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ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed.

Itatiaia, 1958.

“A solidão, a liberdade e a responsabilidade humanas, examinadas como maior rigor e


sistematizadas com uma lúcida exigência, a vontade de encerrar o homem no homem e
de submetê-lo a uma responsabilidade inteiramente autônoma, tais parecem ser as
posições fundamentais de Sartre.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor
Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 7)

“Assim, a característica mais original da obra sartriana parece ser, à primeira vista, a de
superar numa reflexão filosófica metódica, pela sistemática (uma vez que submetida
então pelo menos a postulados metódicos), o grande problema moral da literatura do
século XX: a angústia da responsabilidade humana por um homem que não admite guia
algum no exercício desta responsabilidade.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad.
Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 9)

“Mas se o pensamento de Sartre é sistemático, sua obra romanesca nada tem de artificial
e não lembra quase, salvo em algumas ocasiões, a literatura de tese. O talento próprio de
Sartre soube assim sobrepor a um pensamento rigoroso uma ilustração imaginativa que
não parece ter sido criada pelas necessidades da causa.
Seus romances possuem uma vida independente e uma atmosfera própria, uma
existência literária que ao primeiro contato não deixa suspeitar que sejam a ilustração de
uma doutrina. A náusea parece ser a pintura do tédio e das obsessões de um celibatário
isolado e desabusado numa pe|quena cidade que ele detesta.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-
Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 9-10)

“Pretende Sartre, por uma espécie de redução ao absurdo, fazer surgir o destino do
homem entre seres que o negam. Os que o aceitam nada provam, e apenas conseguem
afirmar sua crença neste destino: Sartre pretende demonstrá-lo, tornando visível sua
ausência e aniquilamento entre os que o negligenciam. Que ponha talvez muito amor e
complacência nesta pintura da fraqueza é outro assunto, isto é, o eterno problema do
escritor que pinta o Mal ou as paixões para inspirar horror e pode se deixar levar por
eles. É, no fundo, um reproche que se fez a Racine e a Mauriac.” (ALBÉRÈS, R.-M.
Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 11)

“Sendo desvelado pela consciência do homem tudo quanto pode oferecer-lhe


harmonias, como conseqüência de seu ponto de partida filosófico, que é a constatação
deste fato, Sartre nada descreve além da consciência humana. Se aparecem paisagens
fugitivas, é como objeto da consciência, sem que nenhuma ilusão animista empreste-
lhes qualquer | vida. Mesmo Deus não pode ser discutido nesta vida a não ser como
objeto da consciência humana e como não é totalmente concebível e definível por ela,
Sartre conclui que ele não existe. Por isto seu universo é limitado à consciência.
Evidentemente é verdade que ninguém pode evadir-se de sua consciência, mas a
maioria dos homens, por instinto, e ingenuamente para Sartre, admitem um mundo
exterior que tem sua vida própria, um Universo orgânico ou mesmo um Deus. A vida é
então diálogo suposto com estes Seres e as perspectivas de visão do mundo encontram-
se alargadas. Para Sartre, com todo rigor filosófico, esta vida exterior a nós mesmos é
ilusão, nada havendo fora de nós a não ser Coisas inertes. Mesmo quando a ciência
mostra no universo material uma organização que nos é estranha, Sartre recusa-lhe
realidade, declarando que somos nós que a impomos às coisas e a imaginamos nelas,
fazendo-nos assim criadores de toda a riqueza do átomo.
Não nos estenderemos sobre esta posição vizinha mas distinta de fato do
‘idealismo filosófico’, e que é, em Sartre, uma atitude herdada do professor de filosofia;
mas a conseqüência humana e literária deste rigor filosófico é a de estreitar o universo
imaginário e a mitologia pessoal de Sartre. Seu mundo romanesco é estreito e restrito
como o dos romancistas e dramaturgos clássicos devotados unicamente ao estudo das
paixões; por isto ele é, ao mesmo tempo, aniquilante e denso.
Neste sentido Sartre aproxima-se dos moralistas e é um moralista, isto é, um
escritor que trabalha exclusivamente para observar, descrever e julgar as faltas das
condutas humanas. Não existe nele nenhuma complacência nem mesmo (parece)
qualquer amor por outros espetáculos além do homem, pela natureza, animais, vida
física e pelo universo. Seu único mundo é o homem, e mesmo assim o adulto e
consciente, já endurecido pela vida e suscetível de formular seus problemas [...].”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 11-12)

“A visão de Sartre está limitada ao homem e ao homem encerrado em seus próprios


problemas humanos. Não procura ligá-lo com realidades maiores que o cercam, como o
fazem em seu sentimento cósmico Giraudoux, Claudel, Malraux. Concebe o homem
como autônomo e único elemento interessante, único ‘dado’ para a reflexão filosófica,
separado do resto das coisas reais ou hipotéticas. Neste estudo do homem a natureza não
tem importância, como não a têm as ciências físicas ou biológicas cujo concurso Sartre
recusa.
Sua obra é então, malgrado sua complexidade e força, pouco variada. Não tem
por matéria mais que os atos e atitudes humanas. Sartre se proíbe mesmo, no domínio
estritamente humano que se impôs, de comprazer-se em certas facilidades, como seria a
busca do pitoresco dos seres ou o gosto romanesco de aventuras. Há poucos
acontecimentos nas histórias que ele conta, e estes são sempre acontecimentos
psicológicos e morais. Suas histórias não procuram prender a atenção ou entusiasmar,
não se dirigem nunca à imaginação; elas propõem fatos de observação psicológica e
problemas da conduta humana.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor
Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 13)

“Em primeiro lugar, na medida em que observa e analisa o homem, Sartre toma
conhecimento de toda a realidade humana e mesmo da que fere o pudor. Este realismo
pode chocar, mas Sartre responderá que usa do privilégio de observador especialista e
científico, e que seu próprio dever de médico da alma é de nada negligenciar,
surpreendendo o homem em todas as posturas pelo simples cuidado de uma verdade
completa e sem restrições. Além disso, acreditou-se notar nele não somente a vontade
de nada esconder, por franqueza e exatidão, das misérias do homem, mas uma
complacência visível em certas pinturas. A imoralidade em foco não consistiria pois em
pintar com muita audácia o verdadeiro, mas em envolver certas cenas em um halo
afetivo que, tirando-lhes seu caráter desagradável, lhes confere um perigoso poder de
fascínio. |
Finalmente e sobretudo, Sartre não se limita a descrever: julga também, visando
a sugerir, se não regras, pelo menos métodos de conduta, chegando assim a critérios
morais que não são os da sociedade que o cerca e que o julgará assim ‘imoral’.”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 14-15)
“Para os não especialistas em filosofia estes personagens tomam uma determinada
forma à primeira leitura, mas para chegar ao sentido próprio que lhes dá Sartre é preciso
decifrá-los com a ajuda das obras filosóficas.
Encontramo-nos então em face de uma obra que independentemente da
impressão literária de primeira leitura, possui um sentido oculto acessível somente aos
iniciados, aos professores de filosofia, como os textos esotéricos têm um sentido
primeiro e um sentido segundo, conhecido somente dos sacerdotes e dos iniciados.
Abellio retomava recentemente a velha idéia da Bíblia, documento cifrado: mas os
romances de Sartre são também documentos cifrados.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul
Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 15)

