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Do Caipira

Picando Fumo
a Chitãozinho
e Xororó,
ou da roça ao
rodeio
LUCIA LIPPI OLIVEIRA
é pesquisadora do LUCIA LIPPI OLIVEIRA
CPDOC-FGV.

“Decerto aquele Caipira picando fumo, pintado por

Almeida Júnior, em 1893, o legítimo Jeca Tatu


ridicularizado por Monteiro Lobato nos seus artigos ‘Velha

praga’ e ‘Urupês’, em 1914, e cantado por Mário de

Andrade nos versos de Viola quebrada’ em 1929,


desapareceu. O progresso chega, engolindo o sertão. No

século XX, o homem do campo transmutou-se, camaleônico,

envolvido pela cultura do forasteiro, seduzido pelas


novidades da civilização, querendo o conforto de

alpargatas no lugar dos pés descalços, da roçadeira

substituindo a foice” (Nepomuceno, 1999, p. 27).

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O
Este texto faz parte da pesquisa
“O Brasil dos Imigrantes”.

Caipira Picando Fumo, uma das


mais conhecidas telas de Almei-

da Júnior, é considerada por Jor-

ge Coli exemplar do procedimen-


to do pintor. A faca que o caipira

usa constituiria o centro do qua-

dro e remeteria a uma violência latente (1). Como nos


demais quadros de Almeida Júnior, não existiria nesse

nenhuma afetação sentimental ou heróica. Seus quadros


fogem da eloqüência, como do pitoresco e do narrativo.

Essa aparente simplicidade, que não carrega o caipira de


sentimentos, passa uma imagem forte, ainda que isolada

socialmente. Trata-se exatamente do isolamento social

vivenciado por esse homem na sociedade brasileira. Diz


Jorge Coli: “Sem nenhuma concessão a um pitoresco

feito de detalhes supérfluos, o picador de fumo, na sua


postura concentrada, expondo de modo crucial sua faca,

interpondo-a de fato entre si mesmo e o espectador, pro-


tege-se, protege sua autonomia individualizada, protege,

pela violência possível, o lugar frágil que ocupa no mun-


do” (Coli, 2002, p. 31) (2).

Se essa é uma análise atual de Almeida Júnior e de seu

Caipira Picando Fumo, isso nem sempre foi assim. A

simplicidade de sua pintura já fora elogiada por Lobato,


principalmente por seu naturalismo, mas a quase pobreza

da casa e das vestes do caipira o tornava representante de


1 Isso também foi notado pelos
artistas que, a convite da Pina-
um mundo simples, singelo, pobre, que deveria ser ultra- coteca do Estado de São Pau-
lo, criaram obras para compor
passado pela urbanização e pela industrialização em curso a exposição “Almeida Júnior
Revisitado”.
no estado de São Paulo. 2 Coli associa a estrutura visual
do caipira ao mundo social
analisado por Maria Sylvia de
Iremos acompanhar aqui as diferentes representações Carvalho Franco em seu Ho-
mens Livres na Sociedade
do homem rural paulista, apontar como ele foi tratado Escravocrata.

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pela historiografia e pela literatura, e mos- exaltação dos atributos da natureza. É daí
trar como essa visão se refletiu nas ciências que se desdobra a necessidade de criar uma
sociais produzidas a partir dos anos 1950. narrativa sobre tipos nacionais capaz de tirar
do país a marca da incapacidade.
O homem do interior, o trabalhador das
áreas rurais, já recebera menção nas obras
O HOMEM RURAL PAULISTA dos viajantes, dos cronistas que durante o
século XIX visitaram o país. De modo ge-
A historiografia paulista, desde o fim ral fora ressaltado o isolamento, a ignorân-
do século XIX, buscou resgatar a contri- cia e a ociosidade em que viviam. Ou seja,
buição dos costumes indígenas para a cul- as distâncias geográficas e socioculturais
tura regional, assim como as característi- entre esse homem e o das cidades do litoral.
cas da personalidade do homem rústico Havia como que uma oscilação entre uma
paulista – o caboclo ou caipira. Fruto da valorização positiva, que destacava a for-
miscigenação entre o branco e o índio, o ça, a autenticidade e a comunhão com a
caboclo é apresentado como o correspon- natureza, e uma caracterização negativa,
dente humilde do bandeirante, como uma cujo traço principal era a preguiça (3).
versão equivalente ao sertanejo nordesti- Será com esse background que será ou-
no, e é tratado como reserva da nacio- vida a fala de Monteiro Lobato denuncian-
nalidade ou alicerce para a formação de do a atividade predatória do caboclo, seu
uma raça forte (Ferreira, 1999, p. 103). caráter nômade e sua imprevidência (4).
Esse constructo se fez presente na lite- Lobato, então fazendeiro que herdara uma
ratura e também nas artes plásticas. Entre grande extensão de terra decadente, apesar
os sócios do Instituto Histórico e Geográ- dos esforços que faz, não consegue soerguê-
fico de São Paulo está Almeida Júnior, ar- la. A fazenda vai mal e ele dirige, em 1914,
tista que, como já observamos, fixou o uma carta ao jornal O Estado de S. Paulo em
modelo visual do caipira paulista. Essa re- que condena, entre outros males, o hábito
presentação tem como pano de fundo o antigo do caipira de fazer queimadas. Trata-
choque entre a cidade e o campo. E nela se se do texto que ficou conhecido como “Ve-
fala do mundo estável das fazendas e das lha Praga”. A este segue-se outro, “Urupês”,
pequenas cidades do sertão, por oposição que será também título de livro de contos
ao tumulto e desagregação da emergente publicado em 1918 com enorme sucesso.
metrópole paulista. Para Lobato, o caboclo – chamado de
No final dos anos 1910 e início dos 1920, Jeca Tatu – pode ser bonito no romance,
aparece nas páginas da Revista do Brasil mas é feio na realidade. A natureza e suas
um duplo estatuto para o Brasil: país jo- facilidades tornam-se um obstáculo à rege-
vem, aberto ao novo, mas, ao mesmo tempo, neração do caboclo, já que ele não tem que
imaturo e despreparado. E, precisamos lem- enfrentar a hostilidade do ambiente. O Jeca,
brar, será com essa ambivalência que será como um anti-herói, é chamado de “piolho
encarada a chegada dos imigrantes europeus. da terra” e “orelha de pau”, e sua caracte-
Como brancos, representam a esperança de rização se contrapõe aos que idealizam os
purificação da raça, mas também significam índios, os caboclos, os caipiras, e falam do
um perigo diante da imaturidade do povo, Brasil com patriotismo ufanista. Houve um
que é triste, idealista, passivo, jeca-tatu imenso debate em torno do Jeca Tatu, prin-
(Luca, 1999). Essa dicotomia juventude- cipalmente após conferência de Rui Bar-
3 Sobre as diversas representa- imaturidade marca os diferentes retratos do bosa, na qual este consagra Monteiro
ções do caipira na literatura, Brasil, mesmo aqueles que pretendem uma Lobato, mas questiona a representação do
ver: Enid Yatsuda (2002).
renovação do pensamento brasileiro. A Brasil como um país de Jecas Tatus.
4 Estou usando a versão sobre
Lobato do livro de Nísia Trinda- representação do homem brasileiro (serta- Após sua adesão à campanha do sanea-
de Lima (1999) e a biografia nejo, caipira e depois Jeca Tatu) como um mento rural, Lobato reescreve seu julga-
do autor de Marisa Lajolo
(2000). homem sem qualidades se contrapõe à mento do caipira paulista: o Jeca não é

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vadio, está doente. Às doenças apontadas acontecido no Tijuco, hoje Diamantina,
por Belisário Pena em Saneamento do Bra- entre 1751 e 1753, a peça trata de forma
sil – malária, doença de Chagas e anci- simplista diferentes tipos sociais, entre eles
lostomose –, Lobato acrescenta a sífilis e o “tipos populares, marcados pela ação do
alcoolismo. Em seu livro O Problema Vi- meio, portadores e geradores de uma cultu-
tal analisa o comportamento do Jeca à luz ra folclórica particular” (Berriel, 2000, p.
da saúde pública e defende a campanha 73). Subjacente a seu enredo, há uma busca
sanitária liderada por Miguel Pereira, Beli- da genealogia que tornava os paulistas os
sário Pena e Artur Neiva. Publica então o fundadores da pátria. Confirma-se uma
Jeca Tatuzinho, uma espécie de folhetim mitologia da identidade nacional cuja ma-
no qual narra a história do Jeca que, depois triz está na bandeira e no paulista. Em sua
de se curar da ancilostomose, torna-se um apresentação, pela primeira vez vê-se no
apóstolo da higiene e do progresso. “Livre palco uma dança folclórica brasileira – um
da opilação e, como conseqüência, do esta- congado – interpretada por “pretos de ver-
do de permanente desânimo, torna-se pro- dade” e por dançadores e violeiros da roça.
dutivo e, em pouco tempo, um próspero Afonso Arinos, representante do regio-
fazendeiro, competindo com seu vizinho nalismo, do conto sertanejo, encanta a elite
italiano e rapidamente ultrapassando-o. da época. Amigo de Catulo da Paixão Cea-
Mais do que isso: modernizou sua propri- rense, o autor fazia apresentações do “ca-
edade, introduziu novas lavouras e tecno- teretê” em seu palacete paulista e é lembra-
logia e aprende a falar inglês” (Lima, 1999, do como importante mediador entre as cul-
p. 147). Assim o novo Jeca, agora rico, turas erudita e popular, entre os mundos
torna-se educador sanitário. Foi esse texto cosmopolita e regional.
que se tornou peça publicitária do Biotônico A apresentação do Contratador de Di-
Fontoura nos anos 1920. amantes indica o movimento literário regio-
O caipira tratado por Lobato na figura do nalista que está em curso no início dos anos
Jeca Tatu teve assim duas versões – o de 1920 em São Paulo e que se dedica à vida
cócoras e o doente (5). O Jeca de cócoras, rural e à cultura caipira, exemplificado nos
com sua preguiça, foi trabalhado e discutido saraus em que são apresentadas canções
por Mário de Andrade em Macunaíma, per- sertanejas com cantadores e violeiros nas
sonagem que também ironiza o discurso mansões dos endinheirados. Mais do que
sanitarista, assumido por Lobato, na célebre valorizar o índio – vestígio do romantis-
frase: “Muita saúva, pouca saúde, os males mo –, tratava-se então de valorizar o
do Brasil são” (Lima, 1999, p. 144). mameluco e seu representante contempo-
Os textos de Lobato, assim como a po- râneo – o caipira. A literatura ficcional da
lêmica em torno do Jeca, passam a compor época estava à procura das raízes nacio-
uma tradição na forma de tratar o caipira no nais, ocupada em buscar uma autenticida-
Brasil. Nela há um tom que ressalta a pre- de nacional localizada no homem do inte-
cariedade, o ridículo daquele matuto, prin- rior, no folclore, nos mitos de origem.
cipalmente quando ele vai para a cidade O regionalismo literário, do qual Afonso
grande. Se isso já existia na comédia ro- Arinos é um expoente, recebeu também o
mântica de um Martins Pena, o Jeca de epíteto de “Velha praga” e foi considerado
Lobato dá continuidade a essa tradição que, durante muito tempo pela crítica literária
mais tarde, é também retomada no cinema brasileira uma categoria ultrapassada. Reto-
de Mazzaropi (Lajolo, 2000, p. 26). mado em meados do século XIX, o regiona-
Enquanto o Jeca preguiçoso ou doente lismo fazia viver uma tensão entre o idílio
aparece nas páginas do jornal e do livro de romântico e a representação realista do ho-
Lobato, é apresentada no Teatro Municipal mem do campo, entre a nostalgia do passado
de São Paulo, em 1919, a peça de Afonso e a denúncia das misérias do presente. 5 Segundo Mariza Lajolo, há
Arinos, O Contratador de Diamantes. Ba- “A história do regionalismo mostra que ainda uma terceira versão do
Jeca, rebatizado de Zé Brasil
seada em episódio considerado verídico ele surgiu e se desenvolveu em conflito com nos anos 1940.

