo
de atuação ao plano diretor – o que não implica afirmar, por óbvio, que a
atividade planejadora de outras esferas federativas, como o governo na-
cional, não possam desenvolver outras atividades e outros instrumentos
mais genéricos que o plano diretor.
Em suma, não é demais reafirmar, repercutindo as críticas apresenta-
das no item anterior, que o plano diretor não pode transformar-se num
superplano, tentando abarcar todos os problemas da cidade em seu seio
– mesmo aqueles que escapam da esfera de competência municipal –,
sob o risco de nada resolver. Esta preocupação é compartilhada por José
Afonso da Silva, para quem

a preocupação dos técnicos pela adoção e implantação da


concepção do plano diretor de desenvolvimento integrado
parece-nos responsável pelo quase fracasso do planejamento
urbanístico entre nós. [...] O que queremos expressar é que essa
integração horizontal, no nível municipal, estará sempre fadada
ao fracasso, por carência de competência dos Municípios em
matéria econômica nos limites pretendidos.62

É preciso também rejeitar os planos puramente enunciativos, com


preceitos genéricos que nada determinam, apenas desenham uma cidade
ideal. É verdade que, como já indicado aqui, o plano diretor é eminente-
mente global e diretivo; isto não significa, porém, que ele não possa trazer
dispositivos cogentes e autoaplicáveis, em especial para o poder público.
Finalmente, mister reconhecer a tensão apresentada por Ângela Moulin
Penalva Santos entre a agenda empreendedora e a agenda democrática.
Neste sentido, o reconhecimento, aceitação e aplicação do plano diretor –

1858
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

em suma, sua concretização – só acontecerá se, além das indicações acima


apresentadas, ele incorporar mecanismos de participação democrática
reais, afastando-se de um planejamento meramente burocrático e técnico.
Não se pode mais admitir que um funcionário (ou um grupo deles) decida,
sozinho, o destino da cidade. É preciso superar a dualidade apontada por
Eminia Maricato entre planejamento urbano e orçamento participativo:

A resistência das elites locais em se engajarem em um processo


de participação democrática tem levado algumas prefeituras,
mesmo progressistas, a criar um espaço dual de participação no
contexto municipal. Ele pode tomar a seguinte forma: o orçamen-
to participativo voltado para as camadas mais populares e um
conselho de desenvolvimento econômico/urbanístico voltado
para a elite econômica.63

Para encerrar, cabe a pergunta: por que a participação democrática


é importante? Por que ela deve prevalecer em relação a uma atividade
urbanística técnica? Partindo-se de uma ideia habermasiana de discurso
e de agir comunicativo, Marcelo Lopes de Souza64 traz algumas ideias a
respeito. Em primeiro lugar, se a participação não elimina os erros nem é
garantia de acerto, uma ampla participação contribui para corrigir certas
fontes de distorção dentro da democracia. Além disso, ao participar de
uma decisão, o cidadão sente-se mais responsável pelo seu resultado
(seja bom ou ruim). Há que se considerar que a atividade de planejar a
cidade não é estanque nem isenta de erros. Todavia, se a participação
democrática é incorporada a ela, os erros e os acertos são divididos por
toda a coletividade, evitando-se uma sociedade tutelada, infantilizada.

5. CONCLUSÃO

O território da cidade é necessariamente plural. Qualquer interven-


ção que pretenda resolver a questão de forma técnico-burocrática ou,
na linguagem popular, “de cima para baixo”, portanto, corre o risco de
desconsiderar diversos interesses e liberdades que transitam na polis,
ainda que a decisão seja, do ponto de vista formal, democrática – ou que
respeite a regra da maioria.

1859
Carlos Ari Sundfeld65 lembra que o direito urbanístico, exatamente
por decorrer de uma visão totalizante de mundo, está exposto ao risco de
tornar-se totalitarismo estatal: seja como “Estado que se fecha à influência
da sociedade, tanto na tomada de suas decisões como no desenvolvimen-
to de suas ações materiais (isolamento estatal)”, seja como “Estado que
impede sistematicamente a ação individual (auto-suficiência estatal)”.
Tal assertiva não implica em necessariamente descartar-se o papel do
Estado no planejamento e, em última análise, na elaboração e aplicação
do plano diretor. O Estado não pode, entretanto – na crítica apresentada
no decorrer do trabalho –, servir puramente ao empreendedorismo ur-
bano, devendo buscar sua legitimidade na coordenação democrática do
pluralismo da cidade.
Ademais, neste processo, mostra-se necessário superar o simbolismo
que o plano diretor adquiriu na história do planejamento urbano brasileiro,
evitando-se os “superplanos” e os “planos sem mapa”, puramente ideo-
lógicos, a que se refere Flávio Villaça. Sendo fruto de um planejamento
eminentemente técnico, não servem como modelo para a construção
de um novo paradigma do plano diretor. Também é preciso evitar-se as
armadilhas do chamado “empreendedorismo urbano” apresentadas por
David Harvey e Ângela Moulin Penalva Santos, embora, dentro da pon-
deração de interesses feita no processo de elaboração do plano diretor,
pareça impossível ignorar-se seu papel.
De qualquer sorte, ainda que se conceda que o planejamento não seja
a forma única de se resolver todos os problemas urbanos, é importante
reconhecer seu papel dentro da democracia. Como adverte José Afonso
da Silva, citando Lubomir Ficinski:

É um completo engano pensar que a democracia atrapalha o


planejamento, mesmo porque, se esta antinomia fosse verda-
deira, seria correto eliminar, imediatamente, o planejamento.
Ao contrário, o planejamento é uma forma de organizar a de-
mocracia e de exprimi-la. O que devemos dizer, de forma clara
e tranquila, é que este tipo de planejamento toma o partido da
maioria da população da cidade e a defende – aliás, por isso ele
é democrático.66

1860
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

COMPANS, Rose. Empreendedorismo urbano: entre o discurso e a prática.


São Paulo: Unesp, 2005.
CORREIA, Fernando Alves. O plano urbanístico e o princípio da igualdade.
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e à gestão urbanas. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
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Brasil. In: DEÁK, Csaba & SCHIFFER, Sueli Ramos (org.). O processo de urbani-
zação no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004.

1861
NOTAS

1 Mestrando em Direito da Cidade pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Promotor de Justiça no Mi-
nistério Público do Distrito Federal e Territórios. E-mail: tiagof@hotmail.com.
2 Veja-se a respeito HALL, Peter. Cidades do Amanhã. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 208.
3 VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In: DEÁK, Csaba & SCHI-
FFER, Sueli Ramos (org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004, p. 178 – destacou-se.
4 Ibid., p. 195.
5 Ibid., p. 197-8.
6 Ibid., p. 200-1.
7 Ibid., p. 206.
8 Ibid., p. 212.
9 Op. cit., p. 396.
10 VILLAÇA, Flávio, op. cit., p. 213.
11 Ibid., p. 216.
12 Ibid., p. 217-8.
13 Ibid., p. 215.
14 Ibid., p. 219.
15 Ibid., p. 220.
16 Ibid., p. 221.
17 Ibid., p. 221.
18 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 41.
19 Ibid., p. 36.
20 Nesse sentido, MARICATO, Erminia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011, p.
105. No mesmo sentido, ESTATUTO da Cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília:
Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2001, p. 41: “E assim, foram se configurando cidades
caracterizadas pelo contraste entre um espaço contido no interior da cada vez mais minuciosa moldura da
legislação urbanística e outro, normalmente três vezes maior, eternamente situado numa zona intermediária
entre o legal e o ilegal”.
21 Op. cit., p. 33.
22 Ibid., p. 31.
23 Op. cit., p. 222.
24 Op. cit., p. 403.
25 ESTATUTO da Cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília: Câmara dos De-
putados, 2001, p. 43.
26 VILLAÇA, Flávio, op. cit., p. 232.
27 MARICATO, Erminia, op. cit., p. 141. De acordo com Erminia Maricato, o plano diretor foi incluído pelo
chamado “centrão” da Assembleia Constituinte.
28 Op. cit., p. 158.
29 Op. cit., p. 234.
30 Ibid., p. 235.
31 Planejamento urbano: para quê e para quem? Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, UERJ, v. 1.
n. 1, maio de 2006, p. 41.
32 Ibid., p. 43.
33 Op. cit., p. 399.
34 Ibid., p. 5-6.
35 Título da edição brasileira (WMF, Martins Fontes, 2011), o original inglês chamava-se The Death and Life
of Great American Cities.
36 SANTOS, Ângela Moulin S. Penalva, op. cit., p. 44.
37 Op. cit., p. 393-4.
38 Ibid., p. 394.
39 O termo já havia sido empregado antes, por exemplo, por David Harvey. A produção capitalista do
espaço. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2006.
40 SANTOS, Ângela Moulin Penalva, op. cit., p. 47.
41 Ibid., p. 47-8.
42 Op. cit., p. 181-2.
43 Op. cit., p. 49-51.
44 Ibid., p. 57-8.
45 CORREIA, Fernando Alves. O plano urbanístico e o princípio da igualdade. Coimbra: Almedina, 1989,

1862
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

p. 170.
46 Op. cit., p. 223.
47 Op. cit., p. 181-6.
48 Ibid., p. 181.
49 Op. cit., p. 236.
50 Op. cit., p. 182.
51 ESTATUTO da Cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos, p. 43.
52 Direito urbanístico brasileiro, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 125.
53 Op. cit., p. 183.
54 Para uma discussão mais aprofundada sobre a atividade de conformação do direito de propriedade, confira-
-se BRITO, Miguel Nogueira de. Propriedade privada: entre o privilégio e a liberdade. Lisboa: Fundação
Manuel dos Santos, 2010, em especial p. 93-8.
55 Op. cit., p. 185.
56 Op. cit., p. 126.
57 Op. cit., p. 384-5.
58 Op. cit., p. 175.
59 Ibid., p. 181.
60 Ibid., p. 237-8. Destacou-se.
61 Esta parece ser a leitura de Rose Compans em Empreendedorismo urbano: entre o discurso e a prá-
tica. São Paulo: Unesp, 2005, especialmente entre as páginas 55-66.
62 Op. cit., p. 91.
63 Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana, 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 72/3.
64 Mudar a cidade: uma introdução ao planejamento e à gestão urbanas. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2006, p. 333-4.
65 O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson & FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade:
comentários à lei 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 56-7.
66 Op. cit., p. 97.

1863
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Quando o planejamento urbano


conspira contra a cidade: uma
avaliação através da recente
produção imobiliária de Maringá

Beatriz Fleury e Silva1

INTRODUÇÃO

Nos últimos 30 anos vários foram os avanços obtidos na direção da


política urbana brasileira. Resultado de um largo movimento pela Reforma
Urbana iniciado na década de 70, a atual Constituição Federal aprovada
em 1988, elevou a função social da propriedade ao patamar do princípio
da política urbana brasileira e abriu também um processo de reforma
institucional, especialmente no plano local, estabelecendo os parâmetros
para a construção dos marcos legais subseqüentes. Importante também
destacar que neste momento, ocorre o ingresso do Direito Urbanístico na
esfera constitucional, como ramo autônomo do Direito, proporcionando
ainda maior controle do desenvolvimento urbano.
O Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257 de julho de 2001, surge doze anos
depois, regulamentando os artigos 182 e 183 da Constituição e repre-
sentando um passo importante na formatação de uma política urbana
participativa e com controle social. Nova roupagem é dada ao planeja-
mento urbano, que contaria a partir daquele momento, com arcabouço
instrumental para melhor regular a produção das cidades dentro de um
processo participativo de construção das cidades.
Dez anos após aprovação do Estatuto, foi realizada uma grande refle-
xão sobre os alcances da justiça social e direito a cidade, assim como as
perspectivas para o fortalecimento do planejamento e da gestão urbana no

1865
Brasil, publicada no livro “Os Planos Diretores Municipais Pós Estatuto da
Cidade: balanço crítico e perspectivas”, organizado pelo Observatório das
Metrópoles (IPPUR/UFRJ) – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro através de convênio
com o Ministério das Cidades. Os resultados apresentados no livro não
foram animadores, pois apesar da grande maioria dos municípios con-
tarem com a aprovação do Estatuto da Cidade em seus planos diretores,
ainda é longo o caminho para que os instrumentos do Plano Diretor sejam
capazes de efetivamente auxiliar no acesso a terra urbanizada a todos.
O início da década de 2000, ao mesmo tempo em que cria expectativas
na direção do direito a cidade, assiste ao aumento paulatino de crédito e
financiamento habitacional fortalecendo o capital imobiliário e promoven-
do a continuidade das aventuras especulativas do mercado imobiliário,
tão presentes na produção das cidades, fazendo acentuar os processos de
segregação socioespacial tão combatidos quando todo este movimento
de transformações descrito anteriormente se iniciou.
A seguir será apresentada neste texto uma breve análise das recentes
mudanças institucionais e normativas da política urbana do país, assim
como o novo cenário imobiliário, resultando em uma prática de planeja-
mento urbano cada vez mais contrário ao direito à cidade. Na sequência,
é apresentado o caso da cidade de Maringá, através de um emblemático
empreendimento imobiliário, o qual deixa flagrante este descompasso.

1. AVANÇOS E RETROCESSOS DA
POLÍTICA URBANA BRASILEIRA

Por aproximadamente quatro décadas, sobretudo as grandes cidades


brasileiras apresentaram um significativo crescimento espacial e popula-
cional advindo da crescente urbanização do País. Assim, a problemática
urbana e social latente, levou às lutas sociais articuladas em torno da
derrubada do regime militar ao longo dos anos de 1970 e início de 1980,
contribuindo para que a questão urbana ganhasse a cena política no Bra-

1866
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sil. Inúmeras entidades que estavam organizadas em bairros periféricos,


em torno de segmentos profissionais, de gênero e etnia, se organizaram
em nível nacional e contribuíram para a elaboração de subsídios para a
Assembléia Nacional Constituinte de 1986, a qual gerou a Constituição
promulgada em 5 de outubro de 1988.
De acordo com Ribeiro e Santos Jr. (1994, p.5), a Constituição de 1988
abriu um processo de reforma institucional, especialmente no plano local.
Os autores observam que as reformas no arcabouço jurídico dos muni-
cípios, após a promulgação da Carta, foram no sentido de busca de um
novo modelo de política e gestão da cidade: democrática em relação às
condições e atores de processo decisório governamental, universalista no
que diz respeito aos direitos sociais na cidade, redistributiva dos ônus e
custos da urbanização, sendo a figura do Plano Diretor, obrigatório para
cidades acima de 20 mil habitantes, o principal norteador destas mudan-
ças. Estavam estabelecidos os parâmetros para a construção dos marcos
legais subseqüentes.
Doze anos após, o Estatuto da Cidade veio representar um passo im-
portante na formatação de uma política urbana participativa com controle
social, colocando novamente em pauta o Plano Diretor como possibilidade
de desenvolvimento qualitativo das cidades. A proposição que permeia
a lei é a garantia a todos do direito de acesso à cidade, no entanto, a sua
implementação depende dos municípios, e a realidade tem demonstrado
extrema resistência na aceitação dos instrumentos. Dentre seus instru-
mentos, o que mais se anseia provocar alterações no quadro do direito à
moradia e à cidade e o da ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social. Sem
dúvida sua ampla aprovação nos diversos Planos Diretores aprovados no
país é um saldo positivo, mas deve ser combinado com normas urbanísti-
cas que reconheçam as especificidades das áreas a serem regularizadas e
com processos de gestão democrática. Os moradores estão sendo inseri-
dos na cidade, na medida em que suas áreas de residência passam a ser
legalmente reconhecidas, mas não integrados na sociedade. Para tanto,
precisariam ser reconhecidos socialmente como iguais, como portadores
dos mesmos direitos.

1867
Na continuidade do avanço das políticas urbanas, em 2003 é criado
o Ministério das Cidades e a destinação, sobretudo, para as áreas de
habitação e saneamento são inseridos dentro de uma visão ampliada e
integrada das questões de desenvolvimento urbano. As decisões se tor-
naram descentralizadas e tomadas com envolvimento da comunidade,
através da participação nas audiências e conferências públicas em nível
municipal, estadual e federal. O quadro que se colocou foi da retomada
do papel do Estado central na definição de uma política capaz de enfren-
tar as dinâmicas do chamado “capital imobiliário” por meio de políticas
e instrumentos redistributivos, que pudessem recuperar e redistribuir as
mais-valias urbanas e prevenir o enriquecimento sem justa causa gerado
pelos investimentos públicos em nossas cidades.
Um dos principais avanços da criação do Ministério das Cidades foi a lei
nº 11.124/2005, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação– SNH
e estabelece as bases do desenho institucional da política nacional, cria o
Fundo Nacional de Habitação - FNH e institui o Conselho Gestor do FNH.
O Sistema Nacional possui dois subsistemas com fundos específicos, um
voltado à habitação para a baixa renda e outro para o mercado privado.
Pela primeira vez, a população de baixa renda é assistida com recursos
capazes de minimizar déficit habitacional então na ordem de 7 milhões
de domicílios, um avanço. Dando continuidade a nova política urbana, em
2009 é aprovado o Plano Nacional de Habitação dando as bases para os di-
versos planos municipais construídos de forma participativa, muitos deles
já iniciados em 2008, na expectativa de ser lançado sobre os municípios,
um verdadeiro olhar sobre seus específicos problemas habitacionais. Na
contramão, entretanto, de todo este novo quadro, o governo federal lança
no mesmo ano de 2009 em conjunto com os principais empresários do
setor da construção civil, um programa habitacional para sanar o déficit de
moradias – o Programa Minha Casa Minha Vida - PMCMV, o qual revela-se
mais como um programa voltada a dinamização do mercado imobiliário.
Iniciava-se um retrocesso na política urbana e habitacional brasileira.

1868
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

2. MUDANÇAS RECENTES NA PRODUÇÃO IMOBILIáRIA


DO BRASIL: NOVA ROUPAGEM, VELhOS IMPACTOS

Anos depois da aprovação da nova Constituição Federal em 1988,


durante o primeiro governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), foi
aprovada a Lei 9.514 de 1997 que dispõe sobre o SFI - Sistema de Finan-
ciamento Imobiliário e atua de maneira complementar ao SFH – Sistema
Financeiro de Habitação vigente da década de 1960 a 1990. O SFI instituiu
a Alienação Fiduciária de Coisa Imóvel, visto como saída para a reformu-
lação do financiamento habitacional e aumento do crédito imobiliário
do país. Para Royer (2009) apud Shimbo (2010, p.51) tratou-se de uma
arquitetura de financiamento do crédito imobiliário tendo duplo enfoque:
“um novo ambiente de negócios imobiliários, fundado na capitação no
mercado e afirmação do protagonismo dos agentes privados na condução
do financiamento.”
O quadro de mudanças nos financiamentos imobiliários, como aborda
Rufino (2010), foi beneficiado pelo crescimento econômico do país, pas-
sando a apresentar expressiva valorização a partir de 2005. Esta estabili-
dade macroeconômica, iniciada em fins da década de 1990, trouxe taxas
de juros mais baixas, investidores e agentes financeiros interessados no
mercado imobiliário, que tem crescido vertiginosamente encontrando
espaço inclusive no mercado de habitação econômica.
Como parte da expansão do mercado imobiliário, deste período até
2008, 25 empresas imobiliárias abriram seus capitais na bolsa captando
mais de 20 bilhões de dólares, porém, conforme coloca Maricato (2011,
p.63), “a euforia com a captação inédita de recursos e a promessa de
novos tempos para o mercado durou pouco”. As causas foram desde a
crise hipotecária dos EUA até mesmo a falta de experiência com a faixa
de renda que vinham atuando. Estoques numerosos de terra e excesso de
produção, fez com que houvesse fechamentos ou compras de empresas.
O governo brasileiro então, no intuito de dar condições para minimizar os
impactos possíveis desta crise no país, responde com a criação em julho

1869
de 2009 do PMCMV - Programa Habitacional Minha Casa Minha Vida - lei
11.977/2009.
Amplamente criticado pela academia2, este Programa ambicionava
construir 1 milhão de casas em sua primeira versão (meta já cumprida)
e 2 milhões na segunda, já demonstrando ser, como defende Shimbo
(2012), um programa de habitação social de mercado, sendo construído
não só como política para sanar o déficit habitacional do país, (o qual foi
se acumulando durante quase duas décadas sem política habitacional
para baixa renda), mas como pacote ante-crise, dinamizando a construção
civil, a qual já contava com cenário financeiro propício para dinamizar
ainda mais o setor.
O PMCMV surge como alinhavo final de um processo de financeirização
da habitação e injeção poderosa de créditos imobiliários no mercado. Além
disso, vem descolado de um plano a longo prazo, uma vez que desconsi-
dera avanços institucionais recentes na política urbana como as ZEIS e o
Plano Nacional de Habitação - PLHIS, que como ressalta Bonduki (2010),
foi atropelado pelas medidas do governo em conter a crise econômica e
dinamizar a construção civil; e assim, assiste-se a inserções pontuais, por
exemplo, em áreas não programadas pelos planos diretores e de habitação,
como é o caso das cidades a serem estudadas.

‘O PMCMV não foi formulado a partir das características intrínsecas


ao problema habitacional, mas sim das necessidades impostas pelas
estratégias de poder, dos negócios e das ideologias dominantes. “Este
programa vem provocando significativas alterações na configuração
sócio espacial das metrópoles brasileiras bem como seu cenário
econômico”. (ARANTES E FIx, 2009)

Toda esta frenética produção imobiliária impulsionada pelo aumento


de crédito acompanhado do lançamento do PMCMV tem provocado mu-
danças na configuração espacial de muitas cidades brasileiras e motivado
diversas pesquisas3, sobretudo nas metrópoles. Este impacto também foi
sentido em graus menores nas cidades médias e aquelas pertencentes
a aglomerados metropolitanos. O PMCMV tem concentrado a produção
habitacional brasileira desde 2010, caminhando no contrafluxo, pois o

1870
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

que se assiste são conjuntos populares em áreas eleitas pelo capital imo-
biliário e segundo seus critérios, uma vez que até mesmo os usuários são
escolhidos pela definição do investimento.
Não só o PMCMV, mas as classes médias e altas, com grande oferta de
crédito no mercado, fizeram com que os anos de 2010 a 2012, assistis-
sem a uma produção imobiliária vertiginosa de norte a sul do país, já em
momento de desaceleração no ano de 2013, frente à numerosa oferta de
produtos habitacionais. Assim, o quadro de segurança financeira descrito
anteriormente associado a um programa habitacional desenhado para o
mercado, cria todas as condições para que o capital imobiliário (cada vez
mais seguro e libertário e que tem encontrado gestões públicas suscetíveis
à manipulação da legislação urbana), imprima nas cidades novamente a
desigualdade urbanística, social e ambiental.

3. PLANEJAR OU EMPRESARIAR UMA CIDADE: BREVE


hISTóRICO DA PRODUÇÃO DO ESPAÇO EM MARINGá

O município de Maringá sempre teve no planejamento urbano, o con-


dutor de seu desenvolvimento, sempre pautado em princípios técnicos que
foram desenhando a cidade a favor de concepções econômicas, políticas e
sociais. O resultado tem sido numa configuração cujas marcas apresentam
profundo processo de segregação socioespacial.
Possuindo atualmente 357.117 habitantes segundo IBGE 2010, Maringá
está localizada no norte do Estado do Paraná, sendo pólo de sua região
metropolitana desde 1998. Fruto do projeto da colonizadora Companhia
Melhoramentos Norte do Paraná – CMNP que implantou um total de 64
núcleos. A cidade foi inaugurada em 1947 para ser polarizadora de uma
região, sendo criadas condições espaciais para que o território metropo-
litano fosse desigual desde sua formação. Desta forma, promoveu con-
centração de classes de renda médias e altas na cidade pólo e classes de
renda baixas nos demais municípios, levando a processos de segregação
socioespacial para dentro e fora de seu perímetro, sendo os municípios

1871
hoje conurbados de Sarandi e Paiçandu, os absorvedores da pobreza,
crescendo sob condições socioespaciais bem inferiores ao pólo.

Fig. 1 – Localização do município de Maringá no país, estado e a inserção de sua área urbana. Fonte: Obser-
vatório das Metrópoles – núcleo RMM, 2013.

O plano urbanístico de Maringá foi encomendado ao engenheiro Jorge


Macedo Vieira que estabeleceu um zoneamento pautado nos diferentes
usos e em classes sociais, destinando áreas de uso residencial – popular,
principal e operária, comercial misto, armazéns e industriais. A negociação
seguiu a valorização já prevista em cada área, refletindo claramente a vi-
são capitalista da CMNP sobre o território, portanto deveria ser lucrativa.
Rodrigues (2004) coloca que assim a segregação socioespacial é adqui-
rida desde a concepção da cidade, onde se previu um zoneamento que
estabelecia a zona seguindo padrões sociais, deixando claro que a cidade
que ali se instalava não era para todos. Assim os preços dos imóveis se
condicionaram as zonas estabelecidas, privilegiando a zona central como
a que mais se valorizaria. A CMNP exercendo monopólio por anos sobre
as terras de seus territórios impulsionou pressões e especulação sobre os

1872
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

preços do solo, sobretudo em Maringá, mesmo após as primeiras eleições


na cidade4, pois mantinha influências com o legislativo e vários gestores
municipais e até mesmo estaduais, norteando por anos a expansão das
cidades por ela planejada e garantindo o lucro para todos. A parceria
Estado e mercado já se apresentava, portanto, desde a gênese da cidade.
Em 1953, como coloca Cordovil (2010, p.220), no 1º ano após a insta-
lação dos poderes executivos e legislativos é apresentada a proposta do
Código de Posturas, somente aprovada em 1959, dois anos após a criação
do departamento de Obras e Urbanismo e que irá aplicar o Código, bem
como as primeiras normativas de zoneamento da cidade, e assim gerir o
crescimento urbano. Beloto (2004, p.90) resume que em fins da década
de 1950 a idéia central era ordenar. No entanto, toda estrutura pública
não foi capaz de conter que os limites do perímetro do plano não fossem
ultrapassados, desta forma três loteamentos foram implantados em área
rural, dando os primeiros sinais, como apresenta Beloto (2004, p.92), das
ações especulativas sobre o solo urbano de Maringá, mesmo este apre-
sentando diversos lotes vazios na época.
Para incentivar a vinda de novos moradores e investidores nas suas
cidades implantadas, a Companhia colonizadora fazia grandiosa publi-
cidade, a ponto de ser utilizada até hoje pelos seus gestores e diversas
organizações civis para atração de investimentos e ocupação, assim se
na década de 50 se falava que Maringá possuía “a mais moderna técnica
urbanística” na década de 90 a denominaram “a Dallas Brasileira”.
Na década seguinte, já sem a presença da CMNP nas decisões públi-
cas, a cidade aprova seu primeiro plano diretor em 1968 (lei 621/68),
bem como as leis urbanísticas aprovadas – zoneamento, parcelamento e
novo código de obras, que segundo Beloto (2004, p. 102), “vieram trazer
uma concepção tecnicista ao planejamento da cidade e concatená-lo aos
propósitos urbanísticos em desenvolvimento”. Este plano, porém, não se
tratou de um documento bem detalhado, continha algumas passagens que
deixava confusa sua interpretação, dando margens ao mercado para atuar
conforme percebia brechas deixadas pela lei, mercado esse já esclarecido

1873
a esta altura, da renda que seria possível obter a partir da localização dos
terrenos em Maringá, que mais tarde também se valorizarão pelo mono-
pólio (fig.8), como ressalta Villaça (2012, p.39), quando expõe o preço da
terra- localização.5
Na década de 70, com o processo do êxodo rural promovido pela
substituição do café pela soja, além da geada severa de 1975, segue com
vertiginoso crescimento seguido de ações públicas de infraestrutura para
acomodar os moradores que em fins de 1976 já ocupavam 82,43% dos
lotes. Sucessivas ampliações do perímetro urbano são realizadas deixando
enormes vazios à espera da especulação, elevando assim a fragmentação
urbana e valorizações desiguais de solo urbano. Embora a cidade contasse
com um escritório técnico na área urbanística, que controlava (mesmo an-
tes da lei federal 6766/79), todo desenvolvimento urbano, não se imprimia
a mesma qualidade em toda cidade, sendo os bairros populares menos
atendidos e a propaganda de cidade planejada já não mais se sustentava
em todo seu perímetro.
Nesta mesma década se intensifica a verticalização da cidade, que não
mais se concentra na área central, demarcando na paisagem o que já era
desejo do governo federal, reforçar a cidade como pólo regional noroeste.
Inicia-se nesta década um mercado imobiliário voltado para a produção de
edifícios verticais residenciais, bastante especulativo e rentável em relação
ao setor de serviços que irá se concentrar na oferta à classe média e alta,
com exceção dos inúmeros edifícios do BNH feitos para classe popular.
Mais uma vez a parceria Estado-mercado acontecia.
Rodrigues (2004, p. 74) apresenta que havia ainda uma parcela da
população sem acesso ao mercado legal, dando origem a ocupações
irregulares em terrenos públicos espalhados pela cidade, assim como
alguns núcleos de favelas. O processo de favelização foi assistido nesta
época na maioria das maiores cidades do país, mas a forma como foram
erradicadas definitivamente em Maringá e sem chances de reincidências
foi peculiar. Assim a partir da gestão iniciada em 1973 até 1988, foram
erradicadas todas as habitações subnormais existentes na cidade, sendo

1874
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

parte absorvida pelos municípios vizinhos de Paiçandu e Sarandi.


Cinco anos após o último aumento do perímetro urbano da cidade,
ocorre novo acréscimo, desta vez de 50% sobre a área urbana, com a
justificativa de ser a única forma de obter terra barata para os conjun-
tos habitacionais que seriam implantados, prática esta comum no país.
Este aumento em flagrante articulação do poder público com o mercado
desestruturou espacialmente a cidade e segregou parcela da sociedade
do restante da cidade, ao mesmo tempo supervalorizando os terrenos
existentes nos vazios existentes entre a área consolidada e expandida,
criando nova oportunidade de acumulação do capital.
Em 1989, com apenas 42 anos de existência, segundo Mendes (1992,
p.156), a cidade já contava com 10 principais construtoras/incorporadoras
responsáveis pela verticalização em Maringá, as quais se distribuíam na
verticalização da cidade com alguns proprietários destas empresas pos-
suindo fácil penetração na administração ou em órgãos de classe. A prática
de participação em associações de classe e/ou no mercado imobiliário
é bastante comum até hoje e desde muito cedo a cidade já contava com
algumas associações de classe que foram adquirindo forte influência nas
decisões da cidade. Muitos prefeitos da cidade, por manterem atividades
comerciais ou industriais, compuseram diretorias e isso ocorre até os dias
de hoje, fazendo com que a associação seja quase como um braço nas
decisões públicas da cidade.
A verticalização atinge seu auge tendo o centro seu maior foco, afir-
mando-o em sua centralidade e valorização. Nesta década, com mudança
de gestão e argumentos sobre a necessária regulação à realidade urbana
da cidade, além de explícitos favorecimentos ao mercado imobiliário, um
novo conjunto de lei é aprovado, sem que houvesse rediscussão do seu
vigente Plano Diretor. Em fins da década de 80 e início de 90 vê-se uma
mudança de estratégia por parte do capital na direção continuada de
valorização imobiliária seguida de especulação imobiliária, promovendo
por meio do discurso da renovação urbana, uma alta valorização do solo
próximo a área central. Nasce o projeto urbano Novo Centro, que após

1875
recusar proposta encomendada para o arquiteto Oscar Niemeyer, retalha a
região em lotes possíveis de serem especulados pelo mercado, se dirigindo
para lá todo capital imobiliário.
Já na década de 90, há um declínio na produção face à economia do
país e novos ajustes dados pela legislação urbana em Maringá. Aprova-se
então em 1991 o Plano Diretor Integrado de Desenvolvimento pela Lei
Complementar 01 de 27 de dezembro. Neste plano é inserida pela primeira
vez a questão metropolitana como diretriz de desenvolvimento do espaço
urbano e regional. O zoneamento, principal instrumento regulatório do
Plano é atualizado duas vezes em 1994 e em 1999.
Em 1997, foram criados dois órgãos para conduzir as ações públicas
e a fiscalização na área urbana: Secretaria de Desenvolvimento Urbano
e Habitação – SEDUH – e o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
de Maringá – IPPLAM, sendo este último extinto com menos de dois anos
de existência, contraditório para uma cidade nascida sob a égide do pla-
nejamento. Um novo conjunto de leis foi aprovado no ano de 1999, entre
elas, o Sistema Viário Básico. Como colocam Cordovil e Rodrigues (2010,
p.1), a visão tecnocrática que perpassa a elaboração dos planos anterio-
res permaneceu naquele momento, pois ainda não havia a orientação de
incluir participação da sociedade civil no processo.
Paralelamente aos planos que o poder público tinha para cidade, em
1996, a entidade de maior influência de Maringá - ACIM – Associação
Comercial e Industrial, motivada por responder à recessão econômica
imposta à cidade, mobiliza uma parcela da sociedade, sobretudo do ramo
imobiliário, para repensar a cidade. Este movimento assume o controle
político da cidade dando origem aos sucessivos planos estratégicos de
futuro, amparando ações dos gestores e alimentando cada vez o que mar-
caria a produção imobiliária da década de 2000, uma produção pautada
na visão da cidade-mercadoria, como define Vainer (2000).
Nos anos de 2000 e 2002 dois planos diretores são elaborados, mas
não transformados em lei, ficando até 2005 sem alterações, diante de
gestões descompromissadas com a aprovação de um novo documento

1876
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

orientador do desenvolvimento da cidade. Finalmente, em 2001 com a


aprovação do Estatuto da Cidade, Maringá incorpora interesses novos no
cenário do planejamento. Como apresentam Cordovil e Rodrigues (2010,
p.1), a possibilidade da abertura democrática e participativa amplia o en-
volvimento de outros atores nos processo até então tecnocrático de fazer
planejamento, instituindo a disputas entre eles.
Os processos participativos em Maringá tiveram espaço a partir de
2003 quando ocorre a I Congresso da Cidade de Maringá, subsidiando a
revisão do plano diretor, mas, apesar das assembléias locais, plenárias
temáticas e comissões de acompanhamento constituídas, os interesses
imobiliários e de proprietários fundiários, pesavam desfavoravelmente
com relação aos instrumentos de gestão social da valorização, assim al-
guns aspectos aprovados na Conferência não foram contemplados mais
a frente no atual Plano Diretor.
No ano de 2004, ocorre a sanção do Decreto Estadual nº 2.581/2004,
que definiu que somente seriam firmados convênios de financiamento de
obras e serviços com os municípios que possuíssem os planos diretores e
zoneamento em conformidade com o Estatuto da Cidade. Isso provocou
uma aceleração na feitura dos novos planos diretores no Estado e motivou
com a posse de novo prefeito, a retomada das discussões de revisão do
Plano Diretor e em 2006, após longos debates, porém restritos a apenas
10 membros pertencentes a uma comissão, aprova-se a Lei Complemen-
tar no 632/2006, em 06 de outubro de 2006, a nova lei do Plano Diretor.

4. BREVE RELATO DA TRAJETóRIA DO PLANEJAMENTO


URBANO E DA PRODUÇÃO IMOBILIáRIA EM MARINGá
APóS APROVAÇÃO DO PLANO DIRETOR DE 2006

O plano diretor de Maringá aprovado em 2006 trouxe ganhos na ins-


tância participativa e preocupações importantes, uma vez que derivou
de amplo debate lançando um olhar sob a ótica das potencialidades e
deficiências da cidade, assim, definiu macrozonas que contém diretrizes

1877
para áreas até então à margem do planejamento da cidade, como antigas
áreas industriais e adjacências da linha férrea. Também incorporou os
instrumentos do Estatuto da Cidade, a contenção da ocupação nas bor-
das do perímetro urbano, entre outros aspectos, desenhando um plano
mais afinado com o município. Todavia a definição e implementação
de suas leis específicas, tanto de ordenação como dos instrumentos do
Estatuto, tiveram que esperar quatro anos para que fossem efetivamente
implementadas. Com exceção da outorga onerosa que era de interesse
do mercado e de pontuais aprovações de ZEIS, os demais instrumentos
que assegurariam o direito à cidade por meio do acesso à terra urbana só
foram implementados em 2011, assim, o problema de falta de moradia
para a população de baixa renda e as desigualdades no acesso ao solo
urbano, com ocupação inclusive dos inúmeros vazios, foram até hoje
pouco enfrentados.
As ZEIS em Maringá, um dos principais instrumentos que estão na
direção do alcance ao direito à cidade, foram aprovadas somente após
elaboração do PLHIS do município em 201, sendo regulamentadas através
da nova lei de zoneamento (lei 888/11), entretanto se localizam ou em ter-
renos públicos que foram desafetados em diversos bairros ou em distritos
de Maringá, com a argumentação de que não havia terrenos na cidade,
cujos valores suportassem instalação de habitações sociais. Percebe-se
que a decisão de pulverização das ZEIS na cidade impede a criação de
bolsões de pobreza e as inseri nos bairros já consolidados, próximo aos
serviços e infraestrutura, prerrogativas do próprio instrumento, no entanto
promoveram a anulação de futuras áreas de lazer nas comunidades onde
tiveram seus terrenos públicos substituídos por habitações.
A partir de 2008, o poder público, respaldado pelo Conselho Munici-
pal de Planejamento e Gestão Territorial (em decisões não unânimes),
tem apresentado várias alterações no plano diretor em conferências e
audiências sempre realizadas nas segundas ou terças-feiras em horário
comercial, apesar das reclamações junto ao Ministério Público por par-
te de alguns setores da sociedade. A plenária, boa parte formada pelos

1878
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

funcionários públicos dispensados para votar a favor das proposituras e


pelos empresários do ramo imobiliário, tem garantido com que todas as
alterações pretendidas sejam aprovadas, mesmo sob protestos de parte
dos presentes6, deformando pouco a pouco o atual Plano Diretor. Duas
delas cabem aqui relatar.
Em 2010 a então denominada no Plano Diretor Macrozona de Con-
tenção, criada para frear a expansão horizontal da cidade, foi substituída
por Macrozona de Ocupação Imediata, argumentando-se que haviam
poucas áreas vazias para loteamentos, inclusive populares, o que fazia
com que o valor do solo subisse vertiginosamente. A mudança na lei
ocorreu e claro, o preço não diminuiu, pois o valor imobiliário urbano
contém múltiplos componentes. Ao contrário, estão sendo criados novos
empreendimentos nas bordas da cidade favorecidos pelas novas regras
de parcelamento, como condomínios para classe alta e ao mesmo tempo
bairros populares do MCMV colados ao novo limite do perímetro, em
regiões quase rurais. São práticas como essa que aprofundam e mantém
a histórica segregação social e o afastamento do direito a cidade que
compõe o cenário regional metropolitano.
A outra mudança recentemente implantada, diz respeito ao instru-
mento da outorga onerosa, anteriormente definido para ser aplicada em
habitação social. A lei 908/2011 determinava em seu art. 3º, que outorga
onerosa era instrumento destinado a financiar a execução de programas
e projetos habitacionais de interesse social, priorizando famílias de até
3 salários mínimos. Esta lei deixava claras as formas de aquisição de
outorga bem como a contrapartida de quem a adquiriria, que seria feita
através de doação de imóvel ou repasse ao FMHIS- Fundo Municipal
de Habitação de Interesse Social. Finalmente, formulou-se em Maringá
uma lei que atendia ao que foi privilegiado no Estatuto da Cidade, ou
seja, recuperação pública da renda da terra urbana. Com isso tinha-se
um formato necessário à cidade que permitia ao poder público promover
eficazmente a redução das desigualdades sociais da cidade, fator im-
portante uma vez estas ações tem sido tímidas. Ocorre que no presente

1879
ano foi aprovada a lei 941/13, que mesmo pretendendo contemplar o
artigo 31 do Estatuto e atender a diversidade de finalidades previstas,
sabe-se que foi estratégico para utilizá-la no favorecimento aos novos
empreendimentos, sendo isso que ocorreu. O projeto Eurogarden a ser
apresentado é o caso mais emblemático.

5. A PRODUÇÃO IMOBILIáRIA DE MARINGá


A PARTIR DE 2006: RETRATO DE UM PLANO
DIRETOR A SERVIÇO DO CAPITAL

Com a segurança de crédito alcançada a partir da criação do Sistema


Financeiro Imobiliário em fins da década de 90, estabilidade política através
da eleição em 2003 de um prefeito saído da elite tradicional da cidade e o
lançamento em 2012, de uma nova área de investimentos residenciais na
cidade (antigo aeroporto), criaram-se as condições ideais para um novo
crescimento imobiliário em Maringá, ou seja, apoio do Estado, crédito e
terra para o capital.
Segundo matéria veiculada no jornal O DIÁRIO em julho de 20107, o
crédito imobiliário liberado na cidade de Maringá nos últimos sete anos
seguia uma verdadeira escalada de valores, passando de milhões para
dezenas de milhões e, finalmente, centenas de milhões de reais. Em
2011, segundo jornal Gazeta Maringá8 foram registrados R$ 1.048 bilhão
de recursos para o crédito imobiliário em Maringá e 120 municípios da
região noroeste do Estado, 25,2% a mais que 2010 e 22,5% a menos que
2012. Em 2012, de acordo com o superintendente da Caixa Econômica de
Maringá, a média diária de contratações de crédito para compra de imóveis
foi de R$ 5,1 milhões, fazendo com que a soma de apenas cinco dias de
empréstimos em 2012 se equivalesse a todo o volume verificado em 2003.
O número de edifícios aprovados para construção, segundo a prefei-
tura de Maringá, cresceu seis vezes em 12 anos. Em 2012, a Secretaria
Municipal de Planejamento e Urbanismo (Seplan) liberou a construção
de 79 prédios ante 13 no ano de 2000. Mas foi nos últimos três anos que

1880
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

a verticalização começou a crescer a passos largos na cidade. Em 2011,


a prefeitura aprovou o dobro de edifícios de 2010 passou de 36 para 70.
Maior disponibilidade de crédito imobiliário, demanda por imóveis e alto
custo dos terrenos, explicam essa tendência (em apenas um ano, de maio
de 2012 ao mesmo mês de 2013, os lotes tiveram valorização de 18,56%).
Mesmo com um déficit atual de 10.400 mil unidades habitacionais em
Maringá, segundo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - IPEA,
2013), a grande maioria deste financiamento tem sido direcionado para
classe média ou ainda nova classe média (antigas D e C e que migraram
para B e C), em função do alto valor do solo da cidade.
Em relação à produção do PMCMV, pesquisa nacional realizada entre
os anos de 2010 e 2012 pelo INCT/Observatório das Metrópoles revelou
os primeiros resultados do programa e seus efeitos espaciais em várias
regiões metropolitanas. Para a região metropolitana de Maringá, a pesquisa
recortou as cidades conurbadas de Maringá e Sarandi, sendo observado um
grande ritmo de produção habitacional sob o protagonismo do mercado
cada vez mais crescente. Outra constatação é que mesmo promovendo
pequena redução de déficit de moradias para famílias de faixa de renda de
0-3 s.m., instalando-as com melhores condições urbanísticas, mantêm-se
a condição periférica de localização e com ela restrições à mobilidade às
áreas mais infraestruturadas da cidade.
Toda esta produção imobiliária em Maringá, advinda tanto do PMCMV
como de habitação empresarial, tem projetado novo arranjo espacial com
conseqüente reconfiguração urbana acompanhada de valorização imobi-
liária. Tem revelado também uma ampliação do protagonismo do capital
privado no mercado imobiliário verificado desde a gênese do município.

5.1 Planejamento urbano a serviço do mercado imobiliário:


o caso do empreendimento Eurogarden em Maringá

No ano de 2011 um grupo liderado por empresário do ramo super-


mercadista encomendou a um escritório Francês, um projeto urbanístico

1881
de edifícios de múltiplo uso para o terreno onde funcionava o antigo ae-
roporto da cidade, em área de 57,8 alqueires, até então vizinho da área
onde se especulava transferir o centro cívico. Trata-se de um novo bairro
que pretende abrigar 12 mil habitantes, comércios, serviços e áreas de
lazer de alto padrão. Para tanto, foi criada uma sociedade de propósito
específico, que incorporou empresários de várias áreas até então não
vinculados a área imobiliária, que vislumbram como seus futuros clientes,
moradores não só da cidade, como de outras localidades, que segundo
eles, visualizarão um paraíso para viver o resto de suas vidas. O slogan
utilizado pelo empreendimento é “um lugar que você gostaria de morar,
mas não sabia onde ficava”.
O projeto depois de elaborado foi apresentado à prefeitura, a qual
entusiasmada com as possibilidades do desenvolvimento urbanístico da
cidade, encaminhou ao Conselho Municipal de Planejamento do município,
um projeto de lei que criava a “Zona Especial Vinte e Três - ZE23 – Euro-
garden” . O mesmo foi aprovado em conferência pública sob inúmeros
protestos da sociedade civil, alterando-se, portanto, a lei 888/11 que trata
do novo uso e ocupação do solo do município.
Recentemente, dando continuidade a regulamentação do projeto, foi
aprovada a operação urbana consorciada Eurogarden. Nesta, por meio
de outorga onerosa os empresários ganharão potencial construtivo via
contrapartida de 30 milhões, os quais se reverterão em infraestrutura na
própria área dos próprios investidores, uma vez que esta estará ladeada
pelo novo centro cívico. Esta manobra não poderia ocorrer até 2012,
quando foi alterada a lei de outorga que previa exclusivamente para
habitação social, passando a permitir gastos com infraestrutura. Assim
os empreendedores com apoio quase irrestrito do legislativo, mas sob
protestos de algumas instituições, conseguissem usar a verba paga pela
outorga para benefício próprio (fig 3 e 4).

1882
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Fig. 3 – Implantação do projeto Eurogarden

Fig. 4 – Imagens divulgadas do Bairro Planejado Eurogarden

A divulgação feita pelos principais empresários do ramo imobiliário


é de que com a saturação da região conhecida como “Novo Centro”
(foco dos investimentos na década de 2000), um dos novos vetores de
expansão do capital imobiliário na cidade passou a ser a região do futuro

1883
Eurogarden, ao lado do novo centro cívico, atualmente já aprovado para
a cidade. A região que hoje já conta com alguns condomínios fechados,
ainda possui considerável população moradora de média e baixa renda
visto que os bairros limítrofes foram ocupados desde os primeiros anos da
cidade, podendo-se prever futuro processo de gentrificação. Neste sentido
afirmam Tows e Mendes (2011, p.11 ) verifica-se que em Maringá o poder
público se movimenta mais na direção de transformar Maringá em cidade
empreendimento, viabilizando novas áreas solváveis ao mercado, inclu-
sive áreas que estavam em pousio social ou possuíam outras atividades.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde a aprovação da Constituição Federal de 1988, sobretudo a


partir da aprovação do Estatuto da Cidade em 2001, não se pode negar
que avanços foram alcançados em direção às cidades mais participativas
com cumprimento a função social da terra e da propriedade, uma vez que
inúmeras delas trouxeram para suas pautas e para os mesmos espaços
de discussão, o debate a cerca da cidade desejada. No cenário nacional,
alguns resultados estão sendo conseguidos, como por exemplo, na área
habitacional através dos projetos de regularização fundiária, de financia-
mento específico para a baixa renda, entre outros. No entanto o caminho
ainda é longo para minimizar o poder do capital imobiliário, pois como
nos explica Gottdiener, (1997, p. 187), “a atuação estatal, a despeito de
sua autonomia relativa, é correlata aos interesses classistas e capitalistas
no ambiente construído e a eles se vincula sincronicamente no espaço
urbano”, isso possibilita e assegura a capacidade intrínseca e cada vez mais
constante do ramo imobiliário em extrair capital para aventuras lucrativas.
Por fim, corrobora-se com Ribeiro (2013), quando nos lembra que o
Estatuto da Cidade é instrumento legal que contém a concepção da reforma
urbana, pela qual a cidade deve ser administrada como riqueza social e
não como mercadoria.

1884
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Referências bibliográficas

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compartimentada. Jornal Folha de São Paulo. 21/8/2013
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RODRIGUES, Ana Lucia. A pobreza mora ao lado: segregação sócio-espacial
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tivas. Tese – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, São Paulo, 2009.
RUFINO, Maria Beatriz C. Incorporação da Metrópole. Centralização do Capital
Imobiliário e Nova Produção do Espaço em Fortaleza. Tese – Faculdade de
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São Paulo: Vozes.
VILLAÇA, Flávio. Reflexões sobre as cidades Brasileiras. São Paulo: Studio
Nobel , 2012

NOTAS

1 Doutoranda Arquitetura e Urbanismo USP, professora assistente do curso de Arquitetura e Urbanismo da


Universidade Estadual de Maringá, pesquisadora Observatório das Metrópoles, e-mail: bfsilva@uem.br
2 Desde 2009, são inúmeras as críticas publicadas sobre o PMCMV, especialmente ver Maricato, Ermínia. Im-
passes da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011 e Bonduki, Nabil. Do Projeto Moradia ao programa
Minha Casa, Minha Vida. Revista Teoria e Debate, 2009.
3 Cardoso et al(2012) recentemente publicou Programa Minha Casa Minha Vida e seus Efeitos Territoriais
que reuniu pesquisa nos anos de 2010/2012 pela rede Observatório das Metrópoles/INCT sobre os primeiros
impactos do MCMV no país. O estudo revelou o descompasso entre o Programa e o direito a cidade, com os
conjuntos habitacionais instalados nas periferias das cidades à escolha do mercado, muitas vezes atropelando
conquistas como Planos Municipais de Habitação e Zeis.
4 Segundo Rodrigues (2004), o primeiro prefeito, Inocente Villanova reafirmava constantemente, que as
dificuldades que encontrou foram inúmeras principalmente ligadas à grande influência da Companhia Me-
lhoramentos na organização do município
5 Villaça esclarece que o preço da terra-localização é determinado pela combinação de três componentes
cujo preço relativo variará de localização para localização, dentro da mesma cidade: aquele oriundo da renda
capitalizada; aquele oriundo do valor da terra-localização e aquele que exprime um preço de monopólio.
6 Em 2009, vários setores da sociedade insatisfeitos com a condução da política urbana de Maringá, inclusive
nestes espaços de debate, foi formado o Fórum Maringaense pelo Direito à Cidade - FMDC.
7 O Diário. Crédito imobiliário cresce 4,7 mil por cento em 8 anos. 04/07/2010.
8 Gazeta Maringá. Crédito imobiliário cresce 35% em 2012.03/01/2013

1886
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A experiência das compensações


urbanísticas em Curitiba para a
proteção de áreas verdes e bens
culturais: ponderações acerca dos
princípios da igualdade e da função
social da propriedade

Daniel Gaio1

1. A PREVALÊNCIA DO SISTEMA DE COEFICIENTE VARIáVEL

Com a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001, permitiu-se aos


municípios optar entre o coeficiente único e o variável de aproveitamento2
e, a partir desses parâmetros, aplicar o solo criado — agora denominado
outorga onerosa do direito de construir3. Poucas são as cidades brasileiras
que efetivaram o coeficiente único para toda zona urbana, como é o caso
de Florianópolis e Goiânia, onde a legislação permite transferir o direito de
construir quando as vinculações ambientais e urbanísticas impossibilita-
rem o aproveitamento básico igual a 1 (um), além de autorizar a concessão
onerosa do direito de construir (solo criado) aos que pretendem edificar
acima do parâmetro básico4.
Entretanto, em virtude da preponderância da lógica do mercado, aca-
bou prevalecendo a possibilidade de criar solo a partir dos coeficientes de
aproveitamento variáveis então existentes, o que demonstra claramente
a utilização dessa alternativa como fonte de receitas5. Além disso, esse
caminho permite um adensamento ainda maior das cidades, que traz gra-
ves reflexos para a infraestrutura urbana, além dos benefícios percebidos
serem desproporcionais às contrapartidas oferecidas6. Assim ocorrendo,
permanece prejudicada a proposta inicial em relação à delimitação do solo

1887
criado, que procura conjugar quatro mecanismos básicos: a) coeficiente
de aproveitamento único; b) vinculação a um sistema de zoneamento
rigoroso; c) transferência do direito de construir; e d) proporcionalidade
entre solos públicos e privados7.
Em suma, a adoção do solo criado a partir do coeficiente único de
aproveitamento urbanístico possibilita efetivamente estabelecer uma
relação de igualdade entre os proprietários urbanos, além de favorecer
a redistribuição dos benefícios entre os não proprietários. Entretanto,
como o Estatuto da Cidade estabelece uma cláusula aberta para que os
municípios tomem a decisão sobre o zoneamento, o solo criado transita
de uma eficiente técnica perequativa a uma condição agravadora das
desigualdades urbanísticas.

2. AS COMPENSAÇÕES URBANÍSTICAS E A PROTEÇÃO


DOS ESPAÇOS AMBIENTAIS NO MUNICÍPIO DE CURITIBA

Tendo predominado o regime de coeficiente variável de aproveitamen-


to, resta verificar em que medida a adoção de compensações urbanísticas
são suficientes para resolver as colisões entre o direito de propriedade e o
meio ambiente. Embora as referidas técnicas sejam utilizadas em diversos
municípios brasileiros, a análise se concentrará na experiência de Curitiba
em virtude da sua consolidada efetivação da transferência do direito de
construir e da outorga onerosa do direito de construir (solo criado), que
demonstra considerável aceitação junto aos proprietários urbanos.
Anota-se que a utilização de compensações por meio de incentivos
construtivos ocorre em outras cidades brasileiras desde 19698. A forma
embrionária do mecanismo atualmente conhecido por “transferência do
direito de construir”, consistia na cessão de áreas ao Poder Público para
ampliação do sistema viário e de áreas verdes, sendo que estas poderiam
ser computadas para fins de cálculo de aproveitamento na parte rema-
nescente do imóvel9.
No mesmo sentido — ainda que não existisse legislação federal acerca

1888
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

do tema à época10 —, desde 1982 o município de Curitiba autoriza como


incentivo para a preservação de bens de valor cultural, histórico ou ar-
quitetônico11 a possibilidade de realizar edificações no próprio terreno12,
embora também permita que o direito de construir seja transferido para
outro imóvel13. Além disso, outro estímulo oferecido aos proprietários diz
respeito ao cálculo do potencial construtivo a ser transferido, viabilizando
incluir no seu cômputo a área do bem protegido14 ou mesmo aumentá-lo
em até 100% — como ocorre no Setor Especial Histórico15. Entretanto, a
concessão do benefício ocorre por etapas, devendo-se comprovar, suces-
sivamente, a existência de um projeto de restauração e a execução das
obras referentes à parcela liberada anteriormente16.
A utilização da transferência do direito de construir como compensação
urbanística se estende também às áreas verdes nas seguintes situações:
ampliação de unidades de conservação17; criação de Reserva Particular do
Patrimônio Natural Municipal18; e proteção das faixas ao longo dos cursos
d’água protegidas pelo Código Florestal19 quando a vinculação inviabilizar
a ocupação do imóvel20.
Além das hipóteses relacionadas à preservação de espaços ambien-
tais, a legislação de Curitiba autoriza ainda a utilização da transferência
do direito de construir em substituição à indenização de processos de
desapropriação21, subutilização dos imóveis em função de vinculações
urbanísticas em um determinado setor urbano22 e proteção de áreas de
mananciais da região metropolitana, que são responsáveis pelo abaste-
cimento de água potável da capital paranaense23.
Somadas às diversas modalidades de transferência de potencial cons-
trutivo, outras possibilidades de proteção ambiental têm sido experimen-
tadas no município de Curitiba, destacando-se o manejo das normas de
ocupação do solo no próprio imóvel. Isso porque, desde a década de 80 do
século passado a legislação progressivamente vem buscando conciliar a
proteção das áreas verdes com medidas de estímulo à ocupação da parte
remanescente desses imóveis por meio de condições de aproveitamento
especiais, como o aumento do coeficiente e da altura da edificação24. Ou

1889
seja, como contrapartida aos incentivos construtivos, o proprietário efetua
pagamento em dinheiro ao município (outorga onerosa do direito de cons-
truir25), além de se comprometer com a salvaguarda do bem ambiental.
Preliminarmente, sublinha-se que tal salvaguarda não depende neces-
sariamente da aplicação das citadas técnicas urbanísticas, na medida em
que o dever constitucional de proteção ao meio ambiente imposto ao Poder
Público e aos proprietários por si bastaria para garantir a integridade dos
atributos ambientais. Além disso, percebe-se que no município de Curitiba
há um fator extralegal decisivo, como demonstra pesquisa realizada em
126 áreas verdes particulares, em que 82% dos proprietários afirmaram
que preservam esses espaços por motivos históricos, culturais, familiares
e ecológicos26. Igualmente os estímulos fiscais têm contribuído para a
proteção de bens ambientais, os quais muitas vezes são concedidos de
modo cumulativo com os incentivos construtivos27.
Entretanto, os resultados quantitativos obtidos com a aplicação da
transferência do direito de construir e da outorga onerosa em Curitiba,
além de garantir a proteção de um expressivo número de espaços am-
bientais28, vêm demonstrando que a solução urbanística tem reduzido a
níveis bastante baixos o questionamento de prejuízos decorrentes das
vinculações ao conteúdo do direito de propriedade29.
Por outro lado, ainda que exitosa a aplicação das supracitadas técni-
cas de compensação, é necessário analisar os critérios que permearam
a relação entre espaços ambientais protegidos e direito de propriedade,
notadamente no que se refere às condições de aproveitamento urbanístico
e às suas implicações para o conjunto da cidade.
Observa-se inicialmente que, no que diz respeito ao cálculo do coefi-
ciente de aproveitamento, a legislação de Curitiba pressupõe uma relação
de igualdade entre os espaços ambientais protegidos e os demais imóveis
situados no seu entorno30. Considerando que a maior parte das compen-
sações urbanísticas não é acompanhada da cessão da propriedade ao
Poder Público31, além dos valores auferidos com o incentivo construtivo,
o titular do bem igualmente usufrui as vantagens econômicas decorrentes
da utilização do imóvel.

1890
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Ainda que se perceba continuidade e elevado grau de aceitação dos pro-


prietários em face da política urbanística de Curitiba, em um zoneamento
com coeficientes variáveis defende-se aqui que os bens protegidos — em
decorrência de sua situação fática — possuam parâmetros de ocupação
do solo inferiores aos imóveis não protegidos, o que desestimularia me-
didas fraudulentas como incêndios32 e desmatamentos. Por outro lado,
havendo necessidade de incrementar a concessão de compensações
urbanísticas, como na hipótese de um volume maior de recursos para o
restauro de bens culturais, não há impedimento que a legislação preveja
que a transferência do direito de construir seja cumulada com a prévia
concessão da outorga onerosa33.
Outro aspecto a ser analisado diz respeito aos incentivos construti-
vos concedidos para os terrenos integrantes do Setor Especial de Áreas
Verdes, que abrange os bosques de mata nativa representativa da flora e
visam a preservação de águas existentes, do habitat da fauna, da prote-
ção paisagística e da manutenção equilibrada dos maciços vegetais34. Em
relação a essas áreas, que se caracterizam como unidades de conserva-
ção35, a legislação vigente de Curitiba consolida um modelo de proteção
ambiental em zona urbana que difere substancialmente dos demais entes
federativos brasileiros, pois estimula a ocupação36 quando o “padrão”
seria desestimulá-la.
Portanto, mesmo que a cobertura vegetal relevante esteja sujeita a um
regime jurídico restritivo, nas áreas remanescentes a utilização da outorga
onerosa37 (aumento do coeficiente de aproveitamento ou da altura da edifi-
cação) produz um adensamento maior que o estabelecido para imóveis não
protegidos. Independentemente da análise acerca da viabilidade ambiental
desse modelo — o que extrapola o objetivo deste trabalho —, constata-se
que o manejo dos coeficientes de ocupação é excessivamente generoso
em face dos dois princípios que devem pautar a ação do Poder Público
para essas situações: a integridade dos atributos ambientais relevantes e
a sustentabilidade econômica das propriedades urbanas.
Ademais, esse modelo desconsidera que a busca por qualidade de vida

1891
nas cidades ocasiona uma mudança de percepção acerca da paisagem de
matas fechadas, rios e outros elementos não construídos, que passam a
ser caracterizar como um diferencial positivo na definição do preço dos
imóveis urbanos.
Ainda no que diz respeito à sustentabilidade econômica, percebe-se
que o conjunto da legislação de Curitiba não discrimina a concessão das
compensações urbanísticas em virtude da intensidade da restrição do
conteúdo ao direito de propriedade. Nesse sentido, notadamente no que
se refere às áreas verdes, a uniformização dos critérios de compensação
deixa de considerar determinados aspectos que são importantes para
definir a necessidade e o alcance dos incentivos, tais como: a extensão do
imóvel e a sua relação com a percentagem de área protegida; a definição
e percentagem do regime de proteção (conservação ou preservação); as
condições físico-territoriais do terreno e sua relação com as legislações
ambientais de “caráter geral”; e a relevância da sua biodiversidade.
Interessante observar que a análise específica quanto à necessidade
da concessão de compensação em virtude de restrições ambientais não
é estranha na legislação de Curitiba, sendo verificada, por exemplo, na
hipótese das faixas de proteção ao longo dos cursos d’água inviabiliza-
rem a ocupação do imóvel38. Desse modo, considerando que todas as
solicitações de benefícios são analisadas de modo individualizado, nada
impede que o Poder Público realize a tarefa de ponderar acerca da solução
urbanística mais adequada ao caso concreto, de modo a aplicar, quando
necessário, quaisquer “condições especiais de uso e ocupação do solo”39
e incentivos de natureza fiscal40.
Entretanto, ainda que se defenda uma margem de discricionariedade
à Administração para ponderar acerca da necessidade de concessão das
medidas compensatórias, é necessário que a legislação estabeleça limites
máximos a tais parâmetros. Além disso, tendo em vista que a Constituição
Federal atribui aos espaços ambientais uma função social qualificada — o
que fundamenta uma maior compressão do conteúdo do direito de proprie-
dade —, é imprescindível que essas áreas possuam aproveitamento urba-

1892
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nístico reduzido, aliás, compatível com as suas características intrínsecas.


Com efeito, na hipótese da criação do espaço ambiental não ter violado
o conteúdo essencial do direito de propriedade urbano, o propósito da
compensação urbanística deve atender, prioritariamente, aos interesses
relacionados à integridade dos atributos ambientais. Apenas no caso de
esvaziamento da sua essencialidade a referida técnica urbanística também
deve privilegiar a situação proprietária.
Por outro lado, pode-se argumentar que as medidas compensatórias
igualmente possibilitam reduzir a desigualdade, ou mesmo nivelar o
tratamento urbanístico em relação às propriedades não afetadas por vin-
culações ambientais que se situam na mesma zona. Entretanto, além de
configurar situações fáticas materialmente diversas, essa uniformidade
de tratamento — geralmente reivindicada em áreas mais valorizadas que
recebem maior quantidade de benefícios públicos — contribui por acentuar
as desigualdades com outras localidades urbanas, notadamente quando
inexistem valores ambientais a serem protegidos41.
Cabe assinalar que as críticas aqui apresentadas não possuem o pro-
pósito de rejeitar o modelo de compensações urbanísticas construído no
município de Curitiba. Embora tenha se centrado demasiadamente na
posição proprietária — desconsiderando que o conteúdo desse direito
é intrinsecamente determinado tendo em vista os valores ambientais e
as funções sociais da cidade —, é inegável que os resultados ambientais
alcançados demonstram a relevância da experiência de Curitiba.

REFERÊNCIAS

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promoção do desenvolvimento urbano. CNDU, 1982. Mimeografado.
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de reforma urbana. Revista de Administração Municipal. Rio de Janeiro: IBAM, nº
203, abril-jun. 1992, p. 36-47.
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: RT, 1981.

NOTAS

1 Professor Adjunto de Direito Urbanístico e Ambiental da Faculdade de Direito da Universidade Federal


de Minas Gerais. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com estágio de
doutoramento na Università di Bologna. Líder do Grupo de Pesquisa Direito e Meio Ambiente nas Cidades, do
CNPq. Email: danielgaio72@yahoo.com.br.
2 Cf. o art. 28, § 2º da Lei Federal 10.257/01. Esse modelo “flexível” é criticado por RIBEIRO, Luiz Cesar de
Queiroz; CARDOSO, Adauto. O solo criado como instrumento de reforma urbana. Revista de Administração
Municipal. Rio de Janeiro: IBAM, nº 203, abril-jun. 1992, p. 36-47, p. 124-125.
3 Cf. o art. 28 da Lei Federal 10.257/01. Registra-se que a partir da vigência do Estatuto da Cidade não mais
subsiste a alegação de inconstitucionalidade de leis municipais disciplinarem o direito de construir, pois essa
questão seria matéria de direito civil (competência da União). Cf. REALE, Miguel. Parecer sobre o Projeto de Lei
que dispõe sobre os objetivos e a promoção do desenvolvimento urbano. CNDU, 1982. Mimeografado, p. 17.
4 Em ambos os municípios o coeficiente de aproveitamento básico é igual a 1 (um). Em relação ao município
de Goiânia, ver o art. 148 da Lei Complementar 171/07, e as Leis 8.618/08, 8.761/09 e 9.123/11. No que se
refere ao município de Florianópolis, ver o art. 9º da Lei 3.338/89, e o art. 82 da Lei Complementar 01/97. Isso
não impede que o coeficiente de aproveitamento único seja diferente de 1 (um), tal como ocorre no município
de Natal. Cf. os arts. 9° ao 16 da Lei Complementar 82/07.
5 De modo a restringir a discricionariedade administrativa no que se refere à utilização desses recursos, ver
o art. 31 da Lei Federal 10.257/01.
6 Para uma crítica sobre esse processo, ver GAIO, Daniel. Uma breve análise dos instrumentos propostos pela
nova Lei de Zoneamento Urbano de Curitiba. In: Curitiba de verdade: a Lei de Zoneamento e Uso do Solo em
debate. Curitiba: Fundação Pedroso Horta, 2000, p. 27-34; e BRASIL. Estatuto da Cidade: guia para implemen-
tação pelos municípios e cidadãos. Brasília: Câmara dos Deputados – Coordenação de Publicações, 2001, p. 73.

1894
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

7 Essa configuração foi no Brasil inicialmente proposta por MOREIRA, Antônio Cláudio Moreira Lima [et. all.].
O Solo Criado. São Paulo: CEPAM, 1975; em seguida, foi igualmente defendida por SILVA, José Afonso da.
Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: RT, 1981, p. 310-313.
8 Conforme a Lei 7.288/69 (município de São Paulo).
9 Cf. o Dec. 5.162/75 (município de Porto Alegre). Cf. FISCHER, Maria Helena de Souza. Uma abordagem sobre
a transferibilidade do direito de construir. Mimeografado. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre
- Secretaria do Planejamento, 1986, p. 20. Ressalta-se que no ano de 1975 já era defendida expressamente
a utilização da transferência do direito de construir para a proteção de áreas verdes. Cf. MOREIRA, Antônio
Cláudio Moreira Lima [et. all.]. O Solo..., op. cit., p. 18.
10 O que foi suplantado em 2001 por meio do Estatuto da Cidade. Cf. os arts. 28 a 31 e 35 da Lei Federal 10.257/01.
11 Cf. Lei 6.337/82 (município de Curitiba).
12 Anota-se que a concessão de incentivo construtivo no próprio terreno não caracteriza, propriamente,
transferência do direito de construir.
13 Conforme dispõem os arts. 3º e 4º da Lei 6.337/82 (município de Curitiba). Para os bens culturais com maior
grau de complexidade — como os prédios da Universidade Federal do Paraná e o da Catedral Metropolitana —,
o restauro é viabilizado por meio da alienação de cotas de potencial construtivo a serem utilizadas em outros
imóveis. Cf. o Dec. 380/93 (município de Curitiba).
14 Como dispõe o art. 4º, II, do Dec. 408/91 (município de Curitiba). Denomina-se aqui como “novo incentivo”
pois a transferibilidade de solo foi originalmente concebida apenas para o aproveitamento urbanístico não
utilizado em decorrência de vinculações estatais.
15 Cf. o art. 8º, parágrafo único, do Dec. 185/00 (município de Curitiba).
16 Cf. a Resolução municipal nº 02/99, da Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural, e o art. 12 do Dec.
625/07(município de Curitiba). O condicionamento do incentivo à recuperação do bem protegido igualmente é
exigido no município de Belo Horizonte. Cf. PELLEGRINO, Maria Beatriz Conde. Transferência do direito de cons-
truir. Revista do Tribunal de Contas de Minas Gerais. Belo Horizonte, vol. 38, jan.-mar. 2001, p. 127-149, p. 137.
17 Cf. o art. 4º da Lei 9.804/00 (município de Curitiba).
18 Cf. o art. 4º da Lei 12.080/06, e o art. 7º do Dec. 606/07 (município de Curitiba).
19 As disposições do antigo Código Florestal (art. 2º, II, “a” da Lei 4.771/65, com redação dada pela Lei nº
7.803/89) foram seguidas e até ampliadas pelo município de Curitiba. Cf. o art. 2º da Lei municipal 9.805/00
(alterado pela Lei municipal 9.991/00).
20 Cf. o art. 4º, I da Lei 9.805/00 (município de Curitiba). Além dessa possibilidade, a transferência do direito
de construir também pode ocorrer quando a área for cedida para implementação de equipamentos públicos
(art. 4º, II da Lei municipal 9.805/00).
21 Cf. art. 2º da Lei 9.803/00 (município de Curitiba).
22 Cf. o art. 2º da Lei 9.803/00, e o art. 10 do Decreto 190/00 (município de Curitiba).
23 Cf. o art. 3º, § 2º da Lei 9.801/00 (município de Curitiba).
24 Cf. o art. 7º da Lei municipal 6.819/86; o art. 26 da Lei municipal 8.353/93; o Dec. municipal 782/95; o art.
4º da Lei municipal 9.805/00; o art. 11 da Lei municipal 9.806/00; e o art. 6º, § 2º, do Dec. 194/00 (exceção
feita à Reserva Particular do Patrimônio Natural Municipal - Lei municipal 12.080/06, regulamentada pelo Dec.
municipal 606/07). Complementarmente, a legislação em vigor estabelece a concessão de um abono caso não
seja utilizada a totalidade do coeficiente de aproveitamento previsto pela zona onde o imóvel se encontre (Cf.
o art. 8º do Dec. municipal 194/00).
25 Embora do ponto de vista conceitual a outorga onerosa do direito de construir se refira ao aumento do
coeficiente de aproveitamento básico, o Estatuto da Cidade também prevê a possibilidade de alterar o uso do
solo mediante contrapartida (art. 28 a 31 da Lei Federal 10.257/01). Com efeito, não há sentido em vedar que
os demais parâmetros de ocupação do solo (altura, taxa de ocupação, recuos) não possam ser alterados por
meio de uma outorga onerosa.
26 Cf. PEREIRA, Mauri César Barbosa [et. all.]. Políticas para conservação de áreas verdes urbanas particulares em
Curitiba – o caso da Bacia Hidrográfica do Rio Belém. Floresta. Curitiba, jan.-abril 2006, vol. 36, nº 01, p. 101-110.
27 Cf. o art. 88 da Lei complementar 40/01; o art. 10 da Lei 9.806/00; e o art. 10 do Dec. 194/00 (município
de Curitiba).
28 Embora não tenha sido possível obter todos os dados referentes à concessão do solo criado e da transfe-
rência do direito de construir em Curitiba, considera-se que as informações a seguir descritas são suficientes
para demonstrar a efetividade dos referidos instrumentos. As áreas verdes urbanas protegidas até 2007 por
meio da transferência do direito de construir e do solo criado totalizam 686.639,49 m². Em relação aos bens
culturais, entre 1998 a 2009, foram protegidas 77 edificações, envolvendo o manejo de 354.228,33 m² de
potencial construtivo (Dados da Secretaria Municipal de Urbanismo de Curitiba e do Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano de Curitiba).
29 Em pesquisa realizada junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, não foram encontrados, entre os anos
2000 a 2009, julgados referentes à indenização decorrente de vinculações ambientais no município de Curitiba.

1895
30 Cf. o art. 7º da Lei 6.819/86; o art. 1º do Dec. 782/95; e o art. 1º e 8º do Dec. 194/00. Diferentemente da
legislação de 1974, a qual estabelecia o coeficiente de aproveitamento igual a 1 (um). Cf. o art. 6º da Lei
4.857/74 (município de Curitiba);
31 Anota-se que é reduzida a possibilidade de cedência ao Poder Público do imóvel beneficiado por incentivos
construtivos, como nos casos da implantação de equipamentos de uso público nas faixas de preservação per-
manente ao longo dos cursos d’água (art. 4º da Lei municipal 9.805/00) e do Setor Especial de Áreas Verdes
(art. 15, parágrafo único da Lei municipal 9.806/00; e art. 6º, § 2º do Dec. municipal 194/00), e da ampliação
de unidades de conservação (art. 4º da Lei municipal 9.804/00).
32 Cf. BITENCOURT, Ana Paula Mota de. A transferência do direito de construir para a conservação do patri-
mônio cultural: a experiência da cidade de Curitiba. 2005. 205 f. Dissertação (Mestrado) – Desenvolvimento
Urbano, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005, p. 100.
33 Nesse caso, a outorga onerosa do direito de construir seria concedida com isenção de pagamento. Cf. o
art. 30, II da Lei Federal 10.257/01.
34 Cf. o art. 3º, VI da Lei 9.804/00, combinado com o Dec. 194/00 (município de Curitiba).
35 Cf. o art. 3º, VI da Lei 9.804/00 (município de Curitiba).
36 Cf. o art. 11 da Lei 9.806/00; e o art. 6º, § 2º do Dec. 194/00. Com pequenas alterações, esse modelo é
previsto desde meados da década de 80 do século passado (art. 7º da Lei 6.819/86; art. 26 da Lei 8.353/93;
e Dec. 782/95). Em sentido contrário, registra-se que a legislação que adequa o Plano Diretor de Curitiba ao
Estatuto da Cidade estabelece que as “áreas de proteção ambiental” devem ter o uso do solo restringido. Cf.
o art. 11, VI da Lei 11.266/04 (município de Curitiba).
37 Embora a legislação estabeleça que essas áreas devem ter condições especiais de administração e uso. Cf.
o art. 2º da Lei 9.804/00 (município de Curitiba).
38 Cf. o art. 4º, I da Lei 9.805/00 (município de Curitiba). Entretanto, ao contrário do que dispõe o referido
dispositivo legal, não há sentido em autorizar a transferência apenas parcial do direito de construir se resta
inviabilizada a ocupação do imóvel. Portanto, a utilização desse instrumento somente se justifica se realizada
a transferência total do potencial construtivo, cumulada com a cessão da área ao Poder Público, conforme
dispõe o art. 4º, II da Lei 9.805/00. Cabe observar que a compensação por inviabilização da ocupação do
imóvel igualmente é prevista em virtude de vinculações de natureza urbanística. Cf. o art. 2º da Lei 9.803/00,
e o art. 10 do Decreto 190/00.
39 Veja-se que essa flexibilidade é contemplada no caso das faixas de preservação ao longo dos cursos d´água.
Cf. o art. 4º da Lei 9.805/00 (município de Curitiba).
40 Cf. o art. 88 da Lei Complementar 40/01.
41 Além disso, deve-se ainda considerar os impactos sobre a infraestrutura urbana ocasionados pelos acrés-
cimos construtivos. Acerca dessa problemática, ver GAIO, Daniel. Uma breve..., op. cit.

1896
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A problemática das inundações


e o papel do estado enquanto
produtor do espaço urbano:
análise do caso de Itajaí/SC

Suzane Concatto1
Sérgio Torres Moraes2

1. INTRODUÇÃO

Segundo o IBGE 2010, 84,35% da população brasileira vive em ci-


dades. Essa concentração populacional urbana se deu de forma muito
acelerada e acarretou em cidades despreparadas para essa demanda
o que acabou gerando muitos paradoxos no espaço urbano, principal-
mente se for analisado pela perspectiva ecológica. Com as superfícies
impermeabilizadas os sistemas de drenagem não eliminam a água,
somente levando-a de um ponto a outro num curto espaço tempo. Outro
agravante é a alteração da várzea dos rios, que tem comprometida sua
capacidade de conter as águas em função da construção de residências
e consequentemente contribui para um dano maior de inundação.
A problemática ambiental está atrelada a dinâmica de produção do
espaço urbano (GORSKI, 2010), pois é a partir das decisões e da dis-
puta entre os agentes que produzem este espaço é que são definidos
os tipos de uso e ocupação que terá a cidade, levando em conta ou
não os movimentos da natureza dentro desse espaço. O Estado teria
como função a mediação justa, mas por também ser um agente “não
neutro” faz com que haja uma sobreposição de intenções que muitas
vezes agrava os problemas ambientais e dificulta o processo de desen-
volvimento urbano.

1897
Nesse artigo, como recorte de pesquisa, foi analisado o “Estado” e suas
responsabilidades enquanto um dos agentes na dinâmica de produção do
espaço urbano, tanto conceitualmente quanto nas pesquisas de campo,
cientes de que para uma análise mais aprofundada é importante estudar
também outros produtores do espaço.
O principal objetivo do artigo é a análise do papel do Estado, no âmbito
municipal, em relação aos desastres ambientais focando especificamente
na problemática das inundações. Como forma de efetivar as pesquisas
práticas, foi escolhida a cidade de Itajaí/SC como estudo de caso.
As motivações que a caracterizam esta prioridade de análise estão
atreladas ao fato de que o Município possui um histórico de inundações,
sendo que a do ano de 2008 foi a mais grave das mais recentes, contabi-
lizando 18.208 desabrigados e 1.929 desalojados. Porto e rodovias foram
danificados e os prejuízos para a indústria pesqueira e porto foram de R$
7.4 milhões. (DEFESA CIVIL SANTA CATARINA, 2013). Em setembro de
2011, outra inundação fez com que o Porto de Itajaí novamente parali-
sasse suas atividades, com grandes perdas para a economia. A frequência
destes eventos e a falta de recursos técnicos e financeiros que o município
enfrenta para sua reconstrução salientam a relevância deste estudo.
O desenvolvimento desse trabalho parte de uma revisão bibliográ-
fica referente aos temas “produção do espaço urbano” e “inundações” e
busca verificar a dinâmica da atuação do Estado na área urbana de Itajaí
a partir das leis de zoneamento e cruzamentos de mapas de inundação.

2. A ATUAÇÃO DO ESTADO qUANTO


àS INUNDAÇÕES EM ITAJAÍ/SC

“Eis o que é o espaço urbano: fragmentado e articulado, reflexo e con-


dicionante social, um conjunto de símbolos e campo de lutas...” ( CORREA,
1989.p. 9) A produção desse espaço se dá através de um processo de dispu-
tas que ocorrem entre os agentes produtores desse espaço. Segundo Correa
(1989) os agentes produtores do espaço são: os proprietários dos meios

1898
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de produção, sobretudo os grandes industriais que tem como interesse


terrenos amplos e baratos; os proprietários fundiários tem o interesse que
a terra tenha o uso que seja o maior remunerador possível; os promotores
imobiliários que visam o lucro; o Estado; e os grupos sociais excluídos
que começam a ter um papel importante a partir de 1990 (NASCIMENTO,
2011) quando deixam de ter um papel coadjuvante na estruturação do
espaço intra urbano e passam a reivindicar ações mais efetivas por parte
do Estado em relação a justiça social e democracia.
O Estado também é um agente e também pode atuar com interesses
imobiliários, fazer reservas de terra se tornando proprietário fundiário
ou ainda fazer acordos com os outros agentes (Correa, 1989). Quando o
Estado atua de forma não neutra e prioriza somente o interesse de um
dos agentes, como por exemplo os promotores imobiliários, faz com que
a produção do espaço se dê a partir da visão do maior lucro possível ge-
rando na maior parte das vezes injustiça social. Essa prática recorrente
nos intervalos de enchentes, onde há uma falsa sensação de segurança, é
suficiente para que esses promotores imobiliários incentivem a promoção
de loteamentos em áreas inadequadas (TUCCI;BERTONI, 2003).
Tucci e Bertoni (2003) trazem outras justificativas que buscam explicar
alguns motivos que fazem com que o problema das inundações se repita
continuamente, como a falta de conhecimento sobre controle de enchentes
por parte dos planejadores urbanos; problemas de gerenciamento; falta de
educação da população sobre controle de enchentes; soluções pontuais
de curto prazo e obras hidráulicas que não se associam à soluções não
estruturais (como zoneamento adequado). Em muitos casos o comodismo
do Estado vai se limitar por declarar calamidade pública e receber recursos
federais para corrigir danos locais (TUCCI & BERTONI, 2003).
Ainda que o Estado não seja neutro, ele possui responsabilidades quan-
do se trata de desastres ambientais. No caso específico das inundações, os
bens sociais e ambientais devem ser prioridade nas tomadas de decisão
e somente medidas mitigadoras não são suficientes, principalmente em
casos onde os desastres são cada vez mais frequentes, como é o caso de
Itajaí/SC.