“Com efeito, o escritor se distingue do especialista e do erudito pelo fato de tudo


escolher e acolher ao acaso, enquanto o especialista acolherá somente os fatos que
caibam dentro das linhas de seu método, tratando-os, porém, mais rigorosamente.”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 17)

“Para o homem moderno a quem a civilização não oferece mais caminhos inteiramente
traçados, e que passeia dentro da noite sua angústia, os escritores do destino e da
responsabilidade produziram obras confusas, gerais, contraditórias, mas que são
fogueiras acesas na escuridão. Compreendendo que não há método rigoroso para definir
as chances e os deveres do homem, queimaram-se a si mesmos para servir de balizas e
pontos de referência. Sartre distingue-se deles por crer que um método pode resolver o
problema, um pensamento medi-lo e, em lugar dos fogos de sacrifício, estabelecer
faróis. Não que ele queira nos dar uma doutrina inteiramente perfeita, uma vez que
deixa a cada um sua liberdade de julgamento, mas, pelo menos, um método. Frente a
Bernanos, a Mauraux, a Camus, que se acreditam perdidos na noite, acendendo sua
fogueira para mostrar aos companheiros sua posição e abrir um pouco as trevas, Sartre é
o engenheiro que coloca em equações a tempestade e o amor.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-
Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 18)

“O primeiro e talvez o maior romance de Sartre, A náusea, mostra um homem


descobrindo, na angústia, que nada em sua vida é motivado e justificado e que,
entretanto, esta gratuidade não o livra de sua liberdade e responsabilidade, pois cabe a
ele, apenas a ele, criar justificações.
Esta liberdade exigente que é dada ao homem em uma existência onde nada está
pronto a acolhê-lo e ajudá-lo, reclama seu emprego, e enquanto permanece vazia e em
suspenso, manifesta-se sob a forma de um tormento. Será preciso então que ela se
‘empenhe’.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 19)

“Em 1938 aparecia, sob o nome de Jean-Paul Sartre, um livro intitulado A náusea, ao
qual o editor ajuntara a classificação de ‘romance’. Tratava-se verdadeiramente de uma
espécie de diário metafísico escrito por um intelectual sem raízes, Antoine Roquentin.
Aos trinta e cinco anos, após uma vida de aventuras na qual não chegamos a acreditar,
Roquentin instala-se em Bouville (Le Havre) para prosseguir seus trabalhos de erudição
sobre um intrigante debochado do século XVIII, o Senhor de Rollebon. De fato, entre o
restaurante, o café e a Biblioteca Municipal, este intelectual se entedia. Nada lhe adianta
proclamar pomposamente: ‘Atravessei os mares, deixei para trás cidades inteiras,
naveguei por muitos rios ou enfrentei muitas florestas, eu ia sempre em direção a outras
cidades. Tive mulheres, briguei com alguns sujeitos...’, este passado não tem
absolutamente nenhuma verossimilhança e sentimos nele o solitário sombrio, o
predecessor do Professor Delarue que para ficar sempre livre não se ligou a nada. |
A pintura deste tédio foi feita de maneira tão chocante que muitos a consideram
‘mórbida’. A solidão é cultivada no que tem de mais sórdido e sombrio: ‘Estou só, a
maioria das pessoas voltou a seus lares e leu o jornal da tarde escutando a T.S.F. O
domingo que termina deixou-lhes um gosto de cinza e seu pensamento já se endereça
para a segunda-feira. Para mim não há domingo ou segunda-feira: existem apenas dias
que avançam em desordem...’.
Em volta de Roquentin não há ninguém, a não ser uma sombra, sua própria
caricatura, e um personagem ridícuolo que encontra na Biblioteca Municipal, ao qual
chama de autodidata, observando-o com desgosto como a um inseto repugnante. O
Autodidata está encarregado de representar, da maneira mais grotesca e sórdida, as
ilusões intelectuais do homem, como os burgueses de Bouville serão encarregados de
representar suas comédias hipocritamente morais. É um simples bedel tomado pela
paixão da cultura e pretendendo resolver, através dela, os problemas da vida.
Resolvendo instruir-se, passa os dias a ler na Biblioteca: Roquentin vê, com surpresa,
passar entre suas mãos sucessivamente A turfa e as turfeiras de Larbalétrier, Hitopadesa
ou a instrução útil de Lastex, A flecha de Caudebec de Julie Lavergne, para em seguida
compreender que o Autodidata lê toda a Biblioteca Municipal seguindo a ordem
alfabética dos autores. Em seu tédio, Roquentin, como todos os solitários, aceita
qualquer companhia e conversa algumas vezes com o autodidata que nele vê um homem
instruído e que viajou muito.
Esta figura representa toda a impotência e o ridículo da cultura frente à qual
Roquentin continua cético: ‘Al|gumas vezes levanto a cabeça e vejo o imenso colarinho
empertigado de onde sai seu pescoço de frango. Usa um terno surrado mas sua roupa
branca é de uma brancura chocante... Contemplo-o com admiração. Um dia, há sete
anos... ele entrou com grande pompa nesta sala. Percorreu com os olhos os inumeráveis
livros que cobrem as paredes e deve ter dito, mais ou menos como Rastignac: ‘Agora
somos dois, Ciência humana!’Depois foi buscar o primeiro livro da primeira estante...
Hoje está em L.K. depois J.L. depois K. Passou bruscamente do estudo dos coleópteros
à teoria dos quanta, de uma obra sobre Tamerlão a um panfleto católico contra o
darwinismo... E aproxima-se o dia em que dirá, fechando o último volume da última
estante da extremidade esquerda: ‘E agora?’. O aborrecimento de Roquentin frente à
pobre pretensão deste homem simplório não tem remédio, assim como o cansaço não
tem salvação frente aos esforços do Autodidata para expor-lhe seu ‘humanismo’:
‘Interroga-me com os olhos, aprovo movendo a cabeça, mas sinto que ele está um pouco
decepcionado, que gostaria de mais entusiasmo. Que posso fazer? Será erro meu se em
tudo que diz reconheço o empréstimo, a citação? Se reconheço, enquanto fala, os
humanistas já conhecidos?’ O Autodidata é talvez o melhor personagem que Sartre já
criou, sem dúvida porque nele colocou muito de si próprio, pelo menos o que gostaria
de recusar: este personagem que se deixa levar pelo prestígio do pensamento e da
matéria impressa é, no fundo, o retrato de todos os intelectuais. Tudo em que o
Autodidata acreditou foi também a crença do próprio Sartre por um instante ou por um
mês durante sua formação intelectual. Ele é o intelectual sem espírito crítico, | o que crê
nas sínteses superiores, que se deixa prender nas dialéticas primárias. Face a ele
Roquentin representa, ao contrário, o espírito crítico em estado puro e é preciso misturar
estas duas figuras para encontrar o verdadeiro personagem de A náusea. Finalmente, o
Autodidata verá seu universo afundar no dia em que for expulso da biblioteca por ter
muito timidamente tocado no braço nu de um adolescente.
Fora este personagem, não há nenhum outro, a não ser algumas figuras
episódicas que mostram toda a sórdida tristeza de uma vida provinciana vista do
exterior: a complacente dona do ‘Rendez-vous des cheminots’, um garçom de café e o
busto de Impétraz, o grande homem de Bouville, Inspetor de Academia do século XIX
dado aos pequenos livros eruditos, símbolo de tudo que tem de convencional a
existência medíocre da pequena cidade da qual o hipercrítico Roquentin recusa
participar, preferindo fumar seu tabaco de tédio nas tardes monótonas ao longo do
Bulevar Negro: ‘Atrás de mim há pessoas que bebem e jogam cartas nas cervejarias.
Aqui há somente a escuridão... Algumas vezes um caminhão imenso a atravessa com
toda velocidade, com um barulho de trovão’.
Nenhum acontecimento a mais a não ser o dia em que Roquentin descobre que a
biografia de um libertino do século XVIII o aborrece tanto quanto o resto. Aparece em
dado momento uma certa Annie, antiga conhecida de Roquentin, a qual acreditava ter a
vida momentos de exaltação que a justificam, ‘momentos perfeitos’, mas que não crê
mais nisso...
Toda a poesia duvidosa de um tédio ‘mórbido’, passeios insípidos ao longo de
um bulevar deserto, a leitura de pequenos anúncios para enganar o tempo, um sorriso
em face da troca de saudações das pessoas ‘bem’, na rua | principal, domingo de manhã,
após a missa, a observação desabusada da falsa importância que os homens se dão na
vida cotidiana, tudo isto concorre para a idéia essencial do livro: nas condições normais
nada justifica a existência.
Eis porque Sartre escolheu como personagem Antoine Roquentin, pois ele é um
caso extremo. Sozinho, sem responsabilidades e gostos, está encarregado de tomar
consciência dessa falta total de justificação da vida diária. Os outros têm pequenos
negócios e pequenas alegrias, como o cavalheiro que entra com um menino ao seu lado
numa confeitaria para sair com um belo pacote amarrado com cordões azul e rosa, ou
ainda grandes hipócritas — armadores ou industriais, prefeitos e conselheiros — que
pretendem devotar-se ao bem público e com isto se beneficiam. Mas aos olhos deste
observador isolado suas vidas são vida de fingimento e Roquentin não faz mais que
reeditar Pascal opondo ao ‘divertimento’ e à comédia mundana a necessidade de
justificar a vida. Roquentin, aliás, não é mais generoso consigo mesmo, uma vez que
deixou de crer em todas as ilusões e imposturas com as quais os habitantes de Bouville
mascaram seus destinos; encontra-se, entretanto, vazio e desorientado.
Verdadeiramente é esta atitude que dá um caráter ‘negro’ ao livro. Mas é
necessário não se esquecer que ela é uma redução ao absurdo e que Pascal não é menos
pessimista. A vida cotidiana, com impostura ou com espírito crítico, não está
justificada.
Roquentin sente isto, tanto em si próprio como nos outros, e é tomado então pela
‘náusea’.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia, 1958, p. 31-35)