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a modernização, a industrialização e a urba- como avanço, ora como decadência, ora
nização. Ele é, portanto, um fenômeno mo- com otimismo, ora com pessimismo. Ou
derno e, paradoxalmente, urbano”, nos diz seja, ora do lado da modernização, ora da
Ligia Chiappini (1995). A primeira geração ruína. O regionalismo foi muitas vezes
modernista saudou a modernização e, em seu confundido com a etnologia e com o fol-
entusiasmo um tanto ingênuo, fez do regio- clore, e é avaliado negativamente, a não ser
nalismo o principal alvo a atacar. “Daí o ata- quando aparecem grande nomes e obras que
que violento do próprio Mário de Andrade conseguem elevar o regional ao universal –
ao regionalismo como ‘praga nacional’, juízo como Guimarães Rosa e seu Grande Ser-
que ele iria relativizar na maturidade.” tão: Veredas. Entre seus defeitos é aponta-
Em seu texto, Ligia Chiappini nos mos- do o de ser pitoresco, apresentar a cor local,
tra como a literatura tende a recontar o pro- ser descritivista. Para Ligia Chiappini, o
cesso de reajuste da economia brasileira regionalismo, além de falar do espaço geo-
aos avanços do capitalismo mundial ora gráfico do homem rural, envolve tornar

Caipira Picando
Fumo, de
Almeida Júnior

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verossímil a fala de um outro, de classe e significava atraso, tradição, sobrevivência.
cultura diferente da do autor, que deve ser Em contraposição a ele estaria o mundo
capaz de apresentá-la para um público cita- urbano, identificado como progresso, mo-
dino. O importante, diz a autora, é ver como dernidade, futuro.
o universal se realiza no particular compre- Esse contexto cultural talvez nos ajude
endendo a função que a regionalidade exer- a entender o “esquecimento” do livro Os
ce. Assim, é necessário relativizar os juízos Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candi-
críticos estereotipados sobre o regionalis- do, que analisa a formação histórica da
mo, essa literatura que trata do homem ru- cultura caipira no estado de São Paulo. Esse
ral. Essa pertinente observação de Ligia livro vem sendo recuperado recentemente
Chiappini serve não só para a análise lite- e é considerado uma das mais importantes
rária, mas também para as análises produ- pesquisas sobre o tema. Apresentado como
zidas pelas ciências sociais. tese de doutorado de Antonio Candido em
sociologia em 1954, foi publicado pela
primeira vez em 1964.
O mundo caipira ali tratado era identi-
A SOCIOLOGIA DO CAIPIRA: ficado com o Brasil arcaico e conservador
que vinha sendo abordado principalmente
ESQUECIDA OU REJEITADA? pelos estudos de folclore. O fato de esse
mundo tornar-se objeto da sociologia aca-
Quando a sociologia se debruçou sobre dêmica que se desenvolvia no espaço das
as relações sociais no campo, tinha em ciências sociais na USP constitui caso raro,
mente a comparação com a cidade, e sua acompanhado pelos trabalhos de Emílio
análise veio apontar características muito Willems, de Maria Isaura Pereira de Quei-
distintas na maneira de viver do homem roz e de Maria Sylvia de Carvalho Franco,
rural. Sua forma de produzir, suas relações entre outros.
sociais, suas regras de vida não eram escri- A pesquisa de Antonio Candido é uma
tas (não eram abstratas nem formais), e tudo monografia antropológica sobre um grupo
isso apontava para a especificidade de seu que habitava a fazenda Bela Aliança, em
mundo. Os habitantes do campo pareciam Bofete. A fazenda fora produtora de café e
viver em um ritmo próximo da natureza. A na época da pesquisa estava voltada para a
avaliação variava entre exaltar sua sabedo- produção de gêneros de subsistência sob o
ria e expor seu atraso. regime de trabalho de parceria. O estudo trata
Foi a partir dos anos 1950, quando o do processo de urbanização em curso e das
mundo rural estava passando por profun- transformações na e da sociedade caipira. O
das mudanças, que a produção sociológica caipira seria uma espécie de ponto médio
se dedicou a estudar as dimensões da resis- entre o sitiante autônomo e o trabalhador
tência dessa parte da sociedade frente ao assalariado. O estudo estabelece a relação
processo de urbanização e industrialização. entre a produção dos meios de vida e as for-
Supunha-se que os modelos industriais e mas de sociabilidade: por exemplo, a partir
urbanos iriam vencer de forma definitiva o da produção da dieta alimentar, chega às
campo. “Esse destino parecia traçado por- dimensões da vida social. Assim, trata da-
que a cidade tinha tudo para oferecer ao quele grupo particular e ao mesmo tempo
campo e este nada tinha que pudesse servir está interessado em entender a assimilação
à cidade. Seus modelos produtivos e socio- do caipira pela sociedade abrangente.
culturais podiam continuar interessantes Antonio Candido faz uma “reconstru-
para alguns poucos cultores da história e do ção histórica do caipira desde os primórdios
folclore, mas nem aos próprios agriculto- da colonização em São Paulo, colonização
res interessavam mais” (Giuliani, s.d.). Essa singular porque, desde o século XVI, este-
tendência seria derivada do processo histó- ve voltada para a penetração do interior”
rico, e o mundo rural ficava na coluna que (Jackson, 2001, p. 129). Suas principais

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fontes são os depoimentos de velhos caipi- tém mais a interpenetração entre trabalho,
ras; os relatos dos viajantes dos séculos lazer e religiosidade, como era comum na
XVIII e XIX; os textos de folcloristas como cultura rústica caipira. “A cultura caipira
Amadeu Amaral e Cornélio Pires. caminha para o fim inevitável, mas revela
O autor faz uma descrição detalhada da ao mesmo tempo formas de resistência”
vida do grupo e de suas transformações (Jackson, 2001, p. 132). Sua repulsa ao tra-
recentes. Utiliza o conceito de “culturas balho assalariado constitui uma dessas re-
rústicas”, como aquele meio social e cultu- ações; outra é a mobilidade espacial en-
ral que exprime o universo das culturas tra- quanto for possível. A grande questão é:
dicionais do campo no Brasil e é resultado como incluir as populações rústicas na ur-
do ajustamento do colonizador português banização acelerada que está em curso no
ao contato com o índio. Essa cultura estaria Brasil e principalmente em São Paulo?
mais próxima das culturas indígenas, já que Por outro lado, pode-se indicar que o
se desenvolveu de maneira mais isolada. O texto de Antonio Candido está inserido em
caipira seria assim o homem rústico da uma tradição que vai de Capistrano de
colonização paulista, aquele que se mante- Abreu, passa por Paulo Prado e chega a
ve marginalizado das interpretações mais Cassiano Ricardo, para citar os autores mais
amplas da formação histórica brasileira e conhecidos que valorizam a especificidade
que guardaria similaridades com o tipo que da colonização no planalto paulista,
fora estudado por Euclides da Cunha – o marcada pelo isolamento e voltada para o
sertanejo. interior. Essa mesma tradição também está
As origens da sociedade caipira advêm presente em Sergio Buarque de Holanda
daqueles homens que abandonam as expe- (Dias, 1987).
dições exploradoras e se fixam no territó- O caipira de Antonio Candido pode ser
rio do interior. Suas caraterísticas depen- considerado descendente daquele bandei-
dem da abundância de terras, da mobilida- rante tratado por José de Alcântara Macha-
de constante e do caráter aventureiro do do em seu livro Vida e Morte do Bandei-
mameluco. São esses os traços que mar- rante (1929). Esse autor analisa os inven-
cam sua particular adaptação ao meio am- tários do período 1578 a 1700 do primeiro
biente, já que a ocupação do território é Cartório de Órfãos da capital e dali infere
transitória e não inclui a propriedade. Sen- um “bandeirante pobre e analfabeto, gros-
do o povoamento disperso, é o “bairro” a seiro de modos e de haveres parcos, viven-
unidade mínima da sociabilidade caipira; do quase na indigência, duro para consigo
algo entre o povoamento urbano e o isola- mesmo e com os semelhantes, austero e
mento. A base da economia é o trabalho primário, em luta permanente contra difi-
familiar completado pela ajuda dos vizi- culdades de toda espécie”, como diz Sérgio
nhos através do “mutirão”, sistema de tro- Milliet na introdução do livro.
cas entre os integrantes do bairro, que esta- José de Alcântara Machado, em Vida e
belece os vínculos sociais do grupo. O tem- Morte do Bandeirante, desmistifica aspec-
po do parceiro é regulado pelo trabalho na tos que tinham sido retomados e difundi-
lavoura, onde importam o dia, a semana e dos por Oliveira Vianna em Populações
o ano agrícola e, como já mencionamos, a Meridionais: São Paulo como cidade habi-
dieta, marcada pelo feijão, arroz e milho. A tada por nobres refinados e cultos. Essa
dieta mostra-se pobre e mal equilibrada, ao versão não pôde sobreviver à vista dos in-
contrário do que diziam folcloristas como ventários e testamentos dos paulistas do
Cornélio Pires. século XVII, publicados no governo Wa-
O caipira dependia da mobilidade e da shington Luís. José de Alcântara Macha-
terra abundante para resolver sua adapta- do, pai de Antônio de Alcântara Machado
6 Autor de Brás, Bexiga e Barra ção precária ao meio ambiente. Agora isso (6), estudou as fortunas, o povoado, o sítio
Funda, tratado em meu artigo se tornava cada vez mais difícil. O mundo da roça, o vestuário, as doenças e os remé-
“O Italiano no Melting Pot
Paulista” (Oliveira, 2002). se transforma, se fragmenta e não se man- dios, a organização da família e a escravaria,

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a religião e o comportamento diante da morte. resultou da decadência do latifúndio. As
Para ele, a mistura do sangue de um povo de populações rústicas mereceram a atenção
marinheiros com o sangue de tribos errantes de Maria Isaura Pereira de Queiroz, de
produziu um homem pobre, analfabeto, de Maria Sylvia de Carvalho Franco e de José
modos grosseiros, mas com toque de auste- de Souza Martins, ocupados em pensar o
ridade e de heroísmo. A contribuição de José mundo rural a partir das mediações com a
de Alcântara Machado foi a de recriar o sociedade abrangente em processo de mo-
bandeirante como um homem comum. dernização (Jackson, 2002, p. 95). Nesse
A figura do homem comum continuou a sentido, esses autores realizaram uma crí-
ser estudada pela historiografia. Sergio tica aos chamados “estudos de comunida-
Buarque de Holanda dedica vinte anos de de” stricto sensu, cujos principais repre-
seu trabalho para estudar a adaptação do por- sentantes foram Willems e Wagley. Quais
tuguês ao Novo Mundo em seu livro Cami- eram as condenações explicativas aos “es-
nhos e Fronteiras, publicado em 1957. Es- tudos de comunidade”?
tuda a adequação dos bandeirantes às técni- Maria Isaura Pereira de Queiroz afirma
cas indígenas observando aspectos do coti- a existência do “campesinato brasileiro” e,
diano da fronteira, especialmente os cami- em Bairros Rurais Paulistas, observa a
nhos e a caça. A dieta alimentar também existência de diferentes tipos de bairros, o
merece atenção especial: o milho nativo, o de camponeses e o de agricultores. Para
trigo e o arroz introduzidos pelos adventíci- ela, “a sobrevivência do caipira sempre de-
os. Analisa o uso da farinha de mandioca, o pendeu […] do equilíbrio obtido na relação
“pão da terra”, e como as máquinas e técni- estabelecida com a sociedade global”
cas de moagem usadas no trigo passam para (Jackson, 2002, pp. 97-8). Ela aponta para
o milho. O que importa destacar aqui é como a cultura de imigrantes e descendentes as-
seus estudos analisam a recuperação do le- similados ao modo de vida e ao folclore
gado europeu e o amálgama formado com caipira, o que permitiria a ampliação das
recursos e técnicas indígenas. Sergio bases da civilização rústica.
Buarque, segundo Robert Werner, analisa o Retornando aos trabalhos de Maria
transplante de uma cultura européia mar- Isaura Pereira de Queiroz, verificamos que
cando suas circunstâncias especiais e o pa- sua primeira observação em Bairros Ru-
pel da fronteira nesse processo. No primeiro rais Paulistas (1973) é que o estudo do meio
momento, diante do ambiente hostil, o colo- rural brasileiro, e especialmente paulista,
nizador se adapta ao nativo; em um segundo tem merecido pouca atenção dos pesquisa-
momento retoma sua tradição, que passa a dores. Sabe-se pouco como se organiza e
se amalgamar com a tradição de origem como funciona a sociedade rural paulista.
nativa. Só em um terceiro momento há a Entre os trabalhos que já se dedicaram ao
retomada do legado europeu em novas ba- tema, o de Antonio Candido, Os Parceiros
ses (Werner, 2000, p. 215). do Rio Bonito, é seminal, e é a partir dele
Os estudos de Sergio Buarque de Ho- que a autora avança seus estudos. Foi ele
landa sobre a fronteira permitiram uma quem delimitou o “bairro rural” como “uni-
saída diante dos impasses apresentados pelo dade mínima de povoamento nas áreas ru-
autor em Raízes do Brasil. “Os homens que rais paulistas, de nível econômico bastante
conquistaram as fronteiras [expressavam precário, entrando em decadência muito
a] – mentalidade que conta com certa ‘dose facilmente e parecendo fadado à degrada-
de previdência, virtude eminentemente ção social ao sofrer o impacto da indus-
burguesa’ e, ao mesmo tempo, com uma trialização ora em processo no estado”
‘noção romântica e feudal de lealdade’” (Queiroz, 1973, pp. 1-2).
(Werner, 2000, p. 220). O trabalho de Maria Isaura é uma con-
A sociedade rústica foi constituída nos versa contínua com o de Antonio Candido,
interstícios da sociedade colonial brasilei- e nele a autora procura avançar no entendi-
ra, centrada no latifúndio exportador, e não mento dessa realidade concordando em

