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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA

A construção da "descanção" de
Tom Zé

Altaila Maria Alves Lemos

Fortaleza-Ce
2006
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ALTAILA MARIA ALVES LEMOS

A CONSTRUÇÃO DA “DESCANÇÃO” DE TOM ZÉ

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Lingüística da Universidade
Federal do Ceará, como requisito final para
obtenção do título de Mestre em Lingüística.
Orientador: Prof. Dr. Nelson Barros da Costa

FORTALEZA
2006

2
Esta dissertação foi submetida ao Programa de Pós-Graduação em Lingüística como
parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Mestre em Lingüística,
outorgado pela Universidade Federal do Ceará, e encontra-se à disposição dos
interessados na Biblioteca de Humanidades da referida Universidade.

A citação de qualquer trecho da dissertação é permitida, desde que seja feita de acordo
com as normas científicas.

_____________________________________
Altaíla Maria Alves Lemos

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Nelson Barros da Costa – Universidade Federal do Ceará
(Orientador)

_______________________________________________________________
Prof. Dr.
(1º Examinador)

_______________________________________________________________
Prof. Dr. – Universidade Federal do Ceará
(2º Examinador)

_______________________________________________________________

Profª Drª – Universidade Federal do Ceará


(Suplente)

Dissertação defendida e aprovada em ___/___/_____

3
Engrandecimentos

Ao meu querido e sempre André, por me seduzir a escrever com vida,


morando ao meu lado.
Ao amigo e companheiro Talvanes, por confessarmos um ao outro nossos
desassossegos em conversas harmoniosas e angustiantes ao telefone.
Ao Nelson Costa, por ter sido delicado, compreensivo, amigo e orientador em
vários momentos desse percurso.
Ao grupo Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais, por propiciar a expansão de
questões e pesquisas literodiscursivas.
À professora Bernadete Biasi, por no início do curso ter me aceitado, à
distância, como sua orientanda, embora eu não tenha continuado sob sua
orientação.
À professora Mônica Cavalcante, por sua afetuosa atenção em momentos que
esteve em risco o caminhar no mestrado.
Ao carinhoso, amigo e professor Júlio César, por sua força espiritual ao me
incentivar e me ajudar no processo de seleção do Mestrado com o empréstimo
de livros e com suas idéias.
Ao Washington, por nossas conversas sutis sobre Tom Zé e sobre outras
canções.
À professora e coordenadora Márcia Nogueira, por sua postura serena ao lidar
conosco e com as nossas pendências no Programa e por nossas trocas de
comentários e empolgações cinematográficas.
Aos sobrinhos meigos Diego, Juninho, Ingrid, Lia e Ayla, por expressarem o
bonito desejo constante de viver.
Ao meu outro sobrinho Renan Poeta, por perceber, antecipadamente uma das
características da natureza humana ao afirmar que “ todas as pessoas são
misturadas” e que “a viagem é a vida da gente”.
Às minhas irmãs Altair, Rosângela e ao irmão Ivanildo, pelas reais e
saudáveis divergências existentes entre nós; e aos amigos primos Luis Alves e
Mirian pela força constante.
À minha Mãe Ozana, por sempre tentar me compreender e me acompanhar do
seu modo.

4
À amiga afetuosa Luanda, por seu sincero companheirismo e por sua força em
distribuir energia de ativação.
E aos demais amigos (próximos e distantes) que foram sinceramente amigos
em momentos sensíveis desse percurso: Isabel Silvino, Felipe, Ana Cláudia,
Robério Augusto, Dona Ercy, Carmen Silva, Lêda, Grazi, Júlio Lira, Andréia
Mary e mais outros dos quais me lembrarei depois.

Ao programa de Pós-Graduação em Lingüística, à Laura e à Antônia.

À FUNCAP, por financiar este trabalho.

5
Á minha família

6
RESUMO

Este trabalho pretende discutir os modos do compositor baiano Tom Zé


se inserir no mundo através de uma quantidade significativa e qualitativa de
canções1. A partir da análise de investimentos discursivos, ou seja, das
maneiras do quê e do como se diz ou se faz dizer sua construção
literodiscursiva. Focalizamos alguns pontos, como modos do compositor se
posicionar diante da mídia fonográfica, valores estéticos musicais. Utilizamos
como referencias teóricos algumas categorias da Análise do Discurso, segundo
Dominique Maingueneau (códigos de linguagem, ethos, cenografia, paratopia),
os conceitos grotesco e carnavalização de Mikhail Bakhtin, além de outros
autores. Discutimos, portanto, que efeitos de sentidos geram os investimentos
na canção, os quais nos levaram a pensar na idéia de uma descanção.

Palavras chaves: canção, investimentos discursivos, descanção.

1
Dos álbuns:

Zé, Tom. Estudando o Pagode. 2005.


Zé, Tom. Jogos de Armar- Faça você mesmo. Trama, 2002
Zé, Tom. Série dois Momentos Vol. 15 (Relançamento do Cd Estudando o Samba, 1975, e de O Correio
da Estação do Brás, 1978). Continental, 2000.
Zé, Tom. Série dois Momentos Vol. 14 (Relançamento em cd de Estudando o Samba, 1972, e de Todos
os olhos, 1973). Continental, 2000.
Zé, Tom. Com defeito de fabricação. Luaka Bop/WEA, 1998. Trama, 1999.
Zé, Tom. No Jardim da Política (ao vivo em 1984 no Teatro Lira Paulistana) – Independente, 1998.

7
ABSTRACT

This work intends to discuss the ways the composer from Bahia Tom Zé
paths the musical community in order to picture a relevant amount of popular
songs. This point must be aimed through the analysis of discoursive traces, i.e.,
the way he says and is said in the literomusical community. We focused some
points: the way he faces the media and some esthetical values. Our theoretical
basis is the Discourse Analysis (A.D.), according Dominique Maingueneau
(language codes, ethos, cenography, paratopia), the concepts of grotesque and
carnavalization, according to Mikhail Bakhtin, and some other authors. We
discussed, then, what effects of meaning generate the author’s traces in the
song activity, what makes us think of what we call a “non-song” (“descanção”).

Key-words: song, discourse, non-song

8
Índice

INTRODUÇÃO----------------------------------------------------------------------------------10
CAPÍTULO l
O processo do trabalho --------------------------------------------------------------------17
Percurso teórico: trilhas e labirintos discursivos---------------------------------------21
Traços Constitutivos da Linguagem: do princípio dialógico ao Interdiscurso---23
A construção da Enunciação----------------------------------------------------------------25
Descanção e Deslinearização--------------------------------------------------------------30
A voz que alimenta a voz--------------------------------------------------------------------37
A performance na canção-------------------------------------------------------------------38
Movimento de Instabilidade na canção: uma condição paratópica---------------40
O ser grotesco e carnavalizante-----------------------------------------------------------42
O Caminho de chegar e não-chegar: percurso do como dialogar com as
canções-------------------------------------------------------------------------------------------45
CAPÍTULO ll
Apresentação e contextualização: Tom Zé----------------------------------------------48
CAPÍTULO III
Ressonâncias e desformas da canção: Descancionando por entre rasuras e
imagens grotescas-----------------------------------------------------------------------------54
Deslineariazação e defeitos verbais ------------------------------------------------------53
O defeito: problema e perfeição------------------------------------------------------------55
Ser estavelmente paratópico num lugar de entre lugares---------------------------64
A reinterpretação ou releitura: o inacabamento ou efeitos de descanção----66
Jogos para desmontar e armar------------------------------------------------------------68
Embates entre posicionamentos discursivos -----------------------------------------78
A construção de cenografias na canção, da cidade longínqua para uma grande
cidade---------------------------------------------------------------------------------------------83

Apenas uma tentativa de conclusão------------------------------------------------------92

Referências Bibliográficas-------------------------------------------------------------------94

Anexos--------------------------------------------------------------------------------------------97

9
INTRODUÇÃO

O que nos trouxe verdadeiramente aqui foram resquícios tocantes,


desses tão recentes e tão distantes que transformavam corpo em música. Dos
tão distantes, tratava-se de ondas inesperadas e oscilantes causadas por
Jimmy Page, guitarrista do grupo musical de rock Led Zeppelin, o primeiro
escutado por mim, por intermédio de um amigo chamado, guitarristicamente2,
Beto. No momento da escuta, as distorções de timbres sonoros se expandiam.

Isso foi o longo começo que me levou a um lugar, bateristicamente


falando, de transtornadas e distintas ondas musicais (compositores e ritmos),
ao lado de amigas (Ana Cláudia, Andréia e Denise). Reuníamo-nos
semanalmente para tocar e ouvir, no formato do grupo musical intitulado Dress.
A partir dele, nós nos movíamos em ondas, sendo cada uma delas de
diferentes timbres, tocados em uma nota só. Juntas, seguindo estrada e
estradas de palcos periféricos, chegamos num lugar comum, onde todos
tocavam e se tocavam, ao ponto de destocarmos e desenlaçarmos nossas
cordas.

Foi nesse fim e chegada que se iniciou novo caminho, descortinado pelo
outro: o caminho de nova vitalidade musical, de uma música com outros
significantes e significados, sugerindo-nos, até então, a novidade de um olhar
dedicado ao significar amplo. Não era só a descoberta do par instrumento e
voz, era muito mais complexo e triplo.

Foi quando escutei e vi com meus “próprios olhos” um corpo, uma voz
estranha, arranhada e familiar em “língua nordestina”, um tanto bem humorada
e irônica num palco pertencente a várias línguas que falavam simultaneamente.
Foi nesse lugar que vi pela primeira vez Tom Zé cantando, no ano de 2004, no
festival Vida e Arte. Tardiamente ou em circunstâncias ideais? Tomo as duas
opções como verdadeiras.

2
Palavra incorporada por Rogério Duarte no livro Tropicaos. O qual é autor e artista múltiplo (design
gráfico, compositor, poeta, professor, compositor e um dos membros experienciador do evento
Tropicalista).

10
Foi esse o momento de transição: a mudança de um antigo objeto de
pesquisa de mestrado, a escrita de si no gênero textual virtual blog para uma
escrita de si e de vários outros, na linguagem do gênero musical canção.

Vi aí possibilidades de se ouvir música em outro lugar, além de ouvi-la


no palco. Senti a canção, em seu sentido amplo: modos de habitar o mundo,
através de uma língua e de línguas, de uma construção estética, contaminada
de valores culturais; e em seu sentido restrito: a música no gênero específico, o
cancional, letra e som, palavra e instrumentos em um só corpo.

Percebi palpavelmente a inquietude que sua canção me proporciona,


observando nela inquietações metamusicais e socioculturais.

A palavra cantada já se tornava precária frente a gestos e expressões


sem palavras verbais que deixavam pistas para construirmos teias de relações
entre seu discurso e outros. Foi aí que vi o não dizer sendo dito, de algum
modo, o verbo e in-verbo enlaçados.

O interesse em estudar música no ambiente acadêmico também foi


influenciado pela disciplina “Tópicos em Análise do Discurso”, cursada no
Mestrado em Lingüística da Universidade Federal do Ceará, no período de
2004-2. Essa foi ministrada pelo professor e doutor Nelson Barros da Costa,
amigo afetuoso, meu orientador. A partir desse período, discuti com ele
possibilidades de se estudar música, o que resultou no seu apoio e dedicação,
pacientemente, durante os processos de mudanças de ordens teórica, afetiva e
psicológica, ocorridas ao longo do curso de mestrado.

Foram esses aspectos que me levaram a investigar Tom Zé. Ao lado de


um amigo musical, singularmente tão presente em aula e em fora de aula, e tão
inquieto quanto Tom Zé, chamado um tom Talvanes.

Assim, logo surgiu a idéia de dialogar com o discurso literomusical de


Tom Zé, aliado às inquietações que percebi na sua música: o modo de se
posicionar diante do público, quanto às questões referentes ao fazer cancional,
ao diálogo com o outro, seu exterior; questões políticas, questões da linguagem
verbo-musical, as quais nos suscitavam efeitos de sentido.

A desconstrução musical, a problematização da vida, a apresentação e


representação realistas de um mundo conflituoso são tomadas em suas

11
canções, surgidas em experimentações rítmicas e verbais num corpo
cancional. Foi através da percepção e da ruminação de tais elementos que
apontamos e refletimos sobre investimentos discursivo e interdiscursivo, ou
seja, maneiras de habitar e desenhar canção. Inspiramo-nos na idéia de
descanção, que é um modo de se comportar e de se afirma a canção.

Segundo Zé (2003), a canção é sentida como um acontecimento natural,


no correr do tempo, num contratempo, é como um dia atravessando uma vida,
numa improvisação. A canção é experimentada a partir de um corpo cancional,
chamado de “útero cósmico”, de “montanha virgem” e “corpo de pedra” (ZÉ,
2003, p.24), sendo encontradas lá possibilidades de construção, a partir de
pedaços de notas musicais gravadas, guardadas em gavetas.

Aliadas ao corpo cancional, tem-se a problematização ou “doenças” da


vida, compreendida por nós como as marcas que apontam para a condição
instável do indivíduo, de ser e não ser, de estar e não-estar. Estudar e divagar
um pouco, portanto, sobre a canção de Tom Zé é conversar com as entranhas,
brechas e fissuras que a vida gera.

Ao realizarmos um percurso sobre seu trabalho musical, encontramos


relatos documentais e biográfico em Campos (1993), em Calado (1997), em
Sanches (2002) e Zé (2003). Lemos o trabalho biográfico escrito pelo Tom Zé3,
no qual são relatados histórias de vida do músico e sua participação na eclosão
do movimento Tropicalista. O conteúdo do livro apresenta descrições
biográficas, uma longa entrevista com Luís Tatit4, seção do livro que mais nos
interessa, na qual nos detemos, e mais as letras de canções até então
realizadas. Tom Zé relata os primeiros envolvimentos com a música, na sua
cidade natal Irará, Bahia5.

Há também algumas críticas com relação à sua participação no


movimento tropicalista, segundo Tatit (in Zé, 2003). Através desse relato,
investigamos como se deu seu relacionamento com o tropicalismo, em que
Tom Zé se torna um tropicalista e um não tropicalista ou um outro tropicalista.

3
Tropicalista Lenta Luta.
4
Lingüista e estudioso da semiótica musical.
5
Apresentamos detalhes sobre esse assunto mais adiante, no capítulo III: apresentação de
Tom Zé.

12
Campos (1993)6 realiza uma revisão da história da música popular
brasileira referente aos movimentos Bossa Nova e Tropicalismo. Discute as
origens e posturas política e musical de ambos os posicionamentos. Com
relação aos músicos e compositores do primeiro, cita João Gilberto; e do
segundo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, dentre outros, e no
posfácio cita Tom Zé. O autor atribui a ele o caráter de baiano esquecido ou o
“menos conversado” no contexto do tropicalismo. A partir de uma breve
observação sobre suas canções, compara o compositor a um “trovador que
sabe fustigar um bom tom e fundir palavra e som” (CAMPOS, 1993, p. 335).
Tal comentário pressupõe que Tom Zé, de certa forma, tem uma repercussão,
mesmo que aparentemente discreta. Embora toquemos nessa relação, não
desejamos, necessariamente, saber a intensidade de sua participação no
tropicalismo, mas as implicações de sua canção influenciadas por esse
movimento.

Calado (1997) narra sobre a infância e adolescência de Tom Zé e suas


influências musicais. Segundo o autor, o gênero baião de Luiz Gonzaga, os
xaxados de Jackson do Pandeiro, aliados aos cantores de rádio nacional mais
o folclore da região de Irará (BA) e as cantigas de violeiros e os sambas de
rodas das lavadeiras constituíram as inspirações do baiano. Percebemos aí
uma dada ausência de trabalho mais consistente com relação à música de
Tom Zé, a preocupação de Calado, portanto, não passa de uma curiosidade
biográfica e musical, um tanto discreta, talvez. Tal fato enfatizou a
necessidade de nós adentrarmos na sua canção.

Com relação à figura do compositor Tom Zé, não presenciamos um


estudo específico. Apenas o trabalho autobiográfico a que já nos referimos
acima (ZÉ, 2003).

Nos primeiros sinais de composição, ao ser bloqueado pela presença


da namorada, resolve se reconstruir como compositor, relendo seu processo
de criação, impondo-se as seguintes metas para reinvenção de seu trabalho:
mudar o tempo do verbo (mudar o tempo das construções verbais da canção,
do pretérito passado para o presente do indicativo); trocar o lugar no espaço-o
lugar (mudar de lugar, sair da cidade natal, Irará, em busca do lugar que lhe
6
“Balanço da bossa e outras bossas”

13
beneficiasse musicalmente); achar um novo acordo tácito(usar “assunto-
espelho” na canção cujo personagem construído fosse uma representação da
vida e circunstância do ouvinte); limpar o campo(não usar um corpo–cancional,
o canônico, mas plasmar a cantiga com outra matéria)( ZÉ, 2003, p. 24).

Ao debruçarmos sobre a produção musical de Tom Zé, não podemos


deixar de lado sua participação no contexto do movimento estético ideológico
Tropicalista7. O movimento que questionou valores culturais, nacional
brasileiros e internacionais, revelou-se num episódio de subversão de
costumes, que pôs à mesa as contradições de uma sociedade burguesa e o
caos do mundo pós-moderno (o homem e o aglomerado de veículo de
informações). Expressou-se em vários âmbitos de manifestação artística, como
na literatura, no cinema, nas artes plásticas e principalmente na música.

Na música, por exemplo, a ideologia tropicalista é construída através da


integração dos movimentos e gestos do corpo ao canto e à fala, através da
multissemiose de elementos verbais, resultante da carnavalização ou da
inversão de hierarquias (morfológica, sintática e semântica), bem como não-
verbais (gestos, performances, a relação do corpo com objetos). Com relação à
inserção do corpo na música, Barthes (apud Favaretto 2000:37) observa:

A inscrição do corpo na substância viva do som tenciona a língua


cantada, levando ao ultrapassamento dos fenômenos decorrentes de
sua estrutura, como estilos de interpretação, idioletos dos compositores,
mudanças rítmicas, variações de timbres .

A música de caráter tropicalista reconstruiu, desse modo, a noção de


música, dialogando com as transformações cultural e industrial da época,
relendo os costumes tradicionais, causando um curto-circuito na estrutura de
canções até então construídas.

7
Termo idealizado pelo artista plástico Hélio Oiticica para designar um ambiente Tropicália ou
um penetrável, conjunto de cabines que o espectador explorava pisando em areia, pedra e
água, cruzando plantas e araras, lendo frases inscritas em paredes, assistindo a uma tv ligada
no fim do labirinto, caminho teleológico rumo ao pós-moderno. Depois, Gilberto e Caetano se
apropriaram do termo para traduzir as subversões de valores na música, literatura, dentre
outros ambientes.

14
Há outra visão relacionada ao seu envolvimento com o Tropicalismo, de
acordo com Tatit (apud Zé, 2003, p. 223-225). Trata-se da idéia de que o
projeto musical de Tom Zé, o da busca da imperfeição, da incompletude, da
descanção (plasmar a canção com outros elementos) foi movido pelas
angústias calcadas na necessidade de uma nova canção.

Postura diferente dos idealistas centrais tropicalistas, que visavam a


uma canção popular, nova, acabada, pronta para se tornar pop. Tatit (in ZÉ,
2003: p. 223-225) afirma que o aspecto em comum entre Tom Zé e o
Tropicalismo era a busca de uma música nova, mas com viés oposto.

Ao considerarmos tais posturas, não pretendíamos negá-las ou afirmá-


las, mas investigá-las, penetrando mais nas imagens, nas fendas que o som
das palavras cantadas e faladas de Tom Zé produz, construindo assim, uma
terceira visão do que venha ser ou não ser tropicalista.

Portanto, levando em consideração sua relação com o posicionamento


ideológico tropicalista e sua construção discursiva literomusical, partimos de
duas visões diferentes, uma que insere Tom Zé integralmente e outra que o
afasta desse posicionamento ideológico. A primeira refere-se à idéia de
Sanches (2002) que o considera, de certa forma, um tropicalista puro, de
esquerda, que se opõe à indústria cultural, deixando-se levar até as últimas
conseqüências. Mas, o que seria “tropicalista de esquerda”? É estar isolado da
mídia? Mesmo quando estava isolado (aproximadamente entre os anos 70-80),
ele produzia e estudava música. E hoje, início da primeira década de 2000,
podemos afirmar que ele é um tropicalista de esquerda?

Dentre tantas irregularidades, onde e como ver uma possível ordem do


caos na obra musical de Tom Zé, levando em consideração o posicionamento
Tropicalista que o gerou? E hoje que posicionamento ele assume?

Paralelamente ao nosso olhar contemplativo e de espanto diante da


música de Tom Zé, integrou-se a ele a visão teórica da Análise do Discurso, de
Dominique Maingueneau. Essa teoria observa no discurso o lugar de inúmeras
relações entre um discurso e outro, nos quais pressupõem-se posicionamentos
de caráter ideológico (como também estético, lingüístico e cultural) do

15
enunciador. Um outro aspecto a se notar é como se dá a condição de
existência, social, institucional do artista músico, escritor, cineasta, artista
plástico? Como ele se encontra diante de normas e convenções impostas pelo
campo artístico? Como o artista convive com outros em espaços públicos?

Ao investigarmos tais questões, utilizamos do autor Dominique


Maingueneau o conceito de paratopia, que designa a ocupação de um lugar
instável do artista no campo artístico. E outros tais como ethos e cenografia.

Trazer para o palco questões estéticas e sócio-culturais que


colaboravam para uma incessante construção musical e para uma releitura do
lugar no qual nós estávamos e desconhecíamos é a própria revitalização de si,
da música e de nossas relações com as políticas cotidianas e com as mais
burocráticas. Desse modo, tornou-se relevante pensar sobre tais questões no
referido trabalho.

O trabalho se inicia com um breve pensar sobre o processo do caminhar


com a pesquisa acadêmica. Em seguida, há a apresentação de elementos
teóricos centrais referentes à idéia do signo dialógico da linguagem verbal, aos
conceitos grotesco e carnaval, na perspectiva de Bakhtin (1997,1999), à
Teoria da Análise do Discurso segundo Maingueneau (2001, 2004), à idéia de
código apriorístico da linguagem de acordo com Campos(1993), de descanção
segundo Tom Zé, de inacabamento e performance vocal segundo Zumthor
(1998, 2001), e deslinearização de acordo com Pingnatari (2004). Ainda nesse
primeiro capítulo, relatamos o processo de desenvolvimento do trabalho ou o
caminho de chegar e não chegar: percurso do como dialogar com as canções.

No capítulo segundo, apresentamos um histórico sobre a vida e contexto


do qual emerge o músico Tom Zé.

No capítulo terceiro e último iniciamos a leitura e análise das canções,


seguido o mesmo das conclusões e referências bibliográficas.

16
CAPÍTULO 1

1. O PROCESSO DO TRABALHO

Iniciar uma pesquisa acadêmica, ao nosso olhar, é se permitir descobrir-


se no percurso do trabalho, é surpreender-se no processo de descoberta ou de
redescoberta, sentindo os objetos, espiritualmente e materialmente, para criar
sempre um novo objeto. Mas difícil mesmo para nós foi estar em processo de
alienação, como determinadas tendências científicas certamente desejam, no
qual o ser humano se afasta de sua real natureza, que é exterior à sua
dimensão espiritual, colocando-se como uma coisa, uma realidade material,
objeto da natureza. Nesse sentido, alienar-se é isolar-se da própria vida ou
ignorar o tumulto que a vida gera, cotidianamente, em nós. Apesar de
admitirmos o caráter de alienação no trabalho científico, não atribuímos a este
o mesmo. Interpretamos nesta pesquisa um trabalho que se move e cresce a
partir de uma entrega de si num diálogo que se constrói com olhares de uma
perspectiva teórica e o do pesquisador sobre o objeto.

Portanto, acreditamos que o trabalho, o presente, que se deixa levar ou


arejar-se por interferências cotidianas da vida, por formas disformes de viver,
não se torna alienado, por vislumbrar a relação entre várias possibilidades de
olhar. O cruzamento do olhar científico com o filosófico talvez seja o que se
interessa pela vida? Talvez sim. Talvez não. Depende da posição
epistemológica que se assume. Por que a pesquisa científica numa tendência
positivista exige, ou tenta impor, de algum modo, um olhar que não se deixa
interagir com outros, mesmo sabendo nós que num olhar há um outro e outros?

Portanto, a nosso ver, produzir um trabalho de pesquisa acadêmica,


tendo como eco a idéia de alienação, da submissão espiritual e vital em
prioridade ao objeto, foi difícil e delicado. Mesmo assim, acreditamos e
estamos construindo outros ecos.

17
Em resistência a essa angústia e à crença num novo fazer, tentamos e
insistimos em conversar, ouvir, ler e interpretar, sem deixar de apreciar, as
canções do compositor Tom Zé.

Pois, em nossa percepção, Tom Zé, ao assumir um lugar de compositor


musical, revela-nos através de sua fala musicada angústias tristes e felizes da
vida, ou seja, formas disformes e gelatinosas que, verdadeiramente, compõem-
nos. Traço esse que muito nos instiga e nos move a estabelecer uma relação
de proximidade entre o “interior” e o “exterior” de sua música. Vendo como se
dão os significados dessa aproximação e relação. Isso é o que chamamos sem
querer chamar, de análise discursiva de um texto, do verbal ao não-verbal.

Mas como tentamos chegar até sua música? Existem inúmeras


maneiras de olhar para ela e de falar com ela: através da Historiografia,
Etnografia, Sociologia, Antropologia, Filosofia, Lingüística, Musicologia e de
outras maneiras. Dentre esses possíveis olhares, optamos por um que, talvez,
permita a integração de vários: o olhar discursivo da linguagem cancional.

Olhar discursivamente é levar em consideração contextos interiores e


exteriores a um texto, sendo esses lingüístico, histórico, social, filosófico,
cultural, ou a integração de todos num “pancontexto”, diríamos.

A idéia de discurso corresponde a várias acepções diferentes entre si,


das mais elementares às mais complexas. Optamos pela concepção de
discurso no sentido mais amplo, como uma dispersão de textos que se
encontram e dialogam a partir de marcas textuais explícitas ou não.

