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rodapé
Roberto de Mattei
A Ditadura do Relativismo
Civilização Editora
Título original
La Dittatura del Relativismo
Coordenação Editorial
José Narciso Soares
Tradução
Maria José Figueiredo
Adaptação da capa
Livraria Civilização Editora
ISBN 978-972-26-2738-2
Depósito Legal 277589/08
geral@ivilizacaoeditora.pt
www.civilizacao.pt
SUMÁRIO
Introdução…11
A DITADURA DO RELATIVISMO
Capítulo 1
A secularização e as responsabilidades dos cristãos…13
Capítulo 2
A ditadura do relativismo…21
Capítulo 3
O relativismo das instituições internacionais…41
Capítulo 4
Laicismo e religião numa perspectiva europeia… 57
Capítulo 5
As liberdades garantidas… 67
Capítulo 6
Liberdade e liberalismo…79
Capítulo 7
Dez teses sobre a religião e a sociedade…95
ADVERTÊNCIA
[9]
INTRODUÇÃO
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da perda dos princípios religiosos, "a constituição de um despotismo que será o mais
gigantesco e o mais absoluto de quantos já existiram na memória dos homens".
A oposição à ditadura do relativismo passa necessariamente pela redescoberta
da lei natural divina que foi o fundamento da civilização cristã, tendo-se constituído na
Europa ao longo da Idade Média, e difundido, a partir de então, para todo o mundo. As
raízes cristãs da sociedade não são, deste ponto de vista, apenas históricas, mas
sobretudo constitutivas, como é constitutiva para a alma humana a vida sobrenatural da
graça, que tem a sua fonte em Jesus Cristo, "pedra angular" da sociedade e da história
(Act. 4, 11).
Estas ideias simples, que são o fio condutor de intervenções realizadas em
diversos momentos e locais, ao longo dos últimos dois anos, poderão constituir uma
chave interpretativa útil para uma compreensão da profunda crise do nosso tempo. O
pensamento que estas páginas pretendem ecoar é o da philosophia perennis, integrada
no Magistério tradicional da Igreja mas também nos ensinamentos dos grandes autores
contra-revolucionários dos séculos XIX e XX, em particular nos do Prof. Plínio Corrêa
de Oliveira 0908-1995), a cuja memória desejo dedicar este volume.
Roberto de Mattei
16 de Julho de 2007
Festa de Nossa Senhora do Carmelo
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Capítulo I
A secularização e as responsabilidades
dos cristãos
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uma imagem bastante precisa da incoerência religiosa com que se debatia o mundo
antigo antes de Constantino."
No mundo pagão, dominava uma religião cívica, sem dogmas nem moral, à
qual o Estado impunha uma adesão puramente exterior. Os cristãos, que professavam
uma religião antes de mais interior, do coração e da consciência, mas submetida a uma
Verdade objectiva, refutaram esta adesão formal, expressa no incenso queimado em
homenagem aos ídolos. As sentenças que os condenavam não tinham em vista delitos
específicos, mas o nomen ipsum, a pura e simples proclamação do cristianismo.
Esta opção, esta profunda coerência entre o pensamento e a acção, esta
adesão à Verdade de que os cristãos davam mostras, era considerada uma perigosa
forma de intransigência e de fanatismo por parte das mesmas autoridades que
professavam a equiparação sincretística de todas as religiões. Já encontramos aqui, in
nuce, a moderna fórmula: nenhuma tolerância para os intolerantes, a censura que
Voltaire devolve aos mártires no seu célebre Tratado sobre a tolerância (1756).
Lançando lama aos mártires, sem esconder a simpatia e a admiração que tinha
pelos respectivos carrascos, Voltaire escreve: "É inconcebível que, sob o domínio dos
Imperadores, tenha existido uma inquisição contra os cristãos. Não há notícia de
judeus, sírios, egípcios ou bardos terem sido incomodados pelas mesmas razões.
Foram mártires aqueles que se ergueram contra os falsos deuses. Vistas bem as
coisas, porém, eles insurgiram-se violentamente contra os cultos tradicionais e, por
muito absurdos que tais cultos fossem, somos levados a reconhecer que eles - os
mártires - eram intolerantes."
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esquecendo os "valores universais e absolutos" de que, no passado, era fermento.
Talvez nenhum conceito seja tão apropriado como o de apostasia para conotar a
Europa secularizada dos nossos dias. O Império Romano perseguiu o cristianismo sem
o conhecer. A sociedade contemporânea é uma sociedade que renega o cristianismo
depois de ter conhecido, tanto os benefícios espirituais e morais, como os benefícios
culturais e sociais por ele introduzidos.
