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SUMÁRIO

Merleau-Ponty: da constituição à instituição


Marilena Chaui.......................................................................................11

A presença do filósofo
Renaud Barbaras....................................................................................37

A “GRANDE POLÍTICA” OU MERLEAU-PONTY LEITOR DE MAQUIAVEL


Leandro Neves Cardim...........................................................................49

Merleau-Ponty entre ontologia e metafísica


Marcus Sacrini A. Ferraz.........................................................................74

O conceito de vida e a gênese da ordem humana


Silvana de Souza Ramos.........................................................................90

Merleau-Ponty e a bola de neve: elogio e crítica de Bergson


Pablo Zunino.........................................................................................104

PROUST À LUZ DE FREUD – UMA LEITURA MERLEAU-PONTYANA


Ronaldo Manzi......................................................................................121

A VISÃO COMO ABERTURA


Alex de Campos Moura.........................................................................131
.
FIGURAS DE CONCEITO. SOBRE A LINGUAGEM EM MERLEAU-PONTY
Júlio Miranda Canhada..........................................................................138

MERLEAU-PONTY E O “GRANDE RACIONALISMO”: QUE É LER UM CLÁSSICO?


José Luiz B. Neves..................................................................................149
Merleau-Ponty: da constituição à instituição

Marilena Chaui*

Resumo: Este ensaio examina a noção merleaupontyana de instituição como descoberta de um


caminho para superar a tradição das filosofias da consciência, particularmente as aporias deixadas
pela fenomenologia transcendental husserliana, permitindo a passagem de uma filosofia da
constituição a uma filosofia da gênese.
Palavras-chave: instituição, constituição, filosofia da gênese, fenomenologia, filosofia da
consciência.

“A consciência constituinte é a impostura profissional do filósofo


(...) e não o atributo espinosista do pensamento”. Todos se lembram
dessas palavras, escritas por Merleau-Ponty em “Le philosophe et
son ombre”, quando de sua leitura da obra de Husserl.

“Procura-se aqui, com a noção de instituição, um remédio para


as dificuldades da filosofia da consciência”. Com estas palavras,
Merleau-Ponty define a intenção de seu curso de 1954-55, no
Collège de France, denominado L’institution.

Essas duas afirmações nos permitem tomar o projeto filosófico merleaupontyano


como passagem da constituição à instituição, ou, se se quiser, de uma filosofia da posição
a uma filosofia da gênese.
Nosso trajeto, aqui, não se ocupará com o momento em que Merleau-Ponty passa
da fenomenologia transcendental à ontologia do ser bruto, mas apenas com o percurso
realizado ainda no interior da fenomenologia para superá-la como filosofia da consciência
e no qual a noção de instituição terá papel nuclear.

***
Pensar a relação de Merleau-Ponty com o Grande Racionalismo do século XVII
significa, inicialmente, considerar o lugar ocupado em sua filosofia pela cisão entre res
extensa (pura exterioridade das coisas corpóreas como composição de partes extra partes)

* Professora Titular do Departamento de Filosofia da USP.

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Cadernos Espinosanos XX Marilena Chaui

e res cogitans (presença da consciência a si mesma como pura interioridade). diversa daquela proposta em La structure du comportement, ou seja, em lugar de uma passagem
da natureza à cultura, agora Merleau-Ponty concebe a fundação da cultura na natureza.
“Fomos habituados pela tradição cartesiana a uma atitude reflexiva Se considerarmos o ponto de partida e o percurso realizado, ilumina-se a
que purifica simultaneamente a noção comum do corpo e da alma,
diferença entre o texto sobre o Grande Racionalismo, em “Partout et nulle part”, e o
definindo o corpo como uma soma de partes sem interior e a alma
como um ser totalmente presente a si mesmo, sem distância. Essas de uma nota sobre a filosofia seiscentista, redigida para um de seus últimos cursos no
definições correlativas estabelecem a clareza em nós e fora de nós: Collège de France.
transparência de um objeto sem dobras, transparência de um sujeito Em “Partout et nulle part”, lemos:
que é exclusivamente aquilo que ele pensa ser. O objeto é objeto
de ponta a ponta e a consciência, consciência de ponta a ponta. Há “O Século XVII é esse momento privilegiado em que o conhecimento
dois e somente dois sentidos para a palavra existir: existe-se como da natureza e a metafísica acreditaram haver encontrado um
coisa ou existe-se como consciência” (Merleau-Ponty 1, p.231). fundamento comum. Criou a ciência da natureza e, contudo, não
fez do objeto de ciência o cânone da ontologia. Admite que uma
Desprender-se dessa tradição é abandonar o ser como coisa empírica, mas também filosofia seja o fio de prumo da ciência sem ser sua rival. O objeto de
como resultado da análise e da síntese intelectuais, que o fazem posto pelo entendimento. ciência é um aspecto ou um grau do Ser; justifica-se em seu lugar e
talvez seja, até mesmo, por ele que aprendemos a conhecer o poder
Trata-se, pois, de renunciar à subjetividade pura e ao seu outro lado, a objetividade pura,
da razão. Mas esse poder não se esgota nele. De maneiras diferentes,
construída pelas operações de um pensamento que se julga desencarnado e de uma técnica Descartes, Espinosa, Leibniz, Malebranche, reconhecem, sob a
reduzida apenas à sua superfície instrumental. cadeia das relações causais, um outro tipo de ser que a subtende sem
Tomando a herança clássica como ponto de partida, Merleau-Ponty se encaminha, rompê-la. O Ser não está inteiramente vergado e achatado sobre o
por um lado, à noção de estrutura do comportamento, que lhe permite formular a idéia de plano do Ser exterior. Há também o ser do sujeito ou da alma e o ser
de suas idéias, e o das relações recíprocas entre as idéias, a relação
uma dialética das ordens de realidade ― física, vital e humana ―, e pensar na fundação
interna de verdade, e esse universo é tão grande quanto o outro, ou
de uma história; e, de outro, a uma fenomenologia da percepção, que desvenda o corpo melhor, o envolve, visto que, por mais estrito que seja o vínculo
próprio como corpo percipiente ou cognoscente, sexuado, falante e reflexivo, dotado de dos fatos exteriores, não é um deles que dá a razão última do outro;
interioridade ou espírito encarnado. Se tal é o ponto de partida, não surpreende que o juntos participam de um ‘interior’ que sua ligação manifesta. Todos
percurso de Merleau-Ponty, como vemos em seus últimos trabalhos no Collège de France, os problemas que uma ontologia cientificista suprimirá instalando-se
sem crítica no ser exterior como meio universal, a filosofia do XVII,
o conduza a uma análise das concepções de natureza em Descartes, Kant, Schelling e na
ao contrário, não cessa de colocá-los. Como compreender que o
ciência contemporânea, assim como a novos estudos sobre o corpo humano, afirmando, espírito aja sobre o corpo e o corpo sobre o espírito e mesmo o corpo
então, que a encarnação se enraíza numa camada originária, a natureza, entendida não sobre o corpo ou um espírito sobre outro espírito ou sobre si mesmo,
como res extensa (Descartes), nem como multiplicidade dos objetos dos sentidos (Kant), pois, por mais rigorosa que seja a conexão das coisas particulares em
nem como exterioridade abstrata (Hegel e filosofias dialéticas), nem, enfim, como modelo nós e fora de nós, nenhuma delas jamais é, sob todos os aspectos,
causa suficiente do que sai dela? De onde vem a coesão do todo?”
matemático e laboratorial (ciências), mas como “definição do ser”, “presença originária
(Merleau-Ponty 7, p.218)
comum”, entrelaço e quiasma dos corpos e da expressão simbólica (sexualidade e
linguagem), de sorte que a relação entre natureza e cultura é concebida numa perspectiva

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Cadernos Espinosanos XX Marilena Chaui

Em contrapartida, numa das últimas notas de seus cursos sobre a regiões de sombras onde as coisas já se fizeram antes de nossa chegada. O originário para
natureza, escreve: o homem não é a gênese ideal que as filosofias da consciência propuseram, mas aquilo
que imediatamente “o articula sobre outra coisa que não ele mesmo; aquilo que introduz
“A extraordinária confusão da idéia da Natureza, da idéia de em sua experiência, conteúdos e formas mais antigas do que ele e dos quais ele não é o
homem e da idéia de Deus entre os modernos ― os equívocos de
senhor”(Merleau-Ponty 4, p.87). É esse mundo-natureza que a pintura de Cézanne deseja
seu “naturalismo”, de seu “humanismo” e de seu “teísmo” ― não
seria penas um fato de decadência. Se hoje todas as fronteiras se alcançar, a natureza em estado nascente, antes do homem e antes que o homem nela tenha
apagaram entre essas ideologias, é porque, com efeito, há, para depositado suas pegadas ou seus rastros. E esse mundo-natureza faz com que o homem
repetir uma palavra de Leibniz, mas tomando-a ao pé da letra, um esteja imerso em múltiplas temporalidades, algumas dispersas, outras concentradas,
“labirinto da filosofia primeira”. A tarefa do filósofo seria descrevê- algumas mais velhas do que ele, outras criadas por sua ação ou por sua mera presença,
lo, elaborar tal conceito do ser para que as contradições, nem
de sorte que passado e futuro não são momentos de um presente que já foi ou que ainda
aceitas nem ultrapassadas, nele encontram seu lugar. Isso que as
filosofias dialéticas não conseguiram fazer, porque nelas a dialética será, mas dimensões de uma temporalidade aberta, feita de retomadas, sedimentações e
permanecia enquadrada numa ontologia pré-dialética, tornar-se-ia criações. Isso significa, portanto, uma nova concepção da historicidade. Donde a crítica
possível para uma ontologia que descobriria no próprio ser uma às filosofias dialéticas e, no Éloge de la philosophie, a crítica à temporalidade hegeliana,
falta de prumo ou um movimento. É seguindo o desenvolvimento que finda no “dia eterno do presente” (para usarmos a expressão cunhada por Paulo
moderno da noção de natureza que tentamos aqui nos aproximar
Arantes), ou de “de um pensamento que pelo movimento que realiza ― totalidade reunida,
dessa ontologia nova.” (Merleau-Ponty 13, p.371)
apreensão violenta no final do desenvolvimento ― curva-se sobre si mesma, ilumina sua
própria plenitude, acaba seu círculo, se reencontra em todas as figuras estranhas de sua
O que nos interessa é a maneira como Merleau-Ponty situa uma nova ontologia
odisséia e aceita desaparecer no mesmo oceano onde tinha brilhado”.
a partir de uma interpretação da filosofia clássica e do fracasso das filosofias dialéticas.
Em suma, de Descartes a Hegel, o infinito positivo – esteja ele no começo ou
Sob essa perspectiva, podemos indagar se o início e o término da obra merleaupontyana
no final do percurso – desenha a filosofia como crença na determinação completa, seja do
são tão diferentes e contrastantes como supusemos há pouco, uma vez que A Estrutura do
visível, seja do invisível, seja da percepção, seja a da linguagem e do pensamento. Dessa
Comportamento, graças à idéia de ordem física, vital e humana ou simbólica, já prepara
maneira, ao erguer-se contra a figura do filósofo como kosmotheóros, Merleau-Ponty se
a aproximação entre natureza e história, realizada nos cursos do Collège de France sobre
ergue contra a filosofia clássica e as filosofias dialéticas, mas o interessante é que o faça
a idéia de natureza, e, por seu turno, os capítulos finais da Fenomenologia da Percepção
tendo como horizonte a superação da fenomenologia husserliana.
dedicam-se à temporalidade e à liberdade, a partir da relação entre corpo e espírito como
encarnação e da relação entre homem e mundo como situação. Em outras palavras, aquilo
***
que essas duas obras chamam de mundo, os cursos do Collège de France chamam de
natureza, mudança que, afinal, já se encontra presente em “Le philosophe et son ombre”,
Desde La Structure du Comportement e da Phénoménologie de la Perception,
quando Merleau-Ponty afirma que a natureza é mundo sensível.
a crítica do empirismo e do idealismo, do mecanicismo causalista e do intelectualismo
Como natureza, o mundo é profundo e nosso contacto com ele, ambíguo:
retomava constantemente as conseqüências do dualismo substancial inaugurado pela
passamos da superfície ao seu interior porque é ele próprio que se oferece com imensas
metafísica clássica, isto é, o dilema coisa-consciência, que redundaria na cisão sujeito-

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objeto, consumada em proveito do primeiro no criticismo kantiano e em proveito do Introdução, “estão justapostas uma filosofia que faz da Natureza uma unidade objetiva
segundo no dogmatismo empirista. No entanto, o trabalho de Merleau-Ponty se realizava constituída diante da consciência e ciências que tratam o organismo e a consciência
no interior de um campo de pensamento aberto pela fenomenologia husserliana, pela como duas ordens de realidades e, em suas relações recíprocas, como ‘efeitos’ ou
Psicologia da Forma e pelo existencialismo de Heidegger, portanto, no interior de como ‘causas’” (Merleau-Ponty 10, p.2). Assim, entre um certo kantismo, que abolia o
referenciais que não estavam livres do risco do essencialismo (como aquele que espreita problema da natureza reduzindo-a à construção permitida pela analítica transcendental,
a fenomenologia quando crê na possibilidade da variação completa e numa Wesenschau um vitalismo, prestes a converter-se em espiritualismo, e um mecanismo reducionista,
inteiramente desligada da faticidade por parte do sujeito absoluto), do objetivismo (como para o qual certos acontecimentos físicos no cérebro tinham a peculiaridade de
aquele em que cairá a Psicologia da Forma, seduzida pela geometria e pelas ciências aparecerem como conscientes, Merleau-Ponty retorna às questões clássicas das relações
naturais), nem do humanismo (como aquele que ronda o existencialismo, quando entre a alma e o corpo (título do capítulo final do livro) e encontra na noção de estrutura
identifica existência e homem, confundindo a finitude do ser-para-a-morte com as do comportamento uma via para ultrapassar a ilusória alternativa em que se debatiam
limitações empíricas “vividas”). Esses riscos tendem a ser evitados por Merleau-Ponty mecanicistas e vitalistas, ou a alternativa entre as causas e efeitos “observáveis” e os fins
porque La Structure du Comportement e a Phénoménologie de la Perception situam- “inobserváveis”. Revelando o comportamento como estrutura, isto é, como totalidade
se fora do campo de uma psicologia eidética e de uma fenomenologia das essências auto-regulada de relações dotadas de finalidade imanente, torna possível afastar a
psíquicas preliminares à explicação científica dos fatos psíquicos. Também não se situam causalidade mecânica e a finalidade externa.
no interior de uma constituição universal efetuada pelo sujeito filosófico. Pelo contrário, O capítulo final de La structure du comportement, dedicado à clássica questão
contestam a explicação científica e a análise reflexiva. Por um lado, procuram essências das relações entre a alma e o corpo, prepara uma fenomenologia da percepção voltada
— do comportamento e da percepção — mas, por outro , não as procuram em regime de para a descrição do campo pré-reflexivo, para uma fundação perceptiva do mundo
redução. Visto considerar impossível a constituição transcendental como ato do sujeito realizada pelo corpo próprio e no corpo próprio enquanto corpo cognoscente ou
constituinte, Merleau-Ponty não trabalha com a separação entre noema-noesis e a tese princípio estruturante. A reflexão aparece como ato segundo porque não pode anular
do mundo natural, mas busca a essência do comportamento e da percepção no interior sua dependência ao pré-reflexivo onde se efetua a gênese do sentido, mas este, por seu
da faticidade ou do que chama de existência. Interessa-se menos pela essência como turno, não dispensa a reflexão porque esta explicita e exprime o que existe tacitamente
significação pura ou síntese lógica e muito mais pela intencionalidade operante. Busca, no simbolismo do corpo e do mundo. A reflexão desponta como exposição de uma
como toda fenomenologia, a “aparição do ser para a consciência” sem, contudo, à maneira posição pré-reflexiva originária.
do idealismo transcendental, considerá-la um ato centrífugo de significação ou A Introdução da Phénomélogie de la Perception, passando criticamente em
pura doação de sentido. Conseqüentemente, também não toma o ser que aparece revista as noções de sensação, associação, atenção e juízo como preconceitos que formam
como posição ou tese ou modalidade ou correlato da consciência, mas como o tecido cerrado da psicologia intelectualista e da filosofia reflexiva, chega à estrutura
enraizamento e solo originário da consciência, que será sempre, e em última agora apresentada como campo fenomenal enquanto campo transcendental e, assim,
instância, consciência perceptiva. afasta o Ego transcendental. Fazendo do campo transcendental a articulação originária
La Structure du Comportement procura as relações entre a consciência e a entre o exterior e o interior e tomando o pensamento uma saída de si, Merleau-Ponty
natureza física e orgânica e entre ela e o mundo psíquico e social para além da solução transforma a idéia de verdade. O eidos não é essência separada cujo requisito é “uma
kantiana, do vitalismo e do mecanicismo. “Na França”, escrevia Merleau-Ponty na absoluta posse de si no pensamento ativo, sem a qual este não conseguiria se desenvolver

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numa série de operações sucessivas e construir um resultado válido para sempre”. Contra ou transcendência, o Cogito abre, assim, para a descrição do tempo, que não é deduzido
a imanência transcendental, Merleau-Ponty faz intervir a noção husserliana de dupla das conseqüências da subjetividade, mas descoberta de que o sujeito é temporalidade.
Fundierung, baralhando a separação clássica entre verdades de fato e de razão: O tempo, transcendência e síntese (o sistema das retenções e pretensões husserlianas) é
“lançamento de uma potência indivisa num termo que lhe é presente”. A transcendência
“A relação entre a razão e o fato, a eternidade e o tempo, a reflexão inscrita no coração da subjetividade leva, por fim, à descrição da liberdade. Esta, muito
e o irrefletido, o pensamento e a linguagem ou entre o pensamento
mais do que situada, é descrita por Merleau-Ponty como encarnada.
e a percepção é essa relação em duplo sentido que a fenomenologia
chamou de Fundierung: o termo fundante — o tempo, o irrefletido, A conclusão de Phénoménologie de la Perception nos convida a reler seu
o fato, a linguagem, a percepção — é primeiro no sentido de que Prólogo, no qual Merleau-Ponty apresenta a fenomenologia husserliana como projeto de
o fundado se dá como uma determinação ou explicitação do uma filosofia radical e examina os conceitos husserlianos — intencionalidade, descrição,
fundante, o que lhe proíbe reabsorvê-lo, entretanto, o fundante não redução e constituição — em duas direções. Retoma, de um lado, o projeto de Husserl
é o primeiro no sentido empirista e o fundado não é simplesmente
e, de outro, discute seu fracasso aparente. A intencionalidade enraíza a consciência, em
derivado, pois é através do fundado que o fundante se manifesta”.
(Merleau-Ponty 1, p.) lugar de separá-la do mundo; a redução eidética, na tentativa de captar as essências para
além da “tese natural do mundo”, descobre a faticidade irredutível que funda o possível

Isso significa, por um lado, que as verdades são de mesma ordem que sobre o real; a constituição mergulha num solo de postulados que desvendam tudo quanto

as percepções, ou seja, feitas de pressupostos que não podemos explicitar até o fim não constituímos. A impossibilidade da intencionalidade pura e da redução completa é,

para obter uma evidência sem lugar e sem tempo, e, por outro , que a reflexão ou o portanto, impossibilidade da constituição transcendental.

pensamento de pensar não está mais às voltas com o dogmatismo ou com o criticismo,
“A fenomenologia como revelação do mundo repousa sobre si
mas com a descoberta de sua “espessura temporal” e de seu “engajamento corporal”,
mesma ou, ainda, funda a si mesma. Todos os conhecimentos se
com o fato de que não somos nenhum de nossos pensamentos particulares e, todavia, só apóiam sobre um solo de postulados e, finalmente, sobre nossa
nos conhecemos através deles. comunicação com o mundo como primeiro estabelecimento
A Phénoménologie de la Perception descreve ek-stases e não operações da racionalidade. A filosofia como reflexão radical priva-se, em
reflexivas. Por isso a chegada ao Cogito não só inverte a fórmula cartesiana, exprimindo- princípio, desse recurso. Como também está na história, também
usa o mundo e a razão constituída. Será preciso, pois, que dirija
se como “sou, logo penso”, pois a consciência está atada por dentro à existência, como
a si mesma a interrogação que dirige a todos os conhecimentos
ainda desemboca no Cogito tácito. O Cogito não é inerência psicológica nem imanência e, portanto, ela se reduplicará indefinidamente, será, como diz
transcendental, não é unidade sintética, como queria Kant, mas, como dizia Heidegger, Husserl, um diálogo ou uma meditação infinita e, na medida
é coesão de vida. É precedido e sustentado por um irrefletido irredutível. Não está junto em que permaneça fiel a si mesma, nunca saberá onde vai. O
a si senão estando fora de si, pois o Cogito explícito não se realiza no silêncio, mas inacabamento da fenomenologia, seu compasso incoativo não são
signos de fracasso. Eram inevitáveis porque a fenomenologia tinha
exprimindo-se e, portanto, como linguagem. Assim como o sujeito da geometria é um
como tarefa revelar o mistério do mundo e o mistério da razão.”(
“sujeito motriz”, também o sujeito da reflexão é um “sujeito falante”, de modo que o corpo Merleau-Ponty 1, p.XVI)
não é um suporte ou um instrumento do espírito, mas corpo de um espírito pelo qual este
pode ser espírito. O Cogito desencarnado não seria Cogito, seria Deus. Como ek-stase

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O “compasso incoativo” da fenomenologia, isto é, seu recomeçar perene, sensível. Visando à imanência, a redução e a constituição redescobriram a transcendência;
oposto à redução e constituição transcendentais, afirma a recusa da filosofia como auto- entre ambas, o sensível se descobre como ser à distância, fulguração, aqui e agora, das
fundação, recusa que se explicita de maneira admirável na idéia de instituição, como lembranças e promessas de outras experiências.
veremos logo mais. As dificuldades da redução, escreve Merleau-Ponty, não são preliminares à
investigação filosófica, mas seu começo, e como são dificuldades insuperáveis, o começo
*** é contínuo. A redução é contraditória porque, se não é “natural” e sim o contrário da
natureza, esta deve ser inteiramente constituída pela consciência e ser relativa, enquanto o
Pensamos que a crítica do legado do Grande Racionalismo se consuma na espírito deve ser absoluto, mas, em contrapartida, a natureza não é produzida pelo espírito
interpretação de sua última figura, qual seja, a fenomenologia husserliana. e a imanência transcendental não é mera antítese da atitude natural.
Em “Le Philosophe et son Ombre”, Merleau-Ponty estende e distende a Nas Idéias II, Husserl considerara problemática a passagem do “objetivo” ao
fenomenologia até o limite entre dois extremos que podem aniquilá-la. Numa ponta, “subjetivo”, pois o Eu teórico puro que visa as puras e nuas coisas não é o sujeito filosófico,
examinada na primeira parte do ensaio, encontra-se a redução transcendental, que mas a ciência da natureza, herdeira de um naturalismo filosófico. O sujeito procurado por
não consegue reduzir a natureza, descobrindo que esta, afinal, é irrelativa. A redução, Husserl o conduzia “abaixo” desse naturalismo, a um “meio ontológico diverso do em-si
portanto, deve contentar-se em ser redução eidética e a fenomenologia precisa admitir e que na ordem constitutiva não pode ser derivado deste último”, visto ser primeiro. Na
que a infra-estrutura secreta e selvagem onde nascem nossas teses não pode ser verdade, a atitude natural não é “atitude” (conjunto de atos judicatórios e proposicionais),
produzida pelos atos da consciência absoluta. Na outra ponta, examinada na terceira não é tética, mas síntese aquém de toda tese ou uma fé primordial ou opinião originária,
parte do ensaio, encontra-se a constituição transcendental, que não consegue fundar a que opõe ao originário da consciência teórica o originário de nossa existência. Resulta
própria reflexão, mas apenas usá-la e transformá-la num artefato filosófico, de modo dessa descoberta que a atitude natural não se relaciona com a transcendental como o antes
que a consciência constituinte, não podendo efetuar uma reflexão-da-reflexão que a e o depois, nem como passagem do obscuro e confuso ao claro e distinto, nem como
pusesse a si mesma, precisa contentar-se em ser constituída vagarosa e dificultosamente supressão da aparência pela verdade da essência. A atitude transcendental está preparada
por nossa experiência. Entre esses dois extremos, a reabilitação ontológica do sensível na atitude natural como antecipação e preparação intencionais. Justamente por isso, a
é empreendida pela segunda parte do ensaio. redução descobre que o espírito precisa da natureza para ser espírito, enquanto a natureza
A primeira parte termina declarando que Husserl se sentira igualmente atraído dele não carece para ser natureza. A coisa natural pode ser inteiramente compreendida por
pela “ecceidade da natureza” e pelos “turbilhões da consciência” e que descobrira si mesma, enquanto o espírito, por ser intencional, não pode ser auto-suficiente e, como
haver alguma coisa entre a transcendência e a imanência, cabendo a quem retomasse o disseram as Idéias II, um espírito sem corpo não será espírito.
empreendimento fenomenológico prosseguir caminho nesse entre-dois. A terceira parte A fenomenologia é desvendamento da “camada pré-teorética” como solo
culmina na afirmação de que o projeto de Husserl como projeto de posse intelectual do irredutível das “camadas teoréticas” e, por antecedê-las e explicá-las, pode ultrapassá-las.
mundo é insensato e que o próprio filósofo disso soubera quando, em 1912, falara na No entanto, essa “arqueologia”, escreve Merleau-Ponty, não deixa intactos os instrumentos
simultaneidade do real — natureza, animais, espíritos. Para que a terceira parte possa de trabalho da fenomenologia porque modifica o sentido da intencionalidade, do noema
discorrer sobre a hybris husserliana é preciso, antes, trilhar o entre-dois, o espaço cavado e da noesis e talvez não permita que se continue procurando numa analítica dos atos
entre a redução e a constituição, isto é, urge passar pela reabilitação ontológica do da consciência a mola de nossa vida e do mundo. Apontando para a “constituição

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pré-teorética dos pré-dados”, Husserl vislumbrava uma intencionalidade operante e Merleau-Ponty se interessa pela sedimentação como auto-esquecimento ou
espontânea, latente, mais velha e mais nova do que a intencionalidade dos atos de como olvido de si, que permite compreender o movimento de constituição das idealidades
consciência. Percebia que os fios intencionais se agrupam ou se enovelam em torno de enquanto derivação da intersubjetividade carnal (o sensível como presença original
certos nós sem, contudo, terminarem na posse intelectual de um noema, de sorte que o para sujeitos comunicantes), desde que esta seja esquecida como inerência ao mundo,
percurso não tem começo nem fim. em virtude de sua própria capacidade para se esquecer de si mesma. A constituição
Longe dessas descobertas serem um empecilho para a fenomenologia, vão abrir- desemboca em círculos — das coisas com as pessoas, destas com o corpo, que também é,
lhe um campo novo de investigação e configurar a reabilitação ontológica do sensível, sob certos aspectos, uma coisa; da natureza impessoal com um todo que engloba pessoas
desde que rumar para a camada sensível não implique permanecer cativo de seus enigmas que, por seu turno, enquanto sujeitos comunicantes, irão constituir em comum a própria
e, sim, decifrá-los. Está em questão, portanto, a idéia de natureza. Deixando de tomá-la Natureza. Cada camada, no ponto onde se constitui, retoma as precedentes e invade as
como unidade constituída e como “unidade dos objetos dos sentidos”, Husserl passara a seguintes, é anterior e posterior a si mesma, de modo que a constituição não tem começo
defini-la como “totalidade dos objetos que podem ser pensados originariamente e que, para nem fim, levando Husserl a falar em simultaneidade. A constituição nascera para igualar
todos os sujeitos comunicantes, constitui um domínio de presença originária”. A natureza pela reflexão nossa atitude natural, que é espontaneamente naturalista e personalista,
tornava-se, afinal, mundo sensível, de que dependem as evidências e a universalidade “excêntrica” e “egocêntrica”, passando tranqüilamente de uma posição à outra sem o
das relações de essência. Noutros termos, a relação fato-essência foi transtornada. Mas a menor problema. A reflexão deveria dar conta do trânsito entre as atitudes naturais e do
natureza não é só presença originária do que pode ser originariamente pensado. É ainda transitivismo entre elas; deveria, a partir da própria interioridade, explicar a passagem do
o que se oferece como presença a “sujeitos comunicantes” sendo, portanto, inseparável interior ao exterior, e vice-versa. Para ser reflexão absoluta teria, além dessa explicação,
da linguagem. Assim procedendo, Husserl ampliava indefinidamente o sensível, pois este que fundar a própria interioridade fundadora da explicação e, portanto, teria que pôr-
não são apenas as coisas, mas “tudo que nelas se desenha, mesmo no oco, tudo que nelas se a si mesma como reflexão, efetuando uma reflexão-de-reflexão. Dessa autoposição
deixa vestígio, tudo que nelas figura, mesmo a título de afastamento e como uma certa radical depende a possibilidade da gênese transcendental. E isso a reflexão não consegue
ausência”. Essa ampliação desenha no tecido do sensível o perfil de outras sensibilidades efetuar; não consegue reflexionar-se. Não é capaz de se pôr como inteligência de todas
— os animalia — e de outros pensamentos — os animais humanos —, isto é, “seres as intelecções. Sendo forçada a admitir que a consciência constituinte é constituída, a
absolutamente presentes que têm uma esteira de negativo”. No caso dos homens, é o fenomenologia deve tomá-la como artefato, como impostura profissional do filósofo e
comportamento (visível) que nos ensina haver ali um outro espírito (invisível). O sensível não como atividade do atributo espinosano do pensamento. O fracasso da constituição
é, pois, o universal. transcendental é compreendido por Husserl, tanto assim que, nos textos inéditos pode-se
Podemos adivinhar o que sucederá à constituição transcendental. Num primeiro ver que ele pretendia que o pensamento fosse capaz de compreender a junção simultânea
momento, porque a encarnação da consciência transtorna as relações entre o constituído da natureza, do corpo e do espírito, já que somos essa junção. A tarefa da fenomenologia
e o constituinte, corre-se o risco de tentar conservar a fenomenologia deslizando-se começava, agora, pela admissão dessa existência simultânea e pela necessidade de
para o psicologismo ou para a antropologia filosófica, isto é, confundindo-se empírico pensar sua relação com a não-fenomenologia. Teria, finalmente, que abdicar da gênese
e transcendental. Esse risco pode ser evitado se o filósofo, além de compreender o transcendental e encaminhar-se para uma ontologia.
que Husserl chamara de dupla Fundierung, também se voltar para a articulação entre
constituição e sedimentação.

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“à medida que o pensamento de Husserl amadurece, a constituição da experiência e pagar um preço que não pode pagar, pois a experiência-em-essência
torna-se cada vez mais o meio para revelar um avesso das coisas será tudo quanto se queira menos essência da experiência. Liberada das “impurezas” da
que não constituímos. Foi preciso a tentativa insensata de tudo
faticidade, a experiência terá perdido o que faz ser experiência: a inerência sensível, o
submeter às conveniências da consciência, no jogo límpido de
inacabamento ou a transcendência, em suma, a abertura. Despojando-a, pela imaginação
suas atitudes, de suas intenções, de suas imposições de sentido, foi
preciso levar até o fim o retrato de um mundo bem comportado, transcendental, de todo solo e de todo apoio, sua essência será “um recuo para o fundo
que herdamos da filosofia clássica, para revelar todo o resto: os do nada”. E não há possibilidade de conservar em pensamento sua adesão ao mundo,
seres aquém de nossas idealizações e objetivações, que as nutrem porque, neste caso, já não será essência. À terceira pergunta, Merleau-Ponty responde
secretamente e nos quais temos dificuldade para reconhecer os
descrevendo a figura do Kosmotheoros como poder absoluto de ideação que sobrevoa
noemas.” (Merleau-Ponty 6, p.227)
o mundo e domina o espetáculo, fazendo do real uma variante do possível. A posição
de um observador absoluto é a origem da dicotomia fato-essência, ou da suposição de
Donde o lugar ocupado, em Le visible et l’invisible, pela crítica à concepção
duas modalidades opostas de existência: a do que existe individualizado num ponto
husserliana da intuição de essência, que poderíamos designar como o último avatar do
do espaço e do tempo, e a do que existe para sempre em parte alguma. Na verdade,
desejo da determinação completa inaugurado pelo Grande Racionalismo. Escreve, então,
diz Merleau-Ponty, não temos aí duas existências, mas duas positividades abstratas, as
Merleau-Ponty:
essências sendo duplicação inteligível dos fatos. Donde a questão: somos o observador

“Não há mais essências acima de nós, objetos positivos, oferecidos absoluto fora do espaço e do tempo? ou estamos no espaço e no tempo? No primeiro
a um olho espiritual, há, porém, uma essência sob nós, nervura caso, dir-se-á que o sujeito é essência; no segundo, fato. E, em ambos, reabre-se o
comum do significante e do significado, aderência e reversibilidade problema que a posição de um observador tinha justamente a finalidade de resolver. A
de um no outro, como as coisas visíveis são dobras secretas de
separação entre a superfície plana dos fatos e o corte transversal das essências não dá
nossa carne e de nosso corpo, embora este também seja uma das
passagem à experiência e à essência.
coisas visíveis.” (Merleau-Ponty 11, p.158)
Deslocando-se do espectador para o vidente, Merleau-Ponty desfaz a abstração

Como se dá a passagem da essência-noema, completamente determinada, à dos fatos. Não há fatos. Há o sensível vindo a si em cada coisa como textura e espessura

essência operante, aberta à indeterminação? Merleau-Ponty parte de três indagações: visual, táctil, sonora, presente ao nosso corpo como uma extensão e uma duplicação dele.

pode a essência ser considerada acabamento de um saber? pode-se alcançar a essência Também não há coisas como indivíduos espaciais e temporais, cada qual em seu lugar

da experiência? quem é o sujeito que intui essências desligadas da faticidade? A primeira e data, como atores bem treinados para entrar e sair do palco, nele ocupar um ponto

questão é respondida negativamente, pois a essência sendo essência “de alguma coisa”, fixado de antemão e repetir falas ensaiadas previamente. Porque não estão num palco, as

só pode ter certeza de seu conteúdo e de sua adequação ou verdade supondo a existência coisas não são objeto de contemplação de um espectador cujo olhar varreria totalmente

daquilo de que é essência, porém essa suposição era o que deveria ser explicado por ela o cenário, cujo pensamento alcançaria os bastidores e cujo discurso seria posse do texto

ao invés de ser sua justificação. Como a dúvida metódica, a epochê é um positivismo original. Coisas e vidente são “um relevo do simultâneo e do sucessivo, polpa espacial

clandestino ainda que deliberado. A essência é apenas um in-variante e não um ser positivo. e temporal onde os indivíduos se formam por diferenciação”. Experimentadas por nós

A segunda questão também é respondida negativamente. Para que a essência não tivesse de seu interior e de nosso interior, as coisas não são objetos sólidos que se converteriam

qualquer pressuposto e fosse inteiramente pura teria que realizar a variação completa em puras essências, passando para o palco do espírito preparado pelo grande espectador.

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Cadernos Espinosanos XX Marilena Chaui

Com isto, se desfaz também a abstração das essências. internas, de sorte que não é arranjo ou mosaico de partes isoláveis nem substância
O desaparecimento da abstração dos fatos e das essências, das coisas e das extensa ou pensante. É uma significação encarnada que possui um princípio interno
idéias, do em-si e do para-si, da oposição entre o exterior e o interior significa, antes de organização e de auto-regulação.
de mais nada, o abandono de uma noção de expressão, com a qual, ainda no interior A estrutura, escreve Merleau-Ponty, é uma maneira nova de ver o ser. Por que?
da fenomenologia, Merleau-Ponty buscava enfrentar as aporias filosóficas deixadas por Porque, ao desprendê-lo da metafísica do dualismo substancial e da oposições entre
Husserl. Significa, ainda, que a mudança dessa noção (mudança que aparecerá em Les o em-si e o para-se, nos permite alcançá-lo como ser de indivisão, pois as estruturas
aventures de la dialectique, nas notas de trabalho de Le visible et l’invisible e em L’oeil qualitativamente distintas são dimensões do mesmo ser. Por outro lado, a estrutura
et l’esprit) conduz o filósofo a uma reinterpretação da noção goethiana e weberiana de também se desprende das filosofias transcendentais, nas quais o ser se reduz às categorias
afinidades eletivas como “prodigioso entrelaçamento” de dimensões naturais, vitais, e aos conceitos que o entendimento lhe impõe e que o reduzem ao “ser posto” ou ao
sociais, intelectuais, pessoais e históricas. Ora, essa nova concepção da expressão tem um “ser constituído”: com a estrutura, deixamos a tradição do que é posto ou constituído
pressuposto preciso, qual seja, a noção de instituição. pelas operações intelectuais e alcançamos o há originário, mais velho do que nossas
operações cognitivas, que dele dependem e que, esquecidas dele, imaginam constituí-lo.
*** Além disso, a noção de estrutura nos afasta da tradição científica fundada em explicações
causais de tipo mecanicista e funcionalista ou em explicações finalistas, isto é, apoiada
Comecemos por uma noção que consideramos estar na base do tratamento no recurso a princípios externos encarregados de dar conta tanto da gênese como das
merleaupontyano da instituição: a de estrutura, tomada inicialmente da Gestaltheorie e, a transformações de uma realidade qualquer. De fato, porque possui um princípio interno
seguir, da lingüística saussuriana e da antropologia social de Lévi-Strauss. de auto-regulação, a gênese da estrutura encontra-se nela mesma como processo global
e imanente de auto-distribuição dos constituintes; por outro lado, uma estrutura é
“Para o filósofo, presente fora de nós nos sistemas naturais e
pregnante, grávida ou fecunda, ou seja, possui um princípio interno de transformação
sociais, e em nós como função simbólica, a estrutura indica um
caminho fora da correlação sujeito-objeto que domina a filosofia ou, como escreve Merleau-Ponty, ela é “fecundidade, poder de eclosão, produtividade”,
de Descartes a Hegel. (...) O filósofo ao qual ela interessa não um acontecimento, trazendo nela mesma o princípio de seu devir. Ela é, lemos no ensaio
é aquele que quer explicar ou construir o mundo, mas aquele sobre Mauss e Lévi-Strauss “a inteligibilidade em estado nascente” porque é “junção de
que busca aprofundar nossa inserção no ser.” (Merleau-Ponty 8,
uma idéia e de uma existência indiscerníveis, arranjo contingente por cujo intermédio os
p.165)
materiais se põem a ter sentido para nós”.
A pregnância ou fecundidade da estrutura permite, por exemplo, apreender o
Apreendida internamente, uma estrutura “é um princípio de distribuição, o
envolvimento recíproco da sincronia e da diacronia na estrutura lingüística e no ato de
pivô de um sistema de equivalências, é o Etwas de que os fenômenos parcelares são
falar, pois a sincronia contém, no presente, o passado da língua e anuncia seu futuro, graças
a manifestação” (Merleau-Ponty 11, p.193)1. Por isso mesmo, não é uma essência
à retomada incessante dos agentes lingüísticos. Como sistema simbólico, a língua é um
nem uma idéia, não é essência dada a um espírito nem constituída por ele, não é
campo aberto ao ausente ou ao possível, nela cada significação aponta para um horizonte
a-espacial nem a-temporal, assim como não é uma coisa. É uma dimensão do ser.
que ultrapassa o significado instituído e, pela ação instituinte dos sujeitos falantes, um
Nem coisa nem idéia, uma estrutura é um sistema de puras relações e diferenças
novo sentido se engendra. Em outras palavras, a estrutura é uma totalidade aberta, uma

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matriz simbólica que nos permite interrogar a história de maneira nova.


“Instituição significa, pois, estabelecimento em uma experiência
“Como chamar, senão de história, esse meio no qual uma forma de dimensões (no sentido geral, cartesiano: sistema de referências)
sobrecarregada de contingência abre subitamente um ciclo de porvir com relação às quais toda uma série de experiências terão sentido,
e o comanda com a autoridade do instituído? Não, sem dúvida, farão uma seqüência, uma história” (Merleau-Ponty 4, p.38).
uma história que quisesse compor todo o campo humano com
acontecimentos situados e datados num tempo serial e de decisões Na apresentação do curso, Merleau-Ponty afirma que a noção de instituição é
instantâneas, mas uma história que sabe que o mito, o tempo lendário
buscada por ele “como um remédio para as dificuldades da filosofia da consciência”. De
assombram, sob outras formas, os empreendimentos humanos, que
fato, escreve ele,
investiga além e aquém dos acontecimentos parcelares, e que se
chama justamente história estrutural.” (Merleau-Ponty 8, p.164-
165) “Diante da consciência, só há objetos constituídos por ela. Mas se
admitirmos que alguns dentre eles nunca o são completamente, eles
são a cada instante o reflexo exato dos atos e poderes da consciência,
Acreditamos que a dimensão simbólica e temporal da estrutura, sua pregnância
nada há neles que possa relançá-la rumo a outras perspectivas, não
ou produtividade auto-regulada e aberta, é o que permite acercar-nos da inteligibilidade
há, da consciência ao objeto, troca, intercâmbio, movimento. Se
da noção merlaupontyana de instituição, da qual o filósofo enfatiza, exatamente como o ela considera seu próprio passado, tudo o que ela sabe é que houve,
faz com a noção de estrutura, a produtividade e a fecundidade, referindo-se a ela como lá longe, esse outro que se chama misteriosamente eu, mas que não
“germinação de uma vida e de uma obra em torno de dados ‘contingentes’. Vínculo do tem comigo nada em comum senão uma ipseidade absolutamente
universal. É por uma série contínua de explosões que meu passado
acontecimento e da essência” (Merleau-Ponty 4, p.89).
cede lugar ao meu presente. Enfim, se a consciência considera os
outros, sua existência própria não é para ela senão sua pura negação,
*** ela não sabe que eles a vêem, ela sabe apenas que é vista. Os
diversos tempos e as diversas temporalidades são incompossíveis
Na ementa do curso de 1954-1955, no Collège de France, a noção de instituição e formam apenas um sistema de exclusão recíproca” (Merleau-
é assim apresentada: Ponty 4, p.123).

“Entende-se aqui por instituição aqueles acontecimentos de uma Que sucederia, porém, se o sujeito, em vez de constituinte, fosse instituinte?
experiência que a dotam de dimensões duráveis, com relação Antes de mais nada, compreenderíamos que ele não é instantâneo, mas que o que começou
às quais toda uma série de outras experiências terão sentido,
não é algo longínquo situado no passado nem é atual como uma lembrança assumida, mas
formarão uma seqüência pensável ou uma história. Ou ainda os
é o campo de seu devir. O sujeito instituinte-instituído é “aquele que põe em marcha
acontecimentos que depositam um sentido em mim, não a título
de sobrevivência e de resíduo, mas como apelo a uma seqüência, uma atividade, um acontecimento (...) que abre um porvir. O sujeito é aquilo a que as
exigência de um porvir.” (Merleau-Ponty 4, p.89) ordens de acontecimentos podem advir”. Compreenderíamos também que outrem não é
simplesmente o negativo do eu, que eu e o outro coexistem porque cada um pode retomar
E, numa das aulas, diz Merleau-Ponty: o instituído e recriá-lo.

