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Mossoró, RN
Dezembro de 2011
Copyright © 2010 Claudia Barcellos Rezende
1ª edição - 2010
Este livro foi editado segundo as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa,
aprovado pelo decreto Legislativo nº 54, de 18 de abril de 1995, e promulgado pelo
Decreto nº 6.583, de 29 de setembro de 2008.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-225-0795-5
CDD - 301.2
EDITORA FGV
Rua Jornalista Orlando Dantas, 37 22231-010 I Rio de Janeiro, RJ I Brasil Tels.: 0800-
021-7777 I 21-3799-4427 Fax: 21-3799-4430 editora@fgv.br I pedidoseditora@fgv.br
www.fov.hr/editora
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Aos nossos alunos
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Sumário
Introdução 9
Capítulo 1 19
Capítulo 2 43
Capítulo 3 75
Capítulo 4 97
Conclusão 123
esposa, Gertrudes, com seu irmão Cláudio. É este o responsável por seu
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psicobiológicas que já eram dadas a priori e modificadas até certo ponto pela
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examina o sentimento de medo nas relações entre indivíduos no meio urbano (2005b).
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Na Uerj, Maria Claudia Coelho trabalha com a temática das emoções em torno de
questões distintas: os sentimentos expressos por Ias na idolatria (1999), a dádiva nas
trocas materiais (2006a) e as experiências de vitimização em assaltos a residências
(2006b). Também na Uerj, Claudia Barcellos Rezende fez uma análise comparativa
sobre amizade em Londres e no Rio de Janeiro, discutindo essa relação que também é
vista como sentimento (2002), e recentemente pesquisou a elaboração subjetiva da
identidade brasileira entre pessoas que fizeram pós-graduação no exterior, ressaltando
a dinâmica dos elementos emotivos dessa construção (2009). 1
Este livro está estrutura do em torno de alguns temas principais do estudo das
emoções nas ciências sociais. Os dois primeiros capítulos discutem as questões que
fundam o campo. No primeiro está o debate em torno da natureza das emoções: são
elas biológicas ou culturais? O segundo capítulo analisa o outro problema fundamental
dessa área: a emoção é um estado individual ou social?
O terceiro capítulo apresenta a perspectiva que vincula as emoções à estrutura
social, enfatizando em particular seu potencial micropolítico, ou seja, de expor e afetar
as relações de poder e hierarquia de um modo amplo. O quarto capítulo trata das
emoções nas sociedades ocidentais modernas e as questões que marcam a experiência
emotiva neste contexto.
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Esses projetos de pesquisa desenvolvidos pelas autoras constituíram os campos de investigação que
formam a base da concepção deste livro. Todos os projetos, a partir de outubro de 1997, foram
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como, no século XIX, a tuberculose era considerada uma doença da paixão, que
acometeria pessoas melancólicas e apaixonadas, enquanto: no século XX, o câncer
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não exista um termo de linguagem para expressá-Ia, como por exemplo sentir
"saudade" em culturas que não possuem essa categoria.
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Assim, as emoções são consideradas fenômenos que acontecem no corpo,
tanto em função de sua origem quanto também de suas manifestações. Como já
afirmamos, essa estreita relação entre emoção e corpo estaria em contraste com a
associação entre razão e mente. Essa oposição mostra como estas noções estão
vinculadas e como recebem valores distintos, questão que Lutz (1988) analisa com
atenção. Em muitos contextos, considera-se a mente superior ao corpo, e do mesmo
modo a razão em relação à emoção. A razão como característica da mente permitiria o
conhecimento, o planejamento, o progresso, o domínio sobre o mundo natural, do
qual o corpo, e também as emoções, fariam parte. O corpo e a emoção podem ser
controlados pela mente e pela razão, mas seriam a priori mais imprevisíveis, mais
involuntários e mais incontroláveis. Enquanto a razão e a mente colocariam o ser
humano em um plano distinto e acima hierarquicamente de outras espécies animais,
as emoções e as necessidades corporais o igualariam a elas. Assim, o caráter mais
incontrolável das emoções daria à pessoa mais emotiva uma vulnerabilidade e ao
mesmo tempo uma aura perigosa que a pessoa mais racional não teria.
Por outro lado, nem sempre a emoção é menos valorizada que a razão. Em
alguns contextos os termos se invertem e a emoção torna-se uma força positiva,
criadora, natural e autêntica. Constituiria também a dimensão mais verdadeira da
subjetividade individual. Em contraste, a razão representaria, nessa visão, o
pensamento consciente tomado como artificial. Afinada com esses sentidos,
encontramos também a ideia de que a emoção é sinal de acolhimento e humanidade,
tanto em relação à frieza e distanciamento do racional, quanto à fisicalidade dos
instintos nos animais. Nessa ótica, então, a pessoa mais emotiva seria mais
comprometida, mais envolvida, mais humana, em oposição à alienação e à frieza da
pessoa mais racional.
Nesse modo de pensar ocidental moderno, alguns grupos de pessoas são
considerados mais emotivos do que outros, qualidade que implica os atributos
positivos e negativos já discutidos. As crianças são vistas como mais emotivas, pois
ainda não desenvolveram seu domínio da razão. Lutz (1988) também chama a atenção
de que, durante muito tempo, para os segmentos médios e altos da sociedade
euroamericanas, pessoas negras e pobres em geral, bem como os povos tidos como
primitivos, eram também pensadas como tendo menos controle sobre suas emoções,
sendo mais vulneráveis e ao mesmo tempo perigosas. Entretanto, o grupo que ainda
hoje é fortemente associado às emoções são as mulheres. Com seus comportamentos
tidos pelo senso comum e pela medicina como estreitamente regulados pelos
hormônios, as mulheres seriam mais instáveis emocionalmente e, portanto, menos
racionais. Se essa caracterização é negativa em várias situações, principalmente no
mercado de trabalho, em outros contextos é positiva e valoriza as mulheres como mais
acolhedoras e cuidadosas nas relações do que os homens. De um modo geral, a
qualificação de pessoas como mais emotivas revela-se elemento de relações de poder
nas quais se justifica a subjugação da parte mais fraca em virtude de seu menor
controle sobre as emoções, demonstrando a dimensão micropolítica dos sentimentos
que discutiremos mais detalhadamente no capítulo 3.
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passivas e os homens como ativos nos encontros amorosos. Mesmo quando na década
de 1980 surgiu uma visão mais interativa e o óvulo passou a ser visto também como
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participante ativo da concepção, os termos usados para descrever essa participação tal
como o óvulo "prende" o espermatozoide refletem uma visão da mulher como
ameaçadora e perigosa e mantêm ainda o gameta masculino no papel principal da
fertilização.
A questão principal aqui é que o modo como entendemos e vivenciamos o
corpo é sempre mediado pelas formas de pensar cultural e historicamente construída:.
Assim, torna-se difícil separar o que seria um fato biológico de um fato cultural.
Embora seja inegável que na espécie humana o corpo possui uma mesma estrutura
orgânica: a percepção da morfologia e da fisiologia corporal varia muito. Para citar um
exemplo clássico na antropologia, em sua análise sobre as ilhas Trobriand, Malinowski
(1986) mostrou como os trobriandeses pensavam a concepção e a gravidez excluindo a
participação biológica dos homens. Sua percepção da fisiologia humana atribuía aos
rins a produção de fluido seminal enquanto os testículos eram vistos como adornos
para tornar o pênis apresentável. Para eles, o fluido seminal masculino não contribuía
para a concepção, que ficava ao encargo dos espíritos dos antepassados da mulher. Na
argumentação d.e Malinowski, essa representação era congruente com a orga nização
social dos trobriandeses, baseada na matrilinearidade, um sistema de parentesco no
qual a descendência é traçada do irmão ou outros parentes masculinos da mãe para
seu filho. Assim, tanto a transmissão de direitos e deveres quanto o reconhecimento
de descendência entre gerações excluíam a figura do pai, explicando portanto sua
ausência nos processos de concepção e gravidez. Mas este mantinha sua Importância
social para a unidade doméstica, devendo cuidar tanto da mulher quanto da criança.
Uma vez que as ideias sobre como o corpo funciona são diversas, assim serão
também as formas de relacioná-Io às emoções. Dessa maneira, o modo como
explicamos as emoções tendo origem em certos processos corporais torna-se parte de
uma visão culturalmente específica sobre o corpo, mas não é uma associação
universalmente feita. Faz parte da nossa etnopsicologia, mas não de outras. Isso
implica problematizar a qualidade de universalidade das emoções em função de uma
unidade biológica e psíquica dos seres humanos. Novamente, se esse aparato biológico
e psíquico é uniforme, as percepções sobre ele não o são, o que conduz também a
experiências corporais e psicológicas muito variadas, posto que são sempre mediadas
pela linguagem que é um elemento da cultura.
Isso não quer dizer, entretanto, que não podemos propor uma visão teórica
sobre a relação entre o corpo e as emoções. Alguns autores (Abu-Lughod e Lutz, 1990;
Fajans, 2006) argumentam que as emoções são fenômenos incorporados, situados no
corpo, sem que isso signifique afirmar que sejam "naturais". Fajans (2006) defende
que, embora as emoções possam surgir inicialmente em um bebê como reações
biológicas a estímulos externos, elas são lembradas desde cedo como parte de um
contexto de interação social, e não são pensadas de forma isolada. As emoções
tornam-se então parte de esquemas ou padrões de ação aprendidos em interação com
o ambiente social e cultural, que são internalizados no início da infância e acionados de
acordo com cada contexto. Assim, como ressaltam Abu-Lughod e Lutz, o aprendizado
de como, quando e por quem certo sentimento deve ser manifestado inclui a aquisição
também de um conjunto de técnicas corporais que Incluem expressões faciais, gestos
e posturas (1990:12).
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mas sim em termos do envolvimento do sujeito. Assim, ela define que "as emoções
são pensamentos de alguma maneira 'sentidos' em rubores, pulsações, movimentos
do fígado, mente, coração, estômago, pele. São pensamentos incorporados,
pensamentos permeados pela percepção de que 'estou envolvido'" (1984:143,
tradução nossa).
A distinção entre emoção e pensamento é exemplificada, pela autora, através
da diferença entre escutar e sentir o choro de uma criança, como quando se percebe
que há algum perigo ou que a criança que chora é seu filho.
