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Antropologia e Literatura

Adriana Ines Strappazzon*

Resumo: Qual é a distância entre a antropologia e a literatura? Esse


artigo propõe pensar que a linha divisória é bastante tênue. Se por um
lado alguns textos etnográficos utilizam recursos do imaginário e da
ficção para narrar o real que se deseja representar ou compartilhar, por
outro, alguns textos literários trazem elementos para se pensar desde
uma leitura antropológica, ou como meio para as análises dessa
disciplina. Real, imaginário e ficção são recursos para se dizer algo
sobre alguém ou alguma coisa. Nesse sentido, a antropologia pode se
valer do literário e do poético em suas narrativas.

Palavras-chave: Antropologia; Literatura; Real; Imaginário;


Descrição.

Ao ler apenas algumas páginas da primeira parte de


“Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem”, “Terror”, de
Michael Taussig (1993), imergimos em díspares eventos sobre a
relação entre brancos e índios ou brancos e índios e aucas (também
chamados inflieles). As histórias transmitem uma penumbra acerca
das revoltas indígenas, ora como improváveis, ora com fatos reais que
foram acontecendo. E quanto mais os olhos vão dominando as linhas,
mais confusa fica a questão. Afinal, o que o autor está querendo nos
dizer?
Na forma como Taussig constrói a narrativa sobre o Putumayo
está também inscrito aquilo que ele pretende transmitir, ou seja, essas
incertezas na cabeça do leitor acerca da veracidade das revoltas
indígenas também são narrativas, estão querendo nos dizer algo. O
que está para ser lido pode ser percebido nas palavras literais, nas
entrelinhas, nas metáforas, no modo como constrói o corpo do texto.
A todo instante e com esses recursos estamos nos rodeando no mundo
da literatura. E também no mundo da etnografia.
*
Graduanda em Ciências Sociais (UFSC).

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E no contar das histórias, também se lê o papel da narrativa na


(re) produção do mundo cotidiano. São as intermitências durante o
texto que nos propõem pensar o emprego não só da violência, com a
intenção de domínio sobre o índio no contexto colonial, mas também
o uso da oratória, a utilização da cultura do outro para submetê-lo.
E a que se refere o terror transpassando o texto a todo o
momento? No devir das linhas a face do leitor pode vir a transmitir, a
alguém que está de fora, que o conteúdo do livro não está tão bom.
Descreve-se a violência cometida pelos selvagens e propõe a
interpretação de quem são os selvagens. São narrativas sobre o modo
como os índios eram classificados, como eram transformados, ora em
peças de museus, ora como mão-de-obra, como eram envolvidos pelas
armas e pelas palavras do colonizador, como eram mortos como
justificativa para não vir a matar em seus ritos canibais. E cada vez se
estreita mais a distância entre França e o Putumayo, e discute-se o
destino dos povos indígenas embriagando os ares em Paris com gotas
de champanhe. A chuva cai enquanto os índios do Putumayo
encontram-se aprisionados ao fetiche da mercadoria, uma chuva que
caminha até os riachos, unindo-se com as águas provenientes de
outros lugares “Putumayo”, até denominarem-se Amazonas,
avançando em direção ao mar, prosseguindo para encontrar-se com
aquelas gotas de champanhe, encontrar-se com as chuvas e as fontes
da onde emerge o capitalismo.

Ao mutilar, desmembrar e queimar os índios, ao queimá-los vivos,


envoltos na bandeira peruana encharcada de querosene, não estaria os
empregados da companhia empenhados na encenação ritual de seu
próprio mundo colonial? Não estariam desse modo reproduzindo seu
mundo repetidas vezes, contra a selvageria da qual seu mundo
dependia e da qual era, em conseqüência, cúmplice? Não estariam eles
afirmando seu lugar de conquistadores, sua função civilizadora e sua
aura de brancos providos de magia talvez ainda mais poderosa do que
a do deus Sol?”(TAUSSIG, 1993, 116).

As histórias criam, através de um realismo mágico, a sensação


do terror que dominava índios e brancos. Terror reproduzido pela
“idéia que os índios tinham da imagem que os brancos tinham deles e
da idéia que os brancos tinham da imagem que os índios tinham
deles”. Taussig nos está levando a pensar sobre o colonialismo através
da junção entre ficção, imaginário e real. São recortes de uma
realidade percebida por distintos atores, de uma realidade talvez
imaginada, talvez incerta. A dúvida traspassa ao texto.