“Porque neste romance sem intriga ela [a náusea] é o acontecimento central. Todos a
sentimos, cada vez que, num momento de lucidez, num instante de cansaço temos a
impressão que perdemos nosso tempo, que a vida devia ser algo diferente disto. Neste
sentido a náusea é uma ascese, | esta tomada de consciência da falte de justificação do
que fazemos, e que se encontra, tanto quanto em Sartre, nos escritores cristãos.
Porque o que fazemos muitas vezes não é mais que agitação vã e falsa
importância. E, não obstante, aí estamos, responsáveis, e se nossa vida é vã, ou pelo
menos não suficientemente justificada, sentimos então que nossa presença e existência
são intoleráveis e somos tomados por um medo terrível. Quem ainda não sentiu este
choque e esta angústia, mesmo pela manhã ao levantar-se inopinadamente, quando
temos dificuldade em nos ligar outra vez a nossos móveis habituais de ação e de vida?
A ‘náusea’ sartriana não é um estado de exceção, mas o aprofundamento de um
sentimento que todo homem normal já sentiu, embora o tenha rejeitado o mais depressa
possível, e que os médicos já estudaram. Ela é ao mesmo tempo esta questão: ‘por que
vivo?’ e a terrível vertigem de não sentir a resposta imediata. Certamente, quando se
retoma o sangue frio, encontramos respostas e forjamos raciocínios: foi isto
precisamente que Sartre eliminou, colocando na frente todas as teorias na boca do
Autodidata. Assim, embora um cristão nunca siga o raciocínio de Sartre, é necessário
constatar que o ponto de partida da ‘náusea’ é o mesmo da reflexão cristã: examinando
sua vida comum, sua vida banal vivida na base de ilusões, exaltações e convenções, o
homem sente-se profundamente injustificado e tomado de terror. Ao ver que sua
existência não tem sentido por si só, ele tem medo, não desejando estar aí: mas sua
responsabilidade se impõe, acuando-o, e eis porque se esforça por esquecer o mais
rápido possível seu momento de ‘náusea’. Mas ele está aí e, se se sente injustificado,
deve ter medo. Compreende-se que existe no pensamento filosófico de Sartre uma
noção de ‘estar-aí-no-mundo’, provocadora da angústia de existir, que o permitiu ligar-
se a homens tão diferentes como Pascal ou Kierkegaard.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul
Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 35-36)