Portanto, as emoções, embora situadas no corpo, têm com este uma relação
que é permeada sempre por significados culturalmente e his toricamente construídos.
A visão de que as emoções são fenômenos universalmente compartilhados, posto que
fruto de uma unidade biológica e psicológica do ser humano, é problematizada pelas
ciências sociais, que a toma como elemento da etnopsicologia ocidental moderna.
Ilustraremos, na seção a seguir, o caráter cultural das emoções com a análise de dois
sentimentos específicos: o medo e a raiva, emoções frequentemente atribuídas a uma
essência humana universal.
O medo
O medo é um sentimento que ocupa lugar de destaque em alentadas análises
das transformações por que passou a sociedade ocidental moderna, como é o caso das
obras de Norbert Elias e Jean Delumeau. Suas perspectivas compartilham um traço
fundamental: a afirmação da universalidade da experiência do medo, entendida como
inerente à espécie humana, em combinação com uma perspectiva historicista que
atenta para as várias configurações que este potencial humano pode receber.
Em seu estudo sobre a natureza do processo civilizador, Elias (1993) atribui ao
estudo do medo um lugar estratégico na compreensão das formas do controle social.
Para Elias, o medo é um canal de transmissão das estruturas sociais à estrutura
psicológica individual. Incutir medo seja através de punições ou ameaças explícitas ou
de mecanismos velados de negação da aprovação social está entre as estratégias de
socialização pelas quais valores e normas são transmitidos de geração para geração,
passando a ser "adotados" pelo indivíduo como objetivos "seus", os quais, se não
atingidos, poderão gerar sentimentos de fracasso, perda de autoestima etc. O medo
está assim entre os sentimentos com os quais o indivíduo exerce o autocontrole, em
um aprendizado que, conforme veremos mais adiante, está para Elias no cerne do
processo civiliza dor.
O potencial de sentir medo, em sua visão, faz parte da natureza humana.
Entretanto, as formas pelas quais cada grupo dará vida a essa capacidade são fruto de
circunstâncias históricas e culturais. É neste sentido que Elias inventaria, entre os
medos modernos, o temor de perder o emprego ou de cair na miséria, entre os grupos
sociais de menor poder aquisitivo; ou, entre as camadas médias e altas, o receio da
degradação social ou da perda de prestígio.
Os medos mudam ainda em função de outras variáveis, tais como o "medo de
sobrar" identificado por Novaes (2006) entre jovens brasileiros quando falam de suas
expectativas em relação ao mercado de trabalho; ou o "medo de mostrar medo",
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analisado por Gay (1995) em seu estudo sobre os duelos travados por jovens
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universitários alemães.
Essa perspectiva, em que o medo é visto como um potencial universal que se
realiza de formas particulares a cada contexto histórico e social, é adotada também
por Delumeau (1989). Nessa obra, ele propõe fazer uma história social do medo na
sociedade ocidental entre os séculos XIV e XIX. Seu argumento é que a necessidade de
segurança desempenhou um papel significativo na história das sociedades humanas,
que entretanto foi pouco compreendido em função da vergonha de admitir o medo.
Com a valorização nos séculos XIV e XVI da coragem, principalmente entre os nobres e
os cavaleiros, o medo figurava pouco nas crônicas da época, aparecendo basicamente
como característica do povo, da massa, e portanto razão de sua sujeição. Com a
Revolução Francesa, houve um discurso semelhante mas invertido, no qual o medo era
também camuflado para "exaltar o heroísmo dos humildes" (1989:15). Aos poucos,
durante o século XIX, a literatura passou a se preocupar abertamente com o medo.
O autor apresenta uma visão do medo que, embora remeta a qualidades
essencialistas, adquire configurações sociais distintas ao longo da história. Para ele, o
medo decorre de uma necessidade de segurança que "está na base da afetividade e da
moral humanas" (1989: 19). Entretanto, a própria afetividade está mergulhada na
"natureza social do homem", de forma que tanto indivíduos quanto coletividades
constroem sua segurança e seus temores em função de laços sociais significativos com
a mãe, no caso das crianças, ou com o grupo dominante, no caso de minorias. Assim,
ele argumenta, um grupo dominante que recusa a relação com dominados engendra
neles medo e ódio. Exemplificando, relata como os vagabundos do Antigo Regime, na
França, provocaram em 1789 o "Grande Medo" dos proprietários e a ruma dos
privilégios jurídicos sobre os quais a monarquia se assentava.
Ele distingue entre tipos de medos espontâneos e refletidos, cíclicos e
permanentes que ora afligiam amplos segmentos da população, ora alguns setores
específicos. Os medos espontâneos podiam ser permanentes, associados a certo nível
técnico (por exemplo, medo do mar ou de fantasmas), ou cíclicos, como medo das
pestes ou dos aumentos dos Impostos. Como exemplo dos medos refletidos,
Delumeau analisa o papel da Igreja em construir adversários para os homens como
turcos, judeus, heréticos e as mulheres (especialmente as feiticeiras).
Em ambos os estudos, vemos que o sentimento do medo surge associado a
noções de perigo e risco que ameaçam o indivíduo – seja sua integridade física, sua
autoimagem ou sua posição social – ou um determinado grupo social. E importante
frisar que essas noções são construídas histórica e socialmente, como mostram
Delumeau e Elias, e o medo torna-se também uma resposta socialmente regra da a
situações percebidas como ameaçadoras. Assim, a universalidade da experiência do
medo, que eles atribuem a uma essência inerente aos seres humanos, pode ser
relacionada ao fato de que todas as sociedades e os indivíduos que as compõem lidam
com ameaças a uma estrutura física e social que é construída, não sendo portanto
garantida nem certa.
A raiva
Essa mesma perspectiva um potencial universal realizado sob formas histórica
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e culturalmente variáveis pode ser encontrada na análise do ódio feita por Gay (1995)
com base na experiência, já mencionada, dos duelos universitários entre jovens
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alemães.
O Mensur é um duelo de sabres popular entre jovens pertencentes às
fraternidades que povoavam o mundo universitário alemão no século XIX. Seu objetivo
principal era infligir e, paradoxalmente, obter cicatrizes, preferencialmente no rosto. A
sutura dos ferimentos, realizada pelos estudantes de medicina, era muitas vezes feita
de maneira propositadamente tosca, com o objetivo de produzir uma cicatriz nítida
insígnia corporal da coragem. Expor-se em um combate capaz de produzir, diante de
uma plateia entusiasmada, ferimentos deste tipo era motivo de grande ansiedade
entre os jovens estudantes, produzindo, entre outras manifestações subjetivas, aquele
medo comentado acima o medo de demonstrar medo. Inúmeras podiam ser as razões
para duelar, muito embora o duelo fosse com frequência um fim em si duelava -se para
prçvar aos outros, e portanto a si mesmo, que se podia fazê-lo, e com isso afirmar sua
própria honra. Assim, muitas vezes não era uma ofensa que provocava o duelo, mas o
contrário: buscava-se uma ofensa capaz de justificar um duelo. Como exemplo
extremo dessa motivação, podemos citar o caso narrado por Gay em que a clássica
associação entre honra masculina e duelos aparece quase invertida: a história do
estudante que, apesar de apavorado, lutou até ser golpeado no rosto de forma a
deixar uma cicatriz, afirmando fazê-Io "por amor", mas não porque outro homem
tivesse assediado sua noiva – ao contrário, ela mesma assim lhe pedira que fizesse,
para obter "uma bela cicatriz" ...
A que necessidade atende, então, o Mensur? Para Gay, a agressividade é um
impulso inato do ser humano, e a explicação para fenômenos como esse tipo de duelo
está no duplo sentido do termo "cultivo". Ao forjarem razões para se agredir, os
rapazes estariam ao mesmo tempo dando vazão a um impulso primário e moldando-o
segundo normas sociais, incentivando-o e controlando-o. O Mensur seria assim um
exercício em que se combinariam dois aspectos fundamentais da natureza humana: o
impulso para agredir ("ódio" ou "raiva") e a necessidade, exigência da convivência com
o outro, de conter esse impulso. Fazer correr por canais socialmente aprovados o fluxo
da agressividade é assim simultaneamente uma maneira de cultivá-Ia, fazendo-a
florescer, e de cultiváIa, domesticando-a.
Sob outra perspectiva, que prioriza sua dimensão sociocultural, o sentimento
da raiva recebeu também bastante atenção no campo da antropologia das emoções
por ser uma emoção que põe em questão as relações sociais em jogo. Escolhemos
mostrar como o sentimento é experimentado em sociedades distintas, contrastando a
análise de Katz (1988) sobre raiva nos Estados Unidos com a etnografia de Lutz (1988)
sobre os Ifaluk, na Micronésia.
Katz (1988), em seu estudo sobre as seduções do crise, detém-se nas
motivações de pessoas que matam por questões que consideram legítimas. Ele abre
sua análise com o caso de um pai que espanca seu bebê de cinco semanas até a morte,
porque a criança não parava de chorar. O autor aponta. que, nesse assassinato
"justificável" (righteous slaughter), a interpretação da cena não difere muito de
eventos cotidianos em que pais demandam respeito e reagem a desafios e
provocações com castigos físicos. A questão em jogo naquele episódio específico teria
sido uma interpretação do choro da criança como desafiador e desrespeitoso, e o uso
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judiciais, o autor destaca que esse tipo de interpretação é comum em várias cenas de
interação anteriores a essa modalidade de crime que produzem um processo emotivo
específico, exigindo assim uma organização de comportamento particular. Katz
destaca então três aspectos que marcam a experiência do assassino: o ato de matar
torna-se uma forma de defender valores coletivos: o ataque é conduzido sem
premeditação, à base da raiva e da ira; e a vítima é marcada por meio de xingamentos
de modo que o assassino possa restituir o bem. A vítima é interpretada como alguém
que desafia o assassino moralmente, de maneira que o assassinato torna-se então a
última instância de defesa da respeitabilidade.
