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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA AMBIENTAL

MARIA APARECIDA DE SÁ XAVIER

Estudo das representações simbólicas de saúde/doença/cura na


comunidade do Saco do Mamanguá, Paraty, RJ.

NITERÓI,
2004
ii

MARIA APARECIDA DE SÁ XAVIER

ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS DE


SAÚDE/DOENÇA/CURA NA COMUNIDADE DO SACO DO
MAMANGUÁ, PARATY, RJ.

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-


Graduação em Ciência Ambiental da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Mestre. Área de concentração: Análise de
Processos Sócio-Ambientais.

Orientador: Profª Drº Júlio Wasserman


Co-orientadora: Drª Deborah de Magalhães Lima

Niterói,
2004
iii

Sá Xavier, Maria Aparecida


Estudo das representações simbólicas de saúde/doença/cura na comunidade do
Saco do Mamanguá, Paraty, RJ. Maria Aparecida de Sá Xavier. – Niterói: [s.n.], 2004.

181 f., 30 cm.


Dissertação (Mestrado em Ciência Ambiental) – Universidade Federal Fluminense,
2004.
Bibliografia: f. 167-181 .

1. Representações simbólicas de saúde/doença/cura. 2. Resex Marinha. 3. Meta


social. 4. Saúde e Qualidade de vida.
iv

MARIA APARECIDA DE SÁ XAVIER

ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS DE


SAÚDE/DOENÇA/CURA NA COMUNIDADE DO SACO DO
MAMANGUÁ, PARATY, RJ.

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-


Graduação em Ciência Ambiental da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Mestre. Área de concentração: Análise de
Processos Sócio-Ambientais.

Aprovada em agosto de 2004

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________
Profª Drº Julio Wasserman - Orientador
Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________________
Profª Drª Deborah de Magalhães Lima – Co-orientadora
Universidade Federal de Minas Gerais

_________________________________________________________
Profº Drº Antonio Carlos Diegues
Universidade de São Paulo

_________________________________________________________
Profº Drº Carlos Walter P. Gonçalves
Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________________
Profº Drº Célio Mauro
Universidade Federal Fluminense

Niterói
2004
v

Dedico este trabalho de pesquisa aos comunitários do Saco do Mamanguá, aos alunos,
professores e funcionários da escola Domingos Gonçalves Abreu e ao professor Antonio
Carlos Diegues. Sem a colaboração de vocês eu não teria materializado a etnografia!
O meu muito obrigado pelo acolhimento fraterno e respeitoso, pela paciência que
demonstraram em responder as perguntas, por me aceitarem em suas casas, por permitirem
que as fotos fossem feitas, por me alimentarem, me cederem o seu espaço, pelas muitas
caronas nos barcos, pelas mãos fortes e calejadas que me ajudaram a subir nos barcos, me
apontaram os caminhos (as trilhas) a seguir, pelas brincadeiras que fizeram o trabalho mais
ameno, pelas palavras que me incentivaram e me afirmaram que eu chegaria até aqui, por me
desejarem sucesso.
Eu nunca vou me esquecer de vocês! Aquele dia da partida foi muito triste para mim.
À medida que o barco se afastava, a paisagem se formava e me tomava. Eu sentia o peso de
uma grande responsabilidade, pois carregava todas as falas, os saberes, as expectativas e os
sonhos de uma comunidade inteira. Trago em mim a certeza de ter cumprido a missão e
espero que este documento seja um instrumento político favorável à criação da Reserva
Extrativista Marinha, objetivando cumprir uma “meta social”, para estabelecer uma justiça
social concreta com “saúde e qualidade de vida”.
Emociono-me ainda quando me lembro de vocês, mas tenho que seguir, minha vida é
correr o mundo. Trago comigo a certeza que “um sonho que se sonha só, é só um sonho que
se sonha só. Mas um sonho que se sonha junto é realidade” (Raul Seixas).
vi

AGRADECIMENTOS

Aos mestres com carinho: Milton Santos (in memoriam), jamais esquecerei aquela aula
inaugural (Território e Dinheiro); Carlos Walter P. Gonçalves por qualificar e respeitar
minhas idéias desde o começo; Deborah Lima por acreditar, confiar em minha proposta e
seguir sempre comigo, corrigindo, mostrando e guiando; Júlio Wasserman por me aceitar,
acreditar, amparar e sobretudo por me corrigir. Este trabalho não teria sido concretizado sem
vocês.
À minha mãe Lêda Lisbôa, meus irmãos Eliane e Carlos e minha tia Dalva Lisbôa, que
mesmo sem entenderem muito bem o que eu fazia, me apoiaram.
À minha avó Lavaly Lisbôa de Paiva (in memoriam), ao meu avô José Sabino de Paiva (in
memoriam) e ao meu filho Felipe de Sá Xavier (in memoriam), vocês são luz na minha
estrada!
Aos meus sobrinhos, Dodô, Carolina e Karina, perdoem pela ausência, mas sempre estiveram
no meu coração.
Ao companheiro da jornada, Luciano Cantarino, valeu por tudo!
Aos médicos/amigos que me cuidaram, incentivaram e muitas vezes me levantaram
(literalmente) para que eu pudesse chegar até aqui: Drª. Martha Chagas, Drª. Maria Cecília
Duarte e Drº Aloízio Brasil. Isso aconteceu porque nós buscamos e acreditamos numa relação
humanizada entre médico e paciente.
Às amigas e ao amigo de todos os momentos, Lysia Condé, Flávia Mattos e Pedro Sanmartin,
muito obrigada pelo carinho dedicado, a vida seria muito difícil e triste sem vocês!
Aos amigos, Thaís (seu apoio foi fundamental naquele momento), Aline, Pedro Leal, Alfredo
(valeu pelas correções), Albano, Natascha, Telma, Juliana Posse, Bete Dasinger (sua arte é
fundamental), Priscila, Luiz Cláudio, Padrone, Susy, Muniz, Firmino, Mariana (saudade),
Sylvie, Heitor, André Botelho, Jussara Calmon, Jorge (secretário), Fátima, Mara, Marta
Caretta, Uirá Felipe, Zélia Barros, valeu gente!
À amiga de Paraty, Anaiá, obrigado por abrir as portas!
Aos colegas, funcionários e professores do PGCA e Instituto de Geociências por todos os
momentos de descontração, aprendizado e informações compartilhadas.
Aos colegas da antropologia e ao Professor Sávio Leopoldi (Métodos em Antropologia).
Vocês foram fundamentais para a minha busca, me ajudaram não só a insistir na caminhada,
como também ensinaram, mostraram e apontaram soluções para a minha pesquisa. Obrigado
pelo respeito com que me trataram, foi fundamental para que eu adquirisse autoconfiança.
Ao Professor Sávio Bruno da Veterinária, UFF, e sua orientada Carolina Costa pelas
informações prestadas.
A todas as outras pessoas que participaram de uma forma direta ou indireta para a construção
e realização deste trabalho, meu muito obrigado!
Ao IBAMA/CNPT e Comitê Chico Mendes pelo apoio institucional, a CAPES que me
concedeu a bolsa de mestrado, obrigada.
vii

“O objectivo da sociologia das ausências é transformar objectos


impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças.
Fá-lo centrando-se nos fragmentos da experiência social não socializados
pela totalidade metonímica. O que é que existe no Sul que escapa à dicotomia Norte/Sul?
O que é que existe na medicina tradicional que escapa à dicotomia medicina
moderna/medicina tradicional? O que é que existe na mulher que é independente
da sua relação com o homem? É possível ver o que é subalterno sem
olhar à relação de subalternidade?” (Santos, 2003b, p.11)
viii

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO, p. 14
1.1.JUSTIFICATIVA, p.16
1.2 OBJETIVO, p. 17
1.3. METODOLÓGIA, p.17
1.4.LOCALIZAÇÃO DA ÁREA DO ESTUDO, p. 1.8
1.5 APRESENTAÇÃO E DESENVOLVIMENTO, p. 18

2 POPULAÇÃO TRADICIONAL: HISTÓRICO DE UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO,


p. 22
2.1 A CRIAÇÃO DAS RESERVAS EXTRATIVISTAS, p. 28
2.2 POPULAÇÃO TRADICIONAL: A NECESSIDADE DE UMA CATEGORIA, p. 29
2.3 EM BUSCA DE UM CONCEITO, p. 31
2.4 A VISÃO DOS AUTORES, p. 33

3 CAIÇARAS: EM BUSCA DE UMA ORIGEM, p. 42


3.1 ISOLAMENTO OU INTECÂMBIO, DESESTRUTURAÇÃO OU REORGANIZAÇÃO? p. 46
3.2 A HISTÓRIA DO MAMANGUÁ NA HISTÓRICA DE PARATY, p.48
3.3 CARTOGRAFANDO CENÁRIOS: O ECOLÓGICO E O SOCIOAMBIENTAL DO
MAMANGUÁ, p. 57
3.4 QUESTÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS, p.62
3.5 UM FUTURO POSSÍVEL p. 63

4 ABORDAGEM HISTÓRICA DOS MODELOS CONSTRUÍDOS DE


SAÚDE/DOENÇA/CURA: UMA REPRESENTAÇÃO DO PENSAMENTO OCIDENTAL, p.
67.
4.1 A VISÃO DE MUNDO CONDICIONANDO OS MODELOS, p. 71
4.2 A MEDICINA OCIDENTAL: DE DOENÇAS COMO ESPÉCIES A DOENÇAS COMO
SINTOMAS, p. 75
4.3 O AMBIENTE SOCIAL CORROBANDO PRA UMA MEDICINA DE
CONTROLE DO CORPO, p. 77
4.4 A TRANSFORMAÇÃO DO HOSPITAL COMO LOCAL DE SABER CIENTÍFICO: O
HOSPITAL TERPÊUTICO, p. 82
4.5 UM NOVO PARADIGMA: A MICROBIOLOGIA, O ESPAÇO COMO CATEGORIA DE
ANÁLISE E O ETHOS DO HUMANO, p.85
4.6 OS OUTROS SABERES/PRÁTICAS TRADICIOANAIS DA ARTE DE CURAR E O MODELO
BIOMÉDICO: É POSSÍVEL UM DIÁLOGO ENTRE OS SABERES? p. 88

5 AS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS DE SAÚDE/DOENÇA/CURA NA


COMUNIDADE DO SACO DO MAMANGUÁ, p. 97
5.1 UMA INTRODUÇÃO AO MÉTODO: UM CAMINHO PARA, p. 100
5.2 SOBRE O MÉTODO ETNOGRÁFICO E AS IMPLICAÇÕES DO TRABALHO DE CAMPO,
p..104
5.3 A CHEGANÇA, p. 108
5.4 REPRESENTAÇÕES DE SAÚDE/DOENÇA/CURA, p. 112
5.4.1 AS CATEGORIAS DE DOENÇAS, p. 115
5.4.2 AS DOENÇAS DA INFÂNCIA E DA FASE ADULTA QUE “MÉDICO NÃO CURA”: ETIOLOGIA,
TRATAMENTO E CURA, p. 117
5.4.2.1 Aguado, p.120
5.4.2.2 Quebranto, p. 121
5.4.2.3 Olhado, p. 122
ix

5.4.2.4 Vento virado, p. 123


5.4.2.5 Doença de criança ou fogo bravo, p. 124
5.4.2.6 Espinhela caída, p. 126
5.4.2.7 Catarro sufocante, p. 127
5.4.3 DOENÇA TRATADA PELO MÉDICO: A LEISHMANIOSE NO MAMANGUÁ, DO PONTO DE VISTA DO
NATIVO, p. 128
5.4.4 OS ENCONTROS DE ANTES E DE HOJE, PARA FALAR DE GRAVIDEZ E SUA RELAÇÃO COM OS
“SERES ENCANTADOS”, OS BIOANTROPOMÓRFICOS, p. 130
5.4.4.1 Os encontros, p. 131
5.4.4.2 A gravidez, p. 132
5.4.4.3 Uma representação dos seres bioantropomórficos na categoria “filho de bicho”, p. 133
5.4.5 AS CATEGORIAS PARTO, RESGUARDO E SEUS INTERDITOS: RESMA, BRAVO, MANSO, QUENTE E
FRIO, p. 137
5.4.5.1 Alimentos considerados carregados ou com “resma”, p. 143
5.4.5.2 Peixe bravo e peixe manso, marisco bravo e marisco menos bravo, p. 145
5.4.6 A VELHICE E SUAS DOENÇAS, PERCEBIDA PELA VISÃO DOS DO MAMANGUÁ, p.147
5.4.6.1 Doença “vista cansada”, p. 148
5.4.6.2 Doença “catarata”, p. 150
5.4.6.3 Doença “reumatismo”, p. 151
5.4.6.4 Doença do “esquecimento” (memória), p. 151
5.4.6.5 Doença “diabetes”, p. 152
5.4.6.6 Doença “pressão alta”, p. 153
5.4.6.7 Doença “surdez”, p. 154
5.4.7 OS RITUAIS DE CURA: OS BENZIMENTOS E OUTRAS PRÁTICAS, p. 154
5.4.7.1 Do cobreiro, p. 155
5.4.7.2 Da impinge, p. 156
5.4.7.3 Da izipa, p. 156
5.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE SAÚDE/DOENÇA/CURA E QUALIDADE DE VIDA NA
COMUNIDADE DO SACO DO MAMANGUÁ, p. 157

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS, p. 160

7 OBRAS CITADAS, p. 167


x

LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Situação geográfica da região do Saco do Mamanguá, p. 48
Figura 2 – Situação geográfica das Unidades de Conservação, p. 50
Figura 3 – Vista de uma área degradada no Fundo do Saco, p. 53
Figura 4 – Vista do Baixio, construção antiga de pau-a-pique, p. 55
Figura 5 – Vista do Baixio, construções novas e antigas, p. 56
Figura 6 – Vista da Ponta da Romana e suas construções novas, p. 56
Figura 7 – Vista aérea do Saco do Mamanguá , p. 57
Figura 8 – Vista do Fundo do Saco, p. 58
Figura 9 – Vista da AMAM localizada na Praia do Cruzeiro, p. 61
Figura 10 – Uma mansão na parte peninsular do Saco do Mamanguá, p. 65
Figura 11 – Casa dos turistas, parte peninsular do Saco, p. 65
Figura 12 – Representação dos ambientes e do trajeto percorrido na pesquisa de campo, p. 102
Figura 13 – Crianças no barco da Escola, p. 106
Figura 14 – Barco do Sr. Alécio fazendo o transporte da funcionária e crianças para a Escola,
p. 107
Figura 15 – Comunidade da Praia do Cruzeiro, pai com os filhos no conserto de uma rede de
pesca, p. 109
Figura 16 – Uma família da comunidade do Baixio, p. 110
Figura 17 – Artesão do Baixio no trabalho com caixeta, p. 110
Figura, 18 – Dona Nézia, merendeira cuidando da horta da Escola, p. 111
Figura 19 – Família de artesãos do Fundo do Saco, p. 111
Quadro 1 – Síntese de todas as categorias de doenças e estados liminares que requerem
cuidados no Saco do Mamanguá, p.117
Figura 20 – Adolescentes e crianças pescando na Praia do Cruzeiro, p. 118
Figura 21 – Crianças do Baixio, p. 119
Figura 22 – Criança da Ponta da Romana, p. 121
Figura 23 – Mulher da Ponta da Romana em “resguardo”, seus filhos e sobrinha, p. 122
Quadro 2 – Prescrições do “resguardo antigo”, dado pelas parteiras do “lugar”, p. 140
Quadro 3 – Representação dos alimentos por classificação, p. 146
Figura 24 – Mulher e sua neta, p. 149
Figura 25 – Mulher da Ponta da Romana, p.149
Figura 26 – Homem da Praia do Cruzeiro, p. 150
xi

LISTA DE ABREVIATURAS,

AMAM – Associação dos moradores e amigos do Mamanguá.

APA- Área de Proteção Ambiental.

CNPT – Centro Nacional do Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais.

CNMAD – Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento.

FNMA – Fundação Nacional do Meio Ambiente.

IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.

IEF- Instituto Estadual de Florestas.

INCRA- Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

INSS- Instituto Nacional de Assistência Social.

IUCN – União Internacional para a Conservação da Natureza.

MMA – Ministério do Meio Ambiente.

PSF – Programa de Saúde da Família.

OMS- Organização Mundial de Saúde.

ONG – Organização não governamental.

REEJ- Reserva Ecológica Estadual da Juatinga.

RESEX Marinha – Reserva Extrativista Marinha.

SNUC- Sistema Nacional de Unidades de Conservação.

U.C. – Unidade de Conservação.

UNICEF- Fundo Nacional das Nações Unidas para a Infância.


xii

RESUMO

O presente trabalho faz uma cartografia das representações simbólicas de


saúde/doença/cura na comunidade do Saco do Mamanguá, Paraty, RJ, com o intuito de propor
uma reflexão sobre questões éticas que acompanham a criação de uma Unidade de
Conservação (U.C.) com moradores, no caso uma Reserva Extrativista Marinha (RESEX
Marinha). Uma “meta social” sustentável deve assegurar “saúde e qualidade de vida” para as
chamadas populações tradicionais. O trabalho está centrado na discussão de quatro temas: (i)
o conceito de população tradicional; (ii) o conceito de caiçara; (iii) o modelo ocidental
historicamente construído de saúde/doença/cura, empregado nos programas de saúde de
comunidades tradicionais moradoras em U.Cs. e sua dissonância com os saberes tradicionais
de cura, e (iv) as representações simbólicas de saúde/doença/cura na comunidade do Saco do
Mamanguá. Argumenta-se que a imposição de projetos de saúde verticais para as U.C. com
moradores inviabiliza o seu próprio sucesso, pois aumenta os conflitos entre os saberes
êmicos e éticos. Faz-se necessário definir uma “meta social” para as U.C. com moradores de
modo a torná-los sujeitos e não objetos da conservação. Neste sentido, propõe-se um diálogo
entre os saberes, estabelecendo uma zona de contato não imperial. Nas representações
simbólicas de saúde/doença/cura no Saco do Mamanguá foi identificada uma grave distância
entre as categorias éticas dos saberes biomédicos e as categorias êmicas dos saberes
tradicionais de cura. Na categoria “doenças”, apresentam-se: doença que “médico não cura”,
doenças “híbridas”, doenças que “médico cura”. Os rituais de passagem e/ou estados
liminares não são considerados doenças, mas exigem cuidados especiais. São estes: gravidez
(e seus interditos), parto, resguardo (e seus interditos) e velhice (e seus incômodos). Nos
tratamentos para obtenção da cura são descritos os benzimentos, os rituais, as simpatias, as
rezas e as palavras mágicas. A cosmovisão dos comunitários do Mamanguá reflete a
imbricação natureza/cultura expressa no mito dos seres bioantropomórficos. Seus saberes
tradicionais de cura configuram-se em um verdadeiro patrimônio imaterial, sendo que sua
transmissão está sendo interrompida, dada a rápida mudança social promovida pelos atrativos
das tecnologias fáceis que capturam principalmente os jovens. Faz-se necessário qualificar e
resgatar estes saberes, para garantir a reprodução das tradições locais para as futuras gerações.
Para concretizar um desenvolvimento sustentado de uma U.C. com moradores (o caso da
Resex marinha), uma ética da sustentabilidade clama por uma meta social que dê visibilidade
às questões sociais emergenciais locais, estabelecendo uma zona de contato não imperial,
baseada na solidariedade e na responsabilidade social.

Palavras chaves: Representações Simbólicas de Saúde/Doença/Cura; RESEX Marinha; Meta


Social; Saúde e Qualidade de Vida.
xiii

ABSTRACT

The present study carries out a mapping of the symbolic representations of the
health/illness/cure process in the community of Saco do Mamanguá, Paraty, RJ, Brasil. This
mapping is intended to provide a insights on the ethic questions that follows the creation of
the Marine Extrativist Reservation (RESEX Marine) that was proposed for the area. A
sustainable “social aim” should ensure health and life quality for the so called traditional
people. The present work is focused on four distinct themes: (i) the concept of traditional
people; (ii) The concept of caiçara; (iii) the historically built occidental model for
health/illness/cure that is employed governmental agents in the traditional communities
disregarding the traditional knowledges; (iv) the symbolic representations of
health/illness/cure in the Saco do Mamanguá community. It is criticized that the imposition of
governmental and universal health projects for traditional communities drives these programs
to failure, for it introduces conflicts between emic and ethic knowledges. It is therefore
necessary to establish a “social aim” for the Marine Extrativist Reservations, where traditional
people becomes actors and not passive subjects of conservation. For that, a “dialog of
knowledges” is proposed, establishing a non imperial contact zone. Nevertheless, there is a
great lag between ethic categories of the biomedical knowledge and the emic categories of the
traditional knowledge of cure. The category “illness” show the illnesses that the “physicians
do not heal”, hybrid illnesses and the illnesses that physicians heal. The passage rituals or
liminary states are considered as illnesses that require special issues. These are pregnancy
(and their forbiddances), delivery, post-delivery (and their forbiddances), aging (and its
indispositions). For the healings are described the blessings, rituals, charms prayers and magic
words. The “cosmo-regard” of the Mamanguá people mirrors the complexness of
nature/culture, as expressed in the myths of the bioantropomorphic beings. Their traditional
healing knowledges outline a real non material patrimony which transmission is being
interrupted, due to the rapid social changes promoted by the attractions of the easy going
technologies that redirect the attention of the new generations. It is necessary to qualify and
rescue these knowledges in order to warrantee the reproduction of the local traditions for the
future generations. The quest for the sustainable development in Environmental Conservation
Units takes to an ethic of sustainability, that claims for a social aim giving rise to urgent local
needs. This is to be worked out in a non imperial contact zone based on solidarity and social
responsibility.

Keywords: Symbolic Representations of the Health/Illness/Cure; RESEX Marine; Social


Aim; Health and Life Quality.
1

1 Introdução

A realidade objetiva de uma sociedade está representada por suas instituições, segundo
Berger e Luckmann (2002, p. 92-93). Tais instituições têm um corpo de conhecimento1 que
informa aos indivíduos as regras de conduta adequadas nesta sociedade, incorporando-se à
experiência de cada um por meio dos papéis desempenhados no mundo social. Ao interiorizar
estes papéis, o mesmo mundo torna-se subjetivamente real. Subjetivando o mundo (através do
cognitivo) cada indivíduo passa a representar simbolicamente a realidade complexa (conduta
institucionalizada) nas suas relações sociais, através dos papéis que desempenha. Estas
representações simbólicas estão na linguagem, nos códigos de conduta, nos sistemas éticos,
religiosos e mitológicos de pensamento (Berger e Luckmann, p. 103 –105). Partindo desde
pressuposto, Ferreira (1994) diz que o corpo é um suporte e um reflexo da sociedade, e a
noção do processo saúde/doença/cura também é uma construção social, pois um indivíduo é
doente segundo o critério de classificação de uma sociedade e em acordo com as modalidades
que ele fixa.

Na região do Saco do Mamanguá, sul do município de Paraty, RJ, há um processo de


concretização de uma Reserva Extrativista Marinha e como em outras Unidades de
Conservação (U.C.) com moradores, a “meta social” em seu item saúde, não vem sendo
discutida. Isso ocorre porque os projetos são verticais em sua maioria, não levando em
consideração as representações simbólicas em relação à saúde/doença/cura do saber local
(Margotto, 1998; Menezes, 2000; Oliveira, 2000; Araújo, 2002; Santos, 2003; Freitas, 2003).
O programa de saúde familiar aplicado nas comunidades tradicionais mantém como
pressuposto básico a universalização de conceitos com relação ao processo
saúde/doença/cura, desconsiderando as formas subjetivas e particulares do ethos local. Essas
formas são consideradas por Geertz (2002, p.87) como êmicas, quer dizer, artefato cultural do
saber local. A proposta desta dissertação é cartografar2 as representações simbólicas de

1
Segundo Berger e Luckmann (2002, p. 93-94), este conhecimento é um corpo de verdades universalmente
válidas sobre a realidade. Assim sendo, o conhecimento de uma dada sociedade é uma realização no sentido
duplo da palavra, no sentido de apreender a realidade social objetivada e no sentido de produzir continuamente
esta realidade.
2
Para Milton Santos (1996) a noção de espaço é somente possível enquanto uma abstração, já que o autor
entende o espaço como um sistema híbrido, um misto entre objetos e ações (que aparece nas relações), entre o
material e o social. Sendo assim, é possível cartografar dimensões culturais, e dentro destas, as representações de
saúde/doença/cura como uma forma socialmente construída.
2

saúde/doença/cura na comunidade do Saco do Mamanguá, Paraty, RJ, a fim de estabelecer


uma provocação e um convite para questões relevantes tais como “meta social”, “saúde e
qualidade de vida” das chamadas “populações tradicionais” residentes em Unidades de
Conservação.
A expressão “população tradicional” (como argumentado no segundo capítulo) é uma
categoria construída para resolver problemas jurídicos surgidos na criação das Unidades de
Conservação com moradores, inicialmente na criação das Reservas Extrativistas no Estado do
Acre (Carneiro da Cunha e Almeida, 2001; Benatti, 2001 a e b). Esse termo ‘tradicional’ foi
adotado numa contraposição às sociedades ditas “modernas e urbano-industriais”, pensando
nas sociedades camponesas de pequenos agricultores, extrativistas, pescadores, entre outros.
Desta forma, é inegável que essas sociedades (sobreviventes nos interstícios da sociedade de
mercado) têm em sua territorialidade social a marca de um sistema tradicional. Esta tradição3,
na concepção de Hobsbawn (1997) tem função simbólica e ritual, e difere do costume. O
costume muda e pode mudar, a tradição não. Pode-se argumentar que esse sistema tradicional
gera a coesão social, o fermento do sentimento de pertencimento4. Na prática social
recorrente, chamada de “tradição”, se encontram os saberes, técnicas e práticas consideradas
um patrimônio imaterial. A Constituição Federal em seu artigo 216 (1988, p. 141-142),
esclarece:

“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,


tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais
se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.” [grifo adicionado]

Dado a legitimidade da Constituição Brasileira, neste trabalho de pesquisa os saberes e


práticas de cura serão considerados um patrimônio imaterial dos atores sociais do Saco do
Mamanguá.

3
No sentido de Hobsbawn (1997, p. 9) as tradições são inventadas, sendo entendidas como “(...) um conjunto de
práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou
simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente; uma continuidade em relação ao passado”.
4
Argumentado de outro modo por Moscovici (1990, p. 75), citando a solidariedade orgânica de Durkheim para
definir o sentimento de comunidade.
3

1.1 Justificativa

A pesquisa justifica-se pelos graves problemas de saúde enfrentados pelos


comunitários do Saco do Mamanguá, ocorrendo sobretudo pela falta de saneamento,
conforme apontado por Diegues e Nogara (1999). Estes autores informam que há falta de
fossas sépticas, tratamento de água, esgotamento e tratamento dos esgotos domésticos. Como
agravante a área é considerada endêmica de leishmaniose tegumentar americana (Soares et al.,
1999). Nos últimos dez anos há contínua recorrência de casos (variando entre dois e quatro
casos por ano), sendo que em 1997 foram registrados vinte e sete casos5, revelando uma
situação de Saúde Pública preocupante.

Estes dados expõem a condição de saúde precária da comunidade, que se reforça pela
ausência de conhecimento dos profissionais de saúde em relação aos saberes patrimoniais do
processo saúde/doença/cura local, tal como apontado por este trabalho. O Programa de Saúde
da Família (PSF), aplicado na região deste estudo, não difere dos modelos urbanos, não
permitindo a existência de uma relação horizontal entre saberes. Assim, este modelo de saúde
vertical, desconsiderando os saberes e tradições locais, inviabiliza e oculta muito dos
problemas de saúde de fácil solução (cf. quarto e quinto capítulos).
A cartografia das representações simbólicas de saúde/doença/cura vem fornecer
subsídios práticos para a superação do modelo biomédico aplicado localmente6, demonstrando
a importância da valorização dos saberes patrimoniais para a sobrevivência da cultura local,
bem como vem propor uma relação mais horizontal dos profissionais de saúde com a
comunidade (relação êmico e ético). O processo rápido e devastador da “globalização”, em
seu aspecto negativo, tem destruído identidades, desestabilizando o patrimônio imaterial dessa
sociedade tradicional (cf. Hall, 2000). Esta ação poderá trazer uma perda de difícil
recuperação, dado que a transmissão destes saberes de cura está sendo ameaçada pela rápida
mudança social em curso. Neste sentido, a cartografia do trinômio visa contribuir para uma
revalorização dos saberes patrimoniais imateriais do Saco do Mamanguá, Paraty, RJ, para as
atuais e futuras gerações.
Pensando nestas questões, Lima (2002) propõe uma “meta social” a ser atingida na
implantação de uma Unidade de Conservação com moradores, visando atender aos preceitos
sobre “qualidade de vida” estabelecidos na chamada Agenda 21 (1992) e na Agenda 21

5
Dados fornecidos pelo Dr. Flávio Moutinho, diretor da Divisão de Vigilância Sanitária de Paraty/ Secretaria
Municipal de Saúde de Paraty, transmitidos pela pesquisadora Carolina Monteiro da Costa.
6
Cf quarto capítulo (com Focault, Cangüilhem e Illich) sobre as condições históricas da construção deste
modelo.
4

Brasileira (2002). O CNPT/Ibama entende que para melhorar a “qualidade de vida” da


“população tradicional” (no caso caiçaras do Saco do Mamanguá) o seu primeiro item, saúde,
deve ser atendido, por ser a saúde base para um desenvolvimento comunitário endógeno.

1.2 Objetivo
Este estudo tem como objetivo cartografar as representações simbólicas de
saúde/doença/cura mais significativas na comunidade do Saco do Mamanguá, Paraty, RJ. Na
construção desta pesquisa há três níveis circundantes (específicos) a serem atendidos para a
construção do objeto: (i) levantamento dos aspectos teóricos conceituais em forma de ensaios
complementares sobre “população tradicional”, caiçara e modelo (biomédico) ocidental
construído de saúde/doença/cura; (ii) aproximação das duas realidades, acadêmica e saber
patrimonial local na troca de saberes (constituindo um sistema de rede); (iii) compreensão
sobre como a comunidade caracteriza o processo saúde/doença/cura, interpreta e busca meios
para restabelecer a saúde efetivando a cura.

1.3 Metodologia

Toda a discussão teórica foi metodologicamente desenvolvida baseada numa revisão,


buscando um diálogo com vários autores sobre as questões circundantes do objeto, seja
através de suas obras e/ou do diálogo presencial e livre. Já no quinto capítulo, onde há a
cartografia dos saberes ligados ao processo de saúde/doença/cura.a metodologia etnográfica
da Antropologia é utilizada, visto sua melhor adequação à investigação subjetiva
empreendida. Dentro dessa metodologia são utilizadas: “observação participante” do
comportamento e representações (fala, estórias, histórias, artes, rituais mágico/religiosos,
cânticos e danças); entrevistas abertas com roteiro, fotografia como uma representação de um
espaço-tempo e gravação em fita cassete das entrevistas, conversas, rezas, músicas e cânticos
rituais. O trabalho de campo foi realizado ao longo de três meses na área do estudo, com 20
entrevistas gravadas junto aos atores locais, mulheres e homens de 21 a 87 anos. Os
especialistas (benzedeiras, rezadeiras e parteiras), como também os executivos (representantes
de associações) da comunidade foram informantes privilegiados.

1.4 Localização da área do estudo.


O Saco do Mamanguá está situado ao sul do município de Paraty, RJ. A região (em
vias de implantação de uma Resex marinha) fica localizada em confluência com duas
5

Unidades de Conservação: Reserva Estadual Ecológica da Juatinga (REEJ) e Área de


Proteção Ambiental de Cairuçú (APA) (Diegues e Nogara, 1999). Sua relevância ecológica
se configura em razão de sua localização geográfica, como área litorânea do tipo estuarina ou
“ria”, inserida no contexto da Mata Atlântica. Uma ilustração mais detalhada do assunto está
no terceiro capítulo deste trabalho, no item 3.3, com descrição do cenário ecológico e
socioambiental.

1.5 Apresentação e desenvolvimento

O tema da pesquisa, “saúde de população tradicional moradora em Unidade de


Conservação”, é interdisciplinar e neste sentido está na liminaridade (confluência) com outras
competências disciplinares. Propositalmente fez-se necessário discorrer os assuntos em
formato de ensaios complementares, definindo os termos e categorias aos quais se articulam7
para dar conta de um tema tão amplo e complexo. Esta forma foi idealizada em acordo com o
pensamento do professor Milton Santos (1999, p. 7 e 8):

“A primeira coisa a fazer é definir o que a gente pretende conversar. Se não o faço
também não permito que as pessoas discutam comigo. A primeira condição para
aqueles que partem de uma ideologia – que é o meu caso – é oferecer claramente os
termos do debate que desejam. Se não o proclamo, fujo à discussão, evito-a, impeço
que debatam comigo (...).”

Na intenção de tornar possível um debate, como propõe o autor supracitado, esta


pesquisa se amplia numa estratégia de discutir quatro questões, que se interconectam num
sistema complexo8, envolvendo a questão principal: (i) conceito de população tradicional; (ii)
conceito de caiçara; (iii) a questão do modelo ocidental construído; e (iv) as representações
simbólicas de saúde/doença/cura da comunidade do Saco do Mamanguá, como um estudo de
caso.
Como a forma da pesquisa ocorre através dos ensaios complementares, sua leitura não
necessariamente precisa ser feita obedecendo à atual ordem seqüencial. Como um “mosaico
fluido de isomorfos não-triviais” (Maluf, 2002) a ordem dependerá da área de abrangência do
leitor. A título ilustrativo, podemos citar o quarto capítulo, que se situa dentro do contexto

7
Nem sempre é possível uma articulação untuosa, visto a rigidez disciplinar e/ou falha da própria pesquisa. É
sempre uma articulação possível para o momento.
8
Cf. “pensamento complexo” com Morin (2002) e Lévy (2004) e a “teoria das estranhezas” de Maluf (2002, p.
77). Esta última usa o sentido de “fluidez” para dar entendimento do “modo” como se dão “interações” entre
diferentes. Essas interações ligam de forma fluida as diferenças (estranhezas) a sua unidade (os diferentes
isomorfos que formam a unidade).
6

como profundo, o que o torna extenso. Entretanto ele é um esforço de (des)construção e


(re)significação elaborado pela autora, como profissional biomédico (Farmácia), um nível
fundamental para o empreendimento de “qualificar” os outros saberes de cura da comunidade
do Saco do Mamanguá.
No segundo capítulo é feito um levantamento teórico sobre o desenvolvimento do
recente conceito “população tradicional”, demonstrando como a criação das Reservas
Extrativistas no Estado do Acre desencadeou e inspirou o termo. Em seguida é abordada a
necessidade da efetivação, principalmente jurídica, de um instrumento que garanta a moradia
nas áreas de preservação, já que muitos atores sociais estavam lá antes do espaço ser
apropriado pelo Estado como Unidade de Conservação. O item seguinte desse capítulo trata
da busca de um conceito para esta categoria (população tradicional) antes vazia, que foi sendo
ao longo dos anos habitada por gente de carne e osso, e num certo sentido até almejada e
mesmo conquistada por estes tantos atores sociais, diversos e plurais. O último item mostra
uma revisão geral dos autores que tratam especificamente do tema “população tradicional”.
No terceiro capítulo, o primeiro item trata de explorar a categoria “caiçara” como um
léxico buscando suas origens. O segundo item toca na polêmica questão dos dilemas:
isolamento ou intercâmbio, desestruturação ou reorganização, desmistificando-os. O item
seguinte dá um enfoque histórico sobre a cidade de Paraty, que vai influenciar todas as
questões sociais/econômicas/culturais do Saco Mamanguá (Mamanguá no espelho). No
terceiro item é feita uma cartografia de cenários demonstrando a imbricação do ecológico no
socioambiental da região (se preferirem aqui se encontra uma descrição da área do estudo).
No quarto item as questões políticas e institucionais são abordadas. No último item há uma
reflexão sobre o futuro possível para a região, tendo em vista a criação da Reserva Extrativista
Marinha.
O quarto capítulo é um ensaio de (des)construção com uma abordagem histórica, no
sentido colocado por Focault9 (2001), sobre a questão dos modelos (biomédico) de
saúde/doença/cura. Tais modelos são pensados neste trabalho como uma representação do
pensamento ocidental, não configurando a verdade suprema como pretendia o positivismo.
Este ensaio pretende (des)naturalizar a biomedicina interpretando-a como um saber
socialmente construído10 imbuído de rituais, práticas e técnicas, como também de forte poder
representado no controle do corpo. Outro aspecto abordado será da configuração das

9
Os discursos como acontecimentos e segmentos funcionais formando um sistema, numa história sistemática
dos discursos (Focault, 2002, p.XVI).
10
Uma visão sociológica crítica, argumentada por autores como Focault (1979, 1995, 2001), Cangüilhem (2000)
e Illich (1975).
7

categorias espaço e ethos na análise da transmissão das doenças – o surgimento da


epidemiologia. Fechando o capítulo, uma exposição sobre as condições e a possibilidade de
um diálogo entre o saber biomédico e os saberes tradicionais de cura.
O quinto capítulo traz uma cartografia etnográfica das representações simbólicas de
saúde/doença/cura da comunidade do Saco do Mamanguá. Este estudo é introduzido a partir
do tema “saberes e técnicas de cura”, demonstrando como o forte ethos local e o sistema de
redes solidárias vão construindo o êmico das representações de saúde/doença/cura no
Mamanguá. Neste sentido as categorias espaço/ território/ natureza são pensadas de forma
ampla, dado por Godelier (2001), como também por Sodré (1988) e Santos (1996). A
cosmovisão dos de Mamanguá reflete a imbricação natureza/cultura e isso ganha visibilidade
nas categorias êmicas do processo saúde/doença/cura, interpretadas pela ética do método
etnográfico empregado (Geertz, 2002). Nas categorias de doenças, elencam-se: doença que
“médico não cura”, doenças “híbridas”, doenças “que médico cura”. Os rituais de passagem
e/ou estados liminares não são considerados doenças, entretanto nestes casos o limite entre
saúde/doença torna-se frágil, exigindo cuidados especiais. Tais estados são: gravidez (e seus
interditos), parto, resguardo (e seus interditos) e velhice (e seus incômodos). Nos tratamentos
para obtenção da cura são demonstrados os benzimentos, os rituais, as simpatias, as rezas e as
palavras mágicas. Finalmente apresentam-se considerações sobre a representação de saúde e
qualidade de vida através das falas e modo de vida dos atores sociais locais, em estado de
comunidade11.
No sexto capítulo faz-se considerações gerais apontando as ausências e emergências12
percebidas nos dados antropológicos, socioambientais e dos ensaios alcançados por este
estudo. Nele, não se tem intuito de chegar a conclusões finais, mas num primeiro momento,
levantar, propor e provocar questões relevantes à área de ‘saúde e qualidade de vida’, de
“população tradicional”, moradora em U.C..O levantamento de questões, mais do que a busca
de conclusões, torna-se pertinente, visto que as questões aqui tratadas não se esgotam em si
mesmas. Ao contrário, podem motivar um tratamento interdisciplinar, tarefa para um possível
desdobramento deste trabalho.

11
Num sentido de Moscovici (1990, p.56), como um “sentimento de comunidade”. Este sentido coincide com
Weber (1973, p.141) “chamamos de comunidade a uma relação social quanto a atitude na ação social – no caso
particular, em termo médio ou no tipo puro – inspira-se no sentimento subjetivo ( afetivo ou tradicional) dos
partícipes da constituição de um todo.” [ grifo do autor]
12
Da concepção de Boaventura Souza Santos (2003) na sociologia das ausências e das emergências.
8

2 População Tradicional: histórico de um conceito em construção.

“Recusando-se a aceitar a dicotomia homem-natureza,implicada seja no idealismo,


seja no materialismo mecânico, Marx abriu efetivamente horizontes mais largos para
se compreender a solidariedade profunda do mundo físico e da cultura humana,
encarados, por ele, à luz do desenvolvimento histórico, como elementos do mesmo
processo dialético: Conhecemos uma única ciência, a ciência da História. A História
pode ser encarada de dois lados e dividida em História da Natureza e História dos
Homens. Mas os dois lados não podem ser separados do tempo; enquanto houver
homens, a História da Natureza e a História dos Homens se condicionarão
reciprocamente.” Cândido (1979, p.24).

Num primeiro momento é possível apresentar as populações ditas “tradicionais” como


atores sociais envolvidos em conflitos fundiários na Amazônia. Esta temática se localiza na
discussão sobre diversidade sociocultural, biodiversidade, preservacionismo e
conservacionismo (Vianna, 1996; Diegues, 1996; Litlle, 2002; Barreto Filho, 2003; Carneiro
da Cunha e Almeida, 2001). O palco (contexto dos atores sociais) dessa discussão se
desenrola primeiro no âmbito internacional influenciando o ambiente nacional desde os anos
70. A expressão “população tradicional” vem sendo discutida tanto no meio acadêmico,
quanto político, ambiental e jurídico, com o intuito de categorizar este segmento social. A
necessidade se faz em razão da pergunta: quais os critérios adotados para se eleger uma
comunidade como população tradicional?
De volta ao cenário da Amazônia brasileira, sabe-se que os índios foram reconhecidos
como atores sociais que lutavam pelo seu direito à terra, participando ativamente num
conjunto de reivindicações pela demarcação das terras que ocupavam (Carneiro da Cunha e
Almeida ,2001; Little, 2002; Barreto Filho, 2001). A luta pela terra foi seguida pelos
quilombolas e pelos seringueiros extrativistas em defesa de seu território social13 e seu modo

13
Conceito de Little (2002).
9

de vida. Essas lutas, segundo Litlle (2002) se deram em resposta à nova fronteira em expansão
nos anos 70, numa tentativa de transformar a Amazônia em um grande “pasto” – uma reforma
agrária pelo avesso.
Vale a pena lembrar que embora as populações tradicionais tenham tomado os povos
indígenas como modelo, Carneiro da Cunha e Almeida (2001, p.184-186) advertem que a
categoria “população tradicional” não os inclui, já que “os direitos sobre as terras indígenas
foram declarados como sendo originários (...)”14.Por isso, nesta dissertação, serão usadas a
expressões “populações indígenas e populações tradicionais”.
Traçando um panorama histórico internacional sucinto, os autores Diegues (1996),
Barreto Filho (2001) e Little (2002) apresentam o surgimento da categoria “população
tradicional” como um (re)-conhecimento do movimento ambientalista, da existência de
“estilos de vida tradicional” praticados por aqueles que habitam área de conservação. Este
panorama vem carregado da chamada “visão preservacionista”, que segundo Diegues (1996,
p. 99) se deu em razão de que as bases teóricas e legais para se conservar grandes “áreas
naturais” foram definidas na segunda metade do século XIX, em 1872, se concretizando na
criação do Parque Nacional de Yellowstone nos Estados Unidos. Os autores supracitados
colocam que o problema da ocupação humana em unidades de conservação se evidenciou já
na I Conferência Mundial sobre Parques Nacionais (Seattle/1962), seguindo esta forte
tendência preservacionista. Nesta Conferência, numa tentativa de minimizar conflitos, passou
a admitir a possibilidade de existirem exceções à regra geral quanto à proteção legal para a
exploração dos recursos naturais em uma área protegida (Barreto Filho,op.cit), adotando-se
como estratégia de solução, a proposta de divisão dos parques em ‘zonas’, definindo assim as
atividades permitidas e proibidas para cada uma delas (ibid.). Em 1972 a 11ª Assembléia
Geral da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), ocorrida em Banff -
Canadá, incorporou o ‘princípio de zoneamento’ para os Parques, sendo a decisão ratificada
mais tarde no II Congresso Mundial sobre Parques Nacionais e Áreas Protegida em
Yellowstone. O referido zoneamento aliado ao conceito de Parque Nacional reconheceu as
comunidades humanas com características culturais específicas como “parte do ecossistema
a serem protegidos, na figura das zonas antropológicas” (Diegues, 1996; Barreto Filho,
2001.). Para os autores supracitados, a 12ª Assembléia geral da IUCN, no Zaire em 1975,

14
Carneiro da Cunha e Almeida (ibid.) nos mostram que, “a separação repousa sobre uma distinção legal
fundamental: os direitos territoriais indígenas não são qualificados em termos de conservação, mesmo quando se
verifica que as terras indígenas figuram como “ilhas de conservação ambiental em contextos de acelerada
devastação.” Cf. também Diegues e Arruda (2001, p.38), em “Proposta de descrição dos grupos de populações
tradicionais”.
10

alertou aos formuladores e executores de políticas públicas para que a expulsão ou o


reassentamento desses grupos étnicos não trouxesse a desagregação cultural e econômica dos
mesmos, considerados como não agressores da integridade ecológica da área. Já em 1982, o
III Congresso Mundial de Parques Nacionais e Áreas Protegidas – realizado em Bali,
Indonésia, obteve como resultado a definição do conceito de parque nacional, como também a
concepção de um manual de planejamento para parques na América Latina. Este
planejamento incorporou as estratégias de desenvolvimento comunitário (Barreto Filho,
2001.; Diegues, 1996, p.100), preferindo as decisões de manejo conjuntas. Para Diegues
(ibid.) este Terceiro Congresso reafirmou os direitos das sociedades tradicionais à
determinação social, econômica, cultural e espiritual. Diegues (ibid.) segue apontando que em
razão disto se explicitou uma relação entre as populações tradicionais e as unidades de
conservação, evidenciando um avanço nas negociações; mesmo ainda não se admitindo de
forma clara a existência de populações locais dentro dos Parques Nacionais dos países do
chamado Terceiro Mundo e nem os conflitos proporcionados pela sua permanência ou
expulsão. No ano de 1986, em Ottawa, Canadá, a IUCN realizou o evento Conservação e
Desenvolvimento: pondo em prática a Estratégia Mundial para a Conservação (Diegues,
ibid., p.102). Este evento foi considerado o mais importante visto que trata de forma mais
clara a situação dos povos tradicionais que vivem em parques (Diegues, ibid., p.102 ; Barreto
Filho, op.cit.), congregando que pela primeira vez ‘povos tradicionais’ e ‘desenvolvimento
sustentado’. Esta idéia veio nortear as lutas dos grupos socioambientalistas e suas alianças, no
Brasil.
No ano de 1988 a IUCN, em seu documento From Strategy to Action, recomenda que
medidas devam colocar em ação as propostas do documento Nosso Futuro Comum, redigido
pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNMAD) em 1987
(Diegues, ibid., p.104; Barreto Filho, op.cit.). Neste documento os povos tradicionais são
referidos como minorias culturalmente distintas da maioria da população; com um corpo de
conhecimento singular sobre o ambiente e seus recursos; e fora da economia de mercado, ou
não intimamente ligadas à mesma (Diegues, ibid.). Os autores supracitados concordam que o
auge da discussão se deu IV Congresso Mundial de Parques, 1992, realizado em Caracas,
Venezuela, tendo como título “Povos e Parques”. Este evento emprestou visibilidade a
questão envolvendo populações humanas e áreas protegidas, posto que houve uma concorrida
representatividade dos países do dito Terceiro Mundo, interessados no Worshop: “populações
e Áreas Protegidas” (Diegues, ibid.). Neste Worshop se recomendou maior respeito pelas
populações tradicionais, reconhecendo-as como possuidoras, muito freqüentemente, de
11

conhecimento secular sobre os ecossistemas que habitam; tendo demonstrado grande rejeição
por estratégias de reassentamento em outras áreas, reafirmando sua apreciação pela inserção
das mesmas na área de parque a ser criada (Diegues, op.cit., p.104). Vale ressaltar que, como
aponta Barreto Filho (2001), estas discussões sobre o tema “conservação/população local”
não são pacíficas15.
No cenário nacional, desde meados dos anos 70, ocorreu o processo de expansão da
fronteira desenvolvimentista, sob a égide dos governos militares e o olhar do movimento
preservacionista como explica Little (2002, p.16). Esse autor nos informa que esta frente de
expansão produziu grande impacto fundiário no país devido ao alto índice de sobreposição
das novas unidades protegidas e territórios sociais dos povos indígenas, quilombolas e
comunidades extrativistas (entre outros). Na linguagem dos preservacionistas, a população
local passou a ser chamada de “população residente”, sempre ligando estes comunitários em
função da nova área protegida, e por conseguinte ignorando a existência prévia de regimes de
propriedade comum, relações afetivas com o seu lugar e memórias coletivas (Little, ibid.),
desconhecendo ainda o direito consuetudinário. Processo em tudo semelhante ao que ocorreu
com os desalojados das construções das grandes barragens, como Sobradinho.
Nas décadas seguintes, anos 80 e 90, os movimentos socioambientalistas e
preservacionistas sacudiram os meios políticos e intelectuais no Brasil levantando bandeiras e
reivindicações (Vianna, 1996; Little, 2002). Ao final deste período alguns desses movimentos
socioambientalistas vieram a fazer importante aliança com os movimentos indígenas e
também com os seringueiros organizados em sindicatos, que lutavam contra a derrubada
indiscriminada da floresta amazônica. Essa aliança foi de grande relevância para a
qualificação do discurso dos seringueiros (Carneiro da Cunha e Almeida, 2001, p.184-188;
Little, 2002, p.17-18) e para a consolidação do movimento representado pelo então líder
Chico Mendes. A estratégia política produziu visibilidade às questões dos antes invisíveis,
congregados agora como “povos da floresta”.
Para Carneiro da Cunha e Almeida (ibid., p.187) e Vianna (1996), esta aliança se deu
porque o movimento socioambientalista percebeu e apostou na estratégia política da aliança
com as populações, já que estas comunidades eram consideradas “harmônicas e
conservacionistas naturais”16, tendo como inspiração o “mito do bom selvagem ecológico”. Já

15
Cf também a opinião de Little (2002) e Vianna (1996) sobre o assunto.
16
A idéia de uma natureza idealizada, divina e de uma ‘sociedade natural’, pura ou sem o‘pecado’ da tradição
judaico-cristã está presente nesta visão que é histórica. Cf. Oliveira (2003, p.21) “A visão do jardim do Éden,
expressão muito utilizada pelos primeiros exploradores, possibilitava imaginar o reencontro com o oriente, local
preservado do pecado, onde a boa qualidade da água, a temperatura mediana, e sua gente simples e inocente
12

Little (ibid.) vai além sugerindo uma outra leitura, demonstrando que o que se evidencia neste
campo de forças e lutas simbólicas, como pano de fundo, será sobretudo o choque entre a
razão instrumental do Estado e a razão histórica dos povos localizada na sobreposição de
territórios. Os movimentos sociais regionais emergentes foram sendo legitimados por
interesses de sobrevivência de um modo de vida, extrativista e de baixo impacto, sendo que
em pouco tempo estes movimentos articularam políticas de fortalecimento com ONGs que
possuíam interesses ou estratégias afins.
Para falar sobre isso é preciso relembrar os anos 70, quando ocorreu uma intensa
movimentação no estado do Acre, com a criação de uma rede de sindicatos rurais aliados à
igreja católica. Em 1977 o sindicalista Wilson Pinheiro liderou os primeiros movimentos de
“empates”17, tendo sido assassinado no início dos anos 80. Assumindo o espaço social de
liderança, Chico Mendes do município de Xapuri continuou e ampliou as táticas dos
“empates” (Carneiro da Cunha e Almeida 2001, p.186). Em 1984, Chico Mendes, em reunião
com vários sindicatos amazônicos propuseram como solução do impasse da questão fundiária
dos seringueiros a criação de módulos de 600 hectares18 (grandes para o padrão de
assentamentos rurais) de terra para cada seringueiro. Em 1985, Chico Mendes traçou uma
estratégia para tirar os movimentos de empate da situação de defensiva em que se encontrava
e, em 1986, com a ajuda da então professora sindicalista Marina Silva (vinda do movimento
da Igreja Católica), dois agrônomos, um antropólogo e um fotógrafo, deflagraram um
movimento de empate, inspirado nas ações de “desobediência civil”19. O movimento
repercutiu por todo território nacional, principalmente nos jornais das grandes cidades como
Rio de Janeiro e São Paulo, devido ao “tom” ecológico/nacionalista que adotou. O desfecho, à
partir da ocupação do prédio do IBDF (hoje Ibama) pelo movimento, culminou na grande
visibilidade dada à questão e às suas lideranças (Chico Mendes e Marina Silva em destaque)
(Carneiro da Cunha e Almeida, ibid.). Com o apoio, inclusive organizacional, de Mary

prometiam dias de maior conforto e abundância. Estas representações perpassaram o tempo e podem ser
reencontradas, no final do século XIX, em trabalhos de Rocha Pita [o Paraíso é aqui], de Afonso Celso [Porque
me ufano do meu país], no romantismo nativista, no Hino Nacional, na bandeira brasileira, entre outros.”
17
“Essa luta contra a derrubada de florestas tomou a forma dos ‘empates’ – o termo vem do verbo ‘empatar’,
atrasar, obstruir (...)” o caminho dos madeireiros que efetivavam a derrubada da floresta (Carneiro da Cunha e
Almeida,2001, p.186).
18
Carneiro da Cunha e Almeida (2001, p.190) em: “A casa de um seringueiro depende simultaneamente da
extração de borracha (para conseguir dinheiro), da agricultura de coivara (para obter a base alimentar que é a
farinha), de uma pequena criação de galinhas, patos, ovelhas, porcos ou algumas vacas (como poupança para o
futuro), da caça e da pesca. Também tem importância a coleta sazonal de frutos das palmeiras e alguns outros
itens medicinais e alimentares, bem como materiais de construção.” Por isso “(...) uma casa de seringueiro
utiliza em média duas estradas e ás vezes três, e a área total cobrirá no primeiro caso pelo menos 300 ha, ou 3
Km2.”
19
Do texto “Desobediência Civil” de Henry Thoreau, EUA, séc. XIX, que inspirou Gandhi na Índia e Martin
Luther King nos EUA.
13

Alegretti20, foi por ela agendada uma reunião em Brasília, com 120 lideranças sindicais de
toda a Amazônia, possibilitando com isso um “grande encontro” entre diferentes atores
sociais sobre as questões emergentes: um debate aberto entre políticos, seringueiros,
socioambientalistas, ONGs e representantes do poder público. Os seringueiros saíram
fortalecidos desse encontro, agora como os novos atores sociais da conservação. Criaram o
Conselho Nacional dos Seringueiros, já com uma “carta de princípios” “que incluía, em sua
seção agrária, a reivindicação de criação de ‘reserva extrativistas’ para seringueiros, sem
divisão de lotes, e com módulos de no mínimo 300 hectares” (Carneiro da Cunha e Almeida,
ibid., p.187). A palavra “Reserva” foi utilizada segundo os autores, “numa transposição direta
da proteção associada às terras indígenas” (Carneiro da Cunha e Almeida, ibid.)
Na Carta Magna de 1988, os direitos indígenas foram incluídos em um capítulo
próprio. Na definição de terra indígena, no artigo 231 da Constituição:

“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, crenças e tradições,
e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (...).
Parágrafo 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles
habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar
e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições.” (Constituição da República Federativa do Brasil, p.150, Art.231). [Grifo
adicionado]

Autores como Benatti (2001b), Carneiro da Cunha e Almeida (2001) e Litlle (2002),
indicam que esse fato abriu um precedente histórico na área jurídica brasileira, pois os direitos
indígenas foram reconhecidos como “originários”, com isto se admite o fato de que eles já
estavam aqui antes da chegada dos europeus – eles são originários do território, seu “lugar”.
Isso implicou a virtude de ligar os direitos territoriais às suas raízes históricas e não a um
estágio cultural ou a uma situação de tutela. A Constituição fortaleceu a personalidade
jurídica dos grupos e das associações indígenas, em especial a capacidade de abrir processos
em nome próprio, independentemente da opinião do tutor. Foi reconhecida sua
territorialidade como produto histórico e incumbiu-se a Procuradoria da República a
responsabilidade de assisti-los perante os tribunais. Essas medidas constituíram instrumentos
básicos de elevada importância para a garantia dos direitos indígenas, que emprestou sua
legitimidade a outros setores de excluídos/despossuídos e invisíveis da sociedade, como os

20
Antropóloga preocupada com as questões da Amazônia, atuando junto aos movimentos sindicais de
seringueiros (Carneiro da Cunha e Almeida, ibid.)
14

quilombolas e os seringueiros (entre outros), levando-os a reivindicar o reconhecimento de


suas territorialidades sociais históricas – direito consuetudinário.