A responsabilidade de quem hoje pergunta "Quid est Veritas?" é mais grave do
que a de quem fazia a mesma pergunta nos começos da era cristã - de Pilatos, essa
expressão máxima do relativismo na história. Pelo mesmo motivo, porém, as
responsabilidades dos cristãos são hoje mais graves que as dos cristãos dos primeiros
séculos. Estes anunciavam uma fé e construíam um mundo novo; os cristãos de hoje
têm como missão, não apenas renovar a antiga e perene mensagem do Evangelho,
mas também inspirar-se nos frutos históricos dessa mensagem que ainda sobrevivem
na sociedade contemporânea, para fazerem deles o germe do necessário
renascimento.
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Capítulo II
A ditadura do relativismo
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pertencem à esfera estritamente privada, tendo pelo contrário uma projecção pública e
social, e uma relação directa com o culto divino.
"Com efeito, o culto agradável a Deus nunca é um acto meramente privado,
sem consequências nas nossas relações sociais: requer o testemunho público da
própria fé. Isto vale, evidentemente, para todos os baptizados, mas impõe-se com
particular premência a quantos, pela posição social ou política que ocupam, têm de
tomar decisões sobre valores fundamentais como o respeito e a defesa da vida
humana desde a concepção até à morte natural, a família fundada sobre o matrimónio
entre um homem e uma mulher, a liberdade de educação e a promoção do bem
comum em todas as suas formas. Estes valores são inegociáveis. Por isso, cientes da
sua grave responsabilidade social, os políticos e os legisladores católicos devem
sentir-se particularmente interpelados pela sua consciência rectamente formada a apre-
sentar e a apoiar leis inspiradas nos valores impressos na natureza humana." (§ 83)
De novo, pois, nas palavras do Pontífice: defesa da vida; reconhecimento da
família natural; direito à educação dos próprios filhos - direitos e valores que estão,
aliás, estreitamente ligados entre si.
Com efeito, a vida humana nasce e desenvolve-se dentro de uma família. O
acto conjugal não é uma função meramente biológica; é um acto por via do qual se
comunica a vida a um ser a quem Deus infundirá uma alma. A transmissão da vida
prossegue na educação daquele que é fruto de um acto de amor divino e humano: um
homem dotado de alma e de corpo. A família é o meio natural para a transmissão da
vida e da educação, para o desenvolvimento da pessoa humana; neste sentido, é uma
verdadeira sociedade, jurídica e moral. Anterior ao Estado pela sua natureza própria,
deve ser reconhecida pelo Estado e pelas instituições internacionais. Foi definida como
a célula básica da sociedade - e é-o de facto.
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Evangelho. Jesus não veio abolir, mas "dar cumprimento" à lei natural (Mt. 5,
17). Com efeito, a lei suprema do Evangelho é a lei do amor, mas é o próprio Senhor
quem admoesta os seus ouvintes: "Aquele que tem os Meus mandamentos e os
guarda, esse é que Me ama, e aquele que Me ama será amado por Meu Pai, e Eu
amá-Io-ei e manifestar-Me-ei a ele" (Jo 14, 21).
Como ser racional que é, o homem tem capacidade para "ler" a lei natural, ou
seja, é capaz de a reconhecer e tem a obrigação de a ela se adequar. Assim, o
legislador humano não "cria" a lei, antes a "descobre" na ordem natural e na vontade
divina, legislando em coerência com ela.
Henri de Brachton, um importante autor medieval (c. 1216-1268), afirma no seu
De legibus et consuetudinibus Angliae que todos os homens estão submetidos aos reis,
não estando os reis submetidos senão a Deus - e, acrescenta logo a seguir, à lei,
porque é a lei que faz o rei: "Ipse autem rex non debet esse sub homine, sed sub Deo
et sub lege, quia lex facit regem."
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poder absoluto, um poder soberano: a vontade da maioria passa a ser a fonte suprema
da moral. "Mas a votação por maioria", escreveu o então Cardeal Ratzinger, "não pode
ser o princípio último; há valores que nenhuma votação por maioria tem o direito de
revogar." "Se o homem puder decidir por si mesmo, sem Deus, o que é bom e o que é
mau", escreve por sua vez João Paulo II em Memória e Identidade, "poderá igualmente
dispor que um grupo de homens seja aniquilado. "
Foi um parlamento democraticamente eleito, recorda ainda o Papa Wojtyla,
quem consentiu na ascensão de Hitler ao poder na Alemanha dos anos 30, e na
abertura do caminho para a invasão da Europa e a constituição de campos de
concentração. Basta recordar estes acontecimentos para compreender que as leis
estabelecidas pelos homens têm limites precisos, que não podem ser ultrapassados.
