Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
RESUMO
ASTRATTO
1 – INTRODUÇÃO
Merece destaque o fato de que este ambiente, propício por sua intensa
religiosidade, favoreceu muito o desenvolvimento de elementos místicos, cujos valores e
saberes metafísicos foram elevados ao extremo, seja por meio de sublimes pensadores-
filósofos, ou ainda elementos religiosos firmados em práticas filosóficas gregas como dos
estóicos, pitagóricos, platônicos, entre outros. De modo geral influenciadas por filosofias,
até mesmo aquelas avessas ao próprio cristianismo:
1
Destaque-se que, na ótica “o conhecimento resulta de um trabalho combinado entre o elemento
sensível (sentidos, fantasia) e o inteligível (razão inferior) que, por sua vez, é iluminado pela razão
superior, possuidora do conhecimento das ‘razões eternas’. Em última análise, tudo depende da
4
iluminação divina. ‘Não se trata de obter um conceito universal das coisas, abstraindo-as de suas
condições de particularidade e mutabilidade, mas de apreciar a correspondência entre objeto, tal como o
conhecem os sentidos e tal como se acha nas razões eternas, ou, se quisermos, de projetar a luz
elevadora do entendimento sobre os dados subministrados pelos sentidos e pela imaginação’”.
(GIORDANI, 1997, p. 59)
5
dos seres criados servir-nos-á de base para encontrar esta ―metodologia de ascese‖, a ser
vivenciada e aplicada a todos aqueles que desejam fazer da Filosofia e Teologia um
caminho de perfeição moral e ética.
Hilário Franco Júnior chama a atenção para o fato de ―se olharmos para o
esqueleto e não apenas à nova face e às novas roupagens do ocidente no século XX, outra
vez encontramos muito da Idade Média‖ (2001, p, 157), e continua afirmando que esta
também se faz presente nos povos americanos, ainda que não tenham passado por um
período medieval (2001, p, 157). Mesmo o preconceito sobre este período da História da
6
Saranyana continua apontando que tal período pode ser alterado de acordo com
os critérios estabelecidos pelo Iluminismo em relação à filosofia grega e moderna
(SARANYANA, 2015, p. 26). McGrade reconhece que aquilo que denominamos
―Filosofia Medieval‖ teve seu início ―no final do Império Romano, a partir de um
surpreendente ajuste entre fé cristã e pensamento clássico‖ (McGRADE, 2008, p. 27).
Quanto à periodização, faz-se interessante pensar que o conceito de ―longa Idade Média‖,
cunhado pelo historiador Jacques Le Goff, estende este período do século IX ao XVIII
(fim do Império Romano e Revolução Industrial) (cf. BASCHET, 2006, p. 44).
Ressaltamos que é difícil estabelecer um limite a qualquer periodização medieval
exatamente porque as características e ―resquícios, podem ser encontrados em momentos
até mesmo posteriores ao que hoje se convencionou como fim deste período
histórico‖(BASCHET, 2006, p. 45-46). Além de uma periodização, é necessário
validarmos a grande evolução do pensamento medieval às luzes do pensamento cristão,
mesmo não sendo nosso interesse tecer qualquer debate sobre a existência ou não de uma
Filosofia Cristã, e isto baseando-nos em Etienne Gilson quando afirma: ―a filosofia só
aparece na história do cristianismo no momento em que certos cristãos tomam posição
em relação a ela, seja para condená-la, seja para absorvê-la‖ (MONDIN, 1998, p. 01),
encontramos naquilo que nos afirma Mondin a ideia de que
A fim de buscar uma figura que represente bem esta atuação e que seja o
elemento chave para a compreensão das teses boaventurianas no campo filosófico-
teológico, encontramos em Agostinho de Hipona, de modo claro, a forma e os métodos
pelos quais se desenvolveu o pensamento desse período, um momento, no qual, a
preocupação dos pensadores (―convertidos‖) consistia, na verdade, em buscar a
8
Média praticamente. A este respeito, Lima Vaz esclarece muito bem quando afirma que
―a concepção cristã-medieval do homem procede, assim, de duas fontes: a tradição
bíblica, vetero e neo-testamentária, e a tradição filosófica grega‖ (LIMA VAZ, 1991, p.