2.1 A criação das Reservas Extrativistas

As Reservas Extrativistas (Resex) surgiram dessa intensa luta política e


socioambiental, sendo também uma alternativa aos seringais (dos patrões da borracha). Como
a extração do látex já não era competitiva economicamente e a expansão da agropecuária
(incentivada pelo governo) ameaçava seu modo de produção e de vida, a regularização
fundiária propiciada pela Resex era fundamental para proteger as formas peculiares pelas
quais os seringueiros utilizavam a terra (Benatti, 2001a). O autor cita Alegretti para definir a
reserva extrativista: “pode ser definida simultaneamente como área de conservação e de
população, uma vez que a exploração dos recursos naturais depende de plano adequado de
manejo” (Alegretti, 1994, p.20, apud Benatti, 2001 a, p.296).
Benatti (2001a) aponta ainda a Reserva Extrativista como a primeira unidade de
conservação a conciliar dois conceitos que até então eram visto como dissociados:
conservação e extrativismo. Para isso foram conjugados dois princípios: o de área indígena,
que respeita o uso tradicional e o direito de posse, e o de unidade de conservação, a fim dar
uma garantia especial de proteção à área. Esta nova unidade de conservação forneceu um
reconhecimento formal por parte do Estado da territorialidade dos extrativistas, constituindo
uma demonstração da transformação de uma realidade consuetudinária, mediante uma luta
política, em realidade legal (Little, 2002, p.18). A implantação da co-gestão de território
gerou possibilidades e parcerias (com ONGs, Estado e Organismos Internacionais) com
perspectivas sustentáveis.
Benatti (2001 a, p.294) propõe o conceito de “posse agroecológica” como um termo
que dá conta de definir as “terras comuns” ou áreas de uso comum. Ele esclarece dizendo que
a posse agroecológica é “fisicamente o somatório dos espaços familiares e das áreas de uso
comum da terra.” Pode-se dizer que sugere uma idéia de espaços distintos, embora
interligados (ecológico e social), que se materializam num conjunto dos elementos como casa,
roça e mata, que por sua vez compõe uma ‘unidade’. Este conceito foi adotado dentro da
visão agroambiental demonstrada por Benatti (ibid.) e comporta o ideal de “uso sustentável da
floresta”, argumentado também na criação das Reservas Extrativistas. Sobre essa
territorialidade, vale acrescentar o que diz Litlle (2002, p.11) :
15

“A expressão dessa territorialidade, então, não reside na figura de leis ou títulos,


mas se mantém viva nos bastidores da memória coletiva que incorpora dimensões
simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua área, o que dá profundidade e
consistência temporal ao território.”

Por sua importância histórica, cabe citar a Portaria nº 627, de 30 de julho de 1987, do
Inst. Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, que institui o Assentamento
Extrativista. Este foi o primeiro ato legal que institucionalizou o extrativismo como forma de
exploração possível, feita por um grupo específico dentro de uma unidade de conservação.
Mas foi somente a Lei Federal nº 7.804, de 24 de julho de 1989, art 9º, VI, alterando a Lei nº
6.938/81, que veio reconhecer a Reserva Extrativista como um dos instrumentos da Política
Nacional do Meio Ambiente (Benatti, ibid.). Sua regulamentação veio em 30 de julho de
1990, quando o então presidente da República, Fernando Collor assinou o Decreto nº 98.897.

2.2 População Tradicional, a necessidade de uma categoria.

Pode-se dizer que a criação das Reservas Extrativistas foi um dos motivos que
suscitou a necessidade de incorporar a nova categoria “população tradicional” (Lima, 1997,
p.287; Benatti, 2001, p.297; Little, 2002, p.23), usada pelos socioambientalistas e pelas
ONGs, entre outros. O termo foi adotado pelo Ibama, através do Centro Nacional do
Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT) – com sede em Brasília. O
CNPT é responsável pela implementação, consolidação, gerenciamento e desenvolvimento
das Reservas Extrativistas. Em linhas gerais corresponde a promover e/ou elaborar a
implantação e implementação de planos (manejo e de uso), programas e ações demandados
pelas populações tradicionais, através de suas entidades representativas (associações,
conselhos, sindicatos) e/ou indiretamente, através de órgãos governamentais constituídos para
esse fim, ou ainda por meio de organizações não governamentais (Benatti, 2001 a, p.297).
Com fins práticos, o CNPT adotou para si um conceito de população tradicional, não adotado
no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC):

“o novo conceito de Populações Tradicionais é resultante da preocupação que a


humanidade passou a ter como o meio ambiente, nos últimos trinta anos. A análise
da destruição e da conservação dos recursos naturais, permitiu perceber a existência
de populações capazes de utilizar mas também conservar tais recursos; estes grupos
humanos passaram a ser chamados de ‘populações tradicionais’ ”. Site
http://www2.ibama.gov.br/resex/cnpt.htm, acessado em 09/01/03.
16

Percebe-se então que o processo político/social no qual foi gerada esta necessidade de
uma ‘categoria’ se deu primeiro no campo jurídico21. Teve como finalidade atender demandas
geradas pelo movimento socioambiental, articulado pelas mobilizações locais em novas
alianças que se estabeleceram com organizações voltadas para a conservação produtiva da
Amazônia (Lima, 1997, p.285). A pressão política exercida pelos movimentos sociais e seus
novos parceiros resultaram na criação de novas categorias de unidades de conservação e/ou a
redefinição de algumas já estabelecidas (Lima, ibid.)22. Isto foi possível graças a uma
“revisão” feita por uma comissão que reestruturou um novo SNUC. O SNUC23 é quem legisla
e define as categorias de áreas protegidas no Brasil (ibid.). Ao cunhar a expressão “população
tradicional” em sua nova versão textual, dá a nova categoria uma certa legitimidade jurídica.
Para exemplificar, cita-se aqui o Artigo 20 do SNUC:

Art. 20. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que abriga
populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de
exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às
condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção
da natureza e na manutenção da diversidade biológica. [grifo adicionado]

Porém, esta legitimidade jurídica veio a ser reivindicada por outros, além dos
seringueiros, que reclamam sua territorialidade social ou seu direito consuetudinário em
territórios adotados como ”áreas de preservação” ou “espaços protegidos”24. E embora já
tendo algum espaço de reconhecimento Lima (2002, p.40) aponta para o fato lamentável, que
ainda ocorre, com as “populações tradicionais”:

“ (...) os povos indígenas têm, reconhecido, direitos originários sobre a terra que
ocupam tradicionalmente (Art. 231), e às populações de remanescentes de
quilombos é garantido o direito à propriedade definitiva das terras que
tradicionalmente ocuparam (Art.68 das Disposições Transitórias), já as populações
tradicionais são as mais desprotegidas e sujeitas a serem remanejadas no
processo de criação das unidades de proteção integral.” [grifo adicionado]

21
Cf. Benatti (2001a) em “Presença humana em unidade de conservação: um impasse científico, jurídico ou
político?”
22
Cf. Lima (1997, p.287) “A aliança entre ambientalistas e populações locais também foi favorecida pela
existência de políticas de financiamento de instituições governamentais e não governamentais do Primeiro
Mundo que, seguindo novas estratégias para a conservação, privilegiam projetos que integram conservação e
populações locais.”
23
Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000. Regulamentado pelo decreto 4.340 de 22 de agosto de 2002.
24
Veja Little, 2002, sobre os territórios sociais
17

2.3 Em busca de um conceito.

Revisitando o termo “população tradicional” numa perspectiva de entendimento, nota-


se que há divergências conceituais entre os autores, que não necessariamente refletem uma
confusão conceitual como argumenta Carneiro da Cunha e Almeida (ibid., p.184). Barretto
Filho (2003) e Vianna (1996) nos lembram que no Brasil o termo ‘sociedade rústica’, muito
utilizado por autores clássicos como Maynard Araújo (1961) e Cândido (1979) entre outros,
não reproduz o mesmo sentido que ‘população tradicional’ empregada hoje pelo discurso
internacional. Barretto Filho (ibid.) demonstra que nos documentos resenhados por ele há uma
abundância de ‘noções’25, dependentes muito mais da diversidade de situações, etnicidade ou
escala espacial. Para este não se faz necessário chegar a uma conceituação precisa, pois se
trata mais de um “construto ideológico cuja força reside exatamente na generalidade do seu
significado e na flutuação do seu emprego” (ibid.). Little (2002, p.10) em seu trabalho, faz
uma importante contribuição quando evoca a noção de “lugar e memória” para afirmar a
territorialidade, buscando-a nos vínculos sociais simbólicos e rituais que diversos grupos
sociais diferenciados mantêm com seus respectivos ambientes biofísicos. Conclui que,
embora a maioria tente dar uma face étnica ou “racial” para a nova categoria, ela não está
ligada a um tipo social específico mas sim na sua expressão de territorialidade histórica.
Desde seu surgimento muitas definições para a expressão “população tradicional”
foram sendo defendidas por diversos autores no campo acadêmico, sendo adotadas por
políticos e por setores governamentais e não-governamentais (ONGs). Apesar disso, os
autores não chegaram ainda a um consenso sobre um conceito que dê conta de critérios
analíticos para reconhecer determinados grupos sociais como “população tradicional”
(Lima,1997). Little (2002, p.23) não vê problema nisso, pois segundo este autor o conceito
surgiu para dar conta de questões muito diversas com usos políticos e sociais. Mas Lima
(ibid.) atenta para o fato de que a falta de clareza sobre estes critérios usados poderá atribuir a
certos grupos sociais, excluindo de outros, o direito de permanência em unidades de
conservação. Aponta ainda que em muitos casos uma parceria ecológica corre risco de ser
abalada por conflitos e manipulações de grupos sociais locais que competem por territórios e
pelo direito exclusivo ao uso de recursos naturais.26

25
Povos e/ou culturas autóctones, grupos étnicos, indígenas, habitantes indígenas, nativos, comunidades
autóctones, comunidades rurais, comunidades e/ou populações locais, comunidades vizinhas às áreas protegidas,
estilos de vida tradicionais, etc. Barretto Filho (2001)
26
Lima (ibid.) ainda recomenda cf. por exemplo a discussão de Araújo (1994) sobre o conflito entre
comunidades do Lago Grande de Monte Alegre gerado por uma portaria do IBAMA que fechou uma área do
18

Por sua vez Carneiro da Cunha e Almeida (2001, p.184) afirmam que o termo
“população tradicional” é propositalmente amplo e/ou abrangente e que defini-las apenas pela
adesão à tradição seria contraditório com os conhecimentos antropológicos atuais. Em relação
a esta “adesão à tradição” Eric Robsbawm (1997) argumenta que toda tradição é uma
invenção, socialmente construída (intencionalmente, ou não, politicamente ou não) e neste
sentido ela tem uma função social.
No caso de definir “populações tradicionais” pensando naquelas que tem baixo
impacto sobre o ambiente seria uma redundância, e ainda afirmar que estariam fora do
mercado não é possível, pois seria difícil encontrar populações nesta condição. Com o intuito
de uma solução, Carneiro da Cunha e Almeida (ibid.) buscaram na tradição dos artigos
acadêmicos e jurídicos uma solução que atendesse a polêmica gerada. Informam que estes
textos “descrevem em geral as categorias por meio de propriedades ou características dos
elementos que as constituem” (Carneiro da Cunha e Almeida, ibid., p.184). Endossam que as
categoriais sociais seguem o mesmo caminho e também podem ser descritas em extensão –
isto é, pela simples enumeração dos elementos que as compõe. Não é possível defini-la
apenas por uma condicionante, é preciso perceber o todo, contido principalmente em sua
territorialidade social, em sua relação sociedade/natureza.
Recomendam que, por enquanto será melhor definir as “populações tradicionais” por
esse modo, qual seja, enumerando os seus “membros” atuais, ou os candidatos a membros,
visualizando que daí poderá ocorrer a formação de sujeitos por meio de novas práticas. Os
autores demonstram que isso não é uma ‘novidade’, já que os termos “índios”, “negros”,
“tribais”, “nativos”, “aborígines” são todas criações do colonizador, do sujeito urbano, fruto
do encontro colonial e, embora genérico e artificial estes termos foram sendo aos poucos
habitados por gente, pessoas de carne e osso, sujeitos sociais que incorporaram a identidade
formulada externamente.
Nesse momento, no caso das “populações tradicionais”, para os grupos sociais
historicamente despossuídos, invisíveis e sem tutela do Estado, pode vir a ser uma vantagem
se ajustar nessa “vestimenta” pois deste modo ganham um certo status administrativo e/ou
jurídico. Este pode ser satisfatório para o momento histórico/político de suas vidas, muitas
vezes marcadas por lutas entre desiguais. Deste modo, o termo, antes carregado de
preconceito e vazio, pode vir a se transformar pelas bandeiras mobilizadoras, inclusive unindo

lago a pescadores comerciais. As comunidades incluídas na área preservada não querem permitir a entrada de
comunidades que, mesmo sendo localizadas no lago, ficaram fora da área protegida.
19

significante e significado e até resignificando a vida destes comunitários; podemos ilustrar


com o exemplo dos seringueiros de Xapuri, Acre.
Historicamente os seringueiros e castanheiros da Amazônia foram os primeiros a se
identificar com a categoria “população tradicional”. À partir daí essa auto-identificação se
expandiu, abrangendo outros grupos até então desconhecidos como os coletores de berbigões
(marisco) de Santa Catarina, as quebradeiras de coco de babaçu (babaçueiras) do sul do
Maranhão, quilombolas do Tocantins (Carneiro da Cunha e Almeida, op.cit.) e os caiçaras do
litoral sul do Rio de Janeiro. Todos os grupos possuem em comum um processo histórico ou
parte dele, de baixo impacto ambiental, além de interesses em manter ou recuperar o controle
sobre o território que exploram. Alguns pleiteiam o direito a posse agroecológica27 (casa, roça
e mata), outros a concessão de uso da terra ou do mar (extrativistas), mas todos estão
“dispostos a uma negociação: em troca do controle sobre o seu território, comprometem-se a
prestar serviços ambientais” (Carneiro da Cunha e Almeida, op.cit.).

2.4 A visão dos autores.

Diegues (1996) e Diegues & Arruda (2001, p.23-31) dentre os autores consultados,
apresentam e reconhecem a dificuldade teórica que o tema “população tradicional” impõe,
dada as suas ambigüidades. Para resolver esta dificuldade propõe os seguintes critérios
definidores de “população tradicional”:

“Aplica-se àqueles povos que vivem em áreas geográficas particulares e


demonstram, em vários graus, as seguintes características:
• ligação intensa com os territórios ancestrais;
• auto-identificação e reconhecimento pelos outros povos como grupos culturais
distintos;
• linguagem própria, muitas vezes diferente da oficial;
• presença de instituições sociais e políticas próprias e tradicionais; e
•sistemas de produção voltados principalmente para a subsistência.”28

Diegues & Arruda (2001, p.23-31) recorreram a Darcy Ribeiro (1977); Manuel
Diegues Jr.(1960) e Alceu Maynard de Araújo (1961) para dar uma certa ‘ordenação’ a essas
populações adotando o conceito de ‘áreas culturais’ apresentado nessa literatura. Ainda que
utilizem as denominações tratadas nos referidos trabalhos, esclarecem que o conceito adotado
aproxima-se mais de um enfoque operacional para se lidar com a questão. Assim sendo, para

27
Benatti (2001, p.294) define posse agroecológica como o somatório dos espaços familiares e das áreas de uso
comum da terra.
28
Ou autoconsumo, termo mais utilizado atualmente.
20

Diegues e Arruda (ibid.) as “populações tradicionais” brasileiras que não incluem as


populações indígenas, seriam: açorianos, babaçueiros, caboclos/ribeirinhos amazônicos,
caiçaras, caipiras/sitiantes, campeiros (pastoreio), jangadeiros, pantaneiros, pescadores
artesanais, praieiros, quilombolas, sertanejos/ vaqueiros e varjeiros (ribeirinho não-
amazônico). Em sua obra, chegam a propor a localização aproximada do território das
populações tradicionais29.
Diegues e Arruda (ibid., p.23-24) fazem uma revisão sobre os autores das Ciências
Sociais que trataram do tipo de organização social apresentado pelas “populações
tradicionais”. ordenando-os por linha de estudo30, como se verifica abaixo:
1- Que tratam da relação das sociedades camponesas: Foster (1963) com sociedades
parciais (part society), Firth (1946) e Redfield (1971) enfatizam especificamente o
papel das relações entre as sociedades tradicionais de camponeses e as cidades.
2- Tomando como critério a relação com a natureza: Dassmann (1989) que apresenta a
idéia de povos dos ecossistemas (ecosytem people) e povos da biosfera, com um
continuum entre eles31.
3- Em uma perspectiva marxista, discutindo os modos de produção pré-capitalista que
caracterizaria essas sociedades: Godelier (1984) sobre a importante relação entre essas
populações, a natureza e o território. Diegues (1983) e Maldonado (1993), a respeito
da questão do território entre os pescadores artesanais, e Cordell (1982) chamado para
lembrar da ética reinante nessas comunidades.
4- Sobre a relevância dos sistemas de representações, símbolos e mitos que essas
populações constroem: Mourão (1971) e Câmara Cascudo (1972) que indicam que é a
partir desses sistemas que agem sobre o meio natural. É também com essas
representações mentais e com o conhecimento empírico acumulado que desenvolvem
seus sistemas tradicionais de manejo.

Finalmente, com embasamento nas considerações feitas, caracterizam a população


tradicional:

“• pela dependência da relação de simbiose entre a natureza, os ciclos e os recursos


naturais renováveis com os quais se constrói um modo de vida;

29
Informam em nota que “as áreas mapeadas não representam a ocorrência exata das populações tradicionais
não-indígenas, mas porções de território historicamente ocupadas por elas.” (ibid., p. 39)
30
Nem todos os autores citados na obra de Diegues e Arruda (2001) foram relatados neste trabalho,aconselha-se
cf. a obra.
31
Grifo dos autores citados.
21

• pelo conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, que se reflete na


elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse
conhecimento é transferido por oralidade de geração em geração;
• pela noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e
socialmente;
• pela moradia e ocupação do território por várias gerações, ainda que alguns
membros individuais possam ter-se deslocado para os centros urbanos e voltado
para a terra de seus antepassados;
• pela importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de
mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implicaria uma relação
com o mercado;
• pela reduzida acumulação de capital;
• pela importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de
parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e
culturais;
• pela importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, pesca e
atividades extrativistas;
• pela tecnologia utilizada, que é relativamente simples, de impacto limitado sobre
o meio ambiente. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho,
sobressaindo o artesanal, cujo produtor e sua família dominam todo o processo até
o produto final;
• pelo fraco poder político, que em geral reside nos grupos de poder dos centros
urbanos; e
• pela auto-identificação ou identificação por outros de pertencer a uma cultura
distinta.” (Diegues e Arruda, 2001, p.26) [grifo dos autores]

O pensamento de Begossi (2001, p.206) sobre resiliência (nota 29) vem coincidir com
esta última referência de Diegues e Arruda sobre auto-identificação das “populações
tradicionais”, atentando para a força da legitimidade política que hoje o termo provoca.
Preferindo o termo “populações neotradicionais”, também sugerido por Carneiro da Cunha e
Almeida (2001, p.192), a autora utiliza a expressão resiliência ecológica32 para indicar que
este auto-reconhecimento, esta auto-identificação pode proporcionar uma reconstrução de
identidade como uma forma de resistência positiva. Pensando assim, pode ser que esta seja
uma saída possível e até bem vinda para o fortalecimento da identidade sociocultural dessa
chamada “população tradicional”:

“Esse auto-reconhecimento é, muitas vezes, uma identidade construída ou


reconstruída, como resultado, em parte, de processos de contatos cada vez mais
conflituosos com a sociedade urbano-industrial e com as formulações político-
ideológicas criadas por essa mesma sociedade. Parece paradoxal, mas as fórmulas
ideológicas ambientalistas ou conservacionistas explícitas na noção de áreas naturais
protegidas sem moradores, têm contribuído para o fortalecimento dessa identidade
sociocultural em populações como os quilombolas do Trombetas e os caiçaras do
litoral paulista.” (Begossi, 2001, p.206)

32
Resiliência – 1-Termo transposto da física quando se fala da propriedade que determinado material tem de
retornar à forma original, após ter sido submetido a uma deformação original, 2- capacidade de se recobrar ou de
se adaptar à má sorte, às mudanças.(Houaiss,2001, p.382). Foi capturado pela Ecologia na expressão: resiliência
ecológica que segundo Begossi (2001, p.206), “(...) é determinada por uma seqüência de liberação e re-
organização, sendo considerada como a magnitude de perturbações que podem ser absorvidas antes que
mudanças em um sistema ocorram”.
22

Begossi (ibid., p.208) complementa argumentando que a flexibilidade da fronteira


cultural pode levar a adaptações positivas: “A fronteira cultural flexível das comunidades
neotradicionais pode diminuir sua inércia cultural e torná-las mais acessíveis a novos valores
culturais, o que pode levar a adaptações e práticas culturais que auxiliem a aumentar a
resiliência ecológica.” Neste sentido ela apresenta como exemplos à comunidade caiçara da
Mata Atlântica e dos caboclos Amazônicos.
Todos estes pontos antropológicos abordados por Diegues e Arruda (2001) foram e
são de elevada relevância, entretanto Lima (2002, p.40) vem propor ao pensamento
acadêmico ambiental uma visão mais crítica, dentro de uma perspectiva política/econômica
do assunto procurando ampliar os horizontes. Na visão dessa autora o conceito de “população
tradicional” vem sendo construído para identificar um segmento populacional que necessita
de reconhecimento político. Seguindo uma terminologia internacional, se decide por inventar
uma tradição somada a uma identidade ecológica, com o intuito de reconhecer uma população
camponesa cuja nominação é difícil (lembremos, por exemplo da expressão “população
cabocla”). Lembra, ainda, que esta é uma minoria ainda não reconhecida, principalmente pelo
fato de não possuir uma identidade étnica distinta da população dominante. Ocorre também
que, por serem estereotipados racialmente por suas descendências indígenas e/ou negras, a um
só tempo este estereótipo os aproxima e os separa dos grupos considerados “puros”. Ao
conferir a estas populações este status ambíguo e pouco valorizado de ‘população misturada’,
além de pobre, só faz agravar a situação que se pretendia resolver. Demonstrando uma
preocupação com o destino daquelas populações que não pertencem nem as Reservas
Extrativistas, nem a Reservas de Desenvolvimento Sustentável, Lima (ibid.) se debruça sobre
a questão ética que algumas unidades de conservação suscitam, já que a sua criação das
mesmas é marcada, muitas vezes, pela desigualdade social desde a sua implantação. Neste
sentido, Lima (2002) vem concordar com Castro (1997), que diz que o embate político criado
pelo avanço da sociedade, no campo da biotecnologia (controle genético) por exemplo, e à
incorporação da questão ambiental enquanto crise ecológica (também enquanto questão ética)
na pauta nacional e internacional, tornam presentes e vivas as formas de luta em nível local.
Castro (ibid.) e Lima (ibid., p.41-42) observam que na disputa de novos paradigmas para
nortear o processo tecnológico e os modelos de conservação, não são considerados, muitas
vezes, os conhecimentos complexos de populações sobre os ecossistemas, que inclusive
ajudaram e ajudam a preservar. Lima (op. cit.) indica que “a conservação da biodiversidade
promove um bem coletivo, extensivo em princípio a toda a humanidade, mas o custo social e
as restrições de conduta necessárias à sua promoção não se aplicam igualmente.” Em razão
23

disso sugere uma revisão ética33, propondo um debate amplo da questão política ambiental na
Amazônia e no Brasil.
No campo jurídico Benatti (2001b, p.299) lembra o direito de todos, expresso na
Constituição de 1988, em seu artigo 225, declara: “todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo às
presentes e futuras gerações”34[grifo adicionado].
Este autor argumenta que a titularidade desse direito é assegurada ao indivíduo e à
coletividade, e o dever de defendê-lo e preservá-lo é uma obrigação do Estado, dos indivíduos
e da coletividade – portanto de todos. Defende que o objeto da tutela jurídica é a qualidade do
meio ambiente em função da qualidade de vida. Neste sentido, pode-se dizer que há dois
objetos de tutela, um imediato – a qualidade do meio ambiente –, e o outro mediato – a
qualidade de vida , expressão que carrega na sua interpretação o peso da saúde, bem-estar e a
segurança da população entre outros. No encontro dessa idéia, é possível acrescentar um
informe da Organização Panamericana de Saúde, que suscita uma reflexão profunda sobre o
embate ético (da relação sociedade/natureza) provocado pela questão supracitada:

“La prioridad que se concede a la salud de los seres humanos suscita un dilema ético
cuando la ‘salud para todos’ es incompatible con la protección del ambiente. (...)
Considera que todas las especies tienen derechos como las personas, colocando por
tanto el bienestar ambiental por encima del bienestar humano. Puede llegar-se a un
término medio entre estos extremos, distinguiendo entre principios éticos de primer
y segundo orden (1). La prioridad de asegurar la supervivencia de los seres humanos
se toma como un principio de primer orden. El respeto a la naturaleza y el control de
la degradación ambiental es un principio de segundo orden, que debe observarse
siempre que no se oponga al principio de primer orden de satisfacer las necesidades
para la supervivencia.
El rango de primer orden asignado a la satisfacción de las necesidades para la
supervivencia de los seres humanos es congruente con la Declaración Universal de
Derechos Humanos de las Naciones Unidas (1948), que declara que toda persona
tiene derecho a un nivel de vida adecuado que le asegure, así como a su familia, la
salud y el bienestar, y en especial la alimentación, el vestido, la vivienda, la
asistencia médica y los servicios sociales necesarios”. (Organización Panamericana
de la Salud, 1993, p.5)

A Política Nacional do Meio Ambiente, através dos seus instrumentos, adota a criação
de áreas naturais protegidas – as UCs. Faz-se necessário lembrar que a criação das Unidades
de Conservação tem como objetivo assegurar a melhoria do ambiente, almejando benefícios

33
Indo além do “lugar comum”, recapturando a ética dos gregos: um ethos, forma/modo de se inserir no mundo,
o caráter e a morada, demonstrada também em Geertz (1989, p.103). É possível também pensar numa ética da
complexidade que o tema impõe: cf. Morin (1998).
34
Grifo adicionado.
24

para as gerações atuais e futuras (em sua potencialidade e coincidindo com o principio de
primeira ordem acima citado).
Benatti (2001 a) nos relembra a Constituição Brasileira no seu artigo 216, incisos I e
II, que diz que:

“constituem patrimônio brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados


individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se
incluem” (...).

Ainda de acordo com este autor, por bens de natureza imaterial se entende toda forma
de expressão como: a língua, hábitos de alimentação, artes de cura, formas de habitação,
formas de territorialização (apropriação de espaços), práticas agrícolas, enfim, modos de criar,
fazer e viver; não esquecendo dos instrumentos materiais construídos e inseridos na cultura
local. A partir daí Benatti (ibid. ) argumenta que, a defesa do meio ambiente vai muito além
do simples entendimento da defesa somente da fauna, flora e meio físico; inclui o ser humano,
com suas atividades culturais e materiais.
Finalmente, Benatti (2001 a) concebe o meio ambiente como uma interação em rede,
no conjunto dos seus elementos naturais, artificiais e culturais, que visam garantir um
desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. A concepção deve ser unitária,
não há como assumir um ponto sem o outro, defende o autor.
A autora Lima (1997, 2002) renova a emergência da promoção de uma ‘meta social’ a
ser atingida na criação de unidades de conservação. Alerta que é certo que a inclusão das
populações locais envolve uma série de sacrifícios que não são divididos igualmente com o
resto da sociedade. Argumenta, ainda, que se deve reconhecer que o comportamento
econômico que se espera destas populações, justificável em termos de um ‘modelo ideal de
adaptação humana ao meio ambiente’, não é exigido de outros segmentos sociais. Percebe-se
que há uma necessidade de tornar este diálogo – entre povos tradicionais e órgãos
governamentais – mais dialógico no sentido usado por Paulo Freire35.
Na mesma direção vão Carneiro da Cunha e Almeida (2001) quando argumentam
sobre a dificuldade no envolvimento de comunidades locais em projetos de conservação, já
que elas raramente são convidadas a participar. O fato é que geralmente as regras são
elaboradas verticalmente revelando a relação do poder desigual e imposta.

35
Cf. em Pedagógica do Oprimido, Freire (1999)
25

Quanto à visão romântica da comunidade conservacionista brasileira, Vianna (1996,


p.116) e Adams (2000, p.230) argumentam que a mesma não é desprovida de interesse
político frente à questão e sugerem que a “confusão conceitual”, como elas denominam, pode
conter interesses difusos. Dizer que são “primitivos, harmônicos, simbióticos e
conservacionistas” virou um chavão interessante, mas já em decadência. A reforma política e
social pela qual passa o país apontam para um (re)-direcionamento desses grupos, que
conquistam ou lutam para conquistar uma ‘identidade pública’. Identidade esta que possui
algumas características (em graus variados e nem todas), como por exemplo a utilização de
técnicas de baixo impacto, formas eqüitativas de organização social, a presença de instituições
com legitimidade para fazer cumprir as leis, empoderamento (empowerment) da liderança
local, além dos traços culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados através da
práxis (Carneiro da Cunha e Almeida, 2001; Little, 2002).
Parece-nos portanto que há um processo de autoconstituição em curso, onde há regras
de conservação, bem como lideranças e instituições legitimadas tanto pelas lutas, quanto pelas
alianças dentro e fora do governo, e dentro e fora do país. Barretto Filho (2001) faz uma
interessante observação sobre a relação entre “população tradicional” e os programas de
conservação:

“(...) a caracterização dos grupos sociais ditos ‘tradicionais’ caminha pari passu ao
reconhecimento da necessidade da sua ‘participação’, ‘consulta’, ‘acordo’ e
‘consentimento’ como condição de êxito dos programas de conservação baseados
em áreas protegidas. Ou seja, não se pode dissociar um processo do outro, sob pena
de não compreendê-los adequadamente. Não se trata tanto de uma ‘descoberta’
das ‘populações tradicionais’ – posto que ‘tradicionalidade’ não é algo que se
descobre – , mas da sua construção como sujeito – em seus múltiplos sentidos –
do manejo de áreas protegidas, entendido como processo sociocultural e político
pelo qual se transforma a natureza, essas populações e o nosso entendimento do que
ambas são.” [grifo adicionado]

Neste caso é possível concordar com o autor, pois não basta dar-lhes um título de
“população tradicional”, é preciso torná-los sujeito da conservação e não objeto dela, dentro
da comunidade nacional e internacional. Há um sistema de “mão dupla”, parafraseando o
referido autor, entre biodiversidade e sócio-diversidade que precisa ser reconhecido e não dá
para não incluir sob pena de fracasso de todo o esforço das partes. Este autor ainda sugere
uma alternativa conceitual, ao atenuar a grande ênfase dada à “dimensão temporal” da
“tradicionalidade”, buscando a valorização da espacialidade dessas comunidades. Como
proposta para fugir dos chavões Barreto Filho (2001) adota o conceito de “pessoas e/ou
26

grupos sociais residentes” como solução, demonstrando no seu ponto de vista, as vantagens,
argumentando como vantagem que assim ficariam livres de uma definição formal específica.

“Seriam aqueles indivíduos, famílias, comunidades e grupos ‘tradicionais’ ou


‘modernos’, não importa – que ocupam, residem ou então usam, regular ou
recentemente, um território específico dentro ou adjacente a uma área protegida
estabelecida ou proposta”. (Barreto Filho , 2001)

Não é possível concordar com este autor neste ponto, visto por exemplo o caso da
comunidade deste estudo – caiçaras do Saco do Mamanguá, Paraty, RJ. Se for atendida a
proposta deste autor todos os ‘neocaiçaras turistas’ (novos moradores, turistas, chamados
também de “paulistas”) serão incorporados a nova unidade de conservação (RESEX) como
legítimos residentes. O que é uma inverdade pública, já que há ali uma nítida supremacia do
poder econômico, que vem se aproveitando da pouca experiência desses moradores locais
para comprar-lhes a posse por muito menos do que vale no mercado imobiliário. Com isso
tomam posse, fazem dos antigos moradores “caseiros” e instalam sua mansão com seus iates,
destoando da paisagem local dos verdadeiros moradores. A grande maioria destes
‘neocaiçaras turistas’ não tem compromisso com a preservação local, não tem o capital
social/simbólico da comunidade local, não compartilhando de sua visão de mundo e
conseqüentemente são vistos como “invasores” no imaginário dos comunitários. O conflito já
é fato estabelecido, causando grande inquietação no espaço local.
Buscando um outro olhar sobre a questão, Little (2002, p.22-23) argumenta que o
conceito de “povos tradicionais”36 contém tanto uma dimensão empírica quanto uma
dimensão política, dimensões quase inseparáveis. Além disso, segue o autor, o conceito
também procura oferecer um mecanismo analítico capaz de juntar fatores como a existência
de regimes de propriedade comum, o sentido de pertencimento a um lugar, a procura de
autonomia cultural e práticas adaptativas sustentáveis que os vários grupos (os extrativistas
seringueiros, castanheiros, babaçueiros, pescadores, caiçaras, entre outros), já citados neste
trabalho, demonstram na atualidade.
Fica então explicitado que não há consenso sobre o termo “população tradicional”.
Não há um conceito fechado, pelo menos um conceito que dê conta da transversalidade que a
questão impõe. No entanto, indiferente ao conceito acadêmico ou político/institucional, a
nova categoria está sendo ocupada por sujeitos sociais atuantes e políticos, dispostos a lhe

36
O termo “povos tradicionais”, usado por Little (2002), abarca “população tradicional” referida neste trabalho
de pesquisa.
27

dotar de substância significativa, através de pactos e práticas em troca de benefícios,


principalmente do direito a territorialidade, aspecto fundamental para a conservação do seu
modo de vida. Para dizer quem é quem a “regra em extensão” deverá continuar sendo utilizada
até que o tempo delineie uma “forma” que dê conta da amplitude desses atores sociais em
37
“estado de comunidade” em busca do reconhecimento do seu território social. É
recomendável que não se perca de vista as argumentações de Vianna (1996), Lima (1997,
2002), Adams (2000) e Little (2002) que usam uma visão crítica sobre o assunto, focando a
postura política e ética que a questão suscita. Em razão de todo exposto fica aberto o debate.

37
Cf. Moscovici (1990, p.56)
28

3- Caiçaras: em busca da origem.

Caranguejo aparece
Quando ronca a trovoada
Ele sai ao meio-dia
Só volta de madrugada
Olha só! (...)
Pé, o pé, outra vez a mão, a mão
Roda, roda minha gente
Caranguejo no salão
Tá tão bão!
Caranguejo não é peixe
Caranguejo peixe é
Eu vi um caranguejo
na enchente da maré
Olhá só!
(Os Coroas Cirandeiros, música “Caranguejo”
do CD Ciranda de Paraty)

O léxico ‘caiçara’ (Sampaio,1987, p.212) tem origem no vocábulo tupi-guarani caá-


içara, que quer dizer: a estaca, o tapume, o cercado, a trincheira. Para Cunha (1998, p.137),
confirmando os autor supracitado, etimologicamente o termo tem origem Tupi – Kaaï’as,
significando “cerca tosca”. Em Ferreira (1999, p.363) também se confirma a raiz tupi da
palavra, concluindo como: “estaca de proteção à volta das tabas ou aldeias indígenas”; “ramos
de árvores, postos dentro da água como armadilha de peixe; curral” e também “palhoça, junto
à praia, para abrigar as embarcações ou apetrechos dos pescadores”. Berta Ribeiro (1987,
p.106) vem concordar com a raiz tupi da palavra encontrada em Sampaio (ibid.). Adams
(2000, p.103) na mesma direção que Sampaio (ibid.) e Ferreira (1999, ibid.), relata em seus
trabalhos que o termo foi utilizado pelos povos tupi para nominar as estacas colocadas à volta
das aldeias e o curral feito de galhos de árvores fincados na água para cercar o peixe (arte de
pesca). Com o tempo, passou a designar as palhoças construídas nas praias para abrigar as
canoas e os apetrechos dos pescadores e posteriormente nominar os moradores de
29

determinadas praias da parte do sul e sudeste do Brasil, chamados então de caiçaras. Para
complementar utilizaremos as informações de Sampaio (ibid.) que diz que: caá -içara, da
língua geral38 nheengatu, representava anteriormente apenas as estacas toscas em volta das
aldeias; numa corruptela passou a ser sinônimo de casas toscas, rudimentares, cercadas por
uma estacada em ramagens (cerca tosca, feitas de ramas e galhos). Mais tarde os moradores
das casas, que eram os descendentes de portugueses e índios no século XVII, vieram a ser
chamados de caiçaras, aqueles que habitavam naquele tipo de construção rudimentar,
localizadas nas praias.
Esta nominação é em grande maioria dada pelos outros, e nem sempre é construída
uma identidade com este léxico. No Saco do Mamanguá, apenas uma minoria se reconhece
caiçara, sendo que nos relatos orais desta pesquisa a maioria se diz “do lugar”. Hoje há um
interesse político de alguns moradores locais de se autodenominarem caiçaras, visto que
existe um grande interesse de grupos de pesquisadores, ambientalistas e de parte do setor
público (Ibama) em dar visibilidade a estes atores os incluindo em seus projetos de pesquisa
(viabilizando recursos financeiros), plano de manejo e plano de uso (no caso da Resex
marinha), etc. Pode-se argumentar que se faz necessário, neste sentido, inclusive
juridicamente, esta nominação (dentro da categoria “população tradicional”), dada a
necessidade de uma certa definição sobre de quem e o quê se está falando. Entretanto, ainda
que possa parecer muito prático nominá-los e aceitar a auto-definição, como recurso para
distinção de quem é quem, corremos o risco do engano. Como já foi dito, não é unânime a
auto-identificação com o léxico, sendo que alguns nativos, alheios às articulações políticas, se
dizem “do lugar”, “da roça”, de “tal praia”, do “Mamanguá”. Estes, então, estariam fora da
conceituação caiçara? Isso demonstra que a questão não é pacífica nem simples, é complexa
como afirma Littlle (2002). Pode-se cair na mesma contradição da conceituação de
“população tradicional”. Quem é população tradicional? Quem é caiçara?
Sobre os modos de territorialização39 no Brasil, há uma interessante argumentação de
Diegues e Arruda (2001, p.30) baseado em Darcy Ribeiro (1977) que classifica as variantes do
modelo de povoamento rural no Brasil:

38
Um “dialeto” tupi-guarani, cunhado pelos jesuítas e falada por habitantes do litoral do Brasil nos séculos XVI
e XVII (Sampaio, 1987).
39
Entendendo o território como Milton Santos (1999): o vivido, o chão mais a identidade. A identidade é o
sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é fundamento do trabalho, o lugar da residência,
das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida.
30

“como cultura crioula - desenvolvida na faixa de massapé do Nordeste, sob a égide


do engenho açucareiro; cultura caipira - constituída pelo cruzamento do português
com o indígena e que produziu o mameluco paulista, caçador de índios e depois `
sitiante tradicional ' das áreas de mineração e de expansão do café, que se apresenta
no litoral sob o nome de cultura caiçara; cultura sertaneja - difundida pelo sertão
nordestino até o cerrado do Brasil central pela criação de gado; cultura cabocla -das
populações amazônicas, afetas à indústria extrativa; e cultura gaúcha - de pastoreio
nas campinas do Sul.” [grifo adicionado]

Portanto, Ribeiro (1977) propõe que o caiçara seja uma subdivisão da cultura caipira
que se apresenta no litoral. Berta Ribeiro (1987, p.95-110) e Vianna (1996) aderem ao modelo
e relaciona francamente a cultura caipira à cultura caiçara dizendo que ambos tiveram como
“protocélula” a cultura indígena que se plasmou e espraiou antes da chegada do negro
africano em 1538. Berta Ribeiro (1987, p.98), segue argumentando que essas “subculturas
rurais” foram variantes do Brasil rural (ver também Diegues Junior, 1980). Seguindo esta
linha, Adams (2000, p.105) propõe que a cultura caiçara seja uma subcultura da cultura
caipira, não apenas por se constituir numa variação paralela desta, mas sobretudo por se
fundamentar num modo de vida específico, onde há o encontro entre estes modos de vida
(caiçara e caipira). Este modo é reproduzido em seu sistema de socialização, formas de
alimentação que carregam uma forte carga simbólica40, sistema de compadrio, festas
religiosas como a Festa da Bandeira41 e do Divino, agricultura de coivara, artes de pesca, etc.
Neste sentido o caiçara seria um caipira adaptado ao litoral, ou melhor, uma expressão
regional do caipira original. Begossi (2001) define simplesmente como ‘caiçara’ os habitantes
nativos das áreas de mata e mar (serra/mar) que praticam agricultura e pesca em pequena
escala. Diegues e Nogara (1999, p.79) embora não discordem de todas as argumentações
anteriores, demonstram que os caiçaras “(...) se distinguem das ‘caipiras’, de ‘serra-acima’
(planalto), por basearem sua subsistência num complexo calendário de atividades sócio-
econômicas e culturais ligadas a Mata Atlântica e ao litoral.” O assunto não é pacífico e
segundo Adams (2001) a discórdia reside na afirmação que caiçaras e caipiras possuem
identidade própria, com tipo de vida e uma cultura que lhe são característicos.
Pensando na história da ocupação demográfica brasileira a partir do século XVI, é
possível argumentar com Cândido (1979), Buarque de Holanda (2001) e Dean (1998), que
esta população surgiu no litoral, próximo da Serra do Mar e que, mais tarde, migrou para o
interior e se instalou. Cândido (ibid.) diz que caipira é um tipo brasileiro, seminômade que se
instalou primeiramente na região de São Paulo, seguindo o curso dos bandeirantes. Este autor

40
O café adoçado com ‘garapa’ por exemplo, muito utilizado anos atrás no Saco do Mamanguá.
41
Também realizado na Comunidade do Cruzeiro no Saco do Mamanguá e carregada de significados dos
colonizadores portugueses.
31

justifica o uso do termo “cultura caipira” para exprimir não um tipo racial, carregado étnico e
cultural do contato entre português e o novo meio, mas sempre um modo de ser e um tipo de
vida42. Este trabalho segue esta direção, ao não procurar enquadrar o caiçara do Saco do
Mamanguá em um tipo racial. Embora não se desconheça o componente cultural de
miscigenação entre índios, portugueses e mais tarde o negro, a ênfase aqui é mais com seu
modo de vida peculiar, suas representações simbólicas, dentro do que foi chamado de “cultura
rústica” pelos autores supracitados. Essa “cultura rústica brasileira” coexistiu tanto com as
fazendas de monoculturas, quanto com as fazendas de criação de gado. Expandiu-se por todo
o país à medida que encontrava terras devolutas para produzir seu modo de vida (Ribeiro,
1987; Dean, 1998; Diegues & Arruda, 2001; Buarque de Holanda, 2001). Criou um modo
sociocultural adaptado ao meio e, embora se reconheçam diferenças regionais/ecológicas
significativas, dada a extensão territorial do país, pode-se arriscar dizer que hoje existem
elementos culturais e sociais que ligam toda a costa brasileira (Diegues & Arruda, 2001).
Sobre isso, vale a pena conferir Cândido em sua obra “Parceiros do Rio Bonito” (1979), onde
descreve com primor a cultura caipira com seus modos e meios de vida, e ainda Sergio
Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil” (2001) sobre a ocupação territorial brasileira e a
“herança rural”.
Berta Ribeiro (1987, p.106-108) afirma que geograficamente o caiçara se localiza na
faixa costeira, nos interstícios das grandes cidades ou em pontos do litoral. Segundo esta
autora essas áreas ocupadas são áreas de deserção43 não atingidas ou abandonadas pelas
frentes pioneiras dos ciclos agrícolas (este fato se confirma com os caiçaras de Mamanguá).
Adams (2000) localiza geograficamente essa denominada cultura caiçara entre o litoral sul
do Rio de Janeiro até o litoral paranaense. Diegues e Arruda (2001) completa, numa
interessante figura (já citada) sobre o território das populações tradicionais não-indígenas,
apontando também o litoral norte de Santa Catarina. A diversidade dessa população de
agricultores/pescadores foi se formando de acordo com seu histórico de territorialização, isto
é, a relação com este território foi definindo variantes culturais e econômicas a partir das
peculiaridades ecológico-regionais de cada lugar, como sugere Adams (op.cit.).
Com relação ao modo de vida e visão de mundo dos “caiçaras”, este trabalho tratará
apenas das representações simbólicas de saúde/doença/cura (quinto capítulo) e não se estende

42
“o que procurei foi determinar quais as unidades mínimas de vida econômica e social, em que as relações
encontram um primeiro ponto de referência; por isso tomei um grupamento de parceiros (...)” (Cândido, 1979,
p.20)
43
Cf com Mussolini (1980, p.219) que também usa esta expressão no sentido de “áreas abandonadas,
renunciadas”.
32

a outros aspectos característicos deste modo de vida, como a pesca, a agricultura de coivara.
Vale lembrar que este aspecto do trinômio saúde/doença/cura reproduz parte do todo cultural
na qual está inserida esta comunidade dita caiçara, podendo ser entendido como um aspecto
de um holograma – a unidade complexa traduzida por Morin (2002, p.135).