1899
Segundo Tucci existem duas formas de atuar diante a problemática
das inundações: uma é através de medidas estruturais, que caracterizam-
-se por serem grandes obras de engenharia em locais específicos, como
barragens e contenções. Outra são as medidas não estruturais que têm
tendências voltadas ao planejamento, pois buscam elementos como edu-
cação ambiental, zoneamento que caracterizam locais de risco, medidas de
alerta, desenvolvimento de tipologias à prova de enchente e entre outras.

“As medidas estruturais são aquelas que modificam o sistema


fluvial evitando os prejuízos decorrentes das enchentes, enquanto
as não-estruturais são aquelas em que os prejuízos são reduzi-
dos pela melhor convivência da população com as enchentes.
É ingenuidade do homem imaginar que poderá controlar total-
mente as inundações; as medidas sempre visam minimizar as
suas consequências.”3

Para um sistema complexo, como é o caso de cidades suscetíveis a


inundações, o ideal é o uso dos dois tipos de medidas, que possibilitem
ações de pequeno e longo prazo.
Como tratado anteriormente, sabe-se que muitos fatores podem
acarretar nas decisões (muitas vezes questionáveis) por parte do Estado,
mas quando trata-se de desastres ambientais, essas decisões ficam mais
evidenciadas e a população sofre bruscamente, por isso a necessidade
da participação popular nas tomadas de decisão na cidade, que o próprio
Estatuto da Cidade4 faz questão de trazer para os planos diretores. Ainda
que o Estatuto da Cidade seja um grande avanço em termos de planificação
urbana, o Brasil ainda tem muito que avançar quando se trata de preven-
ção e planejamento, que são disciplinas muito recentes se comparado ao
histórico de más sobreposições de gerenciamentos implementados nas
cidades brasileiras até hoje.

2.1. O Caso de Itajaí/SC

O município de Itajaí está localizado às margens da BR-101 a 90 km


ao norte da capital do estado de Santa Catarina, Florianópolis. Seus

1900
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

acessos se dão via Balneário Camboriú, trevos que ligam Itajaí/Brusque


e Itajaí/Blumenau e possui acesso, também, pelo Oceano Atlântico.
Fica próximo ao Aeroporto internacional de Navegantes (PREFEITURA
MUNICIPAL DE ITAJAI,2013).
Possui população de 183.388 habitantes, sendo 9.923 pessoas na área
rural e população urbana de 173.465 e área territorial de aproximadamente
288km² sendo 20% urbana e 80% rural (BRASIL,2007).

Figura 1-Localização Itajaí


Fonte: scoopweb-2013

Figura 2-Localização Itajaí


Fonte: Mapa do Município de Itajaí. Fonte: Google Earth -2013

1901
O porto de Itajaí caracteriza grande importância para o município
e estado de Santa Catarina. Em 2010, representou 1,25 mil atracações,
em 2009 1,02 mil e em 2008 mil atracações (PORTO ITAJAÍ, 2013). A
economia do município é sustentada pelo porto, comércio atacadista de
combustível, pesca e setor de produção industrial. O Rio Itajaí-Açu tem
grande importância para o município, possibilitando o desenvolvimento
industrial e comercial da região. E justamente por sua vocação hídrica e
condições geológicas há o favorecimento de frequentes inundações em
suas áreas urbanas e rurais.
Existem relatos de inundações desde 1851 onde Reinoldo Gaertner,
sobrinho de Dr. Blumenau relata as grandes chuvas em seu “Diário” da
Colônia (SILVA, 1975). E Santos (2010) faz uma compilação de enchentes
no Vale do Itajaí, por década:
Tabela 1- Enchentes no Vale do Itajaí por década (1850-2000).

Fonte: Santos-2010

1902
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

As enchentes mais recentes foram as que ocorreram nos anos de 2001,


2008 e 2011 sendo a de 2008 a mais grave dessas três.
O que fica claro é que as inundações, nessa região, não são eventos
isolados e não devem ser tratados com surpresa pelos governantes e po-
pulação. Frank e Sevegnani (2009) conceituam que a Bacia hidrográfica
possui algumas características físicas que propiciam a ocorrência de en-
chentes. Como por exemplo, o tipo de rocha abaixo do solo que é pouco
permeável, encostas muito inclinadas associado a estreitas várzeas em
torno de ribeirões e rios. Porém essas características físicas que tornam
esses locais mais vulneráveis foram associadas a outros condicionantes
ao longo dos tempos, que agravaram ainda mais as enchentes. Como o
tipo de produção do espaço que gerou uma ocupação generalizada onde
desconsiderou-se o histórico de enchentes e as características físicas
intrínsecas da bacia hidrográfica e do município.
Uma ferramenta que tem como objetivo o ordenamento do uso do solo
é o Plano Diretor. Entendemos que a partir da análise do mapeamento de
inundações seria possível gerar um zoneamento que tornaria esses eventos
menos catastróficos. No tópico seguinte será analisada a relação entre os
zoneamentos e o mapa de inundação no município de Itajaí.

2.1.1. Dinâmica do zoneamento urbano x inundação

O papel do Estado pode ser avaliado em vários âmbitos. Nesse artigo,


como recorte de pesquisa, foi analisado o caráter dos zoneamentos do
ano 1989 e 2012 cientes de que para uma análise mais aprofundada é
importante estudar também as outras ações tanto estruturais quanto não
estruturais por parte do Estado.
Para a análise, optou-se por trabalhar com a sobreposição das inunda-
ções recentes (ano 2001, 2008 e 2011) e caracterizar a área comum a elas,
já que, utilizar somente a inundação de 2008 não permitiria uma análise
consistente, pois esta ocupou praticamente toda área urbana de Itajaí. A
seguir, o mapa de inundação:

1903
Figura 3- Inundações de 2001,2008 e 2011
Fonte: DEFESA CIVIL(2013) sobreposição feita por Suzane Concatto

Figura 4- Inundação comum aos 3 anos


Fonte: DEFESA CIVIL(2013) mapa modificado por Suzane Concatto

1904
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Foi utilizado também do zoneamento de 1989 e de 2012, os mais re-


centes. Para melhorar a leitura e possibilitar os cruzamentos, as zonas
foram classificadas de acordo com seus usos predominantes. A seguir os
mapas de zoneamento com usos predominantes:

Figura 5 -Usos predominantes na lei de zoneamento de 1989


Fonte: Prefeitura municipal de Itajaí. Mapa modificado por Manoela Weise

Figura 6 - Usos predominantes na lei de zoneamento de 2012


Fonte: Prefeitura municipal de Itajaí. Mapa modificado por Manoela Weise

1905
A área em roxo claro teve a maior mudança de 1989 para 2012, pas-
sando de usos restritos (mas que ainda permitia uso residencial) para
somente serviços.
A seguir, o cruzamento da inundação comum aos 3 anos com o zo-
neamento de 2012:

Figura 7- Cruzamento dos usos predominantes do zoneamento de 2012 e inundação comum aos 3 anos
Fonte: Prefeitura municipal de Itajaí e Defesa Civil de Itajaí. Mapa modificado por Suzane Concatto

A área imediatamente próxima ao rio Itajaí-mirim teve uma mudan-


ça brusca em seu caráter de zoneamento, passando de uso residencial
em 1989 para uso “serviços” e impedindo o uso residencial em 2012.
Essa medida é muito positiva, pois quando verificado o mapa de inun-
dação é possível perceber que essa área foi uma das mais atingidas
por inundação. Porem, se for considerada essa lógica, as outras áreas
que também possuem frequente inundação deveriam ter zonas com as
mesmas características dessa, mas isso não ocorre. As outras zonas são
tratadas como zonas urbanas comuns, com possibilidades residenciais,
comerciais e de serviço.

1906
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo que parte do histórico de inundações no município de Ita-


jaí buscou reforçar o entendimento de que as ações de cada produtor do
espaço urbano são claras se observada pelos preceitos teóricos e o Poder
Público, ainda que um agente não neutro, tem suas responsabilidades
sociais e ambientais.
Analisando-se o papel do Governo Municipal somente pela perspectiva
do planejamento urbano e especificamente os zoneamentos, é possível
verificar algumas intenções desse agente em relação ao espaço urbano.
Apesar do histórico de inundações do Município, somente no zoneamento
mais recente (2012) é que começa a aparecer uma tendência em priorizar
certas áreas como não residenciais em função das inundações, ainda que
sejam poucas áreas. As motivações para essa mudança na lógica de zo-
neamento não são fáceis de identificar, pois o Poder Público é um agente
complexo e suas intenções variam continuamente.
Por mais que tenha sido priorizada uma área com mudança de zo-
neamento deixando-a mais restritiva, ainda é pouco para que haja uma
verdadeira consciência de preservação, tanto ambiental quanto social.
Para a melhora destes aspectos a população precisa estar mais inserida
nas tomadas de decisão e os estudos técnicos interdisciplinares precisam
ser levados em pauta para servirem de ferramenta na discussão de prio-
ridades para a cidade já que cada agente produtor do espaço irá sempre
lutar por suas convicções que são intrínsecas a eles.

REFERêNCIAS

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nível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=420820#.
Acesso em : 01 de março de 2013.
CORREA,Roberto L. .O Espaço Urbano.São Paulo: Editora Ática,1989.94 p.
DEFESA CIVIL SANTA CATARINA. Enchente 2008 . Disponível em: http://www.
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1907
id=1. Acessado em: 21 março 2013.
FARRET, Ricardo. “Paradigmas da estruturação do espaço residencial intra-urbano”,
pp. 64-88.In: FARRET, R. (org.) O Espaço da cidade. Contribuição à análise urbana.
São Paulo:Projeto Ed.,1985.141p.
FRANK, Beate; SEVEGNANI, Lúcia. Desastre de 2008 no Vale do Itajaí: água, gente
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GORSKI, Maria Cecília Barbieri. Rios e cidades: ruptura e reconciliação. São Paulo:
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LOCALIZAÇÃO ITAJAÍ.Disponível em :< http://www.scoopweb.com/Itajai> >.Aces-
sado em :10 de julho de 2013.
MARICATO, Erminia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. 2. ed. Petró-
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NASCIMENTO, Mariângela Moreira. Movimentos sociais em tempo de mudanças:
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Pós-graduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 2011.
PORTO ITAJAÍ. História do porto. Disponível em: http://www.portoitajai.com.br/
novo/c/historia. Acesso em 13 março 2013.
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rias. Dissertação de mestrado apresentada Mestrado Profissional em Planejamento
Territorial e Desenvolvimento Socioambiental. Florianópolis :Universidade Federal
de Santa Catarina. 2010.
SILVA, José Ferreira da. As enchentes no Vale do Itajaí. Blumenau: Fundação Casa
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TUCCI, Carlos E. M; BERTONI, Juan Carlos. Inundações urbanas na América do Sul.
Porto Alegre: ABRH, 2003. 471 p.

1908
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

NOTAS

1 Arquiteta Urbanista e Mestranda, Programa de Pós-graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da


Cidade. (PGAU- UFSC), suza.concatto@gmail.com.
2 Prof. Doutor, Programa de Pós-graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade. (PGAU- UFSC),
sergiomoraes@arq.ufsc.br.
3 (TUCCI; BERTONI,2003,p. 63)
4 Estatuto da Cidade- (Lei nº 10257, de jul./01), se fundamenta na Constituição e possui, como estabelecimen-
tos principais, ordenar as funções da cidade e propriedade e garantir a ela uma função social, também traz
instrumentos de ordenamento e neles estão embutidos elementos de proteção e gestão ambientais.

1909
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A redução da discricionariedade
administrativa frente ao princípio da
sustentabilidade urbana: novos desafios
para a elaboração de políticas públicas

Angela Cassia Costaldello1


Karin Kässmayer2

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo analisar um dos grandes de-


safios da Administração Pública atual: a redução da discricionariedade
administrativa frente à consagração do princípio da sustentabilidade em
nosso texto constitucional. O foco do estudo, entretanto, direciona-se à
elaboração de políticas públicas de mobilidade urbana.
Com efeito, a constatação de haver “uma clara limitação do poder-dever
de discricionariedade, de modo a restringir a sua (do Poder Executivo)
margem de liberdade na escolha no âmbito das medidas protetivas do
ambiente, sempre no intuito de garantir a maior eficácia possível do direito
fundamental ao meio ambiente”3 abre margem à discussão da redução de
discricionariedade da Administração Pública no âmbito da administração
urbanoambiental, eis que as normas constitucionais impõe o dever de agir
voltado à garantia da sustentabilidade urbana.
Certamente, para alcançar os objetivos colimados, far-se-á uma incur-
são nas mazelas urbanas derivadas dos riscos e impactos socioambientais
constatados nos espaços múltiplos e fragmentados que caracterizam as
cidades. Em seguida, serão apresentados os fundamentos constitucionais
e legais que embasam o dever de agir da Administração Pública de modo
a garantir o direito à cidade sustentável. Por fim, serão tecidas considera-

1911
ções acerca da discricionariedade administrativa no sentido de apresentar
a alteração do conteúdo desta faculdade do administrador, a qual, em
razão das diretrizes constitucionais garantidoras de direitos fundamentais,
passa a reduzir o seu espaço de liberdade de escolha, vinculando-o em
profundidade e extensão, a ponto de tratar-se, hoje, de uma “discriciona-
riedade intensamente vinculada.”
Neste contexto, a Lei 12.587/2012, que institui a Política Nacional de
Mobilidade Urbana, será objeto de análise, com a finalidade de identifi-
car, em um instrumento legal concreto, diretrizes normativas capazes de
reduzir, delimitar e condicionar a atuação e as escolhas do administrador.

1. OS ESPAÇOS URBANOS: AS CIDADES


E OS REFLEXOS DA CRISE AMBIENTAL

Decifrar o perfil urbano auxilia na compreensão da rede de relações


sociais em um espaço constituído por artefatos e natureza peculiares,
espaço este denominado “cidade”. O tempo da cidade engloba todos os
tempos presentes em um território. Quando analisado o contexto mundial,
tem-se o tempo das cidades-globais, dimensionado por transações finan-
ceiras e fluxos de informações transmitidas por meios comunicacionais
instantâneos. Focalizadas sob esta perspectiva, as cidades não param.
Há, portanto, inúmeras temporalidades em conflitos, que desaguam
na ambiguidade dos espaços urbanos: injustos, legais, ilegais, limpos,
violentos, degradados. Cenários que se opõe e que denunciam a falta de
planejamento e o direcionamento prioritário de políticas públicas a áreas
abastadas. Eis a realidade urbanoambiental brasileira.
A crise ambiental torna-se outro fator interligado à temática da vida
em grandes cidades, já que potencializada. As perturbações do sistema
ecológico-urbano decorrem principalmente da aglomeração populacional,
das precárias condições de habitação e da superpopulação, ocasionada
na medida em que as cidades desenvolveram-se sem planejamento e a
expectativa de vida aumentou.

1912
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Nas aglomerações subnormais, localizadas geralmente nas periferias


das grandes cidades, o esgoto corre a céu aberto, os resíduos não são
coletados devidamente e há potencial de risco à saúde da população. As
condições não só de higiene (e consequentemente de saúde), mas de vida
e segurança dos seus moradores estão abaixo do mínimo de dignidade.
Nesse contexto, a educação é insuficiente e a possibilidade de mobilidade
social e de melhoria da sua qualidade de vida é pequena. Os subempregos
são, juntamente com a opção pela ilegalidade na escolha de como conse-
guir meios de sustento próprio e da família, as únicas opções disponíveis.
A marginalidade se dá geograficamente, além de socialmente. A falta de
transporte coletivo e de acessibilidade faz majorar esta segregação.
O risco da falta de água e o elevado consumo igualmente crescem com
a expansão industrial e urbana, com o crescimento e aumento do nível
de vida da população e o desenvolvimento da agricultura. Em média, nos
países ricos, há um consumo de 200 litros/habitante/dia, enquanto em
áreas rurais de países pobres, 30 litros/habitante/dia. A escassez de água,
antes considerada uma hipótese restrita a regiões áridas, é uma constante,
vindo a assumir posição estratégica em várias regiões do mundo, como
relatam Andreoli et al4. A degradação dos mananciais de abastecimento
de água é um dos aspectos preocupantes. As fontes subterrâneas de água
potável diminuem paulatinamente e alguns mananciais localizados em
áreas industriais urbanas estão sendo poluídos sem que haja uma atuação
estatal controladora.
É comum em todas as grandes cidades brasileiras a ocupação de áreas
de proteção ambiental pela moradia carente, ocasionando a sua deterio-
ração. Há uma correspondência direta entre a rede hídrica e a localização
de aglomerações subnormais no ambiente urbano.

O confinamento dos córregos devido à ocupação de suas margens


promove uma sequência de graves problemas: entupimentos
constantes dos córregos com lixo, dificuldade de acesso de
máquinas e caminhões para a necessária limpeza, enchentes
decorrentes dos entupimentos e a disseminação da leptospirose
e outras moléstias, devido às enchentes que transportam para o
interior das favelas o material contaminado pela urina dos ratos
e pelos esgotos.5

1913
Saúde e higiene têm sido preocupações de formuladores de políticas
urbanas na América Latina desde meados do século xIx. Nas últimas dé-
cadas, esses problemas foram “ambientalizados” e questões de acesso à
água, esgoto e coleta de resíduos sólidos passaram a ser colocadas como
temas não apenas de justiça ambiental, mas de emergência.
Outros problemas ambientais urbanos constatados no contexto de crise
ambiental são o uso preponderante de veículos automotores, diante da
má qualidade do transporte coletivo, e o aumento excessivo dos resíduos
sólidos, associado à disseminação, nos centros urbanos, de grandes cen-
tros comerciais, revelando o alto padrão de consumo. Dentre as principais
dificuldades socioambientais enfrentadas pelos municípios brasileiros, está
a gestão dos resíduos sólidos urbanos. O crescimento das cidades e o au-
mento do volume do lixo apresentam-se como uma das maiores ameaças
à existência humana e representam uma difícil tarefa ao gestor público.
A poluição visual e sonora contribuem para a geração de doenças
conhecidas como “doenças da modernidade”, tal como o estresse, a fa-
diga e a depressão. A política habitacional é outro fator grave na questão
urbana. As cidades brasileiras, no dizer de Fernandes6 são poluídas, caras,
ineficientes, injustas e ilegais, em função das décadas de urbanização in-
tensiva. A urbanização crescente, atrelada ao aumento de pobreza, gera
pressão sobre a terra urbana. Dessa forma, “na falta de opções adequadas
e acessíveis de moradias oferecidas pelo mercado e pelas políticas públi-
cas, entre 40% a 80% da população brasileira estão vivendo ilegalmente
nas áreas urbanas [...]”7
O déficit habitacional para famílias de baixa renda favorece a proli-
feração de moradias irregulares e ilegais, cujas consequências não são
apenas percebidas no impacto ambiental urbano decorrente da poluição
hídrica, por exemplo, devido à ausência de sistema de esgoto, trazendo,
também, implicações sociais e econômicas. Viver de forma ilegal repercute
na inexistência de segurança jurídica da posse ou da propriedade e na falta
de acesso à infraestrutura urbana. Acrescenta-se a isso a vulnerabilidade
das classes mais pobres ao se verem coagidas a pagar aluguéis mais caros

1914
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

em favelas do que em bairros da cidade em razão de não possuírem a


documentação exigida para um contrato (como, por exemplo, carteira de
trabalho assinada), em conformidade com o padrão usual exigido pelas
relações comerciais. A vulnerabilidade a riscos socioambientais é outro
fator a ser discutido. As ocupações irregulares de áreas de encosta, am-
bientalmente frágeis, áreas localizadas em topos de morro, enfim, áreas
nas quais a moradia é proibida, tais como áreas onde já foram instalados
aterros ou lixões, por exemplo, geram grandes desastres urbanos, noti-
ciados com frequência nos últimos anos no Brasil.8
Dentre os fatores que contribuem para esta injusta realidade no Bra-
sil, Fernandes9 aponta o poder segregador das leis urbanísticas, a noção
conservadora e individualista da propriedade imobiliária urbana, além
dos mercados de terras especulativos e os sistemas políticos excludentes.
O sistema econômico, político e jurídico contribuem para a situação de
precariedade habitacional e ilegalidade urbanas e para as desigualdades
sociais, pois os excluídos socialmente habitam áreas públicas ou áreas
de preservação ambiental, impróprias para o uso habitacional, além dos
gestores públicos não se aterem ao cumprimento da legislação ambien-
tal. Conforme Alfonsin e Fernandes, a produção legislativa urbanística
expressa uma tradição de planejamento urbano elitista e tecnocrático
que estabelece critérios dissociados das realidades socioeconômicas de
acesso ao solo urbano e de produção de moradia, contribuindo para de-
terminar núcleos de moradias ilegais em zonas periféricas, verdadeiros
espaços de exceção.10
Estas contradições são geradas pela normativa jurídica e não solucio-
nadas pelo poder público. O discurso da justiça ambiental é colocado em
pauta, afinal, o direito contemporâneo, ao não reduzir a complexidade,
coloca em xeque a atuação do Estado como prestador dos serviços am-
bientais e controlador dos riscos. Os riscos socioambientais desafiam a
justiça, uma vez que se questiona que espécie de justiça ambiental emerge
deste paradigma.

1915
A compreensão das cidades, portanto, deve partir de um contexto
social voltado a uma preocupação socioambiental crescente, o qual de-
verá propiciar ao Administrador Público e aos operadores de Direito uma
análise interdisciplinar das questões complexas, as quais, não raras vezes,
geram conflitos entre direitos fundamentais e demanda um repensar do
campo de liberdade decisória do administrador. “Essa tensão tem gerado
uma fragmentação ainda maior na ação das agências públicas, e tem sido
caracterizada pela falta de diálogo, várias formas de intolerância e por
um vazio de decisões.”11
Apresentado o cenário desolador e caótico das cidades brasileiras,
reféns dos riscos socioambientais, desenvolve-se, por outro lado, na legis-
lação brasileira, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a
partir de garantias e princípios constitucionais. Se a garantia legal alterará
a realidade, eis uma incógnita. As bases, todavia, já foram firmadas.

2. A SUSTENTABILIDADE COMO OBJETIVO DA


POLÍTICA URBANA E PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL

A análise do direito contemporâneo à luz da crise ambiental, em es-


pecial das normas jurídicas regulamentadoras dos riscos socioambientais
urbanos, requer uma abordagem específica. A Constituição Federal de 1988
reformou as bases jurídicas da proteção ambiental, vinculando-a a uma
ampla agenda social e de reformas institucionais.12 O constituinte inovou
e inseriu capítulos e artigos que constituíram os novos direitos, base para
os denominados direitos socioambientais, segundo Marés.13
No conjunto dos novos direitos, rompem-se paradigmas da dogmática
jurídica e, por tal motivo, tem-se uma “[...] natureza emancipatória, plura-
lista, coletiva e indivisível, (que) impõe novos desafios à ciência jurídica,
tanto do ponto de vista conceitual e doutrinário, quanto do ponto de vista
de sua concretização.”14 Originário de lutas democráticas e historicamente
interligado aos movimentos internacionais que criaram os princípios am-
bientais, o capítulo sobre o meio ambiente não apenas assegura o direito

1916
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras


gerações, mas vai além, torna-se um viés interpretativo do texto constitu-
cional, decorrendo daí a sua transversalidade. A questão ambiental não
é passível de ser analisada isoladamente e tampouco será compreendida
como uma questão jurídica sem a interface com as questões sociais, eco-
nômicas, urbanísticas e culturais.
O Direito Ambiental consolida-se com normas de natureza fundamen-
tal e, devido à interpenetração com as demais esferas jurídicas, demanda
um olhar múltiplo e complexo; incita reflexões sobre a estrutura jurídica
outrora voltada a direitos individuais, mas que passou a proteger direitos
coletivos e difusos.
Quanto ao objeto, o meio ambiente é elevado à categoria de bem
jurídico per se, ou seja, autônomo em relação aos demais bens jurídicos
protegidos, como a vida ou a saúde. O dispositivo constitucional em ques-
tão assegura a todos o “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, valor
este a ser tutelado como dever de promoção pelo Poder Público,

[...] de natureza imaterial, indivisível e infungível, [...] primeira re-


ferência constitucional a ser sopesada quando chegue o momento
de calibrar até onde pode ir o direito individual ao exercício das
faculdades atinentes ao conteúdo endógeno da senhoria (uso,
gozo, fruição) e onde começará uma invasão da esfera difusa do
direito ao ambiente.15

A Constituição Federal estabelece a proteção do meio ambiente que


assegure a todos qualidade de vida. Por esta razão, dispõe que o bem ju-
rídico protegido será o meio ambiente “ecologicamente equilibrado”, ou
seja, aquele não destruído ou degradado, mas preservado ao máximo em
suas características ecológicas originárias. O equilíbrio ambiental a que o
legislador se refere deve ser interpretado como o ambiente sustentável,
que permita a todos vida digna e, principalmente, a continuidade dos
processos ecológicos sem intervenções humanas destrutivas, fazendo-se
incluir neste conceito o meio ambiente urbano.
A defesa do meio ambiente, elevada a princípio geral da ordem eco-
nômica e financeira, integra-se às políticas urbanas e à função social da

1917
propriedade e da cidade. O Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, define as
diretrizes para a construção da sustentabilidade urbanoambiental16 com a
garantia a direitos individuais à terra urbana, moradia, saneamento, infra-
estrutura urbana, transporte e serviços públicos, trabalho e lazer, para as
presentes e futuras gerações (Estatuto da Cidade, art. 2º, inc. I). Soma-se
a estes a garantia ao direito difuso à ordem urbanística (também previsto
no art. 53 da Lei de Ação Civil Pública) e a gestão democrática das cidades
expressa na gestão orçamentária participativa como condição obrigatória
para a aprovação do orçamento pelo Legislativo Municipal (Art. 4º, inc. II,
letra “f” do Estatuto da Cidade), além da criação de órgãos colegiados de
política urbana (conselhos), bem como a previsão de instrumentos jurídicos
para avaliação de impactos (estudo de impacto de vizinhança - Art. 36).
O direito à cidade une o direito urbanístico ao direito ambiental. Pres-
tes17 explica esta interface como uma “visão jurídica macro” traduzida
pelo Direito urbanoambiental. No campo das políticas públicas, o direito
à cidade une a prática municipal ao conceito de escassez dos bens am-
bientais naturais, a fim de incorporar medidas racionais de reutilização
da água, energia solar, resíduos sólidos, promoção da acessibilidade e
garantia da mobilidade urbana atreladas ao bem estar da coletividade. A
Lei 10.257/2001 possui esta intenção ao prever normas de ordem pública
e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do
bem-estar coletivo, da segurança e do equilíbrio ambiental.
A conceituação do direito à cidade seria inconcebível sem a análise
do papel do cidadão na participação efetiva nas políticas públicas e sua
inclusão como ator social no repensar o seu habitat. A interação entre
os cidadãos pressupõe a implementação do princípio da informação18, a
“porta de entrada do conhecimento básico à educação e ao interesse por
valores juridicamente protegidos ao bem-estar da pessoa humana indivi-
dual, social ou coletivamente considerada.”19
No âmbito municipal, os gestores públicos devem promover a susten-
tabilidade por meio de um documento legal detentor de diretrizes gerais
passíveis de implementação local, evitando conflitos e respeitando seu

1918
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ecossistema e sua própria biodiversidade, além de antever os riscos ur-


banos de acordo com sua realidade. O direito urbanístico, assim, passa
a conceito integrador e totalizante, afastando a noção individualista da
propriedade, inspiradora do Direito Civil clássico.
O leque de direitos definidores de cidades sustentáveis pressupõe
uma interdependência entre as políticas urbana, ambiental, econômica
e agrária, além de acreditar na viabilidade de seu equilíbrio. Mesmo que
a ação dos Municípios tenha ganhado destaque com a regulamentação
dos artigos 182 e 183 da CF, este fato não impede afirmar que a conquista
do desenvolvimento sustentável urbano somente será possível quando a
gestão municipal - através de um bem definido planejamento municipal
orientado por meio de um plano diretor que ordene o uso do solo e realize
a gestão territorial dos riscos – estiver em consonância com as demais
esferas administrativas. De mais a mais, as leis instituidoras de políticas
nacionais urbanas compõe o amplo leque de normativas que integram o
Estatuto da Cidade, devendo ser observados pelos administradores locais.
A partir do exposto, é possível afirmar que a natureza passa a integrar
o dinâmico espaço urbano e sua proteção orienta o planejamento das
cidades, focado na sustentabilidade. O Estatuto da Cidade, por sua vez,
enfatiza a necessária atenção do gestor urbano aos efeitos adversos ao
meio ambiente decorrentes da má distribuição espacial da população e
das atividades econômicas do território, além do controle e ordenação
do uso do solo urbano.
A proteção jurídica do meio ambiente construído ou meio ambiente
urbano, sob o enfoque do desafio de regulamentação dos riscos e vulne-
rabilidades urbanoambientais, é necessária para fundamentar o direito à
cidade sustentável, locus das atividades sociais, culturais e econômicas
de grande parcela da população mundial.
Com efeito, o século atual pode ser denominado o “século urbano”.
O fenômeno da migração campo-cidade da década de sessenta inicia
a consolidação da urbe como moradia da maioria da população. Hoje,
no Brasil, aproximadamente 85% das pessoas vivem em cidades.20 Con-

1919
sequentemente, em razão de décadas de problemas derivados da falta
de planejamento urbano e precário provimento de serviços públicos, as
cidades cumularam problemas sociais, econômicos e ambientais.
O papel da ordem jurídica tem sido essencial para coibir o uso inade-
quado do espaço urbano ao estimular o seu uso coletivo e, principalmente,
para reverter o palco de desigualdades sociais e impactos ambientais
negativos que resultam na baixa qualidade ambiental de vida nas cidades
agravadas pelas diversas formas de poluição, sobretudo oriundas do pro-
cesso produtivo e do sistema dominante de transporte por automóveis.
Com base no exposto, consolidado o direito à cidade e à sustentabili-
dade urbana21, a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012)
consolida-se como uma das recentes e inovadoras normativas cujo escopo
é a efetividade ao acesso universal à cidade, o fomento e a concretização
das condições que contribuam para a efetivação dos princípios, objetivos
e diretrizes da política de desenvolvimento urbano, por meio do plane-
jamento e gestão democráticos, cujo fim último é a consolidação de um
dos direitos fundamentais sedimentados na Carta Política.
Sob os auspícios do princípio do desenvolvimento sustentável das
cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais, este novo marco
legal unifica as agendas verde e marrom (ambiental e urbana), base para
o planejamento urbano e essencial para uma gestão político-institucional,
político-administrativa e político-social eficiente, voltada ao bem-estar do
cidadão e da sadia qualidade de vida na cidade.
A partir deste instrumento legal - a Lei 12.587/2012 – direcionam-se
as reflexões a um instituto jurídico tão tradicional quanto presente, cujos
reflexos incidem de maneira acentuada nas tomadas de decisões em
todos âmbitos de atuação estatal direta ou indireta, com efeitos intensos
e permanentes na sociedade. Está-se a se tratar da aplicabilidade da dis-
cricionaridade administrativa e dos possíveis efeitos condicionantes da
principiologia urbanoambiental, diga-se de passagem, do dever de inserção
do critério de sustentabilidade no planejamento urbanoambiental.

1920
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

3. A REDUÇÃO DA DISCRICIONARIEDADE
NO SENTIDO DA CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO
FUNDAMENTAL à SUSTENTABILIDADE

A reflexão sobre o futuro das cidades contemporâneas deve partir


do pressuposto de que as crises urbanas não podem ser pensadas como
resultado de um processo linear, mas de um movimento de profunda com-
plexidade. Portanto, é necessário identificar as características, qualidades,
convergências, divergências, intersecções, desencontros e histórias.
Por outro lado,

[...] o debate contemporâneo sobre os impactos nas grandes


cidades das transformações econômicas é marcado pela hipó-
tese da emergência de uma nova ordem socioespacial na qual a
cidade cumpre um papel exatamente inverso, com o surgimento
de uma estrutura social dualizada e uma organização espacial
fragmentada, articula a democracia com as suas condições sociais
e institucionais. 22

Nesse contexto de profunda e contínua complexidade, a discricionarie-


dade administrativa é um elemento fundamental que comanda a atuação
administrativa em todos os setores da sociedade onde se vislumbra a
presença, mais ou menos intensa, do Poder Público.
Esse fator, de cunho político-jurídico, adquire maior relevância nos
cenários de transformação do espaço urbano provocados pela intervan-
ção estatal.
Concebido como o campo de liberdade concedido ao administrador
público pela ordem jurídica23 esse importante instrumento que fornece
dinamicidade à ação adminstrativa comumente ultrapassa os lindes que
lhe fornecem juridicidade e legitimidade .
A tão propalada “reserva do possível” parece não dar conta das reais
necessidades que a cidade, em seu tempo e espaço, reclama. Não há
limites, portanto, para que o Administrador Público, no exercício da dis-
cricionariedade, elabore o orçamento e, depois, execute-o. Sua “margem
de liberdade” é infinita frente à realidade, desde que se considerem as

1921
exigências de uma exclusão social perversa, a exemplo de variados servi-
ços públicos ofertados de modo precário, tais como o transporte coletivo.
Neste quadro, as decisões políticas, em sua maioria, não se revelam
propiciadoras ou promotoras do direito à cidade nos termos constitucio-
nais, tampouco do direito fundamental `a sadia qualidade de vida urbana,
concebida como uma das dimensões da dignidade da pessoa humana.
À administração pública, detentora da faculdade discricionária24, cabe
aferir os pressupostos da necessidade ou não da tomada de dada decisão.
E, para além desse aspecto, agrega-se a escolha do momento no qual
deve ser levada a cabo a decisão dantes eleita. Porém, essa discriciona-
riedade – quer por motivos de sua racionalidade própria ao ser exercida
por uma adminsitração pública que executa ações num Estado de Direito
Democrático, quer por serem inadmissíveis quaisquer ações desmesuradas
por parte do Poder Público – é necessariamente conformada e delimitada
pelo ordenamento jurídico. Neste sentido, os fundamentos que servem
de substrato para tais delimitações são inúmeros. Porém, alguns desses
baldrames podem ser, desde logo, antevistos.
Um deles e talvez o que se mostra acentuado para este estudo, é o
príncípio do desenvolvimento urbano sustentável em conformidade com
o planejamento. Trata-se de um postulado formulado pela doutrina alemã
e se relaciona insitamente com a razão de ser do plano25, voltado a um
outro aspecto igualmente essencial, de “que o desenvolvimento e a evolução
urbanísticas não podem ser deixados ao respectivo‚ crescimento natural.“26
A par desses elementos, há uma obrigação incidente sobre a atividade
administrativa e, consequentemente, sobre as decisões do administrador
ao não lhe ser concedida qualquer liberdade. In casu, são os standards
nucleares da Política Nacional de Mobilidade Urbana que reduzem inten-
samente a discricionaridade a ponto de conferir concretude e efetividade
às políticas públicas de todas as instâncias federativas, seja através da boa
administração, da gestão eficiente ou por meio de instrumentos coercitivos.
Se antes – e até mesmo no presente, por ignorância das normas que
regem o atuar administrativo – o administrador poderia escolher a seu

1922
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

juízo (e interesses) as ações que empreenderia em relação à mobilidade


urbana e aos investimentos que esse setor exige, atualmente não lhe resta
outra opção que não a de conduzir sua decisão para o cumprimento dos
comandos legislativos o que, na prática, culmina em uma opção ótima.27
Em decorrência dos princípios, regras e diretrizes que são contempla-
dos na Lei nº 12.587/2012, essa espaço de atuação – tão sedutor e, no
mais das vezes, utilizado para fins que não visavam ao interesse público
-, restou definitivamente reduzido.
Ante a conformação legislativa, é possível concluir que os dispositivos
estabelecidos nos artigos 5o ao 8o, estabeleceram a adequada conexão e
intersecção entre os vários elementos que compõem a ambiência urbana,
com a enunciação das prioridades que devem ser seguidas e atendidas pelo
Poder Público, vinculadas estritamente aos ditames da sustentabilidade e
à concretização da gestão democrática participativa.
Por igual, há previsão de critérios de gestão contratual e tarifária (ar-
tigos 9 o ao 13 o e 21 o a 24 o) além de contemplar direitos dos usuários,
definindo instrumentos de participação democrática (artigos 14 o e 15 o)
essenciais em uma República Democrática, eis que „quanto mais a Ad-
ministração tende a subtrair-se do domínio da lei, não se apresentando
como mera executora da mesma, mas antes dotada de um ´poder critati-
vo´ e ´plasmador´ do direito, tanto mais necessária se torna a particpação
do cidadão, na dupla perspectiva (subjetiva e objetiva). com a função de
`compensar´ um poder discriconário que, em alguns sectores, como o da
planificação urbanística atinge uma extensão considerável.28
Por fim, é de se ressaltar que de modo mais enfático há uma limitação
à discricionaridade através da lei 12.587/2012, em especial em seu artigo
25, o qual estabelece que os entes federativos farão constar em seus res-
pectivos projetos plurianuais e de leis de diretrizes orçamentárias as ações
programáticas e instrumentos de apoio que serão utilizados, em cada perí-
odo, para o aprimoramento dos sistemas de mobilidade urbana e melhoria
da qualidade dos serviços.
Portanto, não é aberta qualquer possibilidade ao administrador público

1923
de alijar ou postergar (tomar a decisão ou não e decidir quando) quaisquer
medidas que não em estrito cumprimento dos standards legais. Tanto
assim o é que impõe a inserção das políticas de mobilidade urbana nas
esfera orçamentária.

4. CONCLUSÕES

O presente estudo partiu da análise de uma realidade brasileira: a


complexidade urbana derivada do crescimento desordenado das grandes
metrópoles, que denunciam cenários de desigualdades, riscos e vulnera-
bilidades socioambientais.
Por outro lado, a crise ambiental torna-se tema interligado à gestão
urbanoambiental, pois as perturbações do sistema ecológico-urbano
decorrem principalmente da aglomeração populacional, das precárias
condições de habitação e da superpopulação, ocasionadas na medida
em que as cidades desenvolveram-se sem planejamento e a expectativa
de vida aumentou.
Tal panorama, apresentado como um dos maiores desafios aos pla-
nejadores e gestores urbanos, não deixa de ser contemplado no sistema
normativo brasileiro. Com efeito, a Constituição Federal estabeleceu
a proteção do meio ambiente que visa assegurar a todos qualidade de
vida. Portanto, o equilíbrio ambiental a que o legislador se refere deve
ser interpretado como o ambiente sustentável, que permita a todos vida
digna e, principalmente, a continuidade dos processos ecológicos sem
intervenções humanas destrutivas, fazendo-se incluir neste conceito o
meio ambiente urbano.
Garante-se, assim, o direito à cidade sustentável, estabelecido na Lei
10.257/2001 que prevê normas de ordem pública e interesse social que
regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem-estar coletivo, da
segurança e do equilíbrio ambiental.
A sustentabilidade como princípio constitucional, por outro lado, faz
nascer uma obrigação incidente sobre a atividade administrativa e, conse-

1924
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

quentemente, sobre as decisões do administrador ao não lhe ser concedida


qualquer liberdade, concluindo-se pela redução da discricionariedade
administrativa. A exemplo, foram analisados os standards nucleares da
Política Nacional de Mobilidade Urbana que reduzem intensamente a
discricionaridade a ponto de conferir concretude e efetividade às políticas
públicas de todas as instâncias federativas, seja através da boa adminis-
tração, da gestão eficiente ou por meio de instrumentos coercitivos, o que
denota uma alteração significativa da atuação administrativa brasileira e
de suas responsabilidades. Tal conclusão é o ponto de partida para uma
nova interpretação ao conteúdo da discricionaridade e seus contornos
normativos.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Doutora em Direito Adminsitrativo pela UFPr, Professora Adjunta de Direito Administrativo na Faculdade
de Direito da UFPR, Procuradora do Ministério Público de Contas do Paraná. Email: acostaldello@gmail.com
2 Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR, Mestre em Direito Econômico e Social pela PUC-
PR, Professora Adjunta de Direito Ambiental da UFPR e FAE, Advogada. Email: karin.kassmayer@gmail.com.
3 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental e mínimo existencial (ecológico?):
algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.) Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 17.
4 ANDREOLI, Cleverson V. (Ed.) Mananciais de abastecimento: planejamento e gestão. Estudo de caso do
Altíssimo Iguaçu. Curitiba: Sanepar Finep, 2003, p. 37. Neste mesmo estudo, os autores tratam da disponibi-
lidade e demanda de água no Brasil. Embora o país seja privilegiado em recursos hídricos, dispondo de uma
das redes fluviais mais amplas com 18% do potencial hídrico do planeta, e um grande volume de água em
aquíferos subterrâneos (na ordem de 112.000km²), demonstram as condições atuais que não há déficit, mas
sim riscos crescentes de conflitos de quantidade – principalmente no Nordeste - e qualidade e déficit de oferta
– nas grandes capitais, além de a maior parte da água estar concentrada nas regiões Norte e Centro–Oeste
(89%), enquanto 11% do potencial hídrico estão distribuídos entre 85,5% da população e 90,8% da demanda
de água no Brasil (p. 43).
5 MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias: planejamento urbano no Brasil. In:
ARANTES et al. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 163.
6 FERNANDES, Edésio. Impacto socioambiental em áreas urbanas sob a perspectiva jurídica, In: MENDONÇA,
Francisco. (Org.) Impactos socioambientais urbanos, Curitiba: UFPR, 2004, p. 115.
7 Idem, ibidem.
8 A exemplo, os desastres amplamente conhecidos e ocorridos em janeiro de 2011 no Estado do Rio de Janeiro,
bem como a explosão do Morro do Bumba, em Niterói, em abril de 2010.
9 FERNANDES, Edésio. Impacto socioambiental em áreas urbanas sob a perspectiva jurídica, In: MENDONÇA,
Francisco. (Org.) Impactos socioambientais urbanos, Curitiba: UFPR, 2004, p. 115.
10 ALFONSIN, Betania de Moraes.; FERNANDES, Edésio. Da Igualdade e da Diferença. In: ALFONSIN, Betania
de Moraes.; FERNANDES, Edésio. (Orgs.) Direito urbanístico: Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo

1926
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Horizonte: Del Rey, 2006. p. 347-349.


11 FERNANDES, Edésio. Desenvolvimento sustentável e política ambiental no Brasil: confrontando a questão
urbana. In: LIMA. A. (Org.). O direito para o Brasil socioambiental. Porto Alegre: Fabris/ ISA, 2002, p. 353.
12 Dispõe o caput do Art. 225 da Constituição Federal, in verbis: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologi-
camente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
13 MARÉS, Carlos Frederico. Introdução ao Direito Socioambiental. In: LIMA. A. (Org.). O direito para o Brasil
socioambiental. Porto Alegre: Fabris/ISA, 2002. p. 21-48.
14 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: Peirópolis, 2005, p. 222.
15 DAIBERT, Arlindo. Notas sobre proteção ambiental e o Direito de propriedade no Direito Brasileiro. In:
TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson. (Org.) O Direito e o tempo: estudos em homenagem ao Pro-
fessor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 587.
16 PRESTES, Vanêsca Buzelato. (Org.) Temas de Direito Urbano-Ambiental. Belo Horizonte: Forum, 2006,
p. 28.
17 Idem, p. 28
18 CUSTÓDIO, Helita Barreira. Direito Ambiental e questões jurídicas relevantes. Campinas: Millenium,
2005, a respeito do princípio da informação ambiental, entende não ser cabível qualquer exceção a este prin-
cípio, tal como o sigilo necessário ao exercício da profissão, bem como o segredo imprescindível à segurança
da sociedade e do Estado, ambos previstos constitucionalmente. O argumento utilizado para tanto vincula-se
à indispensabilidade da proteção da sadia qualidade de vida, saúde pública e segurança da própria sociedade.
19 CUSTÓDIO, Helita Barreira. Direito Ambiental e questões jurídicas relevantes. Campinas: Millenium,
2005, p. 05.
20 Segundo dados do Censo de 2010, 84,36% da população brasileira vive em cidades. Disponível em: ftp://
ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Resultados_do_Universo/tabelas_pdf/tab1.pdf. Acesso
em: 8 jun. 2012.
21 Sobre o tema sustentabilidade, vide também FREITAS, Juarez “Sustentabilidade: direito ao futuro”, obra
na qual o autor trata da importância da visão prospectiva, de natureza multidimensional da sustentabilidade,
além das dimensões sociais, éticas, econômicas e jurídico-políticas que se entrelaçam.
22 RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro; SANTOS JUNIOR, Orlando Alves. Democracia e segregação urbana:
reflexões sobre a relação entre cidade e cidadania na sociedade brasileira. Disponível em: http://www.scielo.
cl/scielo.php?pid=S0250-71612003008800004&script=sci_arttext. Acesso em 27 de Agosto de 2013.
23 Várias são as definições dadas pela doutrina para a discricionariedade, desde o momento de sua confor-
mação mais precisa, após a Revoluão francesa. Porém, sempre busccando diferenciá-la da arbitrariedade.
24 Neste estudo adota-se a concepção da discricionariedade enquanto uma faculdade. Porém, ressalta-se que
a doutrina contempla o instituto como um dever e como um poder.
25 ALVES CORREIA, Fernando. O plano urbanístico e o princípio da igualdade. Coimbra: Almedina.
1989, p. 288.
26 Ob. Cit. p. 288, grifo do original.
27 Vide, sobretudo, Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo) e Miguel Sánchez Móron
(El control judicial de la discrionalidad administrativa).
28 COGNETTI, Stefano. La tutela delle situazioni soggettive tra procedimento e processo (Le esperienze di
pianificazione urbanistica in Italia e in Germania. Perugia, Edizione Scientifiche Italiane, 1987, p. 55 Apud
CORREIA, Fernando Alves. Op.cit., p. 261.

1927
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A responsabilidade da administração
pública pela concretização do sistema
urbanístico-ambiental sustentável

Alessandra Bagno F. R. de Almeida*


Marinella Machado Araújo**

1. INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil do Estado, ao longo dos tempos, sofreu


profunda evolução. Passamos da ideia de total irresponsabilidade estatal
para um espaço onde a responsabilidade objetiva encontra-se pautada
pela teoria do “risco administrativo”.
Entretanto, se considerarmos a atualíssima preocupação com os proble-
mas urbanísticos ambientais, decorrentes dos processos de crescimento e
desenvolvimento das cidades, o tema ainda está longe da evolução espe-
rada, tendo com foco a visão diferenciada havida entre os indivíduos, go-
vernos, organizações internacionais, entidades da sociedade civil e outros.
No contexto brasileiro, os problemas urbanos ambientais, sempre
abundantes, não recebem o atendimento compatível e necessário ao de-
sejado. Por outro lado, a lenta resolução de tais problemas agrava ainda
mais a situação consolidada dos centros urbanos.
A partir dessas premissas, a questão central deste estudo intenta de-
terminar em que medida o Estado pode ser responsabilizado em face da
ausência de vinculação efetiva entre a ação do administrador público e o
planejamento administrativo diante do dever de efetivação de direitos fun-
damentais, principalmente na concretização da política urbano-ambiental
de forma a concretizar o princípio do desenvolvimento sustentável entre
nós, justificando, se necessário, a intervenção do Judiciário, inclusive com
a aplicação da pena de improbidade administrativa.

1929
Se considerarmos tal linha de evolução, não podemos nos desvencilhar
da ideia de que o dano decorrente da falta de planejamento ou da descon-
sideração de diretrizes anteriormente traçadas pelos planos urbanos, jus-
tamente nos casos de condutas praticadas por agentes políticos – quando,
consciente e discricionariamente, agem sem o devido dever de cautela no
atendimento dos princípios da eficiência e da boa administração, e, em
decorrência desses atos causam lesão ou dano ao meio ambiente natu-
ral ou urbano, mesmo sem a intenção de atingir um fim ilícito, mas que,
contudo, devem de alguma forma gerar responsabilidade para aqueles
detentores do comando e da gestão de tais ações.
Há várias razões para se atribuir responsabilidade ao Estado, e, prin-
cipalmente ao Administrador Público, em casos como esse, uma vez que
o dano decorreu, exclusivamente, da ação do próprio agente político, o
qual, agindo deliberadamente, dentro da margem da discricionariedade,
ou não guardou, no mínimo, os devidos cuidados na realização de seu
mister, ou despendeu dinheiro público em projetos contrários ao interes-
se coletivo, ou ainda, para “consertar” uma situação consolida, emprega
dinheiro público, sem se preocupar com as externalidades negativas
decorrentes da má gestão.
Se a jurisprudência caminha no sentido de se conferir maior liberdade
de atuação aos agentes políticos, devem, também, imprimir-lhes uma
maior responsabilização de suas condutas, mantendo-se um tratamento
equânime diante de situações similares, sob pena de ofensa manifesta ao
princípio da igualdade e da legalidade.
O pano de fundo da atuação Administrativa, no contexto do Estado
de Direito brasileiro, está adstrito à compatibilização entre o princípio da
eficiência da Administração, na elaboração e concretização das políticas
públicas, com o pressuposto da sustentabilidade do meio, e, ainda com
matriz econômica liberal preconizada no artigo 1º, inciso IV e reafirma-
da nos artigos 5º, incisos, xIII, xxII e xxIII, 170, incisos I a Ix da Carta
Constitucional, cuja representação se dá pela dimensão dos interesses
privados na esfera social.

1930
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A soma desses antecedentes, no nosso entender, justifica o enqua-


dramento das políticas públicas, concretizadoras do direito social às fun-
ções da cidade, nas abordagens ecológicas de planejamento, e, portanto,
podemos afirmar que a efetividade e eficiência de tais políticas públicas
são dependentes do direito à boa Administração, as quais, por sua vez,
implicam a incorporação do princípio do desenvolvimento sustentável
na sua elaboração.
A ideia do “desenvolvimento sustentável” consiste no reconhecimen-
to de que os “recursos naturais” não são inesgotáveis, de modo que as
atividades sejam elas, públicas ou privadas, não poderão se desenvolver
ignorando ou desprezando esse importante dado, assim como não poderá
a Administração Pública ficar a margem dessa nova dimensão, sob pena
de se tornar ineficiente e ineficaz.
Dessa forma, defende-se por meio desse artigo científico que: i) o Ad-
ministrador Público está vinculado, legalmente e constitucionalmente ao
combate severo dos problemas urbanos ambientais, com vistas ao bem
estar da população, o que, em síntese, não permite que a Administração
Pública deixe de adaptar as suas políticas e ações à dimensão da susten-
tabilidade; ii) a concretização de uma política pública sustentável tem por
pressuposto o planejamento administrativo, que leve em consideração a
multiplicidade das formas de vida, a participação social, assim como as
cinco dimensões da sustentabilidade na efetivação de suas ações, pois,
caso contrário, as ações e políticas administrativas não alcançarão a
efetividade pretendida, sendo tal atuação passível de responsabilização
por improbidade administrativa; iii) a responsabilidade do administrador
público deve ser analisada da forma mais ampla pelo judiciário, principal-
mente nos casos de atos de gestão que afastando-se das políticas públicas
já traçadas, e, baseadas no planejamento urbano-ambiental, causem danos
à população e ao erário;
Ressaltamos que as ideias defendidas neste trabalho partem das pes-
quisas e discussões havidas no âmbito do Núcleo Jurídico de Políticas
Públicas - NUJUP, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Direito
da PUC-Minas.

1931
O tema possui sua relevância, posto que traz em seu bojo aspectos
relativos à efetivação de direitos fundamentais sociais, principalmente
no tocante à concretização das funções da cidade sustentável, tendo em
vista que o princípio do desenvolvimento sustentável é tido como princí-
pio fundamental garantidor, em última instância do bem-estar e da vida
da população.
Metodologicamente adotou-se a técnica de análise jurídica bem como
o estudo interdisciplinar para promover uma argumentação densa o su-
ficiente a fim de comprovar a hipótese defendida.

2. O PLANEJAMENTO URBANO AMBIENTAL SUSTENTáVEL

A realidade da maioria das cidades brasileiras é caótica, e, não pode-


mos mais pretender um modelo de planejamento urbano, marcado por
processos que eleja a apropriação privada da terra e a remoção forçada de
populações, a especulação imobiliária, as altas densidades, a acentuada
desigualdade socioterritorial, e a priorização do automóvel, em detrimento
do transporte público de qualidade, o que em última análise promove a
baixa qualidade de vida das populações urbanas.
A precariedade do ambiente urbano e natural é percebida como um
problema generalizado, que extrapola o território das cidades, as quais
comprovadamente não se sustentam.
Em contraponto a tais problemas, temos que a maioria — 83% de 5.266
municípios, do total de 5.565 existentes hoje no país — não consegue
gerar nem 20% da receita de seu orçamento. E, por consequência, a boa
gestão dos parcos recursos financeiros na geração dos serviços sociais é
um dever legal, e, não somente uma escolha moral.
Nesse sentido tem-se como vital um estilo de desenvolvimento que se
dimensione basicamente às necessidades básicas da população, onde a
participação seja a expressão maior de sua qualidade, posto que se de-
corrente desses elementos o crescimento finalmente vai se transformar
em desenvolvimento.

1932
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Cada sociedade tem seu ritmo de compreender e de efetivar esse


desenvolvimento a fim de promover o bem-estar, pois o que importa é
a qualidade desse processo, o qual deverá ser medido em distribuição e
participação, ainda que seja pouco o que efetivamente se produz. Para
Demo1, vale muito a pena andar mais devagar, se assim contribuirmos
a estilos de crescimento que realmente instrumentalizam a capacidade
própria de autossustentação.
Sanchs2 usa a ideia de ecodesenvolvimento para estudar novas modali-
dades de desenvolvimento, tanto em relação aos seus fins, quanto aos seus
instrumentos, tendo como compromisso básico valorizar as contribuições
das populações, dos recursos e do seu meio.
Esse tipo desenvolvimento apoia-se em cinco dimensões, as quais de-
vem ser instigadas em todo o planejamento de desenvolvimento, de forma
simultânea, a saber: a sustentabilidade social, que propõe a construção de
uma civilização com maior equidade na distribuição de renda e de bens,
subsidiada por uma visão do que seja uma sociedade boa para todos; a
sustentabilidade econômica, voltada para superação da concentração de
bens e riquezas em poucos, através da alocação e do gerenciamento mais
eficiente dos recursos e de um fluxo constante de investimentos públicos e
privados; a sustentabilidade ecológica, ligada à preservação da biodiversi-
dade e à qualidade ambiental; a sustentabilidade espacial, que se refere à
distribuição adequada dos assentamentos humanos e, consequentemente,
a distribuição territorial e, por fim, a sustentabilidade cultural, voltada para
a necessidade de se evitar conflitos culturais, por meio de processos que
busquem mudanças dentro da continuidade cultural e que traduzam o
conceito normativo de ecodesenvolvimento em um conjunto de soluções
específicas para o local, o ecossistema, a cultura e a área.
Dessa forma, o desenvolvimento urbano não poderá dissociar-se dos
custos sociais, econômicos e ambientais produzidos pelos atuais esquemas
de urbanização, em que muitas das ações governamentais são anuladas
pelos efeitos de um crescimento ambientalmente distorcido.
A sustentabilidade do desenvolvimento urbano depende, conforme

1933
as diretrizes traçadas pela Cúpula dos Povos em 2012, da gestão corre-
ta dos recursos ambientais comuns existentes nas cidades, os quais se
compõem, entre outros, de sua atmosfera, da bacia hidrográfica que a
abastece e dos recursos territoriais que oferecem serviços de localização
espacial, de recarga de lençóis freáticos, de reserva ecológica e territorial,
de criação e conservação dos recursos naturais, além de um bom manejo
dos resíduos sólidos.
Numa visão de sustentabilidade, é necessário administrar esses recur-
sos de maneira que se observem sistematicamente os limites críticos trans-
gredidos, os quais geram custos sócio-ambientais excessivos. Reconhecer
a existência desses limites significa enfrentar como bens econômicos os
recursos ambientais comuns e, por conseguinte, admitir a inelutável ne-
cessidade de levar a cabo uma gestão eficiente e socialmente equitativa.
Portanto, o administrador público deve buscar a sustentabilidade ur-
bana por meio de políticas que integrem o estilo de vida da população, o
desenvolvimento tecnológico e a forma e organização do governo local.
A sustentabilidade das cidades dependerá, por conseguinte, de sua capa-
cidade de estabelecer estratégias sociais e econômicas para integrar seus
espaços políticos, sociais, econômicos, ambientais, territoriais e culturais
frente às demandas e pressões do exterior.
Para Sachs3 a proposta de desenvolvimento sustentável nos municípios
está na descentralização geográfica da produção, de modo que se torna
relevante e que a economia seja reorganizada para atender prioritariamen-
te ao mercado local e regional. O atendimento às necessidades básicas da
população passa a ser primordial de forma que cada região se torne mais
autônoma e autossuficiente possível, dando primazia às exigências locais.
Segundo Maria Cristina A D Ávila4

o progresso faz parte de nossa vida, mas ao produzi-lo não po-


demos esquecer que o meio ambiente é a clave mestra, devendo
ser preservado para o bem estar de toda a humanidade, para a
nossa segurança, e até mesmo visando a dignidade da raça hu-
mana, que é um bem personalíssimo, acima de muitas barreiras.

1934
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Afirmamos que o atendimento a todas essas exigências somente


poderá ser concretizado por meio de um planejamento administrativo,
que necessariamente leve em consideração a multiplicidade das formas
de vida, a participação social, assim como as dimensões da sustentabi-
lidade na efetivação de suas ações, pois em um planejamento integrado
e participativo a multiplicidade desses fatores serão necessariamente
interrelacionados, a fim de obedecer às características locais e regionais.
O planejamento municipal sustentável está voltado ao estabelecimento
de uma economia regionalizada, diversificada e autossuficiente, em aten-
dimento às necessidades básicas da população, com promoção da integra-
ção cidade/campo. Deverá ser construído a partir de técnicas eficientes,
baratas e não poluentes e calcadas em fontes renováveis de energia. Neste
sentido, as técnicas alternativas são em geral mais baratas, econômicas e
acessíveis, além de gerarem mais empregos, pois são intensivas de mão-
-de-obra e contribuem para a independência tecnológica do país5.
Nesse norte, o papel da Administração Pública caracteriza-se, especi-
ficamente, por uma relação de responsabilidade direta da qual decorre o
desenvolvimento da sociedade.
Teixeira e Silva6 afirmam que o “governo local, como instância social,
articula necessidades diferentes de indivíduos, grupos, classes sociais e
outros segmentos da sociedade. Estas necessidades, em interação, têm
um efeito multiplicador, de dimensão macro, que confere ao governo um
potencial transformador, de caráter uno, em relação à sociedade global.”
A capacidade sinérgica da administração pública importa em continu-
amente redefinir sua missão em face aos novos imperativos. No entanto,
as mudanças nas administrações públicas, como novas diretrizes e formas
de gestão, dada a alternância de governantes, esbarram nos interesses
estabelecidos e provocam interferência na cultura organizacional do
aparelho administrativo do país.7
O planejamento deve ser compreendido como um processo inerente
à administração pública, o qual ser refere a uma prática sistemática e
constante com integração entre áreas econômica, social, físico-territorial
e ambiental, administrativa e institucional.

1935
O planejamento deve propor modelos de organização de políticas
públicas, destinado a produzir decisões que definem os caminhos funda-
mentais e ações que guiem a organização integrada entre todas as áreas
de gestão urbana, orientado para resultados com decisões unificadas, e,
de modo a propiciar atuação e participação de todo os níveis nas ações
desenvolvidas com vistas ao atendimento das cinco dimensões do desen-
volvimento sustentável.
Nesse ponto, é necessário discutir a visão que o mundo jurídico tem
do planejamento, alocando-o na maioria das vezes como decorrência da
função política, e, portanto, passível de escolhas discricionárias do gestor
público. Porém, o planejamento decorre materialmente da função admi-
nistrativa, e, dessa forma, sujeito aos princípios constitucionais ligados à
Administração Pública, como defendemos ao princípio da eficiência e ao
dever da boa administração.
A discricionariedade administrativa na consecução dessa função for-
nece muito poder ao agente administrativo, que poderá decidir sobre o
fundamento da lei, mas por meio de uma ação discricionária, a alterar os
rumos de um plano anteriormente traçado, em nome do interesse público.
Assim, é imperativo que se observe se tais decisões ampliam ou restrin-
gem a concretização de direitos fundamentais sociais, principalmente da-
queles direitos básicos, referentes ao bem estar e a saúde das populações,
se há na ação administrativa falta de compromisso com o planejamento
que levam a faltam de efetividade das funções essenciais da cidade, se há
dispêndio excessivo de dinheiro público, e, ainda se a ação discricionária
está ou não adequada com o que dispõe a Constituição de 1988.
O controle mínimo, por meio dos instrumentos tradicionais não mais
funcionam, é ineficiente, pois se foca na individualidade e nos interesses
políticos. A Constituição de 1988, por sua vez, impõe que a validade das
escolhas públicas deve ser centrada na sociedade civil, com base nas es-
colhas da coletividade que participa do processo de alternativas viáveis
para o desenvolvimento sustentável das cidades.

1936
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

2.1 O Planejamento Sustentável e seu Caráter Vinculativo

As administrações municipais, segundo Fischer8, nos desafios da


economia sustentada e na promoção do desenvolvimento se defrontam
com o resgate da identidade local, interceptando o futuro num plano de
abordagens de oportunidades.
As responsabilidades do poder público tornam-se cada vez mais com-
plexas e variadas frente às crescentes necessidades da sociedade plural e
diante do desenvolvimento econômico, social e cultural que o Brasil vem
experimentando.
E, nesse sentido, o governo municipal é o mais solicitado a prestar
novos serviços e atividades, visto que ocorre, na esfera do município, o
cotidiano da população.
As experiências desta nova concepção de ação pública - diversificadas
nas áreas de saúde, transporte, habitação, abastecimento, educação, or-
çamento e cultura - reafirmam a noção de que o desenvolvimento local
integrado deve se dar de forma compartilhada, garantindo a dimensão
pública dos serviços.
Os planos municipais, com vistas à sustentabilidade, devem viabilizar
as políticas de desenvolvimento micro regional e ultrapassar dificul-
dades no atendimento à demanda por serviços públicos, constituindo
entidades específicas.
As administrações municipais constituem ambiente propício para
atuação das grandes massas, através das suas organizações, utilizando
como método de atuação a planificação participativa.
Dessa forma, o Município por meio do planejamento visa corrigir as
distorções administrativas, facilitar a gestão municipal, alterar condições
indesejáveis para a comunidade local, remover empecilhos institucionais
e assegurar a viabilização de propostas estratégicas, objetivos a serem
atingidos e ações a serem trabalhadas.
O planejamento é, de fato, uma das funções clássicas da administração
científica indispensável ao gestor municipal. “Planejar a cidade é essencial,

1937
é o ponto de partida para uma gestão municipal efetiva diante da máquina
pública, onde a qualidade do planejamento ditará os rumos para uma boa
ou má gestão, com reflexos diretos no bem-estar dos munícipes.”9.
Uma preocupação constante deve ser com o comportamento das
finanças municipais, as quais apontam para o equilíbrio entre receitas,
despesas, investimentos e endividamentos10.
Também não podem ser esquecidas as variáveis socioambientais das
cidades, que enfatizam a sustentabilidade urbana, o cenário de diversidade
social que caracteriza as cidades e a importância de se priorizar a função
social da propriedade.
Sob essa perspectiva, as questões físico-territoriais, econômicas, fi-
nanceiras, políticas, socioambientais e de gestão têm constantemente
desafiado os municípios, requerendo um avanço nas técnicas de planeja-
mento até então desenvolvidas pelo governo local. Equilibrar os diferentes
interesses que se apresentam em cada uma dessas temáticas e garantir a
efetiva participação comunitária parece ser o desafio maior da adminis-
tração pública local.
Diante dessas necessidades e relevâncias, a administração pública
municipal demanda competência e efetividade dos seus gestores que
devem se atualizar e agir por meio de instrumentos técnicos, modernos
e práticos de planejamento e de gestão.
O plano diretor municipal e o planejamento estratégico municipal
são instrumentos de planejamento e gestão de municípios e prefeituras,
considerados, atualmente, de importância inquestionável.
A realização de tais instrumentos deve mesmo ser compatibilizada
com regulamentos de ordem superior, tais como a própria Constituição
Federal, a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Estatuto da Cidade.
Portanto, o seu caráter vinculativo é inquestionável, e, dessa forma,
defendemos que o planejamento deve necessariamente ocorrer com o
envolvimento de todos os atores sociais, de forma a possibilitar a reflexão
sobre o padrão de desenvolvimento alcançado, a partir da obtenção de
informações que indiquem quais os objetivos a serem alcançados; como

1938
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

vem sendo, ou foi implementada; quem é, e como vem sendo beneficia-


da a população-alvo dos programas e projetos públicos que ancoram o
modelo de desenvolvimento em curso, sem perder de vista a garantia de
equidade e sustentabilidade do desenvolvimento, a partir da capacidade de
continuidade dos efeitos benéficos dos programas e políticas, permitindo
também, uma distribuição de maneira justa, compatível e tornando mais
sensato e efetivo os gastos públicos.
Isto significa dizer, que a racionalidade da Administração pública não
pode mais se assentar em decisões parciais e autocráticas, em nome de
um interesse público que confere prerrogativas ao administrador apenas
para dissimular o clientelismo e o favorecimento, tão presentes em nosso
meio social.
O homem como integrante do meio, merece a proteção do Estado que
deve buscar oferecer melhores condições de vida, o que abarca tanto
a questão econômica, como a dos aspectos socioculturais, territoriais
e ambientais. Sob essa perspectiva, o planejamento urbano “não trata
somente do melhoramento viário e higiênico, como em outros tempos.”11

3. A RESPONSBILIDADE CIVIL DO ESTADO

A responsabilidade do Estado evoluiu no sentido de proporcionar maior


benefício ao cidadão lesado, dispensando-o de provar alguns elementos
que dificultam o surgimento do direito à reparação dos prejuízos, haja
vista ele figurar como polo hipossuficiente na relação com o Estado, pois
pela teoria da responsabilidade objetiva está dispensado da verificação
do fator culpa em relação ao fato danoso, bastando ao lesado comprovar
a relação causal entre o fato e o dano, podendo ainda o dever de reparar
incidir sobre fatos lícitos ou ilícitos.
Por ser o Estado mais poderoso que o indivíduo deverá, pois, arcar
com um risco natural decorrente de suas inúmeras atividades. Pela
grande quantidade de poderes correspondendo a um risco maior, nasce
o fundamento da responsabilidade objetiva do Estado que é a teoria do
risco administrativo.

1939
Para caracterizar tal teoria tem-se que configurar certos pressupostos
formando um elo entre o funcionamento do serviço público e o prejuízo
sofrido pelo administrado. Esses pressupostos são:

a) Conduta comissiva ou omissiva por agente público.


b) Dano específico (porque atinge apenas um ou alguns membros
da coletividade) e anormal (porque supera os inconvenientes
normais da vida em sociedade, decorrentes da atuação estatal. )
c) Nexo de causalidade entre eles.

Por sua vez, a teoria do risco subdivide-se em teoria do risco adminis-


trativo e teoria do risco integral. Em regra, ambas as teorias prescindem da
apreciação da culpa, seja a culpa do agente ou a do serviço. Assim, basta
ao administrado demonstrar que houve um comportamento comissivo ou
omissivo e o fato danoso, bem como o nexo de causalidade.
As teorias do risco administrativo e do risco integral se diferenciam no
que diz respeito à existência de hipóteses excludentes de responsabilidade.
Na teoria do risco administrativo a responsabilidade do Estado é afas-
tada nos casos em que há força maior, fato de terceiros ou culpa exclusiva
da vítima, sendo que nos casos em que há culpa concorrente da vítima
o Estado indenizaria na proporção inversa do grau de culpa da vítima,
ou seja, quanto maior a culpa da vítima menor será o valor devido pelo
estado a titulo de indenização.
Já a teoria do risco integral, modalidade extremada da teoria do risco,
não se admite nenhuma causa excludente da responsabilidade, obrigando
o estado a indenizar mesmo que o dano seja resultante da culpa ou dolo
da vítima ou de força maior. No direito moderno, tal teoria é criticada, só
se aplicando em situações excepcionais.
Em síntese, de acordo com o entendimento da maior parte da doutrina,
a teoria do risco foi acolhida no Brasil com o advento da Constituição de
1946, sendo mantida na vigente Constituição de 1988, conforme disposto
em seu art. 37, §6°12.
No entanto, a reiterada jurisprudência dos tribunais superiores brasilei-
ros, apoiada na doutrina, a teoria do risco foi admitida na modalidade do

1940
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

risco administrativo, ou seja, o Estado poderá eximir-se da responsabili-


dade quando existir algumas das causas excludentes, quais sejam: - força
maior, fato de terceiros ou culpa exclusiva da vítima.
Apesar disso, a teoria do risco integral, em casos excepcionais também
é adotada, de forma restrita, sendo admitida apenas nos casos de ataques
terroristas e danos nucleares.
É importante salientar que Celso Antônio Bandeira de Mello13 entende
que a conduta comissiva decorrente de ato ilícito gera responsabilidade
objetiva e que a conduta omissiva decorrente também de ato ilícito gera
responsabilidade subjetiva.
Adeptos da teoria objetiva questionam essa posição do nobre doutrina-
dor e indagam se essa distinção é pelo fato da primeira conduta ser uma
causa do dano e a segunda ser mera condição. Concluem os juristas que
essa distinção deve ser afastada, por não mais se sustentar cientificamente.

3.1 A Responsabilidade Civil do Estado na Visão do STF e STJ

É usual na política urbana nacional a utilização dos instrumentos de


planejamento, os quais ora são valorizados, ora são esquecidos por pla-
nejadores e gestores municipais.
Metodologias e instrumentos diversos têm sido utilizados como forma
de planejamento urbano no Brasil de forma cíclica e, em alguns casos, com
pequenas mudanças. De fato, ora valoriza-se a estrutura municipal públi-
ca, ora os interesses públicos majoritários, ora defendem-se os interesses
do setor privado, mostrando tratar-se mais de uma questão de escolha
do Administrador Municipal, que por meio do seu poder discricionário de
gestão, materialmente ligado à função governamental, escolhe o modelo
que pretende ver adotado.
O que se observa é que sucessos e fracassos precedentes na gestão
municipal, entre outros fatores, num debate que ainda carece de maiores
discussões, se devem a importância das escolhas do governo local, tendo
em vista o atendimento dos princípios da eficiência e ao dever de boa ad-

1941
ministração, na consecução do desenvolvimento sustentável das cidades.
O controle dos planos de desenvolvimento municipais é de vital impor-
tância na esfera municipal, pois a continuidade, fiscalização e reavaliações
do planejamento original podem ensejar a responsabilização do adminis-
trador público em alguns casos de atuação discricionária desarrazoada,
inclusive importando em punição por improbidade administrativa.
Segundo Henriques Filho14 o art. 3º da Lei de Improbidade Adminis-
trativa “adotou uma posição no grau mais amplo possível, de modo a
assegurar a responsabilização geral de todos os sujeitos que praticarem
atos de improbidade, não importando que tipo de vinculação, tais indiví-
duos tenham com o sujeito passivo – ou a entidade estatal – afetado pela
prática do ato em questão.
Por outro lado, após o advento do Estatuto das Cidades, a obrigatorie-
dade do Plano Diretor passou a vigorar consoante prescreve o seu art. 41,
e, na medida em que o Prefeito Municipal, em algumas situações, pratica
improbidade administrativa só por não observar certas determinações
relacionadas com esse instrumento básico da política de desenvolvimento
e expansão urbana.
Destarte, incorre em improbidade administrativa o Prefeito Municipal
que nos termos do art. 52, VII, do Estatuto da Cidade, “deixar de tomar as
providências necessárias para garantir a observância do disposto no § 3°
do art. 40 e no art. 50 desta Lei”.
Prescreve o § 3° do art. 40 desse Estatuto a revisão do Plano Diretor,
ao menos, a cada dez anos, enquanto que o art. 50 estabelece a institui-
ção de Plano de Diretor no prazo de cinco anos para os Municípios com
mais de vinte mil habitantes ou integrantes de regiões metropolitanas e
aglomerações urbanas.
Ainda incorre em improbidade administrativa, o Prefeito Municipal
que impedir ou deixar de garantir os requisitos contidos nos incisos I a III
do § 4° do art. 40, que asseguram, no processo de elaboração do Plano
Diretor, “I – a promoção de audiências públicas e debates com a participa-
ção da população e de associações representativas dos vários segmentos

1942
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da comunidade; II – publicidade quanto aos documentos e informações


produzidos; III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e in-
formações produzidos”.
Portanto, ao deixar de satisfazer essas exigências o Gestor Municipal
atenta contra os princípios da Administração Pública, ou seja, viola os
princípios da legalidade e da publicidade ou transparência.
Sua ação, por isso, enquadra-se na figura infracional do art. 11, caput,
da Lei de Improbidade Administrativa, ou seja, Lei federal n° 8.429/92, e
o sujeita às sanções do art. 12, III, também dessa lei.
Por sua vez o Professor Juarez de Freitas15 afirma que:

... eis o conceito proposto para o princípio da sustentabilidade:


trata-se do princípio constitucional que determina, com eficácia
direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade
pela concretização solidária do desenvolvimento material e
imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambiental-
mente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar,
preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente
e no futuro, o direito ao bem-estar.

Para esse autor16, desenvolvimento e sustentabilidade não são neces-


sariamente contraditórios entre si. Desde que o desenvolvimento seja
sustentável, contínuo e duradouro.
Portanto, não seria impossível a responsabilização do Administrador
Público que age em desconformidade com as leis de planejamento mu-
nicipal, ou na falta de um plano de desenvolvimento municipal age sem
observar os princípios da eficiência e o dever de boa administração, cau-
sando danos ao erário ou ao bem comum e o ao meio ambiente.
Entretanto, mesmo com todos ou muitos desses deveres descumpridos,
a grande maioria dos Municípios escapa desse controle, pois a atual posi-
ção do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, quanto
ao tema é que o ato de improbidade depende da comprovação de dolo
ou culpa por parte do agente supostamente ímprobo, e exige, conforme
as circunstâncias do caso, a prova de lesão ou prejuízo ao erário, pois o
objetivo da Lei de Improbidade é punir o administrador público desonesto,

1943
não o inábil. Ou, em outras palavras:

para que se enquadre o agente público na Lei de Improbidade é


necessário que haja o dolo, a culpa e o prejuízo ao ente público,
caracterizado pela ação ou omissão do administrador público.”
(Mauro Roberto Gomes de Mattos, em “O Limite da Improbida-
de Administrativa”, Edit.América Jurídica, 2ª ed. pp. 7 e 8). “A
finalidade da lei de improbidade administrativa é punir o admi-
nistrador desonesto” (Alexandre de Moraes, in “Constituição do
Brasil interpretada e legislação constitucional”, Atlas, 2002, p.
2.611).”De fato, a lei alcança o administrador desonesto, não o
inábil, despreparado, incompetente e desastrado” 17

Todavia, há fortes indícios que o posicionamento jurisprudencial desses


Tribunais Superiores poderá evoluir, tendo em vista a decisão parcialmente
favorável à Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 607940, julgado
em 2010, que ainda aguarda solução.
O relator Ministro Ayres Britto, reconheceu a repercussão geral, nos
seguintes termos:

CONSTITUCIONAL. CRIAÇÃO DE PROJETOS URBANÍSTICOS


OBRIGATORIEDADE DO PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO
DA POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO URBANO DOS MUNICÍ-
PIOS. Possui repercussão geral a questão constitucional atinente
à obrigatoriedade do plano diretor como instrumento da política
de ordenamento urbano. “Nessa textura, tenho que a questão
constitucional debatida na causa sob exame – obrigatoriedade
do plano diretor como instrumento de política de ordenamento
urbano – ultrapassa os interesses das partes (o apelo extremo
foi interposto contra acórdão proferido em sede de ação direta
de inconstitucionalidade, é bom ressaltar). Demais disso, a con-
trovérsia é relevante sob os pontos de vista econômico, político,
social e jurídico.
Por outra volta, pontuo que a tese a ser fixada pelo Supremo
Tribunal Federal orientará a política de desenvolvimento urbano
a ser executada por todos os municípios brasileiros. Com estas
breves considerações, manifesto pela presença do requisito da
repercussão geral e submeto a matéria ao conhecimento dos
demais ministros desta Suprema Corte.” 18

Paulo Bessa Antunes19, Celso Antônio Pacheco Fiorillo20 e Luís Paulo


Sirvinskas21 ao comentarem o Estatuto da Cidade concordam que essa
norma estabelece as diretrizes (rectius: princípios) norteadoras da política
urbana, cujo objetivo é ordenar o pleno desenvolvimento das funções

1944
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sociais da cidade e da propriedade urbana, observando a garantida do


direito às cidades sustentáveis, a saber: o direito à terra urbana, à moradia,
ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer.
Significa, em consequência, importante diretriz destinada a orientar a
política de desenvolvimento urbano em proveito da dignidade da pessoa
humana e seus destinatários – os brasileiros e os estrangeiros residentes
no País -, a ser executada pelo Poder Público municipal, dentro da deno-
minada tutela dos direitos materiais metaindividuais.
Portanto, verificada a existência do dano, a reparação deverá se dar
em conformidade com a diretriz constitucional (art. 37, § 6º), merendo
a proteção integral dada sua relevância, não só com a indenização ou
reparação do dano ao status quo ante, mas com a responsabilização ob-
jetiva do administrador que agiu sem observar os deveres de cautela e
previsão necessários.

