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A subjetividade exterior [A]

Gostaria de agradecer aos colegas do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e a Carmem da

Poian, em particular, pelo convite para participar dessa discussão sobre as formas atuais de

subjetivação. O assunto é enorme. Limito-me, assim, a apontar para certos tópicos que

reputo importantes.

Antes de tudo, uma precisão. Não penso em discutir as relações entre o fenômeno sócio-

político-econômico da globalização e as transformações da subjetividade. Em primeiro lugar,

porque o termo globalização é suficientemente vago para funcionar como “causa” teórica ou

empírica do que quer que seja. Em segundo lugar, porque não acredito que mudanças nos

hábitos mentais dependam de fatos históricos recentes. Uma coisa é dizer que

transformações nas formas de vida acarretam mudanças subjetivas; outra é postular

relações causais entre fatores econômico-ideológicos e alterações da subjetividade das quais

são contemporâneos.

A primeira afirmação se contenta em dizer que o sujeito é uma realidade psíquica histórico-

cultural e não “algo” invariável no tempo e no espaço; a segunda quer estabelecer relações

teóricas de antecedência causal insustentáveis por duas razões. Número um, a realidade

subjetiva não pode ser pensada como “efeito” logicamente independente de causas sociais.

O sujeito exprime, sem dúvida, as formas de vida dominantes. Mas não a modo de “efeito”

referido a “causas” que lhes são exteriores. Dizer, nesse contexto, que o sujeito “exprime”

qualquer coisa significa dizer que ele é “expressivo”, que é um ponto de condensação

peculiar dessas formas de vida, e não um aspecto do viver sócio-cultural conectado, de

modo externo e mecânico, a outros aspectos.

Em segundo lugar, as mudanças na subjetividade relevantes para a psicanálise requerem

transformações culturais em longuíssimo prazo. A reestruturação das sensibilidades e

julgamentos no campo dos afetos é complexa, pois é nela que se ancora a estabilidade das

identidades pessoais. Não substituímos repertórios emocionais como substituímos

camisas. Pelo menos é isso que podemos extrair dos estudos dos historiadores das

mentalidades, antropólogos, sociólogos, psicólogos sociais etc.

De modo breve, portanto, sugiro que pensemos na relação entre sujeito e mundo globalizado

à maneira de implicação mútua ou de conexão lógica e empírica transitiva. Isto é, o

neoliberalismo econômico estimula comportamentos subjetivos necessários à sua

manutenção e o modo pelo qual nos subjetivamos retroalimenta a adesão às crenças

econômicas neoliberais.
Feita a ressalva, vamos ao que importa. Tomo três asserções como premissas básicas das

investigações psicológicas sobre o sujeito. Por premissas básicas entendo o conjunto de

crenças pré-analíticas presentes nos vocabulários que tomam a vida mental como objeto de

análise. A primeira é que o sujeito é um animal que valora. Valorar significa selecionar fatos

do mundo e classificá-los em ordens hierárquicas diversas, segundo preferências que

buscamos justificar.

A segunda premissa está contida na própria definição de “valor”, qual seja, a obrigatoriedade

da justificação. Ao valorar justificamos as escolhas feitas e, ao justificar, criamos um sentido

para nossos atos intencionais. O sentido, por sua vez, depende das crenças sobre as causas

e finalidades que nos fazem ser como somos ou desejamos ser.

A terceira premissa, assim, está relacionada ao conteúdo das crenças que fundamentam o

sentido das valorações. Entre essas crenças uma é fundamental para o indivíduo

contemporâneo, a busca da felicidade. Sempre que pensamos no sujeito, assumimos que

ele age, pensa e sente de modo a aspirar à felicidade. O pressuposto da busca da felicidade

é o que torna as condutas valorativas do sujeito inteligíveis, ou seja, condutas que podemos

“compreender” e, por conseguinte, aprovar, desaprovar, retificar, aperfeiçoar, criticar etc.

Sabemos que o valor dado à idéia de “felicidade” é culturalmente circunscrito e sua

significação variou muito na tradição ocidental. Julgo, mesmo assim, que o sujeito

contemporâneo faz da regra da felicidade a chave mestra dos ideais formadores de sua

identidade. Os conflitos mentais, na maior parte, derivam das contradições entre as diversas

formas de valorar desejos, aspirações, ideais, impulsos etc, na tentativa de alcançar o

grande objetivo da vida, a felicidade.