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muitos pontos com o autor e divergindo em propriedade onde trabalhavam os imigran-
outros. Diria que seu ponto principal tem a tes europeus recém-chegados. A dissemi-
ver com a questão: estaria realmente o pe- nação da grande propriedade e a industria-
queno proprietário condenado à desorga- lização teriam sido responsáveis pela difu-
nização socioeconômica ou era possível seu são de uma civilização urbana moderna de
reerguimento? efeito devastador sobre o mundo rural tra-
O bairro, como forma elementar de so- dicional, aquele dos “bairros paulistas”.
ciabilidade rústica, tinha alguns traços bási- Maria Isaura Pereira de Queiroz vai se
cos, entre eles o isolamento e o “sentimento dedicar ao estudo de diversas localidades,
de localidade”. Sua caracterização mostra de bairros específicos no interior paulista,
que nele o produtor consome o que produz, procurando responder às questões que a
não visa ao lucro com o cultivo da terra. O literatura dos anos 1960 e 1970 apresenta-
lavrador, o camponês, vive do que produz e va. No que nos interessa, vale citar suas
utiliza o que não usa para troca ou venda. O pesquisas sobre o bairro de Taiquiri, situa-
agricultor, diferentemente, produz para um do no município de Leme, do antigo Oeste
mercado local, regional ou internacional, e paulista. Sua descrição persegue a distri-
seu objetivo é o lucro; em geral se especia- buição da propriedade; as principais cultu-
liza no cultivo de um ou dois produtos. O ras e sua produtividade; a utilização de ara-
bairro rural tratado por Antonio Candido é dos; a existência de associação rural; o tra-
composto de camponeses que podem ou não balho assalariado e o meeiro; o tipo de casa;
possuir a terra em que trabalham. Não é a o trabalho de colheita; a ajuda mútua; as
situação em relação à propriedade da terra o tensões; as disputas entre famílias; o co-
que os qualifica, e sim a situação de peque- mércio local; o núcleo central do bairro; a
nos produtores independentes. organização da família; a herança; o
A civilização rústica, como chamou compadrio; os equipamentos de educação
Antonio Candido, constitui a antiga civili- e saúde; a organização política e os “cabos
zação formada no Brasil pelo contato dos eleitorais”.
portugueses com a nova terra, pela sua adap- Se a vida política é quase inexistente, a
tação à vastidão tropical, pelos processos vida religiosa é muito intensa, e pode-se
de aculturação entre as heranças culturais observar a sobrevivência de certas danças
de brancos, índios e negros. Essa civiliza- folclóricas como parte das festas religio-
ção teve e tem uma conservação notável; sas. Isto, nos diz a autora, “num bairro cujos
seus traços tiveram tal persistência que habitantes são também descendentes de imi-
atraiu a atenção dos pesquisadores das ci- grantes italianos” (Queiroz, 1973, p. 43).
ências sociais interessados pela continui- No caso particular de Leme e Taiquiri,
dade de elementos folclóricos (Queiroz, não se observa distância notável entre a vida
1973, p. 7). Entendida como sobrevivência urbana e a vida rural, e nesse bairro encon-
de épocas remotas, a civilização caipira tram-se basicamente agricultores, que vi-
existiria em áreas do estado resultantes do vem da venda dos produtos. Assim, do
povoamento mais antigo. ponto de vista apenas econômico, esse bair-
Historicamente, a civilização caipira foi ro não comporia a sociedade ou civilização
dominante até o século XIX, embora no rústico/caipira. Entretanto, outros traços
século XVII já sofresse mudanças decor- marcam o grupo. “É de notar que, num
rentes do aparecimento de grandes planta- bairro cujos moradores são em sua maioria
ções de cana orientadas para a exportação de ascendência italiana, continuam vivos e
do açúcar. Essas mudanças foram se inten- apreciados elementos folclóricos de origem
sificando com as fazendas de café no sécu- portuguesa e brasileira, como a Dança de
lo XIX, que produziram o primeiro abalo S. Gonçalo e o cateretê. Fenômeno eviden-
sério na civilização caipira; em seguida veio te de aculturação, alia-se a um fenômeno
a industrialização, fazendo desaparecer a de continuidade folclórica que deve ser res-
civilização caipira nas regiões da grande saltado também” (Queiroz, 1973, p. 48).

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As relações familiares, as relações se transformam em veículos desta civiliza-
vicinais e as relações de trabalho continuam ção “(Queiroz, 1973, p. 50). Os próprios
semelhantes às dos bairros tradicionais e se descendentes de imigrante poderiam ter
expressam na importância da ajuda mútua, servido como veículos de difusão, fazendo
do compadrio, das festas religiosas. A pou- a sociedade tradicional renascer em outros
ca estratificação social, com uma situação pontos distantes do estado, graças ao êxodo
mais igualitária, também marca a vida soci- das zonas velhas para as zonas novas… Essa
al do bairro, somando-se ao sentimento de questão é apontada pela autora, ressaltan-
localidade. “Ao ‘sentimento de localidade’, do que esse processo de aculturação ainda
de que fala Antonio Candido, ajuntamos a não foi suficientemente pesquisado. “A
igualdade de posição social entre as famí- adoção de traços específicos por indiví-
lias, que rege as relações entre elas, a parti- duos estranhos à civilização caipira” se ex-
cipação delas na vida da comunidade, e as plicaria pelo desejo de integração…
relações de trabalho” (Queiroz, 1973, p. 49). “Levado por descendentes de imigran-
A possibilidade de conservação dos tes, o folclore pode se ter espraiado muito
aspectos folclóricos tradicionais está liga- além das regiões em que nasceu e viveu até
da às relações sociais em vigência. “A ado- meados do século XIX a civilização caipi-
ção do folclore luso-brasileiro por famílias ra. A invasão de certas zonas do Estado por
de origem italiana é fenômeno que merece elementos vindos de fora não desenraíza
estudo. Pode-se pensar que, constituindo a tais práticas” (Queiroz, 1973, p. 136).
festa religiosa um dos fatores mais impor- A base em que tais traços se apóiam, e
tantes de integração de famílias e indiví- que permitem sua continuidade, é constitu-
duos de fora, na vida e na estrutura do bair- ída pela organização social especial dos
ro […], a aceitação pelos descendentes de grupos de vizinhança. Onde estes entram
imigrantes, de traços folclóricos que com- em decadência, as práticas folclóricas ten-
punham a festa tradicional, teria sido uma dem a desaparecer. Onde a organização tra-
das maneiras deles se inserirem no grupo dicional se mantém, o folclore permanece,
vicinal. É lícito supor, pois, que o folclore desde que haja indivíduos interessados em
desempenharia, nos bairros rurais, impor- sua prática. O isolamento não é assim o
tante função de incorporação social dos ad- elemento fundamental da continuidade do
ventícios” (Queiroz, 1973, p. 50). folclore, e sim a organização social especí-
Maria Isaura, nesse seu texto, observa a fica. A proximidade de uma grande cidade
intercessão entre o mundo do imigrante e o pode agir ora como fator de desorganiza-
universo caipira, questão que foi pouco tra- ção, ora como fator de conservação. A dis-
balhada pelas ciências sociais. Por outro seminação de grandes fazendas monocul-
lado, o imigrante e sua família são atores toras numa área de bairros rurais é fator de
sociais tão “tradicionais” quanto aqueles decadência para eles, tanto quanto o desen-
pertencentes à cultura caipira aqui encon- volvimento das cidades.
trada. Nesse sentido, não há diferença subs- Como parcelas dos excluídos europeus,
tancial entre o camponês do sul da Itália e os “camponeses” se amalgamaram à so-
aquele do interior paulista, mesmo que suas ciedade e cultura dos caipiras, os excluí-
manifestações folclóricas sejam distintas. dos daqui. Em Maria Isaura, os descen-
Sua observação subseqüente também dentes dos imigrantes se aculturaram nos
nos ajuda a entender a disseminação do bairros rurais paulistas e, ao se deslocar,
universo caipira para além de seus locais carregaram os traços culturais tradicionais.
de origem: “A aculturação das famílias ita- A mobilidade, longe de apagar a tradição,
lianas, transformando-lhes o acervo cultu- faz aumentar sua área de atuação. Se, em
ral que possuíam, faz com que, ao se esta- suas pesquisas da década de 1960, publi-
belecerem em zonas recém-desbravadas, cadas em 1973, Maria Isaura está levan-
aí possam implantar elas mesmas resquí- tando essa hipótese, temos, mais recente-
cios da civilização tradicional caipira. Elas mente, Ruben Oliven (1992) nos mostran-