59). No que se refere à construção do conceito de homem e àquilo que o constitui para o
pensamento filosófico medieval, o mesmo autor aponta que
Torna-se imperativo saber que de modo algum se deve cair em extremos ao nos
debruçarmos sobre os estudos medievais. Supervalorizar esta fase da História da
Humanidade para além da preconicação que já se tem a seu respeito equivaleria
conceder-lhe um ―status‖ maior do que merece; por outro lado, desprezar seu teor
metafísico e filosófico também tornar-se-ia algo deveras injusto para com os grandiosos
progressos alcançados em campos como lógica e metafísica. Qualquer estudante de
História Medieval precisa ter em mente que este fora um período de luzes e sombras e,
portanto, reconhecer os elementos positivos e negativos do mesmo torna-se chave de
leitura para compreensão da Filosofia posterior e até mesmo a contemporaneidade.
Sabe-se que a figura de Agostinho de Hipona deve ser compreendida muito além
de seu ser religioso ou místico, antes deve ser ressaltada pelo fato de que coube a ele o
papel de um amadurecimento do pensamento dos padres gregos sobre a filosofia cristã.
Unindo Fé e Razão desenvolveu o pensamento Cristão a um alto nível teórico, sempre
buscando nas escrituras e nos elementos da Filosofia, aquilo que melhor responde aos
questionamentos primeiros daqueles pensadores convertidos ao cristianismo. O método
filosófico tornara-se presente no bispo de Hipona de forma vivaz quando este o associa a
conceitos cristãos:
Antes de tudo, ressaltemos que, para Agostinho, é a partir da busca interior que o
homem é capaz de ver, nos seres criados, algo da verdade divina. Sua Filosofia aponta
que ―em certo sentido, todos os nossos conhecimentos derivam das nossas sensações. Os
únicos objetos que podemos conceber São aqueles que vimos‖ (GILSON, 1998, p. 147).
Por outro lado, ―não São os objetos sensíveis que me ensinam nem mesmo as verdades
que lhes concernem, menos ainda as outras‖ (GILSON, 1998, p. 147); e, exatamente
porque tanto estes quanto nós somos contingentes, assim há uma necessidade de que se
encontre algo ou algum ser capaz de conter esta eterna e imutável verdade. Sabendo que,
"quando a alma ascende íntima e gradualmente através das partes da alma, onde começa a
aparecer algo que não nos é comum com os animais, é então que começa a razão, e onde
já se reconhece o homem interior" (AGOSTINHO, 1995, p 378).
Tal ―necessidade do verdadeiro para a razão não é mais que o sinal da sua
transcendência sobre ela. A verdade, na razão, está acima da razão‖ (GILSON, 1998, p.
147) e, sabendo que apenas o Criador poderá conter toda a verdade em si, oferecendo, a
quem Ele o desejar, a capacidade de apreensão do conhecimento das coisas, pode-se
compreender que a alma humana seria a única dotada de capacidade para conter parte
desta verdade, exatamente porque é a semelhança de seu criador e contém algo d‘Ele em
si.
suas principais teses, dentre as diversas que impregnaram o ―doutor seráfico‖ é aquela à
qual se afirma que
Deste modo, pode-se dizer que o homem, sendo dotado de uma capacidade
superior em relação aos seres criados e inferior aos seres celestes (anjos por exemplo)
quanto às suas faculdades racionais e espirituais, quando comparado a outros seres vivos,
apresenta-se como um ser hierarquicamente acima destes. A partir daí, conclui-se que
certamente possui maior porção dos elementos divinos em si desde a criação. Seja pelo
modo como foi criado, enquanto ordem de dignidade, ou ainda pela participação no ser
divino que carrega em si, o que torna-se claro para o apreciador do pensamento
agostiniano ao se ler:
Ora depois de terem [os professores] explicado por palavras todas essas
doutrinas, que declaram ensinar, incluindo a da virtude e a da sapiência,
então aqueles que São chamados discípulos, consideram consigo
mesmos se se disseram coisas verdadeiras, e fazem-no contemplando,
na medida das próprias forças, aquela Verdade interior de que falamos.
É então que aprendem (AGOSTINHO, 2002, p. 109).