Nessa análise, Katz dedica-se aos sentimentos de humilhação e de raiva como
parte da engrenagem da ação. Embora a análise da humilhação seja aprofundada no
capítulo 3, queremos mostrar aqui como essa emoção transforma-se na raiva. O
sentimento de humilhação surge quando o indivíduo experimenta ser um objeto
pressionado por forças fora de seu controle. Neste caso, o sujeito acredita na intenção
dos outros de degradarem a sua pessoa. A humilhação pode se transformar em raiva e
ódio quando, segundo Katz, a pessoa acredita que o único modo de resolver esse
sentimento é inverter a estrutura que o originou o movimento de inferiorização ou
degradação percebido no outro. Nessas situações, quando a imagem pública da pessoa
é manchada, como nos casos de infidelidade conjugal que muitas vezes levam aos
assassinatos "justificáveis" que Katz examina, perde-se o domínio sobre a identidade e
produz-se a ira. Assim, a raiva e o ódio são tingidos de consciência da humilhação,
havendo uma percepção de dominação moral que toma conta fisicamente da pessoa.
Neste sentido, a raiva do outro é sempre uma confirmação da humilhação, cuja
superação e transcendência passam por ações movidas pela ira.
É importante destacar alguns pontos na análise de Katz sobre a raiva e o ódio. A
articulação da raiva com a humilhação põe em relevo a identidade da pessoa que é
afetada pelo evento que produz esses sentimentos. Como o respeito pela imagem
pública de uma pessoa é um valor importante nessa sociedade, há portanto um forte
componente moral na raiva, para além de um sentimento que o indivíduo sinta
privadamente. Está em questão assim não apenas a pessoa que sente a raiva mas
também o conjunto de relações sociais ao seu redor como os outros irão vê-lo e se
relacionar com ele.
A etnografia de Lutz (1988) sobre os Ifaluk oferece um contraste interessante e
revelador sobre o sentimento da raiva. A categoria song, que ela traduz como "raiva
justificada", é um dos principais conceitos usados para expressar julgamentos morais
nessa sociedade. Ao contrário da noção americana de raiva, que fala de eventos que
frustram desejos individuais, a raiva justificável dos Ifaluk manifesta-se para condenar
socialmente certos acontecimentos e assim conduzir aos comportamentos valorizados
coletivamente.
Ela explica que os Ifaluk reconhecem vários tipos de raiva, como a irritação que
vem com uma doença ou a raiva frustrada com infortúnios ou eventos que fogem ao
controle da pessoa. Mas todas essas formas distinguem-se do sentimento da raiva
justificável e são alvo de crítica e reprovação. A emoção song é tratada como a
sensibilidade moral que toda pessoa deve ter e é por isso aceita como legítima.
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condena o ato. O responsável pelo ato então reage com medo dessa raiva, temendo
que a pessoa zangada se torne violenta, e corrige assim seu comportamento. Lutz
apresenta alguns contextos mais comuns nos quais a emoção song é expressa. Quando
jovens rapazes que haviam bebido voltaram à noite para a aldeia, agindo
ruidosamente e contrariando assim o estilo calmo e pacífico dos Ifaluk, muitas pessoas
temeram a raiva justificável dos chefes, os líderes morais considerados os responsáveis
pelo bem-estar da ilha e seu povo. Outro contexto comum em que se manifestava o
sentimento era quando uma pessoa deixava de cumprir com a obrigação de dividir
com os outros. Compartilhar tudo desde comida, trabalho e até as crianças era um dos
principais valores dessa sociedade e em torno dele surgiam conflitos cotidianos. Assim,
quando alguém achava que o outro não estava dividindo como esperado, declarava
sua raiva justificável como forma de afirmar uma determinada interpretação dos
acontecimentos, o que às vezes era contestado pela pessoa acusada. Com frequência,
a possibilidade de que alguém viesse a expressar esse sentimento tornava-se uma
razão explícita para dividir com o outro. Na educação das crianças também recorria -se
muitas vezes à emoção song para sinalizar que algum valor não estava sendo
observado e que a criança estava apresentando um mau comportamento.
Há também um componente ideológico no acionamento dessa categoria
emotiva, que contribuía para a manutenção das relações de poder. Como explica Lutz,
através das manifestações de raiva justificável era possível delinear a hierarquia social
dos Ifaluk. Assim, chefes sentiam raiva dos membros da comunidade, adultos das
crianças, mulheres mais velhas das mulheres mais novas, e irmãos de suas irmãs mais
novas. A direção em que a raiva justificável seguia era sempre para baixo na escala
social. Em alguns casos, esse sentimento era usado para tentar alterar as relações de
poder, como entre irmãos ou entre as mulheres e seus maridos, mas nunca entre o
povo e seus chefes.
De um modo geral, portanto, a expressão da raiva justificável servia para
estimular comportamentos adequados aos valores sociais, tanto em crianças quanto
em adultos. Ela sintetiza que "o conceito de song é particularmente útil na organização
do desvio social e na proteção dos interesses pessoais que são afetados por tal desvio.
Simultaneamente, [os roteiros de interação gerados a partir desta emoção] promovem
a reprodução de relações interpessoais gentis que caracterizam a ilha" (1988:176).
Lutz destaca alguns elementos dessa concepção Ifaluk de raiva justificável que
contrastam com a visão norte-americana de raiva. Esta implica sentimentos de ofensa,
injúria ou frustração que impediriam a pessoa de agir da maneira desejada. Neste
sentido, a raiva seria uma resposta a essa contenção pessoal que é sentida como uma
violação do princípio moral da liberdade individual. Aqui, estaria em questão uma
visão do indivíduo como um centro de direitos, distinta da concepção Ifaluk que toma
a pessoa como componente de relações. Além disso, apesar de ressaltar um valor
moral Importante para os americanos, a raiva é considerada um sentimento
antissocial, que pode gerar comportamento agressivo. Por outro lado, a retenção da
raiva também não é bem-vista em função da ideia de uma emoção que precisa ser
expressa para não "explodir" de forma violenta.
Em comum nas duas sociedades e aqui acrescentamos pontos colocados por
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compartilhamento de bens e pessoas. Daí que, nas situações em que a raiva está em
questão, há sempre um julgamento moral do responsável pelo ato que produz essa
emoção. Assim, em ambas as sociedades os modos de lidar com a raiva funcionam
como formas de controle social. Lutz aponta também que as semelhanças entre a raiva
e song surgem do fato universal de que há divergências entre os mundos ideal e real e
delas resultam conflitos. Neste sentido, ambos os conceitos são usados para dar
sentido e lidar com a discrepância moral e o conflito interpessoal. Como ela sintetiza,
“o que difere e a interpretação que cada um faz do que são mundos reais e ideais e o
quão vigorosamente, coletivamente, verbalmente ou não verbalmente se resolve o
problema ou a ofensa" (1988:181).
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Capítulo 2
engaja em uma interação; a "forma" é o modo, um formato por meio do qual aquele
conteúdo passa a existir.
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Forma e motivação, contudo, não constituem pares fixos. Há um sem-fim de
motivações, que podem ser eróticas, associativas, cooperativas, competitivas,
agressivas, religiosas etc.; há também incontáveis formas através das quais essas
motivações ganham realidade, tais como jogos, guerras, casamentos, grupos de ajuda
mútua, igrejas, partidos, clubes ou sindicatos. Os elos entre formas e motivações s ão
também fluidos, no sentido de que tanto uma mesma motivação pode assumir formas
diversas o impulso erótico pode, por exemplo, levar ao casamento (monogâmico ou
poligâmico), ao adultério, ao "ficar com" etc. quanto uma mesma forma pode ser
gerada por motivações distintas o casamento pode ser motivado pelo amor, pela
atração sexual, pela necessidade/desejo de estabelecer uma relação de aliança, por
interesses pecuniários etc.
Do ponto de vista empírico, forma e motivação são indissociáveis: nenhuma
forma de sociação é imotivada, nenhuma motivação é amorfa. Toda e qualquer
motivação só pode ganhar realidade sob uma forma socialmente estabelecida, do
mesmo modo como toda forma precisa de uma motivação para existir. Entretanto, do
ponto de vista conceitual, Simmel as separa de maneira a propor uma definição da
"unidade de análise" da sociologia: a forma. Usando o exemplo do ódio entre ex-
companheíros, ele afirma que, como ocorrência, trata-se inegavelmente de um
fenômeno psicológico. A pergunta "sociológica", contudo, seria dirigida às categorias
de "união" e "discórdia". O autor é enfático ao afirmar que os dados da sociologia são
processos psicológicos, os quais contudo estariam fora do escopo analítico da
sociologia, sendo preciso deles abstrair a "realidade objetiva da sociação".
Contudo, essa nitidez com que ele separa o psicológico do sociológico em um
texto de natureza programática fica esmaecida quando volta sua atenção para a
análise de sentimentos. Um exemplo seria o texto "Fidelidade e gratidão", em que
discute sua contribuição essencial para a estabilidade e coesão da vida social. A
fidelidade é descrita como um sentimento" sociologicamente orientado", ou seja, em
vez de gerar novas relações, ela decorreria da antiguidade de uma relação. Já a
gratidão seria o sentimento que motivaria a reciprocidade, mesmo na ausência de
coerções externas. O ponto fundamental aqui é a atenção que Simmel dá, ao examinar
o problema da coesão social, à dimensão afetiva da estabilidade das formas sociais,
permitindo-nos assim entrever uma concepção da relação forma-motivação mais
nuançada do que aquela esboçada em seu texto programático.
fenômeno estabelece sua condição de "social", uma vez que atesta assim a
externalidade, em relação à consciência individual, de sua existência. Essa coerção
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pode ser exerci da de diversas formas, como por exemplo constituições, códigos
penais, condenação pela opinião pública ou costumes.
Essa importância atribuída à existência externa ao indivíduo como "atestado"
da natureza social de um fato é expressão do esforço feito pelo autor para encontrar
um lugar em meio às ciências que, no cenário intelectual em que atuava, estudavam o
homem: a filosofia, a biologia e a psicologia. Elas tinham, cada qual, sua dimensão
própria do humano para perscrutar: sua transcendência. sua fisiologia, seu psiquismo.
Ele sugere a existência de uma quarta dimensão a social -, cuja especificidade e
independência em relação às demais se empenha em demarcar como forma de criação
de um espaço de atuação intelectual que legitime falar em uma "nova disciplina".
Reencontramos assim um movimento intelectual que compartilha com o
programa de Simmel ao menos esse traço fundamental: a eleição da psicologia como
"outro disciplinar", com a exclusão de tudo aquilo que é associado ao psicológico do
escopo da sociologia. Entretanto, também na sociologia durkheimiana a oposição
indivíduo-sociedade (ou psicológico-sociológico) se complexifica em outros momentos.
