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Dedicatória
***
O que estava pensando lady Jane Welsham não se poderia repetir ante
pessoas educadas. Em primeiro e principal lugar, ansiava correr para casa
para tirar o espartilho de seda e a pequena anquinha; a armação de aço de
sustentação a rodeava como um fole, impedindo-a de respirar. Já levava um
bom tempo sofrendo. Era verdade que já era evidente para todo mundo que
a tinham abandonada.
Sua segunda preocupação girava em torno de sua mãe, uma delicada
flor de feminilidade que não descendia da linhagem saxã mais forte de seu
pai. Sua mãe parecia estar fora de si; parecia incapaz de acreditar que uma
jovem e muito menos sua própria filha, fosse capaz de suportar esse tipo de
humilhação pública.
- A única explicação é Nigel tenha sido assassinado - dizia lady
Belshire veementemente a quem quisesse ouvi-la.
Ao que respondia o conde com igual veemência:
- E assassinado será, não tenha dúvida, quando eu conseguir colocar
as mãos nele.
- Mais sempre estiveram comprometidos - dizia sua mulher, chorosa.
- No dia em que nasceram todos concordamos estavam destinados para
este... este desastre.
Jane exalou um longo suspiro e afundou o nariz em seu ramo de
noiva. Era capaz de suportar a humilhação ante a sociedade, mas detestava
ver tão aflita sua mãe porque o conto de fadas que tinha planejado não teria
o príncipe eleito no final.
A maioria dos convidados supôs, logicamente, que o desanimado
suspiro da noiva indicava que sua fortaleza tinha chegado a seu limite. Seu
terno coração de donzela estava partido; quase era possível ouvi-lo romper-
se em seu peito. Quem poderia não compreendê-la? Como foi capaz sir
Nigel de infligir essa indignidade a jovem que tinha sido sua constante
acompanhante e defensora desde que era criança?
Claro que algumas opiniões maliciosas apareciam em suas feias
cabeças aqui e ali, principalmente entre as jovens debutantes que sempre
tinham invejado a posição social de Jane e suas tendências intelectuais, sua
negativa de seguir ao rebanho. E aí...
O coração partido de Jane deu um salto e lhe subiu até a garganta. Seu
olhar acabava de conectar-se com um par de sedutores olhos azuis que lhe
fizeram descer um muito inquietante estremecimento pelas costas. Fazendo
um esforço para recuperar o fôlego, contemplou avaliadora o resto de sua
irresistível pessoa, olhando dissimuladamente por entre as pétalas com
pontas douradas de seu ramalhete. Vá, caramba, caramba, caramba. Assim
esse era o escandaloso Sedgecroft. Esse magnífico e perigoso espécime de
virilidade só podia ser o infame primo de quem Nigel costumava falar com
tanto desprezo. Ela sempre teve o secreto desejo de conhecê-lo, mas claro,
não em uma situação como essa.
- Aguente-se - sussurrou seu pai ao seu ouvido. - Sobreviveremos a
isto.
- Os Welsham suportaram coisas muito piores - acrescentou seu
irmão, lhe dando um torpe golpe no ombro com o braço.
- Não neste século - demarcou Caroline, olhando-o zangada.
Jane assentiu solenemente, sem ter ouvido nenhuma só palavra. Era a
primeira vez que via em carne e osso e tão de perto seu anfitrião, o notório
marquês de Sedgecroft. E ah, se não era impressionante o corpo de carne e
osso também, nada menos que de uns seis pés e umas quantas polegadas
de altura. Seria o fato de vê-lo o que lhe produziu esse ligeiro enjoo ou seria
que o espartilho não lhe deixava chegar o sangue ao cérebro?
- É Sedgecroft quem está sentado aí no primeiro banco, não é? -
perguntou à Caroline em um sussurro, ocultando a boca atrás do
ramalhete.
O delicado rosto de Caroline ficou sombrio de preocupação.
- Bom Deus, Jane, faça o que for não o olhe nos olhos. Poderia cair sob
a maldição dos Azuis Boscastle.
Jane se atreveu a lhe lançar outro olhar.
- O que quer dizer?
- Dizem - sussurrou Caroline - que quando uma mulher olha esses
olhos azuis pela primeira vez se... ah, vamos, mas o que estou dizendo. Já se
apaixonou por um Boscastle e sua sorte não poderia ser pior do que é
agora. Estou sofrendo por você, Jane. Devo dizer que suporta
admiravelmente.
- É uma prova, Caroline.
- Tem que sê-lo. Caramba há três dos irmãos de Sedgecroft aqui e
ainda não houve nenhum duelo. É um milagre que não tenham derrubado
as paredes da capela. Não sei onde se poderia achar uma coleção assim de
entidades imponentes e bagunceiras fora do Monte Olimpo.
Jane sorriu, ela e suas irmãs tendiam a ficar muito teatrais nos
momentos difíceis. Mas era verdade; pelo visto estavam reunidos ali à
maioria dos Boscastle para presenciar sua humilhação pública. Os quatro
bonitos irmãos destacavam-se sobressaindo por cabeça e ombros entre os
convidados menos dotados fisicamente. Conversando e rindo a intervalos,
os três mais novos estavam ajeitados preguiçosamente nos bancos,
presididos pelo marquês em toda sua glória leonina.
Engoliu a saliva ao sentir descer outro estremecimento pela coluna. O
semblante e todo o corpo de Sedgecroft falava claramente de irritação, e não
era de se estranhar. Fazia alarde da hospitalidade oferecendo sua mansão e
sua capela para a celebração do casamento de seu primo, e, a julgar pela
expressão de seu rosto deveria pagar um inferno por pô-lo nessa situação.
Ela esperava estar já longe e escondida antes que ele perdesse a paciência.
Sua ideia era escapar assim que possível.
- Quer que lhe consiga vinagre? - perguntou-lhe Miranda,
preocupada.
Jane se obrigou a desviar o olhar de seu amedrontador anfitrião de
cabelo dourado.
- Para que?
- De repente tenho a impressão de que poderia desmaiar - disse
Caroline, compassiva.
A culpa disso tinha Sedgecroft, pensou Jane, sentindo uma pontada
de aborrecimento. Inclusive a essa distância, separados por quase a metade
da capela, percebia que era um homem a quem não gostava que o
incomodassem. O céu a amparasse se a ele lhe ocorresse investigar
pessoalmente o desaparecimento de Nigel, mesmo que isso não parecesse
provável.
Dava a impressão de que ele já estava bastante ocupado controlando
seu próprio clã; para não dizer nada das duas mulheres muito atraentes que
a cada momento se aproximavam dele para conversar em sussurros, de
uma maneira que sugeria uma forte relação pessoal.
- Reservem o vinagre para a mãe de Nigel - sussurrou a suas irmãs, e
de repente notou que lhe ardiam às faces, ao pensar que Sedgecroft e suas
amantes eram testemunhas de seu fracassado casamento. - Acredito que
desmaiou pelo menos cinco vezes na última hora.
- Acho que leva pior que você este desastre, Jane - disse Caroline,
pensativa.
- Jane simplesmente é melhor na hora de ocultar seus sentimentos -
murmurou Miranda.
A isso seguiu um momento de silêncio. Jane o aproveitou para lançar
outro olhar dissimulado para Sedgecroft. Parecia estar tão desassossegado
como ela.
- Bom - disse Simon então - quanto tempo mais temos que esperar?
Jane abaixou uma mão para puxar a saia e tirar a bainha debaixo do
pé de seu pai. Sentia-se como se o peso de todo seu vestido de noiva a
estivesse afundando. No aspecto social, claro, já estava afundada. Depois
disso era improvável que algum homem que valesse a pena quisesse se
casar com ela. A menos que encontrasse um homem cuja valentia superasse
em muito a razão. Seus pais não se atreveriam jamais a lhe arrumar outro
matrimônio. O mais provável era que inclusive tivessem medo de
intrometer-se nos assuntos de suas irmãs, com o que Caroline e Miranda se
salvariam de uniões desgraçadas. As três teriam que buscar maridos
sozinhas.
Com dificuldade conseguiu reprimir o impulso de lançar o ramalhete
ao ar e soltar um grito de alegria.
Começava a dissipar-se a nuvem de desespero que tinha escurecido
esses longos meses de noivado. Já aparecia o sol. Tinha conseguido. Tinha
conseguido de verdade evitar o destino que tanto tinha temido.
- Passaram três horas - murmurou seu pai, olhando seu relógio de
ouro de bolso. - É tempo suficiente. Simon me ajude a levá-la à carruagem.
Ficaremos um de cada lado se por acaso desmaiar pela humilhação.
Lady Belshire olhou ao redor horrorizada.
- Não em público, Howard. Pense na multidão de plebeus que estarão
do lado de fora, à espera de ver a comitiva das bodas. Quão único verão
será... uma noiva desmaiada.