O olhar discursivo está em circunstâncias de comunicação verbal e não


verbal, desde que se perceba a rede de ligações que há entre uma fala e outra,
entre seu interior e seu exterior. Há na canção, como em outras linguagens,
musical e não-musical, um entrelaçamento de teias de significados que se
cruzam aleatoriamente, não sendo possível saber onde se inicia e termina esse
cruzamento.

O estudo da linguagem numa perspectiva discursiva diferencia-se da


perspectiva unicamente lingüística na medida em que a primeira dialoga com

18
seu exterior, permitindo aberturas à percepção de traços vertiginosamente
históricos, filosóficos, sociais, ideológicos entre um discurso e outros, para
além dos traços da materialidade da língua. Ou seja, uma análise discursiva
textual de linha francesa não separa o seu exterior (o social, o cultural,
histórico, dentre outros) do seu interior (o material lingüístico). Já na segunda
perspectiva, uma análise essencialmente estruturalista efetua cortes, rupturas,
preocupando-se primordialmente com a gramática da materialidade lingüística.

A relação que se constrói nessa análise é interna, se dá entre seu


interior e seu “outro” interior vizinho, num sistema ou arquitetura fechada,
isolada da possibilidade de intervenções externas. Já a análise discursiva tenta
arejar a estrutura fechada.

Nesse sentindo, a Análise do Discurso de linha francesa visa


concretamente, debruçar-se sobre a arquitetura de prédios habitados, que
trazem à tona seus significados. Um olhar discursivo percebe a cidade em sua
dinâmica, ou seja, a pulsação ecológica que ela constrói com seus habitantes
em múltiplas cartografias.

Tomando como referência o sentido de discurso na arquitetura de


prédios, vemos na canção que o olhar discursivo se realiza através da
interação e dinâmica de ritmos, melodia, arranjos, vozes, tons, timbres e
silêncio. Onde aí também encontramos a pulsação ecológica e múltiplas
cartografias que nos levam a diferentes lugares sócio-culturais, desenhando
um corpo e corpos, que nos revelam maneiras da canção se fazer.

As maneiras ou modos de se construir uma canção podem comportar-se


ora como estratégias, ora como investimentos discursivos. Ao realizar
investimentos, o sujeito enunciador não planeja rigorosamente seu discurso,
ele se coloca sem necessariamente desejar “vencer” ou competir com outro,
enquanto que ao falarmos de estratégias8, há um sentindo militar,
conotativamente, há a idéia de uma ação voltada para um “ataque”.

8
Arte militar de planejar e executar movimentos e operações de tropas, navios e/ou aviões,
visando a alcançar ou manter posições relativas e potenciais bélicos favoráveis a futuras ações
táticas sobre determinados objetivos. Definição transcrita do novo dicionário Aurélio de Língua
Portuguesa Aurélio (versão eletrônica).

19
Mas o que queremos com isso? Nem sabemos exatamente. Temos
certeza de que nos move aqui não é somente apontar investimentos
discursivos e estratégias nas experimentações orais, poéticas e musicais
construídas pelo compositor Tom Zé, mas significá-los, ou seja, discutir seus
efeitos de sentidos.

Ao iniciar o trabalho, foi possível, antecipadamente, relacionar nosso


motivo de pesquisa, ou canonicamente, nosso objeto, as canções de Tom Zé, à
teoria da Análise do Discurso de Maingueneau e elegê-la como apoio teórico.

Percebemos adiante que o referido apoio não nos instigou a utilizar


positivamente9 as categorias de análise discursivas, já que optamos por
dialogar também com outros pensadores e conseqüentemente com outras
categorias, que de certo modo se integram à perspectiva discursiva. Os
pensadores referem-se a Bakhtin (1997,1999) que traz as idéias da refração,
do dialogismo, do caráter grotesco e carnavalizante do signo lingüístico; a Paul
Zumthor (1998, 2001), que nos apresenta um olhar antropológico sobre a
poética e performance vocal e a idéia de inacabamento; a Décio Pignatari, que
discute aspectos da não linearidade do signo, e Campos(1993) no que se trata
do código apriorístico da linguagem.

Dá-se mérito a Maingueneau por expor uma metodologia sistematizada


sobre elementos discursivos voltada para a análise de textos como práticas
discursivas. Para ele, as unidades que compõem o discurso compreendem
sistemas de significantes, enunciados ligados a uma semiótica textual,
relacionados à história e à sociedade. Uma análise discursiva, portanto, parte

9
O uso de pronomes que se dirigem a pessoas do discurso no decorrer desse trabalho não é
linear, ou seja, não conservamos do início ao fim uma única pessoa (1º pessoa, 3º pessoa).
Ora assumimos nosso discurso em primeira pessoa quando nos mostramos mais
sensivelmente envolvido por dado momento do trabalho (como se apresentou na Introdução),
ora nos colocamos em terceira pessoa do plural. E noutro momento não assumimos
pessoalidade. Esse uso “indisciplinado” da pessoa discursiva no nosso texto se deu de modo
inconsciente e imperceptível, foi um gesto que se percebeu no fim do percurso e que
atribuímos a ele um significado relevante: reflete espontaneidade e o não assujeitamento do
autor sobre convenções de ordem formal, gramatical. A pessoa do discurso manifestada aqui é
múltipla, heterogênea, é um eu que não se livra da interferência de outros eus. A multiplicidade
pessoal não é mascarada e nem omitida em nenhum momento, dada a vontade indomável do
eu se colocar diante da leitura do mundo: do percurso do trabalho científico, da interpretação
da canção com base numa fundamentação teórica.

20
de uma análise simultânea, conjunta de textos provenientes de variados
ambientes históricos e sociais.

Partimos da idéia do signo lingüístico dialógico que fundou e influenciou


diretamente o pensamento sobre a noção de interdiscurso, segundo
Maingueneau. Em seguida, para uma discussão sobre a idéia de signo
redundante ou código apriorístico de acordo com Campos, para dialogarmos
com a idéia de descanção.

2. PERCURSO TEÓRICO: TRILHAS E LABIRINTOS DISCURSIVOS

Toda imagem artística, assim como um corpo físico, produtos e


instrumentos de uso funcional, podem ser revestidos de sentidos para além de
seus significados primeiros, particulares. Trata-se do que Bakhtin/Volochinov
(1997, p. 31) chama de sentido ideológico, um significado que remete a outro
fora de si mesmo. Quando há o revestimento de outros significados, atribuídos
a um objeto, que atravessem suas particularidades, deposita-se nele um
produto ideológico, a representação de uma ideologia.

De acordo com Bakhtin (1997), o signo tem caráter ideológico por


revelar uma multiplicidade de significados e sentidos possíveis expressos numa
interação social, de acordo com os interesses social, cultural, econômico. O
caráter ideológico estende-se a variadas dimensões fenomenais, do signo
verbal ao não-verbal:

Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma


encarnação material, seja como som, como massa física, como cor,
como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer.
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1997, p. 33).

A encarnação material do signo traduz o mundo exterior, um significado


que gera outro signo. O signo não corresponde apenas a duas partes:
significante e significado, como expressa uma das dicotomias saussureanas,
mas a inúmeros significados e significantes.

21
A infinidade de significantes e significados do signo lingüístico e não
lingüístico gera a refração do signo. Compreendemos, desse modo, que os
signos refratam e refletem o mundo material, carregando diversos e
inacabados feixes de pensamentos construídos na dinâmica da vida.

O efeito da coexistência de distintos valores sociais, culturais e


ideológicos confrontados e compartilhados entre os indivíduos ao longo de
sucessivos ciclos vitais é a configuração da refração do signo lingüístico, ou
seja, a multiplicidade de fendas semânticas que o signo constantemente gera,
evitando uma única verdade. Significar, portanto, é refratar; não é possível
significar sem refratar. A refração, assim, é o modo como se inscrevem nos
signos a diversidade e as contradições das experiências históricas dos grupos
humanos. Como nos mostra Faraco (2003), a partir da leitura do pensamento
bakhtiniano sobre a refração do signo:

Os signos são espaços de encontro e confronto de diferentes índices


sociais de valor, plurivalência que lhes dá vida e movimento
caracterizando o universo da criação ideológica como uma realidade
infinitamente móvel (FARACO, 2003, p. 53).

A refração sígnica é compreendida como um entrelaçamento de


inúmeras linhas de consciências e verdades explicitadas ou não em diferentes
discursos, no suporte de enunciação. Desse modo, o caráter refracionário do
signo revela várias direções de significados valorativos e mostra a diversidade
de percepções ideológicas de determinados grupos humanos, que foram e são,
naturalmente construídas ao longo da experiência do convívio social.

2.1 TRAÇOS CONSTITUTIVOS DA LINGUAGEM: DO PRINCÍPIO


DIALÓGICO AO INTERDISCURSIVO

Ao pensarmos em esfera comunicativa humana na perspectiva de


Bakhtin (1997), estamos nos referindo ao contexto, diríamos, da linguagem
estratificada socialmente, de caráter predominantemente heteroglossêmico ou

22
plurilingüístico, revelador de multiplicidade de línguas sociais. A estratificação
da linguagem é representada em enunciados verbais, os quais denunciam a
disposição paralela de estratos cristalizados ou camadas sociais, carregados
de dimensões avaliativa e opinativa, que expressam posicionamentos sócio-
ideológicos diversos.

A comunicação verbal é marcada pela interação com o outro, pela


relação do eu com o outro, idéia que fundamenta a metáfora do diálogo infinito
de um discurso com o outro. A palavra ideologia aqui, em sentido amplo,
significa o universo de produtos do espírito humano ou da cultura imaterial,
cujas manifestações são de caráter filosófico, religioso, político, dentre outros.

Levando em consideração a estratificação da linguagem e a refração do


signo, qualquer enunciado é ideológico, já que toda palavra em uso está
sempre sujeita a ser avaliada, está a serviço de julgamentos e opiniões.

Para Bakhtin (2002), a linguagem é por natureza heterogênea e


dialógica em oposição ao caráter homogêneo e fechado da língua, tal como
sugeria Saussure.

Mas o que chamamos de caráter dialógico da linguagem, atributo que


remete a uma palavra tão habitual entre nós: ao diálogo?

Compreendemos por dialogismo uma tensão entre diálogos constantes e


infinitos. Trata-se de cruzamentos de fronteiras vocais, onde diferentes vozes
sociais se entrecruzam continuamente e multiformemente. Ele é construído
através de pressuposições de outros dizeres, sendo eles um diálogo com
outros, nem sempre simétrico e harmonioso, entre os diferentes discursos que
se configuram numa comunidade lingüística. Esse dizer é, portanto, de uma
reposta ao já dito, ao não dito, e refuta, confirma, prevê reflexões, dentre outras
ações.

O diálogo entre discursos a que nos referimos não se trata de um


consenso ou de um acordo entre interlocutores acerca de um pensamento,
mas de uma infinidade de relações ideológicas, de um espaço de confronto
entre vozes sociais.

23
Desse modo, o dialogismo é concebido como o princípio constitutivo da
linguagem e através desse princípio é gerado, de acordo com Mainguenau
(2004) o primado do interdiscurso.

Maingueneau (op. cit) defende que o discurso se firma a partir da


inserção e cruzamentos de outros discursos, o discurso existe a partir de uma
alteridade que sempre o atravessa. A construção interdiscursiva, por sua vez,
perpassa pela tríade: universo discursivo, campo discursivo, espaço
discursivo.

O universo discursivo compreende a diversidade discursiva, ou seja, as


possibilidades múltiplas de valores e de posturas ideológicas tomadas pelo
homem ao longo de sua experiência social. E integra o conjunto de distintos
grupos ideológicos ou campos discursivos que entram em atrito, em confronto,
em afinidades.

Tais grupos são denominados campos discursivos. Cada campo


apresenta um conjunto de formações discursivas (que designa a construção
histórica, social, cultural, econômica de determinado campo discursivo ou de
um membro que pertença a esse campo).

Há os campos político, filosófico, cinematográfico, dentre outros, sendo


esses recortes de um universo discursivo. Isso não significa, portanto, que
cada campo seja isolado um do outro, ao contrário disso, um perpassa o outro
continuamente, gerando diálogos. Dessa maneira há a visualização
panorâmica de diferentes campos, possibilitando a dinâmica de trocas e
relações entre eles.

E sua possível especificação, como nos referimos acima, ocorre em


favor de uma escolha. A partir da delimitação de um campo discursivo constitui-
se um discurso e nele se visualiza uma rede de operações consideradas
regulares e que moveu sua formação.

No campo discursivo há uma diversidade de espaços discursivos ou


planos discursivos, coexistentes e concorrentes entre si.
As diferentes formações social, política, ideológica, cultural, ou seja, as

24
distintas formaçôes discursivas, movidas por posições e objetivos outros,
podem conviver num mesmo campo discursivo.

Tendo em vista esta breve apresentação dos conceitos dialogismo,


universo discursivo, campo discursivo, formação discursiva e espaço
discursivo, consideramo-los elementos que contribuíram de algum modo para
discutirmos polêmicas em volta de posicionamentos problematizados10 na
canção Tom Zé.

2.2 A CONSTRUÇÃO DA ENUNCIAÇÃO

Agora, explanaremos alguns conceitos referentes aos elementos que


constroem a enunciação, o evento que constitui o agente principal da inserção
do homem no mundo:

O pivô da relação entre língua e o mundo: por um lado, permite


representar fatos no enunciado, mas por outro, constitui por si mesma
um fato, um acontecimento único definido no tempo e no espaço
(MAINGUENEAU, 2005, p. 193).

Num dado enunciado, a realização de um produto verbal e não verbal,


através da interação é legitimada a partir da integração de vários elementos,
dos lingüísticos (código de linguagem) aos não lingüísticos (gestos, sons,
disposição de objetos). É através da interlíngua11, ou seja, das relações dadas
numa determinada conjuntura entre as variedades de uma mesma língua, que
se constitui um código de linguagem, atribuindo singularidade a uma obra.
Maingueneau (2001: 104) define o termo código como um sistema de regras
aliado a um conjunto de prescrições e de signos que geram uma comunicação.

A interlíngua, relação entre línguas diferentes e as variações de uma


mesma língua, dá-se através de uma pluralidade de línguas, externa e interna.
Sabemos que a legitimação de um discurso não se dá necessariamente

10
Diálogo entre os posicionamentos Bossanovista e Tropicalista, apresentado no capítulo 4,
pgs. 70-75
11
A idéia de interlíngua se relaciona com a noção de heteroglossia ou de plurilingüismo, de
acordo com Bakhtin (1993).

25
através de uma única língua. O autor empírico de uma obra pode, em dado
contexto, por alguma razão, romper com a homogeneidade lingüística através
do plurilingüismo externo, do uso de outras línguas externas à língua materna.

O efeito do uso de outras línguas num enunciado sugere várias


intenções, como a diluição de um conservadorismo lingüístico, do domínio ou
de uma suposta superioridade de uma língua sobre outra.

Um escritor, além de poder utilizar línguas externas no seu discurso,


pode usufruir também da variação lingüística no âmbito de uma mesma língua.
É o que chamamos de plurilingüismo interno. Essa variação se dá em função
de distintos contextos: geográfico (dialetos, regionalismos), social (popular,
aristocrática, etc.), situação de comunicação (médica, jurídica...), níveis de
língua (formal, familiar...).

O enunciado, ao se estabelecer através do código de linguagem,


constrói cenas de enunciação, o contexto imediato da enunciaçâo. O termo
“cena” refere-se à designação teatral por pressupor numa enunciação a
existência de bastidores, cenários, participantes com papeis definidos.

As cenas enunciativas tratam da cena englobante, cena genérica e da


cenografia. A cena englobante implica o tipo de discurso que é praticado
(político, religioso, publicitário etc.). Já a cena genérica se relaciona ao gênero
do discurso, que prática discursiva é designada, se é um artigo jornalístico,
uma propaganda televisiva. Essas duas cenas constituem o quadro cênico que
é definido como o espaço estável no interior do qual o enunciado adquire
sentido - o espaço instável do tipo e gênero de discurso (Maingueneau,
2001:87).

E por último, a cenografia designa a condição e o produto de uma


enunciação, constituindo um articulador da obra e do mundo. Ela é o processo
fundador de inscrição legitimada de um texto. Apresenta, canonicamente, um
foco de coordenadas estabilizado que se refere direta ou indiretamente à
enunciação construída a partir de protagonistas da interação da linguagem:
enunciador, co-enunciador, assim como as circunstâncias espacial e temporal
(eu e tu, aqui e agora). Ela define as condições de enunciador e co-

26
enunciador. A cenografia ou situação de enunciação de uma obra é enunciada
através de uma instituição verbal, de um gênero discursivo (não sendo ele o
fator único e inteiramente condicionante da obra), que também traz suas
próprias condições de produção como participantes: o lugar, o momento para
sua manifestação, os circuitos por quais passa e a norma que presidem o seu
consumo.

De acordo com Maingueneau (2001), a cenografia de uma obra literária


é dominada pelo cenário literário, que é o contexto pragmático da obra, que
associa uma posição de autor e uma posição de público, cujas modalidades
variam de acordo com as épocas e as sociedades. Os elementos que integram
as condições de situação de um enunciado (posturas do enunciador, tempo,
espaço), no entanto, nem sempre estão explícitos.

Outro elemento que integra a cena enunciativa é o ethos no qual o


enunciador expressa uma “voz”, uma voz que marca posturas, formas de
habitação do sujeito interlocutor do enunciado e que são assimiladas pelo co-
enunciador frente a uma cena genérica. Estamos falando também de um
conceito originado na Retórica antiga, o ethé ou ethos, que diz respeito ao
modo como o enunciador orador fala seu discurso, que gestos, posturas
política e ética, revelam ao ouvinte. De acordo com Aristóteles, a concepção
de ethos, traduzida por Maingueneau, designa:

as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, através


de sua maneira de dizer: não o que diziam a propósito deles mesmos,
mas o que revelavam pelo próprio modo de se expressarem.
(ARISTÓTELES apud MAINGUENEAU, 1997, p. 45)

O ethos que antes era observado apenas em gêneros de discursos


recitados e orais (em textos literários, como na epopéia e em discursos
políticos, judiciários, respectivamente), torna-se visível também em textos
escritos. Sua manifestação pressupõe a veiculação de um gênero discursivo.

Portanto, o ethos (o modo de se mostrar do enunciador ao co-


enunciador) é expresso pela palavra oral e escrita, pelo gesto, aspecto físico e
entonação, constituindo num gênero discursivo, sendo tais elementos próprios

27
do sujeito encenado e não do sujeito real. Maingueneau (1995, 1997, 2001)
leva em conta três categorias para se analisar o etos: o tom, delineado numa
vocalidade, o caráter e a corporalidade.

Qualquer gênero do discurso carrega consigo uma vocalidade, ou seja,


uma voz do sujeito que é expressa através de um tom e que é conferida pelo
co-enunciador. Como coloca Maingueneau (1997, p. 45), “... a descrição dos
aparelhos não deve levar a esquecer que o discurso é inseparável daquilo que
poderíamos designar muito grosseiramente de uma ‘voz’”.

O tom é construído a partir de uma voz numa dada cenografia, é


empregado para todos os enunciados escritos. O tom está ligado ao caráter,
que designa um conjunto de propriedades psicológicas, estereotípicas
específicas de uma época e lugar, expressas pelo enunciador e sendo
atribuídas pelo leitor-ouvinte.

A corporalidade refere-se a uma representação do corpo que envolve a


maneira de se vestir e de se movimentar do enunciador. O corpo não é só
explicitado pelo enunciador, mas também induzido pelo co-enunciador. No
gênero discursivo de modalidade escrita a corporalidade pode ser percebida
em marcas lingüísticas, na iconografia do texto. Na verdade, o corpo ou
corporalidade de um discurso está em diversas linguagens, podendo ser
transmitido de várias maneiras, pois como explicita Maingueneau (2001, p.
140):

Através da iconografia, dos tratados de moral ou de devoção, através da


música, da estatuária, do cinema, da fotografia..., circulam
esquematizações do corpo, valorizados, ou desvalorizados, que
encarnam vários modos de presença no mundo.

As categorias que denotam um tipo de etos (tom, caráter e


corporalidade) são integradas num discurso formando um corpo que será
incorporado por um co-enunciador. A incorporação é a ação que o etos exerce
no seu co-enunciador, levando-o a conferir um etos ao seu fiador, é a leitura
que nós fazemos do etos. De acordo com Maingueneau (2001, p. 140), a
incorporação é um processo que pressupõe três registros interligados:

28
- A enunciação da obra confere uma corporalidade ao fiador, dá-lhe
corpo;

- O co-enunciador incorpora, assimila desse modo um conjunto de


esquemas que correspondem a uma maneira específica de se relacionar
com o mundo habitando seu próprio corpo.

- Essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um


corpo, o da comunidade que comungam no amor de uma mesma obra.

Diante da integração dos elementos que compõem uma enunciação:


interlíngua, ethos, as cenas englobante e genérica, montando uma cenografia
(o espaço definidor das condições contextuais ou pragmáticas do enunciador e
co-enunciador), têm-se como efeito dela um posicionamento ou uma tomada
de posição política, ideológica, assumida pelo sujeito enunciador. O
posicionamento, num sentido amplo, segundo Maingueneau (2001), diz
respeito às:

... doutrinas, escolas, movimentos estudados pelas escolas literárias...

Ao fazê-lo, exploramos a polissemia de posição em dois eixos principais:

o de uma tomada de posição, o de uma ancoragem num espaço

conflitual (“fala-se de uma posição militar”) (MAINGUENEAU, 2001, p.

69).

A canção, além de ser um diálogo entre a vida e as "técnicas" de


composição, é também resultante de uma prática discursiva, por nela estarem
atuando posturas e formações discursivas concorrentes, constituindo-se em
uma situação de enunciação onde há um sujeito ou sujeitos enunciadores
(cancionistas) que desvendam ao co-enunciador (ouvinte) uma certa atitude,
um posicionamento político, explícita ou implicitamente.

Diante da relação dos elementos: código de linguagem, cenografia, etos,


apresenta-se como efeito dessa imbricação um posicionamento social.

29
Portanto, discutimos efeitos de sentido gerados pelos investimentos
discursivos, ou seja, pelos elementos textuais ou não, que legitimam um
discurso, permitindo a inserção do homem no mundo, observados no discurso
literomusical de Tom Zé.

Chamamos a atenção para o termo investimento discursivo, o qual será


utilizado ao longo desse trabalho. O referido termo foi designado por Costa
(2001)12, ao se apropriar de umas das categorias discursivas sistematizada por
Maingueneau (2001), a de investimento genérico. Essa define que o
enunciador ao tomar uma posição ideológica ou posicionamento parte de um
investimento, de uma aposta numa modalidade genérica ou num gênero textual
em defesa e em legitimação de seu discurso. Costa (op. cit.) expande a noção
desse investimento a todas as partes integrantes de uma enunciação,
argumentando que o investimento se dá em todos os momentos de inserções
enunciativas.

Portanto, o enunciador ao se pronunciar investe não só num gênero


discursivo, mas também num código de linguagem, num ethos, numa
cenografia.

3. DESCANÇÃO E DESLINEARIZAÇÃO

Apresentamos nesse ponto o que compreendemos sobre “descanção”


(palavra recorrente no nosso trabalho) e algumas considerações sobre a idéia
de deslinearização, partindo de reflexões de Wisnik (1989), Tom Zé (2003),
Pignatari (2004) e de Campos (1997).

A descanção como um modo de musicar. Um fazer errado ou um


desfazer fazendo? Como esse modo de fazer canção se constrói? Quais

12
Na tese A PRODUÇÃO DO DISCURSO LÍTERO-MUSICAL BRASILEIRO. O estudo pioneiro em
descrever a produção da Música Popular Brasileira com fundamentos da Teoria da Análise do Discurso
de linha francesa(AD).

30
percursos são trilhados? Que elementos se relacionam ao caráter tropicalista,
ao não tropicalista ou, quem sabe, a um outro ser tropicalista?

Tentaremos definir nesse momento algo quase indefinível, a descanção,


que, para nós, torna-se um incômodo necessário. Descrever o sentido de
descanção é dialogar com questões em torno de canção no sentido amplo.

A descanção é um modo de construir uma canção, diz respeito à


construção de arranjos musicais, a gestos enunciativos que envolvem as
manifestações verbal e não-verbal, que transgridem certa linearidade sonora.

A denominação descanção nega a palavra canção, não no seu sentido


“genérico amplo”, dado como uma música breve acompanhada de canto e
instrumento, mas no sentido canônico, apreendido pelo código apriorístico,
expressão que designa um modo predeterminado de fazer canção voltada para
fins comerciais.

Antes de nos determos nesse assunto, voltemos um pouco a uma breve


história e origem da canção brasileira.

Foi através da interação entre as culturas indígena, africana (dos rituais


religiosos, magia acompanhado de instrumentos rítmicos, percussivos e de
sopros - gaitas, apitos) e a portuguesa (da manifestação musical mais melódica
que rítmica, em hinos católicos e cantos gregorianos) que a música se
expandiu em lugares maiores, aproximadamente no século XVII13.

O canto como voz põe em prática a vontade de dizer, de contar. Aliado


ao som e vozes de instrumentos musicais, materializa-se a canção.

Num sentindo sublime e vital da palavra, a canção é um modo de


compor a vida e seu cotidiano em ritmos e melodias, é o registro de práticas e
gestos experienciados que traduzem vivências e histórias do indivíduo no
mundo. A voz cantada é muito mais que cantar: é relatar. A característica
formal que a designa é a união do canto a uma melodia.

13
Para maiores esclarecimentos de fundamentação histórica da Música Popular Brasileira,
consultar o trabalho de Luiz Tatit, O século da canção (2005).

31
Partindo de uma reconstrução das raízes da canção brasileira, através
de uma leitura não tão profunda de Tatit (2005), vimos na canção um modo de
afirmação das misturas de representações vocais dos batuques africanos,
mestiços e brancos europeus de classes inferiores.

Tais dados históricos nos mostram uma visão da manifestação musical


naquele período e nos leva a relacionar, de algum modo, à idéia de descanção,
como um caminho de mistura de sons e culturas, sem se fixar numa hierarquia
de valores sonoros.

Como ouvir o som de uma descanção? Talvez seja necessário que


entremos numa onda, que nos movimente para vários lados e perspectivas.