3.1 Isolamento ou intercâmbio, desestruturação ou reorganização?

O argumento de que a diversidade cultural dos caiçaras é proveniente de um


isolamento geográfico é defendido por alguns leigos e cientistas, que parecem querer operar
uma transposição direta das idéias evolucionistas da biologia para o campo
sócio/político/antropológico. É Lévi-Strauss (1980, p. 49-51) quem responde a questão
argumentando que a diversidade das culturas humanas não deve ser entendida de modo
estático. A cultura é dinâmica, confirma Laraia (2002, p.94). Não é um corte numa amostra
inerte e muito menos um catálogo dissecado. As sociedades humanas nunca se encontram
isoladas; mesmo quando parecem mais isoladas, é ainda sob a forma de grupos ou feixes.
Quer dizer, grupamentos humanos grandes ou pequenos que pareciam isolados, mantinham
sempre entre si contatos estreitos. Lévi- Strauss (ibid., p.51).complementa apontando que,
“(...) por conseguinte, a diversidade das culturas humanas não nos deve induzir a uma
observação fragmentária ou fragmentada. Ela é menos função do isolamento dos grupos que
das relações que os une”.
Vale salientar que a relevância desse tema repousa no momento histórico em que se
encontram os caiçaras hoje, ameaçados por um forte apelo do ‘eco-turismo’ ou ‘turismo-
ecológico’, especulação imobiliária, etc. Prosseguindo a discussão, Adams (2000), Diegues e
Nogara (1999) e Begossi (2001) informam que a idéia clássica de ‘povo isolados’ é
totalmente descartada hoje, pois sugere um caráter “primitivo” para essas populações, caráter
esse há muito em desuso nos estudos antropológicos. Cândido (1979, p.75) argumenta que “o
isolamento da sociedade rústica é relativo, e devemos ter isso em mente para evitar certas
falácias no conceito usual de folk-culture”[grifo adicionado]. É importante frisar este
‘isolamento relativo’ dos chamados caiçaras do Mamanguá, pois na verdade eles sempre
estiveram inseridos na conjuntura sociocultural/política/econômica de Paraty. Trabalhos mais
recentes como o de Begossi (2001) e Diegues e Nogara (1999) reafirmam essa questão
demonstrando que sempre houve um intercâmbio, em graus variados, dependendo do
momento econômico da região em que está inserida a comunidade. Adams (2000) revê essa
questão do ‘isolamento’ propondo que as comunidades camponesas sempre estiveram
33

integradas de algum modo com a sociedade colonial ou nacional, estabelecendo uma relação
dialética com as mesmas e em diferentes graus de dependência político-econômica. Aponta
que elas “ajustam” seu nível de envolvimento com o mercado, intercalando atividades de
autoconsumo (endógena) com atividades mercantis (exógenas). Adams (2000) ainda
argumenta que a idéia de sociedade “tradicional” isolada, dependente da atividade de
subsistência, auto-suficiente e primitiva é fruto de um ponto de vista colonial e
discriminatório. Neste sentido Begossi (2001), em seu trabalho de estudo comparativo entre
caboclos amazônicos e caiçaras, se vale do conceito de resiliência para a análise deste
‘ajustamento’afirmando que pode vir a ser um fator positivo de adaptação, significando uma
reorganização e não uma desestruturação como pode parecer.
Adams (2000) indica que os contatos humanos dos caiçaras no passado, entre o meio
local e a cidade, foram menores devido à ocorrência de uma economia complementar (de
autoconsumo44), mas que as relações sociais não se caracterizavam pelo isolamento, pois
existia uma rede de vizinhança integrada pelo sistema econômico, garantindo o dinamismo
das mesmas. Esta autora acredita que o que se chama de desintegração social da população
(tão temida pela corrente socioambiental), decorrente do contato freqüente com a urbanidade,
venha a transformar em reorganização social. Esta viria a aumentar a resiliência cultural45,
argumentada por Begossi (2001), elevando as chances de sobrevivência destas comunidades
por estabelecer melhores estratégias individuais e coletivas.
Os autores Mussolini (1980); Diegues (1983, apud. Diegues & Arruda, ibid.), Berta
Ribeiro (1987), Vianna (1996) e Diegues e Nogara (1999) argumentam que as comunidades
caiçaras se formaram nos interstícios dos grandes ciclos econômicos do período colonial,
fortalecendo-se quando essas atividades voltadas para a exportação entraram em declínio. A
decadência em particular do setor agrícola, incentivou as atividades de pesca e coleta em
ambientes aquáticos, sobretudo os de água salobra, como estuários e lagunas. É neste contexto
que se situam, ao sul do município de Paraty, a comunidade do Saco do Mamanguá, em suas
praias e lugares. Eles são chamados de caiçaras do Mamanguá.

44
Consumo pelo próprio produtor (aplica-se principalmente para produtores agrícolas)” (Ferreira, 1999, p.234).
45
Resiliência cultural “poderia ser definida como os aspectos culturais que ajudam a manter a resiliência
ecológica, ou o comportamento que minimiza ou mesmo procura evitar este tipo de distúrbio” (Begossi, 2001,
p.227).
34

3.2 A história do Mamanguá na história de Paraty

No litoral sul do estado do Rio de Janeiro se localiza a cidade de Paraty, conforme


figura 1. Nos séculos XVI e XVII a concessão de sesmarias era intensa no país, sendo forte a
atividade agrícola, em resposta as demandas do mercado externo da época. Já no século XVI,
Paraty foi estabelecida como feitoria, devido a sua condição geográfica, para o embarque e
desembarque de navios (Vianna, 1996, p.146). Esta autora informa que Paraty foi elevada à
condição de vila em 1667 – Vila Nossa Senhora dos Remédios – sendo seu porto muito
freqüentado pelos comerciantes de milho, feijão, café, aguardente e farinha. A região foi
território dos índios guaianases que podem ainda ser encontrados nas cabeceiras do rio Parati-
mirim (Mussolini, 1980; Diegues e Nogara, 1999 , p.16).

Figura 1- Contexto geográfico da região do Saco do Mamanguá. Fonte: original fornecido


pelo IEF-RJ, modificado por Dasinger, abril de 2004.

Sucedendo o ciclo da cana, o ciclo do ouro veio transformar a cidade em importante


centro colonial de exportação deste mineral precioso que vinha da região de Minas Gerais no
final do século XVII. Para seu transporte se utilizava o antigo caminho dos guaianases –
conhecido como Caminho do Ouro. No século XIX, Paraty foi um município próspero, palco
de grande comércio exportador de café, fumo e aguardente, utilizando a via marítima
(Diegues e Nogara, op.cit.). Estes autores (ibid.) apontam que a decadência da região se deu
35

com a construção da estrada de ferro D. Pedro II, em 1877, somada à abolição da escravatura
em 1888. A construção da estrada de ferro fez fracassar o comércio pela rota marítima,
tornando o caminho por terra mais atrativo e facilitado. Já a abolição da escravatura trouxe
fracasso para a área agrícola, pois a mão de obra escrava era responsável pela agricultura local
(cana-de-açúcar, café, banana, milho e mandioca).
Segundo Diegues e Nogara (ibid.) e Mussolini (1980) a introdução da pesca de
sardinha com traineiras alcançou elevada importância na mobilização dos pescadores-
lavradores (os caiçaras) da região, que já não encontravam emprego e formas de subsistência
em suas praias. Outro fato atrativo relevante para a mudança do meio de vida dos caiçaras foi
o trabalho nos bananais de Santos e também do litoral sul do Rio de Janeiro (Angra dos Reis e
adjacências). Ocorreu então “que a pesca começou a substituir as atividades agrícolas até
então predominantes em Paraty” (Diegues e Nogara, 1999, p.16).
Esses autores argumentam que a construção da Via Dutra em 1940 deslocou o eixo
econômico do litoral, contribuindo com a mudança do meio de vida na região. A partir de
1955 a comunicação de Paraty com o interior se fez cada vez menos pelas canoas de voga que
trafegavam pelo mar e mais pelas estradas de terra. Esta facilidade acentuou o processo de
migração para outras áreas como Angra dos Reis, Ubatuba e Santos. Só no município de
Angra é possível citar como atrativos de migração a construção do estaleiro da Verolme,
seguido em 1974 da implantação da Usina Nuclear de Angra que empregou 9.000 operários
(Diegues e Nogara, 1999, p.20).
Os impactos ecológicos e sociais ocorridos com a construção da BR 101 sul, ligando
Rio de Janeiro a São Paulo pelo litoral (anos 70), foram de grande proporção, segundo
Diegues e Nogara (op.cit.) e Vianna (1996, p.150). O maior impacto negativo foi o
favorecimento da entrada de “grileiros”46, provocando a expulsão dos pescadores de suas
praias. O caso da praia de Trindade, onde a multinacional Brascan pretendia instalar um
complexo turístico, foi o mais conhecido nacionalmente.
Nesta mesma década, a então EMBRATUR encomendou um projeto de Turismo com
o objetivo de “racionalizar” as implantações turísticas no futuro traçado da BR 101. A região
do Saco do Mamanguá escapou por não dispor de acesso por terra, segundo Diegues e Nogara
(op.cit.). Cabe lembrar que a região é de difícil acesso, tanto por terra, que ocorre por

46
Nome dado aos que pilham (subtraem) terras, forjando títulos. ‘Grileiros’ porque os grilos quando presos
numa gaveta, liberam uma substância que deixa o papel com aspecto envelhecido e isso contribui na falsificação
de títulos de terra. (do saber popular, senso comum recolhido em conversas no interior de Minas Gerais). Em
Ferreira (1999, p. 1010) “indivíduo que procura apossar-se de terras alheias mediante falsas escrituras de
propriedade”.
36

caminhos (no falar dos moradores), quanto por mar. A dificuldade se configura pelas
intempéries atmosféricas (ventos e chuvas) que influenciam as correntes marítimas e a
agitação do mar (Vianna, 1996, p.139).
O dilema da conservação também reservou para a região uma composição de
Unidades de Conservação (figura 2) que começou com a criação, em 1971, do Parque
Nacional da Serra da Bocaina, deixando de fora a região do Saco do Mamanguá. Em 1983 foi
criada a Área de Proteção Ambiental de Cairuçú, que engloba parte da região deste estudo.
Em 1992 foi criada por Decreto Estadual a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga (REEJ),
tendo como objetivo o fomento da cultura caiçara local. Na criação desta Reserva Ecológica
havia uma proposta de conservação da biodiversidade integrando a sociodiversidade, mas
segundo Diegues e Nogara (op.cit.) e Vianna (1996, p.130), a mesma se consolidou, até
porque não havia muita clareza de como poderia ser feita. Com a mudança das categorias do
SNUC a Reserva Ecológica da Juatinga está em suspense.

Figura 2- Contexto das Unidades de Conservação


37

Os conflitos e tensões, frutos da crítica questão fundiária na região da REEJ são


bastante explorados pela dissertação de Vianna (1996), como também no recente trabalho de
Dasinger (2003). Essa última autora atualiza esta grave questão em relação aos
posseiros/caiçaras, que moram ao longo de toda a costa da Reserva Ecológica Estadual da
Juatinga e o processo de grilagem. Sobre isso, tanto Vianna (ibid.:186) quanto Dasinger
(2003), informam a existência de um importante grileiro na região que constitui em ameaça
séria à manutenção da Reserva e ao modo de vida caiçara. Um morador da Praia Grande da
Cajaíba esteve prestes a abandonar seu lugar por não ter o título da terra, tal o efeito da
ameaça. Autoridades do Meio Ambiente do Estado (Ibama, IEF) e advogados da ONG Verde
Cidadania (que atua na região) anularam o ato do juiz que concedeu a reintegração de posse
ao temido grileiro, em dezembro de 2003 (Dasinger, 2003, comunicação pessoal). Este fato
ilustra o cenário da conservação na região, palco de lutas e grandes desafios (Vianna,1996,
p.87, 196-201; Dasinger, 2003). Vianna (1996, p. 188) demonstra a importância do território
na mobilidade e socialização do modo de vida caiçara, tendo sua preocupação centrada na
questão fundiária:

“Se compreendermos que o território que as “populações tradicionais” ocupam não é


fixo em um local apenas, tratando-se sim de uma soma de aglomerados
populacionais de uma mesma região, onde vivem grupos com o mesmo padrão
cultural, este fluxo de migração de um aglomerado a outro é um movimento natural
para sua própria reprodução sócio-econômica e cultural.”

É importante comentar sobre o resgate de história oral da região, realizado por


Diegues e Nogara (1999, p. 22-29). Nesta história é possível perceber a inter-relação dos
atores sociais no tocante à paisagem e memória referidas por Tuan (1983, apud. Machado,
1996) como sentimento de topofilia. Embora o Saco do Mamanguá siga o processo
sócio/econômico/político de Paraty há especificidades apreendidas pelos autores nestes
relatos: no século XIX a região era explorada por grandes fazendas produtoras de cana-de-
açúcar e aguardente, sendo que o Fundo do Saco do Mamanguá concentrava grande parte
delas. O que restou (as rugosidades, dito pelo geógrafo Ruy Moreira, nas palavras de Milton
Santos, comunicação pessoal) deste tempo/memória pode ainda ser visto materializado em
algumas ruínas espalhadas pelo lugar. A principal é a Fazenda Santa Maria, localizada no
Fundo do Saco (num lugar chamado Regato), cujo proprietário foi o padre Manoel Alves.
Outra fazenda importante foi a de Parati-Mirim (hoje o lugarejo Parati-Mirin), de propriedade
de outro padre, Francisco Antonio. As fazendas da região trabalhavam com mão-de-obra
escrava e após a libertação dos escravos, alguns destes recém homens livres migraram para
38

locais próximos a Parati-Mirim, como Patrimônio (uma localidade onde há remanescentes de


quilombos, bairro de Paraty), outros continuaram no Saco do Mamanguá, dando origem às
famílias Oliveira, Nascimento e Vilela.
Segundo relato do Sr. Agenor Vilela (morador antigo da praia do Curupira), a vila
existente hoje na praia do Cruzeiro foi fundada por seu avô, Sr. João Luis Vilela, ex-escravo
da Fazenda Rio Grande e alforriado por volta de 1860. Chegando ali naquela praia, teria
fincado uma cruz e construído uma antiga capela, hoje cedeu lugar a construção de uma nova
igreja católica. Uma sobrinha do seu avô, se casou com o avô do Sr. Leonel Oliveira. O pai do
Sr. Agenor, Sr. Rufino Vilela se mudou da praia do Cruzeiro para a praia do Curupira e conta-
se que foi proprietário de várias fazendas antigas da região, como a Fazenda Vilela, próxima a
Laranjeiras47.
Com a morte do padre proprietário da Fazenda Santa Maria, a fazenda foi vendida à
família Ramos. Esta família passou no início do século XX a produzir banana que era
comercializada em Paraty. Os antigos moradores das praias, ainda segundo relato oral à
Diegues e Nogara (1999, p.22-23), costumavam arrendar as terras destas fazendas para cultivo
e pagavam com dois dias de trabalho por mês (uma espécie de parceiros no sentido usado por
Cândido (1979) ). Na década de 40, Sr. Agenor Vilela conta que chegou a viver na Fazenda
Santa Maria onde cultivou banana, inclusive chegou a drenar parte do manguezal para
plantação. A produção desta fruta foi intensa até que a fazenda foi vendida ao Sr. Gibrail
Tannus, que retirou o bananal e introduziu búfalos e boi comum. No lugar os animais
pastavam é possível observar nos dias atuais uma enorme clareira onde o que cresce é apenas
vegetação pioneira (figura 3).
O princípio do século XX, até meados do mesmo, está na memória desses atores
sociais como época de grande fartura no Saco do Mamanguá. A população era muito maior do
que é hoje, segundo depoimento do Senhor Zizinho, morador da Ponta do Leão (Diegues e
Nogara, 1999, p.25).

47
Provavelmente o “Condomínio Laranjeiras” – condomínio de pessoas com grande poder econômico e social
nacional.
39

Figura 3- Vista de uma área degradada no Fundo do Saco. (Foto: Sá Xavier,


julho/2003).

Na região havia uma considerável produção agrícola, fornecendo desde aguardentes à


farinha de mandioca para outros lugares como também pequena criação para autoconsumo
(Diegues e Nogara, op.cit.). O escoamento dessa produção era feito por mar, embarcada nas
“canoas de voga” e vendida em Angra dos Reis, Ilha Grande e Mangaratiba. Na volta traziam
produtos para revenda como: café moído, banha, carne-seca, etc. Os comerciantes
costumavam praticar a barganha com produtos locais. Pelos relatos concluí-se que toda a
região se comunicava através dessas canoas, mesmo as regiões do “mar-de-fora”, como a
Ponta da Cajaíba, Praia do Sono e Trindade (Diegues e Nogara, op.cit.).
A pesca, uma forte herança indígena, foi praticada também pelos escravos que
trabalhavam nas fazendas. Utilizavam-se de uma rede chamada “trolha” (ou tróia), espécie de
rede de cerco, feita de algodão, manobrada por duas canoas. A região era abundante em
peixes, segundo os relatos (Diegues e Nogara, op.cit.), sendo que o fim dessa “fartura” se deu
nas décadas de 40 e 50, quando as fazendas fracassaram (agricultura, aguardente e peixe
salgado) e a região não teve mais o que exportar. Este fato coincide com a construção da Via
Dutra e por isso acredita-se que a mesma tenha sido um estímulo para que os moradores
procurassem trabalho fora da área, como por exemplo atividades agrícolas no Rio de Janeiro,
Angra dos Reis e Ilha Grande. É preciso ressaltar que em Ilha Grande as traineiras, de
40

propriedade de portugueses radicados no local48 já recrutavam trabalhadores para o serviço há


muito tempo. Muitos jovens de Mamanguá começaram a trabalhar neste serviço com onze,
doze ou treze anos. Este fato é confirmado neste trabalho de pesquisa pela narrativa do Senhor
Careca (Benedito Oliveira, filho do Senhor Leonel Oliveira), morador antigo da praia do
Cruzeiro, demonstrado ser ‘comum’ esta prática.
Quando o Saco do Mamanguá e adjacências começam a fracassar em termos
econômicos, pelas razões já citadas, tem início o crescimento da periferia de Paraty. Esta
periferia é chamada de Ilha das Cobras49 , lugar de grande invisibilidade social. Diegues e
Nogara (op.cit.) remetem ao fato de que até 1950 havia nessa área pantanosa, cerca de 50
palhoças de pescadores. Mattoso (1979, apud. Diegues e Nogara, p.26-27), aponta que a
migração parece ter aumentado com a construção da BR 101, nos anos 70, e continua a
crescer nos dias atuais.

Hoje não tem um terço do povo que tinha antes, quando eu era moço. O povo saiu daqui,
tem uns 40% na Ilha das Cobras, uns 10% em Angra, mas tem muitos em Santos e aí por
fora. A miséria tá grande. Então vive do quê? Vive do biscate, vive do vício. E não tem
condição de voltar, já vendeu a terra”.(Seu Zizinho, morador da Ponta do Leão, Saco do
Mamanguá)

O Turismo provoca uma pressão de ocupação significativa no Saco do Mamanguá,


devido ao seu atrativo paisagístico.Com as estradas chegaram os “turistas” e com estes a
especulação imobiliária sendo que Diegues e Nogara (ibid., p.27) evidenciam na fala do Sr.
Dodinho, morador da Praia do Lopes, a riqueza e decadência de Mamanguá.

“Quando cheguei aqui, tinha ainda muito morador. Na Praia Grande tinha casa à
beca, mas os velhos que venderam a posse foram morrendo e o pessoal mais novo
foi indo embora. Outros venderam e ficaram por aí. Nós vendemos a posse pro
pessoal de fora e ficamos tomando conta da propriedade desse pessoal”. (Sr.
Dodinho, morador da Praia do Lopes, Saco do Mamanguá )

As conseqüências foram desastrosas para a região, desarticulando parte da rede


simbólica que norteava a cosmovisão destes comunitários. Um exemplo típico disso é o
desaparecimento das festas do lugar : os forrós das tardes de domingo50, as cirandas, a roda de
chiba, marrafo, caranguejo e a Bandeira do Divino (Diegues e Nogara, op.cit.). Hoje o que

48
Segundo depoimento do Sr. Agenor na p.26 (op.cit.)
49
A Ilha das Cobras é onde reside atualmente a maior concentração de famílias originárias do Saco do
Mamanguá. É parte de uma periferia muito pobre do município de Paraty, com condições precárias de higiene,
esgoto, educação, saúde e transporte. É um local que os turistas não tem acesso e nem imaginam que exista.
50
Segundo Dona Ozana, moradora do Cruzeiro.
41

restou foi apenas a Folia de Reis, organizada no início do ano e a festa de Santa Cruz em
homenagem a primeira capela da região.
O lugar está em plena transformação, inclusive em sua religiosidade, pois há cinco
igrejas pentecostais por toda a região do Saco do Mamanguá, sendo o culto realizado
principalmente aos domingos. Como a igreja católica, localizada na Praia do Cruzeiro está em
reconstrução, os comunitários têm que ir até Paraty para assistirem a missa, o que dificulta o
“encontro” proporcionado pelo evento religioso. Hoje as casas de pau-a pique são poucas,
prevalecendo as casas de alvenaria com telhas de amianto ou telhas de barro. Há também uma
forte demanda por luz elétrica, melhoria na qualidade do atendimento do posto de saúde51,
sobretudo em serviços de odontologia e oftalmologia e uma escola de ensino médio. Também
reivindicam projetos que possam instrumentalizá-los para a nova realidade com a implantação
da RESEX marinha e o turismo crescente. As figuras 4, 5 e 6 demonstram o tipo das
construções antigas e novas.

Figura 4- Vista do Baixio, construção antiga de pau-a-pique. (Foto: Sá Xavier, julho/2003)

51
Este tem uma equipe de PSF que atende quinzenalmente, sendo que a equipe não cumpre a exclusividade de
40 horas semanais para a localidade, exigida pelos preceitos do Programa de Saúde da Família – conferir site:
http://dtr2001.saude.gov.br/psf//programa/index.asp .
42

Figura 5- Vista do Baixio, construções novas e antigas (Foto: Sá Xavier, junho/2003)

Figura 6- Vista da Ponta da Romana e suas construções novas. (Foto: de Sá Xavier,


julho/2003 )
43

3.3 Cartografando o cenário ecológico e socioambiental do Mamanguá.

“A cartografia é um desenho que acompanha, os movimentos de transformação de


uma paisagem. Neste sentido ela é sempre provisória e singular. (...) O cartógrafo é
aquele que quer envolver-se com traçar, quer navegar no movimento, quer misturar-
se com os acontecimentos, quer compor territórios que não sejam fixos por muito
tempo,já que o movimento não cessa.”
Barros & Brasil (1992, p.228)

Com relação ao cenário ecológico do Saco do Mamanguá, é possível dizer que a


região tem grande relevância ecológica já que está inserida na Mata Atlântica (figura 7 e 8). É
área litorânea e se apresenta como ria ou estuarina (Diegues e Nogara,1999). Área de “ria” é
originada, segundo Guerra (1993, p.372) por uma imersão do litoral com a conseqüente
invasão do mar nos vales modelados por erosão fluvial. Entende-se que o litoral de ria tanto
pode ser baixo como alto e relativamente acidentado. Sua formação se deu por uma
reentrância do mar de aproximadamente 9 Km de comprimento por 1,5 Km de largura.

Figura 7- Vista aérea do Saco do Mamanguá. (Foto retirado do site http://www.mamangua.com.br/)


44

Figura 8 – Vista do Fundo do Saco do Mamanguá. (Retirado do site


http://www.spbancarios.com.br/rb79/rb8.htm. )

Sua característica mais importante é a de apresentar rios com foz totalmente afogada,
em virtude da transgressão marinha. O predomínio no Saco do Mamanguá é de água salobra e
por esta e outras razões é considerado como um refúgio de peixes juvenis, sendo criadouro
natural de camarão e moréias.
A Mata Atlântica da região apresenta vários estágios de sucessão : mata primária de
encosta, mata secundária de encosta com variações de desenvolvimento e mata de planície
costeira onde se localiza um importante caixetal (Tabebuia cassinoides). O manguezal situa-
se no final da zona estuarina (baixio), composta de mangue vermelho (Rizoplhora mangle),
mangue branco( Laguncularia racemosa) e mangue preto (Avicenia Shaueriana). Este
ecossistema oferece substrato a diversos bivalves(ostras p.ex.) e também proteção a inúmeras
espécies de peixes e crustáceos (Diegues e Nogara, op.cit., p.50).
Para um cenário socioambiental, é possível traçar um breve relato sobre a região e sua
população, tendo como referencial o relatório socioambiental de Diegues e Nogara (op.cit.) e
esta etnografia. Segundo estes autores há cerca de 119 famílias de moradores no Saco do
Mamanguá, com 527 pessoas; há 21 propriedades (casas) de turistas, sendo que as
construções recentes em curso não foram contabilizadas. A localidade é divida em Margem
Continental, Margem Peninsular (Reserva Estadual da Juatinga) e Fundo do Saco. Na região
há grandes picos: Pico da Cajaíba, Pico do Cairuçú, Pedra da Jamanta, Morro do Pão de
Açúcar e o Morro do Mamanguá que dá nome a localidade. Segundo os atores locais se usa o
nome Mamanguá devido à semelhança que as elevações desse morro têm com as
‘mamas’(Diegues e Nogara, op.cit., p. 31). Há outra versão encontrada no léxico dos índios
45

que habitavam a região, onde Mamanguá quer dizer lugar rico em alimento , segundo um
morador do Regato em entrevista nesta pesquisa.
A maioria das famílias mora na Margem Peninsular, onde inclusive se encontram os
casais mais jovens. Os autores supracitados indicam que houve uma intensa migração das
famílias para fora do Mamanguá no passado, sendo que esta emigração ocorre ainda hoje em
menor escala. Dentre os homens (pais de família), 80% nasceram em Mamanguá e somente
9,2%, vem de fora da região. Cerca de 10,7% provém de praias próximas como a do Sono e
Cajaíba. Entre os moradores há um significativo intercâmbio entre as praias (Diegues e
Nogara, op.cit.)
As casas de pau-a-pique, como já foi dito, estão sendo substituídas por alvenaria. O
mobiliário da casa é simples. Normalmente era feito de caixeta52, hoje já há mobiliário
comprado em lojas de Paraty. O fogão é a lenha, embora atualmente existam muitas casas
com fogão a gás, mas devido ao custo, normalmente é pouco utilizado. A região não conta
com abastecimento de água tratada, esgoto e luz elétrica o que dificulta muito a vida dos
moradores. Em algumas casas como na Praia do Cruzeiro, Praia Grande, Curupira e Ponta da
Romana já há eletrodomésticos e eletrônicos como rádio, televisão, aparelho de CD,
aquecedor de água para chuveiro a gás e aparelho celular. A maioria usa como recurso
alternativo à falta da luz elétrica o motor a óleo diesel, o que torna a vida bastante difícil e
penosa, já que tem que buscar o óleo em Paraty, além do que a maioria não é assalariada,
vivendo da pesca ou de algum ‘biscate’ no turismo do verão. Por conta disso “tecem”
complexas “redes” de intercâmbio como estratégias de sobrevivência (tema abordado no
quinto capítulo). Estas “redes complexas” demonstram a reciprocidade num sistema de
dádiva, como estudado por Marcel Mauss (1974). Nesse sistema há uma espécie de contrato,
onde aquele que dá o faz “voluntariamente” e aquele que recebe tem a obrigação de aceitar e
retribuir. Como num sistema paradoxal, a dádiva é voluntária e obrigatória ao mesmo tempo
(dádiva e contradádiva). Laburthe-Tolra e Warnier (1997, p. 341-360) argumentam que para
Durkheim a dádiva é um “fato social” e como tal impõe-se ao indivíduo, portanto é coercitiva;
é uma obrigação para sobreviver. Esta argumentação colabora na interpretação da sociedade
do Mamanguá como uma “sociedade tradicional”, visto que lá há um sistema de
reciprocidade, onde as trocas entre os do “lugar” vão para além do mero comércio da
racionalidade do “mercado” das sociedades urbano/industriais. No entanto percebe-se um
sistema misto no Mamanguá, posto que nas “trocas” com os que não são do “lugar” a relação

52
Madeira macia, encontrada nos mangues da região (Tabebuia cassinoides)..
46

ser torna de “mercado”, contrastando com a relação de reciprocidade entre os da comunidade.


A racionalidade neste sistema de reciprocidade (dádiva e contradádiva) está firmada na moral
afetiva, estabelecendo regras para a vida social mais forte do que simples “trocas, sem alma”.
Infelizmente aqui não há como estender esta temática, nos restando apenas apontar uma
direção possível para estudos mais eficientes sobre este sistema.
Como a região está em franca mudança cultural sua dieta também reflete este aspecto.
Antes era baseada no arroz, feijão e farinha de mandioca, fabricados localmente e um peixe,
acrescida de camarão ou marisco (Diegues e Nogara, op.cit.). Alguns moradores da Ponta da
Cajaíba e da Margem Continental ainda fabricam a farinha que é revendida aos outros; há
também os que compram no mercado em Paraty. Hoje grande parte dos comunitários aderiu a
chamada carne seca “gorda” (no feijão ou ensopada), frango caipira (que criam soltos), frango
de granja e carne de boi (que compram em Paraty, e que costumam comer fritos, como ‘bife’
na linguagem local), além de ocasionalmente pato (que criam soltos). Com mais freqüência
comem peixes, camarão e mariscos encontrados nas praias, manguezais e rochosos próximos
das praias, embora quando perguntados o que comem, grande parte diga que “quase não come
peixe”. Não foi visto nenhuma história sobre caça nas observações do campo, mas Diegues e
Nogara (op.cit.) apontam para o fato de que os moradores consomem este tipo de carne
ocasionalmente. Ainda nas observações de campo deste trabalho foi possível constatar que há
pouco consumo de verduras, sendo que alguns “caseiros”, por orientação dos patrões, já
fazem horta e consomem as hortaliças, além de doarem aos amigos e vizinhos. Há consumo
de frutas como banana, abacate e outras encontradas na mata. A escola local, localizada na
Praia do Curupira tem uma bonita horta idealizada pela merendeira Dona Nézia, moradora da
Praia Grande, e cuidada hoje pelo auxiliar de serviços da escola, o Senhor Alonso. As
verduras provenientes desta horta são utilizadas na merenda e as frutas geralmente vêem de
Paraty. Na escola também há um pequeno horto de plantas medicinais que é usado em caso de
alguma eventualidade. Algumas famílias utilizam plantas com fins medicinais para o
tratamento de doenças, ainda que se aperceba que o uso do “remédio do mato” está sendo
suplantado pelo “remédio da farmácia”. Este assunto será discutido com mais detalhes no
quinto capítulo.
47

Há na região da praia do Cruzeiro um posto de saúde, com atendimento precário do


53
PSF , garantido pelo município de Paraty. A localidade também conta com uma associação –
AMAM – Associação de Moradores e Amigos do Mamanguá, cuja sede foi inaugurada em 25
de janeiro de 2003 . A figura 9 mostra a AMAM ao fundo, uma casa branca de porta amarela.

Figura 9 – Vista da AMAM, localizada na Praia do Cruzeiro. (Foto:


Sá Xavier, junho/2003)

Apesar de grande parte dos moradores combinarem, nos dias atuais, as atividades
agrícolas com artesanato, extrativismo e atividades de pesca para garantir sua subsistência,
muitos deles se definem “lavradores” (Diegues e Nogara, 1999:118; Vianna, 1996). Podemos
confirmar essa informação com as entrevistas e observações de campo feitas durante esta
pesquisa, onde os mais velhos se dizem “da roça”, embora não mais cultivem “roça”. Estes
dados confirmam o característica de agricultor/pescador do chamado caiçara. A pesca
artesanal54 ainda é feita, mas a pesca embarcada vem suplantando-a, trazendo uma nova
dimensão na reprodução social e cultural destes atores sociais, principalmente os jovens
(Diegues e Nogara ,1999, p.8) que, a partir de 12 anos deixam suas casas para trabalharem
como assalariados em barcos tipo “traineira”, onde passam até uma ou duas semanas no mar,
enfrentando todo o tipo de sorte do tempo e frio.

53
Programa de Saúde da Família, criado em 1994, para atender aos princípios do SUS (Sistema Único de
Saúde). O programa visa um acompanhamento da saúde da família, levando conceitos de educação em saúde aos
atendidos. Entretanto o programa não é completo, pois faltam profissionais de outras áreas que não apenas o
médico e a enfermeira.
54
Com construção de “pesqueiro de praia”, com rede de tresmalho (Diegues e Nogara ,1999).
48

O turismo desorganizado55 vem tomando proporção considerável, levando os


comunitários a preferir o trabalho com turismo a pesca por exemplo (Diegues e Nogara,
op.cit.;Vianna, op.cit.). Um dos grandes problemas do lugar tem sido a venda da posse das
terras para veranistas. Estes constroem suas casas próximas às praias, por vezes impedindo o
trânsito dos comunitários por antigos caminhos que passavam por suas terras, instalando
cercas elétricas ou desviando o caminho para um acesso íngreme e dificultoso (segundo
depoimento local). As verdadeiras “mansões” construídas recentemente no local não pagam
impostos e não trazem nenhum benefício para os comunitários. Urge uma regulamentação
destes veranistas que se encontram hoje numa situação irregular junto ao Instituto Estadual de
Florestas e ao Ibama, embora não “incomodem” a Prefeitura de Paraty.

3.3 Questões políticas e institucionais.

No Saco do Mamanguá há hoje uma proposta encabeçada pelo Ibama de se criar uma
Reserva Extrativista Marinha. Esta proposta foi veiculada pelo jornal da Fundação Nacional
do Meio Ambiente (FNMA) – Informativo de Gerência e Projetos – de 11/01/200256. Diz o
informativo que: “o FNMA está financiando um conjunto de projetos que contemplam a
implantação de áreas protegidas em áreas costeiras e marinhas, a consolidação de áreas já
criadas, por meio de elaboração e implantação dos Planos de Manejo e o desenvolvimento de
atividades pela comunidade de seu entorno, visando diminuir a pressão sobre a biodiversidade
das Unidades de Conservação”. Complementa que o Projeto RESEX MARINHAS
(CV103/00) objetiva a implantação das mesmas dada à relevância das áreas localizadas
próximas de banco de corais, manguezais e estuários. Considerando o componente
socioambiental, indica que a proposta será feita com o envolvimento dos atores locais. Quanto
ao Saco do Mamanguá, o Ibama o caracteriza como o único fiorde57 brasileiro inserido em
região de formações de Mata Atlântica, entre outras características já relatadas.
A questão fundiária é um grande problema na região, como foi colocado. Pressume-se
que os “novos caiçaras – veranistas” não sairão da praia que compraram. Como ficarão frente

55
Este tipo de desorganização ocorre, segundo Cintra (2004) porque o eco-turismo e turismo rural, numa visão
sustentável, devem ter parceiros que se organizam para realizá-lo. Os parceiros são o governo local, as
comunidades locais, o terceiro setor (Ongs) e os empresários do turismo local. A sociedade civil deve cobrar do
governo local um plano diretor com zoneamento das áreas consideradas turísticas, e um “plano diretor” que
organize o uso sustentável destas áreas.
56
Documento disponível na Internet, acesso em 06 de junho de 2002.
57
Segundo Houaiss (2001, p. 203), fiorde é um golfo sinuoso e profundo entre montanhas. No caso do
Mamanguá o Geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves desaconselha este termo por inadequação, preferindo
“ria”.
49

à criação da Resex marinha.? Como a questão do território para os nativos não é baseada em
“valor de mercado”, e sim no “uso”, a valoração é outra58.

3.4 Um futuro possível.

Tentamos explicitar o dilema da conservação neste trabalho. Como criar uma Resex
Marinha sem antes saber quem é esta população dita tradicional caiçara? É igual as
comunidades de pescadores de outras Resexs Marinhas do Estado do Rio de Janeiro? Tem a
mesma demanda? Achamos que não, têm históricos e contexto geográfico diferentes. Há o
caso específico de um lugar chamado Saco do Mamanguá. No tocante aos projetos de saúde,
como planejar uma gestão de uma Unidade de Conservação sem relacionar saúde, meio
ambiente e cultura? É igual as comunidades de pescadores da outra Resex Marinha do Estado
do Rio de Janeiro, Arraial do Cabo? Ela tem a mesma demanda? No tocante aos projetos de
saúde, como planejar uma gestão de uma Unidade de Conservação, sem ligar saúde/meio
ambiente/ cultura? O processo de criação das Resex atendeu a uma reivindicação dos
movimentos dos seringueiros dos anos 80 e este fato abriu precedente para os processos de
criação das Resexs Marinhas. Os movimentos sociais que impulsionaram a criação das Resexs
foram responsáveis por mudanças na ideologia da conservação e por isto o SNUC foi refeito,
o Ministério do Meio Ambiente mudou, a diretoria do Ibama também. Contudo os atores
ainda não são consultados em sua amplitude. No caso do Saco do Mamanguá, há muito
“ruído” na comunicação dos técnicos do Ibama/CNPT com a sociedade local. A linguagem
ambiental é técnica não sendo cognoscível para os do Mamanguá. Ainda há o que chamamos
aqui de “atravessadores de informação” (segundo levantamento de campo), que buscam tirar
proveito da situação de ruído desvirtuando as argumentações do Ibama/CNPT, o que dificulta
ainda mais o processo. Sugerimos um diálogo mais dialógico, no modelo que Irving (2003)
propõe. Isso aumentaria a horizontalidade das relações, colaborando para uma gestão
participativa sustentável na futura Resex.
Entretanto não é possível ignorar, como alerta Diegues e Nogara (1999), que a
população mal sabe o que quer dizer Reserva Ecológica e agora terá que se acostumar com
Reserva Extrativista Marinha. Que mudança isto implica para a população local? É possível
traçar uma ‘meta social’ para a comunidade, como propõe Lima (2002)? Como serão gerados
os projetos de saúde, educação, artesanato, pesca, agricultura e turismo para a comunidade,

58
Sobre isso conferir Santos (1996, 1999 e 2004) como também Godelier (2001).
50

baseados nas propostas de ‘sustentabilidade ecológica’? A notícia da criação da RESEX já


gerou por si só uma expectativa, ora positiva ora negativa nos atores locais do Mamanguá
(comentada no quinto capítulo). Pensamos que saída seria uma melhor informação e formação
da comunidade, preparando-a para a novidade de federalização do seu lugar. A falta de
pessoal e recurso financeiro do Ibama dificulta o processo, argumentam os respectivos
técnicos.
No tocante aos conceitos de “população tradicional” e “caiçara”, em razão das
decisões práticas, há uma enorme demanda para esclarecer muitos aspectos ainda sombrios no
que tange a identificação da “população tradicional” caiçara do Saco do Mamanguá. Por
exemplo, se for levado em consideração a conceituação proposta por Barretto Filho (op.cit.)
os “novos caiçaras – veranistas” poderão ser incluídos dentro do conceito. Pensamos que esta
não seria a melhor solução. Nos parece mais sensato rever as idéias de Vianna (1996) e
Adams (2000) sobre a questão política-ideológica do tema; Diegues (1996) sobre a
necessidade da reprodução cultural dos saberes tradicionais; Carneiro da Cunha e Almeida
(2001), Lima (1997, 2001, 2002) e Castro (1997, 2000) com relação à questão crítica e ética,
Little (2002) sobre a questão do território social; e Benatti (2001a, 2001b) em sua proposta
legalista.
É necessário (re)pensar todos os problemas que estas populações estão enfrentando.
No caso do Mamanguá, sua geografia é vista como solução para os moradores do Condomínio
Laranjeiras, que pretendem construir, com o aval do governo local, uma “marina” para aportar
seus “iates” no Fundo do Saco, área onde se encontra o manguezal mais bem preservado do
estado do Rio de Janeiro. Também é “um pedaço do paraíso” para alguns abastados que
compraram posses de nativos e, nos últimos anos construíram verdadeiras “mansões” nas
praias (observe o contraste nas figuras 10 e 11). A falta de uma atenção especial a saúde e
educação são outros problemas que requerem carinho e respeito dos dirigentes municipais.
51

Figura 10- Uma mansão na parte peninsular do Saco do Mamanguá. (Foto: Sá Xavier,
julho/2003)

Figura 11- Casas de turistas, parte peninsular do Saco do Mamanguá. (Foto: Sá


Xavier, julho/2003)
52

A questão “saúde”, primeiro item da “qualidade de vida” apontada pelo Relatório


Bruntland / “Nosso Futuro Comum”, está também referendada na Agenda 21. Esta questão é
de grande relevância e não deve ser relegada a segundo plano. Cabe dizer que, como a fome, a
doença também não espera, e avança. Há casos de Leishmaniose tegumentar americana
resistente na área não revistos pela vigilância epidemiológica local. A Leishmaniose é
endêmica nesta região e a vigilância sanitária deveria manter um programa constante mantido
na área59.
Encerrando este capítulo impõe-se uma reflexão sobre o tema “meio ambiente,
saúde/doença/cura”, à partir da Carta Pan-Americana sobre Saúde e Ambiente no
Desenvolvimento Humano Sustentável, acordada na Conferência do mesmo nome
(COPASADHS), realizada em Washington (1995, p.16-17). A fim de fixar os princípios de
política e estratégia para os países americanos, estabelece que:

“a participação dos indivíduos e das comunidades para manter e melhorar seus


ambientes de vida deve ser promovida e apoiada. A participação comunitária deve
basear-se em estratégias para o desenvolvimento sustentável incluindo a atenção
primária do ambiente, a atenção primária à saúde e a educação das crianças e
adultos. Em cada nível da organização social e política devem-se estimular e apoiar
redes de interesses e pessoas que atuem em colaboração, a fim de fomentar a
integração de preocupações e recursos setoriais nos processos de
desenvolvimento.”[grifo adicionado]

Há muito se percebeu que o conhecimento que supúnhamos separado se encontra em


processo dinâmico e dialético em sistemas de “rede”60. Do mesmo modo que não dá para
melhorar a qualidade de vida da população local se não atentarmos para o meio ambiente, não
há como obter um meio ambiente saudável sem ouvir a comunidade para saber qual a sua
visão de mundo. Como adoecem? O que é saúde? Como constroem a cura? Qual a demanda
local? Por quais estratégias articulam a rede de significados que sustenta sua representação
social de saúde/doença/cura? Qual a inserção social desses atores do Saco do Mamanguá?
Qual a experiência humana que eles têm do trinômio saúde/doença/cura?
Por isso é preciso perguntar qual o futuro possível para a comunidade do Saco do
Mamanguá?

59
Cf. com os dados da introdução.
60
Cf Milton Santos (2004, p. 49-50) explicando metadisciplina afirma “o que faz com que uma disciplina se
relacione com as demais é o mundo, o mesmo mundo que, no seu movimento, faz com que a minha disciplina se
transforme.Todas as disciplinas têm relação com o mundo. Quando no processo de informá-la, colocamos o
mundo dentro de uma disciplina, e dele fazemos a inspiração mãe, temos a metadisciplina.” O autor coloca que a
metadisciplina é filosofia particular a cada disciplina que lhe permite conversar com as outras, que estão
separadas por razões práticas.
53

4 Abordagem histórica dos modelos construídos de saúde/doença/cura: uma


representação do pensamento ocidental.