Um bom exemplo é a noção de "efervescência", discutida por Durkheim ao analisar
ritos e crenças religiosas. A "efervescência" é um estado alterado da atividade psíquica
individual, que somente se produz quando o sujeito está imerso em meio a uma
coletividade, cuja marca é a intensidade. A participação em uma coletividade desse
tipo pode ainda, segundo ele, provocar a posteriori uma impressão de não
reconhecimento de si.
Essa possibilidade a existência de fenômenos coletivos capazes de alterar o
estado de consciência individual-, se, por um lado, atesta a natureza coercitiva do fato
social, por outro introduz ao mesmo tempo um matiz nessa concepção da relação
indivíduo-sociedade como uma oposição, sugerindo que o social pode estar também
dentro do indivíduo, nuançando assim a formulação programática do fato social como
aquilo que existe "fora da consciência individual".
que os sentimentos sejam espontâneos, por serem assim vivenciados por quem os
expressa. Para ele, a expressão dos sentimentos é uma linguagem, em que o indivíduo
Página
comunica aos outros aquilo que sente em um código comum, nesse movimento
comunicando também a si mesmo suas emoções.
Surge assim um modelo teórico para se pensar as emoções como objeto das
ciências sociais cuja contribuição maior está na porta que abre para construirmos,
como objeto de nossa reflexão, a percepção ocidental moderna das emoções como
provenientes do íntimo de cada um, em vez de deixarmos que esta representação
tolde a possibilidade de reconhecermos a experiência emocional como algo histórica,
social e culturalmente configurado. Esta tensão é o eixo que orienta a análise dos
sentimentos que examinaremos a seguir.
coletiva. O ponto central aqui é que, ainda que o mito possa ter recebido uma versão
Página
dele":
Página
Julieta – Romeu, Romeu! Por que razão tu és Romeu? Renega teu pai e abandona esse
nome! Ou se não queres jura então que me amarás, e eu deixarei de ser Julieta
Capuleto!
Em ti, só o teu nome é que é meu inimigo! Tu não és Montecchio, mas tu mesmo!
Afinal, o que é um Montecchio? Não é um pé, nem a mão, nem um braço, nem um
rosto. Nada do que compõe um corpo humano. Toma outro nome! Um nome! Mas,
que é um nome? Se outro nome tivesse a rosa, em vez de rosa, deixaria por isso de se r
perfumosa? Assim também, Romeu, se não fosses Romeu, terias, com outro nome,
esses mesmos encantos, tão queridos por mim! Romeu, deixa esse nome, e, em troca
dele, que não faz parte de ti, toma-me a mim, que já sou toda tua!
Romeu Farei o teu desejo de bom grado! Por ti, trocarei seja o que for! Por ti, serei de
novo batizado! Não me chames Romeu ... mas sim o Amor!
Não, minha bela, nem Montecchio nem Romeu! Já que meu nome não te agrada, eu
não sou eu!
certamente não veriam nisso um motivo para casar-se, uma vez que o amor como
motivação para o casamento é invenção recente. Tragédia desfeita, uma vez que a
Página
mola propulsora da tragédia – o casamento em segredo, à revelia das famílias – não
ocorreria.
Por outro lado, em uma ordem individualista, Romeu e Julieta poderiam (ao
menos no plano ideal) amar a quem quisessem, e escolher seu cônjuge por questões
de foro íntimo, sem preocupações com o estabelecimento de relações de aliança
(motivação para o casamento típica das sociedades tradicionais e holistas). Suas
famílias poderiam não aprovar suas escolhas, poderiam se opor, mas dificilmente um
casal moderno, se tomado de paixão tão avassaladora. se submeteria a esses ditames.
Tragédia desfeita, uma vez que a mola propulsora da tragédia - o casamento em
segredo, à revelia das famílias - não ocorreria.
É portanto essa convivência entre códigos contraditórios, o holismo e o
individualismo, típica das fases de transição, que engendra a tragédia de Romeu e
Julieta. Tomada como mito, ela nos mostra a emergência de uma noção de amor em
que um sentimento proveniente do íntimo do sujeito o faz voltar-se contra o social, a
ele impondo sua vontade - é um sentimento embebido pela ideologia individualista.
Esse sujeito determinado de dentro, contudo, e livre em relação à sociedade,
está amarrado a ditames de outra ordem. Esse amor todo-poderoso, que o faz
enfrentar qualquer obstáculo, não é escolha sua: é de natureza cósmica, estando ele
destinado a amar aquela pessoa. Romeu e Julieta se apaixonam em um baile de
máscaras, sem que um tenha noção de quem é o outro. A determinação cósmica desse
sentimento surge aí com toda a nitidez: livre para agir em nome do amor, o indivíduo
moderno não é, contudo, livre para não amar, ou mesmo para escolher a quem amar.
O amor é assim concebido como algo que se abate sobre o indivíduo: ou será que
alguém acharia que, tendo em vista o desenlace, Romeu e Julieta escolheriam se
apaixonar um pelo outro, caso lhes fosse dada essa chance?
Vemos assim o surgimento de uma concepção de amor em que o indivíduo é
tomado por um sentimento de origem sobredeterminada, em nome do qual insurge-se
contra qual- quer determinação de ordem social que se oponha à vivência plena desse
sentimento. Mas esta é uma maneira de amar que, embora tendo em Romeu e Julieta
seu mito de origem, o transcende em muito, podendo esta narrativa ser tomada como
uma "matriz" para inúmeras outras produções discursivas contemporâneas, que lotam
o universo da comunicação de massa. São filmes, poemas, romances, letras de música,
peças de teatro, todas elas tematizando o "amor impossível", aquele que arrebata o
sujeito e em nome do qual ele move montanhas, encontrando sem tantas versões o
mesmo destino trágico de Romeu e Julieta. Os obstáculos enfrentados, contudo,
variam, ampliando o leque dos "antagonistas", que já não se restringem à família:
podendo ser guerras, morte, tempo ou mesmo a natureza. E assim em Love story ou
Ghost (a morte); em Doutor Jivago, Casablanca ou E o vento levou (guerras e
revoluções); em Em algum lugar do passado (o tempo); e em Splash ou Xanadu (a
natureza).
Nessa lista de produções cinematográficas há um pouco de tudo, entre dramas
e comédias, filmes clássicos e produções mais recentes de orientação marcadamente
comercial. Entre os clássicos, contudo, há uma constante: os protagonistas terminam
28
separados. Mas não será exatamente por isso que são clássicos, no sentido de se
eternizarem na memória do público? Se o amor está entre os temas centrais da
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2
Letra obtida junto ao site http://catuza.musicas.mus.br/letras/43861(. Acesso em: 29 selo 2008.
Uma outra maneira de amar: o fã e a experiência do fascínio
O amor moderno tem, entre suas características centrais, o poder de
singularizar, ou seja, de fazer o indivíduo sentir-se especial. O sujeito enamorado vive
sua paixão como algo único, que nunca alguém sentiu igual; ora, se este traço é
recorrente nas experiências da paixão, então ao menos isso todos os apaixonados têm
em comum: a convicção de que nunca alguém sentiu algo parecido antes.
Este paradoxo – igualar-se na percepção de ser diferente – é típico da
experiência moderna, consistindo em uma configuração historicamente particular
daquela tensão que Simmel (2006) já apontava como constitutiva da condição
humana: a tensão entre compartilhar, saber-se igual, e diferenciar-se, saber-se
singular. Este dilema acentua-se, evidentemente, na sociedade de massas, com seu
apelo indiferenciado à singularização. Nesta seção, queremos acompanhar o modo
como este drama é vivenciado em uma experiência indissociável da sociedade de
massas: a condição de Ia e as emoções a ela associadas, a saber, o amor e a fascinação.
Em trabalho voltado para a compreensão da experiência da fama, Coelho
(1999) analisou um conjunto de cartas endereçadas por Ias a seus ídolos televisivos,
um ator e uma atriz de grande projeção no meio televisivo brasileiro, sendo ambos
protagonistas de novelas no horário nobre da Rede Globo de Televisão. Lidas em
conjunto, estas cartas chamam a atenção por trazerem um esforço recorrente da parte
dos Ias em diferenciar-se perante seus ídolos, justificando a expectativa de uma
resposta. Este esforço é baseado em uma certeza, mais ou m:nos explícita, mais ou
menos nuançada, da própria singularidade, de ser único em meio a muitos, certeza
essa que surge sob duas formas principais: o recurso frequente à expressão "Ia
número 1", utilizada por muitos para reivindicar do ídolo o reconhecimento da
natureza diferenciada da admiração que lhe dedicam, e a utilização recorrente do
discurso amoroso para expressar a natureza de seus sentimentos.
O conjunto de cartas analisado é composto por cerca de 280 cartas, sendo 80
para o ator e as demais para a atriz. O t0rr:. e sempre afetuoso, com manifestações de
apreço e admiração, independentemente das variações de gênero tanto do Ia quanto
do ídolo. O escopo deste afeto é amplo, podendo ir de elogios respeitosos até elo
quentes declarações de amor.
Morin (1980), discutindo o universo das estrelas de cinema hollywoodianas,
afirma que nas cartas de Ias "a linguagem do amor ( ... ) se mistura com a da adoraç ão"
(p. 58). É para a análise desta "mistura" que Coelho volta sua atenção, sugerindo uma
interpretação para o porquê do recurso, pelos Ias, ao discurso amoroso para expressar
seus sentimentos.
Sua interpretação baseia-se em uma estranheza inicial: se o modelo da relação
amorosa ideal é diádico e baseado na reciprocidade e na exclusividade, por que os Ias
a ele recorrem para falar do que sentem por seus ídolos? Não seria flagrante a
distância entre a relação amorosa ideal e uma relação entre líder carismático-seguidor
(típica das relações de idolatria)? Não é esta, ao contrário, definida por um modelo
"centrípeto" muitos devotando seu afeto a um único, o qual, por definição, não o
retribui em natureza ou intensidade, além de reparti-lo por um grupo, não sendo
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jamais exclusivo?