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do o processo de disseminação da cultura de maior emigração do Brasil. Essa disper-
gaúcha por diferentes espaços da frontei- são populacional se fez presente na criação
ra agrícola do país. de CTGs por regiões de expansão no extre-
A junção entre imigrantes, construção mo oeste de Santa Catarina, no Paraná e no
de uma tradição e difusão cultural pode ser Mato Grosso do Sul, onde havia 35 CTGs.
observada na pesquisa de Ruben Oliven ao
examinar os Centros de Tradição Gaúcha. “Os colonos que emigraram do Rio Grande
Em 1948 é criado em Porto Alegre o “35 do Sul e foram se estabelecer em outras
CTG”, o primeiro Centro de Tradições unidades do Brasil, ao cultuarem os costu-
Gaúchas, cujo nome evoca a Revolução mes e valores das estâncias da Campanha,
Farroupilha de 1835. Ele será modelo para estão fazendo referência ao mundo ao qual
centenas de outros no Rio Grande do Sul e na verdade jamais pertenceram. Ao saírem
em outros estados. Seus fundadores eram, do estado, onde eram no máximo proprie-
em sua maioria, jovens interioranos que tários de apenas alguns hectares de terra, e
foram estudar em Porto Alegre, descenden- adquirem glebas bem maiores em áreas de
tes de pequenos proprietários rurais, quase fronteira agrícola, eles simbolicamente
todos com sobrenomes de origem lusa. deixaram de ser pequenos colonos e trans-
Já o segundo CTG teve por fundadores formaram-se em grande fazendeiros, isto é
adultos de origem alemã oriundos de área ‘gaúchos’” (Oliven, 1992, p. 92).
de colonização com base na agricultura
familiar em pequena propriedade. Em sua Dentro do tema do contato entre o imi-
explicação diante desse “fenômeno estra- grante, o camponês estrangeiro e o caipira
nho” Ruben Oliven observa que no tradicio- paulista, vale notar a importância da pes-
nalismo é exaltada a pecuária, ao passo que quisa realizada entre 1960 e 1968 por João
a agricultura era quase vista como ativida- Baptista Borges Pereira, publicada no livro
de degradante. Ser colono, ao nível das Italianos no Mundo Rural Paulista (2001).
representações, significava sobretudo ser O autor trabalha, entre outras fontes, com
carente de certos atributos – ambição, tra- depoimentos de imigrantes italianos que se
quejo social – positivamente considerados dirigiram para Pedrinhas, núcleo próximo
(Oliven, 1992, p. 80). Os imigrantes es- da cidade de Assis, em São Paulo. Comu-
trangeiros, por sua vez, idealizavam o gaú- nidade planificada pela Companhia Brasi-
cho como tipo socialmente superior. As- leira de Colonização e Imigração Italiana,
sim, se identificar como “gaúcho” signifi- criada em 1950, Pedrinhas criou a imagem
cava, para o colono, “uma forma de ascen- de ser um villaggio italiano no interior pau-
são social” (Oliven, 1992, p. 81). lista. A localidade se torna município em
O movimento tradicionalista consegue 1991 e, em 2001, tem uma filha de imi-
se “expandir” dentro da burocracia do esta- grante italiano como prefeita, como nos
do e cresce principalmente nas cidades do informa o autor no prefácio da segunda
Rio Grande com a realização de festas, ro- edição do livro. A pesquisa de João Baptista
deios, festival de músicas, que reúnem jo- apresenta pontos a serem ressaltados: tra-
vens que ficam acampados evocando a vida ta-se de uma imigração recente (dos anos
campeira e os símbolos de uma identidade 1950); de uma imigração para o mundo
regional gaúcha (Oliven, 1992, p. 87). rural; de uma imigração controlada pela
A expansão do tradicionalismo para fora criação e implementação de uma colônia.
do Rio Grande pode ser entendida se acom- O autor conseguiu acompanhar, em seu
panhamos a emigração dos gaúchos, saídos estudo, quase que o “instante histórico” em
principalmente do interior do estado para o que se dava a imigração e o processo de
interior de outros estados. Em 1980 havia aculturação estava acontecendo.
aproximadamente 900.000 vivendo fora do Ao procurar dar conta do grupo migrante,
estado, o que equivale a 11,5 % de sua po- João Baptista chama a atenção para o núme-
pulação e torna o Rio Grande do Sul o estado ro restrito de trabalhos que apresentam as

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variantes socioculturais da Itália e cita, por conseguiam aproveitar bem terras de baixa
outro lado, os poucos estudos sobre o mun- qualidade. Os valores da região, presentes
do rural no Brasil. Ao lidar com as duas na influência da cidade, na busca do lucro,
culturas e com o processo de aculturação, do dinheiro, do poder econômico, fazem o
observa serem elas culturas aparentadas, mas italiano aceitar o uso de métodos racionais
que apresentam diferentes nuanças. de agricultura, que envolvem apoio técni-
A Itália, observa o autor, é um país de co e mecanização da lavoura.
emigração. Lá se justifica e se estimula a O trabalho vai mostrando como aquele
emigração, são favorecidas as atitudes que grupo inicial se adapta, mantém valores,
permitem enfrentar os deslocamentos. Há troca valores, acopla valores novos a ve-
o “inculcamento desses valores no plano lhos. Internamente o grupo também se di-
da personalidade [que se traduz] na gene- ferencia entre os do norte e os do sul. Em
ralizada ‘vontade’ de emigrar, de que é Pedrinhas repete-se a visão preconceituosa
portador o italiano” (Pereira, 2001, p. 41). já existente na Itália sobre a cultura do sul
No depoimento de um chefe de família – ligada à vendetta e ao crime. Os do norte
sobre sua vinda, apresentado no livro, ob- são vistos como superiores, mais inteligen-
serva-se o desconhecimento sobre o Bra- tes, mais higiênicos, mais progressistas,
sil: “Vim para o Brasil preparado para lutar mais civilizados, racialmente mais puros.
com cobras e bichos gigantescos, mas não Os do sul carregam a visão negativa de
sabia o que fazer com a saúva que comia serem inferiores, menos inteligentes, mais
tudo que eu plantava” (Pereira, 2001, p. adequados aos trabalhos braçais, mais atra-
66). Observam-se as tensões na chegada, a sados, mais grosseiros, supersticiosos. Ao
reação ao isolamento da colônia (os imi- que, observa o autor, reproduz-se com os
grantes viajaram 21 horas de trem de São meridionais o que ocorre com o negro entre
Paulo até Assis). O italiano reage ao dife- nós (Pereira, 2001, p. 159).
rente: valorizava a montanha, enquanto o “O trabalhador brasileiro, com menta-
paulista valorizava a terra roxa; há diferen- lidade pré-capitalista, tem um comporta-
ças de padrões higiênicos; há o estranha- mento que colide em vários pontos com o
mento de cheiros e gostos. do homo oeconomicus” (Pereira, 2001, p.
Foi na colônia que o imigrante incor- 163). Ele vê o italiano como sovina, indivi-
porou a mecanização da lavoura, já que dualista, interesseiro, egoísta, argentário;
vinha de uma Itália arruinada pela guerra. este vê os brasileiros como apáticos,
O aumento de seu poder aquisitivo é asso- imprevidentes, sem ambições e sem vonta-
ciado ao Brasil e às condições de ser bem- de de progredir.
sucedido. Então ele apreende um estilo de A Igreja, junto com as pessoas mais
vida mais urbano, e isso o distancia tanto velhas, é um foco de resistência às mudan-
do estilo de vida do mundo rural italiano ças e preserva as tradições italianas. A es-
quanto do brasileiro. Os italianos vão com- cola e as gerações mais novas são as forças
pondo uma imagem negativa do brasileiro de renovação. A Igreja é mantenedora da
rural, relacionada à chegada da mão-de- tradição e ao mesmo tempo combate com-
obra nordestina, que vai ocupar posição portamentos da Itália atrasada. Há no livro
inferior naquele grupo; são empregados uma descrição dos rituais fúnebres das po-
do patrão italiano. pulações do sul da Itália que são considera-
O imigrante do núcleo de colonização dos atrasados pela Igreja e pelos italianos
teve sua vida econômica sujeita ao planeja- do norte (Pereira, 2001, p. 212).
mento, que envolvia o uso racional do solo. A sociabilidade do grupo se desenvol-
Ele reagiu a isso, já que na Itália não estava ve no plano da família e da vizinhança. Há
acostumado a métodos racionais de agri- um reforço da tendência endogâmica e, com
cultura. Esse padrão já estava implantado esta, dos laços de parentela. A família cons-
em São Paulo, e seus resultados já se fazi- titui uma unidade de produção e de consu-
am sentir na agricultura dos japoneses, que mo. A vida associativa se dá na família

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extensa, composta de famílias nucleares de tória, mas o sucesso. Tudo isso correspon-
mesmo tronco, no que se assemelha à famí- de aos valores daquela área que vive a mís-
lia patriarcal bem conhecida no Brasil. A tica do progresso associado ao tempo futu-
família patriarcal, organizada por assi- ro. Quando indagados sobre a razão do
metria, envolve a subordinação dos mais sucesso, respondem atribuindo-o às quali-
jovens aos mais velhos e das mulheres aos dades do povo italiano, às figuras heróicas
homens. Isto é italiano e também é brasilei- que primeiro enfrentaram a ocupação da
ro. Mas, ressalta o autor, há nuanças nos região, aos pioneiros.
comportamentos do norte e do sul quanto João Baptista Borges Pereira presta sua
ao papel da mulher. A mulher mais velha, homenagem a Emilio Willems, a Egon
esposa ou viúva do capo, atua sobre todas Schaden (o trabalho é dedicado a ele) e a
as demais dentro do grupo. Há reação ao Pierre Monbeig, mas procura “esclarecer,
casamento misto, à quebra de padrões logo de início, que este não é trabalho que
endogâmicos, já que permitiria a entrada pretende ser classificado, metodologicamen-
de mulheres de fora, que não aceitariam te, como ‘estudo de comunidade’” (Pereira,
obedecer à sogra e morar com a família do 2001, p. 26). Nessa pesquisa sobre os itali-
marido. Assim, o padrão é procurar casa- anos que foram para o mundo rural brasilei-
mento com pessoas da mesma localidade, ro está presente, portanto, um traço comum
da mesma província, da mesma região e, das ciências sociais da época. Por que esse
por fim, da Itália. autor, assim como outros aqui citados, se
São os padrões de transmissão da he- apressa a esclarecer que não está fazendo
rança que são ameaçados quando da pre- “estudo de comunidade”? O que era isso?
sença de cônjuge brasileiro (Pereira, 2001, Como nos diz Donald Pierson, a comu-
pp. 203-5). Este ameaça o costume históri- nidade é constituída por grupos que sur-
co de preservar intacto o patrimônio do gem da simbiose, do fato de viverem jun-
grupo através da passagem da herança para tos. A comunidade é o objeto central do
o filho mais velho; ou de beneficiar somen- campo denominado ecologia humana (es-
te os filhos, dando às filhas apenas alguns tudos das relações humanas influenciadas
bens que as façam aceitar a partilha unila- pelo habitat e influenciando o espaço).
teral. Essa tradição italiana também existe Competição, conflito, acomodação e assi-
na Península Ibérica sob o nome de milação estão entre as categorias básicas
morgadio. No Brasil a tradição jurídica é para a análise da interação social. Controle
diferente e se choca com esse costume (ain- social (ou seja, de mecanismos de orde-
da que a legislação italiana já tivesse sido namento dos conflitos), distância social (do
alterada). Genros e/ou noras brasileiros qual o preconceito é um tipo) e mudança
ameaçam tudo isso. social formam o elenco de questões e pers-
Os valores econômicos do imigrante têm pectivas que derivam da chamada sociolo-
grandes afinidades com os valores daquela gia de Chicago.
área – mentalidade pioneira, apologia do Donald Pierson, Herbert Baldus e Emi-
self-made man, do homem ousado, quase lio Willems foram professores da Escola
aventureiro. Mas, anota o autor, esses va- Livre de Sociologia e Política nos anos
lores se referem ao grupo familiar como 1940. Na pós-graduação, criada em 1941,
unidade de produção e consumo, e não ao por exemplo, Pierson deu o curso Pesqui-
indivíduo. Em sua contabilidade econômi- sas Sociais na Comunidade Paulista e
ca o italiano valoriza tudo que o faça “ga- Willems, que também era professor da USP,
nhar tempo”, e é nesse aspecto que aceita ministrou o curso Assimilação e Acultu-
substituir elementos da cultura italiana por ração no Brasil Meridional. O trabalho de
outros que sejam mais adequados à realiza- Donald Pierson sobre Cruz das Almas e o
ção de seus objetivos. Vive mais preocupa- de Emilio Willems sobre Cunha são as
do com o futuro do que com o passado. O matrizes do que se constituiu como estudos
que legitima o status mais alto não é a his- de comunidade, ambos voltados para en-