Penso que é contra esse pano de fundo que se costuma afirmar que o sujeito atual vive em

uma crise de valores. Os críticos da modernidade capitalista dizem que o processo de

economicização à outrance da vida social redundou no enfraquecimento de tradicionais

instâncias doadoras de identidade pessoal como a família, a religião, o trabalho, o

patriotismo, o espírito de sacrifício, a idéia de bem comum etc. O indivíduo, liberado da força

normativa dessas instituições, viu-se levado a apoiar o sentimento de identidade em dois

principais suportes, o narcisismo e o hedonismo.

Basear a identidade no narcisismo[1][1] significa dizer que o sujeito é o ponto de partida e

chegada do cuidado de si. Ou seja, o “que se é” e o “que se pretende ser” deve caber no

espaço da preocupação consigo. Família, pátria, Deus, sociedade, futuras gerações só

interessam ao narcisista como meios de autorealização pessoal, em geral entendida como

autorealização afetiva, econômica, de sucesso pessoal ou bem-estar físico.


O hedonismo, por sua vez, decorre dessa dinâmica identitária. O narcisista cuida apenas de

si porque aprendeu a acreditar que a felicidade é sinônimo de obtenção de prazer. Quanto

maior, mais imediato, mais constante for o prazer, mais feliz é o sujeito.

Ao contrário, portanto, do sujeito das recomendações morais tradicionais, o sujeito da moral

hodierna se tornou indiferente ou pouco sensível a compromissos com os outros – faceta

narcisista – e a projetos pessoais duradouros – faceta hedonista. O sentido da vida deixou de

ser imaginado como um processo que pode exigir, inclusive, sacrifícios em prol de objetivos

mais nobres e extrapessoais. O sujeito tradicional, ativo no cumprimento de normas éticas

estritas, deu lugar a um indivíduo passivo, carente de soluções fáceis para problemas

complexos e difíceis.

Essa leitura é plausível e corresponde, em boa parte, ao que podemos observar. Mas

simplifica questões tortuosas. Em primeiro lugar, a afirmação sobre a crise de valores deve

ser matizada. Não é totalmente verídico dizer que não dispomos mais de valores totalizantes

que transcendam os propósitos de autorealização. É verdade, não delegamos mais à religião,

à história, à política ou à família o papel de dar sentido à vida. Substituímos, em

contrapartida, essas instâncias normativas por uma outra não menos tradicional, a ciência,

ou melhor, a mitologia científica.

O mito da ciência como via de acesso ao verdadeiro “sentido da vida” não eliminou os

antigos valores, reordenou-os em uma nova hierarquia. Continuamos a praticar a política,

mas subordinada à “ciência do político”; continuamos a manifestar crenças religiosas,

contanto que a religião se aproxime da cosmologia das ciências; continuamos a nos

interessar pela família, contanto que a organização familiar siga os cânones das “ciências da

família”, e, finalmente, continuamos a fabricar projetos de identidade pessoal em longo

prazo, contanto que sejam projetos guiados pelas “concepções científicas” da vida individual.

Em outros termos, o mito científico encampou o direito intelectual de dar sentido a vida.

Ocorreu, com isso, uma guinada no terreno dos valores. O sentido da vida, antes referido,

primordialmente, a valores religiosos, éticos ou políticos foi deslocado para o plano do

debate científico. O que era medido por critérios pertencentes à esfera dos ideais morais

passou a ser avaliado por métodos de controle e validação experimentais. A antiga “vida

reta, boa ou justa” deixou de ser o padrão ideal das condutas. No lugar da “excelência

virtuosa da vida” surge um novo padrão, a “qualidade de vida”.

A qualidade de vida tem como referentes privilegiados o corpo e a espécie. Em vez do sujeito

moral, o corpo biológico individual; em vez do sujeito político coletivo, a espécie humana. A

cultura leiga do século XXI parece reeditar o sonho de velhas ideologias européias do século
XIX, ou seja, reduzir tudo que é da ordem de fatos mentais ou morais à linguagem

científica.

A nova “renaturalização” das condutas humanas, todavia, não tenta, como dissemos,

descartar os antigos valores. Tenta, ao contrário, retraduzi-los e inscrevê-los no triunfalismo

ideológico do cientificismo atual. O cuidado de si, anteriormente voltado para o

desenvolvimento da alma, dos sentimentos ou das qualidades morais, migrou para a atenção

para com a longevidade, a perfeição da saúde físico-mental, a juventude, em suma, para

com a “fitness”. Inventou-se um novo modelo de identidade, a bio-identidade, e uma nova

forma de preocupação consigo, a bio-ascese, nos quais a fitness é a suprema virtude. Ser

jovem, saudável, longevo e atento à forma física começa a funcionar como a regra científica

que legitima ou desqualifica outras preferências e aspirações à felicidade.

