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Poian, em particular, pelo convite para participar dessa discussão sobre as formas atuais de
subjetivação. O assunto é enorme. Limito-me, assim, a apontar para certos tópicos que
reputo importantes.
Antes de tudo, uma precisão. Não penso em discutir as relações entre o fenômeno sócio-
porque o termo globalização é suficientemente vago para funcionar como “causa” teórica ou
empírica do que quer que seja. Em segundo lugar, porque não acredito que mudanças nos
hábitos mentais dependam de fatos históricos recentes. Uma coisa é dizer que
são contemporâneos.
A primeira afirmação se contenta em dizer que o sujeito é uma realidade psíquica histórico-
cultural e não “algo” invariável no tempo e no espaço; a segunda quer estabelecer relações
teóricas de antecedência causal insustentáveis por duas razões. Número um, a realidade
subjetiva não pode ser pensada como “efeito” logicamente independente de causas sociais.
O sujeito exprime, sem dúvida, as formas de vida dominantes. Mas não a modo de “efeito”
referido a “causas” que lhes são exteriores. Dizer, nesse contexto, que o sujeito “exprime”
qualquer coisa significa dizer que ele é “expressivo”, que é um ponto de condensação
julgamentos no campo dos afetos é complexa, pois é nela que se ancora a estabilidade das
camisas. Pelo menos é isso que podemos extrair dos estudos dos historiadores das
De modo breve, portanto, sugiro que pensemos na relação entre sujeito e mundo globalizado
econômicas neoliberais.
Feita a ressalva, vamos ao que importa. Tomo três asserções como premissas básicas das
crenças pré-analíticas presentes nos vocabulários que tomam a vida mental como objeto de
análise. A primeira é que o sujeito é um animal que valora. Valorar significa selecionar fatos
buscamos justificar.
A segunda premissa está contida na própria definição de “valor”, qual seja, a obrigatoriedade
para nossos atos intencionais. O sentido, por sua vez, depende das crenças sobre as causas
A terceira premissa, assim, está relacionada ao conteúdo das crenças que fundamentam o
sentido das valorações. Entre essas crenças uma é fundamental para o indivíduo
ele age, pensa e sente de modo a aspirar à felicidade. O pressuposto da busca da felicidade
é o que torna as condutas valorativas do sujeito inteligíveis, ou seja, condutas que podemos
significação variou muito na tradição ocidental. Julgo, mesmo assim, que o sujeito
contemporâneo faz da regra da felicidade a chave mestra dos ideais formadores de sua
identidade. Os conflitos mentais, na maior parte, derivam das contradições entre as diversas
Penso que é contra esse pano de fundo que se costuma afirmar que o sujeito atual vive em
patriotismo, o espírito de sacrifício, a idéia de bem comum etc. O indivíduo, liberado da força
chegada do cuidado de si. Ou seja, o “que se é” e o “que se pretende ser” deve caber no
maior, mais imediato, mais constante for o prazer, mais feliz é o sujeito.
ser imaginado como um processo que pode exigir, inclusive, sacrifícios em prol de objetivos
estritas, deu lugar a um indivíduo passivo, carente de soluções fáceis para problemas
complexos e difíceis.
Essa leitura é plausível e corresponde, em boa parte, ao que podemos observar. Mas
simplifica questões tortuosas. Em primeiro lugar, a afirmação sobre a crise de valores deve
ser matizada. Não é totalmente verídico dizer que não dispomos mais de valores totalizantes
contrapartida, essas instâncias normativas por uma outra não menos tradicional, a ciência,
O mito da ciência como via de acesso ao verdadeiro “sentido da vida” não eliminou os
interessar pela família, contanto que a organização familiar siga os cânones das “ciências da
prazo, contanto que sejam projetos guiados pelas “concepções científicas” da vida individual.
Em outros termos, o mito científico encampou o direito intelectual de dar sentido a vida.
Ocorreu, com isso, uma guinada no terreno dos valores. O sentido da vida, antes referido,
debate científico. O que era medido por critérios pertencentes à esfera dos ideais morais
passou a ser avaliado por métodos de controle e validação experimentais. A antiga “vida
reta, boa ou justa” deixou de ser o padrão ideal das condutas. No lugar da “excelência
A qualidade de vida tem como referentes privilegiados o corpo e a espécie. Em vez do sujeito
moral, o corpo biológico individual; em vez do sujeito político coletivo, a espécie humana. A
cultura leiga do século XXI parece reeditar o sonho de velhas ideologias européias do século
XIX, ou seja, reduzir tudo que é da ordem de fatos mentais ou morais à linguagem
científica.