“Assim, circunstâncias especiais de solidão e ociosidade fazem de Roquentin um


homem no qual a angústia de existir, em lugar de manifestar por clarões logo abafados,
torna-se uma realidade vivida. Como os filósofos ‘existenciais’, Sartre vê mesmo nesta
angústia fundamental a própria realidade humana, realidade esta que a reflexão
filosófica terá por fim explicitar e estudar: ‘Somos angústia’. Roquentin é então para
Sartre um elemento de experiência, um caso de observação, no sentido em que os
médicos fazem ‘observações’. Ele vive o sentimento que Sartre quer estudar, anotando
em seu diário: ‘Segunda-feira, 29 de janeiro de 1932. Aconteceu-me algo, não posso
duvidar. Chegou como uma doença, não como uma certeza ordinária, não como uma
evidência. Instalou-se sub-repticiamente, pouco a pouco; fiquei um pouco constrangido
e eis tudo. Uma vez na rua isto não se moveu, ficou inteiramente quieto e pude me
persuadir de que não tinha nada, fora um falso alerta. E agora, novamente, isto
desabrocha’.
O livro é pois uma análise feita pelo próprio sujeito desta obsessão essencial no
homem, mas que ele procura mascarar ordinariamente pela vã agitação da vida. Além
disso, Roquentin tenta uma descrição lúcida de seu ‘caso’: ‘Não necessito fazer belas
frases. Escrevo apenas para esclarecer certas circunstâncias. É preciso desconfiar da
literatura. É preciso escrever tudo ao correr da pena [escrita automática?], sem procurar
as palavras.’
De fato, Roquentin encontra-se em estado de abstração que exige uma completa
reflexão sobre o íntimo das | coisas e até uma completa ascese, mesmo religiosa; não se
apega a mais nada e o abandono de seu último projeto, o de estudar eruditamente a vida
do Senhor de Rollebon, é o símbolo deste desprendimento. Penetra no que os místicos
chamam a noite do espírito: ‘Mas não posso explicar a ninguém o que vejo. A ninguém.
Eis tudo: deslizo docemente no fundo da água em direção ao medo’.
Todo pensamento é espanto [filosofia (exame crítico dos gregos)): nasce com o
espanto]: Roquentin espanta-se de início com sua presença e com a presença das
‘coisas’ no mundo. Entre elas e ele suprimem-se todas as rotinas da visão humana: elas
lhe aparecem em estado de nudez, despojadas do sentido de utensílios que lhes damos
habitualmente, petrificadas em um mundo de pesadelo, puras e estranhas como nos
surrealistas: ‘O Bulevar Negro é inumano. Como um mineral. Como um triângulo’. Foi
realmente necessário este sombrio homem desarraigado e estes passeios monótonos
numa cidade deserta para traduzir este aspecto inumano que tomam as coisas quando
refletimos sobre elas: que existam e se imponham a nós constitui então um escândalo,
não sabemos mais como justificar sua presença e a ‘náusea’, ao mesmo tempo que o
medo diante de sua própria existência, é pavor face à existência das coisas: ‘Agora vejo,
lembro-me melhor do que senti outro dia, na praia, quando estava com um calhau nas
mãos. Uma sensação enjoativa. Como foi desagradável! E isto vinha do calhau, estou
certo, passava dele para minhas mãos. Sim, era bem isto: uma náusea nas mãos’. Este
medo torna-se mesmo uma espécie de alucinação doentia e de retração frente a um
mundo cujo sentido não foi dado: ‘Ela não deveria estar nos objetos, uma vez que não
vive. Servimo-nos deles, colocamo-nos em seus lugares, vivemos | em seu meio: são
úteis, nada mais. E a mim, me tocam, é insuportável. Tenho medo de entrar em contato
com eles assim como se fossem animais vivos’.
O que lhe aparece então é a contingência, isto é, a gratuidade do que o cerca e
dele mesmo: as árvores do bulevar e a raiz do castanheiro estão aí, mas poderiam
também não estar; poderiam ser diferentes. Ele mesmo está aí, mas que razão profunda
há para isto? ‘O essencial é a contingência. Quero dizer que, por definição, a existência
não é a necessidade. Existir é estar aí, simplesmente; os existentes aparecem, deixam-se
encontrar, mas nunca se pode deduzi-los... Tudo é gratuito, este jardim, esta cidade e eu
próprio. Quando tomamos conhecimento disto, nosso coração se transtorna e tudo passa
a flutuar, como a noite passada; eis a ‘náusea’.
A náusea seria um sentimento puramente ‘mórbido’ se se parecesse com efeito
na tomada de consciência desta gratuidade para assombrar-se em um niilismo total e
desesperado, como o que Alphonse Daudet caricatura em Tartarin sobre os Alpes. Mas
este niilismo é impossível, uma vez que consiste em nossa supressão; ora, o centro da
vertigem da náusea não é propriamente verificar a gratuidade do mundo e de nós, mas
sim descobrir que existimos a despeito desta gratuidade, sem que sejamos justificados.
O resquício da náusea é a responsabilidade que devemos constatar em nós pelo simples
fato de que existimos.
Esta responsabilidade, que posteriormente tomará um sentido moral, é sentida de
início como horror porque, no primeiro movimento, quereríamos recusá-la. Mas não
podemos sair do jogo porque existimos e temos medo deste eu que existe e deve
encontrar para si uma justificação: | ‘Meu pensamento, soou eu/ eis porque não posso
deter-me. Existo porque penso... não posso impedir-me de pensar. Neste momento
preciso — é terrível — se existo é porque tenho horror de existir, sou eu que me tiro do
nada ao qual aspiro; o ódio, o desgosto de existir são também maneiras de me fazer
existir, de me colocar dentro da existência. Os pensamentos nascem atrás de mim, como
uma vertigem, eu os sinto brotar atrás de minha cabeça... se cedo eles virão pela frente,
entre os olhos, e acabo cedendo sempre; o pensamento cresce, cresce, e ei-lo agora, esta
imensidão que me enche inteiramente e renova minha existência’.
Através das páginas aparentemente monótonas do diário de Antoine Roquentin
[monotonia que faz com que o leitor se sinta no mesmo ambiente parado e lânguido de
Roquentin?], exprime-se a vertiginosa desordem do homem que se encontra despojado
de todas as falsas significações dadas aos objetos e a nós mesmos, e que toma
consciência do que a situação do homem injustificado entre coisas injustificáveis há de
terrível em seu fundo: ‘Coloco minha mão sobre uma banqueta mas retiro-a
precipitadamente: isto existe. Esta coisa sobre a qual assento, sobre a qual coloco a mão,
chama-se uma banqueta... Murmuro: é uma banqueta, como um exorcismo. Mas a
palavra fica em meus lábios: ela se recusa a se colocar sobre a coisa’. Pois o drama de
Roquentin é que, como os surrealistas, tirou das coisas à sua volta seu sentido banal,
interrogando-se sobre sua realidade profunda, a qual se revela ser absurda, mas
insistente e obsedante: ‘As coisas se libertaram de seus nomes. Estão aí, grotescas,
teimosas, gigantes e parece imbecil chamá-las de banquetas ou dizer qualquer coisa
sobre elas: estou entre Coisas, as inomináveis. Sozinho, sem palavras, sem defesa, | elas
me cercam, sob mim, atrás de mim, sobre mim. Nada exigem, nem se impõem, estão
aí’. A mesma vertigem o toma frente a uma raiz de castanheiro: ‘Então, eu estava neste
momento no jardim público. A raiz do castanheiro aprofundava-se na terra, exatamente
sob meu banco. Não me lembro mais que era uma raiz. As palavras haviam
desaparecido e com elas a significação das coisas, seus modos de emprego, as frágeis
marcas que os homens traçaram em sua superfície... Foi aí que tive essa iluminação.
Isto prendeu-me a respiração. Jamais, antes destes ;últimos dias, pressentira o que
queria dizer ‘existir’... De ordinário a existência está encoberta. Ela está aí, em volta de
nós, é nós, não se pode falar duas palavras sem citá-la e, finalmente, não a tocamos’.
Nada melhor que este exemplo explica o sentido original da palavra
‘existencialismo’: enquanto para a atitude filosófica oposta, para o ‘essencialismo’, o
que existe traz em si seu sentido com sua existência, para o existencialista tudo o que
existe manifesta sua existência continuando todavia injustificado. Assim aparece a
‘facticidade, isto é, a contingência irremediável de nosso ‘ser-aí’, de nossa existência
sem finalidade e sem razão’. Não obstante, não se trata de confundir este ponto de
partida com um pessimismo absoluto porque entre os existentes sem razão, pode haver
algum, como o homem, cuja função seja precisamente conquistar um sentido e uma
justificação. Mas esta idéia só se desenvolverá mais tarde, nesta semi-alucinação que
lhe faz aparecer a existência no estado primeiro e nu, mostrando-lhe um mundo vazio de
escusas e de álibis. Roquentin vê dissolver-se a significação que dava ao objeto mais
familiar, à sua frente, que se reduz a uma pre|sença horrenda, à qual não sabe mais
sobrepor uma interpretação: ‘Estendo-me; levanto-me. Na parede há um buraco branco,
o espelho. É uma armadilha. Não sei o que de mim deixar-se-á prender. Agora. A coisa
cinzenta aparece no espelho. Aproximo-me, observo-a, não posso mais ir embora’. E
sua própria mão torna-se estranha e absurda, uma vez considerada não como
instrumento de ação e portanto de significação, mas como objeto; ele a observa como a
veem os doentes enfraquecidos: ‘Vejo minha mão que se distende sobre a mesa. Ela
vive, sou eu. Abre-se, os dedos se desdobram e apontam. Está de costas... Parece um
animal de costas... Sinto minha mão. Sou eu, estes dois animais que se agitam nas
extremidades de meus braços’, É curioso notar que este tema da ‘mão estranha’
encontra-se em Rilke, o qual conta que, quando menino, abaixou-se para apanhar um
lápis sob a mesa: ‘Já distinguia a parede do fundo, clara; orientava-me entre os pés da
mesa; logo reconhecia minha própria mão estendida, os dedos abertos, movendo-se
sozinha, quase como um animal aquático, tocando o fundo. Eu a olhava mover-se quase,
lembro-me agora, com curiosidade; parecia-me que conhecia coisas sobre as quais
jamais lhe ensinara, vendo-a tatear lá em baixo, a seu bel-prazer, com movimentos que
não aprendera de mim, vendo-a tatear lá em baixo, a seu bel-prazer, com movimentos
que jamais observara nelas’[Rainer Maria Rilke. Cadernos de Malte Laurids Brigge, p.
108.].
Em circunstâncias bem mais próximas de Roquentin, isto é, num movimento em
que as coisas aparecem em sua crueza intolerável, desprovidas do verniz que lhes dá os
hábitos da vida banal, Perken morrendo em O caminho real, de Malraux, experimenta o
mesmo espanto frente a sua mão: | ‘Já a vira muitas vezes assim desde alguns dias:
livre, separada dele. Aí, calma sobre sua coxa, ela o observava... Esta mão estava aí,
branca, fascinante... Não enorme: simples, natural, mas viva como um olho’ [André
Malraux. O caminho real, pp. 262-263].” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad.
Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 37-43)

