“(...) não resistas ao mal, mas, a qualquer que te bater na
face direita, oferece-lhe também a outra(...)” Mateus 5:39b
“Tudo tem o seu tempo determinado, (...) tempo de matar e
tempo de curar; (...) tempo de chorar e tempo de rir; (...) tempo de abraçar e tempo de afastar-se de abraçar; (...) tempo de amar e tempo de aborrecer; tempo de guerra e tempo de paz.” Eclesiastes 3:1-8
“Porquanto um anjo descia em certo tempo ao tanque, e
agitava a água; e o primeiro que ali descia, depois do movimento da água, sarava de qualquer enfermidade que tivesse. E estava ali um homem que, havia trinta e oito anos, se achava enfermo. E Jesus, vendo este deitado, e sabendo que estava neste estado havia muito tempo, disse- lhe: Queres ficar são? O enfermo respondeu-lhe: Senhor, não tenho homem algum que, quando a água é agitada, me ponha no tanque; mas, enquanto eu vou, desce outro antes de mim. Jesus disse-lhe: Levanta-te, toma o teu leito, e anda. Logo aquele homem ficou são; e tomou o seu leito, e andava. E aquele dia era sábado.” João 5:4-9
Tenho uma coleção de cicatrizes. Só uma delas traz a lembrança
boa de uma traquinagem, mas essa é a que menos vejo. Todas as outras são marcas de pura dor, apenas traumas, sem nenhum prazer. A maior delas é bem visível e marcou uma das partes do meu corpo que eram mais bonitas até então. E quando essa cicatriz foi feita, além da dor física, trouxe consigo muita dor na alma. Todos os dias eu a vejo, bem no meio do meu joelho, na frente, para qualquer um ver. E parece que todos a vêem. Sempre perguntam. Sempre me lembram que ela está lá. Ela foi ficando maior a cada cirurgia. A segunda operação foi realizada por um corte feito sobre a primeira cicatriz. O corte teve de ser maior e já não cicatrizou tão bem. Na terceira vez em que meu joelho foi operado, a mesma cicatriz foi reaberta. Dessa vez, ela mal cicatrizou. O corte está fechado, mas por uma pele tão fina, tão mal formada, que é extremamente sensível a qualquer toque. As cicatrizes da alma são idênticas. Se permitirmos que sejam reabertas, cada vez elas ficam mais sensíveis, mais difíceis de fechar e mais perceptíveis. Elas são mais visíveis até do que as físicas. Nossa atitude, nosso olhar, a expressão em nosso rosto, nossas rugas, nosso manequim, tudo em nós parece colocar nossas mutilações da alma à flor da pele. E ainda insistimos em negá-las, disfarçá-las, desrespeitá-las, tudo para parecermos mais fortes ou mais bonzinhos do que realmente somos, numa atitude não de amor próprio, mas, sim, de orgulho puro e simples. Ou pode ser que não tenhamos nem orgulho, nem amor próprio e por isso permitimos que outros as neguem por nós e as abram novamente, repetidas, incontáveis vezes, até que nos esqueçamos de quem somos para lembrarmo-nos apenas das cicatrizes e confundirmo- nos com elas. Cresci ouvindo de meus pais e líderes religiosos que eu deveria perdoar sempre e não pecar nunca. Ora! Eu não podia sentir raiva, inveja, preguiça, gula, vaidade, curiosidade pela vida alheia, etc.. Desfiem seu rosário de pecados e será pouco para o rol dos serviços do inferno à disposição da nossa humanidade. Claro que não consegui! Humanidade e mulherice, essas são grandes virtudes e defeitos que tenho. É preciso encarar os fatos. Pena que só compreendi isso faz bem pouco tempo. Até então, queria ser santa-beata a todo custo, mesmo a custo de minha própria alma, de minha vida. Mantinha meus monstrinhos do pecado amarrados num quarto escuro, mal alimentados, enquanto pudesse, mas eles sempre se soltavam, cada vez mais ferozes e vorazes. Meus próprios monstrinhos de estimação feriam-me por dentro, consumiam-me aos poucos, graças à minha incompetência para lidar com eles – comigo mesma... A culpa assolava-me imediatamente, meu amor próprio ficava pior que o de uma ameba, e