A nova “renaturalização” das condutas humanas, todavia, não tenta, como dissemos,
desenvolvimento da alma, dos sentimentos ou das qualidades morais, migrou para a atenção
forma de preocupação consigo, a bio-ascese, nos quais a fitness é a suprema virtude. Ser
jovem, saudável, longevo e atento à forma física começa a funcionar como a regra científica
compatíveis com os cânones da “qualidade de vida”: a boa religião é aquela conforme o ideal
da boa saúde; a boa política é a que respeita o cuidado com o ambiente físico da espécie
natural. A noção de “mundo humano” foi, pouco a pouco, destronada pela de “mundo
necessidades “animais” cai por terra. O justo é o saudável; o reto é o que se conforma ao
cuidado com a espécie estão longe de ser condutas passivas e hedonistas. A bio-ascese
exige uma enorme disciplina, dirigida para a reeducação de hábitos insalubres, predatórios
ou poluidores.
instrumentos a serviço da vontade humana, cuja última meta era a salvação da alma. O
homem era a finalidade da criação e tudo mais estava submetido a suas necessidades. Hoje
estamos sendo levados a rever tais crenças. Não nos sentimos mais autorizados a dizer
“salve-se o homem e pereça o mundo”, pois o mundo nem é mais a “cidade política” nem a
natural da qualidade de vida e se colocou no foco dos embates sobre as fontes do agir moral.
O sentido da existência; a origem das obrigações éticas; as escolhas dos estilos de viver,
todos esses itens implicados na busca da felicidade foram agregado ao rol de perguntas que
a ciência, cedo ou tarde, vai responder. Tornamo-nos, dessa forma, politeístas tolerantes,
A inflexão no eixo valorativo das condutas produziu uma reviravolta na concepção do desvio
subjetiva tinham como centro nevrálgico a Razão. A loucura era uma figura da desrazão. No
abominações do desejo.
Hoje, a figura, por excelência, do desvio é a estultícia. Criamos um código axiológico no qual
mente, segundo os preceitos da qualidade de vida. O louco de outrora nos ameaçava por
desmentir a idéia que o atributo definitório do homem era o “ser racional”. O perverso nos
ameaçava com a força dos instintos desregrados, excessivos, regredidos, incontroláveis pela
razão. O estulto, agora, nos ameaça com o mau exemplo da “fraqueza de vontade”.
b) desregulados, isto é, os que não podem moderar o ritmo ou a intensidade das carências
sociais); c) inibidos, isto é, os que se intimidam com o mundo e não exibem ou expandem a
primeira consiste em fazer da vontade livre o motivo do controle do corpo próprio, mas
A teia cultural que anima esse tipo de contradição se baseia no jogo duplo da tutela e da
culpabilização. O indivíduo deve creditar o sucesso de seus esforços à sua vontade. Mas,
em caso de fracasso, “deve se sentir culpado” sem, entretanto, buscar o sentido do que
dominante. O anseio por independência e autonomia, quando falha, deve ser visto como uma
anomalia ou doença biológica e não como denúncia da estreiteza da norma social em face da
ao acreditar que pode fabricar o eu moral e psicológico a partir da pura matéria corporal, e
como impotente, ao ser forçado a crer que o sentido do sofrimento humano está inscrito nos
A segunda contradição tem a ver com a relação ao outro. O interesse por si, monopolizado
outro para legitimar nossos ideais de eu, criamos um impasse: menosprezamos o outro
próximo, em seu papel de avalista do que somos, e idealizamos o outro anônimo, cuja
Hoje, nem pai, nem padre, nem médico, nem psicanalista funciona como autoridade
simbolicamente legítima para corrigir ou ratificar os rumos tomados pelas práticas bio-
ascéticas individuais. O que nos inspira são os modelos impessoais dos artistas de sucesso
ou das figuras de outdoors. Só que tais modelos são mudos e se manifestam, apenas,
quando se trata de nos convidar para comprar mais um produto comercial ou industrial.
O corpo da publicidade não nos fala diretamente. Não nos solicita sensorial ou
vidas, ao provocarem nosso desejo de imitá-lo. A publicidade não nos acusa nem elogia,
apenas seduz, em sua opacidade e permanente mudança, como um ideal que devemos
há, por conseguinte, como saber qual o caminho certo da “virtude bio-ascética”, exceto se
continuarmos a perseguir, de forma maquinal, exaustiva, torturante, o corpo da moda. Até,
é claro, chegar a velhice e nada restar, salvo os grupos de terceira idade, última tentativa
A terceira contradição concerne à relação da felicidade com o prazer. Quanto mais falamos
em minimizar o sofrimento e otimizar o prazer mais nos privamos de prazer e mais nos
atormentamos com os sofrimentos que não podemos evitar. Tornamo-nos seres espartanos,
de sofrimento, reagimos como se fosse a primeira vez; como se fosse algo literalmente
extraordinário que deve ter sido provocado por alguma “falha” no cumprimento das
obrigações bio-ascéticas.
escolher a quem revelar sua intimidade, da maneira e nas ocasiões que julgar mais
favoráveis.
emocionais, com vistas à venda de bens e serviços. A cultura somática acabou de completar
fraquezas e forças.