- Sairei sozinha - disse Jane, sentindo uma pontada de culpa pela
morte do sonho deles.
Mesmo que isso significasse o renascer de suas esperanças secretas.
Esse casamento nunca foi o sonho dela. Nem tampouco o de Nigel.
De fato, era possível que nesse mesmo momento Nigel estivesse
fazendo suas promessas nupciais à mulher a quem tinha desejado
apaixonadamente nesses últimos quatro anos: a robusta preceptora dos
Boscastle, que tinha consagrado dez anos de sua juventude a governar ao
desmamado clã em sua propriedade de campo.
Ela invejava o futuro dos dois; mesmo que certamente o pai de Nigel
o deserdasse, deixando-o sem um centavo, ele passaria sua vida com a
mulher que amava.
E essa mulher nunca tinha sido ela. Tampouco ela nunca o tinha
amado, embora lhe tivesse muitíssimo carinho, afeto. Casar-se com o Nigel
teria sido o equivalente a casar-se com um irmão, uma união que nenhum
dos dois desejava, mesmo que nunca conseguissem convencer disso a seus
respectivos pais.
- O que poderia estar fazendo Nigel enquanto nós estamos aqui como
um grupo de idiotas rematados? - resmungou seu irmão, lhe agarrando o
braço para animá-la a escapar para a carruagem.
- Me solte Simon - disse ela em um brusco sussurro. - Jamais em
minha vida fui que tipo de mulher que desmaia.
Uma imensa sombra caiu sobre o altar e repentinamente se apagaram
todos os murmúrios e um profundo silêncio envolveu a capela. Um terrível
calafrio de premonição percorreu todo o delgado e flexível corpo de Jane.
As expressões de espanto que viu nos rostos de suas irmãs intensificaram
seu mau pressentimento.
- Oh, é ele - murmurou Caroline, com o rosto tão branco como o
vestido de noiva. - Céu santo.
- Que ele? — perguntou Jane em um sussurro, abrindo seus olhos
verdes.
Seu irmão se afastou, lhe soltando o braço como se fosse uma pistola
carregada. Ele também estava olhando para a sombra, com uma fascinante
expressão de medo combinado com "respeito".
Sem pensar, ela esmagou como um escudo protetor o ramalhete sobre
o decote ladeado por seda com rendas, e se virou para enfrentar seu
destino. E então se encontrou ante o rosto mais indecentemente belo que
tinha visto em sua vida.
Ele. O muito honorável marquês de Sedgecroft.
Sedgecroft, que projetava uma sombra que a cobria toda, do véu da
cabeça até as pontas de seus sapatos. Sedgecroft, com os tormentosos olhos
azuis e o corpo de músculos de aço, o de fama de descarado e estilo de vida
libertino, o patife mais encantador para divertir à aristocracia amante de
escândalos.
O homem em cuja capela ela tinha desejado levar a cabo seu plano.
Sedgecroft, que se via envergonhado, capaz e...
Que demônios pretendia fazer aí no altar?
Sentiu as desbocadas palpitações do coração que faziam vibrar as
pétalas de rosas do ramalhete que tinha segurado tão forte que lhe doía a
mão. Por sua cabeça passaram-se os pensamentos mais estranhos. Imaginou
que um escultor estaria encantado de esculpir o rosto de Sedgecroft, toda
essa soberba estrutura óssea de ângulos marcados, esse queixo com
covinha...
Para não dizer essa boca pecaminosamente modelada e seus ombros
varonis. Tentou calcular quanto tecido necessitaria seu alfaiate para lhe
cobrir as longas e musculosas costas. E seria verdade que ele e sua última
amante fizeram amor uma vez na Torre?
Sua voz profunda a sobressaltou, tirando-a de seu vergonhoso
devaneio:
- Sinto-me profundamente envergonhado.
Envergonhado? Ele estava envergonhado? Bom, talvez tivesse
centenas de motivos para confessar isso, mais, por desgraça, nenhum no
qual tivesse tomado parte ela.
Suas irmãs e ela se olharam desconcertadas.
- Perdão, disse que se sente...?
- Envergonhado. Por meu primo. Há algo que eu possa fazer?
- Fazer?
- Sim, com respeito a este... - moveu sua enorme mão varrendo o ar -
este lamentável assunto.
- Acredito que me posso dar um jeito — respondeu Jane, e se apressou
a acrescentar: - mas é muito amável de sua parte oferecer ajuda.
Sua agradável voz grave fez percorrer uma estranha onda de calor
pelas veias. Imaginou-se que um homem de sua reputação se negaria a
assumir qualquer responsabilidade no assunto, e não que se oferecesse para
ajudar. Então lhe ocorreu pensar se empregaria essa encantadora solicitude
com sua manada de apaixonadas amantes e admiradoras. Que maneira
mais eficaz de derreter o coração de uma mulher.
Imediatamente interveio seu pai, ficando entre eles.
- Estamos ante um problema tático, Sedgecroft. Como levá-la até a
carruagem no meio da multidão aí fora.
Sedgecroft a olhou avaliando, com um olhar de perito que parecia lhe
penetrar até a medula dos ossos, e ver todos seus perversos segredos, até
suas esperanças e temores mais íntimos.
- Isso não é nenhum problema. Poderia sair pela porta da sacristia e
usar uma de minhas carruagens. A não ser que por algum motivo prefira ir
em sua carruagem. - Calou-se um momento, olhando-a atentamente outra
vez. - Eu poderia acompanhá-la na carruagem até além das portas. Poderia
levá-la nos braços, se fosse necessário. Isso daria motivo ao povo para falar.
Caroline afogou uma exclamação e Miranda arregalou os olhos,
desconfiada e divertida. Jane estendeu a mão para o braço de Simon e lhe
apertou o pulso com tanta força que ele se virou para olhá-la carrancudo.
- Socorro - lhe disse em um sussurro apenas audível.
- Acho que a ouvi dizer que nunca em sua vida desmaiou -
resmungou ele.
Ela cobriu a boca com o ramalhete para lhe sussurrar:
- Este poderia ser o dia que faria uma exceção. Disse a sério?
Um brilho de admiração iluminou os olhos de Simon.
- Com Sedgecroft nunca se sabe. Vi-o ganhar uma fortuna no jogo
com seus faróis.
Ela voltou a olhar dissimuladamente esse magnífico rosto e viu leves
sulcos indicadores de um bom humor que talvez o marquês tivesse
controlado por respeito a seus sentimentos. Novamente se sentiu
agradavelmente surpresa. Rumores sobre o temerário comportamento de
seus familiares tinham circulado durante anos pelos salões da alta
sociedade.
- Não acredito que seja necessário me levar nos braços - disse, embora
compreendesse que em outras circunstâncias uma mulher sem dúvida
cairia na tentação de aceitar esse oferecimento.
- Não?
Horrorizou-a o rubor que sentiu subir ardente pelo pescoço quando
olhou seus olhos azuis e se achou cativada por essa atração sensual que
emanava dele quase como se fosse uma segunda natureza. Poderia sentir-se
totalmente avassalada por esse descarado encanto masculino se não
estivesse tão resolvida a pôr fim a essa situação.
Levá-la nos braços até a carruagem, certamente. Falar de criar um
escândalo. Embora devesse reconhecer que esses soberbos ombros
pareciam muito capazes dessa tarefa... caramba, no que estava pensando?
Esse não era nem o momento nem o lugar para descontrolar-se por causa
de um desconhecido bonito.
- Estou disposta a caminhar até a carruagem e fazer frente à multidão
- disse.
- Sim, claro - disse ele, em tom amável e indiferente.
Lorde Belshire olhou ao marquês um pouco nervoso.
- Suponho que não sabe absolutamente nada sobre o paradeiro de
Nigel - disse.
No rosto de Grayson apareceu uma expressão de fria resolução. Sua
resposta golpeou como um raio o centro do coração de Jane.
- É minha intenção averiguar o que aconteceu hoje, acredite - disse, e
então olhou para ela, como tentando transpassar o véu de noiva que lhe
cobria o rosto.
- Sei que este é um momento difícil para senhorita, mas, por favor, me
diga, houve entre a senhorita e Nigel algum desacordo, por acaso?
Ela negou lentamente com a cabeça. Despediram-se sendo os
melhores amigos, totalmente de acordo de que não foram feitos um para o
outro como marido e mulher.
- Não, nenhuma briga - disse.
Sedgecroft franziu os lábios, como se suspeitasse que ela tivesse
omitido algo muito importante em sua resposta.
- Nenhuma rixa de apaixonados que talvez esquecesse com todos os
preparativos para as bodas? Nenhum mal-entendido?
Jane levou um momento para responder.
- Nigel e eu nos entendemos à perfeição - murmurou.