eu me submetia a qualquer coisa que pudesse repor os tijolinhos da mansão celeste que eu transformara em barraco, inclusive a fingir perdoar o que eu ainda sentia como imperdoável. Nos outros, não em mim. Os outros eram mais perdoáveis que eu. Era como se eu permitisse que Cristo ressuscitasse somente para os outros. Para comigo mesma, a tolerância era nula. Para mim, o meu Cristo era mantido crucificado. Isso não era resistir ao mal, nem dar a outra face. A face oferecida era sempre a mesma, que não tivera nem tempo de desinchar, parar de doer e cicatrizar. Também não posso dizer que isso era um ato de fé em Cristo, crucificá-lo em vão a todo instante dos meus dias. Iogues e budistas pregam muito a não resistência ao mal, semelhantemente ao pregado por Cristo. Dizem que podemos, de fato, não sentir nenhum daqueles sentimentos pecaminosos e nocivos à existência. Exercitam o auto-controle, a tolerância, a paciência e a temperança, instrumentos muito eficientes na educação daqueles tais monstrinhos. Nas religiões ditas cristãs, francamente, não penso que exercitemos muito isso. Não raro, jogamos tudo nas costas de Cristo e esperamos que o Espírito Santo faça o resto por nós, mas sem nós. Queremos viver com os olhos de Cristo, mas que os olhos fiquem em Cristo, ou no Espírito Santo ou no anjo da guarda. Os nossos olhos continuam os mesmos olhos carnais, acomodados, à espera de alguém que nos carregue até o poço dos milagres. Não existe nenhum exercício de olhar para dentro de nós mesmos ou para fora, para o próximo, em busca da aceitação de nossa humanidade corruptivelmente linda, como Deus a fez, como Deus quer, como Deus gosta, e que precisa ser domada, não escondida. Educada, não forçada. Deus opera nas nossas fraquezas, na nossa humanidade. É preciso saber bem onde estão as cicatrizes, como elas estão, qual a sua aparência, o quê as provocou. Não se deve ter medo delas e das lembranças gravadas nelas. É preciso protegê-las até que se regenerem. Respeitá-las e tratá-las com muito carinho e aceitação. Perdoar-se e perdoar aquele ou aquilo que as causara, mas sem as ignorar. Perdoar é apenas liberar da culpa, sem que disso advenha nenhum outro compromisso. Nenhuma cicatrização será perfeita sem o perdão, tampouco nenhum perdão será possível, muito menos perfeito, sem a cicatrização total das feridas da alma. Essa é uma das razões do tempo que Deus nos deu. Sim, porque isso leva tempo. Se a cicatriz for cortada de novo, então, haja tempo!!!! Assim que a ferida é remexida, a dor faz-nos voltar ao momento em que ela fora feita, em que nossa memória emocional ainda não registrara o perdão. Que desperdício do tempo que o Senhor nos dera! Aquilo que faz um perder a mão, faz outro perder apenas o dedo, mas cada qual sente a dor à sua medida e ambos sofrem a perda do mesmo jeito. E cada ferida cicatrizará num tempo distinto. Não importa qual delas é maior ou menor, seu tempo não será proporcional ao seu tamanho, mas à capacidade de regeneração do que se feriu e ao modo como foi tratada. A cada um Deus deu um tempo diferente, que é preciso ser respeitado. Deus pode e quer curar todas as feridas e apagar as cicatrizes, todavia precisa que nós também queiramos e permitamos a cura e a regeneração. Não podemos esperar ao lado do tanque por décadas, como o paralítico de Betesda. Nem nossas próprias limitações devem ser mais fortes que nós a ponto de impedirem-nos de chegar ao tanque, nem podemos imputar a outrém a responsabilidade por não termos chegado lá ainda. Cada um tem a sua própria medida de distância, esforço e tempo, porém todos têm a mesma oportunidade de ir até o tanque. Façamo-lo conforme as nossas próprias medidas, mas façamo- lo. E se, no meio do caminho, for preciso, ofereçamos uma face, enquanto a outra não tiver sido curada.