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Exatamente como no caso da noção de estrutura, que Merleau-Ponty emprega Donde a insistência de Merleau-Ponty de que o modo de ser da instituição não é o de um
para pensar a natureza física, o organismo vivente e a ordem simbólica da cultura, e da fazer eficaz ou eficiente fundado numa relação entre meios e fins e numa escolha, mas é
noção de campo transcendental, que emprega para pensar a percepção como corporeidade, uma operação simbólica ou um ato, que pode ser designado como nascimento, entendido
intersubjetividade, temporalidade e liberdade, também a noção de instituição é empregada como “instituição de um provir”. A instituição, como nascimento, é ato iniciante ou
por ele para pensar a natureza, a animalidade, a vida pessoal privada, as obras de arte e gênese, cuja peculiaridade é ser uma gênese continuada cuja seqüência não está pré-
de pensamento e a sociabilidade ou a vida pública e, sobretudo, como história, ou como determinada. É essa indeterminação que Merleau-Ponty sublinha ao dizer:
“acontecimentos matrizes que abrem um campo histórico que tem unidade”. Diz ele:
“A instituição no sentido forte é aquela matriz simbólica que
“A instituição é o que torna possível uma série de acontecimentos, faz com que haja abertura de um campo, de um porvir, segundo
uma história: acontencimentalidade de princípio” (Merleau-Ponty dimensões, donde [ser] possibilidade de uma aventura comum e de
4, p.44). uma história como consciência.” (Merleau-Ponty 4, p.45)

Em outras palavras, a instituição abrange o campo da natureza e o da cultura, o ***


que significa, em primeiro lugar, que a oposição entre exterioridade e interioridade
ou entre o em-si e o para-si é desfeita – “com a noção de instituição como exterior- Ao concluir “Le Philosophe et son Ombre”, Merleau-Ponty dizia que as

interior, propomos justamente como sair da solidão filosófica” – e, ao mesmo tempo, descobertas tardias de Husserl e a tranqüilidade com que as expunha, demolindo muitas de

como conseqüência, ela modifica a relação com o mundo, que deixa de se apresentar suas antigas certezas, não deviam surpreender nem escandalizar os leitores, pois estavam

sob o modo da presença imediata para surgir como abertura, perspectiva, configuração; anunciadas como problemas desde suas primeiras obras. Dá-se com a obra de Husserl o

em segundo lugar, significa que com essa noção emerge, finalmente, a inteligibilidade mesmo que se dá na gênese do espaço pictórico:

da articulação entre contingência e necessidade, entre criação do sentido e devir do


“ainda quando é possível datar a emergência de um princípio para
sentido. Agora, natureza é pensada como historicidade imanente e a cultura, como
si, este já se encontrava anteriormente presente na cultura a título de
diferença temporal e não como distinção empírica dos tempos nem como história inquietação ou de antecipação e a tomada de consciência que o põe
universal. Em outras palavras, o tempo, diz Merleau-Ponty, é o modelo da instituição: como significação explícita apenas completa sua longa incubação
é passividade-atividade, continuação porque houve um começo, início porque é ato, num sentido operante. A cultura nunca nos dá significações
total porque parcial. absolutamente transparentes, a gênese do sentido nunca está
acabada. O que chamamos nossa verdade só é contemplado por
A instituição não é coisa nem idéia, não é um conceito, é uma ação, um
nós num contexto de símbolos que datam nosso saber”. (Merleau-
acontecimento, uma práxis – sob esta perspectiva, ela oferece uma sentido alargado para Ponty 5, p.52)
aquilo que a Phénoménologie de la perception designava como “eu posso” e La structure
du comportement designava como comportamento, ao defini-lo não como movimento, Esta passagem elucida o sentido da noção merleaupontyana de instituição, que
mas como trajeto e ato, não como repetição, mas como relação com o espaço-tempo aqui examinaremos brevemente a propósito das obras de arte e de pensamento. Lemos
valorados, em suma, como capacidade para o novo, o genérico, o particular e o universal. numa passagem das notas de seu curso:

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o artista ou sem o pensador não poderia existir, mas é também o que eles deixam como
“Para o artista, a obra é sempre um ensaio. E para a história, a ainda não realizado, algo excessivo contido no interior de suas obras e experimentado
pintura inteira é um começo. Como exprimir filosoficamente esse
como falta pelos que virão depois deles e que retomarão o feito através do não-feito, do
sentido? A noção de instituição é a única capaz de fazê-lo, como
por-fazer solicitado pela própria obra.
abertura de um campo em cujo interior se pode descrever fases; não
apenas um pulular de obras e achados, mas tentativas sistemáticas, O advento é aquilo que, do interior da obra, clama por uma posteridade, pede
um campo que, como o campo visual, não é o todo, não tem limites para ser acolhido, exige uma retomada porque o que foi deixado como herança torna-se
precisos e abre para outros campos” (Merleau-Ponty 4, p.79). doação, o dom para ir além dela. Há advento quando há obra e há obra quando o que
foi feito, dito ou pensado dá a fazer, dá a dizer e dá a pensar. O advento é “promessa de
Cada obra de arte ou de pensamento retoma uma tradição: a da percepção, as acontecimentos”, pois a obra “abre um campo, às vezes, institui um mundo, e, em todo
obras dos outros, as obras anteriores do mesmo artista ou pensador, mas, simultaneamente, caso, desenha um porvir” (Merleau-Ponty 12, p.104). A regra, e única regra, de ação para
institui uma tradição, isto é, abre o tempo e a história, funda novamente seu campo de o artista, o escritor, o filósofo e o político não é que sua ação seja eficaz, mas que seja
trabalho e, incidindo sobre as questões que o presente lhe coloca, resgata o passado ao fecunda, matriz e matricial. Instituição.
criar o porvir. Uma obra é instituição porque deforma, descentra, desequilibra, recentra
e reequilibra o que lhe é dado no ponto de partida – o percebido e outras obras de arte, a ***
linguagem instituída e as obras literárias, científicas e filosóficas. Essas operações do artista
ou do pensador são “afastamento com relação a uma norma de sentido” instituída, são a Pensamos ter, agora, uma nova perspectiva para pensar a relação de Merleau-
diferença. Esse sentido por afastamento e diferença, por deformação e descentramento, Ponty com o Grande Racionalismo.
“é o próprio da instituição” (Merleau-Ponty 4, p.41). Na última palestra proferida na rádio francesa, em 1948, cujo tema era justamente
O ponto de partida do artista, do escritor, do pensador “é um vazio”, uma a diferença entre os clássicos e os modernos (ou contemporâneos), Merleau-Ponty começa
ausência que somente o fazer da obra pode preencher; porém, porque toda obra é abertura enfatizando a distinção: a limpidez das idéias claras e distintas, a transparência da
de um campo ilimitado ou significação aberta, só pode ser experimentada como falta – consciência a si mesma e a certeza de um conhecimento demonstrativo e integral
pedindo outras obras – e como excesso – suscitando outras obras –, e por isso mesmo da natureza e do homem, que caracterizaram a época clássica, são substituídos, na
toda obra pede um porvir, exigindo o futuro não como telos, mas como restituição modernidade, pela ambigüidade e incompletude do conhecimento e da ação: não
instituinte do passado. Eis por que a história das obras de arte e de pensamento não somente as obras são inacabadas, mas o próprio mundo surge como “se fosse uma
é uma história empírica de acontecimentos, nem uma história racional-espiritual de obra sem conclusão” sem que se possa saber se ele terá alguma. Por isso mesmo “seria
desenvolvimento ou progresso linear: é uma história de adventos. Se o tempo for tomado irrisório querer reagir a isso por uma restauração da razão, no sentido em que se fala
como sucessão empírica e escoamento de instantes, ou se for tomado como forma a priori de restauração a respeito do regime de 1815” (Merleau-Ponty 2, p.73). Não há como,
da subjetividade transcendental, que organiza a sucessão num sistema de retenções e ingenuamente, supor que seria possível “retomar pura e simplesmente o racionalismo
protensões, não haverá senão a série de acontecimentos. O acontecimento fecha-se em de nossos pais” (Merleau-Ponty 2, p.73). Cumpre analisar as ambigüidades de nosso
sua diferença empírica ou na diferença dos tempos, esgota-se ao acontecer. O advento, tempo e tentar traçar um caminho que “possa ser mantido com consciência dentro da
porém, é o excesso da obra sobre as intenções significadoras do artista; é aquilo que sem verdade” (Idem ibidem).

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No entanto, a experiência do presente suscita uma indagação: a figura límpida, do pensamento não pode dar conta da literatura (tema trabalhado nos textos da Prose du
completa, acabada e perfeita dos clássicos não seria um efeito da distância temporal, uma monde e nos ensaios de Signes sobre a linguagem).
ilusão retrospectiva? O segundo aspecto que aqui nos interessa é a afirmação de Merleau-Ponty de
que pretende seguir uma via diversa daquela seguida por Guéroult, isto é, embora
“Temos razões para perguntar a nós mesmos se a imagem que seja preciso reconhecer o papel inegável da ordem das razões e da verdade definida
muitas vezes o mundo clássico nos passa é algo mais do que
pela certeza imanente do pensamento, é preciso ainda e principalmente sublinhar tudo
uma lenda, se ele também não conheceu a incompletude e a
ambigüidade em que vivemos, se não se contentou com recusar- quanto Descartes não pôde submeter a essa ordem e a essa verdade. No entanto, não
lhes uma existência oficial e se, conseqüentemente, longe de ser se trata, como julga Guéroult, de supor que são lacunas, pois uma lacuna pode sempre
um caso de decadência, a incerteza de nossa cultura não seria, ser preenchida, e sim que são falta e excesso produzidos pela própria obra cartesiana,
antes, a consciência mais aguda e mais franca do que sempre foi aquilo que ela não pode pensar, mas que sem ela não pode ser pensado por nós. Trata-se
verdade, portanto, é aquisição e não de declínio.” (Merleau-Ponty
do impensado de Descartes e não em Descartes, aquilo que lhe permite, a despeito de si
2, p.74)
mesmo, manter aberta a filosofia.
Não se trata, portanto, de acreditar na imagem perfeita e acabada do cartesianismo
“Do que sempre foi verdade”. Eis o ponto crucial.
como ordem das razões nem, muito menos, apontar defeitos no pensamento cartesiano
De fato, no último curso que ministrou no Collège de France, significativa e
e sim voltar-se para a instituição cartesiana, abertura de um campo de pensamento que
sugestivamente denominado “A ontologia cartesiana e a ontologia hoje”, Merleau-Ponty
não poderia existir sem a obra de Descartes porque, ao pensar, ela dá a pensar, é feita de
percorre a obra de Descartes, desde os escritos pré-metódicos (como a Olímpia) e os
“dimensões duráveis, com relação às quais toda uma série de outras experiências terão
primeiros elementos metódicos, isto é, as Regras para a direção do espírito, passando
sentido, formarão uma seqüência pensável ou uma história”. Uma história da filosofia fiel
pela correspondência, pela Dióptrica até chegar às Meditações. Desse curso, queremos
ao instituinte só pode ser
aqui mencionar apenas dois aspectos: o primeiro é afirmação de Merleau-Ponty de que
a filosofia contemporânea (particularmente a francesa), implicitamente contida nas obras
“uma história da filosofia que não seja ‘achatamento’ da história
e ações da não-filosofia (as artes, a literatura, a política, as ciências), explicitamente não no interior da ‘minha’ filosofia e que não seja idolatria: retomada
sabe o que diz e que uma boa maneira de buscar seu sentido é compreender em que ela não e repetição de Descartes, único meio de restituir-lhe sua verdade,
é cartesiana, ou seja, “a finalidade deste curso é buscar formular filosoficamente nossa pensando-a de novo, quer dizer, a partir de nós.” (Merleau-Ponty
ontologia que permanece implícita e contrastá-la com a ontologia cartesiana” (Merleau- 9, p.241)

Ponty 9, p.166). Essa finalidade explica os temas cartesianos examinados para contrastá-
los com o pensamento contemporâneo tendo como referência a relação da filosofia a
Referências bibliográficas:
não-filosofia – a Dióptrica como teoria da visão que não pode dar conta da pintura (tema
trabalhado em L’oeil et l’esprit); a correspondência com Mesland sobre a possibilidade 1. MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception. Paris, Gallimard, 1945.
de uma língua universal algorítmica e inteiramente unívoca porque completamente 2. _______________, Conversas,1948. São Paulo, Martins Fontes, 2004.
3. _______________, “Titres et travaux. Projet d’enseignement”, Parcours deux, 1951.
determinada e que, por visar à expressão completa e tomar a linguagem como instrumento
4. ________________, L’instituion, in L’intituion. La passivité. Notes de cours au Collège

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Cadernos Espinosanos XX

de France (1954-1955). Paris, Berlin, 2003.


5. _______________, “Le langage indirect et les voix du silence”, Signes. Paris,
A presença do filósofo
Gallimard, 1960.
6. _______________, “Le philosophe et son ombre”, in Éloge de la philosophie et autres
essais. Paris, Gallimard, 1960. Renaud Barbaras*
7. _______________, “Partout et nulle part”, in: Éloge de la Philosophie et autres essais. Paris: Gallimard, 1960.
Resumo: O artigo homenageia a obra de Bento Prado Jr, enfatizando a originalidade e o aspecto
8 _______________, “De Mauss à Claude Lévi-Strauss”, in Éloge de la philosophie et
crítico de sua postura filosófica. Neste sentido, ele analisa a força do conceito de “Presença”
autres essais. Paris, Gallimard, 1960.
– eixo central da tese de doutoramento do autor, publicada sob o título Presença e campo
9.. _______________, “L’ontologie cartésienne et l’ontologie aujourd’hui – 1960-1961”,
transcendental –, capaz de desenhar de maneira inédita um ponto de convergência entre as
Notes de cours. 1959-1961. Paris, Gallimard, 1996. filosofias de Bergson, Sartre e Merleau-Ponty.
10. _______________, La structure du comportement. Paris, PUF, 1960. Palavras-chave: Bento Prado Jr, Presença, Bergson, Merleau-Ponty, Sartre, fenomenologia
11. _______________, “Interrogation philosophique et intuition”, Le visible et l’inivisible.
Paris, Gallimard, 1964.
O meu encontro com o Bento foi um evento decisivo na minha vida, não apenas
12. _______________, L’oeil et l’esprit. Paris, Gallimard, 1965.
filosófica, mas também pessoal, se é que faz sentido estabelecer uma diferença entre as
13. _______________, La Nature. Notes. Cours du Collège de France. Paris: Seuil, 1994.
duas. Como em qualquer encontro autêntico, assim que li e, depois, conheci o Bento, tive
imediatamente um sentimento estranho de familiaridade, como se tudo que eu valorizava,
Merleau-Ponty: from the constitution to the institution sem saber muito bem até que ponto eu estava certo, tivesse se encarnado numa figura
viva e radiante, como se tudo que eu vislumbrava, tanto no âmbito da filosofia quanto
Abstract: This essay examines the merleaupontian notion of institution as the discovery of a
path to overcome the tradition of philosophies of consciousness, specially the apories left by the no da literatura, de repente se expressasse com uma força e uma clareza sem par. Eu
hursselian traditional phenomenology, what allows the transition from a philosophy of constitution poderia caracterizar o lugar do nosso encontro através de uma convicção, talvez um pouco
to a philosophy of genesis.
desconcertante, que compartilhávamos: enquanto filósofos, somos amadores.
Keywords: institution, constitution, philosophy of genesis, phenomenology, philosophy of
consciousness. Primeiro, o amador é quem ama. O Bento era, com certeza, um amador
nesse sentido: ele se relacionava com as pessoas, quaisquer que fossem, com uma
NOTAS generosidade excepcional. É essa mesma generosidade que caracterizava sua relação
com os textos filosóficos, nos quais ele sempre percebia a intuição positiva, a intuição
1. Em 1951, Merleau-Ponty, quando da sua candidatura ao Collège de France,
a ser explorada – o que lhe dava uma grande perspicácia e, por conseguinte, uma
caracterizava assim seu trabalho em curso: “O deciframento de estruturas, somente o qual
permite encontrar alguma racionalidade na história de uma língua e na história em geral autêntica criatividade filosófica.
sem fazer dela um novo deus, e que permite reconhecer um interior nos fatos humanos Mas, o amador também é quem faz aquilo que ele faz por convicção e prazer e
sem abandoná-los ao arbitrário de construções a priori, é para nós característico de uma nunca por motivos externos, pragmáticos. Enquanto amador, o Bento sabia que a filosofia
filosofia concreta” (Merleau-Ponty 3, p.25).
caracteriza-se por um gesto de ruptura ou de distanciamento em relação ao mundo –
talvez seja isso o sentido mais profundo da redução fenomenológica – e, portanto, ele

* Professor de filosofia contemporânea na universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne.

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Cadernos Espinosanos XX
Renaud Barbaras

também sabia que a filosofia perde necessariamente sua alma quando ela se compromete que o engajamento na filosofia tem um sentido ético, o que significa que ela não pode
com as leis do mundo. Com efeito, hoje em dia e cada vez mais, a nossa relação com se submeter a valores ou critérios alheios a sua própria exigência, e que seu poder de
o mundo é dominada pelo reino da técnica e pela potência esmagadora do capitalismo análise fica a serviço de uma função crítica. O amador em filosofia nunca perde de vista
mundial. A conseqüência disso é que qualquer atividade, inclusive no âmbito intelectual, essa dimensão. Portanto, não é de admirar que o Bento conclua o texto mencionado
encontra-se submetida aos imperativos da tecnicização, da rentabilidade e da visibilidade. acima com a afirmação da “vocação essencialmente ética da filosofia, de que, implicando
Infelizmente, a filosofia não escapa disso: daí a criação, em toda parte, de centros de necessariamente a tecnicidade da análise, ela não pode converter-se em mera atividade
pesquisa com obrigação de obter resultados, medidos em termos de número de publicações técnico-profissional, sem perder sua essência” (Prado Jr. 3, p.263).
e, outra face da mesma moeda, de organismos de avaliação e de controle, totalmente Enfim, o amador em filosofia não se deixa absorver completamente pela
inúteis e deletérios, a não ser para dar aos burocratas a impressão de existir. O amador em filosofia, não fica preso nela, como se fosse o único mundo: ele sempre fica com um pé
filosofia é quem recusa esse movimento de profissionalização da filosofia, não no sentido do lado de fora, isto é, sabe que a filosofia enraíza-se num mundo que é alheio à própria
da competência, mas da submissão às regras de eficiência e de rentabilidade, que são as filosofia. Mas, isso não é um sinal de ignorância ou de falta de envolvimento na filosofia,
leis do mercado. Ora, inevitavelmente, tal concepção do lugar da filosofia e da instituição pelo contrário, é uma forma de lucidez quanto a sua essência. Como Merleau-Ponty,
filosófica se espelha dentro da própria atividade filosófica, sob forma de uma valorização em especial, mostrou, há uma vertente da filosofia contemporânea cuja interrogação se
exagerada da erudição histórica em detrimento do pensamento, da tecnicidade e do jargão focaliza sobre a relação da filosofia com a não-filosofia, que não é uma coisa diferente da
em detrimento de uma escrita clara e accessível a cada qual. É como se se tratasse de filosofia nem uma negação dela mas, antes, uma dimensão dela, dimensão irredutível e
reduzir a atividade filosófica àquilo que nela é visível (a tecnicidade como garantia de obscura de onde a filosofia nasce e que ela tenta esclarecer e formular: trata-se da dimensão
seriedade) e mensurável (o número de referências). É nesse sentido que o Bento gostava pré-objetiva, ante-predicativa que Merleau-Ponty chama de “fé perceptiva”. Ora, cabe a
de citar a observação de Andrés Raggio, lógico argentino, segundo a qual “a tecnicidade, uma filosofia exigente dar conta da sua própria origem no mundo silencioso da percepção;
em filosofia, é inversamente proporcional ao interesse filosófico de um texto”(Prado Jr. cabe à filosofia dar conta dela mesma a partir da sua própria dimensão de não-filosofia.
3, p.12). É também por isso que o Bento (como conta na intervenção na mesa redonda Como Merleau-Ponty escreve: “O fim de uma filosofia é a narrativa de seu começo”
dedicada à tradução francesa de sua tese) compreendeu como um elogio a observação de (Merleau-Ponty 2, p.172). É à luz dessa evidência que, para uma filosofia rigorosa, a não-
Ruy Fausto com respeito ao livro sobre Bergson: “é filosofia geral, não é?” Na verdade, filosofia torna-se um objeto filosófico. Mas, tal necessidade levanta um problema: onde
é uma tautologia: a filosofia deixa de ser filosófica se ela deixa de ser geral, ou seja, de se procurar a não-filosofia, sendo que não se pode voltar ao empirismo do senso comum?
defrontar com problemas “gerais”. Com certeza, o Bento tinha consciência dessa situação Onde achar um testemunho da obscuridade ou da opacidade pré-filosóficas, que não lhes
da filosofia contemporânea e da ameaça que implicava a tecnicização cada vez maior trai a originalidade e a profundidade. Há somente uma resposta: é na arte que o filósofo
da filosofia. No texto intitulado “Bergson, 110 anos depois”, inicialmente publicado na encontra um testemunho já elaborado e, no entanto, ainda não transformado em conceitos,
Folha de São-Paulo (1999), ele justifica a decisão de publicar em português o livro sobre da camada originária que, ao mesmo tempo fundamenta e envolve a filosofia. Assim, o
Bergson, que ele chama de “pecado de juventude”, por um sentimento de “mal-estar amador em filosofia não respeita as fronteiras ou, antes, sabe que não tem fronteiras nítidas
efetivamente vivido, a sensação fortemente desagradável de uma banalização crescente e intransponíveis. Por exemplo, não faz muito sentido estabelecer uma fronteira rígida
da filosofia, de uma escolarização ou tecnificação asfixiantes do pensamento, de que o entre poesia e filosofia, a não ser que a filosofia seja identificada com uma epistemologia
desinteresse por Bergson seria um dos sintomas” (Prado Jr. 3, p.257). Equivale a dizer e a poesia com um discurso ornamental. Filosofia e poesia remetem à mesma dimensão

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silenciosa da fé perceptiva e não é óbvio que a filosofia tenha um privilégio qualquer. Em no adversário, grosso, de dentro, /impondo-lhe o que ele deseja,/mandando nele,
todo caso, é assim que entendo a paixão pela poesia que o Bento manifestava e, aliás, apodrecendo-o./Ritmo morno, de andar na areia, /de água doente de alagados,/
espero que os poemas que ele próprio escreveu sejam publicados em breve. O Bento entorpecendo e então atando/o mais irrequieto adversário” (Museu de Tudo). Assim,
conta na Folha de São Paulo, por ocasião da comemoração do centenário do nascimento foi pelo Bento que descobri a obra de João Cabral, da qual ele também gostava muito.
de Carlos Drummond de Andrade (outubro de 2002), “a experiência de um verdadeiro Foi um choque enorme para mim. Desde aquele momento, nunca parei de ler João
alumbramento com A máquina do mundo, numa manhã clara e inesquecível, caminhando Cabral e estou fazendo uma tradução francesa da obra dele. Seja como for, a poesia
pela alameda Santos em São Paulo. Na ocasião, perplexo, eu disse a mim mesmo : ‘Então ficava no centro da reflexão filosófica do Bento e ele me disse várias vezes que ele
é possível dizer essas coisas na língua que eu falo e habito?’”1. Assim, a meu ver, estava preparando um grande livro sobre poesia e pensamento.
esse apego à literatura e à poesia em particular não se explica apenas pela recusa de No entanto, foi pelo livro sobre Bergson, Presença e campo transcendental, que
toda forma de tecnicidade inútil: ele revela uma certa visão do papel da filosofia como encontrei primeiro o Bento. A leitura de Merleau-Ponty, sobre quem fiz minha tese, me
desvelamento da sua própria dimensão de não-filosofia. A paixão do Bento pela poesia conduziu a ler Bergson. Naquela época, eu tinha a impressão de que havia um parentesco
era profundamente ligada ao seu modo de engajamento na filosofia: tratava-se, para profundo entre os dois pensadores – o que não era espantoso já que Merleau-Ponty
ele, de fazer filosofia ao limite, ou seja, de se situar no lugar onde ela se enraíza ou na conhecia Bergson muito bem e até tinha escrito sobre ele – e, mais do que isso, uma
fonte de onde ela nasce, naquela fronteira onde silêncio e palavra passam um no outro possibilidade de interpretar a obra de Bergson, particularmente Matéria e Memória, de
e trocam os seus papeis.. um ponto de vista fenomenológico. Portanto, a leitura do livro do Bento foi um choque
Em Um departamento francês de ultramar, Paulo Arantes explica brilhante e muito grande e me lembro que li o livro de cabo a rabo com muito entusiasmo. Tomei
detalhadamente quais eram as relações entre filosofia e literatura na USP daquela época imediatamente a decisão de traduzi-lo e cabe reconhecer que o livro se tornou rapidamente
e, particularmente, aos olhos do Bento; e, como se sabe, ele inicia o capítulo com essas um texto de referência nos estudos bergsonianos e, mais do que isso, no campo da história
palavras: “Em meados dos anos 60, Bento Prado Jr era uma ilha de literatura cercada de da filosofia francesa do século vinte. Na verdade, é muito mais do que um livro sobre
filosofia por todos os lados”. Paulo Arantes insiste sobre a necessidade de se livrar, pela Bergson: um livro de filosofia geral, ou seja, um livro de filosofia e, justamente, é por ser
filosofia, de uma forma de literatura em torno da qual o essencial da vida do espírito um livro de filosofia, com uma abordagem muito forte e original, que ele pode ser um
girava naquela época. Mas, também tenho o sentimento de que, de certa forma, é na grande livro sobre Bergson.
própria literatura e, particularmente, na poesia, que se encontra a filosofia luso-brasileira. A diretriz de todo o livro é a idéia de que a filosofia de Bergson é uma ontologia
Desse ponto de vista, a obra de Fernando Pessoa, e particularmente O guardador de da Presença (“O movimento da reflexão bergsoniana é governado pelo ideal do retorno
rebanhos de Alberto Caeiro, que é um grande tratado de metafísica e de fenomenologia, à Presença”2). Mas, Presença escreve-se com maiúsculas: não se trata da presença
teve um papel fundador. Acho que o Bento encarava a obra de Drummond da mesma enquanto aparição de um objeto, nem da presença como aptidão do sujeito a abrir para
maneira, e é isso que ele quer dizer no texto da Folha que citei acima. uma exterioridade (presença a alguma coisa), mas do lugar onde se torna presente algo
Um dia, o Bento, que também gostava de futebol, enviou-me um poema de para alguém. Nesse sentido, o intuito do Bento é o de uma reconciliação entre consciência
um poeta que eu não conhecia. O título era Ademir da Guia (um jogador que também e presença: mostrar que tem um lugar prévio como condição do encontro entre sujeito e
não conhecia): “Ademir impõe com seu jogo/o ritmo do chumbo (e o peso)/da objeto equivale a estabelecer que a consciência é originariamente ligada à presença, ou
lesma, da câmara lenta/ do homem dentro do pesadelo./Ritmo líquido se infiltrando/ seja que sua proximidade ou unidade prevalecem sobre sua diferença. A Presença é a

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condição de possibilidade ao mesmo tempo da cisão e da relação entre sujeito e objeto e, dúvida, pela fenomenologia. A conclusão que Bergson tira da negação do Nada é o fato de
nesse sentido, ela situa-se num nível ontológico mais profundo do que eles. Portanto, a que o Ser não precisa mais ser caracterizado pela estabilidade ou a imobilidade próprias
interrogação diz respeito ao sentido de ser dessa Presença, desde que ela não possa mais à essência lógica: enquanto ele não sai do Nada, o Ser pode durar. Mas, como Gérard
ser concebida como substancial. Lebrun sublinha em La patience du concept: ”Bergson reconhece sem dúvida que a
O Bento enfatiza o problema da presença na medida em que ele percebe a verdadeira mobilidade, a duração, é diferença consigo, mas é para fazê-la aceder à
importância decisiva da crítica bergsoniana à idéia do Nada, que é ao mesmo tempo uma dignidade substancial [..]. O bergsonismo é, portanto, menos uma crítica à metafísica
crítica à história da metafísica. Essa é regida pelo princípio de razão suficiente, isto é, ela do que um deslocamento da sua tópica : o Ser só mudou de conteúdo” (Lebrun 1, p.240).
aborda o problema do Ser através da seguinte pergunta “porque existe algo e não nada”? Assim, em Bergson, a duração permanece substancial e até, o próprio Bergson diz que
Assim, o Ser surge sobre o fundo de um Nada que o ameaça. Daí a determinação do Ser, ela é a única substância: nesse sentido, ele fica no âmbito da metafísica, substituindo
característica da metafísica, como aquilo que não começou, como uma essência, cuja apenas a essência pela duração como determinação dessa substância. Bergson não
plenitude de determinação lhe permite resistir à ameaça do Nada. Em outras palavras, percebe que, não devendo mais resistir ao Nada, o Ser não precisa mais da plenitude
se o Ser não fosse plenamente aquilo que ele é, se ele encerrasse a menor fraqueza, ele que o caracterizava quando surgia do Nada e, por conseguinte, pode comportar uma
seria imediatamente reabsorvido pelo Nada. É por isso que, tradicionalmente, o Ser é dimensão de negatividade.
identificado com o Ser lógico, enquanto mera identidade a ele mesmo, plena determinação. O Bento não cai nessa armadilha metafísica; ele compreende que a crítica ao Nada
É importante reparar aqui que essa caracterização do Ser é profundamente ligada ao metafísico, como negação do Ser, possibilita uma reconciliação entre o Ser e a negatividade,
pressuposto de uma exterioridade radical entre a reflexão e o Ser, entre o sujeito e seu objeto. enquanto dimensão interna dele. É justamente essa reconciliação que o conceito de
Para poder delinear o Ser sobre um fundo de Nada, é preciso tomar uma distância infinita Presença designa. Primeiro, uma vez que a posição do Nada é ligada a exterioridade do
em relação a ele, recuar no fundo do Nada, como diz Merleau-Ponty, isto é sobrevoá-lo. sujeito da reflexão em relação ao Ser, a crítica à idéia de Nada desemboca na descoberta da
Em suma, há uma cumplicidade entre a suposição de que a consciência pode ser exterior falta de distância entre o sujeito e o Ser. Na realidade, não é possível adotar uma posição
ao próprio Absoluto e a determinação desse Absoluto como uma realidade lógica, ou seja, de sobrevôo; um lugar fora do Ser é impensável e, portanto, pertencemos ao Ser, somos
transparente e estável. Ora, como se sabe, Bergson critica a idéia de Nada de uma maneira envolvidos por ele. Aqui, há uma convergência óbvia com Merleau-Ponty, cuja ontologia
radical. Na realidade, o Ser é caracterizado pela plenitude, não pode haver furos no tecido é uma intra-ontologia: isto significa que o Ser envolve necessariamente o sujeito ao qual
da realidade, de modo que o Nada só tem uma existência psicológica. Como o Bento ele aparece, de modo que não há nenhuma alternativa entre o envolvimento (ontológico)
resume, a idéia de nada “supõe, de um lado, uma subjetividade que não é puramente do sujeito pelo Ser e o envolvimento (perceptivo) do Ser pelo sujeito. Assim, o filósofo
teórica, já que espera, prefere e valoriza [...], e, de outro lado, uma objetividade plena e fica numa relação de proximidade ao Ser e é apenas em virtude dessa intimidade que ele
positiva em fluxo; e, nesta objetividade, a continuidade sem falhas nem hiatos da duração. pode descrever a feição do mundo. Como diz muito bem o Bento: “Recusar a filosofia do
O Nada surge, portanto, da contraposição entre o dado e o desejado, entre o ser e o valor negativo, recusar a pensée de survol, dizer que a filosofia deve seguir as ‘ondulações do
que é instaurado pela práxis: ele é a associação entre ‘esse sentimento de preferência e real’, são uma e a mesma coisa. Todas essas teses significam que a consciência filosófica
essa idéia de substituição’” (Prado Jr. 4, p.55). Essa crítica da idéia do Nada desemboca só surge no interior de um campo que a precede e não pode ser isolada de suas raízes pré-
necessariamente numa contestação da metafísica que decorre dessa idéia. filosóficas. É afirmar que o enriquecimento do saber só é atingindo quando se ausculta
É nesse ponto que aparece a originalidade da leitura do Bento, alimentada, sem esse campo prévio”3. Assim, a crítica ao Nada permite desvendar um campo prévio, que é

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a tradução da impossibilidade do sobrevôo, campo que envolve tudo, inclusive os sujeitos É essa distância mínima que chamamos de ‘ipseidade da Presença’ ou de Presença (junto
que se relacionam com ele, e que corresponde ao “haver algo” pelo qual Merleau-Ponty a) si” (Prado Jr. 4, p.205). Assim, a Presença não é senão o transcendental encarado
caracterizava o seu ponto de partida. Como já vimos, para a filosofia do Nada, há uma como condição de uma dualidade. Ela é um modo de ser primitivo e indiferenciado,
dualidade e, até, uma distância infinita entre o sujeito e o objeto, já que o sujeito pode indistinção do visível e do invisível, enquanto podem surgir dele justamente um visível e
abarcar o Ser. Pelo contrário, para uma filosofia que recusa o Nada, a dualidade é derivada uma visão; nesse sentido a Presença é a identidade realizada da indiferenciação e da cisão.
de e está subordinada a uma dimensão de unidade mais profunda, a uma intimidade prévia Pelo conceito de Presença, Bento consegui superar a distinção entre transcendental e
entre sujeito e objeto. Nesse sentido, o campo prévio é um campo transcendental: ele é a ontológico: o transcendental não pode ser confundido com o subjetivo já que ele antecede
condição de possibilidade da própria dualidade entre sujeito e objeto; dele deriva a cisão a própria distinção do sujeito e do objeto; ele designa uma ipseidade realizada como
entre eles. É assim que o Bento interpreta o estatuto das imagens do primeiro capítulo condição de qualquer aparição e, portanto, da própria relação entre sujeito e objeto. A
de Matéria e Memória: a totalidade das imagens, a partir da qual Bergson dá conta da presença como presença de algo a alguém remete a uma Presença “em si” como fonte
percepção, é justamente a condição prévia da própria distinção entre sujeito e objeto e, do algo, do alguém e das suas relações. Com o conceito de presença, Bento descobre
nesse sentido, campo transcendental. Como escreve o Bento: “A experiência filosófica um modo de ser irredutível, neutro em relação às distinções entre objetivo e subjetivo,
passa a ter o seu domínio próprio naquele ‘haver algo’ anterior à instauração da cisão positivo e negativo, transcendental e ontológico.
entre sujeito e objeto. A análise do campo das imagens aparecera-nos, de fato, como Eu queria fazer três observações a respeito dessa teoria da Presença. Primeiro,
análise transcendental, isto é, análise das condições de possibilidade do comércio entre cabe sublinhar o quanto essa perspectiva é esclarecedora: ela enseja dar uma unidade
um sujeito e um objeto em geral” (Prado Jr. 4, p.205). muito forte à filosofia bergsoniana. Ela permite articular claramente a dimensão crítica,
Mas essa primeira determinação do campo prévio leva a uma segunda que diz respeito aos falsos problemas gerados pelos conceitos de Nada ou de Possível,
determinação, pela qual o Bento se afasta ainda mais de Bergson. O campo transcendental com a dimensão positiva da filosofia de Bergson. Sobretudo, ela permite articular o ponto
não é apenas um solo comum, mas também e principalmente a condição de uma cisão: de vista de Matéria e Memória, cujo enfoque é a teoria das imagens, e o ponto de vista da
a esse título, ele deve encerrar uma forma de negatividade como germe ou condição Evolução criadora, cujo centro é a teoria do elã vital. As imagens e a vida aparecem como
de possibilidade da própria cisão. Em outras palavras, a cisão encontra-se esboçada no sendo duas dimensões da mesma Presença ou da mesma Ipseidade: poderíamos dizer
campo transcendental. Cabe reparar que essa conclusão, ou seja, o reconhecimento de que o campo das imagens remete à dimensão transcendental, dimensão de neutralidade
uma negatividade interna ao Ser, estava envolvida na crítica ao Nada. Na medida em que da Presença, ao passo que a vida remete à dimensão ontológica da mesma Presença,
o Ser não precisa mais resistir ao Nada, ele pode comportar uma forma de fraqueza ou de dimensão que envolve uma forma de negatividade.
negatividade e, na realidade, ele deve comportá-la como condição da relação entre sujeito Em segundo lugar, esse livro pode ser lido, do começo ao fim, como um diálogo
e objeto. É exatamente essa introdução da negatividade dentro do campo transcendental com a filosofia de Sartre e, mais precisamente, como uma tentativa de dar a essa filosofia,
que leva ao conceito de Presença, construído pelo Bento. Como condição de uma relação e, graças a Bergson, uma coerência que lhe falta, ao estabelecer uma continuidade entre o
portanto, de uma cisão, o campo transcendental deve envolver a possibilidade dessa cisão plano da ontologia e o da metafísica (no sentido sartriano). Como se sabe, Sartre não se
sob forma de um germe de negatividade, de uma distância mínima. Como diz o Bento: limita a oposição entre em-si e para-si: ele tenta dar conta da possibilidade do surgimento
“Se é possível uma relação entre os entes – no modo da consciência do objeto – é porque o do para-si a partir do em-si do ponto de vista de um Ser que envolva essas duas dimensões.
próprio Ser instaura dentro de si mesmo uma distância mínima, que ainda não é oposição. Daí a hipótese de um evento ontológico pelo qual o em-si tentaria fundar-se a si mesmo,

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tornar-se causa sui. É o fracasso, necessário, dessa tentativa que dá origem ao para-si, virtualmente, na Ipseidade da Presença originária. Em outras palavras, a negatividade não
que aparece assim como uma conseqüência desse sacrifício do em-si. Mas, o para-si pode surgir de um Ser caracterizado pela plenitude: ela deve ser esboçada sob forma de
tenta realizar, por sua conta, a auto-fundação que o em-si não consegue realizar. Em ipseidade num Ser que não é mais em-si, mas Presença. Desse ponto de vista, poderíamos
outras palavras, ele visa à realização de um “si” que seria a unidade efetiva do em-si e do dizer que o ponto de partida de Bergson, lido pelo Bento, é o ponto de chegada de Sartre,
para-si: o movimento da consciência explica-se por esse desejo de realizar essa unidade a saber, aquela ipseidade, como unidade do em-si e do para-si, atrás da qual a consciência
absoluta, desejo, necessariamente malogrado, de tornar-se Deus como causa-de-si. É esse corre sem sucesso. Para dar conta da relação entre consciência e mundo, é preciso pôr
movimento que Sartre chama de “circuito da ipseidade”. Daí a distinção entre ontologia a ipseidade no começo, ou seja, no Ser, e não no fim como objeto inacessível do desejo.
e metafísica: “A ontologia limitar-se-á, portanto, a declarar que tudo se passa como se Assim, aquilo que, em Sartre, era da alçada da metafísica, ou seja, de meras hipóteses, em
o em-si, num projeto de fundar-se a si mesmo, se desse a modificação do para-si. É à Bergson pertence à ontologia ou, antes, é a própria distinção entre metafísica e ontologia
metafísica que cabe formar as hipóteses que permitirão conceber esse processo como que desaparece. É o que o Bento percebe com muita clareza: “É que da perspectiva
acontecimento absoluto que vem coroar a aventura individual que é a existência do ser” bergsoniana não há lugar para a oposição sartriana entre metafísica e ontologia. [...] para
(Sartre 5, p.715; Prado Jr 4, p.160)4. A obra de Bergson, interpretada pelo Bento, aparece Bergson, mantendo a linguagem de Sartre, a ontologia se prolonga necessariamente
como uma alternativa ao esquema sartriano, uma solução do mesmo problema. Mais na metafísica, e só é possível a compreensão da estrutura da consciência à medida que
precisamente, o conceito de Presença permite dar à filosofia de Sartre, ou seja, ao circuito ela é exigida pelo ser anterior ao surgimento da própria consciência”(PradoJr.4,p.160).
da ipseidade, o fundamento que lhe faltava. É verdade que a teoria da percepção em Matéria Isso me leva diretamente a minha terceira observação, que também será minha
e Memória pode ser interpretada como a descrição do surgimento de uma representação conclusão. Com essa filosofia da Presença (junto a) si ou da Ipseidade da presença,
por uma limitação de uma presença prévia, ou seja do campo das imagens. Como repara o Bento desenha um ponto de convergência entre as filosofias de Bergson, Sartre e
o Bento, “é como se a Presença renunciasse à sua plenitude para dar nascimento à re- Merleau-Ponty. Com efeito, a Presença não é senão o campo fenomenal descrito por
presentação” (Prado Jr. 4, p.160). Assim, “a subjetividade finita do homem é o resultado Merleau-Ponty, campo que envolve o próprio sujeito perceptivo. Mas, ao caracterizar
de uma ‘queda’ ou de uma limitação dessa Presença que é a própria infinidade do Ser”, essa presença prévia como Presença (junto a) si ou Ipseidade, Bento passa para o plano
de modo que, desse ponto de vista, há uma convergência com Sartre: “neste sentido, uma de uma ontologia fenomenológica, propondo uma gênese do para-si a partir de uma
Presença que fosse, ao mesmo tempo, transparência, clara consciência de si, seria uma cisão ou uma negação, cuja possibilidade é antecipada na distância mínima própria à
idéia contraditória, da mesma maneira que o ser-em-si-para-si de Sartre” (Prado Jr. 4, ipseidade. Mas, o mais impressionante é o fato de que o Bento consegue fundamentar
p.161). No entanto, o Bento acrescenta imediatamente que “esse sacrifício da Presença, essa convergência entre os dois fenomenólogos a partir de uma reinterpretação do
que dá origem à representação, não é da mesma ordem daquela ruptura da plenitude do campo das imagens em Bergson e da hipótese de uma continuidade absoluta entre o
em-si que dá nascimento ao para-si na filosofia de Sartre” (Prado Jr. 4, p.160). Por que não campo das imagens e a vida. Na realidade, só um filósofo no sentido mais elevado
é da mesma ordem? Porque, com o conceito de Presença (junto a) si ou de Ipseidade da da palavra podia conseguir delinear esse ponto de convergência e propor uma síntese
Presença, Bergson, ou Bento, consegue dar um fundamento àquele sacrifício da Presença: tão forte dessas duas grandes vertentes da filosofia francesa do século vinte, abrindo
se o Ser pode dar nascimento ao para-si e, portanto, à representação, é porque esse Ser não caminho para uma ontologia da Presença totalmente original.
é mais definido como puro em-si mas como uma Presença caracterizada por uma distância
mínima. Se o sacrifício é possível, é na medida em que ele já é realizado, pelo menos

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Referências Bibliográficas
A “grande política” ou Merleau-Ponty leitor de
1. LEBRUN, G., La patience du concept, Paris, Gallimard, 1972. Maquiavel
2. MERLEAU-PONTY, M. Le visible et l’invisible, trad. Gianotti, Editora Perspectiva,
1992.
Leandro Neves Cardim*
3. PRADO JR., Bento, Erro, ilusão, loucura, São Paulo: Editora 34, 2004.
4. ________________, Presença e campo transcendental, São Paulo: Edusp, 1988.
Resumo: Este artigo pretende abordar a obra de Nicolau Maquiavel principalmente a partir da
5. SARTRE, L’être et le néant. Paris: 1943.
leitura feita por Maurice Merleau-Ponty. Para isto, apresentaremos, em um primeiro momento,
alguns traços gerais da filosofia política merleau-pontiana com o intuito de rastrear a presença de
The philosopher’s presence Maquiavel no espectro de sua obra. Tratar-se-á, também, de indicar as balizas que guiam Merleau-
Ponty na leitura de um texto filosófico. Quanto à discussão da filosofia maquiaveliana, procuraremos,
Abstract: This paper pays tribute to the Bento Prado’s work, stressing the originality and the em seguida, destacar os pontos que fizeram do secretário florentino o primeiro pensador político
critical aspect of his philosophical posture. In this sense, it analyses the strength of the concept moderno, momento em que teremos a oportunidade de explicitar a interpretação de Merleau-Ponty.
of “Presence” – central axis of the author’s doctoral thesis, published with the title Presence and Para concluir, serão colocados em relevo os aspectos que, segundo a expressão de Claude Lefort,
transcendental field – which is able to design in an unheard-of manner a point of convergence fazem com que a política em Maquiavel seja compreendida como “grande política”.
between the philosophies of Bergson, Sartre and Merleau-Ponty. Palavras-chave: Merleau-Ponty, Maquiavel, Lefort, humanismo, política.
Keywords: Bento Prado Jr, Presence, Bergson, Merleau-Ponty, Sarte, phenomenology.

NOTAS
I

1. Agradeço a Cristiano Perius essa referência. Ao abordar os textos dos filósofos clássicos, Merleau-Ponty não retoma as
grandes questões da filosofia tornando-as pequenas, ele não as reduz aproximando-as de
algum cânone ideal e unívoco. Trata-se, para ele, de retomar certas questões que o ajudam
a pensar o mundo em que vivemos. Sua intenção expressa é “fazer no nosso tempo, e
através da nossa experiência, o que os clássicos fizeram no seu” (Merleau-Ponty 12, p.70).
Ora, quando um pensador interroga a obra de um outro pensador e encontra uma resposta
que ainda é fecunda, tal interrogação e resposta são determinadas tanto pelo modo como o
filósofo vive a apreensão do passado e do presente quanto pela maneira com que exprime
suas próprias preocupações. Donde o aprendizado que cada filosofia pode nos oferecer,
com a ressalva de que saibamos extrair, da maneira com que manifestaram e responderam
suas preocupações, uma maneira de manifestarmos e respondermos as nossas próprias
preocupações nascidas de uma leitura do presente (cf. Silva 20).1
Ao ler um autor clássico precisamos reconhecer uma historicidade que os
alimenta por dentro: o sentido que sua obra oferece é aberto e pode ser retomado. Além

* Pós-doutorando em Filosofia pelo Depto. de Filosofia da USP.