Página
Sábados à noite, por exemplo, nos grandes centros urbanos são ocasiões de
sociabilidade prescrita; estar sozinho, sem companhia para alguma forma de lazer,
suscita comumente um forte sentimento de solidão, conhecido e "validado" pelo
grupo social como uma reação emocional legítima diante da situação concreta. Esta
"regra", contudo, não apenas "valida" este sentimento nestas circunstâncias; ela
praticamente o prescreve como uma reação emocional que atesta a "normalidade" do
indivíduo. Alguém que se sinta bem estando sozinho em um sábado à noite seria, em
muitos grupos urbanos, visto como "esquisito" e "antissocial". Por outro lado, sentirse
sozinho em uma segunda-feira pela manhã também não é lá muito "normal": é que
esta "gramática" da solidão é regida por uma temporalidade marcada pelas oposições
noite/dia, lazer/trabalho, O tempo da solidão, neste exemplo, pode ser caracterizado
como noturno e de lazer, ou seja, momentos para os quais há uma sociabilidade
prescrita/desejada que não se concretiza.
Esta "gramática", contudo, além de evidentemente não ser universal, não é
também de aplicação homogênea em meio a um mesmo grupo social. Sua força é
muito mais acentuada entre os jovens, para quem a experiência de estar só em um
sábado à noite pode ser muito penosa; por outro lado, a sociabilidade de pessoas
idosas ocorre com frequência mais cedo, muitas vezes em dias úteis, não havendo
nada de "antissocial" em sentir-se bem sozinho em casa às oito da noite de um sábado,
após uma sessão vespertina de cinema, por exemplo.
Há assim muitas formas de sentir-se só. Há formas mais cotidianas de solidão,
como estas regidas pela lógica da sociabilidade; há aquelas de orientação
religiosa/espiritual, como na realização de "retiros"; e há também formas-limite, que
em sua dramaticidade nos ajudam a entender algo sobre a natureza eminentemente
social do ser humano. Este é o caso da solidão dos moribundos discutida por Elias
(2001).
Em sua análise, Elias discute a atitude moderna diante da morte, partindo da
constatação de que no Ocidente contemporâneo os indivíduos teriam enorme
dificuldade em identificar-se com os moribundos, devido ao desconforto trazido pela
lembrança da própria morte. A morte seria duplamente recalcada: pelo indivíduo
(como uma forma de proteção contra o terror provocada pela evocação de sua
mortalidade) e pela sociedade, que "traduziria" este terror em medidas de
afastamento dos moribundos do convívio social, com seu confinamento a espaços
destinados a gerir a morte, tais como os hospitais.
Esta atitude de afastamento diante da morte expressaria, para Elias, uma forma
de negar a finitude da vida individual. Negá-Ia seria um imperativo diante da forma
como o sujeito moderno concebe a própria vida: como algo isolado, sem a dimensão
das cadeias de interdependência que conectam cada existência individual a uma rede
social. Para o autor, esta incapacidade de ver-se como um elo em uma rede de
relações seria responsável por uma forma de sofrimento típica da modernidade: a
percepção da vida como absurda e destituída d.e sentido. Em sua visão, o sentido da
vida está na importância que temos para os outros; do momento em que deixamos de
valorizar, como fonte de sentido para a existência individual, o lugar que ocupamos na
vida dos outros, nossa própria existência se torna de fato vazia e absurda, uma vez que
não haveria qualquer outro sentido além do que somos para os outros. Vem daí o
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terror diante da própria morte, imaginada, diante desta desvalorização do laço com o
outro, como a dissolução absoluta de tudo aquilo que importa.
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O medo inspirado pelos moribundos e seu consequente afastamento para os
espaços ocultos de gestão da morte geraria então uma experiência emocional de
muita dramaticidade. Para Elias, em toda sociedade morre-se do mesmo jeito como se
vive. A percepção da vida como absurda, ao gerar um sentimento de solidão
proveniente da desvalorização do pertencimento a uma rede de interdependência,
impõe sobre os moribundos um ônus adicional: a percepção, ainda em vida, de não ter
mais sentido para os outros, de saber-se excluído antes mesmo de morrer, em uma
forma extrema de solidão.
3
Letra obtida junto ao site http://biquini.com. brjindex.cfmjhomejmusicajdetalhesjtedio. Acesso em: 04
Página
novo 2008.
um tipo de relação, a amizade foi, durante muito tempo, pouco estudada pelas
ciências sociais, pois era considerada uma relação muito subjetiva, voluntarista e
pouco estruturada por regras sociais, contrastando assim com o domínio do
parentesco, tema consagrado na antropologia. Somente na década de 1980, com
trabalhos exclusivamente voltados ao assunto, esta visão passou a ser relativizada e
tomada como parte de uma visão de mundo das sociedades ocidentais modernas,
sujeita também a variações internas, como mostraremos através dos estudos de
Papataxiarchis (1991) feito na Grécia e de Rezende (2002) sobre a Inglaterra e o Brasil.
No estudo de Papataxiarchis sobre amizade entre homens na aldeia grega
Mouria, a relação constrói-se em nítida oposição à família e ao mundo doméstico. Este
é essencialmente um espaço de identidade feminina. Para as mulheres, o foco de suas
relações e lealdades se concentra nos parentes consanguíneos, uma vez que fora
destes há muito receio de fofoca e conflitos. São poucas as possibilidades de amizade
entre mulheres, que surgem nos interstícios das relações de parentesco e são
expressas nestes termos.
Entre os homens, as amizades são extremamente valorizadas por seu
distanciamento da esfera doméstica e também das relações de trabalho. Em contraste
com estas, que são marcadas pela obrigação, as tensões da hierarquia e a preocupação
com status, as amizades são pautadas na reciprocidade e na espontaneidade das
trocas emotivas. Os amigos se relacionam no espaço da cafeteria, onde o ato de
beberem juntos torna-se fundamental na aproximação e desenvolvimento da amizade.
O convite ao drinque deve ser retribuído e é a companhia constante com troca de
bebidas que permite comportamentos mais relaxados, espontâneos e mais emotivos.
Na medida em que a relação se desenvolve, a preocupação com a reciprocidade
diminui e os aspectos instrumentais da amizade são desvalorizados em função da
qualidade emocional da relação. A experiência da amizade torna-se então
fundamentalmente um compartilhar das experiências e emoções entre homens,
constitutiva do processo de construção da identidade masculina.
Neste contexto, as amizades são vividas como exemplos de voluntarismo e
escolha individual. Isto não significa que escolha seja irrestrita. A igualdade normativa
é enfatizada e os amigos tendem a ter idade, origem familiar, classe social, ocupação e
estado civil semelhantes. Guardadas estas condições, os amigos são escolhidos
livremente a partir da dinâmica de sociabilidade nas cafeterias. A dimensão do
voluntarismo se destaca principalmente no fato de a amizade e constituir como
antítese do trabalho e da domesticidade espaços marcados por relações assimétricas e
obrigatórias.
Esta antítese desaparece no estudo de Rezende (2002) sobre amizade no RIO
de Janeiro. Entre os cariocas de camadas médias entrevistados, a amizade pode surgir
entre colegas de trabalho e também nas relações de família. O elemento da hiera rquia
presente nestes espaços não é visto como impeditivo, pois a amizade e baseada na
afinidade, na intimidade, na confiança e na doação ao outro. Na família, a amizade
torna-se mais um modelo de relação a inspirar as relações familiares, transmitida, pelo
uso frequente da expressão "pai amigo", mãe amiga . A confiança e a doação ao outro
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são aspectos em geral presentes, mas a afinidade e a intimidade muitas vezes não
existem, o que é explicado pela falta de escolha sobre os parentes. No meio de
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38
Página
Capítulo 3
um substrato universal e natural, sendo, em seu núcleo, as mesmas por toda parte.
Entre as perspectivas mencionadas como representativas dessa abordagem, as autoras
Página
incluem a psicanálise freudiana, com sua concepção das energias pulsionais como algo
a ser "modelado" ou "canalizado" pelas forças civilizatórias. Para Lutz e Abu-Lughod, o
problema maior dessa perspectiva seria uma espécie de "reificação" das emoções,
tidas como preexis- tentes ao social, que com elas deveria "lidar", "expressando- as"
ou "reprimindo-as" ou ainda "ritualizando-as".
O historicismo e o relativismo compartilhariam um ponto- chave que os oporia
ao essencialismo: a crença na "construção cultural das emoções", que seriam
fenômenos histórica e socialmente circunscritos. Uma estratégia central desses
estudos seria a comparação entre contextos socioculturais distintos, capaz de colocar
em xeque a suposição dos essencialistas de que as emoções teriam substratos
universais. O eixo eleito para comparação diferenciaria essas vertentes: enquanto o
historicismo recorreria a um escrutínio temporal, o relativismo se valeria de
comparações entre culturas contemporâneas entre si.
Essas vertentes, contudo, nem sempre aparecem em "estado puro". Se por um
lado é possível identificarmos trabalhos de inspiração claramente historicista (como a
análise já comentada da concepção moderna de amor em Romeu e Julieta realizada
por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro, 1977; ou a "história das lágrimas" fei ta
por Vincent-Buffault, 1988) e textos marcadamente relativistas (como o exame da
"etnopsicologia" ocidental feito pela própria Catherine Lutz, 1988), por outro há
também estudos que mesclam traços essencialistas com matizes historicistas e/ou
relativistas, como por exemplo os estudos já mencionados de Peter Gay (1995) sobre o
ódio ou de Jean Delumeau (1989) sobre o medo.
A inovação do contextualismo está em sua inspiração na noção foucaultiana de
"discurso". Essa proposta teórica baseia-se na concepção de discurso como uma fala
que mantém com a realidade uma relação não de referência, mas sim de formação. Ou
seja, nela o real não preexiste ao que é dito sobre ele, mas, ao contrário, é formado
por aquilo que se diz sobre ele. Para as autoras, a emoção não seria apenas um
construto histórico-cultural; a emoção seria algo que existiria somente em contexto,
emergindo da relação entre os interlocutores e a ela sempre referida. É nesse sentido
que se pode falar de uma "micropolítica da emoção", ou seja, de sua capacidade para
dramatizar, reforçar ou alterar as macrorrelações sociais que emolduram as relações
interpessoais nas quais emerge a experiência emocional individual. E assim, então, que
as emoções surgem perpassadas por relações de poder, estruturas hierárquicas ou
igualitárias, concepções de moralidade e demarcações de fronteiras entre os grupos
sociais, conforme veremos a seguir na análise de alguns sentimentos específicos.
compaixão.