“Não obstante, existem meios de salvar a vida desta terrificante falta de significação
primeira, que os homens têm tanto medo de constatar, tentando serem obrigados a criar
uma. Roquentin foi outrora amigo de uma mulher que acreditava ser a vida um tecido
frouxo de instantes insignificantes, onde pelo menos há instantes nos quais ela toma
uma forma e aceita um sentido: ‘Queria sempre realizar ‘momentos perfeitos’. Se o
instante não se prestava a isto, perdia o interesse por todas as coisas, a vida desaparecia
de seus olhos, estirava-se preguiçosamente, com o ar de uma matrona na idade ingrata’.
E Annie tinha forçado Roquentin a adotar certas atitudes, a evitar certas inaptidões e
dissonâncias, para que a existência receba destes cuidados, em certos ‘momentos
perfeitos’, uma espécie de ressonância da eternidade. Mas Annie reaparece somente em
A náusea para dizer que ‘os momentos perfeitos não existem’. Com ela Sartre quer
repelir e recusar a tentação do esteticismo, os ‘atos gratuitos’ de Gide, os objetos puros
de Mallarmé e Valéry.
Proust tentava precisamente reconstruir o passado: de uma experiência vivida
no presente, que poderia ter sido frouxa e informe, os prestígios da memória, do tempo
perdido e da arte, podem fazer uma criação que traz sua justificação em si mesma.
Roquentin quer ainda apartar | esta ilusão e este vão consolo: ‘Quis que os momentos de
minha vida se seguissem e se ordenassem como os de uma vida que se recorda. Seria
tentar segurar o tempo pela cauda’. A arte que, ao contá-los, dá a uma série de
acontecimentos informes um aspecto de coerência, é uma mentira com a qual o homem
mascara para si mesmo a realidade: ‘Contar o presente no passado é usar um artifício,
criar um mundo estranho e belo, fixo como uma destas máscaras de terça-feira gorda
que se tornam apavorantes quando verdadeiros homens vivos as trazem sobre o rosto’.
Para não ser enganado por esta magia, com a ajuda da qual o artista transfigura a vida,
mas impede também de se fazer sobre ela as perguntas necessárias, Sartre não escreveu
nenhum de seus romances no passado; tanto A náusea como a maioria das histórias de
O muro e Os caminhos da liberdade são escritos no presente.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-
Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 43-44)