“Falar sobre o pensamento dos outros,


procurar dizer o que eles disseram é,
tradicionalmente,
fazer uma análise do significado.
Foucault (2001, p.XVI)

Nos primeiros capítulos deste trabalho foram apresentadas as “populações tradicionais


e os chamados “caiçaras” como objetos deste estudo. Entende-se aqui por “objeto” o assunto
que detém o foco da pesquisa, um recorte, buscando fugir da idéia de coisificação61
cientificista (Freire,1979, p.23).
No tocante ao dilema da conservação, como já foi exposto, é preciso insistir sobre a
urgência em incluir uma meta social na implantação de uma unidade de conservação, com
moradores (o caso da Resex Marinha do Saco do Mamanguá). A meta social está contida
textualmente no documento Nosso Futuro Comum (CMMAD,1988), assim como na Agenda
21 (1992) e Agenda 21 Brasileira (2002):

“Esses vínculos entre saúde, nutrição, meio ambiente e desenvolvimento mostram


que as políticas sanitárias não podem ser concebidas puramente em termos de
terapêutica ou medicina preventiva, ou mesmo em termos de maior atenção à saúde
pública. São necessárias abordagens integradas que reflitam objetivos-chave de
natureza sanitária em áreas com produção de alimentos; abastecimento de água e
saneamento; política industrial, sobretudo no que se refere a segurança e poluição; e
o planejamento de assentamentos humanos. (...) no campo mais restrito do
atendimento médico, um bom ponto de partida é propiciar serviços básicos de saúde
e assegurar que todos tenham a oportunidade de usá-lo. A assistência médica
materno-infantil é também de particular importância. (...) a mortalidade materna
pode ser drasticamente reduzida, caso se disponha de um sistema organizado de

61
“Por isso também não posso reduzir o homem a um simples objeto da técnica, a um autômato manipulável”
(Freire, ibid,p.23).
54

parteiras treinadas e de proteção contra tétano e outras infecções do parto, e também


de alimentação suplementar.”CMMAD (1988,p.120) [grifo adicionado]

A meta social aborda vários itens que compõem a qualidade de vida referida na
Agenda 21, sendo que neste trabalho será tratado prioritariamente o item Saúde62. Neste caso
o termo será entendido como referido textualmente:

“a saúde depende, em última instância, da capacidade de gerenciar eficazmente a


interação entre os meio físico, espiritual, biológico e econômico/social. É
impossível haver desenvolvimento saudável sem uma população saudável (...). Por
si própria, a área da saúde não tem como satisfazer suas necessidades e atender
seus objetivos, ela depende do desenvolvimento social, econômico e espiritual,
ao mesmo tempo que contribui diretamente para tal desenvolvimento.” [grifo
adicionado] Agenda 21(1992, cap.6.3)

Como o tema Saúde mostra-se polissêmico e complexo63, foi se impondo e em certa


medida se fez imprescindível repensar os modelos construídos do processo saúde/doença/cura
ocidental. Para efetivamente repensar, foi preciso (des)construí-los. Esse ensaio de
(des)construção empreendido utilizou-se do estranhamento como método64., visto a
necessidade de clarificar os pontos limites do conflito entre saberes que ocorrem na
comunidade do Saco do Mamanguá. Vale notar que tal conflito entre saberes não é
“privilégio” do Mamanguá. Este conflito ganha forte visibilidade no distanciamento entre os
saberes biomédicos e os da realidade local relacionados à saúde. A comunidade local tem
saberes, técnicas e práticas da arte de curar que não são visíveis para o modelo biomédico
ocidental. Isso se configura no contexto local como um verdadeiro nó górdio65, usando a
linguagem de Edgar Morin (1999). Este nó se apresenta principalmente no diálogo ainda
emperrado e difícil entre os saberes – da medicina ocidental e dos outros saberes de cura
chamados de medicina rústica, medicina popular, medicina tradicional, medicina alternativa,
práticas de cura, entre outros.
O tema que nominamos diálogo dos saberes, técnicas e práticas da arte de curar é
tratado em várias áreas disciplinares como Saúde Coletiva, Saúde Pública, Antropologia
Médica ou Antropologia da Saúde, Geografia Humana e Saúde, Etnomedicina e Ecologia

62
Entende-se Saúde como um campo disciplinar com domínio e competência, entretanto com contato solidário
com seus campos limítrofes (outras áreas).
63
“Visto que o ‘estado de saúde’ de uma sociedade é um conceito complexo e de difícil mensuração” (Nosso
Futuro Comum,1988, p.113). Nesse sentido os indicadores quantitativos pouco ajudam na identificação dos
problemas, apenas apontam.
64
Para os gregos, a palavra método significava caminho a ser seguido (Gonçalves (1998, p. 41).
65
Um marinheiro grego fez um nó indesatável. Apenas Alexandre “O Grande” conseguiu desfazê-lo, cortando-o
com sua espada. Esta expressão tornou-se uma “figura de linguagem”, muito utilizada por Edgar Morin, entre
outros, para falar de um problema de difícil solução, um desafio.
55

Social. Visto a gama de disciplinas que se ocupam do tema, percebemos a urgência em


abordá-lo também no campo da Ciência Ambiental, através da relação dos processos
socioambientais. Cabe lembrar que o problema não é ‘novo’, mas o desafio da proposta
interdisciplinar sim. Elenco aqui os autores mais consultados das áreas supracitadas: Maynard
Araújo (1961), Pritchard (1978), Boltanski (1979), Laplantine & Rabeyron (1989), Laplantine
(1991), Neves (1994), Ferreira (1994), Minayo & Alves (1994), Silva (1997), Soares (2000),
Duarte & Leal (2001) e Araújo (2002).
Buscando um referencial teórico-metodológico consistente para a proposta deste
ensaio de (des) construção, alguns autores foram escolhidos dado a visibilidade com que
tratam as questões históricas/conceituais aqui discutidas, tais como: Foucault (1979, 1995,
2001), Cangüilhem (2000), Boltanski (1984), Illich (1975), Minayo (2002), Minayo &
Deslandes (2002). Faz-se necessário esclarecer que a abordagem adotada neste trabalho
tratará as representações de saúde/doença/cura como socialmente e culturalmente construídas,
centrando-se principalmente no seu significado e interpretação. O trinômio supracitado
carrega o grau de complexidade dos processos que ocorrem no “corpo” humano, sempre
situado cultural, histórica e geograficamente. Deste modo, nossa proposta é buscar uma
interdisciplinaridade (possível) para entender estas representações, sem ignorar seu contexto
ambiental, ecológico, geográfico, histórico, biológico, social, econômico, antropológico,
simbólico, cultural, político e de relação.
O empreendimento de (des)construção do modelos médicos construídos ao longo da
história ocidental nos faz perceber onde está o nó ou os nós desse diálogo nada dialógico entre
saberes tradicionais e saberes biomédicos. Sabe-se que há um investimento significativo de
8% do PIB nacional em Saúde66 e uma fração deste vai beneficiar programas de saúde
familiar em áreas consideradas rurais. Neste sentido Buchillet (1991, p.244) informa que as
novas diretrizes da OMS para levar “saúde para todos em 2000”, tem como foco privilegiado
a “atenção primária em saúde”, formulada em 1978 na Conferência de Alma Alta organizada
pela OMS e pela UNICEF67. A visão de Saúde dentro do desenvolvimento sustentável (da
ação e não mais do discurso) deveria considerar fortemente que o modelo de atenção à saúde
praticado nos grandes centros urbanos do Primeiro Mundo, ou nas grandes cidades brasileiras,
não é compatível e adequado para toda a nação brasileira68. Há em nosso país uma cultura

66
Explanação de José Ricardo Bergmann, Ministério da Saúde. In: Simpósio “A Amazônia no contexto das
políticas nacionais para a ciência e tecnologia”, em 07/05/04, Brasília, transmitido pela TV Senado ao vivo.
67
Cf. o detalhamento dessa discussão com Buss (2000) em seu artigo “Promoção da saúde e qualidade de vida”.
68
Cf.sustentabilidade e qualidade de vida com Buss (ibid., p. 164).
56

multifacetada e diversa69. Políticas públicas foram empreendidas para resolver os problemas


na área de Saúde, propondo-se um “novo modelo”, entretanto o diálogo entre os saberes
nunca foi construído verdadeiramente. Há o distanciamento entre modelo biomédico70 e os
saberes tradicionais de cura. Estes saberes tradicionais não seguem um “modelo”, mas tecem
estratégias e táticas (Certeau, 1990, p.97) embasadas na cosmovisão de um êmico local
(Geertz 2002, p. 87). Nesta concepção, Araújo (2002) demonstra em seu trabalho que a
participação das comunidades locais no “novo modelo” fica apenas no papel, com alguma
representação ao nível de conselhos de saúde, mas sem nenhum ou pouco poder político
efetivo. Isso se reproduz no Saco do Mamanguá, por isso é preciso discutir este velho modelo
que sempre se transverte em um “novo modelo”, mas não muda efetivamente.
O objetivo aqui é (des)naturalizar o discurso biomédico ocidental, para clarificar que o
mesmo também é fruto de uma prática social. Começo explorando as idéias de Michel
Foucault (2001, 1979), em especial seus livros, o Nascimento da Clínica e Microfísica do
Poder. Este autor faz uma cartografia do poder instituído num momento histórico europeu
empreendido entre o século XVI, até início do século XIX. Focault (2001) afirma que o
pensamento nascido neste período exerceu forte influência em toda a concepção da “arte de
curar” moderna, visto que práticas e rituais biomédicos, bem como noções construídas sobre o
normal e o patológico são reproduzidas ainda hoje no século XXI (Cangüilhem, 2000;
Focault, 1979, 1995, 2000; Illich, 1975). Para Foucault (ibid.) o nascimento deste modelo de
‘medicina clínica’ data do final de século XVIII, no continente europeu, numa conjuntura
onde havia um fervilhar de idéias. Poder-se-ia dizer que, como numa reação em cadeia, o
modelo supracitado pode ter sido intuído no Renascimento, prosseguido com as luzes
lançadas pelo movimento Iluminista, ganhado força com o modo organizacional do
Mercantilismo, se politizado na Revolução Francesa, se profissionalizado na Revolução
Industrial e sob os ideais do Capitalismo finalmente se constituído como autoridade/poder no
Estado Moderno nascente71. Confirmando este “campo das idéias”72, Cangüilhem (2000,
p.25) aponta que:

“A história das idéias não pode ser necessariamente superposta à história das
ciências. Porém, já que os cientistas, como homens, vivem sua vida num ambiente e
num meio que não são exclusivamente científicos, a história das ciências não pode
negligenciar a história das idéias.”

69
Variantes da cultura rústica brasileira, citada por Cândido (1979), Ribeiro (1987) e Holanda (1995).
70
Que ocorre desde a formação universitária. Sobre isso cf. Araújo (2002) e Cardoso (2002).
71
Com o desmoronamento do poder do Estado, o modelo biomédico segue agora a inspiração neo-liberal
imposta pela nossa ‘modernidade tardia’.
72
O sentido que Bourdieu (1989) dá ao ‘campo’.
57

Para Cangüilhem (ibid.) a cultura molda o modo de ver/ser/sentir o mundo, o mundo


das idéias e dos construtos dos homens. A fim de ilustrar, este autor cita Sigerist (1932, p.42
apud Cangüilhem,ibid, p.77):

“A medicina é uma das ciências mais intimamente ligadas ao conjunto da


cultura, já que qualquer transformação nas concepções médicas está condicionada
pelas transformações ocorridas nas idéias da época.”[grifo adicionado]

Na visão deste autor (ibid., p.78), a ciência do final do século XVIII se mostrava
maniqueísta, dualista e vitalista: a saúde e a doença disputavam o Homem, assim como o Bem
e o Mal disputavam o mundo. A medicina do século XIX antes da era de Pasteur, era
individualista e para superá-la foi preciso a ajuda do positivismo, às custas de certo
cientificismo, argumenta Cangüilhem (ibid.).
Em acordo, Foucault (1979) acrescenta que na prática médica do século XVI até
meados do XVIII, nada havia ainda que a constituísse em “ciência”, no seu sentido moderno.
Havia personalismo da parte do médico, qualificado como tal ao final de uma iniciação
garantida pela própria corporação dos médicos. Este ritual de iniciação médica compreendia
conhecimento de textos e transmissão de receitas mais ou menos secretas ou públicas. A
experiência hospitalar não constava desse ritual, uma vez que esta iniciação se dava através
dos doentes em suas casas e não nos hospitais. Para entender essa iniciação médica, será
preciso perceber o campo onde essas idéias foram sendo construídas, condicionando o
modelo.

4.1 A visão de mundo condicionando os modelos.

Percebendo os discursos como acontecimentos e segmentos funcionais formando um


“sistema”, Foucault (2001, p. XVI) se opõe ao recurso do uso de uma série linear do tempo,
preferindo uma ‘história sistemática dos discursos’. A partir daí é possível refletir sobre como
foi engendrada a formação do médico ocidental.
É fato consensual que grande parte da arte de curar ocidental deriva de um saber
acumulado, balizado no pensamento da tradição grega de Hipócrates73 e Aristóteles, bem
como na tradição judaico-cristã. A tradição de Hipócrates e Aristóteles, situa-se entre duas
teorias: humores e miasmas. Para Silva (2000, p. 141-142) essas teorias marcaram o exercício

73
Considerado o “pai da medicina”.
58

de uma “arte de curar” nascida na Grécia antiga, repercutindo por todo o ocidente,
influenciando o pensamento filosófico em todos os períodos (em graus variados).
Na filosofia da Grécia antiga, a felicidade não poderia ser concebida separada do
castigo, nem tampouco uma vida intensa sem uma sanção trágica. O corpo fazia parte deste
universo em constante agonia, sendo a alma sensível uma co-extensão desse corpo. A alma
não havia se divorciado do corpo e nem a dor do ferimento (Illich, 1975, p.136).
Hipócrates, nascido em Cós por volta de 400 a.C., exerceu sua arte médica no templo
do deus Asclépio. Em sua “teoria dos humores”, entendia que a saúde e a doença repousavam
no equilíbrio entre a bile negra (melancolia), a bile (amarela), a pituíta e o sangue. Estes
interagiam com os 4 elementos (fogo, ar, água e terra), com as estações, com os estados
climáticos (o quente, o frio, o seco e o úmido) e com os pontos cardeais. Estas concepções e
os vocábulos continuam ainda vivos na apreensão social que se faz acerca dos adoecimentos ,
como veremos na etnografia do capítulo seguinte (Cardoso, 2000; Greco Rodrigues, 2001;
Araújo, 2002).
Aristóteles nasceu em Estagira, Macedônia, em 384 a.C (Claret, 2002) e viveu em
Atenas sendo discípulo de Platão. No pensamento de Aristóteles, as entidades materiais
tinham alguns atributos que lhes seriam inerentes ou “naturais”, como por exemplo: a
natureza dos pântanos poderia determinar a malária ou as prisões determinar a febre das
prisões (na maioria o tifo exantemático). De acordo com este entendimento, para ocorrer uma
doença havia uma determinação do espaço geográfico, do local como fonte de “miasmas”.
Miasma para os gregos representava “mancha” ou equivalente ao que hoje se entende por
“poluição”. Os miasmas existentes em certos locais “manchariam” aqueles que entrassem em
contato com os mesmos, alterando seus “humores” (referência a teoria de Hipócrates). Este
atributo dos ‘lugares’ serviu por muitos séculos como paradigma para a explicação das
endemias (e em alguns casos se mantém atual). A discussão entre os que entendiam da “arte
de curar” se localizava entre os contagionistas e os miasmáticos, porque não havia a idéia dos
agentes infecciosos, mas de lugares com condições específicas de determinar certas doenças.
Por exemplo, para os contagionistas determinados locais preenchiam as condições necessárias
para determinadas doenças e estas adquiriam as características destes lugares tendo uma
nosografia74 própria como febre das prisões e febres palustres (Silva, 2000, p.142). Em
virtude dessa crença, na Europa do século XVI até meados do XIX, os miasmáticos eram
acusados de reacionários e anticientíficos. Contudo muitas medidas eficazes e concretas de

74
Descrição metódica das doenças (Ferreira, 1999, p.1416)
59

saúde pública para conter as pandemias que infestavam as cidades possuíam uma base
miasmática; por exemplo, o saneamento das cidades francesas e a legislação sobre a habitação
do proletariado na Inglaterra (Silva, 2000), demonstrada adiante.
Illich (1975, p.136) afirma que os discípulos de Hipócrates distinguiam numerosas
categorias de ‘desarmonia’ e cada uma delas provocaria um tipo ‘particular de dor’. Neste
sentido a dor era um instrumento a serviço do diagnóstico científico, revelando ao médico que
espécie de ‘harmonia’ o paciente deveria reencontrar. Isso porque para o pensamento grego
daquele tempo, o homem era uma vítima do mal e este mal se manifestava como dor no
corpo. O objetivo do médico não era o alívio da dor (que até poderia cessar), mas sobretudo e
principalmente a restituição do equilíbrio.
É no pensamento judaico-cristão que reside a outra grande fonte das atitudes européias
pré-científicas75 frente à dor e aos adoecimentos. Na concepção judaica a dor é um mal, sendo
ou não instrumento de castigo divino. Illich (1975, p.137) aponta que “(...) em sua maioria, as
palavras judaicas que designam a experiência do mal estão profundamente enraizadas no
corpo, cada palavra implicando a afecção de um órgão específico” (grifo adicionado). Neste
sentido, cada órgão era concebido como sede de uma emoção particular. Daí a concepção de
que é possível dizer que os pensamentos considerados pecaminosos têm um certo poder de
desencadear como castigo uma ‘doença’ no corpo físico. Percebe-se que este sentimento de
culpa ainda impregna toda a cultura ocidental76.
Se para o grego a dor tinha a conotação de uma sombra da felicidade e do prazer, para
o cristão ela seria a sua sombra de ‘redenção’, condição de uma nova alegria. Porém na
doutrina política cristã a dor do adoecimento era inevitável e transformada em obrigação de
sofrer, além de um forte instrumento de repressão. Desse modo a saúde pensada seria
privilégio de seres fortuitos sem pecado (Illich, op.cit.). Pode-se dizer que tais ideologias
ainda permanecem nos interstícios da cosmovisão atual.
Portanto, é preciso refletir como estes paradigmas foram se amalgamando dentro da
‘nova ordem’77 que surgia no final do século XVIII e começo do XIX. Vale lembrar que antes
do Iluminismo a ideologia do ocidente não se ocupava em procurar findar a dor. Como diz
Illich (1975, p.138) “cada um era chamado , desde o nascimento, a aprender a arte de sofrer

75
Gonçalves (1998, p.32) aponta a forte influência judaico-cristã na oposição homem-natureza e espírito-
matéria. Esta oposição fez ocorrer já na Idade Média, a prática de dissecação de cadáveres nos monastérios e
universidades católicas. O “corpo” morto, já sem alma, passa a ser objeto da pesquisa, muito antes de Galileu.
76
É possível discutir o câncer enquanto doença, focando este paradigma.
77
Figura de linguagem que representa aqui a revolução causada pelo pensamento racional cartesiano somado ao
Iluminismo, aos ideais do movimento Industrial e do Capitalismo nascentes e as idéias políticas da Revolução
Francesa que influenciaram no nascimento da Ciência Médica e da Clínica.
60

neste vale de lágrimas”. O sofrimento do adoecimento era concebido como uma experiência
da alma, mas de uma alma que estava presente no corpo inteiro, não em algumas de suas
partes. Foi depois de Descartes que a percepção da dor mudou, passando a não ser mais uma
experiência bem tolerada, sendo por isso foi fortemente suprimida. Na idéia de Descartes o
corpo representava a natureza, e a mente o espírito. A natureza da dor precisava ser dobrada,
domada aos desejos normativos (Cangüilhem, ibid., p. 20). A alteração qualitativa que
separava o normal do patológico (baseada no pensamento hipocrático), não mais se
sustentava. O corpo para Descartes seguia um modelo inspirado na geometria, na mecânica e
na relojoaria: assemelhava-se a uma máquina que poderia ser reparada por um engenheiro
especializado. O corpo, esta parte mecânica (natureza domada), se comunicava com a alma
através da dor. A dor era um sinal de autodefesa do corpo, que transmitia este sinal a alma.
Grosso modo, a dor passa ser entendida como um sinal de um corpo que pede reparos (grosso
modo). Deus seria o grande “engenheiro do Universo” que teria confeccionado o homem do
modo mais perfeito possível (sua imagem e semelhança)78. “No final do século XIX a dor já
havia se emancipado de todo referencial metafísico: podia ser discutida como reguladora das
funções fisiológicas” (Illich, ibid., p.139). Nos anos que se seguiram ocorreu a virada da
medicina rumo à analgesia, e a saúde foi sendo reduzida a inconsciência do próprio corpo79,
alerta Vargas (2001, p. 129)
Ao final do século XVIII, os médicos/cirurgiões Xavier Bichat (1771-1802), Joseph V.
Broussais (1772-1838), Philippe Pinel (1745-1826) e Morgani (1820), embebidos no
paradigma cartesiano e entusiasmados pelo positivismo de Augusto Comte, engendraram o
que se chama hoje medicina moderna (Foucault, 2001; Cangüilhem, 2000). Esta arte nascente
se desvencilhou da uma metafísica e reorganizou o espaço manifesto e secreto do sofrimento
dos Homens (Illich, 1975; Foucault, 2001; Cangüilhem, 2000).
O conceito de Homem é recente, formado no cartesianismo e positivismo. Homem
enquanto aquele que tem o poder da vida (sujeito), do trabalho e a densidade histórica da
linguagem só surgiu no século XVIII. O saber naquele momento sai do campo da reflexão e
parte para a observação do mundo – aparece o saber empírico, experimental e não mais
transcendental. Foucault (2001, p.X) diz que o rejuvenescimento da percepção médica
78
Sobre isso cf. Gonçalves (ibid., p.33)
79
Uma mente com um corpo esquecido, precisa na modernidade tardia de “cursos” para reavivar sua
“consciência corporal”. Num mundo neoliberal globalizado e mercadológico o corpo precisa ser “controlado”,
moldado. Um exemplo disso é o parto, visto que cada vez mais cesarianas são feitas com hora marcada, porque
assim se evita a dor numa idéia de “dominar” sua natureza, segundo Dr. Sergio Martins Costa.. De 65% a 85%
dos partos em hospitais particulares são cesarianos, segundo estudos do referido médico. Cf. vídeo apresentado
“Nascendo no Brasil”, apresentado em 10/05/2004 às 00 horas, na Tv Cultura (SP). Cf. isso no próximo capítulo
sobre as mulheres no Mamamanguá.
61

ocorreu com iluminação viva das cores e das coisas sob o olhar dos primeiros clínicos.
Estabeleceu-se uma relação entre o visível e o invisível, necessária a todo saber concreto. Este
saber mudou de estrutura porque fez aparecer sob o olhar e através de uma (meta)linguagem,
o que se encontrava aquém e além de seu domínio.
Para Foucault estas transformações ou construções marcaram a passagem do
Iluminismo para o século XIX. Ele aponta que mais do que o abandono das teorias e dos
velhos sistemas, a reorganização formal em profundidade criou a possibilidade de uma
“experiência clínica”. Esta experiência foi importante para fazer cair a velha proibição
aristotélica: agora era possível pronunciar um discurso médico sobre o indivíduo. Na
construção do discurso as doenças deixaram a categoria de espécies e passaram a sintomas,
como veremos a seguir.

4.2 A medicina ocidental : de doenças como espécies a doenças como sintomas.

Foucault (2001, p.16-18) diz que uma gramática de signos, ligando significantes a
significados substituiu uma botânica dos sintomas no desenvolvimento da clínica. Antes da
metade do século XVIII a doença era pensada através de uma organização hierárquica de
famílias, gêneros e espécies, num sentido botânico (herborização de Linneu80). O
adoecimento ocorria quando esta forma viva – espécie – se instalava no corpo.
Com esta visão, os doentes eram tratados em casa, pois o “lar” era considerado como
lugar natural da vida e o lugar natural da doença. O lugar do médico era o leito do doente no
seio da família, o conforto proporcionado ao doente que considerada o melhor remédio. Os
hospitais até meados do século XVIII eram percebidos como locais artificiais e pestilentos,
onde a doença transplantada corria o risco de perder seu aspecto natural. Esta passagem da
doença como espécie para doença como sintoma se deu neste período, entre inúmeras
hipóteses, desvelando uma outra ordem do mundo (Foucault, ibid.).
Em razão dessa mudança, os sintomas passaram a conter a essência patológica, pois a
clínica descobriu nos mesmos os sinais que identificavam as doenças. Algo distinguível e
visível no sintoma passa a significar o patológico, surge a semiologia médica81. Esses sinais
serviram de contraponto para se distinguir o fenômeno da doença do fenômeno normal, o
normal do patológico. Foucault (2001, p.103) faz uma referência interessante sobre o que
passou a distinguir saúde e doença:

80
Famoso botânico.Cf. com Focault (ibid.).
81
Ferreira (1994, p. 102) vê o corpo como suporte de signo, ou seja, suporte de qualquer fenômeno gerador de
significação e sentido.
62

“Entendemos por fenômeno toda mudança notável do corpo sadio ou doente; daí a
divisão entre os que pertencem à saúde, e os que designam a doença: estes últimos
se confundem facilmente com os sintomas ou aparências sensíveis da doença”.

Para esse autor nesta simples oposição dos fenômenos, o sintoma abandonou sua
passividade de fenômeno natural e tomou a forma de significante da doença. Esta “produção”
se deu num ‘ato médico’ que totalizou a coleção de sintomas, os isolou e os transformou em
signo (significado e significante). Num aprendizado, o médico passou a ter um olhar treinado,
sensível à diferença (medicina clínica), à simultaneidade ou a sucessão e à freqüência. O ato
de reunir em um só movimento o elemento e a ligação dos elementos entre si, fez surgir o
método clínico. É importante entender que este método organizado, atuante naquele final de
século XVIII se aperfeiçoou mantendo sua essência e objetivos, sendo ensinado atualmente de
modo ampliado visando agregar um certo acúmulo de conhecimento. O objetivo era a
‘doença’ que deixou a invisibilidade e passou ao campo do visível. O campo médico
abandonou as espécies de doenças e a metafísica foi deixada de lado. O subjetivo do
adoecimento não mais interessava posto que não respondia as perguntas daqueles homens
médicos. Neste sentido, o diálogo entre médico e doente ao final do século XVIII passou a ter
uma gramática própria, seu estilo próprio. A pergunta já não era mais o que você sente? Num
mundo de significados e significantes a pergunta passa a ser onde lhe dói? Porque os sintomas
“significam” e a dor localiza a doença num corpo espacializado. Por questões de interesse e
poder este passa a ser o paradigma82 da biomedicina (Illich, 1975; Soares, 2000; Focault,
2001). Este paradigma ganhou força sendo sustentado através das gerações. Neste sentido é
importante entendermos como este “corpo de conhecimentos” foi se legitimando, sendo
naturalizado a ponto de atuar atualmente como o único capaz de exercer um saber e um
discurso sobre o corpo e a arte de curar. Este será um dos nós a serem desfeitos por uma
sociologia das emergências (Santos, 2002).
Continuando o empreendimento, Foucault (ibid.) demonstra que havia uma
preocupação de algumas nações européias em conter as doenças que assolavam o velho
continente, agora já conhecidas e diagnosticáveis. Esta preocupação se deu primeiro por
razões econômicas, visto os dispendiosos gastos com as epidemias e antecederam uma noção
de saúde pública e ideal político na Europa. Para esse autor, coube a Revolução Francesa
trazer este ideal político para dentro da medicina. Neste sentido a missão do médico passou a
ser também uma missão política dentro da sociedade:

82
Paradigma cartesiano, dicotômico, reducionista e biologista.
63

“A primeira tarefa do médico é, portanto, política: a luta contra a doença deve


começar por uma guerra contra os maus governos; o homem só será total e
definitivamente curado se for primeiramente liberto”. Foucault (2001, p.37)

Estes ideais por certo influenciaram a nova clínica que surgia, sendo a mesma
chamada por Focault de “teatro nosológico”. O corpo, como palco desse teatro, agora pode
ser apalpado e investigado. O saber complexo da clínica, permaneceu por um tempo na
marginalidade, não sendo considerado como um saber ‘científico’. Aos hospitais coube
receber os louros do reconhecimento do saber científico. Mas por quê? Como isso ocorreu se
os hospitais eram vistos como lugares pestilentos, sujos e miasmáticos? Vejamos qual era o
campo social constituído naquela época que favoreceu esta transformação.

4.3 O ambiente social corroborando para a medicina de controle do corpo.

No século XVII, Focault (1979) localiza uma grande preocupação de todas as nações
do mundo europeu com o estado de saúde de sua população, num clima político, econômico e
cientifico característico do período denominado Mercantilismo. Naquele momento histórico,
como a população representava a força produtiva econômica mercantil, importante era fazer a
população crescer. Por isso, Foucault (1979, p.82-85) aponta a França, a Inglaterra e a Áustria
como nações que passaram a calcular a força ativa de suas populações. Para tal a França e
Inglaterra estabeleceram estatísticas de nascimento e mortalidade. Naquele período embora
esta “contabilidade” fosse importante, não havia uma preocupação, tão pouco intervenção
efetiva e organizada em relação à saúde da população, informa Focault (ibid.)
Acontece que na Alemanha, por razões geopolíticas, ocorreu um forte
desenvolvimento da prática médica, efetivamente voltada para a melhoria do nível de saúde
populacional com a chamada política médica de Estado, a Medizinichepolizei onde:

“Não é o corpo que trabalha, o corpo do proletário que é assumido por essa
administração estatal da saúde, mas o próprio corpo dos indivíduos enquanto
constituem globalmente o Estado: é a força, não do trabalho, mas estatal, a força do
Estado em seus conflitos, econômicos certamente, mas igualmente políticos, com
seus vizinhos. É essa força estatal que a medicina deve aperfeiçoar e desenvolver.
Princípio da Medicina Social.” Foucault (1979, p.84)

Na visão desse autor, os outros modelos de medicina social, dos séculos XVIII e XIX,
são atenuações desse modelo profundamente estatal e administrativo já apresentado na
Alemanha. Foucault (1979, 2001) esclarece que o motivo da revisão de conceitos do velho
mundo sobre saúde/doença/cura residiu, num primeiro momento, no grande medo e pânico
64

das epidemias que assolavam toda a Europa ao final do século XVIII, como já dito. O
panorama traçado por Foucault (ibid.) demonstra novamente como a mudança foi uma
“necessidade” estabelecendo-se então uma estratégia política/econômica e não de saúde
pública (daí a idéia do corpo como objeto biopolítico). A noção de saúde pública só surgiria
mais tarde, no século XIX como veremos adiante.
No ambiente social da época os hospitais eram lugar de morte e não de vida, cuidados
pelo clero ou quem desejasse fazer caridade e/ou penitência. A cidade não era mais ameaçada
pelos saques dos camponeses, mas pelos grandes problemas urbanos que surgiram, tais como:
lixo, esgoto, cadáveres que se amontoavam em cemitérios alocados dentro do centro urbano,
mau cheiro dos curtumes e água contaminada por dejetos. O ambiente urbano consistia numa
emaranhada trama de classes sociais, com ricos e pobres, plebe e burguesia, convivendo num
mesmo espaço físico, o que gerou um considerável conflito social. A classe burguesa, cada
vez mais enriquecida, sentia-se incomodada e ameaçada pelas doenças que os pobres sofriam.
Somado a isso, havia na Europa os ideais da Revolução Francesa e um crescimento da
industrialização na Inglaterra. Com a indústria surgiu o proletariado, que se amontoava num
espaço urbano sem suscitar um cuidado maior por parte das autoridades.
Em meio a este caos social urbano, na Inglaterra se instala a Lei dos Pobres. Esta se
constituía num ‘conjunto’ de leis que admitia um controle médico dos pobres, como
argumenta Foucault (1979, p.95). Tal lei consistia num “cordão sanitário no interior das
cidades, entre ricos e pobres”. A atitude parecia, num primeiro momento muito apropriada –
tratava-se dos pobres gratuitamente ou sem grande despesa e os ricos ficariam garantidos de
não serem vítimas de fenômenos epidêmicos. A Lei dos Pobres refletia o grande problema
político da burguesia na época. Esta lei de assistência-controle e assistência-proteção foi
somente um primeiro elemento de um complexo sistema que apareceu em torno de 1870, com
os grandes fundadores da medicina social inglesa, com destaque para John Simon. Este
complementou a legislação médica da Lei dos Pobres com a organização de um serviço
autoritário caracterizado não pela existência de ‘cuidados médicos’ mas pelo ‘controle médico
da população’. Trata-se do sistema Health Service, de Health Officers, que ao final do século
XIX, chegavam a mil na Inglaterra. O health service (“serviço de saúde”) foi o segundo
elemento que faz prolongar a lei dos pobres:

“(...) diferentemente da medicina urbana francesa e da medicina de Estado da


Alemanha do século XVIII, aparece, no século XIX e sobretudo na Inglaterra, uma
medicina que é essencialmente um controle da saúde e do corpo das classes mais
65

pobres para torná-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes mais
ricas.” (Focault ,1979, p.97)

Esse controle imposto sobre os corpos e as coisas suscitou uma série de reações
violentas da população, na forma de pequenas insurreições antimédicas, principalmente na
Inglaterra. No Brasil esta insurreição só aconteceu em 1904, tendo o Rio de Janeiro como
palco da chamada “revolta da vacina”. Esta revolta foi empreendida principalmente pelos
positivistas que não aceitavam as imposições sanitárias deflagradas por Oswaldo Cruz (cf.
Scliar, 2002, p.57).
Foucault (ibid.,p.96) aponta que, nos países protestantes no século XIX, grupos de
dissidência religiosa, de diferentes formas, tinham por objetivo lutar contra a medicalização.
Reivindicavam o direito das pessoas não passarem pela medicina oficial, o direito sobre seu
próprio corpo, o direito de viver, de estar doente, de se curar e morrer como quisessem. Já
nos países católicos, o movimento de resistência foi diferente. O autor supracitado pergunta: a
‘peregrinação de Lourdes’83, desde o séc. XIX até hoje, não seria uma espécie de resistência
difusa à medicalização autoritária de seus corpos e doenças?

“Em lugar de ver nestas práticas religiosas um fenômeno residual de crenças


arcaicas ainda não desaparecidas, não serão elas uma forma atual de luta política
contra a medicalização autoritária, a socialização da medicina, o controle médico
que se abate essencialmente sobre a população pobre; não serão essas lutas que
reaparecem nessas formas aparentemente arcaicas, mesmo se seus instrumentos são
antigos, tradicionais e supõem um sistema de crenças mais ou menos abandonadas?
O vigor dessas práticas, ainda atuais, é ser uma reação contra essa social medicine,
medicina dos pobres, medicina a serviço de uma classe, de que a medicina social
inglesa é um exemplo.” [grifo adicionado] (Focault, 1979, p. 97)

Na França do final do século XVIII, Foucault (1979, p.85) demonstra que o grande
problema das cidades era a falta de unidade territorial. Para este autor (op.cit.) Paris, por
exemplo, consistia de um mosaico de poderes senhoriais detidos por leigos, pela Igreja, por
comunidades religiosas e corporações. Em razão destes conflitos entre estes poderes fez-se
necessário uma unificação do poder urbano. Foucault (ibid.) aponta as razões econômicas
como responsáveis pela decisão tomada, explicando que a cidade se tornava agora um ‘lugar’
de mercado, de comércio intenso. Com o novo status, além de um lugar de mercado, a cidade
passou a ser também um lugar de produção, e por isso fez-se necessário criar mecanismos de

83
No Brasil ocorrem vários movimentos dessa categoria: os romeiros de Nossa Senhora Aparecida em São
Paulo, de Padre Cícero no Ceará, de Nossa Senhora da Penha no Espírito Santo, da procissão de Santa Rita em
Paraty, RJ, entre outras. Esta resistência em forma de fé é explicitada no capítulo seguinte sobre as
representações de saúde/doença/cura que ocorrem no Saco do Mamanguá.
66

regulação homogêneos de controle (Foucault, ibid., p.85). Neste ambiente onde se avizinhava
o proletariado nascente, a estratégia seguinte foi política, em virtude do surgimento de uma
ordem de classes, com plebe e burguês, rico e pobre, elevando o número e a freqüência de
agitações urbanas.
Com a finalidade política de reorganização, unificação e controle das cidades a França
fez seu esquadrinhamento. Este, a primeira vista, parecia salutar e ambientalmente correto,
inclusive inovador para a época. Contudo sua finalidade estava mais no controle dos corpos e
dos ambientes a fim de estabelecer um ‘poder’. Primeiro organizaram corredores de ar para a
cidade, como também corredores de água, com a finalidade de conter os miasmas – como se a
água pudesse “lavar a cidade dos miasmas”. A periferia foi reservada aos pobres e pestilentos;
o espaço hospitalar foi reorganizado e houve também a desativação do “Cemitério dos
Inocentes”84. Nessa tarefa foi imprescindível desocupar as margens do rio Sena, abarrotada de
habitações impróprias, como também transferir os curtumes do centro urbano, cuidar da água
potável, criar uma rede de esgotos, organizar as lavanderias, e até conter as “revoltas de
subsistência” dos pobres (Focault, ibid., p.87). Estas revoltas ocorriam porque os mais pobres,
por uma elevação de preços ou baixa de salários, já não conseguiam se alimentar, então
saqueavam celeiros, mercados, docas e entrepostos. Estes fenômenos sociais, segundo Focault
(op.cit.) conduziriam à Revolução Francesa.
Pelos motivos acima explicitados, no tocante a Saúde, o modelo de intervenção forte
adotado na França foi chamado de Medicina Urbana. Este modelo teve como base o padrão
de conduta médica e política da ‘quarentena’, já adotado na Idade Média como um
regulamento de urgência para a peste ou doença epidêmica violenta. Consistia o plano em:

“1-todas as pessoas deviam permanecer em casa para serem localizadas. Ninguém se


movimenta.
2-a cidade é dividida em bairros onde há um responsável por cada área. Sistema de
vigilância generalizada que dividia e esquadrinhava o espaço urbano.
3-os vigias de rua ou bairro fariam relatórios ao prefeito sobre a observação. Sistema
de registro e vigilância.
4-os inspetores passam em revista diariamente todos o habitantes da cidade. Revista
exaustiva dos vivos e dos mortos.
5- em cada casa se praticava a desinfecção com perfumes queimados.” (Focault,
1979, p. 87)

84
Cemitério que mais se assemelhava a um depósito de cadáveres, situado no centro de Paris, França (Foucault,
2000).
67

A Medicina Urbana não é uma medicina dos homens, dos seus corpos e organismos,
mas uma medicina das coisas: ar, água, decomposições, fermentos; uma medicina das
condições de vida e do meio da existência, alerta Foucault (1979).

“Esta medicina das coisas já delineia, sem empregar ainda a palavra, a noção de
meio, que os naturalistas do final do século XVIII, como Curvier, desenvolverão. A
relação entre organismo e meio será feita simultaneamente na ordem das ciências
naturais e da medicina, por intermédio da medicina urbana. Não se passou da análise
do organismo à análise do meio ambiente. A medicina passou da análise do meio à
dos efeitos do meio sobre o organismo e finalmente à análise do próprio organismo.
A organização da medicina foi importante para a constituição da medicina
científica” (Foucault, 1979, p.93).[grifo adicionado]

Com isso se desenvolveu nas cidades a noção de salubridade. Foucault (ibid., p.93)
explica que saúde e insalubridade são o estado das coisas e do meio (ambiente) enquanto
afetam as pessoas. A higiene pública do séc. XIX se legitimou como noção essencial para a
medicina francesa realizar seu controle político/científico sobre o meio (ambiente).
É preciso explicitar aqui que nada ocorreu por acaso,. nem de forma ‘natural’, como
pensam alguns (numa idéia linear de tempo de acordo com a perspectiva do evolucionismo
histórico). Percebeu-se um claro jogo de poder onde enquanto alguns saberes eram
construídos outros eram desconstruídos (ou destituídos85). Naquele momento tudo urgia
“controle” e “ordem”, afinal, o pensamento de Descartes impregnava o pensamento político,
científico, econômico e social. A “disciplina”, esta grande descoberta do século XVIII, como
técnica de exercício de poder, foi transformada em uma nova técnica de gestão dos homens.
Para Foucault (ibid.) apesar da criação das novas tecnologias no séc. XVIII, como a química,
a metalurgia, etc, a grande invenção técnica foi essa nova maneira de gerir homens. De
controlar suas multiplicidades e utilizá-las ao máximo, para acrescer (“maximizar”) o efeito
útil de seus trabalhos e suas atividades, isso graças a um sistema de poder capaz de controlá-
los. A disciplina é uma técnica de poder que implica vigilância perpétua e constante dos
indivíduos. “Não basta olhá-los, é preciso vigiá-los”, diz Foucault (1979, p.107). Este modelo
foi implantado tanto nos serviços de saúde pública, quanto nas escolas, no exército, nas
prisões, nos hospícios, nos hospitais e nas fábricas, segundo o autor.

“O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela


consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico,
no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo

85
Como por exemplo os outros saberes/poderes: poder das mulheres como curadoras, das parteiras, dos xamãs,
entre outros (Sá Xavier, 2000)
68

é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política.” (Focault,


1979, p.79)

Este rígido controle do corpo nesta gestão dos homens e dos espaços vai encontrar nos
hospitais – teatro nosológico – lugar ideal, onde o método clínico, visto anteriormente toma
outra configuração e se torna “científico”. Neste território/teatro de atores sociais de um
tempo, homens médicos ávidos de disciplina e poder constroem o saber médico científico,
(re)configurando toda a estrutura espacial e intelectual dos hospitais.

4.4 A transformação do hospital como local do saber científico: o hospital terapêutico.

Este item tem a intenção de provocar um estranhamento que leve ao entendimento de


como o saber biomédico foi sendo legitimado e naturalizado no ocidente. Procuramos
compreender porque os hospitais hoje são os lugares de tratamento e cura e os biomédicos são
os únicos imbuídos de poder legitimado para efetivamente tratar e curar.
Naquele momento histórico entre o final do século XVIII e começo do século XIX
todos os outros saberes e práticas de cura foram destituídos de poder e desconsiderados. O
subjetivo do doente foi anulado, não importando como lhe doía ou como expressava essa dor.
Este banimento inviabilizou um diálogo mínimo com os outros saberes, e é neste não-diálogo
que percebemos um dos nós referido anteriormente.
Santos (2003b) nos diz que a compreensão do mundo excede em muito a compreensão
ocidental do mundo. Para ele esta visão torta é fruto do uso da razão metonímica86 que preside
os debates, inviabilizando um diálogo mínimo.

“(...) a razão metonímica continuou a presidir aos debates mesmo quando se


introduziu neles o tema do multiculturalismo e a ciência passou a ver-se como
multicultural. Os outros saberes, não científicos nem filosóficos, e, sobretudo, os
saberes não ocidentais, continuaram até hoje em grande medida fora do
debate.”(Santos, 2003b)

Para este autor é preciso procurar fundar três procedimentos sociológicos para
estabelecer uma razão cosmopolita: a sociologia das ausências, a sociologia das emergências
e o trabalho de tradução. A insistência neste ponto é necessária pois a biomedicina negando o
diálogo entre os saberes e abolindo a cultura do processo de adoecimento não faz o contato,
perdendo a oportunidade da interação e verdadeira cura (prosperada e possível no próprio

86
Que toma as partes como um todo, que designa um objeto pela palavra designativa (como por exemplo
trabalho por obra e porto por ‘vinho do porto’) (Santos , 2003b).
69

diálogo). Para Santos (2003b) isso ocorre pelo amplo uso da razão metonímica na pós-
modernidade onde “o olhar que vê uma pessoa cultivar a terra com uma enxada não consegue
ver nela senão o camponês pré-moderno”. Quem vê uma benzedeira ou um xamã em ação não
percebe ali senão um ser mítico e atrasado, elaborando rituais sem sentido, não percebendo o
valor deste saber empírico.
Começando a (des)construir este processo, percebe-se que este campo social
constituído com a ajuda da forte cultura disciplinar, tornou possível que o saber médico se
realizasse enquanto ciência dentro dos hospitais.

“O campo científico enquanto sistema de relações objetivas entre posições


adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta
concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da
autoridade científica definida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e
poder social; ou, se quisermos, o monopólio da competência científica,
compreendida enquanto capacidade de falar e agir legitimamente (isto é, de maneira
autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente
determinado. (...) As teorias da ciência e de suas transformações predispõem-se a
preencher funções ideológicas nas lutas dentro do campo científico (...)” Bourdieu
(1983, p.122, 141)

Num processo fortemente cuidado pelo poder político e econômico os médicos foram
se organizando dentro dos hospitais e o hospital, tornando-os o seu campo de experiências.
Para Foucault (1979, 2001) a mudança não se deu pela busca de uma ação positiva do hospital
sobre o doente ou a doença, mas pela anulação dos efeitos negativos do hospital. Houve, num
primeiro momento, uma preocupação de purificar os hospitais dos efeitos nocivos da
desordem que ele acarretava, mais do que uma preocupação de medicalizar. Na visão de
Focault (ibid.), o ponto de partida da reforma nos hospitais não foi o hospital civil, mas o
hospital marítimo. Em função do mercantilismo e das muitas guerras este hospital se tornou
um lugar de desordem econômica (tráfico de mercadorias, objetos preciosos, matérias raras,
especiarias, entre outros, trazido das colônias), aponta Foucault (ibid., p.103).
Neste sentido as regulamentações econômicas tornaram-se mais rigorosas, e também o
‘preço’ dos homens tornou-se mais elevado. Neste regime socioeconômico a formação do
indivíduo, sua capacidade, suas aptidões passam a ter um preço para a sociedade. Portanto, a
introdução de mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital se tornou primordial
para sua medicalização. Com isso, o saber da prática médica mudou e os hospitais passaram a
ser o lugar complementar, tornando-se essencial ao saber médico. Para tanto o meio ambiente
físico do hospital foi transformado, incluindo as distribuições dos leitos. Os leitos coletivos
foram eliminados pela necessidade de individualizar e distribuir os doentes em espaço em que
70

fosse possível vigiá-los, registrando o que acontecia. Também foi preciso modificar o ar que
respiravam, a temperatura do meio, a água que bebiam e o regime alimentar – aqui
localizamos o surgimento das noções de controle do meio ambiente hospitalar. Deste modo, o
quadro hospitalar passa a disciplinar o meio e com isso a doença e o doente. Este meio foi
empregado como um instrumento de modificação com função terapêutica (Foucault, 1979,
p.107). Além disso, foi preciso individualizar também o meio em torno do doente, meio
específico segundo cada doente e doença. A doença passou a ser vista dentro de um quadro
linear de evolução e os doentes não eram mais deixados à morte, havia um médico que os
visitava regularmente (vigília e controle).
Cabe lembrar que os hospitais, até a reforma, eram administrados pelo clero e o
médico ficava sob a dependência da administração do mesmo. No sonho revolucionário
(Revolução Francesa), o hospital passou a ser concebido como um instrumento de cura e o
clero foi banido dessa administração hospitalar. Quando o foco passou a ser o espaço e sua
distribuição como instrumento terapêutico, o médico foi indicado como principal responsável
por essa (re)organização hospitalar. Foucault (1979) aponta que em torno de 1770 as
condições para residência médica foram estabelecidas e com ela os vários regulamentos que
orientavam sobre visitas médicas.

“(...) a tomada de poder pelo médico, se manifesta no ritual da visita, desfile quase
religioso em que o médico, na frente, vai ao leito de cada doente seguido de toda a
hierarquia do hospital: assistentes, alunos, enfermeiras, etc.” (Foucault, 1979, p.110)

É importante notar que neste espaço hospitalar terapêutico a organização criou


também um sistema de registro permanente, aprimorado nos dias atuais. Instituiu-se um
campo documental no interior do hospital. Além de (re)considerado então o ‘lugar de
cura’(não mais de expiação dos homens), tornou-se também lugar de registro, acúmulo e
formação de saberes – até então era apenas legado à literatura. Sobre a formação de saberes,
Foucault (1979; 2001) diz que a formação normativa do médico entre 1780 a 1790 passou a
incluir necessariamente o hospital, sendo a clínica uma dimensão essencial do hospital. A
medicina que emergiu deste espaço-tempo foi tanto uma medicina individualizante como uma
medicina das populações (preocupada com as epidemias), e a redistribuição dessas duas
medicinas, segundo o autor, foi um fenômeno do século XIX.
Por isso Foucault (ibid., p.110.) localiza a notoriedade médica na figura ilustre do
médico hospitalar como uma invenção do final do séc. XVIII. Este médico será considerado
71

mais ou menos sábio, em função do tempo de experiência hospitalar. O autor aponta Pinel87,
entre outros como um grande médico hospitalar, coloca inclusive que sua fama se deu graças
ao poder que detinha no hospital que conduzia. Abre-se aqui uma possível reflexão sobre
como este poder médico se solidificou no meio ocidental, criando inclusive raízes no oriente,
como foi se naturalizando no campo social.
Nesse intenso campo de lutas ocorreu também um contínuo combate travado nos
hospitais e nas cidades: a luta “contra” as doenças infecciosas, verdadeiras pandemias que
assolavam o velho mundo. Procurando descobrir mecanismos e táticas eficientes de
erradicação e controle, um novo paradigma foi se impondo como importante disciplina : a
microbiologia.

4.5 Um novo paradigma: a microbiologia, o espaço como categoria de análise e o ethos


do humano.

Aqui pretendo concorrer para o entendimento de como a teoria higienista foi


introduzindo conceitos e como estes conceitos influenciaram o modo de ver e agir no mundo.
A descoberta da bacteriologia, no final do século XIX, não introduziu o conceito de doença
infecciosa e infecção, como interpretam os mais tradicionais (Silva, 2000, p.142). Embora o
conceito tivesse uma forma confusa e sem sustentação teórica, já existia desde a Grécia, entre
os contagionistas e miasmáticos e mais tarde também na medicina do grego Galeno88.
No século XIV ocorriam epidemias da peste bubônica e peste negra por toda a Europa,
o que exigia uma explicação e solução da parte dos médicos. O médico italiano, Girolamo
Fracastoro (1483-1553) já havia construído uma explicação teórica sobre infecção quando
estudou o mecanismo de contágio da sífilis, considerada uma epidemia da época. Vale
salientar que naquele ambiente social, as idéias sobre infecção foram somadas a urgência
médica das demais epidemias. Havia uma urgência e uma necessidade social concorrendo
para um repensar sobre os confusos conceitos de contágio, doença infecciosa e infecção. Esta
reflexão levou mais tarde a elaboração de um arcabouço teórico/científico importante para a
construção do conceito de infecção aplicado atualmente (Silva, 2000, p.142; Scliar, 2002,
p.23).