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tender a pequena propriedade rural e a pre- numa perspectiva global questionando
sença dos imigrantes naquela área. igualmente o urbano. A americana deseja
Assim podemos dizer que há, sim, uma acelerar a integração do mundo rural ao
sociologia esquecida: a que trata dos caipi- urbano, e a sociologia rural é um instru-
ras. Ou melhor, essa sociologia era rejeita- mento para isso. Daí a ênfase na difusão de
da. Ela está presente em Antonio Candido novas técnicas e novos sistemas de valores
e seu Os Parceiros do Rio Bonito; Estudo no meio rural – trabalho conhecido como
sobre o Caipira Paulista e a Transforma- extensão rural.
ção dos seus Meios de Vida (1964); em Segundo Maria Isaura, o pressuposto
Maria Isaura Pereira de Queiroz e seus Bair- de base da sociologia norte-americana é a
ros Rurais Paulistas (1973) e O Campe- igualdade fundamental do homem em to-
sinato Brasileiro: Ensaios sobre Civiliza- dos os lugares. Psicologicamente idênticos,
ção e Grupos Rústicos no Brasil (1973). os indivíduos se comportam sempre movi-
Retomando Antonio Candido, diz Ma- dos pelos mesmos desejos e aspirações.
ria Isaura Pereira de Queiroz na introdução Com essas premissas consideram que o
de Bairros Rurais Paulistas que comuni- agricultor que adota as técnicas mais mo-
dade cobria realidades muito diferentes: “A dernas é sempre mais racional do que aque-
comunidade de Willems é uma cidadezi- le que não as adota. Esse quadro de referên-
nha e seu território administrativo – seu cia permite a elaboração de pesquisas com-
município; a de Pierson, um povoado e seus parativas entre sociedades culturalmente di-
arredores rurais; a de Wagley, uma cidade versas (Brasil, Nigéria, Índia) “selecionan-
com os povoados que dela dependem, as- do ‘comunidades rurais’ do mesmo tipo(!)”
sim como uma área bastante vasta de popu- e aplicando os mesmos questionários a seus
lação dispersa”. A argumentação de João lavradores.
Baptista Borges Pereira também é de or- O questionamento básico apresentado
dem metodológica, já que em seu trabalho pela autora tem a ver com o seguinte ponto:
“faltam-lhe, entre outras características, a fatores de ordem cultural não se ligam sem-
representatividade da unidade escolhida para pre da mesma maneira aos fatos econômi-
estudo e o interesse pela análise exaustiva cos. Assim, “a difusão de técnicas não resul-
de todas as manifestações da vida comuni- taria em homogeneização sociocultural, mas
tária” (Queiroz, 1973, p. 26). E complementa na criação de novas formas de civilização,
dizendo que nessa ressalva não há “quais- provenientes de processos de sincretismo
quer restrições a este método consagrado entre todo o acervo difundido e o acervo
pela antropologia cultural; como também sociocultural existente na região”.
não representa endosso às críticas surgidas O tema dos caipiras precisou de Maria
ultimamente entre nós a este recurso de aná- Sylvia de Carvalho Franco, com seu livro
lise” (Queiroz, 1973, p. 26) (7). Homens Livres na Ordem Escravocrata (1a
Em 1969, Maria Isaura Pereira de Quei- edição 1969) para se inserir em um contexto
roz organiza o volume Sociologia Rural da histórico e intelectual considerado relevan-
Coleção Textos Básicos de Ciências Soci- te pela elite acadêmica da USP. Esse traba-
ais para a Zahar Editores. Em sua introdu- lho foi tese de doutoramento da autora rea-
7 O autor cita em nota, como
ção ela faz um balanço da sociologia rural lizada em 1964. Sua banca e os amigos exemplo das críticas, os tra-
balhos de Octavio Ianni,
e aponta a existência de duas tendências: a mencionados (8) formam a linha de frente Maria Sylvia Franco Moreira
francesa e a norte-americana. Esta última das ciências sociais e da filosofia da USP até [Carvalho Franco] e Oracy
Nogueira.
estaria “voltada para a prática imediata, que hoje. Na introdução a autora recomenda que
8 Sua banca foi composta por
pretende dominar um aspecto considerado se faça um esforço para “não renunciar aos Florestan Fernandes, Sergio
Buarque, Antonio Candido,
atrasado e insatisfatório da realidade social conceitos inclusivos que apreendem conjun- Francisco Iglésias e Octavio
para promover nele uma mudança mais tos significativos de relações”; “evitar os Ianni. Entre os amigos mencio-
nados estão Marialice
rápida no sentido da modernização”. A fran- esquemas escravismo-feudalismo-capitalis- Foracchi, Roberto Schwarz,
cesa se norteia por indagações de tipo teó- mo”; e “não cair no artificialismo de frag- Fernando Novaes, José Arthur
Gianoti, Walnice Nogueira
rico, aborda os problemas do mundo rural mentar a realidade”. E explicita sua linha Galvão e Eunice Ribeiro.

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metodológica: “nas relações entre o mundo crítica é mais explícita quando afirma ser
objetivo e subjetividade tomei por centro o injustificável a realização de trabalhos
conceito de práxis, que nos livra de velhos como Cunha: Tradição e Transição em uma
fantasmas como indivíduo e sociedade, per- Cultura Rural do Brasil, de Willems.
sonalidade e cultura” (Franco, 1974, p. 14). Sabemos que Florestan Fernandes e
Para tratar o mundo dos homens livres, a outros acadêmicos paulistas defenderam
autora diz haver uma “presença ausente” – Willems dos ataques de Guerreiro Ramos,
o escravo –, sem o qual não é possível com- mas há também uma crítica que vem do
preender sua sorte. grupo paulista, advinda das diferenças de-
Seu objeto é a velha civilização do café rivadas das matrizes e da escolas que se
presente na área de Guaratinguetá e sua desenvolvem em São Paulo. A ELSP teve
vizinhança, que exprimem a organização preocupações de ordem prática na sua cria-
agrária colonial. Estuda as relações comu- ção, deveria produzir estudos que forne-
nitárias do homem livre e pobre tomando cessem base para políticas públicas especí-
como fonte os processos-crime da comarca ficas, dava ênfase a pesquisas empíricas e
da cidade. Daí a valorização da violência obviamente a cursos de métodos e técnicas
como cerne do “código do sertão”, presen- de pesquisa, como derivava de seu modelo
te no primeiro capítulo. Seu estudo, diz a norte-americano. A USP propugnava um
autora, observa a continuidade do “velho” ensino mais humanista, destituído de qual-
para o “novo”, uma rapidez nas transfor- quer finalidade utilitária, e seguia o mode-
mações, em lugar das “resistências à mu- lo francês. A seriedade da ELSP, entretan-
dança” que em geral se aponta (Franco, to, atraiu muitos formandos da USP e fez a
1974, p. 16). pesquisa empírica ser o atributo do soció-
A densidade de seu texto merece uma logo como profissional (Limongi, 1989).
análise que ainda não foi feita. Na literatura A sociologia da mudança social traba-
encontram-se muitas citações a esse texto, lhou com o conflito entre civilização e “cul-
mas desconheço quem o tenha enfrentado. turas de folk”, linha de trabalho derivada
E igualmente isso não será feito aqui. Quero da antropologia norte-americana que con-
apenas observar a posição de onde a autora siderava a vida urbana como desorga-
fala: aluna/orientanda de Florestan nizadora dos laços estáveis e homogêneos
Fernandes, a quem dedica o livro, membro da vida rural e produtora de uma cultura
de uma geração brilhante e fundadora das fragmentada na sociedade urbana. O pro-
ciências sociais no Brasil. Uma autora dessa cesso de urbanização, fonte de anomia e/ou
estirpe, “de esquerda”, pode trazer o tema modernização desejada, foi tratado pela
do homem pobre, do caipira, para o debate sociologia da época com os conceitos de
da formação social brasileira. Podemos aven- “demora cultural”, de resistências, que se
tar a hipótese de que esse livro funcionou faz presente tanto em textos de Florestan
para a sociologia do homem rural brasileiro Fernandes quanto nos trabalhos produzi-
do mesmo modo que Grande Sertão: Vere- dos no Centro Latino-Americano de Ciên-
das para a literatura regionalista. cias Sociais (CLAPCS).
Houve, sim, um veto que, entretanto, Os entraves à modernização foram an-
não era o mesmo em todos os autores. tes tratados por Emilio Willems, que intro-
Guerreiro Ramos, por exemplo, em Carti- duz o conceito de “cultura rústica”. “Não
lha Brasileira do Aprendiz de Sociólogo, existe um sistema de entendimentos que
de 1954, onde reúne suas teses ou reco- possa servir de base comum à civilização
mendações apresentadas no II Congresso urbana e à multiplicidade das culturas ser-
Latino-Americano de Sociologia, de 1953, tanejas”, dizia Emilio Willems (9) ao estu-
aborda o tema. Em sua quarta recomenda- dar o problema rural brasileiro em 1944. A
ção diz não ser aconselhável “aplicar re- cultura cabocla é nômade, faz uso predató-
9 Estarei utilizando a análise de cursos na prática de pesquisas sobre deta- rio da terra e dos recursos naturais. Tem
Nísia Trindade Lima (1999, pp.
173-7) sobre Willems. lhes da vida social”. Em outro texto sua uma existência vegetativa e é auto-sufici-

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ente. Seu modo de vida, chamado caipira, onde a história se faz. O campo era o espa-
tem uma organização econômica pré-capi- ço das “sobrevivências”, foco das “resis-
talista, alternativa única devido a determi- tências” ao processo de modernização da
nadas circunstâncias. “A rejeição a esse sociedade brasileira.
princípio adaptativo por parte do imigrante Hoje isso não é mais assim. O trabalho
levava-o a fracassar. E muitas vezes os ‘ita- de avaliação dos estudos sociológicos so-
lianos’ e ‘alemães’ acaboclados sobrevi- bre o mundo rural vem sendo feito, e ire-
veram e contribuíram para o povoamento mos mencionar aqui uma avaliação reali-
dos sertões meridionais” (Willems, apud zada por José Vicente Tavares dos Santos
Lima, 1999, p. 174). Willems reconhece a (1991). Segundo esse autor, foi a partir dos
necessidade da presença dos cientistas soci- anos 1980 que “foi superada uma proble-
ais nesse processo de mudança, já que eles mática relativa ao caráter global das rela-
seriam capazes de compreender os traços ções sociais na agricultura, ou seja, a con-
culturais e produzir mudanças, e não trovérsia sobre o feudalismo ou capitalis-
anomia. Observa que se sabe muito pouco mo como modo de produção dominantes
para além das imagens literárias sobre a no campo brasileiro” (Santos, 1991, p. 20).
natureza das culturas caboclas. A sociologia rural trabalhava com visões
Os trabalhos acima citados, de Antonio polares tradicional/moderno ou rural/urba-
Candido, de Maria Isaura Pereira de no. Pensava-se na passagem de comporta-
Queiroz e de João Baptista Borges Pereira, mentos e atitudes “tradicionais” para “mo-
produziram exatamente o que demandava dernos” identificados como estilo de vida
Willems – conhecimento sobre o mundo e mais complexo, avanço tecnológico e mu-
a cultura do homem rural. Seus estudos danças em ritmo mais acelerado. “A
sobre aculturação e assimilação de imigran- dicotomia rural/urbano foi pensada em ter-
tes e sertanejos e suas propostas – pesquisa mos de uma urbanização do rural” (Santos,
monográfica e estudos comparados – ti- 1991, p. 30). Assim, o conhecimento na
nham como questão “assegurar maior uni- sociologia rural era produzido para superar
formidade cultural e desenvolver mentali- o rural, como nos diz José de Souza Martins.
dade congruente com a economia e vida Essa matriz teve que ser alterada. Os
sociais modernas” (Lima, 1999, p. 176). processos sociais agrários em curso indi-
A natureza e o compromisso político cam a existência de um espaço social com-
das ciências sociais praticadas nos estudos plexo, com grande diferenciação interna.
de comunidade são explícitos. O estudo de Falar do Brasil rural hoje é assumir sua
Willems sobre o processo de mudança so- formação social capitalista dependente,
ciocultural em Cunha explora os processos marcada pela heterogeneidade social e re-
de desorganização, de individualização e gional, assim como pela exclusão de largos
de secularização, ou seja, as tensões entre contingentes populacionais.
tradição e modernização. Seus estudos de A reforma agrária dos anos 1950 e 1960
comunidade estavam no campo da moder- era pensada como distribuição de terras
nização do mundo rural brasileiro e parti- desapropriadas do latifúndio improdutivo.
lhavam das premissas consideradas nega- Nesse tempo, as pessoas saíam do campo e
tivas ou problemáticas da sociologia norte- iam para as cidades em busca de trabalho.
americana. O que aconteceu no campo nos últimos trin-
ta anos foi uma reforma agrária que estabe-
leceu relações de trabalho capitalistas com
o assalariamento da mão-de-obra no cam-
AS NOVAS RELAÇÕES NO CAMPO po e aumentou a produção. A solução eco-
nômica criou problemas sociais cada vez
A tendência predominante até pouco mais visíveis. Hoje são os excedentes ur-
tempo atrás era ver apenas a cidade como banos desempregados que estão indo para
lugar onde as transformações acontecem, o campo em busca de subsistência, e há