Se trata das coisas que vemos por meio da mente, isto é, por meio do
intelecto e da razão, falamos realmente de coisas que contemplamos
presentes nessa luz interior da Verdade, de que é iluminado e goza
aquele que se denomina ―homem interior‖. Mas ainda então o nosso
16
O pensador não se associa a Plotino, naquilo onde este concebia a matéria como
o ―lugar do mal‖ e, desse modo, afirma: ―Toda natureza que pode ser corrompida é
também certo bem; na verdade, a corrupção não a poderia prejudicar, a não ser retirando
ou diminuindo o que é bom‖ (COSTA, 2003, p. 92). A ―hierarquia‖ dos seres, oriunda
desta ótica dos graus de corrupção, é confirmada com as palavras do filósofo que, ao
estabelecer uma comparação entre as demais criaturas e o homem, observa-se que:
uma ação de Deus na mente do ser humano; uma força capaz de auxiliá-lo
constantemente em sua noção de mundo, sempre a fim de que se tenha acesso à verdade
revelada. O pensador questiona sobre o lugar onde se encontra esta verdade imutável, um
saber que homem algum poderia conter. ―Nenhum homem, pois, em sentido estrito, é
mestre de outro homem, por muito que possa e consiga transmitir suas ideias‖ (PEREIRA
MELO, 2015, p. 92). Desse modo, se em Platão encontrávamos no Mundo das Idéias um
elemento que servia de base ―para‖ e ―de onde‖ todos os seres e idéias encontram sua
origem, garantia de existência e fim. Agostinho, por sua vez, deposita em Deus a base e
origem de tudo, bem como o ―ser‖ que serve de garantia para a existência de todas as
coisas. Desse modo, naquilo que se refere à liberdade da ação divina nos seres,
especialmente na razão humana, temos que o pensador atribui imensa possibilidade de
influência divina na constituição do saber:
Estimulado por estas leituras a voltar a mim mesmo, entrei, guiado por
ti, no profundo de meu coração, e o pude fazer porque te fizeste minha
ajuda. Entrei, e vi com os olhos da alma, acima desses mesmos olhos,
acima de minha inteligência, a luz imutável; não esta vulgar e visível a
todos os olhos de carne, nem outra do mesmo gênero, embora maior.
Era muito mais clara e enchendo com sua força todo o espaço. Não, não
era esta luz, mas uma luz diferente de todas estas (AGOSTINHO, 2007,
p.63).
Deste modo se chega a Deus a partir do raciocínio filosófico, o que nos leva a
compreender que, na verdade, em Agostinho, temos: ―Neste sentido, a razão é o meio ou
mediador, entre o sentido interior (a alma) e as verdades eternas, imutáveis e universais,
pois sendo os seres humanos contingentes, não podem conhecer por contato direto as
verdades eternas, mas só por mediações, por ―leis‖ ou ―normas‖ racionais, frutos da
iluminação divina‖ (COSTA, 2012, p. 30):
Deus, mas oriundo da mesma fonte desta sabedoria, o que denominamos alma. Sobre isto,
afirma Agostinho:
Pois a perfeita plenitude das almas, a qual torna a vida feliz, consiste em
conhecer piedosa e perfeitamente: — por quem somos guiados até a
Verdade (o Pai); — e qual Verdade gozamos (o Filho); — e por qual
vínculo estamos unidos à Suma Medida (o Espírito Santo) (IV,35). A
felicidade está centrada no conhecimento da Verdade na interioridade
da alma. Conhecimento que, ao mesmo tempo, é posse e gozo de Deus:
"feliz quem possui Deus". A sabedoria que nos dá a felicidade consiste
em fruir, deleitar-se em Deus, a Verdade infinita, nosso Bem Supremo e
Imutável. Nossa perfeição moral e nossa felicidade consistem em
conhecer e amar este Sumo Bem (AGOSTINHO, 1998, p. 115).