- Deve ter morrido - disse lady Belshire, olhando desconsolada para
todos os lados da capela. - Jane, acredito que seria judicioso aceitar o
amável oferecimento de Sedgecroft.
Jane a olhou horrorizada.
- Mamãe, não vou permitir que me levasse no meio da multidão como
a... a uma bola.
Lady Belshire abanou as faces ruborizadas pela vergonha.
- Refiro-me a seu oferecimento de acompanhá-la até a carruagem,
Jane. Bom Deus, não há nenhuma necessidade de que a plebe fofoque sobre
isto.
Lorde Belshire dirigiu um pesaroso sorriso a sua mulher.
- Prepare-se, Athena. Isto vai aparecer como um escândalo com todos
seus feios detalhes nos jornais da tarde. Não podemos fazer outra coisa que
nos defender o melhor que pudermos. Sedgecroft?
O marquês pareceu despertar, como se o tivesse sobressaltado pensar
como tinha conseguido envolver-se pessoalmente nesse drama familiar.
- Um de meus irmãos acompanhará sua filha a casa enquanto eu me
ocupo dos assuntos aqui - respondeu. - Os convidados bem poderiam
desfrutar do café da manhã de bodas que se preparou. - Endireitou seus
impressionantes ombros, e seus olhos brilharam com um resplendor azul
que a Jane cortou o fôlego. - Eu já resolverei isto - acrescentou em voz baixa,
matizada com toda a arrogância de sua educação aristocrática.
Por um perigoso instante, Jane esteve a ponto de soltar uma
gargalhada. Aí estava junto ao altar com um infame libertino que não lhe
tinha dirigido mais de duas palavras em toda sua vida e prometia vingar
uma afronta que em realidade não tinha ocorrido.
Sem dúvida essa promessa tinha a intenção de tranquilizá-la e a fazia
um homem que provavelmente nunca foi rejeitado na vida. Mais a
promessa produziu o efeito contrário. Em lugar de sentir-se consolada ou
tranquilizada, afloraram todos os instintos de amparo que possuía para
adverti-la.
Tinha pensado que ao sabotar seu próprio casamento ficaria a salvo.
Mas em lugar disso se encontrava ante um perigo muito mais insidioso que
nenhum que pudesse ter imaginado. Na realidade, seu plano para esse dia
bem poderia tê-la levado às próprias portas do inferno, e o próprio
demônio estava aí esperando para apoderar-se de sua alma enganosa.
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
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Meu querido N:
Capítulo 6
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Grayson a observou divertido enquanto ela tentava sentar-se a um
lado do corpo escarranchado de seu irmão. Passado um momento, ao
compreender que isso era impossível, ela renunciou, sentando-se ao lado
dele, resignada a contra gosto. Ele começava a sentir-se desequilibrado e
não conseguia discernir por que.
Tinha desfrutado de sua justa cota de mulheres bonitas e nunca se
havia sentido tão desassossegado em companhia delas. Talvez estivesse
desequilibrado porque lhe era desconhecido o papel de cavaleiro branco.
Ou talvez se devesse a que era a primeira vez em sua vida que tinha que
meditar cada passo que dava. E isso o levava de volta ao assunto de Jane. O
que deveria fazer, sabendo que ela o achava atraente? Simular que isso não
o adulava? Esmagar todos seus conhecidos instintos masculinos?
Sim, teria que vigiar seus passos. Não só para não alertar à opinião
pública. Deus sabia que muitas vezes tinha sido tema de fofocas. Faria
muito bem se enganasse os traficantes de intrigas e escândalos. Os
falatórios maus intencionados tinham feito mal a sua família mais de uma
vez. Que o pendurassem se permitisse que Jane sofresse mais indignidades
do que já tinha sofrido.
Jane o roçou ao mover-se e a sensação o levou imediatamente ao
terreno físico. Por muito decidido que estivesse em sua conspiração para
ajudá-la, suspeitava que sua aspiração ao cavalheirismo não duraria
eternamente.
Seguir o ensolarado caminho da respeitabilidade não lhe era natural.
Dançar na escuridão era outra história muito diferente.
Jane tinha razão. Tinha desejado beijá-la na rua, mas duvidava que ela
pudesse chegar a imaginar muito além de um beijo que desejava chegar.
Capítulo 7
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Jane sentiu subir um ardente rubor às faces, e isso só porque tinha
ouvido poucas palavras dessa conversa.
- Percebe que esses jovens estão falando de mim e em termos nada
aduladores? - comentou a ele em tom resignado.
Embora, na realidade, depois do plano levado a cabo por ela e Nigel
no dia anterior, já supunha que seria melhor que se acostumasse às fofocas.
Mas, bom Deus, jamais lhe tinha ocorrido pensar que ela poderia ser de
interesse para as pessoas do belo mundo. O pobre Nigel tinha aborrecido
de morte à alta sociedade com seu amor pelos cães e pela literatura francesa
antiga.
Grayson olhou pela janela observando com os olhos estreitos o grupo
de olheiros.
- Deixe comigo , Jane. Não demorarei para endireitá-los.
Ela tragou saliva para passar o nó de nervosismo que lhe tinha
formado na garganta.
- Acabo de decidir que não vou descer desta carruagem.
Sorriu-lhe, com esse sorriso tranquilo de um homem que nunca em
sua vida teve que levantar um dedo para atrair a uma mulher; o sorriso de
um homem a quem não importa um rabanete o número de escândalos que
provocou.
- Então, trago-lhe o café da manhã na carruagem? Com um quarteto
de corda para que nos entretenha enquanto comemos?
Ela respondeu esboçando um sorriso; a picardia que viu em seus
olhos obscurecidos lhe fez passar uma onda de calor por toda ela. A espera
lhe fez formigar as costas quando lhe pegou a mão enluvada e lhe esfregou
a palma.
- Nunca em minha vida atraí a uma multidão - grunhiu.
- Está preparada para atrair uma agora? - perguntou-lhe ele, como a
desafiando.
Preparada? Preparada para enfrentar o escândalo e os sorrisos de
afetada compaixão? Virou-se, dando as costas à janela e exalou um suspiro.
- Se for necessário. Você é o tirano, não?
- Venha, Jane. Nos divertiremos um pouco com eles. Deixaremos eles
meio loucos pensando o que somos um para o outro.
- Eu estive pensando nisso.
Deslizou-lhe a mão até o cotovelo, atraindo-a para ele até quase tê-la
em seu colo. Acelerou-lhe mais o coração e o surpreendeu a intensidade de
sua reação.
No que se colocara? Talvez não lhe conviesse sabê-lo. Já era muito
tarde para retirar seu oferecimento, mesmo que o caminho ao inferno
estivesse pavimentado de boas intenções.
- Espere - lhe ordenou, sem saber por que.
Talvez para ganhar tempo, ou simplesmente porque era um prazer
para ele falar com ela.
- Mais nos estão olhando. Vão pensar que estamos nos beijando, ou
talvez algo pior ainda.
Ele golpeou levemente com o indicador o botão de madrepérola do
cotovelo dela.
- Isso iria muito bem, agora que o sugere. Por desgraça, não posso
agradar seus luxuriosos interesses. Nem os meus.
- Eu não o sugeri... demônio irresistível.
- Demônio irresistível - repetiu ele, com ar satisfeito, arregalando os
olhos para zombar dela. - Isso soou quase como um elogio.
Ela sorriu a seu pesar.
- Suponho que a sua maneira só quer me ajudar.
- Exatamente. - Por incrível que parecesse a si mesmo. - Agora faça o
que lhe peço. Deixarei muito claro a esses malandros sua categoria e
dignidade.
- Um libertino com consciência - disse ela, em tom meditabundo. - Um
libertino com uma veia de bondade em seu podre coração.
Ele riu. Não se sentia cômodo nesse papel.
- Bom, não corra a voz, não quero que chegue a conhecimento
público. Tenho uma bem ganha reputação de corrupção, que vou reatar
uma vez que tenha devolvido a normalidade a sua vida.
Ela cruzou os braços e se afastou para examiná-lo.
- Falando sério, Sedgecroft, alguma vez considerou a possibilidade de
se casar?
Ele franziu exageradamente o cenho.
- Falando sério, Jane, não.
- Por que não?
- Para que teria que me casar? - perguntou ele mansamente.
- Não se pode ser um libertino eternamente. Tendo suas obrigações.
- Mas sem dúvida posso tentar - replicou ele, mesmo que essa maldita
ideia o tivesse atormentado ultimamente. - Nos velhos tempos, meus
antepassados tiveram a sensatez de não submeter-se ao matrimônio até que
ficassem aleijados e tivessem estado a um cabelo de morrer no campo de
batalha, e não serviam para nada mais.
- Suas esposas devem ter estado fora de si de gratidão - disse ela,
sarcástica. - Que imensa honra cuidar de um Boscastle incapacitado.