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necessidade de expansão da produção para riúna atraiu 250.000 pessoas em seu último
absorver a mão-de-obra tanto no campo evento, e junto com o de Americana e o de
como na cidade. Barretos, integra a trinca dos maiores do
José Vicente Tavares dos Santos mapeia Brasil. Mesmo que essas cifras sejam dis-
quatro eixos temáticos dos estudos sobre o cutíveis, elas procuram mensurar uma rea-
rural, a saber: atuação do Estado; relações lidade que se impõe aos nossos olhos.
sociais no campo; violência, conflitos e lutas É esse novo mundo que, criado ou não
sociais; mediadores políticos atuantes nos pela ação das políticas públicas, não im-
processos sociais agrários. Em seu levan- porta, vai ser mobilizado na criação de um
tamento, o autor diz que ainda não temos novo imaginário, de uma nova identidade
um conjunto de estudos capaz de compor para o mundo rural.
um mapa sociológico das relações sociais Um dos trabalhos mais relevantes so-
no campo. Observa também que “a classe bre a nova ruralidade brasileira é o de João
social menos estudada, sob todos os pontos Marcos Alem (1996). Ele aponta como se
de vista, é a burguesia agrária” (Santos, formou uma “rede simbólica da ruralidade”,
1991, p. 25). As classes dominantes no que se apresenta no vestuário, no consumo
campo só são analisadas em sua dimensão de artesanato, na decoração rústica, ou seja,
de representação política, principalmente no consumo de símbolos do mundo rural.
depois da criação da União Democrática Essa rede se faz presente em exposições,
Ruralista (UDR). feiras, festas, rodeios, eventos esportivos,
As políticas públicas têm sido analisa- cívicos, religiosos, e recebe reforço de pro-
das em seus efeitos: sistema de crédito ru- gramas de rádio e TV, da indústria fonográ-
ral; institucionalização da pesquisa agrope- fica, de revistas, de suplementos de jornais
cuária (com a criação da Embrapa); centra- e de peças publicitárias.
lização das atividades de assistência técni- Esse processo de configuração cultural
ca e extensão rural (com a formação da neo-ruralista, neo-sertaneja ou caipira-
Embrater); produção de bens de capital: country é encontrado nas regiões onde a
maquinária e equipamentos, fertilizantes; modernização da produção rural foi mais
fortalecimento de canais de comercia- intensa (Alem, 1996, p. 2). A nova rura-
lização; políticas de preços mínimos; cria- lidade ultrapassou o mundo rural e atinge
ção do seguro agrícola e estímulo ao as cidades, principalmente as do interior.
cooperativismo. A intervenção estatal no Apresenta-se no brilho das empresas e dos
campo estimulou o crescimento intensivo empresários, nas técnicas modernas de
da agricultura e implementou a política de cultivo, nos artistas e nos peões de rodeios,
colonização. pessoas e grupos cujos estilos de vida são
O tamanho e a visibilidade do campo muito distantes do Jeca Tatu de Monteiro
brasileiro podem ser notados por suas fes- Lobato, do sertanejo de Euclides da Cu-
tas. Segundo a revista Veja (maio de 1999), nha, dos jagunços de Guimarães Rosa ou
são realizados anualmente 1.389 rodeios, dos caipiras de Antonio Candido.
mobilizando um público de 2,7 milhões de O início da modernização da agrope-
pessoas e arrecadando 27 milhões de reais. cuária no Brasil esteve ligado ao movimento
A moderna indústria fonográfica relativa a de extensão rural que, a partir de 1948, teve
esse segmento vendeu em 1998 cerca de 13 como missão educar e difundir tecnologia
milhões de CDs. A Festa do Peão de Boia- para o pequeno agricultor. De 1948 a 1980
deiro de Barretos ou a de Americana ofere- se somaram a esse movimento o crédito
cem exemplos do sucesso atual. A mesma subsidiado, a adoção crescente de máqui-
revista Veja (4 de junho de 2003) atualiza nas, implementos e fertilizantes químicos,
esses dados: o último levantamento sobre tendo como suporte a pesquisa tecnológica
rodeios no Brasil diz que são 1.500 provas gerada nas escolas e centros especializa-
ao ano, que movimentam cerca de 2,5 bi- dos mantidos pelo Estado (Alem, 1996, p.
lhões de reais. O rodeio da cidade de Jagua- 77). Formou-se assim um complexo siste-

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ma institucional de fomento econômico e empresas diversas, entre os quais opera um
tecnológico para a agricultura, sob a égide corpo inovado de intermediários cultu-
do projeto de desenvolvimento e seguran- rais”(Alem, 1996, p. 113).
ça dos governos militares. Constituiu-se a Grandes empresas disputam os espaços
modernidade peculiar do campo brasileiro mais visíveis e privilegiados nas feiras.
– uma modernização sem reforma agrária. Empresas menores ficam com espaços la-
Foram deixados de fora os “produtores re- terais. Pipoqueiros, churrasqueiros, vende-
sistentes às mudanças”, aqueles que não dores de maçãs do amor, de amendoim, de
foram capazes de transformar seus latifún- bebidas, de artesanato (os trabalhadores
dios em empreendimentos capitalistas. informais) ficam em torno do evento per-
A modernização teve caráter parcial e mitindo compor um cenário chamado de
foi socialmente excludente, produzindo “mercado persa” que acompanha as expo-
desdobramentos na sociedade: concentra- sições em seu calendário por todo o Brasil.
ção da propriedade da terra, intensificação O autor vai dar destaque aos chamados
das migrações campo-cidade com aumen- intermediários culturais: produtores das
to desenfreado da população urbana, dete- exposições, profissionais de relações pú-
rioração das condições de vida dos traba- blicas, publicitários, jornalistas, artistas,
lhadores sem-terra e aumento das tensões e avaliadores e juízes de animais, leiloeiros,
conflitos no campo entre o Movimento dos locutores de rodeios, além dos profissio-
Trabalhadores Sem-Terra (MST) e os pro- nais especializados: tropeiros e peões.
prietários. Acompanhando o processo, o autor vai
“A modernização rural brasileira foi mostrando o passo-a-passo da organização
seletiva, parcimoniosa e exuberante” da festa. Depois de confirmados os produ-
(Alem, 1996, p. 82). Seus agentes sociais tores rurais expositores, os apoios do poder
suplantaram as agências do Estado com seus público, são chamadas as empresas de pu-
intermediários pioneiros, os técnicos da blicidade que planejam e executam as es-
extensão rural. tratégias de venda dos eventos. São as agên-
As instâncias de consagração da nova cias de publicidade que garantem as recei-
ruralidade são as exposições e festas tas das exposições e que produzem os con-
ruralistas, ainda pouco estudadas pelas ci- teúdos simbólicos reelaborando a configu-
ências sociais. São essas festas o espaço ração sertaneja (Alem, 1996, p. 132).
social onde se processa a invenção de uma O rural se transfigura em referencial
nova tradição: o mundo cultural caipira/ múltiplo. Ora aponta o passado, ora o pre-
country, fruto da reelaboração de símbolos sente, ora o futuro. A festa tem normal-
escolhidos da ruralidade. mente elementos fixos, aqueles ligados à
As exposições oferecem a oportunidade tradição e a certas empresas cujos produtos
de ritualizar as posições de classe e exibir são ligados a produtos e insumos rurais. E
autoridade política tanto de grupos privados elementos variáveis, aqueles mais ligados
quanto de estatais. São, ao mesmo tempo, aos consumidores ou a eventos do momen-
eventos das culturas populares em que se to. Redes de emissoras de rádio e a TV se
celebram certas tradições folclóricas e reli- encarregam de anunciar sua realização. A
giosas. Ou seja, elas desempenham papel divulgação é feita também com caminhões
similar ao das exposições universais que, com alto-falante divulgando o evento – algo
desde meados do século XIX, construíram e entre os antigos anúncios de circo na cida-
difundiram a cultura urbana industrial. de e o trio elétrico.
As exposições e feiras em dois estados Os apresentadores dos shows, os mes-
pesquisados pelo autor (São Paulo e Minas tres de cerimônia, tratam de recriar a pro-
Gerais) são produções em que acontece ximidade física e simbólica fazendo apelos
“uma associação íntima entre entidades de do tipo: “Nossos velhos companheiros de
classe de proprietários do campo, especial- luta nas lides da roça, nossos jovens
mente os sindicatos patronais, o Estado e batalhadores da produção rural, nossos ar-

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tistas do folclore. […] Fazem a experiência proprietários, ao mesmo tempo em que era
social massificada parecer familiar ao um herói, um vencedor entre os sujeitos so-
impregná-la de práticas e símbolos de apa- cialmente dominados” (Alem, 1996, p. 182).
rência rústica e nostálgica de um tempo que Tinha um saber e uma arte que podiam ser
não volta mais, a não ser nas exposições” espetacularizados. Para o autor, o peão se
(Alem, 1996, p. 143). As exposições jun- torna central na invenção da tradição, já que
tam todos, classes dominantes e dirigentes, ele tem um significado econômico, sem ele
produtores e promotores, além de peões e não haveria pecuária. E, como herói da pro-
trabalhadores. dução, poderia ser reelaborado simbolica-
O rodeio se autonomizou como espetá- mente. Para o peão, tudo isso era bom, ainda
culo nas festas rurais. “Saiu do campo da que sua posição subalterna não se alterasse.
produção da cultura rústica e popular, da Entre as diversas modalidades de mani-
cultura pastoril subalterna, para o campo festação folclórica, como por exemplo as
valorizado da produção animal, da indús- Cavalhadas (que simbolizam a luta dos
tria cultural e dos espetáculos de massas” cristãos contra os mouros), o rodeio foi es-
(Alem, 1996, p. 156). A indústria cultural colhido para ser central na festa, já que suas
se dedica à construção dessa nova ruralidade apresentações tiveram repercussão junto ao
que representa o milagre econômico e a público de todas as camadas sociais.
triunfante modernização, e faz as cidades O sucesso da Festa do Peão de Barretos
disputarem a realização de eventos que a transformou em uma imensa vitrina do
permitem inclusive aumentar seu potenci- folclore nacional, e por lá já se apresenta-
al turístico. ram grupos dos Centros de Tradição Gaú-
O autor vai acompanhar a festa de cha (10), de grupos do Nordeste, assim
Barretos mostrando as fases iniciais, quan- como grupos argentinos, paraguaios, boli-
do o Clube Os Independentes a criou em vianos, peruanos e chilenos de folclore.
1956. Embora nenhum dos membros do Os membros do Clube Os Independen-
clube tenha sido peão – são proprietários tes conseguiram deslocar a festa da produ-
rurais –, eles se auto-representam como ção material do agro para a produção sim-
peões, como homens simples, da terra, que bólica. Retomaram as marcas do rural-po-
conviveram com o peão no manejo do gado. pular requalificando-as: “Os caipiras de
O peão da boiada é certamente um dos Lobato e de Mazzaropi só foram redimidos
mais importantes tipos sociais da cultura pas- do estigma de perdedores quando curados
toril no Brasil, em torno do qual foi construída pela ciência e quando pareciam matreiros
uma mitologia e um imaginário presentes para suplantar os inimigos da cidade […].
no folclore, no romantismo literário, no re- Para o peão da boiada, a matreirice signifi-
gionalismo, no modernismo de Graciliano ca manter-se sobre os animais que pulam
Ramos, de Guimarães Rosa, de Mário Pal- nos rodeios, conquistar os prêmios milio-
mério, entre outros. As representações do nários e a fama” (Alem, 1996, p. 186).
caipira como peão de boiada tiveram fixa- Assim se processa a síntese entre o heróico
ção nos contos e na música, com Cornélio peão de boiada do Brasil central e o heróico
Pires e Capitão Furtado, que levaram suas cowboy norte-americano – é a imagem do
representações para o disco e o rádio, como caipira/sertanejo vencedor, “não mais reti-
veremos mais detidamente adiante. rando do campo para a máquina fabril, mas
O imaginário do peão constitui um “elo do campo para a máquina simbólica”
entre as práticas sociais e simbólicas subal- (Alem, 1996, pp. 186-7).
ternas dos trabalhadores do campo e as que A montaria dos touros, que se consoli-
eram próprias dos sujeitos rurais dominan- dou a partir de 1983, envolveu o reforço da
tes […]. O peão de boiada era produtor e face country, que se completa em 1993,
condutor da riqueza das vastas regiões quando foram estabelecidas regras para que
10 Sobre os Centros de Tradição
pecuaristas brasileiras, era o operário serta- os eventos pudessem ser uniformizados se-
Gaúcha ver: Ruben Oliven,
1992. nejo que detinha o maior prestígio junto aos gundo o padrão do mercado internacional,