87
Philippe Pinel, doutor em medicina que tratou de transtornos mentais (1745-1826).
88
Médico grego nascido em Pérgamo, Ásia Menor, em 129- 204. Mais famoso médico grego depois de
Hipócrates, viveu em Roma tendo como cliente o imperador Marco Aurélio (121-180).
http://warj.med.br/cie/cie02h.asp
72

Curiosamente, na Europa desde o século XVII já se conhecia o microscópio,


popularizado por um comerciante holandês chamado Anthoni van Leeuwenchoek. O
instrumento era utilizado para examinar os tecidos, sendo que contava com uma engenhosa
combinação de lentes, dispostas em um tubo. A curiosidade o levou a observar numa gota
d’água estagnada, milhões de criaturas muito pequenas. O estudante de medicina holandês,
Louis de Ham, usando o mesmo instrumento, descobriu os espermatozóides numa gota de
sêmem. Mas mesmo assim o instrumento recém criado era pouco valorizado, sendo que o
fascínio geral era o telescópio, importante instrumento para navegação da época. Entretanto
Fracastoro levantou a hipótese de que o contágio da sífilis se dava através de partículas muito
pequenas chamadas por ele de seminaria contagium ou virus. Ele notou que tais partículas
causavam uma putrefação no corpo, propiciando a enfermidade. Mais tarde, na Inglaterra do
século XIX, o médico John Snow correlacionou uma epidemia de cólera com a água de um
poço. Embora nada houvesse ainda que identificasse os micróbios causadores da enfermidade,
o trabalho deste médico revolucionou e impulsionou o que chamamos hoje de Saúde Pública,
sendo Snow considerado o fundador da epidemiologia89 (Scliar, ibid.).
Voltando a microbiologia, seu desenvolvimento se deve principalmente ao bioquímico
francês Louis Pasteur (1822-1895) que, buscando entender porque a fermentação estragava o
vinho, descobriu que o mesmo se tornava azedo por ação de um microorganismo e que, sob
forte aquecimento seguido de um resfriamento se poderia destruir este microorganismo;
surgiu o processo da pasteurização (Scliar,op.cit.). O desenvolvimento da microbiologia
significou a introdução e o aperfeiçoamento de uma tecnologia atuante que produziu fortes
evidências sobre a etiologia infecciosa das doenças endêmicas e epidêmicas. No entanto, a
associação de determinados locais ou ecossistemas à ocorrência de determinadas doenças era
muito forte. O que atraiu muitos pesquisadores em busca de outros modelos explicativos.
Dentre estes se destaca Pavlovsky, que por volta de 1930 cunhou a teoria dos focos naturais
das doenças transmissíveis. Tal teoria sofreu forte influência da ecologia, não diferindo muito
de Hipócrates e Aristóteles e seu mérito está em estabelecer o conceito de espaço como
cenário no qual circulava o agente infeccioso – a patobiocenose (Silva, 2000, p.143). No
encontro dessa idéia, Cangüilhem (2000, p.136) assinala as reflexões de Max Sorre (1880-
1962), um importante geógrafo humanista que, num esforço de interligar áreas afins, criou o
conceito de ecúmeno e complexo patogênico. O primeiro representa a população em seu

89
Ciência que estuda os fatores implicados no surgimento e na disseminação de todas as doenças. Os
epidemiologistas se detinham nos métodos quantitativos, seguindo um aforismo de um médico britânico, lorde
Kelvin (1824-1907), segundo o qual, tudo que é verdadeiro pode ser expresso em números (Scliar, ibid., p.23)
73

dinamismo interno, fruto da ação e reação em face da natureza. O segundo refere-se à teia de
relações entre o meio natural, os seres vivos não humanos e o homem, vivendo lado a lado e
mantendo entre si relações mais ou menos intensas e duradouras. Estes conceitos usam a
abordagem ecológica para tratar geograficamente da questão da saúde e do espaço90. Intentam
dar conta de uma rede de relações muito ampla e complexa para ser entendida numa única
visão metodológica.(Silva, ibid., p.145; cf. Rojas, 1998). Entretanto, têm o mérito de apontar
o espaço como uma categoria de análise para a busca da compreensão das doenças,
principalmente as infecciosas, transmitidas por vetores, e alguns cânceres determinados por
exposição a substâncias existentes no meio91. Argumenta-se que o foco de análise não deve se
centrar apenas no espaço corpóreo e concreto, mas como disse Max Sorre, na teia de relações,
principalmente na teia cultural dos humanos, espaço incorpóreo. Como diz Geertz (1989,
p.63), é preciso entender esta teia de relações do homo sapiens com seus significados e
significantes, já que somos todos artefatos culturais. Neste sentido, para este autor o ser
humano certamente não é “qualquer” humano, ele será sempre uma espécie particular de
humano, porque sem dúvida os humanos diferem entre si em razão de sua diversidade
cultural. Afirmando este pensamento, o autor prossegue dizendo que cada povo constrói o seu
ethos particular, uma forma, um tom, o caráter, morada e qualidade de vida, seu estilo e
disposições morais e estéticos, enfim sua “visão de mundo” (ibid., p.103). Logo sua saúde,
sua doença e sua cura dependerão deste ethos. Cangüilhem (2000, p. 65) argumenta que é
necessário contextualizar os sintomas das doenças e dos doentes:

“É de um modo bastante artificial, parece, que dispersamos a doença em sintomas


ou abstraímos de suas complicações. O que é um sintoma, sem contexto, ou um
pano de fundo? O que é uma complicação, separada daquilo que ela complica?”
(Cangüilhem, 2000, p. 65)

Esse contexto de que fala Cangüilhem (ibid.) pode ser interpretado como o ethos do
indivíduo, dentro de sua comunidade de destino. O pano de fundo será a cultura, a teia que
tece significados, que une este indivíduo ao todo, que explica o mundo e suas coisas naturais e
sobrenaturais, concretas e abstratas, objetivas e subjetivas.

90
É importante que se saiba que este conceito foi ampliado e é usado pela epidemiologia atualmente.
91
Área da disciplina Saúde Ambiental.
74

4.6 Os outros saberes/práticas tradicionais da arte de curar e o modelo biomédico: é


possível um diálogo entre os saberes?

A preocupação com o distanciamento ente os saberes locais e o saber biomédico faz


surgir uma pergunta: como esse modelo médico clínico que, com Focault (1979, 1995, 2001)
analisamos seu surgimento, percebe o indivíduo em estado de comunidade (Moscovici, 1990)
se não lhe é visível as diferenças culturais? È possível argumentar que a biomedicina não saiu
dos auspícios do cartesianismo nem do positivismo92. É o caso, por exemplo, da apropriação
indevida dos saberes e práticas patrimoniais da arte de curar de sociedades tradicionais com
finalidade de manipulação industrial e genética. Inclusive sem qualquer retorno financeiro
e/ou social para as mesmas. Contudo, há atualmente movimentos sociais; impulsionados pelo
terceiro setor, universidades93, entre outros; reivindicando uma postura ética em relação aos
saberes desqualificados e invisíveis. Morin (2000, p.106, 2002, p.100) aposta numa
antropoética, uma ética em “escala humana” que abarque essas questões postas ao século
XXI.
Foi construída uma verdadeira fé na biomedicina desde a era moderna, como já visto,
persistindo na modernidade tardia (Hall, 2000). Vimos também que a única forma da arte de
curar legitimado é o modelo biomédico ocidental (Illich, 1975; Buchillet, 1991; Sá Xavier,
2000; Araújo, 2002), salvo exceções a Homeopatia e a Acupuntura que têm outras formas de
construir a etiologia da doença e do doente. Os outros modos dessa arte são vistos como
protótipos desqualificados e acusados de não científicos ou pré-científicos. Mas o tema não é
tão pacífico quanto parece, sendo a fé na cientificidade da medicina ocidental questionada por
Illich (1975), Foucault (1979, 1995, 2001), Laplantine (1989) e Cangüilhem (2000, p.189),
entre outros. Sabe-se que as outras formas da arte de curar coexistem com o modelo oficial,
embora não haja um diálogo suficiente como demonstram Illich (1975), Laplantine (1989,
1991), Büchillet (1991), Margotto (1998), Araújo (2002) e Menezes (2004), entre outros. Essa
falta de solidariedade entre os saberes toma forma de forte prejuízo para as populações ditas
tradicionais, que não têm o seu saber sistematizado textualmente, e por isso também
desqualificado94.
Segundo Buchillet (1991, p.22), desde 1940 a antropologia norte-americana foi
chamada a participar da implantação de serviços de saúde modernos nos países em
desenvolvimento. Porém, somente nos anos 60 a expressão “Antropologia Médica” começou

92
Cf. a razão metonímica de Santos (2003b)
93
Cf. ações do Laboratório de Educação Patrimonial da Faculdade de Educação da UFF.
94
Cf. Escobar, 1998, p.383, 384.
75

a ser utilizada. Esta tem a finalidade de promover pesquisas relacionadas à saúde humana à
luz da perspectiva antropológica, sendo hoje considerada uma subárea da Antropologia. Neste
trabalho de pesquisa a abordagem interpretativa da Antropologia Moderna será utilizada. O
estudo das representações simbólicas de saúde/doença/cura na comunidade do Saco do
Mamanguá levará em consideração a lógica de construção de significados dos saberes/práticas
de cura êmicos a partir de uma interpretação ética (Geertz, 1997, p.87).
De acordo com os pontos colocados anteriormente, percebe-se que a história da
medicina ocidental foi pautada por diversos paradigmas, em diferentes campos95 históricos,
sendo que o atual denomina-se biomedicina. A população dita tradicional (visto no segundo
capítulo) e os índios também construíram saberes de cura que não são considerados como
biomedicina, pois se trata de paradigmas e contextos históricos diferentes. Estes saberes de
cura são abordados na literatura nacional e internacional, no senso comum e em órgãos e
instituições públicas como medicina tradicional, medicina popular, folk medicine, popular
health culture e etnomedicina (Büchillet, 1991, p.24). Neves (1984, p.7) argumenta que os
termos acima referidos operam com visões etnocêntricas porque tomam como referência o
saber erudito ou científico. Para essa autora, na explicação da medicina popular como
‘residual’ ou ‘alternativa’ ou ainda como ‘paralela à medicina científica’, muitos autores não
conseguem se desvencilhar da comparação ou do confronto entre essas duas práticas sociais.
Ainda segundo Neves (ibid.) esta prática/saber é percebida no ocidente como residual ou
alternativa, assim sendo, espera-se que seja eliminada tão logo ocorra o ‘desenvolvimento’
econômico e social; já que medicina popular é definida como saber mágico-religioso das
comunidades rurais ou das camadas subalternas das sociedades urbano-industriais (ver
Elizabetsky,1986; Boltanski, 1989; Souza Santos & Mendonça Lima, 1991; Maués, 1994;).
Entretanto essa prática não é entendida como “medicina” pelos seus praticantes96

“Tanto é assim que a classificação medicina popular é uma qualificação


externamente atribuída a essa prática, geralmente pelos pesquisadores, para
diferenciá-la daquelas da medicina científica. Os usuários e os agentes que se
consideram depositários deste saber acumulado por gerações e que se especializam
em receitar tais medicamentos não o consideram como constituindo uma medicina.”
(Neves, ibid.,p.7)

Em geral, estes atores sociais não fazem equivaler as duas práticas de medicalização
como alternativas que podem ser substituíveis uma pela outra de modo genérico. E se o fazem

95
Campo econômico, político; em diferentes contextos como foi visto com Foucault (1979, 2001)
96
Esta verificação também procede na visão dos comunitários do Mamanguá, exposta no capítulo seguinte.
76

reconhecem o limite entre os dois saberes e práticas97. Ainda que utilizem práticas
tradicionais, reivindicam maior atenção do Estado na oferta de serviços médicos e no controle
do preço dos medicamentos industrializados. Para Neves (ibid.) a forma como estes atores
sociais , usuários de remédios caseiros, constroem seus discursos tem que ser qualificada e
contextualizada, sob pena de se atribuir externamente valores positivos e muito amplos ao
saber sobre o corpo e as doenças, em que tal prática se apóia, e cujos limites eles mesmos
reconhecem. Para a autora supracitada,

“O termo “medicina popular” só pode ser aceito se concordarmos com uma


interpretação evolucionista (cf. Foster, por exemplo) ou difusionista (cf. Boltanski)
para explicar a existência de práticas terapêuticas fundadas no conhecimento da
capacidade curativa de certas plantas, que os homens foram construindo em suas
experiências de enfrentamento como os problemas colocados pela doença. Se
pretendemos romper com essas perspectivas, também devemos abandonar o termo
medicina e, por isso mesmo, popular e a comparação destes atos terapêuticos com a
medicina (científica) como pressuposto de compreensão de suas especificidades.”
(Neves, ibid, p.11-12)

Concordando com Boltanski (1989), Neves (ibid., p.10) demonstra que as explicações
da biomedicina se apóiam numa única forma de conceber as relações de dominação, isto é, de
uma classe sobre a outra e desconhecendo e/ou não levando em consideração as formas de
dominação e as relações de poder que ocorrem entre segmentos e agentes de uma mesma
classe social. Atores sociais como os xamãs, curandeiros, benzedeiras, parteiras, pastores,
entre outros, ocupam um ‘espaço social’ dentro da ordem/classe e, portanto exercem um
poder dentro desta. Isso faz toda uma diferença quando se fala em população tradicional,
como também nas chamadas ‘classes populares’98.
De volta às relações de poder, Lévi- Strauss (1980, p.71) em Raça e História
argumenta que “longe de permanecer encerradas em si mesmas, todas as civilizações
reconhecem, uma após outra, a superioridade de uma delas (...)”. Esta “superioridade” da
civilização ocidental se impõe, na visão de Lévi-Strauss, por uma adesão ao gênero de vida
ocidental que se faz muito mais por “uma ausência de escolha” do que por uma “decisão
livre”. Para este autor:

“A civilização ocidental estabeleceu os seus soldados, suas feitorias, as suas


plantações e os seus missionários em todo o mundo; interveio, direta ou
indiretamente, na vida das populações de cor, revolucionou de alto a baixo o modo
tradicional de existência destas, quer impondo o seu, quer instaurando condições que

97
Cf. esta discussão no capítulo seguinte, demonstrada na visão dos nativos do Mamanguá.
98
Cf. Boltanski, 1989 e capítulo seguinte.
77

engendrariam o desmoronar dos quadros existentes sem os substituir por outra coisa.
Aos povos subjugados não restava se não aceitar as soluções de substituição que lhes
eram oferecidas ou, caso não estivessem dispostos a isso, esperar uma aproximação
suficiente para estarem em condições de os combaterem no mesmo campo.” (Lévi-
Strauss, 1980, p.72)

Lévi-Strauss (ibid.) demonstra que há um fenômeno chamado de universalização da


civilização ocidental, reconhecido também por Buchillet (1991), Cardoso (2002) e Araújo
(2002). Trata-se de uma tentativa de pasteurização dos saberes, técnicas e práticas
tradicionais, consideradas próprias da modernidade e pós-modernidade, convocando
resistências. Hall (2000) localiza este tempo atual preferindo a expressão modernidade tardia.
Nesta, segundo Hall (ibid), a humanidade vive concomitamente a pasteurização referida um
processo de revalorização das diferenças, num contexto social chamado de globalização.
Constituem-se novas identidades híbridas, assim como identidades locais que são reforçadas
por um fenômeno de resistência à globalização (Hall, ibid., p. 69).
A sociedade ocidental com seu o olhar vigilante99, servindo-se da biomedicina funda
conceitos universais para os seus “objetos de julgamento”. Muito embora estes “objetos”
sejam sutis e abstratos e completamente dependentes da cultura e do ethos de um povo. Estes
objetos podem ser reconhecidos em conceitos como: saúde, doença, diagnóstico, causalidade,
terapêutica ou eficácia e cura (Sá Xavier, 2000, 2003). Para entender melhor essa idéia,
Büchillet (1991, p.24) aponta que:

“As representações e as práticas relativas à doença e ao seu tratamento, objetos de


estudo da antropologia da doença, recobrem nas sociedades tradicionais, (...)
diferentes realidades em relação às ocidentais, realidades que se deixam dificilmente
apreender pela linha conceitual da biomedicina.” (Büchillet, 1991, p.24)

Büchillet (ibid.) prossegue demonstrando que na perspectiva ocidental a doença se


tornou a resultante de uma anomalia de estrutura e/ou de função de um órgão ou de um
sistema determinado, sendo que os sinais desta anomalia ou desta disfunção serão o signo,
como diria Foucault (2001) e Cangüilhem (2000), significantes da doença. Neste sentido, a
doença é pensada como similar entre os indivíduos (suporte da doença, corpo) e independente
do seu construto cultura/social/ambiental/econômico/político, dentro de quadros lineares de
evolução (Buchillet, ibid.). Numa provocação é possível refletir: se há uma anomalia, esta é
dependente de uma norma. Mas de que norma se fala? O que é normal? Normal ou patológico
para quem?

99
Uma alusão a Focault (1979).
78

De acordo com Cangüilhem (op.cit.)os ser humano como um ser vivo, reage a uma
doença, a uma lesão ou a uma infestação. Isso revela um fato fundamental :“(...) a vida não é
indiferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e por isso mesmo,
posição inconsciente de valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa”
(ibid., p.96). O autor explica que por ‘normativo’ a filosofia entende qualquer julgamento que
aprecie ou qualifique um fato em relação a uma norma, mas essa ‘forma de julgamento’ está
subordinada àquele que institui ‘à norma’. Sendo assim, embora a vida seja uma atividade
normativa, normativo também é o que institui a norma.
De acordo com o pensamento científico, é correto dizer que os humanos (homo
sapiens sapiens) são seres biológicos mas, que predominantemente são também seres sociais,
embebidos em cultura. A cultura vai lhes moldar a visão de mundo, suas imagens e
representações, sendo assim o sociocultural vai lhe dizer o que será normativo. O conceito de
cultura foi empreendido por Edward Tylor em 1871. O impacto deste conceito foi de extrema
importância para sua época, posto que definiu cultura como sendo algo aprendido,
independente de uma transmissão genética. Esse conceito fez cair o determinismo biológico e
geográfico, visto a excessiva simplicidade e fragilidade destes conceitos formados pela visão
iluminista. Completando, Alfred Kroeber em 1917, além de reafirmar o conceito de Tylor,
demonstrou como a cultura atua sobre o biológico no seu artigo “O Superorgânico”100 (Laraia,
2003, p.28). Para Laraia (ibid., p.37), não se pode ignorar que o homem seja membro da
ordem dos primatas e dependente do seu equipamento biológico, visto que para se manter
vivo ele terá que satisfazer suas necessidades básicas tais como: sono, alimentação,
respiração, atividade sexual entre outras. No entanto, embora essas funções comuns a toda a
humanidade, a maneira de satisfazê-las varia de uma cultura para outra101. Mas não é apenas
isto que nos torna diferentes dos outros primatas, o que verdadeiramente nos faz diferentes é a
nossa capacidade de acumular conhecimento e de transmiti-los aos nossos descendentes,
sempre aperfeiçoando102. Além do mais temos um equipamento biológico para viver mil
vidas, mas terminamos por viver apenas uma, diz Geertz (1989, p.57). Apesar de todas estas
considerações a biomedicina não inclui a reflexão antropológica sobre o humano nas questões
de saúde/doença/cura.

100
Neste artigo, Kroeber procura superar a confusão teórica da época entre orgânico e cultural (Laraia 2003,
p.37).
101
Cada cultura tem a sua própria forma de expressar a dor, a alegria, a tristeza, o familiar, o estranhamento,
entre outros.
102
A cultura é um processo dinâmico, mesmo nas tradicionais mais enraizadas ocorrem as mudanças, embora
lentas.
79

A normatividade segundo Cangüilhem (2000), indica que normal está diretamente


relacionado com o contexto do suporte da vida – o corpo do humano. Num intricado sistema
relacional este humano, através do seu suporte biológico dotado de cognição103, vai interagir
com outros corpos (humanos ou não) engendrando seu arcabouço sociocultural. Este
arcabouço será representado em sua visão de mundo. Concordamos com Geertz (1989)
quando diz que “este humano não é qualquer humano”. Neste caso o normal não tem
necessariamente referência precisa num sistema universal de valores. A idéia de “universais
culturais”, de acordo com Geertz (1989, p.50) não se sustenta. Esta caçada por uniformidades
empíricas é encontrada em todas as disciplinas, um esforço constante para relacionar tais
universais a partir das constantes encontradas na biologia, psicologia e organizações sociais
humanas. Esta idéia é apresentada como pretenso consensus gentium (um consenso de toda a
humanidade), uma verdadeira miragem científica que tornaria tudo mais simples.

“(...) a noção de que há algumas coisas sobre as quais todos os homens concordam
como corretas, reais, justas ou atrativas, e que de fato essas coisas são, portanto,
corretas, reais, justas ou atrativas – estava presente no iluminismo e esteve presente
também, em uma ou outra forma, em todas as eras e climas. É ela uma dessas idéias
que ocorrem a quase todos, mais cedo ou mais tarde.” (Geertz, 1989, p.50)

Este conceito provém do Iluminismo e é muito utilizado na visão biomédica;


coexistindo com o poder instituinte de uma determinada verdade no pensamento ocidental,
sempre numa transposição direta, sem relativizar. Para encerrar a questão do normativo de
Cangüilhem (ibid.), é apropriado repetir que é um dado cultural e não deve ser considerado
um conceito universal, dentro de uma escala de valores da visão ocidental (Sá Xavier, 2000).
Esses conceitos não são naturais para todo e qualquer homem. Os homens são diversos e
particulares, sendo mutáveis, mutantes; eles transformam o que tocam e o que foi tocado
também modifica este homem; agora um outro homem (numa releitura de Geertz, ibid., p.52).
Lévi-Strauss (1980, p.72) traduz claramente este suposto consensus gentium como algo
imposto, contrariando a idéia original de um pretenso consenso das formas de estar no mundo:
Lévi-Strauss aponta em Raça e História (1980) o etnocentrismo enraizado no
pensamento ocidental. Demonstra que há em todas as sociedades um saber acumulado, fruto
de investigação de uma verdadeira scientia104 que engendra práticas, táticas e técnicas.
Mesmo dentre os povos considerados “arcaicos” e “bárbaros” pela visão da civilização
dominante atual, há descobertas que mudaram os rumos da civilização planetária. O autor cita

103
Rico em imagens, signos e mitos.
104
Conhecimento, saber, informação. Do latim scientia: que tem ciência; saber, conhecer (Cunha 1998, p.182).
80

como exemplo a Revolução Neolítica, onde foram desenvolvidas técnicas e práticas tais
como: a agricultura, a criação do gado, a olaria, a tecelagem, entre outras. É possível creditar
por exemplo, no caso brasileiro, as tecnologias e saberes sobre as plantas utilizadas com fins
medicinais, os saberes sobre a manipulação de venenos de sapos, cobras, óleos vegetais, entre
outros inúmeros saberes que a ciência biomédica lança mão, sem nenhum constrangimento e
respeito (cf. Berta Ribeiro, 1987). No entanto esses saberes, como já foi dito aqui, são
desconsiderados e desqualificados como parciais, míticos, frutos da superstição, selvagens,
rústicos, populares, folk, tradicionais; enfim tudo o que não representa ciência e poder na
sociedade ocidental. O que parece estar em questão será mais um jogo de poder e força, muito
pouco preocupado com questões de solidariedades entre os saberes, sempre uma troca entre
desiguais (dessimetria).
Bruno Latour (1997) em seu livro “Vida de laboratório” demonstra abertamente que os
saberes oriundos da ciência ocidental, no caso a biomedicina, são também produção social.
Não sendo desprovida de agitação, conflitos, mitos, superstições e rituais adivinhatórios que
se assemelham em muito aos Azande de Evans- Pritchard (1978), em seu livro “Bruxaria,
oráculos e magias entre os Azande”. Afinal esta ciência será sempre um produto da mente,
precisamente de fatores cognitivos do neocórtex, embebidos em um caldo onde contam o
cultural/social/psicológico de seres humanos, misturados num pano de fundo geográfico,
histórico, relacional, que dá o tom da produção. Na representação mais precisa de Latour
(ibid.,p.21) será um “(...) sanduíche: uma deliciosa fatia de história das idéias entre duas fatias
de pão sociológico, às vezes um pouco dormido.”
Muito embora tudo o que foi dito seja do conhecimento científico, estão enclausurados
em departamentos que não tem como habitus105 manter uma solidariedade orgânica com
outras disciplinas. Nesse sentido Morin (2002, p.81) propõe uma religação entre os saberes,
buscando uma simetria possível entre os saberes, inclusive entre os desqualificados. Morin
(2002, p.62) focaliza que o desafio da complexidade se intensifica e se apresenta nos
processos da época planetária106. Este desafio envolve todos os domínios técnicos e
especializados dos conhecimentos compartimentalizados.

“De um lado, temos a inteligência tecnocrática, cega, incapaz de reconhecer o


sofrimento e a felicidade humana, o que vem causando tantos desperdícios, ruínas e
infelicidades e, de outro, a miopia alucinada do voltar-se para si mesmo. A resposta
só pode advir de uma reforma de pensamento que instituiria o princípio da religação,

105
Na idéia de Bourdieu (1989, p.62), implica numa disposição dos sujeitos, uma prática, uma estratégia.
106
O mesmo que globalização ou mundialização para outros.
81

ao reaproximar o que até o presente era concebido de forma disjunta e, às vezes,


repulsiva.”(Morin, 2002, p.62-63)

Para Morin (ibid.) é preciso perceber a multiplicidade que se encontra na unidade.


Para ver poder-se-ia usar a lente do “ethos mosaico” da teoria das estranhezas de Maluf
(2002). A realidade concreta é uma percepção, apenas uma tradução. Uma idéia está para
além de um mediador, colocando-se também como um filtro para a realidade (Morin, ibid.,
p.80).
É certo que as idéias aqui colocadas não são pacíficas para inúmeros pontos de vista.
Poder-se-ia pensar para amenizar os ânimos, em uma ecologia dos saberes como nos
demonstra Boaventura dos Souza Santos (2003b) em seu texto “Para uma sociologia das
ausências e uma sociologia das emergências”. Em ecologia dos saberes Souza (ibid.)
demonstra que:

“A primeira lógica, a lógica da monocultura do saber e do rigor científicos, tem de


ser questionada pela identificação de outros saberes e de outros critérios de rigor que
operam credivelmente em contextos e práticas sociais declarados não-existentes pela
razão metonímica. Essa credibilidade contextual deve ser considerada suficiente
para que o saber em causa tenha legitimidade para participar de debates
epistemológicos com outros saberes, nomeadamente com o saber científico. A ideia
central da sociologia das ausências neste domínio é que não há ignorância em geral
nem saber em geral. Toda a ignorância é ignorante de um certo saber e todo o saber
é a superação de uma ignorância particular”. (Santos, 2003b, p. 25).

Vê-se então que não é possível amenizar os ânimos pois, parece que o momento
planetário não é de calmaria. A razão pura guiou a humanidade, incluindo a biomedicina,.
Assim como a física de Newton não responde aos problemas da física quântica; o mundo
contemporâneo não encontra saídas nem respostas usando a razão pura de Descartes nem os
ideais do Iluminismo. Há um verdadeiro “buraco negro” dentro das ciências, para onde vão
todas as perguntas sem respostas.
Porém Santos (2003 a, b) propõe em sua proposta sociológica uma originalidade de
método apontando um caminho a seguir, a fim de resolver esses problemas contemporâneos.

“A sociologia das ausências exige neste domínio o exercício da imaginação


cartográfica, quer para ver em cada escala de representação não só o que ela mostra
mas também o que ela oculta, quer para lidar com mapas cognitivos que operam
simultaneamente com diferentes escalas, nomeadamente para detectar as
articulações locais/globais”. (Santos, 2003 b, p.18) [grifo adicionado]
82

A tradução faz parte do processo desse método, e visa esclarecer o que une e o que
separa os diferentes movimentos e as diferentes práticas de modo a determinar as
possibilidades e os limites da articulação ou agregação dos mesmos (Santos, 2003b, p.34).
Esta tradução, segundo este autor, é simultaneamente um trabalho intelectual e político. Como
também um trabalho emocional porque pressupõe o inconformismo perante uma carência
decorrente do caráter incompleto ou deficiente de um dado conhecimento ou de uma dada
prática.
Buscando respostas dentro da sociologia das ausências e das emergências este trabalho
de pesquisa faz uma tradução das representações simbólicas de saúde/doença/cura na
comunidade caiçara do Saco do Mamanguá, município de Paraty, RJ. A proposta de Santos
(ibid., p.38) legitima este trabalho de pesquisa quando diz que a

“(...) a biodiversidade é hoje uma zona de contacto imperial entre o conhecimento


biotecnológico e o conhecimento dos xamanes, médicos tradicionais ou curandeiros
em comunidades indígenas ou rurais da América Latina, África, Ásia e mesmo da
Europa. Os movimentos indígenas e os movimentos sociais transnacionais seus
aliados têm vindo a contestar essa zona de contacto e os poderes que a
constituem e a lutar pela construção de outras zonas de contacto não imperiais
onde as relações entre os diferentes saberes e práticas seja mais horizontal.”
(Santos, ibid., p. 38)[grifo adicionado]

Procuramos contribuir como mediadores para estabelecer um diálogo possível nos


princípios da tradução proposta por Santos (ibid.). A meta social poderá discutir esta
tradução entre as partes (saberes tradicionais de cura e saber biomédico) construindo uma
zona de contato não imperial, quer dizer, uma relação menos desigual e mais simétrica entre
saberes tão diferentes.

“O objectivo do trabalho de tradução é criar constelações de saberes e de práticas


suficientemente fortes para fornecer alternativas credíveis ao que hoje se designa por
globalização neoliberal e que não é mais do que um novo passo do capitalismo
global, no sentido de sujeitar a totalidade inesgotável do mundo à lógica mercantil.
Sabemos que nunca conseguirá atingir integralmente esse objectivo e essa é talvez a
única certeza que retiramos do colapso do projecto da modernidade. Isso, no entanto,
nada nos diz sobre se um mundo melhor é possível e que perfil terá.” (Santos,
2003b)
83

5 As representações simbólicas de saúde/doença/cura na comunidade do Saco do


Mamanguá.

“Vim em busca de anjos e não encontrei diabos:


encontrei seres humanos investidos com a grandeza e
a fragilidade, das quais, em maior ou menor grau,
jamais encontrei alguém despossuído
Vim em busca de paraíso e encontrei o planeta Terra.
Em resumo, feito um Lévi-Strauss, encontrei
apenas gente: sem idílio e sem romance...”
Marques (2001, p.18)

No momento deste trabalho de pesquisa, (re) apresento-lhes a comunidade do Saco do


Mamanguá como um estudo de caso, com a intenção de localizar a discussão empreendida
nos capítulos anteriores. Neste trabalho é evidenciado o aspecto de suas representações
simbólicas do processo saúde/doença/cura. No segundo capítulo fez-se reflexão encadeada
por vários autores sobre a categoria “população tradicional”, no capítulo seguinte há um foco
esclarecendo a categoria do dito “caiçara”, especificamente o do Saco do Mamanguá. Já no
quarto capítulo fez-se um ensaio de desconstrução para se discutir o modelo ocidental
construído em relação aos processos de saúde/doença/cura. O enfoque corrobora a idéia de
Michel Foucault (1979, 2001), nos alertando sobre as circunstâncias da construção do
modelo biomédico ocidental, afirmando que ele não foge ao contexto histórico permeado de
relações de poder, tanto político, quanto sociocultural e econômico. No caso da “arte de
curar” ou “saberes e práticas de cura” da dita “população tradicional”, os caiçaras do Saco do
Mamanguá, não há um único modelo a ser seguido. Estudos de autores como Araújo (1961),
Cândido (1979), Ribeiro (1987) e Holanda (2001) informam sobre uma “cultura rústica
brasileira”, dentro dela há uma “medicina rústica” que se apresenta como um conjunto de
84

estratégias e táticas107, subentendido os “saberes e práticas de cura”. Todavia há muitas


variantes que têm forte dependência do ethos cultural da comunidade e do sistema de
relações de forças108 que faz de um espaço o seu “próprio”.
Oliveira (2000) evidencia em seu artigo “construção dos saberes e práticas de grupos
populares” que há todo um sistema de redes de saberes e práticas de cura que são,
entretanto, consideradas “invisíveis” pela rede oficial biomédica. Estas redes de outros
saberes não seguem o modelo biomédico ocidental, visto no capítulo anterior, mas não estão
livres do jogo do poder local109. Este poder (que ordena o mundo comunitário) assume certa
visibilidade em seus aspectos político, sociocultural e inclusive econômico. Todavia não
obedece a lógica de uma rede econômica pensada no modelo do capital, mas sim numa
economia subjetiva, onde as trocas simbólicas obedecem à lógica da base sociológica local.
Não é o caso de aprofundar o assunto, mas se faz necessário lembrar Godelier (2001) num
estudo sobre “dom” (dádiva). Este autor nos informa que há um nítido contraste entre a
sociedade capitalista atual e outros tipos de sociedade, por ele denominado de “universos
sociais e mentais”. Godelier (ibid.) afirma que na sociedade capitalista a maior parte das
relações sociais se mostra impessoal, sendo que a troca das coisas e dos serviços passa
essencialmente por mercados anônimos, não deixando nenhum espaço para uma economia e
para uma moral do dom. Esse autor prossegue dizendo que “quando a maior parte das trocas
passa por um mercado e o valor dos bens e serviços se exprime em uma moeda universal, as
dívidas contratadas se anulam, as coisas compradas ficam em suas mãos” (Godelier, ibid.).
Dito em poucas palavras, o sentido dos objetos e serviços são apenas trocas sem “alma”,
nada une a nada pois não há o sentido moral de reciprocidade. Por isso Godelier (ibid.) nos
lembra que nas sociedades ditas tradicionais, sobreviventes nos interstícios de um mercado
globalizado,

“Os objetos se transformam em sujeitos e os sujeitos em objetos. Não são (apenas)


os seres humanos que agem uns sobre os outros, uns com os outros, por intermédio
das coisas; são as coisas, e os espíritos que as animam, que agem doravante sobre
elas mesmas, por intermédio dos humanos.” (Godelier, ibid., p.162)

107
Estas táticas devem ser entendidas como no pensamento de Michel de Certeau (1990:91).
108
Como também em Certeau (ibid., p.46).
109
No sentido focaultiano das ‘sociedades disciplinares’. Para Focault (2002, apud Chevitarese e Pedro, 2003,
p.3 ) as ações e práticas cotidianas em que poder, saber e corpo se cruzam produzem os sujeitos que somos e as
instituições e redes sociais que nos envolvem. Este formato social, Foucault chamou Sociedade Disciplinar.
85

O sentido de trocas entre objetos e serviços no mundo destes comunitários, figura


numa dimensão muito mais subjetiva e menos vinculada a uma estrutura capitalista. Cabe
lembrar a inclusão de forte argumentação sobre a relação de seres humanos, em estado de
comunidade (Moscovici, 1990, p.56), como os comunitários do Mamanguá, com esse
espaço110 e tudo o que está dentro dele. No centro deste processo relacional solidário faz-se
também um contraditório entre sistemas de objetos e sistema de ações estabelecendo no
espaço físico o “lugar”, o “próprio” de Certeau (1990). Coadunando com o pensamento de
Sodré (1988, p.18), para quem o espaço é sempre de existência e das relações de co-
existência, sendo “o que se opõe diretamente à existência é o mundo das essências, dos
conceitos puros, das estruturas abstratas”. Mas o espaço que também é orgânico (de vida, de
corpos e objetos), aparece como um dado necessário, uma base à formação da identidade
grupal/individual, ao reconhecimento de si por outros. Esse é o resultado de morar, morar
indicando identidade do grupo. Neste sentido, Sodré (ibid., p.22) diz que o grupo social (ver
o caso do Mamanguá111) vai deixando suas marcas simbólicas nas árvores, nos rios, no mar,
nas pedras, na terra. Porque o espaço/território/meio ambiente será o seu lugar, seu modo de
estar-no-mundo. Nesta cosmovisão a natureza é vista como (des)sacralizada,

“um lugar de encantamento ou um lugar ‘ativo’, tal como entendia Spinoza (na
Ética) ao falar de “natura naturans” (natureza naturante) e “natura naturata”
(natureza naturada). No primeiro caso, a natureza apresenta-se como divina e ativa,
em oposição a uma natureza passiva, puramente material”(Sodré, ibid., p.152)

Na acepção dessa natureza naturante (viva), Godelier (ibid., p.160-161) diz que

“(...) o universo inteiro não é mais composto senão de pessoas (humanas e não-
humanas) e de relações entre pessoas. O cosmos torna-se o prolongamento
antropomórfico dos homens e de suas sociedades. O indivíduo encontra-se ligado ao
universo inteiro, que o ultrapassa e que o contém e ultrapassa também a sua
sociedade. Mas, ao mesmo tempo e inversamente, o indivíduo contém em si mesmo,
de uma certa maneira, toda a sociedade e todo o cosmos. O microcosmo do
indivíduo contém o macrocosmo que o envolve e é, ao mesmo tempo, contido nele.
A parte é o Todo, o Todo está inteiro em cada uma de suas partes. Cada um, do
indivíduo e do cosmos, é como o espelho do outro e toda a ação sobre um deve agir
sobre o outro. O mundo inteiro, inclusive os homens, tornou-se “encantado”.

Neste cosmos antropomórfico de Godelier (ibid.) ou de seres bioantropomórficos na


acepção de Diegues (1996, p.54) e Morin (1999, p.195), poderá haver uma comunicação e

110
No entendimento de “espaço” enquanto um “espaço possível” somente enquanto abstração; um sistema
híbrido, um misto entre objeto e ações, entre o material e social (Santos, 1996)
111
Cf. Diegues e Nogara (1999)
86

comunhão entre seres humanos em estado de comunidade (Moscovici,1988, p.56) e o mundo


(material e imaterial). Neste estado, segundo Moscovici (ibid.) “a comunidade que nele se
encontra mergulhada inventa deuses e símbolos, ao mesmo tempo em que restaura a
confiança naqueles que já existem”. Por isso, como veremos mais adiante, um comunitário do
Mamanguá mergulhado neste “estado” pode sentir-se, como pertencendo à mesma categoria
que os outros “seres da natureza” e metamorfosear-se neles, ser possuído por eles, realizar o
seu comércio mágico e ritual com o universo dos espíritos, dos gênios, dos deuses, das
plantas, dos bichos e de todas as coisas (vivas e não-vivos). Não há dicotomia entre
natureza/cultura e sociedade/natureza pois, neste “estado” tudo tem vida dialógica e
dialética112. Veremos a seguir como este “comércio”, esta imbricação entre natureza e cultura
ocorre no Saco do Mamanguá.

5.1 Uma introdução ao método: um caminho para.

Como já foi dito, esse estudo foi empreendido junto aos comunitários do Saco do
Mamanguá, ditos caiçaras, reconhecidos em sua territorialização e ethos como “população
tradicional”. È importante esclarecer que embora empregue alguns autores como Oliveira
(2000), por exemplo, que utiliza a categoria “classes populares” para abordar suas
representações simbólicas, fica claro que estes comunitários não são considerados “classes
populares”. Inclusive esta categoria é tema clássico da Saúde Coletiva e corresponde
geralmente a população residente nas periferias das grandes cidades, diferenciando-se
inclusive da população rural (ou campesina da corrente antropológica francesa) como também
da População Tradicional (discutida no segundo capítulo). Entretanto o enfoque de Oliveira
(2000) cabe perfeitamente neste estudo, pois a autora emprega conceitos como “rede”,
“habitus” e “campo” (para os últimos ver Pierre Bourdieu, 1989), conceitos aplicáveis em
contextos diferentes das ditas “classes populares”.
Num convite, Oliveira (2000.) conduz o nosso olhar para além de um olhar
institucional hegemônico a fim de entender os processos de saúde/doença/cura. Neste sentido
a busca ocorre na perspectiva de valorar os acúmulos de experiências concretas de vida que
fazem parte da construção dos processos subjetivos e individuais, mas sempre culturais. Para
essa autora

112
Sobre isso ver Lévi-Strauss (1997, p.24) “(...) através desse agrupamentos de coisas e de seres, introduzir um
princípio de ordem no universo.”
87

“(...) a população busca alternativas a partir de suas lógicas de ação, e não apenas em
resposta às propostas desenvolvidas com ou sem sucesso pela lógica institucional
hegemônica dentro do modelo da biomedicina. Parece-nos que os caminhos
trilhados pela população não são apenas respostas, mas opções. Esses movimentos -
sutis e muitas vezes invisíveis - não podem ser considerados como propulsores de
mudanças estruturais, porém não podem ser qualificados apenas como frágeis, ou
pouco organizados e fragmentados.” (Oliveira, 2000)

Em acordo com Oliveira (op.cit.) penso que nestes saberes e práticas (senso comum
local) há a legitimidade dada pelo saber local, para falar como Geertz (1997, p.227),
considerado um artefato cultural. Com a finalidade de alcançar este artefato cultural foi sendo
construído um caminho (método) fundamentado em estratégias e táticas etnográficas. Esta
técnica me permitiu descrever o pensamento desse “mundo específico onde este pensamento
faz algum sentido” (Geertz, ibid.). A análise do artefato cultural recolhido tratou de considerar
a cognição, motivação, percepção, imaginação, memória (narrativas de vidas), as palavras
(incluindo como são articuladas), as instituições, os rituais, comportamentos e a emoções,
como “coisas sociais” da comunidade moradora no Saco do Mamanguá.
Para trazer a lembrança o cenário socioambiental, lembremo-nos que este único fiorde
nacional fica localizado ao sul do município de Paraty, próximo a localidade Paraty-Mirim.
Há cerca de 119 famílias de moradores e 21 casas de turistas, segundo levantamento de
Diegues e Nogara (1999) e confirmado pelo representante dos Artesões do Mamanguá. A
localidade é divida em Margem Continental, Fundo do Saco e Margem Peninsular,
representado na figura 12. A praia mais povoada é a do Cruzeiro (Peninsular) e lá também se
encontra o único Posto de Saúde do Mamanguá e sua única igreja católica em reconstrução. O
pesquisador Paulo Nogara (2003, em comunicação pessoal) informou-me que há cinco igrejas
pentecostais espalhadas por todo o Mamanguá, porém só consegui identificar quatro, sendo
duas no Baixio de Dentro, uma na Ponta da Romana e uma na Praia do Curupira.
Confirmando Diegues e Nogara (1999) constatei que os comunitários mais jovens moram na
parte Peninsular e os mais antigos moram no Fundo do Saco, sendo a Praia do Cruzeiro a
mais povoada. O Fundo do Saco é uma localidade onde se encontra um rico manguezal
substancialmente preservado, ladeado por uma faixa de caixetal (Tabebuia cassinoides).
88

Figura 12-Representação dos ambientes e do trajeto percorrido na pesquisa de campo.


89

Com a finalidade de cartografar as representações simbólicas saúde/doença/cura nesta


comunidade, buscou-se o enfoque qualitativo visto melhor trazer a dimensão sociocultural das
suas percepções em acordo com o tema. O método utilizado vem da antropologia
interpretativa chamada também de hermenêutica por Geertz (1997, p. 12-13). Segundo esse
autor esta é a tarefa de fazer “o entendimento do entendimento, usando a possibilidade
interpretativa para “construir um relato da estrutura imaginativa de uma sociedade”. Para tal
empreendimento foi utilizada o método etnográfico, sendo considerado parte do método a
gravação em fita cassete das entrevistas informais, fotos, observação participante e um diário
de campo. Esta etnografia propõe-se o “estudo do pensamento como este se apresenta no aqui
e agora” (Geertz,ibid., p.227). Este método foi pensado visto ampliar a análise sobre saúde de
população moradora em área de preservação, em sua relação sociedade/natureza. Cabe dizer
que o método etnográfico é recomendado por Minayo (2002, p.17) como também por Oliveira
(2000), pesquisadoras da Fiocruz-Ensp (Fundação Osvaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde
Pública):

Nesse sentido, parece-nos que a opção pelas análises em termos de redes, pode
contribuir como mediação metodológica à análise de um grupo social específico,
apontando para a organização interna desses grupos. Essa metodologia em
articulação com observação etnográfica/ observação participante e entrevista, seria
um elemento facilitador da apreensão das formas como se dão as relações
interpessoais concretas entre os indivíduos e suas trajetórias.” (Oliveira, 2000)
[grifo adicionado]

É preciso lembrar que embora adote principalmente um tom geertziano, esta etnografia
não dispensou os grandes autores clássicos como Malinowski (1976), Mauss (1974) Evans-
Pritchard (1978), Wright Mills (1965), Berger e Luckumann (2002) entre outros; nem tão
pouco os “manuais clássicos” revelados na leitura de Goldemberg (2001), Santos (2002), Eco
(1985), Orlandi (2003), Thiollent (1982) entre outros. Estes autores não serão citados
textualmente, mas estarão sempre por trás da construção da pesquisa.
90

5.2 Sobre o método etnográfico e as implicações do trabalho de campo

“Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um
manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas
e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas
com exemplos transitórios de comportamento modelado.” (Geertz, 1989, p.20)

“O meu trabalho é te traduzir”. Caetano Veloso

Usarei a idéia de um método como era usado pelos gregos, referido por Gonçalves
(1998, p.41). Para os gregos o método “significava caminho a ser seguido”. O método usado
buscou chegar a respostas para a pergunta: quais são as representações simbólicas de
saúde/doença/cura na comunidade do Saco do Mamanguá? Como todo método etnográfico,
este também é composto por trabalho de campo, observação participante, fotos (representação
do tempo congelado), gravação em fita dos diálogos e entrevistas e ainda um diário de campo
(com anotações dos dias empreendidos na comunidade, as sensações e percepções).
Entretanto afirmo que este caminho para só pode acorrer porque houve uma “relação”. E
assim um processo de relação se fez entre sujeitos (pesquisadora e comunidade), embora
pertencentes a universos culturais diferentes.
Foram feitas 20 entrevistas informais com o uso do gravador, e outras informações
foram resultados da observação participante, conversas (sem gravador) na comunidade, como
também nas viagens de barco e de ônibus. O trabalho de campo ocorreu ao longo de três
meses. A pesquisa não foi aleatória, procurei entrevistar os especialistas (benzedeiras,
rezadeiras, pessoas que conheciam plantas com fins medicinais e parteiras) na comunidade,
indicados pelos próprios atores locais. Também procurei os comunitários mais antigos do
lugar, aqueles que pudessem ter uma narrativa de vida (um tempo memória) que contribuísse
para um melhor entendimento dos processos saúde/doença/cura local.
Num primeiro momento um questionário foi pensado, mas a idéia foi abortada logo
nos primeiros contatos, visto receber um conselho de uma informante do Baixio de Dentro.
Esta me relatou a seguinte história recente: um professor enviava todo período letivo uma
turma de alunos para entrevistar os comunitários do Mamanguá. Os alunos eram bem
recebidos na comunidade porém, este professor e os seus alunos não tiveram o cuidado de
mudar o conteúdo do questionário (fechado). As perguntas tornaram-se tediosas,
conseqüentemente importunas, isso foi irritando os moradores do lugar. Estes então
91

resolveram dar um fim no trabalho e, segundo minha informante, “colocar pra correr” os
alunos, sendo que para tanto usaram pedras.
Diante desse fato relatado, mudei toda a minha estratégia de entrevista e passei a fazer
uma conversa informal, sem ir direto ao assunto, deixando que falassem. Entretanto havia
uma linha mestra na conversa, procurando não perder o sentido da pesquisa. Usando de certo
“poder de pesquisador”113 , fazia com que assunto transcorresse sobre os processos de
saúde/doença/cura. O tema abordado nas conversas dependia gênero do informante e da
idade. Se mulher, maior de 25 anos eu perguntava sobre os filhos, suas principais doenças,
aspectos epidemiológicos (etiologia, tratamento e cura), parto, o pós-parto, parteira, doenças
da infância (suas e da família) e doenças recentes. Se fosse homem maior de 30 anos, a
conversa era mais formal, sem entrar muito em detalhes íntimos visto o rigor moral na
relação entre gêneros na comunidade. Geralmente a entrevista se passava próximo à esposa e
esta também participava. Nas entrevistas com menores de 25 anos, a conversa era menos lenta
e as perguntas mais diretivas pois a abertura para um diálogo na geração jovem foi maior,
conquanto tivessem menos experiência de vida (havendo exceções). Embora meus
informantes preferenciais na comunidade fossem homens e mulheres acima de 25 anos,
ocorreu uma entrevista diferencial com um jovem comunitário114. Este rapaz se mostrou
conhecedor de todos os problemas políticos, ambientais, econômicos e da saúde do lugar, se
expressando com clareza e desenvoltura. Como um excelente informante em todos os
aspectos, foi quem demonstrou numa figura sobre o Saco do Mamanguá, o nome de cada
praia, rio e acidente geográfico, sendo que estava para concorrer como representante da
AMAM.
As crianças foram grandes companheiras, seja à noite vendo novela na casa da agente
de saúde local (uma das poucas que tinha televisão), nas conversas em volta da fogueira na
praia, pela manhã ou à tarde no “barco da escola” e nas andanças, por toda parte sempre havia
uma delas ao meu lado. Sempre alegres se mostraram vivas, interessadas e curiosas,
certamente foram as que primeiro abriram caminho na comunidade através do sorriso. Elas
favoreceram-me a oportunidade de fazer observação participante, para melhor produzir a
interpretação do modus vivendi na comunidade (ver figura 13).

113
A alteridade resiste na relação subjetiva entre pesquisador e pesquisado. Independe da vontade, estará
contida nos gestos, na posse dos objetos da pesquisa, nos hábitos de comer, andar, falar. Não há como escapar
desses pequenos gestos de dominação, frutos da relação social desigual e hierarquizada, este é o desafio do
pesquisador ( Zaluar Guimarães, 1975).
114
Um rapaz com certa posição de destaque político na comunidade, filho de uma dos moradores mais antigos
do lugar.
92

Figura 13- Crianças no barco do Sr. Alécio, transporta crianças para a Escola. (Foto: Sá
Xavier, agosto/2003)

Os mais velhos foram os informantes mais sábios com quem já conversei, na minha
interpretação. Pareceu-me que envelhecer no Mamanguá é privilégio, pois ainda se tem o
reconhecimento de certa autoridade que só o tempo dá. Ao mesmo tempo, a velhice parece
uma penúria, pois não se tem um atendimento médico com facilidade e a locomoção para
Paraty e mesmo para o Posto na Praia do Cruzeiro é tarefa penosa para a maioria. Nesse
sentido, tudo se torna fator complicador. Há de se contar sempre com a solidariedade dos mais
jovens, e ainda bem que esta não lhes falta.
A maior dificuldade encontrada no trabalho de campo foi com a equipe do Posto de
Saúde do Mamanguá. Ocorreu que num primeiro momento parecia que havia colaboração,
mas num segundo momento houve um estranhamento (um não entendimento) sobre aspectos
da pesquisa, sendo que o equívoco somente foi desfeito após uma conversa esclarecedora com
o Secretário de Saúde do Município.
Outro grande problema foi o aspecto logístico: alto preço do transporte de barco de
Paraty ou Parati-Mirin para Mamanguá; dificuldade de alojamento (não há hotel, pousada ou
camping no Mamanguá.) ficando o pesquisador dependente da solidariedade dos
comunitários. Também nas travessias de um lado para o outro do Saco se depende muito mais
de uma rede de solidariedade (onde o que vale são as trocas simbólicas) do que de dinheiro
93

em espécie. Não é a todo o momento que se encontra barco para atravessar, apenas o barco do
Sr Licínio e do Sr. Alécio fazem a travessia pela manhã e à tardinha, em horários fixos. Se
perdesse o horário de um dos barcos, não havia como ir ou voltar (ver figura 14).