CONCLUSÕES

O direito à cidade sustentável é considerado um direito fundamental al-


bergado pelo artigo 225 da Constituição Federal de 1988, o qual determina
que todos têm direito a um meio ambiente equilibrado para as presentes
e futuras gerações, não havendo distinção se o meio é urbano ou natural.
Os problemas básicos das cidades, sobretudo porque enfatizam uma
série de fenômenos paralelos, tais como a violência urbana, o individua-
lismo, a queda da solidariedade social, a confusão dos automóveis e do
trânsito, à pobreza e à destruição de recursos naturais, a insegurança
no trabalho, à falta de identidade sociocultural e de organização cívica,
os quais nem sempre são considerados como pertencentes à categoria
de problemas urbanos, mas que representam na verdade os desafios da
sustentabilidade urbana.
Tais elementos não formam uma agenda que se contrapõe ao ideário
da reforma urbana. Pelo contrário, essas agendas são profundamente

1945
relacionadas e complementares e devem ser articuladas, até porque sem
reforma urbana não existe possibilidade de alcançar o necessário desen-
volvimento sustentável.
Esse descompasso demonstra bem claramente a crise de efetividade
dos direitos fundamentais sob a ótica da urbanização brasileira, pois o
Estado tornou-se débil, ao longo dos tempos, em efetivar as funções so-
ciais da cidade.
Não é demais ressaltar que o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001)
traz em seu texto, insculpido como princípio, o direito à cidade sustentá-
vel, como forma de regulamentar os mandamentos constitucionais que
tratam da política urbana (arts. 182 e 183 da Constituição Federal de 1988).
Portanto, afirmarmos que o direito à cidade sustentável foi uma das
diretrizes trazidas pelo Estatuto da Cidade, o qual visa resguardar o direito
àqueles que habitam as cidades de maneira a equilibrar as relações sociais,
políticas, culturais, econômicas, enfim, as relações humanas em geral, com
um meio ambiente capaz de proporcionar uma vida com dignidade, uma
boa qualidade de vida, visando erradicar a pobreza, diminuir as desigual-
dades sociais, proporcionando bons serviços públicos para a população.
O presente trabalho se apoia na clara noção de que uma verdadeira
mudança de modelo se impõe, inclusive superando o próprio significado
literal e usual das palavras “desenvolvimento sustentável”. A importância
do tema em questão pode ser aquilatada tendo em vista as incumbências
atribuídas ao Poder Público, e elencadas no artigo 225 da Constituição da
República no âmbito do Estado brasileiro, a fim de concretizar o direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao descrever o desenvol-
vimento sustentável como um dos objetivos fundamentais da República,
incompatível com qualquer modelo de crescimento que não contemple
a distribuição de renda (art. 3º III), a redução dos níveis de desigualdade
sociais e regionais, ou seja, o combate severo aos problemas éticos, so-
cioeconômicos, com vistas ao bem estar da população.
Dessa forma, o Administrador público não pode se afastar do dever de
promover o direito à boa Administração, o qual pressupõe a eficiência das

1946
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

políticas públicas, que, por sua vez, implicam a incorporação do princípio


do desenvolvimento sustentável.
Ora, se cabe à Administração pública a concretização da Constituição
no tocante aos direitos fundamentais, por meio da sua função primaz de
gestão, é necessário que tal função pública seja balizada pelos princípios
vetores da própria Carta Constitucional, principalmente, pelo princípio
democrático, da participação popular e do desenvolvimento sustentável.
Porém, o que se observa é uma total falta de respeito tanto às normas
urbanísticas, principalmente o Estatuto da Cidade e os Planos Diretores,
quanto uma falta de planejamento urbanístico para as cidades. Esta falta
de respeito e planejamento gera os desastres temidos pela população e a
situação só piora, pois não há qualquer responsabilização ante a inefici-
ência das instituições brasileiras.
A comunidade jurídica administrativista ainda é tímida e considera
a possibilidade de responsabilidade do Estado por danos urbanísticos-
-ambientais passível de concretização apenas quando houver a compro-
vação da culpa ou dolo do gestor, e, na realização de conduta positiva,
principalmente quanto se trata de penalidade por improbidade.
Também para os tribunais nacionais a condenação do gestor exige a
prova de lesão ou prejuízo ao erário, pois no entendimento dominante o
objetivo da Lei de Improbidade é punir o administrador público desonesto,
não o inábil.
A nosso ver isso é um erro, dada a relevância da ação administrativa,
tanto no que diz respeito à alocação pelo mundo jurídico do planejamento
como decorrência da função política, e, portanto, passível de escolhas
discricionárias do gestor público. Quanto à falta de obrigatoriedade de
tais escolhas estarem vinculadas ao que restou decidido no plano diretor
municipal e o planejamento estratégico municipal.
A discricionariedade administrativa na consecução dessa função for-
nece muito poder ao agente administrativo, que poderá decidir sobre o
fundamento da lei, mas por meio de uma ação discricionária, a alterar os
rumos de um plano anteriormente traçado, em nome do interesse público,
que por vezes é inexiste.

1947
O planejamento urbano-ambiental, integrado, participativo e sus-
tentável se mostra indispensável quando se almeja o desenvolvimento
sustentável das cidades , pois o planejamento decorre materialmente da
função administrativa, e, dessa forma, sujeito aos princípios constitucio-
nais ligados à Administração Pública, como defendemos ao princípio da
eficiência e ao dever da boa administração.
A aplicação da pena de improbidade administrativa, dessa forma, não
deveria ficar restrita aos danos ao erário e vinculada a uma intenção dolosa
do administrador público, tendo em vista que a atuação geradora de da-
nos, sejam eles ambientais, sociais, econômicos ou culturais, decorrentes
de uma escolha ruim desse administrador tem a capacidade de suscitar
graves repercussões ao meio urbano e natural. A questão do direito à
cidade sustentável pressupõe um pensamento nas relações humanas,
devendo ser realizada de forma planejada com vista à busca de um meio
ambiente equilibrado, pois, o meio ambiente urbano não delimita apenas
um espaço geográfico, devendo ser pensado de forma global, observando
todos os problemas setoriais, buscando soluções sustentáveis adequadas
para uma vida digna em sociedade, não somente para essa, mas também
para as futuras gerações.

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NOTAS

* Advogada. Pesquisadora vinculada ao Núcleo Jurídico de Políticas Públicas (NUJUP) da Pontifícia Universi-
dade Católica de Minas Gerais, Mestranda em Direito Público da Faculdade Mineira de Direito – PUC Minas na
linha de pesquisa Estado, Constituição e Sociedade no paradigma do Estado Democrático de Direito. (e-mail:
alessandrabagno@hotmail.com)
** Doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais. É professora adjunta III de Di-
reito Público, Administrativo, Urbanístico e Ambiental da Graduação e Pós-graduação em Direito (Especialização,
Mestrado e Doutorado) da PUC Minas. Coordenadora, do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas do Programa de
Pós-graduação em Direito e Faculdade Mineira de Direito PUC Minas. (e-mail:marinella.araujo@hotmail.com)
1 DEMO, P. Ciências sociais e qualidade. São Paulo: ARTMED, 1985, p. 106.
2 SANCHS, Ignacy. Ecodesenvolvimento, crescer sem destruir. São Paulo: Vértice, 1986, p. 53.
3 SACHS, Ignacy. Estratégias de Transição para do século xxI – Desenvolvimento e Meio Ambiente. São Paulo:
Studio Nobel – Fundação para o desenvolvimento administrativo, 1993, p. 34.
4 ÁVILA, Maria Cristina A. D. de. Eficácia da Política Ambiental e seus Aspectos Sociais e Jurídicos: Tomando
por base o Parque Nacional de Itatiaia. Revista de Direito Ambiental, Ano 5, n. 19, jul-set-2000, p. 1-15.
5 Idem, 1993, p. 53.
6 TEIxEIRA, José Paulo, SILVA, Jorge E. O futuro das cidades: a discussão pública do plano
diretor. Florianópolis: Instituto Cidade Futura, 1999, p. 7.
7 Idem, 1999, p. 12.
8 FISCHER, Tânia. A Cidade Como Teia Organizacional: Inovações, Continuidades e Ressônancias Culturais.
REVISTA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, RIO DE JANEIRO, v. 31, n.3, p. 74-88, 1997.
9 ANDRADE, N. A. et al. Planejamento governamental para municípios: Plano Plurianual, Lei
de Diretrizes orçamentárias e Lei Orçamentária Anual. São Paulo: Atlas, 2005.
10 SANTOS, R. S.; RIBEIRO, E. M. Poder municipal: participação, descentralização e políticas
públicas inovadoras. In: ENCONTRO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E GOVERNANÇA
DA ANPAD, 1., 2004, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: ENAPG, 2004.
11 MUKAI. Tokio. Direito e Legislação Urbanística no Brasil: história, teoria e prática. São Paulo: Saraiva,
1988, p. 33.
12 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos respon-
derão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso
contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
13 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2010,
p. 999 e ss.
14 HENRIQUES FILHO, Tarcísio. Improbidade Administrativa Ambiental: práticas lesivas à
preservação ambiental e suas sanções, à luz do direito administrativo. Belo Horizonte, Arraes
Editores. 2010, p. 109.
15 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: Direito ao Futuro. 1ª Reimpressão. Belo Horizonte: Editora Fórum,
2012, p. 41.
16 Idem, p. 42.
17 (REsp 213.994-0/MG, 1ª Turma, Rel. Min. Garcia Vieira, DOU de 27.9.1999).
18 (RE 607940 RG, Relator(a):, julgado em 09/12/2010, DJe-109 DIVULG 07-06-2011 PUBLIC 08-06-2011
EMENT VOL-02539-03 PP-00433).
19 ANTUNES, Paulo Bessa. Direito Ambiental. 12ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010, p.231.
20 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 11ª ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: Saraiva: 2010, p. 450.
21 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. 10ª ed., rev., atual e ampl. São
Paulo: Saraiva. 2012, p. 665.

1950
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Áreas de risco ocupadas por


assentamentos informais: conflito
entre enfrentamento de riscos
ambientais e afirmação do
direito à moradia
Julia Azevedo Moretti1

INTRODUÇÃO

É cediço que o padrão de urbanização baseado na combinação entre


industrialização e baixos salários, mostrou-se absolutamente excludente e
indutor de altas taxas de informalidade2. Nesse cenário, a população mais
pobre foi empurrada para as periferias da cidade e ocupou áreas de pouco
interesse do mercado imobiliário, muitas vezes áreas ambientalmente
sensíveis e de risco ambiental.
Por outro lado, os desastres ambientais, ou riscos de sua ocorrência,
ganham destaque nas discussões jurídicas3, especialmente porque esses
eventos tem potencialidade de gerar acidentes que resultem em perdas e
danos sociais ou econômicos. Diante desse cenário encontra-se em curso
um intenso debate acerca das medidas efetivas para enfrentamento dos
riscos ambientais que afetam o território e um novo marco legal sobre a
questão (Lei 12.608/12) se propõe a traçar diretrizes para equacionar a
problemática das áreas de risco ocupadas por moradia.
Assim, é preciso um esforço para identificar como a gestão risco é
incorporada pelo direito urbanístico enquanto importante ferramenta de
gestão urbana e delinear os contornos para aplicação desse instrumento
em conformidade com o direito à moradia e à regularização fundiária,
bem como a preocupação com a redução de desigualdades e urbanização
inclusiva, todos princípios e diretrizes gerais da política urbana.

1951
Vale lembrar que as ocupações em áreas de risco constituem uma das
faces da desigualdade urbano-territorial, mas é necessário ter cuidado
para a gestão de risco não se tornar também promotora dessa desigual-
dade, aprofundando ainda mais a exclusão. Nesse sentido, a análise de
como os Poderes Públicos de todas as esferas - Legislativo, Executivo e
Judiciário - estão fazendo uso dessa ferramenta para fazer face ao con-
flito entre enfrentamento de riscos ambientais e afirmação do direito à
moradia pode contribuir para que de fato a gestão de risco contribua para
o desenvolvimento de uma cidade sustentável, nos termos do art. 2º, I do
Estatuto da Cidade.

1. RISCO E DESENVOLVIMENTO URBANO

Não cabe aqui se alongar demasiadamente na discussão sobre o pro-


cesso de urbanização brasileiro, sendo certo que há uma intrínseca relação
entre desigualdade social, exclusão territorial e meio ambiente e que a
lei cumpriu um papel importante na produção da informalidade que hoje
assola as cidades brasileiras4. Como resultado dessa urbanização rápida
e excludente, baseada na combinação entre industrialização e baixos sa-
lários houve o “empobrecimento da população que, pela necessidade de
possuir uma moradia é forçada a ocupar locais que podem vir a apresentar
alto grau de risco geológico”5.
Frente a crescente ocorrência de desastres com resultados danosos e
a intensificação dos debates acerca das formas de enfrentamento do risco
nas cidades, surge uma natural tensão com a afirmação da moradia de
pessoas que se fixaram em áreas consideradas de risco. Com efeito, tanto
o enfrentamento do risco quanto a moradia digna encontram guarida no
conceito legal de cidade sustentável (art. 2º II, Lei 10.257/01), cuja ocupa-
ção não seja inadequada nem gere deterioração ou coloque em risco seus
habitantes (art. 2º, VI, Lei 10.257/01), mas assegure o acesso à terra e à
moradia adequada, inclusive com o direito de legalização (regularização
fundiária e urbanística, art. 2º, xIV e xV, Lei 10.257/11). Enfim, ambos de-

1952
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

vem ser perseguidos para que se possa alcançar o “pleno desenvolvimento


das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”
(art. 182, CF/88). Mas, então, o conflito é inevitável e deve ser enfrentado.
A promulgação da Lei 12.608/2008 representa a criação de um im-
portante marco legal6 na medida em que (i) reconhece o impacto de
questões naturais no meio urbano; (ii) estipula princípios norteadores no
enfrentamento dessas questões, princípios esses que integram questões
ambientais e urbanas (prevenção, art. 2º, §2º, urbanização sustentável,
art. 5º, VI, todos da Lei 12.608/2008); e, (iii) estipula ações concretas para
integração da Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil com a ordem
territorial, com o desenvolvimento urbano, o meio ambiente e a provisão
de infraestrutura. Com efeito, essa integração, mais do que um princípio
(art. 3º, parágrafo único c/c art. 5º, IV, Lei 12.608/2008), é traduzida em
ações, como aquelas referentes à construção de um sistema de informa-
ções, exigência de conteúdos mínimos nos Planos Diretores de municípios
incluídos no cadastro de municípios com áreas suscetíveis de desastre,
inclusive no tocante ao planejamento de ações de intervenção preventiva e
de realocação de populações de áreas de risco (art. 42-A, III, Lei 10.257/01,
com redação dada pelo art. 26 da Lei 12.608/12), intervenção e assistência
de populações em áreas de alto risco ou edificações vulneráveis, com o
respectivo atendimento habitacional (art. 8º, VII, VIII, xVI e art. 22, Lei
12.608/2008, este último acrescendo artigos na Lei 12.340/10). Em suma,
a lei traz bons elementos para a construção de cidades resilientes (art.
5º, VI, Lei 12.608/2008) capazes de atuar preventivamente para evitar
ocupação de áreas de risco e mitigar impacto das já ocupadas.
Interessante notar que, apesar de ser uma ferramenta importante
para a gestão urbana, o mapeamento de risco tem limitações, impreci-
sões e incertezas7, fragilidades que devem ser consideradas nos casos
de conflito fundiário.
No mais, antes de prosseguir na análise das diretrizes traçadas para
equacionar a problemática das áreas de risco ocupadas por moradia, im-
pende fazer uma pequena observação sobre o significado de risco.

1953
Risco pode ser entendido como a potencialidade de que ocorra um
acidente, um desastre, um evento físico que resulte em perdas e danos
sociais ou econômicos. Mas o conceito de risco traduz ainda uma relação
de concomitância e mútuo condicionamento entre ameaça, vulnerabilida-
de e gerenciamento que poderia ser descrita como a “probabilidade (P) de
ocorrer um acidente associado a um determinado perigo ou ameaça (A),
que possa resultar em conseqüências (C) danosas às pessoas ou bens, em
função da vulnerabilidade (V) do meio exposto ao perigo e que pode ter
seus efeitos reduzidos pelo grau de gerenciamento (g) administrado por
agentes públicos ou pela comunidade”8, ou seja, R = P (ƒ A) * C (ƒ V) * g –1.
Ora, essa definição de risco revela que as decisões relativas ao seu
enfrentamento devem, necessariamente, levar em conta fatores como
vulnerabilidade física e social e gerenciamento, que interferem diretamente
na própria existência do risco.

2. LEGISLAÇÃO APLICáVEL AOS CASOS DE RISCO


DE DESASTRE EM áREAS OCUPADAS POR MORADIA

De especial interesse para enfrentamento do risco quando há conflito


com o direito à moradia é o art. 22 da Lei 12.608/12, que dá nova redação
à Lei 12.340/10, incluindo nela um art. 3º-B, nos seguintes termos:

“Art. 3º-B. Verificada a existência de ocupações em áreas suscetí-


veis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações
bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, o mu-
nicípio adotará as providências para redução do risco, dentre as
quais, a execução de plano de contingência e de obras de segurança
e, quando necessário, a remoção de edificações e o reassenta-
mento dos ocupantes em local seguro.
§ 1o A efetivação da remoção somente se dará mediante a prévia
observância dos seguintes procedimentos:
I - realização de vistoria no local e elaboração de laudo técnico
que demonstre os riscos da ocupação para a integridade física dos
ocupantes ou de terceiros; e
II - notificação da remoção aos ocupantes acompanhada de có-
pia do laudo técnico e, quando for o caso, de informações sobre
as alternativas oferecidas pelo poder público para assegurar seu
direito à moradia.
§ 2o Na hipótese de remoção de edificações, deverão ser adotadas

1954
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

medidas que impeçam a reocupação da área.


§ 3o Aqueles que tiverem suas moradias removidas deverão ser
abrigados, quando necessário, e cadastrados pelo Município para
garantia de atendimento habitacional em caráter definitivo, de
acordo com os critérios dos programas públicos de habitação de
interesse social.” (grifei)

Interessante notar que a lei deixa claro que a remoção é ultima


ratio, ou seja, apenas nos casos em que não for possível implementar
outras providências para a redução do risco é que as famílias ocupantes
das tais áreas de risco devem ser removidas.
Estudos técnicos reforçam essa opção legal listando a remoção como
uma entre outras tantas formas de intervenção, como a execução de ser-
viços de limpeza e recuperação, obras de drenagem e proteção vegetal,
estruturas de contenção, obras de terraplenagem etc9. Nesse sentido, No-
gueira afirma que “quando justificada exclusivamente pelo enfrentamento
do risco, a remoção de moradias deve estar associada a situações de
perigo, de exposição ou de vulnerabilidade que não podem ser mitigadas,
ou seja, não podem ser corrigidas por obras de engenharia ou redução da
vulnerabilidade do meio exposto”10.
Impende destacar que fatores antrópicos, como concentração de água
por falta de drenagem, desmatamento, acúmulo de lixo, lançamento de
esgotos em superfície, podem criar ou agravar o risco. De fato, “grande
parte das situações de risco não é provocada por processos naturais,
mas sim por intervenções antrópicas (aterros, depósitos de lixo, cortes
em altas declividades) e ausência de infra-estrutura (obras de drenagem
e saneamento básico”11.
Essa constatação reforça a importância de adotar os outros tipos de
intervenção antes de se partir para a remoção. Mais do que isso, o art.
3º B “caput” da Lei 12.340/10, com redação dada pela Lei 12.608/12 dá
concretude aos preceitos constitucionais insertos nos artigos 182 e 183 e
regulamentados pelo Estatuto da Cidade. Com efeito, um dos eixos nor-
teadores do Estatuto da Cidade é a regularização fundiária (art. 2º, xIV,
Lei 10.257/01) como forma de reconhecimento do direito à legalidade e

1955
afirmação do direito constitucional à moradia adequada (art. 6º, CF/88),
que compreende também condições de habitabilidade e disponibilidade
de infraestrutura12, sem o que é violada a diretriz geral de política urbana
de garantia do direito à cidade sustentável, prevista no Estatuto da Cidade
(art. 2º, I, Lei 10.257/01). Importante, também, analisar o devido processo
legal instituído por esse dispositivo legal, afinal de contas a Constituição
determina que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem
o devido processo legal” (art. 5º, LIV, CF/88).
Nesse sentido, nas áreas suscetíveis a desastre, onde for constada a
existência de ocupação, eventual remoção deverá ser precedida de vistoria
no local e elaboração de laudo técnico, ex vi art. 3º-B, §1º, inciso I, da Lei
12.340/10, com redação dada pela Lei 12.608/12.
Estudos na área de engenharia e geologia ajudam a esclarecer o que
significam essas vistorias e laudos técnicos13. Com efeito, é possível cons-
tatar que os mapeamentos de risco podem ser feitos em duas escalas,
quais sejam, um zoneamento, baseado em fotos aéreas e que permite a
delimitação de setores e um cadastramento, que permite um estudo de-
talhado de cada moradia do setor. Ou seja, enquanto o zoneamento de
risco permite “a proposição de intervenções (estruturais e não estruturais”
de caráter geral (...) os resultados do cadastramento de risco podem sub-
sidiar a definição de intervenções de caráter pontual”14. Outro não podia
ser o entendimento a respeito do laudo exigido por lei, que não seja um
que contemple essas duas dimensões dada a gravidade dos efeitos dessa
medida de polícia administrativa no âmbito dos direitos fundamentais dos
indivíduos como privação dos bens, violação da casa e da moradia (art.
5º, II, xI, LIV c/c art. 6º, CF).
Também de suma importância as diretrizes trazidas na lei federal a
respeito do atendimento a ser dado aos moradores que eventualmente
tenham de ser removidos de suas casas em função do risco. A teor do
disposto no art. 3º-B, §3º, da Lei 12.340/10, com redação dada pela Lei
12.608/12, os moradores deverão receber atendimento emergencial, que
assegure seu abrigamento, e deverão ser cadastrados de forma a permitir

1956
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o atendimento em caráter definitivo. A redação do art. art. 3º-B, §1º, inciso


II, da mesma lei deixa claro que as alternativas para assegurar o direito à
moradia devem ser equacionadas antes da remoção, devendo o morador
ser informado previamente das opções existentes para seu atendimento
emergencial e definitivo.
Não poderiam ser outras as diretrizes estipuladas pela legislação fe-
deral, afinal de contas a doutrina nacional é uníssona ao afirmar que o
direito à moradia, tem um aspecto positivo e outro negativo15. Assim, se
por um lado sua concretização depende de uma atuação positiva, seja
por meio de programas de provisão habitacional, planejamento inclusivo
e regularização fundiária, deve-se assegurar que nenhuma pessoa será
arbitrariamente privada do direito à moradia, uma vez que “todos os ci-
dadãos de todos os Estados, por mais pobres que sejam, têm o direito de
esperar que os seus governantes se preocupem com as suas necessidades
de alojamento, e reconheçam a obrigação fundamental de proteger e de
melhorara as casas, os bairros, em vez de os danificar e destruir”16.
Na cidade de São Paulo, a Lei Orgânica do Município já determina que
o Poder Público zele pela correta utilização das áreas de risco, inclusive
mediante a provisão de adequada infraestrutura urbana17. Mais especi-
ficamente sobre a gestão de risco em áreas ocupadas, foi promulgada a
Ordem Interna nº 1/201318 que prevê procedimentos aplicáveis à questão.
A referida normativa é aplicável para áreas públicas ou privadas, nos
casos de decisão judicial ou medidas de polícia administrativa e prevê que
deve laudo de risco e parecer fundamentado de geólogo ou engenheiro
da Subprefeitura que ateste não ser possível restabelecer as condições de
segurança no local (OI 01/13, item 2.1). Deve haver um plano detalhado
de intervenção para eliminação do risco (OI 01/13, item 2.2) e apenas nos
caso de impossibilidade de restabelecimento das condições de segurança
é que será sugerida a remoção e, nesse caso, deverá haver a indicação
do número exato de moradias a serem interditadas (OI 01/13, item 2.3),
devendo haver notificação dos moradores para saída imediata do local
sendo a eles entregues autos de interdição que permitam a identificação

1957
da moradia (OI 01/13, item 2.3). Ora, conforme diretrizes da norma fe-
deral, esse procedimento pressupõe que o mapeamento de risco utilize a
dimensão do cadastramento, individualizando cada caso.
Em relação ao atendimento habitacional, diferentemente da lei federal,
a normativa municipal restringe o atendimento para os casos de áreas
públicas de risco ocupadas por moradia e remoções por risco determinadas
judicialmente (OI 01/13, itens 2.5.4 e 2.6). Ora, ao fazer restrições que a
lei federal não fez, a norma municipal viola o princípio constitucional da
igualdade, procura se eximir do seu poder-dever de assegurar o direito à
moradia, de zelar pela construção de uma cidade sustentável que assegure
o bem-estar de todos os seus habitantes, independentemente da natureza
da propriedade sobre a qual construíram suas moradias.
Conforme se estrai da leitura da normativa municipal a diferenciação
entre atendimento emergencial e definitivo não é feita e não há garantia
os mesmos serão providenciados. Pelo contrário, a OI 01/13 usa termos
que remetem a um atendimento assistencial que é facultado ao Poder
Público Municipal19 e permite o atendimento com auxílios financeiros ou
com unidades habitacionais, apenas se houver disponibilidade de vagas.
Vale lembrar que esses auxílios financeiros, tal como previstos na Portaria
323/10 – SEHAB, compreendem valores pífios, como R$ 8 mil reais para
fins de compra de moradia ou R$ 5mil a título de apoio habitacional. Ora,
valores como esse em uma cidade na qual o preço médio anual do m² de
imóveis residenciais verticais novos é de R$ 7,2 mil20 e num contexto de
urbanização excludente e população empobrecida, em situação de vul-
nerabilidade social e subemprego só pode produzir mais informalidade.
Em suma, a normativa municipal21, em muitos pontos se afasta das
diretrizes gerais delineadas pela legislação federal.
Por fim, importa observar que o mapeamento do risco trata de “avaliar
a possibilidade de ocorrer um determinado fenômeno físico – que corres-
ponde ao processo adverso – em um local e período de tempo definidos”22,
normalmente 1 (um) ano. Assim, não apenas o grau de probabilidade de
ocorrência de eventos danosos, mas também as alternativas de interven-

1958
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ção propostas com base nesse mapeamento, devem ser revisadas frequen-
temente ante a possibilidade da mudança nos processos de instabilidade.
Assim, decisões administrativas embasadas nesses mapeamentos de risco
são, praticamente, decisões com prazo de validade.

3. JURISPRUDÊNCIA SOBRE GESTÃO


DE RISCO EM áREAS OCUPADAS

O Poder Judiciário em inúmeras oportunidades é instado a se manifes-


tar sobre os conflitos fundiários derivados das medidas de enfrentamento
dos riscos ambientais, especialmente no caso de desastres, em confronto
com o direito à moradia de populações hipossuficientes, residentes de as-
sentamentos informais precários. Na medida em que as decisões judicias
substituem a vontade das partes e acabam prevalecendo como forma de
“resolução”23 dos conflitos , é importante conhecer a forma como o judi-
ciário vem se manifestando sobre o assunto.
Para tanto foram consultadas decisões do Superior Tribunal de Justiça
(STJ) e do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) envolvendo a temática do
risco e moradia24, buscando-se identificar a posição dos tribunais quanto a
temas como participação da população afetada no processo, definição de
risco e suas dimensões, atendimento habitacional e ordens de remoção.
Em relação à participação da população afetada no processo, o que
se percebe é que praticamente nenhum dos processos assegura a par-
ticipação direta dos moradores, justamente aqueles cuja esfera jurídica
será atingida caso haja uma ordem de remoção. Apenas nos casos em
que os moradores são parte na lide25, ou em que a Defensoria Pública
apresenta petição assinada também por moradores26 é que há indicação
de participação dos moradores no processo. Há casos também em que a
Prefeitura solicita judicialmente a citação de todos os moradores, mas tal
medida é entendida como meramente protelatória e desnecessária diante
da competência da Administração Municipal em zelar pelo interesse geral.
No entanto, a participação é medida de extrema importância para

1959
assegurar a boa resolução dos conflitos fundiários. BODNAR ao defender
as audiências judicias participativas, afirma que:

“a realização da justiça ambiental, também no plano da coexistência


ecológica, não pode prescindir da participação direta dos cidadãos.
A quantidade de direitos fundamentais e interesses legítimos em
rota de colisão nas lides ambientais (habitação, trabalho, cultura,
lazer, propriedade, entre outras) e, principalmente, o benefício da
conscientização geral fomentada pelas decisões e pelos procedi-
mentos participativos reforçam a necessidade dessa importante
estratégia de acosso à justiça ambiental e de efetividade da
jurisdição”27.

O diálogo multidisciplinar ainda é limitado no âmbito do judiciário,


a despeito de essa já ser uma das estratégias aventadas pelo Projeto
Florença para enfrentamento do obstáculo processual e jurisdicional de
acesso à justiça28. As decisões não refletem o intenso debate conceitual e
de adoção de medidas efetivas para enfrentamento dos riscos ambientais
que afetam o território das cidades. O conceito de risco acima explicitado
não encontra eco na jurisdição, que se limita a olhar para o grau de risco,
normalmente indicado após o zoneamento de risco, mas sem detalhar as
especificidades de cada moradia (dimensão do cadastro) nem ponderar
os fatores de vulnerabilidade, que podem ser mitigados e reduzir o risco
(quanto menor a vulnerabilidade menor o risco), ou de gerenciamento
público e privado, que é inversamente proporcional ao risco, ou seja, se
ampliado reduz o risco. Nesse sentido, a importância atribuída ao grau
de risco na decisão assim ementada:

Apelação Ação Civil Pública Pretendida condenação da Municipa-


lidade de São Paulo na obrigação de fazer cessar o risco de des-
lizamento do solo, escorregamento ou inundação em relação às
casas construídas em margem de córrego Ação julgada procedente.
Inconformismo. Inadmissibilidade - Conforme demonstra o laudo
pericial, constatou-se a existência de risco médio e alto na área
considerada, decorrendo a necessidade da atuação da Municipa-
lidade Recurso improvido
(TJ/SP, 1ª Câm. Dir. Público, Ap. nº 0001592-81.2004.8.26.0053,
Rel. Des. Castilho Barbosa, j. 25/09/12 - grifei)

1960
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Em relação às ordens de remoção, a tendência verificada é a manu-


tenção das ordens judiciais ou administrativas de remover grandes con-
tingentes de famílias, ainda que sejam constatadas falhas no atendimento
habitacional, inobservância do devido processo legal ou mesmo quando a
justiça reconhece que a remoção reforça um modelo excludente de ocu-
pação do espaço urbano. Ou seja, diante do risco, há uma postura reativa,
dando preferência à remoção, ainda que, em função dos problemas relati-
vos ao atendimento, a remoção se dê em detrimento do direito à moradia
e signifique uma ampliação do risco, pois aumentará a vulnerabilidade das
famílias que impreterivelmente irão ocupar outro local de risco, irregular
ou sem condições habitabilidade.
Nesse sentido, foram colacionadas algumas decisões:

“Friso que não se está a endossar a conduta da ré de, meramente,


interditar e notificar para desocupar indiscriminadamente, mor-
mente quanto a áreas sobre as quais, mais do que a regularização
e a eliminação de riscos geológicos, pesa o interesse da especulação
imobiliária com a “eliminação” singela de favelas, mas o caso em
exame envolve área que, por já ter sofrido processo de recuperação
urbanística, ainda não findado, e recebido atenção em termos de
regularização fundiária, está a sofrer ocupação em terreno impossí-
vel de ser a tanto destinado: margens de córrego e, pior, ficando tal
fato erigido ao término daquela recuperação urbanística mediante
canalização do córrego.
Em suma, impõe-se desacolher a ação, pois, se está voltada para
os ocupantes das margens do córrego, não se há tolerar a aplica-
ção da legislação de regência da ZEIS de forma a perpetuar-se tal
indevida ocupação, inclusive pela impossibilidade de, na forma
dela, proceder-se “à regularização do parcelamento do solo e
das moradias pré-existentes, garantidas condições de segurança
e salubridade das mesmas” (art. 176, I, “e”, da Lei Municipal n.
13.430/02), máxime à vista do art. 181 da mesma lei (...).
(STJ, Decisão Monocrática, AREsp 144163, Rel., Ministro BENE-
DITO GONÇALVES, j. 29/05/2012)

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Áreas públicas municipais, com risco geo-


lógico de desabamento e deslizamento, irregularmente ocupadas
por famílias. Feito o mapeamento e definidas pela FUSP/IPT as
intervenções necessárias, incluindo a retirada das famílias. Dever
de agir do Município que pode ser imposto por decisão judicial.
Poder discricionário que cede ao interesse maior da vida e da inte-
gridade física das pessoas. Imposição dessas intervenções, sob pena
de multa. Cabimento Provido o recurso do Ministério Público e não
provido o recurso do Município.
(TJ/SP, 12ª Câm. Dir. Público, Ap. nº 694.935.5/2-00 Rel. Des
Edson Ferreira, j24/02/10 - grifei)

1961
AGRAVO DE INSTRUMENTO Pretensão de suspender desocupação
forçada de moradores da “Favela dos Eucaliptos”, que é Zona Espe-
cial de Interesse Social (ZEIS) Área de risco, ocupação que pode
comprometer a integridade física dos moradores e de terceiros
Liminar negada em primeira instância Ato vinculado ao exercício do
livre convencimento do juiz Ausência dos pressupostos ensejadores
da medida Decisão confirmada Recurso desprovido.
(TJ/SP, 12ª Câm. Dir. Público, AgI nº 0096894-24.2012.8.26.0000Rel.
Des. J. M. Ribeiro De Paula, j.19/09/12-grifei )

Interessante notar que a dificuldade em adotar medidas de redução do


risco, em especial medidas de prevenção diferentes da remoção, esbarra
na própria estrutura do sistema jurídico. Com efeito, há a prevalência
daquilo que a doutrina chama de “programação condicional”29, ou seja,
uma estrutura jurídica voltada para o passado, para resolver conflitos já
instaurados. A lógica dos direitos difusos e coletivos pressupõe que se
transcenda a lógica tradicional de pretensões resistidas em decorrência
de atos passados, voltando-se para uma programação de futuro, finalís-
tica. Daí ser mais fácil ao judiciário olhar para o conflito entre moradia e
os riscos ambientais e declarar a omissão da Administração Pública em
fiscalizar determinando, portanto, a remoção até mesmo para prevenir a
ocorrência de resultados danosos. Determinar uma ação positiva do Estado
de intervenção no local para adotar medidas para o futuro que minimizem
o risco de ocorrência de um desastre, além de esbarrar na programação
condicional enfrenta também a resistência da clássica doutrina da sepa-
ração de poderes e discricionariedade.
Nesse sentido, as seguintes decisões judiciais:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Realização de intervenções e obras - Des-


cabimento - Ato típico do Poder Executivo - Não pode o Judiciário
compelir entidade pública à realização de obras e a suprir ne-
cessidade pública - Recurso não provido.
(TJ/SP, 6ª Câm. Dir. Público, Ap. nº 446.685-5/6-00, Rel. Des. Eva-
risto dos Santos , j. 16/02/2009 - grifei )

AÇÃO CIVIL PUBLICA. PRETENSÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO RE-


LATIVA A MEDIDAS CONCRETAS DE CONTROLE E DE ATUAÇÃO
DE ÁREAS SOB APONTADO RISCO GEOLÓGICO. SENTENÇA
EXTINTITIVA DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO.

1962
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

1. Se a normativa não estabelece, de modo pontual, a obrigação


de o Poder Executivo do Município exercitar as postuladas tarefas
de controle - com reclamada periodicidade ao menos mensal e por
meio de geólogos ou engenheiros geotécnicos - ou de enunciar,
com aferição judiciária periódica, “providências técnicas a serem
implementadas para a segurança da comunidade afetada”, o
acolhimento da presente ação civil pública importaria em “uma
intromissão indébita do Poder Judiciário no Executivo, único em
condições de escolher o momento oportuno e conveniente para a
execução da obra reclamada” (STJ -Min. Adhemar Maciel).
2. “O que o Judiciário não pode é, no ato discricionário, substituir
o discricionarismo do administrador pelo do juiz” (Hely Lopes
Meirelles).
3. “Ao Poder Executivo cabe a conveniência e a oportunidade de
realizar atos físicos de administração (construção de conjuntos
habitacionais, e t c ) . O Judiciário não pode, sob o argumento de
que está protegendo direitos coletivos, ordenar que tais realizações
sejam consumadas” (STJ -Min. José Delgado).
4. “O juiz não pode substituir a Administração Pública no exercício
do poder discricionário. Assim, fica a cargo do Executivo a verificação
da conveniência e da oportunidade de serem realizados atos de ad-
ministração, tais como, a compra de ambulâncias e AC 709.848-5-7
-TJSP -11a C.D.Púb. -Voto RHMD 18.980 -6 de obras de reforma de
hospital público” (STJ -Min. Nancy Andrighi).
5. “... com fulcro no princípio da discricionariedade, a Municipali-
dade tem liberdade para, com a finalidade de assegurar o interesse
público, escolher onde devem ser aplicadas as verbas orçamentárias
e em quais obras deve investir. Não cabe, assim, ao Poder Judiciário
interferir nas prioridades orçamentárias do Município e determinar
a construção de obra especificada” (STJ - Min. Franciulli Netto)
(TJ/SP, 11ª Cam. Dir. Público, Ap 709.848-5/7-00, Rel. Des. Ri-
cardo Dip, j. 26/01/09)

Ainda no âmbito do mesmo acórdão, mas reproduzindo sentença de


primeiro grau, afirma-se que:

Assim, verifica-se que o papel do Judiciário, dentro do sistema


tripartite , é corretivo e a posteriori, ou seja, se não aplicadas
devidamente tais verbas, e, uma vez apurados os desvios, irregulari-
dades e ilegalidades cometidas pelo administrador, responsabiliza-se
aquele que tinha a obrigação de zelar pela coisa pública e não o
fez, mas jamais pode o Judiciário, a despeito de corrigir ilegalidades,
substituir o administrador público em seu papel que lhe é precípuo,
estabelecendo prioridades para a aplicação dos recursos públicos,
tal como pretende o Ministério Público nesta ação (TJ/SP, 11ª Cam.
Dir. Público, Ap 709.848-5/7-00, Rel. Des. Ricardo Dip, j. 26/01/09
- reproduzindo senteça de 1ºgrau)

1963
Finalmente, as decisões que abordam o atendimento ofertado não se
preocupam na capacidade desse atendimento em afirmar o direito à mo-
radia digna, se limitando a determinações genéricas (preste o atendimento
emergencial e/ou definitivo) ou mesmo validando atendimentos prestados
mediante o pagamento de verbas incapazes de assegurar o acesso a uma
moradia regular fora de risco. Nesse sentido:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Pretensão do Ministério Público objetivando


compelir a ré a remover moradores de área de encosta de morro
na qual verificado deslizamento de terra, fornecendo-lhes abrigo e
auxílio necessários, bem como impedir novas ocupações e fazer
cessar o risco de novas ocorrências - Procedência da ação corre-
tamente pronunciada em primeiro grau - Obrigação que encontra
respaldo na legislação constitucional e infraconstitucional invocada
pelo autor, notadamente nos arts. 30, inciso VIII da Constituição
Federal e 180 a 183 da Constituição do Estado de São Paulo - Dever,
outrossim, não recusado pela demandada, que buscou espontane-
amente minimizar as consequências do problema, sem, entretanto,
atuar de molde a afastá-lo definitivamente - Providências de caráter
emergencial destinadas a garantir a integridade física da popula-
ção instalada no local que, destarte, demandam pronta intervenção
do Poder Público Municipal, autorizando o acolhimento do pleito
inicial - Provimento jurisdicional voltado apenas à imposição ao
Administrador Público do cumprimento das previsões legais perti-
nentes, não importando em afronta ao princípio da independência
dos Poderes ou ofensa à autonomia municipal, máxime por não
se verificar qualquer parcela de discricionariedade na espécie —
Instalação das moradias em área particular e competência comum
de União, Estados e Municípios para tratamento da questão que,
de qualquer modo, não afastam a legitimidade da Municipalidade
de São Paulo para a demanda, diante do dever de fiscalização de
ocupações e parcelamentos irregulares que lhe foi constitucional-
mente atribuído - Legalidade da multa diária imposta para o caso
de mora ou inadimplemento da prestação, por outro lado, que já
restou assentada por ocasião do julgamento de anterior recurso
interposto nos mesmos autos, encontrando, ainda, a providência,
amparo na jurisprudência dos Tribunais Superiores - Reexame
necessário e apelo da Municipalidade de São Paulo não providos.
(TJ/SP, 8ª Cam. Dir. Público, Apelação Cível n° 994.06.107392-0,
Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, j. 13/10/10)

EMENTA: “AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E


MORAIS Desocupação de área pública lindeira à linha C da CPTM
(Jurubatuba-Grajaú), para a implantação do “Complexo Viário Ju-
rubatuba” Área considerada de risco geológico, junto a córrego
ou no próprio leito do córrego - Ocupação de imóvel público que
não é passível de gerar posse boa e quaisquer de seus efeitos - De-
socupação e interdição dos imóveis com vistas a evitar uma possível
tragédia Descabimento do pleito indenizatório Desnecessidade de

1964
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

concordância conjugal à celebração do acordo, uma vez que não


se trata de desapropriação ou compra e venda de bem imóvel - Re-
cebimento de quantia de R$ 10.000,00, que se afigura bastante
razoável para fins de ressarcimento de benfeitorias edificadas
em imóvel confessadamente alheio, com fundamento na Ordem
Interna nº 01/06 PREF.G e na Portaria nº 138/2006 SEHAB Prece-
dentes deste Egrégio Tribunal Sentença de improcedência mantida”
(TJ/SP, 11ª Câm. Dir. Público, Ap. nº 0244814-07.2009.8.26.0000,
Rel. Des. Oscild de Lima Júnior, j. 27 de fevereiro de 2012 – grifei).

“Ao que se vê da documentação acostada, o Município não está


deixando à míngua as famílias atingidas pela reintegração de
posse. Concede-lhes subsídio a título de “apoio habitacional”,
com o qual podem fazer o que bem entender.
A situação não aparenta ter a dramaticidade afirmada na petição
inicial.
(...)
Ademais, nada impede venha alguém que se sinta prejudicado
com a execução da ordem judicial reclamar, individualmente, a
tutela que reputar adequada ao seu caso”
(TJ/SP, 7ª Câm. Dir. Público, Ap. nº 0252542-65.2010.8.26.0000,
Rel. Des. Coimbra Schmidt , j. 07/02/11 - grifei)

Por outro lado, foi possível identificar algumas poucas decisões


em que o judiciário manifesta preocupação em garantir um atendimento
condizente com o direito à moradia, reconhecendo até mesmo que esse
direito decorre do uso prolongado dos imóveis por população de baixa
renda. Sim, pois nos termos do art. 183, §1º da Constituição, a posse pro-
longada para fins de moradia gera direitos, ainda que eles tenham de ser
exercidos em outro local. Nesse sentido:

AÇÃO CIVIL PUBLICA - Remoção de moradores localizados em


áreas de risco de escorregamentos de encostas - Nulidade da sen-
tença - Inocorrência — Inépcia da petição inicial afastada - Ausência
de interesse de agir e impossibilidade jurídica do pedido afastadas
- Omissão da Municipalidade no seu dever-poder de fiscalizar o
uso e ocupação do solo urbano - Lei n° 13.430/02 - Assiste aos
ocupantes o direito à concessão especial de uso do bem público
e fornecimento de alojamento provisório ou outro local para
moradia, em caso de demolição - A condenação da Fazenda Pú-
blica não a elide da imposição de multa - Agravos retidos da ré não
providos - Recursos da ré não providos e recurso do autor provido.
(TJ/SP, 3ª Cam. Dir. Público, Ap 735.444.5/9-00, Rel. Des. Magalhães
Coelho, j. 09/12/08 - grifei)

1965
4. FAVELA PALMA DE SANTA RITA – SOLUÇÃO NEGOCIADA
JUDICIALMENTE qUE EVITOU REMOÇÃO INTEGRAL

Na cidade de São Paulo o processo de rápida urbanização representou


a quintuplicação da mancha urbana em 50 anos. Com efeito, a área urbana
de 355 km² em 1930 aumentou para 1.370 km² em 198030. Atualmente,
dados censitários indicam que 99,1% da população da cidade de São Paulo
vive em área urbana. Porém, como já afirmado, essa urbanização se deu de
forma excludente, fazendo com que, atualmente, a situação habitacional
no Município de São Paulo seja absolutamente precária, com mais de 32%
dos habitantes morando em assentamentos informais como ocupações,
favelas, loteamentos irregulares e cortiços31, muitos locais que podem
apresentar riscos.
Em apertada síntese, os mapeamentos de risco na cidade de São Paulo
têm início após o impacto provocado pelo acidente na favela Nova Repúbli-
ca, em 1989, que deixou 14 vítimas fatais e 58 famílias desabrigadas após
um escorregamento de terra em aterro de bota-fora clandestino. Naquela
oportunidade foram mapeadas 240 favelas, no primeiro mapeamento da
cidade realizado em convênio com o Instituto de Pesquisas Tecnológi-
cas (IPT). Após anos de abandono, a temática das avaliações de risco é
retomada no início dos anos 2000, impulsionada por uma série de ações
civis públicas movidas pelo Ministério Público. Essas ações culminaram
na assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no qual a
Prefeitura se comprometeu a adotar medidas preventivas e recuperativas
para eliminação de riscos. Foi, então, feito um novo mapeamento de
risco entre 2002 e 2003 e ao final dos trabalhos, em maio de 2003, “para
os setores de probabilidade muito alta e alta foi proposta a implantação
de sistemas de monitoramento, até a efetiva implantação das medidas
preventivas pertinentes”32.
Porém, a capacidade de resposta do Poder Público encontra-se aquém
das necessidades, muito longe do prazo de 1 (um) ano sugerido nos tra-
balhos técnicos que dão suporte aos atos administrativos de gestão das
áreas de risco. Em 2009/2010 foi elaborado um novo mapeamento em 407
áreas que identificou 28.933 moradias em áreas de risco muito alto – R4

1966
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

(8%), e alto – R3 (13%)33.


Com base nesse novo mapeamento outras tantas ações judiciais foram
propostas, muitas pelo Ministério Público, pedindo a remoção completa
das moradias em áreas de risco alto e muito alto. Em outros tantos casos,
a própria Municipalidade, no exercício de seu poder de polícia e no âmbito
do “Programa de Intervenções em áreas de Risco” efetuava as remoções. A
prática, porém, encontra-se bem distante das determinações legais acerca
do enfrentamento do risco quando há conflito com o direito à moradia,
acima apresentadas.
O caso da Favela Palma de Santa Rita ilustra bem as dificuldades en-
frentadas na prática e traz bons elementos para uma gestão dos conflitos
fundiários decorrentes de ocupações em áreas de risco em consonância
com a afirmação de direitos humanos e promoção de uma cidade sus-
tentável que assegure o bem-estar de seus habitantes, evitando ocupa-
ções que os coloquem em risco, mas sem negar o direito à moradia e os
princípios norteadores do Estatuto da Cidade, tais como regularização e
gestão democrática.
O assentamento informal Palma de Santa Rita localiza-se nas
imediações do Córrego da Rapadura, na Rua Pero Nunes e Travessa Pal-
ma de Santa Rita, Vila Carrão, um bairro dotado de infraestrutura, bem
localizado e que vem experimentando grande pressão do mercado imo-
biliário. Dados do Habisp indicam que no assentamento Palma de Santa
Rita residem 130 famílias desde 1990 (IMAGENS 1 e 2).

Imagem 1 – Travessa Afelandra Imagem 2 – Travessa ao final da R. João V. Prioste

1967
Apesar da posse consolidada, em janeiro de 2012, os moradores foram
informados, por meio de reunião convocada pela Subprefeitura Aricanduva
/ Vila Formosa, que deveriam deixar suas casas no prazo de 30 dias, em
função de liminar concedida no âmbito de uma Ação Civil Pública (ACP
nº 0045596-62.2011.8.26.0053, 8ª Vara da Fazenda Pública).
Com base no laudo técnico formulado pelo IPT, que aponta a existência
de risco alto (R3) a afetar 61 moradias (IMAGEM 3), a liminar determinava
a remoção de todas essas famílias. Curioso notar que o referido laudo
não recomendava a remoção das famílias, mas apenas a adoção de
intervenções como: execução de serviços de limpeza do córrego e no
sistema de drenagem, remoção de entulho, obra de proteção superficial
da margem e de contenção da margem do canal e promoção de melhoria
nos acessos.

Imagem 3 – Relatório Técnico 118.733.205-100/133


Fonte: IPT

Na liminar, a desocupação estava condicionada ao alojamento pro-


visório das famílias em local adequado e temporário, com condições de
segurança e habitabilidade para que, após a realização das obras neces-
sárias para a eliminação dos riscos, as famílias pudessem voltar às suas

1968
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

casas ou, se necessário, fossem incluídas em programas habitacionais.


Porém, a Municipalidade acabou marcando 86 casas para remoção e o
atendimento ofertado se resumia ao pagamento de auxílio aluguel no valor
de R$ 300 (em parcela de R$ 1.200,00), com promessa de atendimento
futuro em local e data incertos.
Na assistência jurídico-social aos moradores, o Escritório Modelo “Dom
Paulo Evaristo Arns”34, passou a demandar que, antes que fosse realizada
qualquer remoção, deveria haver a conclusão das intervenções sugeridas
no laudo do IPT e apresentação de estudo detalhado, individualizado e atu-
alizado, para indicar, com precisão, quais moradias estavam em situação
de risco não mitigável que justificasse uma remoção preventiva, mediante
prévio atendimento habitacional adequado, entendimento, embasado pela
Lei no 12.340/2010 (art. 3º-B, com redação dada pela Lei 12.608/2012).
Na defesa dos moradores, corroborando estudos formulados por ge-
ólogos, foi apresentada a tese de que uma avaliação de risco não pode
basear-se única e exclusivamente no zoneamento de risco que deter-
mina o grau de risco (R1, R2, R3, R4) sem detalhar as especificidades de
cada moradia, mas deve levar em conta a probabilidade de ocorrer um
acidente, a vulnerabilidade e grau de gerenciamento de agentes públicos
ou da comunidade.
Com essa defesa, foi obtido acordo judicial que determinou que a
Prefeitura realizasse vistoria em cada moradia a fim de verificar o risco.
O resultado desses estudos individualizados permitiu que houvesse
uma reconsideração da liminar com a redução drástica do número
de famílias ameaçadas de remoção: das 86 moradias vistoriadas pela
Prefeitura, apenas 18 foram indicadas para remoção preventiva. Mais
ainda, na medida em que o laudo individualizado assinado por geólogo e
engenheiro afirmou que embora a remoção preventiva fosse recomenda-
da, nenhuma das casas precisava de remoção emergencial, vez que não
foram observadas situações de risco iminente, foi obtido um prazo para
efetuar a remoção. Isso assegurou o atendimento habitacional antes da
remoção e um tempo para que as famílias atingidas pudessem procurar
uma nova moradia, ainda que alugada.

1969
CONCLUSÕES

O caso acima relatado demonstra a importância de assegurar uma


esfera de participação da população diretamente afetada pela ordem de
remoção; a adoção das duas dimensões do mapeamento de risco: o zo-
neamento e o cadastramento de risco, pois individualização permite até
que se estude o prazo adequado; a articulação da gestão de risco com
uma política urbana mais ampla, especialmente na questão da provisão
habitacional e regularização fundiária (disponibilização de áreas segu-
ras e adequadas para ocupação por moradia para HIS paralelamente à
legalização de ocupações já existentes). A remoção não pode ser a única
resposta. Mais do que nunca é preciso unir as dimensões jurídica, social
e técnica que circundam os conflitos fundiários.
Com o intuito de contribuir com a gestão de remoções em áreas de risco
na cidade e para aproximar a prática da diretriz normativa prevista na Lei
no 12.340/2010 e Ordem Interna nº 1/2013, foram apresentadas algumas
sugestões e recomendações para a Prefeitura Municipal de São Paulo:
O laudo do IPT seja complementado com laudos individualizados
para indicação do número exato de moradias em situação de risco não
mitigável.
O prazo para remoção seja estabelecido caso a caso, de acordo com a
probabilidade de ocorrência de desastre, e não sempre de forma imediata
como dá a entender o item 2.3.1 da Ordem Interna.
As famílias indicadas para remoção preventiva:
sejam notificadas individualmente e recebam cópia do laudo individu-
alizado, contendo fotos que as permitam identificar a moradia.
recebam atendimento emergencial antes da remoção, agendando-se
atendimento social emergencial, se necessário.
sejam todas visitadas pela equipe social, que deverá identificar e apoiar
as famílias em cuja composição sejam identificados grupos vulneráveis,
como idosos, crianças, pessoas com deficiência, bem como colaborar na
identificação de imóveis para reassentamento emergencial, por exemplo,
fornecendo carta de referência para aluguel.

1970
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Caso o atendimento emergencial se dê por meio de auxílio financeiro


para locação, que o valor desse atendimento seja compatível com o pra-
ticado pelo mercado e seja variável segundo a faixa de renda das famílias
(subsídio maior para famílias de menor renda). No mais, o atendimento
deve contemplar, na primeira prestação, o pagamento de caução equiva-
lente a 3 meses de aluguel, tal com exigido na Lei (art. 38, §2º, Lei 8245/91);
Constatada a necessidade de remoção preventiva, seja formada, de
imediato, uma comissão de moradores e agentes municipais para bus-
car terrenos para reassentamento, priorizando áreas de ZEIS na região,
devendo a comissão formular alternativas em até 30 dias contados da
notificação das famílias;
Seja formulado um plano de intervenção para eliminação do risco
com cronograma de execução, em até 30 dias contados da notificação
das famílias, e o mesmo seja apresentado à população
Sejam realizadas em regime de urgência as obras para restabelecimento
das condições de segurança sugeridas pelo IPT (e contempladas pelo plano
de intervenção), em até 180 dias contados a partir da remoção das famílias;
Após as obras, as famílias sejam notificadas pessoalmente sobre a
possibilidade, ou não, de retornarem ao local;
As remoções realizadas não deixem entulho no local.
Enfim, as administrações municipais e os órgãos do sistema de justiça
ainda têm muito que aprimorar para que o mapeamento de risco seja, de
fato, uma ferramenta plenamente compatível com as diretrizes gerais da
Política Urbana. Para isso, é essencial o estabelecimento de canais de diálo-
go entre as diversas áreas do conhecimento (multidisciplinariedade) e entre
eles e a população. É necessário superar as respostas jurídicas simplistas,
como remoção integral com ordem genérica de atendimento, buscando
calcar as decisões administrativas e judiciais na realidade técnica, social,
financeira, política dessas áreas de risco ocupadas e que são a expressão
de um complexo conflito fundiário que contrapõe, desnecessariamente,
o meio ambiente à moradia.
Ora se os conflitos fundiários expõem disfunções, desequilíbrios eles

1971
também podem ser vistos como excelentes oportunidades de aperfeiço-
amento do sistema35 como bem ilustra o caso aqui relatado.

REFERÊNCIAS

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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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Disponível em http://www.observaconflitos.ippur.ufrj.br/novo/analises/Texto-
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LEGISLAÇÃO

A legislação federal foi objeto de consulta no site www.planalto.gov.br e a legisla-


ção municipal foi levantada no site http://www.camara.sp.gov.br/ e no cadastro
de leis disponibilizado no site da Secretaria de Negócios Jurídicos da Prefeitura
no site http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/negocios_juridicos/
cadastro_de_leis/index.php?p=325

1973
NOTAS

1 Advogada formada pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Desenvolvimento Sustentável pela
University College London - Development Planning Unit (UCL/DPU), especialista em Direito Urbanístico. Gerente
Jurídico da Área de Projetos Sociais do Escritório Modelo “Dom Paulo Evaristo Arns” da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. E-mail: jamoretti@pucsp.br e moretti.julia@gmail.com. .
2 MARICATO, 1996.
3 No âmbito do direito ambiental muito recorrente é a discussão do risco na seara da responsabilidade
ambiental, a partir das teorias do risco integral e risco criado. O tema abordado pelo presente artigo não se
confunde com essa abordagem.
4 MARICATO, 2003
5 MIRANDOLA, MACEDO E SOARES, 2004, p. 298.
6 A despeito do posicionamento ora defendido, há um respeitável questionamento sobre a efetiva necessidade
de promulgação de uma lei específica sobre a ordenação das ações integrantes da Política Nacional de Prote-
ção e Defesa Civil, na medida em que esses críticos entendem que políticas públicas baseadas em legislação
existente já seriam suficientes.
7 CERRI et al, 2007.
8 NOGUEIRA, 2012.
9 CERRI, et al, 2007
10 NOGUEIRA, 2012
11 MIRANDOLA, MACEDO E SOARES, 2004, p. 310
12 Vale lembrar que o direito à moradia adequada congrega elementos de habitação e habitat, conforme defi-
nição incluída na, Observação Geral nº 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, depois adotada
na Agenda Habitat. Além da segurança na posse, são componentes do direito à moradia a disponibilidade
de serviços e de infra-estrutura urbana; o custo acessível, entendido como a proporcionalidade entre gastos
com habitação e renda; a habitabilidade, ou seja, existência de condições físicas e de salubridade adequadas;
a acessibilidade, compreendida enquanto formulação de políticas que contemplem grupos vulneráveis, a
localização, que pressupõe que o lugar que permita acesso à opção de emprego, transporte, saúde, cultura
etc.; e a adequação cultural, ou seja, respeito à produção social do habitat, respeito às diferenças (ONU, 2002)
13 CERRI, et al, 2007 e MIRANDOLA, MACEDO E SOARES, 2004.
14 CERRI, et al, 2007, p. 144
15 SILVA, 2003, SARLET, 2003
16 ONU, 2002, p. 7
17 Nesse sentido, vide arts. 148, “caput” e incisos II e IV e art. 149, II.
18 Anteriormente a questão das remoções em áreas de risco era regida pela Ordem Interna 01/06 que possuía,
basicamente, o mesmo texto da atual normativa.
19 No item 2.5.1 aparece a expressão “prestando-lhes, eventualmente, a devida assistência quanto às suas
necessidades básicas”.
20 Dados do SECOVI informam matéria do G1 que mostra a discrepância entre a renda do trabalhador e o preço
dos imóveis na cidade de São Paulo. Segundo a matéria, o “valor do m² de imóveis novos em SP saltou de R$
2,5 mil para R$ 7,2 mil. No mesmo período, renda do assalariado passou de R$ 929 para R$ 1.712” (G1, 2013).
21 Apesar de seu caráter normativo, a melhor doutrina administrativa entende que Portarias, Provimentos e
Ordens Internas são atos ordinários, que deveriam servir exclusivamente para a organização interna da ad-
ministração, mas, na prática, muitos acabam impondo regras gerais e abstratas, o que lhes atribui um caráter
normativo (CARVALHO FILHO, 2010).
22 CERRI, et al, 2007, p. 144
23 Já há muito a doutrina aponta as limitações da forma ligiosa de resolução de litígios, sendo necessária a
construção de meios alternativos de resolução de controvérsia, especialmente para os casos complexos, que
envolvem interesses difusos e coletivos (CAPELLETI, 2002)
24 A opção pelo STJ se deve ao fato de que a esse tribunal compete, em última instância decidir sobre a in-
terpretação das leis federais. Em relação ao TJ/SP, a opção se deve à base de competência territorial e nesse
tribunal foram priorizados casos originários da comarca da capital e que exprimissem conflitos fundiários de
natureza coletiva. As pesquisas de jurisprudência foram feitas nos sites dos respectivos tribunais (www.stj.
gov e http://www.tjsp.jus.br/) utilizando-se como critério de pesquisa os seguintes termos (incialmente de
forma isolada e depois associado ao termo moradia): (i) risco geológico, (ii) risco de desastre; (iii) Lei 12.608;
(iv) Lei 12.340; (v) proteção e Defesa Civil; (iv) Ocupação área sujeita à inundação/ desastre/ deslizamento.
As decisões pertinentes foram encontradas, quase que na sua integralidade, associadas ao critério de pesquisa
“risco geológico”.
25 Nesse sentido, TJ/SP, 11ª Cam. Dir. Público, Ap 0013794-46.2011.8.26.0053, Rel. Des. Aroldo Viotti, j.

1974
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

22/01/13.
26 Nesse sentido, TJ/SP, 7ª Câm. Dir. Público, Ap. nº 0252542-65.2010.8.26.0000, Rel. Des. Coimbra Schmidt
, j. 07/02/11).
27 BODNAR, 2012, p.248 - grifei.
28 O adequado acesso à justiça enfrenta, dentre outros, um obstáculo processual e jurisdicional, ou seja, o
processo judicial é insuficiente na forma e conteúdo para lidar com a complexidade dos litígios. Dessa forma,
a assistência jurídica integral deve incorporar o atendimento multidisciplinar e meios alternativos de solução
de conflitos, pois alguns problemas não são resolvidos única e exclusivamente com a técnica jurídica (CA-
PPELLETTI, 2002).
29 BERWIG, 2011 e AYALA, 2011 indicam que o entendimento do risco depende de uma sociedade orientada
para o futuro.
30 SÃO PAULO, 2013.
31 Os números da própria Prefeitura indicam que, em 2007, 14,21% da população do município (1,5 milhões
pessoas) habitava em favelas, 16,46% (1,8 milhões) dos habitantes encontrava-se em loteamentos informais
e 5,95% (645 mil) tinha moradia em área de mananciais (SÃO PAULO, 2008).
32 CERRI, et al, 2007, p. 150
33 SÃO PAULO, 2011.
34 O Escritório Modelo “Dom Paulo Evaristo Arns”é Unidade de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), entidade que presta Assessoria Jurídica Popular
Integral e Gratuita em convênio com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
35 Nesse sentido ver VAINER, 2007, que brilhantemente expõe sobre a capacidade de os conflitos fundiá-
rios urbanos desafiarem políticas urbanas que se acomodam ampliando a desigualdade e promovendo a
cidade-mercadoria.

1975
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Analise dos investimentos do


PAC em habitação e urbanização
na cidade de Belém do Pará

Ariel Maia Gomes1


Shaula Colares2

1. INTRODUÇÃO

A República Federativa do Brasil mostra-se sob a égide do Estado


Democrático de Direito, baseada em valores como dignidade humana,
cidadania, segurança, bem-estar, igualdade e justiça social. Os direitos
fundamentais sociais devem ser providos pelo Estado mediante prestações
positivas que envolvem a elaboração de políticas públicas compromissadas
para com as necessidades básicas dos cidadãos, em especial os de classes
menos favorecidas. Entre tais direitos se dá destaque aqui ao direito à
moradia e sua viabilização por meio das ações do Estado.
A correlação de forças transforma a cidade em um palco de vários
conflitos sociais, causa e consequência da desigualdade social, alterando o
território urbano, gerando uma crise habitacional só piorada pelo descaso
governamental. A ausência de politicas públicas plenas e eficazes que
ofereçam à população mais desprovida acesso à habitação aumenta o
deslocamento da mesma para áreas periféricas das cidades. Tal situação
leva essas pessoas a ocupar irregularmente imóveis sem infraestrutura, às
vezes em áreas ambientalmente frágeis aumentando os bairros periféricos,
acentuando a exclusão social e a degradação ambiental e humana. Esse
processo de segregação sócio espacial tem sua origem em um modelo
econômico que concentra e exclui, priorizando sempre o desenvolvimento
econômico em detrimento do desenvolvimento social.

1977
Na Amazônia brasileira esse modelo excludente sempre esteve pre-
sente, porém se intensificou a partir da década de 1960, com o programa
‘’operação Amazônia’’(1966) do governo federal que promovia o ‘’desen-
volvimento’’ da região. Entretanto, ao invés de efetivar o desenvolvimento,
promoveu uma maior concentração de privilégios além de aumentar a
segregação socioespacial da população na região.
Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo compreender o
processo de urbanização da cidade de Belém do Pará, buscando identi-
ficar, a dinâmica da ocupação dentro do espaço, aliando a função da
cidade e o papel do Estado, analisando os investimentos em habitação
e urbanização promovidas pelo governo na cidade de Belém do Pará
através dos projetos e recursos advindos do Programa de Aceleração do
Crescimento, que surge com o objetivo de, desde sua criação, contribuir
para superar as dificuldades e descasos de natureza social, ambiental,
fundiária, urbanística e de infraestrutura existente nas cidades brasileiras,
através de políticas econômicas de estímulo ao desenvolvimento urbano
(saneamento ambiental, habitação e mobilidade urbana) além de reforço
da logística e de energia.
Entretanto, apesar deste artigo fazer um esboço dos investimentos
realizados, principalmente pelo eixo Minha Casa, Minha Vida na urba-
nização de assentamentos precários resultados do processo de segre-
gação sócio espacial na cidade de Belém, faz também uma analise das
suas contradições.

2. A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO URBANO DA CIDADE


DE BELéM: A FUNÇÃO DA CIDADE E O PAPEL DO ESTADO

De acordo com Silva (2006, p. 29-30 apud MELO, 2010, p. 29) a função
que a cidade possui recebeu sua primeira definição durante o IV Congres-
so Internacional de Arquitetura Moderna realizado em 1933, na cidade
de Atenas na Grécia. Foi elaborado um texto denominado como Carta
de Atenas, aonde constava as funções urbanas elementares: habitação,
trabalho, recreação e circulação no espaço urbano.

1978
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A cidade possui sua configuração baseada nas funções que exerce na


vida do cidadão urbano. Tem por finalidade atender às necessidades das
pessoas que nela habitam e/ou circulam, no entanto, o espaço urbano
contemporâneo oferta cada vez menos qualidade de vida, uma vez que é
um espaço de concentração de riquezas e violação dos direitos básicos
do cidadão.
O desenho do espaço urbano está relacionado à lógica econômica ex-
cludente, com poucos grupos enriquecendo e gerando a inacessibilidade
da terra urbana, afetando o segmento mais pobre da população.
Na cidade de Belém não se fez diferente, a partir da segunda meta-
de do século xx, através da politica de desenvolvimento adotada pelo
estado brasileiro na região.(SOUZA, 2006 p.52) ocorreu uma retomada
do crescimento urbano com a abertura, inicialmente, da rodovia Belém-
Brasília e mais tarde com implantação de redes de estradas. Tal ação do
governo foi essencial para o surgimento de novas atividades econômicas
no setor urbano que intensificaram o fluxo migratório das regiões rurais
para a região urbana.
Com essa dinamização da economia que intensificou, a partir da dé-
cada de 1970, o crescimento demográfico da cidade de Belém, a região
metropolitana apresentou uma ocupação descontrolada de propriedades
urbanas. Esse crescimento econômico aliado a industrialização do mu-
nicípio, demandava por novas formas de trabalho, fazendo com que as
populações que buscavam oportunidades e equipamentos públicos se
concentrassem nas regiões periféricas ao centro urbano econômico. Nas
palavras de Fernandes (2012):

[...] a expansão do núcleo urbano é a concentração de atividades


econômicas, as quais modificam a malha urbana e a aglomeração
em decorrência da metrópole ser influenciada pela valorização de
áreas, dada a tendência de centralização do capital nas distintas
atividades econômicas, as quais passam a se instalar em áreas
mais distantes do centro urbano. ( FERNANDES, 2012 p. 17).

Assim, a concentração fundiária e de renda aliadas a ausência de


políticas públicas de planejamento urbano causaram a segregação sócio

1979
espacial, onde a população de baixa renda formou, em áreas periféricas da
cidade de Belém, principalmente em regiões de baixadas3, aglomerações
precárias com altos déficits habitacionais e sem aparato jurídico, amplian-
do as desigualdades socioeconômicas e criando espaços contraditórios
na dinâmica do núcleo econômico urbano.
Centrando na questão habitacional, o planejamento em relação a essa
área é de essencial importância para o bom funcionamento da cidade. A
propriedade imobiliária, seja ela privada ou pública, deve compor a cidade
com uma função que supra tanto interesses coletivos quanto individuais, a
serem previsto no plano diretor da própria cidade (MELO, 2010 p.66). Dessa
Maneira, a necessidade de politicas habitacionais de interesse social são
de suma importância para o desenvolvimento da cidade de maneira mais
sustentável e plena. Assim temos, de acordo com o Artigo 26º do Plano
diretor de Belém lei nº 8.655, de 30 de julho de 2008 a Politica habitacional:

Art. 26º A Política Municipal de Habitação visa a universalização


do acesso à moradia com condições adequadas de habitabilidade,
assegurando a transparência das ações relacionadas à gestão
habitacional, tendo como objetivos:
I - reduzir o déficit habitacional do Município;
II - respeitar as formas tradicionais de organização social e as
necessidades de reprodução espacial e cultural;
III - priorizar a permanência das famílias em área objeto de in-
tervenções urbanas ou em áreas próximas às mesmas.
IV - promover a requalificação urbanística e a regularização
fundiária dos assentamentos precários existentes;
V - integrar a política habitacional às outras políticas públicas
municipais, compatibilizando-a às políticas públicas estadual e
federal;
VI - promover a assistência jurídica e técnica, de forma gratuita,
à população de menor poder aquisitivo;
VII - estabelecer instrumentos de desenvolvimento das condições
de moradia para promover a produção habitacional no Município;
VIII - estruturar um sistema de informação, acompanhamento,
avaliação e monitoramento da política de habitação;
Ix - promover a otimização das redes de infra-estrutura urbana.
(PLANO DIRETOR DA CIDADE DE BELÉM, 2008, Art. 26º)

O Estado tem o papel de coordenar políticas que devem está em função


do interesse social, serviços públicos como saúde, saneamento, educação
e serviços urbanos são realmente problemas da competência institucional

1980
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

seja municipal, estadual ou mesmo federal e devem ser tratados com


objetividade, os encargos do governo devem ser aplicados para fazer a
gestão dos recursos da melhor forma possível (REZENDE, 2001 p.57-61)
existe assim a necessidade de coordenação e planejamento à medida em
que o governo intervém na economia.
Historicamente no Brasil, a partir de 1930, o Estado através de inves-
timentos em infraestrutura e com intuito de promover o desenvolvimento
econômico do país realiza politicas econômicas que induzam ao mesmo.
Apesar de nas duas últimas décadas do século xx, com a aceleração e o
aprofundamento do processo de globalização econômica terem levado
a minimização da intervenção dos Estados nacionais (ALVES, 2008 p.2),
atualmente, encontram-se em processo de aplicação no Brasil de um novo
ciclo desses tipos de investimento, os que se denominam de infraestrutura,
como ações estratégicas para estruturar uma das áreas que emperra o
desenvolvimento econômico brasileiro, talvez a maior dificuldade, além
da capacitação da força de trabalho.
Segundo Castro (2012), a partir do governo de Luiz Inácio Lula da Silva,
o planejamento federal passa a adotar uma visão de futuro denominada
visão estratégica nacional, que tinha por objetivo tornar-se uma premis-
sa balizadora, coordenar os investimentos estratégicos e projetar metas
para o desenvolvimento a médio e longo prazos. Essa visão de estratégia
nacional recobre programas, políticas e projetos que o Estado considera
essenciais para o desenvolvimento do país (CASTRO, 2012 p.48).

3. PROGRAMA DE ACELERAÇÃO DO CRESCIMENTO:


INVESTIMENTOS EM URBANIZAÇÃO E hABITAÇÃO
NA CIDADE DE BELéM.

Dessa maneira, O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC I) foi


lançado em 28 de janeiro de 2007, anunciado pelo então governo Lula. O
PAC iniciou englobando um conjunto de políticas públicas planejadas para
os quatro anos posteriores de sua criação, tendo por objetivo acelerar o

1981
crescimento econômico do Brasil. Foi um programa pensado como plano
estratégico de resgate do planejamento e de retomada de investimentos
em setores estruturais do país, promovendo a construção de obras de
infraestrutura social, urbana, logística e energética, contribuindo para o
seu desenvolvimento acelerado e sustentável.4
A partir de 2011, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC II)
adentra uma segunda fase com o mesmo objetivo estratégico aprimorado
pelas experiências da fase anterior, com mais recursos e mais parcerias
com Estados e Municípios visando a construção de obras para melhoria
da qualidade de vida nas cidades brasileiras. De acordo com o Ministério
do planejamento, Orçamento e Gestão o PAC (2013) compreende os Eixos:
Cidade Melhor (aborda ações em Saneamento, Prevenção em Áreas
de Risco, Mobilidade Urbana e Pavimentação),
Comunidade Cidadã (compreende serviços sociais e urbanos tais como
Unidades de Pronto Atendimento -UPAs, as Unidades Básicas de Saúde
-UBS, Creches e Pré-Escolas, Quadras Esportivas nas Escolas e Praças
dos Esportes e da Cultura),
Minha Casa Minha Vida ( envolve as ações Urbanização de Assenta-
mentos Precários e financiamento habitacional pelo Sistema Brasileiro de
Poupança e Empréstimo)
Água e Luz para Todos (compreende as ações Água e Luz para Todos,
Recursos Hídricos e Água em Áreas Urbanas) ,
Transportes (abrange esse eixo projetos de portos, hidrovias, aeropor-
tos e equipamentos para estradas vicinais) e
Energia (tem por prioridade a geração de energia elétrica e sua trans-
missão, petróleo e gás natural, marinha mercante, combustíveis renová-
veis, eficiência energética e pesquisa mineral).
Centrando a análise nas políticas voltadas para habitação do PAC II
no Estado do Pará, em especial na cidade de Belém temos o Eixo, Minha
Casa, Minha Vida( MCMV). O eixo MCMV teve um investimento total
de 4.477,27 milhões, segundo o 6º balanço, ano II feito para os períodos
de 2011-2014 encontrados no site oficial do Programa de Aceleração do
Crescimento.

1982
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Tabela 1. Investimentos do Minha Casa, Minha Vida no Pará.

Fonte: 6º balanço, ano II feito para os períodos de 2011-2014 encontrados no site oficial do Programa de
Aceleração do Crescimento. 2012

Na tabela 1, como se pode observar a maior parte do investimento


realizado no Estado do Pará é destinada a financiamentos, sem que estes
sejam efetivamente para as populações de baixa renda.

1983
Tabela 2. Investimentos MCMV na Urbanização
de assentamentos precários em Belém

1984
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Fonte: 6º balanço, ano II feito para os períodos de 2011-2014 encontrados no site oficial do Programa de
Aceleração do Crescimento. 2012

De um investimento total de 1.145.974,41 milhões para a urbanização


e Habitação de assentamentos precários no Estado do Pará aproximada-
mente 55% desses investimentos, sem contar com aqueles em estagio de
licitação, são destinados à cidade de Belém. Contudo, ao analisar a tabela
2, observa-se que a maior parte dos empreendimentos está em execução,
sendo que nenhum foi totalmente concluído.
Tomando por base o fato de que o Minha Casa, Minha Vida seja um
eixo compreendido de ações de Urbanização de Assentamentos Precá-
rios e financiamento habitacional pelo Sistema Brasileiro de Poupança e
Empréstimo dando prioridade às famílias de baixa renda percebe-se que
o programa não está priorizando totalmente essas questões.

1985
É necessário perceber que o MCMV aparenta ter sido alçado à esfera
de política de provisão habitacional, tornando relevante a relação entre
o que o preconiza e o que define o Plano Nacional de Habitação, em
especial desvendar quais as orientações do programa. Ao ser incluído
no PAC isso sugeriu que a política habitacional passou a responder mais
fortemente às estratégias desenvolvimento do país, a aceleração do cres-
cimento econômico, sendo assim a habitação passou a ser entregue como
produto dessa política de desenvolvimento e não o contrário (KRAUSE;
BALBIM;NETO,2013 p.9).
Mesmo que o MCMV vá além de um programa habitacional, pois dispõe
desde instrumentos financeiros até um marco legal, que é a lei de regula-
rização fundiária e de diversas outras medidas de estímulo à construção
civil (Lei nº 11.977/09). Ainda está mais em função do desenvolvimento
econômico do que das estratégias de enfretamento do déficit habitacional
se distanciando da questão habitacional de interesse social.

4. UMA ANALISE DOS IMPACTOS CAUSADOS


PROJETOS DE URBANIZAÇÃO E hABITAÇÃO
NA VIDA DA POPULAÇÃO DE BAIXA RENDA.

Quando há intervenções do governo que provocam verdadeiras


transformações no espaço alterando a vida cotidiana da população, bem
como o padrão de consumo do espaço, é necessário saber se medidas
como essa irão solucionar ou aprofundar ainda mais o problema. Na
Cidade de Belém, a maior parte das intervenções do poder público que
promoveram significativas mudanças no modo de vida da população
foram realizadas em áreas de baixadas, o que não significou necessaria-
mente que a população que residia/ reside nessas áreas foi inteiramente
beneficiada, tornando essas áreas mais valorizadas, através de projetos
de infraestrutura social, o que foi essencial para aumentar o custo de vida
nessas localidades, aliado à ação dos promotores que passam a impor a
especulação imobiliária. Isso tudo, contribui para atrair uma nova popu-

1986
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

lação de maior poder aquisitivo, capaz de custear o ônus da urbanização


(SOUZA, 2006 p.57).
Sendo assim, as políticas habitacionais ou de urbanização em áreas
de baixadas acabam por cair no erro de provocar uma intensificação da
segregação socioespacial , pois fazem com que as populações mais po-
bres se desloquem para locais cada vez mais afastados, após perder sua
identidade com o bairro, além de não poderem arcar com o novo padrão
de consumo que se formou.
Isso ocorre pela falta de planejamento. Políticas como essas devem
ser aliadas a outras políticas públicas que fomentem emprego e renda
para a população “beneficiada” pelas mesmas. Portanto, programas como
MCMV que institui novas perspectivas para a população de baixa renda
requerem que haja um enfrentamento amplo de todas as questões volta-
das para o desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana
e do espaço urbano.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Este artigo teve como objetivo chamar atenção para os problemas


urbanos principalmente aqueles relacionados à questão habitacional e
de urbanização que afeta a população de menor poder aquisitivo e que
dependem das politicas públicas, observando que também que o cum-
primento das leis, que asseguram a função social da cidade através da
ação estatal, são essenciais para proporcionar maior qualidade de vida
nas cidades, visto que A moradia adequada deve ser acessível a todos e
por meio da atuação política e administrativa do Estado devem- se criar
possibilidades para tal acesso por meio dos programas que estão à dispo-
sição. Dessa forma, procuramos mostrar um pouco de como o programa
MCMV tem desenvolvido no Estado do Pará, em especial na cidade de
Belém, através dos dados de investimentos coletados, pudemos constata
que ainda há a necessidade de que a propriedade atenda a função social
que dê frutos para a sociedade, se fazendo necessário que as políticas

1987
implantadas ajam de forma eficiente e equilibrada, mantendo distância
de ações políticas elitistas que ignoram as necessidades das parcelas
marginalizadas da população urbana, segregadas em bairros afastados
sem nenhuma estrutura que viabilizam uma vida digna a elas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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14 de julho de 2013.