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Cadernos Espinosanos XX Leandro Neves Cardim

disto, se “queremos ir mais longe”, é preciso compreender que há obras que: setembro de 1949 em uma comunicação intitulada Maquiavelismo e humanismo no
“Congresso de Humanismo e de Ciência Política” que se passou tanto em Roma quanto
“continuam falando além dos enunciados, das proposições, em Florença. O texto apresentado em Signos foi, primeiramente, publicado na revista Os
intermediários obrigatórios. [...] Assim são os clássicos.
tempos modernos no mesmo ano e já com o título que conhecemos hoje. A “Nota sobre
Reconhecemo-los pelo fato de ninguém os tomar ao pé da letra, e
Maquiavel” foi composta com o pano de fundo da “guerra fria”, a qual aparece como que
de, mesmo assim, os fatos novos nunca estarem totalmente fora de
sua competência, de se tirarem deles novos ecos e de se revelarem em baixo relevo durante todo o texto. O livro Humanismo e terror escrito em 1947 já era
neles novos relevos” (Merleau-Ponty 13, p.16-17). fruto da situação mundial onde Merleau-Ponty procurava, “no dia seguinte da guerra”,
“formular uma atitude de attentisme [espera] marxista” (Merleau-Ponty 14, p.316). Se o
O sentido no qual empregamos a palavra “clássico” não consiste naquele marxismo se mantinha apesar da situação de espera mundial, isto se dava porque,
sentido primeiro e tradicional. Costumamos chamar de clássicos aqueles autores para
quem “a racionalidade em si do mundo é inquestionável”, ou ainda, alguém que pensa a “reconduzido ao essencial, o marxismo não é uma filosofia otimista
criação humana como uma verdade depositada no mundo (cf. Merleau-Ponty 13, p.243 – é somente a idéia de que uma outra história é possível, que não há
destino e que a existência é aberta. É a tentativa resoluta por este
e 242). Para nós, clássico é aquele autor ou obra que, sedimentados sob os escombros do
futuro que ninguém no mundo, nem fora do mundo, sabe se será
mundo cultural, ainda nos faz pensar e que, por isto mesmo, nos dá a pensar. O texto de
ou não será” (Merleau-Ponty 15, p.209).2
Merleau-Ponty sobre Maquiavel é um texto assim. Além de suscitar uma posteridade, ele
ainda nos interpela, pois procurando responder a questões que eram bastante pontuais, as O que está em jogo, aqui, é que a filosofia política que se trata de esboçar
transcende. procura manter juntas tanto a possibilidade da emancipação quanto da barbárie. E como
O campo conceitual no interior do qual se dá o debate é o da filosofia política não temos um solo universal que possa garantir o sucesso da ação, é preciso caminhar
e da filosofia da história. Os conceitos são vários e a situação no interior da qual foi como quem dá passos em brumas. No Prefácio de Sentido e não-sentido escrito em
concebido tanto o texto de Merleau-Ponty quanto o de Maquiavel é muito peculiar. Aliás, 1948 percebemos claramente que foi a situação do mundo em que vivia que o obrigou a
é precisamente isto que faz a inovação da postura destes filósofos, pois ambos ensaiaram “evocar o fundo de não-senso sobre o qual se delineia toda empreitada histórica, e que
respostas novas a questões também novas. Só que para isto, eles não foram buscar a ameaça de impasse” (Merleau-Ponty 15, p.9). Este era o contexto no qual foi escrito
respostas em princípios transcendentes, mas na observação do mundo real. Procuraremos a “Nota sobre Maquiavel”, nesta época a política marxista havia “perdido confiança em
explicitar na leitura de Merleau-Ponty aquilo que fez a novidade de Maquiavel, a saber, sua própria audácia, ela [havia] abandonado seus próprios meios proletários e retomado
aquilo que fez do secretário florentino o primeiro pensador político moderno. Talvez aqueles da história clássica: hierarquia, obediência, desigualdade, diplomacia, polícia”
assim consigamos reativar não só os horizontes da filosofia maquiaveliana, mas também (Merleau-Ponty 15, 9-10). Esperava-se que quando a guerra chegasse ao fim o espírito
os horizontes da filosofia merleau-pontiana. Trata-se, portanto, de haurir da leitura de do marxismo reapareceria e o movimento das massas americanas substituiria a revolução
Maquiavel feita por Merleau-Ponty menos uma reflexão sobre seu itinerário filosófico- russa. Mas não; ele nos diz que esta esperança foi decepcionada, pois no momento mesmo
político, e mais algo que ainda nos ensine a interrogar a realidade do social, da política, em que ele escreve encontram-se
da história e do poder.
O texto de Merleau-Ponty foi composto com o intuito de ser apresentado em “face a face uma América quase unânime na caça aos ‘vermelhos’,

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com as hipocrisias que a crítica marxista desvelou na consciência Neste período, nosso filósofo já terá se desembaraçado da “ilusão” de caráter
liberal, e uma União Soviética que toma por fato realizado a marxista que consistia em fazer “do nascimento e do crescimento do proletariado, a
divisão de um mundo em dois campos, por inevitável a solução
significação total da história” (Merleau-Ponty 14, p.284). Em 1955, não há mais, para
militar, não conta com nenhum despertar da liberdade proletária,
a política, um mapa, mas ela ainda será feita em vista do presente (cf. Merleau-Ponty
mesmo e sobretudo quando ela aventura os proletários nacionais
em missões de sacrifício” (Merleau-Ponty, 15 p.10). 14, p.12), “em contato com os acontecimentos”, que, todavia, devem ser “ocasião de
tomada de consciência” (Merleau-Ponty 14, p.319). E isto, porque “não há mais um
Os cidadãos daqueles dias não tinham certeza se o mundo humano seria possível, núcleo da história”, mas, sim, “mais de uma dimensão, mais de um plano de referência,
todavia, ainda assim o impasse não poderia ser considerado fatal. Era preciso ganhar do mais de uma fonte de sentido” (Merleau-Ponty 14, p.18). As escolhas políticas de
acaso, o que só seria possível se os homens de ação pudessem medir o risco e a tarefa. Merleau-Ponty sempre estarão ligadas à especificidade dos contextos que ele atravessa,
O risco consistia na possibilidade de que a crise se tornasse mais radical, enquanto a donde a retomada de Maquiavel no último parágrafo do Prefácio de Signos escrito em
tarefa a ser enfrentada se expressava na própria consideração daquilo que nosso filósofo 1960. Se for preciso ter “virtù sem nenhuma resignação” (Merleau-Ponty 13, p.47), é
chamava de “nova idéia de razão”, onde “a mais alta idéia de razão é vizinha da desrazão” porque “não há relógio universal”, mas “histórias locais [que] começam, sob os nossos
(Merleau-Ponty 15, p.9). olhos, a adquirir força, e começam a regular-se a si mesmas, e tateando ligam-se uma a
A “Nota sobre Maquiavel” foi concebida no contexto daquilo que se convencionou outra” (Merleau-Ponty 13, p.47).5
chamar da primeira filosofia de Merleau-Ponty, mas em toda a obra do filósofo a presença Merleau-Ponty não revisa, nem sobrevoa ou inspeciona intelectualmente os
da filosofia maquiaveliana pode ser matizada como uma das balizas de seu pensamento textos de Maquiavel, mas também não se trata de identificar-se completamente com
político-histórico. Se de acordo com a primeira etapa da filosofia merleau-pontiana eles. Ele se vale da obra maquiaveliana como algo que lhe ensina a pensar e, fazendo
é preciso agir na incerteza relativa ou em uma espécie de inquietude própria a nossa isto, temos a oportunidade de explorar seu texto como alguém que está trabalhando. Em
condição (cf. Merleau-Ponty 16, p.76), e ainda assim, sob o risco de nos enganarmos – relação aos textos que lê, poderíamos dizer que ele pratica uma espécie de redução em
donde a predominância da “espera” em relação à opressão stalinista –, também em As proveito de uma experiência da leitura que procura apreender o filósofo se fazendo. Ele
aventuras da dialética, Maquiavel será um dos autores que balizará a posição política põe entre parênteses as duas maneiras tradicionais de abordar uma obra: a objetivista e
de Merleau-Ponty, que, agora, não será nem comunista, nem anticomunista. Movido por subjetivista. Por um lado, ele exclui a pura exterioridade existente entre o sujeito e objeto.
novos problemas,3 ele é levado a falar, para abordar as questões da história e da política, Esta postura termina abordando a obra como um conjunto coeso de proposições positivas,
tanto de uma “esquerda não-comunista” quanto de um “novo liberalismo” (Merleau- pois, no limite, se trataria, apenas, de extrair a coerência lógica da argumentação, onde
Ponty 14, p.312).4 Bem entendido, não se trata, de forma alguma, de “uma solução”. No a obra estaria pura e simplesmente nos textos a serem lidos. Por outro lado, ele também
Epílogo escrito entre 1953 e 1954 ele nos diz que exclui a absoluta coincidência onde o intérprete seria o todo poderoso, momento da
eliminação das diferenças intrínsecas, já que haveria atribuição de valor apenas aos
“se estava apenas começando a conhecer o social e, aliás, um infinitos trabalhos da posteridade. Estes dois prejuízos têm um imenso pressuposto
sistema de vidas conscientes nunca admitirá uma solução como as
comum, a saber: a obra é sempre inteiramente determinada, ela é tida por um objeto em
palavras cruzadas ou os problemas elementares de aritmética. Trata-
si tomado por verdadeiro graças à possibilidade de sempre receber apenas um sentido. A
se, antes, da resolução de segurar nas mãos as duas pontas da cadeia,
o problema social e a liberdade” (Merleau-Ponty 14, p.314). filosofia em questão seria passível de uma determinação unívoca, pois não passaria de um

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objeto ou idéia plenamente determinada. Não se trata de ater-se ao resultado daquilo que maquiavelismo, já que enaltece em sua obra uma contribuição para a clareza política”
uma obra se tornou. É verdade que ele não desconsidera nem a posteridade, ou melhor, o (Merleau-Ponty 13, p.252). A clareza em política seria precisamente a descoberta de que
debate instaurado pela obra, nem a própria obra do autor em questão, já que é do interior a política não é aquilo que a tradição diz. A política deve ser entendida como relação com
deste campo que a discussão se dá. Merleau-Ponty mergulha radicalmente no texto de outrem no mundo real, ou melhor, a política deve ser compreendida como algo humano.
Maquiavel, mas também dá voz a leitores que também se debruçaram sobre os textos Vem daí que a condenação da obra de Maquiavel como maquiavélica não passar de um
em questão.6 Como sempre, o essencial de uma obra bem-sucedida está na interrogação prejuízo muito profundo e contra o qual o próprio autor florentino lutou bravamente,
do autor no trabalho, pois é neste momento que algo excede aquilo que foi dito de modo a saber: o preconceito teológico. Para compreender a situação dos acusadores de
explícito. Este próprio excesso é que dá algo a ser pensado, pois uma obra de filosofia Maquiavel o texto de Merleau-Ponty nos mostra que, por um lado, encontramos aqueles
nunca pode ser considerada como um objeto passível de ser dominado inteiramente, seja que costumeiramente chamamos de “belas almas” ingênuas que sacrificam a ação, por
do ponto de vista objetivo, seja do subjetivo. A maneira com que Merleau-Ponty aborda a outro, aqueles que separaram radicalmente a política das preocupações éticas negando
obra maquiaveliana é fecunda porque, quando se trata de ler uma filosofia, é preciso fazê- os valores. O prejuízo em comum destes detratores consiste em que ambos recusam
la falar. E ao fazer isto, sua leitura ou interrogação também nos dá a falar.7 perceber a relação estreita entre política e moral. Para que a política seja efetiva é
preciso que haja relação com o mundo dos acontecimentos. Maquiavel quer “escrever
II algo útil” para quem o ler. Para ele é “mais conveniente procurar a verdade efetiva das
coisas do que o que se imaginou sobre elas” (Maquiavel 9, p.73). Tendo entrevisto as
O Maquiavel que surge das páginas merleau-pontianas é alguém que procura ambigüidades e as possibilidades da ação política, Maquiavel é um pensador da moral
trilhar um caminho no contato com seu próprio tempo, mas é, também, um filósofo que em política que parte da experiência concreta de seu próprio tempo.
sofre uma espécie de degradação ou sedimentação junto a seus leitores. Como encontrar Segundo Maquiavel, é verdade que o príncipe deve ter as qualidades que ele
aquele Maquiavel que não é maquiavélico sob os próprios textos que chegaram até nós? aparenta ter. Merleau-Ponty vê aí uma condição fundamental da política. Qual seja? A
Como compreender que esta interpretação é justificada não pelos textos de Maquiavel, política deve “se desenrolar na aparência” (Merleau-Ponty 13, p.273-74). Todavia, para
mas pela fortuna crítica que suscitou? Como compreender que a filosofia de Maquiavel Maquiavel o príncipe tem que ter domínio de si para poder desenvolver os contrários
não seja nem um humanismo puro, nem um moralismo puro, ambos fora da história e quando isto for preciso. Se ele não puder ter as qualidades necessárias para o bom governo
das relações sociais abarrotadas de ambigüidades e reviravoltas? Dizer que Maquiavel ele deve agir de tal forma que os comandados acreditem que ele as possui. Merleau-Ponty
seja maquiavélico é uma maneira de “desaprovar” sua obra, é “o impiedoso estratagema interpreta este pensamento como um preceito de política que poderia tornar-se a “regra
daqueles que dirigem os seus olhos e os nossos para o céu dos princípios para desviá-los de uma verdadeira moral” (Merleau-Ponty 13, p.274). Mas, atenção: não se trata de negar
do que fazem” (Merleau-Ponty 13, p.252). Se o adjetivo “maquiavélico” e o substantivo que tais qualidades não sejam essenciais para quem exerce o poder; também não se trata
“maquiavelismo” chegaram até nós como sinônimo de uma conduta diabólica, foi de dizer que a representação das qualidades deva ser simples simulacros pervertidos.
porque a filosofia de Maquiavel se contrapôs de maneira radical a tradição que via no O sentido deste pensamento está em que no terreno da política não há lugar para os
poder algo sacro. Merleau-Ponty termina seu ensaio criticando esta postura tradicional valores próprios a uma moral abstrata. Ora, a política depende, sim, de avaliações morais,
e chamando a atenção para aquilo que segundo ele há de interessante na obra do escritor afinal, os homens julgam sempre a partir de valores herdados pela tradição.8 Na verdade,
florentino: “há uma maneira de elogiar Maquiavel que é exatamente o contrário do Maquiavel tem boas razões para subtrair a política ao puro juízo moral. E isto, porque,

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em princípio, não podemos querer ser honestos no meio de gente desonesta, pois mais consideração o nó inextrincável existente entre “a distância e o grau de generalidade em
cedo ou mais tarde terminaríamos por perecer. Argumento que Merleau-Ponty considera que se estabelecem as relações políticas” (Merleau-Ponty 13, p.274). Os atos de poder
fraco, pois ele poderia ser “aplicado à vida privada, onde Maquiavel permanece ‘moral’”
(Merleau-Ponty 13, p.272-73). Há, porém, um segundo argumento que pode levar mais “despertam um eco às vezes desmedido; eles abrem ou fecham
fissuras secretas no bloco do consentimento geral e começa um
longe: “é que, na ação histórica, a bondade é, às vezes, catastrófica e a crueldade menos
processo molecular que pode modificar o curso inteiro das coisas.
cruel que um temperamento indulgente” (Merleau-Ponty 13, p.273). É neste sentido que
Ou ainda: como espelhos dispostos em círculo transformam uma
a bondade deve estar relacionada com a dureza, pois uma bondade que não for capaz pequena chama em um espetáculo feérico, os atos de poder, refletidos
de ser dura envereda no desprezo de outrem, já que seria “uma maneira doce de ignorar na constelação das consciências, se transfiguram, e os reflexos destes
outrem e finalmente de desprezá-lo” (Merleau-Ponty 13, p.275). Embora os homens reflexos criam uma aparência que é o lugar próprio e, em suma, a
verdade da ação histórica” (Merleau-Ponty 13, p.273).
não consigam discernir a verdade daquilo que o príncipe lhes fala, a capacidade de bem
agir na cena pública, ou melhor, a virtù política que Merleau-Ponty quer apreender em
Para que o príncipe tenha conhecimento dos ecos que suas falas e atos despertam
Maquiavel, consiste em que o príncipe deve “falar a seus espectadores mudos em torno
nas outras pessoas ele deve preservar uma distância que não é diferença absoluta, mas
dele e tomados na vertigem da vida em comum” (Merleau-Ponty 13, p.275). Portanto,
também deve resguardar uma proximidade que não é coincidência completa. Ele deve
entre a pura e simples vontade de agradar e o desafio radical, o príncipe deve conceber
manter “contato com as testemunhas das quais ele mantém todo o ser poder” (Merleau-
uma “empreitada histórica à qual todos podem se juntar” (Merleau-Ponty 13, p.275).
Ponty 13, p.274). Donde a importância de que ele se mantenha livre em relação a suas
Enfim, para Maquiavel, é a relação com outrem que deve ser tomada como “signo de
qualidades podendo, no limite, mudar de conduta quando necessário. O príncipe “precisa,
valor na política”.
portanto, ter o espírito preparado para voltar-se para onde lhe ordenarem os ventos da
fortuna e as variações das coisas, e não se afastar do bem, mas saber entrar no mal, se
“Pelo domínio de suas relações com outrem, o poder transpõe
os obstáculos entre o homem e o homem e coloca alguma necessário” (Maquiavel 9, p.85). Agindo assim, o homem político terá o reconhecimento
transparência nas nossas relações, – como se os homens não daqueles que governa, pois seus atos fazem parte de um mundo que ele habita. Seus atos
pudessem estar próximos senão em uma espécie de distância” estão estreitamente relacionados com o olhar de outrem. Assim, ainda que este homem
(Merleau-Ponty 13, p.275).
precise usar a força ou a violência, ela não será uma pura técnica do uso da força, pois
“não se pode propriamente chamar virtù o fato de assassinar seus concidadãos, trair
O problema está em que a verdade do poder só é dada por quem não está no
amigos, não ter fé, piedade nem religião. Deste modo pode-se adquirir poder, mas não a
poder, e isto, porque o poder não vê a imagem de si mesmo que é oferecida aos outros.
glória” (Maquiavel 9, p.38). Com efeito, o homem que se envereda nos negócios humanos
Todavia, não podemos depreender daí que, então, é preferível enganar a fazer o bem.
procura, sim, a glória e a fama, as quais devem aparecer, ser vista e se fazer ver. O discurso
Ora, as qualidades do príncipe são fixadas em atitudes históricas, elas são “vistas”. É
sobre os valores deve sempre estar relacionado com sua serventia, eficácia e utilidade
neste contexto que surge o grande exemplo de Maquiavel – César Bórgia – retomado por
social ou cívica. Trata-se, portanto, de agir politicamente no mundo das aparências, pois,
Merleau-Ponty.9 A virtù de Bórgia estaria no fato de que seus atos de poder consistiam
nele, o que conta é o que aparece e, além disto, o valor mais alto decorrente da relação
em intervenções “em certo estado de opinião que alterava seu sentido”. O que é preciso
com outrem é a glória, ápice das aparências.
reconhecer, aqui, é o enredo no qual se dá a ação histórica, a qual deve levar em

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Se a relação com outrem é compreendida como signo de valor na política, é juízo” (Merleau-Ponty 13, p.269). Se a constituição do corpo político é feita de conflitos
preciso, então, matizar com cuidado a relação de rivalidade advinda da necessidade de e lutas entre os agentes, a sociedade concreta e real é que passa a chamar atenção, pois
exercer ou sofrer constrangimento. Merleau-Ponty dirá que “a vida coletiva é o inferno” ela é susceptível ao tempo. Quando os conflitos e as lutas são inevitáveis, eles devem
(Merleau-Ponty 13, p.268). Para Maquiavel, a luta se dava graças à divisão interna à ser interrogados no sentido de que tragam algo de positivo para o desenvolvimento das
própria sociedade. “Pois, em todas as cidades, existem esses dois humores diversos que relações humanas e das cidades; eles devem ser explorados na perspectiva da convivência
nascem da seguinte razão: o povo não quer ser comandado nem oprimido pelos grandes, possibilitada por boas instituições.
enquanto os grandes desejam comandar e oprimir o povo” (Maquiavel 9, p.43). Ora, a Se o combate por intermédio do poder é preferível ao combate com a pura força,
luta é a própria realidade do convívio humano nas cidades, cabendo ao homem político como caracterizar o poder? Ele não é nem “força pura”, nem “honesta delegação das
a tentativa de unificar e procurar, para as cidades, uma identidade. Donde a necessidade vontades individuais”; ele é sempre contestável e está sempre sob ameaça. Como não
que Maquiavel via de substituir o combate com a força pelo combate com as leis e com o existe poder absolutamente fundado – não existe fundamento que seja nem anterior, nem
poder (cf. Maquiavel 9, p.83). Dada a divisão social originária entre os grandes e o povo, exterior à política, seja ele divino, natural ou racional – só existe uma “cristalização do
Maquiavel procurava um príncipe que pudesse unificar a Itália inteiramente fragmentada. poder”. E isto, porque o poder é da ordem do “tácito”, o que significa que a opinião tolera
Os “novos príncipes” são estes homens que do interior da própria sociedade deveriam o poder e que ela o toma como adquirido: o poder legítimo é aquele que evita o desprezo
tomar e manter o poder, ou melhor, eles deveriam fundar estes novos sistemas chamados e o ódio. Mas se o poder não é “puro fato”, nem “direito absoluto”, ele nem coage, nem
“monarquias” ou “repúblicas”, os quais assinalavam a importância crescente tanto persuade, mas “circunscreve – e circunscrevemos melhor apelando à liberdade do que
daquilo que era secular contra a predominância da política teológica, quanto da nação, aterrorizando” (Merleau-Ponty 13, p.269). Ora, os benefícios de uma filosofia política
ponto que excluía a intromissão de outros países. O príncipe deveria fundar um Estado deste gênero são muitos. Primeiramente, porque Maquiavel nos introduz “no meio próprio
que unificasse e libertasse a Itália. O chefe preconizado por Maquiavel tinha uma tarefa da política e nos permite medir a tarefa se nós queremos encontrar aí alguma verdade”
a cumprir: introduzir este novo sistema, afinal, “Deus não quer fazer tudo, para não nos (Merleau-Ponty 13, p.269). Além disto, ele nos “mostra um começo de humanidade
tolher o livre-arbítrio e a parte de glória que nos cabe” (Maquiavel 9, p.124). emergindo da vida coletiva como que à revelia do poder” (Merleau-Ponty 13, p.270-
Na interpretação de Merleau-Ponty, a luta deve ser encaminhada para outra 71). Vem daí que Maquiavel, segundo Merleau-Ponty, tenha indicado as “condições de
direção que o simples antagonismo. Na verdade, a verdadeira violência está no terror uma política que não seja injusta”, a saber: aquela que contenta os povos. O príncipe
causado pela política feita a partir de princípios que estabelecem uma homogeneidade deve estar do lado do povo e não dos seus rivais. Por quê? Porque “o que engrandece as
que não tem equivalentes com a realidade do mundo humano. Seria preciso, então, pôr em cidades não é o bem individual, e sim o bem comum” (Maquiavel 10, p.187). Assim, os
relevo o “circuito entre eu e outrem” que é o próprio nó da vida coletiva. Ora, na relação objetivos da política devem passar longe dos princípios racionais da justiça e da ética,
com outrem “estamos longe das relações de pura força que existem entre os objetos” ambos pautados pela tradição de cunho teológico-político. É deste modo que o secretário
(Merleau-Ponty 13, p.268). Por isto, por um lado, outrem nunca poderá ser considerado florentino nos ajuda a não renunciar a virtù compreendida como “um meio de viver com
como puro e simples objeto sob pena de exercermos sobre ele a maior violência de outrem” (Merleau-Ponty 13, p.271). Está aí o caráter intersubjetivo da virtù, pois neste
todas. Por outro, é preciso compreender que esta espécie de violência se repetiria se patamar ela consistiria na capacidade do príncipe de se dirigir aos seus subordinados
abordássemos a relação entre as pessoas no puro nível subjetivo. Assim, tanto as relações com o objetivo de colocar alguma transparência nas relações, mesmo que para isto fosse
humanas quanto as relações dos sujeitos com o poder “se atam mais fundo do que o preciso usar a força ou a violência, ser mentiroso ou astucioso. Todavia, o poder não deve

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estar separado da liberdade, já que ela é precisamente o critério para medir o valor de um p.275). Isto acontece porque Maquiavel “evoca a idéia de um acaso fundamental, de uma
regime político. A liberdade exprime uma espécie de ideal novo se contrastada com a adversidade que a furtaria ao poder dos mais inteligentes e dos mais fortes” (Merleau-
situação em que se encontrava o poder dos papas e dos imperadores. Bem entendido, trata- Ponty 13, p.275). Mas graças a quê Maquiavel exorciza este “gênio maligno”? Ora, em
se da liberdade republicana que não deve ser posta a serviço dos poderosos, mas do povo. princípio, para ele o príncipe não é aquele personagem de caráter rígido e constante, assim
Ora, “o bem comum só é observado nas repúblicas, porque tudo o que é feito, é feito para como a fortuna também não é a encarnação da inconstância. Em seguida, não é se valendo
o seu bem, e mesmo que aquilo que se faça cause dano a um ou outro homem privado, são de nenhum princípio transcendente que ele exorciza este gênio maligno, “mas por um
tantos os que se beneficiam que é possível executar as coisas contra a vontade dos poucos recurso aos dados de nossa condição” (Merleau-Ponty 13, p.275-76). Em nossa condição
que por elas sejam prejudicados” (Maquiavel 10, p.187). Compreende-se, portanto, que de seres humanos há muita coisa que está em nosso poder, mas há, com certeza, mais
é a liberdade expressa tanto nas instituições, quanto nas ações e no espírito de conquista coisas ainda que escapam ao nosso poder, o que determina de maneira radical a vida e a
que faz a grandeza de uma cidade e de um povo. Alem disto, somente aqueles valores ação. Apesar desta imensa adversidade, Merleau-Ponty insiste que em Maquiavel há algo
que nascem do contato dos homens com as necessidades da vida pública e se conservam a mais, pois ainda que a força adversa seja bastante poderosa, “não podemos limitar em
graças aos costumes do povo é que devem ser cultuados. Donde o interesse de Maquiavel parte alguma o nosso poder” (Merleau-Ponty 13, p.276). Não se trata de “supor nas coisas
recorrer aos exemplos dos Antigos, pois ao invés de venerarem valores de uma ética cristã um princípio hostil”. É verdade que os acontecimentos nos reservam surpresas, como foi
fundada tanto na revelação quanto na consciência, eles cultivavam os valores cívicos o caso de Bórgia, mas nós não devemos fazer vista grossa nem para o nosso próprio corpo,
fundados tanto no respeito ao bem público quanto às leis da pólis. nem para a consciência, nem para a tentativa de previsão. Assim, é o próprio secretario
florentino que nos diz que “já que o nosso livre-arbítrio não desapareceu, julgo possível
“Se Maquiavel era republicano, é porque ele encontrou um ser verdade que a fortuna seja árbitro da metade de nossas ações, mas que também deixe
princípio de comunhão. Ao colocar o conflito e a luta na origem do
a nosso governo a outra metade ou quase” (Maquiavel 9, p.119).
poder social, ele não quis dizer que o acordo fosse impossível, ele
Ora, ter um livre-arbítrio, aqui, significa ter uma virtù que dá corpo à ação
quis sublinhar a condição de um poder que não seja mistificante,
e que é a participação em uma situação comum” (Merleau-Ponty livre. Já a fortuna “só toma figura no momento em que renunciamos a compreendê-
13, p.272). la e a querê-la” (Merleau-Ponty 13, p.276), ou seja, quando renunciamos à ação. Mas
compreender e querer a fortuna exige certas condutas, como, por exemplo, quando lhe
Passemos, então, ao segundo grande momento do texto de Merleau-Ponty: a opomos algumas barreiras; mas, mesmo assim, quando ela vem, ela atinge, precisamente,
virtù presente na relação com a fortuna. Desde o início do texto ele dizia que, em geral, as os pontos vulneráveis. Uma das teses mais impressionantes de Maquiavel consiste em
pessoas não gostam de Maquiavel por ele ser um “pensador difícil e sem ídolos” (Merleau- que a fortuna é ora favorável ora desfavorável. A conseqüência desta variabilidade
Ponty 13, p.267). Só que, além disto, aquilo que o torna incompreensível é o fato de que está em que o homem ora compreende ora não compreende seu tempo, “e as mesmas
ele une extremos que, tradicionalmente, são excludentes. Ele une incompossíveis, pois qualidades trazem-lhe conforme o caso o sucesso e a perda, mas não por acaso” (Merleau-
“une o sentimento mais agudo da contingência ou do irracional no mundo com o gosto Ponty 13, 276). A virtù do príncipe deve ser encontrada no modo como ele responde às
pela consciência ou pela liberdade no homem” (Merleau-Ponty 13, p.275). Do ponto de circunstâncias, isto é, se age sempre do mesmo modo e segundo princípios imutáveis ele
vista maquiaveliano, são tantas as reviravoltas que a história se encarrega de dar que não é estará fadado ao fracasso. Mas se for flexível e mudar de acordo com as circunstâncias,
possível atribuir a ela algo que a “predestine a uma consonância final” (Merleau-Ponty 13, ele poderá, na ocasião oportuna, apanhar a fortuna, dominá-la e contrariá-la de acordo

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com suas intenções, momento em que ela lhe será favorável. O príncipe não poderá fiar- pois quem não sabe apanhá-la, só guarda remorso. É neste sentido que precisamos saber
se unicamente na fortuna, pois se ela mudar ele estará arruinado. Donde Maquiavel dizer aproveitar os signos e os presságios para não nos arrependermos de não ter aproveitado
que “é feliz aquele que combina [ou ajusta] o seu modo de proceder com as exigências os possíveis do momento oportuno, ou melhor, de não termos explorado o campo dos
do tempo e, similarmente, que são infelizes aqueles que, pelo seu modo de agir, estão em possíveis (cf. Maquiavel 11). 10
desacordo com os tempos” (Maquiavel 9, p.120). A variabilidade da fortuna deve estar Segundo Merleau-Ponty, não há nenhum humanismo mais radical do que o de
de acordo com a obstinação da própria maneira de ser do príncipe, pois se não houver Maquiavel, pois ao contrário de ignorar os valores, ele viu os próprios valores de maneira
este acordo o resultado será a infelicidade. Para Maquiavel é melhor ser impetuoso do viva e sempre em transformação, afinal, os valores estão irremediavelmente ligados a
que prudente, pois quem é prudente não chega nem a dominar, nem a contrariar a fortuna. certas ações históricas. É preciso, portanto, exorcizar a política feita a partir de princípios,
É desta espécie de agentes ferozes e audaciosos dominadores que a fortuna é amiga e se pois uma vez que os princípios fossem aplicados em certas situações julgadas favoráveis
oferece como presente. Eis o único recurso indicado por Maquiavel, segundo Merleau- eles se tornariam instrumentos de opressão. Não basta tomarmos consciência de quais
Ponty: são os princípios que foram escolhidos, além disto, é preciso saber quais forças e quais
“a presença a outrem e a nosso tempo que nos faz encontrar homens os aplicam. É verdade que Maquiavel não dispensava os valores, o que por si só
outrem no momento em que renunciamos a oprimi-lo, – encontrar
também não basta e seria mesmo perigoso nos determos aí. O que fazer então? “Enquanto
o sucesso no momento em que renunciamos à aventura, escapar
não se escolherem aqueles que têm a missão de sustentá-los na luta histórica, nada se
ao destino no momento em que compreendemos o nosso tempo”
(Merleau-Ponty 13, p.276). fez” (Merleau-Ponty 13, p.279). Merleau-Ponty chama atenção para o fato de que sempre
numerosos assassinatos e horríveis crueldades foram cometidos tanto em nome da lei
Merleau-Ponty indica que há algo que dá “valor absoluto a nossa virtù”, a saber, quanto em nome da liberdade e, “bem entendido, a dura sabedoria de Maquiavel não
a idéia de que a “humanidade é fortuita” e de que “não tem causa ganha”. Isto não quer as reprovará por isto” (Merleau-Ponty 13, p.279). Quanto a Merleau-Ponty, este ponto
dizer que a virtù não encontre limites, pois tanto o agente que insiste na ação ineficaz merece bastante atenção porque seria preciso ver que, ainda assim, “os meios permanecem
quanto o próprio mundo na sua constante mudança impõem um limite a ela. Mas, se sanguinários, impiedosos, sórdidos” (Merleau-Ponty 13, p.279).
assim for, como antecipar aquela imensa força adversa? “Quando compreendemos o Surge, então, um ponto de discórdia com Maquiavel, pois para evitar as barbáries
que, nos possíveis do momento, é humanamente válido, os signos e os presságios não tão conhecidas seria “preciso quebrar o círculo” (Merleau-Ponty 13, p.279). Sobre este
faltam nunca” (Merleau-Ponty 13, p.277). Vem daí a importância de saber aproveitar a ponto é que Merleau-Ponty pensa ser não só possível, mas também necessário uma crítica
boa ocasião, momento em que o príncipe se torna um explorador do campo dos possíveis. a Maquiavel. O problema está em que Maquiavel “se contentou em evocar em poucas
Em um pequeno texto chamado “Capítulo da ocasião”, Maquiavel nos diz que a ocasião palavras um poder que não seria injusto, ele não procurou muito energicamente uma
não parece uma deusa mortal, os céus a ornaram e a encheram com suas graças, além definição” (Merleau-Ponty 13, p.280). Merleau-Ponty não diz que Maquiavel estivesse
disto, seu vôo é muito rápido, ela tem asas nos pés que servem para ofuscar os homens. cego para isto. Ele foi, sim, “desencorajado” porque ele “acreditava que os homens
Poucos a conhecem, e é por isto que ela se agita tanto e tem sempre um pé sobre a roda. fossem imutáveis, e que os regimes se sucediam em ciclo” (Merleau-Ponty 13, p.280).11
Ela se apresenta de tal modo que quando surge, não a reconhecemos. Aquele que se perde O que o faz pensar que só existem dois tipos de homem: os homens comuns que vivem o
observando seus detalhes a deixa passar, ou ainda, quando ela dá as costas para alguém, comum da vida e com os quais Maquiavel passou grande parte de seu tempo, e os grandes
estes só se fatigam querendo agarrar-lhe. Enfim, quem corre atrás dela é o arrependido, homens que fazem a história, ou melhor, a interrogam e lhe respondem. Ora, o pomo

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da discórdia consiste em que, por um lado, Maquiavel via muita cegueira nos homens Donde a alternativa que se impunha entre, por um lado, a possibilidade do poder
e, por outro, ele também via uma arte natural de comandar destinada a poucos. Tudo se do proletariado acompanhar a flutuação da consciência de massa e assim ser esmagado,
passa como se Maquiavel ficasse tentado a pensar que “não há humanidade, mas homens e, por outro, se subtrair à consciência de massa e tornar-se uma nova camada dirigente.
históricos e pacientes”; mas, além disto, o próprio Maquiavel teria se contentado em se O que, aliás, foi o que aconteceu. Merleau-Ponty chama a atenção para o fato de que a
colocar do lado daqueles homens comuns. Donde sua postura de não ter preferência por solução só poderia ser encontrada em uma “relação absolutamente nova com os sujeitados”
nenhum “profeta armado”; poderia ser um, mas também poderia ser outro, o que o levava (Merleau-Ponty 13, p.282).
a agir de maneira muito incerta.
“Seria preciso inventar formas políticas capazes de controlar o
“A conduta de Maquiavel acusa o que faltava a sua política: um fio poder sem o anular, seria preciso chefes capazes de explicar aos
condutor que lhe permitisse reconhecer, entre os poderes, aquele sujeitados as razões de uma política, e de obter deles próprios,
do qual houvesse algo de válido a esperar, e elevar decididamente se fosse necessário, os sacrifícios que o poder lhes impõe
a virtù acima do oportunismo” (Merleau-Ponty 13, p.281). ordinariamente” (Merleau-Ponty 13, p.282).

Merleau-Ponty não reduz a filosofia de Maquiavel ao cinismo que nega os Ora, estas formas políticas foram esboçadas e estes chefes apareceram na
valores, apesar de que ele escreva contra os bons sentimentos em política, mas ele também revolução de 1917. Mas, “desde a época da Comuna de Kronstadt, o poder revolucionário
não reduz seu pensamento a uma espécie de crueldade, pois Maquiavel também é contra perdeu o contato com uma fração do proletariado, todavia experimentada, e, para esconder o
a violência. Merleau-Ponty quer ser justo e indulgente com Maquiavel, pois para ele “a conflito, ele começa a mentir” (Merleau-Ponty 13, p.282).13 Assim, neste contexto, quando
tarefa era difícil” (Merleau-Ponty 13, p.281).12 há divergência e oposição partidária é porque se trata de sabotagem e espionagem, donde
Depois da crítica, Merleau-Ponty elogia o “humanismo sério” de Maquiavel, o reaparecimento no interior da revolução das próprias lutas que ela procurou ultrapassar.
o qual consiste em esperar, “através do mundo, o reconhecimento efetivo do homem Isto se dá porque “todo poder tende a se ‘autonomizar’” (Merleau-Ponty 13, p.282). Daí
pelo homem”. Este humanismo deve ser contemporâneo ao esforço que a humanidade aquilo que Merleau-Ponty chama de “o problema essencial”: como compreender esta
deve empreender para forjar meios de comunicação e de comunhão (cf. Merleau-Ponty autonomização do poder ligada tanto a um “destino inevitável em toda sociedade” quanto
13, p.281). Mas o problema posto por Maquiavel não foi resolvido. O problema de um a uma “evolução contingente”? Na época em que a “Nota sobre Maquiavel” foi escrita, o
humanismo real foi retomado por Marx. Segundo Merleau-Ponty, expediente de Kronstadt já havia se tornado “sistema” e o poder revolucionário também
já havia sido determinantemente “substituído pelo proletariado como camada dirigente,
“Marx se propôs, precisamente, para fazer uma humanidade, com os atributos de potência de uma elite incontrolável” (Merleau-Ponty 13, p.282). É
encontrar um outro apoio do que aquele, sempre equívoco, dos
neste contexto que sua conclusão pode ser compreendida, pois, “cem anos depois de Marx,
princípios. Ele procurou na situação e no movimento vital dos
o problema de um humanismo real permanece inteiro, e, portanto, [devemos] mostrar
homens mais explorados, mais oprimidos, mais desprovidos
de poder, o fundamento de um poder revolucionário, ou seja, indulgência para com Maquiavel, que só podia entrevê-lo” (Merleau-Ponty 13, p.282).
capaz de suprimir a exploração e a opressão. Mas ficou claro É preciso, contudo, deixar bem claro o que se entende aqui por humanismo. Não se trata
que todo o problema era de constituir um poder dos sem-poder” de uma “filosofia do homem interior que não encontra nenhuma dificuldade de princípio
(Merleau-Ponty 13, p.281).
nas suas relações com os outros”; também não se trata de uma filosofia que não encontra

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“nenhuma opacidade no funcionamento social e substitui a cultura política pela exortação o que é verdadeiramente a segurança e a glória. Em primeiro lugar, há uma segurança
moral”. Portanto, não se trata de uma filosofia que substitua a reflexão sobre o que é o que não é “o único fruto do medo”, porque, para Maquiavel, não se trata de enfraquecer
poder e o que é o ser do social e o ser do político por uma reflexão sobre a consciência do os súditos, mas, sim, fortificá-los armando-os. Em segundo, há uma glória que “não se
poder, do social e do político. Não é neste sentido que devemos interpretar o humanismo alimenta unicamente da fraqueza e da crueldade dos outros”, pois se trata, precisamente,
de Maquiavel assinalado por Merleau-Ponty. Não se trata de por em relevo a dimensão de reconhecer na virtù a própria expressão da glória. Enfim, se a “grande política” está
rarefeita da consciência e de seus princípios no campo político e histórico. inscrita no “aqui e agora do ser social” compreende-se que é a leitura do mundo presente
em que vivia que levou Maquiavel “a restaurar a imagem da grande política” (Lefort 8,
“Mas se chamamos humanismo uma filosofia que afronta como p.431). Mas se assim for, quem é o príncipe? O príncipe é aquele que
um problema a relação do homem com o homem e a constituição
entre eles de uma situação e de uma história que lhes seja comum,
“deve acolher a indeterminação e que, justamente, se ele a faz andar
então é preciso dizer que Maquiavel formulou algumas condições
direito, se ele renuncia à ilusória segurança de um fundamento, a
de todo humanismo sério” (Merleau-Ponty 13, p.283).
ocasião lhe oferece descobrir, na paciente exploração dos possíveis,
os signos da criação histórica, e inscrever sua ação no tempo”
III (Lefort 8, p.432).

Para concluir, notemos que na filosofia de Maquiavel a política deve ser


referências bibliográficas
interpretada como “grande política”. O que faz da política maquiaveliana uma “grande
política”?14 A expressão “grande política” é empregada por Claude Lefort para nomear
1. ARONOVICH, P.F. “Vocabulário de termos-chave de Maquiavel”. In: Maquiavel, N.
aquela política que “supõe que seja levado em conta uma tarefa inscrita aqui e agora
Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução MF, São Paulo:
no ser do social” (Lefort 8, p.433). Quando Maquiavel analisa as figuras do despotismo Martins Fontes, 2007.
de sua época, ele chega à conclusão de que nestas condições a política se avilta, pois o 2. BIGNOTTO, N. “As fronteiras da ética: Maquiavel”. In: Ética. Organização de Adauto
despotismo é um poder que precisa de constante constrangimento físico. Segundo Lefort, Novaes, São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
3. __________ Maquiavel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Editor, 2003.
há uma segurança que é tão pouco recomendável quanto a maior insegurança. Trata-
4. CHAUI, M. “Apresentação do livro de Lefort”. In: A invenção da democrática. Os
se daquela segurança que paga o preço de uma sociedade diminuída e de uma política
limites da dominação totalitária. Tradução Isabel Marva Loureiro, São Paulo:
miserável. Já a Brasiliense, 1983.
“grande política se reconhece pelo fato de conquistar a segurança 5. __________ “Notas do tradutor”. In: “Em toda e em nenhuma parte”. In: Merleau-
na insegurança, de mover no espaço agitado da história, de dar ao Ponty. Os pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1980.
Entendimento do príncipe poder de virar-se a todos os ventos, de 6. CORCUFF, P. “Merleau-Ponty ou l’analyse politique au défi de l’inquiétude
aliar-se às forças contrárias, ao invés de se subtrair a elas, de forçar machiavélienne”. In: Merleau-Ponty. Le philosophe et les sciences humaines.
a Fortuna ao invés de se esconder de seu apelo” (Lefort 8, p.431). In: Les études philosophiques. Paris: Puf, abril-junho, 2001-2002, p.211.
7. GOLDMAN, E. “Trotsky proteste beaucoup trop”. In: Ni patrie ni frontières, nº. 1,
Lefort nos ensina o que é a “grande política” ao procurar nos fazer entender setembro-outubro, 2002; cf. http://kropot.free.fr/Goldman-trotsky.htm.
8. LEFORT, C. Le travail de l’œuvre. Machiavel. Paris: Gallimard, 1972.