“Ora, a maioria dos homens não dá um sentido a sua existência sem passar pela náusea?
O homem em seu estado natural e normal não crê no que faz?
É justamente esta crença e confiança ingênuas e não refletidas que provocam o
motejo de Sartre, este falso sério dos homens que não colocam como Roquentin os
problemas em todo seu rigor e pretendem justificar o fundo da existência com seus
preconceitos, suas rotinas e convenções superficiais.
Desde A náusea Sartre coloca em cena o que chama os ‘Porcos’; por esta
expressão entende o que chamaríamos de modo mais comum e menos expressivo os
fariseus: os | que vivem tranqüilos e seguros de si mesmos, e que se crêem justificados,
enquanto que, pela angústia vivida, Roquentin coloca o problema da justificação com
mais exigência; os que crêem comodamente ter sua vida uma coerência e por isto se
entorpecem e se petrificam numa atitude de conforto, que Anouilh chama ‘felicidade’:
‘Raça de Abel, raça dos justos, raça dos ricos, como falais tranquilamente. É bom, é
realmente bom ter o céu a seu lado e também a polícia. É bom pensar um dia como seu
pai e o pai de seu pai...’.
De fato, Sartre, como Pascal e como tantos outros contemporâneos, denuncia aq
falsa tranqüilidade dos homens que tentam dar-se importância para crer em si, em sua
vida superficial, elidindo assim os problemas fundamentais da existência. Seu ar sério
choca Roquentin ao entrar em uma sala de restaurante: ‘Percorro a sala com os olhos. É
uma farsa! Todos estes homens estão sentados com ares sérios, comem. Não, não
comem: recuperam suas forças para desempenhar bem a tarefa que está a seu cargo.
Têm, cada um, suas pequenas obstinações que lhes impedem de perceber sua existência;
não há um sequer que se creia indispensável a qualquer um ou a qualquer coisa’. A falsa
importância com a qual os ‘porcos’, compondo de si uma imagem complacente e
segura, escondem o caráter mais agudo e angustiante de sua liberdade e
responsabilidade, é feita por sua honorabilidade, sua posição social, a consciência
assegurada de seus direitos. Mas é isto suficiente para justificar um homem? pergunta
Roquentin, enquanto passa em revista no Museu os retratos dos burgueses de Bouville,
irritantes em sua respeitabilidade congelada e em sua arrogância: ‘Nenhum destes aí
representados morreu sem filhos e testamento, nenhum sem os últimos | sacramentos.
De regra, neste como em todos os outros dias, com Deus e com o mundo, estes homens
escorregaram docemente na morte para irem reclamar a parte de vida eterna à qual
tinham direito. Porque tinham direito a tudo: à vida, ao trabalho, à riqueza, ao mando,
ao respeito, e, para terminar, à imortalidade’. Roquentin deixa o Museu com uma severa
apóstrofe endereçada a estes retratos envernizados dos homens que jamais se
inquietaram sobre o sentido de sua vida, iludidos que estavam com o sentimento de sua
importância e com as honrarias municipais: ‘Adeus belos lírios finos em vossos
pequenos santuários pintados, adeus belos lírios, nosso orgulho e nossa razão de ser,
adeus Porcos.
Que a importância exterior e mundana não é suficiente para constituir uma
verdadeira vida normal e uma verdadeira sinceridade humana, que a suficiência dada
pela notabilidade seja uma ilusão sem valor, isto não é assunto novo e Bossuet e Pascal
já o exploravam. Mas numa época que, como nosso século, agitou os valores sociais,
este tema tomou mais importância e nos o encontramos em todos os grandes escritores,
tanto em Gide como em Malraux, em Pirandello e Anouilh. A ferocidade de Sartre e a
crueza de sua apóstrofe recordam muito curiosamente Leon Bloy e o adeus aos
‘Porcos’, lembra também ‘Cochons-sur-Marne’ e ‘Memórias de um demolidor’.
Este movimento marca uma desconfiança do homem com relação aos ‘valores’,
uma vez que eles estão comprometidos em uma civilização, petrificados de algum
modo, e tornam-se suscetíveis de se transformar de realidades vividas em álibis para a
hipocrisia. Ora, uma vez que um ‘valor moral’ pode tornar-se uma máscara em lugar |
de uma inquietude, uma falsa justificação em lugar de uma responsabilidade, Sartre
toma os valores morais na medida em que se degradam, tomando fatalmente o aspecto
de convenções; eis o que Péguy entendia por ‘mística deteriorada em ‘política’’. Sartre,
e este é bem o movimento de sua filosofia, vem então a criticar tudo pela sinceridade,
lucidez e responsabilidade nuas do indivíduo, desprezando os valores coletivos e a
‘moral’ que se transformam muito amiúde em paraventos para a insinceridade. Assim
fora já a atitude constante de André Gide e em geral de nosso século que Sartre aqui
sistematiza e que levara Bernanos a tacar os ‘animais com moral’.
Se nos estendemos longamente sobre este primeiro livro é que, em verdade, ele
contem em germe o pensamento de Sartre: uma redução ao absurdo e uma purificação
que afastam todas as desculpas que os homens inventam para viver covardemente e sem
problemas, a experiência vivida de uma gratuidade total do mundo e de si mesmo na
ausência destes álibis e, como conseqüência, o desvendamento desta liberdade e desta
responsabilidade que levam então o homem a criar justificações que ele não encontra
formuladas para a existência.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor
Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 44-47)

“A experiência da náusea, aliás, não é um fenômeno aberrante, se um certo talento,