1988
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

NOTAS

1 Graduanda do Curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Pará. Bolsista do Programa de Ca-
pacitação em Regularização Fundiária da Região Metropolitana de Belém. E-mail: arielm.gomes@hotmail.com
2 Graduanda do Curso Serviço Social da Universidade Federal do Pará. Bolsista do Programa de Capacitação
em Regularização Fundiária da Região Metropolitana de Belém. E-mail: shaula1234@hotmail.com
3 As baixadas existentes em Belém são áreas inundadas ou sujeitas às inundações decorrentes, em especial,
dos efeitos das marés e ficaram conhecidas, principalmente a partir da década de 60, por serem espaços de
moradia das camadas sociais de baixo poder aquisitivo. Durante muitos anos as ‘baixadas’ foram mantidas
em completo isolamento, esquecidas dos planos de urbanização, saneamento e serviços públicos, procuradas
apenas pelas populações de baixa renda que não conseguiam penetrar nas terras altas nem obtinham emprego
certo. Agora, a única opção do crescimento da cidade é retomar as áreas que formam o ‘cinturão institucional’
ou recuperar as terras alagáveis. Os estudos que tratam as baixadas de Belém procuram defini-las como sendo
os trechos do sítio urbano cujas curvas de nível não ultrapassam a cota quatro, e que chegam a compor cerca de
40% da área mais valorizada da cidade. (RODRIGUES, 1996, pp. 55-56 apud GOMES; LIMA; SANTOS, 2012 p. 3).
4 Matéria do jornal G1 disponivel em http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/07/dobra-o-numeros-de-
-moradias-do-minha-casa-minha-vida-em-belem.html , acesso em 15/agosto/2013

1989
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

APPs urbanas a luz


do novo Código Florestal

Christiane Helen Godinho Costa1


Ruth de Lima Matos2
Maurício Leal Dias3

INTRODUÇÃO

A ausência de alternativas legais de moradia para grande parte da


população mais pobre fez com que a ocupação irregular de terrenos,
públicos ou privados, tenha se tornado a principal forma de construção e
estruturação das cidades brasileiras. Terrenos vazios e sem uso definido,
principalmente nas zonas que apresentam infraestrutura urbana, são
ocupados pela população carente que em busca de um local digno para
habitar, exercem assim, seu direito constitucional à moradia.
Dentre os terrenos urbanos ocupados, encontram-se as Áreas de Pre-
servação Permanente (APP)4 ao longo de cursos d’água locais onde, antes
de ocorrer a ocupação, a mata ciliar funcionava como filtro ambiental,
retendo poluentes e sedimentos que chegariam aos cursos d’água, atu-
ando de forma fundamental para o equilíbrio dos ecossistemas aquáticos,
protegendo contra a erosão das ribanceiras e a consequente obstrução
dos recursos hídricos, evitando enchentes e auxiliando na conservação
da qualidade e o volume das águas.
Além da ocupação pela população de baixa renda, observa-se tam-
bém em várias cidades brasileiras, uma completa descaracterização das
APPs em trechos importantes de margens dos rios, com a implantação
de sistema viário, canalização de cursos d´água e bairros consolidados,
quando elas não estão completamente ocupadas por depósitos de lixo e

1991
entulho. Todavia, há também exemplos interessantes de implantação nas
APPs de parques públicos e áreas de lazer, que se constituem em espaço
privilegiado para o exercício do convívio social aberto a todos os cidadãos.
Todos os casos citados acima são exemplos de ilegalidade de acordo
com o Código Florestal de 1965 (Lei 4.771). De fato, com o objetivo de
proteger a vegetação nativa, o Código Florestal definiu como sendo de
preservação permanente uma faixa de terreno ao longo das margens de
todos os cursos d’água, situados em áreas urbanas ou rurais. Atualmente,
o Código Florestal foi atualizado através da Lei n. 12.651 de 2012, fomen-
tando características já implantadas através da Resolução CONAMA n°
369/2006. Além do Código Florestal e desta última Resolução citada, às
margens dos rios estão também protegidas pelas Resoluções CONAMA
303/2002 e 302/2002.
A Resolução CONAMA nº 369, de 29 de março de 2006, foi um avanço
no sentido de adequar o Código Florestal Brasileiro à realidade urbana, ao
possibilitar a intervenção em APPs com a implantação de obras essenciais
de infraestrutura urbana destinadas aos serviços públicos de transporte,
saneamento e energia, bem como a utilização das APPs para promover
lazer público, desde que observadas as exigências previstas. Ainda assim,
tal Resolução foi insuficiente para fazer face aos processos sociais que se
observam nas cidades brasileiras. Como aspecto positivo desta Resolução,
cita-se a definição do conceito de Regularização Fundiária Sustentável
de Área Urbana para ocupações de baixa renda predominantemente re-
sidenciais. Isto se trata de uma tentativa de resolver um conflito entre o
direito à moradia da população de baixa renda que não alcança alternativa
legal para construção de sua casa e o direito de todos de obter um meio
ambiente equilibrado.
Um dos maiores desafios atuais da gestão urbano-ambiental é contem-
plar o direito à moradia para a população através da regularização fundiária
de interesse social, todavia promovendo a sustentabilidade ambiental. Ante
o exposto, este trabalho objetiva estabelecer uma análise crítica a respeito
das leis vigentes que, em teoria, protegem nossas Áreas de Preservação

1992
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Permanente, em tese intocáveis, relacionando à atual situação das APPs.


localizadas no município de Belém, Pará.

PROTEÇÃO LEGAL

O Código Florestal de 1965 (Lei n. 4.771 /1965) estabeleceu a prote-


ção à mata ciliar ao definir como área de preservação permanente uma
faixa de terreno ao longo das margens de todos os cursos d’água, cuja
extensão varia de acordo com a largura do leito do rio. A partir do ano de
2002, foram implantadas as Resoluções CONAMA 303/2002, CONAMA
302/2002 e CONAMA 369/2006, com o intuito de estabelecer padrões
mais específicos referentes à proteção das nossas margens. A Resolução
CONAMA 303/2002 dispõe sobre parâmetros, definições e limites de Áre-
as de Preservação Permanente, a 302/2002 dispõe sobre os parâmetros,
definições e limites de Áreas de Preservação Permanente de reservatórios
artificiais e o regime de uso do entorno e a 369/2006 dispõe sobre os ca-
sos excepcionais, de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto
ambiental, que possibilitam a intervenção ou supressão de vegetação em
Área de Preservação Permanente - APP. De acordo com os Arts 8° e 9° da
Resolução CONAMA 369/2006 a implantação de área verde de domínio
público em área urbana e a regularização fundiária sustentável de área
urbana poderão ser autorizadas pelo órgão ambiental competente.
O novo Código Florestal de 2012 (Lei 12.651/2012) abrange alguns
aspectos implantados em cada Resolução. No que diz respeito a inter-
venção ou supressão de vegetação nativa em APP, o art. 8º da referida
Lei 12.651/2012 estabelece que esta exceção ocorrerá somente no caso
de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental
previstas nesta lei. Os incisos VIII, Ix e x do art. 3° detalham cada um
destes aspectos.
O inciso VIII, deste mesmo artigo, especifica os casos que podem ser
considerados como utilidade pública. Dentre entre eles estão as inter-
venções voltadas às atividades de segurança nacional e proteção sani-

1993
tária; as obras de infraestrutura destinadas às concessões e aos serviços
públicos de transporte, sistema viário, inclusive aquele necessário aos
parcelamentos de solo urbano aprovados pelos Municípios, saneamento,
gestão de resíduos, energia, telecomunicações, radiodifusão, instalações
necessárias à realização de competições esportivas, bem como minera-
ção, com algumas exceções; atividades e obras de defesa civil; atividades
que comprovadamente proporcionem melhorias na proteção das funções
ambientais; e outras atividades similares devidamente definidas em ato
do Chefe do Poder Executivo Federal. Apesar do novo Código Florestal
estabelecer barreiras à intervenção de APP, esta norma acima citada abre
a possibilidade de intervenção justificada por parte da gestão municipal
por melhorias urbanas.
Em conseguinte, o inciso Ix, do Art 3° do Código Florestal, expõe as
mudanças admitidas como de interesse social, sendo elas as atividades
indispensáveis à proteção da vegetação nativa, tais como prevenção,
combate e controle do fogo, controle da erosão, erradicação de invasoras
e proteção de plantios com espécies nativas; a exploração agroflorestal
sustentável, desde que não descaracterize a cobertura vegetal existente e
não prejudique a função ambiental da área; a implantação de infraestrutura
pública destinada a esportes, lazer e atividades educacionais e culturais ao
ar livre em áreas consolidadas; a regularização fundiária de assentamentos
humanos ocupados predominantemente por população de baixa renda em
áreas urbanas consolidadas, observadas as condições estabelecidas na
Lei n° 11.977/2009; implantação de instalações necessárias à captação
e condução de água e de efluentes tratados para projetos cujos recursos
hídricos são partes integrantes e essenciais da atividade; as atividades de
pesquisa e extração de areia, argila, saibro e cascalho, permitidas pela
autoridade competente;
E concluindo as definições, temos o inciso x, do mesmo artigo citado
anteriormente, tratando das atividades eventuais ou de baixo impacto
ambiental, as quais permitem a abertura de pequenas vias de acesso in-
terno, quando necessárias à travessia de um curso d’água; implantação

1994
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de instalações necessárias à captação e condução de água e efluentes


tratados, desde que comprovado o direito de uso da água; implantação
de trilhas para o desenvolvimento do ecoturismo; construção de rampa
de lançamento de barcos e pequeno ancoradouro; construção de moradia
de agricultores familiares, remanescentes de comunidades quilombolas e
outras populações extrativistas e tradicionais em áreas rurais; construção
e manutenção de cercas na propriedade; pesquisa científica relativa a
recursos ambientais, respeitados outros requisitos previstos na legislação
aplicável; coleta de produtos não madeireiros para fins de subsistência
e produção de mudas; plantio de espécies nativas produtoras de frutos,
sementes, castanhas e outros produtos vegetais, desde que não prejudique
a função ambiental da área; exploração agroflorestal e manejo florestal
sustentável, comunitário e familiar, desde que não descaracterizem a
cobertura vegetal nativa existente nem prejudiquem a função ambiental
da área; outras ações ou atividades similares, reconhecidas como even-
tuais e de baixo impacto ambiental em ato do Conselho Nacional do Meio
Ambiente - CONAMA ou dos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente.
O art. 64° do Código Florestal (Lei n° 12.651/2012), trata sobre a possibi-
lidade de regularização fundiária de interesse social de assentamentos em
APP’s. urbanas onde a ocupação já foi consolidada. Nestes casos a regula-
rização seria admitida por meio de um projeto de regularização fundiária
que correspondesse às exigências estabelecidas na Lei n° 11.977/2009, a
qual determina que a regularização fundiária está diretamente vinculada
à regularização urbana e ambiental. O parágrafo 1° do referido artigo,
estabelece também, que o projeto de regularização deverá incluir estudos
técnicos que demonstre a melhoria das condições ambientais em relação
à situação anterior. Esta lei ainda flexibiliza a redução da faixa marginal
intocável para 15 metros de largura para cada lado do rio (Art. 65°, pa-
rágrafo 2°) para fins de regularização ambiental. No Código Florestal de
1965 (Lei 4.771), a faixa marginal mínima estabelecida era de 30 metros
de largura, a qual deveria ser mantida intocada.

1995
áREA DE ESTUDO

A concentração urbana na Amazônia ocorreu de forma intensa. En-


tre 1991 e 2000, para Belém, a concentração aumentou em 50%. Dados
censitários, tomados nos níveis de setores (LE TOURNEAU, 2005), confir-
mam essa urbanização intensa e a particularidade desse movimento na
dimensão ambiental. A cidade de Belém/Pará faz parte das vinte e três
(23) maiores aglomerações urbanas mundiais situadas na faixa costeira
(Unesco, 1998). Com uma população avaliada em 1.500.000 habitantes a
Região Metropolitana de Belém (RMB) cresceu e cresce de forma desorde-
nada, originando conflitos e desigualdades que são visíveis na fisionomia
urbana.
Até a década de 50, Belém já havia ocupado quase a totalidade das
terras não alagáveis, dentro da primeira légua patrimonial, as quais se
encontram em cotas acima de 4 metros a partir do nível do mar. Na déca-
da de 60, inicia-se uma ocupação desordenada das áreas alagáveis, sem
qualquer infraestrutura, nas quais as condições de vida da população são
extremamente precárias. As ocupações localizadas nas áreas alagáveis
são caracterizadas por um quadro de degradação ambiental considerá-
vel devido, principalmente, ao lançamento dos esgotos e lixo doméstico
nos rios. Tradicionalmente, as intervenções governamentais na região
metropolitana de Belém têm sido fundamentadas em projetos de drena-
gem, incluindo dragagem, retificação e impermeabilização dos canais e
rios, transformando-os, assim, em canais de esgoto. Hoje a cidade já não
possui a riqueza hidrográfica que a caracterizou no passado e nos bairros
centrais de Belém, os rios e igarapés não existem mais como tal, já que
todos foram retificados ou aterrados, mas ainda persiste na periferia uma
mescla de cenário urbano e de paisagens com mata que faz de Belém uma
cidade particular. O cenário urbano de Belém explicita a contradição entre
a profunda urbanização originada pela ocupação desordenada do territó-
rio e a incapacidade governamental de mitigar impactos originados por
movimentos migratórios que associam dinâmicas inter e intra-regionais.

1996
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Belém possui uma característica fisiográfica marcante devido sua posi-


ção geográfica e seu território sofrer a influência de 14 bacias hidrográficas.
Tendo como fator de influência a localização em uma planície pouco aci-
dentada, com curvas hipsométricas pouco apreciáveis (MOREIRA, 1966).
A influência destas 14 bacias em todo território da região metropolitana
alcança também a forma como a população enxerga e lida com as APPs.
aqui presentes na cidade. Ao todo foram identificadas duas formas de
lidar com APP: a primeira toma o rio como elemento de valorização onde
se busca retomar a orla como elemento de valor simbólico, evidenciando
o caráter econômico de valorização destes espaços às margens dos cur-
sos d’água; a segunda maneira de lidar com o rio é como esgotamento
sanitário, nos quais são encarados com rejeição, como valas poluídas
e veiculadoras de doenças, que precisam ser canalizadas em calhas de
concreto ou, preferencialmente, confinados no subsolo (GALVÃO, 2012).
Os canais carregam, ainda, uma triste associação de caráter social, são
tidos como elementos existentes apenas nas periferias da cidade, sendo
sinônimos de baixa qualidade de vida e habitação (ARAÚJO,2012,p.12).
Em Belém a situação relativa às Áreas de Preservação Permanente
é resolvida de maneira técnica, onde as operações de macrodrenagem
estabelecem os métodos usuais de tentar resolver os problemas. Essa
forma técnica resultou em muitos projetos de macrodrenagem na cidade,
onde as intervenções em áreas adensadas, tanto construtivamente como
populacionalmente, efetivaram-se através das faixas de domínio das
vias marginais suficiente para a implementação dos canais como forma
de domínio, não cumprindo assim a função de recuperação e proteção
ambiental (RODRIGUES,et.al.,2012).
Os corpos d’água sejam eles furos, igarapés ou rios são elementos
latentes do funcionamento da Bacia e sendo Belém marcada pela presen-
ça abundante destes. A expansão territorial em Belém produziu modos
de lidar com os cursos d’água cujas influências expressam fatores de
ordem cultural, socioeconômica e ambiental. A disposição das classes
no território de Belém deixa evidente a dicotomia entre as áreas de cotas

1997
acima de 4 metros – local onde se
encontram as classes sociais mais
abastadas – e as áreas de cotas mais
baixas – ocupadas pela população
de renda mais baixa – devido as
características fisiográficas (CAR-
DOSO et.al.,2007; ABELÉM,1989)
e influência econômica dentro do
processo de ocupação do território.
Se tratando do fator econômico,
Belém configura-se de uma parte
insular e outra continental, onde a
parte continental, eminentemente
urbana, corresponde a 34,36% do
território (MOREIRA,1966), sendo
o restante constituído por partes
insulares. A intimidade com os
cursos d’água reflete no modo de
vida ribeirinho que diversas vezes
manifesta-se através das tipologias
habitacionais. E o fator de ordem
ambiental nos mostra que a questão
dos assentamentos precários em
áreas de córregos suscita discus-
sões a cerca de sua contaminação
e de sua insalubridade. Em Belém a
ausência de políticas estruturais no
tratamento dos dejetos e as sucessi-
vas técnicas de canalização de seus
cursos têm provocado o crescente desaparecimento dos corpos d’água ou
tem transformado-os em esgotos (GALVÃO, 2012).

1998
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Toda essa relação que a popula-


ção de Belém mantém com os rios
influencia na forma como essas APPs
são tratadas pela gestão pública. Ao
invés de promover a preservação
e manutenção de nossas faixas
marginais e da vegetação nativa ali
existente, como exige o Código Flo-
restal, a gestão municipal intervém
e altera totalmente a configuração
primária da cidade e dos rios ali
existentes. Atualmente, muitos rios
da cidade de Belém já sofreram a
macrodrenagem, sendo transforma-
dos em longos canais retificados de
concreto. Enquanto que os rios ainda
mantidos, em grande maioria, já
estão ocupados por uma população
que vive na pobreza e em alguns
casos ainda mantém características
ribeirinhas. Dentre os rios existen-
tes na cidade que foram concretados e os que permanecem em seu leito
natural, alguns exemplos são: o antigo igarapé das Almas transformado
em um canal situado na Av. Visconde de Souza Franco, local da cidade
considerado como de maior valor cobrado por metro quadrado; e o canal
da Av. Almirante Tamandaré; e entre os rios que permanecem em seu leito
natural temos o igarapé do Tucunduba, que ainda se mantém em seu leito
natural, entretanto está completamente poluído por esgoto doméstico e
lixo e suas margens estão completamente ocupadas com habitações em
condições precárias e o Igarapé Mata-Fome, localizado próximo à Av.
Augusto Montenegro, no bairro do Tapanã.

1999
CONCLUSÃO

As variadas visões que são lançadas às APPs e seus diversos usos


ressaltam a importância de sua preservação, ou utilização mais eficaz
destas áreas com intuito de atingir um fim social. O presente artigo visou
promover definições e entendimentos a cerca do tema e buscou um olhar
prático destas áreas no município de Belém, cuja peculiaridade residente
na grande presença destas áreas no meio urbano. Perpassou por formas de
lidar com estas áreas, além de reafirmar tais pontos através de exemplos
práticos. Ao término conclui-se que a legislação vigente, tanto o novo
Código Florestal quanto as Resoluções do CONAMA, estabelecem bons
parâmetros legais para a preservação das APPs, todavia ao mesmo tempo
deixa brechas que permitem a supressão da mata ciliar por parte do go-
verno e suas propostas de intervenção urbana. Desta forma, foi possível
estabelecer dois pontos de vista a partir das disposições e atualizações
do novo Código Florestal. Ele abre a possibilidade de regularização fun-
diária em áreas onde a ocupação urbana já foi consolidada, de tal forma
que garanta a regularização urbanística e ambiental de forma conjunta.
O segundo ponto de vista nos mostra que algumas destas exceções de
permissividade à intervenções permitem que a gestão pública suprima a
vegetação nativa se justificando em possíveis melhorias urbanas.

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de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam
a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente-
-APP. Resolução n. 369, de 28 de julho de 2013. Disponível na Internet. http://
www.mma.gov.br
CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Dispõe sobre parâmetros, definições
e limites de Áreas de Preservação Permanente. Resolução n. 303, de 20 de julho
de 213. Disponível na Internet. http:// www.mma.gov.br
SANTOS, Cláudia Regina dos; CARVALHO, Celso Santos. Proposta para a Ges-
tão Integrada das áreas de Preservação Permanente em Margens de Rios
Inseridos em áreas Urbanas. In: APPURBANA, 2007, São Paulo. Anais... São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2007, 1 CD.
SERVILHA, Elson Roney; RUTKOWSKI, Emilia Wanda; DEMANTOVA, Graziella
Cristina e FREIRIA, Rafael Costa. Conflitos na Proteção Legal das áreas de
Preservação Permanentes Urbanas. Campinas, editora, estado 2007.

NOTAS

1 Graduanda do Curso de Arquitetura e Urbanismo, FAU – UFPA, christiane.helen@gmail.com.


2 Graduanda do Curso de Direito, ICJ – UFPA, ruthllima_rlm@hotmail.com
3 Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará, Pro-
fessor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará, Advogado e Consultor Jurídico especializado
em Direito Urbanístico e Ambiental; e-mail: mlealdias@ufpa.com
4 APP’s são definidas pela RESOLUÇÃO CONAMA Nº 369, de 28 de março de 2006, como bens de interesse
nacional e espaços territoriais especialmente protegidos, cobertos ou não por vegetação, com a função ambiental
de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de
fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas; Considerando a singularida-
de e o valor estratégico das áreas de preservação permanente que, conforme indica sua denominação, são
caracterizadas, como regra geral, pela intocabilidade evedação de uso econômico direto;

2001
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Direito aos parques públicos


como um direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado nas
cidades: o contexto de Salvador-BA

Rafaela Campos de Oliveira1


Juliana Campos de Oliveira2

INTRODUÇÃO

Nos dias atuais os debates acerca da relação homem-natureza têm


invadido os diversos campos de estudo e têm adquirido múltiplas nuances
e especificidades.
No que se refere ao aspecto do desenvolvimento urbanístico das cida-
des contemporâneas, pode-se observar o crescimento não-planejado das
cidades, em especial das metrópoles e cidades de médio porte, que têm
se desenvolvido desenfreadamente e, portanto, de forma desordenada.
Este desenvolvimento, por óbvio, tem comportado aspectos positivos e
negativos. Atendo-se à questão do meio ambiente natural presente nesses
centros urbanos, vê-se que a natureza ora é degradada, ora é hostilizada,
ora organizada, planejada, adaptada, ou seja, urbanizada.
A urbanização de áreas naturais, ou áreas verdes, ocorre de várias
formas, sejam artificiais, através da construção de praças, por exemplo,
sejam através da melhoria da infra-estrutura circundante a lagos, a trechos
de matas, que se transformam em parques, tornando-se opção de lazer
para os cidadãos, que deles usufruem.
Especificamente aos parques públicos do município de Salvador, pre-
tende-se voltar a presente discussão, considerando-se que sua presença
nos bairros representa fator agregador de bem-estar ambiental, opção

2003
de lazer, que contribui para a qualidade de vida dos cidadãos que deles
podem usufruir.
Adicione-se, a localização dos parques públicos, nesta cidade, apa-
rentemente tem privilegiado bairros nobres, em detrimento dos bairros
periféricos, ou melhor, menos abastados.
Nesse diapasão, questionamentos acerca das garantias à dignidade
da pessoa humana, bem como ao direito à sadia qualidade de vida, ao
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, têm emergido, em
meio a um quadro urbano que evidencia uma realidade de desigualdades,
privilégios e segregações que parecem infindáveis e insolúveis.
Este artigo pretende discutir questões relativas aos parques públicos
urbanos no cotidiano do município de Salvador, Bahia, tendo como
fundamentação base a Constituição Federal Brasileira, o Estatuto das
Cidades (Lei nº 10.257/01), o Plano Diretor do Desenvolvimento Urbano
do Município de Salvador (Lei nº 7.400/08), além de fontes bibliográficas
secundárias.

1. A CIDADE E O DIREITO DE TODOS AO


MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EqUILIBRADO
PARA A SADIA qUALIDADE DE VIDA

Conforme preceitua o artigo 2253, constante na Constituição Federal


Brasileira de 19884, “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
De acordo com Machado5 cada ser humano só fruirá plenamente de
um estado de bem-estar e de equidade se lhe for assegurado o direito
fundamental de viver num meio ambiente ecologicamente equilibrado.
O reconhecimento do direito a um meio ambiente sadio configura-se,
sob o ponto de vista de Milaré6, como extensão do direito à vida, quer sob
o enfoque da própria existência física e saúde dos seres humanos, quer

2004
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

quanto ao aspecto da dignidade dessa existência, a qualidade de vida, que


faz com que valha a pena viver.
Entretanto, atendo-se ao cotidiano observado nas médias e grandes
cidades brasileiras, constata-se que, em sua grande maioria, estão pas-
sando por um período de acentuada urbanização, fato este que, embora
por um lado represente progresso material, por outra vertente, abarca
degradação da natureza, o que reflete negativamente na qualidade de
vida de seus moradores7. Moro salienta que

a constante urbanização nos permite assistir, em nossos gran-


des centros urbanos, a problemas cruciais do desenvolvimento
nada harmonioso entre a cidade e a natureza. Assim, podemos
observar a substituição de valores naturais por ruídos, concreto,
máquinas, edificações, poluição, o que ocasiona entre a obra do
homem e a natureza crises ambientais cujos reflexos negativos
contribuem para degeneração do meio ambiente urbano, propor-
cionando condições nada ideais para a sobrevivência humana8.

Machado9 considera que não basta viver ou conservar a vida, é justo


buscar e conseguir a qualidade de vida. Sant’Anna10 coaduna com tal
raciocínio reforçando que as condições de sobrevivência devem ter qua-
lidade e serem sadias. Machado afirma, ainda, que

a saúde dos seres humanos não existe somente numa contra-


posição a não ter doenças diagnosticadas no presente. Leva-se
em conta o estado dos elementos da Natureza – águas, solo, ar,
flora, fauna e paisagem – para se aquilatar se esses elementos
estão em estado de sanidade e de seu uso advenham saúde ou
doenças e incômodos para os seres humanos11.

O Estatuto das Cidades12 emerge, nesse contexto, como documento


que fornece um instrumental a ser utilizado na ordenação dos espaços
urbanos, com observância da proteção ambiental, e a busca de solução
para problemas sociais graves como moradia, o saneamento, que o caos
urbano faz incidir, de modo contundente, sobre as camadas carentes
da população13.
Todavia, a falta de planejamento, que considere os elementos naturais,
é uma realidade agravante. Além do empobrecimento da paisagem urba-

2005
na, são inúmeros e de diferentes amplitudes os problemas que podem
ocorrer, em virtude da interdependência dos múltiplos subsistemas que
coexistem numa cidade. De acordo com Sant’Anna14, para que haja
uma oferta de sadia qualidade de vida para a população é necessária
a estruturação e realização de uma política urbana, condizente com os
valores relativos à habitação, saneamento, meio ambiente, transporte,
lazer, acesso e posse da terra.
A boa aparência das cidades surte, por exemplo, efeitos psicológicos
importantes sobre a população, equilibrando, pela visão agradável e
sugestiva de conjuntos e de elementos harmoniosos, a carga neurótica
que a vida citadina despeja sobre as pessoas que nelas hão de viver,
conviver e sobreviver15.
O cotidiano das cidades, de acordo com Henrique16, possibilita que
a natureza seja vista como fonte de recuperação das energias. Por esta
razão, como forma de tentar suprir a árida realidade das cidades, defende-
-se a existência de áreas verdes urbanizadas, através da construção e
preservação de Parques Públicos Urbanos, por exemplo, para garantia do
bem-estar ambiental a todos.
Segundo Henrique17, a natureza que, num primeiro momento, apre-
sentava-se como elemento estético, atualmente forma, junto à sociedade,
um todo indissociável e difícil de ser separado.

A natureza se insere na cidade através dos jardins e praças,


lugares para reis e nobres, para a aristocracia e burguesia. Só
recentemente a população urbana se encontrará com a natureza
na cidade através dos jardins e parques públicos, mas ainda pouco
acessíveis para todos. A disposição destes jardins e parques pú-
blicos no espaço intra-urbano atende as lógicas da especulação
imobiliária e da renda. Mesmo cidades brasileiras com áreas
verdes consideráveis apresentam uma concentração destas áreas
nos bairros nobres. Na maioria dos bairros da periferia social e de
ocupação popular, altamente adensados, são inexistentes áreas
públicas, verdes e de lazer18.

Para José Afonso da Silva19 as áreas verdes atuam como exigência


higiênica, de equilíbrio do meio ambiente urbano e de locais de lazer.
Complementa, afirmando que as áreas verdes

2006
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

quando bem distribuídas no traçado urbano, oferecem colorido


e plasticidade ao meio urbano. A arborização das vias públicas,
além da atenuação de ruídos, da fixação e retenção do pó, da
reoxigenação do ar (como as áreas verdes), de oferecer frescura
e projetar sombras, embeleza-as. Como em tudo o mais que diz
com o urbanismo, também aqui não se há de cair no esteticismo
gratuito, vazio,(...) Sem suprimir o que possa ter de pitoresco, a
vegetação deve empregar-se como um critério realista e não-
-romântico. As árvores, os arbustos, os prados e as flores devem
ser empregados com um critério racional, destinado a preencher
função social assinada aos espaços verdes, dentro da qual, e sem
sair-se dela, terão cabimento os diversos critérios decorativos e
de ornamento20.

2. O CASO DE SALVADOR: PLANO


DIRETOR E PARqUES PÚBLICOS URBANOS

Pode-se dizer que para a transformação de uma realidade urbana in-


satisfatória, faz-se necessário que o Estado seja munido de instrumentos
que o permitam atuar nesta transformação, de forma eficiente. Um destes
instrumentos é o planejamento21que, em geral, é um processo técnico,
instrumentado para transformar a realidade existente, no sentido de ob-
jetivos previamente estabelecidos22.
Matos23 considera que a possibilidade de se instaurar novas práticas de
planejamento e gestão urbana no Brasil, em bases jurídicas, urbanísticas
e financeiras mais sólidas, tornou-se mais factível desde a Constituição
de 1988 e posterior aprovação do Estatuto da Cidade24, em 2001.
O Estatuto da Cidade, entre outros caracteres, requalifica, fundamenta
juridicamente, estabelece instrumentos e dá consistência técnica aos Pla-
nos Diretores urbanísticos. Entre suas premissas, o Estatuto caracteriza-se
por estabelecer a necessidade de implantação da Participação Popular en-
quanto instrumento norteador dos Planos Diretores, buscando, conforme
Santos25, a constituição de um ideal participativo e inclusivo como parte
do projeto de democratização.
Nesse sentido, admite-se que o processo do planejamento urbano
adquire sentido jurídico quando se traduz em planos urbanísticos. A
função urbanística, em sua atuação mais concreta e eficaz, é exercida

2007
num nível municipal através dos planos de desenvolvimento urbano, ou
planos diretores26.
De acordo com o artigo 18227 da Constituição Federal Brasileira de 1988,
o Plano Diretor assume a função de instrumento básico da política urbana
do Município, que tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade28 e garantir o bem-estar da comunidade local29.
A função social de uma determinada cidade compreende o ofereci-
mento efetivo e de boas condições de moradia, transporte, recreação e
condições satisfatórias de trabalho aos seus moradores, para que o bem-
-estar seja alcançado por todos30.
Nesse sentido, considerando-se as necessidades básicas do homem,
existem funções essenciais que toda cidade deve atender para bem servir
aos seus cidadãos. São elas: habitar, trabalhar recrear e circular31.
Restringindo-se à função recreativa, tem-se que, o Parque Público
Urbano, como modelo de planejamento urbano, espalhou-se por todas
as grandes metrópoles mundiais. Considera-se, no entanto, que apesar
das similaridades formais e funcionais evidentes nesses espaços de lazer,
existem diferenças fundamentais nas práticas espaciais dos seus usuários32.
No que se refere ao município de Salvador, a distribuição, mas, sobre-
tudo, a freqüentação dos Parques e Jardins Públicos, podem revelar as
nuances da organização sócio-espacial da metrópole33.
As particularidades dos espaços públicos recreativos, em Salvador, em
especial, dos Parques Públicos, residem na leitura que se pode fazer deles
em termos de visibilidade. Agentes públicos e privados vêm conduzindo,
depois dos anos de 1990, uma política urbana que consiste na encenação
desses espaços, que passam a desempenhar um papel de “vitrine”34 no con-
texto urbano. Nesses espaços, a natureza tem sido encenada e consumida.
De acordo com Serpa, os Parques Públicos mais centrais são mais
visíveis na paisagem urbana, enquanto que os mais distantes dos bairros
mais prósperos não são objeto de qualquer tipo de intervenção35. Ressalta
o autor que

enquanto alguns parques são extremamente pobres em cobertura


vegetal, não possuindo também nada de excepcional em termos

2008
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de qualidade estética, e representam um papel significativo na


cena urbana, outros, preciosos em termos ecológicos, não rece-
bem qualquer tipo de projeto ou intervenção36.

Esta situação é vivenciada em Salvador, por carência de uma gestão


municipal democrática. Petrucci37 esclarece que os objetivos fundamentais
de uma Política Urbana, consistente em ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos seus habitantes,
são atingidos quando se realiza gestão municipal democrática.
Scheinowitz38 acrescenta, no que se refere especificamente à proteção
ambiental no ambiente urbano, a necessidade de que o urbanismo seja
não linear, adequando-se às particularidades setoriais de uma metrópole,
como Salvador, através da construção de Planos Diretores referentes a sub-
-setores da cidade, como meio de valorização do meio ambiente natural.
O Plano Diretor de Salvador39, sancionado pela Prefeitura em 20 de
fevereiro de 2008, dispõe de 350 artigos, que tratam do zoneamento da
cidade e das especificações econômico-sociais de cada área.
No entanto, de acordo com Heliodório Sampaio40, a legislação urba-
nística local além de ambígua, vem sendo alterada de forma a beneficiar
as alianças entre interesses políticos e o mercado imobiliário. Acrescen-
ta, ainda, o autor, que as atividades burladoras dos Planos Diretores, a
corrupção no uso do solo, que representa desacordo com os preceitos
democráticos de gestão, têm desacreditado as normas instituídas e os
órgãos responsáveis pelo controle urbanístico das cidades.
Sob este viés, de acordo com Edésio Fernandes41, considera-se que
a ideia de “plano urbanístico” como instituto jurídico capaz de viabilizar
políticas públicas de inclusão sócio-espaciais e ambientais merece, por-
tanto, uma discussão profunda, cabendo ressaltar, neste âmbito, que os
Planos Diretores têm sido alvo de severas críticas.
Matos42 destaca que os Planos Diretores, em geral, subsidiados por
modelos importados, têm se apoiado em correntes distantes da complexa
realidade dos habitantes a quem se dirigem. Tais Planos têm sido, portanto,
incapazes de atender às peculiaridades das cidades brasileiras.

2009
Assevere-se, com base em Villaça43 que, frequentemente, estes Pla-
nos estão recheados por conteúdo extremamente técnico, com linguajar
rebuscado, inacessível à população geral, e, em alguns casos, insipiente
acerca do contexto a que pretendem se referir, por serem desvinculados
dos fatos, da real condição das cidades brasileiras em que se inserem.
Observa-se, constantemente, a utilização de modelos genéricos, super-
ficialmente adaptados às particularidades de cada cidade. Sob este viés,
convém citar a analogia ao pensamento de Galileu, acerca da astronomia
de Ptolomeu, proposta por Villaça: “o Plano Diretor está de acordo com a
filosofia, mas (...) não parece estar de acordo com os fatos”44.

Assim, para muitos, é um mito a ideia de que os Planos Diretores


sejam instrumentos fundamentais para guiar o desenvolvimento
da cidade. (...) No longo prazo, dissolvem-se os ‘pactos territoriais’
diluídos numa vontade política que se concentra nestes pontos
cruciais do planejamento urbano e do urbanismo apenas nos
períodos eleitorais45.

Alfonsin46 reitera que um instrumento urbanístico mesmo que bem


elaborado, caso apresente efetividade reduzida irá repercutir pouco na
transformação das dinâmicas urbanas do mercado imobiliário. Para a au-
tora, há carências observáveis, antes mesmo da promulgação dos Planos
Diretores. Considera que a Constituição brasileira é tímida, em relação a
questões urbanas, como por exemplo, no enfrentamento do obstáculo que
a apropriação privada do solo urbano pode representar ao planejamento
e à política urbana. A autora acrescenta, ainda, em relação ao Estatuto da
Cidade, que, embora apresente avanços, se configura em Lei carecedora
de maior divulgação, reconhecimento e efetividade, tanto por parte dos
Poderes Públicos, quanto pela Academia e pelo Judiciário.
Urge considerar-se a necessidade de que surjam novas formas de
compreensão do planejamento urbano, em particular, do seu aspecto
sócio-ambiental. Fernandes47 considera que, a partir de interpretação do
Estatuto da Cidade, que seja mais contemporânea e adaptada ao atual con-
texto das cidades e atuais demandas sócio-ambientais, é possível detectar
princípios que possam nortear a política urbana, em favor da promoção

2010
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

da função socioambiental da cidade. O autor atenta para a emergência de


uma nova ordem jurídico urbanística, onde sejam reconhecidos, entre ou-
tros direitos coletivos, no meio urbano, o direito à preservação ambiental,
considerando, ainda, a importância do urbanismo, entendendo-o como
uma função pública em sentido amplo.

3. SEGREGAÇÃO SóCIO-AMBIENTAL EM SALVADOR

Faz-se mister salientar que, no contexto urbano, a grande maioria da


população brasileira tem sido privada de boa qualidade de habitação,
trabalho, transporte e lazer. O bem-estar de todos e a sadia qualidade de
vida previstos na Constituição Federal de 1988, até então, frequentemente,
têm-se mostrado como letras estáticas sobre um papel48.
Adicione-se, as ofertas de lazer, nas cidades, relacionadas a um am-
biente natural e saudável, têm sido insuficientes, ou quase inexistentes em
algumas áreas. Os valores sociais distorcidos têm feito que os shoppings
sejam considerados espaços de lazer. No entanto, nestes locais, é bem
verdade, para se divertir, é preciso consumir. Parques, praças e áreas li-
vres, onde o desfrute de uma vida saudável não seja relacionado ao status
social, têm se tornado exíguos, nas grandes cidades brasileiras49.
Sangodeyi-Dabrowski50 afirma que alguns ideólogos brasileiros consi-
deram que o Brasil caracteriza-se como uma “democracia racial”51. Nesse
contexto, pode-se dizer que Salvador tem obedecido a esta tendência,
configurando-se como uma cidade dual. Nela, o espaço se divide em dois:
há um circuito superior, moderno, onde as classes média e superior são
predominantes, e um circuito inferior, quase que exclusivamente desti-
nado aos pobres, desprezados e abandonados pelos poderes públicos,
sofrendo ostensiva falta de serviços básicos52. Ainda que as classes sociais
estejam espacialmente próximas, é como se constituíssem dois mundos
superpostos que nunca se encontram, embora se observem mutuamente53.
Angela Gordilho54 atenta para a intensificação e o surgimento de formas
de segregação das classes sociais no espaço da cidade, configurando, na

2011
atualidade, além de uma marcante separação entre pobres e ricos, uma
forte exclusão dos direitos urbanísticos – “cidades” distintas para “cida-
dãos” diferenciados55.
Neste sentido, Salvador como outras metrópoles do Brasil e do mundo
vem conduzindo políticas de requalificação urbana, seletivas e segrega-
cionistas, que reforçam e tornam visíveis as desigualdades sócio-espaciais
sobre o tecido urbano-metropolitano56.
Depois da segunda metade dos anos de 1990, a cidade de Salvador
empreendeu uma política sistemática de criação e reabilitação de Parques
e Jardins Públicos. Entretanto esses programas não têm atendido, via de
regra, às áreas periféricas e de urbanização popular da cidade, onde o
abandono de Parques e Praças é notório57. Henrique58 afirma que “nos
bairros dos excluídos observa-se a natureza relegada ‘ao mato’ ou ‘as
enchentes’ e, em muitos lugares, a total falta de qualquer natureza”.
Serpa59 esclarece que

embora o Programa de Recuperação das Áreas Degradadas de


Salvador e dos Parques Metropolitanos seja uma tentativa de
repensar as cidade em termos urbanísticos, o que vem sendo
priorizado pela Conder é a vocação turística da capital baiana,
com a valorização de grandes parques, próximos à orla maríti-
ma (a exemplo do parque do Abaeté, Costa Azul e Jardim dos
Namorados). O programa não atende, porém, áreas periféricas
da cidade, onde o abandono das praças e parques é notório, a
exemplo do Parque de São Bartolomeu, localizado no Subúr-
bio Ferroviário de Salvador, que, apesar de constituir-se numa
importante reserva de mata atlântica e espaço sagrado para os
praticantes do candomblé, encontra-se totalmente abandonado60.

Diante de tal realidade, pequena parcela da população se beneficia


da reabilitação de parques e jardins públicos nesta cidade. Serpa61 acres-
centa que “a população de baixa renda não dispõe de carro particular
nem de transporte coletivo eficiente. Assim, os novos equipamentos –
em geral distantes dos bairros periféricos – vêm segregar ainda mais os
mais humildes”62.
O modo de produção capitalista, como o da propriedade privada tem
feito da natureza estratégia de marketing. A natureza torna-se objeto de

2012
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

consumo, mercadoria que, pela escassez, transfigura-se em mercadoria


de luxo, produzida e consumida através de uma idéia utilitarista. Nos
usos humanos da natureza, esta deixa de ser reconhecida como algo
em si mesma63.
Henrique64 afirma que a disposição dos jardins e parques públicos no
espaço intra-urbano atende as lógicas da especulação imobiliária e da
renda. Para o autor,

a natureza na cidade é uma necessidade que infelizmente foi en-


golida e propagada pelas possibilidades de consumo da moradia.
As necessidades estão sendo criadas de acordo com a renda do
comprador dos imóveis. Assim, a natureza na cidade torna-se
uma mercadoria para poucos consumidores, escolhida em função
do aumento do valor de troca dos empreendedores imobiliários.
Para os agentes do mercado imobiliário, a natureza na cidade
não é uma necessidade coletiva, e a exclusão é exercida a serviço
da acumulação65.

Serpa66 admite que

na Salvador contemporânea, como em outras metrópoles do


mundo ocidental, os espaços públicos urbanos são meios de
controle social, sobretudo das novas classes médias, destino
final das políticas públicas, que, em ultima instância, procuram
multiplicar o consumo e valorizar o solo urbano nos locais onde
são aplicadas67.

A definição da natureza na cidade como uma mercadoria destinada a


atender aos anseios das classes dominantes implica a exclusão das classes
economicamente inferiores do acesso à vida com a natureza68. Tal situa-
ção caracteriza a segregação social e ambiental urbana, tão presente no
contexto urbano do Município de Salvador.

Angela Gordilho considera que

o exame dessa realidade, vista pelo ângulo da distribuição de


grandes equipamentos urbanos concentradores de trabalho (...),
bem como das facilidades de acesso viário, infra-estrutura e dis-
tribuição de áreas verdes e de lazer, enfim, outros indicadores
de conforto urbano, demonstra que a exclusão urbanística se
manifesta de forma muito mais profunda. A exclusão da maioria

2013
da população dessas vantagens coletivas dificulta a possibilidade
de sua inserção na dinâmica urbana mais ampla, ou seja, o habitar
na cidade beneficiada69.

E acrescenta que

a cidade cresceu, neste século, para atingir um ambiente constru-


ído fisicamente complexo, caótico, maltratado, de desrespeito aos
recursos naturais e, na questão socioespacial, marcado por uma
intensa segregação de renda, conjugada a uma ampla exclusão
dos benefícios urbanísticos – uma cidade sem cidadania. Enfim,
um quadro de difícil intervenção para sua melhoria, que desafia
novas formas de pensar e de intervir na cidade70.

Diante deste quadro de segregação sócio-ambiental estabelecida em


Salvador, Henrique71 pondera que se faz necessário adotar formas ma-
teriais de mudar o quadro classista, excludente e segregador em que se
encontra a natureza na cidade.
Para tanto, elabora algumas proposições que considera importantes
para se alcançar uma mudança na realidade urbana contemporânea. Entre
as quais, o entendimento de que a natureza na cidade seja para e de todos
independentemente do poder aquisitivo e a instauração da apropriação
da natureza na cidade sob a égide do conceito de valor de uso e não de
valor de troca72.
Sant’Anna73 defende que urgem providencias em direção à transforma-
ção. Para tanto, é necessário conscientizar a população e seus dirigentes,
além de cobrar a atuação do Poder Público de forma holística.
Deve-se pensar em uma cidade para todos, com planejamento urbano
e voltada para o bem-estar das pessoas, mesmo porque, o mundo moder-
no em que se vive, após a expansão do capitalismo, é um mundo onde a
cidade se acrescenta, toma dimensões novas, torna-se mais complexa,
centralizando a vida do conjunto, ou seja, da humanidade74.
A população majoritária no município de Salvador tem sido representa-
da pela classe economicamente instável e desfavorecida. Maricato75 afirma
que o território da pobreza urbana não se refere a uma minoria excluída
ou marginal, mas em algumas cidades (como, por exemplo, Salvador)

2014
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

compreende a maioria da população.


Esta parcela da sociedade urbana também merece ter seus direitos
respeitados e garantidos, dentre os quais, o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, à sadia qualidade de vida, à dignidade da
pessoa humana. Souza considera que

em uma só palavra, pode-se dizer que a qualidade de vida


encontra-se associada ao bem-estar das pessoas e à dignidade
humana (...) a vida digna com qualidade representa, certamente, o
fim maior a ser colimado pelo direito em benefício do ser humano.
(...) Garantir a qualidade de vida é preservar a dignidade humana.
O bem maior protegido pelo direito é a vida humana. Mas o ser
humano, ser racional, é sujeito consciente das situações que
vivencia (...) Precisa, portanto, de algo mais do que sobreviver:
precisa viver com dignidade76.

Os Parques Públicos Urbanos existem, ou assim deveria ser, para


preencher, de certa forma, esta lacuna. Harvey ressalta que “o apego a
algum sentido de relação não alienada com a natureza faz a vida supor-
tável para o trabalhador”77. Torna-se indispensável, portanto, questionar,
na prática, se este objetivo está sendo alcançado, ou melhor, se tem se
buscado alcançá-lo.
Existe uma realidade urbanística excludente, no município de Salvador,
que privilegia uma minoria, responsável por ensejar segregação sócio-
-ambiental? Diante do exposto, sim, existe. Assim sendo, os cidadãos
não deveriam se manifestar para impedir que esta situação se perdure?
O meio acadêmico-científico não seria uma forma adequada de investigar
e discutir aprofundadamente tal realidade?
As discussões referentes à garantia de um meio ambiente ecologica-
mente equilibrado para todos, à sadia qualidade de vida, à dignidade da
pessoa humana e à busca por uma sociedade mais igualitária, pelo seu
compromisso com o progresso da cidadania, com o desenvolvimento
urbano justo e adequado não podem estar alheias a tais debates.

2015
CONCLUSÕES

Na atual conjuntura urbana, presenciam-se diversidades sociais múl-


tiplas. Desigualdades social, cultural, étnica, associadas às inadequadas
políticas públicas, bem como às dificuldades de efetivação de diversos
direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, são alguns exemplos.
Nesse contexto, tornar o direito à natureza nas cidades, um direito de
todos, tem se constituído em desafio que se propõe aos diversos setores
de estudo, sejam eles jurídicos, técnicos, sociais, urbanísticos. A preocu-
pação em disponibilizar o acesso a um meio ambiente ecologicamente
equilibrado tem, cada vez mais, se tornado uma constante nos estudos
referentes ao urbanismo e ao direito à sadia qualidade de vida, nas cidades.
Esta temática é presenciada no Estatuto das Cidades, e, especifica-
mente, no que se refere ao município de Salvador, no Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano do Município.
Entretanto, embora reconheçam-se os Planos Urbanísticos como
institutos jurídicos capazes de viabilizar políticas públicas de inclusão
sócio-espacial e ambiental, nas cidades, observa-se que a aplicabilidade
da previsão legal, nas Políticas Públicas Urbanas, tem sido deficiente, razão
porque os Planos Diretores têm sido alvo de severas críticas, merecendo,
portanto discussões profundas, no sentido de promover melhor adequação
da norma ao contexto particular de cada cidade.
Verifica-se que as Políticas Públicas urbanísticas relativas ao acesso
dos cidadãos à natureza, no município de Salvador, têm privilegiado o
mercado imobiliário. O modo de produção capitalista, preponderante no
cenário urbano nacional, tem ensejado o estabelecimento de diversos
modos de segregação nas cidades, em especial, nas metrópoles regionais.
Adicione-se que, diante dos quadros de degradação ambiental, em prol
do crescimento urbano, tem existido tendência a lidar-se com a natureza
como mercadoria rara, cara e, portanto, acessível à parcela da população
detentora de alto poder aquisitivo.
Em Salvador, observa-se que os Parques Públicos não estão distribu-

2016
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

ídos de forma justa e proporcional, no tecido urbano, considerando-se


que há escassez de Parques Públicos nos bairros periféricos. Sendo assim,
há tendência à instalação de Parques Públicos em setores considerados
nobres da cidade, o que proporciona privilégios em termos de bem-estar
ambiental à pequena parcela da população residente em áreas próximas,
em detrimento de imensa maioria de pessoas que habitam bairros lon-
gínquos, desprovidas de recursos financeiros que as possibilitem usufruir
da natureza distante.
Evidencia-se, adicionalmente, o descaso da Administração Pública
local, em cuidar, sanear, quando existentes, os Parques Públicos localiza-
dos em setores caracterizados pelo predomínio de moradores com baixo
poder aquisitivo. Tal situação pode ser caracterizada como segregação
social e ambiental urbana.
O município de Salvador evidencia, portanto, segregação sócio-am-
biental, ferindo o Dispositivo Constitucional que garante a todos o direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

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NOTAS

1 Especialista em Direito Ambiental (FFD/UFBA); Graduada em Direito (UEPB); Mestranda em Arquitetura e


Urbanismo, pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia
(PPGAU/FAUFBA); rafinhabmcampos@yahoo.com.br
2 Mestre em Direito Público (PPGD/UFBA); Especialista em Direito do Estado (FFD/UFBA); Graduada em
Direito (UEPB); Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo, pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (PPGAU/FAUFBA); julipbp@yahoo.com.br
3 Caput do artigo 225, Capítulo VI, Do Meio Ambiente, na Constituição Federal Brasileira de 1988: “Art. 225.
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo
para as presentes e futuras gerações.”
4 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Disponível em: <http://
www.presidenciadarepublica.gov.br/>, 1988. Acesso em 29.09.12.
5 MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 17. Ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 59.
6 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 4. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 158-159.
7 LOBODA, Carlos Roberto; ANGELIS, Bruno Luiz Domingos De. Áreas verdes públicas urbanas: conceito, usos
e funções. Ambiência. Guarapuava: Unicentro, n. 1, p. 125-139, 2005.
8 MORO, Dalton Áureo. As áreas verdes e seu papel na ecologia urbana e no clima urbano. Revista UNIMAR.
Bauru: Unimar, n. 2, p. 15-20, 1976, p. 15.
9 MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro..., cit., p. 61.
10 SANT’ANNA, Mariana Senna. Planejamento Urbano e Qualidade de Vida – da Constituição Federal ao
Plano Diretor. in: Adilson Abreu Dallari; Daniela Campos Lobório Di Sarno (coord.). Direito Urbanístico e
Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, p. 117 – 136, 2011, p. 123.
11 MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro..., cit., p. 61.
12 Lei nº 10.257, de 10 de junho de 2001.
13 SILVA, José Afonso da.Direito Urbanístico Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 67.
14 SANT’ANNA, Mariana Senna. Planejamento Urbano e Qualidade de Vida – da Constituição Federal ..., cit.
15 SILVA, José Afonso da.Direito Urbanístico Brasileiro..., cit.
16 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade. Salvador: Edufba, 2009.
17 IDEM, p. 118.
18 IDEM, IBIDEM.
19 SILVA, José Afonso da.Direito Urbanístico Brasileiro..., cit.
20 IDEM, p. 306.
21 SANT’ANNA, Mariana Senna. Planejamento Urbano e Qualidade de Vida – da Constituição Federal..., cit.
22 SILVA, José Afonso da.Direito Urbanístico Brasileiro..., cit.
23 MATOS, Ralfo Edmundo da Silva. Plano Diretor, gestão urbana e participação: algumas reflexões. In: COSTA,
Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes de (orgs.). Planejamento urbano no Brasil trajetória, avanços
e perspectivas. Belo Horizonte: C/Arte, p. 156-168, 2008.
24 BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de jul. 2001. Dispõe sobre o Estatuto das Cidades e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.presidenciadarepublica.gov.br/>. Acesso em 29.09.11.
25 SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
26 IDEM.
27 Artigo 182, da Constituição Federal de 1988, Capítulo II, Da Política Urbana: “Art. 182. A política de desen-
volvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem
por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus
habitantes.§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte
mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.”

2021
28 ALFONSIN, Betânia de Moraes. A Política Urbana em disputa: desafios para a efetividade de novos
instrumentos em uma perspectiva analítica de Direito Urbanístico Comparado (Brasil, Colômbia e Espanaha).
Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional). Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano
e Regional, Unversidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
29 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro..., cit.
30 SANT’ANNA, Mariana Senna. Planejamento Urbano e Qualidade de Vida – da Constituição Federal ..., cit.
31 IDEM.
32 SERPA, Angelo. O espaço público na cidade contemporânea. SaoPaulo: Contexto, 2011.
33 IDEM.
34 IDEM, p. 90.
35 IDEM.
36 IDEM, p. 92.
37 PETRUCCI, Jivago. Gestão Democrática da Cidade – delineamento constitucional e legal. in: Adilson Abreu
Dallari; Daniela Campos Lobório Di Sarno (coord.). Direito Urbanístico e Ambiental. Belo Horizonte: Fórum,
p. 151 - 175, 2011.
38 SCHEINOWITZ, A. S. O macroplanejamento da aglomeração de Salvador. Salvador: Secretaria da
Cultura e do Turismo – EGBA, 1998.
39 Lei Municipal nº 7.400/08.
40 SAMPAIO, Antônio Heliodório Lima. 10 necessárias falas: cidade, arquitetura e urbanismo. Salvador:
Edufba, 2010.
41 FERNANDES, Edésio. Reforma urbana e reforma jurídica no Brasil: duas questões para reflexão. in: COSTA,
Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes de (orgs.). Planejamento urbano no Brasil trajetória, avanços
e perspectivas. Belo Horizonte: C/Arte, p. 123-135, 2008.
42 MATOS, Ralfo Edmundo da Silva. Plano Diretor, gestão urbana e participação: algumas reflexões..., cit.
43 VILLAÇA, Flávio. Reflexões sobre as cidades brasileiras. São Paulo: Studio Nobel, 2012.
44 IDEM, p. 209.
45 SAMPAIO, Antônio Heliodório Lima. 10 necessárias falas..., cit., p. 114.
46 ALFONSIN, Betânia de Moraes. A Política Urbana em disputa..., cit.
47 FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betâ-
nia de Moraes (org.). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
48 SANT’ANNA, Mariana Senna. Planejamento Urbano e Qualidade de Vida – da Constituição Federal ..., cit.
49 IDEM, p. 128.
50 SANGODEYI-DABROWSKI, Delphine. As raízes ideológicas da segregação no Brasil: o exemplo de Salva-
dor. in: Milton Esteves Junior; Urpi Montoya Uriarte (orgs.). Panoramas Urbanos: reflexões sobres a cidade.
Salvador: Edufba, p. 165 – 184, 2003.
51IDEM, p. 165-166.
52 SANTOS, Milton. O Espaço Dividido:os dois circuitos da economia urbana nos países sub-desenvolvidos.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
53 SANGODEYI-DABROWSKI, Delphine. As raízes ideológicas da segregação no Brasil..., cit.
54 GORDILHO-SOUZA, Angela. Limites do habitar: segregação e exclusão na configuração urbana contem-
porânea de Salvador e perspectivas no final do século xx. 2. ed. Salvador: Edufba, 2008.
55 IDEM, p. 264.
56SERPA, Angelo. Os espaços públicos da Salvador contemporânea. in: Inaiá Maria Moreira de Carvalho; Gilberto
Corso Pereira (orgs.). Como anda Salvador e sua região metropolitana. Salvador: Edufba, p. 173 – 188, 2008.
57 IDEM.
58 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit., p. 109.
59 SERPA, Angelo. Apropriação social versus requalificação dos parques e praças na capital baiana. in: Milton
Esteves Junior; Urpi Montoya Uriarte (orgs.). Panoramas Urbanos: reflexões sobres a cidade. Salvador:
Edufba, p. 121 - 139, 2003.
60 IDEM, P. 125.
61 SERPA, Angelo. O espaço público na cidade contemporânea..., cit.
62 IDEM, p. 51.
63 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit.
64 IDEM.
65 IDEM, p. 133.
66 SERPA, Angelo. Os espaços públicos da Salvador contemporânea..., cit.
67 IDEM, p. 183
68 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit.
69GORDILHO-SOUZA, Angela. Limites do habitar..., cit., p. 263-264.
70 IDEM, p. 265.

2022
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

71 HENRIQUE, Wendel. O Direito à Natureza na Cidade..., cit.


72 IDEM, p. 170-171.
73 SANT’ANNA, Mariana Senna. Planejamento Urbano e Qualidade de Vida – da Constituição Federal ..., cit.
74 SOUZA, Demétrius Coelho. O meio ambiente das cidades. São Paulo: Atlas, 2010.
75 MARICATO. Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 103.
76 SOUZA, Demétrius Coelho. O meio ambiente das cidades..., cit., p. 50-51.
77 HARVEY, David. O trabalho, o capital e o conflito de classes em torno do ambiente construído nas socie-
dades capitalistas avançadas, Espaço & Debates: Revista de Estudos Regionais e Urbanos. São Paulo,
n. 6, p. 6-35, 1982, p. 28.

2023
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Direito do saneamento ambiental


e controle social: experiência da
Conferencia das Cidades

Maurício L. Dias
Jessyca I. N. dos Santos
Christiane H. G. Costa

INTRODUÇÃO

As condições de saneamento ambiental na maioria dos municípios


dos brasileiros são muito precárias em virtude da deficiência ou da au-
sência de serviços públicos de saneamento ambiental, problema agrava-
do, em muitos casos, pela falta de planejamento no âmbito municipal, o
que tem contribuído para o desenvolvimento de ações fragmentadas ou
descontínuas, que por sua vez, conduzem ao desperdício de recursos e
a baixa eficiência.
A cidade, como meio ambiente, está sujeita ao princípio ambiental
constitucional do desenvolvimento sustentável, apontada no art. 225,
da Constituição do Brasil que diz “Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações” (BRASIL, 1988).
Neste sentido de sustentabilidade o Estatuto da Cidade em seu art. 2°
destaca os objetivos das políticas urbanas. Conforme estabelece o art. 2º,
I da Lei 10.257/2001 – Estatuto da Cidade:

Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno de-
senvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do
direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura
urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao
lazer, para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 2001).

2025
O saneamento ambiental como fator condicionante do direito a cidades
sustentáveis, junto à moradia e outros serviços públicos, perdia destaque
nos lutas sociais, mesmo diante das estatísticas negativas sobre o mesmo
estampada nos meios de comunicação. Mas com a necessidade de uma
reforma urbana efetiva se fortalece nos discursos dos movimentos sociais.
Em tempos de realização das conferências das cidades nas três esferas
de poder na busca da apresentação das Prioridades do Ministério das Cida-
des para a Política de Desenvolvimento Urbano no período 2014-2016, que
serão aprovadas na 5ª Conferência Nacional das Cidades, com objetivo de
avaliar ações, programas e projetos eleitos como prioridades pelo Governo
Federal no âmbito do Ministério das Cidades atendem as necessidades das
políticas locais de desenvolvimento urbano. Discute-se o papel social na
política de saneamento, por meio do controle e mobilização social. Assim
como as dificuldades encontradas no avanço do planejamento municipal.

1. CONTROLE SOCIAL NO SANEAMENTO

O controle social na administração pública está transcrito na Cons-


tituição Federal (Art.1º Parágrafo Único), onde expressa claramente que
“todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição”.
Segundo Brasil (2009), o controle social sobre as ações de saneamento
contribui para a universalização e melhoria dos serviços prestados. Para
isso, é necessária a participação ativa da comunidade, pois os serviços
de saneamento proporcionam a preservação do meio ambiente, como
também uma melhoria na qualidade de vida da população.
Para que este processo de controle social seja eficaz é necessária à
participação popular, na tomada de parte das decisões e no usufruto dos
bens e resultados e deve ser entendido como algo permanente. As ações
de mobilização social devem, então, ser valorizadas e incentivadas. A
experiência de participação popular estimulando a cogestão e parceria já
é utilizada na saúde, já no saneamento este mecanismo é algo novo. São

2026
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

exemplos de espaço institucionais para participação na definição de polí-


ticas públicas os conselhos, instituídos por lei, como o conselho de saúde.
O planejamento das ações em saneamento é condicionante para ob-
tenção de recursos e é o item do marco regulatório do saneamento básico
onde a participação comunitária deve ser mais ativa, por meio de consul-
tas e audiências públicas, tornando os planos democráticos e dialógicos.
A transparência das ações é fundamental para obtermos controle
social, já que permite a sociedade a ciência dos processos desenvolvidos
e instrumentos para avaliá-los e, dessa forma, intervir questionar o que
achar pertinente, reivindicar seus direitos e contribuir para a qualidade
dos serviços prestados (MARANHÃO E SORRENTINO, 2010). E ainda
contribui para desprivatizar a gestão pública marcada por clientelismo,
corrupção e privilégios.
Dessa forma, o saneamento ambiental municipal, que até então se
atenta apenas à prestação de serviços, necessita de uma gestão eficiente
para que os usuários possam exercer seu papel de cidadãos, sendo im-
portante a verificação não apenas dos direitos, mas também, dos deveres
dos mesmos. De forma que o a educação ambiental seja implantada antes,
durante e após os programas e projetos de saneamento.
Para Jacobi (2003, p. 193), a falta de informação, de práticas sociais e
de consciência ambiental são elementos chaves do não engajamento da
sociedade no processo de gestão ambiental: “A postura de dependência e de
desresponsabilização da população frente às ações governamentais decorre
principalmente pela desinformação, da falta de consciência ambiental e de um
déficit de práticas comunitárias baseadas na participação e no envolvimento
dos cidadãos que possam proporcionar uma nova cultura de direitos baseadas
na motivação e na co-participação da gestão ambiental.”

2. PLANEJAMENTO URBANO: PLANOS MUNICIPAIS

Plano Municipal de Saneamento Básico: A Lei 11.445/2007 esta-


belece a elaboração do Plano Municipal de Saneamento Básico como

2027
instrumento de planejamento para a prestação dos serviços públicos de
Saneamento Básico, que deverá atender aos princípios fundamentais
estabelecidos na Lei.
A participação da sociedade em todos os processos de elaboração e im-
plementação do PMSB, com o estabelecimento de ferramentas de controle
social definido no art 3º (inciso IV) como “um conjunto de mecanismos e
procedimentos que garantem à sociedade informações, representações
técnicas e participações nos processos de formulação de políticas, de
planejamento e de avaliação relacionados aos serviços públicos de sane-
amento básico,” objetiva gerar um plano coerente com a realidade local e
capaz de promover a melhoria da qualidade de vida das populações locais.
A participação da sociedade nesse processo é de extrema importân-
cia, já que o PMSB deve ser elaborado com horizonte de 20 (vinte) anos,
avaliado anualmente e revisado a cada 4 (quatro) anos. Este contemplará
os objetivos do município atendendo às necessidades das atuais e futuras
gerações no que diz respeito aos serviços, à infraestrutura e às instalações
operacionais de Saneamento Básico.
São estes orientadores do planejamento, da regulação, da fiscalização
e do controle social para a implantação, ampliação e melhoria dos quatro
serviços de saneamento básico na cidade: água, esgotamento sanitário,
resíduos sólidos e drenagem. Dessa forma, o Poder Público passa a ter o
dever de prestar serviços que sejam necessariamente planejados, regu-
lados, fiscalizados e submetidos ao controle social.
O Plano será revisado periodicamente a cada quatro anos, de forma
articulada com as demais políticas municipais (saúde, meio ambiente,
desenvolvimento urbano, dentre outras). Para sua elaboração, deve-se
considerar além do perfil da população, indicadores socioambientais,
incluindo nível de renda e salubridade ambiental. As questões relativas
ao saneamento básico envolvem condicionantes históricos, políticos e
econômicos que não podem ser negligenciados.
Importante ressaltar que para os interessados em ter acesso aos re-
cursos da União, os planos serão fatores condicionantes para tal e que os
municípios têm até 2014 para elaborar seus PMSBs7.

2028
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

3. MUNICIPIO DE BELéM: 5° CONFERÊNCIA DAS CIDADES

A Conferência Municipal da Cidade de Belém é o fórum para debater


e apresentar propostas para o desenvolvimento urbano sustentável, o
processo de conferência das cidades é a manifestação democrática da
cidade e mobilização social, este ano a Conferência Nacional das Cidades
tem como lema: Quem muda a cidade somos nós: reforma urbana já! Onde
o debate sobre a construção do sistema nacional de desenvolvimento
urbano assume uma importância especial, bem como a integração das
politicas e o ordenamento territorial.
A construção da política de desenvolvimento urbano poderia ser
facilmente realizada sem a participação popular, mas a utilização deste
mecanismo promete a elaboração de uma política urbana sustentável,
o que deve atender aos três preceitos do tripé (economicamente viável,
ambientalmente correto e socialmente justo), e ainda duradoura. Percebe-
-se nestas conferencias a grande mobilização social e incessante luta dos
movimentos sociais. Como pode ser observada na figura abaixo:

Figura 1: Característica dos participantes da conferência das cidades do


Município de Belém.

Fonte: Organizado pelos autores. Relatório Final.

2029
Art 26, § 2º: A partir do exercício financeiro de 2014, a existência de
7

plano de saneamento básico, elaborado pelo titular dos serviços, será


condição para o acesso a recursos orçamentários da União ou a recursos
de financiamentos geridos ou administrados por órgão ou entidade da
administração pública federal, quando destinados a serviços de sanea-
mento básico.
Na realização deste fórum objetiva-se construir uma política de de-
senvolvimento urbano sustentável e inclusiva, adequada à realidade da
sociedade. Sendo assim as questões levantadas neste devem ser observa-
das na elaboração dos instrumentos de planejamento e desenvolvimento
urbano, são estes planos diretores, plano de saneamento e plano de
resíduos sólidos nos moldes das legislações cabíveis.
Segundo Moraes (2005), as tecnologias adotadas no saneamento muitas
vezes não são compatíveis com as condições socioeconômicas e culturais
das populações-alvo das intervenções, e os processos de decisão quanto
às políticas, aos programas e aos projetos têm se dado na maior parte
dos países, segundo uma lógica tecno-burocrática, sem a participação das
populações e da sociedade civil organizada.
Belém foi uma das primeiras capitais brasileiras a possuir sistema
de esgoto, porém este não acompanhou o crescimento populacional
encontrando-se defasado atualmente, com um reduzido percentual de
domicílios conectados na rede coletora de esgoto constatado pelo IBGE.
Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, em 2010,
nos serviços de esgotos a região norte apresenta um déficit relativo 3,9
vezes maior que a proporção dos investimentos realizados. Vive também,
a tensão de um futuro problema de abastecimento, mesmo diante da gran-
de disponibilidade hídrica da Região. Possui ainda uma topografia plana
ligeiramente abaixo do nível do mar, o que contribui para o que hoje são
um problema de público de saúde em Belém, os alagamentos.
Diante disto, percebe-se a necessidade do planejamento e uma gestão
orientada por um plano municipal. E ainda a reelaboração dos instrumen-
tos de políticas públicas, como o fortalecimento dos planos diretores, que

2030
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

em muitos se encontram defasados e/ou são muito gerais, com diretrizes


fracas e pouca objetividade na definição de metas. Dessa forma, contribuir
para a minimização dos problemas urbanos e favorecer a estruturação de
um ambiente mais sustentável. E ainda proporcionar uma vida digna nas
cidades, com um meio ambiente ecologicamente equilibrado,
A estruturação de um plano diretor atenderá melhor aos seus objeti-
vos quanto mais abertos à produção coletiva, isto é quanto mais houver
participação efetiva dos cidadãos. Este que é um instrumento potencial
em prol da construção de cidades sustentáveis ambiental, territorial, eco-
nômico, cultural e socialmente.
Paralelamente a isto, não pode esquecer-se dos deveres da população
como cidadão. Para garantia de um ambiente ecologicamente equilibrado
é importante à consciência ambiental da sociedade em preservar o meio
em que vivem. Para tanto, se faz necessária à promoção da educação
ambiental da população, para que estes possam de forma consciente
participar da construção das cidades sustentáveis além de reivindicar o
direito das mesmas.
Assim, a educação ambiental em todas as etapas do empreendimento,
favorece aos atores sociais o entendimento de que eles são igualmente
responsáveis e vítimas desse contexto. E na mobilização social engajada
e com consciência ambiental, deriva as discussões sobre degradação
ambiental e sua consequente qualidade de vida, de modo que a res-
ponsabilidade na fiscalização e no controle dos agentes de degradação
ambiental revigora-se.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sendo assim, para fortalecimento de políticas públicas de saneamento


e desenvolvimento urbano sustentável os municípios devem recorrer ao
planejamento do processo de elaboração de uma Política Municipal de
Saneamento Ambiental, de forma participativa e democrática, que con-
sidere os princípios de universalidade, equidade, integridade e controle

2031
social, conforme estabelecido na Lei 11.445 de 2007. De forma divergente,
o poder público, principalmente na esfera municipal, quase uma década
após a aprovação da Política Nacional de saneamento básico, limita-se a
prestação de serviços, quando a definição do plano com metas, progra-
mas e projetos é um importante passo a ser dado. Diante de tudo isso,
a realização destes fóruns deve deixar de ser meramente protocolo e a
discussão transformar-se em práticas e políticas efetivas, eficientes e in-
clusivas para o alcance da formação das desejadas cidades sustentáveis,
não só no que diz respeito ao saneamento, como também na moradia,
mobilidade urbana.

REFERÊNCIAS

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Meio Ambiente, seus Fins e Mecanismos de Formulação e Aplicação, e dá outras
Providências.
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providências.
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Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recurso s Hídricos, regula-
menta o inciso xIx do art. 21 da Constituição Federal e altera o art. 1.º da Lei 8.001,
de 13 de março de 1990, que modificou a Lei 7.990, de 28 de dezembro de 1989.
______. Decreto nº 7.217, de 21 de junho de 2010 - Regulamenta a Lei no 11.445, de 5
de janeiro de 2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico,
e dá outras providências.
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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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2033
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2034
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Familia paranaense: resgate


social pleno de familias em
assentamentos precários no
Estado do Paraná
Jurandir Guatassara Boeira1
Isabella Soares Nacimento2
Mariana Bettega Braunert3
Guilherme Machado Willemann4

INTRODUÇÃO

Com a Emenda Constitucional nº 26, de 2000, o direito à moradia veio


a integrar o rol de direitos sociais prescritos pelo artigo 6º da Constituição
Federal. Moradia digna é entendida como aquela localizada em terra urba-
nizada, com acesso, por parte da população, a todos os serviços públicos
essenciais. Ela é, ainda, um direito humano, que deve ser reconhecido,
protegido e efetivado por meio de políticas públicas específicas, como prevê
o Tratado dos Direitos Econômicos e Sociais da Organização das Nações
Unidas (ONU), ratificado pelo Brasil em 1992. Já em 2001 foi aprovado
o Estatuto das Cidades, principal legislação que regulamenta o espaço
urbano, e em 2004, por fim, o Conselho das Cidades aprovou a Política
Nacional de Habitação (PNH). Tem-se, como princípio dessa política, que a
moradia digna constitui-se como um vetor de inclusão social, garantindo
padrão mínimo de habitabilidade, infraestrutura, saneamento, mobilidade,
transporte coletivo e acesso a equipamentos e serviços sociais. O direito à
moradia, portanto, vai muito além do direito a uma casa para morar, mas
se concretiza quando o cidadão tem direito aos bens e serviços públicos
e à cidade como um todo.

2035
De posse dessas considerações, o presente artigo expõe e analisa a
experiência de atuação da Companhia de Habitação do Paraná - COHA-
PAR no Programa Família Paranaense, ação que tem como eixo norteador
conferir moradia digna a mais de 1000 famílias no Estado do Paraná.
Pretende-se fazer uma discussão sobre a dimensão socioambiental da
urbanização dos assentamentos de baixa renda e a serem projetados e
executados pela Companhia em 10 Municípios prioritários do Programa.
O artigo está estruturado da seguinte forma: faremos inicalmente
uma exposição sobre o Programa Familia Paranaense e a intervenção da
COHAPAR no componenete Melhoramento de Bairros, explicitando os
Municípios, assentamentos e número de famílias que serão beneficiadas
pelas ações propostas. Em seguida, detalharemos o passo-a-passo da
intervenção em questão, ou seja, os aspectos metodológicos e opera-
cionais da atuação prevista. Ressaltamos, na sequencia, a importância
das dimensões sociais e ambientais nesse tipo de Projeto. Nossas consi-
derações finais apontam os principais objetivos dessa intervenção e os
desafios a ser superados.

2. ATUAÇÃO DA COhAPAR NO PROGRAMA


FAMILIA PARANAENSE: PRINCÍPIOS E DEFINIÇÕES

A fim de atender de forma integral as famílias socialmente vulneráveis


do Estado do Paraná, o Programa Família Paranaense, coordenado pela
Secretaria da Familia e Desenvolvimento Social do Estado do Paraná -
SEDS, concatena ações de diversas políticas públicas e os respectivos
órgãos executores estaduais e municipais, na perspectiva do aumento
da qualidade de vida a partir da autonomia e do acesso aos direitos e
serviços públicos. Nesse sentido, o Programa prevê a atuação de diver-
sas Secretarias de Estado de maneira intersetorial, desde a gestão até o
efetivo atendimento das familias. Para tanto, o Programa está estruturado
em diversos Comitês (Regional, Municipal e Local), dos quais participam
membros das várias Secretarias envolvidas no Programa, garantindo-se
o desenvolvimento integrado de ações.

2036
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O Programa prevê ações financiadas pelo Banco Interamericano do


Desenvolvimento - BID, que estão estruturadas em três componentes: I.
Promoção da autonomia das famílias em situação de vulnerabilidade; II.
Melhoramento de Bairros; e III. Fortalecimento Institucional.
A Companhia de Habitação do Paraná - COHAPAR compõe o grupo
de instituições envolvidas com a operacionalização do Programa, empe-
nhando seus esforços no atendimento às famílias a partir do componente
II. Melhoramento de Bairros. O Programa conta, assim, com participação
ativa da Companhia, cujas ações objetivam conferir moradia digna às
famílias residentes em situação de risco e precariedade habitacional.
Atualmente, a COHAPAR executa vários programas habitacionais dis-
ponibilizados pelo Ministério das Cidades e pela Caixa Econômica Federal,
onde as familias do Programa inseridas no Sistema também serão priori-
zadas. A Companhia apresenta uma proposta de intervenção diferenciada
em 11 assentamentos precários localizados em 10 Municípios do Estado
do Paraná, que serão contemplados com ações de urbanização e regula-
rização fundiária. Essas ações atingirão mais de 1000 famílias e incluem
não só a construção de novas moradias e melhoria das já existentes,
mas também a execução de infraestrutura básica (sistema de drenagem,
pavimentação, rede de água, esgoto e iluminação pública) e recuperação
de áreas degradadas.
Sempre que necessário, as familias residentes em áreas de risco serão
relocadas. Na definição do Plano Estadual de Habitação de Interesse Social
do Paraná (PEHIS), o termo relocação abrange tanto as ações de reassen-
tamento quanto de remanejamento da população. As famílias atendidas
pelo Programa Família Paranaense serão contempladas com ambas as
medidas, sendo que o reassentamento compreende a remoção da popu-
lação para outro terreno, fora do perímetro da área de intervenção (com
a produção de novas moradias destinadas aos moradores removidos dos
assentamentos precários) e o remanejamento implica na construção de
novas unidades habitacionais ou reconstrução da unidade habitacional
no mesmo perímetro do assentamento que está sendo urbanizado. Nesse

2037
caso, a população é mantida no local após a substituição das moradias e
execução da infraestrutura na área. Para tal, muitas vezes é necessária a
remoção temporária das famílias para a realização das obras.
Em relação às áreas de destino das famílias a serem reassentadas, é
de responsabilidade dos Municípios disponibilizá-las, e, se necessário,
adquiri-las (desapropriação e indenização) e realizar a devida transferên-
cia para COHAPAR. Ressalta-se que a aquisição das áreas por parte das
Prefeituras e a formalização da concessão à COHAPAR deverão ocorrer
anteriormente ao desenvolvimento dos Projetos Executivos e ao proces-
so de contratação de empresas para execução das obras, com vistas a
garantir segurança jurídica para realização das atividades. A COHAPAR
já está promovendo articulação com as Prefeituras Municipais para que
estas medidas ocorram em tempo.
Essas ações são definidas a partir de um diagnóstico de cada assen-
tamento, o qual está sendo desenvolvido em parceira entre a COHAPAR,
Prefeituras Municipais, Comitês Municipais e Locais do Programa Família
Paranaense e equipes técnicas especializadas.
O público alvo selecionado são mais de 1000 familias residentes
nos 11 assentamentos precários definidos como áreas de favelas. Esse
conceito compreende as áreas de assentamentos precários com aden-
samento populacional, traçado viário desordenado, com predominância
de vielas de pedestres e/ou escadarias, geralmente carente de infraes-
trutura urbana e serviços públicos, existência de risco ambiental e que
até o presente momento não sofreram nenhuma intervenção a partir de
políticas habitacionais.
Na definição do PEHIS5, Área de Favela é entendida como:

Um conjunto de habitações (casas, barracos) ocupando ou tendo


ocupado até período recente, terreno de propriedade alheia (pú-
blica ou particular), dispostas, em geral, de forma desordenada e
densa, em sua maioria carentes de serviços públicos essenciais.
É o mesmo conceito de aglomerados subnormais do IBGE6

Além da precariedade das unidades habitacionais, os espaços classi-


ficados como favelas também apresentam, comumente, deficiência na
questão da posse e titulação dos domicílios, sendo a regularização mais

2038
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

um desafio a ser enfrentado para a promoção da dignidade e cidadania


da população a ser atendida.
Foram considerados como fatores de risco e insalubridade: a localiza-
ção dos domicílios em áreas sujeitas à inundação, deslizamentos, acidentes
de tráfego (por se situarem à margem de rodovias e ferrovias), riscos de
eletrocussão (por proximidade a redes elétricas de alta tensão) e riscos
químicos (presença de estações de esgoto, aterros sanitários e afins).
Quanto à localização dos assentamentos, foram observados os se-
guintes itens: assentamentos sobre Áreas de Preservação Permanente
(APP’s), sobre e/ou margeando leito de curso d´água, sobre/próximo as
faixas ferroviárias e/ou ferroviárias, sobre encostas íngremes, em áreas
de cavas e/ou pântanos, embaixo de viaduto, embaixo de rede de alta
tensão, sobre/próximo a lixões/aterros.
Para cada assentamento específico, as ações urbanísticas contem-
plarão prioritariamente a preocupação com a manutenção dos vínculos
familiares e sociais dos beneficiários, privilegiando a proximidade entre
parentes, vizinhos e pessoas que desenvolvem atividades comunitárias
em conjunto, além da previsão de espaços de convivência, lazer e pú-
blicos que incentivem a prática de atividades econômicas com vistas ao
desenvolvimento local. A tabela abaixo elenca os Municípios que serão
contemplados pelo Programa, bem como os assentamentos correspon-
dentes e o número de famílias beneficiadas:

2039
Indicamos ainda, no mapa abaixo, a localização desses Municípios no
Estado do Paraná e elencamos, na sequencia, fotos dos assentamentos
em questão e das poligonais que foram definidas:

2040
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

3. A EXECUÇÃO DA POLÍTICA DE hABITAÇÃO DE INTERESSE


SOCIAL: ASPECTOS EMPÍRICOS E METODOLóGICOS

O primeiro passo para execução das ações previstas foi definir os Mu-
nicípios prioritários que seriam atendidos. Para o atendimento às metas
estabelecidas junto à Unidade Gestora do Programa Família Paranaense,
definiu-se para uma primeira fase a prioridade ao atendimento de 10 (dez)
municípios com maior concentração de domicílios nas áreas consideradas
de grande vulnerabilidade. A Companhia de Habitação do Paraná - COHA-

2041
PAR buscou uma série de indicadores para eleger os municípios a serem
contemplados, no intuito de priorizar o atendimento aos municípios com
assentamentos precários do tipo Favela, observando características gerais
de consolidação e fatores de risco, atender à região do Estado com piores
indicadores de desenvolvimento (chamada de Centro Extendido), oportu-
nizando o desenvolvimento mais equânime entre as diversas regiões do
Paraná e identificar a existência de estrutura para execução de política
habitacional, com vistas à gestão compartilhada do trabalho.
Em relação aos critérios de elegibilidade, foram definidos os seguintes
fatores:

- A relação dos municípios de acordo com os critérios de vulne-


rabilidade do Programa Família Paranaense;
- A existência de assentamentos precários do tipo Favela;
- A localização geográfica dos municípios, de acordo com a Polí-
tica de Desenvolvimento Urbano e Regional do Estado do Paraná;
- A caracterização geral dos assentamentos precários do tipo
Favela, em acordo com o PEHIS – Plano Estadual de Habitação
de Interesse Social, atentando-se especialmente para a presença
de fatores de risco nas referidas áreas.
No que tange aos fatores de risco, foram considerados: o percen-
tual de famílias em situação de extrema pobreza maior do que a
média do Paraná e o Índice IPARDES de Desempenho Municipal
também inferior à mediana do Estado -IPDM.
Já no que diz respeito à Capacidade de Gestão, definida pela SEDS,
levou-se em conta: a atualização mínima do Cadastro Único do
Programa Bolsa Família em 70% dos beneficiários do município,
a existência de Centro de Referência de Assistência Social - CRAS
devidamente implantado e com equipe técnica e a ausência de
pendências na habilitação do município referente ao nível de
Gestão do Sistema Único de Assistência Social.