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9. MAQUIAVEL, N. O príncipe. Tradução Maria Júlia Goldwasser, São Paulo: Martins a esfinge, dando à sua maneira, menos figurada e mais abrupta, uma resposta aos enigmas
Fontes, 2004. multiplicados que ela lhes propõe” (Merleau-Ponty 13, p.199-200).
10. __________ Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução MF, São 2. Philippe Corcuff chama atenção para o fato de que na época de Humanismo e terror a
Paulo: Martins Fontes, 2007. leitura de Maquiavel é fortemente tingida com as cores de uma filosofia da história que
11. __________ “Capitolo de l’occasion”. In: Capitoli. In: Œuvres completes. Paris: passa por Hegel e por Marx. Não há dúvidas de que o Hegel de que aqui se trata não é
Gallimard, 1952. aquele da síntese final, mas aproxima-se daquele Hegel “pensador de uma história aberta
12. MERLEAU-PONTY, M. Causeries 1948. Paris: Seuil, 2002. à contingência” (cf. Corcuff 6, p.211).
13. __________ Signes. Paris: Gallimard, 1960. 3. Os novos problemas são: os processos de Moscou, os campos de concentração na
14. __________ Les aventures de la dialectique. Paris: Gallimard, 1955. URSS, a diplomacia de Yalta, a superstição ligada ao marxismo, o futuro da revolução, as
15. __________ Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966. lutas anticoloniais, a guerra da Coréia, a invasão da Hungria pela URSS e a repressão da
16. __________ Humanisme et terreur. Essai sur le problème communiste. Paris: insurreição de Budapeste em 1956.
Gallimard, 1947. 4. Sobre a “esquerda não-comunista” conferir em As aventuras da dialética páginas 311-
17. __________ Parcours 1935-1951. Lagrasse: Verdier, 1997. 13; sobre o “novo liberalismo” conferir no mesmo livro páginas 312-13.
18. __________ Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945. 5. Não há consenso, por parte dos comentadores de Maquiavel, de uma definição precisa
19. RENAUDET, A. Machiavel. Études d’histoire des doctrines politiques. Paris: do termo virtù, e isto, porque o próprio Maquiavel não o definiu. Na verdade, ele é um
Gallimard, 1942; cf. edição revista e ampliada de 1956. conceito “multifacetado” que só pode ser compreendido no contexto em que foi empregado.
20. SILVA, F.L. “A história da filosofia em Heidegger e Merleau-Ponty”. In: Educação e Do ponto de vista individual, ele não pode ser interpretado à maneira tradicional, ou seja,
filosofia, Uberlândia: V. 5 e 6, nº. 10, 1991, p.85. como “composto de qualidades fixas, como coragem, sabedoria, justiça, temperança,
isto é, das virtudes cardeais” definidas pela herança clássica. A virtù deve ser vista em
“La grande politique” or Merleau-Ponty reader of Machiavelli relação estreita com a ocasião, donde ela não ser nem um “modo fixo de agir”, nem estar
“relacionada necessariamente ao resultado final da ação”. Do ponto de vista republicano,
Abstract: This article intends to consider the work of Niccolo Machiavelli from the approach “tanto o povo como o cidadão e o cidadão-soldado podem ter virtù”. Mas também aqui
made by Maurice Merleau-Ponty in his text “Note on Machiavelli”. In order to do that, we shall ela não deve ser lida à maneira tradicional. Na verdade, ela “está voltada para a defesa e a
present some general aspects of Merleau-Ponty’s political philosophy, trying to track the presence
exaltação da pátria e para o amor pela defesa da liberdade” (cf. Aronovich 1, p.470-71).
of Machiavelli in the work of the French philosopher. We shall also consider the elements which
6. O único intérprete da obra de Maquiavel que Merleau-Ponty cita é Augustin Renaudet
guided Merleau-Ponty’s reading of philosophical texts. Regarding Machiavelli’s philosophy, we
(cf.Renaudet 19).
shall try to highlight the aspects that made the Florentine the first modern political thinker, according
to Merleau-Ponty. In conclusion, we shall also consider, following Claude Lefort’s expression, the 7. A propósito desta maneira de interpretar uma obra de filosofia, vale a pena consultar
aspects that make politics in Machiavelli’s thought to be understood as “la grande politique”. a Primeira e a Sexta Parte do livro de Claude Lefort sobre Maquiavel. Ele compreendeu
Keywords: Merleau-Ponty, Machiavelli, Lefort, humanism, politics. que ler Maquiavel, ou melhor, interpretar ou interrogar sua obra é perceber que a obra
“conserva a virtude de fazer falar” (Lefort 8, p.44). Marilena Chaui nos diz que esta
“concepção generosa” de leitura apresentada por Lefort é compartilhada por Merleau-
notas
Ponty. Para ambos “a obra instaura um modo de existência como diferença interna entre
1. Merleau-Ponty nos diz que “se Descartes está presente é porque, rodeado de escrita e leitura que abre o pensar, em vez de fechá-lo sobre si mesmo, abertura que é o
circunstâncias hoje abolidas, atormentado com preocupações e com algumas ilusões trabalho da obra ou o que Lefort designa como trabalho de interrogação que ‘é o vínculo
de seu tempo, respondeu a esses acasos de tal maneira que nos ensina a responder aos mais seguro entre autor e leitor’, pois ‘é na leitura que um livro se faz’” (Chaui 4, p.13).
nossos, embora diferentes, e diferentes nossas respostas. [...] Os filósofos de amanhã [...] 8. Maquiavel não é um pensador que funda uma nova visão política que estaria distante
continuarão a aprender com Leibniz e Espinosa como os séculos felizes pensaram domar de considerações de ordem moral. Não se trata, para ele, de uma legitimação de uma

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política que despreze os paradigmas éticos, os quais seriam absolutamente independentes desejam o sucesso na vida política. Porém, não pôde sair do aperto em que se viu quando
da política. Para este filósofo não há ruptura absoluta entre ética e política. Há, sim, além de cair doente, o seu pai – o papa Alexandre VI – morreu. Mesmo sendo alguém que
muitos aspectos éticos em seu pensamento. Não se trata, contudo, de regular as ações soube aproveitar a ocasião oportuna, não pôde resistir à fortuna. O ponto importante está
políticas segundo leis de uma moral abstrata. Newton Bignotto nos ensina que “falar de em que para Maquiavel não há um poder que dure para sempre: “nada é mais constante
representações não implica dizer que a ética não tem ligação com a política”. Falar de do que essa verdade: tudo o que existe no mundo tem limite em sua duração”. “As coisas
representações equivale a mostrar que “a ética, vivida como costume, é a janela através humanas resistem apenas o tempo que lhes é possível, sendo em seguida corrompidas pelo
da qual percebemos as ações humanas, sem que isso explicite a verdade ou não das efeito de sua própria natureza. [...] Em sua obra, Maquiavel prefere sempre os exemplos
proposições que nos guiam e revele a essência dos atos julgados”. Portanto, a política não dos que enfrentam as dificuldades do mundo, mesmo que saiam derrotados no final”
pode afastar-se totalmente da ética, afinal, ela “depende da representação que os homens (Bignotto 3, p.23).
fazem dos atos dos governantes”, o que assegura, justamente, “um lugar para ela na vida 10. Para vermos com uma lente de aumento o momento específico da relação ou da
pública”. Além de criticar a ética abstrata dos moralistas, Maquiavel, ao mesmo tempo, ligação entre a fortuna e a virtù – conceitos que sempre devem ser considerados juntos
“atribui outra função aos julgamentos morais” e exige “outro sistema de valores, mais –, não podemos pura e simplesmente considerar a fortuna como uma força terrível e
apto a fazer-nos entender a política”. Quando ele faz de Roma a “encarnação dos mais sempre destruidora, conduta que conduziria o agente ao desespero completo e o levaria ao
elevados parâmetros políticos, que toda ação deve guiar-se pelas ações de seus grandes desconhecimento da relativa racionalidade das ações. Na verdade, este ponto de vista é,
homens”, trata-se de compreender que há uma “exemplaridade da cidade que se funda no limite, fatalista e não deixa nenhuma margem à esperança. Ora, esta postura é tornada
na exemplaridade da ação dos seus cidadãos”. É a liberdade que faz de Roma o melhor impossível pela própria análise que vê na fortuna uma força que não nos permite conhecer
exemplo possível para um regime político. “É a liberdade, expressa nas instituições, nas suas tramas. “Resta sempre uma esperança e ela deve nos conduzir a agir e a enfrentar os
ações, no espírito de conquista, que faz de Roma o modelo a ser imitado. [...] Escolher perigos que aparecem, exatamente porque nenhum cálculo racional será capaz de prever
Roma como exemplo, fazer de suas instituições o modelo a ser imitado, implica abandonar todos os movimentos que se seguirão ao aparecimento das garras da fortuna, inclusive
o universo cristão de valores e, assim, negar que a ação política possa ser julgada pela aqueles que serão benéficos aos nossos desejos. A palavra esperança pode soar estranha
‘moralidade’ dos atores. [...] Maquiavel não opõe duas esferas autônomas da ação – a no contexto de uma discussão sobre a contingência do mundo da política, mas ela é a
política e a ética – mas opõe duas maneiras de se conceber a ética: uma cristã, fundada na ponte entre virtù e fortuna, fundamentais no pensamento de Maquiavel para se examinar
revelação e na consciência, e outra antiga, fundada no respeito ao bem público e às leis a ação política” (Bignotto 3, p.27-28).
da pólis. Essa verdadeira revolução só foi possível porque o humanismo havia preparado 11. Dizer que os homens são imutáveis é o mesmo que dizer que eles repetem suas paixões
o terreno para o culto dos valores cívicos”. No universo moral dos antigos e em parte dos e sua forma de agir: “a natureza humana é repetitiva e, portanto, pode ser analisada em
renascentistas, “a verdadeira ética nascia do contato dos homens com as exigências da vida qualquer tempo com as mesmas ferramentas” (Bignotto 3, p.14). Dizer que os regimes se
pública e se conservava pelos costumes do povo”. Maquiavel “afirma, sem ambigüidade, sucediam em ciclo é afirmar “a crença de que o tempo era circular e as formas políticas iam
a superioridade da antiga ética sobre a do seu tempo, mantendo a discussão no terreno se revezando à medida que ele transcorria” (Bignotto 3, p.54). Mas Maquiavel também
próprio ao debate sobre os valores”. Por fim, o debate de Maquiavel se dá “no universo de estava certo de que a marcha do tempo é que desencadeava a corrupção dos regimes.
uma ética-política, ou de uma política que carrega em si um corpo de valores diferentes 12. A situação política da sua época exigia alguém que pudesse governar a Itália e
daqueles de uma moral da consciência” (cf. Bignotto 2, p.113-125). soldados para realizar este objetivo. Donde as questões que Merleau-Ponty nos põe: “Na
9. Bórgia – exemplo de governante para Maquiavel – era grande dissimulador de seus discordância de uma Europa que se ignorava, de um mundo que não havia feito seu
pensamentos e de sua natureza íntima. Exemplo de sagacidade política, Bórgia ocupou inventário e onde os países e os homens dispersos ainda não haviam cruzado o olhar, onde
o poder em uma situação favorável no início, mas permaneceu no poder mesmo quando estava o povo universal que pudesse se fazer cúmplice de uma cidade popular italiana?
a situação tendia a complicar-se. Ele é “um modelo para todos os que pela sorte ou pela Como os povos de todos os países teriam se reconhecido, entendido e unido?” (Merleau-
força dos outros chegou ao poder”: hábil para lidar com situações extremas, ele foi um Ponty 13, p.281).
personagem cruel e ambíguo. Tornou-se um exemplo a ser seguido por todos aqueles que 13. A Comuna de Kronstadt – da cidade de Kronstadt na Rússia – deve ser considerada

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a última tentativa do proletariado russo de colocar a Revolução em seu antigo eixo. deste século se embasavam nas idéias de identidade e de eternidade. Ora, desde que se
A revolta ocorrida em 6 de março de 1921 denunciava a predominância do partido reconheça a historicidade do saber, nem o mundo, nem o saber sobre o mundo, nem as
único e exigia a eleição livre de representantes das massas trabalhadoras. É em relação idealidades, nem as ações poderão ser compreendidas como “desdobramento do fundo
a certa fração do proletariado (marinheiros, soldados, operários e camponeses) que o idêntico e eterno através da duração finita do homem” (Chaui 5, p.229). Será preciso, ao
poder revolucionário já tinha, naquela época, perdido contato. A palavra de ordem dos contrário, que a historicidade surja como “produção”, ou seja, como trabalho humano.
revoltosos era: “viva os sovietes e abaixo os comunistas” do partido bolchevique. A Compreende-se, portanto, que Merleau-Ponty diga que “a novidade da fenomenologia”
revolta foi totalmente massacrada. Donde Merleau-Ponty afirmar que nesta ocasião o não consista em negar a “unidade da experiência”, mas “fundá-la de outro modo que
poder revolucionário já havia perdido contato com a grande maioria da população. Eis um o racionalismo clássico” (Merleau-Ponty 18, p.340). Seja como for, o importante a ser
trecho da mensagem radiofônica difundida pelos insurretos “aos trabalhadores do mundo frisado está na inscrição do infinito no próprio coração da experiência, e não em Deus ou
inteiro”: “Nós somos partidários do poder dos sovietes, não dos partidos. Nós somos na consciência.
pela eleição livre de representantes das massas trabalhadoras. Os sovietes fantoches
manipulados pelo partido comunista sempre foram surdos para as nossas necessidades
e para as nossas reivindicações; não recebemos senão uma resposta: a metralhadora. [...]
Camaradas! Não só eles querem nos enganar, mas eles transvertem deliberadamente a
verdade e nos difamam da maneira mais desprezível. [...] Em Kronstadt, todo poder está
exclusivamente entre as mãos dos marinheiros, soldados e operários revolucionários.
[...] Viva o proletariado e a classe dos camponeses revolucionários! Viva o poder dos
sovietes eleitos livremente” (cf. Goldman 7). Emma Goldman cita este trecho em um
artigo publicado originalmente na revista Vanguard – de tiragem mensal e editada em
Nova York – publicado em julho de 1938.
14. A expressão “grande política” deve fazer eco à expressão merleau-pontiana “grande
racionalismo”. O que vem a ser o “grande racionalismo”? Em princípio vale observar que
Merleau-Ponty tinha a intenção expressa de retomar de maneira mais radical “a tarefa que
aquele século intrépido [século XVII] acreditava ter cumprido para sempre” (Merleau-
Ponty 13, p.191). Merleau-Ponty recusa do “pequeno racionalismo” a explicação do ser
pela ciência. Contra esta postura, é interessante voltarmos nossa atenção para aqueles
pensadores do século XVII, momento privilegiado, rico de uma “ontologia viva”.
Eles não tomavam os resultados da ciência como cânon da ontologia, na verdade, eles
admitiam que a filosofia se projetasse sobre a ciência “sem ser sua rival”: o objeto da
ciência era considerado apenas um “grau do Ser” e se justificava “em seu lugar”. Além
disto, as filosofias deste século concebiam um “acordo extraordinário entre o exterior
e o interior” graças à mediação do “infinito positivo”, espécie de segredo do “grande
racionalismo”. Neste ponto, os trabalhos deste século estão bem longe daquilo que
pensamos de nossa situação filosófica atual que, segundo Merleau-Ponty, tem como tema
favorito a “contingência do mundo”. Na verdade, é preciso frisar que esta contingência
vem trazer a exigência de se pensar de modo diferente a coesão do todo. Se o “infinito
positivo” levava à recusa da ambigüidade e da temporalidade era porque os pensadores

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Marcus Sacrini A. Ferraz

Esse procedimento metafísico seria problemático porque associar o ser a alguns


aspectos ônticos mascara a sua complexidade. É verdade que o ser perpassa as dimensões
Merleau-Ponty entre ontologia e metafísica
ônticas, faz exatamente com que elas sejam, com que vigorem e se imponham como tais
aos sujeitos. Mas o ser não deve ser identificado a nenhuma delas em particular, o que
Marcus Sacrini A. Ferraz*
tornaria incompreensível a sua manifestação em todas as dimensões ônticas. Assim, a

Resumo: Neste texto, retomamos a avaliação de Michel Haar segundo a qual o projeto ontológico hipóstase ôntica não respeita as condições inerentes à própria aparição do ser e leva a
de Merleau-Ponty redundaria em uma metafísica. A fim de tornar tal avaliação mais severa, resultados inconsistentes com a complexidade ontológica do mundo em geral.
propomos um outro critério, de inspiração kantiana, conforme o qual a obra de Merleau-Ponty
Vamos propor agora por nossa própria conta um outro critério para o
também poderia ser classificada como metafísica. Em seguida, expomos as estratégias filosóficas de
Merleau-Ponty com base nas quais julgamos que conforme nenhum desses dois critérios Merleau- reconhecimento de uma metafísica, o qual, em certo sentido, complementa aquele fornecido
Ponty constitui um discurso metafísico. por Haar. Trata-se de um critério de inspiração kantiana, segundo o qual uma empreitada
Palavras-chave: ontologia, metafísica, Merleau-Ponty, Michel Haar, Heidegger.
filosófica pode ser qualificada de metafísica se pretende descrever ou explicar realidades
que de modo algum figuram na experiência, que excedem as aparências fenomênicas,
I
mas que no entanto poderiam ser apreendidas pela pura concatenação lógica de conceitos.
Essas realidades pretensamente descritas seriam aquelas mais fundamentais, quer dizer,
Meu principal objetivo neste texto é avaliar as linhas gerais do projeto ontológico
aquelas responsáveis pela ordenação e sentido das aparências sensíveis.
final de Merleau-Ponty à luz da crítica de que se trataria de um projeto metafísico. Essa
Essa pretensão descritiva ou explicativa se revela como problemática se se
crítica foi apresentada por Michel Haar no impactante artigo intitulado Proximité et
analisa os instrumentos cognitivos disponíveis aos sujeitos humanos. Parece razoável
distance vis-à-vis de Heidegger chez le dernier Merleau-Ponty (Haar 1, p.9-34). Pretendo
supor que o conhecimento humano se estabelece com base em e nos limites de uma
explicitar o critério utilizado por Haar para estabelecer tal crítica e questionar se ele
experiência possível, o que significa que deve haver uma base sensível, empírica, sobre
realmente se aplica à última filosofia de Merleau-Ponty. Além disso, vou estabelecer um
a qual os conceitos podem atuar. Na ausência de tal base, não se pode legitimamente
segundo critério para o reconhecimento de uma investigação filosófica como metafísica,
apresentar a mera ordenação lógica de conceitos como uma descrição ou explicação de
para, dessa maneira, submeter a obra de Merleau-Ponty a uma avaliação ainda mais
realidades. Sem respeitar essa condição, uma investigação filosófica construiria somente
rigorosa que aquela proposta pelo próprio Haar.
hipóteses inverificáveis, as quais jamais se estabeleceriam como verdadeiras apresentações
A fim de marcar a distinção entre ontologia e metafísica, Haar usa um critério
de realidades. Uma investigação filosófica pode então ser qualificada de metafísica se não
de inspiração heideggeriana: uma empreitada filosófica pode ser qualificada de metafísica
respeita as condições subjetivas de acesso ao ser (tais como a limitação do conhecimento
se ela toma um ente ou as características próprias a uma classe de entes como definidoras
a uma experiência possível) e, nesse sentido, seus resultados são inconsistentes com as
do ser em geral. Nesse caso, o procedimento metafísico se caracteriza pela seleção
estruturas existenciais-cognitivas da subjetividade humana.
arbitrária de uma dimensão ôntica como fundante de todas as demais e, em seguida, pela
Apresentamos, assim, dois critérios que distinguem o modo metafísico de
universalização ou hipóstase dessa dimensão, a qual passa então a se apresentar como o
investigar o ser. Esse modo transgrediria, seja em relação à subjetividade cognoscente,
próprio ser em geral (Haar 1, p.13, 33).
seja em relação ao próprio ser em geral, certas condições constitutivas do problema
* Pós-doutorando pelo Depto. de Filosofia – USP. e-mail: sacrini@usp.br. ontológico, e chegaria invariavelmente a impasses. Por oposição a esse modo metafísico,

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haveria um modo ontológico de investigar o problema do ser. Esse modo ontológico leva que se estabelece um convívio com dimensões ontológicas que escapam do arcabouço
em conta as particularidades cognitivas e existenciais da subjetividade e a complexidade conceitual clássico. Em segundo lugar, e em conseqüência do primeiro ponto, trata-se
da manifestação do ser. Trata-se de uma investigação que não ignora nem como as de formular os recursos conceituais convenientes para exprimir um tal ser assim já
estruturas existenciais condicionam o acesso ao mundo e nem que a amplitude do ser não atestado por experiência. Notemos que essa tarefa de renovação conceitual permanece
se reduz a certas propriedades ônticas. facilmente reconhecível, como marca distintiva do trabalho ontológico, mesmo nos
textos finais de Merleau-Ponty. Por exemplo, numa nota de janeiro de 1959, o autor
II afirma que “a ontologia seria a elaboração das noções que devem substituir aquela de
subjetividade transcendental, aquelas de sujeito, objeto, sentido” (Merleau-Ponty 3,
Nesta seção, pretendo apresentar as principais características daquilo que Merleau- p.219). Por sua vez, parece que a primeira tarefa, quer dizer, o estabelecimento de um
Ponty apresenta como ontologia, para então, na seção seguinte, avaliar se sua reflexão pode âmbito responsável pelo contato com o ser, muda bastante de figura no decorrer dos
ser caracterizada como metafísica, segundo os critérios estabelecidos acima. anos cinqüenta, como veremos a seguir.
A partir dos anos 501, Merleau-Ponty começa a apresentar sua própria empreitada Ainda fortemente marcado pelo legado da Fenomenologia da Percepção,
filosófica como aquela de elaborar uma ontologia. Em 1952, no curso intitulado O mundo Merleau-Ponty, no início dos anos 50, considera que são os fenômenos percebidos a
sensível e o mundo da expressão, Merleau-Ponty parece já estabelecer as linhas gerais principal fonte de contato com um ser que escapa às categorias clássicas. É o que fica
de sua investigação ontológica, embora ainda não a intitule dessa maneira. Em todo claro em seu curso O mundo sensível e o mundo da expressão, analisado brevemente
caso, podemos distinguir já nesse curso as principais características de sua ontologia no parágrafo anterior. Porém, no correr da década, o filósofo toma uma gama bem mais
tardia. Ali, Merleau-Ponty lamenta que as filosofias da época, embora reconhecessem ampla de eventos como compondo o ser com o qual se tem contato. Por exemplo, no
a originalidade da atividade perceptiva ante as categorias clássicas, não extraíssem dela resumo do primeiro curso sobre a natureza (1956-7), o autor afirma que “se nós não nos
uma nova noção do ser e da subjetividade. Realizar tal extração passa a ser justamente a resignamos a dizer que um mundo de onde seriam retiradas as consciências não é nada,
meta assumida por Merleau-Ponty, para quem “o filósofo aprende a conhecer, no contato que uma Natureza sem testemunhos não teria sido e não seria, nos é necessário de algum
com a percepção, uma relação com o ser que torna necessário e que torna possível uma modo reconhecer o ser primordial que não é ainda o ser sujeito nem o ser objeto, e que
nova análise do entendimento” (Merleau-Ponty 6, p.11-12). Quer dizer que as descrições desconcerta a reflexão em todos os sentidos” (Merleau-Ponty 2, p.357). Aqui, Merleau-
da vida perceptiva devem levar a uma reforma do entendimento, isto é, a uma renovação Ponty almeja descrever o ser primordial, o qual não depende nem mesmo do testemunho
das principais categoriais pelas quais se compreende a experiência e o ser em geral. As da consciência para vigorar e que, assim, não se limita ao ser percebido. Trata-se de buscar
categorias clássicas, tais como aquelas de substância, objeto e sujeito não apreenderiam um contato com um ser que resistiria mesmo a uma suposta aniquilação da consciência,
corretamente as articulações do mundo percebido, o qual, se explorado sem a projeção quer dizer, com um ser que não se restringe ao ser percebido strictu sensu.
prévia de tais categorias, exige um novo arcabouço conceitual, uma nova ontologia, no No curso A filosofia hoje (1958-9), Merleau-Ponty promove a ampliação final
sentido de uma compreensão global renovada dos modos de ser das coisas e eventos. do âmbito de contato com o ser. Não são só fenômenos percebidos particulares e nem
É possível já no curso de 1952-3 reconhecer as duas tarefas filosóficas que mesmo estruturas naturais que nada devem à consciência os componentes do ser, mas
Merleau-Ponty apresentará sob o nome tradicional de ontologia. Trata-se, em primeiro também eventos históricos, atividades artísticas e mesmo a situação crítica da cultura
lugar, de instituir um contato com o ser, ou seja, de tornar tema filosófico o âmbito em contemporânea. Merleau-Ponty comenta: “desvelamento de um tipo de ser diferente

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daqueles em que reside isso que se chama ‘matéria’, ‘espírito’, ‘razão’. Nós estamos III
em contato com esse tipo de ser por nossa ciência e nossa vida privada e pública.
Mas ele não tem existência oficial” (Merleau-Ponty 4, p.37). Mas de que maneira a Agora que esboçamos ao menos o projeto geral da ontologia pretendida por
ciência e a vida privada e pública estão em contato com um ser que não é reconhecido Merleau-Ponty, vamos avaliá-la por meio dos dois critérios estabelecidos na primeira
oficialmente pelas categorias filosóficas? Para Merleau-Ponty, esse é um dos efeitos parte deste texto. Tomemos primeiramente o critério utilizado por Michel Haar. A principal
mais instigantes de uma crise geral da cultura contemporânea. Segundo o filósofo, em limitação do projeto de Merleau-Ponty, segundo Haar, é sua obsessão por um mundo
diferentes domínios, seja no que tange à própria coexistência social, seja em relação às sensível apresentado como ser universal. Ao Merleau-Ponty relativizar a prioridade da
expressões artísticas, o conjunto de definições clássicas que fixava a identidade de um consciência perceptiva e do corpo próprio, ele o faria em prol do ser concebido como
domínio e seus procedimentos práticos (por exemplo, a definição da pintura e de como se sensibilidade em geral (Cf. Merleau-Ponty 3, p.191). O corpo próprio e seus poderes
pinta, ou a definição da sociedade e de como os indivíduos devem nela se comportar) é perceptivos deixam de ser o centro da análise filosófica para se tornar “o caso particular
abalado ante certas situações ou criações contemporâneas. Tal conjunto de definições se de um desvio, de uma diferenciação em todo lugar operante” (Haar 1, p.17). Merleau-
mostra então como contingente, quer dizer, não como modo único de se obter resultados Ponty reconheceria uma visibilidade ou uma sensibilidade latentes no próprio ser, as quais
artísticos ou de se compreender a sociedade, mas como modelos privilegiados durante fundariam as funções ativas corporais. Em vez de centro e sustentáculo do espetáculo
certa fase histórica. A crise de tais modelos ante os novos sistemas expressivos e as novas perceptivo, tal como aparecia na Fenomenologia da Percepção, o corpo se tornaria
configurações históricas oferece a ocasião para renovar as categorias ontológicas gerais somente o ponto em que a sensibilidade latente ao ser se reuniria e se manifestaria para
que subjazem a tais modelos. si2. Dessa maneira, em sua última filosofia, Merleau-Ponty defenderia a prioridade de
Atesta-se assim, no decorrer da obra escrita por Merleau-Ponty nos anos uma sensibilidade anônima universal, exprimida na noção de “carne do mundo”.
50, uma paulatina ampliação do âmbito em que se pretende obter contato com o ser: Essa seria, segundo Haar, uma tese bastante problemática. Para Haar, Merleau-
primeiramente tratava-se somente do mundo percebido, mas em seguida também se Ponty pretende que o Ser sensível englobe “dimensões tão diferentes quanto a vida
acrescentou o estudo da natureza em geral, e, por fim, os processos histórico-culturais nas orgânica, a percepção, o pensamento e a linguagem” (Haar 1, p.22). Mas essa pretensão
quais a vida humana está envolvida. A ampliação é tamanha que Merleau-Ponty chega a seria insustentável. Haar compreende “o campo ‘universal’ do Sensível”, proposto por
apresentar sua ontologia, no curso “A filosofia hoje”, de 1958-9, como “consideração do Merleau-Ponty, como o que “se doa à percepção” (Haar 1, p.10), definição que torna clara
todo e de suas articulações” (Merleau-Ponty 4, p.37). Quer dizer que é em relação a todos a insuficiência da ontologia final do filósofo. Afinal, “para ser universalizável, mesmo
os domínios da experiência humana que se deve investigar como há um contato com metafisicamente, o mundo percebido não deveria com efeito incluir todas as dimensões?
estruturas ontológicas não abarcadas pelas categorias clássicas (investigação que, por sua Ora, salta aos olhos que ele não possui nem a História nem a Fala. A universalidade
vez, deve levar à reformulação das noções mais básicas da filosofia). Vejamos a seguir se torna desde então uma abstração metafísica” (Haar 1, p.33). Haar pretende assim ter
se esse modo de conceber a reflexão ontológica pode ser classificado de metafísico, no desvelado o procedimento metafísico que viciaria, desde a base, a ontologia de Merleau-
sentido definido anteriormente. Ponty: pretende-se investigar o ser, pretende-se investigar o modo pelo qual todas as
coisas e eventos são, mas considera-se somente o modo como certas coisas e eventos são,
a saber, os fenômenos apreensíveis sensivelmente. Ao apresentar esse modo particular
como geral, como incluindo as características de todo ser, deixa-se de apreender a

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especificidade de vários temas, cujo modo de ser permanece ignorado. como metafísica. No entanto, parece-me imprescindível apresentar como complementar
Mas terá Michel Haar razão em suas suspeitas? Será que Merleau-Ponty à definição do ser bruto como mundo percebido a investigação das dimensões invisíveis
universaliza ingenuamente uma dimensão ôntica e a toma como ontológica? De fato, que compõem a profundidade ontológica do sensível.
algumas afirmações do filósofo, tomadas isoladamente, podem realmente dar essa É por meio dessa noção de dimensões invisíveis que Merleau-Ponty pretendia
impressão a um leitor com um olhar heideggerianamente treinado. O título de uma incluir a história e a linguagem em sua análise ontológica4. Conforme reconhece Merleau-
nota de janeiro de 1959 por si só já causaria desconforto em tal leitor: “o Ser bruto ou Ponty, “a linguagem, a arte, a história gravitam em torno do invisível (a idealidade)”
selvagem (=mundo percebido)” (Merleau-Ponty 3, p.221). Mas é no corpo dessa nota (Merleau-Ponty 2, p.291). Assim, por exemplo, em relação à linguagem, diferentes
que a confissão parece ocorrer. Ali, Merleau-Ponty afirma: “o mundo perceptivo amorfo enunciações particulares podem se pretender exemplos de uma “mesma” significação
de que eu falava em relação à pintura (...) é no fundo o Ser no sentido de Heidegger (...) justamente por partilharem uma certa intenção comum, um certo modo idêntico de visar
e que aparece como contendo tudo o que será alguma vez dito, nos deixando entretanto ou de se referir a tais e tais dados. Há aqui um caráter unificador da significação lingüística
a criá-lo” (Merleau-Ponty 3, p. 221-2). Aqui Merleau-Ponty parece assumir todos os em relação à inesgotável riqueza de detalhes das situações vividas; a significação permite
pecados apontados por M. Haar: haveria a identificação do ser com o mundo sensível, o o reconhecimento do mesmo em experiências que, por sua complexidade, são sempre
que implicaria acreditar ingenuamente que todas as dimensões ônticas (por exemplo, a únicas. Desse ponto de vista, a linguagem, mais do que o conjunto das enunciações
linguagem) já estão contidas nesse mundo sensível. factuais, é uma matriz de ordenação da experiência, uma membrana inaparente por meio
Mas seria mesmo a empreitada final de Merleau-Ponty descaradamente uma da qual a diversidade perceptível (quer dizer, mesmo aquela que ainda não se concretizou)
metafísica? Para responder a essa pergunta, notemos que Haar parece apresentar uma do mundo se ordena em regiões ou espécies5. As significações lingüísticas são exemplos de
definição bastante restrita do mundo ou do ser sensível: como vimos, para ele, trata- “estruturas do vazio” (Merleau-Ponty 3, p.284, fev. 1960) que permeiam o sensível e que
se daquilo que se doa à percepção. Haar apresenta o sensível como conjunto de dados de seu próprio interior fazem emergir arranjos densos de fenômenos, que não se esgotam
positivamente apreendidos pelos sentidos. Mas não é assim que os últimos textos de na pura positividade dos dados atuais. Essas estruturas não decorrem de um mundo
Merleau-Ponty consideram essa noção. Inspirado em alguns trechos de Idéias II, Merleau- espiritual autônomo, mas são a infra-estrutura da própria experiência do sensível6.
Ponty, no artigo O Filósofo e sua Sombra, propõe a seguinte definição: “o sensível não é Assim, não é verdade que Merleau-Ponty injustificadamente se propôs a tratar
somente as coisas, mas também tudo o que aí se esboça, mesmo implicitamente, tudo o a história e a linguagem por meio da análise daquilo que se doa à percepção (por meio de
que aí deixa seu traço, tudo o que aí figura, mesmo a título de desvio [écart] e como uma um “sensível” compreendido de maneira estreita). A ampliação daquilo que se considera
certa ausência” (Merleau-Ponty 7, p.217). Quer dizer que o sensível não é um conjunto âmbito de contato com o ser, conforme vimos na seção passada, mostra que Merleau-Ponty
de dados positivos; há dimensões de negatividade que estariam incrustadas nos dados não pretende tratar a vida pública e privada, a ciência e a história como puros fenômenos
positivos. Assim, é necessário considerar certas ausências constitutivas3, que se doam percebidos, mas como eventos que, em sua dimensão ou nível próprio, explicitam
somente enquanto ausência, para só então apresentar a dimensão sensível como universal, estruturas ontológicas irredutíveis ao tema do “objeto percebido”. Se em alguns textos
como verdadeira dimensão ontológica. É o que Merleau-Ponty faz por meio de sua noção Merleau-Ponty insiste em incluir todas essas dimensões no “sensível”, é porque, conforme
de invisível. Ao considerar que há dimensões invisíveis que compõem a densidade do já acentuamos, amplia a noção de sensível e não porque achata ou mutila a história ou
sensível, Merleau-Ponty amplia consideravelmente o escopo desse último. Sem levar a linguagem para tratá-las somente como fenômenos imediatamente percebidos. Pode-
em conta essa ampliação, fica fácil apresentar a investigação do ser bruto ou da carne se questionar se Merleau-Ponty consegue manter a especificidade dessas dimensões ao

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considerá-las como membranas invisíveis no interior do ser sensível (questão para a qual cognitivos na formulação de sua ontologia. A fim de tornar visível essa preocupação,
o inacabamento de sua obra talvez nos impeça de dar qualquer resposta), mas não me vamos nos remeter ao modo como o filósofo se apropria da intenção de autores designados
parece correto ignorar que ao menos na intenção de seu projeto ontológico Merleau- como metafísicos (segundo o critério kantiano) para desenvolver sua própria reflexão.
Ponty buscou evitar uma ingênua hipóstase metafísica do sensível. No curso A filosofia hoje, Merleau-Ponty apresenta sua ontologia como “metafísica no
sentido clássico” (Merleau-Ponty 4, p.37), ou seja, como uma investigação que considera
IV a totalidade do ser, e não somente domínios particulares (como se, por exemplo, a
filosofia devesse investigar somente as significações lingüísticas, enquanto o âmbito dos
Até aqui reavaliamos a obra de Merleau-Ponty segundo o critério proposto fatos deveria ser tratado exclusivamente pelas ciências empíricas). Como metafísica no
por Michel Haar, e chegamos a uma conclusão oposta a desse autor. Os esforços pela sentido clássico, Merleau-Ponty se refere aos autores do Grande Racionalismo do século
ampliação da noção de sensível, de maneira a nele incluir dimensões que só se doam como XVII, com os quais já aprendera, conforme o artigo Em toda e em nenhuma parte, que
ausência, atestariam que Merleau-Ponty não hipostasia arbitrariamente uma região ôntica, não se deve limitar a investigação da realidade ao conhecimento científico (Cf. Merleau-
mas busca conscientemente desvelar que toda amplitude ontológica já está contida no Ponty 7, p.186). Em A filosofia hoje, Merleau-Ponty retoma explicitamente essa intenção
sensível. No entanto, justamente essa solução, quer dizer, o apelo a dimensões invisíveis abrangente do Grande Racionalismo, qual seja, de explicitar o ser em sua totalidade, o
parece comprometer Merleau-Ponty com uma empreitada metafísica, conforme passemos que supõe uma análise mais ampla que aquela oferecida pelos métodos científicos de
para a aplicação do segundo critério estabelecido por nós na primeira seção. Segundo verificação empírica. Aqui cabe perguntar se a retomada dessa intenção compromete
esse critério, uma investigação filosófica se realiza de modo metafísico se desrespeita Merleau-Ponty com teses acerca de realidades inalcançáveis pelos sentidos e que só
os limites cognitivos estabelecidos pelas estruturas subjetivas, as quais exigem uma poderiam ser descritas por uma pura concatenação lógica de conceitos.
experiência como base para a formulação de teses com valor epistêmico. Ao apresentar A crença na possibilidade de um conhecimento para além de toda experiência
descrições de realidades que escapam a qualquer experiência possível, uma investigação possível, o que constituiria o núcleo propriamente metafísico do Grande Racionalismo,
filosófica ignoraria as restrições cognitivas impostas pela subjetividade e se caracterizaria é claramente rejeitada por Merleau-Ponty. Ele afirma: “o que nos separa do século XVII,
então como metafísica. Ora, mas não é exatamente o que parece ocorrer com Merleau- não é um decadência, é um progresso da consciência e da experiência” (Merleau-Ponty 7,
Ponty? A fim de ampliar a noção de sensível, não apela ele a “realidades negativas” que p.189). Nos séculos seguintes, teria ficado claro que o acordo entre as deduções lógicas
não se doam diretamente à percepção, quer dizer, que não se tornam objetos de uma e o mundo existente não é imediato ou evidente, e que não se pode pretender descrever
experiência possível? Afinal, o que significa afirmar que algo se doa como ausência, quer realidades sem o lastro da experiência. Eis a lição kantiana que Merleau-Ponty assume
dizer, justamente como o que não se doa? Estaria Merleau-Ponty aqui meramente preso a como um progresso. Esse distanciamento em relação às teses metafísicas do Grande
jogos conceituais sem nenhum lastro com a experiência? Em suma, será que para salvar Racionalismo sugere-nos que Merleau-Ponty não se comprometeria com uma solução
a complexidade do ser, sem achatá-lo numa dimensão ôntica ingenuamente hipostasiada, que assim pudesse ser qualificada. Desse modo, parece-nos que seu apelo às dimensões
Merleau-Ponty ignora as restrições cognitivas da subjetividade? invisíveis que constituem a densidade ontológica do sensível deve de alguma forma
Responderemos negativamente a essas duas últimas questões. Para tanto, importa responder à essa preocupação crítica reconhecida por ele mesmo como um progresso
mostrar, em primeiro lugar, que Merleau-Ponty reconhece algo semelhante ao critério da reflexão. E de fato podemos explicitar tal preocupação se analisamos mais de perto a
kantiano proposto por nós, e que, assim, ele se preocupou com o problema dos limites elaboração filosófica da noção de invisibilidade.

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No prefácio de Signes, Merleau-Ponty argumenta que uma das vantagens do corpos visíveis). A linguagem e a vida psíquica são, assim, exemplos simples de dimensões
par conceitual visível / invisível em relação ao par ser / nada é que não há uma oposição invisíveis, e nos confirmam que longe de se referir a mirabolantes construções conceituais
substancial ou de modo de ser entre os elementos do primeiro par como haveria naqueles sobre um reino supra-sensível, Merleau-Ponty tenta por meio da noção de invisibilidade
do segundo (Cf. Merleau-Ponty 7, p.30). Dessa maneira, ao se tratar do invisível, não se reformular o estatuto ontológico de componentes óbvios da experiência, os quais não
pretende descrever realidades contrárias a ou absolutamente distintas daquelas sensíveis. deveriam ser concebidos como um tipo de ser separado do sensível, mas como camadas
O invisível é sempre invisível de algum visível, é sempre o avesso deste, e, neste sentido, ou níveis no interior desse último.
está sempre relacionado àquilo que se doa positivamente na experiência. Com a noção de Devemos acentuar, no entanto, que a noção de invisibilidade não se esgota
invisível, não se trata de circunscrever um tipo de ser substancialmente diferente do ser nos componentes significativos ou psíquicos da experiência subjetiva (e que podem
sensível, mas de considerar o sensível de modo mais amplo, incluindo suas dimensões ser atestados facilmente por qualquer um em sua experiência). Por meio dessa noção,
que não se doam de maneira imediata e que se anunciam por sua falta, quer dizer, que Merleau-Ponty pretende qualificar regiões do próprio ser e não somente dimensões
se deixam suspeitar porque os dados positivos apontam para um negativo que também é ligadas à subjetividade. É o que fica claro, por exemplo, nos cursos sobre a natureza.
constituinte do sentido da experiência. Ali Merleau-Ponty usa a noção de invisível para se referir à infra-estrutura inaparente
Vemos assim que ao menos em sua delimitação conceitual a noção de invisível que torna possível a auto-organização dos organismos: “encontra-se então um núcleo
ou de dimensões negativas do ser não compromete Merleau-Ponty com realidades supra- de fenômenos, um recobrimento lateral dos microfenômenos um no outro, uma coesão
sensíveis, as quais são bastante criticáveis segundo o critério kantiano. Mas como a em torno do ser invisível (...) que eles envolvem, em torno do qual eles se enrolam,
investigação filosófica poderá se aproximar dessas dimensões de negatividade? Como cristalizam o Gestalthafte” (Merleau-Ponty 2, p.303). Merleau-Ponty se refere aqui
é possível tratar daquilo que na experiência só se marca como ausência? Certamente ao desenvolvimento dos embriões, tema que exploraremos com mais detalhes logo
algumas dessas dimensões negativas são atestadas sem dificuldade em toda experiência a seguir, e denomina de invisível os processos pelos quais o próprio ser dos embriões
que envolve enunciação lingüística ou contato inter-humano. Conforme mencionamos se molda. Importa agora somente notar que o invisível também se refere a dimensões
na seção anterior, as significações funcionam como uma membrana inaparente capaz inerentes ao próprio ser do mundo ou da vida em geral. É principalmente em relação
de ordenar uma infinidade de episódios perceptivos. Essa virtude se estende para além a essas regiões invisíveis independentes da subjetividade que surge com toda força a
dos episódios que efetivamente serão vividos pelos sujeitos falantes, pois mesmo dificuldade mencionada acima: como é possível investigar aquilo que excede o que se doa
situações possíveis que jamais se atualizarão podem ser, por meio da linguagem, diretamente na experiência sem cair num discurso metafísico? Parece-me que a resposta
classificadas e explicitadas em muitos dos seus componentes gerais. Além das estruturas a essa questão está no desenvolvimento de um método indireto para a ontologia. Numa
significativas lingüísticas, a vida psíquica dos sujeitos também é uma dimensão que não nota de fevereiro de 1959, Merleau-Ponty afirma: “não se pode fazer ontologia direta.
se doa perceptivelmente. No entanto, não é necessário tomá-la como expressão de uma Meu método ‘indireto’ (o ser nos entes) é o único conforme o ser” (Merleau-Ponty 3,
substância espiritual incompreensivelmente ligada à massa corporal; basta considerá-la, p.231). O autor parece entender por ontologia direta os resultados descritivos seja de
tal como sugere Merleau-Ponty, como uma dimensão sensível negativa, como um avesso experiências particulares vividas, seja de construções lingüístico-conceituais apresentadas
invisível do corpo, o qual, ainda que ausente, sempre é levado em conta nas interações como caracterização de realidades ou mesmo do ser em geral. Assim, se um filósofo se
sociais (já que essas ocorrem entre pessoas, quer dizer, entre sujeitos complexos dotados baseia apenas em suas vivências para descrever ou caracterizar o ser em geral, ou se ele
de comportamento, de intenções, de sentimentos, de opiniões, etc. e não somente entre propõe, sem nenhuma comprovação por alguma instância externa, que certo conjunto de

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categorias articulados de tal maneira descreve o ser, então se trataria de ontologia direta. ou posterior e um pólo animal ou anterior. Em seguida, distribuem-se certas funções
E a ontologia direta corre o risco seja de se limitar injustificadamente a certos aspectos correlacionadas com tais pólos morfológicos, o que torna possível a manifestação de
do ser (no caso da descrição de vivências particulares), seja de se limitar a construções certos comportamentos embrionários pré-neurais. Tais comportamentos estão inscritos em
conceituais abstratas, que não correspondem à verdadeira estrutura do ser. Daí que a fases da morfogênese embrionária prévias ao funcionamento das estruturas fisiológicas
ontologia, para ser conforme o ser, deva ser indireta. que normalmente os possibilitariam7. Merleau-Ponty explora esse resultado como
Mas de que maneira se desenvolve indiretamente uma ontologia? Merleau- explicitação de uma produtividade inscrita na própria natureza, e que parece rejeitar todo
Ponty nos adverte que só é possível chegar ao ser por meio do seres ou entes, ou tipo de direcionamento espiritual ou intelectual, sem com isso deixar de estabelecer uma
seja, que é imprescindível investigar certos domínios ônticos para que determinadas ordem, uma organização nos fatos. Por sua vez, essa ordem se antecipa à maturação
características ontológicas se façam notar. É exatamente por isso que Merleau-Ponty de estruturas fisiológicas determinadas, o que parece implicar que a ordenação geral
analisa a ciência, a pintura, a literatura e mesmo alguns fatos históricos em seus cursos do comportamento embrionário não se esgota no mero funcionamento das estruturas
e textos finais. Ele crê que as atividades e disciplinas não-filosóficas contemporâneas fisiológicas atuais, mas supõe uma referência a uma totalidade futura ainda ausente.
estão em contato com o ser bruto que a filosofia deveria explicitar. Assim, é a análise Assim, os estudos da embriologia legitimam a rejeição de concepções da reprodução
dos resultados dessas atividades e disciplinas que permite explicitar como tese filosófica animal que sejam finalistas (pois seria possível compreender pela mera ordenação interna
positiva as características das dimensões de negatividade constituintes do ser. É então aos gradientes bioquímicos a organização da vida, sem apelar para uma finalidade última)
o apelo a tais disciplinas que garante o “lastro de experiência” para a noção geral de ou mecanicistas (pois as possibilidades futuras compõem o desenvolvimento embrionário,
invisibilidade, e impede que ela seja um mero constructo metafísico: a filosofia só tem o qual não se reduz então a relações mecânicas entre as partes atuais do embrião). Dessa
acesso à invisibilidade constitutiva do mundo indiretamente, por meio do modo como maneira, duas concepções ontológicas clássicas são rejeitadas, o que abre caminho para a
ela é explicitada nas disciplinas e atividades não-filosóficas. exploração filosófica renovada do ser da natureza.
Consideremos como exemplo de análise ontológica indireta o apelo de Merleau- A abertura desse caminho provavelmente não seria possível sem o apelo
Ponty a alguns temas estudados pela ciência. “Ao interrogar a ciência”, crê o autor, “a às pesquisas científicas. Não seria possível excluir nenhuma concepção acerca
filosofia chegará a encontrar certas articulações do ser que lhe seria mais difícil de descobrir do desenvolvimento embrionário sem o desenvolvimento das técnicas científicas
de outro modo” (Merleau-Ponty 6, p.118). Tomemos como caso emblemático o estudo contemporâneas de coleta de dados e de avaliação de hipóteses nessa área. Dessa maneira,
da embriologia, do qual Merleau-Ponty se serve em seu segundo curso sobre a natureza a embriologia é um bom exemplo para clarificar por que a filosofia deve recorrer aos
(1957-8). Por meio de diversas pesquisas nessa área, as quais supõem complexas técnicas domínios ônticos para formular uma doutrina geral acerca do ser: é necessário considerar
de coleta e mensuração para constituir o próprio dado científico (ou seja, o dado não é um os dados fornecidos pelas disciplinas e atividades não-filosóficas a fim de constituir um
fenômeno disponível à percepção ingênua), pôde-se desvelar uma certa inteligibilidade modo justificado de incluir na reflexão ontológica domínios que escapam à observação
da organização celular nos embriões, anterior ao desenvolvimento do controle neuronal. direta. Assim, o apelo às disciplinas não-filosóficas mantém o lastro com a experiência e
Para explicar essa inteligibilidade anterior à maturação neural, Merleau-Ponty se refere à garante à filosofia, quando for extrair conseqüências ontológicas de domínios que escapam
noção de gradientes, cunhada por Coghill: diferentes níveis de suscetibilidade dos tecidos à experiência direta, o respeito às condições subjetivas do conhecimento.
embrionários a impulsos elétricos ou bioquímicos (Cf. Merleau-Ponty 2, p.191). Por meio
desses gradientes, surgem oposições morfológicas embrionárias entre um pólo vegetativo

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Referências bibliográficas 1961).