O ponto fundamental da obra de Smith é o desvendar de uma "lógica da
simpatia": em que situações estaria o ser humano mais propenso a identificar-se com
o sentimento alheio - na desgraça ou no sucesso?
Discutindo um conjunto de situações, entre as quais o sucesso repentino, o
autor aborda o problema da inveja, descrevendo-a como um sentimento capaz de
emergir diante do rompimento de uma igualdade original. Dois temas entrelaçam-se
assim em sua obra: a relação entre sentimentos e posições relativas entre os sujeitos e
a articulação entre a vivência vicária da experiência alheia e a emergência da simpatia.
Os sentimentos "morais" seriam assim aqueles que falam de uma relação
estabelecida no íntimo do sujeito com a alteridade: o que o sofrimento ou a alegria do
"outro" suscitam Qual a lógica que rege essa dinâmica emocional?
Diversos são os critérios envolvidos nessa regulagem dos sentimentos diante
do outro: o sofrimento alheio pode suscitar compaixão, indiferença ou até mesmo
regozijo, de- pendendo das macrorrelações a que uma dada interação se reporte. Em
meio a esses critérios, podemos destacar a fronteira nós-outros, ou seja, os
sentimentos morais fariam um trabalho de inclusão/exclusão social, sendo suscitados
por "mapas de navegação emocional" ao mesmo tempo em que reforçariam os seus
traçados. Compaixão, nojo, desprezo, gratidão, humilhação seriam assim, todos eles,
sentimentos capazes de realizar o trabalho micropolítico de dramatização, reforço e,
por que não, alteração das macrorrelações sociais.
alcoolismo, por exemplo - for concebido não mais como um vício moral, mas como
uma doença que o sujeito sofre. A compaixão criaria assim "fronteiras morais",
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ser, mas alguém inferiorizado diante de todos, e pior, alguém que tentou disfarçar essa
inferioridade simulando uma indiferença, em estratégia óbvia aos olhos de todos. É em
Página
defesa desse núcleo de quem é que o sujeito agride aquele que, a seus olhos, o
ameaça em um plano tão fundamental de sua existência.
Princípios morais e experiência subjetiva entrelaçam-se aqui novamente, dessa
feita atingindo a própria identidade individual pela emergência do sentimento da
humilhação. Mas nem só de mal-estares e agressões é feito esse entrelaçamento,
como veremos a seguir no caso da gratidão.
para micro- ondas. A história é narrada pela patroa como exemplo de um presente que
ela havia gostado especialmente de dar, porque a faxineira (ao contrário da
personagem da história anterior) ficava "tão agradecida com as coisas que a gente dá".
Fica clara, assim, a importância da gratidão para as patroas nesse tipo de
dádiva. Esse sentimento, contudo, não é um "suplemento" da troca, um aspecto entre
outros. Ele parece ser a própria retribuição, uma vez que as patroas não esperam
receber de suas empregadas qualquer objeto material e mesmo, no limite, não
querem receber nada, dizendo-se "constrangidas" ou com "pena" diante da ideia de
que a retribuição viesse sob uma forma também material.
O modelo ideal dessa forma de troca parece ser assim, para as patroas, um
objeto material em troca de um senti- mento - a gratidão. A "boa empregada" é aquela
que demonstra estar agradecida sem fazer qualquer esforço para retribuir no plano
material. Ora, essa "gramática", parece contrariar o modelo da troca esboçado por
Mauss, em que a retribuição é não só desejada como obrigatória. Qual o sentido
subjacente a essa forma que a dádiva assume entre patroas e empregadas?
Vimos, com Simmel, que a gratidão tem um "gosto de servidão". Para ele,
sentir-se grato seria a expressão emocional da aceitação de uma impossibilidade de
retribuir, o que colo- caria o receptor em uma posição de inferioridade hierárquica.
Receber um presente sem esforçar-se por retribuir e, além disso, demonstrar-se grata,
seria assim aquilo que, aos olhos das patroas, dramatizaria a aceitação pela empregada
de seu lugar de submissão em uma relação marcada pela hierarquia.
Mas e se invertermos o ponto de vista e olharmos para essas trocas pelo
ângulo das empregadas? Qual imagem dessa patroa que se autorrepresenta como
"generosa" surgiria daí?
Hobbes afirma que:
Receber de alguém, a quem nos consideramos iguais, benefícios maiores do que
poderíamos esperar retribuir, dispõe a um amor contrafeito, que em verdade é ódio secreto.
Isto coloca um homem no estado de um devedor desesperado, que, ao evitar ver seu credor,
silenciosamente deseja que ele esteja onde nunca mais possa vê-Ia. Porque os benefícios criam
obrigações, e as obrigações são uma servidão, e as obrigações que não podemos quitar, estas
são uma servidão perpétua, o que, para um igual, é odioso.
Citado por Miller (1993:15, tradução nossa)
ao lado dos demais presentes (forma implícita de recusa), tendo mais tarde
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comentado com a cozinheira que a moça era "muito metida" por dar um presente
daquele valor.
A segunda história é sobre um presente de Natal dado por essa patroa à
entrevistada: uma lata de biscoitos. A entrevistada fala sobre esse presente de forma
irritada e ressentida, mencionando duas razões para seu desagrado: o baixo valor ("a
gente trabalha o ano inteiro pra no final ganhar uma lata de biscoitos?") e a
desatenção quanto a sua maneira de ser ("então ela não vê que eu vivo de dieta?").
Nessas duas histórias há de saída três elementos importantes para
entendermos a "negociação" em que se engajam patroas e empregadas por meio
dessas dádivas. O primeiro deles é que receber um presente material de sua
empregada, em particular se for caro, ofende a patroa, em vez de agradá-Ia; à luz de
sua expectativa de ser "paga" com gratidão, essa oferta pode ser entendida como uma
reivindicação de igualdade, ferindo a regra implícita de dramatização do vínculo
hierárquico que as une (aos olhos da patroa). O segundo é a recusa da empregada, por
sua vez, a receber um presente: a lata de biscoitos, ao desagradar por seu baixo valor,
é equiparada ao salário, como se fosse remuneração por um trabalho, e não uma
dádiva. O terceiro elemento é a reivindicação, da parte da acompanhante, de ser vista
como sujeito singular que tem gostos e idiossincrasias, em vez de ser encarada como
ocupante de um papel: a lata de biscoitos, ao desconsiderar sua preocupação com
dietas, seria um presente de uma patroa para uma empregada, ou seja, uma troca
entre papéis sociais, e não entre sujeitos individualizados.
Se acrescentarmos ao quadro o relato da acompanhante sobre os presentes
que dá à sua patroa, poderemos ver com mais nitidez o modo como essa relação
trabalhista que emoldura o relacionamento entre ambas é negociada no plano afetivo.
Seus presentes para a patroa são sempre os mesmos: "meias de três reais". Isso é dito
com certo desprezo tingido de raiva, porque essas meias são aceitas e "colocadas
sobre a cama", apesar da desvalorização de que são alvo pela própria doadora.
Ao escolher assim seu presente, essa acompanhante realiza um movimento
ambivalente: conforma-se à sua posição de "inferioridade" ao aceitar entrar na relação
como aquele que pode dar menos, nesse movimento alcançando, paradoxalmente,
certa igualdade ao ser recebida como "parceira" de trocas, pois seu presente é
"exposto na cama" e usado (ao contrário da cafeteira). Ao receber a lata de biscoitos,
contudo, essa resignação desaparece e surge em seu lugar uma agência expressa no
plano emocional: a acompanhante não fica grata, e as "meias de três reais" não são
assim exatamente uma retribuição, mas antes um revide à lata de biscoitos.
A gratidão desejada pelas patroas surge assim como um sentimento capaz de
atuar no reforço dos vínculos hierárquicos, quando expresso docilmente pelas
empregadas em resposta às dádivas materiais recebidas e não retribuídas. Por sua vez,
essa mesma gratidão, quando negada pelas empregadas e substituída por indiferença
e/ou ressentimento, é a tradução emocional da recusa em ocupar o lugar que aquela
dádiva, ao não poder ser retribuída no plano material, insiste em colocá-Ias. Essa
"ingratidão" teria assim um "gosto de insubordinação", realizando um trabalho
micropolítico de contestação das hierarquias sociais.
49
Página
Capítulo 4
tempo individual, no sentido de particular a cada um, e comum a todos como seres
Página
humanos.
Fundamental nessa visão é a concepção de que a pessoa possui uma dimensão
interna e privada, que se distingue de sua apresentação pública. As emoções
localizam-se assim nessa interioridade, surgindo daí a ideia de uma distinção entre o
sentimento sentido e o sentimento expresso. Essa diferenciação reproduz então
aquela entre as esferas privada e pública, que, no caso das emoções, ganha uma
valoração específica: o que é sentido e pensado no privado é verdadeiro enquanto o
que é apresentado em público pode ser falso. Cria-se, por- tanto, uma tensão entre
sentir e expressar os sentimentos, questão bem explorada no estudo de Sennett
(1988) sobre o declínio do homem público.
Ele busca compreender o surgimento de uma desvaloriza- ção da vida pública,
propondo também uma análise de seus efeitos sobre a subjetividade do in divíduo. O
autor traça as origens desse quadro à queda do Antigo Regime na França e de
processos instaurados com a formação de uma nova cultu ra capitalista, urbana e
secular. Até então, o domínio público significava basicamente uma região da vida
social separada da esfera da família e dos amigos, povoada por conhecidos e estranhos
de origens sociais diversas. O foco da vida pública era a capital e era cosmopolita a
pessoa que se movimentava confortavelmente nessa diversidade social. A distinção
fundamental no século XVIII entre público e privado dava-se pela separação entre as
demandas da civilidade, expressas no comportamento público e cosmopolita, e as
demandas da natureza, satisfeitas pela família. Apesar de conflitantes, eram exigências
que podiam se equilibrar. Nessa perspectiva, era possível interagir com estranhos de
forma emocionalmente satisfatória, mantendo-se ao mesmo tempo indiferente a eles,
e esse era o modo como o ser humano se transformava em um ser social. A
capacidade para estar com a família e os amigos era vista como uma potencialidade
natural. Assim, relacionar- se com o mundo público era uma questão de cultivo social,
do aprendizado de regras de convívio, enquanto no mundo privado realizava-se o que
seria da natureza do indivíduo.