talvez um pouco surpreendente de Sartre e que confere à angústia de exsitir um poder
penoso e mesmo sórdido, lhe dá neste livro uma forma que não é suportável para todas
as sensibilidades, não é menos verdadeiro que Sartre não faz senão tornar mais denso e
sufocante um tema encontrado sem dificuldades em seus contemporâneos. O sentimento
de uma vida injustificada encontra-se facilmente tanto no Estrangeiro de Camus como
no Emmanuel Fruges de Julien Green que é | outra forma do Autodidata: ‘Por que me
criaste? perguntava ele interiormente... Para a glória de Deus, este velho jovem, triste e
negro como um rato doente?’. Injustificados também os heróis de Malraux frente à
morte e à eternidade...
É lícito ver que nos encontramos diante de uma transcrição sobre o plano dos
sentimentos vividos desta posição geral da sensibilidade literária do século XX, que
imagina o homem desligado das rotinas, das convenções e doutrinas completas que
orientam a vida, posto a nu e acuado sem possibilidade de fuga em seu destino, em toda
sua pureza e na ‘condição humana’. Desde 1911, o cristão Miguel de Unamuno
descrevia o avanço da ‘náusea’, dela fazendo a base de todo pensamento, mesmo o mais
metódico: ‘Este ponto de partida pessoal e afetivo de toda filosofia e religião é o
sentimento trágico da existência’.
Aqui o que exprime o pensamento de Sartre é bem o homem do século XX, cada
vez mais livre das leis exteriores da vida e cada vez mais comprometido com uma
responsabilidade rigorosamente pessoal. Foi dito muitas vezes, depois de Nietzsche, que
‘Deus está morto’. Entre o século XIX e o nosso, não é só Deus que está morto, é antes
todo um conjunto de valores intermediários entre Deus e o homem, um conjunto de
mitos e semideuses, o que os filósofos chamam ‘os valores’. É incontestável que,
mesmo se novos valores podem aparecer em nossa época, o sistema de valores sobre os
quais viveu o século passado conheceu um vasto desmantelamento. O que chamávamos
o ‘Bem’, o ‘Belo’, o ‘Verdadeiro’ e o ‘Justo’, noções convencionais com as quais os
filósofos tratavam em todos os ângulos, foi posto em dúvida foi posto em dúvida pela
evolução fatal dos costumes e | das circunstâncias, por uma nova psicologia, pela
modificação dos critérios científicos de realidade e verdade, e pelo próprio
envelhecimento dos valores em si, que à força de serem utilizados pela sociedade,
sofreram a conseqüência normal de uma utilização por vezes inadequada e hipócrita,
isto é, o envilecimento. Cada vez que se apela à Beleza para justificar o academismo,
dá-se uma punhalada nesta noção; cada vez que se cobre de honorabilidade uma ação
injusta, assassina-se a honorabilidade; cada vez que se chama verdade a uma convicção
irracional e facciosa, diminui-se o brilho da verdade entre os homens. Uma época de
evolução tão rápida e tão cataclismal com a que vem de 1870 a nossos dias fez uma
assustadora conjunção de mitos e noções e é por isso que no início do século aparece e
se afirma, através de Unamuno, Péguy, Pirandello, Gide, Huxley, depois de modo mais
veemente nos expressionistas alemães, em Julien Green, em Malraux, em Camus e em
Graham Greene, uma atitude de sensibilidade que não imagina mais o homem como
enquadrado por noções e convenções que guiem sua vida, pois que elas são usadas com
muita pressa, tornando-se rapidamente espírito de conforto, rotina e hipocrisia, em uma
sociedade na qual não são estáveis e que as deprecia por um uso frenético e às vezes vil.
O homem é então descrito ao contrário, como um menino perdido, que ninguém
aconselha e apóia, e é bem esta situação que dá às obras que acabamos de citar sua
atmosfera rígida e trágica.
A ‘náusea’ é apenas a transposição à escala reduzida, sob a forma de um
sentimento vivido, deste estado de sociologia literária e moral. Como Graham Greene
ou Camus pintam heróis que não sustentam nenhum valor organizado, a quem ninguém
mostra o caminho, e que devem construir seus destinos sem conselhos exteriores,
Roquentin sente que a vida por si mesma é injustificada. Em 1908, G. K, Chesterton,
não obstante estar próxima | a sua conversão ao catolicismo, descrevia em O homem que
era quinta-feira um herói que, comprometendo-se com as forças do Bem, foi levado a
servir de espião entre as forças do Mal, descobrindo que seu chefe era o mesmo:
anunciava-se aí a Georges Bernanos para quem mesmo um santo como o abade
Donissam em Sob o sol de Satan ignora se é Deus ou o Diabo que o tomou, de tal modo
estas duas potências se estreitam nele. O personagem central de O ministério do medo
de Graham Greene é igualmente um homem sem recurso, sincero, mas igualmente
suspeitado pelos espiões contra os quais ele luta como pela polícia que os persegue,
como Andrews em O homem e ele mesmo é solicitado ao mesmo tempo pelos
contrabandistas e pelos guardas costeiros.
Assim os valores, e para simplificar, o Bem e o Mal, são sentidos em nosso
século (e, nos exemplos precedentes, por três escritores católicos) de maneira confusa,
vindo tão estreitamente ligados que o homem deve viver só e sem ajuda nesta confusão,
afirmando, não obstante, sua responsabilidade. Nada nos diz nesta mistura inextrincável
que nossos atos são justificados e devemos, todavia, justificá-los.
É assim que Roquentin, sobre um plano menos trágico, menos entusiasmado e
mais sórdido, mas ainda agora autêntico, sente que tudo pode ser gratuito, e que pelo
simples fato de existir deve ultrapassar esta gratuidade. Frente a esta responsabilidade
ele tem medo, como têm medo os heróis de Chesterton, Bernanos e Graham Greene.
Mas pelo menos este medo e esta nudez ressaltam irrefutavelmente a responsabilidade
que assim afirmam, a qual Sartre chamará liberdade.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul
Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 47-50)