Figura 14- Barco do Sr. Alécio fazendo o transporte das


crianças e funcionária para a Escola, pela manhã.(Foto:
Sá Xavier, agosto/2003)
94

5.3 A chegança

“Imagine-se de repente desembarcado, rodeado por todo o seu equipamento, só,


numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, enquanto a lancha ou bote que o
trouxe se afasta até desaparecer no horizonte. (...) Imagine, além disso, que você é
um principiante, sem experiência anterior, sem nada que o oriente e ninguém para
ajudá-lo” Malinowski (1976, p.19)

Chegar numa comunidade não é tarefa das mais fáceis e por isso esse momento se
tornou complexo. Embora eu conhecesse todo o aspecto histórico e socioambiental da região,
não conhecia pessoalmente nenhum comunitário. As primeiras informações sobre possíveis
contatos se deram em dezembro de 2002, em Paraty, através do pesquisador Paulo Nogara.
Este cedeu os nomes e a localização das pessoas que poderiam ajudar-me na comunidade.
Foram três nomes indicados por ele: duas agentes comunitárias de saúde, Sueli e Rute e o
representante da Associação dos Moradores e Amigos do Mamanguá (AMAM), Alecir. Sueli
é moradora da Praia do Cruzeiro, local do Posto de Saúde, a Rute é moradora da Praia
Grande. Alecir não tem residência fixa (ora está em Paraty, ora na cidade do Rio de Janeiro,
segundo meus informantes) e todas as tentativas de encontrá-lo fracassaram.
No dia 23 de junho de 2003 parti de Parati-Mirim para Mamanguá em direção a Praia
do Cruzeiro com uma apresentação por escrito da médica do Posto de Saúde do Mamanguá,
para Sueli (agente de saúde). É bom ressaltar que em Parati-Mirim não há cais e os barcos
menores ancoram numa prainha mais abrigada no canto direito. Lá se pode encontrar barcos
que fazem a travessia (principalmente nos fins de semana, quando chegam os turistas).
Geralmente estão chegando ou saindo e onde se negocia o preço do embarque. Demorei cerca
de dois meses para “descobrir” que o barco do Sr. Licínio passa por ali todos os dias (exceto
feriados e fins de semana) às 13 horas para levar as crianças que estudam em Paraty de volta
para o Mamanguá. No último mês de pesquisa contei com a colaboração do Sr. Licínio e do
Sr. Alécio para a travessia, além de outros moradores.
Sr. Luiz (com seu barco Lulucão), morador da Praia do Engenho, levou-me até a casa
de Sueli. No barco fui conversando com o Sr. Luiz, que foi mostrando na paisagem os nomes
das praias e suas “marcas”. Inclusive apontando as casas dos turistas, distinguindo das casas
da “gente do lugar”. Ele foi o primeiro comunitário a quem perguntei como se chamavam
entre si. Ele me disse: gente do “lugar”, e não caiçaras. Caiçara é como os chamam os outros,
que não são do Mamanguá, principalmente os moradores de Paraty.
95

Chegando na Praia do Cruzeiro fui procurar a agente de saúde. Sua casa se distingue
das outras, pois é bem cuidada e fica bem no centro da localidade. Esta senhora nos (a mim e
ao meu companheiro) recebeu muito bem, e depois de um almoço combinamos uma forma
que ela pudesse me ajudar a fazer a pesquisa. Nos primeiros dias fiquei hospedada em sua
casa, provisoriamente. Como não havia nenhuma outra forma de hospedagem por ali, resolvi
que seria melhor ficar acampada em um terreno próximo, entre a sua casa e o caminho para o
Posto de Saúde. Dona Dalvina, sogra do dono da posse do terreno me permitiu acampar ali,
sendo que continuei fazendo as refeições e utilizando o sanitário da casa da agente de saúde.
Nos primeiros dias que se seguiram, armei a barraca e comecei estabelecer os primeiros
contatos com os comunitários, deixando que todos me vissem, e me apresentei nas casas
comunicando que estaria fazendo a pesquisa (ver figuras 15 a 19, uma representação do
cotidiano dos comunitários).

Figura 15 – Comunidade da Praia do Cruzeiro,


pai com os filhos no conserto de uma rede de
pesca (Foto: Sá Xavier, junho/ 2003)
96

Figura 16 - Uma família da comunidade


do Baixio. (Foto: Sá Xavier, junho/2003)

Figura 17- Artesão do Baixio no


trabalho com a caixeta. (Foto: Sá
Xavier, junho/2003)
97

Figura 18 – Dona Nézia, merendeira,


cuidando da horta da Escola. (Foto: Sá
Xavier, agosto/2003)

Figura 19- Família de artesãos do Fundo do Saco. (Foto: Sá Xavier,


agosto/2003.
98

5.4 Representações de saúde/ doença/ cura.

A categoria “doenças” (ou mal –estar) está sempre em oposição a “saúde” (ou bem-
estar). A doença no Mamanguá é pensada como algo que vem de fora e por algum motivo se
estabelece no corpo da pessoa causando um desequilíbrio. Este desequilíbrio atinge a família
e a comunidade em graus que variam de leve até muito forte. A cura sobrevém do
restabelecimento do equilíbrio perdido.
Para Foster (1976, apud Greco Rodrigues, 2001, p.132) há dois tipos de classificação
no que ele chama de “medicina popular”115. Para tal diferenciação ele tomou como base a
explicação que cada grupo cultural dá para a origem das suas doenças. Conforme a
interpretação predominante ele denominou as classificações de personalísticas e
naturalísticas. Os tipos personalísticos referem-se a quando a doença é pensada como tendo
sua origem no universo mágico-religioso onde o individuo é vítima (por exemplo o mal-
olhado, o quebrante ). Já o tipo naturalístico indica que a doença é compreendida como tendo
sua origem nas forças naturais (como vento virado ou ventre virado, catarro sufocante, zipela,
sarampo, entre outros). Na qual o indivíduo não é vítima, mas agente de sua doença (como
relacionado a algo que ele comeu, a onde esteve). Entretanto, é possível concordar com Greco
Rodrigues (ibid., p.133) quando diz que estes sistemas não são puros, podendo haver
inclusive uma imbricação dos mesmos. Tal imbricação mormente ocorre na terapêutica
empreendida pelos comunitários que utilizam rituais mágicos-religiosos para doenças
consideradas naturalísticas. No Mamanguá isso ocorre. Observamos tal imbricação entre
doenças naturalísticas tratadas por métodos personalísticos, pois doenças compreendidas
como naturalísticas (vento-virado, zipela, entre outras) de acordo com esta classificação de
Foster, tem uma forma ritual de cura envolvendo aspectos mágicos-religiosos (benzimentos).
Geralmente no Mamanguá “para tudo há uma explicação”, incluindo aí a doença.
Sempre se procura estabelecer uma lógica (naturalística e/ou personalística) que dê conta de
organizar e dar sentido ao mal-estar. Este modo de organizar e dar sentido aos processos de
saúde/doença/cura é o saber cultural local. Cabe a este saber, trazer de volta o equilíbrio
estabelecendo um tratamento a fim de chegar a uma cura (restabelecendo o bem-estar, a
saúde). A única doença que não encontra uma lógica no Mamanguá116 é o câncer, pois ele não
encontra um sentido na cosmovisão destes comunitários (muitas vezes não dá dor e quando

115
Embora essa não seja considerada classes populares como já disse, resolvi colocar esta classificação por
entender que é uma forma de entendimento e há outras.
116
Dentro das categorias que pude identificar como adoecimento.
99

aparece já é tarde para tratamento). Percebi no trabalho etnográfico que estes comunitários
não tem o sentimento judaico-cristão de culpa117 em relação aos processos saúde/doença/cura,
pois eles não fazem referência às doenças como um castigo divino. Nessa comunidade (como
também nos estudos de Araújo, 2002), os processos de saúde/doença/cura são considerados
ciclos “naturais” da vida (com exceção do quebrante e mal olhado118), e tanto é assim que
sarampo, caxumba, coqueluche e tosse comprida não são chamados de doença. São
consideradas como que parte do ciclo natural da primeira infância. Fazem parte dela e as
crianças têm que ter, um dia ou outro119. Em razão disso, táticas e estratégias de tratamento
foram sendo construídas e aperfeiçoadas a fim de atenuar esses processos dessas fases e/ou
ciclos da vida, já que não era possível evitar.

Antigamente... antigamente não tinha esse negócio de tanta doença que tem hoje em
dia né? Esse negócio de câncer nunca vi falar... nunca ouvia minha mãe falá nessa
doença. Derrame antes... sabe o que se chamava derrame... era .... “mal ou vento”
que passava na pessoa, a pessoa ficava toda assim abobada... aí corria lá... Fazia chá
de alho, né? Pegava um dente da onça do lado esquerdo, pegava um dente de
alho, pegava uma semente do ‘garapubú’, uma madeira que tem no mato, que
tem uma semente. Aí fazia um “breve” e botava no pescoço prá doença nunca
mais dá...!! sabe como é que é? Prá doença não dá mais na pessoa...(Mulher, 55
anos, Praia do Cruzeiro)

Morria era de velhiça...e às vezes alguma, que acho que já tinha mesmo de
morrer... era de parto.... ouvi falar de umas três mulhé que morreram aí de
parto... Mas a não ser isso não...morria é de velhiça mesmo ! O pessoal ficava
velhinho, não tinha mais como, tinha que morre mesmo! (Mulher, 55 anos, Praia
do Cruzeiro)

Dentro do entendimento do que seja o processo saúde/doença/cura no Mamanguá, este


pode ser entendido como um confronto diário do indivíduo com a vida. Ter saúde é ter uma
vida cotidiana sem transtornos, porque difícil e dura a vida é, mas deve-se ter um corpo forte
para enfrentá-la. Meus interlocutores disseram que alguns (independente da faixa etária)
passam pelo frio, pelo calor, pelos alimentos carregados, reimosos ou bravos e não sentem
nada. Outros são mais frágeis ou se encontram em estados liminares (ver adiante) e por
qualquer coisa estão adoentados. Segundo um sábio informante, é da natureza da pessoa
resistir às intempéries da vida. Pode-se dizer então que as pessoas (como as coisas) são
entendidas como na teoria hipocrática, como naturezas (fraco e forte). Mas também como

117
Têm como “fé” o cristianismo, que se divide entre católicos e crentes.
118
Aí tem a culpa, mas de uma alteridade (do outro) e não culpa do próprio doente.
119
Isso mudou com a chegada da vacinação em massa, pois sabem que se ocorrer , o sarampo p.ex., ele será
brando, dispensando aqueles cuidados tradicionais.
100

tudo no Mamanguá é dinâmico, como o vento que entra no fiorde, essa natureza pode variar
de acordo com a fase da vida .

Ali no Sono, tem um senhor lá no Sono que se chama de “Nilo”! falou ele que tá
com uns 82 anos! Ele vem do Sono para Paraty ou melhor, do Sono para Laranjeiras
a pé! Vai da Laranjeira pro Sono! Leva “carga”... uma cargazinha mais ou menos
que pode carrega! Ele come ‘touicinho’ de porco, come ‘carne de porco’, come
‘lombo”, come tudo com feijão, e nada faz mal ele!!Isso é da “natureza” né? Isso é
da natureza perfeita!! Então pela idade que ele tá com 82 anos conforme ele
falou...é uma grande coisa né? (Homem, 77 anos, Baixio) [grifo adicionado]

Tem criança aí que vive no frio e não altera nada não! [ênfase] É forte, sempre
forte...mas tem algum que parece que o organismo da criança já é mais fraco.
(Mulher, 57 anos, Praia do Cruzeiro)

(...) a doença muitas vezes vem pelo tempo, muitas vezes vem pela ‘natureza’ da
pessoa. Deve de ser uma coisa assim. (...) Porque antigamente, tinha pessoa aí, que
morria com 100 ano, cento e tantos anos e tinha uma saúde perfeita! Eu conheci
alguma pessoa aqui, dentro daqui“do lugar”, e era velhinho – vai ali do Rio Grande
– tinha um homem chamado ‘Seu Luiz’...aquele homem era velhinho! Era um
homem baixinho assim, mas era velhinho!! Aquele homem não tinha uma
‘enfermidade’ que fosse!!! Nunca tomou remédio pra pressão, nunca tinha ... nada,
nada nada!! O sujeito morreu de ‘velho’!

A cura sobrevém depois de uma luta intensa dessas naturezas120 em busca do equilíbrio
perdido. Nessa luta pelo equilíbrio vale muito os cuidados das benzedeiras, dos chás, das
simpatias, dos remédios do mato, da farmácia e os cuidados médicos. Este último têm pouco
crédito, principalmente para os mais velhos. Mas para os meus informantes, sejam católicos ou
crentes, o que cura mesmo é a fé. A eficácia simbólica (Lévi-Strauss, 1975, p.215) é que cura.

Mas... eu tô resfriada aí... Fiz um chá de capim cidrão, bem quentinho... tomei um .
Botei um pouco de açúcar no meio... Olha... já tá melhorando bem!! Eu vou lá... ta
comprando xarope... lá tá cheio de xarope lá... a gente toma tá do mesmo jeito!! Que
adianta? Que é prá tá atrás de médico, ficá gastando dinheiro? (Mulher, 55 anos,
Praia do Cruzeiro)

Vento e chuva, e se eu correr , é pra correr pra onde? Aí eu corri prá casa do meu tio
ali na frente, ele fez uma oração, foi na hora! Minha filha voltou com vida! Então,
por isso, quando os meus filhos tão doente, primeira coisa que eu faço é correr pra
Igreja! Pedi uma oração, né? Porque “nada mais” do que o meu Deus né? (Mulher,
35, Baixio)

A emoção dessa senhora foi muito grande ao narrar este acontecimento de sua vida,
demonstrando toda a força da fé de seu filho de apenas 4 anos de idade, acometido de
paralisia infantil:

120
Dessa natureza humana de cada um, com as outras naturezas (dos alimentos, do tempo, dos bichos, dos outros
homens, entre outros).
101

Aí eu fui, de manhã, levantei, fui prá lá, dei café a ele. Tomou café, aí botei, tinha
uma cama assim perto da janela assim, e eu lavando roupa. Ele foi e olhou prá mim
e disse: mãe, eu vou andá! Eu não acreditei! Eu disse, meu filho, seja o que Deus
quiser! Ele foi levantou na janela, assim seguro assim na janela, levantou um
pouquinho e já sentou. Graças a Deus!! [ênfase] Agradeci a Ele né! Aí ficou.
Quando foi no outro dia, ele disse, mãe eu vou andá, eu vou andá! Eu disse: anda
meu filho, em nome de Deus você anda! Né? Ele alevantou! (Mulher, 59 anos,
Praia Grande)

Neste caso a eficiência da carga simbólica operou uma transformação orgânica. A


eficácia simbólica, segundo Lévi-Strauss (ibid., p. 233) tem valor terapêutico (como a
psicanálise) pois atua como “propriedade indutora” de processos psíquicos inconscientes e
orgânicos, levando a cura. Hoje o menino é um rapaz forte, como informou sua mãe e
trabalha como guarda no município de Paraty

5.4.1- As categorias de doenças.

No Mamanguá as doenças são classificadas por categorias. Para um melhor


entendimento fiz classificações éticas das categorias êmicas (ver Geertz, 1999, p.87). As
doenças estão divididas basicamente em doenças que “médico não cura” ou “não conhece” e
“doenças que não tratamos”. Há também um híbrido, onde a etiologia da doença é conhecida
e têm saberes e práticas de cura, mesmo assim recorrem tanto aos especialistas da comunidade
com benzimentos, simpatias e chás como também ao especialista médico do posto de saúde.
As doenças que “médico não cura” ou “não conhece” geralmente são diagnosticadas
primeiro pelos familiares e estes recorrem aos especialistas da comunidade. Se o caso for
menos grave (a doença varia de menos grave até a mais grave), a própria família se encarrega
do tratamento através de uma simpatia ou uso de chás (ensinado pelo familiar mais velho),
oração se for católico ou voto se for “crente”. Esta categoria crente é bastante recorrente nas
comunidades da Ponta da Romana, Baixio de Dentro e Curupira. Em todas as localidades
visitadas há igrejas pentecostais, sendo que recebem o “pastor” para o “culto” pelo menos
uma vez por semana. Há uma diferença no tratamento das doenças pela lógica dos católicos e
pela lógica dos crentes. Os católicos usam simpatias, oração e benzimentos. Todos os
informantes de todas as localidades do Mamanguá descreveram as mesmas categorias de
doenças, embora apenas os mais antigos (velhos) informaram como é a etiologia, tratamento e
cura. Os crentes também conhecem as categorias das “doenças do lugar”, bem como os
saberes e práticas de cura. Entretanto preferem utilizar o “voto” e a oração do “pastor, ou
102

qualquer outro “irmão” da igreja considerado com “força da fé” e não buscam os benzimentos
nem simpatias, apenas os chás.
As categorias de doenças que os comunitários em geral dizem que “médico não cura”
ou “não conhece” são assim chamadas: aguado, olhado, doença de criança (do preto, do
branco e do vermelho) ou fogo bravo, quebrante, vento virado, espinhela caída, catarro
sufocante.
As doenças que considerei híbridas (como já dito anteriormente, podem tanto ser
tratadas pelos especialistas da comunidade, pela família como pelo médico do posto de saúde
do lugar ou do município), são assim denominadas: cobreiro, izipa, impige ou aipinge, vermes
e lombrigas, gripe ou resfriado, mal de umbigo ou mal dos sete dias, tosse comprida.
Há uma singularidade interessante no “lugar, o sarampo, a caxumba a coqueluche e a
catapora são consideradas “normais da infância”. Quando perguntados se os filhos tiveram
alguma doença neste período, meus informantes responderam com uma negativa,
complementando que suas crianças sempre foram saudáveis. Todas os informantes maiores de
35 anos tiveram a mesma resposta. Os mais jovens tomam a vacina, sendo que mesmo
ocorrendo um sarampo “leve”, não o consideram “doença”. Embora tenha havido mortalidade
infantil em conseqüência do que consideramos/classificamos como “doenças infecto-
contagiosas” no passado próximo, penso que faziam parte de uma certa passagem ritual da
primeira infância. Sarampo, caxumba, catapora, coqueluche eram toleradas como
desconforto, mas não exatamente como “doenças”. Após a cobertura vacinal não apresentam
mais estes desconfortos, relatou-me os informantes.
Há também as doenças em que (re) conhecem a etiologia e também o tratamento, mas
o especialista nestes casos será sempre um médico oficial, seja do Posto de Saúde local, seja
de Paraty ou de Ubatuba, as cidades mais próximas.. Isso, no entanto, não os impede de
utilizar algum paliativo caseiro (em geral plantas com fins medicinais) antes de procurar o
médico. Essas doenças são nominadas: vertigem (labirintite), pressão alta, alergia( elergia),
doença de tireóide, vista cansada, passamento ou acabamento (menopausa), diabetes,
escorrimento (“doença de mulher”), hepatite, leishmaniose.
Existem ainda na comunidade do Saco do Mamanguá, algumas categorias que não são
consideradas “doenças”, mas como nestes casos os atores estão em um estado de
liminaridade121 (Motta-Maués, 1993, p.X), recebem um tratamento especial. Este

121
Relativo a, ou que constitui um limiar ou passagem; condição caracterizada por relativa e temporária
indefinição da situação de um indivíduo, que antecede ou acompanha sua passagem a uma nova categoria ou
posição social. (Ferreira,1999, p.1214). Este estado liminar é considerado como estado de margem por Van
103

“tratamento” revela uma representação simbólica muito rica e situam-se como rituais de
passagem, dando visibilidade ao forte ethos local. Essas categorias foram assim nominadas:
gravidez, parto, resguardo e seus interditos e velhiça (velhice), e constituem os estados
liminares do ciclo da vida (nascimento) e morte (velhice), densos em simbologia122.
Como neste trabalho de pesquisa não há margem de tempo para uma reflexão mais
profunda de todas as categorias referidas, concentrei-me nas que se apresentaram como mais
significativas. São as que melhor demonstram, na atual interpretação, a singularidade desses
atores sociais. Como os tratamentos, saberes e práticas fazem parte do ritual de passagem do
processo saúde/doença/cura, também falarei dos tratamentos mais expressivos exposto no
quadro 1.

Quadro 1- Síntese de todas as categorias de doenças e estados liminares que requerem


cuidados no Saco do Mamanguá.
aguado, olhado, doença de criança (do preto, do branco e do vermelho) ou
Doenças que “médico não cura” fogo bravo, quebranto, vento virado, espinhela caída, catarro sufocante.

Doenças híbridas cobreiro, izipa, impige ou aipinge, vermes e lombrigas, gripe ou resfriado,
mal de umbigo ou mal dos sete dias, tosse comprida.
vertigem (labirintite), pressão alta, elergia (alergia), doença de tireóide, vista
Doenças tratadas pelo médico cansada, passamento ou acabamento (menopausa), diabetes, escorrimento
(“doença de mulher”), hepatite, leishmaniose.
Rituais de passagem e/ou
Gravidez (e seus interditos), parto, resguardo (e seus interditos) e velhice
estados liminares (velhiça).

As categorias de doenças abordadas na primeira parte serão as “doenças que médico


não cura”: aguado, olhado, quebranto, vento virado, doença de criança (‘do preto’, ‘do
branco’ e ‘do vermelho’) ou fogo bravo, espinhela caída, e catarro sufocante

5.4.2 As doenças da infância e da fase adulta que “médico não cura”: etiologia,
tratamento, cura.

A infância é percebida na comunidade como um estágio de certa liminaridade, de


fragilidade. Essa categoria de doença é avaliada geralmente pela mãe, que comunica ao
marido o fato. Este participa do processo de cura, não é alheio, mas é a mãe quem fica
incumbida dos primeiros procedimentos e cuidados. Isso ocorre pela própria divisão do

Gennep (1978, p.31) em “Os ritos de passagem”. Sobre isso ver também Victor Turner (1974) em “O processo
ritual”.
122
Sobre imagens e símbolos, ver especialmente Eliade (1991, p. 176)
104

trabalho nesta comunidade. Na figura 20 uma representação da divisão de trabalho que


começa muito cedo na comunidade.

Figura 20 – Adolescentes e crianças pescando na Praia do Cruzeiro. (Foto: Sá Xavier,


julho/2003)

Na divisão de ocupações que organizam a vida comunitária no Mamanguá, o homem


trabalha geralmente no mar, embarcado nas muitas traineiras, ficando muitos dias fora de
casa. No “tempo antigo”, na linguagem dos comunitários, ele cuidava da roça e da pesca. À
mulher cabe cuidar da alimentação, dos cuidados com saúde e educação dos filhos, além de
cuidar dos afazeres da casa. Muitas delas trabalham também como domésticas nas casas dos
veranistas/turistas. No “tempo antigo” as mulheres tinham as mesmas obrigações, além de
também de trabalharem123 “na roça”, quando os filhos estavam mais crescidos. Quando o
homem não trabalha “embarcado”, é costume trabalhar como caseiro, o que faz com que
participe mais da educação e cuidados dos filhos. Mas, em geral, os cuidados com a saúde,
nessa comunidade, cabem à mulher. Geralmente ela conta com a ajuda da mãe ou da sogra
para tal tarefa. Na comunidade há os especialistas em saúde – as rezadeiras ou benzedeiras –
que são sempre procuradas nos casos de doenças de criança. Segundo meus interlocutores,
essa especialidade está se acabando porque as mães mais jovens já não procuram mais esse
tratamento, desconsiderando o saber local e preferindo levar os filhos ao médico na cidade.

123
Sobre isso é interessante observar o discurso sobre a categoria trabalho. Quando trabalham fora da moradia,
as mulheres “ajudam”, e os homens efetivamente “trabalham”. São as divisões do gênero em relação ao trabalho
que definem o que é lugar de homem, o que é lugar de mulher. (ver Motta-Maués,1993)
105

As categorias de “doença de criança” e que “médico não cura” têm denominação


específica: aguado, olhado, doença de criança (do preto, do branco e do vermelho) ou fogo
bravo, quebrante, vento virado, espinhela caída, catarro sufocante. Essas duas últimas também
acometem adultos, mas como as outras doenças de criança, são classificadas como “os
médicos não sabem o que é” (visto no quadro 1). Na figura 21 uma representação do cotidiano
de crianças no Baixio.

Figura 21- Adolescente e crianças do Baixio.(Foto: Sá Xavier, julho/2003)


106

5.4.2.1 Aguado

Todos os informantes relataram que só criança pequena “água” (por pequena me


pareceu ser de 1 a 5 anos). Quando esta criança vê algum adulto ou mesmo uma criança maior
que ela comer algo, ela fica com vontade de comer e não come, por isso fica “aguado” (os
vermes dentro da criança é que “aguam”). Os sintomas aparecem como vômito, a criança fica
mole, não se alimenta, dá diarréia e vai perdendo peso. Não há benzimento para o aguado. O
tratamento é feito através de dois rituais de simpatia. O primeiro ritual consiste em pedir um
pouco de alimento do almoço ou jantar, em casas em que morem mulheres chamadas Marias
(uma informante disse nove). O ritual é chamado”casa de sete Marias”. Junta-se todos os
alimentos recebidos de cada uma das sete casas em um prato e dá-se para o aguado comer
pelo menos uma colher dessa mistura. O que não for comido deve ser enterrado para que
nenhum cachorro coma. Esse procedimento deve ser feito durante sete dias seguidos. Após
isso a criança começa a melhorar. O segundo ritual de simpatia consiste em apanhar o “leite
da égua” e dar para a criança beber, que a fará boa. É uma das categorias de “doenças” mais
comuns no Mamanguá.

O “aguado” é assim: o aguado...se tá essa menina aí [aponta para a criança que está
ao nosso lado], nós aqui almoçando... e nóis não der comida prá ela, ela fica com
aquela ansiedade de comer aquilo ali, não pode! Diz que os “verme” por dentro
“agua” sabe? Os “verme” por dentro é que água”!!! (Mulher, 59 anos, Ponta da
Romana)

Aguado é que a criança “água” com qualquer coisa. (...) Então a criança pega e água,
fica com aquela vontade de comer aquilo, e não comeu. Aí fica “aguado”, aí tudo
que eles vê em casa, ele pede... a gente dá, mas ele não come! Aí ele vai e dá ...dá
vômito, dá diarréia, ele aí vai ficando magrinho...Emagrece, fica molinho, não
tem...assim, não é aquela criança esperta! É, isso aí não tem benzimento não! Do
aguado. Tem que levá em 9 casa, pedi comida em nove casa. Um pouquinho de
comida cada casa, aí mistura tudo numa comida só e dá... nem que seja uma
colherzinha que ele coma...
É uma simpatia! E o outro é o ‘leite da égua’. Já ouviu falar no rádio? Muita gente
pedindo leite de égua. É prá aguado. Aí trata com aquilo.!
Aí sara!! Sara mesmo!! E o médico não sabe disso não! Vai lá com ele lá, que ele tá
lá ‘tacando’ remédio, e é uma coisa e outra...e não sara não! Isso daí ele não trata
não! (Mulher, 55anos, Praia do Cruzeiro)

Você pega, chega na casa de aonde tem 7 Maria! Aí você chega lá, pega um
pouquinho daquela comida. Um pouquinho só! Pega dali e vai trazendo! Chega em
casa, sete casa! E sete dia né? Toda a hora, assim, na hora do almoço você vai lá, a
criança come né? A criança comeu acabou! Aí começa a melhorá ! mas a pessoa tem
que fazê! Sete Maria! (Mulher, 59 anos, Praia Grande)
107

Figura 22- Menino da Ponta da Romana (Foto: Sá


Xavier, julho/2003)

5.4.2.2 Quebranto

Ocorre em crianças pequenas, abaixo de 1 ano. Os sintomas se parecem um pouco


com o “olhado”. Segundo meus informantes, “não presta” dizer que a criança é bonita, que é
gorda e por isso, os mais antigos diziam em seguida: “benzo ô Deus”! Os sintomas se
apresentam quando a criança fica espreguiçando, abrindo a boca sonolenta e faz isso muitas
vezes. O tratamento se faz com benzimento, mas a própria mãe pode benzer a criança durante
o banho, não é necessário um especialista.

Aí rezava... a rezinha da criança era assim... ‘Deus que te gerou, eu que te parí, se tu
tivé quebrante e olhado, eu que te lambí’... Aí metia a lingua na testinha da
criança... a testinha da criança tava salgadinho, aí lambia três vezes assim.. aí
depois rezava um ‘pai e nosso’, pronto, aí tá bom! Aí quando a criança tava
108

grandinho, já levava em outra pessoa que sabe benzê, assim de olhado, que tava com
‘olho grande’. (Mulher, 55 anos, Praia do Cruzeiro)

Figura 23- Mulher da Ponta da Romana em “resguardo”, seus filhos e sobrinha. (Foto: Sá
Xavier, julho/2003)

5.4.2.3 Olhado
Ocorrem em adulto e entre aquelas crianças com mais de um ano. O “olhado em
criança” é diferente do “olhado em adulto”. Na criança pode ocorrer quando alguém gosta
muito da criança. Até o pai pode pôr “olhado” no filho por achar a criança bonitinha. Não há
intenção má, mas a criança fica doente, mole, abrindo a boca a todo o momento. O tratamento
consiste em levar ao especialista em benzimento. “Benzeu, acabou”. Já no adulto, há o
sentimento de inveja e raiva. Este “mal-olhado” faz com que o adulto tenha sintomas de
indisposição geral com forte sonolência. Como diz a informante:

“o mal olhado..., você nada possui né? Quando você só fica com aquela “soneira”,
abrindo boca... E do adulto, às vez é raiva, que o fulano tem! Só com o olho, fica
aquela raiva, daquela pessoa... se pudesse consumi e tudo... aí a pessoa também fica
(...)” com olhado. (Mulher, 59 anos, Ponta da Romana)
109

O tratamento consiste em fazer o benzimento com o especialista. Alguns especialistas


costumam recomendar como tratamento complementar, banhos com plantas aromáticas e sal
grosso.

5.4.2.4 Vento virado

Uma criança passa a sofrer de “vento virado” ou “ventre virado” quando caiu do
braço de outra criança, da cama, ou mesmo das mãos de um adulto. Os meus informantes
disseram que o “ventre” encosta. Depois disso nada pára no estômago da criança e ela vai
“secando”, tendo diarréia verde com sementinha e vômito. O tratamento é o benzimento com
a especialista benzedeira. Pode levar ao médico, dá o soro, mas só o benzimento é que cura.
Veja o que dizem as informantes:

“Leva no médico, leva no benzedô! Porque, hoje em dia, o médico..., eu acho que é
isso aí, que o médico fala que é ‘desidratação’!! né? Prá nóis, naquela época, era
‘vento virado’, tá? É... dá o soro lá...né? Os médico ainda, mas quando sai de lá
que a criança começa, tem que levá prá benzê! Vento virado!” (Mulher, 55 anos,
Praia Grande)

“é porque a criança começa a ‘vomita’ a criança não quer come, e começa a dar
diarréia e aí começa a febre! E aí começa não apará nada no estômago da criança, e
é isso aí. Pode levá no benzedô que ... a criança fica ‘mole’, a ‘pelinha’ da criança.
Já sabe que é isso aí!!” (Mulher, 59 anos, Ponta da Romana)

“Bota no braço de uma criança, a criança escapô, cai lá no chão! Aí a gente chama
ventre-virado! Diz que encosta né? O ventre da criança encosta, né? Daí... não
segura nada! Nada segura ali, nem ninguém segura nem nada!Nem leite, nem
comida, nem nada! Aí bota prá vomitá! Dá até febre na criança! Vomitá e
diarréia...vomitá e diarréia... aí tem que procurá uma pessoa prá benzê! Por que
médico não entende disso não! Daí ele não trata não! Eu falo porque o meu filho
foi um. Ele se não fosse ela... Primeiramente Deus, depois ela com o
benzimento...[fala da sogra Dona Rita] Ele já tinha morrido pequenininho mesmo!
Mas quem sabe, eu acho que tem que estudá pela natureza, pelas coisa que a
pessoa vê, pelo o quê acontece, né? Pela ... a doença do tipo da criança, como é que
vai tratá, foi tratado com aquilo... A pessoa tem que ir por aí. Porque tem esse
negócio de medicina, essas coisa, que o pessoal estuda muito... dali vai aprendendo,
mas esse negócio de estudá ... O médico estuda medicina, mas lá...aquele modo
dele lá...vai fazê... Morreu uma pessoa lá, eles vão...fazê uma cobaia. Vai tirá
tudo dali, né? Daquela pessoa... é osso, é não sei o quê, é não sei o quê... prá
poder dali eles estudá... ? Mas muita coisa eles não tão estudando aquilo ali
...não é bem aquilo ali não! Não é bem aquilo ali que eles estão estudando não!”
(Mulher, 55 anos, Praia do Cruzeiro)

Estes relatos são muito importantes, e revelam a eficácia simbólica da benzedeira. Esta
é uma das doenças consideradas mais “comuns”, e muitas vezes a mãe não leva a criança ao
médico. Quando esta história é relatada, aos profissionais de saúde, na maioria das vezes estes
não estão preparados para compreensão do dado cultural local, não ocorrendo o diálogo entre
110

médico e mãe do paciente. A falta desse mínimo diálogo emperra o andamento do Programa
de Saúde da Família (PSF) e seus princípios norteadores ficam prejudicados. O ator social
mais necessitado, que está na ponta do processo da atenção básica em saúde é o mais
prejudicado. No entanto todo o processo fica comprometido, seja institucionalmente,
economicamente e eticamente.

5.4.2.5 Doença de criança ou fogo bravo

Os comunitários interlocutores não souberam precisar ao certo a origem doença. Uns


dizem que vêm do sangue da mãe, outros dizem que é do sangue do pai. A concordância é que
a doença vem do sangue dos progenitores. Ela também é chamada de “fogo bravo” e há uma
séria interdição em dizer o nome da doença. Este não deve ser pronunciado próximo de
crianças, pois dá má sorte a elas. Embora nasça com aparência saudável, a criança apresenta
os sintomas das doenças durante os primeiros dois meses, e sua manifestação é na pele. A
informação é que a criança “engorda” apenas a cabeça e o corpo, ficando estas partes maiores
que o restante do corpo. O pescoço fica fino e os braços também. A criança não tem “força
para chorar”. Outro sintoma importante é a pele, que por se tornar muito fina, “reluzenta” e
“lumeioso” começa a “partir” ou “rachar” nas dobras dos braços, das pernas, atrás das
orelhas, pescoço e virilha. A manifestação da doença tem a aparência de uma assadura com
aspecto vermelho muito forte, porém não se apresenta com cheiro. O bumbum da criança fica
“vermelho como fogo”. Os informantes também disseram que há três tipos: do preto, do
branco e do vermelho, sendo que o do preto é o mais difícil de tratar e pode até matar, o
branco é o mais fácil de se tratar. Todos relataram que não se vê mais essa doença no “lugar”,
mas não sabem explicar o porquê. Uns apontam o desenvolvimento da medicina. Uma coisa
todos afirmaram, que os médicos antigamente não davam conta de curar essa doença e não
sabiam fazer o diagnóstico, por isso o tratamento era feito em casa.

“e a criança nasce, aí passado um mês, dois mesinho....eles quase não tem... Tem um
que a criança engorda, e tem um que a criança só bota aquela carona... e fica só com
aquele pescoçinho fininho, braçinho fininho, magrinho, não tem nem sustança de
chorar... aí Olha... fica isso tudo aqui reluzento , sabe o que é reluzento? Que parte
aquela pelinha que nem no frio assim...aí fica tudo lumeioso, faz aquela roda aqui
assim... aquela pele toda alumiada... e parte atrás da orelha...nas duas orelhas...
parte debaixo do braço, parte no pescoço, né? Parte aqui na virilha das crianças...
aquela assadura..., forte! Não tem cheiro de nada.... mas aquela assadura
vermelha...[ênfase] Na bundinha da criança, aquele negócio vermelho que parece
um fogo!!! Aí muitos chamam ‘fogo bravo’!! Nem presta falá perto das crianças
pequenininha.... e outros chamam de ‘doença de criança’ (Mulher, 55 anos, Praia
do Cruzeiro)
111

Depois a criança começa a parti, igual uma assadura! Entre a orelha, isso aqui do
braço, da perna e toda a junta do corpo! E você fica tratando, tratando, com remédio,
aquilo ali não melhora, sabe? E aí, só escorre aquela água, e a criança vai ficando
cada vez mais sequinha, bem magrinho! E aí, bota aquela, “bochecha”, né?
“reluzenta”! Igual a um espelho, sabe? E a criança cada vez magrinha! Então
Maria, a mãe já desconfia, que é a própria “doença de criança” que tratam né? Que
“chamam” né? Aí o que a mãe faz prá tratá!! É a carobinha, o chá... leva na
benzendeira prá poder benzer e “cortar” a doença né? Quando as mãe são
católica, as mãe “crente” não. Sabe, as mãe crente, ela trata ..., e tem criança que...
morre memo, porque ela não acredita em ‘benzimento” né? E aí, vai no médico,
nada! Pode dar remédio, nada! Remédio de médico não faz efeito! (Mulher, 55 anos,
Praia Grande)

O tratamento dessa doença consiste em rituais e benzimentos. Há seis remédios


diferentes indicados pelos interlocutores: através da planta “carobinha”, Homeopatia124,
formiga ruiva, chá de telha (de telhado), caramujo e a ostra da pedra. Com as folhas da
“carobinha”125 se faz o chá que tanto pode banhar a criança como dar para beber. Com
Homeopatia os informantes lembram apenas do Mercúrio, mas como há vários medicamentos
homeopáticos de Mercurius, não há como saber qual.

“Trata com Homepatia.... Homepatia... mercúrio... tem três ou quatro nome na


homeopatia... então a gente compra... o vidrinho na farmácia assim.. e ... Não é toda
farmácia que tem não!! Nem sei se ta fabricando mais.... Mas acho que ainda tem
sim... Aí compra... e chega em casa.... aí tem as dosagem . Bota duas ou três
gotinhas numa água...pega do outro... pega duas ou três gotinha, tempera junto... Vai
dando pra criança beber... na colherzinha...E do outro, dos vidrinho que a gente
comprou a gente deixa lá... que serve pra outra vez...” (Mulher, 55 anos, Praia do
Cruzeiro)

No caso da formiga ruiva, deve-se escolher um bom formigueiro. Recolhe-se a casa da


formiga ruiva, com os “filhotes” e tudo o que houver a volta (inclusive o barro). Coloca tudo
dentro de um caldeirão de água bem quente; já em casa, é preciso coar a água e desprezar as
formigas. Com esta água é que se dá um banho na criança, por três dias seguidos.

A casa da formiga ruiva... Não tem aquela formiga ruiva que morde, que ... então...
uma ruivinha ... que ela morde e queima prá caramba... Que dá muito aqueles
filhinho... ela faz muito aquela casa no barro assim... a gente passa assim, tá até
fofinho... a gente passa ela fica ruivinha... saí tudo assim... chega a tá cheinho de
filho!! Aí a gente vai lá e ... esquenta um caldeirão de água bem quente e vai...
chega lá a gente mexe nela... ela sobe tudo... A gente vai, tira, com filho, com barro
com tudo! Põe no caldeirão, aí a gente traz prá casa, chega em casa coa aquela água

124
A Homeopatia chegou no Mamanguá por volta dos anos 30 através de um médico de São Paulo. Este médico
instruiu na arte, através de um livro, um comunitário chamado Maximiniano Leocádio dos Santos. Este senhor é
pai do Senhor André Leocádio dos Santos, 73 anos, morador da Praia Grande, meu informante.
125
Pode ser a Jacaranda peteroides ou Jacaranda brasiliana, conhecida como ‘caroba-do-campo’ ou “caroba”.
As duas são empregadas para coceiras, feridas, úlceras, dermatoses. (Bomtempo, 1995, p.391; Conceição, 1987,
p. 66-67)
112

e põe na vasilha prá dá banho na criança. Rapidinho a criança sara!! (Mulher, 55


anos, Praia do Cruzeiro)

Com o caramujo, se apanha um determinado caramujo que “dá no mato”. Só serve o


caramujo com o bichinho dentro, isso prova que o casco não foi utilizado para simpatia.
Apanha o caramujo, bate bem batido na água morna, até fazer espuma. Com esta água dá o
banho na criança. É necessário fazer este banho ritual/simpatia por três vezes.
Complementando, apanha-se outro caramujo, torra bem torrado transformando em pó. Este pó
é servido com a comida para criança.

“Tem que tá com bichinho dentro. Aí você bate ele, bem batido, bem batido, naquela
água morna ali, ela faz aquela espuma! Ali você dá o banho, na criança! E solta ele!!
Aí depois você arruma outro... São 3 vezes que a pessoa faz isso.!(...) Aí você vai
arruma outro caramujo daquele, você pega ele e “mata”, não aquele que tá feito a
simpatia. Caramujo bão né? Que não tenha nada! Você pega outro do memo, você
mata ele, alimpa ele, torra, e dá na comida da criança come! Sabe? É o remédio que
se dá ...” (Mulher, 55 anos, Praia Grande)

Para o remédio da telha se procede assim: apanha-se um pedaço da telha, deixando no


braseiro do fogo até que fique bem quente, bem vermelha. Numa bacia com água, coloca-se
este pedaço de telha aquecido para esquentar a água. Quando a água estiver morna, retira-se a
telha e dá-se o banho na criança com esta água.
O outro remédio é feito com a ostra “que dá na pedra”. Cozinha-se e dá um banho na
criança. “Então pega a ostra também, e cozinha a ostra, tira aquele caldo, prá dá banho na
criança. Tudo isso tem prá essa doença.” (Mulher, 55 anos, Praia do Cruzeiro)

5.4.2.6 Espinhela caída

Essa doença ocorre em adultos e é percebida como uma dor muito grande no peito e
nas costas. Meus informantes me disseram que a pessoa com esta doença não pode trabalhar,
“não pode fazer nada!”. A explicação é simples, há um osso pequeno no meio do peito. Esse
osso, chamado de “vitelazinha”, enverga para dentro, em razão da pessoa carregar muito peso.
Se fizer uma força grande e sentir essa dor, é espinhela caída. Mas se o médico examinar, não
encontrará nada, somente o benzedor é que poderá curar essa doença, conforme relata a
moradora da Praia Grande.

“É benzê! Benzê e dá “garrafada”! garrafa é a ... gemada! De manhã cedo! A


gemada de “ovo de galinha caipira” com um pouco de vinho! Aí você tem que
tomá aquele remédio, que é fortificante! Até ela “chegá” no lugar! Naqueles dia
você não tem que trabalhá! Prá ‘ela’ poder chegá..., no lugar! Aí ela chega! Aí no
113

derradeiro benzimento você vai olhá, ela já tá no lugar! Aí tamém você “sara”!
Engraçado né? Agora, dizem que da espinhela caída, quando a pessoa tá com este
probrema, a pessoa mesmo em casa ‘se benze’!! A pessoa memo pega um pau, a
pessoa se pendura com todo o corpo, que aí “ela” chega no lugá!! (...)mas sempre
assim, ela tem que ir no benzedor! Que eu tive uma mulhê em Paraty, que ela ia me
ensiná! A benzê aquela “espinhela caída”!! porque ela benzia muito bem! Todo
mundo “corria” com ela.” (Mulher, 55 anos, Praia Grande)

O diagnóstico do benzedor consiste em “medir” o enfermo pelo ombro, com um


pedaço de barbante. Nada pode faltar ou passar da medida do “normal”. Caso passe, é preciso
fazer o tratamento que consiste primeiro no benzimento, depois na utilização das “garrafadas”
de gemadas. Segundo esta informante o benzedor é importante, mas a própria pessoa pode se
benzer com fé, ir fazendo o uso das garrafadas que se cura.

5.4.2.7 Catarro sufocante

Esta categoria de doença em geral ocorre em adulto e é percebida primeiramente como


um “chio” no peito do doente. Segundo meus informantes a pessoa doente sofre muito, fica
muito “atacado”126. A pronúncia do nome da doença também sofre forte interdição, não
podendo ser pronunciado próximo de crianças pois causa má sorte. Meus informantes falaram
o nome dessa doença, em tom baixo, com cuidado para nenhuma criança ouvir. Este costume
é para todos, crentes e católicos.
Esta doença das vias respiratórias “ataca” muito as “costas e o peito, que são os
lugares dessa doença. Quando ocorre um sentir chamado de “puxamento”, uma “tosse” e um
“chio”, é o sinal que a pessoa está muito “atacada”. No lugar há um tratamento para esta
doença e só vai ao médico quem quer, como me informaram. Este tratamento mobiliza a
família ou vizinhos, exigindo que uma pessoa fique o tempo todo ao lado do doente aplicando
emplastos feitos de angu de farinha de mandioca. Só este emplastro costuma curar esta
doença, mas se não curar a doença pode levar a morte.

“Não pode falar perto de criança não! E... atacou muito ele, muito, muito, muito!!
Mas ali, lá mesmo no “nosso lugar” ele... tratemo dele! Dois senhor que tratou
dele né? Sobre as... angu da farinha nas costas!!
É! Angú nas costas! Mas é... tirava aquilo e botava outro! Tirava aquilo e
botava outro! [Pergunto: não colocou nenhuma planta?] Não, ela só ... fazia aquele
“emprasto” e botava nas costa, e aqui nos peitos! Nas costa e nos peitos, porque
essa doença é daqui das costas e dos peitos né?”
“Como é que a pessoa sente? Ah!! fica muito atacado, muito atacado, muito... com
um puxamento, um chio, uma tosse!! Mata na hora!!! Mata na hora! Mas meu
filho deu sorte que Jesus curou a ele! Aí que nós fizemo esse remédio né? Mas

126
Este “atacado” pereceu-me ser um agravante sério, onde a pessoa tem a respiração impedida por aquilo que
eles presumem seja um “catarro” que se torna “sufocante”, impedindo a respiração.
114

sarou!! Até o dia de hoje! Hoje é casado, pai de neto! Nunca mais sentiu”. ( Mulher,
87 anos, Ponta da Romana)

Faz-se necessário uma melhor investigação sobre esta categoria de doença, entre
outras, até para saber se há muitos casos e qual o tratamento empreendido. Sabe-se que, de
acordo com a Medicina Natural (um ramo alternativo seguido por alguns médicos) os
emplastros são curativos e inclusive são utilizados desde os tempos hipocráticos, na Grécia
antiga. Voltando à episteme ( cf. capítulo quarto), lembrar que há uma “teoria dos humores”
de Hipócrates, onde a saúde e a doença eram entendidas como estados, de equilíbrio ou não.
Neste entendimento, havia o equilíbrio da bile negra (melancolia), a bile (amarela), a pituita e
o sangue. Estes elementos interagem, segundo esta medicina, com os quatro elementos (fogo,
ar, água e terra) e as estações (quente, frio, seco e úmido). Obedecendo a esta lógica, é correto
tratar com emplastro quente alguém que está frio e úmido por dentro (doença das vias
respiratórias, um desequilíbrio dos líquidos). Percebe-se que estes comunitários têm um
conhecimento empírico que pode ter sido adquirido no entrelaçamento cultural com os
portugueses127 desde o século XVI. Também é bom lembrar que na Europa daquele tempo, os
tratamentos seguiam as teorias de Hipócrates e Aristóteles e a antibioticoterapia só apareceu
efetivamente no século XX, no pós Segunda Guerra.
As categorias de “aguado” e “vento-virado” são importantes na saúde infantil e
podemos situá-las como relevantes para a área da Saúde Coletiva e Saúde Pública. Numa
reflexão, é possível (re) pensar os tratamentos biomédicos das diarréias inespecíficas,
seguidas de desidratação, em relação ao peso das tradições locais na terapêutica em
comunidades rurais e de populações tradicionais. Sobre as tradições locais e o Programa de
Saúde da Família128.

5.4.3 Doença tratada pelo médico: a leishmaniose no Mamanguá, do ponto de vista do


nativo.

No trabalho de campo encontrei dois casos de leishmaniose, sendo que um curado e


outro ainda necessitando de tratamento. O primeiro caso é de um homem, 21 anos, morador

127
Sobre isso é bom conferir Greco Rodrigues (2001, p.137) que aponta os jesuítas como aqueles que trouxeram
esta medicina hipocrática para o Brasil. Já Araújo (2002, p.66) demonstra que, no Brasil, estes princípios
estavam nos manuais de cirurgia e botânica, surgidos no século XIX e foram incorporados pelos leigos na
“medicina caseira”.
128
Sobre isso ver o Projeto Rezas e Soros, desenvolvido em na comunidade de Maranguape, Ceará, mostrado no
Canal Futura e no Programa Globo Repórter da Rede Globo em abril de 2004. Confirmado em comunicação
pessoal com a enfermeira Maria Alves de Souza (Maria Alfonsina) pelo telefone, 085-96028763.
115

do Regato e o segundo é uma mulher, cerca de 17 anos, moradora do Baixio. O relato oral da
doença demonstra que este comunitário só veio a conhecer a etiologia da doença após passar
pelo adoecimento. Na procura pelo tratamento ele foi sensibilizado, através de uma médica,
chamada por ele de Dra. Renata, do Posto de Saúde de Paraty, para o problema da doença
Leishmaniose na região. Na narrativa desse informante a transmissão da doença se dá por um
tipo de mosquito que vive no mato. A razão maior, na sua visão129, não é o mosquito, mas o
desmatamento e as queimadas que causam o desequilíbrio do ambiente.