Sennett identifica três fatores principais que levaram a uma mudança nesses
significados em torno do público e do privado. Primeiramente, o desenvolvimento do
capitalismo industrial gerou uma pressão para uma maior privatização. que
transformou a família não apenas em um refúgio idealizado como também em um
padrão moral com o qual avaliar a esfera pública, que passou a ser vista como
moralmente inferior. A qualidade material da vida pública também foi afetada pela
produção em massa de roupas, de tal modo que os marca dores de classe social pela
vestimenta se tornaram a princípio confusos e a diversidade de pessoas foi adquirindo
uma aparência mais homogênea no mundo público. Com isso, os estranhos passaram a
ser mais misteriosos e a vida pública mais incerta, contrastando então com o
aconchego oferecido pela família.
Em segundo lugar, aponta para uma mudança na subjetividade em função de
uma nova forma de secularização. Todas as sensações experimentadas passaram a ter
estatuto de fato. Portanto, nada que provocasse sensações devia ser excluído da
esfera privada de uma pessoa, tendo assim uma qualidade i mportante a ser
descoberta. Tornou-se plausível considerar as emoções fatos em si, compreendendo-
51
as a partir das situações em que eram manifestadas. Essa mudança teve como efeito
sobre a vida pública o esmaecimento das fronteiras entre O que era tido como pessoal
Página
intenções do outro na interação conta mais do que suas ações. Cria-se então uma
cultura pautada no sentimento de intimidade como medida de significado de
realidade.
A valorização da intenção sobre a ação pode ser bem ilustrada no filme norte-
americano Denise está chamando (1995), do diretor Hall Sawen. Trata-se de um grupo
de amigos que moram em Nova York que está constantemente em contato por
telefone (ainda é uma época sem as tecnologias de comunicação da internet], mas que
têm dificuldades de se encontrar face a face. O filme começa com os amigos se
perguntando se vão à festa de uma das personagens e, embora todos digam que sim,
ninguém aparece no encontro. Todos justificam que quiseram ir, mas, no último
momento, não puderam compare- cer. O mes mo acontece com o enterro de uma das
amigas, que morre em um acidente de carro causado por estar dirigindo e falando ao
telefone ao mesmo tempo. Todos manifestam sua intenção de ir, mas não vão. Em
seguida, outra personagem inicia um relacionamento amoroso com um homem que se
dá apenas por telefone. Após algum tempo o namoro começa a esfriar porque um
passa a desconfiar dos verdadeiros senti- mentos do outro, em função da mudança do
tom da voz ao telefone. O filme termina com uma festa de ano-novo, organizada por
um dos personagens, para a qual todos se dirigem, mas acabam passando direto pela
porta do edifício, sem tocar a campainha. Quando Denise, que vai à festa para também
conhecer o pai do filho que ela concebeu por inseminação artificial, aperta o interfone,
não é atendida.
Embora o filme possa ser pensado sob vários aspectos, em particular o
paradoxo de relações que são alimentadas pelo fio do telefone, mas não pela presença
física diante do outro, o que vale a pena destacar aqui é a aceitação da intenção - e
não de sua concretização - de estar junto como força motora das relações. Todas as
ausências nos encontros são aceitas e não vemos no filme nenhuma reação de raiva ou
desaponta- mento em relação aos outros. Mais do que agir pelo e com o outro - ir à
festa que ele prepara, compartilhar a dor de sua perda com outros, e
significativamente conceber um filho com o outro - importa fundamentalmente a
intenção de estar com ele. A intenção é entendida como autêntica, como reveladora
dos verdadeiros sentimentos que uma pessoa tem, ilustrando assim a ênfase intimista
que Sennett identifica nas sociedades ocidentais modernas.
Europa. Pela leitura dos manuais de etiqueta e bons costumes do final da Idade Média
até o início do século XX, Elias examina as mudanças nas regras em relação ao corpo e
às emoções que promoveram uma padronização do "aparato psicológico", como ele
denomina, articulando-as a transformações mais amplas na organização social. São
duas as principais forças atuando na formação da configuração social presente nas
primeiras décadas do século XX: a diferenciação cada vez maior de funções sociais e o
monopólio pelo Estado do controle da violência.
A crescente diferenciação das funções sociais gerou uma maior
interdependência entre as pessoas. Como consequência, o comportamento de cada
indivíduo passou a ser ajusta- do em relação ao dos outros, criando assim a
necessidade de um controle de si mais uniforme, mais estável e mais amplo. A
preocupação com a consequência de cada ato tornou-se elemento constante das
interações, reforçando, portanto, as exigências de manter o autocontrole. Embora o
processo de desenvolvimento desse controle afete diferentemente pessoas com
funções distintas, ele se dissemina por todos os setores da sociedade. Se, nos séculos
anteriores, a fonte de controle do comportamento vinha principalmente de fora, de
pessoas geralmente em situação social superior ou equivalente, que avalizavam ou
recriminavam as ações, gradualmente desenvolveu-se um autocontrole internalizado e
automatizado.
Por sua vez, o monopólio da força física pelo Estado, bem como a estabilidade
de suas instituições centrais, favoreceu também a contenção emocional como traço
psicológico significativo. Se nos séculos anteriores as disputas eram resolvidas de
forma mais individualizada, o uso da violência torna-se restrito aos aparatos de força
do Estado, criando a necessidade na pessoa de reprimir impulsos de agressão ao outro.
As ameaças físicas ao indivíduo foram gradativamente tornadas impessoais, de modo
que, segundo Elias, a vida tornou-se menos perigosa.
permite obser- var os dois tipos de individualismo desenvolvidos nos séculos XVIII e
XIX, que enfatizam respectivamente, os valores da liberdade e igualdade entre os
Página
emocional.
Página
O fisicalismo, terceiro tema discutido por Duarte, está também implicado nos
outros dois. Trata-se de uma concepção de sujeito que surge da separação entre corpo
e espírito e que vê na corporalidade uma lógica própria. Assim, busca-se descobrir essa
lógica para compreender suas implicações para a condição humana. Com novas formas
de pensar o funcionamento do corpo desenvolvidas no século XIX, em particular do
sistema nervoso, surge a noção de uma sensibilidade que é ao mesmo tempo
"fisiológica" e também "sentimental". Como esta última conotação é mais englobante,
supõe-se que "as afecções do espírito são ao mesmo tempo dependentes e autônomas
do 'substrato' nervoso" (p. 26).
Estruturando, portanto, esse "dispositivo de sensibilidade" estão os três temas
articulados, que produziram na visão de Duarte uma exploração sistemática do corpo
humano como foco de uma busca incessante de exacerbação da sensibilidade e de
intensificação do prazer. Desse processo de valorização de novas experiências
sensoriais desenvolveram- se estratégias de maximização da vida, como nas várias
especialidades da medicina, e de otimização do corpo, como o consumo de drogas
legais e ilegais. Com elas, revela-se uma tensão entre dois conjuntos de valores: o
investimento na duração e preservação da vida, para o qual a contenção emotiva é
elemento importante, e a aposta na vivência da intensidade em curto prazo, marca da
ênfase hedonista.
Essa ênfase vai adquirir matizes específicos no século XX, na leitura de
Campbell (2001), se em comparação com outras épocas. A forma "autoilusiva"
característica do presente, que se deve em muito ao papel da mídia na estimulação do
consumo, diferencia-se do hedonismo de outras épocas, que ele chama de tradicional.
Em ambas as formas, há em comum o elemento de desejo e antecipação de um
acontecimento que produz prazer. No modo tradicional, esse desejo vem das imagens
da memória de uma experiência já vivida como prazerosa. No hedonismo moderno e
autoilusivo, o desejo surge de uma qualidade antecipada de prazer de uma experiência
que ainda não foi vivida. Se na primeira forma a novidade pode ser vista com
desconfiança, na atual ela é motor do desejo.
No hedonismo autoilusivo, os indivíduos consomem principalmente imagens
mentais pelo prazer que elas proporcionam. Campbell distingue três formas de
imaginação. A fantasia é a imagem que se cria sem ajustes em relação ao real e que se
permite pelo prazer oferecido. Do lado oposto esta a antecipação, a imagem que se
conforma estreitamente a experiência. Como meio-termo, temos o devaneio, foco de
análise do autor, que se pauta em imagens de acontecimentos futuros ajustadas ao
real, mas que se permitem ser agradáveis. Haveria assim nesse hedonismo uma tensão
entre os prazeres da perfeição que vêm da fantasia e aqueles da realidade potencial
que o devaneio proporciona.
Campbell (2001: 126) argumenta que o devaneio se coloca como um hiato
entre o desejo e sua consumação. E um "estado de desconforto desfrutável". Por isso,
o devaneio acaba se tornando uma experiência mais prazerosa do que o consumo de
fato, que desencanta ao colocar diante do sujeito um objeto real com características
não imaginadas no sonho. O ato de devanear constantemente produz um afastamento
contínuo da realidade, uma vez que os devaneios levam sempre a no- vos objetos de
desejos, que por sua vez, ao serem consumi- dos, serão novamente decepcionantes
58
por distinguirem-se da imagem sonhada. O anseio como um desejo sem foco, que não
tem um objeto que possa realizá-lo, e a insatisfação tornam-se estados emocionais
Página
permanentes.
Por outro lado, são esses estados emotivos que motivam o consumo. Novos
produtos acenam com o prazer idealizado no devaneio, que não pode mais ser
esperado dos produtos já conhecidos e consumidos. A apresentação de um produto
como "novo" permite ao consumidor em potencial projetar nele um pouco do prazer
imaginado, oferecendo assim a possibilidade de que esse desejo se concretize. Por isso
Campbell (2001:132) afirma que o espírito do consumismo moderno não é
materialista, pois é calcado na ideia de que "a ilusão é sempre melhor do que a
realidade" .