Crenças religiosas, políticas, psicológicas, sociais etc, só são aprovadas se se mostram

compatíveis com os cânones da “qualidade de vida”: a boa religião é aquela conforme o ideal

da boa saúde; a boa política é a que respeita o cuidado com o ambiente físico da espécie

natural. A noção de “mundo humano” foi, pouco a pouco, destronada pela de “mundo

ecológico”. A idéia da sociedade como teatro da ação humana descomprometida com as

necessidades “animais” cai por terra. O justo é o saudável; o reto é o que se conforma ao

projeto da vida bem-sucedida, do ponto de vista biológico.

No entanto, diferente do que parece à primeira vista, a construção das bio-identidades e o

cuidado com a espécie estão longe de ser condutas passivas e hedonistas. A bio-ascese

exige uma enorme disciplina, dirigida para a reeducação de hábitos insalubres, predatórios

ou poluidores.

Na tradição greco-judaico-cristã, fomos ensinados a olhar as coisas e seres do universo como

instrumentos a serviço da vontade humana, cuja última meta era a salvação da alma. O

homem era a finalidade da criação e tudo mais estava submetido a suas necessidades. Hoje

estamos sendo levados a rever tais crenças. Não nos sentimos mais autorizados a dizer

“salve-se o homem e pereça o mundo”, pois o mundo nem é mais a “cidade política” nem a

“cidade terrena”, é a “cidade ambiental”.

A bioética, e não as éticas políticas ou psicológicas, se tornou o correlato moral do ideal

natural da qualidade de vida e se colocou no foco dos embates sobre as fontes do agir moral.

O sentido da existência; a origem das obrigações éticas; as escolhas dos estilos de viver,

todos esses itens implicados na busca da felicidade foram agregado ao rol de perguntas que

a ciência, cedo ou tarde, vai responder. Tornamo-nos, dessa forma, politeístas tolerantes,

sexualmente liberados e complacentes com as pequenas transgressões morais, desde que


não ultrapassem o limite de segurança da qualidade de vida e da bioética. Tudo é mais ou

menos permitido, se as taxas de colesterol estiverem fora da faixa de risco.

A inflexão no eixo valorativo das condutas produziu uma reviravolta na concepção do desvio

e da normalidade mentais. No século XVIII, as grandes questões sobre a normalidade

subjetiva tinham como centro nevrálgico a Razão. A loucura era uma figura da desrazão. No

século XIX, passamos da patologia da razão para a do instinto. Os desviantes oitocentistas

eram os perversos; os que exibiam uma degeneração instintiva responsável pelas

abominações do desejo.

Hoje, a figura, por excelência, do desvio é a estultícia. Criamos um código axiológico no qual

os melhores, os “normais”, os aprovados, são os que dão mostras da “vontade forte”. No

pólo oposto, estão os fracos, os piores, os “estultos”.

Estultícia é a inépcia, a incompetência para exercer a vontade no domínio do corpo e da

mente, segundo os preceitos da qualidade de vida. O louco de outrora nos ameaçava por

desmentir a idéia que o atributo definitório do homem era o “ser racional”. O perverso nos

ameaçava com a força dos instintos desregrados, excessivos, regredidos, incontroláveis pela

razão. O estulto, agora, nos ameaça com o mau exemplo da “fraqueza de vontade”.

A estultice é o correlato desviante da personalidade somática de nosso tempo. Diferente da

personalidade neurótica de Karen Horney ou da personalidade narcísica de Lasch, a

personalidade somática é a que tem na imagem social do corpo o referente central do

caráter ou da identidade. Os diversos tipos de estulto começam, dessa maneira, a

explodirem como um efeito subjetivo indesejado do hiperinvestimento afetivo nessa imagem

e a serem vistos como a antinorma da bio-identidade aprovada.