Essa busca pela verdade, fruto de uma alma inquieta, é um elemento que
perpassa a alma humana e é o que a leva ao encontro com Deus – acontecimento dado em
seu próprio interior, e que, no entanto, necessita desta luz do Alto. Conclui-se, em partes
que, a alma humana, sendo capaz de voltar-se para si mesma e, a partir da própria
existência, buscar também em seu interior os elementos necessários para que se
compreenda o mundo sensível, é capaz de perfazer um ―Itinerário‖ de ascese a fim de
alcançar o saber supremo, a completa verdade. Desse modo, ―a educação como um
processo mediante o qual o ‗homem exterior‘, material, mutável ia cedendo espaço para o
‗homem interior‘, espiritual, imutável e imortal‖ (PEREIRA MELO, 2002, p.68), torna-se
algo possível e confirmado pela tradição agostiniana. A respeito desta verdade, Agostinho
destaca:
Ela não estava sobre meu espírito como o azeite sobre a água, como o
céu sobre a terra, mas estava acima de mim porque me criou; eu lhe era
inferior por ter sido criado por ela. Quem conhece a verdade conhece a
luz, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor a conhece! Ó
eterna verdade, amor verdadeiro, amada eternidade! Tu és meu Deus.
Por ti suspiro dia e noite (AGOSTINHO, 2007, p.63).
Assim é a alma iluminada, capaz de fazer uma leitura e apreensão do mundo que
a cerca a partir de Deus. Embora a Divindade seja o elemento-chave e contenedor de toda
a Verdade eterna e imutável – bem como responsável pelo conhecimento humano acerca
das coisas – é preciso levar-se em conta a participação humana neste processo. A
introspecção e meditação São os elementos que garantem a possibilidade de o homem
vivenciar, encontrar e conhecer a verdade:
2
Nascido em Bagnoregio (Bagnorea), Itália, em 1217; recebera, ainda na infância, um milagre de cura por
intercesSão de São Francisco de Assis. Cursou artes liberais em Paris, entrou em contato com a Filosofia
Greco-árabe. Estudou Teologia, sendo discípulo de Alexandre de Hales, entre 1243-1248. Formou-se
bacharel em estudos Bíblicos, bacharel sentenciário (autorizado a comentar as Sentenças de Pedro
Lombardo), o que lhe servirá de base para uma obra original. Em 1254 alcança o titulo de magister
(mestre). Mas em 1257 fora eleito superior geral da Ordem dos Frades Menores, interrompendo suas
atividades acadêmicas. Dedicou-se fielmente à Ordem franciscana, sendo posteriormente nomeado Bispo
e Cardeal de Albano. Faleceu em 15 de julho de 1274. (DE BONI, 1999, p. 17-19). Dentre suas principais
obras destacamos: Breviloquium (1257), Itunerarium mentis Deum (1259), Redução das Ciências à
Teologia (1251), dentre outros escritos como sermões e biografias (Legenda Maior e Legenda Menor de
São Francisco de Assis).
3
“A universidade de Paris surge, no século XII, dessa pujança da vida escolar do século XVIII *com as
escolas palatinas, paroquiais e catedrais]. A universidade nascente é essencialmente uma corporação de
arteSãos do saber: o universo dos mestres e aprendizes que se dedicam não simplesmente a transmitir o
saber, mas a produzi-lo.” (FERNANDES, 2007, p. 132)
21
Por sua vez, o Doutor Seráfico afirmava que ―todas as coisas são inteligíveis
pelas ideias exemplares de Deus‖ (GIORDANI, 1997, p. 57) e, exatamente pelo fato de
que ―as coisas expressam as ideias e estas expressam a Deus. Logo, as coisas encerram
em si o mistério divino através de vestígios, imagens e semelhanças‖ (MERINO, 1999,
230)5. Não nos esqueçamos de que outro grande eixo desta sua síntese filosófica é o
iluminatismo, o qual já fora demonstrado acima, na tese agostiniana, e é retomado aqui
(IRIARTE, 1985, p. 199), servindo de base para Boaventura fundamentar e desenvolver
sua teoria do conhecimento das coisas na razão humana. Sobre esta presença da teoria da
iluminação agostiniana em Boaventura, podemos afirmar que,
4
“O exemplarismo agostiniano é, segundo Gilson, ‘a própria essência da metafísica de São Boaventura’.
As idéias existentes na inteligência divina São modelos e arquétipos exemplares em que se encontram em
toda sua pureza e plenitude as essências e perfeições de todos os seres possíveis. (...)