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A dúvida destruía a certeza. As perspectivas eram tão variadas quanto


mutuamente destrutivas. O real era fictício, o fictício era real, e as
névoas que ressaltam do fulgor podiam ser uma força tão poderosa
para o terror quanto para resistência. Em um tal momento de controle
a própria claridade era enganosa e as tentativas de explicar o terror
mal podiam se distinguir das histórias contidas naquelas explicações,
como se o terror proporcionasse apenas explicações inexplicáveis de
si mesmo e, ao agir assim, florescesse (TAUSSIG, 1993, 132).

As narrativas do real e do imaginário de Taussig. Um abrir e


fechar de olhos que nos levam a despertar. Esse também é o efeito das
histórias contadas por John Dawsey (2006) no Jardim das Flores,
beirando a periferia de Piracicaba.
A escatologia do Jardim das Flores é um retrato, mas um
retrato que se apresenta em aberto. O lápis para delinear essa imagem
do real (ou o real da imagem) encontra-se em nossa interpretação.
Fala-se da morte, do fim, mas tanto a morte quanto o fim apontam
para um começo, para a vida. Não se trata de um retrato da realidade,
mas de como a realidade é percebida, sentida, imaginada. Um retrato
que não se encerra naquele momento, mas que nos convida a pensar
sobre a questão estrutural e capitalista onde estão inseridas as
histórias. Embora em nenhum momento Dawsey nos fale diretamente
do capitalismo ou exploração ou miséria, essas questões estão ali
presentes, nas entrelinhas do texto literário revestindo o corpo de uma
etnografia sobre as populações marginalizadas de Piracicaba. São
pessoas que vieram fugindo do Sertão do Norte de Minas, e aprendera
outro imaginário acerca da vida e da morte, outra relação com e para o
mundo. Uma imagem do real, do real fantástico cujas dimensões e
alcances das interpretações não estão propriamente definidos no texto,
mas dependem também da nossa relação com a vida, com a morte,
com o mundo, de como aquilo que somos nos possibilita entender (ou
não entender) o que as histórias nos dizem, num diálogo entre o eu e o
outro, a possibilidade desse abrir e fechar de olhos de que nos fala
Dawsey.

Uma caveira também pode fazer despertar entre vivos, em meio aos
sonhos, os seus desejos amortecidos. É preciso, apenas, saber
interpretar as suas piscadelas. (...) A piscadela marota de uma caveira
não deixa de espelhar o vazio (DAWSEY, 2006, 210).

A mesma sensação pode ser percebida quando o autor nos


leva a “cair na cana”, cujos personagens deste tornar-se um “bóia-fria”
são também moradores do Jardim das Flores. Com referencia a

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Benjamin, o texto de Dawsey (2005) irrompe como “imagens


dialéticas”. O “bóia-fria” traz a performance de si mesmo para o
cotidiano, uma performance cotidiana do espanto. Fecham-se os
olhos. Esse trabalhador, nem camponês nem operário, no balanço do
caminhão velho é levado aos canaviais. Corta a cana, a cana o corta e
nesse cortar embriaga-se com goles da água que arde. A água dessa
cana que ele trabalha. Mas o caminhão pode não seguir. De cima pode
vir a chuva que no Sertão de Minas era símbolo da floração da vida,
mas que agora era os indícios da fome. Se chover não há o corte da
cana, não há o “bóia-fria”. E se não é pela chuva, essa água que cai de
cima e não embriaga, então se interrompe o percurso a esperar o
caminhão novo transportar a cana já colhida. O caminhão novo, o
sonho de um carro, o álcool transformando-se em movimento, esse
mesmo álcool que a deixa parado, inscrito no cotidiano de cortar a
cana e por ela ser cortado. Abrem-se os olhos.

O bóia-fria é um pé-de-cana’, assim se dizia. A trajetória da cana vira


metáfora do percurso dos ‘bóias-frias’ que voltam do campo moídos;
‘pés-de-cana’ e ‘bóias-frias’ viram bagaço. O trabalho nos canaviais
produz um amortecimento dos sentidos, uma espécie de mortificação
do corpo, em estilo barroco, evocativa dos momentos extraordinários
de rituais de passagem. Mas, aqui, o extraordinário revela-se como
cotidiano. Algumas das encenações mais freqüentes de ‘bóias-frias’
em canaviais e carrocerias eram as de espantalhos e assombrações
(DAWSEY, 2005, 20).

