Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
A perplexidade diante de frases como “Nós somos médicos por vocação e não
por dinheiro. Trabalhamos porque nossa ajuda foi solicitada, e não por salário, nem no
Brasil nem em nenhum lugar do mundo” ou “Somos médicos por vocação, não nos
interessa um salário, fazemos por amor” comparada com as posturas egoístas de alguns
médicos, nos põe a perguntar: afinal, o que motivou a vinda de médicos cubanos para
trabalhar em solo brasileiro recebendo, em troca, apenas parte do dinheiro pago pelo
Brasil sendo, por isso, chamados de escravos? Cabe também perguntar, de forma
semelhante, que interesses tinham os cubanos em atravessar o Atlântico para lutar na
África, um continente alheio, sem nenhuma garantia de conquistas materiais?
3 Jihan El-Tahri, Cuba, Une Odyssée Africaine, França, ARTE France, 2007, cor, 190min
historiador contemporâneo deve reconhecer os desafios que a grande ideologização das
fontes e dos comentários sobre os conflitos nos impõem, ao mesmo tempo, proceder a
análise contextualizando e respeitando a diversidade dessa experiência que durou mais
de trinta anos.
Entre 1988 e 1989 a intervenção cubana seria pela última vez crucial no apoio ao
MPLA. Nos anos imediatamente anteriores, as lutas haviam se intensificado na região.
A África do Sul promovia ações militares objetivando minar a legitimidade dos
governos pró-socialistas, assim como desgastar a legitimidade de Cuba na África. Do
outro lado, os dirigentes do Mpla decidiram avançar até a província do Cuando
Cubango para eliminar o quartel general da Unita, em Jamba, nessa província. Esta
ofensiva, apoiada apenas pelos soviéticos já que os cubanos se expressaram contra, foi
contida pelos sul-africanos o que levou à Batalha do Cuito Cuanavale, a maior batalha
em território africano desde a II Guerra Mundial.8 Com o deslocamento transatlântico de
combatentes e o apoio aéreo cubano foi possível não apenas impedir o avanço sul-
africano como expulsá-los em definitivo de Angola e estabelecer as condições
necessárias para a independência da Namíbia, então Sudoeste Africano. Após os acordos
de paz, Cuba abandonou seu projeto militar na África e investiu socialmente e
politicamente em ser um país exportador não de armas, nem de guerrilheiros, mas de
médicos para atuar em regiões de conflito e disputar poder na ordem internacional a
partir de sua posição como referência na saúde pública.9
O passado em guerra.
As visões sobre a participação cubana na África Austral têm sido veiculadas por
meio de filmes, alguns trabalhos acadêmicos e principalmente livros de memória. 10 A
memória das batalhas tem sido reescrita e disputada pelos participantes interessados e
2009.
6 Inácio Luiz Guimarães Marques. Memórias de um golpe: o 27 de maio de 1977 em Angola. Dissertação
(mestrado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.
7 Vladimir Gennadyevich Shubin. The Hot ‘Cold War’: The USSR in Southern Africa. Pluto Press, 2008, p.70-71.
8 William Minter. Os Contras do Apartheid: as raízes da guerra em Angola e Moçambique. Maputo: Arquivo
Histórico de Moçambique, 1998.
9 Julie M. Feinsilver, Cuba as a "World Medical Power": The Politics of Symbolism. Latin American Research
Review, v. 24, n. 2, pp. 1-34, 1989
10 Entre os livros de memória estão: Chester Crocker. High noon in southern Africa: making peace in a rough
neighborhood. New York: W. W. Norton & Company, Inc., 1992 e Col. Jan Breytenbach. The Buffalo Soldiers:
The story of South Africa's 32-Batallion, 1975-1993. Paarl: Galago, 2002. Entre os textos historiográficos: David
Williams. On the Border: the white south african military experience, 1965-1990. Cape Town: Tafelberg, 2008 e
Edward George. The Cuban Intervention in Angola, 1965-1991. London, New York: Frank Cass, 2005.
tem contaminado a produção acadêmica. Nas publicações sobre esses conflitos, do
ponto de vista da paixão e das adjetivações aos inimigos, não parece haver grande
distinção entre o que seria o livro memorialista e o que seria o texto historiográfico.
Algumas das divergências nessa disputa pelo passado são a legitimidade da estadia de
Cuba na África Austral e a legitimidade das intervenções sul-africanas no Sudoeste
Africano e em Angola.
Sobre a papel desempenhado por Cuba na região, o ponto de vista cubano foi
amplamente divulgado, a começar pelas declarações de Fidel Castro. Nesse ponto de
vista, Cuba foi fundamental do ponto de vista militar para impedir que a África do Sul
desestabilizasse o regime angolano e assegurasse a aplicação da Resolução 435 da
ONU, que afirmava ser a ocupação do Sudoeste Africano pela África do Sul ilegal e
exigia sua retirada imediata. A batalha do Cuito Cuanavale foi apresentada como uma
tremenda derrota para o exército racista e um golpe definitivo no apartheid. As
motivações cubanas foram sempre autônomas e motivadas pela derrota da minoria
branca. Horace Campbell, Piero Gleijeses e Isaac Saney são alguns historiadores que
estão ao lado dessa opinião. Gleijeses afirma que a presença cubana foi um ato legal, à
convite do governo angolano igualmente legítimo.14
11 Piero Gleijeses, The cuban drumbeat: Castro's worldview: cuban foreign policy in a hostile world. Calcutá:
Seagull Books, 2009, p.28.