Definidos os 10 Municípios prioritários, os técnicos da COHAPAR e da


Secretaria de Estado de Planejamento, através de suas equipes técnicas,
percorreram os municípios eleitos como prioritários do Programa para
identificação dos assentamentos a serem atendidos e realizaram o le-
vantamento de informações relativas às áreas que sofrerão intervenções,
configurando um Diagnóstico Prévio.
Vale ressaltar que as 11 áreas de intervenções, denominadas de as-
sentamentos precários do tipo favela, inicialmente foram levantadas pelo

2042
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Plano Estadual de Habitação de Interesse Social do Estado do Paraná


- PEHIS, elaborado pela COHAPAR em 2010.
As áreas de Intervenção encontram-se localizadas em 03 (três) Re-
gionais da COHAPAR (a Companhia mantém equipes regionalizadas
que abrangem 13 regiões do Estado). A primeira é a Regional de Ponta
Grossa, composta pelos Municípios de Piraí do Sul, Reserva, Wenceslau
Braz e Imbituva; a segunda é a Regional de Guarapuava, composta
pelos Municípios de Turvo, Rebouças, Cantagalo e Laranjeiras do Sul;
e a terceira é a Regional de União da Vitória, composta pelo Município
Cruz Machado.
Mas visitas técnicas feitas aos Municípios com o objetivo de reco-
nhecer os assentamentos, sua localização e as familias neles residentes
realizou-se um registro fotográfico e uma análise empírica do assenta-
mento, aferindo as infra-estruturas existentes e o entorno. Nestes Mu-
nicípios, não existem apenas um assentamento precário, e diante desse
fato, os critérios ‘densidade’, ‘acessibilidade’, ‘condição das moradias’
e ‘localização em áreas de risco’ foram determinantes para definição
das áreas prioritárias. Definido esses assentamentos, realizou-se uma
compatibilização com a relação das familias inseridas no Sistema do
Programa Familia Paranaense e a delimitação da área através de uma
poligonal (linha irregular que dleimita a área do assentamento que
deverá sofrer intervenção de regularização fundiária e urbanização).
Na sequencia, os técnicos da COHAPAR percorreram todos os assen-
tamentos precários para realizar o congelamento da área e o cadastra-
mento socioeconômico das familias. Com apoio das equipes técnicas
municipais, foi feito um levantamento detalhado das casas existentes
e familias residentes em cada assentamento. O congelamento da área,
que constitui uma espécie de “retrato” da poligonal de intervenção, foi
realizado através da numeração e fotografia das casas, com o posterior
preenchimento da ficha de cadastramento socioeconômico da COHA-
PAR da(s) familia(s) residente(s) em cada casa.

2043
Realizado o cadastro, as fichas foram digitalizadas e os técnicos da
Companhia produziram relatórios e Planos Específicos de Reassenta-
mento levando em conta a peculiaridade de cada favela, bem como as
necessidades de cada população, ou seja, realizaram um diagnóstico
específico das condições de moradia e um perfil das famílias benefici-
árias, percebendo suas principais potencialidades e vulnerabilidades,
com vistas à proposta de soluções. Nas visitas aos assentamentos
foram identificadas, pois, as carências da população como um todo,
em termos de esporte, lazer, cultura, saúde, saneamento, educação,
transporte e outros serviços.
Nessa ocasião, as familias foram esclarecidas acerca das ações
planejadas e dos procedimentos adotados em todas as etapas do pro-
cesso de relocação, para que ele ocorra de forma harmônica. Foram
identificadas, também, as pessoas com deficiência, pois há previsão
nos empreendimentos da COHAPAR da construção de unidades adap-
tadas para portadores de necessidades especiais (PNE). Essas unidades
diferenciam-se quanto ao tamanho, condições de acessibilidade, padrão
construtivo e localização, a fim de proprorcionar condições de moradia
adequadas às necessidades desse público. Elas serão construídas nas
quantidades necessárias e suficientes para atender a demanda de cada
assentamento. A casa padrão COHAPAR adaptada para portadores
de necessidades especiais (PNE) possui área construída de 40,97m² a
64,97m², respeitando os critérios estabelecidos pela NBR 9050/04. A
distribuição da casa possibilita modelos com sala, cozinha, banheiro e
2 a 3 quartos, além da varanda.
Para serem contempladas pelo Programa, as famílias residentes
nas áreas de risco devem ser incluidas no Cadastro Único e formalizar
a adesão ao programa através da assinatura de um Termo específico.
No momento da assinatura pelo responsável familiar, os membros do
Comitê Local do Programa Família Paranaense realizarão um diagnós-
tico das vulnerabilidades e potencialidades de cada uma das famílias,
orientando-os quanto às ações de sua responsabilidade e alertando para

2044
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o compromisso dos beneficiários na superação de suas necessidades


(lembrando que o Comitê Local, segundo a metodologia do Programa,
refere-se à reunião de representantes das diversas políticas públicas
do município).
A elaboração dos projetos de regularização fundiária e urbanização
serão realizados por empresa especializada através do processo de
licitação, de acordo com a Lei Federal nº 8.666/93. Os projetos de-
verão contemplar todos os levantamentos (planialtimétrico-cadastral,
ambiental, social, jurídico e urbanístico), sendo que deverá ser realizado
o projeto de alinhamento urbanístico da área específica, recuperação
ambiental, projetos de infraestrutura básica, procedimentos de regula-
rização fundiária de acordo com a situação de dominialidade das áreas,
minutas de decretos com ajustes na delimitação e legislação das ZEIS -
Zonas Especiais de Interesse Social. Audiências Públicas também serão
realizadas para apresentação das etapas de projetos às comunidades.
Assim, da aprovação dos projetos pelos órgãoes responsáveis, ocorrerá
a licitação de empresas para execução das obras em cada território.
Por fim, para garantir que as ações previstas de remanejamento
e reassentamento das famílias sejam bem-sucessidas, faz-se neces-
sário um controle da área afetada, o qual será realizado através do
“congelamento” do número de famílias a ser atendidas pelo programa.
Com isso, evita-se novas invasões que possam comprometer a sus-
tentabilidade da intervenção e controla-se a quantidade de imóveis
e beneficiários que serão objeto do relocação. O monitoramento e
avaliação deverão ser focados nos resultados das intervenções e nos
benefícios efetivamente vivenciados pelos moradores das comunida-
des atendidas pelo Programa.
O monitoramento é um processo permanente, contínuo de coleta e
análise de informações, que deverá iniciar durante a fase de desenvol-
vimento dos projetos executivos de urbanização e regularização - PER
das áreas definidas nos 10 municípios identificados pelo Programa até
a finalização das obras e consolidação das famílias no local.

2045
Durante essas fases, deverão ser monitoradas as atividades que
serão implementadas conforme os cronogramas de desenvolvimento
dos projetos executivos de urbanização e regularização fundiária (PER
- Plano Específico de Reassentamento) e de execução das obras. Todas
as ações executadas deverão ser verificadas, bem como se os produ-
tos previstos foram efetivamente entregues. O monitoramento deverá
mensurar o desempenho de todas as atividades e ações implantadas,
com a finalidade de detectar os problemas de execução que poderão
vir a comprometer o Programa, identificando as causas dos problemas
à medida que surjam e propor soluções.

4. AS DIMENSÕES SOCIAL E AMBIENTAL


DAS INTERVENÇÕES hABITACIONAIS EM
ASSENTAMENTOS DE BAIXA RENDA

As intervenções habitacionais em assentamentos precários não


podem ser pensadas sem lelar em conta os aspectos sociais e ambien-
tais das ações a serem implementadas, as quais afetam, inclusive, os
aspectos urbanísticos do projeto. Na ocasião de aprovação do finan-
ciamento conferido ao Programa, o BID exigiu não só a elaboração de
um Plano de Reassentamento Involuntário - PRI, como também de um
Relatório de Avaliação ambiental - RAA, ambos em consonância com
as políticas internas do Banco.
De acordo com as práticas de desenvolvimento sustentável, por meio
de sua Política Ambiental, estabelecida pela OP-703, o BID adota de
maneira geral um enfoque preventivo frente aos impactos ambiente,
procurando evitá-los. Quando, entretanto eles são inevitáveis, o ban-
co exigirá, nas operações por ele financiadas, que sejam executadas
medidas mitigadoras.
Para aqueles impactos que não podem ser totalmente mitigados, é
necessário implementar mecanismos compensação ou de substituição.
A OP-703 (Meio Ambiente e Cumprimento de Salvaguardas) do BID

2046
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

classifica os impactos ineretes das atividades alvo do financiamento


em três categorias:
• Categoria A: Qualquer operação que tem o potencial para causar
impactos ambientais negativos significativos e seus impactos associa-
dos, ou tenha implicações profundas afetando os recursos naturais.
Estas operações requerem uma avaliação ambiental (EA), especifica-
mente uma Avaliação de Impacto especificamente (EIA). As operações
de Categoria “A” exigem salvaguardas de alto risco.
• Categoria B: Operações que podem causar principalmente os im-
pactos ambientais negativos localizados em um curto prazo, incluindo
os impactos sociais e para as quais dispõe-se de medidas de mitigação
efetivas. Estas operações normalmente necessitam de uma análise am-
biental e/ou específicas identificadas durante o processo de seleção,
assim como um Plano de Gestão Ambiental e Social.
• Categoria C: Aquelas operações que não causam impactos ambien-
tais e sociais negativos, ou impactos sejam mínimos, são classificados
na categoria “C”. Estas operações não exigem uma análise ambiental
ou social, além de envolver a triagem e escopo para determinar a sua
classificação. No entanto, se for considerado adequado, serão estabele-
cidos requisitos de cuidados ou supervisão. Para tais atividades deverá
ser elaborado o Relatório de Análise Ambiental.
O Banco não apoiará operações que envolvem uma conversão sig-
nificativa ou degradação de habitats naturais, tal como definido em sua
política (OP-703), a menos que:
(i) não existam alternativas viáveis para o Banco que considere
aceitável;
(ii) sejam realizados estudos complexos que demonstrem que os be-
nefícios totais derivadas da operação superam os custos ambientais, e;
(iii) sejam incorporadas medidas de mitigação e compensação aceitá-
vel para o Banco, incluindo, como requerido, as destinadas a minimizar
perda de habitats e de estabelecer e manter uma área ecologicamente
semelhante protegida.

2047
As operações financiadas pelo Banco deverão evitar impactos ne-
gativos ao meio ambiente, saúde e segurança humana decorrentes
da produção, aquisição, utilização e disposição final de materiais
perigosos, incluindo substancias orgânicas e inorgânicas e substân-
cias tóxicas, pesticidas e poluentes orgânicos persistentes (COP). A
produção, a aquisição, utilização e disposição final de substâncias e
materiais perigosos devem ser evitadas sempre que possível, e em
outros casos minimizadas.

Dessa forma em atendimento a OP-703, as medidas mitigadoras dos


impactos negativos foram, na sua maioria, incluídas nas propostas de
intervenções.
Relativamente aos aspectos sociais das intervenções, eles devem
pautar-se nos em três eixos, que envolvem ações de mobilização e
integração comunitária, educação sanitária e ambiental e geração de
trabalho e renda.
No que concerne ao primeiro aspecto, insta implementar ações que
fomentem a cooperação, o associativismo, a formação de lideranças
comunitárias e a participação política da comunidade como um todo.
A educação sanitária e ambiental abrage a promoção de processo
educativo que busque mudança de cultura e atitude da população em
relação ao meio ambiente, bem como a redução de doenças e melhorias
na condição de saúde dos beneficiários. Nesse sentido, inclui ações
educativas voltadas à conservação do conservação do patrimônio
imobiliário, uso adequado das redes e equipamentos de água e energia,
acondicionamento, disposição e reciclagem de resíduos sólidos; noções
de higiene associadas ao cuidado com a saúde da família; ocupação e
preservação do meio ambiente, equipamentos e espaços comunitários.
A geração de trabalho e renda, por fim, envolve ações que propiciem
a geração de trabalho e renda para a população, inclusão digital, redu-
ção do analfabetismo e acesso à educação básica, através de cursos de
capacitação profissional que qualifiquem jovens e adultos para o mer-

2048
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

cado formal. Tendo em vista que o Programa Família Paranaense prevê


ações integradas entre várias Secretarias do Estado a fim de viabilizar
a promoção da autonomia das famílias em situação de vulnerabilidade,
este eixo do trabalho social será executado em parceria com os demais
órgãos governamentais envolvidos no Programa.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo expôs a experiência de atuação da COHAPAR no


Programa Familia Paranaense, que tem como objetivo atender familias
que vivem em condição de alta vulnerabilidade e risco social. As inter-
venções da Companhia englobam ações de urbanização e regularização
fundiária em 11 assentamentos precários de 10 Municípios do Estado
do Paraná, com vista a levar moradia digna às populações beneficiadas.
O que o presente artigo buscou explicitar é que, apesar do longo
esforço de regularização física das áreas de intervenção, o principal
objetivo das ações relatadas consiste em integrar e incluir as familias de
baixa renda, premitindo que tenham acesso aos serviços e equipamen-
tos sociais básicos e sejam socialmente resgatadas da sua condição de
vulnerabilidade e marginalidade social. Isso se dá através da integração
das ações da COHAPAR com as demais Secretarias de Estado envolvidas
no Programa, buscando suprir as deficiências dessas populações de
forma global (em termos de educação, saúde, trabalho, etc).
A experiência específica da intervenção da COHAPAR no Programa
Familia Paranaense evidencia ainda que para a implementação de
políticas públicas de habitação é necessário o desenvolvimento de
ações integradas e coordenadas entre os diversos agentes públicos e
instituições Estaduais e Municipais. A ausência de colaboração entre
essas esferas certamente prejudica (senão inviabiliza) intervenções
dessa natureza, que dependem dos técnicos municipais que têm contato
mais constante e próximo com a população beneficiária residente em
assentamentos precários.

2049
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICA

BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento. Política Operativa OP-710.


Reasentamiento involuntario: Política operativa y documento de antecedentes.
Washington, outubro de 1998.
BRASIL. Ministérios das Cidades/ aliança das cidades. Curso à distância: Ações
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BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria nacional de habitação. Política Nacional
de Habitação. Cadernos M. Cidades, nº 4. Brasília, 2005.
______. Guia para o mapeamento e caracterização de assentamentos pre-
cários. Brasília, mai. 2010.
BRASIL. Constituição da república Federativa do Brasil de 1988. <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 24
janeiro 2013.
______. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da
Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras pro-
vidências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/
L10257.htm>. Acesso em: 24 janeiro 2013
PARANÁ (Estado). Companhia de Habitação do Paraná - COHAPAR. Plano
Estadual de habitação de Interesse Social – PEhIS. Curitiba, jul. 2012.
Disponível em: <http://www.cohapar.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.
php?conteudo=136.> Acesso em: 24 janeiro 2013.
PARANÁ (Estado). Secretaria da Família e Desenvolvimento Social – SEDS. Famí-
lia Paranaense: uma nova vida começa aqui. Curitiba, abr. 2012. Disponível em:
<http://www.familia.pr.gov.br/arquivos/File/familia_paranaense/CartilhaPFP.pdf>
Acesso em: 24 janeiro 2013

2050
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

NOTAS

1 Doutor em Estruturas Ambientais Urbanas pela Universidade de São Paulo - FAUSP, Mestre em Análise
Regional e Meio Ambiente pela Universidade Estadual de Maringá - UEM e especialista em Planejamento
Urbano e Regional pela Universidade Dortmund/ Alemanhã. Docente da Universidade Estadual de Londrina
- UEL. E-mail: boeira@wnet.com.br
2 Mestre em Gestão do Território pela Universidade Federal de Uberlândia/MG, Instituto de Geografia. Docente
da UniCuritiba e arquiteta da Companhia de Habitação do Paraná - COHAPAR. E-mail: isabellas65@hotmail.com
3 Bacharel em Direito pela UniCuritiba e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná - UFPR.
Atualmente participa do Grupo de Estudos Trabalho e Sociedade - GETS/UFPR e trabalha como Técnica em
Desenvolvimento Social na Companhia de Habitação do Paraná - COHAPAR. E-mail: maribettega@yahoo.com.br
4 Graduando em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR. E-mail:
guilherme.m.w@hotmail.com
5 PARANÁ Turvo(Estado). Companhia de Habitação do Paraná - COHAPAR. Plano Estadual de Habitação
de Interesse Social – PPEHIS. Curitiba, jul. 2012. Disponível em: <http://www.cohapar.pr.gov.br/modules/
conteudo/conteudo.php?conteudo=136.> Acesso em: 24 janeiro 2013.
6 PARANÁ (Estado). Companhia de Habitação do Paraná - COHAPAR. Plano Estadual de Habitação de Interesse
Social – PEHIS. Curitiba, jul. 2012, p. 12.

2051
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Por um direito do ordenamento


territorial: elementos preliminares
para um modelo integrado de
direito urbano-ambiental

Luciano de Faria Brasil*

1. INTRODUÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE


DIREITO URBANÍSTICO E DIREITO AMBIENTAL

O objetivo deste texto é o de propor alguns elementos de reflexão que


permitam vislumbrar uma compreensão distinta da relação existente sobre
o direito urbanístico e o direito ambiental. Trata-se de um relacionamento
ainda em construção, no plano sistêmico, tendo em conta a diversidade
das agendas que se encontram na base dos respectivos projetos: há uma
dessemelhança de fins imediatos e de tratamento linguístico das matérias.
A falta de um entendimento unificado dos juristas acerca do fenômeno
urbano também contribui para a acentuada divergência de percepção
quanto à possibilidade de compatibilização metodológica e teleológica
entre os distintos estratos, vale dizer: o ajustamento mútuo entre a agenda
ambiental (voltada para a conservação da natureza a defesa do espaço
natural, com ênfase no tema da sustentabilidade) e a agenda urbana pro-
priamente dita (ancorada na dignidade humana e na inclusão social no
âmbito dos assentamentos urbanos, com algum sombreamento de atuação
em temáticas que pertencem ao campo próprio dos direitos humanos).
Na falta de uma compreensão sistêmica do problema urbano-am-
biental, o mote da acomodação entre as matérias não provém da reflexão
conceitual, mas da atividade prática e do lavor diário: a integração de
políticas ocorre precipuamente no âmbito da gestão, ainda que de forma

2053
assistemática, pois não dirigida a partir de um entendimento convergente
sobre as temáticas em questão. Para a construção de um modelo integra-
do de direito urbano-ambiental, o que se reclama é justamente isso – a
identificação das zonas de convergência capazes de propiciar um terreno
comum para o direito urbanístico e o direito ambiental, rompendo a visão
estanque que separa as distintas esferas do ordenamento jurídico. 2
Desse modo, cumpre passar além das práticas administrativas cons-
tituídas pelas necessidades de gestão, que acarretam usos improvisados
e condutas desarticuladas, para reconhecer o território como matriz con-
ceitual, a partir da qual se pode construir um modelo de integração que
sirva de ponte ou abrigo para o ordenamento urbano-ambiental.

2. ORDENAMENTO TERRITORIAL
COMO CONCEITO DE INTEGRAÇÃO

À míngua de um modelo jurídico-conceitual que abarque direito


urbanístico e direito ambiental, é necessário buscar ideias em outros
campos do conhecimento, especialmente da geografia, do urbanismo e
da gestão ambiental. Nessa linha, o marco mais adequado para promover
essa integração é a ideia transversal, multidisciplinar, de ordenamento do
território. Pode-se conceber o ordenamento territorial como um processo
planejado, uma política de Estado, de natureza política, técnica e admi-
nistrativa, que está a serviço da gestão ambiental e do desenvolvimento.3
A noção de ordenamento territorial é ampla o suficiente para abrigar a
ordem jurídica urbano-ambiental, conferindo-lhe unidade de sentido e
propósito na territorialização do processo de desenvolvimento sustentável,
em uma perspectiva matizada pela participação democrática na produção
e aplicação das normas técnicas e jurídicas.
A definição de MASSIRIS, mais completa, comprova a utilidade do
conceito:4

Poderíamos afirmar, em síntese, que o ordenamento do território


é um instrumento de planejamento, de caráter técnico-político-

2054
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

-administrativo, com que se pretende configurar, no longo prazo,


uma organização do uso e ocupação do território, de acordo com
suas potencialidades e limitações, as expectativas e aspirações
da população e os objetivos de desenvolvimento. Concretiza-se
em planos que expressam o modelo territorial de longo prazo
que a sociedade considera desejável e as estratégias pelas quais
se atuará sobre a realidade para evoluir até esse modelo.

O tema central do conceito apresentado é o seu sentido global, omní-


modo, pretendendo abarcar variadas facetas da intervenção sobre a ques-
tão territorial e, com isso, obter uma compreensão integral do fenômeno.
Os objetivos do ordenamento do território apresentam-se de forma variada
em distintas nações, conforme acertadamente destacado pela doutrina.
Em alguns países predomina a ênfase na proteção ambiental, em outras
nações, o objetivo de promoção do desenvolvimento. 5
Um ponto de partida para a compreensão das finalidades do orde-
namento territorial é justamente a Carta Europeia de Ordenamento do
Território (Charte Européenne de l’aménagement du territoire ou European
regional/spatial planning Charter), editada em 1983 pelo Conselho da Eu-
ropa, e que lista os seguintes tópicos como seus objetivos fundamentais: 1)
o desenvolvimento socioeconômico equilibrado das regiões; 2) a melhoria
da qualidade de vida; 3) a gestão responsável dos recursos naturais e
proteção do meio ambiente; 4) a utilização racional do território.6
Por sua vez, os pontos ou características centrais do ordenamento
territorial, conforme se pode extrair da literatura existente sobre a temática
em questão, são os seguintes: a) trata-se de uma política de Estado; b)
constitui uma política de longo prazo; c) seu instrumento fundamental é o
planejamento; d) deve conciliar o processo de desenvolvimento econômico
com distintas formas de ocupação territorial; e) tem como finalidade, em
última instância, a de elevar o nível de vida da população.7
Considerado o conceito de ordenamento territorial, bem como as suas
finalidades características, verifica-se a sua plena funcionalidade para a
análise do fenômeno urbano. Assim, é necessário perquirir sobre a possi-
bilidade de operar um deslocamento de sentido – em termos semânticos:
uma ressignificação – para trasladar o conceito do campo da geografia

2055
para a esfera do direito. A noção de ordenamento territorial pode servir
de conceito de integração entre os direitos – difusos – ao meio ambiente e
à ordem urbanística, abrindo caminho para a construção de um ramo do
direito capaz de proporcionar um tratamento integrado da intervenção
sobre o território: o direito do ordenamento territorial.

3. O PLANEJAMENTO COMO ELEMENTO COMUM

Conforme destacado, o planejamento serve como eixo comum às di-


versas formas ou escalas de intervenção sobre o território, sejam elas de
natureza regional, urbana, econômica ou ambiental.8 Em termos gerais, na
promoção do desenvolvimento por meio da ação estatal, é sempre neces-
sário tomar decisões por antecipação – esse é o sentido essencial do plane-
jamento. Trata-se de utilizar técnicas de programação dos investimentos,
aplicando-se os recursos públicos de forma ordenada, coordenando-os
com o quadro de referência institucional-normativo, em amplo espectro
temporal, para a obtenção de fins coletivos.
Com isso, abre-se espaço para a promoção de um determinado modelo
de desenvolvimento por meio de instrumentos legais, com o deslocamento
do eixo produtivo e da matriz de ocupação territorial de uma determina-
da região a partir da ação planejada do Poder Público; reprimindo certos
comportamentos (sanções negativas) e premiando ou facilitando outros
(sanções positivas).9 Esse projeto pressupõe uma combinação entre in-
vestimento público e investimento privado, dirigidos pelo planejamento
urbano integrado e coordenados por uma estratégia de desenvolvimento
local de crescimento sustentável. Aliás, a própria noção de desenvolvi-
mento sustentável requer uma forte capacidade estatal de conformação
das condições socioeconômicas. 10
A construção de um direito do ordenamento territorial - com o plane-
jamento como sua mola mestra - implica o resgate da capacidade plena
de intervenção estatal sobre temas de interesse público. É uma tarefa
que demanda a reversão de um processo de enfraquecimento do Estado

2056
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

iniciado na década de 1990 e guiado pela vaga ideológica neoliberal que


ganhou força naquele período. Com razão, Fernando Rezende assevera
que, no caso brasileiro, houve o “desmonte da capacidade do Estado para
promover e conduzir o processo de desenvolvimento”, e que o “desmonte
do planejamento foi ratificado pela perda de importância do orçamento”.11
Além da perda do controle sobre o processo de elaboração orçamen-
tária, verificou-se o progressivo abandono na esfera pública da ideia de
planejamento em favor da ideia de gestão, em uma virada ideológica e
conceitual perceptível. Como consequência, ocorreu o esvaziamento dos
procedimentos de longo prazo em favor de programas de curto e médio
prazo e de ações pontuais. A gestão pública viu-se transformada em sim-
ples administração do cotidiano, desobrigando-se das tarefas relacionadas
à preparação estratégica dos cenários futuros. Por isso, a recuperação da
capacidade estatal de planejamento e intervenção é conditio sine qua non
para um ordenamento territorial eficaz, apto a garantir um desenvolvi-
mento sustentável em perspectiva territorial.
É preciso destacar também que o planejamento necessário para o
desenvolvimento sustentável deve ser um processo sistêmico, compre-
ensivo e integrado. Ao tratar das medidas cabíveis para a superação do
subdesenvolvimento, José Alonso já alertava quanto à inocuidade das
ações isoladas e desarticuladas: 12

A superação do subdesenvolvimento regional implica a escolha


de uma combinação de iniciativas, projetos e medidas que seja
capaz de iniciar um processo de expansão socioeconômica que
se reproduza ampliadamente ao longo do tempo. Essa é uma
atitude que se contrapõe à adoção de ações isoladas, setoriais,
tópicas, com efeitos pontuais e limitados, que quase sempre se
esvaem no tempo.

A articulação das políticas setoriais conduz à necessidade de formulação


de um planejamento integrado, especialmente no âmbito municipal (escala
territorial em que as questões tendem a se tornar muito pronunciadas).
Assim, um planejamento municipal integrado terá de articular as seguintes
instâncias de planificação, sem prejuízo de outras que possam vir a surgir:

2057
1) Plano Diretor, concebido como o “instrumento básico da política de de-
senvolvimento e expansão urbana” (art. 40, “caput”, do Estatuto da Cidade)
e como “parte integrante do processo de planejamento municipal” (art.
40, § 1º, do Estatuto da Cidade); 2) Planos de integração (se o município
estiver em Região Metropolitana, Aglomeração Urbana ou Microrregião);
3) Planejamento Orçamentário e Fiscal, como é o caso do Plano Plurianual,
da Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Lei Orçamentária; 4) Planos de
desenvolvimento econômico e social; 5) Planos setoriais e/ou específi-
cos, como o Plano Local de Habitação de Interesse Social, o Plano Local
de Gestão de Resíduos, o planejamento ambiental, etc.; 6) Planejamento
estratégico/planos de gestão. Todo esse planejamento integrado deverá
estar coordenado a partir de um fio condutor, que é a respectiva estratégia
de desenvolvimento sustentável.
Nesse breve apanhado de âmbitos de planejamento, sobressai o caráter
integral de uma política de ordenamento territorial que se pretenda conse-
quente e eficaz, bem como de seu respectivo ramo na ordem jurídica – o
direito do ordenamento territorial. Além disso, resulta clara a territorializa-
ção do processo de desenvolvimento sustentável, em consonância com a
identificação do território como matriz conceitual das províncias jurídicas
ligadas diretamente à promoção do desenvolvimento urbano-ambiental.

4. qUAL A PRIORIDADE? O DIFÍCIL TEMA


DA COMPATIBILIZAÇÃO DOS DIREITOS

Nenhuma discussão sobre a possível integração entre direito urba-


nístico e direito ambiental, ou mesmo sobre a promoção de uma agenda
mínima comum, escapa ao inevitável debate acerca da graduação ou
prioridade dos direitos envolvidos. O que sobreleva: direito à moradia ou
proteção ambiental? Regularização de assentamentos urbanos ou con-
servação dos espaços naturais? Os hardliners posicionados nos extremos
dos respectivos polos ideológicos têm mantido vivas as chamas de uma
disputa que perde relevância a cada dia que passa. Trata-se, porém, de
um falso conflito.

2058
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O tema foi enfrentado de maneira emblemática pelo Tribunal Regional


Federal da 4ª Região, no acórdão da Apelação Cível nº 2006.72.04.003887-
4/SC, sendo relator o Juiz Federal Roger Raupp Rios. No caso em tela,
analisava-se recurso contra sentença de procedência em ação civil pú-
blica que condenou a apelante à demolição de imóvel onde reside, bem
como a apresentar e executar plano de recuperação de área degradada,
por situar-se em área de preservação permanente e ser bem integrante
do patrimônio da União (área de dunas e restinga em Santa Catarina).
Na ocasião, disse o Juiz-Relator, em trecho do julgado (grifos no
original):

Resta ponderar a colisão entre o respeito à dignidade huma-


na e o direito à moradia em face da proteção ambiental.
Não há dúvida nos autos quanto a duas realidades: (1) a ré é
pessoa pobre, vivendo em humilde residência com sua família há
vários anos e (2) o local onde habita é área de preservação per-
manente, de propriedade da União, configurando dano ambiental.
Neste contexto, tenho que a sentença andou bem ao concluir
pela necessidade de demolição do imóvel e recuperação da área
degradada. Todavia, com a devida vênia, é necessário ir além.
Ao lado do direito ambiental, há que se atentar para a força
jurídica do direito fundamental à moradia. A atuação estatal, aí
incluídas a ação do Ministério Público Federal e o exercício do
poder jurisdicional, não pode olvidar este dado normativo funda-
mental, sob pena de enfraquecimento do texto constitucional, que
deve ser interpretado de acordo com os princípios hermenêuticos
da força normativa da Constituição e da eficácia integradora.
A preocupação ambiental é, sem sombra de dúvida, necessária
e urgente. No entanto, é imperiosa a consideração do direito à
moradia, sob pena de emprestar-se solução jurídica incorreta
quanto à interpretação sistemática do direito e à força normativa
da Constituição. Com efeito, a força normativa da Consti-
tuição, como método próprio de interpretação constitucional,
exige do juiz, ao resolver uma questão de direitos fundamentais,
adotar a solução que propicie a maior eficácia jurídica possível
às normas constitucionais envolvidas, conforme lição de Konrad
Hesse (Elementos de Direito Constitucional da República Federal
da Alemanha, Porto Alegre: SAF, 1998). É, portanto, diante deste
princípio de hermenêutica constitucional, que se revela impres-
cindível a consideração do direito à moradia para a concretiza-
ção do conteúdo jurídico do direito ao ambiente, a fim de que
se alcance uma solução jurídica constitucionalmente adequada.
O provimento judicial deve fortalecer, simultaneamente, o direito
ao ambiente e o direito à moradia. Neste método de interpretação
constitucional, vislumbra-se, inclusive, a influência do conte-
údo jurídico de um ou mais direitos fundamentais para a
compreensão do conteúdo e das exigências normativas

2059
de outro direito fundamental, sem vislumbrar contraposi-
ção (neste sentido, Edésio Fernandes, Preservação ambiental
ou moradia? Um falso conflito, in “Direito Urbanístico: estudos
brasileiros e internacionais, org. B. Alfonsin e E. Fernandes, Belo
Horizonte: Del Rey, 2006, p. 357). No caso concreto é o que se
constata pelo influxo do conteúdo jurídico do direito à moradia
em face do direito ao ambiente. Exemplo deste raciocínio é tra-
zido por Raquel Rolnik e João Luiz Portolan Galvão Minnicelli,
ao examinar a Resolução nº 369/06, do CONAMA, e o projeto
de lei de responsabilidade territorial urbana diante do direito à
moradia (“Regularização fundiária e as novas regras da futura
Lei de Responsabilidade Territorial Urbana - alguns desafios da
nova lei”, Forum de Direito Urbano e Ambiental - FDUA, ano 7,
n. 40, p. 36-46, jul./ago. 2008).
Este procedimento, no âmbito da contemporânea teoria dos direi-
tos fundamentais, pode ser denominado método hermenêutico
constitucional contextual, para utilizar a expressão de Juan
Carlos Gavara de Cara, pois parte da própria Constituição, da
conexão e da interrelação entre as diversas normas de direitos
fundamentais.
[...]
De fato, na Constituição Federal, a moradia, além de direito social
expressamente previsto (art. 6º), é considerada necessidade
vital básica (art. 7º), diante da qual devem concorrer políticas
públicas por parte de todas as esferas da federação (art. 23, Ix).
A legislação internacional, assim como entendida nos órgãos
de proteção dos direitos humanos formalmente instituídos no
direito internacional público, aponta para a ilicitude de desocupa-
ção forçada sem a disponibilização de alternativa para moradia.
[...]
Anote-se que esta diretriz, como não poderia deixar de ser, a
par de ser reconhecida na legislação internacional, está presente
não só na doutrina (Sylvio Toshiro Mukay, ‘Direito à Moradia e a
concessão especial para fins de moradia, Forum de Direito Urba-
no e Ambiental, Belo Horizonte, ano 7, n. 38, p. 79-82, mar./abr.
2008), como na jurisprudência (Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, Agravo nº 711.429-5/5-00, julgado em 10.12.2207) e
no direito interno infraconstitucional (por exemplo, artigo 4º da
Medida Provisória nº 2.220/2001).
Medida diversa implicaria violação à proteção fundamental
da dignidade humana, na medida em que o sujeito diretamente
afetado seria visto como meio cuja remoção resultaria na conse-
cução da finalidade da conduta estatal, sendo esquecido como
fim em si mesmo de tal atividade.

Com efeito, o falso dilema que se estabelece – frequentemente com


finalidades retóricas – entre o direito ambiental e o direito urbanístico
encontra sua própria solução na sistemática legal vigente: a efetivida-
de dos direitos fundamentais ligados à satisfação das necessidades vitais

2060
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

básicas e à garantia da proteção da dignidade humana tem prioridade em


uma escala de avaliação hermenêutica no caso de conflitos (aparentes)
de direitos. Trata-se aqui de uma ponderação que deve ser realizada a
partir de elementos contextuais obtidos no caso concreto, examinando-se
a presença de elementos como a eventual consolidação fática de assen-
tamentos irregulares, a existência de áreas de risco, a real possibilidade
da opção de reassentamento comunitário nos termos da lei e com a
preservação da dignidade humana e da ambiência cultural especifica,
entre outros indicativos. 13

Observa-se, pois, que o direito ambiental e o direito urbanístico estão


desde já reunidos na perspectiva da realização dos direitos fundamentais
– vale dizer, na perspectiva unificadora dos direitos humanos, que têm
por mote a garantia da dignidade e das necessidades vitais básicas. Isso
ocorre a partir da ordem jurídica em vigência, conforme interpretação
dada pela jurisprudência, indicando a inexistência de lacunas no orde-
namento legal e reforçando a necessidade de reunir o material norma-
tivo existente em categorias jurídicas mais amplas, com características
compreensivas e omnímodas.
Quando PAREJO ALFONSO transpõe o conceito de ordenamento terri-
torial para o campo do direito administrativo, na linha da tradição jurídica
espanhola, define-o como a ação ou função pública destinada [encaminada]
a por em ordem – colocar em seu lugar – as atividades públicas e privadas
com incidência territorial para alcançar, como fim último, a qualidade de
vida, entendida em termos de desenvolvimento sustentável.14 Essa quali-
dade de vida indica exatamente a conexão com os direitos humanos como
objetivos decisivos de toda a dimensão normativa do desenvolvimento
sustentável. No caso de um país em processo de desenvolvimento – ou
em etapas desiguais de desenvolvimento no âmbito de seu território –
assegurar a qualidade de vida significa garantir a prestação do mínimo
vital (moradia, alimento, educação, segurança, saúde) a cada cidadão
que necessitar do amparo público, fazendo-o em consonância com as
premissas do desenvolvimento urbano sustentável.

2061
5. O DIREITO DO ORDENAMENTO
TERRITORIAL E SUA EFETIVIDADE

Pelo exame conjugado das fontes antes expostas, percebe-se a ampla


possibilidade da constituição de um modelo integrado de direito urbano-
-ambiental, reunindo esses ramos da teoria jurídica sob o manto de uma
nova e mais abrangente categoria: o direito do ordenamento territorial. Essa
nova vertente da ordem jurídica há de reunir em seu bojo as características
específicas do direito urbanístico e do direito ambiental, fazendo-o na
perspectiva: (1) da realização dos direitos fundamentais, para a satisfação
das necessidades vitais básicas, preservando-se a dignidade humana; e
(2) da afirmação do planejamento como instrumento básico para a coor-
denação das atividades públicas e privadas na promoção do desenvolvi-
mento urbano sustentável. Em suma, é o que foi sustentado neste texto,
em brevíssimas linhas e em caráter preliminar, lançando tópicos para
posterior desenvolvimento.
No entanto, é necessário destacar que de nada adiantará o aprimora-
mento do modelo conceitual de ordenamento do território se não houver
igual preocupação com a efetividade da aplicação das normas relativas a
esse ramo do direito. Essa preocupação passa necessariamente pela dis-
cussão do contexto político-institucional e na análise critica da moldura
econômica do quadro social que o ordenamento se propõe a reger. Como
se sabe, as políticas estatais que estimulem um comportamento ativo do
poder público na gestão do território são muitas vezes combatidas – por
razões ideológicas, declaradas ou ocultas – como ineficientes ou nefastas,
levando ao abandono dos necessários processos de planejamento e à
perda da capacidade de intervenção estatal para a defesa dos interesses
coletivos e nacionais.
Assim, a constituição de um conceito integrado de direito do or-
denamento territorial deve correr simultaneamente ao fortalecimento
dos processos de planejamento urbano integrado, da reformulação e
racionalização das práticas de gestão urbano-ambiental (especialmente

2062
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

das atividades de licenciamento, que merecem um controle – público e


social – mais rigoroso) e da valorização da capacidade de gestão territo-
rial do poder público. Trata-se, em última instância, de conscientizar os
operadores de todos os campos profissionais que lidam com a temática,
reforçando o ambiente de proteção da coisa pública e de valorização
do serviço público para a garantia dos bens urbano-ambientais. Só com
consciência esclarecida e com atitudes firmes é que se poderão produzir
políticas públicas de gestão territorial que sejam efetivamente exigíveis e
coerentes, proporcionando o necessário alinhamento – prático e concei-
tual – entre a norma de direito e a prática de gestão.

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gia; Centro Universitario de Ciencias Sociales y Humanidades de la Universidad de
Guadalajara, 2008, p. 27-52.

NOTAS

*Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio Grande do Sul, classificado na Promotoria de Justiça de Ha-
bitação e Defesa da Ordem Urbanística de Porto Alegre. Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais na UFRGS.
Mestrado em Filosofia na PUCRS. E-mail: lfbrasil@mp.rs.gov.br.
2 “O termo sustentabilidade urbano-ambiental tem permeado discursos, incentivado práticas de gestão, sendo
difundido e repisado nos mais variados meios. Todavia, em termos legais, é o que denominamos conceito jurí-
dico em aberto, devendo ser complementado. Para tanto, apontamos algumas diretrizes visando à construção
de um conceito de sustentabilidade urbano-ambiental, a partir dos seguintes elementos: (a) artigo 2.º, inciso
I, do Estatuto da Cidade; (b) o direito à ordem urbanística; (c) o conceito de meio ambiente no espaço urbano;
(d) legislação sobre todo o território das cidades, contemplando o urbano e o rural; (e) reforço da gestão e
dos instrumentos de atuação municipal; e (f) gestão democrática” (PRESTES, Vanêsca Buzelato. PRESTES,
Vanêsca Buzelato. Municípios e meio ambiente: a necessidade de uma gestão urbano-ambiental. In: PRESTES,
Vanêsca Buzelato (Organizadora). Temas de Direito Urbano-Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 28).
Destaca-se o caráter pioneiro da reflexão de Vanêsca Buzelato Prestes sobre a possibilidade de constituição de
um direito urbano-ambiental, derrubando inadequadas barreiras epistemológicas entre os campos do direito.
3 MÉNDEZ, Elías. Gestión ambiental y ordenación del Territorio. Mérida (Venezuela): Universidad de los Andes,
Facultad de Ciencias Forestales, Instituto de Geografía y Conservación de Recursos Naturales, 1990, p. 96.
4 MASSIRIS CABEZA, A. Ordenación del territorio en América Latina. Scripta Nova. Revista electrónica de ge-
ografía y ciencias sociales. Universidad de Barcelona, vol. VI, núm. 125, 1 de octubre de 2002. http://www.
ub.es/geocrit/sn/sn-125.htm [ISSN: 1138-9788], acesso em 7 de julho de 2013 [tradução nossa].
5 TROITIÑO VINUESA, Miguel Ángel. Ordenación del territorio y desarrollo territorial: la construcción de las geogra-
fias del futuro. In: SALINAS ESCOBAR, María Evangelina (Compiladora). El ordenamiento territorial: experiencias
internacionales. México: Secretaria de Medio Ambiente y Recursos Naturales; Instituto Nacional de Ecologia;
Centro Universitario de Ciencias Sociales y Humanidades de la Universidad de Guadalajara, 2008, p. 36-37.
6 http://www.coe.int/t/dg4/cultureheritage/heritage/cemat/versioncharte/Charte_bil.pdf, acesso em 7 de
julho de 2013.
7 AGUILAR, Adrian. Las bases del ordenamiento territorial: algunas evidencias de la experiencia cubana. Revista
Geográfica, 1989, n. 109, p. 109. Apud MASSIRIS CABEZA, A. Ob. cit.
8 Em seu artigo, Massiris construiu uma interessante linha do tempo, mostrando a sucessão cronológica e
temática dos diversos tipos de planejamento. MASSIRIS CABEZA, A. Ob. cit., acesso em 7 de julho de 2013
[tradução nossa].
9 Sobre as sanções positivas, consultar BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do
direito. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Barueri, SP: Manole, 2007, p. 23-32.
10 Em brevíssimas linhas, recorda-se que o desenvolvimento sustentável é “aquele que atende as neces-
sidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias
necessidades”, conforme dicção do Relatório Brundtland (“Our Common Future”), produzido no âmbito da
Organização das Nações Unidas pela Comissão Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1983.

2064
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A própria legislação urbanística brasileira enuncia o tema como sendo de alta importância ao referir o “direito
às cidades sustentáveis” como a primeira diretriz geral do art. 2º, inciso I, da Lei n.º 10.527, de 10 de julho
de 2001: “garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao
saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer,
para as presentes e futuras gerações”.
11 REZENDE, Fernando. Planejamento no Brasil: auge, declínio e caminhos para a reconstrução. Brasília, DF:
CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA, 2010 (Texto para Discussão, 4), p. 21-23. http://www.ipea.gov.br/portal/
images/stories/PDFs/TDs/td_1522.pdf [ISSN: 2179-5495], acesso em 7 de julho de 2013.
12 ALONSO, José Antônio Fialho. A persistência das desigualdades regionais no RS: velhos problemas, soluções
convencionais e novas formulações. In: Indicadores Econômicos FEE, Porto Alegre, v. 33, n. 4, mar. 2006, p.109-
110, com grifos no original.
13 É interessante notar que muitos tópicos pertinentes aos direitos humanos já estão incorporadas ao orde-
namento jurídico-urbanístico, por razões ligadas à evolução do direito urbanístico brasileiro. Sobre o tema,
consultar BRASIL, Luciano de Faria. O conceito de ordem urbanística: contexto, conteúdo e alcance. In: Revista
do Ministério Público-RS, n.º 69. Porto Alegre: AMP/RS, 2011, p. 157-177.
14 PAREJO ALFONSO, Luciano. Lecciones de Derecho Administrativo. Orden económico y sectores de referencia.
Valencia: Tirant Lo Blanch, 2010, p. 203.

2065
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A plena efetividade do Sistema


Nacional de Habitaçâo de Interesse
Social (SNHIS): avanços e obstáculos

Soraya Santos Lopes1

1. O SNhIS COMO INSTRUMENTO


DA POLÍTICA NACIONAL DE hABITAÇâO

O Ministério das Cidades, cujo desenho teve como base a proposta


do Projeto Moradia2, lançou as estruturas básicas da Política Nacional de
Habitação (PNH)3, elaborada em novembro de 2004, pela Secretaria Na-
cional de Habitação (SNH), gestada dentro da concepção de desenvolvi-
mento urbano integrado, no qual a habitação não se restringe à casa, mas
incorpora o direito à infraestrutura, saneamento ambiental, mobilidade e
transporte coletivo, equipamentos e serviços urbanos e sociais, buscando
garantir o direito à cidade.
A PNH amplia o conceito de moradia para além da benfeitoria, da habi-
tação, para incorporar também neste plexo o direito à infraestrutura e aos
serviços públicos urbanos de energia elétrica, água potável, saneamento
básico e coleta de resíduo sólidos, constituindo, em verdade, um direito
não apenas à moradia mas um direito à cidade. Seguindo esta orientação,
recomenda que o planejamento e a legislação de parcelamento do solo pode
e deve contribuir para viabilizar o acesso ao solo urbanizado para a popu-
lação de baixa renda, refletindo os ideais de luta dos movimentos sociais.
Assim, a integração da política habitacional com a política de desen-
volvimento urbano poderá conduzir o direito à moradia a uma maior
abrangência e contextualização, ocorrendo um desdobramento para o
direito à cidade.

2067
O desenho institucional da PNH foi objetivado em 2005 pelo Sistema
Nacional de Habitação (SNHab), subdividido no Subsistema de Habitação
de Interesse Social e Subsistema de Habitação de Mercado, que no seu
detalhamento indicava uma implantação progressiva, uma vez que de-
pendia da adesão de estados, Distrito Federal e municípios e da aprovação
do marco regulatório que o sustentaria.
A mobilização de recursos constitui uma das diretrizes da PNH, que
consiste em: (1) estruturar o Sistema Nacional de Habitação de forma a
viabilizar a cooperação entre União, estados, Distrito Federal e municí-
pios para o enfrentamento do déficit habitacional brasileiro, quantitativo
e qualitativo, por meio da articulação de recursos (dos fundos), planos,
programas e ações; (2) viabilizar subsídios para a habitação de interesse
social, ampliação da destinação de recursos não onerosos e perenes por
parte da União, estados, Distrito Federal e municípios a serem canalizados
para o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e respec-
tivos fundos habitacionais dos demais níveis de governo; (3) ampliação da
utilização dos recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS)
para o financiamento habitacional, focando sua aplicação na população
de baixa renda na qual está concentrado o déficit habitacional.
Nesse desenho proposto inicialmente, verifica-se a intenção de im-
plantar uma estrutura descentralizada de alocação de recursos, haja vista
a alusão aos fundos habitacionais nos demais níveis de governo. Além
disto, a gestão de subsídios foi planejada visando à promoção e apoio
a mecanismos de transferência de recursos não onerosos (na forma de
transferência de renda) para atender a parcela de população sem capaci-
dade de pagamento de moradia, identificada como pertencente à faixa de
população abaixo da linha de pobreza. Outrossim, ficou assentado que a
concessão de subsídio seria pessoal, temporária e intransferível à família
e não ao imóvel. A estruturação de uma política de subsídios foi concebida
para estar vinculada à condição socioeconômica do beneficiário, e não ao
valor do imóvel ou do financiamento, possibilitando sua revisão periódica.
No item referente à qualidade e produção habitacional, a PNH destacou

2068
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o apoio e viabilização de assessorias técnicas para possibilitar o acesso


da população, especialmente das famílias de baixa renda, aos serviços
prestados por profissionais qualificados na produção e gestão do espaço
construído, como forma de efetivar a melhoria das condições de habita-
bilidade e o direito à moradia adequada. Para tanto, foi previsto incentivo
à formação e capacitação de assessorias técnicas, incentivo à criação de
rede nacional de capacitadores (faculdades, entidades de classe, ONG),
visando à atuação e o desenvolvimento de pesquisas sobre habitação para
população de baixa renda, tanto no que se refere à melhoria habitacional,
quanto à produção de novas unidades.
A Urbanização de assentamentos precários e produção da habitação apon-
ta para: (1) promoção do atendimento à população de baixa renda, com
prioridade para a população com renda de até 03 salários mínimos com a
viabilização de condições de financiamentos para que a população de baixa
renda tenha o menor custo possível; (2) promoção e apoio à integração
da Política Fundiária e Habitacional de forma a viabilizar a produção de
solo urbanizado com qualidade para a implantação de programas habi-
tacionais; (3) consolidação da Política Fundiária por meio dos instrumen-
tos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade, bem como das Leis de
Parcelamento do Solo, de Habitação de Interesse Social e demarcação de
Zonas Especiais de Interesse Social; (4) revisão da lei de parcelamento
do solo, com vistas ao aumento da oferta de lotes e moradias populares
em condições e localização adequadas para os mercados de baixa renda;
A PNH considerou o impacto da política de financiamento habitacional
sobre o valor do solo urbano. Para tanto, estabeleceu critérios de política
fundiária para definição e disponibilização de financiamentos habita-
cionais e subsídios em relação ao custo da terra: (1) os subsídios dados
aos compradores tendem a ser mais justos e causar menos impactos nos
valores fundiários; (2) a expansão da oferta de financiamento tende a
aumentar a expectativa dos proprietários de obterem preços mais altos.
Nesse sentido, a PNH priorizou investimentos em áreas onde existam
instrumentos de controle dos preços e da valorização (ZEIS, por exem-

2069
plo) e políticas abrangentes de inclusão social, especialmente geração de
renda, que contribuirão para a fixação das famílias nas moradias e nos
bairros beneficiados.
O Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) integra
o Sistema Nacional de Habitação (SNHab), ao lado do Sistema de Habi-
tação de Mercado, conforme concebido no âmbito da Política Nacional
de Habitação (PNH).
O SNHIS é instrumento de implementação da PNH e foi concebido
como instância de gestão e controle, articulado e integrado pelo Ministério
das Cidades, pelo Conselho das Cidades, pelo Conselho Gestor do Fundo
Nacional de Habitação de Interesse Social, pelos Conselhos Estaduais, do
Distrito Federal e Municipais, pelo Fundo Nacional de Habitação de Interes-
se Social (FNHIS), pelos Fundos Estaduais e Municipais de Habitação de
Interesse Social e uma rede de agentes financeiros, promotores e técnicos
envolvidos na implementação da PNH.
O SNHIS tem como referência normativa o primeiro projeto de iniciativa
popular apresentado ao Congresso Nacional em 1991, fruto da mobilização
nacional dos Movimentos Populares de Moradia de diversas entidades e
do Movimento Nacional da Reforma Urbana. O Projeto de Lei nº 2710/92,
que tratava da criação do Fundo Nacional de Moradia Popular FNMP, foi
aprovado na Câmara dos Deputados, por meio da subemenda substitutiva
global em 03 de junho de 2004. Este Projeto de Lei foi transformado na
Lei ordinária nº 11.124, de 16 de junho de 2005, quando foi criado tam-
bém o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e o seu
Conselho Gestor.
A Lei 11.124/2005 instituiu o SNHIS com três objetivos básicos (art.
2º): I viabilizar para a população de menor renda o acesso à terra ur-
banizada e à habitação digna e sustentável; II – implementar políticas e
programas de investimentos e subsídios, promovendo e viabilizando o
acesso à habitação voltada à população de menor renda; e III – articular,
compatibilizar, acompanhar e apoiar a atuação das instituições e órgãos
que desempenham funções no setor da habitação.

2070
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Ao mesmo tempo em que o SNHIS centraliza todos os programas e


projetos destinados à habitação de interesse social, nos termos da legis-
lação específica(art. 3º), sua organização e estruturação baseiam-se nos
princípios da democratização, descentralização, controle social e transpa-
rência dos procedimentos decisórios (art. 4º, I, c).
Refletindo as diretrizes da PNH, a organização e estruturação do SNHIS
também está pautada nos seguintes princípios legais: (I) função social da
propriedade urbana visando coibir a especulação imobiliária e permitir
o acesso à terra urbana e ao pleno desenvolvimento das funções sociais
da cidade e da propriedade; (II) moradia digna como direito e vetor de
inclusão social; e (III) compatibilidade e integração das políticas habita-
cionais federal, estadual, do Distrito Federal e municipal, bem como das
demais políticas setoriais de desenvolvimento urbano, ambientais e de
inclusão social.
Assim, a estruturação, organização e atuação do SNHIS deve obser-
var a compatibilidade e integração das políticas habitacionais federal,
estadual, do Distrito Federal e municipal, bem como das demais políticas
setoriais de desenvolvimento urbano, ambientais e de inclusão social,
sempre com fundamento na moradia digna como vetor de inclusão social
e a função social da propriedade e da cidade. Isso, em tese, permitirá a
democratização, descentralização, controle social e a transparência dos
procedimentos decisórios, permitindo o acesso à terra urbana.
A realização desses princípios deve ser instrumentalizada pela implan-
tação dos instrumentos urbanísticos elencados no Estatuto da Cidade,
possibilitando que o Poder Público retire a mais-valia da terra urbanizada.
Dentre os benefícios concedidos no âmbito do SNHIS destacam-se os
seguintes: I - subsídios financeiros, suportados pelo FNHIS, destinados
a complementar a capacidade de pagamento das famílias beneficiárias,
respeitados os limites financeiros e orçamentários federais, estaduais, do
Distrito Federal e municipais; II - equalização, a valor presente, de opera-
ções de crédito, realizadas por instituições financeiras autorizadas pelo
Conselho Monetário Nacional e fiscalizadas pelo Banco Central do Brasil

2071
e III - isenção ou redução de impostos municipais, distritais, estaduais ou
federais, incidentes sobre o empreendimento, no processo construtivo,
condicionado à prévia autorização legal.
Sem dúvida, a concessão de subsídios está condicionada à disponibi-
lidade de recursos.
Existem recursos suficientes para atender essas diretrizes? Os recursos
do FNHIS são suficientes? Como está estruturado o FNHIS do ponto de
vista normativo?

2. DO FUNDO NACIONAL DE hABITAÇÃO


DE INTERESSE SOCIAL (FNhIS)

Como eixo estruturador do Sistema de Habitação de Interesse Social


(SNHIS) e da Política Nacional de Habitação (PNH), o FNHIS tem impor-
tância política e institucional, visto que reúne os recursos públicos desti-
nados exclusivamente a subsidiar a população de baixa renda, na qual se
concentra a maior parte do déficit habitacional brasileiro.
O FNHIS é um fundo de natureza contábil, cujo objetivo é centralizar
e gerenciar recursos orçamentários para os programas estruturados no
âmbito do SNHIS, destinados a implementar políticas habitacionais dire-
cionadas à população de menor renda (art. 7º). O FNHIS é uma Unidade
Gestora (UG) do Orçamento Geral da União (OGU), identificada pela ru-
brica UG 560015.
Para que o SNHIS tenha realmente uma estrutura descentralizada é
imprescindível que o desenho institucional do FNHIS possibilite esta des-
centralização, já que as políticas de subsídios serão implementadas com
os recursos desse fundo, pelo menos em tese.
De acordo com o art. 8º, I, da Lei 11.124/2005, o FNHIS é constituído
por: (1) recursos do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS),
além das dotações do Orçamento Geral da União (OGU), classificadas na
função de habitação; (2) contribuições e doações de pessoas físicas ou
jurídicas, entidades e organismos de cooperação nacionais ou interna-

2072
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

cionais; (3) receitas operacionais e patrimoniais de operações realizadas


com recursos do FNHIS; (4) receitas decorrentes da alienação dos imóveis
da União que lhe vierem a ser destinadas; e (5) outros recursos que lhe
vierem a ser destinados.
O FAS foi criado pela Lei 6.168, de 09 de dezembro de 1974, para dar
apoio financeiro a programas e projetos de caráter social que estivessem
enquadrados nas diretrizes e prioridades da estratégia de desenvolvimento
social dos Planos Nacionais de Desenvolvimento. Esta lei não especifica,
tampouco define, qualquer percentual de recursos do FAS a ser destina-
do diretamente ao FNHIS. Do ponto de vista normativo, o FAS também
atende às necessidades do Programa de Arrendamento Residencial (PAR),
atualmente absorvido pelo Programa Minha Casa Minha Vida(PMCMV).
O PAR foi instituído pela Lei 10.188, de 12 de fevereiro de 2001 para
atender a necessidade de moradia da população de baixa renda, sob a
forma de arrendamento residencial com opção de compra. Na data da
criação do FNHIS, 16 de junho de 2005, portanto, já estava em vigor a Lei
10.188/2001 a qual autoriza a Caixa Econômica Federal(CEF) a utilizar
os saldos disponíveis do FAS para atendimento exclusivo às finalidades
do PAR (art. 3º, I, a).
Portanto, sem expressa destinação de percentual de recursos a serem
alocados diretamente ao FNHIS, pelo menos no que tange aos recursos do
FAS, qualquer disponibilidade existente será carreada com exclusividade
às finalidades do PAR.
Com tais regramentos, verifica-se que o mesmo fundo (FAS) constitui
fonte de recursos para o PAR e para o FNHIS. Esses recursos a serem
carreados para o PAR e FNHIS sairão dos saldos disponíveis do FAS, o que
pressupõe saldo positivo e disponibilidade, portanto, são recursos futu-
ros e incertos, porquanto dependem da disponibilidade de saldo. Além
da incerteza quanto à obtenção de um saldo positivo, o legislador não
especifica o quantum a ser destinado ao PAR e ao FNHIS.
De acordo com o Relatório de Gestão do Conselho Gestor do
FNHIS(CGFNHIS) - 20104, esse fundo foi estruturado para viabilizar e arti-

2073
cular fontes de recursos permanentes para o financiamento da habitação
de interesse social, dispersas e sobrepostas em diversos programas.
Esse relatório informa que desde a sua criação, o FNHIS operou com
recursos provenientes de dotações consignadas no Orçamento Geral da
União, decorrentes de projeto de lei proposto pelo governo federal ou de
emendas parlamentares agregadas na fase de apreciação da proposta
orçamentária pelo Congresso Nacional.
Os demais recursos que integram o FNHIS (dotações do Orçamento
Geral da União, classificadas na função de habitação; contribuições e
doações de pessoas físicas ou jurídicas, entidades e organismos de coo-
peração nacionais ou internacionais; receitas operacionais e patrimoniais
de operações realizadas com recursos do FNHIS; receitas decorrentes da
alienação dos imóveis da União que lhe vierem a ser destinadas; outros
recursos que lhe vierem a ser destinados) também não possuem caráter
estritamente vinculante, na medida em que dependem de certa dose de
discricionariedade das autoridades competentes. Aqui também o legislador
não especifica qualquer percentual de repasse, o que conferiria o caráter
vinculante a esses recursos.
Contar com recursos oriundos de dotações orçamentárias e de emendas
parlamentares é por demais incerto e envolve uma componente política
que não garante nenhuma sustentabilidade do FNHIS, comprometendo a
permanência e continuidade do SNHIS.
Vale dizer, a inexistência de previsão legal vinculando percentual de
recursos mínimos a serem carreados para o FNHIS compromete a plena
efetividade do SNHIS a longo prazo.
De acordo com a Lei 11.124/2005, os recursos do FNHIS são vincula-
dos aos programas de habitação de interesse social. O legislador, além
de estabelecer essa vinculação finalística elencou as espécies de progra-
mas destacando-se: aquisição, construção, melhoria, reforma, locação
social e arrendamento de unidades habitacionais em áreas urbanas e
rurais, produção de lotes urbanizados para fins habitacionais, produção
de equipamentos comunitários, regularização fundiária e urbanísticas

2074
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dessas áreas, saneamento básico e infraestrutura complementares a esses


programas e aquisição de materiais para construção, ampliação e refor-
mas de moradias(art. 11). Os recursos do FNHIS também podem custear a
assistência técnica, nos termos da lei 11.888/2008, bem como a aquisição
de terrenos, desde que esta aquisição esteja vinculada à implantação de
projetos habitacionais (art. 11, §1º).
Outrossim, o referido art. 11 estabelece que a aplicação dos recursos
do FNHIS em áreas urbanas deve estar submetida à política de desen-
volvimento urbano expressa no plano diretor, instrumento previsto no
Estatuto da Cidade, ou legislação equivalente no caso dos municípios
excluídos dessa obrigação.
Os recursos do FNHIS serão aplicados de forma “descentralizada” pe-
los estados, Distrito Federal e municípios (art.12), desde que estes entes
ofereçam contrapartida segundo condições estabelecidas pelo CGFNHIS,
nos termos da Lei Complementar 101, Lei de Responsabilidade Fiscal.
Oferecida a contrapartida em conformidade com as exigências legais, o
ente federado ainda deverá cumprir as seguintes as formalidades previs-
tas nos incisos do art. 12.(constituir fundo, elaborar Plano de Habitação,
firmar termo de adesão e elaborar relatórios de gestão).
Se o FNHIS é o suporte financeiro do SNHIS que constitui um sistema
voltado para a habitação de interesse social, entendemos que é impres-
cindível que pelo menos parte desses recursos sejam não onerosos, a fim
de contemplar a população que não dispõe de qualquer capacidade de
pagamento. Todas as modalidades de ações previstas no PAR pressupõe
renda familiar mínima. O mesmo ocorre com o Programa Minha Casa
Minha Vida (PMCMV), que sucedeu o PAR.
A inexistência de previsão legal, neste sentido, contraria uma das di-
retrizes da PNH, segundo a qual devem ser viabilizados subsídios para a
habitação de interesse social, ampliação da destinação de recursos não
onerosos e perenes por parte da União, estados, Distrito Federal e municí-
pios a serem canalizados para o Fundo Nacional de Habitação de Interesse
Social e respectivos fundos habitacionais dos demais níveis de governo.

2075
Sem percentual mínimo de recursos vinculantes, qual a garantia de
sustentabilidade do FNHIS?

2.1 DA TRANSFERÊNCIA DE RECURSOS


E SUSTENTABILIDADE DO FNhIS

Segundo o referido Relatório de Gestão do CGFNHIS - 2010, desde a


edição da Lei nº 11.578, de 2007, que instituiu o PAC, os repasses lastreados
com recursos do FNHIS passaram a ter status orçamentário e financeiro de
transferências obrigatórias que, em conjunto com as ações incluídas nos
Projetos Prioritários de Investimentos (PPI), no Programa Pró-Moradia e nos
Projetos Multissetoriais Integrados Urbanos, compõem o PAC-Habitação,
o qual se insere no eixo de expansão dos investimentos em infraestrutura
social e urbana do País e visa ao desenvolvimento sustentável dos setores
produtivos ligados à habitação. No entanto, a descentralização dos recursos
do FNHIS para propostas não integrantes do PAC continua a ser realizada a
título de transferências voluntárias, por meio de Contratos de Repasse (CR)
da União aos estados, municípios e Distrito Federal, observado o disposto
nos artigos 11, 12 e 15 da Lei nº 11.124, de 11 de junho de 2005. Esse mo-
dus operandi também se encontra destacado nos Relatórios de Gestão do
CGFNHIS de 20115 e 20126.
Esse tratamento contábil diferenciado reflete nitidamente a aparência
de “descentralização” do SNHIS. A transferência obrigatória é direta e
automática. A transferência voluntária é indireta, intermediada pela Caixa
Econômica Federal e vinculada a determinado programa.
De acordo com o art. 25, da Lei Complementar 101/2001, entende-se
por transferência voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital
a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência
financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os
destinados ao Sistema Único de Saúde.
Essas definições comprovam a fragilidade do repasse de recursos do
FNHIS ao SNHIS mediante transferências voluntárias.

2076
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Portanto, a descentralização dos recursos do FNHIS para propostas


não integrantes do PACHabitação, no âmbito do SNHIS, continua sendo
realizada a título de transferências voluntárias, por meio de Contratos de
Repasse (CR) da União aos estados, municípios e Distrito Federal, obser-
vado o disposto nos artigos 11, 12 e 15 da Lei nº 11.124, de 11 de junho de
2005. As propostas que integram o PACHabitação passaram a ser objeto
de transferências obrigatórias, a partir da Lei nº 11.578/2007. Necessário
observar que o PACHabitação é um programa de dimensão macro, en-
quanto os recursos do FNHIS carreados ao SNHIS atendem necessidades
locais, no âmbito municipal.
Os Contratos de Repasse (CR) e Termo de Compromisso (TC) firmados
com base nos recursos do FNHIS obedecem aos atos normativos que
disciplinam a transferência de recursos financeiros oriundos de dotações
consignadas no Orçamento Geral da União (OGU),instrumentos esses
que preveem o aporte de contrapartida de estados, municípios e Distrito
Federal, na forma prevista pela Lei de Diretrizes Orçamentárias vigente,
pelos parágrafos 1º. e 2º. do art. 12, da Lei nº. 11.124, de 2005, e na Lei
Complementar nº. 101, de 4 de maio de 2000.
Contrapondo aos parcos recursos alocados no âmbito do SNHIS/FNHIS,
o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) estabelece como meta (art.
82-B, da Lei 11.977/2009) promover a produção, aquisição, requalifica-
ção e reforma de dois milhões de unidades habitacionais, a partir de 1o de
dezembro de 2010 até 31 de dezembro de 2014.
A Evolução das Despesas do PAC nos Orçamentos Fiscal e da Seguri-
dade 2007-2012 (em milhões) demonstra que em 2010 o total de despesas
no PMCMV era de 6.6 bilhões. Em 2011, atingiu 12,7 bilhões e para 2012
foi previsto um total de 11 bilhões . Os números são bem mais modestos
em relação ao saneamento (2,2 bilhões em 2010/2011 e 2.9 bilhões em
2012), abastecimento de água (526 milhões em 2010, 520 milhões em 2011
e 515 milhões em 2012) e mobilidade (655 milhões em 2010, 534 milhões
em 2011 e 698 milhões em 2012)7.
De acordo com o Relatório de Gestão do CGFNHIS 2010, além dos re-

2077
cursos alocados no Orçamento Geral da União, o FNHIS conta com a dis-
ponibilidade de recursos oriundos do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento
Social (FAS), transferidos pela CEF, para a UG 560015, em 18 de maio de
2007, no valor de R$418.608.279,49 (quatrocentos e dezoito milhões, seis-
centos e oito mil, duzentos e setenta e nove e quarenta e nove centavos).
O saldo disponível na UG 560015, em 31 de dezembro de 2010, era de R$
661.122.009,82 (seiscentos e sessenta e um milhões, cento e vinte e dois
mil, nove reais e oitenta e dois centavos), composto por rendimentos das
aplicações do Tesouro Nacional, na conta Contábil 111120122.
Consta no Relatório de Gestão do CGFNHIS 2011 que o saldo disponí-
vel na UG 560015, em 31 de dezembro de 2011, era de R$ 744.899.525,70
(setecentos e quarenta e quatro milhões, oitocentos e noventa e nove mil,
quinhentos e vinte e cinco reais e setenta centavos), composto por rendi-
mentos das aplicações do Tesouro Nacional, na conta Contábil 111120122.
O Relatório de Gestão do CGFNHIS 2012 aponta para um saldo dispo-
nível na UG 560015, em 31 de dezembro de 2011, de R$ 826.931.313,54,
também composto por rendimentos das aplicações do Tesouro Nacional,
na conta Contábil 111120122
Verifica-se que a partir de 2010, o aumento do saldo disponível na
UG 560015 é decorrente unicamente dos rendimentos das aplicações do
Tesouro Nacional, na conta contábil 111120122. O único registro de trans-
ferência de disponibilidade de recursos oriundos do FAS para a UG 560015
ocorreu em 18 de maio de 2007, segundo consta nos referidos Relatórios.
O mesmo Relatório de 2012 informa que o montante oriundo do FNHIS
repassado, independentemente de celebração do instrumento, em 2012,
chegou à casa dos 443 milhões de reais.
Sem a transferência vinculada de recursos ao FNHIS, não se pode
afirmar que o simples rendimento de aplicações do Tesouro Nacional
seja suficiente para garantir a sua sustentabilidade em função do maior
volume do déficit habitacional que se dá na faixa de renda até três salários
mínimos (89,6%).
No orçamento fiscal e seguridade de 2013 a alocação de recursos

2078
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

para o PMCMV totaliza 12,5 bilhões, enquanto o valor alocado ao FNHIS


alcança 581,111 milhões8.
Esses números comprovam a ênfase na produção de novas unidades
habitacionais em detrimento da qualificação dos espaços comunitários e
unidades habitacionais existentes. Não podemos afirmar categoricamente
qual será o efeito desse investimento maciço em novas unidades habita-
cionais a longo prazo, porquanto é necessária a investigação do estado
de conservação dos imóveis, em relação à qualidade dos materiais, o grau
de inadimplência dos beneficiários que irá refletir na sustentabilidade do
Programa e o nível de integração entre a cidade formal e informal.
Com efeito, de acordo com o Relatório de Gestão do CGFNHIS 2012,
existe uma “preocupação com a inserção urbana dos empreendimentos
no tecido urbano e com a manutenção da sustentabilidade dos empre-
endimentos e das famílias”. Tanto assim que foi criado o Objetivo 0756.
De acordo com este Relatório, “o referido objetivo destina-se a contribuir
para a elevação de qualidade da inserção urbana dos empreendimentos
habitacionais” e “sustentabilidade social dos empreendimentos em arti-
culação com as demais políticas públicas”.
Como a produção habitacional vem sendo concebida de forma centra-
lizada, sem integração com a PNH/SNHIS/FNHIS, sem um plano prévio
de regularização fundiária, sem controle do uso e ocupação do solo, não
há nenhuma garantia de sustentabilidade do FNHIS, tampouco que os
resultados futuros reflitam as diretrizes e princípios, fruto das reivindica-
ções dos movimentos populares.
O aumento do custo dos terrenos é um resultado imediato na produção
desenfreada de novas unidades habitacionais em função do crescimento
da demanda por imóveis urbanos.
Este panorama reflete a introdução de novas diretrizes políticas com-
pletamente divorciadas daquelas implementadas pela Política Nacional de
Habitação e refletidas no SNHIS/FNHIS. Conforme restou demonstrado,
o SNHIS é um sistema que exige o cumprimento de requisitos formais, a
exemplo de termo de adesão, Plano de Habitação, etc. Com o enorme fluxo

2079
de recursos provenientes do Programa Minha Casa Minha Vida(PMCMV),
a tendência é a redução do número de adesões ao SNHIS, priorizando-se
a construção de novas unidades habitacionais em larga escala em detri-
mento do planejamento urbano.
Corroborando com este entendimento, o Relatório de Gestão do CGF-
NHIS 2012 reconhece: “com o advento do programa Minha Casa, Minha
Vida e a temporária e relativa retração da importância do SNHIS, o ritmo
de adesão se reduz fortemente”. Outrossim, ressalta que a maior parte
dos municípios fez sua “adesão entre os anos 2006 e 2008”. Este dado
comprova a influência do colossal volume de recursos, a partir de 2009,
provenientes do PMCMV, na evolução e efetividade plena do SNHIS.
Portanto, a questão não é a insuficiência de recursos financeiros, mas
o modus operandi na gestão e alocação desses recursos.

3. O SNhIS E O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

Tanto a saúde quanto a moradia constituem direitos sociais fundamen-


tais, previstos no art. 6º, da CF/88.
Nesse passo, o art. 3º, da Lei nº 8080/909, estabelece que a moradia é
fator condicionante e determinante da saúde, assim como a alimentação,
o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação,
o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.
De fato, a inexistência de condições mínimas de habitabilidade com-
promete a saúde das famílias, transformando-se em uma questão de saúde
pública, ou seja, as condições de habitabilidade tanto reduzem quanto
aumentam o passivo das ações e serviços públicos de saúde, podendo
representar um fato gerador dos problemas de saúde pública. Quanto
mais existam condições mínimas de habitabilidade atendidas, menores os
investimentos em serviços públicos de saúde. Este é, portanto, um fator
condicionante e determinante da saúde. Há, desse modo, uma relação de
causa e efeito entre a moradia e a saúde pública.
No entanto, apenas a saúde foi contemplada com diretrizes consti-

2080
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

tucionais para as suas políticas públicas, além da previsão de recursos


mínimos. Nesta relação de causa e efeito, a moradia tem o status de direito
social fundamental, sem previsão constitucional quanto às diretrizes
mínimas de suas políticas de habitação, tampouco recursos mínimos
alocados ao FNHIS.
De acordo com Jairnilson Silva Paim, a democratização da saúde no
Brasil foi permeada por movimentos sociais organizados, compostos por
segmentos populares, estudantes, pesquisadores e profissionais de saúde,
cuja proposta foi a promoção da Reforma Sanitária e a implantação do
SUS na segunda metade da década de 70.
Essa raiz democrática e participativa também encontramos no SNHIS.
Tais relações normativas, materiais e políticas justificam o fato de
que o SNHIS tenha sido inspirado no Sistema Único de Saúde (SUS). Para
entender a relação entre o SUS e o SNHIS é necessário entender o meca-
nismo institucional de modelagem do SUS.
As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada
e hierarquizada, constituindo um sistema único, organizado conforme as
seguintes diretrizes: (I) descentralização; (II) atendimento integral e (III)
participação da comunidade (art. 198).
Para a implementação desta descentralização, foi decisiva a promul-
gação da Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000, a qual
inseriu os §§ 2º e 3º ao art. 198 da CF/98, que trata dos recursos mínimos
derivados da aplicação de percentuais sobre tributos federais estaduais e
municipais, conforme definido em Lei Complementar.
A Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, regulamentou
o §3º do art. 198 da CF/88, dispondo sobre os valores mínimos a serem
aplicados anualmente pela União, estados, Distrito Federal e municípios
em ações e serviços públicos de saúde.
A entrega de recursos destinada ao custeio de ações e serviços públi-
cos de saúde no âmbito do SUS é considerada transferência obrigatória,
condicionada apenas à (I) à instituição e ao funcionamento do Fundo e
do Conselho de Saúde no âmbito do ente da Federação; e (II) elaboração
do Plano de Saúde. É a dicção do art. 22.

2081
O Fundo de Saúde deve ser instituído por lei e mantido pela administra-
ção direta da União, estados, Distrito Federal e municípios, constituindo-se
em unidade orçamentária e gestora desses recursos (art. 14).
Situação diversa encontramos na operacionalização do SNHIS. Com
efeito, o SNHIS foi criado com o objetivo de viabilizar para a população
de menor renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e susten-
tável (art. 2º, I). Na sua estruturação e organização, deve ser observado o
princípio da descentralização (art. 4º, I, c).
Apesar desse regramento, é na sua operacionalização que se verifica
uma grande distância em relação ao SUS. O lócus da política urbana é o
município. Ademais, a política urbana, o planejamento e a reforma urbana
possuem como pilar de sustentação o acesso democrático ao solo urbano.
Isto faz uma enorme diferença.
Enquanto o SUS está vinculado às ações e serviços públicos de saúde,
cuja materialização é difusa e possui um menor valor agregado unitário
por serviço prestado(um posto de saúde atende dezenas ou centenas de
famílias), o SNHIS está necessariamente atrelado à terra urbana cujo valor
agregado é muito maior(uma unidade habitacional para cada família),
quando se considera o custo da terra urbana, das benfeitorias, acessões,
infraestrutura e demais elementos necessários para garantir a efetividade
do direito à moradia. Trata-se de um aspecto material que dá ao SNHIS
um atributo diferenciado.
No que tange ao desenho institucional e normativo vamos encontrar
importantes diferenças entre os dois sistemas. É o que demonstram os
Quadros 1 e 2.
O Quadro 01 destaca três atributos normativos em ambos os sistemas:
a) Previsão constitucional alusiva ao SUS, objetivada no art. 198, §1º,
contrapondo-se à inexistência dessa previsão para o SNHIS/FNHIS, criados
por lei ordinária (Lei 11.124/2005);
b) Percentual mínimo de recursos definido em Lei Complementar (LC).
No caso do SUS, tal previsão está contemplada no art. 198, §1º, da CF/88,
e foi expressamente regulamentada pela LC nº 141/2012. Ao SNHIS/

2082
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

FNHIS não foi alocado percentual mínimo de recursos através de norma


constitucional. Atualmente existe um Projeto de Emenda Constitucional
(PEC) nº 285 ainda em discussão na Câmara de Deputados. Importante
ressaltar que esse Projeto acrescenta artigo ao Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) para dispor sobre a vinculação de
recursos orçamentários da União, dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios aos respectivos Fundos de Habitação de Interesse Social, ou
seja, a princípio trata-se de uma vinculação temporária;
c) Descentralização como princípio. Tanto o SUS quanto o SNHIS pos-
suem este princípio positivado. No SUS, a descentralização como princípio
é prevista no art. 7º, Inciso Ix, da Lei 8.080/1990, enquanto no SNHIS está
objetivada no art. 4º, inciso I, alínea ‘c’, da Lei 11.124/2005.
Verifica-se que o único atributo comum a ambos os sistemas é a des-
centralização como princípio.
O Quadro 02 relaciona os seguintes atributos operacionais:
a) Descentralização orçamentária. Com efeito, para que a descentral-
ização ocorra efetivamente, a primeira condição é a fixação de percentual
mínimo de recursos, incidindo sobre determinados tributos da competên-
cia dos estados e municípios. Inexistindo parâmetros constitucionais
fixando percentual de recursos mínimos a serem alocados ao FNHIS, não
há respaldo para uma regulamentação posterior através de Lei Comple-
mentar ou Lei Ordinária. Consequentemente, inexiste descentralização
orçamentária efetiva no âmbito do SNHIS/FNHIS, comprometendo a sua
operacionalização;
b) Transferência de Recursos. No âmbito do SUS predominam as trans-
ferências obrigatórias, Fundo a Fundo. Esta modalidade de repasse confere
celeridade e autonomia aos municípios. No âmbito do SNHIS/FNHIS, os
recursos são repassados mediante transferências voluntárias, através
dos contratos de repasse firmados com a Caixa Econômica Federal (CEF),
desde que o projeto seja aprovado pelo Ministério das Cidades. Como cada
contrato de repasse está vinculado a um projeto específico, não há repasse
para os Fundos Municipais de Habitação, comprometendo a autonomia
dos municípios na esfera do planejamento urbano;

2083
c) Materialidade. No âmbito do SUS, a materialidade é objetivada nas
ações e serviços de saúde que atingem um número indeterminado de
destinatários. A materialidade, no âmbito do SNHIS/FNHIS está neces-
sariamente atrelada ao acesso à terra urbana, base de qualquer reforma
urbanística. Essa condição material é um atributo operacional diferenciado
do SNHIS/FNHIS, porquanto sem ele a questão da habitação não encontra
solução, ao contrário, contribui para o aumento do déficit habitacional;
d) Efetividade. A efetividade depende da realização dos atributos nor-
mativos. É a eficácia social destas normas. No Quadro 02, a efetividade
expressa, em verdade, uma consequência dos atributos operacionais.
A estrutura e organização do SUS é efetivamente descentralizada, per-
mitindo que sua operacionalização seja caracterizada pela permanência,
continuidade e capilaridade(atinge os mais diversos níveis de arrecadação
municipal). A descentralização do SNHIS não atingiu o nível operacional do
município. Consequentemente, a sua efetividade depende das aprovações
de projetos junto ao Ministério das Cidades e CEF, condição indispensável
para que um município receba recursos mediante Contrato de Repasse.
Assim, o Quadro 02 ilustra que, apesar dos atributos normativos previstos
no Quadro 01, do ponto de vista operacional, o SNHIS não é totalmente
descentralizado, comprometendo a sua plena efetividade.

quadro 01: Atributos Normativos do SUS e SNhIS/FNhIS

2084
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

quadro 02: Atributos Operacionais do SUS e SNhIS/FNhIS

4 OBSTáCULOS à EFETIVIDADE PLENA DO SNhIS

A pesquisa e análise jurídica das normas que constituem o Marco


Regulatório da Habitação de Interesse social revelam que o SNHIS,
comparado com a estrutura do SUS, jamais poderá apresentar o mesmo
ritmo de avanço em face do seu objeto fundamental que é a terra urba-
na, pressuposto inafastável para qualquer ação em termos de habitação,
configurando um obstáculo material. Todavia isto não significa impossi-
bilidade de efetividade, mas um grau de efetividade diferenciado do SUS
em razão do objeto em si.
Além desse principal atributo que diferencia o SNHIS do SUS, iden-
tificamos omissões do ponto de vista normativo que impedem que os
recursos fluam com a mesma capilaridade presente no SUS. O ponto
básico para essa fluidez seria a previsão constitucional de percentual
mínimo de recursos para o FNHIS, a partir das competências constitu-
cionais tributárias, com procedimento específico orçamentário.
As omissões normativas estão necessariamente atreladas a questões
políticas, posto que dependem de decisões discricionárias de autoridades
políticas, seja na elaboração legislativa ou edição de ato normativo.
No cerne das questões políticas, vamos encontrar mais uma vez

2085
a disputa de poder pela posse e propriedade da terra urbana, já que
existem grupos empresariais cujos interesses privados não coincidem
com os interesses sociais. Verifica-se, assim, a existência de obstáculos
normativos e políticos.
Quanto ao papel dos movimentos sociais, a apreciação crítica do
PMCMV nos leva a concluir que houve uma completa inversão de valores.
Após a concretização das conquistas gestadas por mais de vinte anos,
através da positivação de direitos almejados pela luta dos movimentos
sociais, assistimos a um retrocesso legislativo e procedimental particu-
larmente silencioso no âmbito do SNHIS.
Com efeito, é curioso observar o silêncio desses movimentos diante do
modus operandi da execução do PMCMV cujos critérios de cadastramento
dos beneficiários, por exemplo, podem ensejar a infringência do princípio
da isonomia. É o caso de Resoluções municipais que estabelecem como
critério local de hierarquização e seleção da demanda dos beneficiários
do PMCMV a vinculação da família a movimentos de luta pelo direito
à moradia com assento no Conselho do Fundo Municipal de Habitação.
Sem o controle social, através da mobilização das classes interessadas,
os instrumentos urbanísticos tendem a permanecer inaplicáveis, o Poder
Local não realiza o controle do uso e ocupação do solo, a base fundiária
fica superestimada com o aumento do preço da terra urbana e intensifi-
ca o processo de segregação espacial. Temos, então, a configuração de
obstáculos sociológicos.
Apesar da cláusula da função social da propriedade, a visão ortodoxa
do direito absoluto de propriedade, fundada no liberalismo clássico, ainda
pode influenciar decisões jurídicas e administrativas, podendo constituir
um obstáculo jurídico à efetividade plena do SNHIS.
Neste sentido, é um equívoco considerar que a Lei 11.977/2009
instituiu uma política nacional de habitação. Com efeito, esse diploma
legal contempla normas que incentivam a produção de novas unidades
habitacionais em larga escala, com metas quantitativas e financeiras e,
ao mesmo tempo, dispõe sobre instrumentos urbanísticos inovadores,

2086
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

voltados para a promoção da regularização fundiária, indicando uma


espécie de barganha política.
As questões de ordem administrativa, envolvendo a gestão munici-
pal, também repercutem na efetividade plena do SNHIS, na medida em
que estão atreladas à oportunidade e conveniência das decisões admi-
nistrativas. Sem o planejamento integrado à gestão, sem o controle do
uso e ocupação do solo urbano, a efetividade do SNHIS não avança. Isso
implica na utilização dos instrumentos urbanísticos de interesse social
com a apropriação desses instrumentos em prol de interesses privados.
Por exemplo, se o município não identifica as áreas suscetíveis de serem
submetidas ao parcelamento, edificação compulsória ou desapropriação,
haverá uma inércia na gestão do espaço urbano.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com tantos obstáculos à efetividade plena do SNHIS, surge a questão:


qual a solução para esse impasse? De fato, este impasse clama por solu-
ção porquanto se trata de um sistema cuja concepção resultou de amplo
debate e discussão, conferindo-lhe plena legitimidade democrática.
Ocorre que a solução para este impasse também deve partir de uma
fonte legítima. Ora, o SNHIS está pulverizado nos diversos municípios da
federação. Logo, não pretendemos apontar uma solução para problemá-
tica de tamanha complexidade, até porque não haveria legitimidade para
tal solução ser delineada em um trabalho individual. Assim, apontaremos
apenas diretrizes gerais que podem ser aplicadas a qualquer unidade da
federação, independentemente das peculiaridades regionais e locais.
Conforme restou comprovado, a questão fundamental não é insufi-
ciência de recursos financeiros, mas a sua gestão. Com efeito, o FNHIS
não recebe recursos decorrentes de transferências obrigatórias, o que
serviria de lastro para que os municípios realizassem reformas urbanas
com maior autonomia. Atualmente a operacionalização desses recursos
se dá mediante a celebração de contratos de repasse, cujos projetos estão
sujeitos à aprovação do Ministério das Cidades e Caixa Econômica Federal.