O desejo obscuro podia ser rebelde, recalcitrante ao apelo do Outro. O indivíduo, protegido
pelo decoro e pelo pudor, podia se entregar ao deleite clandestino de impulsos, aspirações,
fantasias e prazeres que escondia de todos pela fachada da polidez e civilidade sociais. Hoje
somos o que aparentamos ser, pois a identidade pessoal e o semblante corporal tendem a
ser uma só e mesma coisa. Quanto mais a personalidade somática se impõe como norma do
ideal do eu, mais revelamos nossa alma ao outro, sem chances da defesa pela ocultação.
Donde resultam algumas das características marcantes do indivíduo atual. A primeira é
corporal, o outro se tornou um potencial inimigo e não um parceiro de ideais comuns. Se nos
ressentido, por não ter alcançado o que alcançamos; se nos sentimos mal, ele é um suposto
acusador, que nos humilha pelo simples fato de encarnar a norma somática que lutamos,
ou seja, a predisposição para reagir com exagero emotivo a qualquer estímulo de ordem
problema da esfera da aparência corporal. O mal do século é o mal do corpo. Nos sentimos,
com freqüência, melindrados por qualquer observação sobre nossa aparência física, pois
Qualquer comentário sobre hábitos alimentares, por exemplo, desencadeia, em geral, uma
bizarra e infantilizada competição sobre quem faz mais exercícios; quem come menos
gordura; quem é capaz de perder mais quilos em menos tempo; quem deixou de fumar a
mais tempo; quem ingere mais vegetais, alimentos e fármacos naturais etc. Em paralelo a
isso, todo consumo de comidas com alto teor calórico é precedida de verdadeiros atos de
contrição e rituais preventivos de expiação da falta a ser cometida. Os que não aceitam
jogar o jogo são vistos como problemáticos, do ponto de vista emocional, já que se
entregam, sem escrúpulo, a autodestruição física e moral. Afinal, pensamos, sem a boa
fazer notar é uniformizar a superfície corporal com a aparência aprovada por todos. A
compulsão para estar em forma é, assim, uma tática de proteção da identidade pela
dispor da aparência como meio de individualização, procura anulá-la, aboli-la, como meio
gigantesco esforço despendido na prática da bio-ascese é inútil, pois sempre passa ao lado
uniforme sente que luta para sobreviver e se afirmar como bio-identidade singular. Mas,
logo, logo, sente que precisa desaparecer do campo do olhar do outro, se quiser
interior” do intimismo não deve levar a lamentos tediosos, em busca do mundo perdido. A
subjetividade, como a vida, não tolera predicados definitivos. O tempo, disse Jankélévitch,
empresta, nunca dá. A “subjetividade exterior” incentivada pela cultura somática não é feita
Estamos em vias de trocar a ação pela introspecção; o gosto por “realidades psicológicas
a partir de agora, imaginar formas de subjetivação menos presas aos cacoetes do intimismo
aos ideais comuns; desprezo pelo agir; mistificação dos poderes do desejo; subestimação da
tempo de vigência prescreveu. Cabe a todos, e aos psicanalistas em especial, estar atentos
ao que a riqueza da vida subjetiva pode oferecer, sem compromissos como o que caducou
NOTAS:
inédito.
[1][1] A noção de narcisismo, no contexto da presente discussão, é entendida como uma
vertente do individualismo contemporâneo particularmente insensível a compromissos
com ideais de conduta coletivamente orientados. Esse uso da palavra não coincide com
o que é feito na literatura técnica psicanalítica. Narcisismo, em psicanálise, é a condição
mental indispensável à aquisição do sentimento e da consciência de “identidade”
subjetiva. Nesse sentido, nada tem em a ver com “egoísmo” – atitude moral pejorativa,
no ideário igualitário e compassivo – nem com distúrbio “psicopatológico”- em certas
leituras normativas do desenvolvimento psíquico. Guardo a palavra narcisismo, nessa
acepção imprecisa da linguagem leiga culta ou da linguagem de especialistas de ciências
humanas, porque considero que ela descreve satisfatoriamente o ethos moral das
camadas urbanas brasileiras sócio-economicamente favorecidas.
Sobre o autor: Jurandir Freire Costa nasceu num pequeno vilarejo de Pernambuco em 1944. De lá saiu aos
15 anos e foi para Recife, onde formou-se em Medicina. Logo depois viajou para Paris, iniciando sua formação
Études. Voltou ao Brasil e fixou residência no Rio de Janeiro, cidade na qual terminou sua formação
psicanalítica. É membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e professor da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ), no Instituto de Medicina Social (IMS), onde desenvolve suas pesquisas e orienta