Já Pio XII chamava a atenção para este facto na sua primeira encíclica, escrita
na véspera da II Guerra Mundial: "a raiz profunda e última dos males que deploramos
na sociedade moderna é a negação e a repulsa de uma norma universal de
moralidade, quer na vida individual, quer na vida social e das relações internacionais,
isto é, o desconhecimento, tão difundido nos nossos tempos, e o esquecimento da
própria lei natural, que tem o seu fundamento em Deus".
Quem nega a lei natural nega a existência de uma natureza humana estável e
permanente. Mas, se não existe uma natureza humana imutável, é impossível falar de
direitos fundamentais a respeitar. Com efeito, a lei natural e os direitos que dela
derivam são imutáveis e válidos sempre e para
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A "ditadura do relativismo" é o sistema que pretende impor leis que negam a
protecção da vida em todas as suas fases, desde o primeiro momento da concepção
até à morte natural; e que pretende substituir a família, enquanto união entre um
homem e uma mulher com base no matrimónio, por formas radicalmente diferentes de
união que, na realidade, a prejudicam, e que contribuem para a sua desestabilização,
como o matrimónio homossexual - a que em França se chamou Pacs e em Itália Dico -
chegando a ponto, não só de elevar o delito a direito, como de punir, como se de um
delito se tratasse, a defesa do bem e a condenação do mal.
Bastam alguns exemplos para mostrar como se chega a este resultado
inexorável. É amplamente conhecido por todos o caso de Rocco Buttiglione, obrigado a
renunciar ao cargo de comissário europeu devido às suas posições em defesa da
ordem natural e cristã.
Vale a pena recordar outros episódios mais recentes. O primeiro teve lugar em
França, onde, a 25 de Janeiro de 2007, o tribunal de recurso de Douai confirmou a
condenação por "injúrias aos homossexuais" de Christian Vanneste, deputado do UMP,
o partido de Sarkozy. Numa entrevista ao Voix du Nord, Vanneste tinha declarado, a 26
de Janeiro de 2005, que "a homossexualidade é moralmente inferior à
heterossexualidade", tendo sido condenado, em Janeiro de 2006, no tribunal de
primeira instância de Une. Desta vez, foi condenado a pagar uma multa de 3000 euros,
a ser entregue às associações SOS-Homophobie, Act-Up Paris e ao Syndicat naCional
des entreprises gaies (Sneg), mas a comunidade homossexual exige ainda a sua
exclusão da Assembleia Nacional.
O segundo episódio, igualmente grave, teve lugar em Estrasburgo onde, a 20
de Março de 2007, uma sentença do
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Revolução - não foi suspenso. Os ataques à Igreja prosseguiram, mais duros,
mais intensos, mais ferozes do que anteriormente.
Passou-se do tradicional anticlericalismo à nova "cristofobia", um fenómeno
que vai desde a exclusão de qualquer referência ao cristianismo na Constituição
Europeia, até à produção de livros e filmes abertamente blasfemos e anticatólicos,
como O Código Da Vinci.
Temos de nos convencer de que não existe um terreno neutro: ou o processo
de descristianização avança até chegar à perseguição aos católicos e a quantos
defendem a lei natural ou, graças à nossa resistência, tal processo é suspenso e tem
início um processo inverso de reconstrução da sociedade com base nos princípios da
ordem natural cristã.
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Capítulo 3
O relativismo das instituições Internacionais
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É certo que o principal papel desempenhado até agora pela ONU na cena
internacional foi intelectual, e não político. Não é por acaso que uma das poucas
reformas até hoje aprovadas pela Assembleia foi a criação do Conselho para os
Direitos Humanos, constituído em Maio de 2006, embora com o voto contra dos
Estados Unidos. Mas é justamente neste domínio que, do meu ponto de vista, se pode
fazer a mais severa e a mais cerrada crítica às Nações Unidas.