2087
Sem dúvida isto constitui um obstáculo operacional e normativo que
poderia ser minimizado com a aprovação da PEC nº 285, ainda que se
trate de uma vinculação temporária de recursos orçamentários da União,
dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Como esta vinculação está atrelada a recursos orçamentários, é possível
que municípios com menor capacidade de arrecadação não disponham de
recursos suficientes. Esta dificuldade operacional poderia ser enfrentada
através da celebração de consórcios públicos, com base na Lei nº 11.107,
de 06 de abril de 2005, que estabelece a possibilidade de constituição de
pessoa jurídica através de várias fases, por entes federados em conjunto,
objetivando consolidar a gestão associada para a consecução de fins de
interesse comum.
Para tanto, o consórcio público pode ser constituído sob a forma de
Associação Pública, com natureza jurídica de autarquia, ou Associação
privada, com base na lei civil, portanto, de regime jurídico híbrido.
Em 5 de janeiro de 2007 foi promulgada a Lei 11.445, instituindo dire-
trizes nacionais para o saneamento básico. O art. 15, inciso II, indica que
na prestação regionalizada de serviços públicos de saneamento básico, as
atividades de regulação e fiscalização poderão ser exercidas por consórcio
público de direito público integrado pelos titulares dos serviços.
Em 2 de agosto de 2010 foi promulgada a lei 12.305, instituindo a Po-
lítica Nacional de Resíduos Sólidos, tendo como um dos instrumentos o
incentivo à adoção de consórcios ou de outras formas de cooperação entre
os entes federados, com vistas à elevação das escalas de aproveitamento
e à redução dos custos envolvidos( art. 8º, inciso xIx). De acordo com o
art. 45, os consórcios públicos constituídos, nos termos da Lei no 11.107, de
2005, com o objetivo de viabilizar a descentralização e a prestação de servi-
ços públicos que envolvam resíduos sólidos, têm prioridade na obtenção dos
incentivos instituídos pelo Governo Federal.
Estes Diplomas Legais dialogam com a Política Nacional de Habitação
e Reforma Urbana.
A definição do escopo de atuação do Consórcio Público poderá depen-
der de uma aferição técnica, inserida em um estudo de regionalização no
âmbito do saneamento, resíduos sólidos urbanização, etc. Entendemos

2088
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

que isto não constitui obstáculo para a efetividade desses consórcios.


Contudo, a articulação política entre os entes envolvidos poderá reper-
cutir na efetividade desses consórcios, na medida em que, de acordo com
a Lei 11.107/2005, deve ser ratificado o protocolo de intenções através de
lei promulgada por cada um dos partícipes.
Portanto, ainda que existam soluções de ordem técnica exequíveis, a
efetividade dessas soluções convergirá sempre para a componente políti-
ca, configurando um impasse, ás vezes, de difícil solução, principalmente
quando se considera o modus operandi dos partidos políticos no Brasil.

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NOTAS

1 Titulação acadêmica: Doutorado e Mestrado em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia;
Instituição: Procuradoria Geral do Estado da Bahia
Cargo: Procuradora do Estado
e-mail: sorayaslopes@gmail.com
2 O Projeto Moradia foi uma proposta de desenvolvimento urbano e de erradicação do déficit habitacional con-
cebida pelo Instituto Cidadania em maio de 2000. Esse Projeto traçou as diretrizes básicas que posteriormente
foram encampadas pela Política Nacional de Habitação e legislação respectiva, notadamente a Lei 11.124/2005.
Já no plano de sua idealização o Projeto Moradia entendia o acesso à moradia digna como uma condição
básica de cidadania, devendo ser considerada prioridade nacional, com garantia de recursos e instrumentos
para sua concretização. (PROJETO MORADIA, Disponível em: <http://www.pt-pr.org.br/pt_pag/PAG%202004/
URBANISMO/Projeto%20Moradia.PDF>. Acesso em: 04. fev. 2012).
3 Ministério das Cidades. Política Nacional de Habitação. Brasília, 2004
4 Esse relatório é elaborado anualmente pelo Conselho Gestor do FNHIS, órgão integrante da Secreta-
ria Nacional de Habitação, de acordo com as disposições da IN TCU 63/2010, da DN do TCU nº 107, de
27 de outubro de 2010, da Portaria TCU 277, de 07 de dezembro de 2010 e Portaria CGU nº 2546, de 27
de dezembro de 2010, e apresentado aos órgãos de controle interno e externo como Tomada de Con-
tas anual a que esta Unidade está obrigada nos termos do art. 70 da Constituição Federal. Disponível
em: <http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/FNHIS/PrestacaoContas/2011_FNHIS_
REL_Gestao2010FINALRelatorioGestao_UJ%2056902_FNHIS.pdf>. Acesso em: 04 dez. 2011.
5 Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/FNHIS/PrestacaoContas/
Relatorio_Prestacao_Conta_2011.pdf>. Acesso em: 15 jul 2013
6 Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/FNHIS/PrestacaoContas/
FNHIS_Relatorio_Gestao_2012.pdf>. Acesso em: 15 jul 2013
7 Disponível em: <http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/sof/ploa2012/110831
_orc_fed_alc_todos.pdf>. Acesso em 18 mar. 2012.
8 Disponível em <http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/sof/LDO_2013/130415_Vo-
lume%20II.pdf>. Acesso em: 15 jul 2013.
9 Regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde.

2090
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Limites e possibilidades de
sistemas de políticas públicas:
uma análise sobre o SNHIS

Renata Gomes da Silva1

1 INTRODUÇÃO

Os sistemas de políticas públicas têm sido criados há anos visando


coordenar a atuação dos entes federados, em especial, em políticas de
competência comum. Sistema Nacional do Meio Ambiente, Sistema Úni-
co de Saúde, Sistema Único de Assistência Social, Sistema Nacional de
Cultura, Sistema Nacional de Promoção de Direitos e Enfrentamento à
Violência contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais en-
tre outros foram criados tendo como discurso o objetivo de coordenação
federativa nas políticas públicas. Foi criado também o Sistema Nacional
de Habitação de Interesse Social (SNHIS) por meio da lei nº 11.124/2005.
Existem diferentes leituras e abordagens na interpretação do que esses
sistemas representam para o federalismo no Brasil como observa Lotta;
Vaz (2012, p. 2):

Embora a literatura dê nomes e argumentos distintos a esse


movimento (re-centralização ou coordenação), a tendência
apontada é de um fortalecimento do governo federal que passa
a atuar como coordenador de políticas e diretrizes nacionais a
serem implementadas pelos municípios e estados, numa lógica
de padrões mínimos de atuação vinculados a repasse de recursos
com incentivos e induções.

É importante destacar que apenas os desenhos institucionais não


garantem a coordenação. O discurso é usado, mas não concretizado no
modelo ou no seu funcionamento. Desse modo, cabe uma ponderação

2091
crítica sobre os sistemas e suas limitações para ampliar a reflexão sobre a
construção de um Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano no país.

2. SNhIS: MODELO INSTITUCIONAL CENTRALIZADO

Segundo a lei de criação, o SNHIS tem como princípio a compatibili-


dade e integração das políticas habitacionais de todos os entes federados
e as políticas setoriais de desenvolvimento urbano, meio ambiente e
inclusão social.
No entanto, a estrutura institucional do sistema prioriza atores do
governo federal. A primeira observação é sobre o Conselho Gestor do
Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (CGFNHIS) que, segundo
a lei, deve ter composição paritária entre membros do Poder executivo e
da sociedade civil e com a composição definida por regulamentação do
governo central.
Essa definição veio com o decreto nº 5.796/2006, que limitou os repre-
sentantes do executivo aos representantes do executivo central, sem ne-
nhuma participação de membros dos entes federados, que apenas podem
comparecer às reuniões se convidados pelo Ministro das Cidades e sem
direito a voto. Nesse decreto também são definidas as modalidades que
podem ser financiadas pelo fundo, a limitação de que, quaisquer outros
programas tem que ser aprovados por esse mesmo conselho, bem como
as diretrizes que guiarão as decisões sobre os recursos. Em suma, apenas
aquelas políticas que o conselho defina que possam ser financiadas podem
receber recursos do fundo, o que limita o incentivo a modalidades desen-
volvidas pelos entes federados de acordo com suas especificidades locais.
O Conselho das Cidades (ConCidades) que conta com a participação dos
entes federados e membros da sociedade civil tem papel bastante limitado.
Os entes federados, depois da adesão, que inclui algumas condicio-
nalidades como a constituição de um plano, um conselho gestor e um
fundo, apresentam propostas para acesso aos recursos do fundo nacional.
A decisão sobre quais projetos dos entes federados serão financia-

2092
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

dos é realizada pelo Ministério das Cidades, que tem competência para
selecionar e definir critérios de seleção das propostas dos entes (art. 4º,
xVIII do decreto nº 5.796/2006), e pela Caixa Econômica Federal (CEF),
que analisa a viabilidade das propostas já selecionadas (art. 7º, VI do de-
creto nº 5.796/2006). Ou seja, no desenho descrito os entes não decidem
sobre a política, apenas oferecendo propostas dentro das modalidades e
diretrizes eleitas.
Outro ator importante da política habitacional e que fornece recursos
que deveriam estar vinculados ao sistema é o Conselho Curador do Fundo
de Garantia do Tempo de Serviço (CCFGTS) que é composto por represen-
tantes do governo federal e membros da sociedade civil em igual número.
É claro que aqui não se quer argumentar que apenas deixar as decisões
para os entes federados garanta melhores políticas públicas, mas se quer
apontar que a centralização das decisões no governo federal traz uma
homogeneização do modelo de política que pode não ser salutar para
um país com enormes desigualdades regionais como o Brasil, podendo
desestimular iniciativas locais.

3. SNhIS: FUNCIONAMENTO CENTRALIZADO

Além do desenho, o funcionamento cotidiano do sistema tem sido cen-


tralizado. As resoluções do conselho, por exemplo, têm se utilizado dos
ad referendum: das 53 resoluções do conselho, 9 são decisões do ministro
das cidades e 9 são referendos dessas decisões.
Algumas resoluções, como a de nº 27/2009 inclui entre as diretrizes
para escolha de propostas a complementariedade do Programa de Ace-
leração do Crescimento (PAC), destinando 40% dos recursos da Ação
Melhoria das Condições de Habitalidade de Assentamento Precários a
obras complementares do PAC e apenas 7% para propostas priorizadas e
aprovadas pelos conselhos locais de habitação de interesse social.
Essa resolução explicitamente subordina o FNHIS ao PAC e ao Programa
Minha Casa, Minha Vida (PMCMV):

2093
Considerando a necessidade de ajustar os critérios de execução
dos programas do FNHIS às diretrizes do Programa Minha Casa,
Minha Vida, de que trata a Medida Provisória nº 459, de 25 de
março de 2009, e Considerando a necessidade de viabilizar a
complementação de projetos inseridos no Programa de Acele-
ração do Crescimento – PAC.

A partir dela, a provisão habitacional sai do escopo do fundo, ampliando


o percentual destinado aos assentamentos precários.
O ConCidades publicou resoluções tratando do sistema: nas resolu-
ções recomendadas nº 3/2005, nº 14/2006, nº 16/2006, nº 27/2006 e nº
35/2007: são sugeridas ações e o envio de recursos para o fundo; já nas
resoluções nº 70/2009, nº 93/2010 e nº 114/2011: a preocupação maior
é integrar o sistema com o PMCMV e o PAC, especialmente por conta
do esvaziamento do fundo decorrente da priorização desses programas.

4. LIMITES DO SNhIS

Para estar regular no sistema é necessária a existência dos fundos,


conselhos e planos, além da correta prestação de contas. No entanto,
poucos entes conseguem manter a regularidade: em julho de 2013, dos 26
estados e DF, apenas 9 estavam regulares no sistema, ou seja, 18 estavam
impedidos de receber desembolsos de contratos já firmados e pleitear
novos recursos e dos 5.564 municípios apenas 883 estavam regulares, ou
seja, 15,87%. A burocratização e a falta de capacidade administrativa dos
entes federados, em especial dos pequenos municípios, podem compro-
meter o acesso ao fundo.
Além disso, a existência de uma fonte de recursos com finalidade
semelhante, menos contingenciamento orçamentário, menos controle
social e menos entraves, representado pelo PMCMV, traz um desestímulo
para a utilização do sistema e a busca pela regularidade. Nesse sentido, a
dificuldade do planejamento de políticas públicas de longo prazo esbarra
em programas pontuais, sem coerência com a proposta inicial. No caso
do PMCMV, boa parte do Plano Nacional de Habitação teve que ser igno-

2094
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

rado e o sistema teve que passar ao segundo plano, mesmo que os dois
tenham sido realizados pelo mesmo governo. Além disso, o papel dos
entes federados ficou resumido, basicamente, ao cadastro de interessados
em programas habitacionais, apenas criando novos critérios de seleção,
somados aos já impostos pelo governo federal.
O SNHIS não previu um incentivo estruturado à utilização dos ins-
trumentos urbanísticos, especialmente aqueles previstos no Estatuto da
Cidade. Dessa forma, municípios que ‘fazem sua lição de casa’ não tem
mais recursos direcionados aos seus territórios, já que as formalidades
exigidas no sistema são apenas indicadores de processo, demonstrando
o cumprimento de procedimentos formais. Os municípios que conse-
guem melhorar a distribuição dos vazios urbanos, fazer regularização
fundiária, demarcar ZEIS etc. não têm prioridade no investimento dos
recursos da habitação.
Já no PMCMV, as consequências são ainda mais evidentes para a
regulação urbanística, sendo necessário verificar até que ponto essas
mudanças pontuais fortalecem ou enfraquecem instrumentos como as
Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). No municípios de Feira de
Santana/BA, por exemplo, a lei nº 2.987/2009 enquadrou como ZEIS:
“as áreas representadas pelas glebas dos empreendimentos vinculados
ao programa Minha Casa Minha Vida, instituído pelo Governo Federal,
através da medida Provisória nº 459, de 25 de março de 2009, destinados
ás famílias com Renda de 0 A 3 Salários Mínimos.”
A lei nº 5.990/2012 do Município de Cascavel/PR definiu como ZEIS
“os imóveis de propriedade do Município ou que venham ser adquiridos
pelo Poder Público Municipal e COHAVEL e que sejam destinados a
construção de novos empreendimentos habitacionais de Interesse So-
cial.” Nesse caso, há um zoneamento extremamente pontual, permitindo
critério diferenciados de construção em qualquer imóvel destinado ao
programa, independente do entorno, do plano diretor ou do zoneamento
previamente determinado.

2095
Além da legislação urbanística, diversos municípios têm concedido
benefícios fiscais para a realização dos empreendimentos, inclusive mu-
nicípios de grande porte como Campinas e São Paulo, o que evidencia o
interesse dos municípios no programa, que os leva a se submeter a todas
as decisões do governo central.
Um ponto relevante a se destacar são as decisões tomadas fora do sis-
tema e que o influenciam. Nesse ponto, se podem observar as decisões de
outras esferas do governo, como as políticas de crédito, que tem impacto
significativo no preço da terra e na política habitacional de interesse social
e são tomadas pelo Banco Central – autarquia vinculada ao Ministério da
Fazenda - e pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) – órgão colegiado
formado por ministros do governo federal.
Recursos destinados à habitação, ou que se relacionam com a ques-
tão como o financiamento imobiliário, passaram ao largo do sistema e
as decisões sobre grande parte dos recursos não se vinculou ao âmbito
do MCidades e do CGFNHIS. No ano de 2011, por exemplo, foram liqui-
dados R$508.059.854,00 e pagos R$59.405.112,00 no âmbito do FNHIS2.
No mesmo ano foram disponibilizados para financiamento em habitação
popular pelo FGTS (BRASIL, 2011a): R$ 31.522.196.000,00 e para finan-
ciamento imobiliário pelo Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos
(SBPE): cerca de R$79.900.000.000,00 (BRASIL, 2011b, p. 39). Ou seja, a
grande maioria dos recursos da área não são decididas com a sociedade
civil ou com entes federados, restando a participação nas decisões sobre
as menores quantias ou na disputa pelos menores volumes de recursos,
segundo Lago (2011, p. 8): “De 2009 a março de 2011, o Programa MCMV
Entidades realizou a contratação de 9.001 unidades, no valor total de
R$440 milhões.(...) Para a produção empresarial, vimos anteriormente
que o Programa ‒nanciou, em menos de dois anos, 449 mil unidades,
segundo dados da Caixa.”
O modelo prioritário atual, que é baseado em financiamento e cons-
trução de unidades habitacionais novas, acaba priorizando atores como
a Caixa Econômica Federal (CEF), independentemente das competências

2096
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

constitucionais e legais e da estruturação de qualquer sistema, conforme


observa Bonduki (p. 97):

Em tese, o Ministério das Cidades é o responsável pela gestão


da política habitacional, mas, na prática, a enorme capilaridade
e poder da Caixa, presente em todos os municípios do país,
acaba fazendo que a decisão sobre a aprovação dos pedidos de
financiamentos e acompanhamento dos empreendimentos seja
sua responsabilidade.

A construção de unidades habitacionais é o programa mais mencionado


pelos municípios, segundo estudo de Brasil (2012, p. 9):

61% dos municípios implementaram programas de construção de


moradias em 2007-2008; a cooperação com outros órgãos públi-
cos é a forma predominante de realização desses programas: 41%
do total de municípios o fizeram em cooperação com o governo
federal, ao passo que 29% deles cooperaram com os estados.

Além dessas questões, o histórico de centralização da política habi-


tacional, especialmente a partir do Banco Nacional de Habitação (BNH),
também é um fator que auxilia a tornar a descentralização de decisões
mais difícil.
Limites dos sistemas
Enquanto o Sistema Único de Saúde (SUS)3 é tomado como exemplo,
autores, como Miranda (2003, p. 223) apontam a centralização em seu
funcionamento devido a diversos fatores:

A persistência de uma distribuição ainda muito desproporcional


de poder econômico, político e administrativo entre as esferas
de governo, em dissonância com as premissas normativas esta-
belecidas constitucionalmente para o pacto federativo; O fluxo
unidirecional de decisões e uso constante de normas ad hoc,
principalmente por parte do Ministério da Saúde, sem a neces-
sária negociação intergovernamental sobre a sua pertinência e
oportunidade; A preponderância das demandas do nível federal
de governo na definição da agenda decisória; A pouca trans-
parência na discussão sobre a utilização dos recursos e gastos
financeiros estaduais em saúde; A ausência de uma legislação
que defina de modo mais preciso as funções e prerrogativas das
Comissões Intergestores de Saúde.

2097
De modo geral, os sistemas apresentam limites quando há a tentativa
de descentralizar decisões e não apenas a execução de políticas públi-
cas. Importante observar que decisões são tomadas fora dos espaços
institucionalizados de disputa como ocorreu na construção do PMCMV:
a decisão se deu fora do ministério das cidades, dos conselhos setoriais,
sendo fruto de uma negociação com o setor da construção civil, fato de-
clarado, entre outros, pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil de
São Paulo (Sinduscon-SP):

O sindicato mobilizou-se e, junto com outras entidades do setor,


obteve do governo um programa anticíclico, iniciado com linhas
de crédito específicas e que culminou no lançamento do progra-
ma habitacional Minha Casa, Minha Vida, em março de 2009. A
partir de então, a construção recuperou-se e voltou a crescer. 4

A disputa entre os grupos de interesse se dá de forma desigual, já que


o empresariado dispõe de recursos econômicos e apoio político, influen-
ciando decisões, estabelecendo fortes laços com as autoridades e as buro-
cracias. A presença de doações de campanha desses setores, por exemplo,
está presente em grandes municípios5 e em pequenos municípios. 6
O SNHIS lida com uma competência comum aos entes federados de
promoção de programas de construção e melhoria das condições habi-
tacionais (art. 23, Ix da CF), já um sistema de desenvolvimento urbano
deverá lidar com diversas competências predominantemente municipais
como a promoção do ordenamento territorial (art. 30, VIII da CF).
Outro fator importante que limita a coordenação nos sistemas é a
frágil capacidade administrativa e financeira dos entes federados. Os
municípios, os pequenos em especial, têm dificuldade em manter quadros
administrativos bons e bem capacitados. A realidade do país inclui 73,26%
dos municípios com menos de 20.000 habitantes, segundo o Censo de
2010 (Brasil, 2010a). Dos municípios brasileiros, 33,1% declararam não
ter uma estrutura específica para a política de habitação (BRASIL, 2010b,
p. 75), ainda que subordinada a outras secretarias ou relacionada com
outras políticas; é claro que a presença de órgãos não é determinante pro

2098
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

sucesso da política e a pesquisa Munic tem problemas de inconsistência


dos dados, mas, ainda assim, são questões a se considerar no desenho
de qualquer sistema.
As deficiências na capacidade administrativa dos municípios é um
dos fatores que levou às sucessivas resoluções do conselho que foram
ampliando os prazos para o cumprimento das condicionalidades pelos
municípios. A adesão se deu de maneira parcial pelos municípios, segundo
Brasil (2008, p. 117):

23,8% (1.326 municípios) apenas formalizaram a adesão ao


SNHIS, sem avançar nas demais etapas de inserção no sistema;
56,9% (3.166 municípios) formalizaram a adesão ao SNHIS e
constituíram o Fundo Local e o Conselho Municipal de Habitação
de Interesse Social; 10,3% (apenas 571 municípios) formalizaram
a adesão ao SNHIS, constituíram o Fundo Local e o Conselho
Municipal de Habitação de Interesse Social e também elaboraram
o Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS).

Sobre as limitações financeiras dos municípios: mais de 54,5% dos mu-


nicípios brasileiros tem até 5% de receitas próprias no total de transferên-
cias e receitas próprias, segundo estudo do Ministério das Cidades (BRASIL,
2008, p. 135). Em 2011, dos 4.952 municípios que apresentaram dados
para o Tesouro Nacional, 2.877 tiveram gasto zero na função habitação. 7
Outras questões que ainda não foram aprofundadas no desenho dos
sistemas são: a metropolitana e a regional. A questão habitacional e o
desenvolvimento urbano transcendem os limites dos territórios munici-
pais. Planejar e implementar políticas públicas em áreas metropolitanas
é um passo importante no sentido da ampliação da efetividade das ações.
A atuação dos estados nos sistemas não tem propiciado uma inte-
gração regional. Apesar da previsão legal de fundos, planos e conselhos
regionais, os estados acabam disputando recursos com municípios, sem
o desenvolvimento de uma ação integradora.
Além dessas questões, a necessidade de lidar com as desigualdades
regionais em relação à renda, custo de vida, indicadores sociais entre
outros deve ser uma preocupação constante na construção de sistemas
bem modelados.

2099
As escolhas de políticas públicas realizadas pelo governo federal im-
põe as preferências desse, limitando tanto a criatividade local, quanto a
evolução da capacidade administrativa, especialmente na regulação ur-
banística. Os únicos mecanismos criados em que havia uma preocupação,
ainda que formal, com a existência de planos, conselhos e fundos foram
abandonados por esse outro modelo.
Mesmo após a aprovação de leis que instituem uma política pública
relacionando o papel dos entes federados, as disputas continuam se dando
e influenciando como essa lei será aplicada ou não aplicada, conforme
destaca Arretche (2011, p.29-30):

Posteriormente a aprovação legislativa, as burocracias governa-


mentais têm autoridade para traduzir leis em políticas efetivas,
simplesmente pela definição das regras de implementação das
políticas. Isso significa que um conjunto mais amplo de institui-
ções políticas nas quais se opera a barganha federativa, o conflito
de interesses entre executivo federal e executivos subnacionais.
Adicionalmente, envolveriam, pelo menos, as relações com
o Judiciário e as relações diretas entre os executivos dos dis-
tintos níveis de governo. Reduzir a análise do funcionamento
das instituições federativas à arena legislativa federal implica
necessariamente uma visão parcial e limitada dos recursos de
poder de que dispõem os distintos níveis de governo para fazer
representar seus interesses.

Como bem observa Ermínia Maricato (2011, p. 95) em sua análise crítica
sobre as conquistas dos últimos anos: “Não é por falta de leis que a maioria
da população brasileira foi historicamente excluída da propriedade formal
da terra, no campo ou na cidade, no Brasil. (…) Os movimentos sociais
devem lutar por novos marcos juridicos, mas devem considerer que isso
está muito longe de assegurar conquistas reais.”

5. CONCLUSÕES

Nem todas as questões do SNHIS podem se relacionar com os limites


do SNDU, mas observar as boas e más práticas na coordenação federativa
das políticas públicas pode melhorar tanto o desenho institucional, quanto

2100
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o funcionamento dos sistemas e redirecionar os objetivos da luta política.


O desenho nunca objetivou a coordenação e o funcionamento possi-
bilitou observar a centralização das decisões no governo federal. Não foi
garantido espaço relevante para o ConCidades e as instâncias de decisão
são do governo federal. Mesmo o CGFNHIS que tem a participação da
sociedade civil conta com o voto de qualidade do Ministro das Cidades.
A utilização do SNHIS não necessariamente garantiria melhores re-
sultados para a política, mas seu abandono prematuro impediu a estru-
turação de um sistema coordenado de políticas públicas de habitação e o
desenvolvimento das capacidades dos municípios. Foi possível ao governo
federal criar um programa (PAC) que subordina o sistema e outro (PMCMV)
que o desconsidera sem grandes objeções por conta do conselho gestor
ou dos entes, interessados na obtenção de recursos.
As decisões tomadas em outras instâncias, inclusive fora dos meio
institucionais legalmente estabelecidos, a centralização de recursos finan-
ceiros, políticos e administrativos em nível federal, a criação de estruturas
paralelas aos sistemas, a burocratização e as dificuldades no acesso aos
fundos, as desigualdades regionais, a falta de estímulos para a indepen-
dência e a criatividade dos entes federados, todos esses fatores podem
limitar uma verdadeira coordenação das políticas públicas.
É necessário compreender também que a conquista de diplomas legisla-
tivos progressistas é só parte da batalha e a implementação das conquistas
costuma ser ainda mais complexa e difícil. Garantir, verdadeiramente, a
coordenação e participação social nas políticas públicas passa por vários
processos de ampliação dos debates sobre a melhor maneira de lidar com
tantas desigualdades entre municípios e mesmo dentro destes.
De forma geral, é possível observar que modelo de sistemas não garan-
tem a coordenação dos entes federados e que se satisfazer com o discurso
e com a lei, ignorando os resultados obtidos, desfoca a luta política de
problemas fundamentais da política habitacional e urbana no país.

2101
REFERÊNCIAS

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norte-americana. In São Paulo em Perspectiva, n. 15, 2001, pp. 23-31.
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LAGO, Luciana Correa do. Autogestão da moradia na superação da periferia urbana:
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BONDUKI, Nabil. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e
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MARICATO, Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011.
MIRANDA. Alcides Silva de. Análise estratégica dos arranjos decisórios na comissão
intergestores tripartite do sistema único de saúde. 2003. Tese de Doutorado. Salvador:
Universidade Federal da Bahia.

2102
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

NOTAS

1 Mestranda em Direito Administrativo pela Universidade de São Paulo. Especialista em Políticas Públicas do
Estado de São Paulo. renata7gomes@gmail.com.
2 Consulta ao SigaBrasil. Disponível em: <http://www8a.senado.gov.br/InfoViewApp/listing/main.do?appKi
nd=InfoView&service=%2FInfoViewApp%2Fcommon%2FappService.do>. Acesso em 20.07.2012.
3 Previsto na Constituição de 1988 e regulamentado pela lei nº 8.080/90 e pela lei nº 8.142/90. O SUS foi
se estruturando especialmente a partir de Normas Operacionais Básicas (NOBs) e Normas Operacionais da
Assistência à Saúde (NOAS).
4 Disponível em: <http://www.sindusconsp.com.br/msg2.asp?id=4506>. Acesso em 20.05.2013.
5 Em São Paulo, o prefeito Gilberto Kassab foi cassado em 1ª instância devido a doações ilegais da Associação
Imobiliária Brasileira, uma associação de fachada para o Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação
e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo (Secovi).
6 Em Dracena/SP, por exemplo, município com menos de 45.000 habitantes, na campanha de reeleição do
prefeito (Célio Rejani – PV) constatou-se que de um total de doações de R$209.430,00 havia doações de:
R$500,00 de uma empresa de corretagem de imóveis, R$2.200,00 de duas empresas de construção de edifícios
e R$ 22.400,00 de três empresas de incorporação de empreendimentos imobiliários. Para o candidato vitorio-
so, com uma campanha mais modesta de R$ 72.659,54, consta a doação de R$3.000,00 de uma empresa de
incorporação de empreendimentos imobiliários.
7 Disponível em: <http://www3.tesouro.fazenda.gov.br/estados_municipios/index.asp>. Acesso em 20.07.2013.

2103
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O Estatuto da
Metrópole como sistema
abstrato moderno

Wagner Barboza Rufino1


Tatiana Cotta Gonçalves Pereira2

“(...) Entre nossos hábitos mais encantadores figura a capacidade


de sermos sofisticados criadores de regras, e compulsivos viola-
dores dessas mesmas regras.” 3

INTRODUÇÃO

A partir de uma revisão acerca de conceitos de modernidade e mo-


dernização – e de suas relações com os processos de urbanização – este
trabalho faz uma reflexão sobre a ligação entre sociedade e suas insti-
tuições, observando o rebatimento desta ligação sobre a regulação do
espaço metropolitano no Brasil.
O trabalho localiza o Brasil no mapa estabelecido pela nova geografia
urbana internacional, no âmbito de uma possível modernidade radicali-
zada estabelecida pelo processo de globalização do modo de produção
capitalista na sua fase contemporânea.
Ao observar a questão urbana no país, o texto foca e dá relevo à im-
portância da discussão sobre seus espaços metropolitanos, apresentando
como tema central uma análise do Projeto de Lei do Estatuto da Metró-
pole (PL 3460/04), o qual traz em seu bojo os fundamentos e objetivos
da Política Nacional de Planejamento Regional Urbano, regulamentando,
dentre outros temas, a questão metropolitana no país. A intenção não
é construir uma crítica profunda ao projeto, mas sim propor questiona-
mentos que de alguma forma possam contribuir para aquilo que pode vir
a preencher uma importante lacuna e cumprir um importante papel na
política urbana brasileira.

2105
1. MODERNIDADE, MODERNIZAÇÃO
E A CIDADE CONTEMPORâNEA

As urbes dão significado e sedimentam ao longo da história o movi-


mento das sociedades em suas variadas dimensões. Ideologias, modos
de vida e de produção marcaram distintos momentos, mantendo uma
relação recíproca de causa e efeito com a formação do espaço urbano. Um
jogo de espelhos que ganha evidência e complexidade em momentos de
inflexão, dado à capacidade das cidades de fazerem parte e de refletirem
o processo de construção da civilização.
Segundo Giddens4: “Modernidade refere-se a estilo, costume de vida ou
organização social que emergiram na Europa a partir do século xVII e que
ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”.
O Estado-nação moderno formata e concentra os poderes simbólicos,
ideológicos, políticos e militares em um arranjo ate então jamais visto. O
Estado figura como o grande orquestrador de uma rede de instituições que
operam o que Giddens5 denomina por sistemas abstratos. Segundo o autor:

A cada vez que alguém saca dinheiro do banco ou faz um depó-


sito, acende casualmente a luz ou abre uma torneira, envia uma
carta ou passa um telefonema, está implicitamente reconhecendo
as grandes áreas de ações e eventos seguros e coordenados que
tornam possível a vida social moderna.
(...) A confiança em sistemas abstratos é a condição do distancia-
mento tempo-espaço e das grandes áreas de segurança na vida
cotidiana que as instituições modernas oferecem em comparação
com o mundo tradicional. (GIDDENS, 1991, p.116).

Contudo, as relações interpessoais, o contato vis-à-vis, ainda exer-


cem importante papel no exercício da confiança necessário para o fun-
cionamento dos sistemas. Estado e demais instituições demandam um
campo de contato, uma interseção, que corporifica sua existência e os
apresentam como experiência real. A figura de um governante ou a co-
missária de bordo de uma companhia aérea são – para além de indivíduos
desempenhando suas funções – figuras simbólicas que materializam seus
sistemas abstratos.

2106
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Para Ascher6 seria mais correto utilizarmos o conceito de moderni-


zação, uma vez que a modernidade não é um estado e sim um processo
resultante de três dinâmicas socioantropológicas que se combinam de
forma heterogênea já na Europa da Idade Média: 1) a individualização, 2)
a racionalização e 3) a diferenciação social. A individualização estaria no
reconhecimento do indivíduo em detrimento do grupo, a racionalização
corresponderia à substituição da tradição e do folclore pela razão e a
diferenciação social estaria ligada à divisão técnica e social do trabalho.
O autor divide o processo de modernização em três fases: 1) a alta mo-
dernidade, 2) a modernidade média e 3) a terceira modernidade. Para ele,
há uma dimensão espacial que parece refletir a entrada das sociedades
ocidentais na alta modernidade e as consecutivas transferências para a
modernidade média e para a terceira modernidade. Ascher7 sublinha a
importância dos rebatimentos destas mudanças de fase nos territórios
urbanos, denominando tais inflexões por Revoluções Urbanas Modernas.
A Primeira Revolução Urbana Moderna – a da alta modernidade – no
que diz respeito à dimensão espacial, fez-se “moderna” ao pensarem e
realizarem projetos, ao colocarem em prática desenhos de desígnios a
partir de referências clássicas e arquitetura barroca.
A Segunda Revolução Urbana Moderna – a da modernidade média
– seria a derivação da evolução agrícola associada à Revolução Indus-
trial. A cidade da modernidade média foi base da produção e palco da
reprodução do conhecimento técnico e do capital em um âmbito de
pensamento urbanístico de modelos e estruturas uniformizadoras. A mi-
gração campo-cidade e a incapacidade de absorção de toda mão de obra
disponível agudizaram um contraditório cenário de produção de riquezas
face a uma crise social nos países do capitalismo industrial. A resposta
para este paradoxo estaria na crença do poder de regulação do capital e
posteriormente na formação dos Estados de Bem-Estar Social.
No início do século xx, sob o paradigma do modo de produção fordista,
a organização do espaço urbano passou a derivar-se da lógica produtiva
e foi parte de um projeto de “sociedade da eficiência”, regulado pelo equi-

2107
líbrio entre as relações de produção e acesso ao consumo, submetido ao
controle da fábrica e das leis que regiam o quadro de responsabilidade
recíproca entre Estado, empresa e empregado. Num período qualificado
por Ascher8 como: “taylorista-fordiano-keynesiano-corbusiano”, os gover-
nos das nações capitalistas centrais tomaram para si a responsabilidade
da manutenção do “bem estar” dos estratos sociais na tentativa da pro-
moção da boa relação homem-trabalho-capital. Este ciclo teve seu ápice
nos “Trinta Gloriosos”, sublinhando o período pós-guerra como a situação
fértil para a materialização deste projeto de sociedade no meio urbano.
O bom desempenho das economias das nações centrais após a Segunda
Guerra, que de certa forma também alcançou algumas regiões de países
do então Terceiro Mundo, sofreu alterações a partir da década de 1970. Os
avanços da produção industrial na Europa, Japão e em algumas regiões
subdesenvolvidas acabaram por corresponder diretamente ao alarga-
mento da demanda e da produção, que expandiu a escala dos mercados
e colocou em cheque a rigidez do modelo fordista de acumulação. Novas
sendas foram estabelecidas para o avanço das economias capitalistas,
ingressando estas em um novo período de acumulação – o pós-fordismo.
De acordo com Harvey9 podemos reconhecer as transformações ocorri-
das na sinergia entre diversos fatores, tais como: (1) a reestruturação dos
processos produtivos, (2) a flexibilização das normas de regulação dos
mercados diretamente associada ao desmonte dos modelos de Estados
de Bem-Estar Social, (3) a busca por novos mercados, (4) o crescimento
do poder das grandes corporações, (5) o incremento de população, (6) a
financeirização da economia, (7) a disseminação das novas tecnologias
de informação, dentre outros.
Segundo Ascher10, as transformações deflagradas pelos processos
de reestruturação e globalização dão inicio à terceira modernidade e
localizam a cidade contemporânea no centro da Terceira Revolução
Urbana Moderna.
O total da população urbana, que correspondia a 7% da humanidade no
começo do século xx, equivale atualmente a aproximadamente 50 % dos

2108
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

habitantes do planeta. Segundo Harvey11:“The twentieth century has been,


then, the century of urbanization”. Tornou-se evidente então uma nova ge-
ografia urbana internacional, que vem estabelecendo distintos papéis para
cada classe de cidade de acordo com a posição de seus Estados-Nação.
Na superabundância de uma sociedade denominada “Supermoderna”
por Augé12, a cidade contemporânea é o lugar de sua modalidade essen-
cial: o excesso. É o “lugar do excesso” que exponencializa a racionalidade
científica moderna, uma modernidade radicalizada e universalizada. Essa
metacidade em suas diversas escalas catalisa e suporta uma enormidade
factual. No paradoxo do excesso de espaço e do encolhimento do planeta,
a exclusão social (ou digital) e o atraso econômico distanciam, ao passo
que o olho do satélite, a internet, as rodovias, os trens de alta velocidade
e os aviões nos aproximam em poucas horas, instantes, ou instantanea-
mente. Na exacerbação do poder de catalisação e centrifugação da gran-
de cidade contemporânea, Ascher13 denomina por metápole a até então
“metrópole”, a cidade mãe, indicando a multiplicação exponencial de sua
presença e influência.
Para Ascher14 a cidade contemporânea é a continuação de um processo
que parece caminhar para a formação de sociedades ainda mais racionais,
mais individualistas e mais diferenciadas.
O mundo em modernização saiu literalmente patinando do século xx
e chegou ao século xxI com o planeta em transformação em uma veloci-
dade e escala que provavelmente levarão algumas décadas (ou séculos)
para serem compreendidas. A difusão do transporte e da comunicação de
massa, a aviação, o antibiótico, o cubismo, a psicanálise, as tecnologias
nucleares, a produção fordista, a reestruturação produtiva, as viagens
espaciais e as novas tecnologias da informação são progressos que, se
tornaram a vida na Terra mais longa e segura de uma forma geral, cami-
nham em paralelo à formação de enormes passivos sociais, econômicos e
ambientais. O século xx foi – e o início do século xxI se apresenta – como
períodos de mazelas, ambos marcados por guerras, pela ansiedade, pelo
incremento populacional e pela miséria.

2109
As cidades estão na interseção de praticamente tudo aquilo que vemos
por um lado como avanço – e por outro como crises. Os vigorosos pro-
cessos de urbanização e metropolização do século xx, ainda em curso,
evidenciam o papel das cidades como o centro da dimensão espacial,
como o grande cenário de todo esse movimento.

2. O BRASIL MODERNO E URBANIZADO

(...) O Estado que vestiu homens de uniforme, de modo que estes


pudessem ser reconhecidos e instruídos para pisar, e antecipada-
mente absolvidos da culpa de pisar, foi o Estado que se encarou
como a fonte, o defensor e a única garantia da vida ordeira: a
ordem que protege o dique do caos. Foi o Estado que soube o
que a ordem devia parecer, e que teve força e arrogância bas-
tante para proclamar que todos os outros estados de coisas são
desordem e o caos, como também para obriga-los a viver sob
essa condição. Foi este, em outras palavras, o Estado moderno
– que legislou a ordem para a existência e definiu a ordem como
a clareza de aglutinar divisões, classificações, distribuições e
fronteiras. (BAUMAN, 1998, p.28)

O Brasil é um bom exemplo para se pensar sobre uma nação que se


pretende moderna e que convive com a realidade das glórias e passivos
das expectativas cumpridas e das não cumpridas de seus projetos de mo-
dernização – todos solapados pelo imperativo do capitalismo globalizado.
O primeiro passo ou a primeira imagem poderia ser a da frase da bandeira
brasileira: “Ordem e Progresso”.
Apesar dos recentes avanços dos programas sociais implementados
na última década, o país segue uma cartilha desenvolvimentista pautada
no crescimento do Produto Interno Bruto, nas metas de inflação e na
responsabilidade fiscal. Além de ser um dos grandes exportadores de
commodities do mundo, o Brasil possui uma diversificada economia pro-
dutiva nos setores secundário e terciário. Para tanto, é importante que se
reflita acerca do padrão de desenvolvimento estabelecido pela e para a
sociedade brasileira – e como este padrão impacta sobre o espaço urbano
do país. Para Santos:

2110
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Se por desenvolvimento se entende o crescimento do PIB para


assegurar mais bem-estar às populações, é hoje fácil mostrar
que o bem-estar das populações não depende tanto do nível de
riqueza quanto da distribuição da riqueza. A falência da miragem
do desenvolvimento é cada vez mais evidente, e, em vez de se
buscarem novos modelos de desenvolvimento alternativo, talvez
seja o tempo de começar a criar alternativas de desenvolvimento.
(SANTOS, 2001, p.28).

Coloca-se a questão de como o Brasil se apresenta no início do século


xxI, quando ora aparentamos estar na ‘crista da onda’ e ora nos damos
conta de que ainda não chegamos à modernidade e tão pouco à contem-
poraneidade da modernidade radicalizada. Podemos também pensar que
estruturalmente somos uma grande sobreposição de todos estes tempos,
tudo em rápida mutação. Mas isso não basta. Tal problematização é apenas
um princípio para se começar a busca por possíveis caminhos.
O Brasil chegou ao século xxI como um país industrializado onde mais
de 80% de sua população vive em cidades. Passando por um dos mais
rápidos movimentos de migração interna e êxodo rural vistos no globo
e ingressando num processo de industrialização que toma vulto a partir
dos anos 1930, o Brasil hoje é um país essencialmente urbano. Quinta
maior economia do planeta, o país figura atualmente na linha de frente
das rotas de investimentos internacionais e conta com importantes ativos,
que configuram um terreno fértil dentetor de grandes capitais: recursos
naturais, diversidade produtiva, polos de inovação e indústria de alta
tecnologia, grandes mercados, importantes bacias hidrográficas, capital
intelectual, novas reservas de petróleo, dentre outros.
As cidades brasileiras da Terceira Revolução Urbana Moderna são
importantes destinos de um grande volume de recursos, que formam
verdadeiras nuvens de dinheiro, crédito e capital especulativo sobre o
espaço construído. Estamos com estas “nuvens” sobre nossas cabeças
e precisamos saber o que fazer com elas. Os problemas são diversos e
atingem vários setores da sociedade. Enquanto isso, territórios urbanos
são transformados, as franjas das cidades se expandem, torres e equipa-
mentos anônimos são erguidos, a crise da mobilidade se agrava e tudo

2111
parece dar continuidade à monótona experiência estética e espacial da
cidade capitalista.
Segundo Ribeiro15 as faces multiescalares da geografia urbana brasileira
podem ser vistas como bons ativos. Contudo, para que as cidades e terri-
tórios sejam mais que plataformas ou suportes para o desenvolvimento do
capitalismo na sua fase contemporânea, a busca por coesão, cooperação
e justiça social devem exercer papel central na definição de políticas que
visem o desenvolvimento.
O recente histórico da questão urbana no Brasil perece revelar dois
projetos de país que se sobrepõem e chegam a confundir, sobretudo ao
refletirmos sobre os desdobramentos espaciais das ações anticrise, dos
investimentos público e privado no campo da habitação e das ações para
a realização da Copa do Mundo de Futebol da FIFA em 2014 e dos Jogos
Olímpicos de 2016 na Cidade do Rio de Janeiro. Se por um lado a aprovação
do Estatuto da Cidade, a criação do Ministério das Cidades, o aumento de
recursos destinados às políticas urbanas e o Projeto de Lei do Estatuto da
Metrópole (PL 3460/04) em tramitação no Congresso Nacional revelam
uma maior importância das cidades nas agendas dos governos, por outro
não se percebe melhoras efetivas em relação ao cumprimento da função
social da propriedade ou da gestão dos territórios urbanos.
De fato, todas estas ações parecem sucumbir a um modus operandi
instrumentalizado e cooptado pelo discurso hegemônico. Enquanto o
Estado não parece ser capaz de dar conta daquilo que paira sobre nós, se
parece abrir mão de seu papel regulador e passa a operar de forma ágil
no fomento do processo de acumulação – as pressões que se colocam se
materializam na nossa frente, forçando-nos a enxergar ou a nos resignar.
Se nos posicionamos em favor de uma movimentação contra a apatia,
vale observar o que escreve Harvey:

Embora o resultado sugira a inexistência de alternativas, o ponto


de partida sustenta haver ao menos mil e uma alternativas a
disposição quando nos empenhamos em testar possibilidades
futuras com toda a paixão e imaginação de que dispomos. (...) O
capitalismo não passa de um gigantesco sistema especulativo,
alimentado, como Keynes reconheceu explicitamente, por alguma

2112
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

combinação entre “expectativas” (dignas de respeito) e “com-


portamento especulativo” (desprezível). (HARVEY, 2004, p.270).

Símbolos de força e arrogância da cidade capitalista se sustentam


sobre frágeis alicerces e sob nuvens passageiras. Para Baudrillard16, a
queda das torres gêmeas do World Trade Center de Nova Iorque em 2001
coloca em primeiro plano uma destruição simbólica que se segue da
física, como se aquilo que encarnava o poder – o emblema, a imagem
da potência – não se suportasse mais e ao invés de ter sido destruído,
simbolicamente se suicidou. É necessário que se avalie o que vem sen-
do feito nas cidades brasileiras no momento em que o entorpecimento
coletivo da sensação de que ‘chegou a nossa vez’ parece não dar conta
de que as nuvens passam. Olhar para o passado e observar o presente,
lembrar torres desmoronando, a Grécia e a Espanha dilaceradas, são
importantes exercícios para tentarmos evitar práticas suicidas que che-
guem às vias de fato quando esse Zeppelin que nos sobrevoa partir, ou
quando explodir sobre nossas cabeças.

3. APONTAMENTOS SOBRE A
qUESTÃO METROPOLITANA NO BRASIL

Segundo o relatório intitulado “Regiões de Influência das Cidades” ela-


borado pelo IBGE em 2007, O Brasil possui atualmente 5.564 municípios,
sendo 12 metrópoles, 70 capitais regionais, 169 centros sub-regionais,
556 centros de zona e 4.473 centros locais. Para as metrópoles, a subdi-
visão do IBGE estabelece três categorias: A) Grande Metrópole Nacional:
São Paulo; B) Metrópole Nacional: Rio de Janeiro e Brasília; C) Metrópole:
Manaus, Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba,
Goiânia e Porto Alegre.
As abordagens em relação à questão metropolitana no Brasil divergem
em diversos campos, partindo pela própria definição de Região Metropo-
litana. O geógrafo Marcelo Lopes de Souza explica o surgimento de uma
metrópole a partir das aglomerações urbanas:

2113
Se uma das cidades que formam uma aglomeração urbana crescer
e se destacar demais, apresentando-se como uma cidade grande
e com uma área de influência econômica, pelo menos, regional,
então não se está mais diante de uma simples aglomeração,
mas de uma metrópole. (...) o importante é que todos os espaços
urbanos se achem fortemente “costurados”, especialmente com
a ajuda da “linha” mais importante, sob esse aspecto, que são os
deslocamentos diários de trabalhadores, grande parte dos quais
trabalha no núcleo metropolitano e reside nas cidades vizinhas
a este. Metrópoles são realidades socioespaciais que, na maioria
dos países, passam a ter a sua existência formalmente reconhe-
cida: são chamadas, nos EUA, de áreas metropolitanas (...) e, no
Brasil, regiões metropolitanas. (SOUZA, M. L. 2011, p.33).

No Brasil existem 12 regiões metropolitanas identificadas pelo IBGE, que


adota como critério a extensão da influência da cidade principal. Assim,
existem metrópoles regionais (Belém, Manaus e Goiânia), nacionais (Porto
Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Fortaleza e Brasília) e
globais (São Paulo e Rio de Janeiro).
Spink, Teixeira & Clemente17 estabelecem um critério a partir do local
de moradia da população metropolitana: o primeiro grupo tem em seu
município central 70% da população da RM (Maceió, Salvador, São Luis,
Fortaleza e Belém), o segundo grupo tem de 50-60% de sua população total
no principal município (Londrina, Aracaju, Goiânia, Natal, João pessoa,
Curitiba, São Paulo, Maringá e Rio de Janeiro) e o terceiro grupo, onde
menos de 50% da população vive na cidade-sede (Belo Horizonte, Recife,
Porto Alegre, Campinas, Santos e Vitória).
O art. 6º, I do Estatuto da Metrópole (Projeto de Lei 3460/04) que será
adiante abordado, assim definiu Região Metropolitana:

é o agrupamento de Municípios limítrofes, que apresente, cumu-


lativamente, as seguintes características:
a) um núcleo central com, no mínimo, 5% (cinco por cento) da
população do
País ou dois núcleos centrais que apresentem, conjuntamente,
no mínimo, 4%
(quatro por cento) da população nacional;
b) taxa de urbanização acima de 60% (sessenta por cento), para
cada um
dos Municípios integrantes da região;
c) população economicamente ativa residente nos setores se-
cundário e
terciário de, no mínimo, 65% (sessenta e cinco por cento), consi-

2114
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

derado cada um dos Municípios integrantes da região;


d) urbanização contínua em, no mínimo, 50% (cinquenta por
cento) dos
Municípios componentes da região.

Portanto, a norma ainda em estudo prevê uma combinação de critérios


mais rígidos do que os critérios da Geografia ou do Urbanismo, e que leva
em conta a densidade demográfica, as atividades econômicas (tipicamente
urbanas) e a taxa de urbanização de municípios limítrofes, estando implí-
cita, em nosso entendimento, a relação hierárquica e de trocas.
A caracterização de fronteira entre municípios e de relações interdepen-
dentes levaram à necessidade de pensar uma gestão compartilhada para
essas regiões, pois, inevitavelmente, existem temas de interesse comuns,
como mobilidade e vias de comunicação, saúde, abastecimento de água,
tratamento de esgoto, disposição final de resíduos, combate à poluição,
temas que ultrapassam as fronteiras municipais.
Ao examinarmos o estado da arte em práticas nacionais já estabe-
lecidas na busca por soluções para a questão regional-metropolitana,
Paula Ravanelli Losada em interessante artigo18 faz uma revisão do grau
de autonomia dos municípios na história da Federação brasileira, bem
como busca estabelecer o momento em que a questão metropolitana
ganha tratamento jurídico. A jurista observa que a gestão da metrópole
se inicia no regime militar19, especialmente na década de 197020, e que
nessa época elas se tornaram “instâncias políticas importantes” (2010,
p.265) e que houve “avanços consideráveis, sobretudo do ponto de vista
urbanístico e ambiental.” (idem, p. 265).
A partir da Constituição de 1988, a organização político-administrativa
brasileira aprofunda a descentralização política, garantindo autonomia
aos municípios, que se tornam, assim, entes federativos dotados de poder
de auto-organização, auto legislação, autogoverno e autoadministração.
Esse novo modelo, sui generis, dificulta a gestão da região metropolitana
posto que não esta não se caracteriza como ente federativo. Assim, em-
bora existam relações de dependência entre municípios que compõem a

2115
metrópole, juridicamente cada um deles atua de forma autônoma na gestão
de seu território e na resolução de seus problemas. O que queremos dizer
com isso é que no modelo de Federação adotado por nossa Constituição,
a região metropolitana não é ente federativo, mas o município é. Logo, a
região metropolitana é espacialmente maior que um município, é, na ver-
dade, uma reunião de diversos municípios, mas não é ente federativo, não
tendo autonomia política. Tal situação pode levar a uma série de conflitos
políticos, jurídicos, legislativos, administrativos, etc. A questão central
nos parece ser como garantir que a gestão das regiões metropolitanas21
funcione se ela é formada pela união de entes autônomos – municípios?22
Assim, embora nosso modelo de federalismo seja cooperativo23, a confi-
guração de um ambiente colaborativo no Brasil no que se refere à gestão
metropolitana enfrenta dificuldades devido a essa realidade extremamente
descentralizada pós-Constituição de 1988.
Nesse contexto, é possível apontarmos que os elementos fomentadores
da superação de tal lógica não se viabilizarão sem a promoção de uma
agenda política com base na governança, na coesão social e na gestão
adequada da dimensão espacial. Na esfera jurídica, há muito é aguardada
uma lei que estabeleça diretrizes gerais para os estados poderem criar
as Regiões Metropolitanas, o que parece ser a proposta do Estatuto da
Metrópole. Nesse sentido, “a concretização do federalismo cooperativo
brasileiro depende, portanto, da construção de uma norma infraconstitu-
cional, isto é, de regras e procedimentos claros que confiram uma forma
mais institucionalizada para a cooperação intergovernamental (Silveira,
2002)” (LOSADA, 2010,p. 270)
As maiores regiões metropolitanas do país apresentaram redução no
ritmo de crescimento de suas populações já na década de 1980. Contudo,
a reestruturação da economia e do espaço urbano, assim como a elevação
do padrão de vida e consumo seguem demandando grandes investimentos
em planejamento e em infraestrutura.
É importante que as diretrizes que conduzam à efetivação de ações e
projetos garantam que integração e diversidade estejam presentes como

2116
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

premissas na elaboração de normas, no planejamento territorial e nos


projetos urbanos. Os que hoje atuam sobre as escalas metropolitana e
regional no Brasil reconhecem, mais uma vez, em instrumentos consa-
grados como a regulação e zoneamento do uso da terra, caminhos para a
materialização do ambiente desejado. De qualquer maneira, ainda existem
distintas e complexas questões a serem solucionadas: (1) A proposição de
políticas urbanas nacionais que rompam a rigidez institucional e geren-
cial, unindo de forma realmente colaborativa os entes federativos; (2) A
ampliação da participação da sociedade civil e de seus diversos atores em
um efetivo ambiente de governança multilateral; (3) A implementação de
políticas e projetos que atinjam demandas compatíveis às distintas escalas
e realidades, com foco na alocação racional de recursos, na prestação de
serviços eficientes, na redução de problemas ambientais e na provisão de
infraestrutura; (4) A elaboração e viabilização de planos regionais e planos
diretores; (5) A articulação entre esses planos; (6) A evolução da combi-
nação entre planos e projetos urbanos e (7) A diplomacia permanente.
Segundo Klink24, é difícil identificar “um arranjo único e ótimo” den-
tre as ações que tentam estabelecer alguma coordenação e parceria no
Brasil – em um contexto de duas décadas de afastamento do tema da
governança metropolitana e de fragmentação municipalista – submetido
ao inegável impacto da globalização sobre a estrutura do Estado nacional
desenvolvimentista fordista25.
Dentre todas as frentes que a atual realidade urbana brasileira pode
demandar, podemos sublinhar três importantes desafios para os que se
preocupam com o futuro de nossas cidades e territórios: 1) Metrópoles
industriais sendo transformadas em cidades de serviços submetidas à
lógica do capital internacional de grande mobilidade, face a uma estru-
tura social de baixa mobilidade; 2) Preparar novos territórios produtivos
para receberem politicamente, espacialmente, legalmente e socialmente
a parcela da economia real produtiva que se desloca para as franjas ou
para fora das metrópoles e 3) Garantir a permanência da base produtiva
no país, frente à nova geografia internacional do trabalho e ao poder
imantado do fenômeno China26.

2117
Visto o modelo de assimetrias e desigualdades em curso, é importante
que as ações em andamento associadas a novos movimentos a favor da
incorporação de dimensões políticas aos territórios metropolitanos ga-
nhem efetividade, para que o caminho em direção à implementação de
uma governança urbana democrática, eficiente e justa tenha seguimento.

4. O ESTATUTO DAS METRóPOLES

O Estatuto da Metrópole - Projeto de Lei 3460/04 foi recentemente


desarquivado e se encontra em tramitação no Congresso. Segundo o Ob-
servatório das Metrópoles27, o Estatuto vem preencher uma lacuna deixada
pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257, 2001) sobre um arcabouço
que ampare a questão metropolitana e o desenvolvimento “regional-
-urbano”. Embora a legislação brasileira já regule de alguma forma a
dimensão regional-urbana, o Estatuto pretende dar agilidade efetiva às
ações neste campo. Como parte de seu escopo, ele atualiza os conceitos
de Região Metropolitana (RM), Aglomeração Urbana (AU), Microrregião
(MR) e Região Integrada de Desenvolvimento Regional (RIDE) nas suas
diferentes possibilidades de instituição; estabelece os fundamentos, dire-
trizes e objetivos da Política Nacional de Planejamento Regional Urbano
(PNPRU) e cria o Sistema Nacional de Planejamento e Informações Re-
gionais Urbanas (SNPIRU).
Contudo, consideramos que há equívocos na condução das ações
que pretendem preencher o “vazio político” da gestão das metrópoles no
Brasil. Os argumentos dos autores do Projeto de Lei (PL) em defesa da
instrumentalização legal para a regulação do espaço metropolitano no país
estão pautados em um pensamento estratégico e em uma visão econômica
evolutiva, que entende a metrópole do século xxI como uma entidade em
transição do status de “espaço dos serviços” para “espaço dos eventos”. Se
os territórios em processo de metropolização estão órfãos de lei, as tenta-
tivas de superação desta anomia política não deveriam se dar, em nossa
opinião, através de ideologias tão alinhadas ao pensamento hegemônico,

2118
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

aos discursos pró-competitividade, ao enaltecimento do espetáculo e do


turismo, sob pena de não concretizarem o direito à cidade e produzirem
mais segregação socioespacial, ao invés de reduzi-las.
O Projeto de Lei per se já se apresenta como um avanço, uma vez que
reitera a discussão sobre macroplanejamento urbano no Brasil, recolocada
na pauta política do país. Não deixa de ser certa ousadia legislativa da
União28 tentar estabelecer diretrizes gerais para o desenvolvimento urbano
de um país tão heterogêneo, ainda mais com a problemática já colocada
da autonomia municipal frente à metrópole. Nesse sentido, fica claro que
o Estatuto da Metrópole, se aprovado, será lei geral, cabendo aos estados
– tal qual estatui o art.25,§3º da CF/88 – a lei específica de criação de cada
região metropolitana, com seu limite geográfico, suas funções públicas de
interesse comum, seus órgãos de planejamento e execução.
O PL está estruturado em quatro Títulos: I) Da Política Nacional de
Planejamento Regional Urbano (PNPRU), II) Do Sistema Nacional de
Planejamento e Informações Regionais Urbanas (SNPIRU), III) Da Gestão
Democrática e IV) Das Disposições Gerais. O que pretendemos aqui é
realizar uma análise acerca de seu conteúdo uniformizador, dos sistemas
de atualização propostos e de como sua estrutura trata da participação
sobre os processos de tomada de decisão.
O inciso III do art. 3º do PL estabelece que um dos objetivos gerais da
Política Nacional de Planejamento Regional Urbano (PNPRU) é:

promover, por meio da União, a elaboração de um conjunto de


critérios técnicos de referência nacional, que contemple, entre
outros, aspectos estruturais, funcionais, sociais, econômicos,
hierárquicos, tipológicos e espaciais de centros urbanos na rede
brasileira de cidades, visando a classificação de Municípios e a
caracterização de unidades regionais urbanas (...)

Para atender tal dispositivo, o art. 5º estabelece que a cada dez anos
será realizada uma pesquisa nacional que visa analisar a configuração das
cidades brasileiras em vários aspectos, como crescimento demográfico,
processo de urbanização, mudanças funcionais e espaciais, entre outros.
Já o art. 10 do projeto estabelece os instrumentos através dos quais as

2119
ações da PNPRU serão executadas, dentre eles os “planos nacional, regio-
nais e setoriais urbanos de ordenação do território e de desenvolvimento
econômico e social” (inciso I). E o art. 13 estatui o prazo de quatro anos
para rever e atualizar tais planos.
Ora, ao analisarmos os textos normativos, verificamos a proposta de
levantamento e produção de grandes conteúdos e uma atualização em
completo descompasso com a pesquisa proposta no art. 5º, sendo que, em
nossa percepção, ambas carecem de estruturas de atualização em tempos
compatíveis às nuances e à velocidade das transformações em curso na
nova geografia urbana brasileira e internacional. Já o desenvolvimento
do Sistema Nacional de Informações Georrefenciadas (do planejamento
regional urbano) proposto no inciso VI do art. 19 parece configurar uma
estrutura mais adequada de informações desde que realmente inseridas
em um âmbito de permanente atualização.
No art. 8º, inciso IV, o PL apresenta como diretriz geral para a imple-
mentação da PNPRU:

o fomento à integração regional, por parte das unidades regionais


urbanas, mediante a adoção de medidas que objetivem ações
voltadas à complementaridade e competitividade entre
regiões nacionais e internacionais, ao bem-estar social, ao
aumento da produção e da exportação de bens e serviços, à
geração de receitas e de empregos e à arrecadação de tributos.
(grifos nossos)

Embora de forma ampla, ao propor medidas voltadas à complemen-


taridade e competitividade entre regiões nacionais, o projeto apresenta
um paradoxo entre cooperação e disputa em seu conteúdo, o que parece,
inclusive, ir contra a ideia “do desenvolvimento de uma regionalização
urbana homogênea, democrática, socialmente representativa, intergo-
vernamental, integradora, estimulante e dirigida à auto sustentabilidade”,
constante em sua justificativa.
Outro dispositivo que merece atenção é o art. 12, § 2º e seu inciso I, que
estabelece a realização de audiências públicas no processo de elaboração
dos planos da PNPRU. As audiências públicas se configuram como instru-

2120
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mento de participação popular nas democracias participativas, mas têm


se mostrado uma prática frágil e/ou insuficiente principalmente porque
não são dotadas de poder deliberativo. Nos processos de Licenciamento
Ambiental, esse instrumento foi reduzido a mero ato formal de procedi-
mento29. Portanto, a fim de que se atinja a diretriz estabelecida no art.8º,
VI (“participação popular no processo de planejamento regional urbano
e de tomada de decisões, no acompanhamento da prestação de serviços,
obras ou funções públicas de interesse comum em nível regional”), nos
parece essencial a possibilidade de participação efetiva da população nas
audiências públicas, a fim de ser esclarecida e mesmo propor alternativas.
Ainda no viés da participação popular no jogo democrático, o Conselho
das Cidades passa a ter, pelo projeto, competência ampliada, para deliberar
também sobre questões relativas ao Sistema Nacional de Planejamento
e Informações Regionais Urbanas. A norma em formação prevê ainda
a criação, pelo Executivo, de um Grupo de Assessoramento da Política
Nacional de Planejamento Regional Urbano, de caráter técnico, cuja es-
trutura também contará com representantes da sociedade civil ligados às
regiões metropolitanas, ao Fórum Nacional de Entidades Metropolitanas
(FNEM), dentre outros.
No art. 17, o PL estabelece os conteúdos mínimos dos planos propostos.
De acordo com os incisos:

I – objetivos e diretrizes gerais, definidos em conjunto com os


Estados, Distrito Federal e Municípios integrantes de unidades
regionais urbanas;
II – formulação, de modo articulado e integrado, com os níveis
de governo identificados no inciso I deste artigo, das ações
necessárias à realização das metas e objetivos estabelecidos,
considerando que a programação, a coordenação e a execução
das funções públicas de interesse comum deverão, sempre que
possível, ser unificadas;
III – análise de alternativas de crescimento demográfico, de evo-
lução de atividades produtivas e de modificações dos padrões de
uso e ocupação do solo urbano;
IV – diretrizes e critérios para a participação financeira da União
no fomento aos programas regionais de desenvolvimento urbano;
V – propostas para a instituição de áreas sujeitas a limitações
administrativas, visando a proteção do meio ambiente, de mo-
numentos, de obras e de bens de valores histórico, artístico e

2121
cultural; a preservação de florestas, da fauna, da flora, de sítios
arqueológicos e de paisagens naturais notáveis;

Possivelmente seja este um dos pontos críticos do projeto. Apesar de


dar relevo à importância da regulação do uso do solo, propondo inclusive a
demarcação de áreas sujeitas a limitações administrativas, o texto aponta
para a participação da União nos programas regionais de desenvolvimento,
mas não define a fonte de recursos para a elaboração dos planos.
Podemos apontar que o Estatuto da Metrópole é moderno em sua ten-
tativa de homogeneizar o tratamento jurídico do desenho institucional
das diversas regiões metropolitanas, e em suas bases de dados e mapas
em tempos marcados – e que ainda pertenceria a uma realidade moderna
radicalizada em suas pretensões de incorporação da participação da socie-
dade nos processos de tomada de decisão, da atualização permanente de
dados e em seu compasso com a operação da lógica neoliberal competitiva.
Poderíamos também observá-lo como um instrumento estandardizador,
quando se coloca de forma estratégica frente aos desafios de gerir me-
trópoles na atual fase de capitalismo hegemônico.
Segundo Santos:

Há um desassossego no ar. Temos a sensação de estarmos na orla


do tempo, entre um presente quase a terminar e um futuro que
ainda não nasceu. O desassossego resulta de uma experiência
paradoxal: a vivência simultânea de excessos de determinismo
e de excessos de indeterminismo. (SANTOS, 2001, p.42).

Seria possível dizer que o Estatuto das Metrópoles está na orla do tem-
po ou que ele tenta juntar ordem e desordem? O simples fato de tratar de
uma escala tão ampla que intrinsecamente embute uma enormidade de
escalas já causa inquietação. No mundo atual, mapas e dados em tempos
marcados, como propõe o PL do Estatuto da Metrópole, são insuficientes
para dar conta do real. Um levantamento contínuo e parametrizado de
dados georreferenciados através da atualização permanente talvez seja
capaz de iniciar o difícil cumprimento do acompanhamento das mutações
em andamento.

2122
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Se por um lado, as instituições da modernidade não dão mais conta


da velocidade das transformações, do envolvimento político e das lutas
políticas – a presença institucionalizada do Estado se faz necessária em
escala local, regional, nacional e global de forma a contribuir com as ações
e fiscalizar o próprio Estado. Porém, há um afastamento do indivíduo mo-
derno dos processos de tomada de decisão dos sistemas abstratos. Para
Giddens30: “A exclusão da maioria das arenas onde as políticas de maior
consequência são elaboradas e as decisões tomadas força uma concen-
tração sobre o eu; este é um resultado da falta de poder que a maioria
das pessoas sente”. O Estatuto da Metrópole mantém este afastamento
moderno ao estabelecer formas de participação frouxas (audiências
públicas) ou mesmo juridicamente questionáveis (poder deliberativo do
Conselho das Cidades).
É importante que a ciência, as instituições e seus sistemas abstratos
questionem sempre suas certezas, uma vez que a realidade sempre andará
um passo a frente mantendo uma boa dose de descontrole. É um eterno
recomeço. Segundo Maffesoli31, a razão moderna fechada em si vai de
encontro as suas próprias pretensões racionalistas, que intrinsecamente
carecem da atualização imposta pela realidade. De acordo com autor ao
escrever sobre as transformações em curso no planeta a partir das últimas
décadas do século xx:

É frequente, da parte dos observadores sociais, interpretar as


mudanças de valores que se manifestam neste fim de século
como a mais nítida expressão de um retorno do irracionalismo.
Pode-se dizer, de preferência, que se trata, simplesmente, da
mais adequada expressão de um racionalismo levado aos mais
extremos limites. Não mais reconhecendo-se na lógica racional
do “dever-ser”, a realidade social “se vinga” e toma, em tudo e
por tudo, a contramão daquilo que, desde a filosofia das luzes, se
tinha constituído com tanta dificuldade. (MAFFESOLI, 2005, p.33).

Há de se avaliar se o ambiente de governança proposto pelo Estatuto


das Metrópoles seria capaz de lhe proporcionar confiança como sistema
abstrato. Por enquanto, a definição do espelho proposto pelo Estatuto
parece aberta (se é que ele propõe um). Quem será a aeromoça deste

2123
sistema? É necessário que o Estatuto como sistema abstrato do Estado
faça do Estado um sistema presente. É compreensível que o Estatuto da
Metrópole seria uma tentativa de presença do Estado em escalas mutantes
difíceis de operar sobre. Mas não podemos ter um projeto que não vá além
da manutenção da lógica estratégica do modo de produção capitalista
como única alternativa. Segundo Santos:

Os espelhos da sociedade não são físicos, de vidro. São conjuntos


de instituições, normatividades, ideologias que estabelecem cor-
respondências e hierarquias entre campos infinitamente vastos
de práticas sociais.
(...) Quanto maior é o uso de um dado espelho e quanto mais
importante é esse uso, maior e a probabilidade de que ele adquira
vida própria. Quando isto acontece, em vez de a sociedade se ver
refletida no espelho, é o espelho que pretende que a sociedade
o reflita. De objeto do olhar, passa a ser, ele o próprio, olhar.
Um olhar imperial e imperscrutável, porque se por um lado, a
sociedade deixa de se reconhecer nele, por outro não entende
sequer o que o espelho pretende reconhecer nela. É como se o
espelho passasse de objeto trivial a enigmático super-objeto, de
espelho passasse a estátua. Perante à estátua, a sociedade pode,
quando muito, imaginar-se como foi ou, pelo contrário, como
nunca fio. (SANTOS, 2001, p.47 e 48).

O reconhecimento do outro, a solidariedade 32 pode estabelecer princí-


pios que forneçam instrumentos alternativos ao constante estabelecimento
de ordem sobre as coisas. A racionalidade moderna, o espelho transfor-
mado em estátua ou a onipotência correm o constante risco imposto pela
realidade que, de uma hora para outra, entrará em choque, se vingará,
quebrará seus espelhos ou por fim, se suicidará.

6 CONCLUSÃO

A modernidade parece se esgotar ou se radicalizar pelas suas pro-


messas não cumpridas, pelas cumpridas e pelas excedidas. De qualquer
forma, a emancipação permanece como um de seus pilares, tratando-se
de um exercício de renovação ininterrupto através de práticas capazes de
instituírem os anseios das sociedades.
As recentes manifestações ocorridas no Brasil (Jornadas de Junho)

2124
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

bateram de frente com estruturas rígidas e autoconfiantes, e ambas não


se reconheceram, como uma avalanche de neve que se choca a uma
pirâmide no deserto. Embora não o deslegitime, a questão da autonomia
municipal frente à metrópole, a frouxidão do que diz respeito à participação
deliberativa e a ausência de clareza das fontes de financiamento para o
desenvolvimento dos planos propostos pelo Estatuto da Metrópole o faz
parecer ultrapassado antes mesmo de nascer. Para que o estatuto sirva de
espelho ele precisará ultrapassar sua própria condição de espelho. Temos
que poder entrar naquilo que ele propõe – e aquilo que ele propõe deve
ser suficientemente atualizado e democrático. Suas estruturas precisam
ser capazes de fomentar a formalização de práticas sociais instituintes.
Ele precisa absorver e refletir as constantes mudanças da sociedade e
suas escalas de ação devem ser as quantas forem necessárias para sua
constante atualização.
Em relação ao conteúdo do projeto que diz respeito à elaboração de
planos, é importante que o Estado se faça presente para que as frentes
de trabalho abertas pelo planejamento metropolitano não resultem em
uma homogênea massa de planos uniformizadores estandardizadores.
Ao escrever sobre a questão metropolitana no Brasil, Lefèvre33 aponta
aspectos positivos e negativos daquilo que já se construiu no país em prol
da redução da desarticulação dos territórios urbanos. Contudo, o autor
faz uma importante observação sobre o paradoxal desempenho do Estado
nesta tarefa:

Se o Estado não se apressa para dar uma base política, adminis-


trativa e financeira às metrópoles, não é porque se desinteressa
por estes territórios. É por estar, ao contrário, muito presente e
por quase sempre vê-los como contrapoderes potenciais a sua
autoridade sobre o território nacional. (LEFÈVRE, 2009, p.302).

O Estatuto da Metrópole como um sistema abstrato pode funcionar


como um espelho-instrumento inserido em uma base reflexiva maior de
um Estado presente. Porém a presença do Estado não será suficiente caso
este não seja capaz de cumprir sua tarefa de constante atualização (quase

2125
que em tempo real). À participação cumpre uma parte importante desta
atualização, pois dela vem as demandas diretas capazes de não deixarem o
espelho virar estátua. Nazismo, comunismo, capitalismo, ditaduras – tudo
parece ter virado estátuas – estruturas duras e determinantes da maneira
das pessoas se colocarem no mundo. Um possível caminho talvez esteja
na combinação de (1) ações e projetos inseridos em um (2) plano orien-
tado por uma (3) política de Estado que entenda seu papel de gestor – em
um campo que detém dívidas sociais históricas e que lança perspectivas
sobre a configuração da sociedade brasileira porvir.

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NOTAS

1 Mestre em Urbanismo (PROURB/FAU/UFRJ), Doutorando em Urbanismo (PROURB/FAU/UFRJ). Professor


do Departamento de Projeto de Arquitetura da UFRJ. Pesquisador do LADU (PROURB/FAU/UFRJ), vinculado
ao CNPq.wagnerrufino3@gmail.com
2 Mestre em Direito da Cidade (UERJ), Doutoranda em Sociologia e Direito (UFF). Professora de Direito Ambien-
tal, Agrário e Fundiário da UFRRJ (Seropédica). Pesquisadora do LADU (PROURB/FAU/UFRJ). tatianacotta75@
gmail.com
3 HARVEY, D. Espaços de Esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 273.
4 GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1991, p.11.
5 GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1991.
6 ASCHER, F. Os novos princípios do Urbanismo. São Paulo: Romano Guerra, 2010.
7 ASCHER, F. Os novos princípios do Urbanismo. São Paulo: Romano Guerra, 2010.
8 ASCHER, F. Metápolis: Acerca do Futuro da Cidade. Oeiras: Celta Editora, 1998, p.54.
9 HARVEY, D. Condition of postmodernity: An enquiry into the origins of cultural change. Cambridge:
Basil Blackwell, 1992.
10 ASCHER, F. Os novos princípios do Urbanismo. São Paulo: Romano Guerra, 2010.
11 HARVEY, D. Justice, Nature & the Geography of Difference. Oxford: Blackwell Publishers, 1996, p. 403.
12 AUGÉ, M. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas:
Papirus, 1994.
13 ASCHER, F. Metápolis: Acerca do Futuro da Cidade. Oeiras: Celta Editora, 1998.