Em sentido ativo São os arquétipos ou modelos em que se encontram representadas todas as coisas
possíveis que a onipotência divina pode criar do nada; em sentido passivo São todas as criaturas do
mundo enquanto, de modo diverso e em graus diferentes, participam das perfeições divinas.” (GIORDANI,
1997, p. 59)
5
Vale destacar: “Nesta participação das idéias exemplares ou razões eternas, há diversos graus: sombras,
quando a representação é distante e confusa; pegadas ou vestígios, quando a representação é distante,
embora um pouco mais distinta, procedente de uma causalidade divina; imagens, quando a
representação é proxima e distinta, como acontece na alma do homem; semelhança, representação que
corresponde propriamente à graça divina, pela qual o homem, animal racional, participa da mesma vida
de Deus e de sua beatitude.” (MERINO e FRESNEDA, 2005, p. 163)
23
O Doutor Seráfico considera todas as coisas (matéria) 6 ―na essência divina, nas
ideias exemplares de Deus, que são como o molde de todas as coisas criadas‖ (IRIARTE,
1985, p. 199). Deste modo, fundamenta a essência de todas as coisas como sendo
oriundas da ―mente divina‖, do mesmo modo que Agostinho o fizera. Exatamente por
isso, o aprendizado a partir das criaturas torna-se algo possível, pois ―o encontro com o
mundo é um auto-encontro com o homem; e a interpretação do mundo é uma auto-
interpretação do homem‖ (MERINO, 1999, p. 232). Sobre isto, afirma o franciscano:
―Coloquemos, pois, na base o primeiro degrau de nossa ascensão a Deus e comecemos
por contemplar todo este mundo sensível como um espelho através do qual podemos
chegar até Deus, o artista soberano‖ (Itinerário, cap. I, 9).
6
“As formas dos seres vivos encontram-se na potencia da matéria. Esta contém germes de formas os
quais São ativados e desenvolvidos por influências externas. A matéria, segundo São Boaventura, é pois
comparável a um campo em que as sementes aguardam a germinação.” (GIORDANI, 1997, p. 59).
7
Ao tratar da “mentalidade simbólica” medieval Jacques Le Goff afirma: “O homem medieval vive
fascinado pelo número. Até aos século XIII, o número simbólico é o que exerce maior fascínio. O Três,
número da Trindade; o Quatro, número dos Evangelistas, dos rios do Paraíso, das virtudes cardeais e dos
pontos cardeais; o Sete, número dos Septenários religiosos (os sete dons de Deus, os sete Sacramentos,
os sete pecados mortais etc.); o Dez, o número do Decálogo, dos Mandamentos de Deus e da Igreja; o
Doze, número dos apóstolos e dos meses do ano etc.” (1987, p. 27-8). É importante saber que Boaventura
também insere-se nesta mentalidade e, em todo seu Itinerário, apresenta os números como elementos
de conteúdo e teor espiritual. No Itinerário da Mente para Deus, associa o número seis à vários elementos
escriturísticos e presentes na história de vida de Francisco de Assis.
24
busca nas Escrituras e nos números – a numerologia era fortemente empregada pelos
místicos e pensadores medievais – o sentido para aquilo que deseja transmitir em seu
―Itinerário da Mente para Deus‖.
Exatamente pelo fato de que o homem, para conhecer a Verdade das coisas, é
levado a enxergar o mundo através da visão sobrenatural, sendo que a mera ―iluminação
natural‖ – realizada a partir dos saberes apreendidos nas e pelas coisas – não é completa
em si, mas antes necessita ―acrescentar a [visão] sobrenatural da fé e da contemplação
mística até chegar ao êxtase‖ (IRIARTE, 1985, p. 199) e com isto encontrar a verdade,
podemos encontrar a partir das palavras de J. Antonio Merino que ―as provas da
existência de Deus devem ser buscadas lá onde ele se manifesta, tanto no mundo sensível,
quanto no mundo da interioridade, que é onde o Doutor seráfico fundamentalmente se
apóia‖ (MERINO, 1999, p. 127). Já o Doutor Seráfico assim afirma:
8
“O mundo inteiro é um livro no qual está impressa, com caracteres legíveis, a Trindade Criadora”
(MERINO, 1999, p. 230).