12 Piero Gleijeses. Moscow’s Proxy? Cuba and Africa 1975–1988. Journal of Cold War Studies, v.8, n. 2, Spring
2006, p.16.
13 Shubin. op. Cit., p. 73.
14 Gleijeses, Op Cit; Isaac Saney, “African Stalingrad: the cuban revolution, internationalism and the end of
apartheid”. In: Latin America Perspectives, Issue 150, v.. 33. nº 5, pp. 81-117, September 2006; Horace
Campbell. “The military defeat of South Africans in Angola”. Monthly Review, vol. 40, n.11, abr. 1989.
que eles seriam o de fragmentar o território cubano a partir do Sul sob a liderança da
Unita; dando condições para, em seguida, instalar um governo em Luanda tutelado pela
África do Sul. Gleijeses afirma também que os sul-africanos acreditavam que uma saída
militar para a questão regional levaria a Unita ao poder, plano este interrompido pelos
cubanos.
O outro lado da história afirma que eles nunca objetivaram derrubar o MPLA, e
tomar Cuito Cuanavale nunca foi um plano. A versão sul-africana é que as ações na
província do Cuando Cubango no final dos anos oitenta foram defensivas em busca da
proteção à Unita e da inviabilização de mais investidas do MPLA de tamanha
envergadura. Para os sul-africanos, a presença cubana era ilegal, desde o seu início, pois
sem essa intervenção com apoio soviético em 1975, o governo do MPLA jamais
existiria. Essa visão portanto iguala o papel cumprido tanto pelos sul-africanos quanto
por Cuba – ambos estrangeiros, e justifica as incursões sul-africanas porque não
legitima o governo angolano. Outra justificativa é que, segundo eles, os sul-africanos
sabiam da inevitabilidade da independência da Namíbia, apenas buscavam condições
razoáveis para que acontecesse, no caso, longe da influência socialista.15
15 Williams, Op Cit, p.118-125; Leopold Scholtz . The Standard of research on the battle of Cuito Cuanavale,
1987–1988. Scientia Militaria, South African Journal of Military Studies, v. 39, n.1, pp. 115-137, 2011.
16 Christabelle Peters, Cuban Identity and the Angolan Experience, Palgrave Macmillan, 2012. p.3
no exterior, houve um progressiva mudança ideológica que deu origem a uma nova
imagem da África e do negro, onde os cubanos se colocavam como um povo latino-
africano, diálogo esse tenso com a ideia de “cubanidade” construída pela
intelectualidade que silenciava a questão da raça e forjava Cuba como uma nação não-
racializada.
Alguns livros e artigos tem sido publicados nos últimos anos debatendo essa
polêmica participação de Cuba na África Austral quer seja na derrota do colonialismo
português, quer seja no desmonte no regime do apartheid; infelizmente esses não tem
sido traduzidos nem mesmo discutidos pela academia brasileira. O estudo desse período
e, mais ainda, sobre a disputa contemporânea sobre a memória desse período pode nos
dar certar explicações sobre quem, afinal, são esses médicos cubanos, e como tem sido a
recepção desses cubanos por onde eles tem passado. O Brasil é só o país mais recente
dessa longa história; vaias e gritos ofensivos são a reação mais amistosa que eles
enfrentaram, embora igualmente interessada e não menos conservadora.
Referências Bibliográficas
FEINSILVER Julie M. Cuba as a "World Medical Power": The Politics of Symbolism. Latin
American Research Review, v. 24, n. 2, pp. 1-34, 1989
GLEIJESES, Piero. The cuban drumbeat: Castro's worldview: cuban foreign policy in a hostile
world. Calcutá: Seagull Books, 2009
__________Piero. Moscow’s Proxy? Cuba and Africa 1975–1988. Journal of Cold War Studies,
v.8, n. 2, Spring 2006, p.16.
MARQUES , Inácio Luiz Guimarães. Memórias de um golpe: o 27 de maio de 1977 em Angola.
Dissertação (mestrado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.
MATEUS, Dalila Cabrita; MATEUS, Álvaro, Purga em Angola: o 27 de maio de 1977.
Alfragide, Portugal: Texto, 2009.
MAXWELL, Kenneth. O Império Derrotado: revolução e democracia em Portugal, São Paulo:
Companhia das Letras, 2006
MINTER ,William. Os Contras do Apartheid: as raízes da guerra em Angola e Moçambique.
Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique, 1998.
SCHOLTZ, Leopold. The Standard of research on the battle of Cuito Cuanavale, 1987–1988.
Scientia Militaria, South African Journal of Military Studies, v. 39, n.1, pp. 115-137, 2011.
SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos e a crise do império colonial português: economias,
espaços e tomadas de consciência, São Paulo, Alameda, 2004.
SHUBIN ,Vladimir Gennadyevich. The Hot ‘Cold War’: The USSR in Southern Africa. Pluto
Press, 2008.