Que tem uma “qualidade” de mosquito no mato. Vive só na mata...longe da... da


zona urbana, onde não existe casa. E ele procura sempre animais pra picar, mas não
faz muito mal aos animais da mata. Mas se ele vier picar uma pessoa que assim...
um ser humano mesmo, ou até um cachorro ou o que for, transmite a doença. E só
que as pessoas estão desmatando muito...desmatando muito! E queimada... e
não acha animal mais na mata pra “morder” e ele vem...pra baixo, pra terra,
pras casas, pra morder nas pessoas. E sempre morde às 5 horas até as 7 horas da
tarde. (Homem, 21 anos, Regato)

Nas representações desse informante, o mosquito mordeu e “saiu uns caroçinhos” que
continham água dentro. Deste caroçinho apareceu a ferida que foi crescendo e coçando, mas
não doía. Embora ele tratasse com pó secativo, a ferida não fechava e aumentava.

Saiu uns caroçinhos em mim e essa foi um caroçinho de água assim... Formou
aquele caroçinho de água e comecei a coçar, coçar e aquele caroçinho estourou!
Estourou e depois a coceira foi aumentando, foi aumentando e aquela... ferida foi
crescendo, foi crescendo. Aí depois disso eu ia botando algum remédio, alguma
coisa..., mas o remédio não ficava! Não segurava, e não doía! Não doía nada! Só
dava aquela coceira em volta! Coçava muito! E eu ficava coçando! Aí depois eu
colocava mais remédio, mas não tinha nada ... Eu colocava pó anti-séptico...Até pó
anti-séptico escorria tudo... não ficava nada! E foi crescendo! Aí daqui a pouco
eu vi, prá cima tinha outra! Já era outra também, ao lado... e aquela outra
também foi crescendo, crescendo. ! (...) Aí daqui a pouco eu vi, prá cima tinha
outra! Já era outra também, ao lado... e aquela outra também foi crescendo,
crescendo.! (Homem, 21 anos, Regato)

Após este período, segundo ele, houveram as especulações dos vizinhos, parentes e
amigos a respeito do que poderia ser (ou não ser) aquela ferida que não fechava. Segundo o
informante, apareceu um enfermeiro de Paraty, casado com uma moradora do lugar. Este
rapaz disse para o meu informante que aquela ferida não poderia ser leishmaniose porque a
leishmaniose “não saia duas na mesma parte do corpo”. Não era comum, mas pediu que meu
informante procurasse um médico na cidade para ver o que era. E foi o que ele fez, procurou a
médica que pediu que ele fizesse o teste. O teste deu positivo (após três dias de espera) e ele

129
Mas já com um discurso ecológico fornecido pela médica e por pesquisadores que atuam na região.
116

começou a fazer o tratamento. Este tratamento consistia em injeções . Em suas primeiras


impressões sobre a doença ficou o horror de ver as feridas aumentarem : “mas isso já tinha
emendado uma na outra! Fez uma só! Uma “enorme”!! Muito grande!! E isso começou a
“doer” muito”! [ênfase] (Homem, 21 anos, Regato). Para tomar as injeções era outra
complicação, porque não tinha como ele se deslocar até Paraty, então trouxe as injeções para
casa (foram no total de 80 injeções), sendo que pedia que um senhor muito conhecido na
comunidade, mais velho, aplicasse as injeções. A outra complicação se deu pelo fato das
agentes de saúde locais não serem autorizadas a prestar este serviço na comunidade, por não
receberem (na época) este tipo de treinamento. Segundo a narrativa, cada vez que o tomava
uma injeção ele “sentia uma reação” do medicamento. Normalmente ele ficava “tonto”. Se
viesse de barco de sua casa até a casa deste Senhor (que lhe aplicava as injeções, morador
próximo da Praia Grande) não conseguia voltar de remo, pois se sentia além de tonto, com
fortes dores. Quando ia e voltava à pé pelo caminho também era difícil e perigoso. Enfim, esta
doença se tornou um verdadeiro suplício para este rapaz, que ficou cerca de uma hora me
narrando todo o processo. Segundo este informante o período das injeções foi dividido em
três. O primeiro com trinta e oito injeções, o segundo com mais trinta e oito injeções e o
último período com quatro injeções para garantir o tratamento. As injeções eram aplicadas nas
nádegas, sendo que alcançou um momento durante o tratamento, onde havia hematomas em
grande quantidade nas nádegas. Os fatos aqui relatados pelo informante tornou o tratamento
algo extremamente incômodo para sua vida.

5.4.4 Os encontros de antes e de hoje, para falar da gravidez e sua relação com os
"seres encantados”, os “bioantropomórficos”.

Esta é uma das partes mais interessantes desta pesquisa, pois revelam algumas
“piscadelas” culturais, para falar como Geertz130 (1989, p.16-17). A gravidez no Saco do
Mamanguá não é uma doença, é um acontecimento, um ritual de passagem que marca a
transição da moça para mulher. Como um estado liminar, merece atenção especial com ações
preventivas na manutenção da saúde da mãe e da criança. Para falar sobre essa passagem,
começarei pelos encontros, namoros, festas e casamentos, que antecedem o processo/estado
da gravidez.

130
Geertz (1989, p.16) usa esta metáfora para falar em como diferenciar uma descrição superficial de uma
descrição densa, quando como se distingue uma piscadela de tique nervoso de uma piscadela tipo ‘flerte’, ou de
uma imitação de um tique nervoso. A procura do “sinal cultural” é relevante para alcançar a descrição densa.
117

5.4.4.1 Os encontros.

Nas incursões do trabalho e nas falas dos informantes percebi que os rapazes e moças
se casam muito cedo no Mamanguá. O casamento se dá, em geral, entre os quinze e dezoito
anos para a mulher e dos dezesseis até os vinte e dois anos para os homens. Mas há exceções,
com casamentos ocorridos entre faixa etária muito diferente (mulheres jovens, de 18 anos
com homens mais velhos, acima de 35 anos). A moça casa adolescente, por vezes grávida (o
que tem ocorrido com freqüência nos tempos atuais131), sendo que este ritual de passagem é
sempre acompanhado pela sogra (geralmente a mulher vai morar próximo da casa dos
sogros), pela mãe ou alguém da família. No “tempo antigo” também era assim, a moça se
casava cedo, porém, com base nas conversas locais, havia mais convivência entre os
comunitários do Mamanguá com os de fora do lugar. Isso ocorria através das festas de Folia
de Reis, da Bandeira do Divino, das Domingueiras, entre outras. Nessas festas animadas os
jovens tinham a oportunidade de entrar em contato com moradores de outras praias do
Mamanguá, como também de “fora” do lugar, como da Ponta da Cajaíba, da Praia dos
Antigos e da Praia do Sono. Muitos casamentos ocorreram destes encontros, como relataram
os informantes.

“(...)a gente se animava, não tinha briga, não tinha confusão, não tinha nada. Hoje
em dia que não pode mais... é briga,e vai lá,.a pessoa já fala que vai matá... Aqui na
roça antes não tinha nada disso... A pessoa resingava assim, porque bebia, aí...ficava
meio esquentando, queria resingar... mas aquilo ali cabava tudo alí mesmo... e se
havia uma confusão era só no tapa! Hoje em dia é só, na arma... né? E aqui não!
Todo mundo dançava ....pegava a dançar, oito, nova horas da noite, ia acabar oito
horas da manhã... o sol tava cá em cima... e tava todo mundo tava que tava enfezado
lá no forró... Êta tá danado!!(...)a gente vai deixando, que agora já acabou tudo...
Acabou tudo não, hoje já tão desanimado, a maioria do pessoal já ficaram tudo
‘crente’ né? Aí quem gosta muito de coisa, é lá do lado de lá... do lado do avô deles,
lá do outro lado, onde mora o Rogério”. (Mulher, 55 anos, Praia do Cruzeiro)

Hoje já não fazem mais festas grandes. Os lugares de “encontros” se resumiram ao


“barco da escola”, às poucas festas de aniversário e de batizado que ainda ocorrem, e à espera
do ônibus na rodoviária de Paraty132. Mas como a maioria destes momentos nem sempre são
festivos, os encontros amorosos ficam mais difíceis. Isso traz um problema para a
comunidade do Mamanguá, onde as uniões costumam ocorrer entre consangüíneos. A alta
incidência dessas uniões faz ocorrer casos de crianças com “necessidades especiais”,
relatados como preocupantes na visão dos informantes. Parece que é comum o casamento
131
Não sendo privilégio do Saco do Mamanguá.
132
Nas observações do campo percebi que neste “lugar” há um sistema tipo “rede”, além de uma diversidade
étnica que merece um estudo.
118

entre primos, mas agora ocorre inclusive entre primos-irmãos. Em razão disso, em se tratando
de prevenir problemas genéticos, este pode ser um forte fator complicador. Nas visitas
constatei que em todas as localidades, quando os comunitários se dirigiam aos vizinhos
afirmavam: “aqui todo mundo é parente”. É verdade, todos são meio “parentes” no
Mamanguá133, dado a linhagem das três famílias que deram origem ao lugar: Oliveira,
Nascimento e Vilela.

5.4.4.2 A gravidez.
A gravidez é um tempo de estados de liminaridade, onde a mulher oscila entre os
domínios da natureza e da cultura (Motta-Maués, 1993).

Essa oscilação, essa liminaridade, essa ambigüidade num contexto ritual, radical,
encontra e deixa marcas no corpo. A história não passa ao largo do corpo; ao
contrário, o corpo é marcado pela história e a história tem no corpo, seu cenário
privilegiado.” (Chaves, 1993, p.x (apresentação), apud Motta-Maués, 1993)

Neste estado ocorrem algumas crenças e interdições. Mas não há interdições


alimentares explícitas. No entanto, algumas mulheres informaram que não comeriam
determinados alimentos porque são alimentos muito fortes. As denominações: forte/ fraco,
carregado/ não-carregado, bravo/manso são próprias de uma cultura denominada como
“cultura brasileira rústica”, segundo Araújo (1961), Cândido (1979) e Ribeiro ( 1987), como
já foi dito.

“Diz que na gravidez pode comê tudo! Da minha filha eu não fechei a boca prá
nada! Tudo o que vinha na minha frente eu comia! Só esse agora eu tenho aquela
‘cisma’ de comer assim troço ‘forte’! Carne de porco, é...igual pato eu não comi,
já teve... mataram eu não quis comer, porque é muito forte! Porque eu penso
assim: as vezes não faz mal prá mim, mas é uma criança que tá se gerando, as vezes
recebe aquilo forte...Porque a alimentação da gente vai prá criança né? Recebe
aquilo forte, às vezes nasce com um problema na pele, ou no sangue e você não
sabe o quê que é! Aí carne de porco eu só vou comprar depoooisssss que eu ganhá e
quando chegá o tempo de comê né? Porque bem ganhô você não pode comê
porque é muito carregado! Então só daqui... depois que eu ganhá só uns 5 meses
prá frente!” (Mulher, 25 anos, Praia do Cruzeiro)

Entretanto há alguns interditos anunciados que são percebidos como podendo


comprometer o feto, causando problemas de “pele” ou “sangue” no recém-nascido. Porém
esse cuidado vai ser mais rigoroso no período pós-parto, chamado de “resguardo”. Os outros
interditos são aplicados no comportamento da grávida, sendo que também aí, vai se

133
Rever o terceiro capítulo, no tópico “A história de Paraty: a história do Mamanguá”.
119

estabelecer uma relação entre comportamento da mãe e o momento do parto, a expulsão da


placenta, da saúde da criança, a sorte que a criança terá na vida e a saúde da mãe. Do ponto de
vista dos comunitários, a mulher grávida não pode fazer “esforço” (apanhar peso), nem pode
deitar-se nem se sentar de mau- jeito. Há uma crença que tudo isso pode machucar a criança,
um ser em formação. Não se pode passar por cima de corda, pois se acredita que a criança
possa nascer enrolada no cordão umbilical ou na placenta o que torna o parto difícil. A
grávida não deve passar por cima de animal, nem deixar que um homem passe por trás de
suas costas. Se isso ocorrer a placenta pode demorar “em nascer”, como dizem as mulheres
no Mamanguá. A criança nasce e a placenta fica, o que pode causar a morte da mãe.

“Porque aqui, quando a criança nasce muito enrolado, daquela pracenta, daquela
tripa do embigo, diz que é que a pessoa que passa por cima de corda. A pessoa não
pode passar por cima de animal. A pessoa não deixa homem passá por trás das costa
da gente. Porque diz que a pracenta custa muito a nascê. A criança nasce a pracenta
fica... Tem criança que nasce e vem logo a pracenta, junto. E os meus filho vieram,
depois a pracenta nasceu, demorou. Porque tem causo desse acontecido, morrê
mulhê por isso.” (Mulher, 55 anos, Praia Grande)

Num retorno aos estados de liminaridade, que são entendidos como momentos de
passagem, a mulher está mais vulnerável às investidas sobrenaturais e por isso ela deve evitar
algumas situações e lugares (Motta-Maués, 1993, p.119; Araújo, 2002, p.69). Nestes estados
os limite entre natureza e cultura ficam tênues, por vezes não existindo. Reavivando a idéia de
Sodré (1998) sobre a natura naturans (a natureza viva de seres, de coisas que se comunicam)
e pensando nos termos de Godelier (2001) que nos indica que “o cosmos torna-se um
prolongamento antropomórfico dos homens e de suas sociedades” descubro essa relação
intima entre natureza e cultura na categoria “filho de bicho”.

5.4.4.3 Uma representação dos seres bioantropomórficos na categoria “filho de bicho”.

Há um interdito na comunidade do Saco do Mamanguá que diz que quando uma


mulher está grávida de poucos dias ou meses, deve evitar ir até a “costeira” (que é a praia).
Quando uma mulher do Mamanguá “cismar” (perceber, acreditar) que está grávida de poucos
dias ou meses e for apanhar (“catar”) uma espécie de caranguejo, chamado de “goiá” na
costeira, ela pode engravidar deste ser. Mas embora esta mulher possa engravidar desse
“goiá” esta gravidez não prossegue. A mulher e o goiá pertencem a diferentes mundos, mas
num estado de liminaridade da mulher, a ligação entre eles pode ocorrer por um tempo.
Segundo minhas informantes, isso ocorre da seguinte forma: uma mulher fica menstruada e
120

logo após os primeiros dias a menstruação suspende espontaneamente. Neste caso ela acredita
que está grávida. Nesta situação de acreditar-se grávida de dias ou semanas, ignora o interdito
e vai “catar goiá na costeira”. Passadas semanas ou meses depois da suspensão da
menstruação (ela acreditando-se grávida e tendo quebrado o interdito), esta mulher começa a
sentir dores e“a passar muito mal”. De repente a menstruação “desce” com hemorragia e forte
sangramento com coágulos grandes. Sendo assim a mulher entende que não esperava uma
criança, mas sim “filho de bicho” goiá. Esta hemorragia com coágulos (fora do período
menstrual normal) são percebidos como “bichos” pela cultura local134. Nestes casos “o
costume do lugar” é tomar “um chá mate bem forte” para aumentar a dor, a fim de ajudar a
“nascer os bichos”. A crença é que pode nascer um ou vários “bichos” e enquanto não nascem
todos, a hemorragia não melhora. Pode ocorrer também da mulher engravidar de gêmeos, e
um deles ser “criança” e o outro ser “filho de bicho”, como me demonstraram.
Num primeiro momento, este fato pode ser interpretado como uma explicação local
para um aborto espontâneo. Mas uma reflexão mais atenta revela que é muito mais do que
isso. Na minha interpretação este ser chamado “goiá” tem a propriedade dos “encantados” ou
“bichos de fundo” do imaginário Amazônico visto também em Motta-Maués (1993, p.119;
131-132), num estudo sobre Itapuá, uma comunidade pesqueira do litoral paraense. Estes
seres são entendidos como mitos bioantropomórficos por Diegues (1996, p.54-55) e Morin
(1999, p.195), como citamos a seguir. Para Diegues (ibid.) os mitos bioantropomórficos não
são privilégio privativo das populações indígenas. Existem também aqui na cosmovisão
nacional, tanto quanto em outros países do Terceiro Mundo. Esse mito, segundo esse autor,
sobrevive entre as populações de caçadores, extrativistas, pescadores, agricultores itinerantes
que vivem em certa medida “afastados” da economia de mercado, em ecossistemas distantes
do chamado mundo urbano-industrial. Digo que o mito do filho de bicho no Mamanguá pode
se configurar, também, como uma forma de “resistência” desse ethos. Por quê? Porque ele é
quase tabu, ninguém fala muito sobre o assunto. As mulheres falam entre si e com os homens
que compartilham desse mito, e mais ninguém. O mito faz parte do mundo íntimo desses
comunitários. Sobre essa intimidade entre natureza/cultura, sociedade/natureza, Morin no
informa que,

“(...)nas mitologias antigas ou nas mitologias contemporâneas de outras civilizações,


os rochedos, montanhas, rios, são biomórficos ou antropomórficos, e o universo
é povoado de espíritos, gênios, deuses presentes em ou por trás de todas as

134
Motta-Maués (1993, p.130-131) informa que em mulheres de Itapuá, um sangramento hemorrágico deste tipo
é conhecido como “bichos”.
121

coisas. Reciprocamente, o ser humano pode sentir-se da mesma natureza que as


plantas e os animais, comerciar com eles, metamorfosear-se neles, ser habitado
ou possuído pelas forças da natureza. Assim, a composição mesma desse
universo, de caráter analógico, permite as metamorfoses nos dois sentidos, entre
homens, por um lado, e animais e plantas, ou mesmo coisas, por outro lado.”
(Morin, 199, p.195)[grifo adicionado]

Em acordo com interpretação de Motta-Maués (ibid, p. 131) sobre as mulheres de


Itapuá (uma comunidade pesqueira Amazônica), no estado de gravidez, a mulher se encontra
vulnerável a ação dos seres sobrenaturais. Em Itapuá a interdição durante a gravidez se
relaciona principalmente com o alimento, sendo que não se pode “misturar” categorias, como
carne com peixe e/ou marisco. Os itapuaenses acreditam que isso pode provocar uma doença
chamada “mola”. A “mola” ocasiona a formação de “bichos” no ventre da mulher e estes
bichos “comem a criança” que está se formando. Como essa gravidez pode não chegar a
termo, sobrevindo a hemorragia, esta é interpretada como a “saída dos bichos” que a mulher
tinha no ventre. Em Itapuá também os “bichos têm que sair”. Caso não saiam, pode ocorrer a
morte da mulher. É possível perceber uma semelhança entre os mitos de Itapuá e os do
Mamanguá. A diferença reside nas especificidades do “filho de bicho” do Mamanguá e “os
bichos no ventre” de Itapuá. No caso do Mamanguá o “bicho goiá” consegue engravidar a
mulher. O filho que ela espera é do goiá. Não é uma criança e como não-humano, o filho não
vinga. Em Itapuá os bichos formados no ventre da mulher são causados por uma doença
chamada“mola”. Os bichos “comem a criança” e por isso a gravidez também não chega a
termo. Mas há um outro aspecto interessante em Itapuá que se assemelha ao Mamanguá.
Segundo Motta-Maués (ibid.), em Itapuá as mulheres sofrem certas proibições que a autora
denomina como sendo de ordem sobrenatural, a respeito de freqüentarem certos locais como
o “mangal” (manguezal), os portos, os igarapés, que são lugares de transição entre ambientes,
dotados de ambigüidade classificatória que os torna perigosos. Se assim procederem , seres
chamados de “bichos de fundo” ou “encantados” que habitam esses locais, podem apossar-se
da mulher e/ou atraí-las, como faz o “boto”135. O goiá do Mamanguá parece ter o poder de
“encantado” do boto e também se parece com o “bicho de fundo” (os seres
bioantropomórficos). Entretanto o goiá não tem o poder de transformação do “boto” em
“homem”que vai seduzir a mulher. Segundo Motta-Maués (ibid., p.121) estes seres, que aqui
denomino bioantropomórficos, habitam uma zona ambígua que não é terra, nem água,
ocupando uma posição intermediária entre os dois domínios. Os seres que habitam estas áreas

135
O boto se transforma num bonito rapaz para atrair a jovem, suga-lhe todo o sangue através do ato sexual e
esta acaba morrendo anêmica. O boto pode atacar em qualquer época, mas prefere as fases que a moça está
menstruada. (Motta- Maués, ibid., p.120-121)
122

ambíguas, como caranguejo e o goiá por exemplo, fogem à classificação seja dos seres
marinhos, seja dos terrestres (segundo a classificação local). Sabe-se que o estado de
liminaridade é caracterizado por relativa e temporária indefinição da situação de um
indivíduo. No caso da mulher grávida, este estado liminar antecede ou acompanha sua
passagem para uma nova categoria ou posição social (Motta-Maués, ibid.; Araújo, 2002).
Pensando nos termos deste estado, onde não há fronteiras, abre-se a possibilidade de uma
comunhão íntima entre natureza e cultura, dentro dessa forma mental cultural, segundo a
visão de mundo dessas comunidades tradicionais. No caso do Mamanguá, há a comunhão dos
seres dentro dessa natura naturans (Sodré, ibid., p.152), mas, após um dado momento, a
união se rompe e o filho “não vinga”. Aborta-se num ato espontâneo, com muita hemorragia e
sofrimento.

“Aí ela me deu remédio, eu abortei um “troço” assim, não sei se é algum... pessoal
diz aqui que a gente pega de bicho também né? Não sei se era algum bicho, não
sei se era “resto” que ficou.” (Mulher, 37 anos, Baixio)

“Quando a mulher tá grávida de poucos dias, de poucos meses, que o meses assim...
de um mês, ela indo na costeira, que ela tá cismando que tá grávida! Ela engravida
daquele bicho! Essa minha irmã lá, teve cinco! Tudo assim! Ela cismou que tava
grávida, com dois meses ela começo a passar mal, passar mal..., ela botô é... (...) na
costeira tem um bicho assim redondo, sabe? Ele só abre a boca prá bebê a água do
mar. (...)ela ia panhá ‘goiá.’ que aqui na costeira tem ‘goiá’ igual caranguejo!E ela
tava de poucos dia, a menstruação dela tinha descido, e foi embora... aí ela achou
que tinha engravidado né? Foi um mês, não veio! Ela engravidou só daquilo! E aí o
quê que faz prá ter aquilo! Aí começa da a dôr e a menstruação a descê! Aí logo a
pessoa cisma! Não, não é ... Aí da o quê? Da o chá! Faz o chá, daqui! De mate bem
forte, e dá... Ela teve cinco daquele! Aí a pessoa começa a ... Dá morragia!! Aí tem...
depois que tem todos, para!” (Mulher, 55 anos, Praia Grande)

Estas crenças não podem ser consideradas apenas sonhos e imagens de seres humanos
confusos e atrasados, para usar a frase de Geertz (1989, 1999), “nós lógicos vocês -confusos”.
Geertz (1999, p.222) ainda nos alerta sobre o tom etnocêntrico quando diz que “os mitos não
são sonhos, nem as belezas racionais da verificação matemática garantia da sanidade dos
matemáticos”, e disso sabemos bem136. Eliade (1991, p.8) diz que “as imagens, os símbolos e
os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e
preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser”. O que ocorreu na
civilização ocidental em dado momento, como nos faz refletir Gonçalves (1998, p.30) é que
se perdeu a idéia da phisis (de uma Natureza) da Grécia pré-socrática. Não há nada sobre-
natural nessa cosmovisão da phisis, pois tudo é. Ela “é arké, princípio de tudo aquilo que vem

136
Quem assistiu ao filme “Uma mente brilhante”, do diretor Ron Howard (2001)?
123

a ser”. Neste trabalho não interpreto nada do que meus interlocutores relataram como
sobrenatural, não há “sobre-naturezas” para eles nesse caso, há o entendimento de uma só
Natureza. Neste sentido o que há são estratégias e táticas construídas para explicar os
acontecimentos, para (re) significar o mundo, dar sentido e ordenar. Falar que ficou grávida
do goiá, é falar sobre um acontecimento ocorrido porque se desobedeceu a uma interdição – ir
a um lugar ambíguo, em um estado liminar onde não há certezas, nem fronteiras. Nós, por
acaso, também não conhecemos estas zonas mal controladas que sobrevivem no mundo pós-
industrial urbano? Quem se deitou num divã e foi analisado conhece bem o que são estas
zonas mal controladas, estes subterrâneos da mente humana.
O ser humano se alimenta dessas construções mentais e a nossa sociedade ocidental
está repleta de mitos, ritos e símbolos. Nesse sentido cabe uma reflexão sobre as experiências
da biotecnologia (dos seres geneticamente modificados137, do cruzamento de um gene de um
vaga-lume com o gene de uma planta), só que isso é “Ciência” e aí imaginamo-nos deuses,
podemos tudo, o que não é o caso dos de Mamanguá. Lá não há patologias neste sentido do
mundo pós-moderno, são apenas seres humanos em “estado de comunidade”.

“O homem precisa tanto de tais fontes simbólicas de iluminação para encontrar seus
apoios no mundo porque a qualidade não–simbólica constitucionalmente gravada em
seu corpo lança uma luz muito difusa.” (Geertz, 1989, p.56)

Prossigo na busca de ultrapassar este limite construído dentro da minha cultura e


persigo as condições mentais/culturais desses seres em estado de comunidade.

5.4.5 As categorias parto, resguardo e seus interditos: resma, bravo, manso, quente,
frio.

As categorias de parto e resguardo não são consideradas “doenças”, contudo os


cuidados e interditos devem ser observados e cumpridos, visto que na representação desses
comunitários um “resguardo quebrado” pode ocasionar desde uma doença na mulher, até
levá-la a morte. E um resguardo bem guardado pode trazer saúde a mulher, preparando-a
para um próximo filho e/ou para um “passamento” (menopausa) mais feliz.

137
Sobre isso cf. Donna Haraway em a “Antropologia do Cyborg”. A autora fala sobre os seres híbridos naquilo
que ela nomina de cultura cyborg. Estes seres surgem em meio à cultura contemporânea a partir de três abalos de
fronteira: a fronteira entre os animais e os seres humanos; a fronteira entre o orgânico e o inorgânico; e a
fronteira entre o físico e o não-físico (Haraway, 2000, p.39-129)
124

“Quebra do resguardo, quer dizer que a menstruação, não pará. Dá hemorragia. Aí


tem muitas mulhê que precisa ir pro médico, e fazê chá em casa, se tratá... a mulhê
fica muito pálida, e só fica perdendo sangue. Isso aí é resguardo quebrado, se você
pegá friagem, ou comê as coisa que não deve comê.” ( Mulher, 55 anos, Praia
Grande.)

A categoria “resguardo” é muito rica, visto ser também um “ritual de passagem”, um


estado liminar (Van Gennep, 1978), um período de transição e como tal mantêm seus
interditos. Nessa categoria há dois tempos nas narrativas, o tempo antigo e o tempo de hoje.
Sobre o “tempo dos antigo”:

“Muita gente diz isso, fala isso, mas de lá nós já viemo!!! Os nosso tronco já
foram, mas nós tamo aqui, e ensinamo a nosso filho que por nosso filho. Que dos
nosso filho já ensina pros filho dele, que são os nosso neto, né? E daí vai indo...”
(Mulher, 59 anos, Ponta da Romana)

“O que minha mãe me ensinou, que deu pra mim, eu dei para as minhas
crianças.” (Mulher, 75 anos, Praia do Curupira)

Deste tempo, segundo a informante, é um “tempo dos troncos”, “da raiz”, um tempo
mais duro. Embora não se tivesse maior conforto é considerado um tempo bom na lembrança
de dos comunitários. Neste tempo “dos antigo”,( faz cerca sete anos que não há mais parteiras
no Mamanguá), haviam parteiras do Mamanguá e as mulheres só tinham seu parto em Paraty
se fosse o caso de alguma complicação mais séria. Havia cerca de cinco parteiras no lugar,
como me relataram meus informantes. Eram elas: Dona Rita, da Praia do Cruzeiro (parte
Peninsular); Dona Greide, Maria Rita, Jorgina e Inácia (parte Continental e Fundo do Saco).
As parteiras também eram conhecidas com o nome de “Pastorin” como se pode perceber
nesta fala:

“Ah!! a barriga crescia, a gente arranja uns trapo prá mim fazê os enxovalzinho, a
ropinha e ...seu Aureo, antes tempo nem sapatinho, nem luva, nem gorrozinho, nós
não tinha! Fazia a toca, sabe? Aquelas toquinha de babadinho, bonitinho. Fazia pra
criança e quando chegava a época, ... os nove meis que dava depois que a gente
esperava ali... nove meis, três dia, ou antes ou depois...aí dava as dor do parto e a
gente mandava chamá a “pastorin” que era a parteira né? É, é... Pastorin! Não
era parteira não! O nome era a “pastorinha”, é! Ela é que vinha fazê o trabalho na
gente!! Quando a dor tava fraca, que não vinha ... aí, não despertava aquela dor...aí
ela falava... Faz um chá mate aí! Faz um chá! Faz um chá do mate, bem forte e dá!
Quando era café amargo!! Café amargo também! Aí ela pegava fazia aquilo dali,
quando ia pra noite a dor ia despertando, sabe? E quando era pro dia, despertava
também! Num instante a bolsa estourava, ela botava a gente na cama, aí era só
espera a criança “pula”!! A criança pulava, aí nascia à placenta, tudo direitinho... aí
cortava o embigo.” (Mulher, 59 anos, Ponta da Romana)
125

A que mais realizou o trabalho de “parteira”, segundo os informantes, foi a Dona Rita,
uma senhora mãe do Senhor Leonel Oliveira (uma das famílias mais antigas do lugar) e
moradora da Praia do Cruzeiro. Hoje esta senhora está com mais de noventa e oito anos e
mora com uma filha na periferia de Angra dos Reis, onde, dizem, tem mais recurso. Todos se
referem a “Dona Rita”, ou “véia Rita” com muito respeito, carinho e consideração, e a
chamam de “mãe de umbigo”, sendo os seus “filhos” considerados “irmãos de umbigo”. Isso
faz toda uma diferença para estes comunitários que se percebem um pouco “irmãos” (mesmo
que de umbigo). Infelizmente as parteiras foram envelhecendo ou morrendo e ninguém as
substituiu. Em razão, disso o parto mudou e resguardo também mudou. Nos relatos sobre o
parto do tempo antigo foi possível localizar algumas classificações dos interditos e
recomendações do resguardo, demonstradas no quadro 2.
O quadro 2, de modo algum pode ser interpretado como algo seguido por todos da
mesma forma. É preciso lembrar que é uma sistematização de comportamentos, conforme
foram interpretados por mim, baseadas nas informações recebidas pelos informantes (homens
e mulheres). Estas prescrições podem variar de um lugar para outro, de uma família para outra
e de uma pessoa para outra. Para chegar a este quadro foi preciso ouvir de 20 mulheres e 8
homens, com faixa etária que variava de 22 a 87 anos, de vários “lugares”, sendo que em
todos os relatos havia variantes. O que se apresenta pode ser considerado um quadro geral,
não específico de uma informante.
126

Quadro 2- Prescrições do “resguardo antigo” dado pelas parteiras do “lugar”.


Dieta alimentar Restrições não alimentares
Comportamentos
Alimentos permitidos Alimentos Comportamentos
permitidos e/ou
e/ou recomendados interditados proibidos
recomendados
Do primeiro filho: banhar-
Do primeiro filho:
se apenas com água
Sair do quarto,
morna; tomar banho de
apanhar friagem
assento com água morna e
nos pés, cabeça e
sal, folha de algodão e
ouvido, manter
abutua. Amamentar o
Pirão de galinha da roça, relações sexuais.
1º período: Todos os outros recém-nascido, levantar
café, chá mate, biscoito Tomar banho de
1º dia ao 3º somente para fazer as
tipo rosca corpo inteiro.
dia necessidades fisiológicas.
Líquidos frios.
Tomar apenas líquidos
Evitar qualquer
mornos.
tipo de contato
Do segundo filho: pode
com coisas frias.
sair do quarto antes do 3º
Trabalhar na roça.
dia.
Peixe bravo, Apanhar friagem,
caranguejo, siri, lavar roupa
Além da dieta acima, Amamentar, lavar uma
sapinãguá, ostra, pesada, fazer
] deve ser acrescentado fralda, roupinha da
carne de caça, serviços
2º período: um peixinho branco criança, cozinhar e fazer
porco, pato e considerados
(peixe manso de serviços considerados
carne de boi pesados. Tomar
4º dia até 7º resguardo) assado, frito leves.
gorda. Alimentos banho de corpo
dia ou cozido. Arroz e Banhar apenas as partes
considerados inteiro. Trabalhar
feijão. com água morna
“carregados” ou na roça. Manter
com “resma” . relações sexuais
Já pode lavar a roupa do
A dieta acima Todos os Lavar a cabeça.
marido, fazer alguns
3º período : acrescentada de uma alimentos acima, Trabalhar na roça
serviços domésticos
8ºdia até fruta como banana menos a ostra e Manter relações
considerados não muito
30º dia assada. Pode comer ostra carne de boi sexuais. Evitar
pesados para não “forçar”
e carne de boi magra. magra friagem.
o útero. .
Liberado o banho de corpo
4º período:
inteiro com água morna,
30º dia ao Idem Idem Idem
lavando a cabeça.
40º dia.
Amamentar
Amamentar. Manter
5º período: relações sexuais. Bebidas
Todos os alimentos
40º até 90 Idem frias, contato com Trabalho na roça
considerados não
dias friagem., fazer serviços
carregados.
mais pesados em casa.
6º período: Todos os
A dieta acima Idem, acrescentado de todo
3 meses (90 alimentos acima,
acrescentado de siri e tipo trabalho inclusive
dias) até 1 menos siri e
sapinãguá. roça.
ano. sapinãguá.
7º período: Todos os alimentos são Amamentar ainda é
Após 1 ano liberados recomendado.
127

O conjunto de cuidados e recomendações dessas comunitárias se devia a crença que a


mulher até os quarenta dias após o nascimento da criança tinha o “corpo aberto” (no
procedimento com a parteira, parto em casa). Com isso era costume dizer que a mulher neste
período estava com “o pé na cova” e qualquer ato vacilante poderia levá-la à morte. Veja no
relato da informante:

“Fica aberto , até os 40 dia! você tá lá no médico você..., o médico cortou, costura,
se a criança... primeiro filho! Mas aqui não! Aqui o teu corpo tá aberto! Dizê que
você .... até os 40 dia... A minha irmã tinha um sogro, ele dizia, até os 40 dia a
mulhê tá com o “pé na sepultura”! Por que? O corpo dela tá aberto! Se ela pegá
um peso, né? Ali de mal jeito, pegá uma friagem. Por isso é que ela...[faz um gesto].
Se não tivê como ela se “cuida bem” né? Antigamente [fala com a amiga], eu não sei
se você lembra. Até o ouvido da gente era tampado de ...algodão né? [ri] prá não
pegá friagem! Né? Tudo isso! Nós aqui agora... essas menina de hoje não querem
sabê disso! Ganhô, jogô em cima da cama...já é... Olha, eu lembro, eu às vezes dou
risada lá em casa com as criança! A minha mãe deu um resguardo prá nós, que se eu
tivesse hoje em dia filho, e eu tenho meus filho, eu não dou um resguardo desse prá
elas! A água quente, a água morna prá tomá era até os doze dia! água morna... sendo
que se você tá com calor...” (Mulher, 55 anos, Praia Grande)

As restrições e prescrições desse período chamado de resguardo, têm a função de


proteger a vida e a saúde da mulher nesta passagem, visto que tem o seu “corpo aberto”,
receptivo a doenças. Se houver êxito na passagem do 1º até o 4º período (40º dia), os períodos
subseqüentes têm restrições e prescrições consideradas cada vez mais amenas, pois no 40º dia
o corpo já se fechou e não se corre mais “risco de vida” (risco de morte) iminente. Entretanto
as restrições alimentares quanto a peixe bravo e alimentos carregados ou com resma persistem
até o 7º período, quando faz um ano do parto. O primeiro período é bastante expressivo
revelando os cuidados para garantir uma boa cicatrização do períneo. O primeiro banho da
mulher após o parto será de assento com água morna e sal. Neste período está interditado o
frio, concepção utilizada também na medicina hipocrática (descrita no capítulo anterior), do
equilíbrio entre os 4 elementos (fogo, ar, água e terra), as estações com os estados climáticos:
o quente, o frio, o seco e o úmido. O útero é úmido e quente, o sangue é quente, o corpo está
quente e aberto, não podendo se misturar com coisas frias. O segundo banho do “resguardo”
será também de assento com folha de algodão, depois se usará uma outra planta chamada de
“abutua” (uma provável alusão a abotoar). As duas plantas apresentam nos saberes e práticas
de cura local o efeito cicatrizante e funcionam como o “pontiado” (costura) do médico do
hospital, ajudando a “fechar o corpo” da mulher. O banho de corpo inteiro (sempre com água
morna), lavando a cabeça, só será permitido 30 dias após o parto, pois a cabeça, o ouvido e os
pés não poderão ficar expostos ao frio do vento. Caso isso aconteça, a mãe pode adoecer
128

gravemente. Há muitos aspectos que envolvem os rituais do resguardo do Mamanguá que se


assemelham ao mesmo processo ritual do resguardo da comunidade amazônica de Itapuá, dos
estudados por Motta-Maués (ibid., p.144), como se pode conferir:

“Desde o dia do parto, a “sepultura” da mulher está aberta e, quando se


completam os quarenta dias ela fecha e, então, a mulher está livre. Além disso, é
também nesse dia que o corpo da mulher se “fecha”, depois de ter estado “aberto”
desde a gestação, daí a necessidade de sua quase imobilidade e reclusão. Por tudo
isso, qualquer descuido da parte dela, naquela ocasião, pode ser motivo, segundo
acreditam, de sérios transtornos e até mesmo a morte. O resguardo realmente não
termina ao fim dos quarenta dias após o parto, pois, no que concerne às prescrições
alimentares e certas atividades, esse período se alarga até um ano após o nascimento
da criança.” Motta-Maués (ibid., p. 144)

No tempo de hoje ficaram algumas das restrições alimentares os cuidados, embora


tenham se afrouxado, ainda são mantidos, principalmente no caso de parto cesariano138, no
qual realmente o corpo também está aberto. O parto cesariano mantém as restrições e
cuidados mais intensivos visto ser um ato cirúrgico. Mesmo trazendo um maior desconforto
para o pós-parto, nos relatos das informantes mais jovens foi possível observar a cesariana
vem sendo mais requisitada. Também foi identificado nas falas que esta preferência decorre
da insegurança da mulher em relação ao médico da rede pública. Tal insatisfação aparece em
relação tanto ao tratamento pré-natal oferecido nos Postos de Saúde, quanto aos médicos
encarregados da obstetrícia da Santa Casa de Paraty.
A explicação para essa preferência foi a seguinte: se for parto normal a grávida não
sabe em qual dia o parto ocorrerá, ficando seu destino nas mãos do médico que estiver de
plantão na Santa Casa de Paraty. Isso traz forte desconforto, pois têm que esperar em casa de
parentes ou em algum “quarto de aluguel” no subúrbio de Paraty até o parto. Se houver algum
imprevisto e ela estiver no Mamanguá, lá não há parteiras e isso é percebido também como
fator de insegurança e instabilidade para o parto, mãe e o bebê. Estes fatores complicadores
deixam as mulheres grávidas muito ansiosas e em razão disso, se houver recurso financeiro
elas farão o pré-natal na cidade de Paraty, com um médico particular que faz todos os exames,
incluindo a ultra-sonografia. Este exame é importante no parecer delas, pois vêem o feto o que
as tranqüiliza. Segundo me informaram, o pré-natal do Posto de Saúde, tanto de Paraty como
do Mamanguá, não possui este recurso tecnológico (ou não é exame de rotina), apenas
auscultam os batimentos cardíacos da criança e medem o diâmetro da barriga. Uma mulher do

138
Este parto consiste em abrir o abdome materno e extrair o feto e só é realizado por médicos oficiais. A
palavra é derivada do latim caesar, que vem de caedere ‘cortar’. que quer dizer ‘criança vinda ao mundo por
meio de incisão’(Cunha, 1997. p.174)
129

Mamanguá me relatou que perdeu uma criança porque este ficou morto por uma semana em
seu ventre, sem que o pessoal do Posto de Paraty diagnosticasse. Além do seu intenso
sofrimento pela morte do filho, ela passou por três médicos da Santa Casa que não quiseram
fazer a cesariana para retirar a criança morta, declarando ser “complicado”. Como prescrição
a fim de “resolver” o caso, os médicos mandaram que o marido da moça comprasse quatro
comprimidos de Cytotec139 na farmácia. No hospital eles introduziram por via vaginal dois
comprimidos de Cytotec para “dar as dores” e o “aborto” ocorrer. O sofrimento relatado foi
tão intenso que a impediu de ter um parto normal do segundo filho, sendo o parto cesariana
uma escolha dela e não uma recomendação médica, visto o trauma estabelecido. Ela preferiu
um acompanhamento pré-natal com um médico particular que lhe proporcionava estabilidade
e segurança no parto, evitando correr os mesmos riscos da gestação anterior.
Este desvio (o que era normal passou a ser risco) causa o “desconforto” e
“insegurança” das mulheres grávidas do Mamanguá. Em razão disso é possível e merece
verificação, o aumento de parto tipo cesariano, realizados no município de Paraty. Esses
relatos são importantes para apontar a necessidade de um estudo mais específico e
direcionado desses casos, o que não faz parte do objetivo do presente trabalho, dadas as
restrições do tempo.
No quadro 2 é possível identificar nas classificações alimentares os alimentos
considerados “carregados” ou com “resma”, “peixe bravo” e “peixe manso”. Autores como
Brandão (1981), Motta-Maués ( 1993), Cândido ( 1979), Araújo (1961), Greco Rodrigues
(2001) e Araújo (2002) têm estudos sobre o tema, vindo corroborar a construção deste
trabalho.

5.4.5.1 Alimentos considerados carregados ou com “resma”

A “resma” é sinônimo de“reima” nas representações do Saco do Mamanguá. Cunha


(1998, p. 683) informa que a reima vem da palavra reuma (uma patologia), evocando a idéia
de um fluxo de humor catarral ou aquoso. Era empregado no séc. XVI a palavra rreyma, do
latim rheuma, derivado do grego rheúma; esta última também representa atos, ações e
comportamentos. Em Ferreira (1999, p.1734) a reima seria uma corruptela de reuma, donde
vem reumatismo, palavra sempre ligada à inflamação. “Reima e reuma” também podem
representar mal-gênio (humor) e rabugem (atitude). Os alimentos considerados “carregados”
correspondem a alimentos com “resma ou reima”.
139
Este é um medicamento farmacêutico para tratamento de úlcera duodenais e gástricas; seu princípio ativo
(misoprostol) tem como efeito colateral à hemorragia uterina. Ele é contra-indicado na gravidez.
130

Segundo Greco Rodrigues (2001, p.140), o principio da reima ou resma é baseado no


princípio humoral de Hipócrates (descrito no capítulo anterior). A reima será o fluxo dos
humores e reimoso será aquele alimento ou atitude capaz de perturbar esse fluxo. Então o
potencial de reima está relacionado a organismos e não aos alimentos.
O alimento com potencial reimoso é em geral relacionado a ocasiões onde os fluxos
orgânicos (dois organismos que entram em contato), de caráter normal ou patológico,
aparecem: menstruação, puerpério, distúrbios intestinais, ferimentos ou expectoração. Em
todas essas ocasiões, quando os humores internos são expostos, o organismo mostra-se mais
vulnerável (nos estados liminares, de convalescença, doença) e o alimento reimoso possui a
capacidade potencial de perturbar esse fluxo. Ainda para esse autor, como os humores, a
reima associa-se aos problemas a que esses humores estão relacionados e de maneira especial
ao sangue e à sua qualidade de ser quente. Isto cria uma tendência (muito comum, verificada
em Brandão, 1981) de definir reimoso com algo que é quente. Greco Rodrigues (ibid., p.141)
informa ainda que alguns alimentos considerados “fortes” têm tendência a serem reimosos,
pois sua força potencial agressiva perturba o organismo.
No Mamanguá classificam- se as carnes de porco e do pato, carne de boi gordo (esta
carne é considerada menos carregada) e de algumas caças como carregadas ou que tem
potencial de resma ou reimosa. Isso que dizer que interfere nos líquidos humorais, causando
desequilíbrio. No Mamanguá mulheres em estado de passagem, como do “resguardo” devem
evitar esses alimentos pois eles podem desencadear o processo reima, perturbando os
humores, levando a sérios desequilíbrios. Também pode significar que o alimento com
potencial resma, em pessoas com feridas abertas, pode desencadear uma inflamação e/ou
aumentar a inflamação pois a ferida pode zangar (associando novamente a idéia de rabugem e
mal gênio e ainda a tensão entre as naturezas). Numa classificação do maior para o menor na
qualidade carregado: carne de porco> do pato> caça> carne de boi gordo.
Sobre isso é possível abrir um paralelo a fim de localizar estas idéias na medicina do
séc. XVI e XVII, vindas da Europa para o Brasil. Grego Rodrigues (2001, p.137) relata que a
assistência médica no país começou com a chegada dos jesuítas (já referido anteriormente),
estes organizaram ambulatórios junto aos colégios e igrejas. Na falta de matéria prima
européia, empregarem plantas e outros recursos que aprenderam com os indígenas como
substitutos. O “somatório” dessa cultura recém formada com a cultura dos povos africanos
que aqui vieram como escravos, faz-nos pensar que provocaram o florescimento do que
Araújo (1961) chama de “medicina rústica brasileira” e que eu chamo de saberes, técnicas e
práticas da arte de curar brasileira. Tal definição faz sentido quando se percebe, através dos
131

autores supracitados neste tomo, que essas qualidades dos alimentos (reimoso ou com resma,
carregado, forte, fraco) aparecem de norte ao sul do Brasil, com variantes culturais.
Os alimentos carregados ou com resma, que provocam ou interferem no fluxo normal
dos humores e geram ou agravam estados patológicos, são geralmente de origem animal,
embora alguns vegetais como abóbora140 e pequi, façam parte dessa lista (cf.Brandão,1981, p.
95-152). O pato pode ser considerado carregado ou com potencial de resma porque têm a
carne escura, segundo uma informante, tornando também impróprio para determinados
períodos da vida e determinadas pessoas. Já a galinha é apreciada e recomendada nos estados
liminares.
No Mamanguá as frutas são proibidas no resguardo e uma explicação cabe com a idéia
de Greco Rodrigues (ibid.) sobre alimentos familiares e não familiares, o selvagem e o
doméstico. Neste sentido as frutas são selvagens, inclusive porque se comem cruas e não
cozidas. Por exemplo, no Mamanguá, a banana só poderá ser ingerida assada (e não crua) e no
3º período do resguardo (quando já houver passado o período mais perigoso para a mulher).

5.4.5.2-Peixe bravo e peixe manso, marisco bravo e marisco menos bravo.

No Mamanguá os peixes, em relação à alimentação do resguardo e estados liminares,


são considerados bravos ou mansos. Bravo está em oposição a manso, sendo que esta
oposição (forte/fraco, bravo/manso, quente/frio) é muito própria da concepção hipocrática
(visto no capítulo anterior). Este bravo é algo que perturba o equilíbrio interno, faz zangar. O
alimento bravo também tem seu potencial de resma (ou reimoso). No Mamanguá, em
momentos ou estados liminares e ainda especiais como da convalescença, da doença (um
ferimento), deve-se evitar comer “peixe bravo”. No lado oposto, o peixe manso é bom para a
mulher no resguardo, alimenta e ajuda a sustentar o corpo neste período.
Dos frutos do mar o camarão (marisco do mar) é o que apresenta o maior potencial
“bravo. O caranguejo (marisco do mangue) apresenta maior potencial de “bravo” que o siri
(marisco da praia). Já o siri (marisco da praia) possui potencial bravo maior que sapinãguá ou
vongole (marisco da praia). A ostra ( da pedra) é o que apresenta o menor potencial bravo.
Classificado141 dentro de uma ordem decrescente, em razão do mais bravo ao menos bravo,
ficará assim: camarão>caranguejo>siri>ostra>sapinãguá.
Uma outra interpretação foi dada pelos comunitários como o seguinte: os peixes são
considerados com potencial de resma porque não tem escama (embora isso não seja regra
140
No Mamanguá uma informante disse que a abóbora não era permitida no seu resguardo.
141
Classificação ética das classificações êmicas.
132

fixa), dizem com resma os “peixes de couro” como o cação e a arraia. Nas representações dos
comunitários do Mamanguá o alimento carregado, bravo ou com potencial resma pode
provocar coceiras no corpo (“elergia”142), engrossar o sangue, provocar o reumatismo e
impedir que uma ferida cicatrize, que o corpo da mulher em puerpério se feche (em caso de
parto normal e parto cesariano). O efeito da resma, como do bravo se dá especialmente sobre
a pele143 de algumas pessoas, mas não de todas.
No Saco do Mamanguá as prescrições alimentares apresentam-se dentro de uma
classificação fluida e dinâmica (como todo dado cultural), pois não são seguidas por todas as
pessoas da mesma forma. Entretanto como demonstram certa concordância foi possível
construir a sistematização do quadro 3:

Quadro 3 - Representação dos alimentos por classificação


“Carregado” ou com Não carregados Peixe bravo Peixe manso Mariscos Mariscos
“resma” ( peixe de “bravos” “menos
resguardo) bravo”
Carne de porco e de Galinha caipira, Parati, cação, Vermelho, Camarão, Ostra e siri
pato. Carne de boi frango. arraia, tainha, curvina, Caranguejo,
gordo. Carne de boi espada, guete, embetera, sapinãguá
Carne de caça: paca. magra. caranho e bonito. pescada, (vongole),
Abóbora Carne de caça: pescadinha,
cotia badejo, bagre,
garoupa, cherne,
carapicú.

