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O vencedor das eleições deste ano enfrentará grandes desafios em 2011, a começar pelo
fato de suceder um presidente com aprovação recorde, diz o historiador Jose Murilo de
Carvalho. "Ex-presidentes, sobretudo os que terminam seu governo com avaliação
muito positiva, têm a capacidade de se tornarem uma sombra para os sucessores, aliados
ou adversários", afirma Carvalho, professor titular aposentado da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ).
Para ele, "se exercida essa capacidade", um eventual adversário do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva "estará sob permanente vigilância e terá que enfrentar a cobrança
do tipo 'no meu governo etc.', que pode ter efeito desgastante". A situação de Dilma
Rousseff (PT) tampouco seria confortável". Sem voo político próprio e sem a liderança
e a popularidade do antecessor e mentor, ela terá dificuldade em firmar sua autoridade e
seu comando, sobretudo se houver deterioração no cenário econômico". Dessa forma, o
melhor para todos, especialmente para a democracia brasileira, "seria que o futuro ex-
presidente se abstivesse de interferir no governo de seu sucessor".
Alem da sombra de Lula, o sucessor terá outros grandes desafios, pois vai comandar um
país ainda muito desigual, apesar das melhorias recentes, em que metade da população
não tem rede de esgotos, a educação e de péssima qualidade, a carga tributaria e alta e
os gastos públicos são excessivos. "Todas essas contas serão apresentadas ao sucessor,
que não terá a garantia de enfrentar condições internacionais favoráveis como foi o caso
em quase todo o mandato de oito anos de Lula."
Entre Dilma e José Serra (PSDB), o historiador considera difícil dizer quem tende a
fazer o melhor governo. "Dilma poderá dar continuidade às políticas includentes de
Lula, que chamo de democráticas, o que seria bom." Mas vê o risco de que ela faça
crescer ainda mais o tamanho do Estado, além de tentar aumentar o controle
governamental da economia e sobre a sociedade. Já Serra representa a alternância no
poder, algo bom "em si". "E ele poderá reforçar mais o lado que chamo de republicano,
que se refere à boa gestão do dinheiro publico e à redução do aparelhamento do
Estado." Quanto ao controle do governo sobre a economia, Serra provavelmente não se
distinguiria muito de Dilma, acredita ele. Carvalho faz uma avaliação positiva de
Marina Silva (PV), "uma candidata republicana, boa demais para ganhar: “um exemplo
de vida, uma mulher pública inatacável em seu comportamento, com uma clara
mensagem a propósito de um tema que constitui um dos maiores problemas do Brasil e
do mundo." Ao analisar o governo Lula, Carvalho diz que, entre erros e acertos, o saldo
e positivo. "Avançamos algo na redução da desigualdade e muito na redução da
pobreza, dentro de um clima de liberdade e, apesar dos escândalos, sem ruptura do
sistema representativo. Demos um grande passo à frente". Entre os pontos negativos,
aponta a tolerância com praticas abusivas como as do mensalão e dos “aloprados", e
uma postura quase desrespeitosa em relação ao Judiciário", criticando ainda o
inchamento do Estado e a ideologização excessiva da política externa.
Valor Como ocorre desde 1994, a eleição está polarizada entre PT e PSDB, os
partidos que, segundo disse uma vez Fernando Henrique Cardoso, disputam "quem é
que comanda o atraso". Esse arranjo tem sido benéfico para o país?
Carvalho: A frase é justa. Tanto Fernando Henrique quanto Lula pagaram o preço de
suas alianças com o atraso. Isso foi cobrado de Fernando Henrique, agora e cobrado de
Lula. Por mais que essas alianças frustrem e irritem os que sonham com uma
democracia moderna, sem elas, em nossas circunstâncias, não teria havido a estabilidade
necessária para o exercício do governo dentro de um sistema representativo. Os
impasses entre o Executivo e o Legislativo teriam causado paralisia do governo, pois,
como já percebera Celso Furtado, entre nós o Executivo tende a ser mais reformista do
que o Congresso. É verdade que essas alianças têm causado grandes danos a Republica.
Esta aí o exemplo do mensalão. Mas é preferível lutar contra a corrupção dentro da
liberdade do que nem poder detectá-la em regime de exceção.
Valor: Lula tem aprovação recorde e neste ano o pais crescerá 7% ou mais. Ele será
uma sombra incômoda para o próximo presidente?
Valor: Os fatos de não ter experiência político-eleitoral e não ser uma petista histórica
podem fragilizar um eventual governo Dilma?
Carvalho: Sem dúvida. Não será fácil superar esses obstáculos e ainda ter que
enfrentar a posição e a sombra do antecessor/criador. Acresce-se a isso o fato de, se
eleita, tomar-se a primeira mulher a governar o país no regime republicano. As pressões
serão enormes.
Valor: Serra representa a mudança num momento em que a aprovação de Lula e o
crescimento favorecem a continuidade. Como articular um discurso de oposição nessas
circunstâncias?
Carvalho: A tarefa da oposição não é fácil. Ela tem que enfrentar a candidata de um
presidente popular com as armas de um candidato reconhecidamente competente, mas
sem apelo popular. A tática de não confrontar diretamente o presidente e prudente, mas
não suficiente para convencer o eleitor, favorecido pelas políticas sociais do governo, a
arriscar mudanças. Alem de concentrar a crítica nas fraquezas da candidata oficial, ele
terá que mostrar as diferenças que pretende introduzir nas políticas, e isso sem dar
margens à acusação de querer voltar atrás nas políticas redistributivas.