“O extraordinário se revela como cotidiano”. Nas carrocerias


dos caminhões os “bóias-frias” provocavam a imagem de um “não-
não eu” e performavam o espanto de seu cotidiano. As fendas do real
são abertas. Dessas fissuras se revela o inacabado, o esquecido. E no
Jardim das Flores, as caveiras permanecem dizendo em silêncio.

O que nos perturba (...) é que a realidade transpirava através dos poros
da descrição e, por meio dessa transpiração, reafirmava o sentido da
descrição (TAUSSIG, 1993, 138).

Ao falar sobre o “real maravilhoso” Dawsey faz referência a


Alejo Carpentier, autor de “El Siglo de las Luces”. Neste romance
Carpentier (1985) busca discutir, por meio de um texto literário real e
ficcional, os significados e repercussões das ideologias iluministas e a
influência dos ventos da Revolução Francesa na América Latina. Cada
personagem é um pedacinho do imaginário presente no contexto
colonial do século XVIII. Trata-se, pois, de uma forte crítica, através

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do real maravilhoso, à incoerência dos ideais de Igualdade, Liberdade


e Fraternidade, daquilo que Aimé Césaire (2006) chamou de
pseudohumanismo. Nas linhas da ficção emergem as dimensões do
real. O homem é retratado. E por que não pensá-lo como texto
antropológico?

Esta vez la revolución ha fracasado. Acaso la próxima sea la buena.


Pero para agarrarme cuando estalle, tendrán que buscarme con
linternas a mediodía. Cuidémonos de las palabras hermosas, de los
Mundos Mejores creados por las palabras. Nuestra época sucumbe por
un exceso de palabras. No hay más Tierra Prometida que la que el
hombre puede encontrar en si mismo (CARPENTIER, 1985, p. 268).

Extraído de uma conversa entre os personagens (que poderia


ser considerada uma conversa entre ideais ou percepções da
realidade), nesse recorte é um “ser ficcional” quem fala, mas
percebemos as dimensões históricas e antropológicas que emergem de
seus significados. E aqui poderíamos novamente levantar a questão
proposta por Taussig sobre a dominação através da palavra, as
“palabras hermosas” os mundos criados pelas palavras e a forma como
através delas vemos o real ou o imaginário.
Pedro Páramo de Juan Rulfo (2008) é outro texto literário
que ultrapassa o âmbito da literatura assumindo significados
antropológicos. Nesse conto, Rulfo nos leva até Comala, povoado
incrustado no interior de um México desenhado pela erupção da
Revolução Mexicana. Os sentidos do conto, suas entrelinhas são
inacabadas. Estão sempre abertas as portas para novas interpretações.
O conto fala do homem, do poder, do esquecimento, do tempo, da
morte, da vida, uma grande metáfora para todas as Comalas existentes
na América Latina (ou, para os leitores de Gabriel Garcia Marques, as
Macondo), um lugar aonde o ocidente se encontra tão ausente que se
faz presente, uma revolução que não encontra espaço e sentido dentro
de um imaginário Outro. Uma revolução que passa, como um sopro,
entre os sussurros das vozes caladas pelo colonialismo.

Este pueblo esta lleno de ecos. Tal parece que estuvieran encerrados en el
hueco de las paredes o debajo de las piedras. Cuando caminas, sientes que
te van pisando los pasos. Oyes crujidos. Risas. Unas risas ya muy viejas,
como cansadas de reír. Y voces ya desgastadas por el uso. Todo eso oyes.
Pienso que llegará el día en que estos sonidos se apaguen (RULFO, 2008,
45).

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Oía de vez en cuando el sonido de las palabras, y notaba la diferencia.


Porque las palabras que había oído hasta entonces, hasta entonces lo
supe, no tenían ningún sonido, no sonaban; se sentían; pero sin sonido,
como las que se oyen durante los sueños” (Ibid, 52).

A poética e a literatura se abrem para a reflexão antropológica.


Numa história em que não se percebe a distinção entre o tempo dos
acontecimentos e a separação entre a vida e a morte, Rulfo transmite
também na forma como constrói a estrutura do texto o imaginário do
ser que está descrevendo, narrando. É através do real maravilhoso que
percebemos as cores das linhas da realidade que se pretende
descrever.
Como último exemplo, lembro o poema Morte e Vida Severina
de João Cabral de Melo Neto (1989). Assim como muitas Comalas,
existem muitos Severinos, retirantes do Sertão, seguindo o leito do rio
que secou e encontrando-se a todo o caminho com a morte.