2127
14 ASCHER, F. Os novos princípios do Urbanismo. São Paulo: Romano Guerra, 2010.
15 RIBEIRO, L. C. Q. Os desafios da reforma urbana nas metrópoles brasileiras. In: Klink, J. (org.).
Governança das metrópoles: Conceitos, experiências e perspectivas, 75-98. São Paulo: Annablume, 2010.
16 BAUDRILLARD, J. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.
17 SPINK, P. K.; TEIxEIRA, M. A. C.; CLEMENTE, R. Governança, governo ou gestão: O caminho das
ações metropolitanas. In: Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles. v.11, nº 22. Pág. 453-476.
São Paulo: EDUC, 2009.
18 LOSADA, P.R. O Comitê de Articulação Federativa e o Desafio da Governança Metropolitana no
Brasil. In: Klink, J. (org.). Governança das metrópoles: Conceitos, experiências e perspectivas, 259-287. São
Paulo: Annablume, 2010.
19 “Ela surge de forma tardia, já no auge de metropolização do país.” (ob. cit., p. 262)
20 Segundo a autora, as nove primeiras regiões metropolitanas foram criadas pelas Leis Complementares
14/73 e 20/74.
21 Cuja competência é dos estados, segundo art.25,§3º da CF/88.
22 Podemos citar como exemplo a construção do aterro sanitário de Seropédica, planejado para receber o lixo
dos municípios de Seropédica, Itaguaí e Rio de Janeiro. A inauguração do aterro, em março de 2011, foi feita pelo
prefeito do Rio, e com a ausência proposital do prefeito de Seropédica. Embora o empreendimento se localize
em seu território de gestão, o prefeito de Seropédica viu sua oposição ser anulada pelo argumento de que a
disposição final de resíduos sólidos é assunto de interesse regional, no caso, da metrópole do Rio de Janeiro.
23 Segundo LENZA (2010, p.342), é o tipo de federalismo em que as “atribuições serão exercidas de modo
comum ou concorrente”, tal qual podemos observar as competências estabelecidas nos arts. 23 e 24 da CF/88.
Nesse sentido, nos parece urgente a edição de uma Lei Complementar nos moldes do parágrafo único do art.23
da Constituição para definir como se dará a cooperação nessa questão específica, tal qual recentemente foi
editada a LC140/11 para regulamentar as competências ambientais.
24 KLINK, J. A reestruturação produtivo-territorial e a emergência de uma nova agenda metropolitana:
O panorama internacional e as perspectivas para o caso brasileiro. In: KLINK, J. (org.). Governança das
metrópoles: Conceitos, experiências e perspectivas, 7-17. São Paulo: Annablume, 2010.
25 A partir da década de 1970 as metrópoles brasileiras passaram por um processo dialético de avanço da
metropolização paralelo à desmetropolização (SANTOS, 2004), ou seja, junto à permanência do poder de
catalisação das áreas metropolitanas e à consolidação de São Paulo como o grande nó econômico e informa-
cional do país, nas últimas décadas constatam-se taxas de incremento produtivo e populacional em outros
territórios, com destaque para as cidades médias.
26 Embora alerte sobre o risco de um possível caminho em direção à desindustrialização do país, dado à
exposição a fatores como a sobrevalorização da moeda local e o poder de atração do gigante asiático, Nassif
(2008) não constata em suas análises – até o início da segunda metade dos anos 2010 – a efetiva redução da
produção industrial brasileira. Recentemente o Governo Federal lançou uma nova política nacional, O Plano
Brasil Maior (Ministério da Ciência, Indústria e Comércio, 2011), que busca reter o parque industrial existente
no país, promover a expansão da produção nacional, incrementar o valor agregado ao produto brasileiro e
fomentar a inovação da indústria nacional em prol da competitividade no cenário internacional.
27 Ver: www.ippur.ufrj.br/observatorio
28 Amparada pelo art. 21, xx da CF/88.
29 Embora seja “evidente a importância da realização da audiência pública como o momento de consulta e
de identificação de conflitos. (...) Certamente, a fragilidade com que os debates são conduzidos, bem como a
dificuldade no fornecimento das informações, fez com que a audiência pública tenha se caracterizado apenas
como uma etapa “formal” do licenciamento ambiental, uma vez que as discussões e os questionamentos
acerca do potencial de lesividade ambiental do empreendimento são, muitas vezes, superficiais, quando não
meramente a formalização de uma fase administrativa”. (FERREIRA; AGOSTINI; SERRAGLIO, 2013, ps.364/367)
30 GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1991, p.125.
31 MAFFESOLI, M. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 2005.
32 SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo:
Cortez, 2001.
33 LEFÈVRE, C. Governar as metrópoles: questões, desafios e limitações para a constituição de
novos territórios políticos. In: Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles. v.11, nº 22. Pág. 299-
317. São Paulo: EDUC, 2009.

2128
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Participação pública na
gestão metropolitana: breves
comentários ao modelo brasileiro

Pedro Henrique Ramos Prado Vasques1

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como principal objetivo tecer breves críticas


acerca da participação pública na gestão regional, a fim de chamar aten-
ção para o fato de que tal instrumento de atuação direta da população é
fundamental não só para a construção de uma cidade plural e igual, mas
também para legitimação do próprio Estado de Direito.
O tema aqui abordado merece destaque, uma vez que a participação
pública – além de fundamento da república – deve ser parte essencial
nos processos de gestão do espaço urbano. Assim, a ausência de sua
utilização – ou seu emprego esvaziado (i.e., como mera formalidade) na
gestão regional deve ser questionada e fomentada para evitar, ainda, a
apropriação do instituto por parte de determinados grupos impedindo que
os objetivos reais – leia-se, empoderamento da população – da participa-
ção sejam atingidos.
Deste modo, para melhor apresentar as questões aqui analisadas, o
trabalho foi dividido em três etapas. Na primeira, traça-se, ainda que su-
perficialmente, um breve histórico sobre a criação e o desenvolvimento
das regiões metropolitanas no Brasil, conferindo atenção a evolução no
seu processo de gestão e as alterações significativas ocorridas quando
da promulgação da Constituição de 1988, bem como destacando alguns
aspectos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Em seguida, os fundamentos e a importância da participação pública
na gestão da coisa pública são breve e sucintamente analisados, tendo em

2129
vista, especialmente, a necessidade de conferir poder à população a fim de
possibilitar efetivo controle social que, por sua vez, tem como finalidade
última a garantia do Estado Democrático de Direito.
Após apresentação de curto histórico sobre as regiões metropolitanas e
da importância da interferência popular na sua gestão, o presente trabalho
apresenta – através de um viés também histórico – a legislação aplicável
ao gerenciamento regional do espaço urbano. Destaca-se, ainda nesse
capitulo, breves críticas ao arcabouço legislativo existente, reforçando a
necessidade de aplicação das disposições do Estatuto da Cidade para fins
de gerenciamento das regiões metropolitanas – em especial no que toca
a participação pública –, e o que está sendo proposto através do Projeto
de Lei que busca criar o Estatuto das Metrópoles.

1. BREVE hISTóRICO SOBRE A


CRIAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DAS
REGIÕES METROPOLITANAS BRASILEIRAS

Como afirma Garson, os debates sobre regiões metropolitanas e as


experiências concretas de gestão foram desenvolvidas no país a partir da
década de 602, quando, neste primeiro momento, a Constituição Federal
de 1967 conferiu as bases para seu desenho institucional3, bem como
para o desenvolvimento nacional, em função das políticas setoriais que
se desdobravam e permeavam os Planos Nacionais de Desenvolvimento4.
A Constituição Federal de 1967 previu, em seu art. 157, § 10, a criação
das regiões metropolitanas5. Todavia, impossível deixar de notar três de-
talhes de significativa importância para a concepção do referido instituto
que, com o seu desenvolvimento ao longo do tempo serão alterados. Em
primeiro lugar, cumpre assinalar que o constituinte originário inseriu a
previsão de gestão metropolitana no Título III da Constituição que dispõe
sobre a ordem econômica e social (Título III: Da ordem econômica e so-
cial), essa opção por incluir o presente instituto direciona o entendimento
do constituinte para uma visão de planejamento regional voltado para

2130
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

o desenvolvimento econômico. A segunda característica que é possível


extrair da previsão em análise é a condição de pertencimento à mesma
comunidade socioeconômica. Por fim, cumpre observar que, como se
sucederá na criação das primeiras regiões metropolitanas, estas serão
criadas por meio da União, subordinando as políticas de investimento no
meio urbano ao controle central.
Nesse sentido, a primeira manifestação do legislador ordinário na
institucionalização de regiões metropolitanas ocorrerá através da Lei
Complementar n. 14/736, seguida da Lei Complementar n. 20/74, que, por
sua vez, criou a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Várias críticas
foram realizadas à legislação até então desenvolvida, como, por exemplo,
os sete pontos fundamentais elencados por Eros Grau (ao se referir es-
pecificamente à Lei Complementar n. 14/73): (i) a atribuição de encargos
aos Estados, dissociada da outorga de recursos; (ii) a uniformidade de
tratamento conferido a regiões distintas; (iii) a indistinção entre etapas e
parcelas dos serviços de interesse comum; (iv) a inconstitucionalidade do
art. 6º7, quanto à aplicação de recursos estaduais; (v) a impraticabilidade
da aplicação do mecanismo de preferências do art. 6º; (vi) a contradição
entre os arts. 5º8 e 6º, quanto à definição do planejamento integrado como
serviço de interesse comum; e (vii) a não indicação de uma estrutura de-
finida para as entidades metropolitanas9.
Essas e outras críticas culminaram com a crise do sistema metropoli-
tano a partir de 1979 quando a crise financeira da década de 80 provocou
a redução na distribuição de recursos especialmente para as áreas de
saneamento básico, transporte e tráfego urbano, como afirma Garson10,
e tornou as regiões metropolitanas centros de pobreza e exclusão social.
Segundo afirma a referida autora, inexistia coordenação intersetorial,
interurbana e intra-urbana das ações e dos investimentos realizados – a
despeito de, durante determinado período, haver recursos para implemen-
tação de algumas políticas públicas de interesse regional.
A despeito das severas críticas sobre o elevado grau de centralidade
na gestão das regiões metropolitanas criadas quando do regime militar11,

2131
faz-se necessário ressaltar que, durante esse período, pelo menos duas
questões significativas foram analisadas: (i) a definição do conceito de
interesse comum metropolitano; e (ii) o ordenamento do uso e ocupação
do solo, que ao ser incluído no referido conceito passou a ser objeto de
planejamento e normalização, como afirma Azevedo e Guia12.
Iniciado o processo de redemocratização na década de 80 a idéia de
que a importância econômica das áreas urbanas ultrapassava o âmbito
municipal e que o governo federal deveria intervir e assumir responsa-
bilidades foi relativizada. Isso porque, a elevação do município a ente da
federação – resultando em uma maior descentralização administrativa e
financeira13 – e o deslocamento da competência para instituição de regi-
ões metropolitanas para os Estados conduziu a uma descentralização da
gestão regional. Curioso notar que, durante a elaboração da constituição
nos anos de 1987/88, foram apresentadas 15 propostas de emenda ao
projeto da nova Constituição referente ao instituto metropolitano14.
No momento da transferência de competências da União para os Esta-
dos membros o país já possuía 22 regiões metropolitanas. Segundo dados
do IBGE, em 2000, tais áreas reuniam 37,5% da população do país. E, em
função da crise econômica e do processo de desconcentração industrial
vivenciado a partir da década de 80, as regiões metropolitanas passaram
a conter consideráveis núcleos de pobreza e exclusão social15. Ou seja,
foi em uma situação de forte crise econômica que os Estados receberam
mais essa incumbência, ou seja, a tarefa de gestão regional das áreas
metropolitanas de suas unidades políticas.
O cenário de crise e as disputas de poder/autonomia entre estados
e municípios produziram como resultado, em grande parte dos casos, o
enfraquecimento institucional das regiões metropolitanas. Em função das
referidas circunstâncias era pouco provável que iniciativas complexas de
cooperação interinstitucional fossem desenvolvidas. Ocorre que, hoje,
as circunstâncias são completamente diferentes. Apesar de haver uma
crise econômica que se hoje alastra pelo mundo, o Brasil encontra-se em
posição privilegiada e vem sofrendo pouco os impactos decorrentes da

2132
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mesma, estando os municípios – em considerável parcela – em condições


econômicas muito mais favoráveis do que se verificava na década de 80.
Ademais, o papel refratário adotado pelos municípios após a promulgação
da Constituição de 88 com o objetivo de reforçar sua autonomia hoje não
é mais necessário, eis que não mais se discute a condição do município
como sendo parte integrante do pacto federativo. Assim, os obstáculos
que hoje dificultam uma atuação integrada entre os diferentes entes da
federação são distintos e não podem ser enfrentados da mesma forma.
Um primeiro obstáculo a ser identificado é a apropriação indevida do
instituto da região metropolitana pelos gestores públicos e aplicada a
processos, como, por exemplo, aglomerações urbanas e microrregiões16.
Uma das causas dessa apropriação é a abertura que o constituinte origi-
nário deixou e o legislador ordinário não preencheu17.
Outro obstáculo de considerável importância prática é a existência
de um grau de desigualdade política, econômica e social entre os mu-
nicípios que compõem as regiões metropolitanas. Analisando o caso da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro é possível verificar a existência
de municípios extremamente pobres como Duque de Caxias e, por outro
lado, municípios com IPTU per capita consideravelmente elevado, como
no caso do município de Niterói. Tais discrepâncias geram distorções nos
processos de negociação entre as unidades federativas que, por sua vez,
não possuem em seu arcabouço institucional mecanismos para equilibrar
tais diferenças permitindo, por conseguinte, a realização de um diálogo
minimamente equilibrado.
Uma das conseqüências da elevada desigualdade verificada nos muni-
cípios que compõem a mesma região metropolitana é a restrita participa-
ção no planejamento regional. Essa circunstância fica clara se analisadas
as interferências ditas estratégicas no âmbito do planejamento regional.
Veja, por exemplo, a atuação da Secretaria de Desenvolvimento Regional,
Abastecimento e Pesca do Estado do Rio de Janeiro (“SDRA”): a SDRA
possui grupos de trabalho voltados para os seguintes empreendimentos/
regiões: (i) Arco Metropolitano, (ii) Complexo Petroquímico do Estado do

2133
Rio de Janeiro, (iii) Porto do Açu, (iv) Porto de Sepetiba, (v) Região Serrana,
e (vi) Angra 3. Verifica-se através da referida lista que, apesar da atuação
da SDRA estar contida basicamente em áreas que sofrerão consideráveis
impactos decorrentes dos respectivos empreendimentos, a presença do
poder executivo estadual está concentrada em locais em que haverá ele-
vado investimento do capital privado. Destaca-se, ademais, a ausência
de uma atuação holística que compreenda toda a região metropolitana.
Se a participação dos próprios entes federativos é rarefeita, muito
menos pode ser verificado no que toca à participação pública na gestão
regional. Apesar da expressa previsão no Estatuto da Cidade, a presença
da sociedade civil no planejamento das regiões metropolitanas é quase
que inexistente. A referida afirmativa encontra amparo empírico quando,
por exemplo, verificamos os dados relativos à participação pública na
elaboração do Plano Diretor Metropolitano de Belo Horizonte (“PDMBH”),
tido como um dos mais avançados. Segundo o Sumário Executivo do
PDMBH18, todo o processo de produção do plano envolveu mais de 3.000
‘participações’19. A despeito da louvável iniciativa de inclusão da sociedade
no debate metropolitano, o número apresentado é irrisório se comparado
com a população – 5.413.627, segundo o Censo IBGE/201020 – contida
na respectiva região metropolitana. Ocorre que, a despeito das inúmeras
dificuldades associadas à participação pública, como se apresentará a
seguir, a atuação direta da sociedade é indispensável, eis que se trata de
condição essencial para manutenção da democracia em um Estado de
Direito. Assim, no que toca à gestão regional a participação pública não
pode ser negligenciada.

2. PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GESTÃO DA COISA


PÚBLICA: O CONTROLE SOCIAL COMO GARANTIA
DO ESTADO DEMOCRáTICO DE DIREITO

A despeito das discussões sobre o conceito e a justificação do Estado,


para fins da presente análise, concebe-se o Estado contemporâneo (in-

2134
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

clusive o brasileiro) como Estado Constitucional, isto é, nas palavras de


Canotilho, uma tecnologia de política de equilíbrio político-social através da
qual se combateram dois arbítrios ligados a modelos anteriores, a saber: a au-
tocracia absolutista do poder e os privilégios orgânico-corporativo medievais21.
Segundo Moraes22, o Estado Constitucional configura-se como uma das
grandes conquistas da humanidade. Nesse sentido, as grandes qualidades
desse modelo seriam: (i) o Estado de direito, e (ii) o Estado democrático.
O Estado de direito, por sua vez, caracteriza-se por apresentar, den-
tre outras, as seguintes premissas: (i) primazia da lei; (ii) separação de
poderes como garantia da liberdade ou controle de possíveis abusos;
(iii) reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais incorporados à
ordem constitucional, etc.
O Estado democrático que possui, dentre outras, a função de afastar a
tendência humana ao autoritarismo e à concentração de poder, deve ser
regido por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo
povo. Nesse sentido, a Carta Magna brasileira, no parágrafo único de seu
art. 1º adota o princípio democrático ao afirmar que todo poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição, e, mais adiante corrobora o mandamento
anteriormente transcrito por meio de seu art. 14, a soberania popular será
exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei.
O princípio democrático exige a integral participação de todos e de cada
uma das pessoas na vida política do Estado, a fim de garantir respeito à
própria soberania popular23. Em outras palavras, o pressuposto democrá-
tico, em tese, serviria como garantia de legitimação e limitação do poder.
Todavia, o exercício da democracia representativa por si só não garante
que todos que tenham direito a voto sejam efetivamente representados.
Dessa forma, para que não se verifique verdadeira ditadura da maioria, o
exercício do poder democrático – isto é, a forma pela qual o povo participa
do poder – deverá se valer não só dos mecanismos de representação, mas
também dos mecanismos participativos24.

2135
Segundo Bobbio, Matteucci e Pasquino25

O ideal democrático supõe cidadãos atentos à evolução da coisa


pública, informados dos acontecimentos políticos, ao corrente
dos principais problemas, capazes de escolher entre as diversas
alternativas apresentadas pelas forças políticas e fortemente
interessados em formas diretas ou indiretas de participação.

Por outro lado, democracia participativa é caracterizada pela partici-


pação direta e pessoal do cidadão na formação e gestão dos atos de go-
verno. Dentre as formas de exercício do mecanismo participativo pode-se
destacar, dentre outros, (i) a iniciativa popular; (ii) o referendo popular;
(iii) o plebiscito; (iv) a ação popular26. Cabe ressaltar, ademais, que outra
forma de participação que deve ser destacada é a atuação de atores ou
entidades da sociedade civil na formulação de políticas públicas, presentes
na CFRB especialmente nos capítulos da seguridade social (art. 194, PU,
VII; art. 204, II; art. 227, §1º) e da reforma urbana (art. 186).
Em uma análise sobre a evolução da participação pública Avritzer
aponta que a sociedade civil teria se organizado autonomamente em
relação ao Estado a partir do final da década de 1970, reivindicando par-
ceria nas políticas públicas nos anos 1980 e, finalmente, expandiu sua
participação nessas áreas na década de 1990. Contudo, o autor observa
que a sociedade civil participativa reproduz as desigualdades e heteroge-
neidades da sociedade brasileira. Ainda sim, segundo o autor, é possível
afirmar que a qualidade de certas políticas públicas específicas melhora com
a participação da sociedade civil e que, há evidências de que nos casos nos
quais há participação da sociedade civil nas políticas públicas elas têm mais
efeitos distributivos e de redução da pobreza27.
Todavia, como aponta Avritzer em outro trabalho, essa combinação
entre representação e participação não quer dizer que as duas foram
combinadas de forma de forma adequada e na proporção correta. Nesse
sentido, o referido autor aponta que, (i) com relação aos mecanismos de
participação semidireta (e.g. plebiscito, referendo e as leis de iniciativa
popular) permanecem essencialmente vinculadas ao Legislativo, dife-

2136
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

rentemente do que ocorre em outros países, e (ii) sobre as formas de


participação local (e.g. conselhos e orçamentos participativos), cumpre
ressaltar que essas instituições raramente têm se articulado de forma
eficiente com os legislativos locais e, em regra, acabam sendo colocadas
em segundo plano, ou seja, a incapacidade de articulação tem gerado uma
perda de legitimidade na política local. Assim, conclui Avritzer afirmando
que, apesar de o legislador constituinte prever formas híbridas de relação
entre a representação e a participação, esse objetivo ainda não foi alcançado
no Brasil democrático28.
Ao concluir seu trabalho, Avritzer afirma que as formas de participação
precisam de meios de articulação com o legislativo sob pena de possuírem
reduzida eficiência (e consequente perda de legitimidade), inviabilizando
a tarefa de complementação de déficits ou incompletudes presentes tanto
no sistema representativo como direto.
Por outro lado, há quem critique o crescimento da participação da
sociedade civil (como defendido pelo republicanismo de um modo geral)
que, em diversos momentos, não se sente efetivamente representada
pelos mecanismos de formais de democracia. Nesse sentido, Leydet afir-
ma que apesar de a sociedade civil29 aparecer como o lugar possível de
um projeto verdadeiramente democrático a sua atuação é questionável.
Primeiramente, segundo a autora, porque essa situação configuraria um
paradoxo, eis que não sendo eleitos pelo conjunto dos cidadãos, dificil-
mente a sociedade civil poderia pretender uma melhor representativida-
de que a dos eleitos. Em segundo lugar a autora identifica nesse caso a
ocorrência de dois sintomas: (i) a desvalorização da eleição como princípio
fundamental de legitimação democrática; e (ii) o questionamento da qualidade
de representante(s) do governo eleito30. A despeito da pertinência das críticas
levantadas ao modelo republicano, esse trabalho se filia a corrente que
segue na direção apontada por Avritzer nos trabalhos já mencionados. Isto
é, no sentido de que a participação pública pode influenciar positivamente
a qualidade de determinadas políticas públicas, possuindo, inclusive, mais
efeitos distributivos e de redução da pobreza.

2137
Como é de amplo conhecimento, seguido e fundamentado pela sobera-
nia (art. 1º, I, CFRB), assim definida por Marcelo Caetano como um poder
político supremo e independente, entendendo-se por poder supremo aquele
que não está limitado por nenhum outro na ordem interna e por poder inde-
pendente (...) está em pé de igualdade com os poderes supremos de outros
povos31, a cidadania é introduzida na CFRB como o segundo fundamento
da República Federativa do Brasil (art. 1º, II, CFRB). Em outras palavras,
após a identificação da República como poder soberano, o constituinte
sustenta essa soberania ao justificar sua origem através do povo. Segundo
Moraes, a cidadania como fundamento representa um status e apresenta-se
simultaneamente como objeto e um direito fundamental das pessoas32.
O constituinte originário foi mais prudente e, além de afirmar ser a
cidadania um dos fundamentos da República, expressamente ressaltou a
origem do poder soberano ao dizer, no parágrafo único do art. 1º que todo
o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.
Extremo preciosismo também sequer seria necessário se o conceito de
República (moderna) for devidamente interpretado. Isto é, como forma de
oposição à monarquia, em que o chefe do Estado, que pode ser uma ou
mais pessoas, é eleito pelo povo direta ou indiretamente33. Nesse sentido,
Silva descreve em detalhe a interpretação da cidadania como fundamento
da República:

A cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o de ti-


tular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do
Estado, o reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada
na sociedade estatal (art. 5, LxxVII). Significa aí, também, que o
funcionamento do Estado estará submetido à vontade popular.
E aí o termo conexiona-se com o conceito de soberania popular
(parágrafo único do art. 1º), com os direitos políticos (art. 14) e
com o conceito de dignidade da pessoa humana (art.1º, III), com
os objetivos da educação (art. 205), como base e meta essencial
do regime democrático.34

Como expõem os constitucionalistas acima citados, tanto a origem,


como o funcionamento do Estado brasileiro serão submetidos à vontade

2138
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

popular por meio da participação direta ou indireta. Qualquer tentativa


seja por qualquer meio, que busque tornar ineficaz a participação pública
– ainda mais quando prevista na legislação em vigor –, é indiscutivel-
mente inconstitucional.
Como apresentado, a participação pública é fundamento da República
Federativa do Brasil. Identificada por meio do exercício da cidadania ou
através da fundamentação do próprio Estado Democrático, cuja criação de-
corre do poder detido pelo conjunto popular. Assim, o sadio funcionamento
do Estado brasileiro só ocorrerá na medida em que for capaz de refletir
a vontade popular, por meio do equilíbrio entre o uso de mecanismos de
representação e de participação direta. Contudo, em momento algum essa
participação pode ser adjetivada para excluir, reduzir, mitigar ou mascarar
seus efeitos. Conforme acima entendido, qualquer tentativa de redução
do exercício da democracia vai de encontro à própria fundamentação do
Estado brasileiro, sendo, portanto, inconstitucional. Como será brevemente
apresentado no capítulo a seguir, só é possível considerar atingido o papel
conferido à participação pública caso essa seja efetivamente verificada no
âmbito das normas que exigem sua configuração.

3. A PREVISÃO DE PARTICIPAÇÃO PÚBLICA


NA CRIAÇÃO E GESTÃO DAS REGIÕES METROPOLITANAS
BRASILEIRAS AO LONGO DO TEMPO

Como apresentado no início desse trabalho, as discussões normativas


sobre a gestão metropolitana ganham projeção a partir da década de 60, em
meio à ditadura militar. Naquele momento, como afirmado, o instrumento
metropolitano estava essencialmente voltado para o desenvolvimento
econômico. Não havia, à época, espaço para discussões pluralistas ou de
intervenção por parte da sociedade civil. Esse modelo de gestão unilateral,
verticalmente disposto, conduziu – de forma, ao que pareceu, inevitável
– produção de uma legislação que sequer tocava no assunto referente à
participação pública.

2139
Ocorre que, essa condição de ausência de participação pública não
foi uma exceção verificada durante o regime militar. Desde o início da
república, quando a legislação urbanística era verificada apenas de forma
indireta35 – principalmente em decorrência do sistema essencialmente
agrário que predominava no país à época36 – sequer era possível imaginar
disposições relacionadas à participação pública.
Essa condição de unilateralidade do Poder Público e de exclusão da
participação pública atravessaram os anos seguintes da história brasileira.
Essa afirmação fica clara ao se analisar os regramentos/políticas públicas
de caráter eminentemente urbano desenvolvidos a partir da década de
1960, como, por exemplo, através da Lei n. 4.380/64, que criou o Banco
Nacional da Habitação (BNH), as Sociedades de Crédito Imobiliário e o
Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU). A referida lei de-
terminava em seu art. 1º que o Governo Federal, por meio do Ministério do
Planejamento, formulasse a política nacional de habitação e de planejamento
territorial, além de ter conferido ao SERFHAU atribuições associadas ao
desenvolvimento urbano37.
Essa idéia de controle estatal com rarefeita participação pública pode
ser verificada diretamente na legislação que versava sobre as regiões
metropolitanas. Veja, por exemplo, a já mencionada Lei Complementar
n. 14/73, que se limitou a definir (i) as unidades políticas que incluíam as
respectivas regiões criadas; (ii) a composição dos Conselhos Deliberativo e
Consultivo. Ambos os conselhos única e exclusivamente com participação
de membros do Executivo estadual e municipal – nota-se, ainda, o cará-
ter tecnocrata da legislação em vigor à época pela específica disposição
sobre a necessidade de os membros do Conselho Deliberativo possuir
reconhecida capacidade técnica ou administrativa. Essa mesma situação
verificou-se na Lei Complementar n. 20/74, que, dentre outros, criou a
Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A referida lei, além de designar
as unidades políticas que pertenciam à RM, criou um fundo contábil para
o desenvolvimento da referida região.
Assim, análise da legislação que tratava da gestão do espaço urbano

2140
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

local/regional até o final da década de 1980 permite verificar a predomi-


nância do pensamento intervencionista estatal que conduzia as alterações
na urbe praticamente de forma unilateral, se utilizando apenas de ques-
tões técnicas avaliadas por integrantes da máquina pública. Tal modelo
de intervencionismo e a substancial influência da escola francesa nas
alterações promovidas no espaço urbano brasileiro (do início e até mea-
dos do século xx) vão refletir reformas como, por exemplo, a realizada
por Pereira Passos durante o governo de Rodrigues Alves (1905-1910),
que derrubou grande parte das edificações coloniais no centro do Rio de
Janeiro, ou, ainda, durante o governo de Carlos Sampaio (1920-1922), o
desmonte do morro do Castelo, local de residência de moradores cariocas
pobres, que foi removido e lentamente urbanizado38.
Somente a partir da Constituição Federal de 1988 (CFRB)39 que a ten-
dência intervencionista unilateral por parte do Estado será paulatinamente
reduzida no âmbito da legislação em vigor. Essa mudança de paradigma
está associada a diversos fatores, dentre eles, pode-se destacar a deter-
minação constitucional de que a política de desenvolvimento urbano
seja executada em âmbito local – através do Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei – e que seu principal objetivo é
o de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem-estar de seus habitantes (art. 182, CFRB). Ao passo que a
gestão do espaço urbano deve ser executada pelos municípios, a CFRB
declarou ser competência da União a elaboração de diretrizes gerais para
orientar o desenvolvimento urbano, inclusive no que se refere à habitação,
saneamento básico e transportes urbanos (cf. art. 21, xx, CFRB)40. Outra
significativa alteração trazida pela CFRB foi a já mencionada alteração da
competência para instituir regiões metropolitanas. Até 1988 era função da
União a criação das referidas regiões, tendo sido tal competência transfe-
rida para os Estados membros, após a promulgação da CFRB.
Essa modificação significativa no controle da gestão regional trouxe
vários reflexos para a criação e funcionamento das regiões metropolita-
nas. Ocorre que, a despeito da referida alteração e da multiplicação das

2141
regiões metropolitanas após a mudança da competência para sua criação,
jamais foi editado regramento nacional específico para gerir os espaços
urbanos sob a perspectiva regional. Nesse sentido, a norma de significativa
relevância que predomina no gerenciamento da urbe – seja do ponto de
vista regional, seja pela ótica local – é o Estatuto da Cidade, instituído por
meio da Lei n. 10.257/01. É nesse instrumento normativo que as diretri-
zes gerais da política urbana, conforme arts. 21, xx, 182 e 183 da CFRB.
O Estatuto da Cidade apresenta a expressão ordem urbanística como
um novo valor/bem a ser defendido por meio da Ação Civil Pública. Se-
gundo Machado, apesar de não haver uma definição acerca da expressão
acima, seria possível extrair do art. 1º, §1, do Estatuto uma orientação para
estabelecer seu conceito. Nesse sentido afirma o referido autor: Ordem
urbanística é o conjunto de normas de ordem pública e de interesse social que
regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança,
do equilíbrio ambiental e do bem-estar dos cidadãos41. Ainda segundo Ma-
chado, a ordem urbanística seria a institucionalização do justo na cidade.
A Lei n. 10.257/01, em seu art. 2º, define postulados para guiar os legis-
ladores e administradores (estaduais e municipais) indicando as finalidades
a serem atingidas, os caminhos a serem necessariamente percorridos e os
atos que devem ser evitados. Segundo Carvalho Filho42, diretrizes gerais
da política urbana seriam o conjunto de situações urbanísticas de fato e de
direito a serem alvejadas pelo Poder Público no intuito de constituir, melhorar,
restaurar e preservar a ordem urbanística, de modo a assegurar o bem-estar
das comunidades em geral.
Dentre as diversas diretrizes gerais associadas direta e indiretamente
à participação publica (e.g. art. 2º, II, III, V, xIII, etc.) destaca-se a

a gestão democrática43 por meio da participação da popula-


ção e de associações representativas dos vários segmentos da
comunidade na formulação, execução e acompanhamento
de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.
(grifos nossos)

Além das diretrizes gerais, que basicamente tem a função de sustentar


a legislação urbanística em vigor, a participação pública também pode ser

2142
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

evidenciada nos instrumentos previstos para fins de implementação dos


objetivos do Estatuto da Cidade (art. 4º)44. Nesse sentido, pode-se destacar a
previsão do orçamento participativo (art. 4º, III, f), o referendo popular (art.
4º, V, s), o Estudo Prévio de Impacto Ambiental – EIA e o Estudo Prévio de
Impacto de Vizinhança – EIV45 (art. 4º, VI), e, em especial, a previsão que
determina que os instrumentos que demandam dispêndio de recursos por
parte do Poder Público devem ser objeto de controle social (art. 4º, §3º).
A gestão participativa é evidenciada ainda no principal mecanismo
para a gestão urbanística dos municípios, o Plano Diretor (art. 40). Com
o objetivo, dentre outros, de conferir conteúdo à função social da pro-
priedade urbana, a elaboração e a fiscalização desse plano deve incluir
a sociedade civil por meio da realização de audiências públicas, debates
com a população e associações representativas, acesso e publicidade
quanto aos documentos e informações produzidos (art. 40, §4º, I, II, III).
Por fim, como se não bastassem os dispositivos que direta e indire-
tamente trata da participação da sociedade na administração do espaço
urbano, o Estatuto dedicou, ainda, um capítulo específico sobre a gestão
democrática da cidade. O capítulo IV do Estatuto, além de exemplificar os
instrumentos que podem ser utilizados para incluir a sociedade no debate
sobre o urbano (i.e., através de órgãos colegiados, debates, audiências
públicas, consultas públicas, conferências e autorizando a iniciativa po-
pular de projeto de lei, planos, programas e projetos de desenvolvimento
urbano – art. 43, I, II, III), prevê a inclusão obrigatória e significativa da
sociedade nos organismos gestores das regiões metropolitanas e demais
aglomerações urbanas visando garantir o controle direto das atividades
desses organismos e o pleno exercício da cidadania (art. 45), rompendo
com a visão administrativista de disciplinar as cidades por meio de regra-
mentos impostos unilateralmente pelo Poder Público46.
Por fim, orienta Bonizzato47 no sentido de que, apesar de a doutrina
especializada majoritariamente considerar a gestão da cidade como fato
inabalável e de suma importância para as cidades brasileiras, deve-se
excepcionar, como não poderia deixar de ser, sua utilização maculada (i.e.,

2143
da participação direta) pela consecução de interesses escusos e desvinculada
do interesse da coletividade interessada.
Como rapidamente apresentado, o princípio da participação pública
permeia integralmente a principal norma nacional sobre a gestão do
espaço urbano. Assim, com base na CFRB e no Estatuto da Cidade não é
possível vislumbrar qualquer forma de planejamento e gestão de políticas
públicas urbanas – regionais e/ou locais – sem, obrigatoriamente, consi-
derar a participação pública no processo.
Por fim, a despeito de inexistir regramento específico para a gestão
regional do meio urbano, faz-se necessário mencionar a existência do
Projeto de Lei n. 3.460/04 (“PL”), que trata do Estatuto da Metrópole. Apesar
de o referido projeto ainda estar em trâmite na Câmara dos Deputados –
e o texto em discussão não ser definitivo –, breves comentários sobre a
previsão de participação pública podem ser tecidos sobre seu conteúdo.
Assim, destaca-se que a participação pública foi definida no PL como
uma das diretrizes da Política Nacional de Planejamento Regional Urbano.
Entretanto, o texto atual determina os instrumentos os quais serviram
para a população acessar a participação, quais sejam: organizações e
representações comunitárias (art. 8º, V). Como a CFRB e o Estatuto da
Cidade não condicionam os meios de participação, entende-se que a
restrição genérica não teria o condão de limitar a participação às formas
sugeridas pelo legislador. Isso porque, como disposto no art. 45 do Ca-
pítulo IV do Estatuto da Cidade – que deve ser aplicado, no que couber,
conforme o art. 34 do PL – seja qual for o instrumento utilizado para
garantir a participação pública, o controle direto por parte da população
deve ser verificado.
Destaca-se, ainda, a previsão de participação na elaboração dos
planos previstos pelo PL48 através da realização de audiências públicas,
publicidade – mediante publicação e acesso de qualquer interessado aos
documentos e informações produzidos. Novamente, a enumeração apre-
sentada no art. 12, §2º, em verdade, nada mais reitera uma obrigação de
transparência do Poder Público. Excepcionando-se, talvez, a obrigação

2144
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de realização de audiência pública, as condições – acima listadas – que


o Poder Público deve garantir para permitir a participação pública não
precisariam ser repetidas no referido instrumento legislativo. Reitera-
-se que o objetivo de todas as medidas listadas no PL – que segundo o
presente trabalho devem ser entendidas de forma exemplificativas – é
garantir o empoderamento da sociedade civil, como fica claro no art. 45
do Estatuto da Cidade.
A despeito de se possível identificar uma ou outra restrição no PL,
tem-se o entendimento que ao menos o que foi conquistado com a edição
do Estatuto da Cidade será garantido – caso o texto final contemple as
referidas previsões. Todavia, como brevemente apresentado no primeiro
item, a participação pública está longe de ser percebida pelo Poder Público
como condição essencial para a gestão regional do espaço.

CONCLUSÃO

Como se procurou demonstrar, a institucionalização das regiões me-


tropolitanas no Brasil, a partir da década de 70, ocorreu através de um
processo unilateral e verticalizado conduzido pelo Poder Público. Inicial-
mente com o objetivo essencialmente econômico, durante o regime militar,
as regiões metropolitanas foram suportadas pela Administração Pública
Federal até a década de 80. Todavia, com a promulgação da Constituição
Federal de 1988, que transferiu aos Estados a competência para instituição
de regiões metropolitanas e, tendo em vista a evolução da crise financeira
que se verificava a época, a gestão do território sob a perspectiva regional
foi negligenciada pelo Poder Público, seja Estadual, seja Federal.
Ao longo do período estudado, e até os dias de hoje, foi possível verificar
as diversas leituras e apropriações do conceito de região metropolitana.
Sua utilização desvirtuada – e.g. aplicada a processos, como aglomerações
urbanas e microrregiões –, a incapacidade fática de lidar com o elevado
nível de desigualdade política, econômica e social e a percepção empre-
endedora – vide a atuação da SDRA no Rio de Janeiro – do Poder Público

2145
sobre a gestão regional do espaço, revelam a ausência de uma percepção
uniforme por parte dos administradores públicos sobre como conduzir a
gestão do espaço metropolitano. Dessa forma, se o próprio Poder Público
não possui em seu arcabouço burocrático mecanismos uniformes para
lidar com a necessária interação entre diversos entes estatais associados
a interesses múltiplos regionais em um mesmo organismo (e.g. região
metropolitana), tampouco há que se falar em instrumentos de participação
da sociedade civil no âmbito da gestão desses espaços.
Ocorre que, como demonstrado no curso do presente trabalho, a parti-
cipação pública é requisito incondicional para a existência e manutenção
do Estado Democrático de Direito. Qualquer tentativa de impedir ou limitar
a intervenção popular nos negócios públicos – especialmente quando essa
interação for prevista pelo legislador – implica em atingir diretamente as
estruturas que suportam o Estado brasileiro. Portanto, quando condições
específicas impedirem o modelo representativo de refletir – em conside-
rável medida – as necessidades e aspirações populares, faz-se necessário
capilarizar essa relação através da utilização de instrumentos de gestão
direta (i.e., participativa) a fim possibilitar que tais reivindicações sejam
respeitadas na gestão do espaço urbano.
Especificamente sobre a participação popular na gestão do espaço
regional metropolitano, o legislador impôs – como condição para formu-
lação e operacionalização dessas áreas – a necessidade de que haja a
devida interação popular nos negócios públicos regionais. Dessa condição
– legalmente definida – é possível extrair que, ao menos da perspectiva
legislativa (e, por conseguinte, representativa), há a convicção que, para
a gestão do espaço urbano (local e regional), as ferramentas oferecidas
pelo mecanismo representativo são insuficientes para que os objetivos
da lei – nesse caso específico, do Estatuto da Cidade – sejam atingidos.
Como alternativa à tosquidão do modelo representativo, insuficiente para
preservar os interesses frágeis em conflito no meio urbano, o legislador
opta pela necessidade de intervenção popular.
Repita-se, a partir desse entendimento, há aqui expressa determi-

2146
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nação – obrigatória, e não facultativa –, definida pelo legislador, para


que a gestão do espaço urbano ocorra de modo coletivo e direto. A não
obediência desse preceito implica não só em violação do diploma legal,
mas também na presunção absoluta de que os objetivos pretendidos na
legislação – ao menos em parte – não foram alcançados. Tendo em vista
que tais metas estão intrinsecamente ligadas à Constituição Federal, eis
que refletem interesses moldados no texto constitucional pelo legislador
originário, necessário observar que, nesse caso, a própria Carta Magna
também é transgredida.
Todavia, ao ilustrar de forma breve e sucinta o histórico da institui-
ção das regiões metropolitanas – especialmente a partir das alterações
legislativas ocorridas em decorrência da CFRB e do Estatuto da Cidade
– o presente trabalho buscou indicar, a despeito do arcabouço legislativo
existente, que a gestão regional do espaço, apesar de não se verificar o
mesmo grau de unilateralidade observado no período anterior a CFRB,
continua, em considerável parte, não refletindo as aspirações populares
e a participação pública no âmbito de sua concepção, apesar de contida
no discurso político, – afinal, como aponta Kliksberg, seria claramente an-
tipopular enfrentar a pressão pró-participação tão forte na sociedade49 – não
é efetivada de forma substancial, se limitando, como afirma Arnstein a
condições essencialmente simbólicas (tokenism)50.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Mestrando em Direito da Cidade (UERJ), especialista em Direito Ambiental Brasileiro (PUC-Rio), bacharel em
Direito (PUC-Rio); Advogado; pedrohvasques@gmail.com
2 Experiências embrionárias de administração metropolitana foram verificadas antes mesmo da institucio-
nalização jurídica do instrumento. Como exemplo é possível citar o Grupo Executivo da Grande São Paulo
(GEGRAM) criado pelo governo estadual em 1967 e também o Grupo Executivo da Região Metropolitana em
Porto Alegre, órgão técnico criado pelo Conselho Metropolitano de Municípios por volta de 1970 (ver: ARAÚJO
FILHO, Valdemar Ferreira de. O contexto político-institucional da criação das regiões metropolitanas no Brasil.
In: CARDOSO, Elizabeth Dezouzart; ZVEIBEL, Vicotr Zular (orgs.). Gestão metropolitana: experiências e novas
perspectivas. Rio de Janeiro, IBAM, 1996. p. 53).
3 GARSON, Sol. Regiões metropolitanas: por que não cooperam? Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das
metrópoles; Belo Horizonte, MG: PUC, 2009. p. 99.
4 O I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND), implementado durante o governo Médici (1969-74) foi o
primeiro a introduzir as idéias “espacial”, “regional” e “urbano”.
5 Art. 157, § 10 - A União, mediante lei complementar, poderá estabelecer regiões metropolitanas, constituídas
por Municípios que, independentemente de sua vinculação administrativa, integrem a mesma comunidade
sócio-econômica, visando à realização de serviços de interesse comum (teve sua redação alterada pela EC n.
1969, passando a figurar como art. 164).
6 A Lei Complementar n. 14/73 estabeleceu as regiões metropolitanas de São Paulo, Belo Horizonte, Porto
Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém e Fortaleza.
7 Art. 6º - Os Municípios da região metropolitana, que participarem da execução do planejamento integrado
e dos serviços comuns, terão preferência na obtenção de recursos federais e estaduais, inclusive sob a forma
de financiamentos, bem como de garantias para empréstimos. (A inconstitucionalidade menciona envolve o
comprometimento de recursos estaduais em função de lei federal).
8 Art. 5º - Reputam-se de interesse metropolitano os seguintes serviços comuns aos Municípios que integram
a região: (...) I - planejamento integrado do desenvolvimento econômico e social; (A contradição identificada
reside no fato de que, apesar de o art. 5º tratar o planejamento integrado como serviço comum o art. 6º o trata
de forma independente, descaracterizando a classificação apresentada pelo artigo anterior).
9 GRAU, Roberto Eros. Regiões metropolitanas: Uma necessária revisão de concepções. In: Revista dos Tribunais,
n. 521. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1979. p. 11-34.
10 GARSON, Op. cit., p. 99.
11 Cumpre destacar que, apesar da institucionalização das regiões metropolitanas haver sido iniciada por
meio de um elevado grau de centralidade, essa demanda – por uma gestão metropolitana –, antes da edição
das leis complementares, também emergia de questões suscitadas pela sociedade civil, como, por exemplo,
como afirma ARAÚJO FILHO, quando, em 1963, da realização do Seminário de Habitação e Reforma Urbana
promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e o Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores
do Estado (IPASE) (ver: ARAÚJO FILHO, Op. cit., p. 54).
12 AZEVEDO, Sérgio de; GUIA, Virgínia Rennó dos Mares. A questão metropolitana no processo da reforma do
Estado no Brasil. Disponível em: <http://crab.rutgers.edu/~goertzel/sergio.doc> (último acesso em 05.10.12).
13 SANTOS, Angela Moulin S. Penalva. Município, Descentralização e Território. Rio de Janeiro: Editra Forense,
2008. p. 209-215.

2149
14 GOUVêA. Ronaldo Guimarães. A questão metropolitana no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. 99.
15 GOUVêA, Op. cit. p. 97-98.
16 GOUVêA, Op. cit. p. 97-98
17 Interessante destacar que o Projeto de Lei n. 3.460/04, que cria o Estatuto das Metrópoles, se preocupou
em fazer essa diferenciação até então desconsiderada pela legislação nacional brasileira. Alguns estados,
entretanto, criaram – sem muita sistematização – critérios para as categorias apresentadas pelo legislador
constitucional, como, por exemplo, no caso do Estado de Minas Gerais, que definiu critérios para aglomeração
urbana e o Estado de São Paulo que de forma mais precisa conceitua cada uma das possibilidades elencadas
na Constituição.
18 Disponível em <http://www.rmbh.org.br/index.php?option=com_docman&Itemid=30> (último acesso
em 25.10.12)
19 A participação foi verificada na seguinte forma: 610 organismos e/ou entidades, sendo 61 do Poder Público
Estadual, 241 do Poder Público Municipal e 308 da Sociedade Civil organizada.
20 Disponível em <http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1> (último acesso em 25.10.12)
21 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed. Lisboa:
Almedina, p. 87.
22 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 05.
23 Sobre o princípio democrático, interessante destacar a definição de democracia de Schmitt: As a state
form as well as governmental or legislative form, democracy is the identity of ruler and ruled, governing and
governed, commander and follower (SCHMITT, Carl. Constitutional Theory. North Carolina: Duke University
Press, 2008. p. 264).
24 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26ª ed. São Paulo: Editora Malheiros,
2006. p. 136-142.
25 BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola. PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol. 2. 5ª ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p. 889.
26 Outras formas de participação direta são asseguradas ao longo do texto constitucional, como, por exemplo:
arts.10, 11, 194, VII, 206, VI, 216, §1º, etc.
27 AVRITZER, Leonardo. Sociedade Civil e Participação Social no Brasil. <http://www.democracia-
participativa.org/files/AvritzerSociedadeCivilParticipacaoBrasil.pdf> (acessado pela última vez em 01.08.12)
28 AVRITZER, Leonardo. Reforma política e participação no Brasil. In: AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA,
Fátima (org). Reforma política no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p. 35-42
29 A própria autora esclarece que o conceito de sociedade civil por ela utilizado no trabalho em referência
corresponde ao esquema tripartite adotado por Jürgen Habermas e discípulos (e.g. Jean Cohen e Andew Arato),
em que se distingue a sociedade civil tanto do mercado quanto do Estado.
30 LEYDET, Dominique. Crise de representação: o modelo republicano em questão. In: Retorno ao republi-
canismo. CARDOSO, Sérgio. (org.) Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 67-92.
31 CAETANO, Marcelo. Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1987. p. 169.
32 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 21.
33 BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola. PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol. 2. 5ª ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p. 1107.
34 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26ª ed. São Paulo: Editora Malheiros,
2006. p. 104-105.
35 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5ª ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Malheiros,
2008. p. 54-55.
36 PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 4ª ed., 7ª reimp. São Paulo: Brasiliense,
2004. p. 130-168.
PRADO JUNIOR, Caio. história Econômica do Brasil. 45ª reimp. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998. p.
225-256.
37 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5ª ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Malheiros,
2008. p. 56-57.
38 FREITAG, Barbara. Teorias da Cidade. 4ª ed. Campinas: Editora Papirus, 2006. p. 125-149.
39 A CFRB, por sua vez, conferiu considerável atenção à matéria urbanística/ambiental ao longo de seu texto
(arts. 21, xx; 23, III, IV, VI e VII; 24, VII e VIII; 182; e 225, etc.).
40 Como intermediário nessa situação encontra-se os Estados (art. 24, I, CFRB) que, concorrentemente, pos-
suem a competência constitucional para legislar sobre direito urbanístico.
41 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13ª ed., rev. atual. e ampl. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 376-377.
42 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 3ª ed., rev. atual. e ampl. Rio
de Janeiro: Lúmen Juris, 2005. p. 20-21.
43 Segundo CARVALHO FILHO, a participação da coletividade seria classificada como uma diretriz social, ou

2150
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

seja, que visa proporcionar algum tipo de benefício direto à coletividade, individual ou coletivamente, ou que
admitem a participação da comunidade no processo de urbanização (CARVALHO FILHO, José dos Santos. p. 23).
44 Importante notar que o caput do art. 4º, que define os instrumentos, não é taxativa, permitindo ao legislador
e/ou administrador municipal vislumbrar outras ferramentas para a gestão da cidade.
45 Deve-se destacar o EIA e o EIV como exemplos de instrumentos que contemplam a participação pública,
pois há em seu processo de elaboração momento específico e obrigatório em que deve haver participação da
sociedade civil (em audiência pública, ou na fase de comentários públicos aos estudos).
46 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 126-127.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 3ª ed., rev. atual. e ampl. Rio de
Janeiro: Lúmen Juris, 2005. p. 37-38.
47 BONIZZATO, Luigi. O advento do Estatuto da Cidade e conseqüências fáticas em âmbito da pro-
priedade, vizinhança e sociedade participativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 168.
48 O art. 10 do PL prevê a elaboração de (i) planos nacional, regionais e setoriais urbanos de ordenação do
território e de desenvolvimento econômico e social; (ii) planos de regiões integradas de desenvolvimento
(RIDEs) nas formas de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; (iii) planos de regiões
metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; e (iv) planos municipais.
49 KLIKSBERG, Bernardo. Falácias e mitos do desenvolvimento social. Tradução: VALENZUELA, Sandra
Trabucco. São Paulo: Cortez Editora, 2001. p. 39-41.
50 ARNSTEIN, Sherry R. A Ladder of Citizen Participation. In: Journal of the American Institute of Plan-
ners, Vol. 35, n. 4, July, 1969. p. 216-224.

2151
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

A dualidade presente entre o


atual desafio de mobilidade urbana
no Brasil e atuais políticas adotadas
pelo Poder Público

Arthur Nasciutti Prudente1


Juliana Lima Mafia2

1 INTRODUÇÃO

A Lei Federal 12.587/2012, que institui a Política Nacional de Mobili-


dade Urbana, define a mobilidade urbana, em seu art. 4º, II, como a “condi-
ção em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço
urbano”. Considerando os processos de expansão das cidades vividos no
Brasil nas últimas décadas, tais deslocamentos têm sido enfrentados com
tamanha dificuldade, aumentando a distância entre as condições existentes
de vida nas cidades brasileiras e as condições ideais de desenvolvimento
urbano, as quais pressupõem garantias de bem-estar. A mobilidade ur-
bana é, portanto, um dos grandes desafios do desenvolvimento urbano.
Ainda de implementação embrionária, a Política Nacional de Mobilidade
Urbana possui muitos obstáculos que vão além da dificuldade de financiar
a infraestrutura de transporte urbano, como políticas públicas já adotadas
que desestimulam o uso do transporte coletivo, que, segundo o art. 6º, II
da Lei 12.587, deve ser priorizado.

2 A POLÍTICA NACIONAL DE MOBILIDADE URBANA

Com a finalidade de criar condições para superar o desafio do desen-


volvimento urbano e da mobilidade, foi promulgada, em janeiro de 2012,
a Lei Federal 12.587/2012, já mencionada, instituindo as diretrizes da
Política Nacional de Mobilidade Urbana.

2153
A Constituição Federal, desde 1988, já definia como de competência da
União a instituição de “diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive
habitação, saneamento básico e transportes urbanos”3, além de estabelecer
como objetivo da política de desenvolvimento urbano “ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar
de seus habitantes”4.
De acordo com o Comunicado do Instituto de Pesquisa Econômica Apli-
cada (IPEA) nº 128, de janeiro de 20125, nos anos que seguiram a entrada
em vigor da atual constituição, alguns projetos de lei foram propostos sobre
o tema “transporte coletivo”, os PLs 4.203/1989, 870/1991, 1.777/1991
e 2.594/1992. Todos os quatro, entretanto, foram arquivados em 1995.
No mesmo ano, foi elaborado o projeto que deu origem à Lei
12.587/2012: o PL 694/1995 de autoria do deputado Alberto Goldman, que
seguiu proposta da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) e
dispunha somente sobre diretrizes nacionais do transporte coletivo urbano.
Em seguida, também foram elaborados e apensados ao projeto inicial o
PL 1.974/1996 de autoria do deputado Chico da Princesa, dispondo sobre
a prestação de serviços de transporte rodoviário coletivo de passageiros
e o PL 2.234/1999, que dispunha sobre “sistema integrado de transporte
coletivo urbano” e foi de autoria do deputado Sérgio Carvalho.
Os projetos de lei seguiram trâmite na Câmara dos Deputados e, no
ano de 2003, foi instituída, na Câmara dos Deputados, a Comissão Especial
de Transporte Coletivo Urbano para avaliar o PL 694. Também em 2003,
foi criado o Ministério das Cidades. No âmbito deste, iniciou-se discussão
acerca de uma proposta mais abrangente que resultou no PL 1.687/2007
de autoria do Poder Executivo. Sua ementa lia “institui as diretrizes da
política de mobilidade urbana e dá outras providências”, ampliando a
discussão até então existente.
Também segundo o comunicado do IPEA, o interesse do Poder Execu-
tivo decorreu da ausência do conceito de mobilidade urbana do Estatuto
das Cidades (Lei Federal 10.257/2001), o que justificou a necessidade de
uma política autônoma que fosse além do tema de transportes urbanos
proposto pelo PL 694/1995.

2154
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Em maio de 2010, a comissão da câmara aprovou o projeto de lei,


que seguiu, então, para o Senado Federal onde foi aprovado nos fins de
2011. No ano seguinte, como se sabe, a lei foi promulgada após 17 anos
de tramitação nos quais o projeto passou pelas alterações e revisões que
possibilitaram a construção da Política Nacional de Mobilidade Urbana
como ela é hoje.
Entre as principais conquistas da Lei 12.587, está a priorização do
transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado (art.
6º, II), a qual será aprofundada no item 3.1.
Também constituem grandes avanços da lei a definição dos direitos
do usuário do transporte coletivo no art. 14; a previsão de instrumentos
que possibilitam a participação da sociedade civil nos processos de pla-
nejamento, fiscalização e avaliação da Política Nacional de Mobilidade
Urbana no art. 15 e o dever da União de assistir aos demais entes no de-
senvolvimento de instituições voltadas à Política Nacional de Mobilidade
Urbana conforme art. 16, I e II.
Ademais, uma vez que estão inseridos em lei federal de abrangência
nacional, as diretrizes e os princípios contidos na Lei 12.587 vinculam as
políticas de transporte de todos os municípios do país, o que gera duas
consequências diretas bastante positivas: (i) a influência dessas diretrizes e
princípios nos planos municipais independentemente de o governo federal
impor condicionantes para apoio financeiro; e (ii) permite que se conteste
políticas municipais que possam contrariar tais diretrizes e princípios.

3 MOBILIDADE URBANA E DESENVOLVIMENTO URBANO

A Mobilidade Urbana, ao lado da moradia, do saneamento e da regula-


rização fundiária, é um dos eixos do Desenvolvimento Urbano, o que por
si só traz ao poder público o dever de implementá-la. Isto significa adoção
de políticas que interfiram diretamente nas condições de oferta de trans-
porte público e na regulação dos espaços destinados ao estacionamento
de veículo de automotores privados e no trânsito destes.

2155
3.1 Tendência pela Valorização do Transporte
Público em Detrimento do Transporte Privado

Quanto maior a frota de veículos automotores, maior o tempo de


deslocamento dos habitantes da cidade e, consequentemente, menor o
bem-estar geral e o nível de desenvolvimento urbano, em última instância.
A necessidade de priorizar o transporte coletivo, prevista expressamen-
te na Lei de Política Nacional de Mobilidade Urbana, parece ser desconsi-
derada tendo em vista práticas do Poder Público no Brasil.
O que se observa são investimentos muito tímidos em transporte públi-
co de qualidade ao lado de verdadeiros incentivos ao consumo e utilização
do transporte particular individual. Prova disto é o fato de que a frota de
veículos automotores, no Brasil, sofreu aumento de, aproximadamente,
impressionantes 77,8% de 2001 a 2011, conforme estudo do Observatório
das Metrópoles6.

3.1.1 A Política de Fomento de Vagas de


Garagem nas Grandes Cidades Brasileiras

Segundo José Afonso da Silva,7 o direito de locomoção inclui, o ir, o vir


e o ficar, ao passo que o conceito jurídico de “circulação” também pres-
supõe “o movimento e a inércia, que lhe correspondem: o deslocamento
e o estacionamento”. Seguindo este raciocínio, é impossível pensar no
trânsito de veículos sem abordar o problema da oferta de vagas de gara-
gem. O aumento da frota de veículos automotores acima mencionado foi
acompanhado da tentativa de aumentar-se também a oferta de vagas de
garagem para acomodar tais veículos.
Analisando os parâmetros urbanísticos dos principais municípios
brasileiros, nesse sentido, encontra-se aplicação de lógica contrária aos
princípios de cidade sustentável, ao direito ao planejamento urbano e às
diretrizes da política nacional de mobilidade urbana: a obrigação de se
destinar grande parte das edificações a vagas de garagem. Essa prática,

2156
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

consequentemente, possibilitou que a frota de veículos pudesse continuar


aumentando consideravelmente enquanto que, segundo os princípios de
cidade sustentável, deveriam ter sido adotadas políticas para conter o
crescimento da frota.
A aplicação da regra destinação de vagas de garagem nesses municípios
se dá de forma simples: a cada “x” metros quadrados de área construída,
deve-se destinar área para uma vaga de garagem, sendo que a proporção
entre a área construída e o número de vagas de garagem difere em relação
aos usos residencial e não residencial.
Além disso, muitos municípios, sob o argumento técnico do déficit
habitacional, possuem dispositivos que não consideram como área cons-
truída as áreas destinadas a estacionamento de veículos.
Vejamos como a questão é tratada em alguns municípios. Em Belo
Horizonte, por exemplo, a Lei Municipal de Parcelamento, Ocupação e
Uso do Solo (Lei 7.166/1996) determina que, para fins de cálculo do coe-
ficiente de aproveitamento da construção8, as vagas de garagem não são
contabilizadas como área construída, assim como as vagas adicionais
exigidas no licenciamento ambiental e urbanístico (art. 46, I e § 6º).
No Município de São Paulo, a lei que dispõe sobre Parcelamento, Ocu-
pação e Uso do Solo (Lei 13.885/2005) também condiciona a instalação
de usos residenciais e não residenciais e a construção de edificações no
território do Município à implantação de “número mínimo de vagas para
estacionamento” (art. 174, II, “a”).
Em São Paulo, entretanto, novas medidas estão sendo pensadas e, caso
sejam viabilizadas, a situação acima será alterada. Trata-se da proposta de
Plano Diretor Estratégico9 para o município, que substituiria o Plano Diretor
atualmente em vigor (Lei Municipal 13.430/2002). A proposta incentiva
claramente o uso do transporte coletivo ao estabelecer número máximo
de vagas em áreas próximas a estações de metrô e corredores de ônibus:

Art. 62, §2º: “Nos eixos de estruturação da transformação urba-


na, com sistema de transporte coletivo público de média ou alta
capacidade instalado fica estabelecido que:
(...)

2157
II – novos empreendimentos imobiliários residenciais multifami-
liares, verticais e horizontais, devem ter, no máximo, uma vaga
de estacionamento com 25 m² (vinte e cinco metros quadrados)
para cada unidade residencial autônoma;
III – os novos empreendimentos imobiliários residenciais mul-
tifamiliares, verticais e horizontais, ou de uso misto deverão
obedecer a uma cota máxima de terreno por unidade habitacional
entre 25 m² (vinte e cinco metros quadrados) e 35 m² (trinta e
cinco metros quadrados) (...)”

A proposta possibilita melhoria nas condições de mobilidade urbana do


município de São Paulo ao compasso que prevê ocupação do solo urbano
compatível com a capacidade da infraestrutura instalada, uma vez que a
limitação de número de vagas se restringe aos locais em que o transporte
público é de fácil acesso. O ideal, todavia, seria oferta maior de transporte
público e menor de vagas de garagem em toda cidade, o que somente será
possível mediante ampliação da infraestrutura de transporte do município.
Em direção oposta, entretanto, segue o Projeto de Lei Complementar
31/2013 em trâmite na Câmara Municipal do Rio de Janeiro uma vez que
seu art. 116 prevê número mínimo de vagas para edificações.
No Município do Recife, por sua vez, a Lei 16.176/1996 (dispõe sobre
uso e ocupação do solo), incentiva a oferta de vagas de estacionamento
“em função do bem-estar da coletividade” (art. 39, § 2º) em clara e absurda
contradição dos pressupostos de mobilidade urbana. Ora, como temos
defendido, a oferta de vagas possibilita o aumento do número de veícu-
los que circulam nas cidades e desestimula o uso do transporte coletivo,
comprometendo, consequentemente, o bem-estar da coletividade, razão
pela qual o texto do dispositivo é, em si, um contrassenso. Além disso, a
lei dispensa do “cômputo da área total de construção as áreas destinadas
ao abrigo de frota de veículos, para efeito de aplicação dos requisitos de
vagas de estacionamento” (art. 40, II).
Em Porto Alegre, a política se repete. O Plano Diretor de Desenvol-
vimento Ambiental e Urbano (Lei Complementar 434/1999) isenta do
cômputo no índice de aproveitamento das áreas construídas a guarda de
veículos nos prédios não-residenciais, independentemente do número de

2158
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

vagas e da área desses prédios e nos prédios residenciais, proporcional-


mente à área computável (art. 107, § 1º). A medida é fundamentada com
base na necessidade de se retirar veículos das vagas que se localizam ao
longo das vias públicas e considera a falta de estacionamentos um entrave
à circulação dos veículos, como se depreende do seguinte comentário à lei:

A melhoria da circulação dos veículos tem sido solicitada pela


população. Por isto o Plano Diretor aumenta a obrigatoriedade
com relação aos estacionamentos em todos os tipos de prédios.
Com o aumento das vagas, será possível retirar os veículos que
hoje estacionam ao longo das vias públicas. O Plano dá, ainda,
um forte incentivo à construção de garagens comerciais, em
especial nas zonas consideradas críticas devido à falta de esta-
cionamentos10.

A situação é particularmente grave e incoerente em Porto Alegre haja


vista que a mesma lei que incentiva o aumento de espaços para a guarda
de veículos, o Plano Diretor do Município, já em 1999, treze anos antes
da promulgação da Lei 12.587/2012, tratava da Mobilidade Urbana como
estratégia da cidade. Esse Plano Diretor, inclusive, reservou um capítulo ao
tema e estabeleceu, expressamente, prioridade ao transporte coletivo, aos
pedestres e às bicicletas. Como se tem demonstrado, contudo, a prioridade
ao transporte coletivo pressupõe incentivo ao seu uso em detrimento do
uso do transporte privado.
Com base nas diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana,
defendemos que as leis não devem trabalhar com vagas mínimas, mas
número de máximo de vagas por unidade residencial ou não residencial.
A melhoria das condições de circulação dos habitantes da cidade não
depende da disponibilidade de vagas, e sim de ações estruturantes de
transporte e trânsito e a regulação do uso do solo, visando à aproximação
entre moradia, emprego e serviços.
Além disso, a liberação dos espaços ocupados por carros mediante uso
efetivo e de qualidade do transporte público possibilitaria a apropriação
da cidade por seus habitantes e a sua consolidação como polo de impor-
tância regional, à medida que se verificaria ampliação dos espaços de
convivência e resgate dos espaços públicos.

2159
A partir dessas constatações, torna-se necessário exigir a adequação
dessas legislações municipais – e de outras que sigam os mesmos parâ-
metros relativos a vagas de garagem – uma vez que são ilegais perante
as diretrizes da Lei Federal de Política Nacional de Mobilidade Urbana.
A discussão já está começando na revisão do plano diretor de são
Paulo, que prevê justamente a diminuição das vagas de garagem. É de se
esperar, no entanto, que a discussão enfrentará críticas, principalmente
do setor imobiliário que perderá a “regalia” das vagas de garagem, uma
vez que agregam valor aos imóveis. Não obstante, as exigências devem
ser atendida tendo em vista que, como demonstrado, a grande oferta de
vagas de garagem desestimula o uso do transporte público e piorando
as condições de mobilidade urbana e, consequentemente, impedindo o
desenvolvimento da cidade.

3.1.2 Mobilidade Urbana e Desenvolvimento Sustentável

A valorização do transporte público previsto na Lei de Política Nacio-


nal de Mobilidade Urbana, além de trazer benefícios para a circulação
de pessoas e controle de tráfego terrestre, condiz com os princípios do
chamado Desenvolvimento Sustentável.
O conceito, tão em voga nos últimos anos, foi abordado pelo Relatório
Brundtland nos anos 1980 e trouxe a noção de que apenas o desenvolvi-
mento que satisfaz as exigências das gerações atuais sem comprometer a
possibilidade de as gerações futuras de satisfazer as suas seria sustentável.
Segundo Ana Maria de Oliveira Nusdeo11,

a expressão desenvolvimento sustentável acabou por expressar


um consenso abstrato que está muito longe dos entendimentos
concretos dos diferentes países no tocante à mudança dos seus
padrões de produção, consumo e, sobretudo, da distribuição
entre si desses ônus.

Prova de que a mudança de padrões de produção e consumo não tem


sofrido freios no Brasil é o fato de que a frota de automóveis não para de

2160
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

crescer. Tais padrões são insustentáveis à medida que provocam alterações


no meio ambiente, como poluição do ar e emissão de gases causadores
do efeito estufa (GEE), capazes de comprometer as gerações futuras.
Uma vez que traz consigo a possibilidade de frear o aumento da frota
de veículo automotores e, consequentemente, reduzir níveis de poluição
do ar e de emissão de GEE, a mobilidade urbana é, por si só, grande aliada
do desenvolvimento sustentável. Vânia Barcellos Gôuvea Campos12 resume
este entendimento e traz o conceito de mobilidade urbana sustentável
com as seguintes palavras:

A preocupação com o desenvolvimento sustentável tem incenti-


vado o estudo e a implantação, em diferentes setores, de medidas
e procedimentos que contribuam para a sustentabilidade em
áreas urbana. Em relação aos transportes esta questão pode ser
vista através de uma busca pela mobilidade urbana sustentável.
Esta busca deve ter como base o conceito de desenvolvimento
sustentável em que se procura de uma forma geral, definir es-
tratégias dentro de uma visão conjunta das questões: sociais,
econômicas e ambientais.

A mobilidade urbana é, nesse sentido, mais um dos conceitos que


demonstram a conexão entre o direito ao meio ambiente e o direito à ci-
dade. Nessa esteira, torna-se imprescindível citar a doutrina de Fernando
Alves Correia:

A influência da ideia de proteção do ambiente no direito urba-


nístico manifesta-se não só a nível dos objetivos dos planos ur-
banísticos e, por conseguinte, no domínio das suas disposições,
mas também no terreno da execução destas, ou seja, a nível do
chamado urbanismo operativo. Estamos a pensar no impacto
ambiental da execução dos planos, bem como de quaisquer
projectos, trabalhos e acções que possam afectar o ambiente, o
território e a qualidade de vida dos cidadãos [...].

Desse modo, as práticas que, como a grande oferta de vagas gara-


gem, conflitam com a possibilidade de implementação da Política Na-
cional de Mobilidade Urbana não estão presentes somente no âmbito
das normas de caráter urbanístico, como é o caso das políticas fiscais
que incentivam a comercialização e, consequentemente a circulação,
de veículos automotores.

2161
3.1.2.1 Redução de IPI de Veículos Automotores

Assim como a obrigação de se destinar grande parte das edificações


a vagas de garagem, a sistemática prática do governo federal em reduzir,
desde janeiro de 200913, as alíquotas do Imposto sobre Produtos Indus-
trializados (IPI), de competência tributária da União, está em desacordo
com as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Aliada a
uma oferta maior de crédito no mercado, a redução do IPI de veículos
automotores (e a consequente redução do preço dos veículos) estimula o
brasileiro a adquiri-los e utilizá-los, não obstante os efeitos danosos ao
desenvolvimento urbano e sustentável das cidades.
De fato, a redução das alíquotas do IPI tem função extrafiscal benéfica
para a economia: mantém a indústria automobilística aquecida em tempos
de recessão econômica no cenário internacional. Nas palavras de Bruno
Cardoso Bandeira de Mello14:

Mas o fato é que, durante a vigência da redução do IPI as vendas


dos produtos da linha branca e da indústria automobilística,
foram alavancadas a níveis consideráveis, conforme dados
apresentados pelos mais diversos institutos de pesquisa, dentre
eles o R7, que considerou que a medida salvou a indústria de
eletrodomésticos, fadada, anteriormente a resultados negativos,
e por reportagem publicada no Jornal A Tarde do dia 02/04/2010,
registrando recorde de vendas de veículos automotores no pri-
meiro semestre do ano, destacando-se, ainda, a importância dos
financiamentos neste resultado favorável. Desta forma, a despeito
da crise, alguns ramos do segundo e terceiro setores obtiveram
lucros maximizados, beneficiando-se, a despeito do panorama
econômico de recessão global.

Ainda que possua um lado positivo, a redução do IPI é um exemplo de


instrumento econômico que deve ser deixado de lado justamente por não
contribuir com o desenvolvimento sustentável. Trata-se, portanto, de um
incentivo perverso da economia.
Ronaldo Seroa da Motta e Carolina Burle Schmidt Dubeux esclarecem:

O maior desafio no planejamento de uma economia verde15 será


nos ajustes a serem realizados nos instrumentos econômicos que
são atualmente utilizados ou em desenvolvimento pelas políti-

2162
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

cas econômicas, sociais e setoriais. Logo a inserção da questão


ambiental nessas políticas é crucial para eliminar incentivos
perversos ao uso dos recursos ambientais que se contrapõem
e/ou anulam os esforços de precificação e preservação dos
recursos ambientais.16

A recorrente adoção do redução do IPI, portanto, ainda que possa


afastar crise do mercado, eleva a frota de veículos nas cidades, dificul-
tando a circulação de pessoas, estimula o uso de transportes privados,
provoca efeitos nefastos à qualidade do ar, além de elevar a emissão de
GEE, intensificando a mudança climática.
Deve-se considerar também que a redução as alíquotas do imposto
diminui a arrecadação da União e, consequentemente, o repasse aos
municípios, penalizando-os também do ponto de vista orçamentário.
Trata-se, portanto, de política que deve ser afastada como meio de
implementação da Política Nacional de Mobilidade Urbana.

4 CONCLUSÃO

Cabe considerar que a Lei Política Nacional de Mobilidade Urbana tem


por objetivo promover a articulação das políticas de transporte, trânsito
e acessibilidade, a fim de proporcionar o acesso amplo e democrático ao
espaço de forma segura, socialmente inclusiva e sustentável.
Para tanto, traça uma política nacional que prioriza a implementa-
ção de sistemas de transportes coletivos, dos meios não motorizados
(pedestres e ciclistas), da integração entre as diversas modalidades de
transportes, bem como a implementação do conceito de acessibilidade
universal para garantir a mobilidade de idosos, pessoas com deficiência
ou restrição de mobilidade.
Como forma de tornar esta política viável nos municípios, há a neces-
sidade de se estabelecer a disseminação dos conceitos propostos pela Lei,
pelos Conselhos Municipais de Política Urbana e da Conferência Nacional
das Cidades, além da efetivação da política por investimentos diretos nas
propostas consideradas prioritárias.

2163
Assim sendo, entendemos que a política de mobilidade urbana encon-
tra-se traçada a nível nacional, restando ao poder local a disseminação
dos conceitos propostos, bem como estabelecer medidas concretas para
a efetivação desta política.
Por outro lado, para que se dê efetivação à política de mobilidade urba-
na, falta ao poder público estabelecer medidas concretas de planejamento
urbano, projetos e ações específicas, como a realização de intervenções e
ações de fiscalização e não a elaboração de mais uma lei genérica, ainda
que bem intencionada.
A prática municipal de se incentivar a ocupação do solo de forma a
privilegiar e estimular o transporte privado, além da edição de Planos Mu-
nicipais de Mobilidade genéricos, em nada contribuem para a efetivação
da política de mobilidade urbana, mas tão somente para registrar uma
intenção e para complicar ainda mais o arcabouço legislativo urbanístico,
porque desvinculada e independente do processo de planejamento urbano
como um todo.
Da mesma forma, o poder executivo federal deve orientar as demais
políticas de Estado na mesma direção dos pressupostos da mobilidade
urbana, uma vez que podem influenciar sua concretização. Caso contrário,
a implementação das diretrizes da Lei 12.587, ao colidir com a adoção de
incentivos de outra natureza, fica comprometida, como é o caso da redu-
ção de IPI fomentando o mercado de veículos para o transporte privado.
Dessa forma, a mobilidade urbana, calcada nos princípios e diretrizes
da Lei 12.587, apenas será alcançada quando se tornar uma prioridade
para os entes da federação, a começar pelo cumprimento do art. 6º, II:
“prioridade dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte
individual motorizado”.
É indiscutível que a Política Nacional de Mobilidade Urbana, devido
ao fato de ser muito recente, não será implementada em curto prazo.
Além da necessidade de investimentos em infraestrutura de transporte, é
primordial que se faça uma revisão das políticas públicas atualmente em
vigor para que possam se orientar em direção à melhoria das condições

2164
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de mobilidade urbana. Um dos primeiros passos que podem ser tomados


é identificar as políticas que estão em desacordo com as diretrizes da
Política Nacional de Mobilidade Urbana, o que aqui nos propusemos a
realizar. Nesse cenário, encontra-se a nova proposta paulistana de um
Projeto Diretor Estratégico, que deve ser tomada como exemplo para que
as demais políticas públicas que trazem incentivos contrários à priorização
do transporte público coletivo também sejam revistas.

REFERÊNCIAS

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WHYTE, William H. The Social Life of Small Urban Spaces: project for public spaces.
Edwards Brothers, Inc.: Ann Arbor, Michigan, 2001.

NOTAS

1 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do Grupo de Estudos
Indisciplinar da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFMG. Consultor jurídico. E-mail: arthurnp@gmail.com.
2 Graduada em Direito pela UFMG. Advogada. E-mail: jumafia04@gmail.com.
3 Art. 21, xx.
4 Art. 182, caput.
5 Disponível em: <http://www.opp.ufc.br/urbano03.PDF>. Acesso em 30 de Agosto de 2013.
6 Disponível em <http://observatoriodasmetropoles.net/download/relatorio_automotos.pdf>. Acesso em 30
de Agosto de 2013.
7 Direito urbanístico brasileiro. 4. ed. Malheiros: São Paulo, 2006.
8 Expressão definida, pelo Anexo I – Glossário da Lei Municipal 7.166/1996, como “coeficiente que, multiplicado
pela área do lote, determina a área líquida edificada, admitida no terreno”. Na legislação de outros munícipios, a
expressão pode ser substituída por “índice de aproveitamento”, como é o caso do Plano Diretor de Porto Alegre.
9 Disponível em <http://www.gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/arquivos/Minuta_Revisao_PDE.pdf>. Acesso
em 31 de Agosto de 2013.
10 Disponível em: <http://www.portoalegre.rs.gov.br/planeja/spm/3c2.htm>. Acesso em 31 de Agosto de 2013.
11 Pagamentos por Serviços Ambientais: sustentabilidade e disciplina jurídica. São Paulo: Atlas, 2012.
12 Uma visão da mobilidade sustentável. Revista dos Transportes Públicos, v. 2, p. 99-106, 2006.
13 Disponível em: <http://www.en.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_1512.pdf>. Acesso em
31 de Agosto de 2013.
14 O Papel da Redução do IPI no Combate aos Efeitos da Crise Econômica Mundial no Brasil. Boletim Jurídico:
11/02/2011. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=2179
15 A economia verde deve ser considerada a economia “que resulta em melhoria do bem-estar humano e
igualdade social, ao mesmo tempo que reduz significativamente riscos ambientais e escassez ecológica”, con-
forme conceito dado pelo Programa das Nações Unidas de Meio Ambiente. Para muitos, como Leonardo Boff,
trata-se de uma terminologia que em nada difere de “desenvolvimento sustentável”, mas que veio substitui-lo
em razão de seu desgaste.
16 Revista Política Ambiental. Ano VI, v.8, p. 197-207, junho de 2011.

2166
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Direito à cidade e à mobilidade


Projeto Caminho Escolar do
Paraisópolis (São Paulo)

Irene Quintáns Pintos1

1 CONTEXTO SOCIAL E URBANO DA EXPERIÊNCIA2

O município de São Paulo abriga uma população de aproximadamente


10 milhões de habitantes. São cerca de 1.500 favelas em seu território, sua
grande maioria ocupando áreas públicas municipais. O Complexo Parai-
sópolis é a segunda maior favela da cidade, especialmente diferenciado
por ocupar 1 milhão de metros quadrados de área particular.
A área em que está situada a Favela Paraisópolis, foi inicialmente ocu-
pada em 1970, e fazia parte de um loteamento de 1921 com 2.200 lotes. O
abandono dos lotes e a falta de infra-estrutura no loteamento e no entorno
fizeram com que fossem ocupados por grileiros e posseiros. No final da
década de 60, com o crescimento imobiliário na região, a ocupação de
Paraisópolis intensificou-se. Em 1972, a Prefeitura promulgou a Lei de
Zoneamento Geral do Município, enquadrando a área do zoneamento
com ocupação restrita à habitação unifamiliar, admitindo-se também usos
de comércio e serviços diversificados. Esses índices restritivos visavam o
congelamento da área e a criação de condições para implantação de um
plano especial de ocupação, a ser elaborado num prazo de 5 anos. O plano
não foi implantado, dando margem à expansão da ocupação irregular.
Diversas ações do poder público foram planejadas, mas nunca haviam
sido implantadas.
A intervenção no Projeto Paraisópolis foi iniciada em 2003 com o de-
senvolvimento do projeto básico. Suas obras foram iniciadas em junho/06

2167
e estão divididas em duas etapas. Estão em andamento, nesta primeira
etapa, intervenções urbanísticas pontuais em onze frentes de obras. Na
segunda etapa da obra, está prevista a execução de toda a urbanização
das áreas ocupadas, abertura da Via Perimetral, canalização do córrego
Antonico, construção de unidades habitacionais, recuperação das áreas
de risco nos setores Grotão e Grotinho, pavimentação, drenagem e im-
plantação de rede de água e esgoto em parceria com a Sabesp.
Além das obras descritas, que têm por objetivo a melhoria da quali-
dade habitacional da área, dotando-a de infra-estrutura básica, de forma
a permitir a inserção na malha urbana, será viabilizada a regularização
fundiária, para inseri-la no contexto legal da cidade.
Paraisópolis abriga 55.590 pessoas em 17.730 domicílios, e está locali-
zada no Distrito de Vila Andrade, região do Morumbi. Nela atuam organi-
zações não governamentais desenvolvendo diversos projetos sociais, além
de 3 unidades municipais de saúde e 9 unidades governamentais de ensino.
A renda média de 87,6% dos chefes de família do Projeto Paraisópolis
é de 3 salários mínimos. No município de São Paulo 40% dos chefes de
família ganham até 3 salários mínimos e no distrito de Vila Andrade 24%
ganham até 3 salários mínimos, segundo dados de SEMPLA – Secretaria
Municipal de Planejamento do Município de São Paulo. Dados do cadastro
realizado com as famílias em 2004 e 2005 apontam que 20% das famílias
de Paraisópolis vivem abaixo da linha de pobreza. De acordo com o Cen-
so 2000, o salário médio do chefe de família do Morumbi é 47 salários
mínimos, caracterizando o enorme contraste. A densidade demográfica
é de 69,15 população/hectare na cidade de São Paulo, 71,50 em Vila An-
drade e em Paraisópolis 590,43 segundo dados da Secretaria Municipal
de Habitação do Município de São Paulo. O número médio de pessoas por
família em Paraisópolis é de 3,41, sendo que 53,73% do total de famílias
ocupam domicílios com até 03 cômodos.
Isto demonstra o contraste de Paraisópolis no distrito em que se insere,
tanto na sua alta densidade como na vulnerabilidade social destas famílias
que ocupam muitas áreas de risco e insalubres, revelando a desigualdade
social existente não só em Paraisópolis, mas na sociedade brasileira.

2168
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Um outro aspecto a ser destacado diz respeito aos responsáveis pela


família, segundo sexo e renda. Em Paraisópolis, 42% das famílias têm
mulheres como responsável, com renda média de 1,16 salários mínimos,
enquanto 58% das famílias têm homem como responsável com renda
média de 1,86 salários mínimos. É importante destacar que 77,33% das
mulheres chefe de família tem idade entre 26 e 59 anos.
Do total de 55.590 moradores, temos 31.229 pessoas com mais de 15
anos que nunca frequentaram a escola. Dentre 6.916 crianças e adoles-
centes de 0 a 14 anos, 226 crianças e adolescentes em idade escolar não
estão alfabetizadas. Em relação à organização social, 81,7% dos moradores
não participam das entidades de organização dos moradores existente.
Estes dados demonstram a necessidade de urbanização da favela, que
visa melhorar as condições de vida dos moradores, assim como facilitar
o acesso à equipamentos públicos e da rede de serviços. A intervenção
proposta tem como eixo fundamental a participação dos moradores em
todas as etapas de obras e na consolidação dos espaços públicos que
serão criados.