Uma história intelectual da ONU não pode prescindir das reflexões de Hans
Kelsen, um autor cuja influência sobre a contemporânea filosofia do direito foi
equiparada à que Rousseau teve sobre o pensamento político do século XVIII. Para
Kelsen, a constituição jurídica internacional prevalece sobre as constituições nacionais
e os Estados apenas deduzem do direito internacional uma certa "esfera de influência",
que deve substituir a soberania. O jurista Kelsen substitui, pois, a soberania do Estado
por uma norma jurídica positiva, abstracta e privada de todo e qualquer fundamento
metafísico ou moral.
O Estado, como de resto a pessoa, é dissolvido no direito positivo, que é assim
elevado a norma absoluta, e do qual o jurista austríaco exclui por completo qualquer
referência a tudo quanto seja exterior ao puro processo normativo. A validade da ordem
jurídica assenta, para Kelsen, na "eficácia" das normais, ou seja, no respectivo poder
de facto.
É neste contexto que é introduzido por Jurgen Habermas na linguagem política
o conceito de Verfassungspatríotismus, ou patriotismo constitucional dos direitos,
fundado em princípios universalistas e contraposto ao patriotismo tradicional, que se
relacionava com a pertença
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atenções para um dos vários países islâmicos em que as mulheres são tratadas como
escravas, sendo impedidas de mostrar a cara, de conduzir um carro e de dar aulas, ou
para um dos estados africanos em que o adultério é punido com a lapidação, e em que
a mutilação genital feminina é prática corrente, a Comissão achou por bem condenar
um estado perfeitamente democrático e respeitador dos padrões cívicos e das
liberdades ocidentais. Coisa que não deve, aliás, espantar ninguém, dado que, entre os
45 estados membros da Comissão figuram estados tão livres como o Irão, Cuba e a
China, ao lado de numerosos estados em que a mutilação genital é uma prática
constante, como o Mali, o Sudão, o Burquina Faso, a Nigéria, a Malásia, a Indonésia e
os Emirados Árabes Unidos.
Observe-se, a este propósito, que o Conselho para os Direitos Humanos, o
novo organismo internacional eleito em Maio de 2006 pela Assembleia Geral das
Nações Unidas para substituir a anterior Comissão, conta entre os seus membros com
a China, o Paquistão, a Rússia, Cuba e a Arábia Saudita, ou seja, estados que violam
sistematicamente os direitos humanos e que, apesar disso, serão juízes das violações
ocorridas, quer nos próprios estados, quer noutros. De resto, como denunciou Mário
Mauro, o vice-presidente do Parlamento Europeu, este órgão condenou mais vezes a
Santa Sé por violações dos direitos humanos, do que condenou Cuba ou a China. "Nos
últimos dez anos", afirmou o eurodeputado, "a Santa Sé foi mais de trinta vezes
acusada pelo Parlamento Europeu de ingerência ou violação dos direitos humanos. Em
contrapartida, Cuba e a China foram condenadas, em média, quinze vezes."
Para além de todas as divergências antropológicas, que têm consequências
sobretudo na moral familiar e sexual,
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senão numa natureza humana objectiva e estável. Se não existe uma "natureza
humana", observou George Weigel, também não existem princípios morais universais
passíveis de serem cultivados a partir dessa mesma natureza. Com efeito, a lei natural
e os direitos que dela derivam é imutável e válida para todos os tempos e para todos os
homens, porque a natureza humana permanece idêntica em todo o tempo e lugar.
Caso contrário, com a lei natural caem também, não só os direitos humanos, mas a
própria ideia de igualdade entre todos os homens. Que igualdade é possível fazer
vigorar entre homens não idênticos a si mesmos, porque têm uma natureza que muda
constantemente? Da mesma maneira que não há liberdade sem verdade, também não
há igualdade sem um direito comum. Mas não é possível fundar um direito comum à
revelia de uma lei natural, reconhecida pelo homem como universal e objectiva.
A ideia de que existe uma natureza humana, caracterizada por leis constantes
e universais, que a filosofia tem como missão reconhecer, nasce na Grécia, como
demonstrou Werner Jaeger na sua magistral Paideid. É nesta ideia grega de natureza
que assenta o direito romano, que continua a ser o arquétipo de todas as construções
jurídicas que pretendam desafiar o tempo.