3. “Não considerar o invisível como um outro visível ‘possível’, ou um ‘possível’ visível
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3. _______. Le Visible et le Invisible. Paris: Gallimard, col. Tel, 2001. 5. “A idéia é esse nível, essa dimensão, não portanto um invisível de fato, como um
4. _______. Notes de Cours 1959-1961. Paris: Gallimard, 1996. objeto escondido atrás de um outro, e não um invisível absoluto, que nada teria a ver com
5. _______. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, col. Tel, 1997. o visível, mas o invisível desse mundo, aquele que o habita, o sustenta e o torna visível,
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8. SAINT AUBERT, E. Vers une Ontologie Indirecte. Sources et enjeux critiques de – simplesmente quero plantar esse vazio no Ser visível, mostrar que ele é seu avesso – em
l’appel à l’ontologie chez Merleau-Ponty. Paris: Vrin, 2006. particular, o avesso da linguagem” (Merleau-Ponty 3, p.284, fev. 1960).
7. Por exemplo, o feto humano, antes mesmo de dispor de sistemas neurais que coordenam
Merleau-Ponty: between ontology and metaphysics os batimentos cardíacos, apresenta, em algumas situações (ao menos após nove semanas
e meia de gestação), sinais cardíacos que se assemelham àqueles de adultos (Cf. Merleau-
Abstract, In this article, we resume Michel Haar’s evaluation according to which Merleau-Ponty’s Ponty 2, p.197).
ontological project would redound to metaphysics. In order to make such an evaluation more
rigorous, we propose another criterion, inspired by Kant, according to which Merleau-Ponty’s work
could also be classified as metaphysical. After that, we elucidate Merleau-Ponty’s philosophical
strategies on the basis of which we judge that neither according to Haar’s criterion nor according to
the Kantian’s criterion constitutes Merleau-Ponty a metaphysical discourse.
Keywords: ontology, metaphysics, Merleau-Ponty, Michel Haar, Heidegger.

Notas

1. Segundo Saint Aubert (que recenseou cuidadosamente o uso de certos termos por
Merleau-Ponty), o filósofo se refere de modo sistemático ao seu próprio projeto como
ontológico somente a partir de 1957. Cf. Saint Aubert 8, introdução.
2. Segundo a Fenomenologia, “o corpo próprio está no mundo como o coração no
organismo: ele mantém continuamente em vida o espetáculo visível, ele o anima e o nutre
interiormente, e forma com ele um sistema” (Merleau-Ponty 5, p.235). Quer dizer que
os aspectos sensíveis do mundo só se ordenam em função da atividade corporal, a qual
condiciona a própria existência dos espetáculos visíveis. Já em O Visível e o Invisível,
Merleau-Ponty assume a tarefa de “descrever o visível como algo que se realiza por meio
do homem, mas que não é absolutamente antropológico” (Merleau-Ponty 3, p.322, março

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Silvana de Souza Ramos

O conceito de vida e a gênese da ordem intrínseco de verdade e de repousar sobre si mesma” (Prado Jr. 11, p. 203). No caso de
Bergson e de Merleau-Ponty, essa preocupação circunscreve a crítica à metafísica no
humana
quadro da crítica à negatividade, ou seja, ela desvela a miragem da hipótese de uma
ausência possível. Conseqüentemente, ela permite dar um novo sentido à experiência
Silvana de Souza Ramos*
do Ser, aquém da separação entre consciência e natureza. No caso de Canguilhem, a

Resumo: O artigo investiga a passagem da natureza à cultura através do conceito de vida, tendo destituição da soberania da consciência permite compreender a cultura humana como
como base as formulações de Bergson, Canguilhem e Merleau-Ponty. Para  tanto, é necessário produção da atividade vital de normatizar. Nos três casos, a passagem à cultura não pode
investigar a gênese dos modos de subjetivação – a ação vital, a normatividade do organismo e
ser compreendida sem referir-se a uma natureza ainda não hipostasiada na forma do
o caráter expressivo da vida – proposta por cada um dos autores de modo que possamos refletir
até que ponto se pode explicar a ordem humana (ou seja, a história e a cultura) a partir de sua objeto. Interessa-nos discutir esta formulação articulada à dificuldade de se pensar a
vinculação à natureza. especificidade da vida humana que, embora parta da experiência irrefletida da Natureza,
Palavras-chave: Bergson, Merleau-Ponty, Canguilhem, natureza, cultura
produz formas de subjetivação que não são redutíveis à ordem vital.
Num artigo sobre o “biologismo” de Bergson, Lebrun afirma:

A crítica à metafísica tradicional e à sua pretensão (i) de fundar a especificidade


Graças a Canguilhem, percebíamos que um pensamento filosófico
da existência humana na idéia de que o homem se separa dos outros viventes por possuir não era de nenhuma forma trivial porque partia do princípio de
o privilégio da racionalidade e (ii) de compreender a natureza como objeto encontra que o conhecimento é um produto ou – quem sabe? – um acidente
nas investigações centradas no conceito de vida um aporte preciso e instigante. Neste da vida – e também que ele não conduzia deste fato a uma
‘animalização’ do homem (Lebrun 8, p. 208).
sentido, analisar a racionalidade articulando-a com a vida implica mostrar que a razão
não nos separa da natureza, e que esta não corresponde exatamente ao pensamento que
Canguilhem dizia que a biologia é uma “filosofia da vida”. Esta afirmação
dela temos. Mais que isso. Significa pretender desfazer a cisão tradicional entre natureza
sintetiza uma série de inquietações teóricas. Por um lado, ela retoma uma questão
e cultura, sem perder a capacidade de dar conta da experiência histórico-cultural peculiar
clássica: como racionalizar o fenômeno da vida? Por outro, ela indica que a resposta não
ao homem. Autores como Bergson, Canguilhem e Merleau-Ponty seguiram de diferentes
pode ser buscada numa mera inspeção do entendimento desprovida de mediações. Seria
maneiras esta trilha investigativa no intuito de analisar a gênese da ordem humana para
preciso apelar para fontes não filosóficas no intuito de verdadeiramente compreender o
dissecar sua vinculação com a ordem vital.
surgimento, a sustentação e a evolução da vida em sua infinita variedade.
Ora, tal caminho teórico exige reavaliar o solo irrefletido que sustenta os modos
Enfrentando essa dificuldade, Bergson sinaliza que a inteligência não é
de subjetivação já que este abarca a espessura da experiência capaz de reintegrar o homem
um acontecimento alheio ao desenvolvimento do élan vital. Ao contrário, segundo A
a seu circuito vital. Evidentemente, isso coloca um problema, discutido por Bento Prado
evolução criadora, devemos ver na evolução uma criação sempre renovada de formas
Jr. em seu livro sobre Bergson: na medida em que a experiência ganha uma dimensão
de vida, as quais não são determinadas do exterior – como quer o mecanicismo – nem
a mais, a consciência perde uma dimensão correspondente: ela “deixa de ser um foco
seguem um plano pré-determinado – o que contraria o finalismo. Conseqüentemente, a
* Doutoranda em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da USP e bolsista da Fapesp. Este texto foi vida inteligente não pode ser compreendida como o ápice da evolução, uma vez que
originalmente apresentado no Congresso em homenagem ao centenário de nascimento de Merleau-Ponty, na
UFPR, em setembro de 2008. esta se expande em linhas divergentes e seria um erro pensar numa série unilateral dos

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viventes que culminaria na realização da vida humana. Para Bergson, o que Darwin nascimento à liberdade e à criação ilimitada: “graças à superioridade de seu cérebro,
mostra é que a evolução tem o sentido de uma ruptura epistemológica. Deste modo, [o homem] consegue opor sistematicamente novos hábitos aos antigos e, ao dividir o
a consideração do organismo vivo no interior da evolução criadora leva a uma crítica automatismo contra ele próprio, dominá-lo” (Bergson 2, p. 287).
do conhecimento, uma vez que ela revela “contra o imobilismo e contra a definição Mas não só isso. É preciso considerar ainda que, embora a inteligência crie
do entendimento como especulação, que não só ele é um resultado, mas também que problemas para a apreensão da vida, porquanto ela recorta algo da ordem da totalidade e
sua função só é legível no interior do grande texto da praxis vital em sua totalidade” da duração, há que se atentar para o ganho extraordinário que ela foi capaz de engendrar.
(Prado Jr. 11, p.171). Não se trata, portanto, de reduzir o homem à biologia, mas sim de A diferença entre o homem e o animal deve ser compreendida pelo salto que a ação
entender a origem e a função da inteligência, de não mais tomá-la como fonte única da humana realiza, salto este revelado pelo surgimento da figura inédita do homo faber. Há
verdade ou como fim último da criação. sim superioridade do homem em relação ao animal, mas esta não se deve à aquisição da
Haveria muito que dizer sobre isso, mas guardemos desta formulação um inteligência como superação da ação vital, mas pelo fato de que o ser vivo inteligente
aspecto central: a evolução criadora não pode ser compreendida sem que se esclareça prolonga o próprio movimento da vida, transfigurando assim sua condição de espécie.
a relação entre vida e matéria, o que implica, por sua vez, considerar que o vivente se Ora, o que é uma espécie, segundo Bergson? Uma parada, uma limitação do élan vital,
transforma ao confrontar-se com seu meio. Nas palavras de Bergson: “O organismo uma impotência momentânea para seguir adiante, um estacionamento coletivo. Há, assim,
comporta-se (...) como uma máquina de agir que se reconstruiria para cada ação nova, um antagonismo entre o ser organizado e o movimento da vida, mas este se dissolve no
como se fosse de borracha e pudesse, a todo instante, mudar a forma de todas as suas caso do homem. Todas as espécies que se estabeleceram tiveram de se adaptar de algum
peças” (Bergson 2, p. 274). Ora, tal plasticidade não é privilégio dos organismos modo. No homem, entretanto, adaptação não é estacionamento, já que o impulso que se
complexos. Já as formas elementares de vida são capazes de deformar-se em direções investe na matéria para formar o homem não se transforma em simples potência de auto-
variáveis, segundo as necessidades de adaptação. Cabe ressaltar, contudo, que o élan conservação. Quer dizer, a espécie humana manifesta o impulso que a criou, em lugar de
vital imprime um movimento que é sempre contrariado pela resistência da matéria. apenas reter dele a energia que lhe permite sobreviver e se perpetuar (Lebrun 8, p. 213).
Conseqüentemente, “o desenvolvimento do mundo organizado não é mais do que o Noutras palavras, no homem a corrente da vida consegue passar livremente, de modo que
desenrolar desta luta” (Bergson 2, p. 275). sua criatividade continua ao se desdobrar na técnica, o que permite ao homem não apenas
Dito isto, Bergson analisa a diferença entre a vida humana e as demais formas se adaptar, mas expandir constantemente seus domínios. A superioridade do homem é,
de vida que dispõem de sistema nervoso. Nos animais com sistema nervoso, a consciência portanto, sua destreza técnica, e não teórica. Assim como a vida, a inteligência técnica é
é proporcional à complicação do cruzamento entre as vias sensórias e as vias motoras, tendência a agir sobre a matéria. E, como o instinto, ela é uma prática vital. Entretanto,
ou seja, é proporcional à complexidade do cérebro. Já que a consciência é a potência somente a inteligência técnica torna possível um progresso histórico na medida em que
de escolha de que o organismo dispõe, a consciência humana apresenta, em relação aos ela abre um campo indefinido à atividade humana. Em suma, a técnica é o sinal de que no
outros animais, uma extensão maior de franja de ação possível que envolve a ação real. homem o élan vital permanece ativo, e é este o sentido profundo da ação humana.
Conseqüentemente, no animal, a invenção nunca é uma variação sobre o tema da rotina. Por outro lado, a inteligência, no âmbito teórico, opera um esquecimento de sua
O animal vive aprisionado nos hábitos da espécie. E, embora consiga alargá-los por sua origem e função. É somente nos primeiros tempos, quando surgiu o homo faber, que as
iniciativa individual, só escapa do automatismo por um instante, apenas o tempo de criar ferramentas fabricadas deviam aparecer como substitutos dos órgãos, ou seja, no início
um novo automatismo. A consciência humana, por sua vez, quebra essa corrente, e dá haveria uma experiência dessa continuidade ou desse desdobramento do vital na técnica.

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Em seguida, contudo, como pondera Lebrun, “o ser inteligente se engaja no processo interior de um meio igualmente instável. E é a especificidade criativa da vida humana
ilimitado... e perde de vista (...) a articulação de sua prática primitiva com seu ser-em- que explica o surgimento da sociedade e da cultura. Nestes termos, a obra de Bergson, ao
vida” (Lebrun 8, p. 219-220). Ora, a filosofia deve exatamente desvelar este nó entre vida discutir o estatuto da evolução, permite juntar de maneira inesperada dois movimentos
e inteligência: investigar a vida é ao mesmo tempo desfazer ilusões teóricas e expandir a rivais. Por um lado, a idéia cristã de criação, que subentende um artífice da natureza e
compreensão da peculiaridade da ação humana vinculada à inteligência. da vida ao qual devem ser remetidas as formas naturais. Por outro, a idéia de evolução
Canguilhem, de certo modo, dá continuidade a esta formulação, reafirmando, que, ao contrário, prescreve que as formas têm origem no interior da própria natureza.
inclusive, a gênese vital da técnica. O filósofo consegue, entretanto, através da referência Esta abordagem, no momento em que se volta para a compreensão do desenvolvimento
aos trabalhos de Goldstein, trazer novas diretrizes para o estudo da vida às quais Merleau- dos organismos – no caso de Canguilhem –, complexifica o problema ao mostrar que
Ponty não será insensível. Também aqui a análise da plasticidade característica da vida a vida é essencialmente normativa. A vida jamais é a-normal, porquanto sempre segue
desemboca numa reflexão sobre a relação entre indivíduo e meio, de tal forma que mais criativamente alguma regra. No entanto, na medida em que os organismos possuem a
uma vez a cultura e a liberdade humanas poderão ser reportadas à atividade vital. Importa, potência de ultrapassar a regra, seu desenvolvimento é, no limite, patológico. Como dirá
contudo, salientar que cada vivente explora seu meio à sua maneira, segundo uma escolha Merleau-Ponty no curso sobre a natureza, a vida sempre visa algo além da norma dada.
de valores que indica a criação e o estabelecimento de normas próprias. Canguilhem Mas, perguntamos, será que o esforço de inserir a cultura no interior da criatividade
pode, assim, dizer que há formas de vida ou tipos normativos de vida (Canguilhem vital, apesar de profícuo no que tange à compreensão da origem da inteligência e da
4, p. 85). Entretanto, afirma o filósofo, “a forma e as funções do corpo humano não técnica e da origem da normalidade e da vida social não nos priva, ainda, de compreender
são somente a expressão de condições impostas à vida pelo meio, mas a expressão de o salto qualitativo operado pela ação humana no seio da natureza? Noutros termos, essa
modos de viver socialmente adotados no meio” (Canguilhem 4, p. 203). O que isto investigação pode explicar o surgimento, assim como a manutenção e a evolução das
significa? No campo vital, as normas são imanentes ao próprio organismo. Já as regras formas propriamente simbólicas de comportamento? O desdobramento da ação vital é
sociais são o resultado de escolhas arbitrárias de um sujeito social e não intrínsecas aos suficiente para explicar o surgimento do simbólico?
fatos e objetos aos quais elas são aplicadas. Conseqüentemente, a experiência normativa Ora, Merleau-Ponty, no curso sobre a Natureza, ministrado no Collège de
abre constantemente a possibilidade de inversão das normas sociais: o indivíduo está France, defende que a expressividade – enquanto capacidade de “instituir” novas
sujeito às normas sedimentadas historicamente, mas simultaneamente as submete à sua formas de comportamento – já está presente na ordem vital, uma vez que a própria
própria potência normativa. Quer dizer, há um entrelaçamento entre vital e cultural, e vida é compreendida como “advento”. O que implica diminuir a distância entre o
não supressão de um pelo outro, de tal modo que podemos presenciar na cultura um homem e o animal não pela vida, como vimos até agora, mas pela expressão. Neste
desdobramento da atividade vital nas suas cristalizações momentâneas que engendram sentido, não se trata de explicar o comportamento humano vinculando-o somente à
a normalização. Mas, a despeito destas cristalizações, importa frisar que a normalização plasticidade ou à normatividade, mas sim de buscar na vida em geral a gênese da
(algo do âmbito específico da história humana) tem origem no vital e está sujeita à expressão propriamente dita. Se considerarmos as formulações presentes no curso
recriação por parte do vivente enquanto tal. sobre a Natureza, notaremos que há de certo modo cultura e liberdade já na vida
Portanto, para Canguilhem, assim como para Bergson, a liberdade humana está animal, e isto se deve especificamente ao fato de que a natureza é dotada de interior e
articulada não a uma racionalidade apartada de qualquer vínculo vital, mas à plasticidade capaz de expressão e que o “sujeito” que a percebe não a sobrevoa. Entretanto, cabe
ou capacidade que o próprio organismo tem de criar possibilidades variadas de ação no considerar que esta posição, como precisa Barbaras, marca uma inflexão no interior

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do pensamento merleau-pontiano frente à sua primeira fase (Cf. Barbaras 1). natureza. Para engendrar este conceito, é preciso assumir o projeto de uma ontologia
De fato, na Estrutura do comportamento, Merleau-Ponty mostrava que a que verdadeiramente faça frente à ontologia do objeto. E isto exige repensar nossa
estrutura simbólica, diferentemente da estrutura vital, não envolve apenas a adaptação, relação com o mundo a partir do vivente.
pois permite ao homem, por um movimento de transcendência, ultrapassar a situação O curso sobre a Natureza assume a dificuldade e apresenta um estudo das variações
dada através de um comportamento dirigido ao “possível”. Isto porque o homem projeta deste conceito ao longo da história. Não se trata de uma exposição desinteressada visto
no exterior a multiplicidade relacional da qual seu corpo – como coisa invariante que que ao retomar um problema aparentemente obsoleto, Merleau-Ponty coloca em revista
entra em diversas relações com outras coisas sem se alterar – é capaz. E é nestes termos os descaminhos do pensamento moderno que levaram a destituir a natureza de espírito e
que Merleau-Ponty pode afirmar que a integração do comportamento humano é superior de expressão. Nas palavras do filósofo, trata-se de “buscar nos desenvolvimentos do saber
à do animal. Assim, enquanto para o comportamento animal os signos são apenas sinais os sintomas de uma nova tomada de consciência da Natureza” (Merleau-Ponty 10, p.
fixos e sucessivos, o comportamento humano permite o uso simbólico do signo na medida 357). Assim, frente à concepção abstrata do homem e positiva da natureza, Merleau-Ponty
em que este deixa de ser um acontecimento fixo e atual para se tornar o tema próprio mostra como as pesquisas da ciência contemporânea corroboram para uma compreensão
de uma atividade que tende a exprimi-lo. O comportamento simbólico é, portanto, a do ser natural cujo alcance ontológico concerne à filosofia. Mas como valer-se de conceitos
“condição de toda criação e de toda novidade nos ‘fins’ da conduta” (Merleau-Ponty 9, advindos das ciências no intuito de esclarecer e recolocar a idéia de natureza?
p. 131, grifo nosso). Conseqüentemente, a ordem humana inaugura, através da percepção, Ora, o estudo do ser natural ganha um estatuto ontológico na medida em que
a lógica da expressão, lógica que depois se propaga na linguagem e no trabalho. Nos três a inteligibilidade da natureza remete diretamente à possibilidade de apreensão do que
casos, o organismo é lançado para fora de si mesmo num campo móvel de possibilidades Merleau-Ponty denomina de Ser Bruto. Diferentemente das análises empreendidas n’A
disponíveis no interior da estrutura simbólica. Compreendemos assim que o caráter estrutura do comportamento, onde a forma ou estrutura aparecia como ponto de partida
adaptativo da estrutura vital não dá conta da ordem humana porque a experiência do para a percepção e a compreensão dos diferentes níveis de individualidade, interessa agora
corpo próprio sugere outra extrapolação da natureza. Quer dizer, a passagem à ordem investigar o próprio surgimento das estruturas. Em suma, o que está em questão aqui é o
humana é um salto qualitativo que não pode ser pensado nos limites de uma antropologia estatuto de uma inteligibilidade que permita compreender a criação ou o engendramento
biológica porque através dela, como observa Le Blanc, o corpo humano difere do corpo de formas no interior da natureza. Neste contexto, a idéia de vida aparece como central
animal. O corpo humano já é cultura. já que as pesquisas científicas em torno da embriogênese e da evolução abrem campo
Percebemos que Merleau-Ponty difere das análises de Canguilhem na medida à formulação de conceitos capazes de dar conta do surgimento da história no interior
em que a vida humana, uma vez que opera segundo uma estrutura própria, escapa da natureza. Em consonância com as perspectivas de Claude Bernard e de Bergson,
do quadro da biologia. Sinal disso é o fato de que o comportamento humano não é Merleau-Ponty assevera que a vida é criação e que a evolução tem de ser compreendida
normativo, mas simbólico. Teríamos então de abandonar a referência à vida? Do ponto no entrelaçamento desses dois movimentos. Entretanto, uma vez que o advento da vida
de vista d’A estrutura do comportamento, sim. É preciso extrapolar dialeticamente é a expressão de uma natureza capaz de instituir novas formas, trata-se de investigar o
a vida para entender a cultura já que a percepção é privilégio humano, além de ser simbolismo natural operado na evolução.
o único comportamento capaz de englobar os demais. Ora, o que impede Merleau- Sabemos que as ponderações em torno da fala falante e do gesto pictórico
Ponty de dar uma resposta à pergunta que fazíamos (sem abrir mão da idéia de vida) permitem a Merleau-Ponty compreender a expressão como um “advento”, isto é, como a
é o fato de que A estrutura do comportamento não possui um conceito expressivo de instituição de uma significação inédita. A expressão é o ato de criação capaz de reinventar

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seu passado e de abrir novas dimensões de futuro. Por isso, ela deve ser compreendida na que o comportamento é armado no organismo. Como sistema de dimensões, a anatomia
sua historicidade fundamental. Ora, isto que advém na linguagem e na pintura pode ser desenha em profundidade as ações possíveis do animal. Portanto, as adaptações precoces
assistido na evolução da vida de modo que esta, além de configurar um primeiro poder testemunham que um corpo, mesmo no estágio embrionário, não pode ser concebido
de expressão, envolve, num mesmo movimento criativo, o início de toda história. Assim, fora de um comportamento possível. Isto permite concluir que no embrião já existe
notar que a vida é capaz de evolução significa encontrar aí as bases de uma verdadeira referência ao futuro; que o organismo contém o possível; que o embrião não é simples
compreensão da história e da cultura. matéria, mas matéria organizada referida ao futuro; que contemplar o desenvolvimento
Os trabalhos de Coghill e Gesell em torno da relação entre comportamento e do animal implica saber como ele próprio toma posse de seu corpo e de seu meio. O
desenvolvimento embrionário fornecem o ponto de partida para as novas investigações das organismo é, pois, não uma unidade acabada, mas um “poder”. Conseqüentemente,
estruturas viventes permitindo articular um novo campo de compreensão da historicidade devemos compreender o corpo do embrião, não como conjunto de órgãos votados a
do desenvolvimento dos seres vivos. Por exemplo, a descrição da embriogênese do certas funções determinadas, mas como um conjunto de “capacidades” ou ainda de
lagarto capaz de nadar durante a fase de girino sugere a seguinte questão: como pode “posturas”. Ora, postura e anatomia são inseparáveis porquanto a anatomia prescreve
um animal apresentar um comportamento adaptado na fase de embrião? Coghill, no certo estilo de ações, ou ainda, como diria Ruyer, um “tema” motor aberto a todas as
intuito de explicar esse desenvolvimento “anormal”, mostra que o embrião é submetido variações da conduta. Assim, na medida em que a vida é abertura a dimensões inéditas,
a uma regulação morfológica. O interessante é que tal regulação não provém do sistema ela é operação primordial, instituição e criação de sentido.
nervoso (uma vez que este não se encontra desenvolvido). Compreendê-la exige tomar o Notamos que a idéia de “possível” é central nesta argumentação. Num primeiro
embrião como totalidade indecomponível e sempre completa em cada um de seus níveis. momento, ela assinala que os comportamentos atuais do corpo vivente articulam uma
Nas palavras de Bimbenet: “Antes de ser regido por um sistema de condução nervosa espécie de latitude de comportamentos “possíveis”. Num segundo momento, surge um
o organismo é, portanto, totalizado por uma polarização dita pré-neural, ele é medido sentido mais radical. Como mostra o desenvolvimento do lagarto, há no corpo mais que
por um conjunto de dimensões que organizam o processo de sua ontogênese” (Bimbenet nado, no sentido de que a anatomia do embrião se diferencia no interior dela própria.
3, p. 131). Ou seja, desde o início o organismo é articulado, de modo que a conexão Assim, a marcha é como um nado aperfeiçoado, isto é, um aperfeiçoamento do girino no
nervosa é, em relação à polarização pré-neural, um fator secundário. Há um nível mais interior de si. Quer dizer, em sua generalidade, um sistema de dimensões morfológicas
profundo de plasticidade que somente o estudo da embriogênese pode desvendar. Assim, e funcionais é aberto a uma especificação futura. Por conseguinte, o corpo vivo não é
a embriogênese nos leva ao primado da totalidade na ordem dos fenômenos da vida, já somente potência de diferentes comportamentos atuais, mas potência de se transformar a
que a forma ou totalidade é o caráter do vivente desde sua formação. si próprio, de aprofundar-se em direção ao futuro longínquo de seus estados ulteriores.
Mas qual o estatuto desta totalidade? A totalização do corpo do embrião é ao Dizer isto é avançar em relação à Estrutura do comportamento, já que a
mesmo tempo morfológica e funcional, o que permite afirmar que corpo e comportamento totalidade ou a estrutura não é mais definida como uma realidade típica do animal.
são recíprocos. Isto permite por em revista as posições teóricas de Lamarck (cujo finalismo Em seu devir embriológico, como em seus comportamentos atuais, o animal é uma
leva a afirmar que a função comanda a transformação do órgão) e de Darwin (segundo totalidade sem termo assinalável. Há, portanto, como afirma Bimbenet, um caráter
o qual, a partir de uma concepção mecanicista, pode-se mostrar que a transformação interrogativo essencial à vida alheio à finalidade. Assim como a pintura, que surge
do órgão induz uma nova função). Nos dois casos, a relação entre órgão e função é no entrecruzamento de acaso e lógica, o élan vital não sabe para onde vai: se a vida
compreendida de maneira exterior. Ao contrário do que afirmam, é preciso entender improvisa comportamentos mais aperfeiçoados, é porque encontra obstáculos que lhe

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impedem de fixar-se numa forma ou regra. em geral. Semelhança que Merleau-Ponty já assinala na introdução do curso quando diz
Todavia, o estudo do mimetismo animal dá ensejo a uma compreensão ainda que o caminho em direção ao conhecimento da natureza fora de nós tem de passar pela
mais profunda do caráter expressivo do comportamento vital. Neste intuito, cabe agora natureza em nós. O surpreendente é que essa semelhança entre os dois pólos é da ordem
olhar o animal como uma obra de arte, não apenas no que diz respeito à sua formação, da cultura, é o simbólico. Conseqüentemente, não é o vital que se supera na expressão
mas também naquilo que o configura como um processo oferecido à visibilidade. Já no (algo que Merleau-Ponty admitia n’A estrutura do comportamento, talvez por excessiva
devir do embrião assistíamos o milagre expressivo de uma totalidade a ponto de fazer. referência a Cassirer). Isto nos permite observa que, diferentemente do que dizia Merleau-
Os estudos em torno do mimetismo permitem questionar, contudo, a importância da Ponty ao criticar Bergson n’A estrutura do comportamento (quando o filósofo dizia que a
adaptação para a compreensão do comportamento animal. Na verdade, importa dar um aproximação entre instinto e inteligência como duas soluções elegantes para um mesmo
salto em relação à formulação anterior e mostrar que a idéia de adaptação como cânone da problema desfaz a hierarquia entre homem e animal), não há mais preocupação em
vida pressupõe que o comportamento animal visa sempre uma utilidade. Nas palavras de hierarquizar essa relação. Aliás, já no ensaio “O filósofo e sua sombra”, Merleau-Ponty
Merleau-Ponty: “A forma do animal não é a manifestação de uma finalidade, mas, antes, considera a intercorporeidade sem excluir dela a sensibilidade animal. No curso sobre a
de um valor existencial de manifestação, de apresentação” (Merleau-Ponty 10, p. 305). natureza isso aparece de maneira radical, e entre o homem e o animal se configura não
O mimetismo animal assegura que entre a morfologia do animal e o meio uma relação hierarquizada, mas uma intercorporeidade lateral, um entrecruzamento de
há semelhança ou indivisão, o que indica uma relação perceptiva entre os dois. percepções. É como se Merleau-Ponty abandonasse o projeto frustrado de uma teoria
Conseqüentemente, ele permite configurar a dimensão simbólica da natureza ao do sujeito para tentar compreender os processos instáveis de individuação no interior de
indicar que o comportamento só pode ser definido por uma relação perceptiva e que uma natureza essencialmente relacional.
o Ser (ou seja, a natureza) não pode ser tomado fora do “ser percebido”. É isso que Notamos assim que enquanto Bergson e Canguilhem acentuam o caráter vital
permite conceber o corpo como “maneira de exprimir”, e, ademais, exige estudar o do comportamento humano de modo a esclarecer a origem vital do sentido, Merleau-
comportamento animal como se tratasse de uma linguagem. Assim, comportamentos Ponty, ao contrário, busca na natureza uma expressividade que não é privilégio humano,
que imaginamos visar a adaptação são, na verdade, pura expressão do animal. É o caso mas produtividade do ser bruto. Isso permite compreender um dos movimentos maiores
dos rituais de acasalamento que, muitas vezes, longe de assegurar o coito, colocam o do pensamento merleau-pontyano: a passagem do primado do corpo próprio ao primado
animal em risco ao torná-lo presa fácil e vulnerável. do ser bruto entendido como natureza. Mas, perguntamos, até que ponto não se trata de
Notemos que o que está em jogo aqui é uma racionalidade que encontre na uma projeção da percepção humana sobre a natureza? Merleau-Ponty tem consciência
percepção da natureza novas estruturas conceituais capazes de compreender nossa relação deste problema, e assim se defende:
originária como o Ser. É como se Merleau-Ponty buscasse no próprio Ser os parâmetros
conceituais que possibilitam a sua descrição. Em outras palavras, é preciso deixar-se Mas, dirão, fazer da semelhança um fator operante na natureza,
é não ver que a semelhança só tem sentido para o olho humano.
guiar pela expressividade natural de modo a compreender a história que ali se faz e que se
(...) Dizer, por outro lado, que as relações miméticas não
prolonga em nós. Isso exige afirmar que a percepção não é privilégio humano, como n’A
fazem parte do Ser, é um postulado, e é exatamente isso que
estrutura do comportamento. Na natureza, o ser é mostrar-se. Há uma correlação que se está em questão. A relação do animal com seu meio é uma
estabelece entre o dar-se à visibilidade e a própria visão, de modo que é possível pensar relação física no sentido estreito da palavra? Tal é justamente
numa semelhança entre a nossa percepção e o modo de aparição dos comportamentos a questão. Ao contrário, o que mimetismo parece dizer é que o

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comportamento só pode se definir por uma relação perceptiva Referências bibliográficas


e que o Ser não pode ser definido fora do Ser percebido
(Merleau-Ponty 10, p. 247). 1. Barbaras, R. “Merleau-Ponty et la nature”, Chiasmi International, Vol. 2, 2000.
2. Bergson, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Noutras palavras, o animal vê segundo o modo pelo qual ele é visível. Há 3. Bimbenet, E. Nature et humanité. Le problème anthropologique dans l’ouvre de
Merleau-Ponty. Paris: Vrin, 2004.
uma relação especular entre os animais, o que confere um valor ontológico à noção
4. Canguilhem, G. Le normal et le pathologique. Paris: PUF, 2007.
de espécie. A espécie não é conjunto de animais isolados, mas uma interanimalidade.
5. Goldstein, K. La structure de l’organisme. Paris: Gallimard, 1983.
Quer dizer, Merleau-Ponty não se pergunta como o animal aparece para o homem, 6. Le Blanc, G. Canguilhem et les normes. Paris: PUF, 1998.
mas como os animais se dão a ver uns aos outros. É a intercorporalidade animal 7. __________. Les créations corporelles. Une lecture de Merleau-Ponty. http://revue.
que está em questão. Evidentemente, como já afirmava Uexküll, nunca saberemos org/document129.html, 2004.
8. Lebrun, G. “De la superiorité du vivant humain dans L’Évolution créatrice” in
exatamente o que é a experiência de mundo de um carrapato. Mas podemos inferir
Georges Canguilhem. Philosophe, historien des sciences. Actes du Colloque
que há ali um meio e uma temporalidade singular do animal. Ora, todos os estudos
(6-7-8 décembre 1990). Paris: Albin Michel, 1993.
analisados por Merleau-Ponty levam ao questionamento da noção de instinto, de 9. Merleau-Ponty, M. Le structure du comportement. Paris: PUF: Quadrige, 2001.
modo que seja banida de sua compreensão a idéia de finalidade e de adaptação. Neste 10. _______________.La Nature. Cours du Collège de France. Paris: Seuil, 1994.
sentido, os trabalhos de Lorenz mostram que o instinto é uma atividade primordial 11. Prado Jr, B. Presença e campo transcendental. Consciência e negatividade na
filosofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1989.
sem objeto. Ele é pura expressão do animal. Daí seu caráter onírico, sua referência ao
12. Uexküll, J. Mondes animaux et monde humain. Paris: Denoël, 2004.
inatual, expressa no êxtase dos jogos e ritualizações que se resumem ao prazer. Em
suma, o instinto é antes de tudo um tema ou um estilo, um dar-se à visibilidade que
configura uma intercorporeidade no interior do ser percebido. The concept of life and the genesis of the human order
Isso nos permite retomar nossa questão inicial. Com Bergson e Canguilhem
Abstract: This paper investigates the transition from nature to culture through the concept of life,
corremos o risco de perder o sentido próprio do cultural ou do simbólico em proveito da
taking as basis the Bergson, Canguilhem and Merleau-Ponty’s formulations. In order to do that, it
postulação da potência da vida. Não estaríamos, com Merleau-Ponty, fazendo o movimento is necessary to investigate the genesis of modes of subjectivation – the vital action, the organism’s
contrário, ou seja, transformando tudo em cultura? Não há aqui a oscilação de uma espécie normativity and the expressive character of life – stated by each one of the authors, so that we can
reflect on up to which point one can explain the human order (that is, the history and the culture)
de pêndulo da má infinitude, que vai da natureza à cultura e da cultura à natureza sem
through its linking to the nature.
mediação possível? Ora, que simbólico é este que nasce nas operações do embrião e se Keywords: Bergson, Merleau-Ponty, Canguilhem, nature, culture
prolonga no mimetismo animal para saltar para a técnica e a arte humanas? Quer dizer,
todo este trajeto nos deixa num certo estado de perplexidade, já que os avanços de Merleau-
Ponty em direção à compreensão do simbólico complexificam o conceito de natureza, mas,
correlativamente, parecem insinuar uma certa historicidade do ser encarnado, ao invés de
nos fornecer uma compreensão precisa da noção de história e de cultura. O que poderia
apontar para um limite inerente a este tipo de formulação que parece ser incapaz de passar
da natureza à cultura sem que um dos pólos seja de certa forma sacrificado.
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Pablo Zunino

Merleau-Ponty e a bola de neve: elogio e crítica imediato que o precedeu, o tempo escoado é inteiramente retomado
e apreendido no presente” (Merleau-Ponty 4, p. 83 [106]).1
de Bergson*
Depois, no capítulo sobre o “cogito”, Merleau-Ponty examina o fenômeno
Pablo Zunino**
da linguagem e mostra como um pensamento “adquirido” pode ser considerado
intemporal. Para explicitar essa “aquisição para sempre”, o autor lança mão do modelo
Resumo: Este artigo examina algumas aproximações e distanciamentos de Merleau-Ponty em
relação à filosofia de Bergson, tendo em vista que Merleau-Ponty parece dividido quanto ao da temporalidade, pois dizer que um acontecimento temporal tem lugar quer dizer que
seu parecer sobre a concepção bergsoniana do tempo. Essa oscilação entre crítica e elogio é este “será verdadeiro pra sempre” (Merleau-Ponty 4, p.450 [525]). A “pirâmide de
certamente visível na Fenomenologia da percepção, na qual Merleau-Ponty reconhece que
passado”, que Merleau-Ponty toma de empréstimo de Proust para ilustrar o fenômeno
Bergson teria dissolvido a questão do dualismo ao afirmar que “o corpo e o espírito se comunicam
pela mediação do tempo”. Entretanto, Merleau-Ponty vai denunciar outra espécie de dualismo irredutível da aquisição, projeta atrás de si o “cone”, que Bergson descreve em Matéria e
bergsoniano, que pretende reencontrar a unidade na multiplicidade por meio do conceito de memória, como a sombra reveladora do argumento filosófico:
“multiplicidade de fusão”. Nesse sentido, a metáfora bergsoniana da “bola de neve” procura
caracterizar a essência do tempo enquanto duração.
Palavras-chave: Merleau-Ponty, Bergson, temporalidade, dualismo, subjetividade.
“Aquilo que vivemos é e permanece perpetuamente para nós, o
velho toca sua infância. Cada presente que se produz crava-se no
tempo como uma cunha e pretende a eternidade. A eternidade não é
uma outra ordem para além do tempo, ela é a atmosfera do tempo”
Introdução (Merleau-Ponty 4, pp. 450-451 [p.526]).