O sorriso dele era diabólico. Ficou em silêncio um instante,
desconcertado ao perceber que já tinha revelado mais de si mesmo à Jane
do que jamais tinha revelado a nenhuma de suas amantes nem velhos
amigos.
- A finalidade, minha insolente dama, era engendrar outra geração de
Boscastle de má conduta quando já estavam esgotadas todas as demais
opções de aventura. Meus antepassados demonstraram ser muito capazes
de cumprir esse prazeroso dever até seu último fôlego no leito de morte.
- Sim? - perguntou ela, com uma vozinha débil.
- Sim, Jane - disse ele, encantado por sua reação. - E suas mulheres
nunca se queixaram. Cumpriam.
- Cumpriam?
- Seus deveres conjugais. Os quais...
- Não é preciso mais explicação.
Ele ficou em silêncio, pensando até onde poderia atrever-se a chegar e
por que gostava tanto de provocá-la.
- Perdoe. Pensei que poderia sentir curiosidade.
Ela sentiu subir um revelador rubor às faces. A ideia de engendrar um
herdeiro Boscastle fazia passar inexprimíveis imagens terrestres pela mente.
Como demônios chegou a isso a conversa?
- É provável que meu irmão nos esteja ouvindo - sussurrou, em tom
de advertência.
- Com toda sua atenção de cadáver.
Ela se agachou para dar uma boa sacudida em Simon. Grayson a
observou sorrindo enquanto ela tentava despertar seu irmão virtualmente a
golpes. Sob toda essa reserva tinha batido os dentes deliciosamente
penetrantes.
- Acorde, idiota - disse ela, severa. - Faça-se útil ao mundo.
Simon se moveu, abriu os olhos injetados de sangue e olhou ao redor,
desconfiado.
- Sedgecroft, Jane, e... e todas essas flores. - endireitou-se um pouco,
apoiado no cotovelo. - Morreu alguém? Foi...? Deus santo, acharam Nigel?
Não me diga que vamos a caminho a seu funeral.
Desgostosa, Jane observou sua roupa enrugada, enquanto ele
pestanejava, deslumbrado pela luz do sol.
- Não morreu ninguém, Simon - disse, com a voz mais clara possível. -
Está aqui para ser meu acompanhante , mesmo que esteja incapacitado para
fazê-lo.
Ele passou a mão por seu revolto cabelo castanho.
- Eu não falaria de aparências. Esse vestido é bastante revelador para...
-Se interrompeu ante o olhar de advertência que lhe dirigiu Grayson. -
Alguém soube algo de Nigel?
- Nenhuma sílaba - respondeu Grayson, com a mandíbula tensa pelo
aviso. - Continuo fazendo averiguações, é claro, mas parece que partiu de
Londres sem deixar rastro.
Simon exalou um suspiro.
- E aonde vamos, por certo?
- Ao café da manhã que oferece o duque de Wenderfield - respondeu
Grayson.
Jane se inclinou para tirar uma meia de seda branca do bolso do
colete.
- Bom Deus, Simon, onde esteve ontem à noite?
Ele encolheu os ombros, indeciso.
- Não me lembro. Nem sequer sei como cheguei aqui.
- Esteve em um baile de máscaras à meia-noite - disse Grayson irônico
estendendo a mão para ajudar Jane a levantar-se. - Seu cocheiro o encontrou
meio inconsciente entre uma monja e a criada de Cleópatra.
- Estávamos...?
Grayson o interrompeu limpando a garganta. O brilho travesso de
seus olhos dizia muitíssimo.
- Acredito que podemos terminar esta conversa em privado, Simon.
Jane atirou a meia no chão, enojada.
- E acredito que a resposta a essa pergunta é infelizmente óbvia.
***
Capítulo 8
Audrey ficou olhando sua alta figura de ombros largos e o viu passar
por entre a fileira de amigos com sua habitual arrogância Boscastle. O
coração lhe deu um inquietante salto, mesmo que já fizesse tempo que se
resignara a uma relação platônica com o interessante marquês.
- Poderia não ser tampouco o que você pensa, querido - disse,
tristemente.
***
Capítulo 9
***
Jane voltou a recordar o velho provérbio: "Sair das chamas para cair
nas brasas". Ainda um pouco aturdida por sua experiência com Sedgecroft,
sentia-se sufocada no círculo de suas quatro fofoqueiras amigas. Teriam
uma idéia de como lhe ardia o rosto? Perceberiam que ainda lhe
formigavam os lábios por seus beijos?
Claro que todas sabiam o que lhe tinha acontecido no dia anterior.
Sua melhor e mais querida amiga, a honorável Cecily Brunsdale, filha de
um visconde, tinha sido uma de suas damas de honra, testemunha
presencial do fiasco. Não sabia que reação podia esperar das outras.
Compaixão, sobressalto, a generosa cortesia de fingir que o horrível
acontecimento não tinha ocorrido jamais?
Mas o que certamente não tinha esperado era que o interesse delas
por sua fracassada tentativa de matrimônio fosse tão fugaz. Sim,
comentaram sua perda, mas só um breve momento. Isso era notícia de
ontem, algo digno de compaixão, e de uns poucos sorrisos bem
intencionados embora falsos. Muitíssimo mais interessante para essas
quatro mariposas sociais eram os detalhes de seu romance deliciosamente
surpreendente com o muito adorado marquês de Sedgecroft.
- Romance? - perguntou, aparentando não entender, ante o insistente
cravejar de perguntas. Bom, agora sim tinha o rosto ardendo, como em um
incêndio. - O que as faz pensar que tenho um romance com ele?
- Que outra coisa poderia ser? - murmurou uma delas.
- Uma mulher não entra em uma sala em que está Sedgecroft sem cair
presa de seus encantos - disse a senhorita Priscilla Armstrong, auto
proclamada perita nesses assuntos depois de três infrutíferas temporadas.
Imediatamente saltou em defesa de Jane sua amiga Cecily, esbelta
jovem de cabelo loiro cinza e olhos cinza claro.
- Tenho que lhe recordar, Priscilla, que Sedgecroft é primo de Nigel? É
seu dever ocupar seu lugar como acompanhante até que Nigel...
Até que Nigel o que? Perguntaram-se todas, olhando para Jane com os
olhos dilatados, esperando alguma insinuação do que se poderia esperar.
Mas ela resistiu obstinadamente a revelar algo mais, ignorando a
advertência de Grayson, de que um pequeno mistério a faria mais atraente
ante a sociedade.
Não é que desejasse ser atraente, mas desejava não chatear Sedgecroft.
Se seu comportamento durante as vinte e quatro horas passadas era um
indício de sua pertinaz perseverança, não tinha o menor desejo de provocar
sua raiva. Bom Deus, se já lhe era difícil tratá-lo como amigo, como seria tê-
lo como inimigo.
- Não tenho nada mais a dizer sobre o assunto - disse, sentindo uma
aflição que se ia fazendo mais e mais real hora a hora.
Mas as quatro jovens quase não a ouviram; três delas estavam
encantadas escutando a opinião da senhorita Evelyn Hutchinson sobre o
tema Sedgecroft, homem ao qual evidentemente tinha observado e
analisado com ardor acadêmico desde há bastante tempo.
- Sabem o que disse a criada de uma de suas ex-amantes?
- De qual? - perguntou lady Alice Pfeiffer, demonstrando que não era
o que se diz ignorante sobre o tema.
- A senhora Parks - respondeu Evelyn.
- Diga-nos. - Ordenou Priscilla. - Jane tem direito de saber.
- Bom, eu... - começou a protestar Jane.
- Precisa saber a verdade - disse Cecily em voz baixa.
Jane não tinha muita certeza de querer saber a verdade. Sem perceber
estendeu o pescoço olhando à multidão, se por acaso via sinais de seu
perturbador patife de olhos azuis. Era de esperar que não estivesse
repreendendo outra vez sua corajosa irmã. Sentia-se atraída pela paixão de
Chloe pela vida, e percebia um coração ferido debaixo de sua tenaz
rebeldia. Deus santo, se ela fosse alguma vez o objeto dessa fúria leonina. E
o seria, se ele descobrisse quão boa era para urdir diabruras.
Evelyn apoiou o leque no queixo.
- Uma noite a criada ouviu a senhora Parks confidenciar a alguém que
Sedgecroft era como uma orgia para os sentidos femininos.
Jane pestanejou, atraída.
- Com certeza entendeu mal - disse; embora não lhe custasse
acreditar.
Evelyn assentiu, com expressão ladina.
- Também disse que é melhor que não ocorra a uma mulher ir
cavalgar no parque pelo menos até duas semanas depois.