Falo de ondas que nos tocam e tocam, de uma física e metafísica


sonora. A onda como corpos vibrantes transmitidos na atmosfera, num tempo
contínuo: impulso e repouso. A música é o som das ondas: “movimento em sua
complementariedade, inscrito na sua forma oscilatória, é pausa e silêncio
quando oscila em seu repouso. Há tantos ou mais silêncios quantos sons nos
sons”(WISNIK, 2004, p. 19).

A afirmação acima já nos diz um quase tudo sobre música, é uma


descrição complexa que nos relata muito mais, instigando-nos a percebê-la
intimamente. A oscilação sonora, ao mesmo instante que nos envolve num
tempo e num contratempo, por outro lado, leva-nos a um impulso, lança-nos
fora de uma linha cancional prevista. A voz, portanto, na canção descanção
pousa, arrisca outras vozes e palpita. Perceber que no silêncio há tanto som e
que no som há tanto silêncio é, de algum modo, conceber a música como uma
forma de descanção.

Romper com o tempo previsto da canção, escutar ruídos gerados pela


imprevisibilidade do cantar e de um dado arranjo é, de certa maneira, desfazer-
se de um código apriorístico musical, de um modelo linear de canção, que se
presta unicamente à demanda comercial. Discutir o fazer musical, pensar
outros discursos musicais (valores desconstrutores e reconstrutores musicais,
políticos, cultural, econômico) na canção, significa se introduzir no campo de
uma descanção.

32
Ao lermos Tom Zé em narrativa do seu processo de composição, a
canção parece ser apenas um meio para se chegar a uma outra canção,
chamada descanção: Minha quimera de fazer descanção não aludia à canção
em si, era só um artifício para eu poder cantar sem ser cantor (ZÉ, 2003, p.24).
Com esse depoimento Tom Zé assume na sua fala um etos de ruptura com a
canção no seu sentido canônico, música acompanhada de voz e instrumento.
Essas informações parecem apontar para um modo de compor a descobrir,
insento de predeterminações. Assim, antecipa-nos a construção do ethos de
uma descanção.

Mas não sabemos ainda qual seria essa canção que não é canção. Aos
nossos ouvidos, essa canção sempre está por vir, parece que ela não se fecha
nela mesma, e caso isso aconteça, dar-se-ia no desencontro com o modelo de
canção determinado.

Pensamos que a idéia de descanção significa romper com o tempo


previsível na canção, digamos, uma ruptura no código apriorístico musical.
Noção referente à redundância de conhecimento musical, ao conjunto de
características de natureza prevista, unidas num código construído de
elementos que independem da experiência do leitor ouvinte, sendo algo a
priori, apriorístico, que leva o ouvinte à absorção global de uma mensagem
musical condicionada sobre valores estéticos impostos arbitrariamente.

Então, a audição possível de uma canção dar-se-ia pelo reconhecimento


de elementos sonoros repetitivos, previsíveis, tornados convencionais pela
mídia. Tal afirmação nega a concepção segundo a qual o artista oscilaria numa
dialética banal-original, previsível-imprevisível, redundante-informativa, de
acordo com A. Mole (apud CAMPOS, 1993, p.180). O reconhecimento dessa
repetição retroalimenta a digestão de mais um produto industrial, em série,
alimentando a máquina publicitária, comercial fonográfica.

O ouvinte, portanto, é contaminado por valores estéticos musicais,


arbitrariamente: como dadas melodias, arranjos e letras, retroalimentados pela
mídia e indústria fonográficas. Percebemos uma ascensão quantitativa de um
produto finalizado que se opõe ao valor qualitativo da música popular.

33
A música que favorece o código apriorístico se faz numa redundância,
na repetição em série, tida como produto acabado. Quanto maior a
redundância e a previsibilidade, menor é o conhecimento, a informação e a
aprendizagem, se não há conhecimento não há comunicação. Ao consultarmos
Pignatari (1997), vimos que há dois casos extremos de não-comunicação: o da
imprevisibilidade total e o da total previsibilidade dos sinais.

Se há um total estranhamento na canção que não leva à interação de


um signo com outro, não é possível sua audição, podendo haver, que é o
menos significativo, uma compreensão precária que não traduz sentidos da
escuta. Possivelmente, como exemplo dessa “intradução” ou “incompreensão”
seria, hipoteticamente, uma canção tocada numa língua inédita, totalmente
nova, ao som de instrumentos também inusitados aos ouvidos de um público
que, culturalmente não usufrui desse tipo de sonoridade.
Caso haja uma total previsão do que se pronuncia, a informação torna-
se redundante, a compreensão é prolixa, uma prolixidade desnecessária,
impotente. A redundância, nesse caso, trata-se de uma canção que segue
praticamente um mesmo arranjo, uma mesma temática, “diferenciando-se”
apenas uma da outra o timbre de voz, embora muitas vezes há uma repetição
dela14.

Como um locutor, então, pode emancipar-se, musicalmente, e ocupar


um lugar no mundo se não se comunica? Esse é um dos problemas presentes
na canção vinculada ao código apriorístico, que mostra sempre uma mesma
idéia de signo musical ou uma mesma configuração de arranjos verbal e não
verbal, os quais tendem a migrar para um não lugar, sendo este o da repetição,
o lugar fixo e pré-estabelecido.

O efeito desse hábito reduz a qualidade de recepção musical do ouvinte.


Ele, convivendo com esse modo de construção musical, em idade mais
avançada, só reconhece e não conhece outro modo de canção. Tal evento
ocorre devido a sua maior resistência em não aceitar a imprevisibilidade de
arranjos em função de uma convenção, de um código apriorístico musical, de
um conjunto de arranjos musicais cristalizados, imutáveis.

14
Tais como as vozes das cantoras Ivete Zangalo, Daniela Mercury, dentre outras.

34
Já a música numa condição qualitativa, da não redundância, trata-se de
um processo em construção, que se propõe à abertura de reformulações e
recriações, à interrupção da linearidade. A descanção, nesse sentido,
atravessa o código apriorístico, abrindo possibilidades de outros códigos que
constroem imprevisibilidades e descobertas.

Ainda assim, a descanção pode gerar também uma previsibilidade, no


entanto, diferente da outra, a significativa: a previsão da imprevisibilidade.

Minuciosamente, a descanção ocorre no plano estético e não-verbal


(melódico, instrumental e com relação à mistura de gêneros cancionais), no
seu plano verbal, através de modos de desconstruções sintáticas, de recriação,
montagem e remontagens lingüísticas. Ela não se realiza numa total
imprevisão.

A imprevisão não significa um fazer aleatoriamente. Paradoxalmente, há


um planejamento da imprevisão, seria um acordo tácito, como Tom Zé
apresenta no seu livro autobiográfico:

...era o que eu queria fazer com a canção tradicional: limpar o campo.


Conclusão que me induziu a organizar as outras idéias que até então,
vinha praticando intuitivamente e desorganizadamente (ZÉ, 2003, p. 21).

As idéias desorientadas tomaram um corpo organizado e se revelaram


num plano compreendido em quatro pontos: mudar o tempo do verbo, trocar o
lugar no espaço - o lugar, achar um novo acordo tácito, limpar o campo.

Mudar o tempo do verbo (ZÉ, 2003, p. 21), era sair do passado e


praticar o presente. Acordo contrário ao das canções tradicionais que
habitavam sempre um passado, o de contação de histórias.

A troca do lugar (ZÉ, 2003, p. 22), onde vivia, em Irará, já atraía um


passado de épocas. Então, mudar geograficamente era construir um novo
presente, que se refletisse na sua canção. O intuito aparente era expandir a
canção, arejá-la e desapegar-se do passado tão presente e arraigado. A
mudança do lugar revelava a busca de novas fronteiras para a canção.

35
O terceiro ponto seria um acordo tácito (ZÉ, 2003, p. 22): um diálogo
entre cantor e ouvinte. Através do cantar o presente, Tom Zé introduziria um
assunto espelho na canção, na qual o ouvinte fosse o próprio personagem.

O último ponto, limpar o campo (ZÉ, 2003, p. 22), um novo passo para
se desfazer de uma canção insatisfeita. Segundo o relato do compositor, ele se
inspirou numa cena do curso de fotografia que havia realizado, descobriu mais
uma maneira de se chegar à almejada “canção”. A cena referida era a do
instante em que lhe foi sugerido a observação de duas fotografias de uma
mesma pessoa. Uma contaminada por objetos desordenados e a outra apenas
com a imagem da pessoa sem objetos. A fotografia mais preenchida de
objetos, que embaraçavam a imagem inferia a limpeza desse campo.
Encarregado de retirar os elementos que compunham a primeira foto,
surpreende-se com o processo da retirada. Ação que o levou a relacioná-la
com a canção, ao desejo de limpar seu campo cancional, livrar a canção da
contaminação do passado e da temática padrão: o amor infeliz.

No entanto, ao nos aproximarmos desse campo cancional, mais


presente cronologicamente15, compreendido nos álbuns Com defeito de
Fabricação, Jogos de Armar, Imprensa cantada torna-se mais coerente usar a
expressão “sujar ou poluir o campo”, não limpá-lo. Como significa a expressão
“épater la bourgeoisie”, ou seja, “desafinar o coro – monofônico – dos
contentes” etc.

A partir dessas inquietações foi se construindo o significado de


descanção. Além de se opor ao código apriorístico de música, é uma maneira
de se desapegar do passado cristalizado.

Portanto, consideramos a descanção um modo de composição que


gerou a canção de Tom Zé, desde o princípio de sua trajetória. Ao mesmo
instante que ela o fez existir, levou-o a uma condição de isolamento16, por ele,
talvez, não ter correspondido às expectativas de gravadoras e produtoras da

15
Aproximadamente entre o período 1999-2005.
16
Estamos nos referindo ao período (1970-1980) de construção dos álbuns Estudando o
Samba, Todos os olhos, Correio da Estação do Brás, Nave Maria, Se o caso é chorar. Instante
em estado de ostracismo.

36
época, diferentemente do que ocorreu na década de 1990. A partir daí, vem se
lançando através de uma gravadora de porte “pequeno”, a Trama, mas com
dada ascensão no mercado fonográfico.

Ao nosso olhar, o sentido da descanção no processo de composição


estende-se também aos mais recentes trabalhos de Tom Zé17. E é assumida
como um posicionamento estético, ideológico e político.

Um posicionamento descancional que gera uma política musical, um


modo de se relacionar com a canção, sublinhando valores e incômodos de
ordem estética e ética gerados no campo musical. E que são influenciados por
fatores externos e internos ligados à canção, também no seu sentido formal.

Nesse contexto, ao incorporar a figura de cantor e compositor, Tom Zé


leva-nos a reconfigurar aspectos sobre música popular: quanto à distribuição
canônica de gêneros cancionais, da cultura nordestina, da mídia e indústria
fonográficas, de personagens e mitos.

4. A VOZ QUE ALIMENTA A VOZ


“A voz jaz no silêncio do corpo como o
corpo em sua matriz”
Zumthor

Mudando de um lugar para outro e habitando o mesmo, ouvimos com


mais ouvidos a construção de vozes que se cancionam e descancionam na
música de Tom Zé.

Não cabe à voz apenas um olhar fisiológico, lingüístico, fonético vocal. A


sua emissão cantada, interpretada marca um lugar ou lugares na canção. Para
além de um debruçar-se cientificamente sobre ela, a voz expressa sua

17
Jogos de Armar-Faça você mesmo (2000); Com defeito de Fabricação (1999); Imprensa
Cantada (2003).

37
materialidade no seu próprio ato de manifestação. Delimita uma vontade de
dizer, de existir do indivíduo que nela perpassa:

(...) a voz é querer dizer a vontade de existência, lugar de uma ausência


que, nela, se transforma em presença; ela modula os influxos cósmicos
que nos atravessam e capta sinais: ressonâncias infinitas que faz cantar
toda matéria.... (ZUMTHOR, 1997 p. 11)

A voz constrói, em volta da palavra enunciada, simbologias: ... a voz e


suas vias, a garganta mais profunda... boca emblemática, passagem para além
do corpo... (p. 15). Assim, traduz-se o intraduzível. A voz mostra um corpo na
sua dinâmica cantada e não cantada.

Ouvimos a música captando sua voz ou vozes, não só a voz do músico


interpretador (que emite outras vozes, além da sua) como a voz do arranjo de
instrumentos não verbais, reveladoras do que há em nós. E se direciona ao
outro e a nós mesmos. Sentimos a música em seu sentido amplo, a música das
músicas, assim, entre a variedade de vozes, humanas e trans-humanas, talvez.

Apesar da concretude vocal na canção referente aos seus traços


qualitativos palpáveis como o tom, timbre, alcance, altura, registro, há também
traços talvez inomináveis, na sua escuta, que nos sugerem uma hibridação e
dispersão de sons, tornando ainda mais viva sua materialidade.

4.1 A PERFORMANCE NA CANÇÃO

A diversidade de linguagem humana para expressar inúmeras idéias e


sensações é vasta e indomável. A música, assim como o teatro, dentre outras
vivências e experiências transcendentais traz corpo, voz e vozes. Possibilita a
desconstrução da linearidade da voz e do corpo previsivelmente modelado
socialmente, dentro de valores comportamentais canônicos, estereotipados.

A desconstrução, portanto, torna-se mais uma maneira de se posicionar


no mundo, mais um modo de vivenciar o corpo sem seguir, necessariamente,
valores pressupostos, institucionalizados.

38
É através da desconstrução do corpo e voz que adentraremos também
na idéia de uma performance na canção que, possivelmente, migra para uma
descanção ou para a desconstrução de canção. Traz à tona rasuras vocal e
instrumental.

Compreendemos o sentido de rasura como ato ou efeito de risco,


raspagem, feito na parte escrita de um texto ou documento etc. para tornar
inválidas ou ilegíveis palavras ali contidas18. O risco ou raspagem ocorre no
texto da canção, na voz e instrumento, mas que a possível invalidade ou
ilegibilidade constrói outra validade textual, musical.

Defendemos no contexto de nossa análise que o sentido do risco ou


raspagem característico da rasura torna um texto ilegível para assumi-lo em
sua legibilidade. É necessário encobrir, omitir ou errar o texto de uma canção,
potencialmente estereotipada com certos valores pré-estabelecidos, como
apresenta o código apriorístico19, para afirmar o seu contrário.
A rasura afirma a voz do corpo, dos instrumentos, dos arranjos
instrumentais, criadora de outro tempo e encenação na canção. Levando-nos à
dinâmica de uma descanção.

A rasura é percebida como um investimento discursivo, um acréscimo de


algo que perturba uma sonoridade canônica. Ela é desencadeada em arranjos
vocal e instrumental, possibilitando gerar atos performáticos20 vocais e
corporais (estereotipados ou não) que expressam outros modos de habitar a
música.

No contexto das artes plásticas, a performance pode ser um ato


transgressor e de ruptura. Foi influenciada pelo pensamento oriundo do
movimento de vanguarda - o futurismo, na Itália, século XX, que tinha como
foco radicalizar os conceitos vigentes de arte. Enfocaremos a performance
vocal na canção, lugar e manifestação musical de maior interesse nosso. A

18
Definição apresentada no dicionário Houaiss, de Língua Portuguesa.
19
Páginas 19-21.
20
De acordo com Zumthor, ato performático é uma ação oral-auditiva complexa, pela qual uma
mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, aqui e agora. (ZUMTHOR,
2001, p.222).

39
performance musical em sentindo amplo teve significativa interferência do
compositor Jonh Cage, que incorporava nela silêncio, ruídos, pausas
imprevisíveis, princípios zens, elementos influenciados pela cultura oriental.

Rasurar e performatizar a canção é dialogar com outros campos


discursivos da música. É possível através dela desfazer-se de “laços familiares”
e reconstruir histórias. É criar uma nova música, um novo percurso sonoro,
num sentido amplo, trilhar caminho que integra uma atmosfera sempre em
fertilização.

A rasurar a canção e assumir atos performáticos pode causar efeitos de


carnavalização e grotesco, no sentido de Bakhtin (1999).

5. MOVIMENTO DE INSTABILIDADE NA CANÇÃO: UMA CONDIÇÃO


PARATÓPICA

Nesse instante cabe a apresentação do conceito paratopia, que


denomina uma condição instável do indivíduo.

Em outros termos, a condição paratópica expressa o estado inconstante


do indivíduo de estar e não estar em lugares institucionalizados ou não. Refere-
se a uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, uma localização
parasitária, que vive da própria impossibilidade de se estabiliza
(MAINGUENEAU, 2001, p 28).

O termo paratopia designa para além do topos, do lugar, mas que lugar
é esse? Os lugares socialmente cristalizados (classe, papéis, cargos, etc.) e,
sobretudo, o da instituição, com a qual um indivíduo convive conservando
normas ou regras impostas explicitamente e implicitamente, sendo socialmente
reconhecidas e que lhe cobram fixação e permanência.

Desse modo, um indivíduo escritor ocupa um lugar para além do lugar


institucional, fato que torna conflituosa sua existência, pois, assim como um
músico, um dançarino, um cineasta, dentre outros, (...) alimentam sua obra

40
com o caráter radicalmente problemático de sua própria pertinência ao campo
literário (digamos o artístico) e à sociedade (MAINGUENEAU, 2001, p. 27).

A Literatura, assim como outras linguagens humanas e artísticas


(Música, Cinema, Teatro, Artes Plásticas)21, são percebidas, de modo amplo,
sociologicamente, mas antes, também, em seus micro lugares ou campos
específicos: o literário, o musical, o cinematográfico, dentre outros. São nesses
micros lugares que encontramos macro e rígidas regras que fazem o escritor
ou músico, dentre outros, existirem socialmente num campo menor.

Como produzir música sem corresponder às expectativas “contratuais”


desse micro campo? Que “normas” regem o campo musical? Então, como é
ser músico “sem ser músico”? Como essas questões se refletem na canção de
Tom Zé?

A verdade é que há vários campos na Música, um campo maior (o


dominante) e sub-campos (os marginalizados) em cada gênero cancional. O
campo maior seria o campo apriorístico musical ou código apriorístico, que
segundo Campos (1997), refere-se às leis sagradas e imutáveis de um código
de linguagem musical condicionado pelo veículo de massa, retroalimentador de
uma convenção de valores estéticos musicais, que cristaliza a música,
conforme já vimos.

O outro campo denominado subcampo se encontra em espaços sociais


mais isolados, são campos sem pré-determinações que, movidos por um
intenso desejo de existir, como os grupos nomeados “Rock de garagem”,
sobrevivem de qualquer modo. A música que se inscreve nesse campo toca
em lugares específicos, em estúdios anônimos, por opção própria ou em outras
circunstâncias, raramente tocam em algum lugar, por não cumprir com dados
arranjos e melodias “impostos” pela indústria fonográfica.

21
Maingueneau restringe-se em suas análises textuais ao campo literário: relação escritor,
sociedade, instituição. Em algumas obras, ele analisa textos religiosos, teatrais, jornalísticos e
publicitários. Estamos nesse contexto observando a relação músico, sociedade instituição. O
músico como escritor musical.

41
De certo modo, assim se fez a canção de Tom Zé22 e de muitos dos
quais nem sabemos pelas razões de optarem por se tornarem “inexistentes”,
sendo possível também uma outra, a de não corresponder às expectativas
fonográficas. E nesse subcampo, há ecos de canção sempre dispersos numa
atmosfera musical desinteressada.

5.1 O SER GROTESCO E CARNAVALIZANTE

A condição instável, parcialmente isolada ou paratópica do indivíduo ao


romper com determinada hierarquia institucional pode também integrar-se ao
estado de grotesco. Estado em que o indivíduo provoca e assume as
necessidades viscerais e vitais do corpo, permitindo-se a vivência de
mutações que desintegram uma dada ordem, almejando uma vida distante da
normatividade pré-estabelecida. A seguir, apresentaremos algumas noções
referentes à idéia do carnaval, à derivação carnavalização, a qual nós
relacionamos à condição paratópica e à idéia de descanção.
O grotesco é a expressão da figura de linguagem hipérbole, da forma de
comunicação (seja ela corporal, gestual-visual, verbal) que foge a uma
convenção, apresentando alterações de formas, tamanhos, cores, fonéticas,
morfológicas, sintáticas, comportamentais. O caráter grotesco traz à tona a
abertura do corpo ao mundo, o corpo encarna o universo material, as
instabilidades cosmológicas: o mundo físico, ambientes e animais.

Tal característica foi revelada em rituais e eventos carnavalescos no


período da Idade Média.

A idéia de grotesco é refletida na obra de Bakhtin (1999) através da


manifestação da cultura cômica popular na Idade Média e no Renascimento, no
contexto da obra do escritor e pensador François Rabelais. Tal manifestação é
caracterizada como um evento do carnaval.

22
Embora Tom Zé seja visto como marginalizado no momento tropicalista (anos 60-70),
recentemente, na década de 90 e início de 2000, é observado como um músico e cantor
popular, freqüentando programas televisivos(Programa do Jô Soares, Roda-Viva, Provocação),
dando entrevista em revistas de circulação nacional (Bravo).

42
A idéia de carnaval, concebida por Bakhtin (1997:122), designa uma
forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que
sobe base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações
dependendo da diferença de épocas, povos e festejos particulares.

Nesse sentido, o carnaval permite a fusão de elementos culturais


diferentes e antagônicos, em um só elemento. Tal evento se corporifica numa
linguagem de formas concretas-sensoriais e simbólicas.

Bakhtin (1999) nos apresenta a vivência das formas do carnaval da


cultura cômica popular omitida e marginalizada nos estudos literários e no
contar oficial da história humana.

Cuidadosamente, ele discute as modalidades de manifestação dessa


cultura, subdividida em três categorias: as formas dos ritos e espetáculos
(festejos carnavalescos, obras cômicas representadas na praça pública); Obras
cômicas verbais (orais e escritas em Latim ou em língua vulgar); diversas
formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insultos, juramentos)
(BAKHTIN, 1999, p. 4). Tais manifestações em si carregam sua singularidade
marcada pela construção de um outro mundo, um mundo à margem do mundo
já existente.

O carnaval representava uma postura subversiva com relação a certos


hábitos e rituais institucionalizados. Os eventos ritualísticos apresentavam uma
visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente,
deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja, e ao Estado, pareciam ter
construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda
vida(...) (BAKHTIN, 1999, p. 4-5).

Formas ou “desformas” de alterações corporais como faces do baixo


ventre é a imagem de rebaixamento, da degradação que visa à comunhão da
vida com a terra. Erguer o baixo revela o estado de transformação, de
metamorfose ainda incompleta no estágio da morte e do renascimento, do
crescimento e da evolução.

43
Desse modo, a cultura carnavalesca constrói-se numa ambivalência. A
vida também é experienciada num processo de ambivalência, numa
contradição constante, a partir de dois pólos de mudança: a morte e o nascer; o
princípio e o fim; o antigo e o novo. Isso mostra a influência cosmológica na
vida, o fluxo de mudanças geradas no indivíduo que reflete a inconstância do
mundo. O carnaval faz o mundo se apresentar de modo imperfeito, inacabado.
A individualidade passa a ser um estágio de fusão.

Bakhtin (1997) ao tomar como princípio a idéia do carnaval


compreendida na linguagem dos rituais nomeou de carnavalização a
transposição dessa idéia para as linguagens de imagens artísticas, literária.

Com isso o autor delineia quatro categorias ou cosmovisões


carnavalescas que apontam para maneiras de vivenciar o carnaval, sendo elas:
o livre contato familiar entre os homens, a excentricidade; um modo de
relações mútuas do homem com o homem; a familiarização ou mésallinaces e
a profanação.

A primeira ou o livre contato familiar entre os homens contesta a


distribuição dos homens numa totalidade hierárquica, a qual dita leis,
proibições e restrições. Opõe-se à concepção hierárquica e inaugura o livre
contato familiar. Os diferentes planos nos quais o homem se encontra, ou seja,
os das desigualdades sociais de classe econômica, de nível intelectual migram
para outro lugar e fundem um só plano, o da praça pública.

A segunda categoria revela a libertação do comportamento e gestos do


homem das forças impostas ou do domínio hierárquico da vida
extracarnavalesca. Os homens interagem e se comunicam não levando em
consideração classe social, títulos, idade e fortuna.

A terceira categoria trata da familiarização que designa a extensão da


livre relação familiar a tudo: a valores, a idéias, fenômenos e coisas. Há a
combinação do sagrado com o profano, do elevado com o baixo, do sábio com
o tolo.

44
A última, a profanação também vinculada à terceira é formada pelos
sacrilégios carnavalescos que expressam ações iconoclastas, a inversão de
valores bíblicos e dignos de respeito, através de paródias carnavalescas.

Essas categorias firmam o caráter contraditório da vida humana através


da inter-relação de todas as coisas. Elas são idéias concreto-sensoriais,
espetacular-rituais vivenciáveis e representáveis na forma da própria vida, que
se formaram e viveram ao longo de milênios entre as mais amplas massas
populares da sociedade européia (Bakhtin, 1999, p. 124).

Essas categorias exerceram intensas influências na Literatura no que se


refere à construção de formas e gêneros literários.

Partindo desse percurso, consideramos nesse trabalho que os traços


grotescos e carnavalizantes apresentados também se estendem aos modos
de se mostrar a canção, no seu corpo verbal, melódico, sonoro, instrumental. E
funcionam como investimentos discursivos, apontando também para o que
apresentamos sobre descanção.

6. O CAMINHO DE CHEGAR E NÃO CHEGAR: PERCURSO DO COMO


DIALOGAR COM AS CANÇÕES

Fomos guiados no percurso dessa viagem musical, esse


verdadeiramente inacabado, pelo não saber, causa maior de nossa escuta. O
desconhecido fez-nos ouvir e ver, no escuro, o colorido de canções.

Falar sobre e com a música, de modo amplo, tentando traduzi-la


verbalmente, em seus efeitos e distorções, é quase um ato inalcançável, uma
vez que a linguagem musical não dá nomes a coisas visíveis e palpáveis, tal
como faz a linguagem verbal.

A linguagem musical expressa linhas sonoras e ruídos que se encontram


e se desencontram. Por mais que haja uma dedicação em explicá-la
verbalmente, a música aponta com uma força toda sua para o não-verbalizável,
através de certas redes defensivas que a consciência e a linguagem

45
cristalizada opõem à sua ação e toca em pontos de ligação efetivas do mental
e do corporal, do intelectual e do afetivo (WISNIK, 2004, p 28).