25
Boaventura faz sua opção pela segunda alternativa, e defende a tese de que o
homem sendo capaz de Deus – ―capax dei‖ – o é apenas pelo fato de constituir-se de um
ser que possui em si a possibilidade natural de conhecê-lo, exatamente por ter em si, a
imagem e semelhança divinas. Isto se dá pelo fato de que ―embora ele seja infinito [Deus]
e nós sejamos finitos (...) nossa estrutura mental nos capacita para isso, já que Deus e a
alma pertencem à mesma ordem do inteligível‖ (MERINO, 1999, p. 128); além do mais,
―a imagem de Deus no homem9 consiste precisamente nessa capacidade ao infinito de seu
conhecimento e de seu amor‖ (MERINO, 1999, p. 130). Boaventura ressalta o momento
da criação, antes da queda por meio do pecado original, ao apontar que, ―na mesmidade
da pessoa, aninha-se um íntimo e renovado anelo que a obriga a transcender-se a si
mesma. São Boaventura diz que é a proximidade de Deus, porque o criador se escondeu
em nosso ser‖ (MERINO, 1999, p. 130). O homem criado também do nada, como todos
os seres, recebeu parte do criador quando Este cria sua matéria e confere-lhe forma.
9
“A imagem de Deus no homem consiste em que tem algo de infinito no conhecer e no amar. O homem,
criado à imagem de Deus, possui uma capacidade divina de infinito no conhecer e no amar; e só será
radicalmente feliz com a posse desse infinito, que a graça pode outorgar. (...) Com a graça, a imagem de
Deus transforma-se em semelhança e participação da natureza divina.” (MERINO e FRESNEDA, 2006, p.
197)
26
Entra, pois, ó homem, em ti mesmo e observa com que ardor tua alma
se ama a si própria. Ora, ela não poderia amar-se, se não se conhecesse.
Nem poderia conhecer-se, se não tivesse lembrança de si mesma.
Porque nossa inteligência não aprende senão aquelas coisas que a
memória torna presentes. Vê, portanto, não com os olhos da carne, mas
com os olhos da razão, como nossa alma possui três potências
[memória, inteligência e vontade]. Considera as atividades e as relações
mútuas dessas três potencias e poderás ver a Deus em ti mesmo como
na sua imagem. (Itinerário, Cap. III, v. 1)
O que nos interessa é esta capacidade que o ser humano recebeu de Deus para
encontrar-se com a Verdade na contemplação das criaturas, e como se dá este trajeto ou
caminho formativo em São Boaventura. Isto nos limitará a uma análise do Prólogo, e dos
dois primeiros capítulos do opúsculo bonaventuriano.
Será a partir desta ideia que encontraremos as bases para buscar se há ou não
uma possibilidade educacional na teoria do referido pensador medieval. Muito embora
validasse as criaturas como parte integrante do conhecimento, ―o Doutor Seráfico estava
10
São Boaventura desenvolve sua tese baseando-se em sete degraus que ajudam o fiel a elevar-se a Deus.
Fazendo analogias bíblicas e da tradição franciscana, associa os seis primeiros a estágios ascéticos que
partem da contemplação dos seres até chegar à contemplação da Trindade (sétimo estágio).
27
O Doutor Seráfico ressaltava que a inteligência era algo dado pelo criador,
cabendo a cada um saber como usá-la e desenvolvê-la, sendo que ―a exigência do homem
é absoluta, pois a alma humana nasceu para conhecer tudo‖ (MERINO, 1999, p. 128).
Desse modo, ―a pesquisa racional é o caminho para alcançar altos graus de saber; mas
quem quiser prender-se a ela, cairá inevitavelmente em erro‖ (ZAVALONI, 1999, p.
100). Segundo o franciscano, ―a alma humana, tanto em sua inteligência como em sua
vontade, está dotada de um impulso ilimitado que a abre ao infinito‖ (MERINO, 1999, p.
129); assim, mesmo que o meio ofereça conhecimento sensorial, é na alma humana que
se dá a síntese e é esta a sede do conhecimento intelectivo.