Diferente de Mossâmedes (uma comunidade rural de Goiás) relatado por Brandão


(1981), nas representações do Mamanguá o “ovo” e o “leite” não entram nessa classificação, e
não foram citados como proibidos. Em Brandão (ibid.) a abóbora, a carne de porco, o pato e a
carne de caça coincidem a classificação do Mamanguá, dentro da qualidade alimento reimoso.
O peixe é o alimento preferencial no Mamanguá, dado o gosto cultural por peixe com “farinha
da terra” (farinha de mandioca fabricada na região).

“O mais comum é o peixe mesmo...[rá, rá... ri]..que é o mais ‘natural’.... Peixe


frito, peixe cozido, feito pirão... fazê um pirão comê... fruto do mar... vou alí na
praia... alí, cato um muncado de ‘vongole’ né? Que o pessoal trata... aí a gente faz...
com arroz, faz um ensopadinho prá comê com feijão... Camarão que meus menino
pesca, traz camarão... E daí a gente vai... Peixe ... frango... Esse negócio de mistura
comprada é... a gente... não falta né.... Mas não tem aquela, que tem aquela
química, aquelas coisa toda né?” Mulher, 55 anos, Praia do Cruzeiro.

142
Sobre esse caso, há um exemplo interessante de uma mulher jovem, 17 anos, moradora do Baixio que tem
sério problema de “elergia” exposto na pele.
143
Esta crença encontra concordância com a biomedicina, que diz que estes alimentos tem alta concentração de
gordura animal e isso tem forte efeito alergênico em alguns indivíduos predispostos.
133

Confirmando esta senhora, percebi que na maioria das moradias o peixe fazia parte das
refeições. Nos momentos do “resguardo” é utilizado no 2º período, observando entretanto a
diferenciação de peixe bravo e peixe manso, que é o peixe do resguardo. O resguardo também
é um momento de agregação solidária, onde a sogra se aproxima da nora, os vizinhos trocam
receitas e cuidados sobre a criança. Um ritual de passagem para mãe e a criança, quando a
família recebe visitas dos parentes e amigos, apresentando-lhes o novo membro do grupo.

5.4.6 A velhice e suas doenças, percebida pela visão dos do Mamanguá.

“[rindo] A vida da gente é longa nesse mundo!


Se a gente conta tudo, tudinho mesmo,
porque a gente lembra, do que a gente lembra...
a gente “conversa” com qualquer um!!
Eu digo: é ‘seu Aúreo’, aqui quanto mais
a gente veve mais aprende!”
(Dona Antônia, Ponta da Romana)

A velhice no Saco do Mamanguá tem duas faces. Pela ótica de ser acolhido e
respeitado, a comunidade, é um ótimo lugar para envelhecer. Mas diante da falta de recursos
de transporte e de atendimento médico, torna-se muito penoso. Outro fato é que embora haja
ainda muito respeito pelos saberes e técnicas antigas, há uma tendência em deixar estes
saberes no passado, desqualificando-os no presente e para o futuro. Isso fica claro quando se
percebe que não há mais parteiras no lugar e as únicas benzedeiras do Mamanguá são: Dona
Ozana, Praia do Cruzeiro e Dona Nézia da Praia Grande. Mesmo assim elas não se dizem
especialistas completas, porque não sabem benzer de tudo. Aqueles que necessitam de benzer
recorrem à Paraty onde há maior número de especialistas. Também as simpatias e os saberes,
técnicas e práticas a respeito de “remédio do mato” e “remédio caseiro”, também estão sendo
perdidos, pois estão sendo desconsiderados como terapêuticos pelos jovens. Os comunitários
mais jovens, homens e mulheres, passaram a dar maior credibilidade ao remédio da farmácia,
disseram os interlocutores. Em razão disso o Posto de Saúde local, não dá conta da demanda.
Com um tom de denúncia os comunitários informaram-me num dia de consulta no Posto, que
idosos e mulheres grávidas muitas vezes ficavam sem atendimento, devido ao acúmulo de
pessoas para serem atendidas. E ainda que era preciso que a equipe comparecesse
semanalmente e não quinzenalmente,ou mesmo residissem na comunidade por um mínimo de
três dias, como fazem os professores da escola local.
Ainda em relação às queixas sobre o descaso dos jovens pela continuação das
tradições e costumes, um bom exemplo é o Senhor Leonel da praia do Cruzeiro. Ele é
134

proprietário do único estaleiro na região. Em razão disso todos os barcos do Mamanguá já


passaram por suas mãos. Mas ele está velho, cansado e doente, e não conseguiu um aprendiz
que se interessasse por continuar seu trabalho. Isso porque o trabalho que ele faz é artesanal,
não tem serra elétrica, “é tudo na mão” como diz e os mais novos “não tão pra isso!”. Embora
ele tenha muitos netos, nenhum ainda se interessou.
Em relação às representações de doenças na velhice tanto masculina quanto feminina,
foram identificados a seguintes categorias: vista cansada, catarata, reumatismo, esquecimento,
diabetes, pressão alta, surdez.

5.4.6.1 Doença “vista cansada”:

Esta doença é muito comum entre os idosos do Mamanguá, visto não ter especialistas
disponíveis no Posto de Saúde local e nem no Posto de Saúde de Paraty (como me
informaram). Há ainda o problema do deslocamento. Em algumas praias não há cais e a
viagem é difícil. Procurar um especialista em Angra também é complicado, pois além do
trajeto de barco há ainda o percurso rodoviário. Outros fatos que dificultam são: aviar a
receita dos óculos, alguém para buscá-los depois. Voltar ao médico para certificar que o grau
está correto.Tudo isso são fatores desestimulantes, além do valor desembolsado na consulta e
na ótica. Em geral os idosos são aposentados do INSS e recebem um salário mínimo que mal
dá para si.
A doença da “vista cansada” é percebida como um impedimento para os afazeres
cotidianos da vida, sendo a principal queixa é que não há como trabalhar depois de certa hora
da tarde144, pois a vista fica“atrapalhada”. Quando isso acontece, é comum ouvir que a “vista
está cansada” (dando uma idéia que foi muito utilizada, por isso cansou). Veja fotos abaixo de
duas senhoras da Ponta da Romana.

“Mas até agora, graças a Deus eu,... tô gozando de saúde... que dá prá mim... sei lá,
trabalhar na minha idade já. Essas coisa, mas ... agora eu sinto... e que tá mais... me
preocupando é minha “vista”. A minha vista tem hora que eu olho assim tá meio
escura e tal... entro dentro de casa assim, no sol... entro dentro de casa... tá meio
escuro... É a vista meio atrapalhada. Agora eu penso que é vista cansada! Eu não fiz
consulta prá minha vista ainda não! “(Homem, 77 anos, Ponta da Romana):

(...) agora que depois que eu fiquei ruim da minha vista é que fui fazê um exame de
vista! (Homem, 72 anos, Regato)

144
No Mamanguá não há luz elétrica, só gerador movido a gasolina e apenas em algumas moradias.
135

Na maioria das vezes estes comunitários só vão procurar um médico “das vistas” para
fazer um exame na terceira idade, quando o problema já está em estado adiantado (catarata)
por exemplo. Na figura 24 e 25, comunitárias da Ponta da Romana.

Figura 24- Mulher com sua neta Figura 25- Mulher da Ponta da Romana
(Foto: Sá Xavier, julho/2003) (Foto: Sá Xavier, julho/2003)
136

5.4.6.2 Doença “catarata”


Esta categoria é percebida como aquela que traz grande dificuldade para a vida do
idoso, já que “tampa” a visão. Em sua representação há a idéia de que se fizer “uma
raspagem” daquela película branca que cobre os olhos melhora. Mas muitas vezes a idade
avançada não encoraja nem o médico, nem o paciente a realizar a cirurgia. Este fato faz com
que a velhice muitas vezes seja narrada como um “peso”, porque há muitos problemas que
percebem como “que não tem mais jeito” e o jeito é conformar-se.

“Mas nunca fui num médico!!![fala com orgulho] eu nunca fui em médico!Só agora
que eu fiquei ruim da minha vista que eu fui a um médico. Mas não teve resultado,
sabe? Não deu prá fazê...mas diz que é só prá fazê raspagem mesmo!” (Mulher, 87
anos, Ponta da Romana)

Figura 26- Homem da Praia do Cruzeiro


(Foto: Sá Xavier, julho/2003)
137

5.4.6.3 Doença “reumatismo”

A categoria reumatismo foi-me relatada apenas por mulheres, sendo percebida como
uma dor nas pernas, nos joelhos, no corpo. Por todo o corpo há uma sensação de peso e dor,
sendo que esta dor impede que a mulher realize suas atividades domésticas. Este reumatismo
piora muito em tempo frio e melhora com o tempo quente. Como tradução entendi que por
reumatismo se entende, dores pelo corpo que pioram com o frio e melhoram com calor, e
dizem que faz parte da velhiça.

“Porque prá nós aqui, é tudo tão difícil sabe? Agora sim, que tem o Posto de Saúde
em terra, ih!! O pessoal daqui... ah!! vamo lá!! Uma dor de barrigazinha,... corre pro
médico! Uma dorzinha de cabeça, corre pro médico! Eu vou falar uma coisa prá
senhora, eu tô com quase com 80 ano, nunca fui ter uma dor de cabeça!!! Até hoje!
Nunca soube o que é ter uma dor de cabeça! Sofrimento provoca mais um pouco,
quando tá, muito frio, muito frio!! É negócio de “rematismo”!! Negócio de
rematismo da dor na perna, no joelho, às vez sinto dor no corpo! Já sei que é
rematismo!! Mas também “caba” o frio e eu não sinto mais nada!” (Mulher, 87 anos,
Ponta da Romana)

Esta fala demonstra que este reumatismo pode ser osteoporose145. Esta categoria é
sentida como “dor no osso” sendo também entendida muitas vezes como reumatismo, porque
ela também melhora com calor e piora com o frio. Há uma desesperança na solução dos
problemas junto aos médicos e com o uso de medicamentos, já que eles aliviam as dores
durante um mês, mas “volta tudo outra vez”.

“E também eu sinto muito é “dor no osso”!! Dores assim...assim... no osso... aqui, a


perna... tudo aqui... Até o dedo do pé... o outro, tudo dói!! Eu tenho tomado muito
remédio. Que foi nesse médico aqui de Paraty, tomei muito remédio, muita
injeção...Melhorava assim, questãn de um mês! Voltava tudo outra vez...”(Mulher,
57 anos, Praia do Cruzeiro)

5.4.6.4 Doença do “esquecimento” (memória).

A doença “esquecimento” no Mamanguá, ocorre em alguns no tempo da “velhiça”. É


costume tratá-la com simpatias. Esta categoria é percebida quando um informante está
contando um caso e de repente, no meio desta narrativa as idéias não mais se concatenam e
ocorre a percepção que se esqueceu o que tinha certeza que sabia. A sensação é que ficou um
“buraco” no meio da frase que se tinha guardado na memória. Esta categoria traz muitos

145
Rarefação anormal do osso (Ferreira, 1999:1460)
138

problemas para os comunitários que a todo o momento necessitam dos filhos ou netos para
lhes lembrar, por exemplo o horário de determinado “remédio”e os afazeres do dia.

“Pois é, e a gente toma também essa... como é... eu tô tão esquecida... o mais que
pega eu é o esquecimento. Eu tô esquecida. Dizem que fazer uma simpatia é bom
para o esquecimento.” (Mulher, 64 anos, Praia Grande)

5.4.6.5 Doença “diabetes”.

A diabetes é uma categoria que pode vir com a velhice ou não. Ela é percebida como
um dos maiores incômodos da vida, porque impede uma alimentação que se diz “do
costume”. Esta fala é bela para representar este momento do corpo em envelhecimento. Neste
corpo há muita coisa, coisas que foram se alojando e impedindo o caminhar, o comer, o
trabalhar, o divertimento e a alegria. Esta fala suscita, no meu entendimento, que este corpo
no Mamanguá é pensado como algo respeitado porque pertence a Deus. Mas este corpo como
suporte cultural, é um território que se vê invadido por “coisas” (doenças) percebidas como
estranhas e desconexas. As coisas são: a diabetes, a dor nas pernas e a cegueira.

“Agora assim, a gente não pode fazer mais nada!![ fala com tristeza, reclamando]
não posso andar, probrema nas minhas pernas né? Não enxergo!! Tô com diabetes!
É muita coisa no meu corpo!! Diabetes! Eu não posso fazer nada mais!!! Mais ela
faz!![apontando a nora]. Como ela via como eu fazê né? E aí ela faz! Ai ela faz por
mim!” (Mulher, 78 anos, Praia do Cruzeiro).

Na fala (abaixo) desta comunitária é possível perceber o quanto à dieta dada pelo
médico restringe e compromete a vida costumeira, sendo que muitas vezes esta dieta se torna
insuportável e impossível de realização. Mesmo sendo informada pelo médico do que pode
lhe ocorrer se não fizer a dieta, ela escolhe não seguir com rigor. Se obedecer a dieta que
médico prescreveu , sente-se “fraca” e sem forças para realizar suas tarefas, não entendendo
porque tanta restrição ela diz: “olha, se eu não comê, eu morro mais rápido!” (Mulher, 64
anos, Praia Grande)

“O que eu sinto e que não tô gostando é de ser diabético!É muiiiito chato! Nem tudo
eu posso comê! Doce não como! Muita coisa de “massa”não como! Ah!! porque já
tô nessa idade já. Se eu fizê, não fizê uma dieta, eu tô frita!! [rindo] como diz o
pessoal! Tô intrubicado. Porque aí eu faço tudo isso. Aí eu não como. Aí eu tenho
que comê um biscoitinho! Pão o médico falou prá mim comê um pãozinho no dia.
Tudo isso né? (...) agora eu vou fazê uma dieta dessa prá mim depois não podê nem
andá? Fica fraca! Né? Eu não posso!! Não tem jeito não! Eu disse assim: tô fora!!
139

Eu disse assim, tô fora... como diz meu menino! Eu não quero saber disso não!”
(Mulher, 64 anos, Praia Grande)

5.4.6.6 Doença “pressão alta”.

Esta doença é percebida como um incômodo muito ruim, a senhora da narrativa


descreveu a seguinte situação: quando atacava a pressão alta sua cabeça ficava ruim, não
conseguindo cumprir suas atividades domésticas diárias. Isso é o que mais lhe afligia, pois
desorganizava e desestruturava a vida familiar como um todo, atingindo inclusive suas
relações, na e com a comunidade. Em sua narrativa ela demonstra que o “remédio” e a “dieta”
prescrita pelo médico, além de não aliviar, só fez piorar seu estado. Este fato foi marcante
para a informante, haja visto não compreender porque, mesmo cumprindo a dieta o estado
geral não melhorava. Em decorrência disso relatou-me que interrompeu os medicamentos e
fez um “voto” na igreja crente. Sua cura sobreveio em razão de sua fé em Deus. Frisou que
nunca mais tomou os medicamentos. Este é um dos muitos exemplos da eficácia simbólica
(referida anteriormente) descrita por Lévi-Strauss (1975).

“(...) só faltava endoidá! Aí tudo muuito ruim, ‘muitoruim’...eu morava ali em


cima. Naquela casa ali né? Nós tava morando ali. Aí eu saí de manhã, e depois das 8
horas eu tomava o comprido.... e eu ficava ruinha, ruinha, ruinha... eu deixava as
roupa sem lavá, as coisa tudo bagunçado e saía... ia ali na casa da minha filha, dali
eu ia na da minha irmã, depois na casa da minha prima.. Eu sei que saía com a
cabeça tão ruim... Eu disse: é do comprimido! Aí eu ia medir a pressão. A pressão
tava alta!
Aí não come sal! Não come gordura! Evitava isso tudo né?! E eu fazia essa dieta e
ficava no mermo!” (Mulher, 54 anos, Baixio)

Mas esta pressão alta nem sempre é percebida como algo ruim, pode ocorre também
uma percepção estimulante146. No relato desde comunitário, embora saiba que pode vir a
falecer de repente, demonstra que gosta da sensação estimulante que a pressão alta lhe causa.
Quando toma os medicamentos e a pressão baixa, ele fica mais lento, sentido-se meio triste.
Confira a fala:

“(...) pressão alta também tem, isso é velhice, meu filho. A pressão alta, toda
pessoa...(...) a carne, eu mais prefiro uma carne bem assim, que não seja, bem tirar o
sal não, deixar bastante sal pra mim comer. Aí, eu me sinto bem e eu fico...

146
Este relato confere com alguns outros que tenho da minha vivência como Farmacêutica. Parece que em
algumas pessoas causa um estado de euforia, que é explicado pelas substâncias bioquímicas liberadas na corrente
sangüínea, que não cabe aqui explicar.
140

Engraçado, a minha pressão é uma pressão alta que é um estimulante!Quando ela


abaixa, eu fico também para baixo. Fico triste...! (...)A pressão, então, a gente
está sujeito a morrer assim, de repente.” (Homem, 73 anos, Regato)

5.4.6.7 Doença surdez.

Nesta fala aparece um humor típico desses comunitários, como se dissessem: já que
não tem jeito o jeito é ir levando e brincando. Particularmente este senhor é muito alegre e
percebe sua surdez como alguém que escuta demais. Esta não é uma regra, mas parece que a
surdez é percebida como menos prejudicial à vida do que a vista cansada, a catarata ou ainda
a pressão alta e a diabetes.

“Faz uns vinte anos pra cá que eu sou surdo, tenho problema de surdez. Mas antes
eu escutava bem. Eu escuto até de mais, entendeu? E a visão, enxergo demais. Eu
sou cego de uma vista. O surdo, você fala uma coisa e eu entendo outra. Então eu
estou entendendo demais. Você falou uma coisa, uma palavra, vamos supor... fala,
bala, né. Clementino, Juventino, aí eu não entendo. Então, eu estou entendendo
demais. Então eu estou escutando demais, né. Você não falou aqui, você falou outra
coisa. Eu não posso nem comentar o que você fala porque está tudo errado pra mim,
pela surdez”. (Homem, 73 anos, Regato)

5.4.7 Os rituais de cura: os benzimentos e outras práticas

A benzedeiras do Mamanguá detêm um saber tanto mágico-religioso como empírico


racional. Dentro do saber mágico-religioso elas conhecem as palavras mágicas dos
benzimentos e no saber empírico-racional elas detêm o saber sobre o poder de cura de plantas
utilizadas com fins medicinais. No Mamanguá, este conhecimento tradicional é o primeiro
recurso curativo buscado antes do médico. No entanto este saber aos poucos está sendo
perdido, segundo meus informantes. Desde que o Posto de Saúde se instalou no Mamanguá
estas benzedeiras e seus conhecimentos sobre plantas147, não têm a mesma procura. No
“tempo antigo” havia muitos benzedores e benzedeiras, hoje restam apenas duas mulheres em
todo o Mamanguá. Uma tem 55 anos e é moradora da Praia do Cruzeiro (parte Peninsular), a
outra tem 59 anos e é moradora da Praia Grande (parte Continental). A segunda é portadora
de saberes que incluem princípios do parto, no entanto só os utiliza nos casos considerados

147
Há um acervo de saberes, técnicas e práticas de cura enorme, que infelizmente não foi possível trabalhar nesta
pesquisa, visto o prazo de fechamento dos dados. Estes saberes poderão ser mais bem investigados numa futura
pesquisa.
141

emergenciais. Conquanto bastante desqualificados148, os benzimentos ainda fazem parte da


terapêutica no Mamanguá e os “remédios do mato” também, o que considero uma forma de
resistência e resiliência cultural local. Vou citar apenas alguns benzimentos mais utilizados,
onde consegui a narrativa do ritual. Estes são: do cobreiro, da impige, da zipela.

5.4.7.1 Do cobreiro

Esta é uma doença conhecida na biomedicina como Herpes149, mas que os de


Mamanguá costumam diagnosticar como cobreiro. É uma doença que

“(...) fica aquela coisa tudo preta assim...que fica aquelas bolinha ... e fica correndo
água... Aí é certo que aquilo ali é cobreiro. E dá em qualquer lugar. Na boca, que
as criança costuma muito pega negócio de folha... né? Que às vezes passa bicho... E
ás vez pega cobreiro! Pega cobreiro de sapo, que o sapo micha e ... e faz cobreiro.
Tem o cobreiro da cobra, que às vez passa numa roupa, num calçado, que a pessoa
às vez veste e não sabe! E passa na gente, e aí é cobreiro!” (Mulher, 55 anos, Praia
do Cruzeiro)

Segundo esta informante para benzer o cobreiro, há que se fazer por três vezes o ritual
em dias consecutivos. Este ritual consiste em usar um galhinho de pau que se molha na água
corrente, recitando as palavras abaixo. Depois rezas-e um pai-e-nosso, uma Santa Maria
entregando para Deus. No outro dia o cobreiro já amanhece bom. Segundo ela não precisa
passar nada, seca apenas com o benzimento.

“Pedro andaís,
Senhor não posso!
O que tem de Pedro?
Cobreiro senhor!
Curar-se Pedro!
Com o quê Senhor?
Com água da fonte e o raminho do monte!

148
Por várias razões citadas pelos informantes, apenas para citar a fé crente que desconsidera este saber
tradicional e na mesma via acabam desprivilegiando o remédio caseiro Este remédio é feito com as plantas do
lugar, conhecidas com fins medicinais. Estas receitas são passadas há gerações e estão se perdendo, posto que
muitos comunitários estão preferindo o remédio da farmácia e o chá de saquinho (industrializado) que
consideram melhor que o dá planta que cresce no seu quintal. O caso do fenômeno da Fitoterapia como “projeto”
da rede pública, foi muito bem explorado por Araújo (2002). Esta autora demonstra que o uso que a comunidade
faz das plantas com fins medicinais não está calcado nos mesmos pressupostos que sustentam o saber biomédico.
Estes saberes e práticas comunitários levam em conta a possibilidade de intervenção divina e/ou espiritual no
processo de saúde/doença/cura, assim como a capacidade concedida a algumas pessoas para diagnosticar e curar
os males do corpo e da alma (Araújo, ibid., p.54-53). Quando da implantação de um Projeto de Fitoterapia na
rede pública, esses saberes, técnicas e práticas comunitários são desconsiderados. Para falar como Santos Souza
(2003), eles são invisíveis e só uma sociologia das ausências para lhes dar o “dom” visibilidade social.
149
Cf os estudos de Souza Santos & Mendonça Lima (1991, p.235) sobre “Medicina tradicional e ocidental no
Alto Rio Negro”.
142

Pedro andaís,
Senhor não posso!
Que tem de Pedro?
Cobreiro Senhor!
Curar-se Pedro!
Com que Senhor?
Com água da fonte e raminho do monte!
Aqui mesmo eu corto!
Em nome do pai, do filho e do Espírito Santo Amén!”
Jesus Cristo quando andou pro mundo,
Muita doença ele curou,
Encontrou com Pedro, Paulo que vinha de Belém,
Pedro que doença vai por lá?
Muita doença Senhor,
Cobreiro de sapo, de cobra, de aranha, de tudo os bicho,
Então volta e vai curá!
Com quê?
Com água da fonte e raminho do monte,
Assim mesmo eu corto,
Em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo, Amén!”

5.4.7.2 Da impinge

Segundo meus informantes esta doença é classificada como forte, por isso dá uma
roda que se tem que cercar com tinta de caneta (delimitando e fechando o círculo) para que a
doença não ultrapasse os limites estabelecidos para ela (tem uma noção de dominar a doença).
Também se faz necessário benzer durante três dias, após isso sobrevêm a cura.

“A gente põe o pé lá na cinza e fala: “impinge, eu te corto costa, cabeça e rabo” aí


vai cortando, vai cortando com a faca assim...e depois torna a botar... e torna a dize
aquelas palavra assim...E reza de novo, aquelas palavras de entregar prá Deus. Aí
cabou!” (Mulher, 55 anos, Praia do Cruzeiro)

5.4.7.3 Da izipa

Esta doença chamada de izipa, geralmente é diagnosticada pelos médicos como


erisipela. No ritual do tratamento com benzimento se faz assim: apanha-se um “ramo de pau”
(um galhinho de uma planta qualquer) e faz-se o benzimento, que traz a cura. As palavras do
ritual são estas:

“Izipa, tu vem do tutano, do tutano tu vem os ossos, dos ossos tu vem a carne, da
carne tu vem a veia, da veia tu vem a pele, da pele tu vai ao mar, para nunca mais
voltar.” “Aí fala o nome do pai, do filho e do espírito santo e vai continuando a
143

benze...Depois reza um pai e nosso, uma ave-maria, entrega prá Deus! Mas tem que
ser três vezes né?” (Mulher, 55 anos, Praia do Cruzeiro)

5.5 Considerações sobre saúde/doença/cura e qualidade de vida na comunidade do


Saco do Mamanguá.

No decorrer do trabalho de campo no Saco do Mamanguá o foco dado por Araújo


(2002, p.41) ficou evidente. Esta autora revela que o distanciamento entre médico e paciente
tem como ponto fundamental um modelo de conhecimento que coloca o paciente como objeto
de observação e intervenção médicas. Nestas relações (este jogo de poder150 não é privilégio
do Mamanguá) entre poderes desiguais, o saber local (senso comum de Geertz, 2002) é
desqualificado. Como foi demonstrado no capítulo anterior, este modelo de conhecimento
constitui a base de sustentação da hegemonia do saber de um sobre o outro e fica difícil
estabelecer uma “relação” mínima de simetria. No entanto, Leff (2001) nos esclarece dizendo
que chegou o momento do tema ambiental questionar as práticas médicas, como também
nossas relações com o corpo e a vida. Confirmando minha proposta atual, Leff (op.cit.)
investe da necessidade de reconceitualizar (e recontextualizar) os processos de
saúde/doença/cura, demonstrando que estes processos de significação cultural estão
intimamente relacionados com a qualidade de vida e portanto com a saúde de uma
comunidade. Com isso surge uma nova visão situada no campo da saúde ambiental que vem
(re) valorizar os saberes, práticas e técnicas ditas tradicionais de prevenção, tratamento e cura.
O debate já foi realizado (e referido aqui) tanto na elaboração da Agenda 21, como também na
formulação da “Estratégia Mundial de Saúde e Meio Ambiente”, o que ocorre de fato é um
atraso real das políticas públicas em dar conta do problema.
A qualidade de vida que enfatizo nesta proposta é ampla e dá ênfase aos aspectos
qualitativos do “estar no mundo”, pois saúde e qualidade de vida estão intimamente
relacionados na visão dos comunitários do Saco do Mamanguá. Trabalhar todos os dias com
satisfação, cumprindo as tarefas diárias é saúde, participar de um culto ou festa religiosa é
saúde, alimentar um filho ou um neto é saúde, deleitar-se com o alimento preferido é saúde, ir
a escola é saúde para as crianças e adolescentes, visitar um parente é saúde, entre outros. A
saúde é alegria, bem-estar, festas, rituais, aprendizado, confraternização. Ela é entendida em
sua forma holística na reprodução das práticas culturais locais.

150
No sentido de Focault (2001)
144

Mas no caso do Mamanguá, há um descontentamento geral em razão de que: além de


não haver um atendimento médico que supra as expectativas e as carências locais (de
atendimento médico à exames), os saberes, técnicas e práticas locais que antes davam conta
dos principais adoecimentos são desqualificados pelos mais jovens e pelos próprios agentes
de saúde locais (aparece aqui um mimetismo do discurso biomédico). Estes mais jovens vêm
no saber biomédico um substituto151 dos saberes locais de cura, mas este atendimento do
Programa de Saúde da Família implementado pelo município na região, não dá conta de
responder estas expectativas, este é um fato na fala dos meus informantes. Seja porque não há
recurso humano bem treinado e disponível (três pessoas não são suficientes), que dê conta de
um diálogo mínimo, seja pelo fator tempo disponível da equipe, que comparece
quinzenalmente (em tempo de chuva e vento, nem isso). O Programa de Saúde da Família
encampado pelo governo federal prevê equipes fixas em zona rural dos municípios, para que
os profissionais de saúde possam conhecer as pessoas, suas famílias, o meio (ambiente
inclusive) em que elas vivem e dar-lhes atendimento domiciliar privilegiado que contemple
ações preventivas, mais que ações curativas (Araújo, 2002, p.38). Isso está longe de ocorrer
no Mamanguá e quem mais perde são os comunitários.
Focando as representações das expectativas locais sobre qualidade de vida, aparece
em primeiro plano um atendimento digno na área da Saúde. Dizem: “melhorou, mas pode
melhorar mais”. Eles reconhecem que era pior, mas pode melhorar com a construção de mais
um Posto de Saúde, com mais uma equipe na parte Continental, evitando os deslocamentos de
barco que são difíceis (principalmente para os mais idosos, as mulheres grávidas e em
puerpério), recurso humano mais bem treinado e que execute efetivamente os planos do
PSF152.
As especialistas da comunidade querem ser ouvidas, querem participar com suas
receitas de remédios caseiros, benzimentos e simpatias. Na formação da equipe querem ser
reconhecidas e treinadas para atendimento de grávidas, como também do parto normal153,

151
Compram a idéia da cartilha neo-liberal que menospreza o tradicional e diz que “o que é moderno é melhor”.
Incentivados pelo consumismo de tratamentos (planos de saúde) e medicamentos (indústria farmacêutica)
qualificados pelo discurso biomédico, fortalecendo a crença estabelecida desde o final do séc. XVIII e começo
do séc. XIX que só os médicos podem verdadeiramente curar.
152
Como já dito, um PSF “real” é baseado nos princípios do SUS (sistema único de saúde), onde a participação
popular e a manifestação da opinião sobre as ações de saúde local sejam consideradas no Projeto implementado
pelo município, em acordo com a Constituição de 1988 e a Lei Orgânica da Saúde (Araújo, 2002, p.32).
153
Visto as dificuldades já descritas em relação ao parto no Hospital de Paraty e a insegurança das grávidas em
relação ao pré-natal.
145

pois não consideram o parto uma doença e nem que necessite de intervenção médica direta154
(prevendo as exceções).
Reconhecem que a qualidade de vida com saúde será efetiva quando houver uma
escola de ensino médio na comunidade, inclusive profissionalizante. Esta escola poderia
oferecer curso de artesanato, curso de alfabetização para adultos e cursos sobre os remédios
caseiros (principalmente sobre os saberes locais no uso de plantas com fins medicinais).
Aproveitamento inclusive dos saberes dos comunitários mais velhos, como o Senhor Licínio,
na feitura na canoa, e o Senhor Leonel Oliveira na construção das baleeiras. Estes
conhecimentos locais tradicionais não devem ser perdidos, eles têm que ser incorporados aos
saberes da Escola, segundo meus informantes.
Os valores culturais são importantes e estruturam o cotidiano no Mamanguá, não há
como impor valores homogeneizados balizados em políticas intervencionistas (em quaisquer
áreas). O saber local constitui o verdadeiro patrimônio do Saco do Mamanguá e a saúde de
sua comunidade depende da reprodução deste saber. Nunca é demais lembrar que

“a saúde depende, em última instância, da capacidade de gerenciar eficazmente a


interação entre os meio físico, espiritual, biológico e econômico/social. É
impossível haver desenvolvimento saudável sem uma população saudável (...)
Por si própria, a área da saúde não tem como satisfazer suas necessidades e atender
seus objetivos, ela depende do desenvolvimento social, econômico e espiritual, ao
mesmo tempo que contribui diretamente para tal desenvolvimento.” Agenda
21(1992, cap.6.3) [grifo adicionado]

154
Sobre este assunto há em Brasília (DF) um grupo na área da Enfermagem que defende o “Parto Ativo”, este
projeto foi divulgado pela TV Senado. Esta é uma idéia nascida na Inglaterra após um manifesto de mulheres
gestantes, propondo e defendendo os seus “direitos” na opção pelo parto natural e humanizado. O canal de tv a
cabo GNT já apresentou vários programas da série “Nascer”, mostrando os partos feitos por parteiras na
Inglaterra. Em Recife há uma ONG com um Projeto chamado “Parteiras do caís do porto”, mostrado pelo canal
Futura na série Brava Gente Brasileira.
146

6 Considerações finais

Vimos que o objetivo dessa pesquisa foi estabelecer uma reflexão sobre as questões
éticas que acompanham a criação de uma Unidade de Conservação com moradores, no caso
uma Reserva Extrativista Marinha. Nestas questões a “meta social” visa assegurar a “saúde e
qualidade de vida” das “populações tradicionais” residentes em Unidades de Conservação. O
estudo de caso no Saco do Mamanguá vem demonstrar através de suas representações
simbólicas de saúde/doença/cura a urgência da inserção desses dados antropológicos numa
discussão sobre “meta social” sustentável.
No segundo capítulo foi feita uma revisão sobre a construção do conceito de
“população tradicional” em seu contexto histórico/político. Nesta revisão fica claro que a luta
social/ecológica pela criação das Reservas Extrativistas no Estado do Acre tornou-se
emblemática para os demais movimentos dispersos no país. O fato de o SNUC admitir de
forma textual “população tradicional” em U.C. foi um marco importante. Percebe-se, insisto,
que não há um consenso entre os autores, sobre o conceito de “população tradicional”, visto a
transversalidade que o tema impõe. No entanto, a nova categoria se reveste de carne e osso,
assumindo sua “tradicionalidade”155, indiferente aos conceitos acadêmicos e/ou
políticos/institucionais, conquistando um espaço conceitual outrora vazio ( também
“inventado”). Isso ocorre através de pactos e práticas em troca de benefícios e direitos à
territorialidade social, conferindo-lhe substância política significativa, como é o caso dos ditos
“caiçaras do Saco do Mamanguá” à espera da Resex marinha.
Pode-se argumentar que embora os formuladores do conceito “população tradicional”
tenham intencionado usar esta noção, na direção de uma “sociedade tradicional” nos termos
da “cultura rústica brasileira” usada por autores como Cândido (1979), Ribeiro (1979),
Diegues Junior (1980), Berta Ribeiro (1987) e Holanda (2001), para contrastar com sociedade

155
Inventada/construída como toda tradicionalidade, já visto com Hobsbawn (1997).
147

moderna/urbano/industrial, este ponto não é pacífico. Sobre isso Hobsbawn (1997) informa
que toda sociedade tem sua tradição inventada. Neste sentido é válido dizer que estas práticas
sociais recorrentes podem ser entendidas como sendo uma forma ritual de situar o passado,
trazendo-o para o presente, (re) significando o estar no mundo. Giddens (1990, p. 37-38, apud
Hall, 2000, p. 14-18) contribui neste debate sobre sociedades tradicionais, argumentando que
o passado é cultuado e os símbolos são valorizados posto que carregam e perpetuam a
experiência de gerações. A “tradição” será um meio de lidar com o tempo e o espaço,
inserindo marcas rituais sob a forma de atividades ou experiência particular. Essas marcas
rituais dão continuidade ao passado, presente e futuro, estruturados por práticas sociais
recorrentes. No caso do Saco do Mamanguá estas tradições configuram um saber patrimonial
imaterial, um capital social importante para as futuras gerações. Nas sociedades tradicionais
as mudanças são lentas e gradativas, enquanto que nas sociedades modernas/urbano/industrial
elas são rápidas. Estas mudanças rápidas, que caracterizam a modernidade tardia e
globalização, podem desestabilizar uma sociedade tradicional. No caso do Mamanguá é
necessário e urgente que órgãos públicos como Ibama/ CNPT assumam uma responsabilidade
social, usando de uma ética da conservação a fim de evitar ou gerar conflitos.
Com o tema ética, já referido por Leff (2001) e o Manifesto por la Vida (2002), Lima
(2002) demonstra que as expectativas dos órgãos governamentais em relação à conduta da
“população tradicional” residente em U.C., expõem um claro desequilíbrio de forças. Isso se
torna manifesto nos vários sacrifícios que esta população tem que assumir e que não são
divididos igualmente com todo resto da sociedade. O poder governamental impõe regras, tece
estratégias156 e constrói projetos verticais157, contrariando o processo histórico da constituição
de uma Reserva Extrativista. Isso pode inviabilizar o sucesso da iniciativa, inclusive
aumentando conflitos pré-existentes nas áreas. Santos (2004, p. 54) nos esclarece que a
racionalidade de vetores verticais desequilibra forças porque obedece a uma lógica do
“global” em detrimento de uma lógica do “local”. A diferença é que o “local busca sentido” e
o “global busca resultados”. Seguindo o pensamento de Santos (ibid), a horizontalidade é o
resultado da vizinhança, da coabitação e da coexistência do diverso. Sabe-se que os órgãos
governamentais não conseguem estabelecer uma “meta social” que contemple a população
pois esta não é sequer “sujeito” desses projetos, apenas “objetos”. Um futuro possível será
fazê-los sujeitos da conservação e não objetos da conservação. Neste sentido é possível

156
Balizado em premissas não-locais, portanto não verdadeiras e nem integradas a realidade local.
157
Na idéia de Milton Santos (2004, p. 53), a verticalidade vem desses vetores que se instalam nos lugares e que
pouco importam com o que está em seu entorno.
148

apontar um caminho do diálogo dialógico idealizado por Freire (1987, 1979, 1996). Assim,
algumas “reuniões” poderiam ser descartadas, sobretudo quando há atitude imperial de
alguém falando em pé e alguém sentado passivamente ouvindo. Este autor (1979, p.23)
demonstra que este “alguém” (homem ou mulher da comunidade do Saco do Mamanguá e/ou
outras congêneres) “não é uma lata vazia que vão enchendo com seus depósitos técnicos”. O
educador/facilitador trabalha com os indivíduos e não sobre os indivíduos a quem considera
sujeitos e não objeto, acrescenta Irving et al.(2003, p. 203158). Como salienta esta autora
(ibid.), quanto mais diversificado e interdisciplinar for o repertório do
pesquisador/facilitador/educador, mas ricas e criativas serão as suas associações com a
realidade pesquisada (ou qualquer empreendimento junto aos atores sociais). Isso dará uma
maior possibilidade de entendimento do ‘capital social’ do grupo, percebendo que este não se
configura em limites espaciais e temporais pré-definidos, engessados a partir da conveniência
dos métodos clássicos de pesquisa (com seus “ismos”). Nos termos de Irving et al. (2003) a
comunidade quer ser protagonista e influente em seu destino. Este estudo considera esta
premissa pilar básico para se empreender uma “meta social” sustentável que contemple saúde
e qualidade de vida aos comunitários do Saco do Mamanguá.
O terceiro capítulo busca as origens do léxico “caiçara”, percebendo que esta foi uma
definição construída na relação de alteridade estabelecida. O grupo pesquisado dos
comunitários do Saco do Mamanguá não se identifica como “caiçara”, mas são assim
chamados pelos outros (de Paraty, pesquisadores e turistas), como informaram. Originalmente
se denominam como “do lugar”, “do Mamanguá”, de “tal praia” e “da roça”. Entretanto a
denominação “caiçara” vem sendo incorporada em discursos políticos por alguns, por conta
da visibilidade institucional e política que o termo carrega hoje, frente ao projeto da
implantação da Resex marinha.
No quarto capítulo foi verificada através da análise crítica com Focault (1979, 1995,
2000), Cangüilhem (2000) e Illich (1975), a construção social do modelo biomédico, assim
como dos outros saberes e práticas da arte de curar tradicional, configurando-se em
um“capital social” ou “patrimônio cultural”. Este capítulo é fundamental para a qualificação
dos outros saberes do Mamanguá, na relação de alteridade. Para falar de saúde e qualidade de
vida de população tradicional, torna-se de fundamental o entendimento de que todos os
saberes são construídos socialmente, incluindo o saber biomédico. Este saber foi naturalizado
dentro de um contexto social, que convinha assim a exclusão dos outros modelos também

158
A idéia de Irving et al. (2003) é fazer pesquisa participante na implantação, por exemplo, de Turismo
Sustentável.
149

socialmente construídos. Este modelo de curar biomédico foi e é oficializado como o único
capaz de produzir um tratamento e cura, desconsiderando dados culturais dos enfermos em
suas histórias de vida. Este claro desequilíbrio de forças vetoriais (Santos, 2004) gerou uma
invisibilidade social dos outros saberes de práticas de cura, impedindo o diálogo entre os
saberes. Boaventura S. Santos (2003 a, b) e Menezes (2004) identificam uma emergência na
atribuição de visibilidade aos outros saberes, sugerindo o resgate de práticas e técnicas da arte
de curar que podem contribuir para um diálogo profícuo entre os saberes (viabilizando desta
forma as redes de trocas entre saberes159). Boaventura S.Santos (2003) nos provoca com a
declaração de que há uma “zona de contacto imperial” entre o conhecimento biotecnológico e
o conhecimento dos curandeiros, xamanes e especialistas tradicionais em comunidades
indígenas e rurais na América Latina, África e Ásia (incluindo Europa). Afirma ainda que há
uma forte contestação dessas comunidades e dos movimentos sociais transnacionais, visível
em uma proposta para se construir uma “zona de contato não imperial”, onde as relações
entre os diferentes saberes e práticas seja horizontal. O documento “Manifesto por la vida”
(2002) propõe promover estratégias de conhecimento abertas para a imbricação das ciências e
da tecnologia moderna, com os saberes populares e locais, favorecendo uma política
intercultural que se efetive num diálogo de saberes .
Neste sentido apoiamos um diálogo dos saberes como nas idéias de Morin (2000),
Leff (2001) e Santos (2003). Tanto isso é possível que, quando interessa a biotecnologia160
valora o saber local usando este saber para desenvolver produtos e suas respectivas patentes,
como num pacote com via de mão única. É necessário reforçar a necessidade de uma ética da
sustentabilidade que promova trocas mais igualitárias, desfazendo este nó do contato
imperial. Para Santos (2003 a, b) não há ignorância em geral nem saber em geral, pois toda e
qualquer ignorância é ignorante de um certo saber e todo saber é a superação de uma
ignorância particular. Este trabalho propôs a construção de um diálogo dialógico e simétrico
(horizontal), convocando como mediador uma ética para a sustentabilidade explícita no saber
ambiental proposto por Leff (2001), afirmado por Lima (2002, p. 39) e reivindicado no
Manifesto por la vida (2003).
O quinto capítulo tratou de cartografar as representações simbólicas de
saúde/doença/cura, focando a comunidade do Saco do Mamanguá, Paraty, RJ, a fim de
demonstrar a distância entre o saber local e o saber biomédico. Na retrospectiva das

159
Com este intuito a Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense criou o Laboep – Laboratório
de Educação Patrimonial da FEUFF que vem trabalhando na construção de um diálogo entre os saberes.
160
Mostrando-se muitas vezes como uma área do conhecimento de valores mercadológicos e racionalidade
capitalista, insensível às questões tanto ecológicas quanto sociais.
150

classificações éticas das classificações êmicas (expostas como uma síntese nos quadros 1,2 e
3) evidenciam que há uma grave distância entre os saberes biomédicos e os saberes
tradicionais do lugar, prejudicando fortemente a comunidade em seu direito à “saúde e
qualidade de vida”. Este direito é Constitucional, inscrito em seus artigos 196161, 198 e 200 e
ancora-se dentro dos preceitos de uma justiça social igualitária, bem como na proposta do PSF
norteado pelos princípios do SUS (Araújo, 2002, p.32). Os saberes de cura no Saco do
Mamanguá não são saberes isolados, eles não excluem o saber biomédico. Por isso há
“doenças que médico cura” e “doenças que médico não cura”. As “doenças que médico não
cura” fazem parte da cosmovisão local, sendo que se perpetuam como marca ritual na prática
social recorrente (tradição), gerando uma (re)significação e ordenamento do mundo ( e do
tempo) para estes seres humanos, em “estado de comunidade” (Moscovici, 1990, p. 56). Fica
aqui como ponto pacífico que esta forma de “estar no mundo”, o “ethos local” dos do
Mamanguá atende a conceituação (da regra por extensão) de “população tradicional”
argumentada por Diegues (1999) e Carneiro da Cunha e Almeida (2001), sendo adotada pelo
Ibama/CNPT.
Outro dado importante na cosmovisão dos ditos caiçaras do Mamanguá é a clara
imbricação entre natureza e cultura, percebida através do mito “filho de bicho”. Este mito se
configura , como já exposto, bem mais do que uma simples explicação para o aborto, e se faz
necessário um “outro olhar” para esta questão e tantas outras questões correlatas, visto
apresentar-se como um elo de resistência das “tradições locais” às contínuas mudanças sociais
a que estão expostos os moradores do Mamanguá. Reconhece-se também através das falas dos
sujeitos que a fé, expressa como eficácia simbólica (Lévi-Strauss, 1975) tem forte conotação
para os que são do Mamanguá. Este fato está explicito nas categorias “doenças que médico
não cura”, como aguado, vento virado, quebranto, olhado, doença de criança ou fogo bravo e
catarro sufocante. Na etiologia, tratamento e cura demonstram a construção da lógica local
para estas doenças, daí a recusa em procurar o Posto de Saúde. Esses dados antropológicos
merecem um desdobramento futuro, já que podem proporcional um melhor entendimento do
assunto.
Há uma grande lacuna deixada por este trabalho de pesquisa no que tange aos
conhecimentos tradicionais sobre o uso das plantas com fins medicinais ou mágicos. Estes se
configuraram como um verdadeiro saber patrimonial local, entretanto dado não ser foco do

161
Art. 196. “ A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas
que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Brasil (1988, p.133)
151

estudo, não foi possível desenvolvê-lo, apenas apontá-lo. Este também merece um estudo
minucioso do ponto de vista do conhecimento do nativo, tecendo uma rede de troca entre os
saberes (saber local e saber acadêmico).
Alguns dados do campo apontam que problemas de saúde no Mamanguá requerem um
olhar mais cuidadoso e habilidoso dos profissionais de saúde, visto que podem ter uma
solução negociada entre as partes. Por exemplo a hipertensão, muitas vezes associada a
diabetes pode ter forte relação com hábitos alimentares (o costume de conservar as carnes de
peixe e boi salgados)162 bem como o estressante momento político pelo qual passa a
comunidade. Existe uma forte insegurança dos comunitários, percebida nos diálogos, com
relação às incertezas do futuro do seu “lugar”. Soma-se a isto os constantes aborrecimentos e
ameaças territoriais (explícitas ou não) dos novos vizinhos “turistas”163. Neste caso o uso de
medicamentos sem um hábito alimentar e de vida adequados não resolve o problema criando
outro, pois torna este sujeito dependente de um medicamento que nem sempre está disponível
no Posto de Saúde. A sociedade no Mamanguá tem um histórico de práticas e hábitos com o
uso de medicamentos homeopáticos que pode ser ampliado. A inclusão de um médico
Homeopata na equipe de saúde do PSF poderá ajudar a resolver muitos dos problemas em
saúde da comunidade, tanto em relação ao custo/benefício da terapêutica como em relação à
sensibilidade para questões culturais emergentes (posto que a homeopatia tem uma filosofia
vitalista para entendimento dos processos de saúde/doença/cura)
Os problemas enfrentados pelas grávidas e pelos idosos merecem melhor atenção e
pesquisa, visto representarem o futuro possível do Saco do Mamanguá. A transmissão do
conhecimento – o patrimônio imaterial164 – dessa população está sendo interrompido, por não
se mostrar como um atrativo para os jovens do Mamanguá, encantados com o néon do
capitalismo tardio e suas tecnologias fáceis, e ainda pelo fato destes saberes não serem
devidamente qualificados pelos profissionais biomédicos. É preciso qualificar e resgatar estes
saberes que, se não forem transmitidos cairão no esquecimento, inviabilizando a reprodução
das tradições locais para as futuras gerações, causando uma ausência de difícil recuperação
(Santos, 2003 b). Este autor ainda nos diz que “os saberes e as práticas só existem na medida
em que são usados ou exercidos por grupos sociais”. Logo, um desenvolvimento sustentado
para a comunidade do Mamanguá deve efetivamente fomentar a reprodução do seu “capital

162
Sabe-se que certos “estilos de vida” podem levar pessoas com determinada constituição genética a
desenvolver determinadas doenças como diabetes e hipertensão.
163
São assim denominados pelos nativos do Saco do Mamanguá.
164
Como no caso da tradição do conhecimento das “parteiras” do lugar, dos saberes das plantas com fins
medicinais, das rezas e benzimentos, etc.
152

social” em todas as suas formas de representação simbólica (música, artes de cura, cultos,
festas, comidas, danças, modos de viver e territorializar-se, entre outros)
Reitero que as sociologias das ausências e das emergências de Santos (2003 a e b),
podem ser usadas para dar conta de parte dos problemas enfrentados pelas tantas ausências e
emergências no Saco do Mamanguá e em tantas outras comunidades semelhantes. É preciso
ouvir o silêncio (dos oprimidos) e perceber o virtual (cultural) do imaterial. Com isso espero
sinceramente que este estudo contribua para futuros desdobramentos, seja em outras áreas ou
mesmo aprofundando as questões aqui apontadas. Esta ação poderá favorecer inclusive outras
comunidades tradicionais que vivem problemas semelhantes em outros lugares.
153

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