- Oh, vamos, francamente - exclamou Cecily, desaprovadora,
enquanto as outras assimilavam encantadas essa fascinante fofoca. - Esse
não é o tipo de revelação que eu tinha pensado quando a animei a dizê-lo.
- E lê o jornal da manhã enquanto executa certas atividades físicas
com suas amantes - acrescentou Evelyn.
Priscilla se aproximou mais com os lábios entreabertos.
- Executa essas atividades pela manhã?
- Pela manhã, ao meio-dia e de noite - respondeu Evelyn, maliciosa. -
Satisfaz todos os caprichos de uma mulher.
Vários suspiros precederam ao silêncio que desceu sobre elas, até que
Evelyn se sentiu obrigada a continuar:
- Passar um tempo em sua companhia é cair sob seu feitiço. Sedgecroft
é um homem que reflete bem antes de atuar. Uma vez que decide fazer a
jogada, é o fim.
- O fim do que? - perguntou Jane, com o pêlo da nuca arrepiado.
- O fim da virtude. O começo do vício. Já iniciou sua estratégia muito
antes que sua vítima perceba o que ocorreu.
- Basta, Evelyn - advertiu Cecily, carrancuda.
- Embora nenhuma mulher que ele ame se consideraria uma vítima -
acrescentou Evelyn, passado um momento. - Um tesouro seria a palavra
mais apropriada.
Voltou a cair o silêncio sobre o grupo.
Jane aproveitou um espaço que se abriu no grupo e afastar-se; já
tinha experimentado bastante da perícia de Sedgecroft por um dia.
- Desculpam-me, sim? Pareceu-me ver meu irmão me chamando.
Cecily a seguiu, lhe falando em penalizado sussurro.
- Fui vê-la ontem à noite, mais seus pais a tinham encerrada. Como vai
sobreviver a isto, Jane?
Jane olhou para o imenso parque de grama. Cecily era uma de suas
mais velhas amigas e confidentes, quase tão íntima como Caroline e
Miranda. Cecily só tinha três aninhos quando anunciou a todos os reunidos
na igreja que tinha surpreendido o padre na sacristia com sua tia. Aos cinco
anos cortou seu brilhante cabelo, que lhe chegava à cintura, para brincar de
Robin Hood com seus irmãos. Aos onze cometeu o mesmo delito porque
planejou fugir de casa disfarçada e converter-se em cavaleiro de corridas.
Não era de estranhar que ela a adorasse. Cecily tinha garra, e o duque
com quem estava a ponto de casar-se, agradava-a muito. Mas nem sequer
sua querida amiga conhecia seu plano com Nigel para frustrar o curso de
um falso amor.
Por isso desejou poder ser sincera quando Cecily lhe pegou a mão e
lhe sussurrou:
- Estava doente de preocupação por você. Se tivesse uma pistola teria
procurado Nigel para matá-lo. Acredite ou não, compreendo exatamente
como deve se sentir. Foi muito valente ao dar a cara hoje, mais, Jane, é
prudente isto?
"Há um tempo para ser prudente e um tempo para ser temerário".
- De todo modo vão falar de mim na alta sociedade, Cecily. Quanto
antes enfrente isso, melhor.
- Não me referia à alta sociedade.
- Então...?
- A Sedgecroft.
- Ah.
Desviou o olhar para o parque e viu o homem extremamente bonito
que vinha caminhando para ela, movendo todos seus músculos com graça
natural. O coração lhe deu um salto quando ele a olhou. Ai, que monstro
mais lindo. A seu pesar, voltou o olhar para o rosto angustiado de Cecily.
- Acredito que não tem por que preocupar-se por mim.
- É Sedgecroft, Jane. Um libertino consumado.
- Simplesmente vim tomar o café da manhã com ele. Nada mais.
- Sedgecroft não se limita a "fazer uma refeição" com uma mulher. A
não ser que ela seja o prato principal.
"Café da manhã e esporte de cama", pensou ela, recordando suas
próprias palavras, que voltavam para acossá-la.
- Tolice - disse firmemente.
Cecily olhou ao redor, ao perceber que não tinha toda a atenção de
sua amiga. Arqueou as sobrancelhas ao ver aproximar-se o bonito marquês.
- Ah, falando do ruim de Roma... - resmungou. - Jane, por favor, me
faça caso, suplico-lhe. Por favor. Está muito vulnerável. Sei o muito que a
feriu Nigel, mais se associar com Sedgecroft… Bom, não se parece um
pouco a caminhar com os olhos enfaixados pela borda de um penhasco?
- Olá, Cecily - saudou Grayson, olhando para Jane e situando-se entre
as duas. - Como está seu pai? Ultimamente não o vi no clube.
Cecily o submeteu ao mais glacial de seus olhares. Sendo uma das
amigas íntimas de Chloe, conhecia muito bem o encanto letal Boscastle, e
sempre estava em guarda.
- Está muito bem, obrigada. E sua família? Todos pareciam muito
saudáveis ontem na capela.
- Sãos e endemoniados, se me permite empregar essa palavra. -Passou
os olhos dela para Jane, e seus penetrantes olhos a olharam com um solícito
interesse que ela sabia que era pura representação. - Gostaria de dançar,
Jane?
Cecily olhou intencionalmente a mão que roçou o ombro de Jane, e
esticou os lábios, desaprovando.
- Agora não, obrigada - respondeu Jane, negando com a cabeça.
- Vamos buscar umas taças de champanha, então? - propôs ele,
afastando-a de Cecily com a maior sutileza.
- Ah, champanha, isso iria fabuloso - exclamou Cecily, negando-se a
captar a indireta. - Nos faria o favor de trazer aqui as taças, Sedgecroft?
Ele a olhou com a maior candura.
- Mais isso significaria deixar sozinha Jane outra vez, e não poderia
ser tão grosseiro. Seja boa e vá nos buscar um empregado. Uma duquesa
deve exercitar-se em dar ordens, não lhe parece?
Jane abaixou os olhos, por temor a pôr-se a rir, se não a chorar. Ai,
Deus, a expressão de horror no rosto de Cecily. E Sedgecroft, o demônio,
provocando assim sua pobre amiga.
Cecily sorriu, embora o sorriso lhe saísse frágil.
- Ah, isso me recorda, Jane. Na terça-feira à tarde irei cavalgar no
parque com Hudson, e nos acompanharão suas sobrinhas e sobrinhos. Viria
conosco?
Grayson lhe sorriu.
- Nós adoraríamos, não é verdade, Jane?
Cecily o olhou boquiaberta.
- Quis dizer...
- Não estive com Hudson desde que fomos caçar nas Terras Altas -
continuou ele. - Talvez os quatro poderíamos ir à ópera mais avançada a
semana.
Cecily não soube o que pensar de sua atitude. Era difícil achar um
homem mais arrogante que Sedgecroft, e o pior era que Hudson gostava
dele. Em incontáveis ocasiões tinha comentado que adorava Sedgecroft, um
verdadeiro homem. Mas que intenções tinha por sua amiga? Seria possível
que houvesse uma migalha de honra nele?
- Pensando bem, seriamente acha que Jane deve reatar suas atividades
sociais tão cedo depois de... bom, depois de ontem? - perguntou, com a voz
afogada.
Ele sorriu levemente e virou Jane para o outro lado, para protegê-la.
- Acredito que sou muito capaz de cuidar de Jane, embora admire sua
lealdade durante este... digamos, este momento difícil. E agora, antes de
partir, os dois iremos buscar-lhe esse champanha, Cecily. Tem o aspecto de
necessitar algo forte.
- Não poderíamos ir os três? -propôs Jane em voz baixa, olhando por
cima do ombro a sua pasmada amiga.
Passados uns minutos se despediram, acharam Simon e sua bonita
acompanhante e tirou Jane da festa sem que tivesse provado outro bocado.
- Sedgecroft, sua maneira de tratar Cecily foi muito... muito...
- Não é necessário que fique me agradecendo - murmurou ele,
levando-a quase pela força para sua carruagem. - Sua gratidão se
subentende.
- Sim, Sedgecroft? Não sabe quanto me alivia isso.
Ele parou e franziu os lábios.
- Livre-me Deus de criticar o comportamento de ninguém que não
seja um familiar, mas comecei a me perguntar se essa sua tendência à
mordacidade não terá intimidado meu primo.
Ela não soube como reagir.
Ele pareceu desconfortável.
- Não deveria ter dito nada. Acontece que acho muito atraente essa
tendência.
Atraente. Que ela enfrentasse a ele.
- O que? - disse, uma vez recuperada a fala.
- Até certo ponto. Lamento ter puxado o assunto. - Olhou-a sorrindo
contrito. - Também o lamento se tiver parecido desatento hoje.
Jane lhe deu as costas, novamente estupefata. Uma amostra mais de
sua atenção e estaria derretida dentro de seus sapatos.
A voz profunda dele por cima de seu ombro a fez dar outro salto.