Os estultos são, então, esquadrinhados, tipificados e classificados segundo o grau ou

natureza do desvio em: a) dependentes, isto é, os que não controlam a necessidade de

drogas lícitas e ilícitas; de sexo; de amor; de consumo; de exercícios físicos;

b) desregulados, isto é, os que não podem moderar o ritmo ou a intensidade das carências

físicas (bulímicos, anoréxicos) ou mentais (portadores de síndromes de pânico, fobias

sociais); c) inibidos, isto é, os que se intimidam com o mundo e não exibem ou expandem a

força de vontade, como os dístimicos, os apáticos, os não-assertivos, os “não-assumidos”;

d) estressados, isto é, os que não sabem priorizar os investimentos afetivos e desperdiçam

energia, se tornando perdulários da vontade: e) deformados, isto é, os “perdedores”, os que

ficam para trás na maratona da fitness: obesos; manchados de pele; sedentários;

envelhecidos precocemente; tabagistas; não-siliconados; não-lipoaspirados etc.


O mais importante, contudo, na construção das bio-identidades, são as antinomias

psicológicas que surgem no bojo da submissão às regras draconianas da bio-ascese. A

primeira consiste em fazer da vontade livre o motivo do controle do corpo próprio, mas

atribuir os malogros desse objetivo a causas orgânicas, fisicalistas, não-intencionais. Os

sujeitos são, ao mesmo tempo, incentivados a se auto-reprovarem pelo desvio de estultícia e

a se sentirem isentos de responsabilidade no insucesso, pois os fracassos do controle volitivo

são imputados a causas biológicas.

A teia cultural que anima esse tipo de contradição se baseia no jogo duplo da tutela e da

culpabilização. O indivíduo deve creditar o sucesso de seus esforços à sua vontade. Mas,

em caso de fracasso, “deve se sentir culpado” sem, entretanto, buscar o sentido do que

padece na crítica às crenças sobre a natureza da felicidade do ethos econômico-cultural

dominante. O anseio por independência e autonomia, quando falha, deve ser visto como uma

anomalia ou doença biológica e não como denúncia da estreiteza da norma social em face da

diversidade expressiva da vida humana. O sujeito vê-se, simultaneamente, como onipotente,

ao acreditar que pode fabricar o eu moral e psicológico a partir da pura matéria corporal, e

como impotente, ao ser forçado a crer que o sentido do sofrimento humano está inscrito nos

genes ou nos circuitos neuro-hormonais.

A segunda contradição tem a ver com a relação ao outro. O interesse por si, monopolizado

pelos cuidados com o corpo, vem desgastando, de forma progressiva, a importância

emocional do outro humano próximo ou distante. Mas como continuamos a precisar do

outro para legitimar nossos ideais de eu, criamos um impasse: menosprezamos o outro

próximo, em seu papel de avalista do que somos, e idealizamos o outro anônimo, cuja

preocupação emocional conosco é igual a zero.

Hoje, nem pai, nem padre, nem médico, nem psicanalista funciona como autoridade

simbolicamente legítima para corrigir ou ratificar os rumos tomados pelas práticas bio-

ascéticas individuais. O que nos inspira são os modelos impessoais dos artistas de sucesso

ou das figuras de outdoors. Só que tais modelos são mudos e se manifestam, apenas,

quando se trata de nos convidar para comprar mais um produto comercial ou industrial.

O corpo da publicidade não nos fala diretamente. Não nos solicita sensorial ou

emocionalmente, nem considera as peculiaridades de nosso caráter ou de nossas histórias de

vidas, ao provocarem nosso desejo de imitá-lo. A publicidade não nos acusa nem elogia,

apenas seduz, em sua opacidade e permanente mudança, como um ideal que devemos

perseguir, independente das conseqüências físico-emocionais que venhamos a sofrer. Não

há, por conseguinte, como saber qual o caminho certo da “virtude bio-ascética”, exceto se
continuarmos a perseguir, de forma maquinal, exaustiva, torturante, o corpo da moda. Até,

é claro, chegar a velhice e nada restar, salvo os grupos de terceira idade, última tentativa

bio-ascética de “ser jovem, vital, por dentro da moda!”.

A terceira contradição concerne à relação da felicidade com o prazer. Quanto mais falamos

em minimizar o sofrimento e otimizar o prazer mais nos privamos de prazer e mais nos

atormentamos com os sofrimentos que não podemos evitar. Tornamo-nos seres espartanos,

anedônicos e cronicamente ansiosos diante da perspectiva dos sofrimentos. A cada episódio

de sofrimento, reagimos como se fosse a primeira vez; como se fosse algo literalmente

extraordinário que deve ter sido provocado por alguma “falha” no cumprimento das

obrigações bio-ascéticas.