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adotado também no Canadá, Austrália, aplausos da platéia” (Alem, 1996, p. 212).
México e outros países que fazem parte do Esse mestre do coro exprime entusiasmo
circuito mundial. Depois de nomear as dife- ou delírio, trabalha com a ênfase da ento-
rentes provas, o autor anota que restou mui- nação – sinaliza para o público os momen-
to pouco do mundo caipira, das vaquejadas, tos mais graves, faz uso de erros de pronún-
touradas e outros folguedos dos vaqueiros cia reforçando o sotaque que o identifica
gaúcho, nordestino ou do Pantanal. com o mundo caipira. Eles próprios “defi-
Um formato mais regular e uniforme de nem a locução como o ‘transe’ do artista”
competição esportiva aplicado aos rodeios (Alem, 1996, p. 213) (12).
busca obter uma recepção que ultrapasse A partir de eventos modelares, como os
as fronteiras sociais e geográficas, como se de Uberaba e Barretos, a nova ruralidade se
vê no futebol e nos esportes mais generali- expandiu para todo o Centro-Sul e Centro-
zados pelo mundo (Alem, 1996, p. 197). Oeste, unificando as práticas ruralistas e
Como foi possível partir da tradição, do diluindo as distinções entre o rural e o ur-
folclore, para produzir o country brasilei- bano, como se pode ver em festas do peão
ro? Esta é a pergunta que o autor procura que acontecem em São Caetano, no ABC
responder. paulista (Alem, 1996, pp. 230-3).
O herói central do rodeio é o peão, mas Outro trabalho que aborda o tema do
não é ele quem narra seu papel no ritual novo ruralismo é a tese de doutorado de
dramático da arena. “O peão é um persona- Silvana G. de Paula (1999), que em sua
gem” (Alem, 1996, p. 201). Seu narrador é pesquisa reconstituiu a genealogia do esti-
o locutor de rodeios, que o constrói em pri- lo country no Oeste paulista, mais precisa-
meira mão, ao vivo, na arena. O autor trans- mente no município de Presidente Pruden-
creve várias falas do locutor ao conduzir a te. Nessa região, o estilo de vida chamado
festa, suas emoções, seus apelos à proteção country se faz presente no vestuário, no con-
divina, seus versos que se tornam o mote sumo e no comportamento cotidiano pri-
central na locução do rodeio e da festa. meiro dos pecuaristas e depois de outras
A elite dos locutores – Zé Prato, Barra categorias sociais. A autora acompanhou
Mansa, Tony Karrero, Asa Branca, entre as transformações acontecidas entrevistan-
outros – é formada por cerca de 20 profis- do três gerações de pecuaristas. Os mais
sionais que têm a preferência dos promoto- velhos compõem a geração constituída dos
res. Eles também se envolvem na publici- desbravadores do Oeste paulista. A segun-
dade e são “donos” de outros eventos junto da geração consolidou os empreendimen-
com empresas de publicidade, tropeiros, tos e seus partícipes, ainda que tenham fei-
equipes de som e vídeo. to cursos superiores de medicina, econo-
Os locutores apresentam o rodeio como mia e engenharia, dedicaram-se à pecuária
esporte radical que tem a violência como e foram os que estabeleceram os primeiros
componente fundamental e com isso o fa- contatos com o country norte-americano.
zem, “em sua versão de ritual competitivo Observa que a região conta com a presença
espetacularizado”, compartilhar do código da empresa King Ranch, cuja sede é no
do sertão (Alem, 1996, p. 207) (11). Texas, e que foi a introdutora no Brasil do
“Espécie de corifeu do teatro de arena cavalo quarto de milha, que progressiva-
de rodeios, o locutor recita ditirambos, sa- mente substituiu a raça manga-larga na ati- 11 A violência como componen-
tiriza, ironiza, dramatiza todas as cenas e vidade pecuária. Essa segunda geração te básico do código do sertão
já foi trabalhada por diferen-
personagens do rodeio, mas, acima de tudo, passou a ter relações com os norte-ameri- tes autores, entre eles os que
estudaram os movimentos
valoriza a reelaboração da cultura ruralista. canos visando à realização de negócios. messiânicos.
Enquanto narra, corre, salta, sobre as cer- Foram também os primeiros a visitar as 12 O autor fez entrevistas com
cas, comanda o público em gestos e coros, feiras agropecuárias, ranchos e eventos organizadores, locutores e
peões de rodeios. Acompa-
grita, gargalha, sussurra, canta. O locutor esportivos texanos. Através de publicações nhou as matérias em revistas
que agrada é o que forma frases e versos norte-americanas dedicadas à criação de especializadas como a revista
Rodeio News de São José do
com rimas de efeito, que arranca riso e gado e de cavalo, foram incorporando ino- Rio Preto, São Paulo.

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vações e a mentalidade empresarial capaz titui fonte fundamental para que se possa
de garantir a racionalidade no acompanha- conhecer e acompanhar o surgimento de
mento das atividades e das condições de figuras-chaves, de compositores, de canto-
mercado. A terceira geração já desfrutou res, de duplas, de promotores e divulgadores
de situação financeira consolidada e de um do gênero ao longo do século XX.
canal já estabelecido com os Estados Uni- Uma das primeiras figuras menciona-
dos por seus pais. Desse setor jovem surgiu dos é João Pacífico, que chega a São Paulo
o grupo denominado Sociedade Os Vaquei- em 1924, com 15 anos, e se torna expoente
ros, que organizou o primeiro grande ro- do que veio a se chamar música caipira.
deio da cidade. Foram esses os que disse- Sua trajetória condensa o processo daque-
minaram a moda e o gosto country muito les caipiras que vão tentar a vida na capital
além dos pecuaristas e acabaram por ins- e que vivenciam o processo de transforma-
taurar um novo padrão estético. ção da cidade e da música. Eles deixam a
Esses jovens, promotores de eventos, roça e vão para a cidade trabalhar nas fábri-
assim como os pecuaristas, seus pais, são cas. Trazem no saco a viola e sonham viver
habitantes da cidade. Assim, o estilo de vida da música. Lutam contra a nostalgia da roça
country introduz o tema da ruralidade no trazida pelo povo que, saído do interior,
cenário urbano. Sua composição, continua jamais se adapta completamente à vida da
a autora, agrega tradições agrárias brasilei- cidade grande.
ras, “uma peculiar interpretação da experi- Foram esses migrantes que, com sua
ência country norte-americana e a aspira- viola de cinco pares de cordas duplas de
ção de seus adeptos por instaurar a imagem arame, levaram para as cidades os cateretês,
e a experiência de uma ruralidade simulta- os cururus, as modas de viola, as toadas, os
neamente refinada e sintonizada com o lundus e as congadas apreendidos em casa
cenário contemporâneo” (Paula, 1999, p. com seus pais, avós e bisavós. Junto com as
17). A diferença em relação ao estilo modas de viola também difundiram cren-
country norte-americano é que este está as- ças e lendas sobre o violeiro. “Para ser in-
sociado ao labor e não à sofisticação, con- superável, o violeiro tem que fazer mais
juga idéias de rusticidade e simplicidade. coisas do que simplesmente estudar e trei-
No Brasil o estilo está ligado à idéia de nar. Deve recorrer aos santos, ou ao capeta,
distinção, que se faria presente nos cená- se preferir” (Paula, 1999, p. 77).
rios de elegância e refinamento de eventos Os versos da música caipira contam as
esportivos country. aventuras da gente que tocava gado – os
Sua tese principal é que no Brasil o tropeiros –, que fazia a ligação entre povoa-
padrão country é uma experiência de socia- dos isolados. Os cantadores são figuras-
bilidade urbana inspirada no tema da chaves divertindo os membros da comiti-
ruralidade. va, chorando saudades, narrando “causos”.
O itinerário das comitivas aponta a tri-
lha de cidades onde a música caipira se
desenvolveu. Sorocaba foi a cidade que
O HOMEM RURAL E SUA MÚSICA abrigou a maior feira de muares, iniciada
em 1733. Em torno desse evento, que exis-
A questão do caipira, do homem rural, tiu por 164 anos, foram criados outros ser-
pode ser contada por vários caminhos, en- viços para receber os visitantes. Podemos
tre eles o da música sertaneja. Vamos acom- mesmo dizer que essa feira pode ser consi-
panhar o caminho “da roça ao rodeio” apre- derada uma precursora dos atuais rodeios.
sentado por Rosa Nepomuceno (1999) em No rastro do café também itineraram
seu livro. Rica em dados e informações, a lavradores, tropeiros, boiadeiros, violeiros,
narrativa da autora partilha de algum modo aventureiros, benzedores, artesãos, bisca-
das características de seu tema – “causos” teiros entre outros. “Onde tinha café, tinha
do mundo da música. Mesmo assim cons- dinheiro, emprego e […] a mais vibrante

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moda de viola. Nesse triângulo Botucatu-
Piracicaba-Sorocaba […] vicejou o princi-
pal centro irradiador de música caipira”
(Paula, 1999, p. 92). Nomes como Tonico
e Tinoco, Raul Torres (filho de imigrantes
espanhóis), Carreirinho, Angelino de Oli-
veira, são apresentados no livro. A autora
informa que foi Raul Torres o responsável
pelo lançamento em 1935 do disco de João
Rubinato, o Adoniran Barbosa, ítalo-cai-
pira de Valinhos. Em 1955 ele estourava
com “Saudosa Maloca” e “O Samba do
Arnesto”, sambas com linguajar caipira e
sotaque do italiano do Bexiga (Paula, 1999,
p. 148).
“Ideal do Caboclo”, de 1912, de Cor-
nélio Pires, apresenta as aspirações singe-
las do caipira, aquelas que Lobato vai con-
denar em 1914. Cornélio Pires foi o folclo-
rista fundamental na divulgação da cultura
caipira do século XX. Produziu 25 livros,
entre eles Musa Caipira (1910), Quem
Conta um Conto (1919), Conversas ao Pé
do Fogo (1921). Fez palestras, representou
roceiros em monólogos criados por ele,
montou caravanas de violeiros, cantadores
e humoristas, apresentando-se em palcos e
picadeiros. É mesmo chamado pela autora
de “pai da cultura caipira”.
Foi Cornélio Pires quem, em 1929, pren-
sou o primeiro disco de música e humor
caipira, percebendo que o fluxo interior-
capital continuava e até se intensificava.
Levou para São Paulo cantadores e violeiros
da região de Piracicaba, interessado que
estava em gravar a autêntica música caipi-
ra. Os discos que produziu apresentavam
anedotas, desafios, declamações, cateretês,
modas de viola, e foram vendidos pelo in-
terior com enorme sucesso. Isso fez a pro-
dutora de discos Columbia reconhecer o
espaço existente para esse tipo de tema e
prensar outros 43 discos até o início de 1931.
Foi também ele quem descobriu várias
outras figuras, como Batista Júnior (pai de
Linda e Dircinha) e Nhá Zefa (Maria Di
Léo), preferida de Cornélio, nascida na ca-
pital e filha de italianos.
Autores teatrais, cantores e composito-
res, tanto populares quanto eruditos, regis-
travam a música e a poesia dos caipiras e dos