- Tudo se deve a esta rebelião de Chloe - confessou, revelando o que
evidentemente pesava em sua mente. - Não posso controlar todos seus atos,
e tenho medo de que esteja empenhada em seguir um caminho para a
autodestruição. A verdade é que em geral não venho a estas insípidas festas
durante o dia. Estou em melhor forma de noite.
- Não é isso o que ouvi.
- Perdão?
Sentiu seu enorme corpo atrás dela, recordando envergonhada o que
comentara Evelyn.
- Foi só uma fofoca - se apressou a dizer. - Diziam que de manhã...
bom Deus, esqueça que disse algo.
Seria verdade? Seria verdade que Sedgecroft lia o jornal enquanto
fazia amor?
Ele a seguiu de perto até que subiram o degrau e estiveram dentro da
carruagem; olhou-a brincalhão:
- Não faça caso das fofocas, querida.
Ela se virou para olhar para seu irmão, que ainda não tinha subido.
Começava a compreender que havia mais nesse homem do que viam os
olhos.
- O que quer dizer?
- Descubra você mesma a verdade. - Esperou que ela se sentasse para
sentar-se ele a seu lado e se inclinou para trás, escrutinando-a com seu
ardente olhar. - Se tiver curiosidade a respeito de meus costumes pessoais, a
única coisa que tem de fazer é me perguntar.
- Acredito que não me atreveria.
- Então não saberá nunca.
- Talvez em alguns casos, é melhor continuar felizmente ignorante.
- Mais não você, Jane. - Deu-lhe um brincalhão empurrão com o
ombro. - Tenho a impressão de que sua curiosidade não começou a ser
saciada.
Capítulo 11
***
Capítulo 12
Capítulo 13
***
Capítulo 14
***
***
Grayson esteve observando Jane dançar com dois ou três jovens galãs,
que sem dúvida se sentiam atraídos pelo radiante rubor de suas faces. Bom,
pensou cinicamente, com o ombro apoiado em um dos enormes pilares do
salão de baile, ele podia atribuir a si a responsabilidade de pôr esse rubor
em suas faces. Deveria lhe ter pedido desculpas em lugar de brincar. Mas
nesse momento lamentava mais não ter estado em posição de levar algo
mais longe as carícias. A verdade era que talvez já tinha feito mal suficiente
por uma noite e não devia continuar sua relação com ela. Maldição, como
lhe pôde ocorrer fazer isso, no que estava pensando? Longe estava a sua
capacidade para raciocinar.
Mas adoraria atraí-la a sua cama; desejava lhe fazer amor de todas as
maneiras conhecidas como as que não. Entretanto, esse prazer não seria
dele jamais. As obrigações familiares eram sua prioridade, disse a si
mesmo. E isso também lhe recordou que Chloe se mostrou francamente
desdenhosa ante sua ameaça de enviá-la ao campo se lhe desse um só
motivo mais para desconfiar dela. Sua infelicidade, sua rebeldia,
preocupavam-no tremendamente. Só era questão de tempo que sua atitude
desafiante o obrigasse a fazê-lo.
Seus pensamentos voltaram para Jane. Seu aroma, a suave textura de
sua pele, a tímida e ousada exploração de seu corpo quando o acariciou;
essas carícias tímidas o levaram a ponto de ebulição. Não sabia o que fazer
consigo mesmo fora estar ali, tremendo por dentro, como um adolescente.
- Vai jogar cartas? - perguntou-lhe um amigo.
Ele encolheu os ombros, pensando que lhe viria bem um descanso de
seu exercício de auto tortura.
- Por que não?
Enquanto se voltava para ir à sala de jogo, viu um jovem alto de
cabelo moreno afastar-se do grupo de Cecily para olhar para Jane com uma
expressão que ele reconhecia muito bem.
- Denville, quem é esse homem, que está olhando para Jane como um
falcão?
- Ah, o barão Brentford, não?
- Parece algo veemente.
- Veemente é a palavra. O ano passado tentou matar-se quando Porcia
Hunt o deixou por seu irmão. Vem ou não?
- Sim, dentro de um minuto.
Observou com os olhos estreitos. Jane estava olhando nos olhos do
sinistro barão, assentindo muito séria ao que fosse que lhe estava dizendo.
De repente desviou os olhos e se encontrou com o pétreo olhar dele, como
se tivesse percebido sua desaprovação.
Sorriu-lhe indecisa, não correspondeu ao sorriso. Era muito provável
que ao barão o considerasse um bom partido, mas a um espírito alegre
como Jane não fazia nenhuma falta um pretendente emocionalmente
instável para somar a suas penas. Levando em conta quão bem tinha
aceitado o abandono de Nigel, ele tinha que elogiar sua fortaleza interior.
Fez-lhe um firme gesto negativo com a cabeça. Ela podia achar a
alguém melhor. Mas quem seria um homem digno dela? Pensou.
Não sabia o que fazer; sentia-se desconcertado. Isso era estranho. No
banco do labirinto ele e Jane tinham estado mais perto de fazer amor do que
ele jamais teria sonhado, e de qualquer modo ele continuava ali,
espreitando nas sombras, sentindo-se carregado de culpa, enquanto ela
dançava e fazia todo o possível por desentender-se dele. Seria isso uma
simples representação para demonstrar ao mundo que sobreviveria ao
abandono de Nigel? Bom, não podia culpá-la por seguir seu conselho.
- Já o abandonou sua última conquista, Sedgecroft? - disse uma voz
glacial junto a seu ombro.
No sugestivo sotaque francês reconheceu a voz de Helene, a mulher a
quem durante um breve espaço de tempo pensou em converter em sua
amante; nas últimas semanas seus encantos tinham adquirido um decidido
deslustre. A contra gosto se virou para olhá-la.
- Não vejo Buckley a seu lado. Soltamos sua cadeia, não é?
- Foi me buscar uma bebida - disse ela. Observou-lhe o formoso perfil
em silêncio e, graças a sua considerável experiência, compreendeu que seu
ardor esfriara. - Na realidade, tem medo de você.
- Por quê?
- Porque você e eu...
Sorriu-lhe com o educado desinteresse de um desconhecido. Não era
um homem cruel, mas desejava que se esfumasse.
- Sim?
Ela se ruborizou ante essa indiferente frieza.
- Sua conquista está em animada conversa com Brentford, não?
Ele voltou o olhar para Jane e o rosto ficou duro , com ironia.
- Bom, já sabe o que dizem, Helene. "Quando o gato está longe os
ratos aproveitam para jogar." E falando de roedores, não é Buckley que está
escondido atrás do vaso de barro com a samambaia do canto?
Riu ao ouvir a obscenidade que ela resmungou em francês antes de
desculpar-se para ir reunir-se com seu novo protetor. Não lhe guardava
nenhum rancor; na realidade, agradecia não ter se relacionado mais a fundo
com ela antes de perceber o quão incompatíveis eram. Claro que antes,
antes da morte de seu pai, teria se arrojado de cabeça no romance bem
como nas conseqüências.
O que não queria dizer que teria renunciado para sempre a esse tipo
de prazeres. Só até que tivesse controlado o clã e se arrumasse o desastre da
desafortunada Jane a satisfação de todo o mundo.
Mas, o que tinha sido feito de Jane? Seu triste barão também brilhava
por sua ausência.
- Perdão, lorde Sedgecroft, poderíamos falar um momento?
Grayson se virou para olhar e se encontrou ante o penetrante olhar do
barão Brentford. Ao fundo conseguiu divisar Jane, que estava com suas
duas irmãs, a nenhuma das quais lhe faltava seu número de admiradores.
- Com respeito a lady Jane, suponho?
Brentford inclinou sua morena cabeça.
- Está disponível para cortejá-la?
- Isso depende - respondeu Grayson, cauteloso.
- Do que, milorde?
- De quais sejam suas intenções, e se Nigel... - Interrompeu-se. Não
tinha falado com Jane a respeito de nenhuma possibilidade para o futuro.
Que diabos devia dizer? A metade dos aristocratas achavam que ele se
casaria com Jane; talvez fosse benéfico para ela respirar essa ilusão. - Não é
esta uma pergunta que deveria fazer a seu pai ou a seu irmão?
- O visconde enviou-me a você, milorde. Ele estava ocupado em um
debate político.
- Não o conheço tão bem para falar de meus assuntos pessoais - disse
Grayson ao fim.
- Compreendo.
Ficaram em silêncio, cada um esforçando-se para não olhar para Jane,
sem consegui-lo. Grayson havia se sentido cômodo com ela desde o
começo, como se ela tivesse sido uma velha amiga, mas depois do ocorrido
essa noite temia que houvesse algo mais. O que, não conseguia imaginar. O
barão foi o primeiro a romper o silêncio.