Cícero formulou uma definição de lei natural praticamente definitiva:
"Verdadeira lei é a recta razão, em harmonia com a natureza, universal, imutável,
eterna, que não é diferente em Roma do que é em Atenas, nem hoje do que será
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!amanhã. " Por sua vez, São Tomás de Aquino definirá esta lei natural como a própria
lei eterna impressa na criatura racional. "Não há nas leis humanas", afirma São Tomás,
"nada que seja justo e legítimo que não derive da lei eterna." E acrescenta: "Se, ao
governar-se, os homens não respeitam a ordem da lei de Deus, como é próprio da
criatura racional, mas se comportam de acordo com os seus instintos, a modo de
animais, a Providência divina trata-os segundo a modalidade que compete aos animais,
isto é, de tal maneira que as coisas que lhes acontecem não sejam ordenadas ao seu
próprio bem, mas unicamente ao bem dos outros. "
O direito natural exprime aquilo que é, no homem, conforme à sua natureza
racional. O apelo do Papa a "agir de acordo com a razão", porque a razão não pode
estar em contradição com a natureza de Deus, constitui o núcleo da lição proferida na
Aula Magna da Universidade de Regensburg a 12 de Setembro de 2006. Nesse
importante discurso, o Pontífice convidou-nos a não perdermos o contacto com a
herança clássica, grega e romana, porque - afirmou Bento XVI - o encontro do
cristianismo com este património "criou a Europa e continua a ser o fundamento daquilo
a que se pode, com razão, chamar a Europa".
O discurso de Bento XVI em Regensburg constitui uma passagem iniludível da
cultura europeia contemporânea. Quem se encontra no banco dos réus não é o
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Capítulo 4
Laicismo e religião numa perspectiva europeia
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atinge, segundo DeI Noce, a sua forma perfeita. É que, quando se torna absoluto, o
relativismo passa a coincidir com a plenitude do totalitarismo.
Desta perspectiva, a democracia secularizada, privada de fundamentos
transcendentes, revela-se como uma nova e mais radical forma de opressão do
homem. Um dos mais lúcidos críticos da "democracia totalitária" foi o Papa João Paulo
II que, nas suas encíclicas Centesimus Annus e Veritatis Splendor, mostrou que "uma
democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissi-
mulado, como a história demonstra".
O relativismo tem como único princípio a força, na medida em que destrói a
barreira que se opõe à vontade de domínio: a objectividade da verdade. "O
totalitarismo", sublinha João Paulo II, "nasce da negação da verdade em sentido
objectivo: se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem
adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta as
relações justas entre os homens. Com efeito, os seus interesses de classe, de grupo
ou de nação contrapõem-nos inevitavelmente uns aos outros. "
Hoje é Bento XVI quem no-lo recorda, num discurso feito aos jovens a 20 de
Agosto de 2005: "A absolutização do que não é absoluto, mas relativo, chama-se
totalitarismo, e não liberta o homem, antes o priva da sua dignidade e o escraviza. "
O Tratado Constitucional europeu abre, pela boca de Tucídides, com uma
referência histórica à democracia grega, mas omite toda a e qualquer referência ao
cristianismo, revelando desse modo a sua natureza secularista e laicista. A recusa de
inserir uma referência ao cristianismo no
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Capítulo 5
As liberdades garantidas
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lei natural ou moral, tendo como único limite o de não levar prejuízo à liberdade dos
outros. Trata-se de uma concepção, por assim dizer, "vestfaliana" da liberdade, em que
o indivíduo é visto - tal como o Estado - como uma mónada, superiorem non
recognoscens. A liberdade assenta sobre o acto da vontade, singular ou geral, dos
indivíduos, resultando efectivamente do equilíbrio dos interesses, da mediação entre os
direitos, em suma, da relação entre as forças sociais. Estabelece-se então uma
oscilação pendular entre os dois extremos do individualismo absoluto, que conduz à
desagregação social, bem como ao domínio absoluto da sociedade sobre o indivíduo,
expresso na "democracia totalitária" a que Jacob Talmon dedicou lúcida análise. A von-
tade geral, expressa pelo povo, pelo partido que o representa, ou pela minoria mais ou
menos "esclarecida", não está sujeita a qualquer lei, dado que é, ela própria, a fonte da
lei e do direito.
Longe de se ter realizado, este projecto de "autolibertação" produziu como
resultado paradoxal, ao longo de dois séculos, a escravidão do homem às paixões
mais baixas e aos instintos mais irracionais, bem como a redução do homem à
insignificância e portanto a sua instrumentalização ao serviço do poder; e
transformou-se, com o comunismo e com o nazismo, na mais brutal opressão da
liberdade jamais conhecida na história humana.