Merleau-Ponty desenvolve o tema da “temporalidade”, numa passagem do Julgamos que uma investigação sobre as tensões entre ambos os filósofos, sejam
capítulo homônimo da Fenomenologia da percepção que começa assim: “Apliquemos elas aproximações ou distanciamentos, nos permitirá distinguir o que é que Merleau-
a idéia da subjetividade como temporalidade aos problemas pelos quais começamos” Ponty retoma de Bergson e o que é modificado. Contudo, num primeiro momento, nosso
(Merleau-Ponty 4, p. 492). Assim, o problema da relação entre a alma e o corpo remete à trabalho será mais humilde e embrionário, na exata medida em que pretendemos alinhar
questão de “saber como um ser que é porvir e passado tem também um presente” (Ibid.). aqui algumas notas que preparem o terreno para um estudo frutífero sobre a convergência
Todavia, pensamos que Merleau-Ponty retoma, certamente através de uma inflexão no pensamento desses dois autores.
importante, aquilo que para Bergson era uma conservação automática do passado.
Merleau-Ponty, então, vai reivindicar um “tempo verdadeiro”, no qual apreendemos ***
a passagem e o próprio trânsito. Mas essa ressonância bergsoniana de um tempo que
mantém tudo a encontramos primeiramente no capítulo sobre o “corpo”: Como se sabe, o projeto fenomenológico de Merleau-Ponty está inserido no
propósito geral da fenomenologia husserliana de voltar às próprias coisas, isto é, de
“O presente ainda conserva em suas mãos o passado imediato, sem reencontrar a camada originária da relação da consciência consigo mesma e com o mundo.
pô-lo como objeto, e, como este retém da mesma maneira o passado
Nesse sentido, a noção de correlação estabelece uma reciprocidade entre sujeito e objeto
* Texto originalmente apresentado como comunicação de pesquisa durante a Jornada “Merleau-Ponty e o que faz com que a consciência e os conteúdos do mundo sejam correlatos, de modo
Grande Racionalismo”. São Paulo: FFLCH-USP, 2008.
** Doutorando USP / CNPq
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que não pode existir um sem o outro. Assim, a grande contribuição de Husserl consiste obra Para uma fenomenologia da consciência do tempo interior.3
em mostrar que consciência e subjetividade significam movimento intencional. Todavia, Não obstante, como também observa Damon Moutinho, Merleau-Ponty
a concepção husserliana de um sujeito universal situado fora do mundo (subjetividade define um projeto de filosofia distinto daquele que poderia ser caracterizado como uma
transcendental) foi abandonada por Merleau-Ponty ao procurar unir num mesmo solo “fenomenologia da razão”. Para ele, o estatuto da reflexão e a experiência do irrefletido
o empírico e o campo fenomenal, adotando o corpo como sendo o novo sujeito da devem considerar-se à luz da noção de “acontecimento” evidenciando ainda mais a
percepção. Bento Prado Jr. sugere que essa guinada no projeto merleau-pontyano anuncia presença de Bergson na letra de Merleau-Ponty:
certa influência da reflexão bergsoniana, marcada pela recusa inicial de emprestar ao
mundo o caráter de um sistema de objetos que se desata diante de um impassível sujeito “Merleau-Ponty não deixa de notar que é o modelo bergsoniano
que supõe, não mais que o sujeito absorva o objeto, como o modelo
teórico, transmundano e “não-situado” (Cf. Prado Jr. 8).
reflexivo, mas, ao contrário, que o sujeito se dilate até se confundir
Bergson, por sua vez, também propõe um retorno aos dados imediatos que deve
com o objeto (...): não é o ser que é reduzido a um correlato e
pautar-se pela consideração de um dado fundamental da realidade, a saber, o tempo ou absorvido pelo saber; é o saber que se expande até o sujeito fundir-
a temporalidade presente na realidade subjetiva e objetiva. Assim, Bergson vai procurar se ao ser” (Moutinho 7, p.14).
uma via para a compreensão da subjetividade sem limitar-se à abordagem na interface
interioridade-exterioridade, pois a consciência não é mais considerada como um dado É importante notar que para Merleau-Ponty a noção de acontecimento não tem

a priori e sim como resultado de um processo que tampouco se constitui a partir de lugar no “mundo objetivo”, já que este é desprovido seja do passado seja do futuro. No

uma estrutura intencional. Trata-se de uma consciência que é constituída pelo “campo mundo objetivo, a única dimensão temporal que existe é aquela do presente. Daí a crítica

transcendental” das imagens sem, no entanto, constituí-lo. Desse modo, a relação entre de Merleau-Ponty à célebre passagem de Heráclito, que compara o curso do tempo ao

sujeito e objeto é concebida por Bergson a partir de um “campo de imagens” anterior à curso de um rio: o tempo escoaria do passado para o presente e do presente para o futuro.

própria relação. Esse “campo transcendental”, como foi chamado por Bento Prado Jr, Mas essa comparação é muito confusa (Cf. Merleau-Ponty 4, p.470), dirá Merleau-Ponty.

mostra como se dá o nascimento da subjetividade no corpo próprio, isto é, na corporeidade Os acontecimentos tais como a formação da neve no alto da montanha, o seu derretimento,

interiorizada ou na presença corporal. Por esse viés, o problema da relação entre espírito a formação da água, e assim por diante, são recortes do mundo objetivo, mas a própria

e matéria também recebe um tratamento adequado, visto que se trata do surgimento, noção de “acontecimento” não teria sentido sem a presença de alguém a quem alguma

no seio da matéria, da percepção da própria matéria. Esse processo de constituição coisa acontecesse. O tempo supõe necessariamente um sujeito, por isso a metáfora do rio

da subjetividade deve ser compreendido como finitude ou como empobrecimento da deve adicioná-lo sub-repticiamente como um observador implícito, de modo que para

Presença. Evidentemente, essas análises bergsonianas exerceram uma enorme influência Merleau-Ponty, o tempo não pode ser — como acredita Bergson — um “processo real”,

no pensamento de Merleau-Ponty, sobretudo na noção de mundo pré-objetivo ou pré- senão algo que “nasce de minha relação com as coisas”:

reflexivo. Com isso, ele pode deslocar o papel do sujeito na fenomenologia, que seria ainda
“Não é o passado que empurra o presente nem o presente que
preponderante e estaria dentro da tradição moderna das “filosofias da subjetividade”.2
empurra o futuro para o ser; o porvir não é preparado atrás do
Mas a relação entre subjetividade e temporalidade que se estabelece na fenomenologia de
observador, ele se premedita em frente dele, como a tempestade no
Merleau-Ponty não deriva necessariamente dessa inspiração bergsoniana, pois o próprio horizonte” (Merleau-Ponty 4, p. 470-471 [551]).
Husserl já havia introduzido as noções de “campo de presença” ou “presente vivo” na sua

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Cadernos Espinosanos XX Pablo Zunino

Contudo, Merleau-Ponty aceita a tese da equivalência bergsoniana entre corpo


e presente, e espírito e escoamento do tempo (passado, futuro). O caminho tradicional, idéia de tensão procuramos suspender a oposição da qualidade à
trilhado por Descartes ao tratar da união da alma e do corpo, era antes em termos espaciais quantidade, como, através da idéia de extensão, a do inextenso ao
extenso. Extensão e tensão admitem graus múltiplos, mas sempre
do que temporais. Isso porque ele opõe radicalmente o extenso (corpo) ao inextenso
determinados. A função do entendimento é retirar desses dois
(alma). Dessa oposição inicial entre contraditórios provém a obscuridade da questão. Na gêneros, extensão e tensão, seu recipiente vazio, isto é, o espaço
hipótese dualista, a matéria é vista como espacialmente divisível, ao passo que os estados homogêneo e a quantidade pura, substituir deste modo realidades
de consciência (alma) são rigorosamente inextensos. Assim, corta-se de saída qualquer flexíveis, que compolrtam graus, por abstrações rígidas, nascidas
comunicação entre ambos os termos. O erro do dualismo vulgar, apontado por Bergson, das necessidades da ação” (Bergson 1, p. 289).5

é situar-se no ponto de vista do espaço e situar as sensações inextensas na consciência,


Merleau-Ponty retoma a substituição bergsoniana do código espacial pelo
tornando incompreensível a comunicação entre o corpo e o espírito. E o que faz Bergson?
código temporal ao reconhecer uma diferença de grau e não de natureza entre matéria
Ele substitui o “código espacial” pelo “código temporal”4, ou seja, mostra que a matéria
e espírito. Mas a questão está em saber se Bergson ainda conserva algo do dualismo
pode ser compreendida por nós como uma sucessão de momentos ou de movimentos
ao fazer essa “substituição”. Ora, a prerrogativa do tempo não significa conservação
rápidos, separando-se assim da sua espacialidade. As diversas cores, por exemplo, são
do dualismo, porque Bergson não está apenas substituindo o espaço pelo tempo, ou um
determinadas freqüências recolhidas por nossa percepção no campo transcendental.
código por outro. O que é preciso ressaltar é que essa leitura que Merleau-Ponty faz
Nessa medida, a “ação virtual” passa a ser entendida como expressão da nossa capacidade
da substituição dos códigos o aproxima de Bergson ao aproximá-lo do monismo (graus
de agir:
de tensão da duração). Essa convergência, observada na Fenomenologia da percepção,

“É essa ação virtual que extrai da matéria nossas percepções reais, pode ser afirmada de forma independente dos desenvolvimentos posteriores, apelando-
informações das quais necessita para se guiar, condensações, num se para os cursos em que a questão é retomada. O tratamento crítico que Bergson dá aos
instante de nossa duração, de milhares, de milhões, de bilhões de dualismos não consiste em conservar a dualidade e mudar a escolha dos termos. Por isso,
acontecimentos que se realizam na duração muitíssimo menos
não se pode falar em Bergson da “unidade” do tempo por oposição à multiplicidade.
tensionada das coisas” (Bergson 3, p. 64).
Todavia, Merleau-Ponty recusa a noção bergsoniana de “multiplicidade de fusão

O espírito, por sua vez, passa a ser compreendido como memória, isto é, ou de interpenetração”, pois essa noção estaria presa a um quadro dualista e naturalista: “se

progresso, evolução, permitindo que os dois termos sejam capazes de se unir. No “código trata ainda de dois gêneros de ser. Apenas se substitui a energia mecânica por uma energia

espacial”, a matéria é aquilo que está no espaço e o espírito aquilo que está fora do espiritual”. Mas o principal motivo dessa recusa merleau-pontiana da multiplicidade de

espaço. Porém, no código temporal, existem infinidades de graus entre matéria e espírito, fusão é a tentativa bergsoniana de reencontrar a unidade na multiplicidade, visto que

os quais, por isso, não apresentam diferenças qualitativas. Portanto, pode haver união esta noção faz evaporar a multiplicidade na unidade. Se o tempo é compreendido como

entre corpo e alma: multiplicidade de fusão, ele se evapora, pois falta a multiplicidade: “se, em virtude do
princípio de continuidade, o passado pertence ainda ao presente e o presente já é do
“Entre as qualidades sensíveis consideradas em nossa passado, não há nem presente nem passado; se a consciência faz bola de neve6 consigo
representação e essas mesmas qualidades tratadas como mesma, ela estará como a bola de neve e como todas as coisas, toda inteira no presente”
mudanças calculáveis, há portanto apenas uma diferença de ritmo (Merleau-Ponty 4, p.319-320, nota 1 [644-645, nota 47]). Essa crítica é retomada nas
de duração, uma diferença de tensão interior. Assim, através da

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páginas sobre a temporalidade (Merleau-Ponty 4, p.474-475, nota 1 [652-653, nota 3]), Bergson dá conta da retro-referência pela conservação das nossas percepções
onde Merleau-Ponty introduz a noção husserliana de síntese7: ou, como objeta Merleau-Ponty, por meio de uma percepção conservada que “está
sempre no presente, ela não abre à nossa frente essa dimensão de fuga e de ausência
“Síntese passiva do tempo — uma expressão que evidentemente que é o passado” (Merleau-Ponty 4, p.473 [554]). Tendo excluído o não-ser da vida da
não é uma solução, mas um índice para designar o problema (...).
consciência, Bergson não consegue dar conta da constituição do tempo nem superar as
Falando em síntese passiva, queríamos dizer que o múltiplo é
teorias que ele mesmo critica. E a crítica de Merleau-Ponty a Bergson se conclui assim:
penetrado por nós e que, todavia, não somos nós que efetuamos
sua síntese” (Merleau-Ponty 4, pp. 479 [561]; 488 [572]).
“Quando ele diz que a duração faz ‘bola de neve consigo mesma’,
quando no inconsciente ele acumula lembranças em si, ele forma
Além disso, Merleau-Ponty julga que Bergson conhece somente o “corpo
o tempo com o presente conservado, a evolução com o evoluído”
objetivo”, mas ignora o “corpo fenomenal” (Merleau-Ponty 4, p.493 [578]); compreende (Merleau-Ponty 4, p. 474-475, nota 1 [652-653, nota 3]).
a consciência antes como “conhecimento” que como “existência”, fazendo do tempo
uma “sucessão de agoras” (aquilo que Heidegger chamava de “tempo nivelado ou O defeito irremediável da concepção bergsoniana do tempo é, segundo
vulgar”); e ignorou o “movimento único pelo qual se constituem as três dimensões Merleau-Ponty, querer constituir o tempo com o presente. Essa crítica merleau-pontiana
do tempo” (Merleau-Ponty 4, p. 471 [552]). Sendo assim, Bergson não estaria de Bergson nos parece bastante problemática porque Merleau-Ponty parece atribuir a
completamente certo, embora sua idéia esteja correta, aquela pela qual o corpo e o Bergson uma espécie de dualismo, não mais um dualismo de corpo e alma, mas um
espírito se comunicam pela mediação do tempo. dualismo consciente – inconsciente. Na medida em que todo o esforço do pensamento
No capítulo sobre a temporalidade, Merleau-Ponty mostra que o tempo não é bergsoniano é precisamente para sair do dualismo, o tema das lembranças que poderiam
compreensível a partir das coisas nem do ser: “aquilo que falta ao próprio ser para ser ser conservadas no inconsciente parece-me mais próximo de Freud que de Bergson.8 Se
temporal, é o não-ser do alhures, do outrora e do amanhã” (Merleau-Ponty 4, p. 471). o passado, como disse Bergson, se conserva a si mesmo automaticamente, ele aparece ao
Se o tempo não é compreensível a partir das coisas, tanto menos o será a partir de uma campo de consciência no modo de virtualidade e não precisa deixar um traço em algum
consciência que teria o modo de ser de uma coisa e padeceria da mesma saturação de ser. lugar particular para conservar-se. Mais adiante, nas notas inéditas de fevereiro de 1959,
Donde a crítica da teoria do engramme, teoria segundo a qual haveria uma conservação Merleau-Ponty reencontrará toda a originalidade do pensamento de Bergson:
somática ou corporal do passado. Nunca um traço presente poderá explicar a retro-
referência, isto é, o visar de um passado como passado. Merleau-Ponty também censura “Bergson. Mostrar o valor das “imagens” como aquilo que
Bergson por ter cometido exatamente o mesmo erro que a teoria que ele critica: exprime o ser [von Selbst], a identidade do [Seyn et Vernehmung –
Einführung de Heidegger, 16]. Isso mostra o contato bergsoniano
com o Ser e dá o sentido profundo da reabilitação do tempo, da
“Vimos que a melhor razão para rejeitarmos a conservação fisiológica
identificação Ser-tempo em Bergson. Insistir sobre o heraclitismo
do passado também nos autoriza a rejeitar sua ‘conservação
de Bergson. A reabilitação do tempo e do Ser von selbst como
psicológica’. Esta razão é uma espécie de conservação, porém nenhum
remanescente da metafísica a título de experiência. A mudança
‘traço’ psicológico ou físico do passado pode fazer-nos compreender a
de sentido de Bergson. Para os contemporâneos “espiritualista”;
consciência que temos do passado” (Merleau-Ponty 4, p. 472 [553]).
para nós, aquilo que é válido em Bergson é, ao contrário, o

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sentimento de um pensador do ser. Confrontar essa intuição com para alguém, mas que ele é alguém” (Moutinho 7, p. 42). Assim, segundo Damon, o que
as considerações, bastante pobres, das Duas fontes sobre a história permite caracterizar o “cogito pré-reflexivo merleaupontiano” é a transição do sujeito
humana. Retomar a crítica da idéia do nada. Digamos que ele tem
ao tempo, ou seja, a temporalidade: “o sujeito da intencionalidade operante, em ação
razão ao refutar a idéia do nada, mas errou tão somente por não ter
em todo o sistema eu-outrem-mundo, é o tempo” (Ibid., p. 21). Esse quadro conceitual
visto que o ser que resiste à negação da intuição do nada não é o
ser « positivo», mas o Seyn”.9 não estaria completo sem a noção de “presença”. Como vimos, Bento Prado Jr. chamou
a atenção para o campo perceptivo, mostrando que este remete necessariamente a outros
A obra A natureza, que reúne os cursos de Merleau-Ponty no Collège de France, objetos e sem ele o objeto percebido não poderia sequer vir a minha presença: “É sob essa
expressa de maneira mais nítida a simpatia intelectual entre Merleau-Ponty e Bergson. reserva que se deve chamar a Natureza de uma presença operante” (Merleau-Ponty 5, p.
Com efeito, o que Merleau-Ponty procura em Bergson é precisamente um caminho para 197), expressão que Merleau-Ponty toma emprestada de Wahl (Wahl 10, p. 168).
escapar da tradição constante em filosofia desde Santo Agostinho, aquela que faz refluir Há, portanto, uma relação entre o cogito tácito e a subjetividade da natureza, de
o tempo para o lado do sujeito, na forma de “expectativa, atenção e recordação” (Santo modo que o “abandono” do primeiro em benefício do segundo não pode ser considerado
Agostinho 9, XI, 28, §37), conceitos que guardam certa semelhança com a retenção e uma ruptura, mas sim uma evolução do pensamento de Merleau-Ponty, que caminha
protensão husserlianas. Mas para além ou para aquém do tempo “serial”, conforme a de uma concepção ainda marcada pelos vestígios da reflexão (cogito tácito — ênfase
expressão de Whitehead, haveria um “tempo inerente à Natureza”. Esse tempo levará na palavra sublinhada) para uma instância mais marcadamente pré-reflexiva. O cogito
Merleau-Ponty a postular uma “subjetividade da Natureza”, aquela que estaria “presa na tácito, por sua vez, já assinala o enfrquecimento da reflexividade tradicional (consciência
engrenagem de um tempo cósmico” (Merleau-Ponty 5, p. 194). Em contrapartida, uma constituinte) em proveito de uma subjetividade alargada (“da natureza”). Não há passagens
natureza que não tenha em si mesma absolutamente nada do passado nem do futuro seria abruptas no pensamento de Merleau-Ponty, mas uma maturação crítica que redunda na
uma “Natureza-flash, (...) um relâmpago pontual continuado, que não é nada que se possa transformação das noções e se encaminha para uma diluição do cogito como sinônimo
viver” (Ibid., p. 195). Do ponto de vista da vida, pensar no tempo implica reconhecer de consciência.
— como fez Merleau-Ponty — que não somos autores dos nossos próprios batimentos
cardíacos. No limite, não fomos nós que escolhemos nascer. Essa intuição pode passar Considerações finais
despercebida na Fenomenologia, mas em A Natureza, o autor lhe imprime uma significação
mais abrangente: “Existe uma passagem natural do tempo, a pulsação do tempo não é Na conferência “A percepção da mudança”, Bergson propõe outra metáfora para
uma pulsação do sujeito, mas da Natureza, ela atravessa a nós, espíritos” (Ibid.). Eis aqui mostrar-nos como devemos compreender a duração e a multiplicidade de interpenetração:
que o conceito husserliano de “intencionalidade operante” adquire uma relevância sem-
par, como reenvio do fenômeno à totalidade (multiplicidade) de todos os fenômenos ou
“Escutemos uma melodia. (...) Se recortamos em notas distintas,
noemas não dados. Ao constatar certa “pregnância da significação nos signos” (Merleau-
em tantos ‘antes’ e ‘depois’ quantos nos aprouver, é porque
Ponty 4, p. 490 [575]), podemos considerar o mundo como o “berço das significações”,
nela misturamos imagens espaciais e porque impregnamos de
ou seja, como a condição de possibilidade da “intencionalidade de ato”, àquela que supõe simultaneidade a sucessão: no espaço, e apenas no espaço, há
a atividade de um ego, isto é, de um sujeito. Nesse sentido, Damon Moutinho sugere distinção nítida de partes exteriores umas às outras” (Bergson 3,
que essa é também a “condição pela qual Merleau-Ponty poderá dizer que o tempo não é p. 172-173).

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Cadernos Espinosanos XX Pablo Zunino

é um recorte parcial na totalidade do “campo transcendental” de imagens, isto é, um


Compreender esse ponto exige que encaremos o passado de modo inteiramente “empobrecimento da presença”; a memória não deveria ser compreendida como alguma
diferente do que fomos acostumados a fazê-lo pela filosofia e pela linguagem. Com efeito, coisa que vá buscar lembranças no inconsciente, senão como um “filtro” que deixa passar
o que significa “conservar”? E o que é, ao certo, o presente? Merleau-Ponty explica o — e, nesse sentido, também “recorta” — a partir de um “campo virtual” de passado as
surgimento de um “presente novo” como a “passagem de um futuro ao presente e do antigo lembranças que podem interessar-nos no presente. Nesse processo, destaca-se o papel
presente ao passado”, afirmando que “é com um só movimento que, de um extremo ao do cérebro: “O cérebro serve aqui para operar uma escolha no passado, para diminuí-lo,
outro, o tempo se põe a mover” (Merleau-Ponty 4, p. 479 [561]). Desse modo, pretende- simplificá-lo, utilizá-lo, mas não para conservá-lo” (Bergson 3, p. 178). Temos por hábito
se superar a concepção bergsoniana de uma “multiplicidade de fenômenos ligados” ao acreditar que o passado é “abolido” e é precisamente essa crença que nos impede aceitar
substituí-la por um único “fenômeno de escoamento”: a constatação mais evidente: “a conservação do passado no presente não é nada além da
indivisibilidade da mudança” (Bergson 3, p. 179).
“O tempo é o único movimento que em todas as suas partes convém Antes de concluir este artigo, podemos indicar algumas observações pertinentes.
a si mesmo, assim como um gesto envolve todas as contrações
Em primeiro lugar, a nova relação que se estabelece entre sujeito e objeto a partir de
musculares que são necessárias para realizá-lo” (Merleau-Ponty
uma “visão universal do devir”. Merleau-Ponty descrevia um “ambiente movente que
4, p. 479 [562]).
se distancia de nós, assim como a paisagem na janela do vagão” (Merleau-Ponty 4, p.

Embora seja este o momento em que mais parece abrir-se uma brecha entre 480 [562]). E Bergson, indo além, sustentava que “o objeto e o sujeito devem estar um

Merleau-Ponty e Bergson, marcada pelas recorrentes alusões a Heidegger10, pensamos em face do outro numa situação análoga à de dois trens” (Bergson 3, p. 181), que se

que, na verdade, o que se verifica é uma identificação entre ser e tempo, que o aproxima movem na mesma velocidade e no mesmo sentido, na qual duas pessoas, estando uma

ainda mais de Bergson: “como no tempo ser e passar são sinônimos, tornando-se passado em cada trem, poderiam se dar a mão pela janela. Por isso a metáfora da “bola de neve” é

o acontecimento não deixa de ser” Merleau-Ponty 4, p.480 [563]). Todavia, Merleau- importante. Ela supõe uma concepção de filosofia a partir da qual “podemos nos habituar

Ponty insiste e focaliza seu ataque: a não isolar nunca o presente do passado que ele arrasta consigo” (Ibid.). Nesse sentido,
a bola de neve também anuncia uma das noções mais importantes de Bergson, o elã
“Bergson estava errado em explicar a unidade do tempo por sua vital: “Um grande elã carrega todos os seres e todas as coisas. Por ele nos sentimos
continuidade, pois isso significa confundir passado, presente e
levantados, arrastados, carregados” (Bergson 3, p. 182). Interessante notar que Merleau-
porvir sob o pretexto de que se caminha de um para o outro por
Ponty também sabia disso:
transições insensíveis, e enfim significa negar o tempo” (Merleau-
Ponty 4, p. 481 [563]).
“Eu nunca tenho consciência de ser o autor absoluto do tempo,
de compor o movimento que vivo, parece-me que é o próprio
O que Bergson defende, de fato, é que o passado conserva-se por si mesmo
movente que se desloca e que efetua a passagem de um instante
automaticamente. O passado, para ele, é a parte de nossa história que não interessa mais à ou de uma posição à outra” (Merleau-Ponty 4, pp. 319-320, nota
nossa ação presente e as “lembranças” serviriam para simplificar uma experiência anterior 1 [371, nota 47]).
e assim completar a experiência do momento (Bergson 3, p. 177). Podemos interpretar o
argumento de Bergson seguindo os passos de Bento Prado Jr. Se a percepção consciente

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Cadernos Espinosanos XX Pablo Zunino

Por último, na obra “Introdução à metafísica” (Bergson 3), Bergson vai mostrar
que os conceitos adotados pela filosofia nem sempre se adaptam bem aos objetos que
desejamos conhecer. Muitas vezes, os conceitos são amplos demais para se ajustarem ***

com exatidão aos entes reais. Isso ocorre de forma paradigmática no caso do tempo,
por isso em lugar de explicar o que é o tempo por meio de conceitos como “unidade”, Neste primeiro mergulho no universo merleau-pontiano, identificamos uma

“multiplicidade”, “síntese” e outros que geralmente vem aos pares (continuidade- crítica de Merleau-Ponty a Bergson e procuramos rebatê-la com base na argumentação

descontinuidade, quantidade-qualidade, homogêneo-heterogêneo, identidade-diferença bergsoniana. Percebemos assim que não há propriamente uma confluência em relação

e assim por diante) convém adotar a metáfora. Algumas delas, em conjunto, poderão à concepção do tempo que ambos os filósofos defendem, mesmo porque para Bergson

aproximar-nos de uma “intuição da duração”. Assim como a da “bola de neve”, a metáfora o tempo não deveria ser uma “questão” filosófica e sim um “dado imediato”, tanto da

do “fio do novelo” também cumpre essa função: subjetividade como da realidade objetiva. Nesse sentido, nossa conclusão se encaminha
para o reconhecimento de que a leitura que Merleau-Ponty faz de Bergson, na
“Imaginemos antes um elástico infinitamente pequeno, contraído, Fenomenologia da percepção, coloca o tempo no registro da subjetividade. Não obstante,
se isso fosse possível, num ponto matemático. Estiquemo-lo o intuito de Bergson é precisamente elucidar a identificação entre ser e tempo (registro
progressivamente de modo que faça com que do ponto saia uma
ontológico), anterior à separação conceitual entre o subjetivo e o objetivo. Por isso, a
linha que irá sempre aumentando. Fixemos nossa atenção, não sobre
duração, como uma bola de neve, acumula, mas também dispersa à medida que vai se
a linha enquanto linha, mas sobre a ação que a traça. Consideremos
que, a despeito de sua duração, essa ação é indivisível, se supomos gastando. Trata-se de um processo de diferenciação na temporalidade sem espacialização,
que se realiza sem parar; que, se nela intercalamos uma parada, ou seja, sem separação. Essa diferenciação, portanto, admite unidade e multiplicidade.
faremos dela duas ações ao invés de uma e que cada uma dessas Talvez por isso, na Fenomenologia da percepção, notamos um Merleau-Ponty mais
ações será então o indivisível de que falamos; que não é nunca a
confuso quanto à Bergson. Porém, o Merleau-Ponty das notas de trabalho e do curso
própria ação que é divisível, mas a linha imóvel que ela deposita
sobre a natureza assume uma atitude, por assim dizer, mais bergsoniana. Mas isso é tema
embaixo de si como um rastro no espaço, Libertemo-nos por fim
do espaço que subentende o movimento para só levar em conta para outro artigo.11
o próprio movimento, o ato de tensão ou de extensão, enfim, a
mobilidade pura. Teremos desta vez uma imagem mais fiel de
nosso desenvolvimento na duração” (Bergson 3, p. 191). Referências bibliográficas

A partir deste exemplo e dependendo do ponto de vista que adotemos, poderemos


admitir que a descrição trata de uma unidade — caso consideremos o movimento que 1. Bergson, H. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
2. __________. A evolução Criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
progride — ou de uma multiplicidade — caso privilegiemos os estados que se esparramam.
3. __________. O Pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Mas mesmo assim não esgotaremos a realidade movente que deu origem a essas duas
4.Merleau-Ponty, M. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1997.
concepções antagônicas. [Trad. brasileira Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.]

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Cadernos Espinosanos XX Pablo Zunino

5. _________________. A Natureza. São Paulo: Martins Fontes, 2006. integralidade, é porque estamos aqui não no plano da intencionalidade de ato, mas no
6. Moura, C. A. Racionalidade e crise: estudos de história da filosofia moderna e plano da intencionalidade operante, ‘aquela que faz a unidade natural e antepredicativa
contemporânea. São Paulo: Discurso Editorial; Editora da UFPR, 2001. do mundo e de nossa vida’ (Merleau-Ponty, 1995, p. XIII): é ela que assegura o sistema
7. Moutinho, D. “Tempo e sujeito - O transcendental e o empírico na fenomenologia de reenvios que arrasta todo o sistema”.
de Merleau-Ponty”, in: DoisPontos, v. 1, n. 1, 2004. 3. Cf. Moura, C. A. “A cera e o abelhudo: expressão e percepção em Merleau-Ponty” (Moura 6, p.262).
8. Prado Júnior, Bento. Presença e campo transcendental: consciência e negatividade 4. Cf. Moura, C. A. Curso de História da filosofia contemporânea. São Paulo:
na filosofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1988. FFLCH-USP, 2008.
9. Santo Agostinho. Confissões, in: Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. 5. Entre o que designamos como físico ou como corpo e o que chamamos de espírito
10. Wahl, J. Vers le concret. Paris: Vrin, 1932. ou consciência não haveria oposição de natureza, mas de graus de tensão da duração.
Uma duração infinitamente distendida corresponderia àquilo que chamamos de extensão;
uma duração infinitamente tensa e contraída corresponderia àquilo que chamamos de
inextenso ou de consciência. O núcleo da ontologia bergosiana revela uma realidade que
Merleau-Ponty and the snowball: compliment and criticism to Bergson é pura duração e se apresenta em diferentes ritmos de tensão (Cf. Leopoldo e Silva, F.
Curso de História da filosofia contemporânea. São Paulo: FFLCH-USP, 2007).
6. Bergson usa a metáfora da “bola de neve” numa passagem do primeiro capítulo de A
Abstract: This paper examines some approaches and differences of the Merleau-Ponty’s
evolução criadora: “Tomemos o mais estável dos estados internos, a percepção visual de
philosophy in relation to that of Bergson, once that Merleau-Ponty seems to be divided about the
bergsonian conception of time in his thinking. This oscillation between criticism and compliment um objeto exterior imóvel. (...) Minha memória está aí, empurrando algo desse passado
is certainly visible in the Phenomenology of perception, in which Merleau-Ponty recognizes that para dentro desse presente. Meu estado de alma (...) infla-se continuamente com a duração
Bergson would have dissolved the question of the dualism when affirming that “the body and the que ele vai juntando; por assim dizer, faz bola de neve consigo mesmo. (...) A verdade é
spirit communicates by mediation of the time”. However, Merleau-Ponty denounces another kind que mudamos incessantemente e que o próprio estado já é mudança” (Bergson 2, p. 2).
of bergsonian dualism, that intends to find the unit in the multiplicity by means of the concept 7. Na conferência “La raison incarnée – pensée et sensibilité chez Merleau-
of “fusing multiplicity”. In this sense, the bergsonian metaphor of the “snow ball” looks for to Ponty» (São Carlos: UFSCar, 2008), Pascal Dupond mostra que Merleau-Ponty
characterize the essence of the time as duration.
faz justiça à noção kantiana de “synthèse”, reinterpretando-a a partir da noção de
Keywords: Merleau-Ponty, Bergson, temporality, dualism, subjectivity.
“synopsis”, também kantiana.
8. Bergson parece confirmar esse ponto, mas não vamos aprofundar o tema aqui.
Limitemo-nos a assinalar um possível desdobramento da pesquisa. Em relação à
NOTAS
psicopatologia, hoje cindida em psicanálise e psiquiatria, Bergson abre um terreno
fértil para a discussão, lembrando que a função do cérebro não seria pensar, senão
impedir que o pensamento se perca no sonho. Nesse sentido, o cérebro seria o órgão
1. As passagens traduzidas para o português correspondem à edição brasileira. Merleau-
de atenção a vida: “Para nos limitarmos a essa última ciência, mencionaremos
Ponty. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Indicamos a
simplesmente a importância crescente que assumiram progressivamente as
paginação dessa obra entre colchetes [p. 106].
considerações de tensão psicológica, de atenção à vida, e tudo o que está envolvido no
2. Cf. Moutinho 7, p. 19: “É só nessa medida que o campo fenomenal pode ser
conceito de esquizofrenia. Nem mesmo nossa idéia de uma conservação integral do
“convertido” em campo transcendental e o ser no mundo ser coroado com um ser
passado deixou de encontrar cada vez mais sua verificação empírica no vasto conjunto
para si: é preciso que o ser no mundo e, com ele, todo o sistema de horizontes da
de experiências instituído pelos discípulos de Freud.” (Bergson 3, p. 84). Essa idéia, à
percepção, seja arrastado por essa nova reflexão e levado à consciência de si. E se essa
primeira vista, parece bastante contemporânea da teoria do inconsciente.
reflexão não implica pôr uma consciência transcendental que possa pensar o sistema na
9. Nota gentilmente cedida pelo Prof. Dr. Pascal Dupond (Universidade de Toulouse).

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Cadernos Espinosanos XX

10. A noção heideggeriana de ek-stase, entendida como uma “fuga geral para fora do
Si, a lei única desses movimentos centrífugos” (Merleau-Ponty 4, p.480 [p. 562]), PROUST À LUZ DE FREUD – UMA LEITURA MERLEAU-
levará Merleau-Ponty a afirmar uma identidade entre “afetante” e “afetado”: “O
PONTYANA*
ímpeto do tempo é apenas a transição de um presente a um presente. Este ek-stase,
esta projeção de uma potência indivisa em um termo que lhe está presente, é a
subjetividade” (Merleau-Ponty 4, p. 487 [p. 571]). Ronaldo Manzi**
11. Agradeço à equipe de pareceristas dos «Cadernos Espinosanos « pela leitura do
texto e pelas valiosas sugestões.
Resumo: pretendo abordar de modo breve como, diferentemente da tradição francesa, Merleau-
Ponty leu Proust à luz freudiana, podendo, assim, insistir num problema fundamental da sua
fenomenologia: a temporalidade. Para tal abordagem, realizarei um exame da possível intersecção
do caso do membro fantasma com a noção de sedimentação descrita pelo filósofo. Com esse
procedimento, compreenderemos o recurso de Merleau-Ponty aos escritos de Proust, notadamente,
ao conceito de “tempo”. Veremos, entretanto, que este recurso está largamente em interface com
noções da clínica freudiana.
Palavras-chave: tempo perdido; sedimentação; temporalidade; membro fantasma; fenomenologia.

É bastante conhecida a passagem da Phénoménologie de la Perception onde


Merleau-Ponty busca compreender a experiência do “membro fantasma”. Há um
paradoxo nessa experiência que não deixa de nos assombrar até hoje e que instigou
diversos outros pesquisadores a pensar nessa estranha manifestação. Desde Jasper (7, p.
111), por exemplo, essa experiência exigia uma compreensão do sentido da conduta para
além das suas diferentes manifestações que não poderiam ser reduzidas a um simples
déficit ou distúrbio fisiológico do indivíduo, pois envolve o próprio sentido do que seria
a relação do sujeito com a percepção e/ou imaginação totalitárias de si. Autores como
Lhermitte (cf. Lhermitte 9) e Schilder (cf. Schilder 12), sobre os quais Merleau-Ponty se
debruçou longamente, mostram isso com clareza.
Entretanto, é verdade que essa questão nos leva também diretamente a uma
reflexão sobre a temporalidade do sujeito juntamente com sua “história pessoal”. Não
poderíamos deixar de notar, seguindo as análises freudianas, por exemplo, que há
transtornos das significações afetivas que poderiam “barrar” o sujeito, se assim podemos

* Este texto foi apresentado no dia 17 de novembro de 2008, na Jornada “Merleau-Ponty e o Grande
Racionalismo” (realizado na Universidade de São Paulo).
** Doutorando em filosofia pela Universidade de São Paulo.

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Cadernos Espinosanos XX Ronaldo Manzi

dizer, à possibilidade de vivenciar novas significações. Lacan é bastante sugestivo aqui: (...) a obra proustiana não descreve uma vida tal qual ela foi – wie
o trauma, a fixação, seria uma intrusão do passado no presente (Cf. Lacan 8, p. 108). O es gewesen ist – mas a vida lembrada por aquele que a vivenciou
– sondern ein Leben, so wie der, der’´s erlebt hat, dieses Leben
caso da perda de um membro seria um desses traumas.
erinnert. Em termos freudianos, poderíamos dizer que o passado,
Isso não deixa de ressoar o que Merleau-Ponty entendia como uma conduta
evocado pelo adulto, se constitui sempre numa “lembrança
patológica na Phénoménologie de la Perception. Há, diríamos, um certo “cálculo” encobridora”: ‘Nossas lembranças de infância não nos mostram os
do indivíduo difícil de explicar, uma experiência que “decide” não se tornar passada primeiros anos de vida como eles foram, mas como se apresentam,
(Merleau-Ponty 11, p. 101). Waelhens (13, p. 114), ao comentar essa passagem da obra posteriormente, na época de sua evocação’.

merleau-pontyana, nos aponta: o sujeito patológico


Apesar de ser pouco provável que Merleau-Ponty conhecesse a obra de Benjamin
(...) recusa reconhecer esta restrição [a perda de um membro] e, nessa época, não deixa de soar uma proximidade clara entre ambos, ao menos nesse ponto.
tendo que optar entre a perda de si como liberdade de fazer um Basta lembrarmos de uma passagem como essa, que encontramos nas últimas linhas da
mundo à sua medida e a perda do mundo próximo [habitual, antes
Phénoménologie de la Perception: “assumindo um presente, eu retomo e transformo meu
da perda do membro] onde ele se escolheu e se exerceu até o
passado, eu mudo seu sentido, libero-me dele, desembaraço-me dele” (Merleau-Ponty
presente, prefere negar aquela liberdade e salvaguardar seu mundo
próximo (....). 11, p. 519). E aqui retornamos à nossa pergunta: por que no caso do membro fantasma
o sujeito não se libera do seu passado? Por que ele insiste em permanecer num mundo

Nossa questão poderia se resumir assim: porque há essa “recusa”? Aliás, trata- habitual que já não lhe pertence?

se de uma recusa consciente? Sabemos como Merleau-ponty responde a essa questão: se o amputado recusa

Aqui entramos no que gostaria de debater nesse texto: Merleau-Ponty explica um “mundo atual”, trata-se então de uma fixação, algo que Merleau-Ponty partilha com a

esse fenômeno por uma aproximação entre Proust e Freud que parece, à primeira vista, psicanálise de sua época. Ele explica essa recusa nesses termos:

improvável. Lembremos, entretanto, antes de entrar diretamente no nosso tema, que esta não
o recalque de que fala a psicanálise consiste naquilo em que o
foi a primeira vez que alguém fez essa aproximação. Aliás, uma aproximação que rompia
sujeito engaja numa certa via (...), e que ele encontra nesta via uma
com uma certa tradição francesa que aproximava o tema da “lembrança” em Proust à teoria
barreira e, não tendo força nem para transpor este obstáculo, nem
da “memória” em Bergson. É por isso que Benjamin (autor ao qual estou me referindo) disse de renunciar o empreendimento, ele fica bloqueado nesta tentativa
com todas as letras: “certamente, os estudos alemães sobre Proust serão bem diferentes dos e emprega indefinidamente suas forças a renová-la em espírito
franceses. Em Proust, vive algo muito maior e mais importante do que o ‘psicólogo’, que (Merleau-Ponty 11, p. 98).

é a maneira, tanto quanto eu vejo, que se fala quase que exclusivamente dele, na França”
(apud Chaves 3, p. 35). Ora, é certo que Benjamin dá um passo ousado ao associar esses Não basta aqui simplesmente lembrarmos a distinção tipicamente canguilhemiana

dois autores para explicar nossa relação com o passado: uma certa “memória involuntária”, entre normal e patológico, onde, nesse último caso, o sujeito, diante de um obstáculo, não

como afirmava Proust, ou “sedimentada” (ver, Gay 5, p. 170), como dizia Freud. Isso lhe consegue mais impor uma norma, limitando assim seu poder de ação no meio – é preciso ainda

possibilitava pensar a memória de outro modo, ligado à própria “situação” do sujeito. Essa destacar como o sujeito amputado se fixa numa temporalidade que persiste em se repetir. É

passagem de Chaves (Chaves 3, p. 37-38) é bem esclarecedora: com esses olhos, por exemplo, que Foucault, ao comentar a obra de Freud, parece enxergar:

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Cadernos Espinosanos XX Ronaldo Manzi

por mais assombrada que ela seja pelo passado, a conduta não não a perdeu porque continua a contar com ela, como Proust pode
deixa de ter um sentido. (...) O presente está sempre em dialética bem constatar a morte de sua avó sem a perder ainda enquanto
com seu próprio passado; ele o recalca no inconsciente, ele separa a conserva no horizonte de sua vida. O braço fantasma não é a
suas significações ambíguas; ele projeta sobre a atualidade do representação de braço, mas a presença ambivalente de um braço.
mundo real os fantasmas da vida anterior; ele transpõe seus temas A recusa da mutilação no caso do membro fantasma ou a recusa
para níveis de expressão reconhecidos válidos (Foucault 4, p. 142- da deficiência na anosognose não são decisões deliberadas, não se
143). passam no nível da consciência tética que toma posição explícita
depois de ter considerado diferentes possíveis. A vontade de ter um
No caso do membro fantasma e em palavras merleau-pontyanas: corpo são ou a recusa do corpo doente não são formulados por eles
mesmos, a experiência do braço amputado como presença ou do
braço doente como ausente não são da ordem do ‘eu penso que...’
o braço fantasma é como uma experiência recalcada, uma presença
antiga que não se torna passada. As lembranças que se evocam
diante de um amputado induzem o membro fantasma não como Pois bem, mas porque o membro continua a contar de modo privilegiado ao
uma imagem que no associacionismo chama outra imagem, mas sujeito, como se o passado “deformasse” o presente e não como algo que simplesmente se
toda lembrança busca o tempo perdido e nos convida a retomar a
“conserva no horizonte da vida do sujeito”, como é o caso da morte da avó de Proust?
situação evocada (Merleau-Ponty 11, p. 101, grifo meu).
Para respondermos isso, lembremos que o próprio termo quase-presença é
próximo do conceito de retenção em Husserl:
Longe de ser apenas uma coincidência entre essa análise e o título da principal
obra de Proust, trata-se de uma aproximação constitutiva do próprio arcabouço conceitual
à medida que prossegue o processo de recordação iterativa, este
merleau-pontyano. Essa lembrança que busca um tempo perdido, que, para Merleau- horizonte abre-se de novas maneiras e torna-se mais vivo, mais
Ponty, se identifica com a noção de tempo em Proust (Merleau-Ponty 11, p. 101), se traduz rico. E, com isto, este horizonte preenche-se com acontecimentos
não numa rememoração, mas naquilo que o filósofo denomina como “quase-presença” interativamente recordados sempre novos. Os que antes eram
apenas pré-indicados são agora quase-presencializados, quase no
(Merleau-Ponty 11, p. 101). Como se este “quase” fosse um “fio intencional” no horizonte
modo do presente atualizador. (Husserl 6, § 24)
do passado vivido (Merleau-Ponty 11, p. 101). Nesse sentido, Proust apontaria para uma
relação do sujeito com seu passado como se fosse uma busca de um tempo perdido, quer
Husserl nos abriria então a um “presente ampliado”, que envolve uma quase
dizer, algo que o sujeito vivenciou e que continua “quase-presente”. Não se trata de dizer
presença do passado imediato e do futuro próximo. Mas isso significa que o amputado
que o fato de se buscar um tempo perdido seja patológico, mas o fato de se fixar nesse,
faria desse passado algo que incessantemente se atualiza, um passado que sempre retoma
assim como o sujeito amputado age como se aquele mundo habitual ainda valesse no seu
como sendo seu presente atual. Diríamos: o membro não está ali, mas o sujeito age como
mundo atual: o sujeito se fixa num tempo perdido. É a relação do sujeito com seu passado
se ele estivesse ali. Mas se algo é quase presente, isto significa que há algo nele que
que está em jogo e é aqui que está, por sua vez, a ousadia de Merleau-Ponty (11, p. 96),
não o deixa ser presente completamente – o passado não é totalmente transcendido,
aos meus olhos:
ele permanece, de algum modo. Ou seja, “quase”, porque algo escapa e impede uma
identidade substancial dessa presença. Mas, no caso do amputado, diferentemente de
o amputado sente sua perna como eu posso sentir vivamente a
existência de um amigo que não está, todavia, sob meus olhos; ele um sujeito normal, o passado vale para ele fixamente como quase-presente. No sujeito

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normal, ele conta com essa quase-presença do passado, mas ele pode dar um novo sentido Isto significa que há uma situação de abertura na ação que não é simplesmente
a ele – é possível a todo o momento se “livrar” dele ao resignificá-lo. determinada por sua história, mas que a motiva largamente. Noutras palavras, há sempre
Percebamos como este “contar com” está na raiz daquela “busca do tempo um modo privilegiado de resolução de um problema que se baseia numa “história
perdido”. Como diz Gagnebin (in Benjamin 1, p. 15): sedimentada” que eu não posso simplesmente ignorar (Merleau-Ponty 11, p. 505).
Poderíamos concluir, grosso modo, com estas palavras: é através de algo fundado que
o golpe de gênio de Proust está em não ter escrito ‘memórias’, algo fundante pode aparecer (Merleau-Ponty 11, p. 451) — é a partir de uma esfera
mas, justamente, uma ‘busca’, uma busca das analogias e das
sedimentada do corpo que podemos agir de um modo provável.
semelhanças entre o passado e o presente. Proust não reencontra o
Essa análise do hábito está claramente relacionada ao exemplo do membro
passado em si – que talvez fosse bastante insosso –, mas a presença
do passado no presente e o presente que está lá, prefigurado no fantasma. É essa probabilidade que o sujeito perde: ele se fixa num passado perdido
passado (...). e age como se ele ainda valesse. Como se pudéssemos descrever um personagem que
encontra algum sentido na sua vida presente se filiando a um tempo perdido. Ou seja,
Para compreendermos isso melhor, tomemos como exemplo o caso do hábito. Merleau-Ponty articula aqui, uma certa fixidez, que se explica no recalcamento que nos
Segundo Merleau-Ponty, um comportamento habitual seria uma aquisição de uma “esfera dizia Freud, com a “busca de um tempo perdido”, que nos aponta Proust.
primordial” de significações na própria motricidade do corpo. Na verdade, o hábito, Aqui vale lembrar mais uma vez de Benjamin. Não para explicarmos o caso
como se sabe, indica uma esfera “sedimentada” das nossas condutas sempre presentes do membro fantasma, mas para ressoar essa quase-presença do passado no presente.
em nossas ações, sem com isso determiná-la, pois há sempre uma abertura possível nas Notemos, por exemplo, essas linhas: “sabemos que Proust não descreveu em sua obra
ações. O hábito teria assim a função de resposta imediata do corpo, sem que seja preciso uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu” (Benjamin 1,
nos perguntar, a todo o momento, como agir diante da situação. p. 37). Ou seja, o importante para Proust não é descrever como o personagem viveu, mas
Trata-se então de uma “esfera constituída”, “já sabida”, que pode ser retomada como seu passado vale para ele. O curioso é que Benjamin aproxima Proust de Freud por
em toda situação parecida. Isso significa que meu corpo é capaz de agir sem que eu me outras vias, mas que não deixam de lembrar essa análise de Merleau-Ponty.
pergunte como agir. Por exemplo, estendo meu braço direito em direção a um cigarro e o Comecemos lembrando como Freud se comparava a Schliemann, o descobridor
acendo, sem ter que me perguntar com qual braço irei realizar tais ações. Eu me “flagro” de Tróia: “tudo se passa como se Schliemann tivesse novamente descoberto a cidade de
fumando. Há assim um duplo movimento: uma sedimentação e uma espontaneidade Tróia, que se acreditava imaginária” (apud Gay 5, p. 170). Não se trata aqui apenas de
(Merleau-Ponty 11, p. 152), que se dão na própria ação. uma “imagem”, Freud quer destacar como algumas significações devem ser “escavadas”,
Mas o hábito mostra também algo fundamental a Merleau-Ponty: uma atmosfera que a memória continua a valer para o sujeito, sendo ou não consciente dela1. Ora, mesmo
de probabilidade. Quer dizer, se disponho de um saber frente a situações conhecidas, que Merleau-Ponty use o termo “sedimentação” se referindo explicitamente a Husserl,
ao mesmo tempo, eu posso agir diferentemente frente à mesma situação. Entretanto, é não deixa de ser espantosa a aproximação:
provável que eu aja de um modo habitual, sem com isso excluir que “eu posso” agir de
(um) outro modo. Há sempre um “poder de agir” que transborda qualquer determinismo, naquilo que eu denomino a cada momento minha razão ou minhas
idéias, se pudéssemos desenvolver todos os seus pressupostos,
mas que não ignora a nossa história, nossos modos privilegiados de ação, pois é sempre a
encontraríamos sempre experiências que não foram explicitadas,
partir desta história sedimentada que posso agir ou pensar (Merleau-Ponty 11, p. 453).
contribuições maciças do passado e do presente, toda uma ‘história

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sedimentada’ [Husserl] que não concerne somente a gênese de meu Gostaria de concluir essa comunicação retomando aquela análise sobre o
pensamento, mas que determina seu sentido (Merleau-Ponty 11, p. membro fantasma. Com essa leitura de Proust à luz de Freud, parece-me que Merleau-
452-453).
Ponty consegue dar uma nova dinâmica ao problema da temporalidade na Phénoménologie
de la Perception. É bem conhecido e bastante discutido o capítulo onde ele trata deste
Retomemos novamente a Benjamin. Ele diz: a memória
problema. A idéia propriamente de protensão e retensão o leva a pensar numa “rede de
intencionalidades”, onde cada agora abstrato remete a uma perspectiva de outros agoras
é o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio
abstratos passados, fazendo com que, todos os “agoras” se remetam a “perspectivas de
no qual as antigas cidades que estão soterradas. Quem pretende
se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um agoras” diferentes. Fico imaginando como poderíamos pensar aquele gráfico husserliano
homem que escava. (...) As imagens que, desprendidas de todas as a partir do problema do “membro fantasma”, ou seja, a partir de um trauma, de um
conexões mais primitivas, ficam como preciosidades nos sóbrios passado que insiste em permanecer presente. Talvez pudéssemos responder que esse
aposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsos na galeria
“acontecimento” se re-significa a todo o momento, assim como Proust dizia de uma busca
do colecionador (Benjamin 2, p. 239).
de um tempo perdido... Mas isso não iria justamente contra a sua própria idéia de fixação,
de uma “cristalização” de um passado que “se decide a não se tornar passado”? Ou será
Para Benjamin, assim como para Merleau-Ponty, não se trata de um processo
que a idéia de fixação é tão plástica quanto a própria “rede de intencionalidades”?
acumulativo, ou mesmo progressivo. A memória é algo que, segundo Proust, ganha um
novo sentido ao surgir no presente, “transforma o passado porque este assume uma forma
nova, que poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o presente porque este Referências bibliográficas:
se revela como sendo a realização possível dessa promessa anterior, que poderia ter-se
perdido para sempre” (Gagnegin in Benjamin 1, p. 16).
1. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. Tradução
Fico aqui tentado a lembrar uma passagem de Merleau-Ponty de um
de Sérgio Paulo Rounanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
curso de 54, onde ele diferencia uma certa “instituição animal” da “instituição propriamente
2. __________.Obras Escolhidas II – Rua de mão única. Tradução de Rubens Rodrigues
humana”, analisando a puberdade em Freud: “o próprio da instituição humana: um Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987.
passado que cria uma questão, a coloca em reserva, faz situação indefinidamente aberta. 3. CHAVES, Ernani. “Construções na história, construções em análise: presença de Freud
Então, de uma só vez, o homem é mais ligado a seu passado que o animal, e mais aberto na filosofia da história de Walter Benjamin”. In: SAFATLE, Vladimir; MANZI,
Ronaldo Filho (orgs.). A filosofia após Freud. São Paulo: Humanitas, 2008.
ao futuro. O futuro pelo aprofundamento do passado” (Merleau-Ponty 10, p. 57). Logo
4. FOUCAULT, Michel. Maladie mentale et psychologie. Paris: PUF, 2005.
em seguida, Merleau-Ponty analisa a “instituição do sentimento”, retomando o amor de
5. GAY, Peter. Freud. Uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras,
Swann, do livro de Proust e diz: “a idéia de instituição é justamente essa: fundamento de 1989.
uma história pessoal através da contingência” (Merleau-Ponty 10, p. 73). Ora, não é isso 6. HUSSERL, Edmund. Lições para uma Fenomenologia da Consciência Interna do
que Benjamin quer dizer ao afirmar que o trabalho de rememoração é espontâneo, já que Tempo. Tradução de Pedro Alves. Lisboa: Imprensa Nacional da Moeda,
1994.
“(...) um acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o
7. JASPER, Karl. Psicopatologia Geral Vol I. Tradução de Samuel Penna Aarão Reis. São
que veio antes e depois” (Benjamin 1, p. 37)?
Paulo: Livraria Atheneu, 1973.