− Desde que estou retirando


só a morte vejo ativa, só a morte deparei
e às vezes até festiva;
só morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de vida Severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais Severina
para o homem que retira) (MELO NETO, 1989, 79).

Delineiam-se os reflexos de uma realidade: a seca, o latifúndio,


a ponte que chama para que se pule da vida. Mas quando se fala da
morte, também se fala da vida, a criança que nasce e as boas visões do
futuro, fazendo brotar da pedra a esperança, e a esperança que antes é
resistência, resistência pela liberdade, movimento dos passos amarelos
do retirante que busca os caminhos do mar.
Walter Benjamin (1985) sugeriu que a narrativa não se entrega,
no sentido de que conserva suas forças e que ainda depois de muito
tempo é capaz de se desenvolver¹. As três obras literárias aqui
lembradas ainda encontram espaço na nossa realidade, suas
interpretações ou representações encontram-se abertas aos tempos e
aos espaços sociais: as questões importadas presentes em nosso
universo social e cultural; as “Comalas” que existem como os grupos
indígenas, camponeses e quilombolas incrustados no continente,

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lutando pelas terras, pela legitimidade de sua existência, sussurrando


no mutismo em que insiste o capitalismo; as “Comalas” conhecidas
como favelas, villas, e talvez Jardim das Flores; os “retirantes” que
preenchem as ruas de São Paulo, os bolivianos, paraguaios e peruanos
em Santiago e Buenos Aires, os latinos na Europa ou na América do
Norte. São, pois, como aludiu Benjamin, narrativas cujas explicações
se estendem.

Ela [a narrativa] se assemelha a essas sementes de trigo que durante


milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das
pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas
(BENJAMIN, 1985).

A narrativa, segundo o autor não busca transmitir o “puro em


si” do narrado. Assim como o oleiro deixa sua marca na argila do
vaso, a narrativa, enquanto forma artesanal de comunicação também
traz as marcas de seu narrador, seja na qualidade de quem as viveu ou
de quem as relata. Fica a incerteza com relação ao caráter dessas
marcas. Traspassando o âmbito do narrador artesão, do ator da história
oral, e pensando a representação de outras culturas, outras formas de
estar no e com o mundo, o que significa escrever o real fantástico ou a
etnografia? O que significa representar o Outro? Dele falar? Acredito
que a questão ultrapasse a “autoridade etnográfica” de que nos fala
James Clifford.
Jeanne Favret-Saada (2005) toca na sutileza da relação que
aquele que narra estabelece com aquele que é narrado. A autora fala
de um deixar-se afetar, aceitando o risco de pôr tudo a perder. Não se
trata de uma forma intencional de conseguir o material sobre o qual se
deseja falar, mas de estabelecer uma relação de sujeito para sujeito
que vai além da questão da empatia, que segundo a autora, todavia,
mantém um distanciamento, e de um passar a acreditar no que se esta
conhecendo. Talvez o “afetar-se” seja mais que uma chave de entrada
para outro universo social e cultural, seja também o ingrediente
necessário para falar do outro transmitindo também a sua poética e
não a mera descrição de sua existência.
E então quem se deixa afetar, talvez passe a entender ou sentir
o mundo do Outro desde aquilo que o Outro é, ou mesmo percebê-lo
desde outro lugar, que não da empatia ou do exótico. Fecham-se os
olhos e volta-se a abrir. E as imagens da realidade (ou do imaginário)
já não são mais as mesmas. E como representar o que se viu?

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Marco Antonio Gonçalves (2008) ao tratar sobre “Eu, Um