A viagem foi movida por um olhar que apreciou a relação de existência


da música com o seu mundo exterior e, em parte, com o seu mundo interior,
levando em conta não a quantidade “x” e exata de canções, mas a intensidade
com que ela ou elas se manifestaram discursivamente.

Explicitamos, portanto, construções sígnicas de traços que perfuram e


integram o discurso literomusical do compositor Tom Zé, sem necessariamente
ou unicamente classificar, categoricamente, os modos de inserções
discursivas.

Analisamos uma parcela relevante de canções23 dos álbuns: “Jogos de


Armar-Faça você mesmo”, “Com Defeito de Fabricação”, “Correio da Estação
do Brás”. E mais uma quantidade mínima significativa de canções dos álbuns
“Se o caso é chorar”, “The hips of Tradicion”, “Todos os olhos” e “Jardim da
política”. Outros álbuns como “Estudando o Pagode” e “Estudando o Samba”
foram citados com intuitos argumentativos voltados para a construção de
sentido de posicionamentos musicais.

Levamos em consideração melodia24 e letra. Noutro momento, a análise


do álbum como um todo (encarte25, melodia e letra) de algumas canções
necessárias para discutirmos dados efeitos de alguns investimentos
discursivos. E outros elementos musicais: ritmo, harmonia, arranjo,
instrumentação, ruídos, silêncios etc.

A metodologia não seguiu um rigor canônico, quanto a métodos fixos ou


pré-estabelecidos à análise. Uma vez que no nosso processo de construção do
trabalho se fez refazendo-se continuamente.

Buscamos uma arquitetura que nos ceda espaço a ocupá-la, a nos


revelar o modo como o discurso literomusical da canção do músico baiano se

23
Todas as canções dos álbuns a serem citados foram escutadas, sendo apenas algumas
transcritas para análise.
24
Canção “Brigitte Bardot”, “Jimi renda-se”, “Dor e Dor”, “Minha Carta”,
25
Referente ao encarte do álbum Jogos de Armar, faça você mesmo.

46
desdobra, ou seja, como os arranjos discursivos são desenhados e que efeitos
de significados gera a sua canção.

6.1 Discografia analisada

Os cds que compreendem nosso corpus não abrangem todos os


trabalhos de Tom Zé, pois a seleção realizada já aponta para uma marcante
representatividade temática.

Portanto, o critério de escolha foi com base em modos de construção e


desconstrução da canção. Considerando também algumas idéias sugeridas
numa quantidade relevante de canções: a relação de Tom Zé com o
tropicalismo, sua condição de existência no campo musical.

Segue a exposição dos CDs selecionados, em ordem cronológica


decrescente:
Zé, Tom. Estudando o Pagode. 2005.
Zé, Tom. Jogos de Armar- Faça você mesmo. Trama, 2002
Zé, Tom. Série dois Momentos Vol. 15 (Relançamento do Cd Estudando o
Samba, 1975, e de O Correio da Estação do Brás, 1978). Continental, 2000.
Zé, Tom. Série dois Momentos Vol. 14 (Relançamento em cd de Estudando o
Samba, 1972, e de Todos os olhos, 1973). Continental, 2000.
Zé, Tom. Com defeito de fabricação. Luaka Bop/WEA, 1998. Trama, 1999.
Zé, Tom. No Jardim da Política (ao vivo em 1984 no Teatro Lira Paulistana) –
Independente, 1998.

Agora, diante dos cenários sonoro e teórico apresentados, seguiremos


às paradas de nossa trilha.

47
CAPÍTULO 2

APRESENTAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO: TOM ZÉ

Tom Zé pousa sobre as irregularidades do campo seco e iluminado por


raios alaranjados do sol da cidade Irará, interior da Bahia. Foi nessa cidade que
iniciou seus primeiros diálogos com a música, no sentido amplo, e com a
canção, no sentido mais específico.

Durante seus primeiros sinais de composição, ao tentar cantar uma


canção para uma namorada, silencia26, é bloqueado por impulsos da timidez e
insegurança ao concretizar sua voz na canção. Traumatizado por tal evento,
desiste de cantar, por um instante. Passado algum tempo, resolve se
reconstruir como cantor, relendo seu processo de criação musical e almejando
viver na forma de som e palavra.

Ao ingressar no ano de 1962, na Escola de Música da Universidade


Federal da Bahia, no curso de nível superior, Tom Zé se aproxima de músicos
e professores, dentre eles, Hans-Joachim Koellreutter27 e Walter Smetak.
Autores representantes de uma tendência musical experimentalista e que
exerceram um papel significativo na cultural musical brasileira.

O primeiro foi um compositor, musicólogo, regente e flautista alemão que


se mudou para o Brasil, em 1937 e naturalizou-se brasileiro anos depois, em
1948. Desenvolveu o modo de composição musical dodecafônico, técnica que
utiliza doze notas da escala cromática, tratadas como equivalentes e sujeitas a
uma relação ordenada, porém, não hierárquica. O músico viveu no país28
durante alguns anos, experiência que atribuiu um papel significativo e
transformador na música brasileira. Koellreutter, na década de 1940, auxiliou
na fundação da Orquestra Sinfônica Brasileira, participou também da fundação

26
Evento relatado no seu livro “Tropicalista lenta luta”.
27
Nascido em 2 de setembro de 1915, Freiburg, Alemanha e falecido em 13 de setembro de 2005, São
Paulo, Brasil.

28
Dentre outros países como Itália e Índia, onde viveu entre 1965 e 1969. Esteve também em Sri-Lanka,
no Japão, Uruguai e Coréia do Sul.

48
da Escola Livre de Música de São Paulo(1952) e da Escola de Música da Bahia
em Salvador (1954). Em 1975, instala-se em São Paulo, exercendo as funções
de diretor do Conservatório Dramático e Musical de Tatuí-SP e de professor
visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP. Em 1981 recebeu o título
de cidadão carioca.

O outro autor, Walter Smetak, foi um estudioso musical suíço, nascido


em 1913, na cidade de Zurique. Apresentou múltiplas habilidades instrumentais
e artísticas: violoncelista, criador de música e de instrumentos-esculturas,
artista plástico, teatrólogo. Sua relevância para a música brasileira está na
participação como professor e pesquisador na Universidade Federal da Bahia,
na criação e reinvenção de instrumentos musicais, “instrumentos-esculturas”,
sonoplásticos. Em 1957, ao lado de Koellreuter instalou-se na Bahia e
realizou pesquisas sonoras. Construiu oficina de criação de instrumentos
musicais com tubos de PVC, cabaças, isopor e outros materiais pouco usuais.
Sendo tais instrumentos não de utilidade puramente musical, funcionando mais
como esculturas.

Ao longo de sua permanência na UFBa, o músico criou cerca de 150


instrumentos, os quais eram nomeados "plásticas sonoras" e lecionou a
disciplina Som e Acústica. Além disso, atuou como violoncelista na Orquestra
Sinfônica da universidade.

A partir de um contato próximo com esses autores na escola de música


da Bahia, acreditamos que eles representaram para Tom Zé coloridas imagens
sonoras, influenciando, conseqüentemente na elaboração de suas canções.

Dando continuidade a trajetória de Tom Zé, durante o curso de música


na Universidade Federal da Bahia na década de 60, ele se torna membro
fundador do Grupo de Compositores da Bahia de Música Erudita. No último
ano cursado, em 1967, leciona algumas disciplinas relacionadas à teoria
musical, como exercício do Magistério. A sua inserção no curso e na
participação em estudos musicais demonstram notável dedicação na sua
construção musical.

49
É a partir de 1968 que se estende a um público de maior abrangência ao
participar do Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, obtendo os
prêmios “Viola de Ouro” e “Sabiá de Prata”, um deles referente à canção que
venceu o festival, “São Paulo, Meu Amor”. No mesmo período se insere no LP
Tropicália ou panis et circenses ao lado de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal
Costa, Mutantes, Torquato Neto, Rogério Duprat, Capinam e Nara Leão.

A canção “Parque Industrial” desse lp é representante da música de


caráter tropicalista com a qual Tom Zé se envolve, participando como cantor e
compositor. Os membros integrantes do LP Tropicália assumiam na música um
posicionamento estético e ideológico, movidos pelo ambiente social e político
ditatorial vigente, como também por outras questões, principalmente estéticas
e comportamentais, que extrapolam em muito a política estatal.

Assumir-se tropicalista, no sentido amplo, era o ponto de partida para a


ruptura da tradicional cultura brasileira e para a desmoralização da cultura
moderna. Definir o que seja o Tropicalismo é perceber em seus seguidores a
incorporação de propósitos desconstrutores e reconstrutores de valores
nacionais, a partir de um corpo não estereotipado.

O Tropicalismo foi tomado como um posicionamento ou uma identidade


enunciativa que se inseria e dialogava com o mundo ao assumir valores a favor
de uma ideologia: a da reinvenção da cultura tradicional brasileira, num
ambiente conflitante. Ser tropicalista, portanto, é posicionar-se socialmente, é
defender valores e crenças consciente e inconscientemente. Para isso, quem
enuncia para o mundo, utiliza-se de vários investimentos discursivos
(lingüísticos, não-lingüísticos, éticos, genéricos) e de estratégias discursivas
para atingir metas conscientemente na busca de firmar uma postura.

O movimento Tropicalista ocorre no fim da década de 60 e pontua


acontecimentos da política brasileira: o ato institucional AI-5, a desilusão com o
discurso de esquerda tradicional. Paralelamente a esses acontecimentos,
questões referentes à postura musical vigente: a preocupação de um grupo
anterior aos tropicalistas (seguidores do posicionamento Bossa Nova) em
sintetizar um modo de tocar; e o temor ao domínio da estética do Rock exterior,

50
que influenciava diretamente nos valores material, estético, comportamental de
jovens brasileiros, aflorados em 1968.

O caráter Tropicalista foi assumido por compositores musicais, artistas


plásticos e de teatro, cineastas e por escritores brasileiros que incorporavam
em suas criações pares de idéias opostas coexistentes: moderno x arcaico,
épico x lírico, o passado x presente, nacional x estrangeiro. No campo musical,
temos os idealizadores tropicalistas Gilberto Gil, Caetano Veloso, Mutantes,
Torquato Neto, Nara Leão, Gal Costa, Júlio Medaglia, Rogério Duprat.

Então, falar de Tropicalismo na música é levar em consideração seu


contexto exterior, é olhar para elementos impulsionadores, como a crise da
“alienação musical” devida à “singularidade” de se tocar “uma só nota”, como
se comportavam os bossanovistas29; a repercussão e efeitos opressores do ato
Institucional AI-5, elementos condicionantes que moveram a produção da
manifestação tropicalista.

Partindo da exposição dessa cena musical, pensamos como a figura do


cantor e compositor se relacionou com esse ambiente, o que o fez ser
tropicalista ou não, a partir do olhar interdiscursivo sobre suas canções.

Além da questão levantada, pretendemos falar sobre e com a música de


Tom Zé: modo de análise textual que leva o pesquisador a observar e dialogar
com o objeto, discurso literomusical de Tom Zé, vendo possíveis relações com
o mundo.

O olhar discursivo permitiu-nos a visualizarmos em Tom Zé uma voz que


se posiciona e se faz presente, capaz de sugerir interpretações e leituras
significativas ao campo musical. Tal olhar considerou o objeto não totalmente
dominado pelo enfoque teórico e subjetivo do pesquisador.

Tal maneira de ver o objeto contraria o modo estruturalista de análise.


Que o aborda como algo paralisado, cristalizado, imóvel, caminho esse que
não se permite vida ao objeto, e conseqüentemente, a não construção de um

29
Embora os tropicalistas se posicionassem criticamente com relação a essa tendência, eles
nutriam por ela profundo respeito e reverência, principalmente pelas inovações estéticas e
éthicas do João Gilberto. Na verdade, a Bossa Nova foi o primeiro passo para o Tropicalismo.

51
diálogo entre pesquisador e objeto, há o sufocamento da possibilidade de
integração entre eles.

Conceber idéias tropicalistas como elementos que também integram a


formação discursiva de Tom Zé, ou seja, sua postura social, ideológica e
histórica é falar com o objeto discurso. Partindo dessas referências como Tom
Zé tem se relacionado no campo musical, uma vez que há críticos que o
inserem e o excluem do posicionamento Tropicalista? E quanto a sua aparição,
desaparição e reaparição30? Após sua participação na gravação do LP
Tropicália, ele se afasta ou é afastado? O que sabemos, midiaticamente é que
ele ressurge no exterior, através do músico americano David Byrne.

Ao investigarmos sua condição de existência no campo musical, foi


necessário observarmos seu relacionamento com o tropicalismo e a possível
congruência entre as idéias de ser paratópico31 (uma dada instabilidade do
indivíduo ao estar no meio artístico), de “ser marginal” e de ser tropicalista de
esquerda, como apresentaram a mídia, em especial, os jornalistas Calado
(1997) e Sanches (2001), levando-nos a questionar o que é ser marginal na
cultura musical: É estar isolado da mídia? É estar produzindo afastado de uma
indústria fonográfica? E hoje, podemos dizer que Tom Zé é um tropicalista de
esquerda num sentido marginal?

Se a idéia de ser marginal está associada ao não reconhecimento de


seu trabalho na mídia nacional, torna-se contraditória, pois ao mesmo instante
que a mídia o cita como marginal, torna-o distante e próximo dela,
simultaneamente, assim, é estar entre um lugar e um não-lugar.

É possível pensar que essa idéia está associada à idéia de postura


paratópica, de ser marginal? Entendemos sua canção como descanção ou
canção ferida32, uma forma de desconstrução de modelo padrão de canção,

30
Embora seja sempre desconfiável essa idéia de aparição, reaparição ou ressurgimento.
Talvez, porque Tom Zé esteve por aí fazendo suas descanções. O que o David Byrne fez -
com sua influência - foi tentar integrá-lo ao mercado e ao mundo da mídia. “Venha para o
meio”, diria a Campanha da Fraternidade da CNBB).
31
Conceito explicitado anteriormente, no capítulo 1, no ponto “Movimento de instabilidade na
canção: uma condição paratópica”, pgs. 40-42.
32
Ferida no sentido dessa canção ferir ou romper com o modo apriorístico de fazer canção.

52
uma forma de repensar ou ferir o tempo e arranjo da música, de negação da
reprodução do código apriorístico musical33. Tal maneira não está só no plano
rítmico, mas no plano verbal, assim como na hibridação dos dois planos.

Essa possibilidade de composição musical34, referida no título do


presente trabalho, leva-nos a questionar sobre a idéia de música, do ponto de
vista estrutural, ético e político, que Tom Zé constrói, tendo em vista as
condições que o geraram no campo musical.

Partindo dessas indagações, moveu-nos pensar o lugar ou lugares de


Tom Zé diante da cena artística musical a qual o gerou, a tropicalista.
Assumimos a hipótese de que a condição paratópica do autor compositor se
constrói a partir de uma retroalimentação descancional, ou seja, de um
posicionamento estético de decomposição cancional.

33
Segundo Campos (1997), o código apriorístico musical refere-se à leis sagradas e imutáveis
de um código de linguagem musical, condicionadas pelo veículo de massa que retroalimentam
uma convenção de valores estéticos musicais.
34
A idéia de descanção é citada pelo compositor Tom Zé, no livro autobiográfico “Tropicalista Lenta
Luta”, 2003.

53
CAPÍTULO 3 - RESSONÂNCIAS E DESFORMAS DA CANÇÃO

1. DESCANCIONANDO POR ENTRE RASURAS E IMAGENS GROTESCAS

A musical que envolve arranjos verbais e não verbais não só se escuta


como se vê, sua execução nos faz construir uma imagem a partir de
interferências performáticas de ritmos, vozes e gestos corporais. Tais gestos
podem se vincular a dado posicionamento.

O cantor ao interpretar a canção incorpora fala ou falas diferentes que


ressoam em planos vocais, instrumentais e corporal físico. A performance
vocal revela-nos a concretização de investimentos discursivos variados,
sinalizando-nos posicionamentos ideológicos.

A idéia de performance como expressão argumentativa está no corpo


como na fala. A exacerbação de atividade performática vocal na canção chega
a dar forma física, corpórea e visual à música através do som. Veremos, a
seguir, um modo de voz e corpo se rasurar. Na canção Minha carta, por
exemplo, o personagem enunciador incorpora a fala do indivíduo sofrido e
saciado de saudade de um amor. O efeito de rasura na voz constrói uma das
características de descanção. A voz representada e cantada imbrica-se no
corpo físico e o corpo físico no corpo da música, levando-nos à visualização de
imagens grotesca.
35
Minha carta

1. Eu preciso mandar notícias


2. Pro coração do meu amor me cunzinhar
3. Pro coração do meu amor me refazer, me sonhar, me ninar, me comer,
4. Me cunzinhar como um peru bem gordo
5. Como um garrote arrepiado
6. Um casal de pombas
7. Que saiu da sombra.
8. Me cunzinhar como um bezerro santo
9. Canário preso
10. Pra limpar o canto
11. Luxa no alpiste
12. Mas o trinado é triste
13. Eu escrevo minha carta no papel decente
14. Quem se sente com saudade não economiza
15. Martiriza
16. Martiriza o pensamento

35
Versão do Cd Jardim da Política, 1984.

54
17. Eu digo no papel
18. Que o anel
19. No anel do pensamento
20. Andei duzentas léguas
21. Minha égua
22. Minha égua esquipando
23. O peito me sacode,
24. Cada golpe.
25. Nesse golpe do galope que o envelope engole
26. Cada gole
27. Cada gole da lembrança vale um tesouro
28. É besouro
29. É besouro que se bate
30. Sempre na vidraça
31. Quando passa em pensamento
32. Volta na saudade
33. Toda tarde.
34. Eu preciso mandar
35. Mandar notícia.
36. Ai, ai, ai, ui, ui
37. Ai,... , ai, ai...

Diante de sua escuta, a canção se desdobra em um corpo que vai


crescendo, tecendo inicialmente uma imagem colossal, a palavra vai tornando-
se tão visceral quanto o sentimento expressado, sugerindo-nos a visualização
de imagem e corpo grotescos:

4. Me cunzinhar como um peru bem gordo


5. Como um garrote arrepiado

O sentido grotesco ao qual mencionamos aqui remete à idéia de


grotesco da Idade Média, discutido por Bakhtin (1999)36, na obra sobre a
cultura popular da Idade Média no contexto de escritor François Rabelais.

A imagem grotesca na canção aqui é desenhada através de um


investimento no código lingüístico de expressão comparativa como um peru
bem gordo. O que enfatiza nessa circunstância não é necessariamente a idéia
de peru, mas sua configuração engrandecida, o “bem gordo”. Assim como a
outra expressão “como um garrote arrepiado”. O que dá corpo ao sentido
desses versos cancionais são os atributos visuais gordo e arrepiado.

36
Para retomar o assunto consultar página 39-40

55
Em outro momento constrói-se uma cenografia campestre, na qual o
personagem, metaforicamente, insere-se num campo, no campo de turbilhão
de pensamentos:
19. No anel do pensamento
20. Andei duzentas léguas (vs.38,39)

Que exalta o etos grotesco e visceral expressado, alimentando um tom carnal.

A voz aí traz a simbologia do diálogo inalcançável, a busca do


impossível. Escutamos e visualizamos nessa canção um corpo em conflito com
ele mesmo, que se fragmenta em vias sonoras. O corpo físico configurado na
canção revela a voz e suas vias, a garganta mais profunda; aberta ao ventre e
ao interior que é, ao mesmo tempo, expressão de idéia e descarga, em que e
pela qual toda articulação se faz metafórica (ZUMTHOR, 1997, p. 15).
34. Eu preciso mandar
35. Mandar notícia.
36. Ai, ai, ai, ui, ui
37. Ai,... , ai, ai...

Percebemos o movimento acelerado crescente do arranjo cancional,


gerando a velocidade e intensidade sonora, mostrando o entrelaçamento entre
nota musical e voz:
22. Minha égua esquipando
23. O peito me sacode,
24. Cada golpe.
25. O peito me sacode,
26. Cada golpe.
27. Nesse golpe do galope que o envelope engole
28. Cada gole

2. Deslinearização e defeitos verbais

A construção dos enunciados falado e escrito segue, canonicamente,


uma ordenação de sujeito, predicado e circunstantes. Essa configuração
delimita uma estabilidade, impõe uma sistematização da ordenação de
palavras, dando-as certa imobilidade, devido à disposição de idéias
segmentadas, fragmentadas, ordenação que leva a uma especificação, a uma
verticalização de conceitos.

56
Essa rigidez sintática também configuração a lógica discursiva do
pensamento ocidental, que caminha para uma especificidade formal, tentando
omitir os desajustes ou deslinearidades significativas existentes. A lógica de
pensar a linguagem assim ... leva a ver o mundo em pedacinhos separados,
desligados uns dos outros (Pignatari, 2004: 47).

Deslinearizar a língua é um dos aspectos que apontam para um modo


de descanção das canções analisadas aqui. É através do investimento
lingüístico numa sintaxe verbal, visualmente e semanticamente, desarranjada
ou “quebrada” que se sai da linha ocidental e constrói-se uma outra sintaxe.

O investimento numa deslinearização verbal no ambiente musical de


Tom Zé, contribui também para a posição entre estar e não estar, digamos,
para um lugar paratópico.

Algumas canções trazem um aspecto desconstrutor ou deslinear na


sintaxe verbal, rompendo, assim, com a linearidade na canção, causando a
negação da ordem canônica e trazendo outra ordem: a dos efeitos de sentidos,
a ordem do tato, do ouvir e ver a canção.

2.1 O defeito: problema e perfeição

Diante de um momento que expressa o super monitoramento de


máquinas sobre as diversas atividades humanas, a multifuncionalidade via
computadores, refletida no cotidiano do homem século XXI, tenta-se ajustar ou
operar homens e máquinas visando à ausência de erros em seu
funcionamento.

Dessa maneira, o trabalho impõe ao homem inúmeras restrições,


exigindo dele maior eficiência, rapidez e auto-controle, tornando-se cada vez
mais impensável sua possibilidade de falha.

57
E o defeito ou falha para “os grandes homens” (os singularmente
maquinados) seria o pensar nos efeitos desconstrutivos causados pela própria
máquina. É inegável também que o homem se transforme em máquina, sendo
favorável a ela por motivos de sobrevivência ou, contrariamente, molde-se
numa máquina que possa destruir aquela que o transformou.

Dialogando com a alteridade: a representação do homem infalível ou o


que não pensa nos efeitos das máquinas por já também estar maquinado,
aparece no álbum “Com defeito de fabricação”37. São quatorze canções para
pensar em defeitos inerentes ao homem e a criação de cada uma delas é
considerada um defeito.

1. Defeito1: O GENE
2. Defeito2: CURIOSIDADE
3. Defeito3: POLITICAR
4. Defeito4: EMERÊ
5. Defeito5: O OLHO DO LAGO
6. Defeito6: ESTETICAR
7. Defeito7: DANÇAR
8. Defeito8: ONU, ARMA MORTAL

9. Defeito9: JUVENTUDE JAVALI

10. Defeito10: CEDOTARDAR


11. Defeito11: TANGOLOMANGO
12. Defeito12: VALSAR
13. Defeito13: BURRICE
14. Defeito14: XIQUEXIQUE

Atentemos que a iniciativa de criação da canção já é considerada um


defeito implícito em todas as canções. Lendo alguns títulos das canções,
como: Curiosidade, Politicar, Cedo tardar, Dançar, ONU, arma mortal,
percebe-se que eles apontam para uma afirmação de caráter humano que é
omitido pelas forças maquinárias.

O compositor, ao assumir a idéia de nomear as canções como “defeitos”,


realiza um investimento estratégico, que torna a imagem do homem potente e

37
Luaka Bop/ WEA , Setembro 1998)
Edição Brasileira pela Gravadora TRAMA - 1999

58
criador em oposição ao domínio e ao comportamento do homem,
homogeneamente técnico. Assim, desdobram-se as canções do álbum “Com
Defeito de fabricação”, sendo elas, ironicamente, numeradas como um
“problema de fabricação”38.

O simples ato de nomear “os defeitos” curiosidade, de dançar ou cedo


tardar, valsar demonstra o “descontrole” e o não ajustamento do homem. O
“defeito 8”: Onu, arma mortal expressa uma reação à máquina de controle
global.

O sentido de curiosidade nesse álbum é concebido como um defeito que


desestabiliza o homem funcional, operador de máquinas de várias modalidades
que o fazem sobreviver. O homem no ápice de sua multifuncionalidade ainda
pode transformar-se em ser curioso. E uma curiosidade pode levar a outra:

Defeito2:CURIOSIDADE
(Tom Zé / Gilberto Assis)

Quem é que tá botando dinamite


Na cabeça do século ?
Quem é que tá botando tanto piolho
Na cabeça do século ?

Quem é que tá botando tanto grilo


Na cabeça do século ?
Quem é que arranja um travesseiro
Pra cabeça do século ?
Pra cabeça do século ?

Arrastão de Alfred Nobel e de sua dinamite.

A cena construída com o enunciado botar dinamite na cabeça do século


nos revela um ato de explosão, de atividade não operária, mas de revolução,
movido por um desejo de alguém movimentar-se e agir já em estado de
saturação. E essa seria uma natureza do homem cuja voz é omitida, silenciada
pelo barulho de imposições multifuncionais.

Lemos a pergunta recorrente Quem é que tá botando dinamite Na


cabeça do século? como a voz de um outro curioso (a voz manipuladora,
dominadora) que, contraditoriamente, quer omitir algo arraigado no homem, a

38
As canções são numeradas de acordo com defeito nomeado. Defeito 1: O gene (Arrastão
do Santo Agostinho); Defeito 2: Curiosidade (Arrastão do Alfred Nobel e de sua dinamite).

59
curiosidade. A dinamite ali, como o piolho, o grilo em Quem é que tá botando
tanto piolho Na cabeça do século?; Quem é que tá botando tanto grilo Na
cabeça do século? são símbolos que representam a dissipação, o desconforto,
o barulho que significam a expansão do homem, voltada para modificar um
lugar e interromper uma rotina desumana.

Olhando através de orifícios maiores, percebemos na idéia de defeito


uma postura de desajuste salutar, que expõe a canção e seu problema,
levando-nos a questionar que defeitos são esses. A não-linearidade está em
revelar incômodos, ou seja, de refletir sobre o considerado defeito.