Na sequência do fracasso dos mitos totalitários do século XX, duas encíclicas
de João Paulo II - Evangelium Vítae eSplendor Veritatis - abrem caminho a um
repensar e a uma reformulação crítica do conceito de liberdade. Com efeito, na escala
dos valores humanos, a liberdade parece
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uma ideia perversa de liberdade que "deixa de reconhecer e respeitar a sua ligação
constitutiva com a verdade" (n.º 19). Deste modo, é suprimida a referência a valores
comuns e a uma verdade absoluta para todos, o direito deixa de o ser, e "para
descrédito das suas regras, a democracia caminha pela estrada de um substancial
totalitarismo" (n.º 20).
Quando se emancipa da verdade, a força é livre, sem dúvida, mas a liberdade
significa, neste caso, arbítrio, violência, opressão. A liberdade sem verdade é cega,
como o éa força bruta - com a qual acaba por coincidir. Na ausência de verdade, de
princípios e de valores permanentes, quando a única verdade absoluta é a liberdade,
esta acaba por coincidir com o devir histórico, com aquilo que acontece na história, e
portanto com a vontade do mais forte.
A experiência histórica desdisse a doutrina abstracta de uma liberdade fundada
na pura vontade de autodeterminação do homem, sem qualquer referência a uma lei
natural e transcendente. Os direitos abstractos, quando reivindicados em todos os
domínios do indivíduo, acabam por entrar em conflito com outros direitos individuais, e
sobretudo com os direitos da sociedade; a liberdade e a autonomia de alguns passa a
ser abuso e escravidão para outros e, sobretudo, atinge a justiça, prejudica o bem
comum da sociedade, e torna desumana a vida, na medida em que envenena as
relações sociais, mesmo as mais básicas.
O campo da bioética é hoje um exemplo típico destes problemas dramáticos,
na medida em que afecta as origens da vida e os direitos mais básicos. Se o Estado
tiver a obrigação de garantir a chamada "liberdade de escolha" sexual e reprodutiva
dos indivíduos, independentemente das respectivas consequências, gera-se um
conflito dramático e insanável entre direitos individuais. Por exemplo, no caso do
aborto, a pretensão da mãe de obter a morte do nascituro entra em conflito, quer com o
direito que o nascituro tem de viver, quer com o direito que o pai - que não consente na
morte - tem de salvar o filho. No caso da fecundação
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direito, ou seja, a liberdade moral de fazer tudo quanto a sua natureza livre lhe permite
escolher. O homem é livre de conferir sentido e significado à sua existência e de agir
em conformidade com esse fim. Esta liberdade é responsabilidade, é risco, é poder,
mas é sobretudo dignidade, participação no infinito poder criador de Deus.
Para se afirmar a verdadeira liberdade humana, é necessário pressupor a
existência do livre arbítrio individual, que pressupõe a existência da alma como
substância espiritual, que pressupõe, por sua vez, a metafísica como saber filosófico
que permite conhecer as substâncias - o que pressupõe a cognoscibilidade de
verdades certas e absolutas.
Mas, se é livre, o homem é também responsável por aquilo que faz, adquirindo
por isso mérito pelo bem e culpa pelo mal que realiza, sendo portanto passível de
recompensa e de castigo, quer humanos, quer divinos. Saberá o homem
contemporâneo, que foge às responsabilidades e recusa sofrimentos e castigos, aceitar
estas dramáticas consequências possíveis da liberdade?
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Capítulo 6
Liberdade e liberalismo
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à meta são tortuosas, mas nem por isso os "eurocratas" renunciam ao projecto de
dissolução dos Estados nacionais, iniciado no Tratado de Maastricht, de 1992.
E, contudo, a reprovação irlandesa não é um simples "incidente de percurso".
Durão Barroso, o Presidente da Comissão, confessou que não existe um "Plano B"
para rodear o não da Irlanda, entre outras coisas porque o Tratado de Lisboa já era um
"Plano B" relativamente à Constituição Europeia, que tinha sido chumbada no refe-
rendo de Maio de 2005. França e Alemanha voltam agora a apresentar-se como
"locomotivas" de uma Europa a várias velocidades, mas essa alternativa é intransitável.
A data de 1 de Janeiro de 2009, prevista para a entrada em vigor do Tratado, está
irremediavelmente adiada, e não será fácil apresentar novas soluções, pelo menos a
curto prazo.
Todos estes acontecimentos constituem uma relevante confirmação do facto de
que nada é irreversível na história, quando existe uma vontade firme de resistência. Tal
como já havia acontecido em França e na Holanda, também na Irlanda o establishment
- os dois principais partidos do governo e da oposição de esquerda, sindicatos e
industriais, todos os órgãos de informação - cerrou fileiras em torno da aprovação do
Tratado. E contudo, uma minoria de activistas, comandada por associações vivazes,
como a Irish Society for Christian Civilization, conseguiu dar voz à opinião pública,
encravando o mecanismo montado pelos tecnoburocratas, e alterando assim o curso
da história europeia.