Em função disso, o autor propõe, os produtos são menos importantes do que
sua representação. A capacidade de fantasiar se pauta mais no consumo de imagens
do que dos objetos em si. É por isso que a propaganda se torna tão imprescindível para
o consumo, já que é ela que se dirige ao devaneio associando o produto a certos
sonhos e assim despertando o desejo. Revistas, catálogos comerciais, anúncios e
cartazes são importantes, pois oferecem imagens que podem ser "desfrutadas", assim
como um romance ou um filme. Campbell argumenta inclusive que a satisfação
sensorial obtida com filmes, peças, programas de televisão e de rádio, discos e quadros
não é tão importante quanto o que eles podem oferecer em termos de imagens para a
elaboração dos devaneios.
Em resumo, Campbell (2001:115) destaca que o hedonista moderno é um
"artista do sonho" que tem capacidade de obter prazer das emoções despertadas por
estas imagens. Sua qualidade é "a aptidão de criar uma ilusão que se sabe falsa, mas se
sente verdadeira". Os indivíduos reagem subjetivamente a essas imagens e devaneios
como se fossem reais. Porém, como se afastam de fato do real, com necessidades e
desejos que não são satisfeitos, sentem-se permanentemente frustrados.
Baseados em Duarte e Campbell, podemos dizer, portanto, que a busca do
prazer é um valor que orienta o comporta- mento nas sociedades ocidentais
modernas. A exploração dos sentidos como meio de experimentar o mundo é o
alicerce de diversas práticas como apontou Duarte. É, em particular, a mola propulsora
do consumo, na visão de Campbell, que, entretanto, adverte para a insatisfação
permanente que ele produz ao desencantar o devaneio. A valorização do prazer torna-
se então um eixo que estrutura a experiência emotiva nessas sociedades, coexistindo
com a ênfase na contenção emotiva já discutida.
contexto, "prazer, saúde, salvação se tornaram sinônimos, pois o corpo passou a ser o
horizonte inexcedível, mas, sobretudo, se tornou suspeito não se sentir radiante". Para
Página
conquistar esse estado, desenvolve-se uma forte indústria que coloca ao alcance dos
indivíduos receitas de várias ordens com o objetivo de chegar à felicidade. Em todas
elas, o pressuposto é a noção de que este fim pode ser atingido por todos por meio de
um "condicionamento positivo", de disciplina pessoal.
A constituição de um imaginário sobre a felicidade nas sociedades ocidentais
modernas está estreitamente relacionada à mídia, como argumenta Condé (2007). Por
um lado, o consumo dos meios de comunicação de massa oferece não apenas
alimento para a elaboração de devaneios, nos termos de Campbell, como também
pode ser em si uma experiência prazerosa. Além disso, os próprios produtos da mídia
também colaboram para a construção da noção de felicidade. Vários o fazem, como a
tradição de filmes com final feliz, já mencionada no capítulo 2. Gostaríamos aqui de
discutir outra produção discursiva de massa: a "imprensa conselheira" analisada por
Condé (2008).
A "imprensa conselheira" é constituída por uma diversidade de materiais
jornalísticos que oferecem "conselhos", "receitas" e "dicas" para uma variedade de
questões práti- cas da vida. Condé argumenta que, nesse tipo de discurso, a felicidade
é, de um modo geral, um tema presente como a orientação dominante das prescrições
apresentadas. Mesmo que nem sempre de forma explícita, o foco na felicidade se
apresenta nas receitas para a satisfação de necessidades materiais, bem como para a
conquista de um estado subjetivo de bem-estar.
O ponto interessante dessa análise é que o meio de atingir a satisfação e o
prazer que levam à felicidade implica atitudes pautadas no valor do controle das
emoções. Recorrendo às reportagens de uma revista desse gênero de imprensa, Condé
apresenta como uma das formas de se alcançar a felicidade aí proposta o contato com
emoções consideradas "negativas" - medo, raiva, tédio -, aliado à sua compreensão
para que, uma vez conhecidas, possam ser controladas. Há também a ideia de que
para conquistar "realização pessoal" é preciso planejamento e moderação. O que
sobressai dessas matérias é uma concepção "pacificada" de felicidade, como Condé a
de- nomina, pautada no equilíbrio das emoções, na experiência comedida longe da
plenitude e do prazer intenso de momentos passageiros.
Outro caso que ilustra bem a combinação da busca do prazer e da intensidade
com alguma medida de controle é a vivência de risco presente nos esportes radicais.
Rocha (2008) discute o modo como a própria noção de risco é definida de modo
diferente por sociedades e épocas distintas. Correr risco é uma escolha individual
pautada por valores e significados culturais sobre o que é arriscado e provoca medo e
o que não é. O risco refere-se a uma norma específica que está posta em questão,
pondo em evidência valores centrais à constituição da sociedade. Assim, Bocha
argumenta que a mesma sociedade que produz a segurança como um bem coletivo
tende a conceber o risco como escolha puramente individual, quando de fato está
operando com significados culturais.
No caso dos praticantes da modalidade esportiva estudada por Rocha - o base
jump -, buscar o risco envolve uma opção por um estilo de vida pautado na "emoção".
Os base jumpers saltam de estruturas fixas construídas (edifícios e pontes) e naturais
(montanhas e penhascos) e acionam o paraquedas após certo período de queda livre.
60
São várias as emoções sentidas no processo de saltar: o medo que antecede salto, a
liberdade de planar e a alegria de pousar. O risco e medo são considerados
Página
vez interrompida a satisfação, não há por que manter a relação. Nesse contexto,
muitos preferem as "relações de bolso", discutidas por Bauman. Por serem relações de
Página
Conclusão
A paciência é difícil, pois meu coração ainda está tão ferido ...
Imaginei, oh querida, que a distância
Seria a cura mas só fez piorar. ..
Esses poemas de amor foram recitados por um jovem beduíno, Fathalla, que
havia se apaixonado por sua prima e desejava se casar com ela. Os pais dos jovens
concordaram a princípio com o casamento, mas depois entraram em discussão, de
forma que o pai da moça se recusou a dar a mão da filha ao .rapaz. Como forma de
esquecê-Ia, Fathalla partiu para a Líbia, enquanto a jovem teve seu casamento
arranjado com outro rapaz. Quando Fathalla soube da notícia, compôs e gravou os
poemas e enviou a fita cassete para sua amada. Já casada, ela ouviu a fita e, quando
terminou, desmaiou e morreu.
À primeira vista, essa história contada por Abu-Lughod (1990) parece sugerir
que e amor é um sentimento universal, algo que todos podem sentir como seres
humanos. Ao mesmo tempo, parece ser também uma experiência absolutamente
individual e singular, distinta daquilo que outros sentem e com tamanha intensidade
que pode mesmo matar, como nesse caso do amor frustrado entre jovens beduínos e
também na tragédia de Romeu e Julieta que discutimos no capítulo 2.
Contudo, Abu-Lughod nos conduz a outras conclusões.
Sim, a poesia de Fathalla expressa o sentimento de amor, que curiosamente,
porém, não está presente nas conversas cotidianas sobre relações amorosas. Ao
contrário, a distância marca as relações entre homens e mulheres nessa sociedade e
63
postura corporal que implicam uma negação da sexualidade - que uma pessoa correta
e boa deve sempre apresentar. A deferência aos outros que a modéstia expressa é um
valor moral funda- mental, alicerce das relações de poder entre homem e mulher e
entre os mais velhos e os jovens.
O amor como base da união entre um homem e uma mulher é claramente
preterido em função dos casamentos preferenciais entre primos, que reforçam os elos
de parentesco do grupo patrilinear que estrutura a sociedade beduína. É em função
dessa estratégia de reprodução que o sentimento de modéstia é tão valorizado, pois
nega o interesse sexual e afirma a deferência à autoridade dos patriarcas. Neste
sentido, o sentimento de amor é considerado sem modéstia e desafiador, pois pode ir
contra os interesses e a ordem estabelecidos.
Como então entender a poesia de amor? Seria um senti- mento reprimido e
subversivo? Abu-Lughod diz que não. As poesias amorosas fazem parte de um gênero -
as ghinnawa - muito apreciado e recitado em ocasiões festivas e também em
conversas corriqueiras com pessoas proximas. São particularmente contadas e
cantadas por mulheres e jovens, mas ocasionalmente também por homens mais
velhos. Essas poesias falam de sentimentos que expressam um conjunto de valores
igualmente importante para um grupo tribal que já foi nômade, como os beduínos: a
autonomia e a liberdade, que, entretanto, existem em contradição com a deferência
dada à autoridade masculina tradicional. Neste sentido, Abu-Lughod argumenta que as
poesias amorosas tornam-se um discurso de desafio e resistência aos ideais da vida
social beduína, e são valorizadas como tal. Por isso a história de Fathalla emocionava,
pois mostrava o que o abuso de poder pode acarretar.
Assim, o amor na sociedade beduína é expresso segundo um tipo particular de
discurso: as poesias amorosas. Nesse contexto, a expressão do sentimento é valorizada
não apenas por falar do desejo de união entre duas pessoas, mas também por declarar
a importância da autonomia dos indivíduos. Com as mudanças econômicas no Egito
que, desde a década de 1980, vêm afetando o estilo nômade dos beduínos. os jovens
rapazes têm estado cada vez mais sob autoridade dos patriarcas, fazendo com que
recorram mais às poesias amorosas, agora gravadas em fitas cassetes, como forma de
protesto. Assim, muitas vezes a poesia era recitada por mulheres casa- das que tinham
sua liberdade tolhida, bem como por jovens que queriam reclamar do poder
econômico e político de seus pais e tios. Ou até mesmo pelo anfitrião da pesquisadora,
que tocou para ela a fita do poema ao levá-Ia ao aeroporto para se queixar do fato de
que ela os deixava ao retornar aos Estados Unidos. Em outros momentos, contudo,
manifestavam-se a modéstia e o recato, negando-se qualquer sentimento de interesse
ou atenção peio outro.
No final, descobrimos que a prima amada de Fathalla não morreu de amor e
vive casada com seu marido. O que Abu-Lughod sugere é que, mais do que tomar o
poema como uma expressão de um sentimento de amor não realizado, frustrado, sua
apresentação em um contexto particular revela as tensões relativas às pessoas e
relações específicas presentes naquela situação. Ou seja, mais do que expressar
estados internos que se mantêm indiferentemente do contexto de interação, o poe-
ma de amor é um discurso emotivo que, ao ser colocado para um grupo de pessoas,
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