A quarta contradição, por fim, é de natureza propriamente freudiana. A cultura somática de

nosso tempo, ao esvaziar a moralidade dos sentimentos em favor da moralidade do corpo,

privilegia a clareza da vontade e da aparência, em detrimento da obscuridade do desejo e da

profundidade emocional. Por esse meio, estamos, paulatinamente, privando os sujeitos de

um potente mecanismo estabilizador do sentimento da identidade, qual seja, a capacidade

de dissimular sua intimidade do olhar do outro.

O poder de ocultar, de esconder da luz do público o universo das emoções, aspirações e

desejos interiores favorece o sentimento de segurança contra possíveis intrusões da

realidade externa no terreno do que é sensível e delicado em nós. A cultura do intimismo

sentimental, em especial a do romantismo, concedeu ao indivíduo o direito quase sagrado de

escolher a quem revelar sua intimidade, da maneira e nas ocasiões que julgar mais

favoráveis.

A cultura narcísica da exibição publicitária da privacidade já havia desferido um duro golpe

nessa moral, ao comercializar o hábito das confissões públicas de segredos sexuais e

emocionais, com vistas à venda de bens e serviços. A cultura somática acabou de completar

a tarefa, ao fazer do corpo espelho da alma. O corpo se tornou a vitrine compulsória,

permanentemente devassada pelo olhar do outro anônimo, de nossos vícios e virtudes,

fraquezas e forças.

O desejo obscuro podia ser rebelde, recalcitrante ao apelo do Outro. O indivíduo, protegido

pelo decoro e pelo pudor, podia se entregar ao deleite clandestino de impulsos, aspirações,

fantasias e prazeres que escondia de todos pela fachada da polidez e civilidade sociais. Hoje

somos o que aparentamos ser, pois a identidade pessoal e o semblante corporal tendem a

ser uma só e mesma coisa. Quanto mais a personalidade somática se impõe como norma do

ideal do eu, mais revelamos nossa alma ao outro, sem chances da defesa pela ocultação.
Donde resultam algumas das características marcantes do indivíduo atual. A primeira é

a desconfiança persecutória. Dado que a identidade é exposta, de pronto, na aparência

corporal, o outro se tornou um potencial inimigo e não um parceiro de ideais comuns. Se nos

sentimos bem com nossa aparência, o outro é um candidato ao posto do invejoso e

ressentido, por não ter alcançado o que alcançamos; se nos sentimos mal, ele é um suposto

acusador, que nos humilha pelo simples fato de encarnar a norma somática que lutamos,

encarniçadamente, para corporificar.

A segunda característica é a sensiblerie. O século XIX conheceu a “sensiblerie” sentimental,

ou seja, a predisposição para reagir com exagero emotivo a qualquer estímulo de ordem

afetiva. Na atualidade, desenvolvemos uma espécie de hipersensibilidade a qualquer

problema da esfera da aparência corporal. O mal do século é o mal do corpo. Nos sentimos,

com freqüência, melindrados por qualquer observação sobre nossa aparência física, pois

estamos expostos, sem defesas, ao escrutínio moral do outro.

Qualquer comentário sobre hábitos alimentares, por exemplo, desencadeia, em geral, uma

bizarra e infantilizada competição sobre quem faz mais exercícios; quem come menos

gordura; quem é capaz de perder mais quilos em menos tempo; quem deixou de fumar a

mais tempo; quem ingere mais vegetais, alimentos e fármacos naturais etc. Em paralelo a

isso, todo consumo de comidas com alto teor calórico é precedida de verdadeiros atos de

contrição e rituais preventivos de expiação da falta a ser cometida. Os que não aceitam

jogar o jogo são vistos como problemáticos, do ponto de vista emocional, já que se

entregam, sem escrúpulo, a autodestruição física e moral. Afinal, pensamos, sem a boa

forma, nenhuma chance teremos de ser “vencedores” no mundo da cultura somática.

A terceira característica é a superficialidade e uniformidade compulsivas. Por não podermos

ocultar o que, eventualmente, gostaríamos de manter em segredo, adotamos a estratégia da

superexposição como forma de passar desapercebidos. A maneira mais eficiente de não se

fazer notar é uniformizar a superfície corporal com a aparência aprovada por todos. A

compulsão para estar em forma é, assim, uma tática de proteção da identidade pela

trivialização do semblante corpóreo. Não se presta atenção ao que é comum, repetitivo e

sem nenhuma particularidade que atraia nossa inteligência ou afetividade.