Acresce que a principal razão pela qual o novo projecto europeu foi refutado
tem a ver com os seus conteúdos patentes, e não com os seus aspectos crípticos e
obscuros. Bem o compreendeu o Senador Marcello Pera, ao sublinhar que o não
irlandês ao Tratado de Lisboa "é uma reacção inevitável ao cancelamento das raízes
cristãs da Constituição, bem como às directivas europeias que, privadas de qualquer
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legitimação democrática, desvirtuam as legislações nacionais em questões bioéticas.
[...] Os católicos irlandeses rebelaram-se contra uma Europa que, na sua Constituição,
põe
Deus de parte, a fim de orientar as legislações nacionais para a anarquia do
relativismo em matérias eticamente sensíveis, como sejam as adopções por
homossexuais, a eutanásia, o aborto ou a 'proveta sem rei nem roque"'.
Do novo Tratado, desapareceram as expressões "constituição" e "Estado
federal", bem como as referências aos símbolos políticos da União, como o hino, a
bandeira, o dia nacional- ou melhor, europeu -, tendo ainda desaparecido as
expressões que remetem para uma soberania supranacional, como "lei" ou
"lei-quadro", enquanto o Ministro dos Negócios Estrangeiros da União, previsto na
anterior Constituição, é substituído pela menos pretensiosa figura do Alto
Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a política de segurança.
A substância do novo Tratado - mais comprido, mais complexo e mais ambíguo
do que a Constituição anterior é contudo a mesma. Mantêm-se as principais inovações
institucionais, respeitantes às novas relações a estabelecer entre o Conselho, a
Comissão e o Parlamento Europeu, bem como o alargamento das competências
comunitárias, mas mantém-se sobretudo a Carta dos Direitos, que constitui o coração
da nova constituição europeia. É certo que tal Carta já não é parte integrante dos
Tratados, mas nem por isso o Tratado de Lisboa deixa de estabelecer, no ponto 8 do
Artigo 1.°, que o texto do Parágrafo 1.° do Artigo 6.° do anterior Tratado da União
Europeia deve ser substituído pelo seguinte: "A União reconhece os direitos, as liberda-
des e os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais de 7 de
Dezembro de 2000, adoptada a 12
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no território dos Estados da União e sujeitos que neles se encontrem a título diverso.
Em particular, o direito de circulação e de permanência, já garantido no Artigo 18.° do
Tratado da CE, de forma limitada, apenas aos cidadãos da União, é alargado, no Artigo
45.° da Carta, ao cidadãos extracomunitários que residem no território de um Estado
membro. Deste modo, a norma faz equivaler uma simples situação de facto a um
verdadeiro direito subjectivo, como é o direito de cidadania. Rodotà sublinha, e bem,
esta circunstância: "E por que não salientar que, salvo raras excepções, os direitos da
Carta prescindem da cidadania nacional, fazendo assim equivaler europeus e
estrangeiros, imigrantes legais e clandestinos?"
O coração da Carta dos Direitos de Nice é, contudo, o Artigo 21.°, onde está
dito: "É proibida toda e qualquer forma de descriminação, fundada, em particular, no
sexo, na raça, na cor da pele ou na origem étnica ou social, nas características
genéticas, na língua, na religião ou nas convicções pessoais, nas opiniões políticas ou
seja de que natureza forem, na pertença a uma minoria nacional, no património, na
naturalidade, em deficiências, na idade ou nas tendências sexuais."
Este artigo retoma e alarga o Artigo 13.° do Tratado de Amesterdão, segundo o
qual "por decisão unânime, sob proposta da Comissão, e depois de consultado o
Parlamento Europeu, o Conselho pode tomar as medidas necessárias . para combater
toda e qualquer descriminação fundada no sexo, na raça ou na origem étnica, na
religião ou nas crenças, em qualquer deficiência, na idade ou na orientação sexual".
Conseguindo assim, não só que todos os direitos previstos na Carta (a começar pelo
casamento) devam ser alargados a todas as categorias sexualmente "descriminadas",
como também que se possa fundar uma nova categoria jurídica: o princípio da não
descriminação.