O “defeito de fabricação” não está só na sintaxe verbal da canção, mas


também na idéia de ser defeituoso o ser humano, geneticamente falando:

Defeito 1: o Gene (arrastão do Santo agostinho):


A gente já mente no gene
A mente no gene da gente
Faça suas orações uma vez por dia
Depois mande a consciência Junto com lençóis
Pra lavanderia

O verso cancional A gente já mente no gene afirma a mentira como um


caráter natural e vital do ser humano por compor a mente e o gene. A palavra
mente, nos versos: “... já mente no gene (...), a mente no gene da gente”,
parece significar-nos a mente e a mentira no gene da gente como o próprio
defeito.

E o que há para além da mente e da mentira no gene: “orações” ou


“fazer orações uma vez por dia e lavar a consciência (...)”. A melodia da
canção se dá no contra tempo, faz-se em arranjos quebrados, demonstrando
saltos de uma linha constante, apontando-nos “defeitos de tocar”.

Percebemos outros defeitos como o de si (de Tom Zé cantor), que


remete ao auto-rebaixamento, mostrados através de índices lingüísticos como
“um zero, um zé à esquerda”.

Defeito 6: ESTETICAR (Estética do Plágio)


(Tom Zé / Vicente Barreto / Carlos Rennó)

60
Pense que eu sou um caboclo tolo boboca
Um tipo de mico cabeça-oca
Raquítico típico jeca-tatu,

Um mero número zero um zé à esquerda


Pateta patético lesma lerda
Autômato pato panaca jacu

Penso dispenso a mula da sua ótica


Ora vá me lamber tradução inter-semiótica

Se segura milord aí que o mulato baião


(tá se blacktaiando)
Smoka-se todo na estética do arrastão

Ca esteti ca estetu
Ca esteti ca estetu
Ca esteti ca estetu
Ca esteti ca estetu
Ca estética do plágio-iê

Help, Suassuna

Help, Tinhorão

Pensa que eu sou um andróide candango doido


Algum mamulengo molenga mongo
Mero mameluco da cuca lelé
Trapo de tripa da tribo dos pele-e-osso
Fiapo de carne farrapo grosso
Da trupe da reles e rala ralé

(Arrastão dos baiões da roça. Espinha dorsal)

Através do investimento em expressões lingüísticas estereotipadas, de


raízes da cultura tradicional nordestina, o autor personagem, enunciador,
desenha um ethos que se aproxima do humano e desumano: “Raquítico típico
jeca-tatu..., Pateta patético lesma lerda, Pensa que eu sou um andróide candango doido”,

Algum mamulengo molenga mongo, dentre outras nomeações de caráter análogo,


que remetem à imagem cômica e inferiorizada do nordestino.

A ação de esteticar sugerida no título da canção nos parece um ato do


enunciador se perceber inserido num mosaico de alteridades, uma absorvendo
outra, gerando continuamente uma nova estética. Esse seria um instante de
apropriação de várias linguagens, de possibilidades textuais pertencentes a
vários autores, designando o momento antropofágico que caracteriza o homem
do século XXI.

61
Interpretamos essa canção como também um auto-rebaixamento,
mostrando o rir de si mesmo. Aspecto que dialoga com os relatos que Bakhtin
(1999) apresenta sobre a manifestação da cultura popular na Idade Média e
no Renascimento.

A manifestação do riso fora omitida no período da Idade Média: o riso


pertencia às camadas de classe inferior e tinha uma avaliação negativa, o que
é essencial na vida não poderia ser cômico.

Bakhtin (op. cit.) explana sobre a literatura marginalizada no período da


Idade Média, a do baixo ventre e do riso, defendendo que o próprio riso não se
transforma ainda completamente em uma ridicularização pura e simples: seu
caráter está ainda suficientemente íntegro, ele diz respeito à totalidade do
processo vital, os dois pólos e as tonalidades triunfantes do nascimento e da
renovação aí ressoam. (BAKHTIN, 1999, p. 55).

Vemos, então que o riso aqui significa a afirmação da força vital do


homem. Nesse caso, revela-nos uma estética que mostra o desarranjo de um
indivíduo com raízes nordestinas. E que expressa um desfazimento de uma
negação dele para se chegar à afirmação de que ele é “Um mero número zero,
um zé à esquerda”. Visão essa que foi omitida e isolada no período
Tropicalista, e representa uma ironia auto-afirmativa.

A negação de si marca um lugar de origem, através de expressões


lingüísticas estereotipadas pertencentes à cultura nordestina:
um caboclo tolo boboca, Um tipo de mico cabeça-oca
Raquítico típico jeca-tatu.

Os atributos de sentido inferior: “cabeça-oca”, “lesma”, “lerda”, “boboca”


sugerem um discurso que nos diz a indolência e a passividade do indivíduo
nordestino. Essa seria afirmação de uma identidade nordestina, através da voz
do não nordestino, mas da voz que incorpora a voz de auto-rebaixamento, do
nordestino, nas primeiras duas estrofes:

Pense que eu sou um caboclo tolo boboca


Um tipo de mico cabeça-oca
Raquítico típico jeca-tatu,

62
Um mero número zero um zé à esquerda
Pateta patético lesma lerda
Autômato pato panaca jacu

Mais adiante, nas estrofes terceira e quarta, pousa uma voz que se opõe
à voz do cientista, acadêmico, soando uma provocação aos nomes Tinhorão e
Suassuna. O enunciador reagindo, também em defesa aos valores e atributos
de caráter inferior da representação nordestina, que se mostra em cabloco,
tola, boboca, zé a esquerda:

Penso dispenso a mula da sua ótica


Ora vá me lamber tradução inter-semiótica.

Atribuindo ao olhar da voz primeira, de caráter avaliativo, teórico,


intelectualizado e que corrompe a imagem do indivíduo nordestino, uma
indiferença e invalidez.

Essa mesma voz volta a se pronunciar nas últimas duas estrofes, que
reforça mais qualidades estereotipadas do nordestino:

Pensa que eu sou um andróide candango doido


Algum mamulengo molenga mongo
Mero mameluco da cuca lelé
Trapo de tripa da tribo dos pele-e-osso
Fiapo de carne farrapo grosso
Da trupe da reles e rala ralé

Tais versos apresentam um ethos da identidade nordestina


subestimada. E expressam o riso de si mesmo.

Os chamados a Suassuna (help, Suassuna) e a Tinhorão (help,


Tinhorão), vêm a ser uma provocação a representantes da cultura nordestina e
de valores nacionalisatas. A presença desses dois nomes nesse contexto é
significativa por representarem forças que se opuseram a determinados
comportamentos tropicalistas: a permissão ao hibridismo cultural, a uma atitude
antropofágica diante da música e cultura estrangeira.

Ariano Suassuna, secretário de cultura de Recife (desde 1995), é


vinculado a projetos de conservação da cultura nordestina. Foi mentor do
movimento Armorial, que propunha práticas de incentivo e realizações da

63
produção musical de raízes nordestinas, de cultura popular tradicional. Opõe-
se radicalmente às influências culturais estrangeiras. E integra-se, de certo
modo, à ideologia de José Ramos Tinhorão, paulista e estudioso da Música
Popular Brasileira, que adota uma postura repulsiva em reação à
contaminação de elementos estrangeiros na cultura brasileira. O primeiro tende
a um regionalismo favorecido ao Nordeste e o segundo, a um nacionalismo.

Tinhorão é contra o posicionamento Tropicalista no que se refere à


prática de antropofagizar influências musicais estrangeiras (rock, jazz) e Ariano
Suassuna é a favor da conservação da Música Popular Brasileira com base
nas raízes unicamente ibéricas.

3. Ser estavelmente paratópico num lugar entre lugares

Dialogamos nesse momento com fragmentos verbais e não-verbais que


apontam para uma série de instabilidades (afetiva, espacial, rítmico-musical,
dentre outras). Idéias que nos fazem pensar em outras duas, que de certo
modo, são afins: a condição paratópica, condição que marca o lugar de
isolamento parcial de um indivíduo, personagem ou autor; e a idéia de
grotesco, a exteriorização de corpos.

Ao nosso contaminado olhar é perceptível, em canções significativas,


inserções de elementos lingüísticos arranjados que nos sugerem a idéia de
instabilidade: um estar presente em movimento, entre um lugar e outro.

Consideramos instabilidades os desajustes ou “feridas” que a canção


toca. Esses são as fissuras geradas na dinâmica de realidades humanas,
política, cultural, histórica e econômica, que guarda em si a força do
pensamento patológico, como nos revela Lévi Strauss39:

extravasamento de interpretações e de ressonâncias afetivas, com as


quais está sempre pronto a sobrecarregar a realidade, que serve de
outro modo deficitária (STRAUSS apud WISNIK, 1980, p. 173).

39
Claude Lévi-Strauss, “o feiticeiro e sua magia” in Antropologia estrutural, Rio, Tempo brasiliense,
1970, p. 199.

64
O pensamento patológico está para além do pensamento “normal”, da
realidade convencionalmente estável que quer negar a instabilidade da vida: os
assistemáticos, as influências afetivas sobre as ações, o caos, aspectos que
transcendem os universos institucionalizados.

A canção ferida pode ser considerada também como um modo de


descanção, por descancionar a vida na canção, sendo incorporada nela
doenças ou enfermidades da vida com as quais o homem convive.

Designamos “feridas” às doenças, às enfermidades, paradoxalmente,


presentes na canção, o caráter de vitalidade por gerarem sempre uma nova
canção, e, conseqüentemente vidas nela, mesmo que seja uma vida
parasitária, uma condição de vida instável de um indivíduo.

Apegamo-nos à idéia de que as feridas, geradoras de instabilidades na


canção, constroem a imagem de um compositor que está entre um lugar e um
não lugar, diríamos, numa condição paratópica.

Ser paratópico diz respeito à própria condição de existência do autor


enquanto artista; o seu modo de pertinência no campo artístico é marcado por
uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar; de uma localização
parasitária, que vive da própria impossibilidade de se estabilizar.
(MAINGUENEAU, 2001, p.28)

Apresentamos, então, adiante, uma maneira da condição paratópica se


realizar na canção, o que caracterizamos também por movimento de
instabilidade.

Aqui apontamos traços que integram o discurso literomusical do


compositor e experienciador, sem necessariamente ou unicamente classificar
categoricamente os modos de inserções discursivas: os traços, estratégias ou
investimentos discursivos e interdiscursivos, que pressupõem as inserções
ética, cenográfica, genérica que estão configuradas na canção.

Percebemos que o movimento de instabilidade pode ser integrado à


dinâmica do corpo cancional, através do uso de investimentos discursivos na
entonação baixa da voz, na performance vocal, na sintaxe lingüística auto

65
afirmativa, no uso de antítese, que apresenta a justaposição de idéias e vozes
contrárias, coexistentes na canção. Tais investimentos geram um movimento
errante, causando uma impressão de instabilidade.

“Tô” 40
Tô bem de baixo pra poder subir
Tô bem de cima pra poder cair
Tô dividindo pra poder sobrar
Desperdiçando pra poder faltar
Devagarinho pra poder caber
Bem de leve pra não perdoar
Tô estudando pra poder ignorar
Eu tô aqui comendo pra vomitar
Tô te explicando
Pra te confundir
Tõ te confundindo pra te esclarecer
Tô iluminando
Pra poder cegar
Tô ficando cego, pra poder guiar
Devagarinho pra poder rasgar
Olho fechado pra te ver melhor
Com alegria pra poder chorar
Desesperado pra ter paciência
Carinhoso pra poder ferir
Lentamente pra não atrasar
Atrás da vida pra poder morrer
Eu tô me despedindo pra poder voltar

Diante de sua sonoridade, sentimos uma constância do movimento


oscilante, digamos, instável, entre um estar e não estar, um ficar e sair, como
se o personagem representado na canção estivesse numa corda bamba, na
qual o equilíbrio está na conscientização do desequilíbrio que essa corda gera.
A corda de que falamos acreditamos ser ela a dinâmica da vida. A visualização
da “corda bamba” oscilante se dá a partir da oposição de idéias coexistentes
nesta canção. Imagem que demonstra o modo do indivíduo se posicionar
paratopicamente, diante da vida:

Tô bem de baixo pra poder subir, To bem de cima pra poder cair
Tô dividindo pra poder sobrar, Disperdiçando pra poder faltar
Tô te explicando, Pra te confundir, To te confundindo pra te esclarecer, Tô iluminando,
Pra poder cegar, To ficando cego, pra poder guiar.

40
Zé, Tom. Estudando o samba. 1976.

66
A instabilidade de vida de que falamos é representada, desse modo,
como um percurso repleto de movimentos “de altos e baixos”, que sugerem
tremor, escorrego, levando o personagem incorporado a caminhar para
escorregar, a cair e se erguer, prestes a outro escorrego assim e sempre.

O título da canção nos diz algo significativo, tô, abreviação do verbo


estar, conjugado em primeira pessoa do singular, que expressa o sentido de
“Eu estou”, no equilíbrio do desequilíbrio. Nessa circunstância, esse verbo
denota um estado, um momento da condição do indivíduo.

4. A REINTERPRETAÇÃO OU RELEITURA: O INACABAMENTO OU


EFEITOS DE DESCANÇÃO

A canção aqui se faz do início ao seu finito inacabamento. Queremos


dizer que a música se inicia e não se finaliza, desfaz-se, refaz-se, relê a si
mesma. Utilizamos o termo “finito” não como o significado de finalização, de
conclusão da música, mas como uma afirmação dela mesma em não expressar
um fim.

Esse é um dos modos de criação musical recorrente observado em Tom


Zé. As músicas são criadas e recriadas, apresentando uma inesgotável
produção ou reprodução de si, que nos revela um caráter incessante de
reinvenção cancional.

Em termos mais precisos, a reinvenção ou re-interpretação na canção


se dá quando o cantor utiliza uma mesma melodia em várias canções com
arranjos e letras diferentes (ora sim, ora não). Os aspectos que explicitam a
retomada de uma única melodia em “diferentes” canções podem localizar-se
em todos ou em alguns dos planos: do tratamento vocal, da projeção de
timbres, do ritmo, do andamento, da harmonia e da construção verbal.

Ouvindo assimilando mais essa maneira de musicar e de se inserir no


mundo, dialogamos com Zumthor (1998) sobre o mito da Torre de Babel e o
seu inacabamento.

67
O fazer inacabado na música dialoga com a linguagem de um tempo em
desordem, de excessos e de uma dada incompreensão. Relacionamos a tal
incompreensão ao mito Torre de Babel, que perpassa por várias significações:
bíblica, histórica, lingüística e antropológica e por outras que nem sabemos.

São inumeráveis as significações em torno do signo Babel. A primeira e


fonte, digamos assim, surge da interpretação bíblica, a qual designa a
construção de uma torre em Babilônia, lugar onde há confusão infindável de
línguas, onde o povo se fala sem se ouvir. Ètiemble (apud Zumthor, 1998, p
21), um dos estudiosos sobre a significação do atributo babel ou babeliano, fala
de uma mistura anárquica, de uma colonização lingüística. Abordar esse
assunto, segundo o autor, seria refletir sobre as relações entre poder e a
língua, os discursos e as mentiras, a comunicação e a opressão, a palavra e a
recusa do outro. Num sentido mais literal, Chateaubriand (apud Zumthor,
1998, p 22) define babel como uma construção de dimensões desmedidas na
qual se previa vaidade e nocividade.

Conforme se percebe pelas afirmações acima, Zumthor (op.cit.)


concebe o sentido do lugar “Torre de Babel” como uma idéia de desordem, de
uma impossibilidade de uma língua encontrar a si mesma. De outro modo,
apresenta duas definições: uma incoerência ou mescla inorgânica, desordem
de objetos, de palavras, de idéias, ruídos; e, um edifício alto ou uma ambição
excessiva de projeto e de um plano” (ZUMTHOR, 1998, p.22).

Tomando uma dessas afirmações e configurando-a ao ambiente sonoro


e musical, vemos que se constrói um babelismo na canção de Tom Zé. A
canção vista como uma impossibilidade de se finalizar, por afirmar, em outras
palavras, a confusão da linguagem musical: arranjos infindáveis de uma
canção que gera várias. A desconstrução de uma música em inúmeras
versões se multiplica em timbres e vozes.

O babelismo é compreendido aqui como uma confusão lingüística,


traduzida em um texto inacabado que se refaz ao longo de sua existência. Qual
a relação que podemos construir entre a confusão linguageira em torno do mito
Torre de Babel e a criação cancional, considerando a produção musical uma

68
obra? Que relação pode haver com o posicionamento Tropicalista, no qual Tom
Zé é incluído e excluído?

Antes de uma resposta, compartilhamos com Maingueneau (2001,


p.101) uma idéia sobre a relação do escritor com a língua e literatura para
apreendermos significados da(s) língua(s). Com ele vimos que o escritor41 não
é um ourives solitário que se confronta com uma língua compacta. Esclarece-
nos, desse modo, que a produção de uma obra literária, musical..., dentre
outras, não se constrói através de uma língua pura, intacta, ela se faz na
interação de múltiplos caminhos lingüísticos, exteriores à língua materna que a
integra. Nesse sentindo, o escritor interage no caos de línguas ao escrever sua
obra, alimenta-se no plano da interlíngua, entre línguas: passadas,
contemporânea ou outra (s), num determinado espaço:

Quer se escreva numa única língua ou numa língua estrangeira, o


trabalho de escrita sempre consiste em transformar sua língua em língua
estrangeira, em convocar uma outra língua. Maneja-se sempre o hiato, a
não-coincidência, a clivagem (MAINGUENEAU, 2001, p. 105).

Escreve-se no hiato, numa abertura, que permite cruzamentos e


encontros de planos fragmentados. A língua na sua fragmentação assume um
caráter constitutivo.

E no campo musical, dentre tantas linguagens musicais, o escritor


cancionista constrói uma língua sobre os cruzamentos de muitas existentes.
Tenta ajustar-se num real desajuste lingüístico, construindo, mesmo assim, um
código de linguagem peculiar a ele.

Percebemos, então, certa afinidade entre Zumthor e Maingueneau, no


que diz respeito à natureza das interações entre as línguas. A confusão ou
anarquia lingüística injustificável, a mistura entre várias camadas de uma língua
e de línguas traduz uma das manifestações musicais de Tom Zé: a do
inacabamento da canção.

41
O sentido de escritor que apresentamos aqui, refere-se àquele que produz uma obra literária, musical,
teatral, cinematográfica, dentre outras.

69
O efeito de inacabamento cancional contradiz uma das finalidades da
canção produzida na estética do posicionamento Tropicalista. Ao incorporar
influências estrangeiras da música experimental e pop, de gêneros
estrangeiros (gêneros derivados do Rock´n´roll a partir dos anos 1960) e
nacionais, servindo-se de elementos eletrônicos e movidos pela filosofia
antropofágica de Oswald de Andrade, os tropicalistas pretendiam tornar a
canção popular acabada, pronta para ser consumida.

Nas canções de Tom Zé, é inegável a afinidade com o Tropicalismo, no


modo de compor, que, no entanto, não omite a desafinação ou a relevante
diferença do seu trabalho em si: a da construção de um posicionamento
paralelo a esse, a canção como descanção ou a canção movida mais por uma
vontade de fazer do que por uma vontade de apresentar em moldes canônicos,
comercial e publicamente: não era música, era vida. Era a vida na música e
não a música na vida. O que faz a canção ser inacabada é o desejo de compô-
la, de criá-la, de unir vida e música numa só canção que se multiplica:

Toda canção quer se multiplicar. Na multidão única se tornar.


Simples prazer de ressoar no ar
O som da voz canta por nós: cordas vocais, sem cais, cordas ou nós42

A idéia da canção ser interminável sugere um desenho de muitos


quadros em um só plano, expressando o caráter de uma multiplicidade
singular. Característica comum e contrária à tendência tropicalista

Comum porque a canção de caráter tropicalista almeja uma


multiplicidade de gêneros musicais, coerente com a idéia de multiplicar uma
canção numa mesma melodia em diferentes gêneros. Contrária por que a
canção de Tom Zé não tinha metas de atingir ampla popularidade e sim de
fazer, de compor, mergulhar no campo da canção ainda por construir.

Como já apresentamos antes, Tom Zé utiliza vários recursos ao fazer


reinterpretação de si mesmo e de outros43, uma criação de outro arranjo a partir
de uma mesma melodia. Mas que efeitos, que sentidos uma reinterpretação

42
Canção Multiplicar-se única do álbum The hips of Tradicion (1992).
43
A canção Felicidade de Tom Jobim – Vinícius de Moraes do álbum Estudando o Samba
(1976)”. Aqui há uma reinterpretação dupla: da canção e do gênero musical Samba.

70
pode gerar, além da afirmação do desejo vital na canção que se torna
inacabada?

A reinterpretação pode levar à desconstrução, à deslinearização de um


corpo cancional que integra elementos lingüísticos e extralingüísticos,
inaugurando novos gêneros. Veremos que modos e que tipos de
desconstrução são esses e quais efeitos geram na canção, observando como
eles apontam para uma afinação e/ou desafinação em relação ao
posicionamento tropicalista.

Ao admitirmos a noção de reinterpretação nas canções, partiremos mais


adiante para a análise discursiva dos álbuns Jogos de Armar- Faça você
mesmo e Com defeito de Fabricação, permitindo a fruição de efeitos de
sentidos que a interpretação e a reinterpretação geram.

5. JOGOS PARA DESMONTAR E ARMAR

Em detalhes, cabe nesse momento uma breve leitura do encarte do


álbum Jogos de Armar, para que seja possível reconstruir um sentido da idéia
do fazer sem delimitações.

Lembramos que uma leitura discursiva não se restringe à materialidade


lingüística verbal. Engloba também outro universo, o da materialidade visual, o
da imagem não-verbal que traz seu tema, cores, formas e desenhos
referenciando sentidos, atrelados a uma história, a uma sociedade.

É a partir de um olhar intersemiótico, o da integração de elementos


verbais e não verbais que também construimos sentidos, sendo possível
levantarmos pressuposições de valores históricos, culturais, filosóficos e
sociológicos. Elementos que integram uma prática discursiva: Assim como o
enunciado, também um quadro, o trecho de música... estão submetidos por

71
sua prática discursiva a um certo número de condições que definem sua
legitimidade (MAINGUENEAU, 2005, 148).

Em diálogo com tais considerações, lemos o encarte do álbum Jogos de


armar, faça você mesmo como elemento constitutivo de sentido. Como tal
materialidade significa o discurso do fazer sem delimitações ou do “faça você
mesmo”, que efeitos geram a configuração da capa do encarte do álbum, a
seguir?

(capa álbum Jogos de Armar- Faça você mesmo, 1999)

O título do álbum Jogos de armar-Faça você mesmo sugere-nos um


jogo e um convite ao ouvinte a participar de várias possibilidades de jogos. A
partir dos índices explicitados na capa do álbum, como a frase imperativa
“Faça você mesmo”, a figura do objeto “dado”, dentre outros elementos que
configuram a capa, veremos possíveis relações que se constroem com a idéia
de inacabamento e com outras que surgem no decorrer da análise.

Diante da imagem apresentada, iniciamos nossa análise pelo título.


Inferimos a idéia de música como uma montagem musical em aberto, um jogo
que sugere ao hipotético ouvinte formar o seu, criar seu próprio jogo, que é
sua música, dando-lhe, assim, uma parcial autonomia de escolha. Essa
possibilidade de montagem musical sugerida através da expressão Faça você
mesmo traça uma relação interdiscursiva com o discurso do movimento PunK
“Do it yourself”, no período da década de 1970.

72
Só que a idéia de jogo pressupõe regras, mas nessa circunstância, não
existe uma regra universal a obedecer. Há várias possibilidades de construção
de regras, elas aqui se multiplicam, de acordo com a montagem de cada
ouvinte-jogador em potência.

Observando a capa em seu conjunto, uma simulação de jogo de damas


(ou de xadrez, que exige uma atitude lúdica altamente racional e cujos lances
são mais imprevisíveis), há em alguns espaços quadrados as imagens de Tom
Zé (compositor) e de alguns objetos, que funcionam como instrumentos
musicais. Isso nos leva a pensar que ao mesmo instante que se implicita a
capacidade de um (ouvinte) fazer seu jogo, sua música (por ele mesmo), há
uma retomada ou auto-afirmação da figura de Tom Zé como compositor e
criador.

A frase em um dos quadrados inferiores, não é um cd duplo44 , leva-nos


a perguntar o que se quer dizer com tal negação. Ao escutarmos, vimos que
sua inserção não significa integrar um álbum duplo, mas uma continuidade do
primeiro, um cd auxiliar que nos revela a desconstrução do cd primeiro (disco-
mãe):

o embrião de células musicais que podem ser manejadas, remontadas:


um tipo de canção-módulo, aberta a inúmeras versões, receptiva à
interferência de amadores ou profissionais, proporcionando jogos de
armar nos quais qualquer interessado possa fazer si mesmo: Uma nova
versão da música, pela remontagem de suas unidades constituintes,
aproveitamenteo de partes do arranjo que foram abandonadas;(...) 45

O cd nos mostra trechos incompletos de músicas, trechos de letra e


arranjos aleatórios, ao ponto de tornar visível nuances do processo de
composição e gravação da canção. Esse comportamento não é comum nas
gravadoras.

44
Não sabemos exatamente se a negação “não é um cd duplo” é uma mensagem da
gravadora ou da própria ideologia do álbum. No entanto, independente do que seja, a frase nos
faz questionar tal negação, sendo até um incentivo a instigar o ouvinte a se perguntar que tipo
de cd é esse. Desse modo, refletimos sobre a outra possibilidade de álbum composto por dois
cds.
45
Relatos de Tom Zé ao contextualizar o álbum Jogos de armar-Faça você mesmo, no próprio
encarte.

73
O cd auxiliar e sua confirmação no relato exposto acima demonstram
aos nossos olhos certa idealização cultivada por Tom Zé: a de romper com o
sigilo do processo de gravação de músicos, que as gravadoras mantêm para
não haver vazamento ou plágio do “produto” de certos cantores. Acreditamos
que isso ocorra em função de um acordo entre empresários da indústria
fonográfica que visam apenas a fins lucrativos, sufocando possibilidades de
criação do próprio consumidor, seja ele qual for, ou de um músico em
potencial.