Negro”, filme de Jean Rouch, sugere o imaginário como caminho para
se contar o que não poderia ser contado de outra forma. Em Rouch, o
recurso imagético é utilizado como meio literário para retratar a vida
de imigrantes nigerianos na Costa do Marfim. Mistura-se sonhos,
imaginário, ficção e nessa amálgama desenha-se a realidade que os
personagens desejam narrar.
Nesse sentido, o autor nos ajuda a pensar no imaginário
enquanto construtor da realidade ou pelo menos um discurso sobre ela
e nos lembra dessa forma dicotômica Ocidental de pensar
objeto/sujeito, eu/outro, real/ficção. A crítica de Lévi-Strauss (em
Gonçalves, 2008) a Rouch se centra na produção da verdade. Mas
antes de pararmos a pensar em como representar essa verdade,
deveríamos nos questionar o que é essa verdade, essa idéia de captar o
mundo como uma objetividade. Seria mesmo objetivo o mundo a
ponto de podermos retratá-lo sem os recursos imaginários?
Se concebermos a percepção que temos do mundo como uma
amalgama entre real e imaginário, Gonçalves sugere que ao invés de
querermos espelhar a realidade social, devamos propor interpretações.
Pois, lembrando a Benjamin, não é a “coisa-em-si” o que importa, mas
as imagens dela. Talvez, a verdade do mundo seja inatingível porque
quando o olhamos, também o (re) produzimos com aquilo que temos
dentro de nós, moradores de um mundo de um real profundamente
imaginado.
No entanto, essa impossibilidade de alcançarmos a verdade do
mundo, não deve ser tomada como um conseqüente impedimento de
estarmos falando sobre o mundo ou sobre o Outro, ou ainda sobre nós
mesmos. Talvez pensarmos em verdades, em representações, ou
pensarmos nas “imagens dialéticas” de Benjamin como um convite a
estar com o mundo refletidamente (no sentido de refletir enquanto
pensar e não enquanto simplesmente espelhar, ser reflexo).
A literatura atuou dessa forma em inúmeros momentos da
história atrelando ficção, imaginário e realidade. E talvez a etnografia
também o tenha feito somando o trazer, o apresentar, o comunicar o
Outro para nós e para o Outro e o nós para o Outro e para o nós.
Sutil é a linha que separa etnografia e literatura. Embora
alguns trabalhos estejam bem longe dessa margem: uma etnografia
dura, ou uma literatura que não diz nada.
Ao produzirmos etnografia (e essa análise também se estende à
literatura) talvez seja importante ainda pensar qual o seu propósito e a
quem ela serve, lembrando que a antropologia surgiu em um contexto

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colonial e durante muito tempo legitimou a depreciação e o extermínio


dos chamados “primitivos”.
Para finalizar, penso que transcender os significados das linhas
descritivas da etnografia é apresentar um recorte do mundo utilizando
os recursos de outras linguagens. Embora Pedro Páramo não seja
considerado um texto etnográfico, nos aproxima do Outro. E não são
somente as palavras que falam, mas a própria forma como o texto se
estrutura. As páginas do conto convidam a ler Comala e os
personagens desde outro imaginário social e concepção de mundo. Ler
o Outro através do Outro. Quando Taussig sobrecarrega o leitor de
eventos incertos, está também transportando aquele mundo que ele
descreve para o alcance de nossas mãos. O literário que nos faz abrir e
fechar os olhos.

Nota

1. Aqui não desenvolvo a diferença proposta por Benjamin entre


narrativa e romance, onde o segundo marcaria a morte da narrativa e
representaria o indivíduo isolado do início do período moderno.
Recorto apenas algumas idéias do autor para pensar a antropologia e a
literatura e considero como narrativas tanto os textos antropológicos
como o conto, a novela e o poema aqui citados.

Referências

BENJAMIN, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de


Nikolai Leskov. In: Magia e Técnica, Arte e Política, Ensaios sobre
literatura e história da cultura. Obras Escolhidas, v. 1. Brasiliense,
1985.

CARPENTIER, Alejo. El Siglo de la Luces. Barcelona Seix Barral,


1985.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre el colonialismo. In: Discurso sobre


el Colonialismo. Madrid: Ediciones Akal, 2006.

DAWSEY, John. O teatro dos “bóias-frias”: repensando a


antropologia da performance. In: Horizontes Antropológicos, Porto
Alegre, ano 11, n. 24, 2005.

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DAWSEY, John. Piscadela das Caveiras: Escatologia do Jardim das


Flores. In: Tempo Social, 2006.

GOLDMAN, Márcio. Jeanne Favret-Saada. In: Cadernos de Campo,


2005.

FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Tradução de Paula Serqueira,


Revisão Tânia S. Lima. In: Cadernos de Campo, 2005.

GONÇALVES, Marco Antonio. Ficção, Imaginação e Etnografia: A


Propósito de Eu, Um Negro. In: O Real Imaginado: Etnografia e
Surrealismo em Jean Rouch. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.

MELO NETO, João Cabral. Morte e vida severina e outros poemas


em voz alta. Rio de Janeiro José Olimpio, 1989.

RULFO, Juan. Pedro Páramo. El llano en llamas. 4.ed. Buenos


Aires: Booket, 2008;

TAUSSIG, Michael. A imagem do auca: ur-mitologia e o modernismo


colonial e O espelho colonial da produção”. In Xamanismo,
Colonialismo e o Homem Selvagem: um estudo sobre o terror e a
cura. Paz e Terra., 1993.

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