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sertanejos. Havia uma fronteira difusa, no filme Fazendo Fitas, de 1935, de Ario-
principalmente sob o olhar da cidade gran- valdo Pires, o Capitão Furtado, figura tam-
de. Tanto o caipira quanto o sertanejo es- bém importante no campo de música caipi-
tavam fugindo da pobreza e desembarca- ra e sobrinho de Cornélio Pires.
vam em São Paulo e no Rio de Janeiro O rádio foi, fora de dúvida, o meio fun-
com esperança de mudar de vida. Eles tra- damental para a difusão do gênero. Trazia
ziam consigo uma força muito grande para caipiras de primeira linha para se apresenta-
enfrentar o trabalho duro e “sobreviver ao rem, tinha horários dedicados ao público que
desterro”. migrava do interior. Em seus esquetes de
Acaba havendo então a fusão a partir de humor, de casos, de música, apresentados
pontos comuns entre o sertão nordestino e ao vivo, o caipira obviamente levava vanta-
a roça caipira. O maranhense Catulo da gem sobre o homem da cidade. Os humo-
Paixão Cearense foi dos primeiros a fazer ristas exploravam os traços cômicos de sua
a viagem do Norte para o Sul. Ele e seu personalidade – como a mania de mentir para
parceiro, João Pernambuco, compõem pregar peças no habitante da cidade. No
“Luar do Sertão”, que se tornou uma espé- período áureo do rádio e do cinema caipira
cie de hino sertanejo. Sob sua influência de Mazzaropi, ainda se mantém uma visão
Pixinguinha cria o grupo Caxangá, que se ambígua sobre o caipira, sobre o Jeca: ele é
apresentava vestindo chapéu de palha. bobo e esperto ao mesmo tempo. Sua fala
Jararaca e Ratinho, em seu grupo chamado mole aparentemente inocente esconde uma
Turunas Pernambucanos, também usavam malandragem particular.
chapéu de cangaceiro. A autora vai apre- Vejamos como Rosa Nepomuceno con-
sentando cantores e grupos que fizeram a ta o surgimento de outros tipos famosos:
junção entre a música nordestina e a caipi-
ra. Essa era, muitas vezes, apresentada por “No Arraial do Capitão Furtado, em 1943,
artistas urbanos e famosos. A maioria dos apareceu um trio simplezinho, malvestido,
cantores consagrados incluía em seus re- formado pelos irmãos Perez e mais um pri-
pertórios músicas sobre temas rurais. É mo que tocava sanfona. Lá das plantações
ainda nos anos 1930 que Villa-Lobos com- de café e algodão das fazendas de Botucatu,
põe o “Trenzinho Caipira” e que Ari Bar- os filhos de um imigrante espanhol, chega-
roso (mineiro) e Lamartine Babo (carioca) vam dispostos a sair da situação de extrema
compõem “No Rancho Fundo”. Este últi- pobreza em que viviam […]. Venceram o
mo compõe também a famosa toada “Serra concurso para substituir os principais
da Boa Esperança”. violeiros do programa [de rádio] e arruma-
Jararaca (alagoano) e Ratinho (parai- ram o emprego. Capitão comentou que aque-
bano), segundo a autora, sintetizam a for- le nome espanhol não combinava com uma
ma de apresentação do roceiro, que podia dupla tão original e brasileira. Sugeriu o
ser mineiro, nordestino, gaúcho, paulista. nome Tonico e Tinoco, e assim passaram a
Seu figurino caricato era formado pela ca- ser apresentados. Dois anos depois grava-
misa xadrez, paletó menor que o manequim, ram o primeiro disco, ‘Em vez de me agra-
lenço e chapéu de abas curtas. Cantavam decê’ […]. Teriam, a partir daí, a carreira
emboladas e faziam piadas com as aventu- mais brilhante e estável das duplas caipi-
ras e desventuras do matuto na cidade (13). ras…” (Nepomuceno, 1999, p. 135).
Essa dupla nordestina que se caipirizou faz
parte do grupo de artistas que criou em 1931 Em Botucatu apareceu, em 1943, um
a Casa de Caboclo (nome de uma peça de humorista mambembando em galpões alu-
Freire Júnior de 1928) e que forjou um gados: era o paulista Mazzaropi. Apresen-
pedaço do sertão brasileiro na Praça Tira- tando-se em circos, fazia sucesso cantando
dentes, no Rio de Janeiro. Alvarenga (mi- “Tristezas do Jeca”, de outro músico, Ro-
neiro) e Ranchinho (paulista) compõem ou- que Ricciardi, que adotou o nome artístico
13 Sobre essa dupla ver:
Rodrigues, 1983. tra dupla famosa que atuou como caipira de Paraguassu.

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Filho de pai italiano e mãe portuguesa, cafeeira. A mão-de-obra continuava a ser
nascido em São Paulo, Mazzaropi passou despachada para as cidades, mas isso não
sua infância à porta dos circos. Aos 20 anos, interferia no crescimento do chamado agro-
em 1932, já era conhecido nos picadeiros e business, importador de máquinas e mo-
nos auditórios de rádio onde se apresenta- dernizador dos processos produtivos. Café,
va. Criou um tipo, vestido com calça pes- cana-de-açúcar e gado garantiam vendas
ca-siri, chapéu de palha desfiado e botina no mercado externo, dólares e mudanças
desengonçada, e conseguiu ser considera- de costumes em regiões do interior. En-
do o melhor intérprete do Jeca Tatu. Até o quanto isso, as metrópoles se empobreci-
final da década de 1940 já tinha produzido, am, inchadas pela população pobre expul-
dirigido e estrelado dez filmes, ficando tão sa do campo, gerando desemprego, violên-
popular quanto rico e lotando salas de todo cia e expondo a precariedade da sua infra-
o país (Nepomuceno, 1999, p. 155). estrutura. Maringá e Cascavel no Paraná,
Os momentos gloriosos da música e do Ribeirão Preto e São José do Rio Preto em
humor caipira foram, segundo Rosa Nepo- São Paulo, Uberaba e Uberlândia em Mi-
muceno, os anos 1940 e 1950, já nos anos nas, Rondonópolis no Mato Grosso, estão
1960 a música sertaneja perdeu espaço. Nas entre as cidades do interior que modifica-
cidades ela teve que enfrentar a bossa nova vam o cenário e os valores rurais.
e o rock. Seu público era aquele mais liga- Os filhos dos ricos e da classe média
do a festas tradicionais que aconteciam no passaram a preferir se fixar no interior. Não
interior e na periferia das cidades. Ficou era mais necessário ir para a capital para ter
sendo a música do pobre, do interiorano e acesso a informação e a bens de consumo,
do suburbano, e teve seu lugar definido – a boas universidades e a oportunidades
era de segunda classe, do quintal, da cozi- profissionais. Os interioranos, em vez de
nha. Os nomes do período áureo, como seguirem a reboque dos padrões da cidade,
Tonico e Tinoco e Inezita Barroso, ficaram agora foram buscar no country norte-ame-
relegados a programas do tipo “hora da ricano os novos modelos de vestuário, de
saudade”. lazer e de música. Eles se permitiam casar
Acompanhando a trajetória da música a alma rural com o progresso e com a rique-
de inspiração rural, Rosa Nepomuceno vai za, e não mais a alma ingênua com a pobre-
ressaltar os primeiros passos do ressurgi- za (Nepomuceno, 1999, p. 201).
mento da música caipira. Chitãozinho e Chitãozinho e Xororó traduzem esse
Xororó surgem em 1970; Milionário e Zé interior rico, farto, ligado on line ao pri-
Rico estouraram em 1975; Sérgio Reis, meiro mundo: eles “foram os primeiros a
Rolando Boldrin, Almir Sater são figuras da dar maior dimensão à ligação sertanejo-
nova safra. Mas, a essa altura, o mundo ser- country, inaugurada no final dos anos 1940
tanejo estava dividido. De um lado, os quase por Bob Nelson, [e] também foram os últi-
marginais, apegados às tradições. De outro, mos, na geração dos astros populares, a
os que procuravam a integração com as ostentar a sua herança rural. Ela está nos
novidades do mercado e que vendiam mais. seus primeiros discos, onde cantaram as 14 A empresa Kuarup discos tem
apresentado o que há de me-
Chitãozinho e Xororó, apresentando as modas do Capitão Furtado, e mais tarde, lhor no clássico sertanejo. No
“baladas rancheiras com roupagem pop em ‘Clássicos Sertanejos’, de 1996” CD No Sertão; Violas e Cor-
das, Roberto Corrêa é apre-
cantadas em terças”, “criaram um abismo (Nepomuceno, 1999, p. 204). sentando como homem do ser-
tão de Minas, violeiro que jun-
intransponível entre os dois mundos – o da ta o conhecimento erudito e a
música tradicional (14) e o da sertaneja “O repertório de reggaes, baladas românti- pesquisa da tradição da vio-
la. Nesse CD estão “Luar do
moderna” (Nepomuceno, 1999, p. 197). cas, rocks e música country já estava incor- Sertão”, de João Pernambuco
e Catulo da Paixão Cearense;
Os artistas do boom sertanejo da década porado ao novo gênero sertanejo e deixava “Asa Branca”, de Luiz Gon-
de 1980 cantavam para um Brasil que vol- também de ser cantado necessariamente em zaga e Humberto Teixeira;
“Viola Enluarada”, de Marcos
tava a ter no campo grande força econômi- duas vozes (vide Leonardo e Daniel, que e Paulo Sérgio Valle, entre
ca, quase seis décadas depois de ter expe- continuaram a fazer sucesso após a morte outros clássicos do gênero. Ver
site www.kuarup.com.br e e-
rimentado o período mais rico da cultura de seus parceiros, Leandro e João Paulo). mail kuarup@kuarup.com.br

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No caso desses dois cantores, o tratamento Quanto mais globalizada, mais localista, e
mercadológico procurou diluir ao máximo é nessa simbiose que ganham sentido os
a marca interiorana dos moços, reforçando novos caipiras-countries.
a imagem de galãs simpáticos. Os dois
adotam a postura de cantores românticos, Procuramos acompanhar como a histo-
dispensando o rótulo de sertanejos” riografia paulista, os intelectuais no princí-
(Nepomuceno, pp. 213-4). pio do século e, mais tarde, a produção
originária do espaço da universidade tra-
Para os críticos a música caipira perdeu tou do homem do interior e discutiu seu
todo o vínculo com o campo, abandonou as papel no processo de modernização então
origens. O único ponto de identificação com em curso. A incorporação das camadas
o universo rural são os temas do boi e do populares européias, os camponeses imi-
peão, que são mantidos por causa dos ro- grantes, ao mundo rural paulista também
deios que atraem grande público. Para a confere um sentido especial a esse proces-
autora, entretanto, ainda existem traços da so. Abordamos o tema explorando algu-
música caipira de raiz. O Clube Os Inde- mas obras (de Antonio Candido, Maria
pendentes, responsável pela festa de Bar- Isaura Pereira de Queiroz e João Baptista
retos, por exemplo, promove o festival Borges Pereira) que marcaram essa produ-
Violeira, onde surgem novos músicos da ção acadêmica chamada de sociologia es-
autêntica música caipira. quecida. A modernização do campo brasi-
Esse processo da roça ao rodeio foi leiro – sem reforma agrária, entendida como
coroado pelas novelas quando a música cai- distribuição de terras – criou uma nova
pira deixou de ser ouvida e tocada no quin- ruralidade que se faz perceptível em suas
tal e chegou à sala. A viola de Almir Sater, festas e comemorações. A associação entre
as modas de Sérgio Reis, o ambiente rural modernização do campo e indústria cultu-
e o dialeto caipira marcaram Pantanal, em ral se faz presente na Festa do Peão de
1990, e Ana Raio e Zé Trovão, em 1991 na Barretos tomada como exemplar da cons-
Manchete e, em 1996, na Globo, O Rei do tituição do peão-cowboy. Fizemos a leitura
Gado. Assim, um fenômeno aparentemen- desse trajeto acompanhando a música po-
te ligado ao local, ao tradicional, ao regio- pular e demos destaque também a figuras
nal, ao folclore, torna-se bem de consumo de sucesso da cultura popular que passa-
moderno, desejável por amplos segmentos ram do mundo imigrante para o caipira,
da população e inserido na globalização. como por exemplo Tonico e Tinoco,
Como já escrevemos páginas atrás: a Mazzaropi, Adoniran Barbosa, entre ou-
forma de recontar o processo de reajuste da tros. E, por fim, procuramos sinalizar de
economia brasileira aos avanços do capita- que modo o agrobusiness e o circuito de
lismo mundial é variável, ora é visto como rodeio constituíram o espaço social para
avanço, ora como decadência, ora valori- que o caipira, ou o atrasado de ontem, se
za-se o lado da modernização, ora da ruína. tornasse o globalizado de hoje.

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