Retomando a idéia de jogo de armar, vimos, paradoxalmente, que o jogo


se faz a partir do cd auxiliar, trazendo outras versões das músicas do
primeiro, só que “em pedaços”, sugerindo a possibilidade de cada canção ser
um refazimento, um “jogo” para se montar, desmontar e remontar. Essas e
outras seriam as possibilidades de “armar o jogo”, a canção com fins lúdicos,
uma bricadeira do criar interminável.

Dialogando ainda com Jogos de armar- Faça você mesmo, vimos dentre
outros elementos, que ele traz canções de canções pré-existentes, canções já
tocadas em outros álbuns, conservadas nelas a mesma melodia com a
inserção de outros arranjos: outras nuances e tonalidades. Vejamos as
canções abaixo.

74
46 47
Jimi renda-se Dor e Dor
Tom Zé Composição: (Tom Zé)
(Tom Zé/ Valdez)
Gênero: maracapoeira
ARRASTÃO DO FALAR SOFISTICADO Te quero te quero querendo quero bem
Ed. Sonata (Fermata) 70274620
quero te quero querendo quero bem.
Guta me look mi look love me
Chiclete chiclete, mastigo dor e dor clete
Tac sutaque destaque tac she
chiclete,
Tique butique que tique te gamou
mastigo dor e dor.
Toque-se rock se rock rock me
Te choro te choro,
Bob Dica, diga,
chuvinha chuviscou.
Jimi renda-se!
Choro te choro,
Cai cigano, cai, camóni bói
chuvinha chuviscou.
Jarrangil century fox
Chamego chamego,
Galve me a cigarrete
me deixa me deixou.
Billy Halley Roleiflex
Mego chamego,
Jâni chope chope chope chope
me deixa me deixou.
Ô Jâni chope chope
A dor a dor, a dor a dor
Ie relê reiê relê
... ... ...
Mas eu te espero
porque o grito dos teus olhos
é mais
longo que o braço da floresta
e aparece atrás
dos montes, dos ventos
e dos edifícios
e o brilho do teu riso
é mais
quente que o sol do meio-dia
e mais e mais e oh oh oh oh oh
Mas eu te espero
na porta das manhãs porque
o grito dos teus olhos
é mais e mais e mais
e depois que você partiu
o mel da vida apodreceu na minha boca
apodreceu na minha boca
Oh, oh, oh, oh, oh

As canções acima têm uma mesma construção melódica, no entanto, um


arranjo verbal diferente. Consideramos a primeira, Jimi renda-se um caso de
imitação, uma auto-imitação com intuitos subversivos, da canção segunda, dor
e dor .

Apesar de estarmos considerando a primeira e a segunda numa ordem


cronológica (2000 e 1972), isso não significa exatamente dizer que uma surgiu
primeiro que a outra, pois não é possível sabermos qual a ordem de
surgimento de ambas canções. Talvez nem mesmo o autor saiba, devido às
misturas de arranjos e letras que tumultuam seu universo literomusical.

46
Do álbum Jogo de Armar, faça você mesmo (2000)
47
Do álbum Se o caso é chorar (1972)

75
Visualmente, um dos índices que nos mostra a desconstrução do arranjo
de uma na outra, de dor e dor em Jimi renda-se, é a encenação de um outro
código de linguagem estranho ao outro, um outro investimento lingüístico, o
qual apela para uma mistura de línguas: ora inglês, ora português, ora a fusão
das duas, ora uma ou outra língua a qual nem conhecemos.

Iniciando pelo nome da música, “Jimi renda-se” (gênero maracapoeira-


arrastão do falar sofisticado), lemos como sendo um convite direcionado à
figura do cantor Jimi Hendrix, não à pessoa em si, mas à notável
representação e relevância que ele tem para o Rock and Roll na década de 70,
além de outros aos quais ele cita: Bob Dylan (Bob Dica), Janis Joplin (Jâni
chope), Bill Halley (Billy Halley Roleiflex).

Parece tratar, na verdade, de um convite ao afastamento e,


paradoxalmente, a uma aproximação: Toque-se rock se rock rock me, Bob
Dica, diga, Jimi renda-se! Direcionado a figuras canônicas, a membros
representantes do universo do Rock Norte Americano, une, desse modo, uma
mistura de ritmos e estilos.

Inferimos que as condições de produção da referida canção, momento


histórico, circunstância política e musical, referem-se ao período da década de
60-70 (por fazer referência a cantores que tiveram ascensão entre essas
décadas). Com relação à postura musical, compreendia o momento recém
tropicalista, o qual trilhara uma reconfiguração de gêneros e modos de compor
a música brasileira.

A voz nos timbres arrastado e humorístico dá à canção um tom irônico e


brincante, e a melodia, emprestada de outra canção, dor e dor, expressa bem
o ritmo e tom de Rock and Roll.

O arranjo em acompanhamento instrumental sugere um arrastão,


nomeado maracapoeira, nome que designa uma mistura dos gêneros musicais
(maracatu e capoeira) de origem africana. Essa mistura contraria a formação
genérica do Rock, que geralmente não usufrui de uma mescla, sendo fiel a
suas características rítmica, harmônica e melódica predominantes, e

76
conservando o conjunto básico de instrumentos (guitarra e baixo elétricos,
bateria e eventualmente piano, orgão ou teclado elétrônico) .

Interpretamos essa canção como um modo de deslinearizar a linguagem


do gênero rock, de desconstruir a língua mãe do rock, a Inglesa, e trazer
também, a portuguesa ou a distorção das duas (o que gera outras línguas):
“Tac sutaque destaque tac she”; ferindo uma convenção lingüística do Rock
Norte Americano. O código de língua usado sugere a carnavalização, ou seja,
a quebra de uma hierarquia, no caso, a de ordenação e valores lingüísticos,
por trazer, libertariamente, a manifestação de várias línguas.

A canção “Jimi, Renda-se” incorpora também um caráter carnavalizante


por provocar uma quebra de hierarquia sintática e semântica da Língua
Portuguesa. E aponta para uma caractérista do posicionamento tropicalista,
problematizando o gênero musical Rock.

Na outra canção, a “dor e dor,” conserva-se parte de arranjo e melodia


enfocando o investimento num discurso amoroso. Observando-a, percebemos
o predomínio do investimento no plano lingüístico, o da repetição sonora de
várias palavras (te quero, chiclete, chuva) e fonemas:
Te quero te quero querendo quero bem
quero te quero querendo quero bem.

A repetição dos fonemas torna o desejo de querer, expresso pelo


enunciador, mais intenso, o desejo atinge a exaustão. O uso em série da
palavra chiclete nos faz inferir a ação de mastigar, a de degustar a “dor” do
querer, a de usufruir e sentir a dor vivenciada pelo eu que se constrói na
canção: Chiclete chiclete, mastigo dor e dor, clete chiclete, mastigo dor e dor.

Escutando a melodia, ritmo e batida, ouvimos um diálogo que se cria


entre a palavra, seu significado e melodia. Notamos uma imagem que se
constrói a partir da ação de “mastigar” um chiclete na canção: o ritmo se
fazendo em movimentos contínuos de subidas e descidas, de sim e de não,
relacionado analogicamente ao mastigar de chiclete.

Consideramos a redundânica dos fragmentos sonoros e fônicos um


investimento discursivo que leva à legitimação do discurso amoroso na

77
canção: a exaustão da palavra “querer”, que leva à exaltação e afirmação do
afeto. A redundância, dessa maneira, na canção é necessária e significativa,
ela amarra e intensifica a mensagem de dor e afeto.

Tendo em vista as duas canções paralelas, vemos que cada uma


delas é uma outra canção, apesar de partirem de um mesmo ponto melódico.
Enquanto “Jimi, Renda-se” se faz através do investimento em um discurso
carnavalizante, que dialoga com lugares e posicionamentos (tropicalismo,
reinvenção de um código de linguagem), a versão “dor e dor” dedica-se ao
plano fônico, à materialidade lingüística que ajuda a construir e a intensificar o
sentido da canção, problematizando e reconstruindo traços fônicos sonoros,
que de certo modo, também dialogam com o posicionamento tropicalista.

Visualizando “Jimi, Renda-se” em outro lugar, integrando o cd auxiliar de


“Jogos de armar”, tem-se nele uma outra versão, uma terceira, numa
roupagem que traz a quebra de arranjos, podendo ser usados numa nova
remontagem ou quarta versão. Com isso e através de outros índices, como o
próprio encarte, nomes e “sobrenomes” das canções, esse álbum nos sinaliza
uma fonte, a abertura do fazer sem delimitações.

Além disso, pontuamos aqui um dos efeitos das releituras de uma mesma
melodia em várias canções, que diz respetiro à idéia do inacabado, por ser
mais uma remontagem de uma outra, que está se repetindo diferenciadamente.

Daremos continuidade, a seguir, no investimento da reinterpretação de si.


Há, além dessas duas canções discutidas acima (Jimi renda-se, Dor e Dor),
canção que ao contrário dessas, é conservada em parte a materialidade verbal
e é recriada a melodia, como:

78
2. Defeito2: CURIOSIDADE (Álbum A Babá (Se o caso é chorar - 1972) composição Tom
Com defeito de fabricação-1998) Zé
Tom Zé / Gilberto Assis
O Rockefeller acusou Branca de Neve,
Quem é que tá botando dinamite os anões se dividiram,
Na cabeça do século ? três de sim e três de não,
Quem é que tá botando tanto piolho mas um morreu de susto
Na cabeça do século ? e perguntava, perguntava, perguntava:
Mas quem é, quem é, quem é?
Quem é que tá botando tanto grilo quem é que agora
Na cabeça do século ? está cantando um acalanto
Quem é que arranja um travesseiro pra cabeça do século?
Pra cabeça do século ? Ô de marré, de-marré-de-ci
Pra cabeça do século ? Quem é que está fazendo
pesadelos na cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci
Quem é que está passando
dinamite na cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci
Quem é, quem é, quem é?
me diga você que sabe datilografia
quem é, quem é, quem é?
me diga você que estudou filosofia
Quem é que agora está
fazendo tanto medo na cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci
E quem é que tá
botando piolho na cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci
Quem é que está passando
pimenta na cabeça do século?
Ô de marré, de marré de si
Quem é, quem é, quem é?
Me diga você que sabe datilografia
quem é, quem é, quem é
me diga você que estudou filosofia
Quem é que agora está
botando tanto grilo na cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci
Quem é que empresta
um travesseiro pra cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci.

Apesar da extensão verbal de uma ser diferente doutra, as duas


conservam um mesmo ponto sensível, com relação à temática: a da
curiosidade. As melodias são bem distintas, a auto-reinterpretação aqui marca
e constrói um ethos do indivíduo curioso. Uma característica inerente ao
homem e, ao mesmo instante, sufocada por certas imposições sociais.

79
Para as perguntas recorrentes “Quem é que tá botando dinamite
48 49
Na cabeça do século? ”; Quem é que está passando
dinamite na cabeça do século?”, não há respostas, permanece o incômodo em se
saber quem está movendo o século, quem está criando, quem está pensando
ou “curiando” numa sociedade que tende a gerar múltiplas circunstâncias que
imobilizam o homem, levando-o ao abismo e a abismos banais.

O traço da curiosidade se relaciona, em outra instância, à própria


imagem e carreira de Tom Zé, representada nas década de 70, 80, 90 e no
início do ano 2000, em virtude de sua incessante e explícita vontade de criar
uma música, movida por inquietações que visavam traduzir uma verdadeira
canção, mesmo sendo esta uma descanção.

Nota-se a curiosidade, essa em recriar e discutir a partir de uma


desconstrução de valores estéticos e culturais, expressa nos álbuns Estudando
o Samba (1976) e Estudando o Pagode (2005). O primeiro trata do pensar no
gênero musical Samba e o segundo, no pagode, nesse último há o enfoque no
discurso feminino, enfocando como a sociedade ocidental, do ponto de vista
masculino, atribui à mulher posturas e valores que se refletem no gênero
pagode50.

Os dois álbuns, além do segundo ser uma reapropriação do primeiro


quanto à idéia de estudar um gênero cancional, há a problematização e
reconstrução dos gêneros samba e pagode.

Podemos inferir que uma característica predominante no seu trabalho é


a de criar e recriar incessantemente. O efeito da reinterpretação de uma
canção não mostra, unicamente um novo verso, uma nova melodia, propicia
uma recriação que desordena o ouvido, reinventando ritmos, no intuito de

48
Canção “curiosidade”
49
Canção “A Babá”
50
À respeito desses álbuns seria pertinente estender-se mais e mais em discussões quanto à
História da Música Brasileira (sobre a formação dos gêneros Samba e Pagode). Mas aqui,
infelizmente não foi possível esse debruçar, devido à escolha do corpus. Mas fica uma
pendência e algumas sugestões de trabalhos sobre o assunto: A produção do Discurso lítero-
musical brasileiro de Nelon Barro da Costa(2001); Manguebit: uma dicurividade literomuical
guerrilheira, de Francico Talvane Rocha(2006).

80
ordenar uma desordem de pensamento sonoro, inaugurando posicionamentos
estéticos na canção, tornando-a mais significativa e emancipadora.

6. EMBATES ENTRE POSICIONAMENTOS DISCURSIVOS

Partiremos nesse momento para o campo discursivo musical, no qual


visualizamos um espaço discursivo ou um ponto de embate entre dois
posicionamentos: Bossa Novista e Tropicalista.

No campo discursivo há possibilidades de captar espaços discursivos,


pontos que podem sinalizar uma relação de confronto, proximidade,
neutralidade entre no mínimo dois discursos.

As diferentes formações social, política, ideológica e cultural, ou seja, as


diferentes formaçôes discursivas do enunciador são movidas por objetivos
específicos e podem conviver num mesmo campo discursivo, embora
assumam posicionamentos divergentes já que um discurso existe em oposição
a outro.

A especificação desse espaço ocorreu em virtude de um caminho, de


hipóteses que propiciaram nosso mergulho. A hipótese, nesse caso, é a de que
o sujeito Tom Zé no lugar de compositor configura uma cenografia que
subverte o posicionamento Bossanovista.

Conforme a percepção desse espaço revelado através de uma


construção musical de uma canção que se aproxima do modo de composição
do posicionamento bossanovista, notamos uma semelhança sonora que tende
a problematizar a própria concepção desse posicionamento, e
simultaneamente, um dos seus ideais, por exemplo, a contemplação da
imagem feminina.

Antes de analisarmos a canção, cabe, nesse instante, um breve relato


sobre o surgimento da Bossa Nova como movimento musical e, em seguida, a
exposição das letras das canções que se conectam, para que visualizemos
determinadas e significativas relações.

81
Diante de uma multiplicidade e mistura de ritmos e gêneros cancionais
como bolero, tango, samba–canção, o movimento musical Bossa Nova surge
no fim da década de 50, visando uma estética do mínimo e do detalhe de
arranjo. Uma das características é a redução da batida percussiva de
marcação do samba, uma batida de violão mais silenciosa e sutil, retratando a
delicadeza e intimidade sonora.

Esses traços dialogam com o sentido da palavra “bossa”, quer dizer,


onda, voga, jeito. Liderada pelos músicos Tom Jobim, João Gilberto e pelo
letrista Vinícius de Moraes a Bossa Nova é um movimento intenso para a
época do seu surgimento e que teve forte influência do gênero cool Jazz norte
americano. É considerado um gênero elitista emergido da classe média
carioca.

De modo amplo, a composição bossanovista almejou amenizar a


polifonia sonora e musical existente naquele período, priorizando o caráter
mais intimista e metamusical. Buscando também clarear o ambiente que, até
então, convivia com uma mistura de gêneros e ritmos cancionais. Ela propôs
uma nova relação éthica com o samba. Lançando o paradoxo bastante
interessante: o mínimo na interpretação e o máximo na harmonia.

O culto à contemplação da beleza feminina integrava um dos temas


bossanovistas. Tomando essa característica temática da Bossa Nova e uma
das características do Tropicalismo, a da desconstrução de mitos e imagens
consideradas pops, apontamos uma relação entre eles em duas canções, uma
de Tom Zé (Brigitte Bardot) e outra, bossanovista, de Tom Jobim e Vinícius de
Moraes (Garota de Ipanema).

Brigitte Bardort (álbum Todos os olhos) Garota De Ipanema


Tom Jobim Composição: Antônio Carlos
Jobim e Vinícius de Moraes-1962

A Brigitte Bardot está ficando velha, Olha que coisa mais linda
envelheceu antes dos nossos sonhos. Mais cheia de graça
Coitada da Brigitte Bardot, É ela menina
que era uma moça bonita, Que vem e que passa
mas ela mesma não podia ser um sonho Num doce balanço, a caminho do mar
para nunca envelhecer.
A Brigitte Bardot está se desmanchando Moça do corpo dourado
e os nossos sonhos querem pedir divórcio. Do sol de Ipanema

82
Pelo mundo inteiro O seu balançado é mais que um poema
milhões e milhões de sonhos É a coisa mais linda que eu já vi passar
querem também pedir divórcio
e a Brigitte Bardot agora Ah, porque estou tão sozinho
está ficando triste e sozinha. Ah, porque tudo é tão triste
Será que algum rapaz de vinte anos Ah, a beleza que existe
vai telefonar A beleza que não é só minha
na hora exata em que ela estiver Que também passa sozinha
com vontade de se suicidar?
Quando a gente era pequeno, Ah, se ela soubesse
pensava que quando crescesse Que quando ela passa
ia ser namorado da Brigitte Bardot, O mundo sorrindo se enche de graça
mas a Brigitte Bardot E fica mais lindoPor causa do amor
está ficando triste e sozinha
A Brigitte Bardot está ficando velha, triste,
sozinha, velha e sozinha, ... sozinha,
só............ zinha..... ah

Através de apropriação de um símbolo pop feminino, a atriz francesa


Brigitte Bardot, que representou na década de 60 a exuberância da beleza
cinematográfica feminina, sendo considerada pela mídia a mulher mais
sedutora para a época, Tom Zé, delicadamente, desmistifica sua imagem
intocável, questionando sobre a idealização de sua imagem.

Os índices referentes ao plano não-verbal quanto ao modo de arranjo e


ritmo explicitam a aproximação existente entre as canções Brigitte Bardot51 e
Garota de Ipanema, informação que funda uma relação interdiscursiva entre
essas canções. A estética bossanovista revela o tom baixo de voz
contemplativa que soa algo intimista, ocasionado pela batida de violão contida.

A relação divergente quanto à temática beleza feminina pontuada entre


essas canções está na diferença que há no modo de conceber o gênero
feminino. Em Brigitte Bardot há o “culto” ao que não é considerado,
classicamente, belo, a velhice: A Brigitte Bardot está ficando velha, envelheceu
antes dos nossos sonhos. Coitada da Brigitte Bardot, que era uma moça bonita.
Esse aspecto contradiz a imagem que Tom Jobim idealiza em Olha que coisa
mais linda, Mais cheia de graça... .

Há na canção Brigitte Bardot a subversão de valores, que também


remete ao caráter carnavalizante profano: a desconsagração da imagem da

51
Tom Zé, Álbum “Todos os olhos”, 1973.

83
atriz Brigitte Bardot. Aí, ela não é mais o símbolo de mulher intocável e dotada
de beleza singular como a mídia mostrara na época de sua eclosão. O símbolo
feminino aí é desconstruído ou descristalizado. Passa a se contemplar através
de ritmo, melodia e harmonia sutis e delicadas a imagem de uma pessoa que
passa, naturalmente, por um processo de envelhecimento. Constrói-se nesse
espaço a imagem do rebaixamento, da apresentação do “baixo”, o aspecto
que, geralmente é omitido pela mídia, a beleza do não belo, do “velho”, do
desfazer-se:
A Brigitte Bardot está ficando velha,
envelheceu antes dos nossos sonhos(...)
A Brigitte Bardot está se desmanchando...

Essa cena estabelecida pelo enunciador opõe-se à cena veiculada pela


mídia e publicidade, a da beleza jovial feminina, através de mecanismos que
cristalizam ou retardam o envelhecimento da mulher (produtos cosméticos,
cirurgias plásticas).

Contrariamente à Brigitte Bardot, em Garota de Ipanema há o olhar de


observador e contemplador sobre uma mulher sempre em idade nova e jovial,
que representa o símbolo da beleza carioca da praia de Ipanema: Moça do
corpo dourado, Do sol de Ipanema, O seu balançado é mais que um poema,
É a coisa mais linda que eu já vi passar.

Embora haja a oposição entre as canções no que se refere à


idealização da mulher, há um certo grau de semelhança, como vimos, entre a
batida de instrumentos e gênero musical nas duas canções.

Essa semelhança instaura uma diferença: a da iconoclastia do arranjo


de Brigitte Bardort (enganosamente bossanovista) não em oposição ao arranjo
da outra, Garota de Ipanema, mas uma iconoclastia em confronto com o
posicionamento Bossa Nova. Esse momento se dá com o rompimento do
arranjo num instante da canção Brigitte Bardot, no qual é perceptível um
crescimento da massa sonora com relação ao plano melódico: o aumento de
volume, intensidade na harmonia e mais a chegada de outros instrumentos que
dão mais corpo à canção:

84
Será que algum rapaz de vinte anos vai telefonar na hora exata em que ela
estiver

com vontade de se suicidar? //////////52

A inclusão desses instrumentos e a intensificação de alguns timbres e


volumes nessa passagem rompem com a estética bossanovista, a da canção
canônica: a canção no seu “silêncio” sonoro de voz, corda e de percussão, a
decantação ou depuração de voz e cordas que visava a consisão e economia
estética. O efeito da “imprevisão” na passagem dos versos acima é a
reverberação e a exaltação de uma descanção.

A canção na sua economia de oscilações vocais, rítmica, melódica e


harmônica torna a audição “pura” com ampliação emotiva e lírica. A
eliminação de execessos de instrumentos e volumes vocais era uma ação
básicas para a composição cancional, no intuito de se ouvir minuciosamente
uma essência musical. A maneira “bossanovista” cantada por Tom Zé em
Brigitte Bardot provoca, de certo modo, o rompimento com o formato canônico
bossanovista.

A “Garota de Ipanema” torna-se o ápice da canção por obedecer ao


cânone do posicionamento Bossanovista, enquanto que a canção “Brigitte
Bardot” torna-se a ascensão da descanção por subverter esse cânone.

A cenografia configurada na canção “Briggite Bardot” é validada pela


retomada do posicionamento bossanovista, sendo, simultaneamente o mesmo
desqualificado. Essa cenografia se legitima através do seu antiespelho, do seu
contraste, ou seja, da incorporação do seu opositor para afirmar sua oposição a
ele.

Então, nota-se que o modo do compositor discordar de uma linha de


pensamento cancional, reveladora de um posicionamento, é perfurando-a,
desfazendo-se de uma estética através da apropriação dela mesma. Nessas
condições é necessário afirmar-se bossanosvista para também negar-se
bossanovista ou, quem sabe, refazer-se bossanovista.

52
Esses traços significam o aumento do volume de massa sonora ocorrido na canção.

85
7. A CONSTRUÇÃO DE CENOGRAFIAS NA CANÇÃO: DA CIDADE
LONGÍNQUA PARA UMA GRANDE CIDADE

Movimentos de ida e vinda: do campo para a cidade, da cidade para o


campo.

Vamos nos ocupar nesse momento em discutir configurações


cenográficas características em uma quantidade significativa de canções.
Introduziremos a idéia de cidade, para discutirmos a cenografia do caminhar
em e entre espaços citadinos traçados nas canções.

O caminhar insere-se na cidade, como a cidade no caminhar. A ação e


o espaço se interpenetram ao olhar do homem viajante.

Mas qual ou quais cidade (s) se configura (m) na canção? Que relação
pode haver entre a cidade, a vida e posições literodiscursivas? Que referências
traz o sujeito ou o personagem construído na canção ao lê e caminhar pela (s)
cidade (s), que sentidos traz a cidade? São essas e possíveis outras
indagações aqui presentes.

A inscrição da letra num dado suporte desenha uma topografia e uma


cronografia. Ou seja, a palavra no espaço e no tempo se integra na
enunciação.

Assim como alguém lê um livro, um filme e constrói determinados


sentidos a respeito, também se pode ler a cidade, que traz, mostra
possibilidades de sentir, de dizer e de não dizer. As vias são inúmeras e
seguem caminhos singulares.

A cidade em transe é o constante movimento. A cidade incorpora


corpos, o corpo incorpora a cidade. A cidade e o corpo num só corpo. Ela se
define por suas porções diferenciadas com relação às pessoas, lugares,
atividades de trabalho, de cultura, história e economia. Olhar para a cidade é
habitar várias possibilidades de lugares nela existentes. É estar em contínua

86
alteração de natureza geográfica, física e humana. É se permitir a entrar em
vias desconhecidas.

Essa cidade tende a uma diluição de uma tradição já esquecida, vive da


tradição da não tradição. Um dos fatores que levam à não tradição é a
tecnologia, a modernização geográfica, dentre outros aspectos que omitem e
apagam lugares pré-existentes. Mas que efeitos e sentidos a cidade traz, além
de sua visão arquitetônica em constante transformação? Como a cenografia da
cidade se constrói na canção de Tom Zé? Como o sujeito enunciador,
personagem desenha a idéia de cidade na canção?

As formas da cidade são as topografias, nas quais diversos grupos se


divergem e se convergem nelas, considerando as heterogeneidades
econômica e cultural, referenciadas em diversas linguagens (televisiva,
cinematográfica, literária e literomusical).

Retratar a cidade no ambiente literomusical de Tom Zé é voltar ao lugar


da não cidade, ao campo, é observar modos de migração do campo para a
cidade. Os sentimentos de dor, sacrifício e emancipação convivem juntos
quando se busca a cidade. O sujeito da canção une angústia e alegria ao
migrar do campo para a cidade. É o que se percebe na canção abaixo:

Menina Jesus53

Valei-me minha menina Jesus, minha menina Jesus,


minha menina Jesus, valei-me.
Só volto lá a passeio, no gozo do meu recreio
Só volto lá quando puder comprar uns óculos escuros.
Com um relógio de pulso
Que marque hora e segundo, um rádio de pilha novo, cantando coisas do mundo - pra
tocar.
Lá no jardim da cidade, zombando dos acanhados, dando inveja nos barbados e
suspiros nas mocinhas....
Porque pra plantar feijão, eu não volto mais pra lá, eu quero é ser Cinderela, cantar na
televisão....
Botar filho no colégio, dar picolé na merenda, viver bem civilizado, pagar imposto de
renda,
Ser eleitor registrado, ter geladeira e TV, carteira do Ministério, ter cic, ter rg.
Bença, mãe. Deus te faça feliz, minha menina Jesus e te leve pra casa em paz.
Eu fico aqui carregando o peso da minha cruz no meio dos automóveis, mas
Vai, viaja, foge daqui que a felicidade vai atacar pela televisão
E vai felicitar, felicitar, felicitar, felicitar até ninguém mais respirar.
Acode minha menina Jesus, minha menina Jesus, minha menina Jesus, acode.