2 PROGRAMA DE URBANIZAÇÃO DE FAVELAS 3

O Projeto Paraisópolis, constituído pelas comunidades de Paraisópo-


lis, Jd. Colombo e Porto Seguro, inseridas na região do Morumbi, visa
integrar estas áreas à cidade formal através da regularização urbanística
e fundiária, promovendo a inclusão social, o acesso dos moradores
locais à infra-estrutura, e a melhoria das condições de habitabilidade,
de saúde e ambientais.
O Programa de Urbanização de Favelas em curso no município de São
Paulo, no qual se insere o Projeto Paraisópolis, tem por pressupostos: me-
lhoria das condições de habitabilidade do núcleo; prevenção e eliminação
de riscos e acidentes causados por fatores geotécnicos e por inundação,
sempre potenciados pela ocupação desordenada; melhoria das condi-
ções ambientais das favelas e do seu entorno; melhoria das condições de

2169
salubridade e de saúde da população; ampliação do comprometimento
da população na conservação das melhorias físicas conquistadas com o
fortalecimento da organização comunitária; e combate sistemático à ocu-
pação irregular de áreas protegidas. Trata-se de intervenções que implicam
ganhos significativos para a população destas áreas, bem como para o
conjunto da cidade, dado que estas moradias contribuem diretamente
com esgotos, resíduos sólidos e erosão.
A grande maioria da população que reside no local deverá ser mantida
(cerca de 90%), com o benefício da infra-estrutura básica e de serviços
públicos, bem como regularização fundiária de sua ocupação. A popula-
ção diretamente afetada pela execução das obras e eliminação de áreas
de risco terá seu atendimento habitacional assegurado em local próximo
ou dentro do perímetro de intervenção. Foram disponibilizadas também,
através de convênio, cartas de crédito para os cadastrados pelo programa.
Após realizadas as intervenções urbanísticas internas às quadras,
estas serão objeto de regularização fundiária e equacionamento das
diversas situações de posse e propriedade. A maioria dos moradores do
Projeto Paraisópolis não possui qualquer tipo de assistência jurídica, nem
tampouco condições financeiras para patrocinar a defesa de seus direitos
possessórios, o que se pretende também equacionar com o Programa. O
Programa Paraisópolis trabalha em duas linhas paralelas de ação: regu-
larização fundiária e regularização urbanística.
A equipe técnica que hoje atua na Secretaria Municipal de Habitação
da Prefeitura do Município de São Paulo é constituída por profissionais
das áreas de serviço social, arquitetura e engenharia, com experiência
acumulada em assentamentos precários. Os trabalhos realizados em ur-
banizações de favelas da represa Guarapiranga serviram como base para a
elaboração da metodologia de trabalho hoje desenvolvida em Paraisópolis.

2170
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

3 PROJETO CAMINhO ESCOLAR DO


PARAISóPOLIS: OBJETIVOS E CONTEÚDO

A Secretaria de Habitação da Prefeitura Municipal de São Paulo apre-


sentou no ano 2011 o Projeto Piloto de Caminho Escolar, concomitante
à obra de urbanização, que se desenvolve desde 2006 na segunda maior
favela da cidade, Paraisópolis, ocupando uma área de um milhão de me-
tros quadrados.
O Caminho Escolar do Paraisópolis busca melhorar as condições físicas
e de segurança viária do espaço urbano assim como trabalhar aspetos
sociais, educacionais e de cidadania.
O projeto propõe ações para aprofundar nos direitos das crianças
como cidadãs: o direito fundamental de todas as pessoas a educação, tem
como extensão o direito a uma cidade educadora. Com o Projeto Caminho
Escolar, a Secretaria de Habitação quer garantir o direito dos moradores
a qualidade de vida urbana, a traves da implantação de espaços urbanos
criativos e educativos.

O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na


cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente
diferente. Todos devemos ter os mesmos direitos de construir os
diferentes tipos de cidades que nós queremos que existam.4

A mobilidade é um aspecto que tem sido muito afetado pela onda de


superproteção adulto. Um problema que afeta a criança vida diária, que
está ligada ao poder de decisão sobre o uso do tempo e do espaço. A
drástica redução da autonomia no dia-a-dia e para o uso e fruição dos
espaços públicos, é associado à regra de mobilidade motorizada em ci-
dades do ocidente.5
O desenvolvimento de São Paulo privilegia os deslocamentos em trans-
porte privado, fato que traz como consequência os problemas conhecidos
por toda a população, como o incremento do uso de carros, o aumento
do tempo de deslocamento, poluição, barulho, e problemas de saúde
aos habitantes da cidade. Para resolver esses problemas é necessário

2171
encontrar alternativas ao transporte individual motorizado, que apontem
opções à tendência a transformar São Paulo em uma grande autopista,
e se re-apropriem do espaço pedestre da cidade, fazendo-o mais seguro,
acessível, democrático e humano.
Os projetos de caminho escolar são iniciativas que são desenvolvidas
em países de todo o mundo, como EEUU, Canadá, Austrália e países da
Europa, porém ainda não foram plenamente implantados no Brasil, e
são dirigidos para que as crianças possam se mover com segurança e
autonomia pelas ruas e recuperem seu uso e desfrute do espaço público.
O caminho escolar tem uma vertente educativa, mas é a sociedade e
a cidade no seu conjunto (áreas de gestão local, projeto, habitabilidade,
segurança, mobilidade, médio ambiente, saúde e esporte...) quem deve
criar as condições para que os cidadãos de todas as idades possam viver
num meio inclusivo. A Lei nº 12.587 reforça no seu Art.182 (“A política de
desenvolvimento urbano, executada pelo Poder público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvi-
mento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”)
a legitimidade do projeto.
Um dos grupos demográficos mais afetados pelos hábitos de mobili-
dade atuais na cidade são as crianças, que dependem dos adultos para
se locomover. Muitas vezes, acomodados nos bancos traseiros do carro
e pressionados pela correria do dia a dia, as crianças não conseguem
elaborar este mapa mental que lhes faz dar sentido a seu meio e criar
relações de um lugar com outro. O conhecimento e a apropriação do es-
paço em que vivemos proporcionam-nos pontos de referência e sentido
de pertencimento.
Este tipo de privação do espaço não é um tema insignificante ou que
possa ser negligenciado, está vinculado à perda de autoestima e de segu-
rança. A consciência cívica, ou sua ausência, está estritamente vinculada
com esta experiência temporã do coletivo, coletivo que é mais suscetível
às mudanças de hábito, e atua também como difusor dos costumes ad-
quiridos, aumentando a eficiência de programas educativos junto aos pais
e ao resto da sociedade.

2172
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Na comunidade do Paraisópolis, a maioria dos alunos do Ensino


Fundamental (85% da amostra em estudo) fazem seu trajeto casa-escola-
-casa a pé, sozinhos ou acompanhados. É assim que um dos objetivos da
metodologia do Caminho Escolar, incentivar o modo de transporte a pé,
já está resolvido, mas só parcialmente, pois a invisibilidade do pedestre
está presente nas nossas cidades, além de como “funcione” a comunidade
do Paraisópolis.

4 METODOLOGIA6

I. Desenho:
1. Conhecimentos gerais de Projetos de Caminhos Escolares 2. Identifi-
cação dos equipamentos existentes no âmbito educacional de Paraisópolis
3. Preparação de um plano de intervenção 4. Preparação da instrumen-
tação e metodologia de pesquisa escolar 5. Projeto de indicadores de
acompanhamento e avaliação
II. Implementação do projeto-piloto:
1. Ações preliminares - seleção de escolas para o projeto-piloto - apre-
sentação do projeto para as autoridades da escola e as principais partes
interessadas activas na comunidade - aplicação da pesquisa escolar
- processamento e análise dos dados coletados
2. Divulgação do projeto na comunidade - apresentação do projecto
e os resultados da pesquisa - desenvolvimento e distribuição de material
de informação
3. Planejamento das primeiras iniciativas em conjunto com os
professores e outros membros da comunidade educativa - elaboração
de um catálogo de actividades - desenho de actividades específicas,
juntamente com os professores, com base no diálogo entre o currículo
escolar e as necessidades dos alunos - realizar atividades educativas
para os alunos - adaptação das obras de urbanização as necessidades
do caminho escolar

2173
5 RESULTADOS DO TRABALhO EM ANDAMENTO

Para o desenvolvimento da metodologia descrita se delimitaram duas


áreas que concentram as nove escolas que atendem a população em ida-
de escolar da favela e, nas quais, cerca de 85% das crianças da amostra
realizada caminham de sua casa até a escola sozinhas ou em grupo.
O número de estudantes nessas duas áreas é de 3.400 e 5.100, respec-
tivamente, totalizando 8.500 alunos. O projeto se concentra no Ensino
Fundamental I (6-9 anos) e II (10-13 anos). Dentro do Projeto Piloto foi
escolhido um centro escolar de cada área, e foram realizadas as atividades
da primeira fase (apresentação do projeto, pesquisa sobre hábitos de mo-
bilidade e percepção do caminho, catálogo de atividades para desenvolver
durante o período escolar). A pesquisa incluiu 1600 alunos e professores
e teve um índice de retorno de 73,45%.
Em uma segunda fase, tentamos envolver a comunidade da favela,
começando com o lideranzas e continuando com todos os vizinhos.
A terceira fase, que já começou, desenvolve um catálogo de actividades
para realizar no período escolar, com o objetivo de, em primeiro lugar,
tentar reforçar os conceitos de segurança viária e, em segundo lugar,
trabalhar com a melhora e respeito do espaço público.
No segundo semestre de 2012, foi programada uma jornada lúdica
para o conjunto da comunidade, com atividades específicas em matéria
de segurança viária, bem como a participação de grupos comunitários que
trabalham no o esporte e da cultura, a fim de promover tanto o caminho
escolar como a participação dos pais e alunos.
No ano 2012, a SEHAB apresentou o projeto de Caminho Escolar no
12ª Congresso Internacional das Cidades Educadoras que foi realizado em
Changwon (Coreia do Sul) , envolvendo 447 cidades de 32 países diferentes,
com o objetivo de levantar questões sobre o meio ambiente e a educação.
A avaliação destas experiências pode ser complexa porque que entram
em jogo muitos fatores que, embora o resultado é difícil de ser medido,
seria interessante reconhecer e nomear: desde a experiência de uma me-

2174
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

nina que consegue ir pela primeira vez à escola de bicicleta, a criação de


relacionamentos e redes sociais através das pessoas que contribuem para o
projecto; o aumento da segurança das ruas que traz a presença da criança;
até questões mais de atualidade, como a redução de emissões de CO2.
Tudo isto não significa que os projetos de caminhos escolares não sejam
avaliáveis. O que é importante é saber que existe uma grande variedade
de temas que entram em jogo , que nem todos são resolvidos em dados
quantitativos e que, por conseguinte, a avaliação deve incluir mecanismos
para avaliar os aspectos subjetivos que, quando se trata de promover as
mudanças culturais, têm-se revelado os mais interessantes7.
A comunidade escolar mostrou uma expectativa positivas em relação
aos objectivos do projecto, depois de ter participado em várias etapas do
trabalho. Mesmo assim o projeto ainda não desenvolveu credibilidade
suficiente em relação às possibilidades de sucesso dele em uma realida-
de diferente de onde ele se originou, mas acreditamos em orientar aos
moradores da favela em relação aos seus direitos e deveres para um dia
a dia mais agradável e segura.
Para garantir que os benefícios alcançados com a implementação do
projeto sejam viáveis é preciso que a comunidade participe e se reconheça
como igualmente responsável por ela, situação que exige um esforço signi-
ficativo por parte de todos os agentes envolvidos neste processo. A fim de
contas, o significado da palavra acessibilidade definido na legislação, “fa-
cilidade, em distância, tempo e custo, de se alcançar, com autonomia, aos
destinos desejados na cidade”8 se extende a todos aspectos do cotidiano.

2175
REFERÊNCIAS

Blog Camino Escolar: “Proyecto piloto de Camino Escolar en la favela Paraisó-


polis” (Sao Paulo, Brasil)”. Disponível em: <http://www.caminoescolar.blogspot.
com.br/2012/05/proyecto-piloto-camino-escolar-en-la.html>. Acessado em:
24/07/2013
BRASIL. Lei nº 12.587, de 3 de Janeiro de 2012. Institui as diretrizes da Política
Nacional de Mobilidade Urbana.
CICLO DE DEBATES MOBILIDADE URBANA, São Paulo, 2004. MACENA, Chico. “A
importancia da politica de mobilidade para a cidade: plano municipal de
circulaçao viária e transportes”. Disponível em: < http://www.slideshare.net/
chicomacena/importncia-do-plano-municipal-de-mobilidade-e-transportes-2004>.
Acessado em: 28/07/2913
FACEBOOK “Caminho Escolar do Paraisópolis”. Disponivel em: <https://www.
facebook.com/pages/Caminho-Escolar-do-Parais%C3%B3polis-S%C3%A3o-Pau-
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HILLMAN, Mayer; ADAMS, John; Whitelegg, John. One false Move… A study of
children´s indepent mobility. London: PSI Publications, 1990
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Bairros de São Paulo. São Paulo: Secretaria Municipal de Habitação, Prefeitura de
São Paulo; Banco Mundial e Aliança de Cidades, 2012 (suporte DVD). Disponível
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QUINTÁNS, Irene. “Projeto Piloto Caminho Escolar da Favela Paraisópolis
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ROMÁN RIVAS, Marta; SALÍS CANOSA, Isabel. Camino escolar. Pasos hacia la
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TERNATIVA AO NEOLIBERALISMO”. Fórum Nacional de Reforma Urbana, 2013,
São Paulo. HARVEY, David “Direito à cidade”. Disponível em: < http://www.deriva.
com.br/?p=46>. Acessado em 22/07/2013
SEMINARIO: PROYECTOS EDUCATIVOS DE MOVILIDAD INFANTIL EN LAS CIU-

2176
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

DADES, IV Encuentro de Camino Escolar, 2011, San Sebastián. FREIRE, Heike. “


¡A La Calle! El Derecho Infantil Al Aire Libre”. GONZÁLEZ BARAGAÑA, Manu
(coord.). El derecho de la infancia a la ciudad. San Sebastián: Observatorio de
la Sostenibilidad - Fundación Cristina Enea, 2012. 86p.

NOTAS

1 Arquiteta Urbanista. Técnica em HABI, Secretaria de Habitação, Prefeitura Municipal de São Paulo..
Email: parahabi@gmail.com
2 Relatório elaborado por HABI-SMSP para a participação no Congresso Internacional das Cidades Educadoras,
São Paulo, 2008.
3 Relatório da Obra de Urbanização do Paraisópolis, HABI-SMSP (2011)
4 David Harvey, “Direito à cidade”. Fórum Nacional de Reforma Urbana, 2013, São Paulo.
5ROMÁN RIVAS, Marta; SALÍS CANOSA, Isabel. Camino escolar. Pasos hacia la autonomía infantil. Madrid:
Ministério de Fomento, 2010. P.23
6 Metologia desenvolvida pela equipe de HABI – SMSP (2011)
7 ROMÁN RIVAS, Marta; SALÍS CANOSA, Isabel, op.Cit P 159
8 ANTE-PROJETO DE LEI, Institui as diretrizes da política de mobilidade
urbana e dá outras providências , 6 /07/ 2006, Art. 4º, Inciso x

2177
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Mobilidade urbana e cidade


sustentáveis: uma proposta
para o transporte solidário

Frederico Garcia Guimarães1


Cintia D´Vale Souto Maior Filizzola2

1 INTRODUÇÃO

A Constituição da República em seu art. 182 define que a política de


desenvolvimento urbano tem como objetivo ordenar o pleno desenvolvi-
mento das funções sociais da cidade a fim de garantir o bem-estar de seus
habitantes. Para tanto, o instrumento que irá servir para tal finalidade é
definido no seu parágrafo primeiro como sendo o Plano Diretor.
O veículo legal, então, para implementação das funções sociais da
cidade é um planejamento. Este, por sua vez, deve ser considerado como
uma das funções da própria Administração Pública que tem como objetivo
traçar o norte de políticas públicas com a finalidade de garantir direitos
fundamentais e sociais.
Como instrumento norteador dessa política de desenvolvimento urbano
foi editada a Lei 10.257/2001 que trouxe a devida regulamentação desse
dispositivo constitucional ao elencar, no âmbito de uma regularização
geral, os princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos que devem conter
a regularização de uma cidade e todas as suas funções.
O art. 2º dessa norma geral traz nos seus incisos I, e II, duas das di-
retrizes fundantes dessa política de desenvolvimento urbano. O primeiro
definindo que as funções sociais da cidade devem ter como uma de suas
diretrizes a garantia da cidade sustentável e o segundo no que impõe que
o planejamento da cidade deve ter como base a participação social para
garantir o direito à cidade.

2179
Dentre as funções da cidade, que integram a referida política de
desenvolvimento urbano, encontra-se a circulação e o transporte que
hoje se denomina mobilidade urbana em razão de uma maior abran-
gência conceitual.
Diante disso, para regular especificamente, essa função social da cidade
foi editada recentemente a Lei 12.587/12, sendo o marco regulatório que
define as regras gerais acerca da mobilidade urbana. A sua gêneses se
encontra também na política de desenvolvimento urbano na medida em
que esta norma regulamenta a circulação que, por sua vez, é uma das
funções sociais da cidade sustentável conforme previsão contida no art.
2º, inciso I, do Estatuto da Cidade.
A Lei Federal de Mobilidade Urbana traz também seus princípios, dire-
trizes, objetivos e instrumentos para implementação de políticas públicas
relacionadas à circulação e ao transporte. Destaca-se para o presente tra-
balho três aspectos normativos da lei em foco: (i) uma gestão democrática
e de controle social para o planejamento e avalição dessa política, além de
impor o Plano de Mobilidade Urbana para os municípios e consolidação da
gestão democrática – art. 5º, V; art. 21 e seguintes e art 7º, V, respectiva-
mente ; (ii) a integração da política nacional de mobilidade urbana com as
demais funções da cidade - art. 6º, I; (iii) o desenvolvimento sustentável
das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais, a mitigação
dos custos ambientais, a promoção do desenvolvimento sustentável com
mitigação dos danos ambientais e socioeconômicos dos deslocamento de
pessoas e carga - art. 5º, II; art. 6º, IV; art. 7º, V, nessa ordem.
As duas primeiras premissas norteiam a primeira parte do presente
trabalho no sentido de afirmar o planejamento participativo e integrado
como essência para a implementação das políticas de desenvolvimento
urbano e, especificamente, as política de mobilidade urbana. A terceira
será tratada a seguir, partindo de uma análise que a construção do pla-
nejamento participativo e integrado das políticas públicas que definem
uma cidade deve passar pelo seu caráter de sustentabilidade, com foco
numa visão desse conceito a partir da própria cidade como um todo e da

2180
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

mobilidade urbana particularmente. Com isso, a mobilidade urbana nas


suas duas variáveis – circulação e transporte – tem um caráter de “coisa
pública” – res publica.
A partir disso, apresenta-se a ideia propositiva do artigo considerando
que o sentido valorativo dado à mobilidade urbana – como coisa pública –
passa pela participação da própria sociedade, como copartícipe, na garantia
de uma cidade sustentável, a partir de um planejamento democrático,
que tem como fundamento tanto o art. 3º, inciso I, da Constituição da
República de 1988, que apresenta como objetivo da República Federativa
Brasileira a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem
como a imposição do art. 225, também do texto constitucional, o dever da
coletividade em garantir um meio ambiente ecologicamente equilibrado
para as presentes e futuras gerações.
Com isso, apresenta-se o início de uma pesquisa a ser desenvolvida
no âmbito do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas do Programa de Pós-
-graduação da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, que parte de experiências estrangeiras e nacio-
nais, para a implementação da “carona solidária”.
Assim, o presente trabalho objetiva trazer à discussão do uso de de-
terminado procedimento solidário que pode se tornar um dos meios para
atender às finalidades constitucionais e das normas legais que versam
sobre a cidade e sobre a mobilidade urbana, com a finalidade precípua
de se tornar ela também um instrumento planejado de concretização de
direitos fundamentais.

2 O PLANEJAMENTO PARTICIPATIVO – RES PUBLICA

O planejamento é um conceito criado no âmbito das ciências da


Administração. Seu idealizador fora Jules Fayol, sendo que a tal função
seguiu-se à organização, execução, coordenação e controle.
Historicamente, o instituto do planejamento foi a princípio recepcionado
pela Administração Pública apenas no que concerne a sua característica

2181
puramente estratégica. No decorrer do tempo, em diversas experiências
governamentais brasileiras, este instituto foi utilizado, ora para induzir
a industrialização, ora para um novo formato de Administração Pública,
ora como instrumento puramente tecnocrata e aliado a um certo elitismo
e de dominação, ora como estático e estratégico apenas, e, por fim, como
um modelo de governança participativa3.
Este último episódio da conceituação de planejamento foi trazido pela
Constituição da República de 1988, que trouxe novas dimensões para o
Estado de Direito, firmando-o como necessário para a implementação de
direitos e dando-lhe ainda o caráter de Democrático, o que impulsionou
uma nova relação de poder, de organização social e de estrutura do direito.
Assim, o planejamento não foi esquecido neste novo contexto consti-
tucional, não se resumindo apenas como um meio para se programar as
ações governamentais no que concerne aos recursos públicos a serem
gastos. Muito além disso, a Constituição da República de 1988 apresentou
o planejamento como instrumento procedimental para a concretização
de políticas públicas que garantem, por sua vez, a concretização de
direitos fundamentais.
A título de exemplo pode-se extrair alguns dispositivos constitucionais
que fazem menção explicita ou implícita ao planejamento, se destacando
ao final o art. 182 e seu parágrafo 1º, sobre os quais nos deteremos com
maior atenção no presente trabalho: educação (Artigo 208; 212, §3o; 214;
30, VI);cultura (215, §3o; 216, §6o); habitação e saneamento básico (23,
Ix); reforma agrária (184, §4o); transporte (Artigo 208, VII); saúde (Artigo
227, §1o); assistência ao deficiente (Artigo 227, §1o, II); idoso (230, §1o) e
fundo de erradicação a pobreza (Artigo 79 do Ato das Disposições Cons-
titucionais Transitórias – ADCT), art. 182, parágrafo 1º, (Plano Diretor).
O planejamento, então, dá um salto com relação a seu reconheci-
mento como um instrumento/fim para garantir direitos fundamentais
através de implementações de políticas públicas, definindo princípios,
diretrizes, objetivos.

O planejamento, assim, não é mais um processo dependente da


mera vontade dos governantes. É uma previsão constitucional

2182
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

e uma provisão legal. Tornou-se imposição jurídica, mediante a


obrigação de elaborar planos, que são instrumentos consubstan-
ciadores do respectivo processo.4

Mas o planejamento passou ainda a se fundamentar, não apenas nessa


concepção constitucional que o delineou como necessário na construção
de políticas públicas, mas também, por previsão constitucional, como
sendo ele construído a partir da participação social.
Esta lógica se assenta, a princípio, no que está contido no parágrafo
único do art. 1º, da Constituição de República de 1988. Mas também,
numa nova perspectiva do ato de governança - processo de governar na
concepção anglo-americana – que deve se basear na participação social
que visam uma relação Estado-Sociedade não vertical.
Maria Pires citando a Jacques Chevallier5, representante da Doutrina
Francesa, esclarece sobre este aspecto participativo da governança:

A doutrina jurídica francesa sobre a matéria, especialmente na


lição de Jacques Chevallier, apropria o conceito de governança
a partir do substrato da ampliação do círculo decisório para fins
das intervenções públicas, em contraposição aos modelos tra-
dicionais de gestão calcados na unilateralidade. Nesse sentido,
a ela se refere como critério de análise da inflexão das formas
tradicionais de exercício da autoridade, associando-se a uma
abordagem pluralista e interativa da ação coletiva, à gestão de-
mocrática, à valorização de soluções consensuais, à regulação
negociada, tudo com ênfase em participação e resultados.

lém disso, a construção normativa e a atuação estatal que se funda-


menta num planejamento e governança participativos visam dar maior
legitimidade e eficiência à própria atuação da Administração Pública,
garantido que todos os estratos sociais que participam de forma livre e
igualitária, possam ser contemplados.

Assim, a raison d’être do Estado não reside fundamentalmente


na proteção de direitos privados iguais, mas na garantia de uma
formação abrangente da vontade e da opinião, processo no
quais cidadãos livres e iguais chegam a um entendimento em
que objetivos e normas se baseiam no igual interesse de todos.6

2183
E mais, essa coletividade igualitária na construção do planejamento
poderá conceituar os princípios, diretrizes e objetivos para uma de-
terminada ação da Administração, dando a definição deles diante das
próprias necessidades, sejam históricas, culturais, econômicas, sociais,
ambientais, territoriais: “Em última análise, o conteúdo normativo surge
da própria estrutura das ações comunicativas. Essas descrições do pro-
cesso democrático preparam o terreno para diferentes conceitualizações
de Estado e sociedade.”7.
E neste ponto, a Teoria Discursiva se fundamente no procedimentalismo.
Dessa concepção não fogem as políticas públicas urbanas, sendo que
estas são aquelas que se relacionam intrinsicamente com a cidade dando-
-se as devida função social (art. 182, Constituição da República de 1988).
O planejamento urbano, que, noutras palavras, se assenta em todas
as funções sociais da cidade - habitação/moradia, circulação/transporte/
mobilidade urbana, lazer e trabalho -, deve se fundamentar num planeja-
mento que seja de fato participativo, para garantir a cidade democrática –
art. 2º, II, da Lei 10.257/01. Especificamente, no que se refere à mobilidade
urbana esses mesmo procedimentalismo é garantido - art. 5º, V; art. 21 e
seguintes e art 7º, V, da Lei de Mobilidade Urbana.
Portanto, as políticas de desenvolvimento urbano devem ser construí-
das para o bem estar de seus habitantes e somente esses poderão melhor
definir os instrumentos que irão concretizar os princípios, diretrizes e
objetivos dessa política, pois são eles que têm a condição necessária para
apresentarem e representarem o seu entendimento acerca do que seja
o seu bem estar, é nisto que o Estatuto da Cidade se forma, sendo essa
norma condutora de todas as outras que versem sobre o meio urbano:

O Estatuto da Cidade tem com fundamento para o modelo de


planejamento que reforça a necessidade de planejar o desenvol-
vimento das cidades de forma participativa e inclusiva. O estatuto
é, portanto, uma lei que estabelece diretrizes e instrumentos para
a formulação de uma política pública inclusiva na medida em
que estabelece que o planejamento urbano tem como objetivo
garantir as funções sociais da propriedade e as funções sociais
da cidade. O estatuto detalha o sentido que o texto constitucional
teria considerado como política de desenvolvimento urbano e os

2184
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

instrumentos, como os planos diretores, deve ser realizado. Não


apenas isso, mas também diz para os cidadãos brasileiros e para
os operadores do Direito (sejam eles administradores públicos
ou não) que o desenvolvimento do espaço urbano não pode ser
visto (e nem produzido) apenas a partir de um viés econômico.
Esse desenvolvimento tem de ser pensado de forma a incluir ca-
tegorias, grupos sociais ou parcelas da sociedade que não teriam
seus direitos fundamentais mínimos garantidos se o Estado não
interviesse sobre o direito de uso do solo urbano.8

A partir disso, as definições dos instrumentos que compõem a cidade


partem da própria conceituação social do que seja e de como aplicá-la,
tornando esse instrumento e essa política pública como sendo da própria
sociedade. A participação social traz consigo a concepção e que objeto
definido por essa mesma sociedade é pertencente à própria coletividade.
Este é o raciocínio que se deve ter com relação à mobilidade urbana,
pois a construção participativa de conceitos de instrumentos normativos
que visam assegurar a aplicação de princípios, diretrizes e objetivos da
Política Nacional de Mobilidade Urbana, torna em si o próprio direito
constitucional de ir de vir como coisa pública: “cuida-se a mobilidade
como política de controle e como coisa do povo, atributo de res pública,
razão pela qual os meios e os resultados da prestação submetem-se ao
interesse público”.9
A participação social que constrói essas conceituações, como foi
definido por Habermas, torna o bem público, mas também impõe a essa
mesma sociedade uma coparticipação na efetivação das políticas públicas.
Com isso, a sociedade não é mera expectadora do direito que lhe é
imposto, mas é, acima de tudo, aquela que o constrói, que o define, e com
isso traz para si a responsabilidade de dar eficiência, eficácia e efetividade.
Para Castro10, “o que existe no planejamento urbano é uma extraordinária
aliança entre a cidade e o cidadão. Isto se traduz num ônus ao próprio
cidadão de ajudar a construir e preservar a “coisa” comum: a res publica”.
Há ainda que se ponderar que a mobilidade urbana é uma das funções
da cidade. Diante disso, as políticas públicas a ela relacionadas devem
ser construídas a partir de integração umbilical com as demais políticas

2185
públicas das demais funções da cidade. Essa ideia se torna imperiosa
na medida em que todas essas funções se integram no mundo da vida,
na realidade que se apresenta no meio urbano. A construção de plane-
jamento integrado das funções da cidade é uma condição que se torna
imperiosa para garantir tanto a eficiência estatal quanto para que as ações
governamentais, chanceladas pela sociedade através de sua participação
social, possam considerar a cidade como um ambiente igualitário e per-
tencente a todos, já que cada um irá exercer toda a vivência urbana na
sua plenitude. É nesse sentido que se apresento o art. 6º, inciso I, da Lei
de Mobilidade Urbana.
Para tanto, o planejamento integrado será o veículo e o cerne da par-
ticipação social, que visa, no caso da cidade, a conceituação de políticas
públicas traçadas pela própria sociedade, que por sua vez, será a destina-
tária da norma, construindo em conjunto com o Estado, por meio de um
pacto, ou mesmo uma aliança, uma cidade mais sustentável e humana,
tudo, por fim, tendo como norte a concretização de direitos fundamentais
que se apresentam na vida urbana.
A construção de políticas públicas sobre a mobilidade urbana, como
uma das funções sociais da cidade sustentável, adjetivo que também se
aplica a ela, não foge dessa condição de participação social, cabendo aos
agentes do direito estarem aliados para garantir a cidade neste viés de
sustentabilidade, inclusive, de forma solidária.

3 A CIDADE E A MOBILIDADE URBANA SUSTENTáVEIS

A sustentabilidade é um tema afeto as todos os atos, seja do Poder


Público, seja da sociedade. Este dever se fundamenta na imposição de-
terminada pelo art. 225, da Constituição da República de 1988, ao garantir
o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para as gerações
presentes e futuras.
No ambiente urbano ao se ordenar o pleno desenvolvimento das
funções da cidade deve garantir a cidade sustentável (art. 2º, I, da Lei
10.257/01).

2186
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O desenvolvimento sustentável é definido pela Comissão Mundial sobre


Meio Ambiente e Desenvolvimento como “aquele que atende às neces-
sidades do presente sem comprometer a potencialidade de as gerações
futuras atenderem as suas próprias necessidades” , podendo ainda ser
11

empregado com o significado de melhoria da qualidade de vida humana


dentro dos limites da capacidade de suporte dos ecossistemas.
Welter e Pires citando a Carla Canepa12 esclarecem sobre o desenvol-
vimento sustentável:

Entende-se também que o desenvolvimento sustentável visa


promover a harmonia entre os seres humanos e natureza e,
para alcançá-lo, são necessários vários requisitos, como um
sistema político que assegure efetiva participação dos cidadãos
no processo decisório, além de um sistema econômico capaz de
gerar excedentes, também um sistema social que possa resolver
tensões causadas por um sistema não equilibrado, um sistema
de produção que respeite a obrigação de preservar a base ecoló-
gica do desenvolvimento, mais um sistema tecnológico que vise
novas soluções, um sistema internacional que estimule padrões
sustentáveis de comércio e financiamento e, ainda, um sistema
administrativo flexível capaz de corrigir-se.

O conceito jurídico de desenvolvimento sustentável é bastante com-


plexo e ainda não definido na Doutrina, embora seja quase pacífico que
envolve as seguintes dimensões, como assegura Oliveira e Bessa citando
Maria Garcia: ambiental, social, econômica e temporal dos processos
urbanos13. Portanto, para que a cidade possa ser caracterizada como
sustentável todas as políticas públicas que se são construídas a partir do
planejamento devem ser construídas sobre esses cinco parâmetros.
Em uma sociedade cuja população vive em grande parte nos centros
urbanos14, “a cidade sustentável significa a concretização da justiça distri-
butiva, o equilíbrio das relações de todos os atores sociais e ainda implica
o desenvolvimento econômico compatível com a preservação ambiental
e qualidade de vida dos seus habitantes”15, como bem assegura Welter e
Pires, por meio das palavras de Rosângela Cavallazzi.
O direito à cidade sustentável é condição que se impõe nas políticas
públicas que promovam as funções sociais dessa mesma cidade, como

2187
previsto no próprio sentido do Estatuto da Cidade e como se apresenta
a garantia constitucional de um meio ambiente equilibrado para todos.
Como uma das funções social da cidade, a mobilidade urbana somente
atenderá a essa função quando as políticas públicas a eles pertinentes
assegurarem a sustentabilidade, bem como o direito de ir e vir, constitu-
cionalmente garantido.
Neste contexto, o planejamento de mobilidade urbana, além de parti-
cipativo e integrado, deve ser também de natureza sustentável.
A Lei Federal no. 12.587/2012 deu continuidade à fixação das dire-
trizes para o desenvolvimento urbano, instituindo a Política Nacional de
Mobilidade Urbana, que também adotou o princípio da sustentabilidade.
Assim, apresenta como princípio dessa política o desenvolvimento sus-
tentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientas (art 5º,
II); como diretriz mitigação dos custos ambientais, sociais e econômicos
dos deslocamentos de pessoas a cargas na cidade (art. 6º, IV) e; como
objetivo promover o desenvolvimento sustentável com a mitigação dos
custos ambientais e socioeconômicos dos deslocamentos de pessoas e
cargas nas cidades (art. 7º, IV).
Ainda que pareça repetitivo o quanto a norma geral de política de mo-
bilidade faça menção em três níveis – princípios, diretrizes e objetivos – há
que se considerar que o fenômeno da circulação/transporte tem impacto
em toda a vida do cidadão urbano, atingindo tanto o meio ambiente, bem
como a sua vida pessoal ou mesmo física/mental.
O Ministério das Cidades aponta que são dois os impactos dos meios de
transporte no meio ambiente: “o direto, em razão da poluição atmosférica
e sonora e na utilização de fontes de energia não renováveis; e o indireto,
na incidência de acidentes de trânsito e na saturação da circulação urbana
(congestionamento)”16.
Em um primeiro aspecto o planejamento da mobilidade urbana no que
toca à sustentabilidade baseia-se primeiramente na questão ambiental.
É nesse sentido que se assenta a maioria dos autores que já visualizam
apenas o efeito direto reconhecido pelo órgão governamental.

2188
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Mas essa ótica não pode ser compreendida apenas sobre a prevenção
mediante meios de transporte que seja apenas ecologicamente correto.
O efeito indireto também é necessário para que se possa ter de fato uma
mobilidade urbana sustentável.
Geraldo Spagno cita Renato Boreato17 que define a mobilidade ur-
bana sustentável:

[...] como o resultado de um conjunto de políticas de transporte


e circulação que visam propiciar o aceso amplo e democrático
ao espaço urbano, através da priorização dos meios não moto-
rizados e coletivos de transportes, de forma efetiva, socialmente
inclusiva e ecologicamente sustentável, baseado nos pessoas e
não nos veículos.

E completa:

O especialista acredita que a mobilidade urbana não pode ser


entendida somente como o número de viagens que uma pessoa
consegue realizar durante determinado período, mas a capa-
cidade de fazer viagens necessárias para a realização de seus
direitos básicos de cidadão, com o menor gasto de energia pos-
sível e menor impacto no ambiente, tornando-a ecologicamente
sustentável.

Assim, o que se observa é que a mobilidade urbana atinge nem só um


contexto ambiental, mas também o aspecto social que impõe uma prote-
ção maior no que concerne a sustentabilidade, sendo que esse se torna
salutar para garantir aquele.
A criação do plano de mobilidade urbana sustentável somente poderá
ser de fato assegurada a partir de uma aliança entre o Estado e a sociedade,
que se consubstancia na participação dessa quando do devido planeja-
mento ao definir a atuação estatal para garantir os princípios, diretrizes
e objetivos da Política Nacional de Mobilidade Urbana e quando houver
uma integração de todas as políticas públicas ou que sejam diretamente
ligadas às funções da cidade, ou mesmo as demais que se implementam
no âmbito urbano como educação, saúde, tecnologia, assistência social
e o meio ambiente em si.

2189
Liane Nunes Born18 destaca que a ausência de uma política nacional
integrada, principalmente entre a função da social da cidade de mobilidade
urbana e as demais traz inúmeras externalidades negativas:

Exclusão Social: 55 milhões de brasileiros não têm acesso ao


serviço de transporte publico [...] Acidentes: 30 mil mortes, 350
mil feridos, 120 deficientes físicos a cada ano. Comprometimento
de 30% dos recursos do SUS, a um custo de 5,3% bilhões de reais
ao ano, sendo que 52% dos leitos hospitalares são ocupados por
pacientes com trauma cuja causa principal são os acidentes de
transito. .Congestionamento: o automóvel ocupa 90% do espa-
ço viário, para transportar apenas 20% das pessoas. Poluição
Ambiental: Os congestionamentos das duas maiores cidades
brasileiras. Rio de Janeiro e São Paulo, representam 506 milhões
de horas gastas por ano pelos usuários do transporte coletivo e
258 mil litros de combustível por ano, gastos além do que seria
necessário e geradores de uma poluição atmosférica de 123 mil
toneladas de monóxido de carbono e 11 mil toneladas de hi-
drocarbonetos. Perda da competitividade das cidades: aumento
dos custos de investimentos, redução de produtividade e perda
de eficiência.

Ocorre que, o Estado brasileiro adotou dentro de um programa de inclu-


são uma política pública que se baseia no automóvel individual. Todavia,
esta não é uma solução sustentável. Conforme estudo apontado pelo Banco
Mundial19, na medida em que, “apesar de a expansão das cidades exigir
um fornecimento adequado de infraestrutura, é física e economicamente
impossível escapar dos congestionamentos com a construção de novas
vias nas cidades mais adensadas”.
Num outro sentido, a nova Lei de Mobilidade Urbana prevê instrumen-
tos para melhorar a mobilidade urbana nas grandes cidades, priorizando os
modos de transporte não motorizados e os serviços de transporte púbico
coletivo sobre o individual motorizado – art. 6º, incisos II e III.
Com isso, o que se apresenta são dois aspectos: o primeiro é quanto um
considerável número de automóveis individuais e de outro lado a Política
Nacional de Mobilidade Urbana que tem como fundamento o transporte
público sobre o privado.
Tendo em vista uma realidade da vida e uma proposta que tem um
fundamento na sustentabilidade, em ambos os seus aspectos, como

2190
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

destacado, a aliança entre um e outro, entre Sociedade e Estado se faz


necessária justamente para garantir a própria cidade sustentável.
Partindo-se disso, como a mobilidade urbana tem um fundamento no
planejamento participativo, que se caracteriza pela presença da Socie-
dade nas decisões e definições das políticas públicas governamentais,
devendo ainda ser construído de forma integrada com todas as demais
políticas públicas afetas à cidade e deve ter uma natureza sustentável,
uma solução conjunta entre Sociedade e Estado, com base nessas três
premissas é necessária.

4 UMA PROPOSTA DE TRANSPORTE SOLIDáRIO

Uma cidade sustentável e democrática só é possível por meio da


participação social, que em conjunto com o Estado construirá políticas
públicas eficientes.
É com a finalidade de se atingir o equilíbrio da sociedade, que se muda
o foco das políticas públicas. Desse modo, a sustentabilidade da gestão
das cidades conta com a participação social, além de ser um mecanismo
eficaz de democracia.
Diante dessa perspectiva, é preciso abandonar antigas crenças, pro-
pondo novas situações. É preciso mudança. Soluções que promovam a
sustentabilidade do meio urbano e que só são possíveis se o Estado em
parceria com a sociedade valorizar a participação social e contar com
a iniciativa individual de cada pessoa, abrindo portas para a cidadania.
Para tanto, necessário que se invoque, primeiramente, uma sociedade
mais justa e solidária (art. 3º, inciso I, da Constituição da República de
1988), que é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, para que essa expressão não seja vazia ou mesmo simbólica, como
bem destaca Marcelo Neves20.
Uma solução que se baseia nestes seis aspectos lançados acima –
planejamento integrado, participação social, coparticipação social, coisa
pública, cidade sustentável e solidariedade social - é a Carona Solidária.

2191
Trata-se de um instrumento de gestão de demanda de tráfego utilizada
para contornar o trânsito intenso, que se dá por meio do uso compartilhado
do carro, reduzindo, assim, o número de carros na rua.
Com a carona solidária, há uma maior taxa de ocupação de veí-
culos particulares, o que permite reduzir o tráfego, contribuindo para
melhorar a mobilidade urbana e consequentemente torna as cidades
mais sustentáveis.
Sendo assim, com o intuito de aliviar os problemas crônicos do conges-
tionamento viário, o que por si também afeta a sustentabilidade de uma
cidade, a carona solidária ou carpooling, como é denominada em inglês,
é altamente incentivada nos Estados Unidos, Canadá e vários países da
União Europeia21.
A Lei de Mobilidade Urbana tem como finalidade garantir o direito
constitucional de ir e vir de forma livre, acessível e pública, tendo como
objetivo melhorar a acessibilidade e mobilidade de pessoas.
O que se pode auferir é que a Lei 12.587/12 tem em seu conteúdo uma
ideia de que o transporte é de fato uma res publica – uma “coisa pública” – o
que deve ser revelado através de um espírito solidário entre os habitantes
de uma mesma cidade que almejam o seu bem-estar no ambiente urbano.
Não obstante, a Política Nacional de Mobilidade Urbana não prevê a
Carona Solidária, que é uma solução simples e econômica.
Com a finalidade de garantir o direito fundamental de ir e vir através
da solidariedade da população, é que se pretende implementar uma
política pública que incentive essa solidariedade nos meios de trans-
portes particulares.
Este tipo de instrumento de política pública só é possível com a par-
ticipação da sociedade, tanto na construção desse instrumento através
de sua participação no planejamento de mobilidade urbana elaborado
de forma integrada, como na sua coparticipação para se ter uma cidade
sustentável, que passa a entender que o problema da mobilidade urbana
só pode ser resolvido com a sua coparticipação.
Como modelo pode-se citar aquele adotado na França. Lá há uma

2192
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

espécie de sanção premial para aquele que pratica ações responsáveis e


solidárias que trazem benefícios para o meio ambiente. É o caso de quem
partilha seu carro entre particulares, deixando-o disponível para outras
pessoas. Por meio do programa de recompensas da Cité Green, quem faz
uso do carro de forma solidária pode trocar pontos por descontos e prê-
mios22. Esta prática incentiva o uso de meios de transportes alternativos,
premiando aquele que dele faz uso, e que consequentemente reduz o
número de carros na rua.
O que se pretende então propor é a Carona Solidária, o que implica
em uma mudança de paradigma.
Isto tem quatro aspectos: primeiro, porque a Carona Solidária passa a
ser considerada como instrumento de política pública; segundo, porque
se trata de um modelo de parceria entre o Estado e o particular; terceiro,
como há um envolvimento do particular no processo de desenvolvimen-
to do planejamento, aumenta a sua responsabilidade e confere maior
legitimidade às ações; quarto, passa a ser vista como uma prestação de
serviço público pelo Estado.
Cumpre salientar que ao adotar este tipo de transporte os aspectos
legais devem abordados.
Na província de British Columbia, no Canadá, todos os veículos devem
ser segurados com uma cobertura de seguro mínimo e a cobertura do se-
guro dos participantes da carona solidária é uma questão fundamental. Há
instituições neste país que estimulam a carona solidária, e ainda prestam
esclarecimentos com relação às questões legais. É o caso da Universidade
de Kwantlen em Vancouver, que fornece aos participantes do programa
de transporte solidário uma carta contendo uma introdução útil para a
questão do seguro do veículo automotor. Senão vejamos:

SE VOCÊ POSSUI UM VEÍCULO, certifique-se de proteger


a si e seus passageiros em carona solidária com proteção de
seguro suficiente.[...] é recomendável que você contate o
seu corretor de seguros antes de começar a oferecer a
carona solidária e compre a apólice correta e a proteção
de seguro que você e seus passageiros precisam.23 (grifo
do autor) (tradução nossa)

2193
No Brasil, a Carona Solidária é classificada como um tipo de transpor-
te desinteressado, o que importa dizer que aquele que o faz não extrai
vantagem econômica, isto porque dividir os custos com o combustível
não é lucro.
Dessa forma, ao dividir os custos com o combustível, este tipo de
transporte não perde a condição de transporte desinteressado. Diante
deste fato, o que se pode dizer é que, visto que a ordem econômica fica
diluída face à dimensão social, este tipo de transporte é colocado em uma
categoria diferenciada de transporte coletivo.
Todavia, o incentivo à carona solidária esbarra nos entraves da pró-
pria legislação brasileira, na medida em que entende que o condutor que
conduz gratuitamente o passageiro responde objetiva e solidariamente.
Esta é a orientação que prevalece na jurisprudência, consagrada na Sú-
mula no. 145 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que assim estabelece:
“no transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só
será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando
incorrer em dolo ou culpa grave”24.
Nesse contexto, o STJ, encarregado de uniformizar a aplicação das leis,
tratou a responsabilidade civil do transportador como objetiva e solidária,
no sentido de que aquele que cria o risco deve responder por suas conse-
quências. Segundo as lições de Venosa, “sob esse prisma, quem, com sua
atividade, cria um risco deve suportar o prejuízo que sua conduta acarreta,
ainda porque essa atividade de risco lhe proporciona um benefício”25.
Com esse posicionamento, o condutor prefere não optar pelo transporte
solidário, na medida em que corre o risco de responder civilmente pelos
danos causados ao transportado se eventualmente ocorrer um acidente,
dificultando a concretização deste instituto.
A Carona Solidária tem um cunho social, o que permite flexibilizar a
questão da responsabilidade civil do condutor, propondo, portanto, uma
mudança na legislação pátria.
Em nome de um bem maior, que é a solidariedade entre os habitantes
de uma mesma cidade que buscam o seu bem estar no ambiente urba-

2194
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

no, de modo a tornar a Carona Solidária um instrumento planejado de


concretização de direitos fundamentais, o Estado Brasileiro deve rever a
sua legislação.
Este é o grande desafio proposto para uma mobilidade urbana sus-
tentável.

5 CONCLUSÃO

A cidade é um organismo complexo e pulsante, ativo. A cidade é um


espaço de todos e todos por ela circulam. A mobilidade urbana é uma fun-
ção social da cidade que hoje impõe inúmeras manifestações, discussões
e, principalmente, agora, conceituações.
Com isso, a Lei 12.587/12 trouxe um novo marco legal acerca de tal
função social da cidade e a construção teórica e prática sobre o que essa
nova norma de conduta impõe se torna imperioso para que possamos de
fato ter uma cidade mais humana, mais democrática, mais sustentável.
O presente trabalho pretende trazer à discussão, visto que ele não se
encerra em si mesmo, por que a vida histórica não é assim, acerca dessa
função social da cidade, da definição de instrumentos pelos habitantes
da cidade que visam de fato atingir os princípios, diretrizes e objetivos da
lei que os estabelece; que essa definição de fato seja construída através
de um planejamento que seja reconhecidamente uma função da Admi-
nistração Pública e que seja de fato composto de forma democrática; que
esse planejamento se integre com todas as demais políticas públicas que
estejam direta ou indiretamente ligadas as funções da cidade; que este
planejamento não perca o norte de uma cidade também sustentável, seja
ambienta e também socioeconômica; que a mobilidade urbana e seus
instrumento sejam conceituados como coisa pública; que a sociedade
seja copartícipe na definição e implementação de política pública de
mobilidade urbana; que a sociedade seja de fato construída sobre bases
solidárias. Com isso, o que se propõe é uma apresentação e discussão
acerca do instituto ora denominado Carona Solidária, ainda que isso

2195
imponha uma revisão jurídico-jurisprudencial-conceitual, tudo para que
possa concretizar direitos fundamentais que são intrínsecos ao bem estar
dos habitantes de um contorno urbano.

REFERÊNCIAS

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http://www.citegreen.fr/> Acesso em 29 Ago. 2013.

NOTAS

1 Mestrando em Direito Público do Programa de Pós-graduação em Direito da Escola Mineira de Direito da


Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/Minas; Núcleo Jurídico de Políticas Públicas – NUJUP
– da PUC/Minas; pesquisador/extensionista; fredguimaraes31@hotmail.com.
2 Bacharel em Direito pela Faculdade Milton Campos; Núcleo Jurídico de Políticas Públicas – NUJUP – da PUC/
Minas; pesquisadora/extensionista; cintiadvale@hotmail.com.
3 Um breve histórico do instituto do Planejamento poderá ser observado do artigo publicado por Maria Coli
Simões Pires in: Esgotamentos do modelo de desenvolvimento excludente no Brasil e ressemantização das
atividades de planejamento e articulação governamentais à luz do paradigma democrático. In: MODESTO,
Paulo (org.), Nova organização administrativa brasileira. 2ª ed. revisada e ampliada. Belo Horizonte: Ed.
Fórum. 2010, p. 175/197.
4 SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Melhoramento, 2008, p.90.
5 CHEVALLIER, Jacques apud PIRES, Maria Coeli Simões. Esgotamento do modelo de desenvolvimento ex-
cludente no Brasil e ressemantização das atividades de planejamento e articulação governamentais à luz do
paradigma democrático. In MODESTO, Paulo (org.). Nova organização administrativa brasileira. 2ª ed.
Belo Horizonte: Ed. Fórum. 2010, p. 183
6 HABERMAS, Jürgen. Três modelos de normativos de democracia. Cadernos do Legislativo. ALMG, BH 3 (3),
105-122, jan/jun. 1995. Disponível em <http://consulta.almg.gov.br/opencms/export/sites/default/consulte/
publicacoes_assembleia/periodicas/cadernos/arquivos/pdfs/03/habermas.pdf > acesso em maio de 2013.
7 HABERMAS, idem.
8 ARAÚJO, Marinella Machado. Políticas Públicas de Inclusão: a função estratégia da política de desenvolvi-
mento urbano e a efetividade de direitos sociais. In: BERNARDES, Wilba Lúcia Maia; CHAVES, Glenda Rose
Gonçalves, MOUREIRA, Digo Luna (orgs). Direito Público: Perspectivas e Atualidades. Belo Horizonte:
Del Rey, 2010, p. 69-82.
9 GUIMARÃES, Geraldo Spagno. Comentários à Lei de Mobilidade Urbana – Lei no. 12.587/12: essen-
cialidade, sustentabilidade, princípios e condicionantes do direito à mobilidade. 1 ed. Belo Horizonte:
Fórum, 2012, p. 133.
10 CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. 7ª ed. Revisada e atualizada. Belo Horizonte: Editora
Del Rey, 2010, p. 434.
11 COMISSÃO MUNDIAL SOBRE O MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO - Relatório Brundtland: Nosso
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12 CANEPA, Carla. apud WELTER, Izabel Preis; PIRES, Mixilini Chemin. O direito à cidade sustentável. Unoesc
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13 GARCIA, Maria (org.) apud OLIVEIRA, Cleide de; BESSA, Fabiane Bueno Lopes Netto. Estatuto da Cidade
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de vinte mil habitantes. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/
fabiane_bueno_lopes_netto_bessa.pdf> Acesso em: 17 Ago. 2013
14 Dados do último censo de estatística dão conta que as áreas urbanas concentram mais de 84% da popu-
lação brasileira. Disponível em <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.
shtm> acesso em: 18 Ago. 2013.
15 CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli apud WELTER, Izabel Preis; PIRES, Mixilini Chemin. ob. Cit., 2010.
16 BRASIL. Ministério das Cidades. Caderno de Referência para Plano de Mobilidade Urbana. 2007, p.41.
Disponível em < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sum

2198
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

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17 BOREATO, Renato apud GUIMARÃES, Geraldo Spagno, ob. Cit, 2012, p. 142.
18 BORN, Liane Nunes. A política de mobilidade urbana e os planos diretores. In: SANTOS Jr, Orlando Alves;
MONTANDON, Daniel Todtamann (org.) Os planos diretores municipais pós-estatuto da cidade: balanço
crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Ed. Letra Capital: Observatório das Metrópoles: IPPUR/UFRJ, 2011, p. 157.
19 BANCO MUNDIAL. Cidades em movimento: estratégia de transporte urbano do Banco Mundial.
Tradução Eduardo de Farias Lima São Paulo: Sumatra Editorial, 2003, p. 27. Disponível em http://www-wds.
worldbank.org/external/default/WDSContentServer/WDSP/IB/2005/10/20/000160016_20051020180730/
Rendered/PDF/24910a10portuguese1cities1on1the1move.pdf. Acesso em: 27 de Ago. 2013
20 Para ler mais sobre o tema, destaca-se a obra desse autor: NEVES, Marcelo. A constitucionalização
Simbólica, São Paulo: Martins Fontes, 2007.
21 Diversos países oferecem um sistema gratuito de carona solidária, como se observa nos sites disponíveis
em: <www.carpoolworld.com>; <www.carpooling.com>; <www.carpooling.co.uk>. Acesso em 27 de Ago. 2013
22 O programa de recompensas da Cité Green está disponível em <http://www.citegreen.fr/> Acesso em 29
Ago. 2013
23 Um guia prático sobre a carona solidária no Canadá pode ser encontrado em: GIBSON, Shannon. Casual
Carpooling: a background guide. Victoria: Environmental Law Centre Clinic, University of Victoria, 2008. Dis-
ponível em http://www.elc.uvic.ca/documents/Casual-Carpooling-Memo.pdf. Acesso em 27 de Ago. 2013.
24 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?se
rvico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_101_200 > acesso em 15/08/2013
25 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Responsabilidade civil, 2 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 36.

2199
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Regime jurídico do transporte


cicloviário: contribuição ao estudo
da mobilidade urbana sustentável

Luciano de Faria Brasil*

1 INTRODUÇÃO

A Lei n. 12.587, de 3 de janeiro de 2012, dispôs sobre a Política Nacio-


nal de Transporte Urbano, trazendo as normas estruturantes do Sistema
Nacional de Mobilidade Urbana, a começar pelas respectivas diretrizes.
Com a edição desse diploma legal, consolidou-se um início de moldura ins-
titucional necessária para a promoção da mobilidade urbana sustentável.
Peça-chave na estruturação do ordenamento do território, a mobilidade
urbana há muito demandava uma releitura à luz do texto constitucional.
Com efeito, o caráter da Constituição da República, “enquanto deten-
tora de uma força normativa, dirigente, programática e compromissária”2,
impõe a produção de uma malha legal infraconstitucional ajustada à lin-
guagem e aos objetivos do texto constitucional. Nesse passo, como dito,
a Lei n. 12.587 apresenta um princípio de percurso para essa filtragem ou
releitura das normas de mobilidade urbana à luz do aparato conceitual
do Estado Democrático de Direito, na medida em que reconhece certas
situações e determina uma escala de prioridades.
Nessa linha, entre as prioridades instituídas no texto da nova lei
está a precedência dos modos de transportes não motorizados sobre os
motorizados, conforme disposto no art. 6º, inciso II, da Lei n. 12.587. É
nesse contexto que se localiza a pertinência da análise dos modos de
transporte não motorizado, em especial do transporte cicloviário. Por isso,
o objetivo do presente texto é o de identificar os componentes básicos

2201
de um possível regime jurídico do transporte cicloviário, levantando os
dados normativos que viabilizem a eventual defesa coletiva da mobilidade
urbana sustentável.

2 ORDENAMENTO TERRITORIAL
E MOBILIDADE URBANA SUSTENTáVEL

A indagação pela mobilidade urbana deve iniciar pela definição do


contexto normativo-institucional no qual essa temática está situada. No
caso, o dado fundamental a ser ressaltado é a inserção do tema da mo-
bilidade urbana na conjuntura do ordenamento territorial. Com efeito, a
mobilidade urbana constitui um recorte importante do ordenamento do
território, em sentido amplo. Este, por sua vez, “pode ser perspectivado
como a aplicação ao solo de todas as políticas públicas”, possuindo “ca-
racterísticas de transversalidade (ou apetência coordenadora) e antecipação
(ou carácter prospectivo)”.3
O tema da mobilidade urbana ganha especial relevo no seio das políti-
cas públicas destinadas à ordenação territorial porque a função de circula-
ção é reconhecidamente indispensável à estruturação da malha estrutural
da cidade (e também, a qualquer projeto de desenvolvimento urbano). No
campo da elaboração conceitual, essa função de mobilidade ou circulação
urbana pode ser definida da seguinte maneira: “(...) a mobilidade é função
pública destinada a garantir a acessibilidade para todos e esse objetivo
implica na obediência a normas e prioridades que atendam às diferentes
demandas de deslocamentos”.4
Na esteira da acepção doutrinária, e atendendo a uma tendência con-
temporânea de estabelecer definições e conceitos no âmbito do próprio
texto legal, a Lei n. 12.587, em seu art. 4º, inciso II, esclarece o conceito de
mobilidade urbana, nos seguintes termos: “mobilidade urbana: condição
em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço ur-
bano”. Resta afirmada, pois, a caracterização da mobilidade urbana como
conceito legal e como segmento importante do ordenamento territorial.

2202
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

Diga-se também que a contraparte jurídica dessa necessidade estrutural


urbana é segmento importante do direito urbanístico brasileiro, consti-
tuindo a chamada “ordenação jurídica do sistema viário”.5
Diante dos conteúdos potencialmente associados à mobilidade
urbana (a partir de sua definição legal), resulta clara a conexão com a
temática da sustentabilidade. Por sua própria natureza, a ordenação da
mobilidade constitui parte essencial do planejamento urbano. Por conse-
guinte, um planejamento urbano que tenha em conta o desenvolvimento
sustentável há de projetar a infraestrutura viária da cidade de forma am-
bientalmente responsável, atuando com o objetivo de preservar o meio
ambiente “para as presentes e futuras gerações” (conforme a expressão
do “Relatório Brundtland”, acolhida no art. 225, “caput”, da Constituição
da República). É também óbvio que uma das medidas essenciais para
essa proteção ambiental é justamente o estímulo estatal aos modos de
transporte não poluentes.
À problemática ambiental somam-se outras considerações relativas à
cidadania, à participação democrática e aos direitos humanos, para com-
por um conceito amplo de sustentabilidade aplicada à mobilidade urbana.
Nessa senda de raciocínio, a mobilidade urbana sustentável passa a ser um
extenso conceito de integração dentro do complexo normativo e institucio-
nal do ordenamento do território. Em linha semelhante de argumentação
sobre o conceito de mobilidade urbana sustentável, ressalta Boareto: 6

[...] a mobilidade urbana sustentável pode ser definida como o


resultado de um conjunto de políticas de transporte e circulação
que visam proporcionar o acesso amplo e democrático ao espaço
urbano, através da priorização dos modos não motorizados e
coletivos de transportes, de forma efetiva, socialmente inclusiva
e ecologicamente sustentável, baseado nas pessoas e não nos
veículos.

É nesse quadro de referência que a pesquisa sobre as especificidades


do transporte não poluente – notadamente sobre o modal cicloviário – toma
uma dimensão decisiva no aspecto jurídico. A luta contemporânea por uma
mobilidade urbana sustentável centrada no transporte não motorizado (e,

2203
em consequência, em uma mobilidade urbana em que prevaleçam carac-
terísticas não poluentes) e na consequente melhoria da qualidade de vida
impõe a correta identificação do regime jurídico do transporte cicloviário,
fornecendo elementos para a defesa coletiva desse regime jurídico, sempre
na busca de cidades sustentáveis.

3 REGIME JURÍDICO DO TRANSPORTE CICLOVIáRIO

Estabelecer os contornos essenciais do regime jurídico de uma deter-


mina situação ou disciplina constitui tarefa que envolve a interpretação
sistemática dos elementos normativos incidentes sobre a matéria. É
indubitavelmente um ato de construção hermenêutica, no qual se parte
dos indicativos existentes nos textos normativos para, com base nesses
elementos mínimos, proceder à organização do regime jurídico pela via da
hermenêutica. Esses elementos ou indicações devem ser compreendidos
como um todo dotado de unidade racional; nesse sentido, reproduz-se a
respeitável lição doutrinária: 7

O sistema de uma disciplina jurídica, seu regime, portanto,


constitui-se do conjunto de princípios que lhe dão especificidade
em relação ao regime de outras disciplinas. Por conseguinte,
todos os institutos que abarca – à moda do sistema solar dentro
do planetário – articulam-se, gravitam, equilibram-se, em função
da racionalidade própria deste sistema específico, segundo as
peculiaridades que delineiam o regime [...], dando-lhe tipicidade
em relação a outros.

Cumpre, pois, pesquisar os indicativos e elementos normativos refe-


rentes ao transporte cicloviário espalhados ao longo da Lei n. 12.587, de
3 de janeiro de 2012.

3.1. Classificação da atividade

A Lei n. 12.587, em seu art. 4º, inciso I, estabelece que transporte urbano
é o “conjunto dos modos e serviços de transporte público e privado utili-

2204
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

zados para o deslocamento de pessoas e cargas nas cidades integrantes


da Política Nacional de Mobilidade Urbana”. Esses modos de transporte
podem ser motorizados ou não motorizados, a teor do art. 3º, § 1º, inci-
sos I e II, do referido diploma legal. Por sua vez, segundo consta do art.
4º, inciso V, da Lei n. 12.587, os modos de transporte não motorizado são
aqueles que se utilizam do esforço humano ou tração animal. É o caso da
bicicleta como meio de transporte.

3.2. Infraestrutura para o transporte cicloviário

Conforme disposto no art. 3º, § 3º, inciso I, da Lei n. 12.587, as ciclovias


(as pistas de rodagem para bicicletas, devendo-se compreender o termo
em sua acepção mais ampla) constituem infraestrutura de mobilidade ur-
bana. A mesma condição de infraestrutura necessária para o transporte
cicloviário é assegurada para os respectivos estacionamentos (art. 3º, § 3º,
inciso II) e para a sinalização pertinente (art. 3º, § 3º, inciso V). Observe-
-se que a expressão “estacionamentos” tem caráter amplo, abrangendo
paraciclos, bicicletários e outras instalações físicas apropriadas para o
parqueamento de bicicletas. Da mesma forma, a “sinalização viária e de
trânsito” mencionada na lei compreende toda a gama de orientações vi-
suais específicas para o usuário do transporte cicloviário e para os demais
modais de transporte que venham a interagir, na prática, com o trânsito
de bicicletas.

3.3. Prioridade para o transporte cicloviário

Segundo previsão expressa do art. 6º, II, da Lei n. 12.587, entre as


diretrizes orientadoras da Política Nacional de Mobilidade Urbana está a
“prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os moto-
rizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte
individual motorizado”. Trata-se de dispositivo importantíssimo, na medida
em que se conecta ao caráter dirigente, programático e compromissário

2205
da Constituição da República, que é a matriz sistêmica de todo o direito
público brasileiro. Ao estabelecer a prioridade do transporte cicloviário e
de outros modais de transporte sobre o transporte individual motorizado
(base econômica da atividade da indústria automotiva nacional e objeto
de incentivos governamentais nos últimos cinquenta anos), a legislação
dá um passo ousado e condiciona a atividade administrativa e legislativa
sobre a matéria, mostrando também o viés prospectivo (programático) e
transversal (multidisciplinar, plurissetorial) que, como visto, é próprio do
ordenamento territorial.
Com efeito, no ato de dissertar sobre diretrizes no âmbito do texto
constitucional (mais especificamente no âmbito do art. 21, xx, da Carta de
1988), Odete Medauar proferiu lição que se mostra inteiramente aplicável
ao presente caso, esclarecendo precisamente o conteúdo semântico da
expressão em tela. Sobre o tema, diz a citada autora:8

Evidente que essas diretrizes aplicam-se a todo o País, incidindo


de modo mais intenso no âmbito municipal, que é onde ocorrem
precipuamente as atuações urbanísticas. A respeito da aplica-
bilidade das diretrizes, pode-se lembrar que o termo diretrizes
denota o sentido de: linhas reguladoras, instruções ou indica-
ções; linhas básicas; balizas; esquemas gerais. Transposto para
a fonte legislativa significa preceitos indicadores, preceitos que
fixam esquemas gerais, linhas básicas em determinadas matérias;
preceitos norteadores da efetivação de uma política. Tais pres-
crições norteadoras dirigem-se, em tese, a outros legisladores,
a administradores ou ao intérprete em geral.

A prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os


motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o trans-
porte individual motorizado, por se constituir em diretriz legal orientadora
da Política Nacional de Mobilidade Urbana, é efetivamente um preceito
norteador da efetivação dessa política, impondo limites condicionantes à
atividade legislativa e administrativa subsequente. Destarte, as diretrizes
previstas no art. 6º da Lei n. 12.587 são o equivalente, no plano da legislação
ordinária, dos chamados “princípios constitucionais impositivos”, referidos
por Canotilho em sua obra, que traçam “sobretudo para o legislador, linhas
rectrizes de sua atividade política e legislativa”.9 Como tal, as referidas
diretrizes são evidentemente passíveis de controle judicial.

2206
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

3.4. Objeto do planejamento urbano

Atenção especial foi dada pela Lei n. 12.587 à atividade de planejamen-


to, que, como se sabe, constitui elemento fundamental na organização
do ordenamento territorial.10 O art. 21 do mencionado diploma enumerou
as premissas da atividade de planejamento relacionada à mobilidade
urbana, fornecendo as balizas normativas para a elaboração dos planos
setoriais. Entre as premissas, é importante destacar aquelas previstas
nos incisos I e II, na medida em que se relacionam com a promoção do
transporte cicloviário. São elas: “a identificação clara e transparente dos
objetivos de curto, médio e longo prazo” e “a identificação dos meios
financeiros e institucionais que assegurem sua implantação e execução”,
impondo a fixação das metas e dos meios, dados essenciais a qualquer
atividade de planejamento.
Em continuidade, o art. 22 da Lei n. 12.587 enuncia as atribuições mí-
nimas dos órgãos incumbidos do planejamento e da gestão da mobilidade
urbana11, definindo o plexo essencial de competências administrativas e
de tarefas a cargo do Poder Público. Para os fins de estímulo e proteção
ao modal cicloviário, destaca-se a atividade elencada no inciso I do artigo
em comento, segundo o qual compete aos órgãos (ou pessoas jurídico-
-administrativas) relacionados à gestão e ao planejamento da mobilidade
urbana a tarefa de: “planejar e coordenar os diferentes modos e serviços,
observados os princípios e diretrizes desta Lei”. Essa coordenação dos
“diferentes modos e serviços” está na essência da própria ideia de plane-
jamento urbano, que visa à articulação das políticas públicas setoriais.
Os instrumentos de gestão do sistema de transporte e da mobilidade
urbana estão previstos no art. 23 da Lei n. 12.587. Alguns dos instrumentos
enumerados têm relação direta com a prioridade conferida ao transporte
não motorizado, sendo ferramentas de grande alcance e repercussão para
a reconfiguração da dinâmica de mobilidade urbana hoje existente. De-
vem ser destacados o inciso I (restrição e controle de acesso e circulação,
permanente ou temporário, de veículos motorizados em locais e horários

2207
predeterminados), o inciso II (estipulação de padrões de emissão de po-
luentes para locais e horários determinados, podendo condicionar o acesso
e a circulação aos espaços urbanos sob controle), o inciso III (aplicação
de tributos sobre modos e serviços de transporte urbano pela utilização
da infraestrutura urbana, visando a desestimular o uso de determinados
modos e serviços de mobilidade, vinculando-se a receita à aplicação ex-
clusiva em infraestrutura urbana destinada ao transporte público coletivo
e ao transporte não motorizado e no financiamento do subsídio público
da tarifa de transporte público, na forma da lei), o inciso IV (dedicação de
espaço exclusivo nas vias públicas para os serviços de transporte público
coletivo e modos de transporte não motorizados) e o inciso V (estabele-
cimento da política de estacionamentos de uso público e privado, com
e sem pagamento pela sua utilização, como parte integrante da Política
Nacional de Mobilidade Urbana). O potencial de intervenção entregue aos
gestores públicos com esses instrumentos legais é enorme, demandan-
do um olhar atualizado – e ousado – quanto às possibilidades de como
organizar o trânsito na cidade contemporânea, buscando incremento da
cidadania e da qualidade de vida.
Os elementos relacionados ao planejamento da mobilidade urbana
deverão restar consolidados no Plano de Mobilidade Urbana, previsto no
art. 24 da Lei n. 12.587. Conforme a dicção do “caput” do referido artigo,
o Plano de Mobilidade Urbana é “o instrumento de efetivação da Política
Nacional de Mobilidade Urbana e deverá contemplar os princípios, os
objetivos e as diretrizes desta Lei”. Além disso, o Plano deverá conter a
normatização de várias situações previstas nos incisos do art. 24. Entre
eles, guardam conexão com a proteção ao transporte cicloviário os se-
guintes casos: o regramento da circulação viária (inciso II); a exposição
das infraestruturas do sistema de mobilidade urbana (inciso III), devendo
haver a previsão completa do sistema cicloviário; o regramento sobre a
integração dos modos de transporte público e destes com os privados e os
não motorizados (inciso V); e a localização das áreas de estacionamentos
públicos e privados, gratuitos ou onerosos (inciso VIII), o que inclui bici-
cletários e paraciclos, entre outros equipamentos públicos.

2208
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

O Plano de Mobilidade Urbana é obrigatório em todos os municípios


acima de 20.000 (vinte mil) habitantes, e também em todos os demais
obrigados, na forma da lei, à elaboração do Plano Diretor, na forma do
parágrafo 1º do art. 24.12 Da mesma forma, por imperativo lógico, o Plano
de Mobilidade Urbana deverá ser integrado e compatível com os respecti-
vos Planos Diretores (ou neles inserido, se for opção de técnica legislativa
preferida pelo legislador). Atende-se assim ao preceito do art. 40, § 1º, da
Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade), quando dispõe
que o Plano Diretor “é parte integrante do processo de planejamento
municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o
orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas”.
A Lei n. 12.587 incluiu também uma menção especial ao transporte
não motorizado no âmbito da realidade específica das pequenas cidades.
O parágrafo segundo do citado art. 24 estabelece que nos municípios
“sem sistema de transporte público coletivo ou individual, o Plano de
Mobilidade Urbana deverá ter o foco no transporte não motorizado e no
planejamento da infraestrutura urbana destinada aos deslocamentos a pé
e por bicicleta, de acordo com a legislação vigente”. É um reconhecimento
louvável da realidade brasileira.
Ainda sobre o planejamento urbano: o Plano Diretor, compreendido
como peça central da política urbana, deve guardar sempre uma relação
harmônica e integrada com as peças essenciais do planejamento finan-
ceiro e com as demais instâncias de atuação estatal planejada, o que
inclui necessariamente o Plano de Mobilidade Urbana. Quanto a isso, já
tivemos a oportunidade de afirmar que o “papel central desempenhado
pelo planejamento na construção da nova ordem jurídico-urbanística
não é novidade; o que se apresenta como radicalmente nova é a ênfase
atribuída à planificação estatal na legislação, que distingue competências
e âmbitos materiais de planejamento”.13 O planejamento da mobilidade
urbana vem confirmar essa tendência de incentivo à planificação, estabe-
lecendo premissas, atribuições e instrumentos no contexto de um plano, o
que demonstra o pleno alinhamento com as exigências contemporâneas
de tratamento das questões urbanas.

2209
4 TUTELA COLETIVA DA MOBILIDADE URBANA SUSTENTáVEL

Assim identificado o conjunto de linhas essenciais do regime jurídico


do transporte cicloviário, é importante perquirir sobre a possibilidade de
tutela coletiva dos direitos difusos associados a esse complexo normati-
vo. Essa possibilidade existe e está radicada entre as normas do direito
processual coletivo brasileiro, com efeito, a tutela coletiva do transporte
cicloviário ocorre dentro do quadro de referência da tutela coletiva da
mobilidade urbana sustentável. Essa, por sua vez, está alojada no âmbito
da tutela coletiva da ordem urbanística, submetendo-se à disciplina pro-
cessual da Lei n. 7.347/85 e dos variados diplomas legais posteriores com
repercussão na matéria processual coletiva.
Essa situação jurídico-processual relaciona-se com a recente evolução
do direito urbanístico brasileiro. Com efeito, a Constituição Federal de 1988
(com um capítulo específico para a política urbana) e a Lei n.º 10.257, de
10 de julho de 2001 (o Estatuto da Cidade) representaram avanços que
alteraram radicalmente a abordagem jurídica da questão urbana no Brasil,
ensejando a criação de novos institutos de direito material e atualizando
o direito urbanístico a partir de novos paradigmas de compreensão.
Por sua vez, a modificação do art. 1º da Lei n.º 7.347/85, a partir da
edição do Estatuto da Cidade, introduzindo a locução ordem urbanística
na relação dos bens jurídicos tutelados por meio da ação civil pública,
representou igual revolução no âmbito processual. Ao admitir o enfren-
tamento dessa temática por meio da tutela coletiva, recepcionou-se a
questão urbana no rol dos assuntos aptos a serem tratados em processos
judiciais de massa, característicos da sociedade de risco e da problemática
judicial contemporânea.
A tutela da mobilidade urbana sustentável e a defesa do regime jurídico
do transporte cicloviário como derivações do “direito a cidades sustentá-
veis”14 enquadram-se nesse novo paradigma. Trata-se de compreender o
permanente estímulo estatal à mobilidade urbana sustentável como um
direito difuso da coletividade (ou seja, como um direito transindividual,

2210
Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

de natureza indivisível, tendo como titulares pessoas indeterminadas e


ligadas por circunstâncias de fato, conforme a definição do art. 81, I, da
Lei n. 8.078/90), subdividindo-se em diversos direitos igualmente difu-
sos ao cumprimento das múltiplas prescrições contidas na Lei n. 12.587.
Nessa qualidade, esses direitos são passíveis de defesa por meio da ação
civil pública, entendida como o instrumento adequado para a tutela dessa
categoria de direitos.15
Como todo conjunto de novos bens jurídicos, a sua afirmação na prá-
tica cotidiana depende da luta pelos direitos assegurados na legislação
positiva. Os elementos de direito material estão dados, assim como os
meios processuais para exercitá-los. Agora, cabe aos operadores jurídicos
torná-los realidade, fazendo com que o transporte cicloviário se torne
uma efetiva prioridade para os gestores públicos. É esse o desafio lançado
pela Lei n. 12.587.

REFERÊNCIAS

BOARETO, Renato. A mobilidade urbana sustentável. In: Revista dos Transportes


Públicos – ANTP, n. 100. Ano 25. 2003, 3º trimestre, p. 45-56.
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mecanismos de estímulo ao crescimento econômico no âmbito do Estatuto da Cidade.
In: Revista da Faculdade de Direito da FMP, n.º 7 (2012). Porto Alegre: FMP, 2007-,
p. 167-184.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. revisada. Coimbra:
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[ISSN: 1138-9788], acesso em 7 de julho de 2013.
MEDAUAR, Odete. Diretrizes gerais. In: Estatuto da Cidade: lei 10.257, de 10.07.2001,

2211
comentários / coordenadores Odete Medauar, Fernando Dias Menezes de Almeida.
2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 18ª edição,
revista e atualizada até a Emenda Constitucional 45, de 8.12.2004. São Paulo:
Malheiros, 2005.
OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. Coimbra:
Almedina, 2012.
STRECK, Lenio Luiz. Os vinte anos da Constituição do Brasil e as possibilidades de
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de 2008. Cuiabá: Entrelinhas, 2008, p. 81-103.
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva
de direitos. 4ª edição revista e atualizada de acordo com a Lei 12.016, de 7 de agosto
de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

NOTAS

*
Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio Grande do Sul, classificado na Promotoria de Justiça de Ha-
bitação e Defesa da Ordem Urbanística de Porto Alegre. Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais na UFRGS.
Mestrado em Filosofia na PUCRS. E-mail: lfbrasil@mp.rs.gov.br.
2 STRECK, Lenio Luiz. Os vinte anos da Constituição do Brasil e as possibilidades de realização dos direitos funda-
mentais diante dos obstáculos do positivismo jurídico. In: Revista Jurídica do Ministério Público do Mato Grosso,
Ano 3, n. 4, janeiro/junho de 2008. Cuiabá: Entrelinhas, 2008, p. 91.
3 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. Coimbra: Almedina, 2012 [reimpressão],
p. 8, grifos no original.
4 BOARETO, Renato. A mobilidade urbana sustentável. In: Revista dos Transportes Públicos – ANTP, n. 100.
Ano 25. 2003, 3º trimestre, p. 49.
5 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 2ª edição, revista e atualizada, São Paulo: Malheiros,
1997, p. 161 e seguintes.
6 BOARETO, Renato, passim.
7 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 18ª edição, revista e atualizada até a
Emenda Constitucional 45, de 8.12.2004. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 81.
8 MEDAUAR, Odete. Diretrizes gerais. In: Estatuto da Cidade: lei 10.257, de 10.07.2001, comentários / coor-
denadores Odete Medauar, Fernando Dias Menezes de Almeida. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 20.
9 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. revisada. Coimbra: Almedina, 1993, p. 173.
10 Sobre o tema, consultar: MASSIRIS CABEZA, A. Ordenación del territorio en América Latina. Scripta Nova.
Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Universidad de Barcelona, vol. VI, núm. 125, 1 de octubre
de 2002. http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-125.htm [ISSN: 1138-9788], acesso em 7 de julho de 2013.
11 A expressão “órgãos” há de ser compreendida em sua acepção mais ampla; nesse sentido, a doutrina: “Quando
o caput do artigo 22 faz menção de órgãos, o vocábulo não aparece para vedar outra forma de gestão, mas,
certamente admite a referência a entidades da Administração Indireta, pois a descentralização é adotada em
alguns entes federados na gestão do sistema de mobilidade urbana mediante a instituição de pessoa jurídica
autônoma, cuja criação é autorizada por lei.” (GUIMARÃES, Geraldo Spagno. Comentários à Lei de Mobilidade
Urbana – Lei nº 12.587/12: essencialidade, sustentabilidade, princípios e condicionantes do direito à mobilidade.
Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 211).
12 Diz a Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade): Art. 41. O plano diretor é obrigatório para
cidades: I – com mais de vinte mil habitantes; II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações ur-

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Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico

banas; III – onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4o do art. 182 da
Constituição Federal; IV – integrantes de áreas de especial interesse turístico; V – inseridas na área de influência
de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional. VI -
incluídas no cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande
impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos. (Incluído pela Lei nº 12.608,
de 2012) § 1o No caso da realização de empreendimentos ou atividades enquadrados no inciso V do caput,
os recursos técnicos e financeiros para a elaboração do plano diretor estarão inseridos entre as medidas de
compensação adotadas. § 2o No caso de cidades com mais de quinhentos mil habitantes, deverá ser elaborado
um plano de transporte urbano integrado, compatível com o plano diretor ou nele inserido.
13 BRASIL, Luciano de Faria. Desenvolvimento urbano sustentável: ensaio sobre os mecanismos de estímulo ao
crescimento econômico no âmbito do Estatuto da Cidade. In: Revista da Faculdade de Direito da FMP, n.º 7 (2012).
Porto Alegre: FMP, 2007-, p. 178.
14 Previsto expressamente no art. 2º, I, do Estatuto da Cidade como a primeira de suas diretrizes gerais.
15 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 4ª edição revista
e atualizada de acordo com a Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 53.

2213
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