Sobre isto, ―Boaventura estabelece uma distinção formal entre os diversos graus
de conhecimento que integram e potencializam em seu conjunto o processo ascensorial
da alma para Deus‖ (MERINO e FRESNEDA, 2006, p. 70): o sensível, a partir dos
sentidos e de sua apreensão das coisas oriundas da matéria; o intelectual, favorecedor de
um ―êxtase da inteligência‖, aonde se chega pelos seis degraus consecutivos
estabelecidos por ele; o sapiencial, capaz de unir homem e criador através do amor, um
―conhecimento experimental de Deus, o saborear da divina suavidade‖ (cf. IRIARTE,
1985, p. 154). Esta última é aquela que garante o êxtase transformativo. Pode-se afirmar,
também que, seu Itinerário da Mente para Deus11 (1259), o pensador apresenta-nos um
caminho a ser percorrido e reconhece o homem como um ―homo viator‖ (ZAVALLONI,
1999, p. 100), por isso é correto dizer que "o itinerário é um processo de interiorização, a
partir do exterior (vestígios de Deus) para o interior (alma humana) e do interior para o
transcendente: a união com Deus" (MANNES, 1995, p. 27). Sobre a mediação do mundo
sensível, presente nos dois primeiros capítulos do Itinerário, temos:
11
“O opúsculo bonaventuriano, Itinerarium mentis in Deum, não é uma pura e genial especulação
racional, mas uma vida humana que se aprofunda gradualmente; é uma experiência, um viajar que traz o
seu profundo sentido do destino ao qual se orienta.E a meta final do viajar existencial de Boaventura não
consiste em outra coisa que alcançar a união íntima e total com Deus, da qual brota o fruto da paz que
supera toda humana compreenSão”. (MANNES, 1995, p. 37).
29
Se, por um lado, o pensador concebe a alma como sede onde se pode alcançar o
conhecimento e a introspecção juntamente com o retorno a si mesmo como sendo a
melhor forma de se alcançar a compreensão das coisas captadas pelos sentidos – como
afirma o Doutor Seráfico: ―a graça é o princípio da retidão da vontade e da iluminação da
inteligência‖ (Itinerário, Cap. I, 8) – , por outro lado aponta como necessário o contato
com os seres criados. Nas palavras do mesmo, em seu Itinerário, encontramos:
provas cosmológicas para a prova da existência de Deus, nos deparamos com algo
diverso daquilo que podemos imaginar, pois não bastam as sensações para gerar a
cognoscibilidade das coisas e do conhecimento de Deus,
No sistema de Boaventura, não parece haver lugar para uma tal via 12, se
por este vocábulo se entender um processo capaz de nos conduzir, por si
só, para Deus. Não que ele exclua a consideração da natureza criada ou
do cosmos sensível do processo de ascensão da mente para Deus; no
Itinerarium, a consideração do mundo sensível constitui mesmo o ponto
de partida deste processo de elevação. Todavia, embora represente o
―primeiro estágio‖ ou ―degrau‖ no caminho da ascensão da alma, este
caminho tem que passar, forçosamente, pela alma. (GARCIA, 1997, p.
37)
Com efeito, Boaventura escreve que a alma humana é mens porque nela
transparece mais direta e claramente a verdade do que nas outras
criaturas, que São somente vestígios de Deus. Afirma o Doutor Seráfico
que Deus, 'intelligibile quod est ei supra', é 'magisintimum' à alma
12
“Via para São Boaventura é sinônimo de ato hierárquico ou sucessão de atos pelos quais a alma
consegue um dos três elementos constitutivos da perfeição: paz, verdade e caridade. Estas três vias
devem ser exercitadas em todos os graus da vida espiritual. São como três caminhos que se prolongam de
modo igual, paralelamente, desde o grau ínfimo até o auge da santidade”. (IRIARTE, 1985, p. 154).