53
Álbum Estação do Brás (1978)

87
Nessa canção o compositor se apropria de uma representação bíblica ao
nomear a canção de “Menina Jesus”, opção que vai desenhando o caráter de
sacrifício revelado ao longo dos primeiros versos, através da expressão “valei-
me”: Valei-me minha menina Jesus, minha menina Jesus, minha menina Jesus,
valei-me.

O uso do código lingüístico “valei-me” mostra-nos a invocação, um


pedido de proteção divina a um acontecimento, a alguém que está prestes a
sofrer. Esse pedido é explicitamente direcionado à menina que migra de sua
cidade natal (possivelmente do nordeste por ser mostrar um código lingüístico
que apresenta expressões como valei-me, acode, bença, plantar feijão) para
uma cidade, economicamente mais desenvolvida.

Vários elementos compõem uma cenografia ou situação de enunciação


e apontam para cenários diversos, validados (já afirmados no universo de
saber e de valores concebidos social e culturalmente): índices de códigos
lingüísticos, indicativos paratextuais (um título, um comentário)54, que apontam
para espaços e lugares.

Tateando o álbum ao qual pertence à canção em análise, vimos um


índice que nos revela um lugar através do título: “Correio da Estação do Brás”.
Sendo Brás um bairro situado na região central de São Paulo, considerado o
lugar de imigrantes italianos e migrantes nordestinos. Lá é o lugar de operários
e comerciantes, ditos “sacoleiros”. Lugar onde se instaura o comércio diário.
Através desses índices, é pertinente haver uma relação entre São Paulo
interior do Nordeste.

Observando a representação dos objetos de consumo enunciados:


“óculos escuros”, “relógio de pulso”, “rádio de pilha novo”, nos os consideramos
elementos que inferem o lugar de movimento e urbanidade, de modernidade,
característicos da cidade que usufruem do comércio, informações que,

54
No caso de canções os índices paratextuais podem ser: o nome da canção, o título do álbum
ao qual pertence à canção, comentários que antecedem alguma canção.

88
hipoteticamente, retomam o lugar “Estação do Brás” que é explicitado já no
título do álbum.

Só volto lá a passeio, no gozo do meu recreio


Só volto lá quando puder comprar uns óculos escuros.
Com um relógio de pulso
Que marque hora e segundo, um rádio de pilha novo, cantando coisas
do mundo - pra tocar.
Lá no jardim da cidade, zombando dos acanhados, dando inveja nos
barbados e suspiros nas mocinhas (...)

A cenografia constituída denota o lugar da cidade grande, de comércio.

A personagem “menina Jesus” representa o indivíduo nordestino e


revela-nos seu desejo de sair do campo: em busca da cidade: Porque pra
plantar feijão, eu não volto mais pra lá, eu quero é ser Cinderela, cantar na
televisão (...).
A cidade como promessa de vida, de encontro com a civilização, na
conquista de ser um cidadão:
Botar filho no colégio, dar picolé na merenda, viver bem civilizado, pagar
imposto de renda’.....
Ser eleitor registrado, ter geladeira e TV, carteira do Ministério, ter cic,
ter rg.

O movimento se faz do campo para a cidade, realizando-se numa


viagem que promete mudança de vida em vários sentidos: material, geográfico,
cultural.

Em circunstâncias outras é possível também pensarmos o porquê do


protagonista gênero feminino, informação que nos remete à condição da
criança desamparada e prostituída que, ao fugir de casa, vislumbra melhores
condições ambientes para viver, submetendo-se à anulação de sua infância e à
comercialização do próprio corpo. Essa atitude é tomada devido às condições
insuficientes oferecidas pelos governos.

89
Há mais cenografias de cidade constituída em outras canções, ainda
compartilhadas no álbum Correio da Estação do Brás, índice que mostra o
quanto a cidade São Paulo assume uma centralidade para o nordestino. Como
observaremos, a seguir, nas canções intituladas “Correio da Estação do
Brás”, “Amor de estrada”, “Carta” e “Augusta, Angélica e Consolação”:

I. CORREIO DA ESTAÇÃO DO BRÁS


(TomZé) (Revisada como "Feira de Santana")
Eu viajo segunda-feira, Feira de Santana, quem quiser mandar recado
remeter pacote , uma carta cativante, a rua numerada, o nome maiusculoso, pra evitar engano
ou então que o destino, se destrave longe.Meticuloso, meu prazer não tem medida,
chegue aqui na quinta-feira antes da partida.Me dê seu nome pra no caso de o destinatário
ter morrido ou se mudado, eu não ficar avexado, e possa trazer de volta o que lá fica sem
dono.
nem chegando nem voltando ficando sem ter pousada
como uma alma penada. De forma que não achando
o seu prezado parente eu volto em cima do rastro
na semana reticente, devolvo seu envelope
intacto, certo e fechado. odeio disse-me-disse
condeno a bisbilhotice. Se se der o sucedido
me aguarde aqui no piso, pois voltando com a resposta,
notícia, carta ou pacote , -- ou até lhe devolvendo
o desencontro choroso da missão desincumprida
estarei aqui na certa sete domingos seguidos
a partir do mês em frente. Palavra de homem racha
mas não volta diferente.

A canção “Correio da Estação do Brás” nos apresenta uma marca que


explicita a topografia, o espaço ao qual remete a canção, mais uma vez ao
bairro comercial paulistano, o Brás, onde se instaura grande parcela de
migrantes nordestinos.

Aqui há o diálogo entre a feira que ocorre na cidade “Feira de


Santana”55, região norte da Bahia, e entre outra, provavelmente a que se
destina alguns baianos, ao centro comercial Estação do Brás. O sujeito
enunciador representado na canção é um viajante comerciante que envia
encomendas e recados a parentes que estão fora da cidade baiana e parti de
uma feira para outra:

55
Essa cidade concentra fronteiras que facilitam o acesso de quem vem do sul, Centro-oeste.
De acordo com dados históricos ela se encontra num dos principais entroncamentos de
rodovias do Nordeste brasileiro, funcionando como ponto de passagem para o tráfego que vem
do Sul e do Centro Oeste e se dirige para Salvador (Bahia) e outras cidades nordestinas,
sendo considerada a "porta de entrada" para o Sertão do estado.

90
Eu viajo segunda-feira, Feira de Santana, quem quiser mandar recado.
remeter pacote , uma carta cativante, a rua numerada (...)

7.1 A CENOGRAFIA DA CIDADE INTERIOR: A ESTRADA DA LONGA IDA

A idéia de cidade que concebemos aqui não é a cidade no seu sentido


urbano, econômico e habitacional, tal como apresentamos no item anterior.
Notamos que cenografia aqui configura a cidade de interiores.

Os interiores de que falamos representam através do enunciador e das


possibilidades semânticas embutidas na materialidade lingüística a cidade das
sensações, das perturbações e do caos. Como nos suscitam as canções Amor
de estrada.
II. AMOR DE ESTRADA III. CARTA
(Tom Zé - Washington Oliveto) (Tom Zé)

Vou dirigindo solitário pela estrada Eu preciso mandar notícia


mas te levo na lembrança meu amor pro coração de meu amor me cozinhar
o caminhão amigo chora na subida pro coração de meu amor me refazer
fiel a minha dor me sonhar
coro - Voy dirigiendo solitario pur la ruta me ninar
pero llevando mio recuerdo a mi amor me comer
mi camion amigo llora en la subida me cozinhar como um peru bem gordo
fiel a mi dolor me cozinhar como um anum-tesoura
solo - Encontrar-te foi bom um bezerro santo
o teu corpo é tão perfeito uma nota triste.
que para descrevê-lo Me cozinhar como um canário morto
um poema não daria me cozinhar como um garrote arrepiado
coro - Então é uma carroceria um pato den´d´água
um saqué polaca.
solo - Com outras não te trairei Eu escrevo minha carta num papel decente
e na estrada não darei quem se sente
carona pra mulher vadia , quem se sente com saudade não economiza
nem à guisa
coro -Isto até ao meio-dia nem dor nem sentimento que dirá papel
o anel
o anel do pensamento vale um tesouro
solo - Seu guarda me desculpe é besouro
ultrapassei oitenta beijos é besouro renitente cuja serventia
se multar os lábios dela já batia
vai multar os meus desejos já batia na gaiola e no envelope
e no golpe
coro - Ela te quebrou dois eixos e no golpe da distância andei 200 léguas
minha égua
solo - Vou pra perto de ti minha égua esquipava, o peito me doía
se de noite estou cansado quando ia
clareando minha estrada quando ia na lembrança vinha na saudade.
teu olhar iluminado

91
coro - É um farol desregulado

solo - Vou dirigindo...

coro - Voy dirigiendo...

solo - Vou caminhando


meu caminho,
meu longo caminho:
meu caminhão.

coro - Voy caminando,


mi camino
mi gran camino,
mi camión...

A canção “Amor de estrada” constrói a cenografia do deserto habitado


por vários eus, no percurso do ir. Visualiza-se a topografia de estrada, do
caminhar em passos longos, usando pés de caminhão. Percebemos a
construção de uma cenografia campestre, um lugar de deserto: Vou dirigindo
solitário pela estrada (...); o caminhão amigo chora na subida . O enunciador
parece trilhar um caminho desconhecido, priorizando vivenciar o processo de
viagem, atribuindo relevância ao movimento de ida, da subida e de,
simplesmente, ir, livremente, para um lugar não identificado, em direção da
cidade desconhecida:

Vou caminhando
meu caminho,
meu longo caminho:
meu caminhão.

É através do caminhar sem a previsão de um caminho, a não ser do


caminho meu caminho, que há possibilidades quase infinitas de experiências
que podem ocorrer durante o percurso dessa viagem. Aí é desenhada a
cenografia da cidade da solidão que, ao mesmo instante é habitada pelas
impressões que a estrada causa. O apego ao signo caminho leva a exaustão
do caminho, que sustenta outros sentidos: o do caminho longo, do caminhão
automóvel.

92
A outra canção ao lado direito da Amor de estrada, a carta56 constrói
a cidade da saudade e solidão, a relação afetuosa entre duas pessoas e cujo
contato próximo foi interrompido por uma hipotética viagem. Quem enuncia,
fala de um lugar longínquo, há uma distância entre os interlocutores, que é
explicitada pelos versos: Eu preciso mandar notícia pro coração de meu amor
me cozinhar.
Notamos a configuração da cenografia de solidão e da auto-tortura
amorosa gerada por uma saída, um afastamento entre os personagens. Há a
construção da cidade solidão tumultuada pela urbanização do caos interior, das
lembranças, do desejo, do sentir e não ter.

7.2 A CIDADE DA GRANDE CIDADE: CENOGRAFIA SÃO PAULO

Ao analisarmos a próxima canção “Augusta, Angélica e Consolação”,


utilizamos referências de dados históricos e geográficos para uma significativa
construção cenográfica.

Através dos dados biográficos, da história de sua carreira musical


apresentados ao longo desse trabalho e dos índices lingüísticos da canção,
interpretamos os três nomes próprios dessa canção como cada um sendo uma
via da cidade de São Paulo.

IV. AUGUSTA, ANGÉLICA E CONSOLAÇÃO

Augusta, graças a Deus,


graças a Deus,
entre você e a Angélica
eu encontrei a Consolação
que veio olhar por mim
e me deu a mão.
Augusta, que saudade,
você era vaidosa,
que saudade,
e gastava o meu dinheiro,
que saudade,
com roupas importadas
e outras bobagens.
Angélica, que maldade,
você sempre me deu bolo,
que maldade,
e até andava com a roupa,

56
Essa canção foi analisada em momento anterior numa outra versão com ênfase em traços
de performance vocal e grotesca, nas páginas 46-48

93
que maldade,
cheirando a consultório médico,
Angélica.
Quando eu vi
que o Largo dos Aflitos
não era bastante largo
ora caber minha aflição,
eu fui morar na Estação da Luz,
porque estava tudo escuro
dentro do meu coração

A Rua Augusta retrata o ambiente de glamour e de diversão no período


da década de 60, ápice da ditadura militar. Mas já na década de 70 aos pouco
foi decaindo a harmonia festiva desse lugar, em virtude do intenso tráfego de
automóveis, ônibus e do surgimento de galerias comerciais. Agora restou a
saudade e o silêncio frente aos ruídos comerciais e automobilísticos que
existem. Recordação e saudade desse tempo são o que há em versos
cantados:

Augusta, que saudade,


você era vaidosa,
que saudade,
e gastava o meu dinheiro,
que saudade,
com roupas importadas
e outras bobagens.

Entre as vias Angélica e Augusta, há a Rua Consolação. Mais uma via


paulistana que ligava a cidade à estrada do Interior de Sorocaba, uma das
estradas mais transitadas, a partir do séc. XVI, havia sido um dos caminhos do
sertão, por onde passavam viajantes, sertanejos e colonizadores. Lá se
concentrava a grande feira de Sorocaba e onde foi construída a Igreja Nossa
Senhora da Consolação, no séc. XIX. Na igreja havia uma capela que abrigava
e acolhia viajantes, sertanejos.

Esse breve relato histórico nos faz observar o valor humano que
possui a Rua Consolação, um lugar de acolhimento, que confortava pessoas
humildes do sertão e viajantes em busca do trabalho e da sobrevivência.

Tais informações nos levam a reafirmar São Paulo, em especial a Rua


Consolação, como o lugar no qual Tom Zé encontra a si mesmo, os versos a
seguir nos infere esse encontro: Augusta, graças a Deus, graças a Deus, entre

94
você e a Angélica eu encontrei a Consolação que veio olhar por mim e me deu
a mão.

8. APENAS UMA TENTATIVA DE CONCLUSÃO

Nosso trabalho teve o intuito de caracterizar uma parcela significativa da


produção literomusical do compositor baiano Tom Zé. Apropriamos-nos de
alguns fundamentos da Análise do Discurso de linha francesa de Maingueneau
e de idéias de outros pensadores (Bakhtin, Wisnik, Pignatari, Zumthor), que de
certo modo, contribuíram para a expansão de significados literodiscursivos.
Enfocamos como seu discurso é construído, que investimentos
discursivos se fazem na canção, ou seja, que gestos, códigos de linguagem,
etos (maneiras de habitar o mundo) e cenas geradas, posicionamentos.
Apontamos efeitos de sentidos propiciados por esses investimentos.
Ao longo do trabalho podemos concluir que a canção de Tom Zé se
constitui de extremos, parte de ações iconoclasta, desconstrutora, subversiva à
ação construtiva, paradoxalmente, falando. Parte significativa de sua produção
musical realiza-se através da desconstrução de gêneros musicais (bossa nova,
samba, pagode, dentre outros), ação que cria outras versões de construção e
uma re-construção genérica cancional de si e do outro. Questionando, dessa
maneira e implicitamente, valores e convenções introduzidos e retro-
alimentados pela indústria fonográfica, referente a um código apriorístico da
linguagem musical.
Tom Zé, ocupando o lugar de compositor, assume um ethos de
“militante” musical. Um ethos subversivo, descancional por promover o
desfazimento de imagens consagradas pela mídia e pela sociedade: o
estereótipo do homem “maquinado” e de indivíduos moldados, midiaticamente,
numa falsa beleza inatingível. Investimento que nos demonstra ainda intensa
ligação com o posicionamento tropicalista, e para além disso, mantém vivo o

95
pensar no indivíduo como um ser que está sujeito aos acidentes e
irregularidade necessárias. Visão essa que se refere à irregularidade ou à
instabilidade comportamental humana discutida na canção “Tô” e que traduz e
afirma o caráter heterogêneo, não-linear e flexível de se criar uma canção,
insenta de imposições promovidas pela indústria fonográfica.
O traço do modo de fazer “descanção” nos revela uma dicotomia: de um
lado, a aliança entre distintos posicionamentos estéticos musicais (Rock,
Samba, Pagode, Bossa Nova) e de outro, a uma idiossincrasia dos mesmos,
conforme percebemos na canção Jime renda-se.
O investimento no código lingüístico que aponta para a tradição e cultura
nordestinas marca o lugar da individualidade e coletividade dessa cultura,
como uma resposta às vozes que a submestimam. Outros investimentos, tais
como o uso da “deformação”, a ruptura de hierarquia lingüística (sintática,
morfológica e semântica) e genérica cancional contribuem para a condição
paratópica e instável do compositor.
Os investimentos discursivos observados geraram significados como a
idéia de canção inacabada, a canção como um processo infinito de releituras
construtoras, a partir da autotextualidade e de heterogeneidades. Ao contrário
do que nos impõe a indústria fonográfica, a da canção como um produto
intacto, cristalizado.
A cenografia desenhada remete em vários momentos à cidade São
Paulo, à migração do nordestino do campo para a cidade como um lugar de
vivência, de sobrevivência e de táticas de composição. Sugerindo-nos
questões em torno da condição da mulher e da cultura nordestina em contraste
com a cultura sulista. A outra cenografia percebida remete à cidade do interior
de si, que leva a construção de vários lugares interior ao homem, gerando a
saída do homem para dentro de si.

96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 227-326.

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Paulo: Anablume, 1997.

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Contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 4ed, 1999.
______. Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2 ed, 1997.
BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas, SP:
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Editora 34, 4. ed,1997 .
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Perspectiva, 1993.
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise
do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
COHEN, R. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004.
COSTA, Nelson Barros da. A Produção do Discurso Lítero-Musical Brasileiro.
São Paulo: Tese de doutorado, 2001.
DOURADO, Autran Henrique. Dicionário de termos e expressões da música.
São Paulo: Editora 34, 2004.
FARACO,Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo. As idéias lingüísticas do círculo
de Bakhtin.Curitiba:Criar,2003.
FAVARETTO, Celso. Tropicália - alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial,
2000.
MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Curitiba: Criar, 2005
______. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.
______. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
______. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes, 1997.
ORLANDI, P. Eni. Cidade dos Sentidos. Campinas: Pontes, 2004.

97
PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. São Paulo: Ateliê Editorial,
2004.
_____. Informação, Linguagem, Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1997.
Rocha, Frâncico Talvanes. Manguebit: uma discursividade literomusical
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SANCHES, Pedro Alexandre. Tropicalismo: decadência bonita do samba. São
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WISNIK, José Miguel. Dança dramática (poesia/música brasileira). São Paulo:
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Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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______. Babel ou Inacabamento. Uma reflexão sobre o mito de Babel. Lisboa:
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REFERÊNCIA DOS ÁLBUNS ESCUTADOS:


Zé, Tom. Estudando o Pagode. 2005.
Zé, Tom. Imprensa Cantada. Trama, 2003.
Zé, Tom . Jogos de Armar- Faça você mesmo. Trama, 2002
Zé, Tom. Série dois Momentos Vol. 15 (Relançamento do Cd Estudando o Samba,
1975, e de O Correio da Estação do Brás, 1978). Continental, 2000.
Zé, Tom. Série dois Momentos Vol. 14 (Relançamento em cd de Estudando o Samba,
1972, e de Todos os olhos, 1973). Continental, 2000.
Zé, Tom. Com defeito de fabricação. Luaka Bop/WEA, 1998. Trama, 1999.
Zé, Tom. No Jardim da Política(ao vivo em 1984 no Teatro Lira Paulistana) –
Independente, 1998.

ENDEREÇOS ELETRÔNICOS PESQUISADOS:


www.tomze.com.br
http://anarquiapunk.br.tripod.com/anarquiapunk/id1.html
http://pedroalexandresanches.blogspot.com/2005/05/t

98
www.tramamusic.com.br
www.academia.org.br
http://www.estacoesferroviarias.com.br/b/brazcubas.htm
www.sampa.art.br/saopaulo/estacaobraz.
www.feiradesantana.ba.gov.br
http://pt.wikipedia.org/wiki/Feira_de_Santana
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u53419.shtml sobre koellrroutter, em 10 09
de 2006.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hans-Joachim_Koellreutter em 10 do 9, 2 006
http://old.gilbertogil.com.br/smetak/takaug.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Anton_Walter_Smetak

ANEXOS

ÁLBUM COM DEFEITO DE FABRICAÇÃO

Defeito 1: o Gene (arrastão do Santo 2. Defeito2: CURIOSIDADE


(Tom Zé / Gilberto Assis)
agostinho):
A gente já mente no gene
Quem é que tá botando dinamite
A mente no gene da gente
Na cabeça do século ?
Faça suas orações uma vez por dia
Quem é que tá botando tanto piolho
Depois mande a consciência Junto com
Na cabeça do século ?
lençóis
Pra lavanderia
Quem é que tá botando tanto grilo
Na cabeça do século ?
Quem é que arranja um travesseiro
Pra cabeça do século ?
Pra cabeça do século ?

Arrastão de Alfred Nobel e de sua dinamite

99
3. Defeito3: POLITICAR 4. Defeito4: EMERÊ
(Tom Zé) (Tom Zé / Zé Miguel Wisnik)

Bis Filha da prática emeremê emeremê


Filha da tática emeremê emeremê
Filha da máquina
Essa gruta sem-vergonha
Arrastão dos cantos de trabalho de uma escravatura
Na entranha
anterior, conforme o Brasil bucólico que as
Não estranha nada
esquerdas queriam

Meta sua grandeza


No Banco da esquina
Vá tomar no Verbo
Seu filho da letra 5. Defeito5: O OLHO DO LAGO
(Cid Campos)
Meta sua usura
Na multinacional No lago do olho
Vá tomar na virgem De lado no lodo
Seu filho da cruz. De olho no lado
No lodo do lago
Meta sua moral Lágrima afunda
Regras e regulamentos Profunda lama
Escritórios e gravatas Olho
Sua sessão solene. Lodo
Lado
Lago
Pegue, junte tudo Lama
Passe vaselina
Enfie, soque, meta
No tanque de gasolina. Arrastão da Poesia Concreta

Arrastão de Rimsky Korsakov e do músico


anônimo que toca na noite paulistana

100
6. Defeito6: ESTETICAR (Estética do 7. Defeito7: DANÇAR
Plágio) (Tom Zé)
(Tom Zé / Vicente Barreto / Carlos Rennó)
Dançar escreve
Pense que eu sou um caboclo tolo boboca Um traço leve
Um tipo de mico cabeça-oca O verbo de Deus be-a-bá
Raquítico típico jeca-tatu
Um mero número zero um zé à esquerda
A pele tensa
Pateta patético lesma lerda
Papel-imprensa
Autômato pato panaca jacu
O pergaminho do jaguar

Penso dispenso a mula da sua ótica


Para pisar
Ora vá me lamber tradução inter-semiótica
Golpes de ar
Desambaraçam-se linhas
Se segura milord aí que o mulato baião
(tá se blacktaiando)
Alinhavar
Smoka-se todo na estética do arrastão
Paixões e ais
Diagonais agonias
Ca esteti ca estetu
Ca esteti ca estetu
Ô menina que dança se
Ca esteti ca estetu
Você for
Ca esteti ca estetu
PernambuCatarinAmaraliNatal
Ca estética do plágio-iê
Também vou

Pensa que eu sou um andróide candango


Ô menina que dança se
doido
Você for
Algum mamulengo molenga mongo
Que'sse cané de ou certá namô
Mero mameluco da cuca lelé
Também vou
Trapo de tripa da tribo dos pele-e-osso
Fiapo de carne farrapo grosso
Da trupe da reles e rala ralé Andar com meu pé eu vou
Que o pé se acostuma a dançar
Arrastão dos baiões da roça. Espinha dorsal
Arrastão de Jorge Luís Borges, Caetano Veloso e
Gilberto Gil

101
8. Defeito8: ONU , ARMA MORTAL 9. Defeito9: JUVENTUDE JAVALI
(Tom Zé / André Abujamra) (Tom Zé)

No reco-reco U.N. ONU Vinho das pernas abertas


Teleco-teco ONU U.N. Molha o altar das ofertas
Nesse pagode U.N. ONU Gritos, esperma e algema
Naquele rock ONU U.N. Fúria de pura alfazema

Uma ONU pra manter a paz Lua no quarto do cio - oh!


E a turma lá, que turma, Tímida fruta, nudez - pudor
Fabrica armas mortais Tênis e tetas, licor - cor
Medo, cu doce, querer - pavor
Bis Fuzil, metralhadora, cruzador
No squindô squindô dô Se na juventude já vem tudo javali
Bazuca, bomba, tanque arrasador O afoito desse coito é coisa que já lá vi, la vi, la vi
No squindô squindô dô
Baco, buraco, curva, uva que já colhi
Meta-micose coça, cada um cuide si de si, de si
Arrastão de Martinho da Vila e do estilo
pagode
Arrastão de Tchaikovsky (concerto para violino em ré
maior) e das antífonas e do falsobordão da Idade
Média.