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Cadernos Espinosanos XX

8. LACAN, Jacques. Le Seminaire II – Le moi dans la théorie de Freud et dans la


technique de la psychanalyse. Paris: Éditions du Seuil, 1978.
9. LHERMITTE, Jean. L’Image de Notre Corps. Paris: L’Harmattan, 1998. A VISÃO COMO ABERTURA
10. MERLEAU-PONTY, Maurice. L’Institution, la Passivité. Paris: Belin, 2003.
11. ______________. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1967. Alex de Campos Moura*
12. SCHILDER, Paul. The Image and Appearance of the Human Body – Studies in the
Constructive Energies of the Psyche. New York: International Universities Resumo: Este texto pretende propor um breve comentário sobre o início do ensaio O Olho e o
Press, 1950. Espírito de Merleau-Ponty. Fazendo um recorte no movimento mais amplo de reconfiguração
13. WAELHENS, Alphonse de. Une Philosophie de l’Ambiguité – L’Existentialisme ontológica sugerido no ensaio, busca-se aqui indicar como a análise do corpo feita pelo filósofo
de Maurice Merleau-Ponty. Louvain  ; Paris  : Publications Universitaires de aponta já para um outro tipo de ser, conduzindo ao reconhecimento de uma imbricação interna
Louvain; Éditions Beatrice-Nauwelaerts, 1968. entre o subjetivo e o objetivo. Procura-se mostrar que o corpo já revela a estrutura reversível que se
reconhecerá em todo o percebido, marca da ontologia de Merleau-Ponty assentada na relação entre
o visível e o invisível.
Palavras-chave: Merleau-Ponty, ontologia, corpo, reversibilidade, visível
Proust in the light of Freud – Merleau-Ponty’s reading

Abstract: I attempt to approach in a short way how Merleau-Ponty, differing from the French
tradition, reads Proust in the light of Freud, what allows him to insist on a fundamental Nesta apresentação, procuraremos fazer um breve comentário sobre o ensaio
problem of his phenomenology: the temporality. To deal with this, I will perform an inquiry O Olho e o Espírito de Merleau-Ponty. Última obra publicada em vida pelo filósofo,
of the possible intersection of the case of the phantom limb with the notion of sedimentation
este texto retoma sua discussão a respeito da pintura e de suas possíveis implicações
described by the philosopher. With this proceeding, we will understand Merleau-Ponty’s
appeal to Proust’s written, specially to his concept of “time”. We will realize, however, that filosóficas, sobretudo na formulação de uma ontologia capaz de escapar da alternativa
this appeal is largely in interface with notions of Freud’s clinic. exclusiva entre o subjetivo e o objetivo1.
Keywords: lost time; sedimentation; temporality; phantom limb; phenomenology
Tema constante ao longo dos trabalhos de Merleau-Ponty, a pintura ocupa desde

NOTAS o início um importante papel em sua reflexão filosófica. Ela aparece, por exemplo, na
Fenomenologia da Percepção, apontando para um sentido que se mantém vinculado
1. Trata-se de pensar no método da arqueologia moderna: conservar e destruir (Chaves ao percebido e para uma síntese não posicional que permanece atada à estruturação
3, p. 39).
interna dos elementos com os quais opera, aquém da cisão entre a atividade do sujeito e
a passividade do objeto2. Já ali, portanto, segundo nossa leitura, inserida no projeto mais
amplo do autor de uma reformulação ontológica.
Isso nos permite supor que o ensaio, na medida em que retoma esse projeto mais
geral, desdobra algo que já vinha sendo trabalhado pelo filósofo, prossegue acentuando
uma direção de pensamento já operante. Evidentemente, essa afirmação demanda um
trabalho que a comprove. Seria preciso, por exemplo, de um lado mostrar a presença
dessa temática no início da obra de Merleau-Ponty, e de outro indicar de que maneira

* Doutorando USP.

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Cadernos Espinosanos XX Alex de Campos Moura

textos como O Olho e o Espírito se vinculam a esse primeiro período e não apenas a Livre exercício de uma razão abstrata sem lugar e sem tempo, a ciência opera tacitamente
textos de sua fase “intermediária”, como Signos e A Prosa do Mundo. A exposição desse com o pressuposto ontológico de que o objeto é aquilo que é constituído pelo sujeito,
trabalho – que estamos procurando desenvolver em nossa pesquisa – tomaria um tempo constructo sem consistência própria, e de que o sujeito é a instância constituinte, fonte
bem maior do que o que dispomos nesta apresentação. de toda significação e de todo sentido. Opera, pois, com a ontologia que separa sujeito e
Aqui, o que pretendemos trabalhar é um recorte bastante breve nesse percurso objeto, fazendo do segundo não mais que uma expressão do poder absoluto do primeiro.
mais amplo de reconfiguração ontológica: o movimento inicial do ensaio O Olho e o Não é gratuito, pois, que o primeiro movimento de Merleau-Ponty em seu
Espírito, no qual Merleau-Ponty recorre ao corpo para começar a afastar-se da noção ensaio seja insistir na necessidade de repor esse pensamento aparentemente ilimitado em
clássica de sujeito e objeto. Longe de uma análise completa, o que apresentaremos é o sua dimensão corporal e situacional, reconhecendo o “há prévio” que prescinde do poder
início da demarcação de uma problemática, apenas entrevendo algumas questões que um constituinte do sujeito e do qual a ciência tenta a todo custo desvincular-se. Para isso,
estudo mais amplo do ensaio pode trazer. será central seu recurso ao corpo, estrutura difusa que se colocará entre o subjetivo e o
O Olho e o Espírito inicia justamente pela afirmação desse projeto mais geral em objetivo, espécie de elemento híbrido que não se esgota em si, como o objeto, e não é fonte
que suas descrições se inserem, retomando o propósito de recusar a ontologia implícita absoluta de toda constiuição, como o sujeito3. Como procuraremos sugerir aqui, o corpo
pela ciência de sua época (Merleau-Ponty 1, p.275). Recuperando mais uma linha começará a delinear a reversibilidade que a análise merleau-pontyana verá se desdobrar
constante em sua obra, Merleau-Ponty constrói seu argumento partindo da relação entre em todo o mundo percebido, marca intrínseca do visível e do invisível. Não se trata, pois,
ciência e ontologia, problema de que se ocupava desde a Estrutura do Comportamento, desse “(...) corpo possível do qual é lícito sustentar que é uma máquina de informação,
obra que partia das descobertas da ciência para formular um tipo de estrutura capaz de mas sim esse corpo atual que digo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob
se oferecer como “terceiro gênero de ser”, escapando da cisão entre o ser em si e o ser minhas palavras e sob meus atos. É preciso que, com meu corpo, despertem os corpos
para si (Merleau-Ponty 2, p.201). A relação entre as duas áreas é também trabalhada, associados (...) que me assediam, que eu assedio, com quem eu assedio um só Ser atual,
por exemplo, no comentário do filósofo sobre o Grande Racionalismo característico do presente, como jamais animal assediou os de sua espécie, seu território ou seu meio”
século XVII, momento da história em que segundo ele ciência e metafísica encontraram (Merleau-Ponty 1, p.276).
um fundamento comum e, sobretudo, em que o objeto da ciência deixou de ser tomado No original, o termo traduzido por assediar é “hanter”, no sentido de freqüentar
como cânone da ontologia (Merleau-Ponty 3, p.417), fazendo com que o Ser deixasse de e obsedar o espírito, tornar-se termo constante do pensamento e da mente, obsessão e
se reduzir ao que dele falava o saber científico. fascinação. O interessante aqui é notar que quem responde por essa frequentação, quem
É quase em seu oposto que se coloca o cenário científico descrito por Merleau- sai de si e se deixa capturar por outrem, não é um espírito cuja imaterialidade asseguraria
Ponty no início de O Olho e o Espírito. Voltando ao ensaio, ali é afirmado que a ciência sua completa ausência de limites, mas o corpo, tão logo ele se ponha a ver e a ser visto,
manipula os objetos e renuncia a habitá-los, constrói modelos, propõe teorias e as faz isto é, tão logo ele exista no mundo4. Aberto e generalizado, é ele quem faz com que eu e
passar livremente de um campo a outro, de uma ordem de objetos a outra. Ela se torna, o outro partilhemos um Ser comum, participemos de um mesmo solo e sejamos capazes
podemos supor, pensamento abstrato ou formal, razão instrumentalizada que domina de “passar” um no outro. O corpo começa a se revelar como uma estrutura reversível.
seu objeto recusando toda interioridade deste, “pensamento de sobrevôo” como afirma Isso significa, antes de tudo, que não estamos mais no campo de uma realidade
constantemente o filósofo. Operando fora do objeto, esse pensamento recusa e mascara objetiva e empírica, do corpo como objeto idêntico e fechado sobre si, coisa regida por uma
seu vínculo com aquilo de que fala, ou seja, constrói seu tema ao invés de explicitá-lo. causalidade mecânica cujas leis permitiriam total previsibilidade. Ao contrário, ele aqui

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Cadernos Espinosanos XX Alex de Campos Moura

é abertura e passagem, dilatação e lacuna pelas quais o eu se ultrapassa e é ultrapassado. se torna ele próprio uma estrutura visível, isto é, ele se torna sensível para si e para
Frequentação, o corpo se aproxima da volubilidade do espírito, começando a embaralhar outrem, dotado de um “exterior” que o oferece à frequentação dos outros, que o torna
a suposta cisão entre um e outro, não sendo gratuito que ele seja definido por Merleau- passível e vulnerável, participante de uma visibilidade mais ampla e geral da qual não
Ponty precisamente como um “entrelaçado de visão e de movimento” (Merleau-Ponty 1, é o autor. O sujeito se descobre objeto.
p.278), o que por si só põe em suspenso a noção tradicional do espírito como entidade Mas não se trata, recusado o espírito como entidade separada, de inseri-lo na
absolutamente separada: “[Essa superposição] impede concebermos a visão como uma pura objetividade, e o vidente não se reduz a uma coisa vista. Ele permanece ativo, isto
operação de pensamento que erguiria diante do espírito um quadro ou uma representação é, esse visível é o mesmo que vê, o que é visto é o próprio vidente vendo. Eles não são,
do mundo, um mundo da imanência e da idealidade. Imerso no visível por seu corpo, como seria preciso mostrar, exatamente o mesmo e não se trata de recusar a ontologia
embora ele próprio visível, o vidente não se apropria daquilo que vê: só se aproxima dele clássica recorrendo a uma filosofia da identidade6. Mas o que nos interessa nesse
pelo olhar, abre-se para o mundo. E, por seu lado, esse mundo, do qual ele faz parte, não momento é que essa espécie de simultaneidade não identitária do ativo e do passivo faz
é em si ou matéria” (Merleau-Ponty 1, p. 278). com que não haja mais um atributo inequívoco capaz de separar completamente sujeito
Definindo o corpo como entrelaçado de movimento e visão, visibilidade móvel e objeto, aquele que age daquele que padece.
e situada, Merleau-Ponty encarna a visão e assegura, como veremos, sua estrutura Levando ao extremo as conseqüências dessa estrutura reversível do corpo,
cambiável, apresentando uma unidade que não aceita a diferença absoluta entre sujeito e é possível reconhecer como faz Merleau-Ponty que o visível e o vidente se fundem
objeto, e que reafirma por isso a impossibilidade da ontologia clássica. na dinâmica de uma mesma unidade. Se o corpo é ao mesmo tempo aquele que vê
Comecemos pela encarnação do olhar. O vidente – estrutura corporal inserida e que é visto, é preciso reconhecer que o visível é o próprio vidente, isto é, que o
em um mundo – por ser situado, não pode abarcar seu objeto, não pode ser concebido sujeito é objeto e vice-versa. Esse “é”, bem entendido, não compreendido no sentido de
como saber absoluto, espírito em ato capaz de circunscrever na simultaneidade tudo o identidade ou de imanência, mas justamente como exigência de uma nova compreensão
que lhe aparece. Ver não é possuir o visto de ponta à ponta, mas “ter à distância”, relação e de um novo sentido do ser, capaz de abarcar a diferença dos termos sem recair em
que preserva a ecceidade de seu termo. O sujeito não é posição, constituição de objetos sua mútua exclusão. É significativo, nessa direção, que os termos sujeito e objeto – que
claros e distintos. em nossa apresentação usamos justamente para explicitar sua insuficiência frente às
Correlativamente, o objeto deixa de ser um constructo, o mundo deixa de ser descrições do filósofo – quase não aparecem mais no ensaio de Merleau-Ponty, ocupado
uma matéria ou um em si ao qual meu gesto nada deveria, que nada diria às decisões do justamente em encaminhar uma nova perspectiva ontológica. Voltando à nossa questão
espírito, pois agora cada movimento se revela “seqüência natural e amadurecimento” da aqui, cabe indicar que é esse novo sentido do ser que a estrutura mista do corpo envolve,
visão, isto é, prosseguimento de uma abertura que ele próprio não engendra, continuação confirmando sua significação ontológica.
que desdobra uma “ausência” que o impede de responder inteiramente por si. O movimento Assim compreendido, o corpo é capaz de ver-se vendo, de tocar-se tocando,
brota de sua relação espontânea com o mundo, conduzindo ao reconhecimento de uma ou seja, ele é capaz de realizar uma espécie de reflexão sobre si mesmo, operando o
dimensão ativa presente no próprio percebido5, uma significação intrínseca ao objeto. encontro (não identitário) entre o agente e seu objeto – assim como na Tradição o Cogito
A constatação do corpo como visibilidade situada implica portanto um outro significava o encontro entre o ato de pensar e seu objeto pensado. Agora, porém, não é
sentido para o espírito e para o objeto. Mais ainda, ela implica uma estrutura híbrida mais uma consciência desengajada o ser capaz de reflexionar-se, e sim o corpo, visível-
entre ambos, articulação do passivo e do ativo. Trazido para o sensível, o sujeito vidente vidente que reinventa a própria noção de “si”:

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Cadernos Espinosanos XX Alex de Campos Moura

sentido e a existência concreta. Não operará mais, portanto, com as noções de sujeito e
“É um si, não por transparência, como o pensamento, que só pensa objeto como realidades distintas, e sim com uma estrutura unitária e reversível que faz de
o que quer que seja assimilando-o, constituindo-o, transformando-o
um a afirmação indireta e implícita do outro.
em pensamento – mas um si por confusão, por narcisismo, por
inerência daquele que vê naquilo que ele vê, daquele que toca
naquilo que ele toca, do senciente no sentido – um si, portanto,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
que é tomado entre as coisas, que tem uma face e um dorso, um
passado e um futuro...” (Merleau-Ponty 1, p.279)

1. MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito, In: Os Pensadores, São Paulo:


Nessa reviravolta, muito distante dos modelos intelectualistas clássicos, o
Abril, 1975.
si e o corpo se encontram. Mas o que se entende por esse “corpo-si”, por esse campo 2. ________________________. La Structure du Comportement, Paris: PUF, 1990.
misto, é outra coisa do que poderia supor a Tradição. O corpo não é mais um conjunto de 3. ________________________. Partout et Nulle Part, In: Signes, Paris: Gallimard.
partes exteriormente ligadas, objeto vazio ao qual se ligaria de fora uma consciência; o
espírito não é mais um puro ato sem vínculos com o mundo, capaz de apreender-se e de
The vision as openness
identificar-se a si. A “animação do corpo”, esse corpo-si que irradia e reflete no interior
mesmo do mundo e do sensível – experiência reflexiva concreta e essência encarnada – Abstract: This text intends to do a short comment about the beginning of Merleau-Ponty’ s
nasce do entrecruzamento entre o subjetivo e o objetivo, entre o vidente e o visível, nessa essay L’Oeil et l’Esprit. Making a cutting in the largest movement of ontological reconfiguration
suggested by the essay, we try to indicate here how the body’s analysis done by the philosopher
estrutura difusa em que a ação e seu objeto se misturam e se trocam constantemente.
already points to another type of being, leading to the recognition of an internal relation between
Visível e móvel, o corpo é coisa e objeto. Vidente e auto-movente, ele é núcleo de ações subject and object. We try to show that the body already presents the reversible structure that will
e sujeito. É nesse espaço comum que o corpo se coloca, não por opor-se ao espírito e sim be noticed in all perceived, mark of Merleau-Ponty’s ontology based in the relation between the
visible and the invisible.
por ele próprio revelar-se espiritualizado, animado pelo “dom natural” de uma visão e de
Keywords: Merleau-Ponty, ontology, body, reversible, visible
uma experiência que embaralham os lugares e os limites entre aquele que vê e aquele que
é visto, entre sujeito e objeto.
O corpo abre, enfim, o campo de uma nova ontologia, cujo eixo, como
procuramos indicar aqui, se encontrará na recusa da positividade e da mútua exclusão
entre os termos com os quais opera, buscando na mediação dos opostos seu campo de
ação. Ela intensificará, assim, o esforço constante do pensamento de Merleau-Ponty em
sua tentativa de afastar-se da distinção clássica entre o ser como sujeito e o ser como
objeto, indicação da necessidade de se formular um tipo de ser que compreenda ambos,
sem recair em identidade ou cisão. Tomando como paradigma a reversibilidade da visão –
simultaneidade do ativo e do passivo, do visível e do invisível – essa ontologia recorrerá
ao “Ser bruto” para explicitar a comunicação interna entre unidade e diferença, entre o

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Júlio Miranda Canhada

tradicionais de construção de conceitos. Frutos de convicção objetivista, nos seus mais


FIGURAS DE CONCEITO. SOBRE A LINGUAGEM EM
variados matizes, os conceitos da tradição filosófica operavam segundo a crença de que
MERLEAU-PONTY
seria possível descrever o mundo por meio de idéias fiéis e exatas, cópias de uma realidade,
diante da qual bastaria pesar e comparar os dados correspondentes. O reconhecimento da
Júlio Miranda Canhada*
insuficiência do modo como se construíam idéias filosóficas não tem como contrapartida,
no entanto, a proposta de que a filosofia deva ser inteiramente recriada a partir do zero.
Resumo: Merleau-Ponty utiliza com freqüência em seus textos a figura da metáfora. À primeira
vista, esse recurso teria papel funcional, ou seja, serviria para dizer de outra maneira, por meio Ou seja, ao lado da constatação de que, desde certo momento, tornou-se insustentável o
de imagens, o mesmo referente. No entanto, estando ausente o ideal de representação e, portanto, lugar da filosofia como farol privilegiado de observação e explicação do mundo, ao lado
ausente a referência objetiva, a figura da metáfora deverá ser compreendida, em Merleau-Ponty,
dessa desconfiança, não há a expectativa de que seja encontrado outro local alto e isolado,
não como ilustração acessória, mas como um uso da linguagem que modifica seu estatuto
referencial. Ao conceber metaforicamente a linguagem da filosofia, Merleau-Ponty incorpora construído por um só homem, de onde se poderia abarcar tudo com a vista. Pelo contrário,
um procedimento próprio à narrativa literária, o que faz ver de que maneira estão relacionadas Merleau-Ponty trabalhará sobre edifício já levantado: somente aí, percorrendo o fio de
em sua obra filosofia e literatura, tanto no que diz respeito ao seu arranjo textual, quanto no diz
tentativas ensaiadas até agora, se conseguirá ver, com os mesmos olhos, mas de maneira
respeito ao tema filosófico da linguagem.
Palavras-chave: metáfora, linguagem, signo, literatura. diferente, o modo como se articulam filosofia e o que está diante dela. Eis onde reside a
possibilidade do discurso filosófico tudo dizer, precisamente no deslocamento de olhares
anteriores.
Maurice Blanchot, num texto em homenagem a Merleau-Ponty, escreve: Sintoma do lugar problemático ocupado pelo discurso filosófico, a metáfora
é recurso bastante utilizado por Merleau-Ponty. Os leitores habituados com seus
[...] o discurso filosófico é, em primeiro lugar, sem direito. Ele diz textos certamente se depararam com inúmeras passagens metafóricas, nas quais estão
tudo ou poderia tudo dizer, no entanto não tem o poder de dizê-lo:
presentes variadas imagens, adjetivos abundantes, e até mesmo certa ambientação
é um possível sem poder. (Blanchot 1, p. 1)
cênica. Essas características não seriam o sinal de que Merleau-Ponty estaria enredado
em dificuldades expressivas, no momento em que impõe para si a tarefa de trilhar rumo
A ausência de poder para o discurso filosófico é a ausência de um lugar seguro
filosófico novo? O recurso à metáfora não seria o índice de que, tendo constatado que
onde o filósofo poderia fincar os pés, lugar que lhe permitiria lançar-se para a construção
os meios expressivos tradicionais tornaram-se insuficientes, dever-se-ia buscar outra
de sua doutrina. Espécie de esconderijo mal-sucedido, a linguagem da filosofia revela
linguagem filosófica, cujo funcionamento escaparia aos antigos e persistentes prejuízos
ao mesmo tempo em que mascara: distante da comunicação usual, camufla-se; próxima
do entendimento? Sem dúvida, a tentativa filosófica de Merleau-Ponty abarca também
de alguma pretensa universalidade, mostra-se. A possibilidade de tudo dizer situa-se no
o modo como essa própria tentativa se apresenta, se mostra, o modo como se constitui
entrecruzamento de seu interdito: sem ter o direito de tudo dizer, no entanto o faz.
em discurso filosófico. À primeira vista, no entanto, poder-se-ia pensar que arranjo
Merleau-Ponty, fiel à homenagem póstuma de Blanchot, reconheceu e
discursivo e conteúdo filosófico não teriam implicação um no outro: dada a dificuldade
trabalhou esse lugar problemático do discurso filosófico. Não haver direito para o modo
do que se busca expressar, Merleau-Ponty teria procurado apenas uma outra forma de
como se faz filosofia significa para ele ausência de garantia segura nos procedimentos
dizer determinado conteúdo - o qual, por si, não seria problemático. Pensando-se assim,
* Mestrando no Departamento de Filosofia da USP. a metáfora assumiria papel funcional: seria um meio de dizer, com outras palavras,

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Cadernos Espinosanos XX Júlio Miranda Canhada

aquilo que no fim das contas já se tinha como claro. Pois, se se trata de uma escolha, para a tradução de algo que não está na linguagem, e diante do qual a linguagem tem que se
a linguagem filosófica, entre um modo direto e objetivo, e outro indireto e metafórico, adequar. Para que haja representação, portanto, necessariamente deve haver um referente
por que não escolher o mais simples, o mais claro? Nesse registro em que se crê que exterior a ser representado, seja ele objetivo ou subjetivo. Ora, é justamente a noção
a forma de dizer e aquilo que é dito estão separados, a metáfora só poderá entrar na de referente que Merleau-Ponty pretende retirar da linguagem: se a língua é formada
conta do excessivo, do acessório e arriscado, porque daria chance a mal-entendidos apenas por termos negativos, sem vínculo natural entre palavra e coisa, então aquilo que
e interpretações variadas. Daí a acusação de que, por vezes, Merleau-Ponty tenha ela significa é também por ela criado, o significado não pertencendo ao lado de lá da
confundido filosofia e literatura, trazendo para o discurso filosófico, o qual deveria ser linguagem, mas estando estreitamente unido a ela.
transparente e inequívoco, procedimentos próprios da narrativa e da ficção. Já em 1946, Se significado e linguagem, portanto, devem ser compreendidos como não
Émile Bréhier perguntava a Merleau-Ponty se, ao invés de escrever filosofia, não lhe separados, então os signos, como parte da língua, compondo com ela seu todo, também
teria sido mais conveniente escrever romances (Cf. Merleau-Ponty 4, p.78). No fim das não devem ser vistos de forma estanque. Ao chamarmos parte da língua seus signos e
contas, seja como acusação, seja como elogio, o adjetivo “literário” dado ao discurso todo da língua sua estrutura, devemos ter em vista que, ao contrário do que se poderia
filosófico pouco ajuda a compreender a maneira pela qual ele se constitui como discurso imaginar, o significado não está definitivamente alojado na estrutura, como se ela fosse
problemático e, sobretudo, a maneira pela qual trabalha apresentação e conteúdo, o local determinante da significação. Quer dizer, para Merleau-Ponty, a relação entre
conjuntamente. Nesse sentido, como veremos, o recurso à metáfora, melhor que adorno signo e significado não é uma relação na qual as partes da língua – que são os signos
ou penduricalho, só poderá ser artifício necessário na obra de Merleau-Ponty. desprovidos de significação positiva – lançam o sentido para um todo mais geral que eles
Mas, antes de entrarmos diretamente no tema da metáfora e na função que cumpre e que os determinaria. Contrariamente a Saussure, a verdade da linguagem não está na sua
no discurso merleau-pontyano, vejamos a maneira pela qual Merleau-Ponty concebe estrutura, porque, se assim fosse, estaria reposto o que se pretendeu eliminar: se não há
o funcionamento da linguagem em geral. Na esteira de Saussure e ao mesmo tempo referente natural para o signo, não pode haver, de maneira a compensar essa ausência, um
contra ele, Merleau-Ponty compreende a linguagem como formada por puras diferenças: todo ou estrutura que determinasse de fora o sentido da linguagem. Aqui, mais uma vez,
os signos, para que signifiquem algo, não precisam estar atados a algum referente que Merleau-Ponty defenderá um critério interno de verdade da linguagem. Mas, se é assim,
lhes seja exclusivo, como se a cada significante correspondesse um significado. Isto é, caberia a questão: onde está aquilo que a linguagem significa?
os signos lingüísticos têm por característica não o fato de serem um invólucro sonoro Se o que a linguagem significa não está nem em algum referente natural, nem
de determinado objeto, mas, ao contrário, sendo pura negatividade, eles têm por num todo exterior às suas partes – a estrutura –, se seu sentido está intimamente engastado
característica o fato de produzirem significação apenas pela relação que se estabelece nela, então, para que saibamos o lugar da verdade na linguagem, devemos perguntar: como
entre eles. O significado advém, portanto, entre os signos, pelo desvio produzido nessa o sentido é criado, ou, dito de outra forma, como se estabelece a verdade da linguagem?
relação estritamente opositiva – o que lingüista e filósofo denominam caráter diacrítico Merleau-Ponty imagina haver dois usos possíveis da linguagem:
da língua. Desse modo, do fato do signo não possuir significado exclusivo decorre que
ele não representa propriamente alguma coisa. Pois a noção de cópia ou representação Digamos que há duas linguagens: a linguagem de depois, que é
adquirida, e que desaparece diante do sentido do qual ela tornou-
pressupõe que haja uma adequação entre signo e objeto, palavra e coisa. Seja o objeto
se portadora, – e aquela que se faz no momento da expressão, que
tido como objeto natural, exterior, ‘parte da natureza’, seja como objeto interior, idéia
justamente vai fazer-me passar dos signos ao sentido, – a linguagem
ou sentimento de um sujeito, o que se busca representar por meio de um nome é sempre falada e a linguagem falante (Merleau-Ponty 2, p. 17).

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Cadernos Espinosanos XX Júlio Miranda Canhada

A distinção entre dois usos da linguagem obedece a um critério de criação de assim, e talvez por isso mesmo, é capaz de produzir verdade. Ora, mas quando se trata do
sentido. Embora haja, verdadeiramente, ausência de referente natural no momento da próprio discurso filosófico, o recurso à metáfora não seria algo da ordem do puramente
criação de sentido, a linguagem usual, a que opera no registro da comunicação cotidiana, fantasioso e apenas ilustrativo? Não estaria a metáfora ligada ao procedimento corriqueiro
para que seja eficaz, funciona como se se referisse a algum objeto exterior. Quer dizer, e extra-filosófico da literatura? Nós já vimos, no entanto, que, levando-se a sério o fato de
a linguagem falada, para que tenha sucesso na comunicação, opera no registro de uma que a linguagem, se por um lado parece somente denotar alguma referência objetiva, por
ilusão funcional da representação: nela, os falantes crêem que haja sob cada nome uma outro cria novas relações entre palavras e coisas, relações que, sedimentando-se, dão-nos
coisa, sob cada signo o mesmo significado. Ora, é justamente esse vínculo aparentemente a impressão de que haja referentes naturais, vimos, portanto, que o recurso à metáfora,
natural entre palavra e coisa que a linguagem falante vem abalar. Porque ela cria sentido, visto como literário ou ficcional, não traz propriamente desvantagem à construção de
rompe o laço de representação entre signo e significado – laço eficaz, porém ilusório. conceitos filosóficos. Examinemos um trecho de Merleau-Ponty retirado de A linguagem
Ou melhor, tem como resultado justamente o fato de mostrar que a representação, pela indireta e as vozes do silêncio:
linguagem, de uma idéia ou coisa não é dada naturalmente, mas é como que o produto
apaziguado de um esforço que foi outrora criação. A linguagem falada, portanto, nada É que cada fragmento do mundo, – e em particular o mar, ora
crivado de turbilhões e ondas, em penachos de cristas, ora maciço
mais faz do que repetir, reproduzir o que o outro tipo de linguagem, a linguagem falante,
e imóvel em si mesmo, – contém todo tipo de figuras do ser, e, pela
criou, inventou. No momento em que se acreditava que determinado nome era a cópia
maneira com que responde ao ataque do olhar, evoca uma série de
exata de um objeto ou idéia específica, como se se pudesse mapear e clarificar todas as variantes possíveis e ensina, além dele, uma maneira geral de dizer
significações, confiante que o único critério para a validação da verdade era o critério de o Ser (Merleau-Ponty 3, p. 90).
adequação, nesse mesmo momento percebe-se, quando uma nova criação de sentido se
dá, que é o próprio critério de adequação entre palavra e coisa que é posto sob suspeita, O mar como “uma maneira geral de dizer o Ser” equivale ao que Merleau-Ponty
já que, ao criar-se um novo sentido, cria-se simultaneamente uma nova relação entre a denomina fenômeno da expressão. Mas o quê expressa o mar, ou, de outra maneira, a
linguagem e aquilo que ela significa. Podemos ver, assim, que para Merleau-Ponty ocorre quê o mar faria referência? Precisamos aqui lembrar o contexto de nossa citação. Neste
uma espécie de inversão entre o que costumeiramente se chama de verdade e seu oposto, momento, tratava-se de examinar o modo como Renoir pintava o riacho das Lavadeiras.
a ficção. Pois a ficção, entendida como aquilo que não se pode observar ou verificar será Ao pretender figurar esse riacho, conta-se que Renoir não observara um ou outro riacho,
justamente a medida da verdade da linguagem; e inversamente, a verdade, entendida mas sim outro objeto, outro “referente”, o mar. Quer dizer, para que pudesse figurar
como adequação de uma coisa a outra, cópia ou correspondência, representação de um aquele fio d’água no qual algumas mulheres lavavam roupa, o pintor não precisou
objeto por um nome, será apenas o resultado de uma operação expressiva que, essa sim, é procurar uma paisagem idêntica à que projetara em sua cabeça. Pelo contrário, prescindiu
muito mais ampla que a mera tentativa de representação de coisas. Não é outro o motivo completamente de alguma ‘parte da natureza’ que lhe desse as coordenadas exatas a
pelo qual Merleau-Ponty tanto valoriza a arte moderna: abdicando do desejo de descrever respeito do modo como se produz um retrato. O que causa surpresa nesse exemplo do
alguma realidade objetiva, foi justamente a arte moderna que, tendo rompido os laços que pintor em trabalho é que por meio dele evidencia-se como algo é pintado a partir de outra
uniam representante e representado, propôs novas formas de se ver o real, sem as lentes coisa, o que nos faz ver que, no processo de criação, importa menos o referente explícito,
dominadoras que o adequavam aos seus critérios tradicionais de representação. objetivo, do que o modo como se trabalha, o qual produz como que uma torção interna
Distante do ideal de representação, a linguagem, para Merleau-Ponty, ainda entre o que se tinha como natural e o que se cria. Embora haja estreita relação entre o

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riacho pintado e o mar visto, importa notar que a compreensão do procedimento criador o que faz com que a idéia de ficção como fantasia ou pura invenção perca sua força.
como mera representação ou cópia do conteúdo visado não só não dá conta de explicar
esse caso específico das Lavadeiras, como resultaria em inevitável paradoxo. Mas [a obra de arte] não é arbitrária ou, como se diz, ficção. A
pintura moderna, como em geral o pensamento moderno, nos
Desse modo, a figura do mar cumpre bem o papel ocupado pela idéia de
obriga a admitir uma verdade que não se assemelhe às coisas,
expressão em Merleau-Ponty. Pois ela é, justamente, a prática do desvio entre um referente
que seja sem modelo exterior, sem instrumentos de expressão
aparentemente natural e a instituição de um sentido que, partindo desse referente usual, predestinados, e que seja, no entanto, verdade (Merleau-Ponty 3,
desloca-o para outro plano, fazendo ver um novo arranjo entre objeto visado e resultado p. 92).
expressivo. As próprias características do mar, evocadas por Merleau-Ponty por meio
de diversos adjetivos, insinuam tanto a dificuldade em representá-lo nos moldes de um A arte moderna passou a desobrigar-se de representar objetos ou idéias. Isso
retrato fiel, seguindo-se alguma pretensão fotográfica, quanto, e principalmente, insinuam significa, por um lado, que nela não há mais a crença na possibilidade de reproduzir
que o próprio objeto, como que se movendo a si próprio, sugere múltiplas configurações, um retrato fiel da realidade, ou, o que é seu correlato, produzir uma ordem narrativa
culminando numa apropriação sua que resulta em outra coisa, o riacho das Lavadeiras, absolutamente autônoma em relação ao mundo empírico; pois, por outro lado, a
resultado que pode mesmo dar a verdade daquele mar inicialmente visto. Como parte expectativa de se criar uma esfera puramente literária, como se ela expressasse nada mais
da realidade, o mar visto imediatamente significa algo mais que ele mesmo, evoca uma do que os sentimentos íntimos do autor, essa crença romântica também não faz mais
totalidade que, partindo dele, o supera e dá a medida de sua verdade, tal qual os signos que, parte da arte moderna. Estão ausentes, portanto, tanto o desejo de reproduzir fielmente
ao invés de dependerem de uma estrutura exterior a eles, conformam imediatamente essa alguma objetividade, quanto pôr em palavras, qual uma confissão ou testamento, as
estrutura, ao mesmo tempo prescindindo de algum conhecimento prévio que determinaria afecções privadas de um indivíduo. Considerada nesses dois sentidos, a ficção deixou de
de antemão seu significado. A metáfora funciona, portanto, não como ilustração de um estar presente na arte, e é por esse motivo que Merleau-Ponty diz não haver uma esfera
conteúdo que, antes dela, já se bastava a si mesmo, ela não é da ordem do acessório ou autônoma puramente ficcional.
arriscado, mas, pelo contrário, ao provocar uma torção nas significações usuais e, junto
com elas, deslocar o referente inicial que lhe serviu de base, produz um novo referente [...] se a obra literária, e em particular a metáfora, suspendem a
referência ordinária, não é para se refugiar na emoção, mas para
mais verdadeiro.
fazer aparecer, não uma outra referência, mas um outro estatuto da
Sem dúvida, no momento em que Merleau-Ponty lança mão da metáfora para
referência (Barbaras 5, p. 273).
construir seu discurso filosófico, ele acaba por avizinhar-se do modo como os romancistas
constroem suas narrativas. Mas podemos inferir daí que esses trechos metafóricos são
A metáfora, portanto, seja no registro próprio da arte, seja, subsidiariamente,
estrangeiros à prática filosófica, que são da ordem do puramente ficcional? Em primeiro
no registro do discurso filosófico, não é artifício que visa maquiar determinações
lugar, devemos levar em consideração que, se Merleau-Ponty deliberadamente utiliza
exteriores a ela, mas, pelo contrário, ela também cria aquilo a quê ela inicialmente se
procedimentos da literatura, ele não os considera, mesmo do ponto de vista estritamente
refere. Procedimento por excelência da narrativa literária, a metáfora é incorporada
artístico, como pertencentes a uma ordem autônoma de significação, absolutamente
por Merleau-Ponty como se ele estivesse diante de uma experiência irrecusável
separada de uma realidade entendida como simples e prosaica, não-artística. Aqui, não há
(experiência histórica, poderíamos dizer), na qual entraram em descrédito formas usuais
propriamente oposição estanque entre a ordem da criação e a ordem que lhe serviu de base,

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Cadernos Espinosanos XX Júlio Miranda Canhada

de representação, e ganhou valor uma interrogação a respeito do próprio modo de se Mas por uma lei singular e aliás providencial da ótica dos espíritos
figurar o mundo. A experiência iniciada pela arte moderna, portanto, para Merleau-Ponty, (lei que talvez signifique que não podemos receber a verdade de
ninguém, e que devemos criá-la nós mesmos), o que é o término
fornece o modelo do que seja a própria experiência filosófica. Isso aparece tanto na letra
da sabedoria [dos autores] não nos aparece senão como o começo
de nosso autor, no modo como constrói seus conceitos, no seu arranjo discursivo, quanto
da nossa, de maneira que, no momento em que eles disseram tudo
na própria elaboração positiva do tema filosófico da linguagem. Como vimos, se os que nos poderiam dizer, fazem nascer em nós o sentimento de que
signos articulam-se de maneira opositiva, não necessitando de nenhum referente natural ainda não nos disseram nada (Proust 6, p. 260-1).
nem de uma estrutura que os determinasse de fora; se a linguagem falante, partindo de
significações usuais (que é o registro da linguagem falada ou de uma ilusão funcional da Tópica por excelência da arte moderna e assumida por Merleau-Ponty como
representação), se ela produz uma torção ou desvio em referentes aparentemente naturais, característica essencial à filosofia, o inacabamento da obra, sua incontornável abertura
então podemos ver que aquilo que Merleau-Ponty compreende por criação de sentido, o faz com que o texto extrapole os limites de suas páginas. Por meio da metáfora, Merleau-
que denomina expressão, está intimamente ligado ao modo como seu discurso filosófico Ponty incorpora produtivamente a não-filosofia, sem pretender dominá-la; por meio dela, o
se desenvolve, este tendo como modelo a maneira pela qual a arte moderna trabalha. O arranjo lógico dos conceitos é alargado; toda a tradição, por fim, é assumida e reformulada,
recurso à metáfora é um exemplo que faz ver como um procedimento usualmente literário dando a ver o que nela não aparecia. O discurso filosófico, por ser problemático, isto
pode ser filosoficamente apropriado e, sobretudo, faz ver como estão articulados filosofia é, por não conter todas as explicações definitivas alojadas nele, convoca o leitor como
e seu modo de apresentação. terceiro termo decisivo entre a letra e seu sentido. Instância notadamente política, o ato
Havíamos visto, inicialmente, que, tal como Blanchot descrevera, Merleau-Ponty de leitura é aquilo que, exigido pelo texto, o transforma em obra.
trabalhou e reconheceu o discurso filosófico como problemático. Causa dessa situação
desconfortável era o esgotamento do que Merleau-Ponty chama “prosa do conceito”:
herdeira dos prejuízos do entendimento, os quais impunham todos uma estrita separação Referências bibliográficas

entre interior e exterior, que acarretava uma maneira dualista de ver o mundo, ela impedia
que se visse mais longe, além das determinações que apenas o sujeito atribuía ao mundo.
1. Blanchot, M. Le discours philosophique, in L’Arc. Merleau-Ponty, 46, Aix-en-
Ora, mas como lidar com um discurso que escape a isso? Vimos que esse discurso deve Provence, 1971.
reconhecer que todo referente que lhe pareça natural, que dê a impressão de um solo firme 2. Merleau-Ponty, M. La science et l’expérience de l’expression, in La prose du
de significações prontas, deve ser colocado sob suspeita. Essa tentativa, desse modo, deve monde, Paris: Gallimard Tel, 1999.
3. Merleau-Ponty, M. Le langage indirect et les voix du silence, in Signes, Paris:
trilhar rumo novo, sem nenhuma garantia prévia de seu resultado. Mas, por outro lado,
Gallimard Folio, 2003.
para Merleau-Ponty, é a própria arte moderna que pode sinalizar o caminho a se seguir,
4. Merleau-Ponty, M. Le primat de la perception et ses conséquences philosophiques,
tanto pelo fato de buscar uma “perfeição sem modelo”, quanto pelo fato de não pretender Paris: Verdier, 2004.
que a obra esteja definitivamente pronta, acabada. É aqui, aliás, que se juntam discurso 5. Barbaras, R. Métaphore et ontologie, in Le tournant de l´expérience, Paris: Vrin,
filosófico e ato de leitura, cabendo a esse último o lugar de complemento e, por assim 1998.
6. Proust, M. Journées de lecture, in Pastiches et mélanges, Paris: Gallimard, 2005.
dizer, acabamento do sentido da obra.