Carvalho: É mais fácil, ou menos difícil, falar dos dois candidates do que adivinhar
seus eventuais governos. Os dois têm a mesma origem na esquerda e coincidem em
varies pontos. Quanta as candidaturas, a de Dilma e um enigma. Ela tem feito todo o
possível para se ajustar ao papel que lhe foi atribuído e às necessidades da campanha,
com plástica, sorrisos, posições liberais em economia, corretas em ecologia e
democráticas em política. Mas nada disso corresponde bem a sua biografia, que esta
mais próxima do estatismo em economia, incorreção em ecologia e autoritarismo em
política. É difícil dizer qual Dilma vai governar, se eleita. Serra e um só, embora
também faça ajustes eleitorais, como voltar atrás em seu ataque a independência do
Banco Central. Tem, como a Dilma não eleitoral, pouco jogo de cintura, um estilo
centralista de governar e uma postura de desenvolvimentismo a todo custo. Suas
vantagens são a transparência, a experiência poética e a capacidade comprovada de
administrador. Um eventual governo Serra certamente daria maior ênfase a boa gestão
dos gastos públicos do que ao seu aumento.
Valor: Entre Dilma e Serra, quem tende a fazer um governo melhor para o país?
Valor: O PMDB ganhou força ao longo do governo Lula. Para ter o apoio do partido
à Dilma, Lula fez o PT apoiar o PMDB em Minas e no Maranhão. Esse avanço do
PMDB é preocupante?
Carvalho: Dada a polarização, acho que ela não passará de coadjuvante. É uma
candidata republicana, boa demais para ganhar. Mas, no caso de um final de campanha
muito disputado, seus votos poderão decidir se haverá um segundo turno e, caso haja,
seu apoio poderá decidir o resultado final. De qualquer modo, uma campanha como a de
Marina só fará bem ao país, é um exemplo de vida, uma mulher publica inatacável em
seu comportamento, com uma clara mensagem a propósito de um tema que constitui um
dos maiores problemas do Brasil e do mundo. Sua pregação ecológica sozinha já vale
sua campanha, sobretudo quando se leva em conta que a ecologia não é a forte de
nenhum dos dois principais candidatos, para dizer o mínimo.
Valor: Nas últimas semanas, Serra e seu vice adotaram um discurso mais
conservador. Pode ser interpretado como uma guinada a direita?
Carvalho: A Independência não tocou na estrutura social do país, a abolição se fez sem
guerras, a República só mudou a escolha do chefe de Estado e fortaleceu as oligarquias
regionais. A Revolução de 1930 nada teve de revolução, a Revolução de 1964 foi uma
contrarrevolução, 1985 foi uma negociação. A razão para isso é que o povo político no
Brasil nunca teve capacidade revolucionária em nível nacional e só começou a ganhar
forca eleitoral a partir de 1945. Até hoje ele ainda é vulnerável a políticas de cooptação.
Pela capacidade de coerção ou cooptação, temos as elites mais competentes do mundo,
inclusive a que está no poder hoje.
Valor: Quais os principais pontos positivos e negativos que o sr. vê nos dois mandatos
de Lula?
Carvalho: Quando Lula foi eleito pela primeira vez, afirmei que ele entraria para a
história se conseguisse reduzir substancialmente a desigualdade social Embora ainda se
mantenha entre as mais altas do mundo, a desigualdade diminuiu nos últimos anos.
Mas, sobretudo, de acordo com dados do Ipea, houve redução da pobreza e da miséria
desde o Plano Real, com grande aceleração a partir de 2003. Programas de inclusão
iniciados no governo anterior, como o Bolsa Escola, foram grandemente ampliados no
Bolsa Família, e pelos aumentos no salário mínimo. Apesar dos problemas na
concepção e gestão do Bolsa Família, e dos usos eleitoreiros a que dá margem, não há
como negar seu efeito includente. É o suficiente para que o governo Lula deixe sua
marca na historia. Outro ponto positivo foi a coragem, mesmo contra a opinião de
setores do partido, de manter a política econômica anterior, responsável em boa parte
pela recuperação do crescimento em bases mais sólidas.
Carvalho: Lula se beneficiou de uma herança bendita dos dois governos anteriores, de
Itamar e Fernando Henrique, sobretudo no que se refere ao Plano Real O controle da
inflação, o saneamento financeiro, garantidos no governo Lula pela ação do BC, e o
enxugamento das gorduras do Estado formaram um dos alicerces em que se sustenta o
bom momento de que goza a economia do país. Se Lula expandiu muito o lado social,
no quesito republicanismo o governo Cardoso teve melhor desempenho, apesar de
alguns tropeços, como na campanha para a reeleição. Uma diferença importante foi o
cenário internacional. Cardoso foi atropelado por uma crise externa que prejudicou seu
segundo mandato, quando poderia ter colher os frutos do saneamento realizado no
primeiro. Lula, na maior parte do tempo, voou em céu de brigadeiro. Mas, de modo
geral, vejo os dois governos, e o de Itamar, como voltas de um círculo virtuoso que, se
levado adiante, corre o risco de consolidar nossa democracia política e nos aproximar de
uma democracia social.
Valor O governo Lula esta entre os melhores que o Brasil já teve ou é cedo para o
julgamento?
Carvalho: Ainda falta a distância necessária para colocar seu governo em perspectiva
histórica. Para ficar só na Republica, Lula terá que competir com o quase imbatível
Getúlio Vargas e suas leis sociais e trabalhistas, com JK e seu desenvolvimentismo
democrático, e com o próprio Fernando Henrique e sua estabilização da economia,
enxugamento do Estado e reinicio das políticas sociais. Mas e possível dizer que Lula
seguramente estará nesse time.