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nas legislações dos Parlamentos nacionais, sempre que as considere restritivas dos
direitos e das liberdades. Na segunda - de que se trate de uma referência a actos nor-
mativos comunitários -, as dúvidas são ainda maiores, em especial no que diz respeito
à especificação dos actos normativos comunitários passíveis de introduzirem tais limita-
ções, visto ainda que os procedimentos da normatividade comunitária (regulamentos e
directivas) dificilmente podem ser assimilados ao conceito tradicional de lei.
Finalmente, no caso das "finalidades de interesse geral, reconhecidas pela
União", será lícito limitar "o exercício dos direitos e das liberdades" reconhecidas pela
Carta. O alcance relevante desta afirmação é vago. Com efeito, quais são os casos em
que será possível suspender os direitos fundamentais do cidadão europeu, e quem terá
o direito de o fazer?
Outro problema complexo é o que é deixado em aberto pelo Parágrafo 2.° do
mesmo artigo 52.°, a saber, o problema das relações entre a Carta e a Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, ratificada em 1950. Análogo a este problema é o das
relações entre a Carta e as tradições jurídicas e constitucionais dos Estados europeus.
Em caso de conflito, aparente ou real, qual deverá ser o órgão encarregado de o
resolver?
Aparentemente, a competência de interpretação e aplicação da Carta Europeia
dos Direitos é atribuída ao Tribunal de Justiça Europeu, ao qual os tratados
reconhecem o poder de "sancionar" os Estados nacionais pela violação das respectivas
obrigações. Acontece, porém, que, enquanto órgão comunitário, o Tribunal de Justiça
é, também ele, parte em causa. As competências já atribuídas ao Tribunal de Justiça
pelo Tratado de Amesterdão representam pois, como bem viu Georges Berthu, um
"terramoto jurídico". O Tribunal
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parece querer ser agora, simultaneamente, tribunal constitucional e tribunal penal, civil
e administrativo. E, quando declarar que determinada lei nacional é contrária ao
Tratado de Amesterdão, as nações terão de se submeter a essa decisão, sem que
esteja prevista a possibilidade de recurso. Por outro lado, e para além do papel,
formalmente atribuído ao Conselho, de aplicação das "medidas necessárias para com-
bater as descriminações", o Tratado de Amesterdão reserva de facto ao Tribunal a
plena competência para garantir o respeito pelo direito na interpretação e aplicação do
Artigo 13.°sobre a não descriminação. À luz dos Artigos 21.° e 52.° da Carta dos
Direitos, que atrás analisámos, o poder do Tribunal de Justiça parece estar destinado a
aumentar, transformando este órgão no poder supremo no interior da União.
O Tribunal de Justiça Europeu é constituído por quinze juízes designados pelos
governos mas que, uma vez nomeados, constituem um organismo judicativo autónomo
dos governos e dos povos por eles representados. E com razão foi definido como "o
Tribunal mais poderoso e mais influente de todos os tempos" . O Tribunal de Justiça
não pode ser contraditado, mas pode contrariar um voto popular legitimamente
expresso. Com efeito, uma das limitações possíveis dos direitos garantidos pela Carta
europeia é a que diz respeito à contradição do voto popular legitimamente expresso,
mas politicamente reprovado pelas cúpulas da União Europeia.
Por outro lado, a exorbitante atribuição de poderes ao Tribunal de Justiça
Europeu resulta de um processo ligado à emergência dos chamados novos direitos, ou
melhor, a uma reinterpretação pós-moderna dos "direitos do homem", formulados na
Declaração dos Direitos do Homem e do
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Capítulo 7
Dez teses sobre a religião e a sociedade
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VII. O cristianismo é uma religião interior, que não pode ser imposta à força.
Justamente por ser interior, é uma religião capaz de transformar
profundamente a civilização, os costumes, as
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mentalidades, como de facto aconteceu com o mundo bárbaro e pagão. Nos primeiros
séculos da era cristã, os discípulos de Jesus Cristo não propagaram o Evangelho com
o apoio das legiões romanas, antes o difundiram - apesar da oposição das autoridades
imperiais - com a palavra e o sacrifício, levando-o até aos confins do Império.
Entre os séculos V e X, a época de formação das raízes cristãs da Europa, a
luz do Evangelho iluminou os povos britânicos, os germânicos e os eslavos, chegando
mesmo à Etiópia, à Arménia, à Pérsia e à Índia. Ao longo destes séculos, os
missionários difundiram a fé usando apenas as armas da verdade, ao contrário de
outras religiões, que propagaram - e ainda hoje propagam - a respectiva fé pela força
das armas.
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