- Entendo a dor do amor não correspondido - disse, inesperadamente.
- Conheço a humilhação da traição que ela sofreu.
Grayson o olhou surpreso. Será que repentinamente se converteu em
uma tia solteirona que dava conselhos aos feridos de amor?
- Pensei que não poderia continuar vivendo - acrescentou Brentford.
- Sim, bom, não nos ponhamos tristes em uma festa, Brentford. Jane
veio aqui para distrair-se.
- Então, me proíbe que fale com ela?
Grayson deixou de olhar para Jane. Deus sabia que não era dono dela.
Não tinha o direito proibir a um homem que a cortejasse, e muito menos
quando esperava restabelecer sua disponibilidade no mercado do
matrimônio. Mas tampouco podia entregá-la ao primeiro indesejável que se
apresentasse. Devia-lhe no mínimo esse grau de amparo.
- Sim - disse, sem saber que outra coisa dizer - suponho que sim.
E que o homem entendesse o que quisesse.
Novamente ficaram em silêncio. Os dois observaram Jane dançando
na pista com um dos amigos íntimos de seu irmão. Estava rindo,
aparentemente passando-o muito bem, até que na metade de um giro olhou
para os dois homens tão diferentes que estavam observando-a com
melancólica intensidade, nublou-lhe o rosto, perdeu o ritmo e se equivocou
no passo.
- Isso é o que quero dizer - disse Grayson, afastando o ombro do pilar.
- Não vai se derrubar na aflição por meu primo se eu puder evitar.
- Não sei como pode parecer tão alegre e despreocupada quando ele a
abandonou só faz uma semana mais ou menos - disse Brentford, pensativo.
- Aplaudo sua capacidade para atuar. É incrível.
Grayson, que estava escutando pela metade essa triste tolice, olhou-o,
perfurando-o com os olhos.
- O que quer dizer?
O barão titubeou.
- Livre me Deus de dar crédito às fofocas. O que acontece é que uma
de suas amigas suspeita que ela nunca amou Nigel. Inclusive algumas
acreditam que não se sentiu tão desgraçada quando... - Se interrompeu ao
ver a expressão de desprezo no rosto de Grayson. - Fofocas, milorde -se
apressou a acrescentar.
- Então não as repita. Jamais.
Brentford arqueou uma sobrancelha.
- Minha avó sempre dizia que a fofoca é uma semente que dá maus
frutos.
- Pois, lhe faça caso - disse Grayson, friamente. - Não plante sementes
mal engendradas.
Brentford assentiu.
- Deixo-o, então, para que cumpra seu dever de guardião.
- Isso - disse Grayson, cortante, com a esperança de abortar assim
qualquer outro rumor malicioso a respeito de Jane que andasse circulando
entre os membros da aristocracia.
Capítulo 15
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Capítulo 17
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Capítulo 18
Jane:
Levam-nos contra nossa vontade, virtualmente amarradas e amordaçadas.
Tome cuidado, o leão escolheu sua parceira.
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Capítulo 19
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Capítulo 20
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Capítulo 21
Jane entrou no dormitório e ficou com a testa apoiada na porta com o
coração retumbante de terror. Se Heath tinha encontrado Nigel e Esther, só
seria questão de tempo que um dos dois se desmoronasse e revelasse o
papel que teve ela no escândalo do casamento.
Nigel era seu amigo; defenderia-a até certo ponto, mas não podia
esperar que fosse capaz de fazer frente a um homem da talha do Grayson. E
muito menos se este seguisse adiante com sua obstinada idéia de desafiá-lo
a duelo. Nigel desmaiava em apenas ver um dedo levantado. Sua mulher
tinha mais jeito de estar capacitada de enfrentar Grayson em um duelo. E
tal como ia resultando a vida dela, igualmente acabava servindo a Nigel de
madrinha no duelo.
Só havia uma solução; era o único que podia fazer. Confessar tudo;
pedir desculpas a todos os envolvidos. E depois abandonar o que ficasse
dela à mercê de Cecily e seu duque enquanto o mundo a censurava. Talvez
pudesse chegar a ser a preceptora de seus filhos e dar surras aos que se
comportassem mal para ganhar a vida.
O pior seria a reação de Grayson. De maneira nenhuma demonstraria
que seu engano o tinha ferido; simplesmente a mataria.
Não era tão idiota para pensar que podia confessar-lhe tudo na cara e
viver para contar. Ele não a perdoaria jamais. O mais seguro era que se risse
dela se tentasse lhe explicar com que desespero tinha desejado evitar um
matrimônio arrumado. E, francamente, era tão covarde que não se atreveria
a dizer-lhe pessoalmente. Escreveria uma carta e a deixaria debaixo do
travesseiro.
Quando se virou para a escrivaninha, que estava junto à janela, viu
que o aposento já estava limpo e ordenado, sem dúvida o eficiente trabalho
de uma das discretas criadas. A um lado do biombo havia uma banheira de
assento cheia de água quente, fumegante. Sobre a cama, uma pilha de
toalhas limpas e na mesinha de noite um pequeno vaso com fragrantes
rosas moscatel.
E sobre a penteadeira, ao lado de seu prezado broche com o
camundongo de diamante, havia outra caixinha de joalheiro de veludo azul
com um cartão colocado debaixo. Leu-a duas vezes, com os olhos
empanados de lágrimas:
***
***
Capítulo 22
***
***
Capítulo 24
***
Capítulo 25
Capítulo 26
Assim que a isso tinha ido parar tudo, estava pensando Grayson, na
janela de seu dormitório, observando aos criados carregar sua bagagem em
uma carruagem.
Voltaria para Londres com a mulher que amava. Os dois
retrocederiam em seu escandaloso romance e voltariam a percorrer o
caminho de uma maneira socialmente aceitável.
E tudo para terminar onde tinham começado: em um altar para a
cerimônia de casamento. E desta vez não escaparia do casamento nenhum
dos dois. Casariam-se embora tivessem que realizar a cerimônia
acorrentados. Ele não tinha a menor intenção de permitir que Jane o
derrotasse outra vez.
Virou-se para contemplar o aposento em que tiveram relações tão
íntimas que lhe ardeu a pele ao recordá-las. Só Deus sabia a quantos
estúpidos bailes e lanches campestres teria que ir com Jane para por fim
poder desfrutar dela em sua cama novamente. Sentia-se mais ou menos
como o diabo virando em círculos para agarrar a cauda, mas não tinha
nenhuma dúvida de que lhe daria caça.
Duraria esse equilíbrio que tinham encontrado ou flutuaria ao longo
de sua vida conjugal? Já se conheciam e compreendiam mutuamente. Tinha
a sensação de que tinham chegado a seu fim os enganos entre eles. De
qualquer modo, tinha a certeza de que não existia outra mulher no mundo
capaz de desequilibrá-lo como Jane. Estava certa de que apresentaria
desafio após desafio nos anos vindouros.
E não queria de nenhuma outra maneira.
***
***
Capítulo 27
A paciência era uma das poucas virtudes que Grayson tinha cultivado
entre vício e vício. Se Jane queria que a cortejasse, pois a cortejaria. Não
tinha a menor dúvida a respeito de quem seria vitorioso nesse jogo de
amor. Ela podia atormentá-lo quanto quisesse, mas ao final dominaria o
homem. Alegremente levaria seu coração na manga para demonstrar a ela e
ao mundo que a adorava.
Entretanto, mesmo que tivesse plena confiança em sua capacidade
para ganhar, não dava como certo muito mais na vida. Jane o tinha
desafiado emocional e intelectualmente desde o momento em que se
conheceram. Enquanto não fossem declarados marido e mulher ante Deus e
os homens, continuaria lhe dando caça, embora só fosse para lhe
demonstrar seu amor. Para lhe demonstrar que embora seduzi-la tinha sido
supremamente prazeroso, isso não tinha sido seu único objetivo.
Falava absolutamente sério quando lhe disse que a necessitava para
que o ajudasse a dirigir seus irmãos. Que insensatos e desmamados se
tornaram. Na infelicidade tão profunda que manifestava Chloe via uma
revolução em potência, que se não se frustrasse logo a levaria a desastre.
Heath também parecia ir encaminhado para uma atividade enigmática e
sem dúvida perigosa.
Suas preocupações não acabavam aí. Sua escrupulosa e correta irmã
Emma tinha perdido seu marido, e em qualidade de viscondessa viúva
estava em uma posição vulnerável ante a sociedade, mesmo que ela se
negasse a considerar as coisas dessa maneira. Drake e Devon sempre
tinham sido almas inquietas, e buscavam problemas uma e outra vez. Ao
valente Brandon, o mais novo, já lhe tinha chegado sua hora e não podia
voltar a aborrecê-lo metendo-se em dificuldades.