102
10. Defeito10: CEDOTARDAR 11. Defeito11: TANGOLOMANGO
(Moacir Albuquerque /Tom Zé) (Tom Zé / Adoniram Barbosa)

Tenho no peito tanto medo, Rico chega na dança


é cedo de braço dado
Minha mocidade arde, O diabo enche a pança
é tarde de braço dado
Se tens bom-senso ou juízo,
eu piso
O olho grande e a ganância
Se a sensatez você prefere,
de braço dado
me fere
Ao dólar reverência
Vem aplacar esta loucura,
todo arriba-saiado
ou cura
Aos juros, esconjuros
Faz deste momento terno,
todo calça-arriado
eterno
Quando o destino for tristonho,
um sonho Isso é o tangolomango
Quando a sorte for madrasta,
afasta
O rico hoje, coitado,
É preso, todo cercado
Não, não é isto que eu sinto, Arrodeado de grades
eu minto Porteiroguarda e alarme
Acende essa loucura
sem cura
Me arrebata com um gesto Arranje, Senhor, um porto
do resto Que ele não 'steja acuado
Com um pouco de conforto
Não fale, amor, não argumente
mente Pra ele estar sossegado

Mas a verbá, a verbé,


Seja do peito que me dói,
herói A verborrologia dessa politimerdia
Se o É o tangolomango
E a cárdio-filosoporria
me cega
Deixa que eu aja como louco, É o tangolomango
que é pouco
No mais horroroso castigo, Bis E é nesse tangolomango
te sigo Que me voy pal pueblo

Arrastão dos trovadores provençais e de seus


ecos
Arrastão do estilo musical latino e da reductio ad
absurdum do Sermão do Padre Antonio Vieira para
São Benedito

103
12. Defeito12: VALSAR 13. Defeito13: Burrice
(Tom Zé ) (Tom Zé)

Toma-me valsa Veja que beleza


Nua e descalça Em diversa cores
Sê em meu corpo Veja que beleza
Deus ou José Em vários sabores
A burrice está na mesa
Um dois três, sim
Senhor, oh não, Veja que beleza !
Dois três, pé-ante-pé
Refinada, poliglota
Um dois serei Anda na direita
De vinho e pão Anda na esquerda
Maria em Nazaré Mas a consagração
Chegou com o advento
Da televisão
Toma-me valsa ...
Da televisão
Da televisão
Arrastão de Ernesto Nazareth, Zequinha de
Abreu e da música pós-barroca e
(Refrão)
renascentista italiana, plagiadas pela assim
chamada "música popular brasileira"
Ensinada nas Escolas
Universidades e principalmente
Nas academias de louros e letras
Ela está presente
Ela está presente

(DISCURSO POLÍTICO)

Senhoras e senhores,
Senhoras e senhores,
Se neste momento solene não lhes proponho um
feriado comemorativo para a sacrossanta glória da
burrice nacional, é porque todos os dias, graças a
Deus, do Oiapoque ao Chuí dos pampas aos
seringais, ela já é gloriosamente festejada,
gloriosamente festejada.

Arrastão de Flaubert, no ''Sottisier" de "Bouvard et


Pécuchet" e da música caipira

104
14. Defeito14: Xiquexique
(Tom Zé / José Miguel Wisnik )

Eu vi o cego lendo a corda da viola


Cego com cego no duelo do sertão
Eu vi o cego dando nó cego na cobra
Vi cego preso na gaiola da visão
Pássaro preto voando pra muito longe
E a cabra cega enxergando a escuridão

Eu vi a lua na cacunda do cometa


Vi o zabumba e o fole a zabumbá
Eu vi o raio quando o céu todo corisca
E o triângulo engulindo faiscá
Vi a galáctea branca na galáctea preta
Eu vi o dia e a noite se encontrá
Eu vi o pai, eu vi a mãe, eu vi a filha,
Vi a novilha que é filha da novilhá
Eu vi a réplica da réplica da bíblia
Na invenção dum cantador de ciençá
Vi o cordeiro de Deus num ovo vazio
Fiquei com frio, te pedi pra me esquentá

Eu vi o cego lendo a corda da viola


Cego com cego no duelo do sertão
Eu vi o cego dando nó cego na cobra
Vi cego preso na gaiola da visão
A asa branca a asa branca a asa branca
E a cabra cega enxergando a escuridão

E-um e-um e-um


Baião de dois
De bim-bom
Baião de um

Arrastão do fole da sanfona de Osvaldinho do Acordeon


e de todos os sanfoneiros do Nordeste

105
ÁLBUM ESTUDANDO O SAMBA

5. VAI 6. UI!
(Menina amanhã de manhã (Você inventa)
(Tom Zé - Perna) (Tom Zé - Odair)

Menina, amanhã de manhã Você inventa - a gripe


quando a gente acordar Eu invento - ai
quero te dizer Você inventa - chore
que a felicidade vai Eu invento - ui
desabar sobre os homens Você inventa o luxo
vai Eu invento a humilhação
desabar sobre os homens Você inventa o amor
vai
desabar sobre os homens
Eu invento a solidão

Menina, ela mete medo


Você inventa a lei
menina, ela fecha a roda
E eu invento a obediência
menina, não tem saída
Você inventa deus
de cima, de banda ou de lado.
E eu invento a fé
Menina, olhe pra frente
Você inventa o trabalho
Oh! menina, todo cuidado,
E eu invento as mãos
não queira dormir no ponto,
Você inventa o peso
seguro o jogo, atenção.
E eu invento as costas
(De manhã)
Você inventa a outra vida
Eu invento a resignação
Menina, a felicidade Você inventa o pecado
é cheia de praça, E eu fico no inferno
é cheia de traça Valei-me deus
é cheia de lata
é cheia de graça.

Menina, a felicidade
é cheia de pano
é cheia de peno
é cheia de sino
é cheia de sono

Menina, a felicidade
é cheia de ano
é cheia de Eno
é cheia de hino
é cheia de ONU.

Menina, a felicidade
é cheia de an
é cheia de en
é cheia de in
é cheia de on

Menina a felicidade
é cheia de a
é cheia de e
é cheia de i
é cheia de o

Menina a felicidade
é cheia de a
é cheia de e

é cheia de i
é cheia de o
é cheia de a
é cheia de e
é cheia de i

cheia de a
cheia de e
cheia de i, cheia de o

106
1. DOI 2. MÃE
(Tom Zé) (Mãe solteira)
(Tom Zé - Elton Medeiros)
Maltratei,
sim, maltratei demais Cada passo
e machuquei, Cada lágrima somada
quei, quei, Cada ponto do tricô
quei, quei, Seu silêncio de aranha
meu coração que bate Vomitando paciência
que bate calado Prá tecer o seu destino
que bate calado
que bate, bate
Cada beijo irresponsável
e dói, dói, dói.
Cada marca do ciúme
Cada noite de perdão
que bate e dói, O futuro na esquina
dói. E a clareza repentina
De estar na solidão
Dói, amor
dói com d Os vizinhos e parentes
ô dói E dói A sociedade atenta
amor ô A moral com suas lentes
dói e dói. Com desesperada calma
Sua dor calada e muda
Cada ânsia foi juntando

Preparando a armadilha
Teias, linhas e agulhas
Tudo contra a solidão
Prá poder trazer um filho
Cuja mãe são seus pavores
E o pai sua coragem

Dorme dorme
Meu pecado
Minha culpa
Minha salvação

107
3. HEIN? 4. SÓ
(Tom Zé - Vicente Barreto) (Solidão)
Participação: Vicente Barreto (Tom Zé)

Ela disse nego Solidão


Nunca me deixe só que poeira leve
Mas eu fiz de conta solidão
Que não ouvi, Hein? olhe a casa é sua
Ela disse: - orgulhoso o telefo...
Tu inda vai virar pó e no meu descompasso
Mais eu insisti o risso dela
Dizendo Hein?
Na vida quem perdeu o telhado
Ela arrepiou em troca recebe as estrelas
E pulou e gritou pra rimar até se afogar
Este teu - Hein? - muleque e de Soluço em Soluço esperar
Já me deu - Hein? - desgosto O Sol que Sobe na cama
Odioso - Hein? com jeito e acende o lençol
Eu te pego - Ui! bem feito Só lhe chamando
Prá rua - sai! - sujeito Solicitando
Que eu não quero mais te ver Sólidão
que poeira leve...
Eu dei casa e comida
O nego ficou besta Se ela nascesse rainha
Tá querendo explorar se o mundo pudesse agüentar
Quer me judiar os pobres ela pisaria
Me descartar e os ricos iria humilhar.
Milhares de guerras faria
pra se deleitar
por isso eu prefiro
chorar sozinho.

solidão
que poeira leve
solidão
olhe a casa é sua
o telefone tocou, foi engano
solidão
que poeira leve
solidão
olhe a casa é sua
e no meu descompasso
descompasso
o riso dela

108
5. SE 6. ÍNDICE
(Tom Zé) (Tom Zé - José Briamonte - Heraldo do Monte)
Participação: Osório
Ah! se maldade
vendesse na farmácia A felicidade
que bela fortuna só dói
você faria só dói se (Toc!)
com esta cobaia mã
que eu sempre mãe
fui nas suas mãos. tô só
dói mãe (Hein?)
ui!
Oh! mulher,
se
porém A felicidade
se só dói
o quê? só dói
se só dói se (Toc!)
de quem? vai mãe
se tô só
por quê? dói mãe (Hein?)
se isso for possível ui!
pois, me contem a felicidade
como escrever de novo
o jornal de ontem...
eu beijaria os pés
da santa máter
e reescreveria
o seu caráter.

109
´´ALBUM “THE LIPS OF TRADICIONAL

1. Ogodô, Ano 2000 2. Sem letra "A"


BY TOM ZÉ (with English lurics by Julio Fischer) (Tom Zé and Elifas Andreato)

Ô Sem você nem tristeza teremos


ogodô Pra nos lamentar
ogodô ogodô ogodô ogodô Sem você nem morrer de saudade
o ogodô Nem mesmo chorar
ogodô ogodô ogodô ogodô Pois não há chorar

Talac-tac-tac-tac tamborim E o amor?


teleco-teco-teco-teco violão O amor desaparecerá.
toloc-toc-toc-toc agogô E o amor?
Ti-lic-til ano 2000, ano 2000 Da lembrança ninguém nem se lembrará
E o amor?
Se perder ninguém mais vai no olhar
Talac-tac-tac-tac tamborim
E o amor?
teleco-teco-teco-teco violão
Palavra vazia ninguém mais namorará
toloc-toc-toc-toc agogô
Namorará
tô-lôc-tô twenty 00, twenty 00
Namorara

A ciência excitada
fará o sinal da cruz
e acenderemos fogueiras
para apreciar a lâmpada elétrica.

The science in her trance


will make the sign of cross
and we will light bonfires
to appreciate the electric bulb.

talac-tac...
Ogodõ...
3. Feira de Santana 4. Sofro de Juventude
(by Tom Zé) (Lyrics by Tom Zé
Music by Eder Sandoli))
Viajo segunda-feira Feira de Santana.
Eu sofro de juventude
essa coisa maldita,
Quem quiser mandar recado,
que quando tá quase pronta
Remeter pacote
desmorona e se frita.
Uma carta cativante
Á rua numerada,
O nome maiusculoso Negar a boca do pai
pra evitar engano para eu mesmo descobrir
ou então que o destino desesperar-me de medo
se destrave longe. perante cada segredo.

Meticuloso, meu prazer não tem medida O meu pai, o diretor


teje aqui segunda-feira antes da partida e o doutor juiz,
juiz, juiz
me jogaram neste poço
Viajo segunda-feira Feira de Santana
e onde eu ouço
ouço ouço ouço
Trace aqui seu endereço
sem deixar tropeço
Em doçuras e torturas
pode seu destinatário
em pleno gozo
ter morrido ou simulado,
gozo
pousado ou avoado
O urubu que no seu pouso
nas sentenças do seu fado...
me prepara e me separa
Eu vou ficar avexado
do caroço
com uma carta sem dono
osso osso osso
le-levando a cuja,
penando sem ter pousada
batendo de porta em porta E me veste
como uma alma penada. com a peste
para a festa do colosso
Do colosso, do colosso, ô, ô.
Viajo segunda-feira
Feira de Santana...

Mas se eu trouxer de volta

110
o desencontro choroso
da missão desincumprida
devolvo seu envelope
intacto, certo e fechado
odeio disse-me-disse,
condeno a bisbilhotice.

Viajo Segunda-feira
Feira de Santana...

Se se der o sucedido
me aguarde aqui no piso,
sete semanas seguidas
a partir do mês em frente
não sou letra reticente
palavra de homem racha
mas não volta diferente.

5. Cortina 1 6. Taí
(By Joubert de Carvalho)
(Instrumental)
Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim
ai, meu bem, não faz assim comigo não.

Você tem, você tem


que me dar seu coração.

Essa história de gostar de alguém


já é mania que as pessoas têm
se me ajudasse nosso senhor
eu não pensaria mais no amor.

Taí...

7. Iracema
(by Adoniran Barbosa )

Iracema, eu sempre dizia:


cuidado ao travessar essas ruas.
eu falava mas você não me escutava não.
Iracema, você travessou contra-mão.

8. Fliperama (by Tom Zé )


9. O Amor é Velho-Menina
Flip, flip, flip (by Tom Zé )
Filip, flip, filip, filip, flip
Flipé - pépé - pépé - pépé
O amor é velho, velho, velho
e menina.
Rará - rará - rará - rará O amor é trilha
Rará - rará - rará - rá de lençóis e culpa
Râ - mamá - mâma - mamá - mamá medo e maravilha.
Fliperama
O tempo a vida lida
O louco comandante Flip andam pelo chão,
com a sua moedinha o amor aeroplanos
quer fazer uma guerra na Terra O amor zomba dos anos,
o amor anda nos tangos,
no rastro dos ciganos,
Oferece um caminhão e o seu cinturão
no vão dos oceanos.
Que para a batalha não falha.
E no quarto faz com ela
A terceira arruela O amor é poço
Do amor que tem a violência, onde se despejam
Com o pirulito da ciência - á - á - á lixo e brilhantes:
Com o pirulito da ciência - á - á

111
Pelo pirulito da ciência - â - â orações, sacrifícios, traições.
Pelo pirulito da ciência - â
Apelo

10. Cortina 2 11. Tatuarambá


(by Tom Zé - with English lyrics by Julio Fischer)
(Instrumental)
Descobrir as ancas da tradições
12. Jingle do Disco para o ferro em brasa dos anúncios, oi, ai, oi
(by Tom Zé - with English lyrics by Julio Fischer) ...

Comprem este disco To expose the hips of the tradition


É uma pesquisa paciente. To the burning iron of ads.
Tom Zé! Tom Zé!
Cada volta da agulha
Êêêê, Tatuarambá
Pelo sulco docemente
Ôôôô, pelar o corpo para no samba-ba-bá.
Tom Zé! Tom Zé!
Êêêê, sujar o corpo de samba,
Fará você ficar
Segura o rabo do samba, Taí, pintou, Eôôôô.
Mais feliz e inteligente
Tom Zé! Tom Zé!
Tuá, tuá uaru, guba, gudu gubagudê tuá.
13. Lua-Gira-Sol
(byTom Zé ) Êêêê, trazer o corpo para os pincéis da eletrônica, ôôô
Tatuarambá
Ôôôô, vestir o poema-anúncio, ô
Lua uva
Pelar o corpo no samba-ba-bá.
lua nova
lua noiva, ô, luar.
Êêêê, trazer o corpo para a tatuagem
Sujar o rabo do samba
Lua seda Segura o rabo do samba, taí, pintou, ô!
me arpeja
Me palmeja, ô, luar. Êêêê, para a tatuagem das antenas, das antenas.

Ô gira-sol, gira luar Corpo não é pecado,


gira, gira, gira-sol, gira luar Corpo não é proibido,
girou. Corpo não é mentira
Gira, gira, gira-sol, gira luar Flesh isn´t lie
gira, gira, gira-sol, gira luar Flesh isn´t sin
girou. Flesh isn´t forbiden, oi, oi, oi, ô ô forbiden

14. Multiplicar-se Única Êêêê, trazer o corpo para os pincéis... etc.


(byTom Zé )
Melar o corpo no "meu limão, meu limoeiro"
Toda a canção quer se multiplicar Lamber o corpo no "meu pé de jacarandá"
na multidão única se tornar. Corpo não é mentira, corpo não é proibido
Corpo não é pecado.
Simples prazer
de ressoar Tatuarambá
no ar
o som da voz.
Descobrir as ancas das tradições
Canta por nós:
Para o ferro em brasa dos anúncios.
cordas vocais
To expose the hips of the tradition
sem cais,
To the burning iron of ads.
cordas ou nós.
Fazendo cócegas nas tradições
Itching, scrathing the tradition.

112
Álbum “SE O CASO É CHORAR”

1. HAPPY END 2. FREVO


(TOM ZÉ - ANTONIO PÁDUA) (TOM ZÉ - TUZÉ DE ABREU)

Você fala que sim, Esta noite não quero saber de conselho
que me compreende; esqueça, deixe pra lá
você fala que não, me arranja um pecado
que não me entrega quente pra me consolar
que não me vende pense bem que depois
que não me deixa tem o ano inteiro pra gente pagar
que não me larga.
Cinqüenta gramas de amor
Mas você deixa tudo veja lá, é um bocadinho
deixou vinte gramas até,
você deixa mágoa venha cá, é tão pouquinho.
deixou Eu vou morrer se você
você deixa frio não quiser
deixou me arranjar um pecadinho.
e me deixa na rua
deixou.

Você jura, jura,


jurou,
você me despreza
prezou,
você vira a esquina
esquinou
e me deixa à toa
tô, tô, to.

Você passa mal


toma Sonrisal
se engana, mas vai em frente
pra mim não tem jeito
não tem beijo final
e não vai ter happy end
e não vai ter happy end
e não vai ter happy.

113
3. A BABÁ 4. MENINA, AMANHÃ DE MANHÃ (O Sonho
(TOM ZÉ) Voltou)
O Rockefeller acusou Branca de Neve, (TOM ZÉ - PERNA)
os anões se dividiram,
três de sim e três de não, Menina , amanhã de manhã
mas um morreu de susto quando a gente acordar
e perguntava, perguntava, perguntava: quero te dizer que a felicidade vai
Mas quem é, quem é, quem é? desabar sobre os homens, vai
quem é que agora desabar sobre os homens, vai
está cantando um acalanto desabar sobre os homens.
pra cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci
Na hora ninguém escapa
Quem é que está fazendo
de baixo da cama ninguém se esconde
pesadelos na cabeça do século?
e a felicidade vai
Ô de marré, de-marré-de-ci
desabar sobre os homens, vai
Quem é que está passando
desabar sobre os homens vai
dinamite na cabeça do século?
desabar sobre os homens.
Ô de marré, de-marré-de-ci
Menina, ela mete medo
Quem é, quem é, quem é?
menina, ela fecha a roda
me diga você que sabe datilografia
menina, não tem saída
quem é, quem é, quem é?
de cima, de banda ou de lado.
me diga você que estudou filosofia
Menina, olhe pra frente
Quem é que agora está
menina, tome cuidado
fazendo tanto medo na cabeça do século?
não queira dormir no ponto
Ô de marré, de-marré-de-ci
segure o jogo
E quem é que tá
atenção (de manhã)
botando piolho na cabeça do século?
Menina a felicidade
Ô de marré, de-marré-de-ci
é cheia de graça
Quem é que está passando
é cheia de lata
pimenta na cabeça do século?
é cheia de praça
Ô de marré, de marré de si
é cheia de traça.
Quem é, quem é, quem é?
Menina, a felicidade
Me diga você que sabe datilografia
é cheia de pano,
quem é, quem é, quem é
é cheia de pena
me diga você que estudou filosofia
é cheia de sino
Quem é que agora está
é cheia de sono.
botando tanto grilo na cabeça do século?
Menina, a felicidade
Ô de marré, de-marré-de-ci
é cheia de ano
Quem é que empresta
é cheia de Eno
um travesseiro pra cabeça do século?
é cheia de hino
Ô de marré, de-marré-de-ci.
é cheia de ONU.
Menina, a felicidade
é cheia de an
é cheia de en
é cheia de in
é cheia de on.
5. DOR E DOR Menina, a felicidade
(TOM ZÉ) é cheia de a
é cheia de e
Te quero te quero é cheia de i
querendo quero bem é cheia de o.
quero te quero
querendo quero bem.
Chiclete chiclete,
mastigo dor e dor
clete chiclete,
mastigo dor e dor.
Te choro te choro,
chuvinha chuviscou.
Choro te choro,
chuvinha chuviscou.
Chamego chamego,
me deixa me deixou.
Mego chamego,
me deixa me deixou.
A dor a dor, a dor a dor
... ... ...
Mas eu te espero
porque o grito dos teus olhos
é mais
longo que o braço da floresta
e aparece atrás
dos montes, dos ventos
e dos edifícios

114
e o brilho do teu riso
é mais
quente que o sol do meio-dia
e mais e mais e oh oh oh oh oh

Mas eu te espero
na porta das manhãs porque
o grito dos teus olhos
é mais e mais e mais
e depois que você partiu
o mel da vida apodreceu na minha boca
apodreceu na minha boca
Oh, oh, oh, oh, oh

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6. SENHOR CIDADÃO 7. A BRIGA DO EDIFÍCIO ITÁLIA E DO HILTON
(TOM ZÉ) HOTEL
Poema "CIDADE" de Augusto de Campos (TOM ZÉ)

Senhor cidadão O Edifício Itália


senhor cidadão era o rei da Avenida Ipiranga:
Me diga, por quê alto, majestoso e belo,
me diga por quê ninguém chegava perto
você anda tão triste? da sua grandeza.
tão triste Mas apareceu agora
Não pode ter nenhum amigo o prédio do Hilton Hotel
senhor cidadão gracioso, moderno e charmoso
na briga eterna do teu mundo roubando as atenções pra sua beleza.
senhor cidadão
tem que ferir ou ser ferido
O Edifício Itália ficou enciumado
senhor cidadão
e declarou a reportagem de amiga:
O cidadão, que vida amarga
que o Hilton, pra ficar todo branquinho
que vida amarga.
toma chá de pó-de-arroz.
Só anda na moda, se veste direitinho
Oh senhor cidadão, e se ele subir de branco pela Consolação
eu quero saber, eu quero saber até no cemitério vai fazer assombração
com quantos quilos de medo, o Hilton logo logo respondeu em cima:
com quantos quilos de medo a mania de grandeza não te dá vantagem
se faz uma tradição? veja só, posso até ser requintado
mas não dou o que falar
Contigo é diferente,
Oh senhor cidadão,
porque na vizinhança
eu quero saber, eu quero saber
apesar da tua pose de rapina
com quantas mortes no peito,
já andam te chamando
com quantas mortes no peito
Zé-Boboca da esquina
se faz a seriedade?

E o Hilton sorridente
Senhor cidadão
disse que o Edifício Itália
senhor cidadão
tem um jeito de Sansão descabelado
eu e você
e ainda mais, só pensa em dinheiro
eu e você
não sabe o que é amor
temos coisas até parecidas
tem corpo de aço,
parecidas:
alma de robô,
por exemplo, nossos dentes
porque coração ele não tem pra mostrar
senhor cidadão
Pois o que bate no seu peito
da mesma cor, do mesmo barro
é máquina de somar.
senhor cidadão
enquanto os meus guardam sorrisos
senhor cidadão O Edifício Itália sapateou de raiva
os teus não sabem senão morder rogou praga e
que vida amarga até insinuou que o Hilton
tinha nascido redondo
pra chamar a atenção
Oh senhor cidadão,
abusava das curvas
eu quero saber, eu quero saber
pra fazer sensação
com quantos quilos de medo,
e até parecia uma menina louca
com quantos quilos de medo
Ou a torre de Pisa
se faz uma tradição?
vestida de noiva

Oh senhor cidadão,
eu quero saber, eu quero saber
se a tesoura do cabelo
se a tesoura do cabelo
também corta a crueldade

Senhor cidadão
senhor cidadão
Me diga por que
me diga por que
Me diga por que
me diga porque

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8. O ANFITRIÃO
(TOM ZÉ) 9. O ABACAXI DE IRARÁ
(RIBEIRO -TOM ZÉ - PERNA)
Minha dor, você tem razão,
então não faça cerimônia Minha terra é boa,
sou a tua nova casa plantando dá
sou o teu anfitrião. o famoso abacaxi de Irará.
Minha terra é boa,
plantando dá
Se recoste no meu ombro
o famoso abacaxi de Irará.
se debruce nos meus olhos
se quiser me dê a mão.
Moça emperrada namora
e o noivo não quer casar
Eu chamei a dor
se apega ao bom Santo Antônio
pra fazer um samba triste
e o noivo este ano ainda vai pensar...
e pedir que me arrumasse
um amor e uma mágoa.
Falou véio
dá um chá de abacaxi
Ela bateu na porta,
de Irará
combinou tudo comigo
que é pro noivo se animar.
depois me disse adeus,
um amor e uma mágoa.
Minha terra é boa
plantando dá
Minha dor, desta vez é pior,
o famoso abacaxi de Irará.
depois que você foi embora
reparei dentro do peito
um vazio anormal. Véio viúvo com setenta anos
ainda quer casar
Pergunto pra ele o segredo
Nem aquele amor que nunca tive,
e peço pra me contar.
nem a mágoa que criamos,
somente a morte ou coisa igual.
Falou o veio:
Vá comendo abacaxi
de Irará
que você vai se animar.

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10. O SÂNDALO 11. SE O CASO É CHORAR
(TOM ZÉ) (TOM ZÉ - PERNA)

Parecido sempre com um machado Se o caso é chorar


Que fere o sândalo e ainda quer te faço chorar
sair perfumado. se o caso é sofrer
E ainda quer eu posso morrer de amor.
sair perfumado.
Vestir toda minha dor
Faça suas orações uma vez por dia no seu traje mais azul
e depois mande a consciência restando aos meus olhos
junto com os lençóis o dilema de rir ou chorar.
pra lavanderia.
Amor deixei sangrar meu peito
tengo tengo tem tengo tanta dor, ninguém dá jeito.
Tenguem dedem teguem
dedem teguem dedem
Amor deixei sangrar meu jeito
pra tanta dor
ninguém tem peito.
12. SONHO COLORIDO DE UM PINTOR Se o caso é chorar...
(TALISMÃ - B. LOBO)
Hoje quem paga sou eu
Sonhei que pintei minhas noites de amarelo o remorso talvez
lindas estrelas no meu céu eu coloquei as estrelas do céu
o feio que era feio ficou belo também refletem na cama
até o vento do meu mundo eu perfumei. de noite na lama
Numa apoteose de poesia no fundo do copo
num conjunto de harmonia rever os amigos
uma lua roxa para iluminar me acompanha
as águas cor-de-rosa do meu mar. o meu violão.

Meu sol eu pintei de verde


que serve pra enxugar lágrimas
se um dia precisar.
A dor e a tristeza
fiz virar felicidade
aproveitei a tinta
e pintei sinceridade.

Pintei de azul o presente


de branco pintei o futuro
o meu mundo só tem primavera
o amor eu pintei cinza escuro.

Pra lá eu levei a bondade


dourada é sua cor
aboli a falsidade
o meu povo é incolor.

Na entrada do meu mundo


tem um letreiro de luz
meu mundo não é uma esfera
tem o formato de cruz.

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