31
Além disso, vale destacar o fato de que ―a consideração das criaturas vem a ser,
assim, um como degrau preambular‖ (GARCIA, 1997, p. 37) para que se estabeleça o
primeiro degrau a ser superado neste caminho de ascese mística. Ainda que esta via seja
insuficiente para levar o homem a Deus, ela não pode ser desconsiderada. Boaventura ―se
aproveita das realidades criadas para construir um caminho para o homem chegar até
Deus. O ponto de partida desse caminhar encontra-o no desejo do homem de ser feliz‖
(BERNARDI, 2003, p. 38). Destarte reconhece que ―as criaturas do mundo visível são os
sinais das perfeições invisíveis de Deus, seja porque Deus é a causa, seu exemplar e seu
fim (...) seja por meio de sua própria representação‖ (Itinerário, cap. 2, 12). Faz-se válido
ter em mente que, ―antes de podermos encontrar a Deus no mundo exterior, no mundo
fora de nós, é preciso que possamos encontrá-lo dentro de nós‖ (GARCIA, 1997, p. 38),
assim, nos deparamos com uma associação para com a filosofia agostiniana13, à qual leva
o homem, ao encontro consigo mesmo e à busca pelo conhecimento, primeiramente
dentro de si, e em seguida indo ao encontro dos seres que são capazes de transmitir
alguma ideia sobre o seu criador. A este respeito, o Doutor Seráfico é claro quando
afirma:
No que diz respeito às criaturas14, como meios, ele estabelece uma hierarquia
destes seres, a partir dos quais o caminho do conhecimento da verdade é percorrido e
pode ser alcançado por todos os homens. ―o Itinerário do Homem à Deus está constituído
por três vias ou caminhos, em cada um dos quais a existência de Deus se corrobora com
raciocínios‖ (MERINO e FRESNEDA, 2005, p. 175-6): na Primeira Via,o homem pode
encontrar a Deus mediante o mundo sensível na contemplação de Deus através do
13
“A doutrina pedagógica de São Boaventura faz a síntese de três instâncias: a tradição agostiniana, a
presença do aristotelismo e o espírito franciscano” (ZAVALLONI, 1999, p. 99).
14
Quanto às criaturas vale ressaltar que “os princípios estruturais dos corpos São a matéria e a forma
luminosa. Quanto maior a quantidade de luz contida num corpo, tanto mais elevado é o seu lugar na
ordem geral da natureza. ‘A luz é o princípio ativo universal, de modo que as atividades dos corpos
procedem de uma força inerente à sua própria substancialidade’.” (GIORDANI, 1997, p. 59)
32
vestígio (I), e no mundo sensível onde pode contemplar Deus no vestígio (II); na Segunda
Via, o filósofo aponta a possibilidade desta busca mediante a nossa alma (III) e, na nossa
alma (IV); por fim, na Terceira Via, a contemplação mediante a ideia do ser (V) e, na
contemplação do bem (VI). O Itinerário termina com um sétimo capítulo que trata do
―mergulho‖ intuitivo da alma em Deus. São Vias pelas quais ―a razão, com auxílio de
reflexões e de argumentos, se eleva à contemplação de Deus‖ (GIORDANI, 1997, p. 60).
15
Estas ―vias‖ formariam um método onde o indivíduo chegaria à transcendência e ao
conhecimento da Verdade (DEUS) (BERNARDI, 2003, p. 38-9), ―pois o nosso espírito
foi imediatamente formado pela própria Verdade‖ (Itinerário, Cap 5, 1). Tudo isto
somente é possível por que
15
Segundo Boaventura no seu Itinerário, Capítulo 5, v 1: “Podemos contemplar a Deus, não só fora de
nós, e dentro de nós, mas também acima de nós. Fora de nós pelos seus vestógios; dentro de nós, pela
sua imagem; acima de nós, pela sua luz estampada sobre nosso espírito”.
33
leva em seu ser como imagem dele. Que Deus existe é verdade
certíssima. (MERINO E FRESNEDA, 2006)
5 – CONCLUSÃO
A partir desta análise dos três primeiros capítulos do Itinerário da Mente para
Deus, de São Boaventura de Bagnoregio, deparamos novamente com a pergunta inicial: é
possível alcançar a transcendência a partir das criaturas? E encontramo-nos diante da
problemática sobre a possibilidade de se alcançar um método educativo pautado na visão
boaventuriana do mundo.
unicamente por causa da iluminação, tampouco por causa da contemplação dos seres,
mas pela capacidade do indivíduo de buscar e desejar abrir-se à tal conhecimento e ação
divina.
6 – REFERÊNCIAS
FRANCO JR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. (2ª Ed. Ver. e Amp.)
São Paulo: Brasiliense, 2001.
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
GIORDANI, Mário Curtis. História do mundo feudal. (3ª Ed.). Petrópolis: Vozes, 1997.
MERLO, Grado Giovani. Em nome de São Francisco: História dos frades menores e
do franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis, RJ: Vozes: FFB, 2005.