A linhagem Boscastle necessitava a força e a astúcia de Jane para
sobreviver aos perigos e chegar ao outro século.
E ele a necessitava para sua própria sobrevivência. Nessa noite, a do
mesmo dia de sua chegada, quando Grayson foi em visita formal à casa de
Jane para acompanhar toda a família à ópera, ficaram vários minutos a sós
no salão, ele com um elegante traje de noite negro e reluzentes botas; ela
com um vestido de cetim branco marfim cujo corpete rematava-se em
delicados babados que lhe rodeavam seus belos ombros como as pétalas de
uma exótica açucena. Pareciam feitos um para o outro. Que outra mulher
no mundo o excitava e domava seus demônios ao mesmo tempo?
Deu uma lenta volta ao redor dela, como um leão examinando a sua
presa.
- Esse vestido lhe assenta muito bem - disse em voz baixa.
- Você gosta? Deveria. É um dos que escolheu, o único de meu
guarda-roupa de amante que poderia usar em público.
Ele parou atrás dela para lhe esfregar a sedutora curva do ombro com
o queixo.
- Acredito que o escolhi pensando em uma atividade íntima e secreta.
O trajeto de Brighton lhe permitiu dar um descanso a essa tortuosa mente
sua?
- Efetivamente, milorde. E deu tempo de repouso a sua mente
tortuosa?
Ele posou os lábios na curva de seu pescoço, murmurando:
- Em toda a viagem não fiz outra coisa que arquitetar maneiras de
voltar a tê-la toda para mim. Sinto sua falta, Jane. - Sentiu-a estremecer
levemente quando lhe pôs as mãos sobre os ombros - Quanto tempo temos
que esperar?
- Não podemos nos casar até que se case Cecily. Simplesmente não se
podem celebrar dois casamentos na mesma semana.
- Fugimos?
- Mmm, o que acontece, Grayson, é que eu tenho o coração posto em
uma cerimônia como é devido, um casamento para recordar...
- Já teve um, se não recordo mal.
- Bom, me ocorreu que desta vez poderia convidar o noivo.
Ele suspirou.
- Quando é o casamento de Cecily?
- Dentro de duas semanas, em Kent, na casa senhorial de seu pai. Vai
assistir?
- Por que não? O último bodas a que assistimos você e eu foi muito
divertida.
- Estará toda minha família - disse ela, entusiasmada pela ideia de
apresentar seu patife malandro ao resto de seus parentes. - Bem poderia
assustar minhas irmãs com sua espantosa masculinidade.
- Suponho que terei que me acostumar a estas festas familiares - disse
ele.
Virou-a para pô-la de frente a ele, observando suas curvas envoltas
em cetim. Estaria grávida? Teria começado a expandir um pouquinho essa
estreita cintura? Em Brighton fizeram amor vezes suficientes para que isso
fosse uma possibilidade. Deslizou-lhe um dedo pela base da garganta.
Repentinamente se sentia muito protetor com ela.
- Quero fixar uma data - disse.
- Uma data para que? - perguntou ela, sorrindo.
Ele deslizou a ponta de um dedo por debaixo de seus seios. Teve a
satisfação de ver que a respiração ela acelerava.
- Para pôr a assar o pudim de Natal. O que lhe parece?
Jane levantou o rosto para o dele.
- Não está escrito isso no contrato clandestino?
- Déspota que sou, esqueci esse importante detalhe.
- Surpreende-me que o outro déspota, meu pai, tenha permitido essa
omissão.
- Acredito que estava emocionado.
- Vão ficar toda a noite aqui ou nos vão acompanhar à ópera?
-perguntou lorde Belshire da porta, em tom zangado, para ocultar o prazer
que sentia por Jane ter encontrado um homem como Sedgecroft para cuidar
dela - Não há nada pior que chegar na metade de uma maldita ária.
- Causaremos alvoroço cheguemos à hora que cheguemos - disse
Athena atrás dele, esbelta e elegante com um xale de cetim branco sobre um
vestido de tafetá azul que formava águas - As pessoas morrem por saber
que tipo de acordo fez Grayson com Jane. Passarei toda a noite negando e
fazendo gestos de repulsa.
O alvoroço prognosticado por Athena se fez realidade poucos
segundos depois de entrarem no camarote para ocupar seus assentos.
Nem sequer as pessoas inteiradas do assunto conseguiam decidir
como interpretar o que viam. Lorde Belshire com toda sua família, e sua
vibrante filha mais velha agarrada ao braço de um bonito patife; e esta
notória dama parecia radiante, para uma mulher supostamente caída. Não
tinham informado os jornais uma ou duas semanas atrás que um certo
marquês foi visto com sua "amante" comprando para esta um guarda-
roupa? Além disso, uma indiscreta empregada tinha dado a conhecer a
muito suculenta conversa que teve lugar na sala de provas do primeiro
andar de uma loja do Bond Street muito conhecida.
Senhoras e filhas passavam binóculos entre elas para lançar um bom
olhar ao vestido de cetim branco marfim de Jane, e reconheceram o estilo da
modista madame Devine, muito estimada pelas mulheres mundanas.
Ninguém recordava ter visto esse determinado vestido antes. E então,
oooh!, O sempre delicioso Sedgecroft lhe deu um beijo na orelha. Típico
dele fazer o gosto na multidão. Sim, acabava de lhe dar um beijo em
público, justo no momento em que os dois se inclinaram ao mesmo tempo
para recolher o programa que tinha caído de Jane.
- Todos o viram - sussurrou Jane, sentindo arder as faces, quando ele
levantou os olhos e a olhou sorrindo. - Seu pai não - sussurrou ele. - É ele
unicamente com quem devo me preocupar.
- Os traficantes de intrigas vão dizer que estavam certos, e os jornais
vão continuar publicando coisas horrorosas sobre nós.
- As fofocas não nos vão matar, Jane, se não, eu já teria morrido faz
muito tempo.
Ela simulou estar lendo o programa, tentada a lhe jogar os braços no
pescoço para beijá-lo ela também.
- Pode ser que tenha razão.
Ele voltou a acomodar seu corpulento corpo no assento.
- A verdade, querida, é que todo aquele que seja alguém vai desejar
ser convidado a todos os eventos sociais cuja anfitriã seja a nova lady
Sedgecroft. E essa será você.
Ela sorriu, imaginando-se aos dois presidindo uma festa com os
membros da aristocracia no salão de baile da casa dele em Park Lane.
- Eu sou o cabeça de família - continuou ele - Como tal, corresponderá
a mim desfrutar do privilégio de vigiar os Boscastle solteiros abandonados
nas festas com jantar que ofereça minha mulher. - Aproximou-se mais para
lhe sussurrar ao ouvido - E essa será você.
Ela olhou seu belo rosto e sentiu o coração cheio de uma felicidade
que quase lhe dava medo. Sim, esse era seu Boscastle. Sua maravilhosa e
malandra origem seria formada por filhos dela, seria seu legado também. A
perspectiva deveria fazê-la cair em um sofá com um pano com aplicado à
fronte, mas ela tinha sido sempre o tipo de mulher que gosta de desafiar o
destino.
- Qual acha que será seu irmão seguinte que se casará? - perguntou -
Drake?
Escureceram-se o azul dos olhos dele.
- No momento estou concentrado em conseguir esse estado para mim.
Talvez tenha que fazê-la me desejar mais.
- Como? - sussurrou ela, incapaz de imaginar que fosse possível
semelhante coisa.
- Depois desta noite não voltarei a tocá-la, Jane. Não haverá nem um
só beijo mais até o dia de nosso casamento.
- Você, Grayson, demonstrando autodomínio?
- Veremos quem se enfraquece primeiro - disse ele, presunçoso.
- É um desafio o que acaba de me fazer?
- Acredito que sim.
- O que apostamos?
- Tem algo para oferecer?
- Perdão - disse lorde Belshire, que estava sentado atrás deles,
inclinando-se para dar um tapinha a cada um no ombro - Será que a ópera
interrompe sua conversa? Peço a signora Nicola que saia ao beco para
cantar sua ária?
- Minhas desculpas, senhor - respondeu Grayson, com o rosto muito
sério. - Presta atenção à atuação, Jane, querida - acrescentou, em voz
bastante alta para que se escutasse.
-Ah, pois, sim estou atenta - replicou ela, olhando-o com um cenho
que poderia ter tido mais efeito se Caroline e Miranda não tivessem soltado
uns risinhos atrás dela.
Grayson se virou para obsequiá-las com um encantador sorriso.
- Muito bem, vocês duas. Porei-as na lista de outros membros da
família que precisam casar-se para o bem da sociedade.
- Tudo isso está muito bem - grunhiu lorde Belshire, inclinando-se
para eles novamente - mas deixemos para depois de vermos vocês casados ,
mmm?
Capítulo 28
***
Capítulo 29
***
Fim
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