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Cadernos Espinosanos XX

Figures of concept. On the language in Merleau-Ponty MERLEAU-PONTY E O “GRANDE RACIONALISMO”: QUE É


Abstract: Merleau-Ponty frequently uses metaphors in his texts. At first sight, such resource LER UM CLÁSSICO?
would have a functional role, that is, it would allow him to say the same in another way,
through images. However, in the absence of the ideal of representation, and therefore of
José Luiz B. Neves*
objective reference, the figure must be understood not as an accessory illustration, but as a
use of language that modifies its referential status. By metaphorically conceiving the language
of philosophy, Merleau-Ponty incorporates a procedure from literary narrative, thus revealing Resumo: Procura-se mostrar como aquilo a que chamam a “teoria da leitura” merleau-pontiana,
in which way philosophy and language relate in his work, in what concerns both its textual calcada na meditação do impensado de outros filósofos, surge apenas no interior de seu projeto
arrangement, and the philosophical problem of language. ontológico e, mais precisamente, no âmbito das conseqüências que ele traz para a compreensão
Keywords: metaphor, language, sign, literature. da idealidade. É assim que a “história da filosofia” só ganha sentido na filosofia de Merleau-Ponty
uma vez assumidas decisões filosóficas prévias como a de, para inscrever a significação no domínio
do sensível, sublinhar as dimensões passivas da experiência anteriores e fundantes face aos atos
expressos da consciência. Tal débito da “teoria da leitura” à problemática estritamente merleau-
pontiana da significação assinala, por sua vez, certos limites para o reaproveitamento aparentemente
neutro desse modo de leitura em outras paragens filosóficas.
Palavras-chave: história da filosofia, leitura, obra de pensamento, sedimentação, idealidade.

Que pensar do tema desta jornada, “Merleau-Ponty e o Grande Racionalismo”****?


É sabido que, em filosofia, a formulação de uma pergunta quase sempre vem junto com o
modo de respondê-la. É o que ocorre aqui, quando a justaposição de dois nomes próprios
nos leva quase espontaneamente a perguntar sobre as relações, influências ou interferências
de um sobre o outro, assumindo de antemão os dois termos como auto-evidentes. Em que
medida a filosofia do século XVII influenciou ou continua presente em Merleau-Ponty?
Ou então: de que modo a ontologia negativa evita as ingenuidades do infinito positivo?
Numa pergunta como noutra, parece que assumimos demais: o Grande Racionalismo
não surge como tal apenas para um leitor externo, que decide arbitrariamente ver numa
multiplicidade de filósofos a manifestação de um só grande movimento? Afinal, poderíamos
sempre o decompor em sistemas exteriores entre si e auto-suficientes. A ordem das razões
de Descartes, considerada em si mesma, não deveria nada ao more geometrico espinosano,
nem este à monadologia. Dizer que esses sistemas comungam no mesmo subentendido do

* Mestrando no Departamento de Filosofia da FFLCH – USP.


** Texto apresentado na jornada “Merleau-Ponty e o Grande Racionalismo”, no Departamento de Filosofia da
USP, em novembro de 2008. Preferi conservar o tom oral do texto, alterando uma ou outra frase que podia se
prestar a equívocos.
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Cadernos Espinosanos XX José Luiz B. Neves

infinito positivo, - e desde então agrupá-los sob a rubrica vaga de “Grande Racionalismo” a boa leitura uma adequatio -, nem fazer dele espelho de minha própria leitura, em que
-, seria uma generalidade vazia, adequada talvez aos manuais escolares, mas que nada eu faria disfarçadamente as perguntas e as respostas desse suposto diálogo. O clássico
diria de específico sobre os sistemas filosóficos em si. O único pressuposto do método resistiria a esses modos de leitura inversamente simétricos, objetivista e subjetivista.
estrutural em história da filosofia, como se dizia há mais ou menos cinqüenta anos, é a Sob essas condições, talvez valha a pena conservar o tema inicialmente sugerido, mas
coerência interna dos sistemas. Assim, se o nome “Grande Racionalismo” pode surgir, ele reajustando o foco e admitindo esta questão anterior: como Merleau-Ponty lê um clássico
só tem uso para um leitor externo ao objeto e avesso ao rigor historiográfico: convertendo a da história da filosofia, que é ler um clássico? Ou ainda, qual a filosofia da “história da
multiplicidade daqueles sistemas em um só “Grande Racionalismo”, Merleau-Ponty daria filosofia” que sustenta o título de nossa jornada?
sentido ao conjunto, mas nos deixaria a léguas de distância dos sistemas considerados em Questão aparentemente banal, mas apenas “aparentemente”: para ter certeza
si mesmos. Mas então, por que se dirigir a eles? Se neles vai encontrar apenas o que neles disso, basta que consultemos um filósofo para quem ela não guardaria muito sentido. Que
pôs, não teria sido melhor evitar todo o trabalho? se entende normalmente por “ler um clássico da história da filosofia”, ou então, como se
Contudo, também a objeção supõe demais. De início, não é verdade que a idéia lê? Vou à biblioteca e tomo da estante as Meditações metafísicas. Em seu tempo, Descartes
de “sistemas em-si” seja filosoficamente neutra, nem que o único pressuposto do método as escreveu contra o ceticismo e contra as escolas, defendendo - contra esses inimigos
estrutural seja a coerência interna dos sistemas: ele supõe também, pelo menos, a lisura históricos precisos - um certo tipo de sujeito, de método, de verdade etc. Recolocadas
de uma linguagem cujo sentido se esgotaria naquilo que ela explicita, uma linguagem em sua situação, as Meditações eram uma ação, um engajamento de Descartes através da
senão plenamente constituída em ato, pelo menos constituível de direito. É só com prosa. Ora, o que acontece quando, num século que não tem mais as mesmas questões que
esse ideal de linguagem pura que é possível o segundo passo do método, qual seja a o XVII, abro Descartes em meu gabinete? Das duas, uma: ou ele se torna um conjunto de
objetivação das filosofias em sistemas-em-si; pois só uma vez assumida a linguagem proposições claras, um sistema que se sustenta por si só mas não tem nada a dizer sobre
como plenamente explicitável pode-se querer, então, que um sistema filosófico também o mundo exterior; ou então – e isso é apenas um simétrico oposto do primeiro – ele me
ele explicite seu sentido sem deixar lacunas extra-sistêmicas1. Condição necessária, fornece “mensagens”: isto é, ensinamentos atemporais sobre a relação de alma e corpo,
porém não suficiente. Restaria considerar o sujeito que realiza essa objetivação: é como sobre as paixões, sobre Deus etc. Em um caso como noutro, Descartes lido hoje torna-
se a imagem de neutralidade ontológica do método só surgisse jogando para debaixo do se objeto morto, e o leitor de biblioteca é seu coveiro. A Biblioteca é um cemitério, e “o
tapete a subjetividade do historiador, esquecendo-se que seu “interesse de conhecimento” clássico” – monumento de cultura para deleite de leitores filisteus – é apenas um outro
ainda é um interesse e que só ele pode dar sentido ao suposto objeto em-si. Ora, se é nome para uma obra reificada.
assim, teremos de dizer que sobrariam apenas filósofos para-mim na história da filosofia, Em todo caso, é mais ou menos assim que raciocina Sartre em Que é a literatura2.
e que toda leitura deforma o original de algum modo? Isso seria reconhecer, no limite, que Para ele, a expressão “ler um clássico” parece problemática: ou bem se “lê um clássico”
não há uma “história da filosofia” que não seja ela própria sustentada por uma filosofia – e a atividade do leitor desfaz a petrificação da obra, que não é mais “um clássico” em
particular, confessada ou não. sentido usual; ou bem se “lê um clássico” – e o leitor se petrifica junto com o livro: não lê,
Mas será mesmo assim? Talvez a alternativa à objetivação da filosofia em consome. Ali, o eixo de seu argumento estava em minimizar a autonomia ou historicidade
sistemas em-si, exteriores uns aos outros e rivais, não seja a dissolução de todas as próprias da obra em benefício da atividade atual do leitor, fonte doadora de sentido. No
filosofias em uma só. Isso seria sugerir que ler um clássico em filosofia não é nem tomá- ponto de partida estava a distinção entre a prosa e as demais artes, com base nos diferentes
lo como objeto em-si, totalmente determinável e exposto diante de mim – o que tornaria modos pelo qual operam os signos. Sobre a pintura, Sartre diz:

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“Aquele rasgo amarelo no céu sobre o Gólgota, Tintoretto não o que passa da matéria sensível dada a seu sentido não-dado. Por si só, o traço é mero traço
escolheu para significar angústia (...). É uma angústia feita coisa” – é coisa. Ele só ganha o sentido de “sinal de subtração” quando visado como algo que
(Sartre 8, p.11).
não é o arabesco, e quem faz essa passagem é um ato da consciência, ou, no caso em tela,
o leitor de prosa. É ele é o pólo eminentemente produtivo, e o meio lingüístico através
A pintura não é linguagem pois não significa, não nos reenvia a um significado
do qual ele exerce seus poderes torna-se tendencialmente inerte, sem sentido imanente, à
que não é ela mesma e do qual ela seria signo. Ela é coisa, quer dizer, não pode referir a
medida que a atividade é concentrada no pólo subjetivo. Donde o caráter instrumental da
nada de externo a ela, ou – o que dá no mesmo – seu sentido se consome nela própria3.
prosa: “...a prosa, diz Sartre, não é senão o instrumento privilegiado de certa atividade”
Daí porque a diferença com a prosa, que comunicaria, isto é, faria o leitor visar o sentido
(Sartre 8, p. 19). Já se vê então o que é a prosa para Sartre: ela é o meio translúcido no
do qual as palavras são meros índices. E já que o sentido da pintura se consome nela
qual duas atividades se confrontam – o autor, subjetividade que faz aparecer através de
própria – o que é também dizer que ela não tem sentido, já que sentido, em idioma
signos os significados que visa; só que, para eles para não permanecerem meros signos,
fenomenológico, é reenvio do dado ao não-dado – ela também não tem nada que ver com
é exigida então uma segunda atividade, a do leitor, que faz o caminho de volta, passando
a verdade ou com a elucidação de um estado de coisas4. O que acontece com a pintura,
deles (dados) ao sentido (não-dado). Só assim o livro não é coisa, mas objeto literário.
acontece também com a poesia5. Pois, se a poesia trabalha com a linguagem, ela faz
Mas se passa aqui de quê a quê, precisamente? Do mesmo modo que o sentido
entretanto uso simbólico e não signitivo das palavras: para ela o essencial é o meio da
não é o significado, mas antes o reenvio de um termo a outro, também o leitor não se limita
linguagem (sua matéria sensível, a sonoridade e o ritmo das palavras) e não sua finalidade
a passar das palavras dadas ao referente positivo que o autor teria visado inicialmente.
(a apresentação de significados e a comunicação):
Nem no signo, nem no significado, o essencial está no próprio passar de um a outro, sem
fixar ou substancializar qualquer um dos pólos. Substancializar o signo é convertê-lo em
“Os poetas – diz Sartre – são homens que se recusam a utilizar a
linguagem. Ora, como é na linguagem e pela linguagem, concebida poesia, e perder o fato de que significa algo; substancializar o significado é convertê-lo
como uma espécie de instrumento, que se opera a busca da em mensagens, “aquilo que o escritor queria dizer”. Se o essencial não está nos pólos mas
verdade, não se deve imaginar que os poetas pretendem discernir o na pura passagem, é que o essencial está no encontro de duas atividades de que a prosa
verdadeiro, ou dá-lo a conhecer.” (Sartre 8, p.13). é palco: a liberdade do escritor – que se engaja pelas letras – e a liberdade do leitor, que
passa das letras àquilo a que devem seu sentido, o autor - que não é coisa, mas “liberdade
Ora, o que é que Sartre pensa da prosa para poder criticar desse modo a linguagem
para se engajar”.
poética? A prosa é sobretudo meio de comunicação: mais precisamente, é meio translúcido
A uma matéria que é pura transparência corresponde uma subjetividade que é
através do qual viso o significado. “Há prosa – diz Sartre citando Valéry – quando nosso
pura luz. Não se trata de dizer que o sentido está nessa subjetividade – o que seria voltar
olhar atravessa a palavra como o sol atravessa o vidro” (Sartre 8, p.19), o que é dizer
à interioridade –, já que ela é Nada: sendo atividade pura, não tem qualquer conteúdo
que, sendo vidro, a palavra – componente material e sensível da linguagem – não tem ela
próprio, é apenas um dirigir-se a... Está assim sempre engajada na história, no Ser, etc. O
própria sentido imanente, é uma hylé neutra. E, assim sendo, o sentido surge só quando a
Nada só (é) nadificando, e o engajamento literário exprime disso. A tese segundo a qual
matéria for apreendida como x, visada como outra coisa que não ela mesma por um ato
o sensível não pode ter sentido imanente (independente dos projetos do Para Si) é apenas
centrífugo do leitor. Se vejo numa folha de papel um traço reto, o que faz com que ele não
um avatar desse dualismo sartreano, no qual a atividade vem do pólo Para Si. No limite, o
seja um mero traço, mas o sinal matemático de subtração, é um ato da minha consciência
que está entre o Para Si e o Em Si é sempre segundo face a um projeto inaugural do Para

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Si de quebrar o Em Si6. É o que permite Merleau-Ponty dizer que “o entre-dois, isto é, Será então no interior de um outro projeto ontológico que a idéia de “ler um
o livro tomado segundo a significação que lhe damos normalmente, e as mudanças com clássico” pode ganhar sentido. Apenas ele garantirá que a comunidade sucessiva de
o tempo dessa leitura, a maneira pela qual essas camadas de sentido se acumulam ou se leitores, ao pensar diferentemente um mesmo autor, não está traindo, mas continuando
deslocam um a outra, ou mesmo se completam, em suma, a ‘metamorfose’ do livro e a sua obra, o que permite que a própria obra seja ativa, produzindo-se a si mesma através de
história de seu sentido, e minha leitura recolocada nessa história, compreendida por ela, suas leituras, restar falante além dos enunciados explícitos. Mas para ver o que isso quer
inserida por ela numa verdade provisória desse livro, nada disso, para Sartre, impede que dizer, tomemos o texto que abre o ensaio “O filósofo e sua sombra”8. O caso em tela é a
a forma canônica do sentido seja aquela que eu faço ser ao ler, eu, e que minha leitura, leitura do impensado de Husserl, mas vale para todo clássico:
formalmente considerada, seja a medida de toda outra” (Merleau-Ponty 3, p.196).
É por isso que, para Sartre, a divisa “ler um clássico” não tem muito valor: contra “A tradição é esquecimento das origens, dizia o último Husserl.
Justamente se devemos muito a ele, não estamos em condições
o que pensa o senso comum, o clássico não pode, em última instância, dizer sempre mais
de ver exatamente o que lhe pertence. A respeito de um filósofo
do que lemos atualmente nele – isso seria substancializá-lo, dar-lhe independência face ao
cujo empreendimento despertou tantos ecos, e aparentemente tão
leitor. Tampouco pode nos ensinar coisas de que não sabemos: isso seria converter a obra longe do ponto em que se mantinha, qualquer comemoração é
em mensagens atemporais7. Em qualquer caso, se se preserva algo no clássico que excede também traição, quer lhe prestemos a homenagem muito supérflua
a atividade presente de leitura, é que se apaga a liberdade do leitor. de nossos pensamentos, como para lhes encontrar um fiador ao
qual eles não têm direito – quer, ao contrário, com um respeito que
Que torções Merleau-Ponty terá de produzir no argumento para reabilitar a
não deixa de ser distante, reduzamo-lo muito estritamente ao que
expressão “ler um clássico”, que não seja mais culto de cemitério? Seria preciso remontar
ele mesmo quis e disse...” (Merleau-Ponty 2, p.201).
até o dualismo de Para Si e Em Si, fundamento da tese – que se trata de rejeitar – segundo
a qual o sensível não pode ter sentido imanente, devendo-o sempre a um projeto inaugural
Há dois modos de falsear um filósofo: fazer dele um mero álibi de meus próprios
do Para Si. Evidentemente, não é o caso aqui de acompanhar Merleau-Ponty até àquelas
pensamentos, ou, ao contrário, reduzi-lo à letra, à sua filosofia visível que nos chega pelos
paragens de ontologia fenomenológica. Contentemo-nos em ver – o que é suficiente para
textos. Nos dois casos, o leitor se julga externo à obra lida. Mas isso é prejulgar quanto
a questão que estamos perseguindo – como Merleau-Ponty reabilita um sentido imanente,
ao modo de ser da obra, que não é objeto disposto diante do leitor, mas “obra + tradição”:
uma historicidade própria para o clássico (o que exigirá dele o desvelamento de um modo
entre Husserl e o movimento fenomenológico no qual o leitor se insere e que o forma não
de ser que não seja nem o do Para Si, nem o do Em Si, mas que, mais original que eles,
há descontinuidade pura, e se ainda assim houver diferença, ela não é da ordem do claro
esteja no entre-dois). Se assim for, não precisará fazer toda atividade dever-se em última
e distinto: “não estamos em condição de ver o que exatamente lhe pertence”. Na verdade,
instância aos atos centrífugos do leitor e do escritor. Será o caso de abandonar a atividade
a exterioridade entre leitor e obra, a objetivação da obra e sua interpretação como ser-
do leitor? Não, mas de dizer que ela é momento da própria obra, e que portanto não é
disposto diante do leitor, pressupõe (e não explicita) a presença da obra ao leitor, um
atividade pura, mas atividade-passividade. Mas, com isso, veremos que o clássico já não
campo comum que torna a relação entre eles possível. Esse campo comum é precisamente
é mais o clássico no sentido do senso comum – que Sartre parecia aceitar para rejeitá-lo
a tradição que a obra funda, e por isso, nessa camada mais originária da presença, não faz
–, não podendo ser separado da tradição que ele funda. O clássico para nós, dirá Merleau-
sentido separar nitidamente Husserl e o husserlianismo: Husserl para nós (sua presença
Ponty, o modo pelo qual ele nos vem à presença, não é nem em si, nem para si, ele é “obra
prévia a partir da qual é possível a objetivação, interpretação particular e segunda do
+ tradição”.

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modo dessa presença) é Husserl mais o que ele fundou, a tradição. de compreender o modo de ser da idealidade sem introduzir algum corte entre espírito e
Mas “a tradição é esquecimento das origens”, havendo então, supostamente, natureza, sujeito e mundo percebido (o que seria fazer o jogo dos idealistas), nem assumir
diferença e descontinuidade entre um e outro. Que entender aqui por “esquecimento”? entre eles uma continuidade causal (o que seria tornar a idealidade um ser real e incorrer
Em primeiro lugar, já sabemos que é o modo pelo qual as origens vêm à presença, e que conseqüentemente em psicologismo). Com a sedimentação, o cogito não é mais evento
não haveria como ter acesso direito à obra sem essa tradição interposta, já que é o campo psicológico de Descartes, mas também não é essência pura, sem história e sem gênese:
comum entre eu e ela. Era Sartre quem acreditava poder separar o absoluto Descartes continuidade e descontinuidade em relação ao mundo percebido, a sedimentação é o
– aquele que existiu, engajou-se, escreveu tais livros – do cartesianismo, essa filosofia modo pelo qual a idealidade é ancorada no visível como dimensão.
errante e inapreensível porque diferente em cada um dos cartesianos9. Descartes é uno e A sedimentação comporta duas faces: aquilo que se sedimenta e o sedimentado,
idêntico a si mesmo, o cartesianismo é multiplicidade de leitores. Exteriores entre si, não as origens e a tradição, falante e falado. Entretanto, elas não se opõem como o antes e o
pode haver relação: Descartes é inteiramente presente a si, e os leitores não continuam depois, ainda que possam sugerir essa imagem da sucessão (e portanto a idéia de que se
uma interrogação começada com Descartes, eles recomeçam tudo do zero por sua própria desenrolaria no tempo empírico). Que se tome o caso da linguagem, em que as duas faces
conta. Mas se as fronteiras entre um e outro não são tão claras assim, e se Descartes é de Janus reaparecem nos termos de fala falante e fala falada. A fala falante, instituinte de
mais que um homem e um livro, se seu cogito é mais do que evento pessoal e menos do sentido novo, utiliza o material disponível da língua e lhe impinge uma torção a partir
que essência pura, é preciso que entre ele seus leitores haja um campo de presença no qual da qual algo novo, que não estava disponível, é dito. Criado o novo significado, ele logo
estejam imbricados e no qual a idealidade se ancore e tenha uma história. Esquecimento se sedimenta e passa a fazer parte do corriqueiro, do disponível, torna-se fala falada. A
das origens, a tradição é ao mesmo tempo constitutiva da obra, já que esta simplesmente impressão de sucessão parece vir naturalmente: aquilo que era criação perde a novidade
não se apresentaria a nós se não fosse através daquela, se não fosse sedimentando-se e se torna, depois de ser criado, disponível. Ou então se dirá que o sedimentado é ilusão
como uma tradição visível. retrospectiva: achamos hoje que ele é algo de adquirido, mas a seu tempo foi criação.
Sem dúvida, a tradição não é a origem (num juízo de identidade): é origem Ora, em um caso como noutro, supõe-se que a criação e a sedimentação são momentos
sedimentada, e o que era criação e inaudito naquela torna-se usual e corriqueiro nesta, separados, ou pelo menos, que são separáveis por análise. Mas não é assim: de um lado, o
e o que era novidade torna-se disponível. A obra criadora, falante, torna-se fala falada. falado é o modo pelo qual o falante pode vir à presença, pode se tornar visível e deixar de
Assim, o cogito que se pronuncia após Descartes não tem a força que tinha em Descartes, ser evento privado: é, portanto, a realização do falante, não seu decalque; e por outro lado,
contra os céticos e contra as escolas; nos cartesianos, ele se torna um conceito adquirido. o falante não se retira do falado uma vez a significação nova criada, ele persiste como a sua
Mas é o preço que o pensamento paga para deixar de ser evento privado e ganhar duração sustentação: para falar em outro idioma, a causalidade é não-transitiva, e a gênese é atual
pública, abrindo um campo em que outros vão pensar, em que poderá ter uma quase- (e é o que garante que possa ser reativada por um novo ato de criação). E se assim não
objetividade e ser comunicado10. Desse modo, a noção de sedimentação vai aos poucos fosse, as teses de Merleau-Ponty que alocam algum tipo de produtividade na linguagem
substituir a de constituição fenomenológica, substituição que se tornara necessária desde ou em outras camadas de instituição se tornariam simplesmente ininteligíveis.
o bloqueio redução transcendental. Se a redução não consegue pôr entre parêntese a Se não há sucessão, qual a relação entre as duas faces da sedimentação, ou
implicação do filósofo no mundo (a começar pela linguagem, que para Merleau-Ponty não entre o falante e o falado? Não basta dizer que o falante permanece presente no falado,
é passível de purificação lógico-gramatical), então a atitude transcendental é impostura e que o falado é realização do falante. Se são co-presentes, é preciso explicitar qual o
profissional do filósofo e a constituição não pode dar origem a essências puras. Trata-se modo de ser de um no outro, já que, pelo que se disse acima, o falante não é o falado.

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Cadernos Espinosanos XX José Luiz B. Neves

Em seu curso sobre A origem da geometria de Husserl, Merleau-Ponty diz:


“Pensar não é possuir objetos de pensamento, é circunscrever
“a tradição é esquecimento das origens, relação a uma origem que através deles um domínio por pensar, que portanto ainda não
não é considerada pelo presente, e que opera em nós e que lança pensamos. Assim como o mundo percebido (...), também a obra e
para a frente a geometria, justamente porque ela não é possuída o pensamento de um filósofo são feitos de certas articulações entre
pelo pensamento” (Merleau-Ponty 4, p. 22). as coisas ditas, a cujo respeito não há dilema entre a interpretação
objetiva e o arbitrário, já que aí não se trata de objetos de pensamento,
já que, como a sombra e o reflexo, seriam destruídos se fossem
Lá a geometria, aqui a obra de pensamento, o pretexto varia mas o assunto é
submetidos à observação analítica ou ao pensamento isolante, e
o mesmo. A origem não é possuída em pensamento: não é idéia em sentido positivo. apenas podemos ser-lhes fiéis e reencontrá-los pensando-os outra
Fundada a tradição, a origem é esquecida: não sendo considerada pelo presente, é da vez” (Merleau-Ponty 2, p. 202).
ordem do passado. Entretanto, é operante e lança pra frente a geometria. O vocabulário
importa, pois é a intencionalidade operante que, em fenomenologia, é a encarregada de O pensar – e no caso, o pensar de Husserl – não se confunde com a letra, não
fazer a costura do múltiplo nas camadas ante-predicativas da experiência, garantindo é coisa, tampouco é espírito puro, não é supra-sensível. É o que abre e circunscreve um
assim pela estrutura de horizonte a prefiguração de racionalidade daquela experiência. campo a pensar, e nesse sentido é interrogação. É matriz de idéias, mais do que um objeto
É o mesmo que está em jogo aqui. O operante é aqui esquecimento, entenda-se, origem de pensamento. Se Husserl contém um impensado – o que dá a possibilidade da filosofia
presente enquanto ausente, e a tradição que ela funda, dirá Merleau-Ponty no mesmo de Merleau-Ponty –, é que sua filosofia não é inteiramente presente para si mesma, ela
curso, é “certo pleno feito de certo vazio”. E por isso mesmo não terá a presença contém dimensões e vazios a serem pensados.
massiva do em si, será uma presença que comporta uma falha ou lacuna, que comporta Se nessa camada mais originária, o filósofo lido não é pura presença a si mesmo,
dimensões negativas. Entende-se por quê: pois é animada, estruturada ou costurada por mas já diferença, então ler um filósofo não pode ser repetir linha a linha o que suas obras
um “esquecimento fecundo”, uma negatividade operante. Por isso a tradição é sempre visíveis diziam (já que sua parte visível é apenas o sedimentado da obra), nem dar-lhe
mais que seu ser visível: comporta um invisível, o lado de pregnância co-presente com o o sentido que bem quisermos (já que, como leitores, estamos presos na própria obra).
visível e que chama uma continuação. E numa nota de maio de 60 do Visível, Merleau- Nos dois casos, supõe-se tacitamente que a obra seja inteiramente presente a si mesma.
Ponty dirá que “o invisível é... o que, relativo ao visível, não poderia entretanto ser visto Se, ao contrário, pensar não é possuir idéias, mas abrir um campo de interrogação, então
como coisa (os existenciais do visível, suas dimensões, sua membrura não-figurativa)” comentar uma obra de pensamento não é reduzi-la ao seu dito, mas reativá-la: “apenas
(Merleau-Ponty 5, p.305). podemos ser-lhes fiéis e reencontrá-los pensando-os outra vez”. E nesse momento,
Se a tradição é esse visível de um invisível, e se a relação delas com a origem pensando o impensado de um filósofo, é bem um reencontro que se produz: como se a
não é de sucessão, será preciso reconhecer que mesmo o originário não era presença identidade do comentado só se revelasse quando o traímos aparentemente, para ser-lhe
plena, já era diferença de si consigo. E, no presente caso, que o próprio Husserl não era fiéis num outro nível – curioso tipo de identidade, que só se revela à distância através
detentor de sua obra, que o pensamento que ele abria ao mesmo tempo escapava à sua do trabalho da diferença. E, pelo menos nesse ponto (mas sem por isso assumir aquela
posse. Isso porque, se é falante, se é clássico, é que não se reduz a um conjunto de teses, meditação historial da metafísica que ia de par com essa noção de leitura), Merleau-Ponty
ele é interrogação, abertura de um campo e não significação fechada. poderia terminar reiterando as palavras de Heidegger:

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Cadernos Espinosanos XX José Luiz B. Neves

“Toda explicação deve não apenas apreender o sentido do texto, Merleau-Ponty and the “Great rationalism”: what does it mean - to read a classic?
ela deve também – insensivelmente e sem muito insistir – dar-lhe
sentido seu. Essa adjunção é o que o profano sempre ressente,  Abstract: This essay intends to show how the so-called “theory of reading” presented by Merleau-
Ponty, which is based upon the meditation of other philosophers’ “unthought”, receives its proper
medido por aquilo que ele toma pelo conteúdo do texto, como
foundation only in the context of his ontology  or, more precisely, in the realm  of his project’s
uma leitura solicitada; é o que ele critica, com o direito que se
consequences concerning the understanding of ideality. It is only in those terms that “history of
atribui a si próprio, como um procedimento arbitrário. Entretanto,
philosophy” makes sense in Mearleau-Ponty´s work, after having assumed previous philosophical
uma verdadeira explicação não compreende jamais o texto melhor decisions such as the one that determines that in order to inscribe meaning in the domain of the
do que o compreendeu seu autor; ela o compreende de uma outra sensitive it is necessary to underline the passive dimensions of experience that are responsible for
maneira. Mas, esta Outra maneira deve ser tal que reencontre o the thematic acts of consciousness.
Mesmo que o explicado medita” (Heidegger 1, p.176)11. Keywords: history of philosophy, reading, sedimentation, ideality.

Nem subjetivismo, nem objetivismo, comentar os filósofos do século XVII


NOTAS
através do nome “Grande Racionalismo” deve ser alcançar, numa traição apenas aparente,
a identidade da questão aberta por aqueles filósofos. Mas confessemos também que, no 1- É o argumento que Bento Prado, em “Leitura e interrogação”, retoma de Merleau-
fim das contas, com essa historicidade de sentido, parecemos não ter saído do interior de Ponty e Heidegger para reapresentá-lo e com ele justificar sua leitura de Rousseau. (Cf.
uma só filosofia, bem precisa aliás. Mais ou menos como se, lendo os clássicos da história Prado Jr. 7).
da filosofia, tivéssemos apenas visitado uma outra cidade – conhecemos outras praças, 2. “De fato, o livro não é um objeto, tampouco um ato, nem sequer um pensamento: escrito
por um morto acerca de coisas mortas, não tem mais lugar nesta terra, não fala de nada
outra gente, mas permanecemos no mesmo país e no mesmo idioma em que iniciamos a
que nos interesse diretamente; entregue a si mesmo, ele se encarquilha e desmorona, não
viagem... Será isso, “ler um clássico”? restam mais que manchas de tinta sobre o papel embolorado, e quando o crítico reanima
essas manchas, transformando-as em letras e palavras, estas lhe falam de paixões que ele
não sente, de cóleras sem objeto, de temores e esperanças defuntas. É todo um mundo
Referências bibliográficaS desencarnado que o rodeia, um mundo em que as afeições humanas, como não comovem
mais, passaram à categoria de afeições exemplares, em suma, de valores. Assim ele se
1. HEIDEGGER, M. Chemins qui ne mènent nulle part , tr. F. Fédier, Gallimard, 1962. convence de haver entrado em contato com um mundo inteligível que é como que a
2. MERLEAU-PONTY, M. Signes, Gallimard, 1960. verdade e a razão de ser de seus sofrimentos cotidianos” (Sartre 8, p. 24-25).
3. ______________. Les aventures de la dialectique, Gallimard / Folio, 2000. E adiante: “... os grandes escritores queriam destruir, edificar, demonstrar. Mas nós não
4. ______________. Notes de cours sur l’  Origine de la Géométrie de Husserl, PUF, guardamos as provas que apresentaram, porque não nos preocupamos com o que eles
1998. quiseram provar. Os abusos que denunciaram não são mais do nosso tempo; hoje há outros
5. ______________. Le visible et l’invisible, Gallimard / Folio, 2004. que nos indignam e que eles nem sequer imaginavam; a história desmentiu algumas de
6. PIGNAUD, B., “Merleau-Ponty, Sartre et la littérature”, in: revista L’Arc, maio / suas previsões, e aquelas que se realizaram se tornaram verdadeiras há tanto tempo que já
1990. nos esquecemos de que foram, antes, traços do seu gênio; alguns dos seus pensamentos
7. PRADO JR., B., A retórica em Rousseau, Cosacnaify, 2008. estão inteiramente mortos, e há outros que o gênero humano inteiro assimilou e que agora
8. SARTRE, J.-P. Que é a literatura?, Ática, 1999. tomamos como lugares-comuns. Segue-se que os melhores argumentos desses autores
perderam a sua eficácia; hoje admiramos apenas a sua ordem e o seu rigor; por mais bem
estruturados que sejam, para nós não passam de ornamento, uma arquitetura elegante da

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Cadernos Espinosanos XX José Luiz B. Neves

demonstração, sem mais aplicação prática do que a arquitetura das fugas de Bach ou dos meras generalidades que a seqüência do ensaio vai desfazer, “pondo” os pressupostos
arabescos de Alhambra” (Sartre 8, p. 26). desse método de leitura. O núcleo duro do ensaio vai avaliar as noções de redução –
3. Como resume no mesmo sentido B. Pignaud, “o propósito de Sartre, nas primeiras descobrindo um irredutível último, a Natureza selvagem que toda atitude da consciência
páginas de seu ensaio, era, de algum modo, livrar-se da ‘arte’ (aí compreendida a poesia) pressupõe e não elucida –, descrever o mundo sensível que resiste à reflexão e, finalmente,
confinando-a no domínio do sentido. Esse sentido, ele o concebia como uma signficação tirar as conseqüências disso para a constituição fenomenológica. Ali, será apresentada a
ao mesmo tempo mais larga e mais vaga, privada de toda capacidade referencial porque noção de sedimentação como modo de ser da idealidade uma vez constatado que toda
irremediavelmente atolada no objeto que a carrega” (cf. Pignaud 6). atitude repousa sobre um solo último. E é aqui – como tentarei sugerir – que se produz o
4. Cf. citação abaixo, e também: “o escritor pode dirigir o leitor e, se descreve um casebre, método de leitura merleau-pontiano.
mostrar nele o símbolo das injustiças sociais, provocar nossa indignação. Já o pintor 9. Apenas parafraseio aqui o próprio Merleau-Ponty em “Partout et nulle part” (Merleau-
é mudo: ele nos apresenta um casebre, só isso; você pode ver nele o que quiser. Essa Ponty 2, 139).
choupana nunca será o símbolo da miséria; para isso seria preciso que ela fosse signo, 10. “Precisamente enquanto o pensamento é Erzeugung, superação da vida passiva, entrada
mas ela é coisa. (...) Não duvido de que a caridade ou a cólera possam produzir outros em um domínio invisível, ele não pode existir senão como sedimentado e a sedimentação é
objetos, mas neles elas ficarão atoladas da mesma forma; perderão o seu significado, sua realização como pensamento. Husserl sublinha que o pensamento é sedimentado e que a
restarão apenas coisas habitadas por uma alma obscura. Não se pintam significados, não reativação é apenas uma possibilidade, que a Nachverstehen e Mitverstehen não é, não pode
se transformam significados em música; sendo assim, quem ousaria exigir do pintor ou ser reativação, que a síntese aqui não é para mim efetiva de todo o caminho seguido; mas
do músico que se engajem?” (Sartre 8, p. 12) posse de pivôs, dobradiças, matrizes de possibilidades, equivalentes negativos ou rastros
5. “Na verdade, o poeta se afastou por completo da linguagem-instrumento; escolheu de de atos positivos, esquecimentos fecundos, isto é, negações operantes. O pensamento é
uma vez por todas a atitude poética que considera as palavras como coisas e não como para ele por si temporal.” (Merleau-Ponty 4, p.29). “Rastros = presença de um ausente =
signos. Pois a ambigüidade do signo implica que se possa, a seu bel-prazer, atravessá- experiência de uma ausência” (Merleau-Ponty 4, p.33).
lo como a uma vidraça, e visar através dele a coisa significada, ou voltar o olhar para a 11. Um trecho desse texto aparece como epígrafe daquele ensaio de Bento Prado Jr. a que
realidade do signo e considerá-lo como objeto” (Sartre 8, p. 13) nos referimos acima e que de resto nos serviu de mote.
6. Sigo, evidentemente, a leitura de Merleau-Ponty, que se permite várias passagens ao
limite que um sartreano ortodoxo talvez recusasse: “apesar das aparências, Sartre jamais
admitiu senão o ser para si, com seu correlativo inevitável: o puro ser em si” (Merleau-
Ponty 3, p.198). O sartreano pode aliás consultar a resposta raivosa de Simone de Beauvoir
em Privilèges, em que se acusa Merleau-Ponty de pseudo-sartrismo. Como nosso propósito
aqui não é estritamente filológico, peço licença para passar ao largo desses problemas.
7. “Assim, quando um livro apresenta pensamentos inebriantes que oferecem a aparência
de razões só para se dissolverem sob o nosso olhar e se reduzirem às batidas do coração,
quando o ensinamento que se pode extrair dele é radicalmente diferente daquele que o
autor quis dar, chama-se a esse livro mensagem” (Sartre 8, p. 27)
8. Que a leitura do impensado – modo pelo qual o “clássico” será salvo – esteja firmemente
fundada na ontologia de Merleau-Ponty, é confirmado pela estrutura daquele ensaio. Ali,
Merleau-Ponty começa apresentando sua leitura particular de Husserl nem como traição,
nem como fidelidade, mas um prosseguimento (fiel-infiel) das questões husserlianas
através daquilo sobre o que elas tinham de silenciar. Apresenta-se o projeto de “ler o
impensado” do filósofo, mas tudo poderia ainda soar um pouco vago. É esse “ar” de

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foi, então, uma fonte prolífica de polêmicas em torno a um problema que poderíamos
sintetizar assim: qual é a forma mais apropriada de pensar a determinação no interior de
NOTÍCIAS
uma totalidade infinita? Uma leitura materialista da concepção espinosana do infinito
positivo é necessária para responder essa questão.
DEFESAS DE DOUTORADO
Palavras-chave: Infinito positivo, materialismo, determinação, negação,
expressão
Mariana Cecilia de Gainza
Título: “Espinosa: uma filosofia materialista do infinito positivo”
Cristiano Novaes de Rezende
Orientador: Profa. Dra. Marilena de Souza Chauí
Título: “Intellectus Fabrica: um ensaio sobre a teoria da definição sobre no
Data: 06.02.2009
Tractatus de Intellectus Emendatione de Espinosa”
Orientador: Luiz Henrique Lopes dos Santos
Resumo: Data: 16.03.2009

A leitura que Hegel fez da ontologia espinosana teve uma influência maiúscula O presente trabalho é um ensaio sobre a teoria da definição desenvolvida por
em gerações inteiras de leitores, que leram Espinosa a partir da representação hegeliana Espinosa principalmente no Tractatus de Intellectus Emendatione. Através do exame
de suas supostas virtudes e defeitos. O efeito mais evidente da força que teve essa dessa teoria, pretende-se demonstrar a tese de que a estrutura conferida por Espinosa
interpretação foi a difundida tendência a classificar Espinosa como um filósofo idealista. E à definição perfeita constitui o núcleo de uma lógica da imanência, apta a presidir, na
isso, por sua vez, derivou em que importantes expoentes do pensamento crítico do século modernidade, a elaboração de uma ontologia que enfrenta o clássico problema do uno e
XX ignorassem seus aportes, por julgá-lo parte de uma tradição alheia às aspirações de do múltiplo, reformulado em termos de compatibilização entre a afirmação da unidade
emancipação com as quais se identificaram diversas filosofias logo da fundação teórica e unicidade substanciais e a afirmação de que, não obstante, da natureza dessa mesma
que a obra de Marx significou. Pretendendo abrir diálogos, a partir de Espinosa, com substância una e única, seguem-se necessariamente infinitos entes singulares reais.
autores mais ou menos associados com a tradição dialética, defendemos a legitimidade Demonstrar essa tese conceitual equivale, numa chave histórica, a refutar a
de uma leitura da Ética sob uma perspectiva materialista. Como pensar a singularidade tradição interpretativa — iniciada já com os interlocutores contemporâneos de Espinosa
e a história no interior de uma filosofia da imanência que se sustenta sobre a afirmação mas que interferirá em toda recepção futura de sua obra — que considera a filosofia
da existência eterna de uma única substância infinita? Enquanto a ontologia espinosana espinosana como uma sorte de eleatismo moderno. Demonstrando, a partir da teoria da
coloca, em primeiro lugar, a existência de uma única substância absolutamente infinita, definição, que certas acusações feitas pela posteridade já se encontravam implicitamente
toda uma tradição de leituras – da qual Hegel formou parte – fez da questão relativa respondidas no debate espinosano com a escolástica de inspiração aristotélica, ambiciona-
à determinação dos seres finitos o eixo da crítica ao espinosismo. A dificuldade para se, destarte, fornecer subsídios para uma revisão crítica da recepção da obra de Espinosa,
compreender a peculiar concepção espinosana da totalidade (enquanto substância), da caracterizando sua filosofia imanentista como uma possibilidade do racionalismo moderno
efetividade que realiza (causalidade imanente), e das formas diversas de realidade, de historicamente mal compreendida e, por isso, talvez capaz de exigir alguma ampliação
produção e de determinação que a constituem (atributos, modos infinitos e modos finitos) dos próprios conceitos de racionalismo e de modernidade.

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INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES CONTENTS

Merleau-Ponty: from the constitution to the institution


Marilena Chauí................................................................................................11
:::: Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40 laudas (30 linhas de
70 toques). The philosopher’s presence

:::: O arquivo, que deve ser enviado por e-mail, deve conter o nome do autor, a Renaud Barbaras.............................................................................................37

instituição a que está vinculado, o endereço eletrônico ou o telefone.


:::: Os artigos devem vir acompanhados de um resumo e um abstract de 80 a 150 “La grande politique” or Merleau-Ponty reader of Machiavelli
palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords. Leandro Neves Cardim....................................................................................49

:::: As notas de rodapé devem ser digitadas no final do artigo, utilizando-se o


Merleau-Ponty: between ontology and metaphysics
recurso automático de criação de notas de rodapé dos programas de edição.
Marcus Sacrini A. Ferraz..................................................................................74
:::: As referências bibliográficas devem ser listadas e numeradas no final do
texto, em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.
The concept of life and the genesis of the human order
:::: As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com as normas
Silvana de Souza Ramos..................................................................................90
técnicas da ABNT, seguindo-se a numeração das referências bibliográficas; por exemplo,
(Descartes 1, p.10) ou (Descartes 1, §8, p.10). Merleau-Ponty and the snowball: compliment and criticism to Bergson

Pablo Zunino..................................................................................................104

Proust in the light of Freud – Merleau-Ponty’s reading


Ronaldo Manzi...............................................................................................121

The vision as openness


Alex de Campos Moura..................................................................................131

Figures of concept. On the language in Merleau-Ponty


Júlio Miranda Canhada..................................................................................138

Merleau-Ponty and the “Great rationalism”: what does it mean - to read a


classic?
José Luiz B. Neves...........................................................................................149

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