A personalidade somática se tornou uma espécie de antipersonalidade, pelos próprios

mecanismos que a constituem. De um lado, só dispõe das aparências corpóreas para

singularizá-la, individualiza-la como “identidade” irrepetível; de outro, pelo fato de só

dispor da aparência como meio de individualização, procura anulá-la, aboli-la, como meio

de escapar ao sentimento persecutório da vulnerabilidade ao olhar do outro.


O efeito dessa identificação pessoal pela banalização do eu corporal é o sentimento de que o

gigantesco esforço despendido na prática da bio-ascese é inútil, pois sempre passa ao lado

do alvo. Todas as privações sofridas em nome da boa forma, em última instância,

convergem para as experiências de irrelevância e futilidade do eu. O sujeito superficial e

uniforme sente que luta para sobreviver e se afirmar como bio-identidade singular. Mas,

logo, logo, sente que precisa desaparecer do campo do olhar do outro, se quiser

experimentar, por alguns momentos, a tranqüilidade de estar consigo sem a invasão

persecutória do ideal da fitness.

Por fim, algumas notas esperançosas no panorama constrangedor. A decadência do “sujeito

interior” do intimismo não deve levar a lamentos tediosos, em busca do mundo perdido. A

subjetividade, como a vida, não tolera predicados definitivos. O tempo, disse Jankélévitch,

empresta, nunca dá. A “subjetividade exterior” incentivada pela cultura somática não é feita

apenas de atributos negativos.

Estamos em vias de trocar a ação pela introspecção; o gosto por “realidades psicológicas

imutáveis” pela prática de “realidades transicionais”. Esse fenômeno é promissor. Podemos,

a partir de agora, imaginar formas de subjetivação menos presas aos cacoetes do intimismo

romântico-burguês que produziu alguns dos fatores mais paralisantes da criatividade

individual: hiperestimação da sexualidade; culto ao sofrimento sentimental; insensibilidade

aos ideais comuns; desprezo pelo agir; mistificação dos poderes do desejo; subestimação da

potência da vontade e, por último, apequenamento dos ideais de felicidade,

progressivamente confinados à esfera do êxtase amoroso-sexual e à evasão pelo consumo

de drogas e entretenimentos massificados.

A cultura somática nos precipitou, novamente, no espaço da visibilidade comum, queiramos

ou não. Quem sabe, então, venhamos a reinventar, nas novas circunstâncias,

outras modalidades de existência, livres da atmosfera sufocante da “interioridade”, cuja

tempo de vigência prescreveu. Cabe a todos, e aos psicanalistas em especial, estar atentos

ao que a riqueza da vida subjetiva pode oferecer, sem compromissos como o que caducou

pela própria insistência em querer ser imortal. Obrigado pela atenção.

NOTAS:

(A) Palestra apresentada sob o título de A Externalização da Subjetividade, 2001. Texto

inédito.
[1][1] A noção de narcisismo, no contexto da presente discussão, é entendida como uma
vertente do individualismo contemporâneo particularmente insensível a compromissos
com ideais de conduta coletivamente orientados. Esse uso da palavra não coincide com
o que é feito na literatura técnica psicanalítica. Narcisismo, em psicanálise, é a condição
mental indispensável à aquisição do sentimento e da consciência de “identidade”
subjetiva. Nesse sentido, nada tem em a ver com “egoísmo” – atitude moral pejorativa,
no ideário igualitário e compassivo – nem com distúrbio “psicopatológico”- em certas
leituras normativas do desenvolvimento psíquico. Guardo a palavra narcisismo, nessa
acepção imprecisa da linguagem leiga culta ou da linguagem de especialistas de ciências
humanas, porque considero que ela descreve satisfatoriamente o ethos moral das
camadas urbanas brasileiras sócio-economicamente favorecidas.
Sobre o autor: Jurandir Freire Costa nasceu num pequeno vilarejo de Pernambuco em 1944. De lá saiu aos
15 anos e foi para Recife, onde formou-se em Medicina. Logo depois viajou para Paris, iniciando sua formação

psicanalítica, no internato em Psiquiatria e um trabalho em Etnopsiquiatria na École Pratique des Hautes

Études. Voltou ao Brasil e fixou residência no Rio de Janeiro, cidade na qual terminou sua formação

psicanalítica. É membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e professor da Universidade Estadual do Rio

de Janeiro (UERJ), no Instituto de Medicina Social (IMS), onde desenvolve suas pesquisas e orienta

dissertações de mestrado e teses de doutorado.

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