“Não obstante existem receitas para justificar o mundo e a si mesmo e é disso que se
ocupam as Metafísicas. | Sartre, porém, recusa a metafísica, isto é, o inverificável; ele
não quer imaginar atrás da consciência um espírito que a sustém, nem atrás das Coisas
uma existência própria.
Então descreve simplesmente a vida e a consciência, única realidade da qual o
homem tem experiência. Ora, a característica desta consciência é de nunca ser ela
mesma, mas estar sempre atenta a um objeto exterior: ‘Toda consciência é consciência
de alguma coisa’, escrevia em 1940 em O imaginário, retomando a fórmula de Husserl:
‘minha consciência jamais existe em estado puro mas, porque pensa em uma árvore ou
no rosto de Pedro, porque se faz percepção de uma árvore ou a imagem dos traços de
Pedro, só se torna realidade representando algo de exterior a si mesma; a consciência
nasce trazida por um ser que não está nela’. Ela existe apenas na medida em que se liga
a objetos exteriores, tendo necessidade deles para existir.
Estes objetos são as Coisas. Não têm necessidade de coisa alguma para existir,
estão aí, maciças, informes, como aparecem em A náusea. Impõem-se e quando tenho
uma folha de papel em minha frente, não posso fazer com que seja diferente do que é,
que não seja branca:
‘Em verdade, o branco por mim constatado não é certamente produzido por
minha espontaneidade. Esta forma inerte, aquém de todas as espontaneidades
conscientes, que se deve observar, aprender pouco a pouco, é a isto que chamo uma
coisa’.
Qual será a relação entre estas coisas que estão aí, insolentes como um desafio e
a consciência, que só existe quando as acaricia, quando as pensa? É aqui que Sartre
alicerça uma ‘ontologia’, uma descrição filosófica do | mundo. Estas Coisas, ele as
chama Ser. Existem em si mesmas (formam o ‘envio’, isto é, o projeto), mas não são
nada de preciso.
É a consciência que as aclara, é ela que no caos das coisas destaca uma forma
dando-lhe um sentido, que faz de uma aglomeração sem significado um marco, uma
cadeira, um objeto determinado. Assim, quando a consciência diz ‘eis uma cadeira’,
separa do universo bruto das coisas uma pequena porção de matéria, empresta-lhe uma
estrutura e um sentido. Em suma, assim procedendo, ela se faz indiferente ao resto do
mundo para considerar a cadeira; para destacá-la do acervo das aparências, considera
provisoriamente que o resto não existe, rejeita-o, lançando-o ao Nada. ‘Isto supõe um
corte limite de um ser no ser... O ser considerado está aí, e fora daí, nada. O artilheiro a
quem se designa um objetivo toma cuidado em apontar seu canhão em tal direção,
excluindo todas as outras’.
Perceber é então destacar um objeto do resto das aparências. É também tomar
consciência deste objeto, isto é, pensar nele mas se distinguindo dele. Quando nossa
consciência vê uma cadeira, realiza duas operações: formar a idéia de cadeira, dizer ‘há
uma cadeira’ e, ao mesmo tempo, não obstante, colocar-se fora da cadeira, acrescentar:
‘mas eu não sou esta cadeira’.
Então a consciência por si mesma não é mais que um poder de recortar o mundo,
isto é, negar-lhe uma parte, e também negar que ela se identifica com ele por ‘um recuo
feito em relação às coisas’. é o poder de ‘se colocar | fora do Ser’ e Sartre, dando-lhe o
nome de ‘para-si’, chama-a ‘um ser pelo qual o nada vem às coisas’.

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Esta assimilação da consciência e do Nada pode parecer pessimista e diabólica.


Não obstante,, isto é devido apenas a azares e convenções do vocabulário filosófico.
Como muitos filósofos, Sartre opunha a consciência às coisas, dando-lhes o nome de
‘Ser’; evidentemente a consciência devia partir do lado do ‘Nada’, que é o termo oposto.
Este Nada não justifica nenhum tremor metafísico: se a consciência ‘niiliza’, é
simplesmente porque tem o poder de escolher. Para dar um sentido a uma coisa, ela tem
necessidade de se separar das outras, de rejeitá-las ao ‘nada’. Esta ‘niilização’ é apenas
o poder de destacar a realidade para dar-lhe um sentido. Se a consciência fosse apenas
‘Ser’, seria sempre uma realidade semelhante a si própria, seria petrificada, não seria
liberdade; isto faz com que este termo ‘nada’, no pensamento de Sartre, em lugar de
rebaixar a consciência, enobrece-a.
Não é preciso ver tamb[em, por isto, em Sartre um mágico negro e um espírito
de negação, porque ‘niiliza’ em seus tratados filosóficos. Grosseiramente, e segundo
uma simplificação bastante inexata mas cômoda, ‘niilizar’ é pensar, isto é, escolher,
eliminar, interpretar. Deste modo, através destes vocábulos sofisticados, Sartre afirma
apenas o seguinte: o homem é uma consciência que se destaca das coisas dando-lhes
um sentido. Eis aí um pensamento claro, direto, honesto e banal, que não pode ser
julgado repreensível. Sartre pode chamar ‘niilização’ ao | fato da consciência separar os
objetos do pensamento, tornando-os conscientes, mas isto não o leva a nenhuma
afirmação apocalíptica. A palavra Nada está aureolada por uma atmosfera desagradável,
mas em Sartre significa, pelo contrário: aparecimento da consciência acima das coisas,
destaque da consciência em relação à matéria. O homem é ‘negatividade’ na medida
em que diz implicitamente na menor percepção: ‘Vejo uma pedra e não sou ela’. Neste
sentido é que Sartre é antimaterialista.

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Sartre quis conciliar o ‘realismo’ filosófico e o ‘idealismo’. Para o primeiro, a


existência da matéria se impõe inicialmente, constituindo o postulado inicial; não se
chega a compreender como a matéria pode tornar-se uma realidade tão distinta de si
mesma, que é o espírito apreendido na intuição subjetiva. Para o idealismo o postulado
primeiro é a consciência, mas fracassa ao mostrar como pode ela conhecer os objetos do
mundo exterior.
Para suprimir a dificuldade, Sartre estreitou a relação entre consciência e
Coisas, fazendo-as depender umas das outras; sem a consciência as Coisas são, mas são
apenas um Caos sem significação. Sem as Coisas a consciência não existe, uma vez que
sua vida consiste em concebê-las. Estando tudo alicerçado na relação consciência-
Coisas, compreende-se que a supervivência e a existência de Deus não sejam
convenientes para Sartre como conseqüência de seu postulado inicial. Por outro lado
Sartre é materialista, uma vez que submete a existência da consciência à das Coisas,
recusando admitir que a matéria faça nascer o pensamento.
Não se pode, portanto, ver nele o tradicional ateu materialista e cientista, Sartre-
filósofo trata com extremo desprezo a ciência e, colocando seu ponto de vista na
consciência, faz da matéria apenas um antagonista necessário | para esta última,
perdendo porém sua importância pelo fato de ter sentido apenas se a consciência lhe dá
um. Recusa, deste modo, valor às descobertas da ciência e a revelação da estrutura do
átomo se reduz para ele a uma nova imaginação dos homens frente às Coisas: ‘Sem
dúvida, substituímos as pesadas pedras de Taine por ligeiras pedrinhas vivas que se
transformam sem cessar. Mas estas pedrinhas não deixam de ser coisas’, pois no fundo
acredita que as teorias do átomo carecem de importância porque, seja qual for o
universo material, é a consciência que o pensa.
Ele encerra então a experiência da realidade na consciência humana. Esta
posição é justificável, por ser verdade que tudo quanto podemos conhecer ou pensar o é
pela consciência. Mas esta atitude de partida dirige inevitavelmente toda sua filosofia,
dando-lhe seu caráter. O que torna as doutrinas filosóficas contrárias entre si é sempre o
ponto de partida. O de Sartre é dos mais reduzidos; a título de exemplo, um dos mais
vastos é o de Spinoza que parte do Grande Todo para estudar em seguida as
diferenciações e seus modos. Entre Spinoza que propõe: ‘concebamos de início a idéia
geral de tudo que é ou pode ser e examinemos em seguida os diversos aspectos que
toma este Todo’, e Sartre que diz: ‘Toda realidade acessível para nós o é pela
consciência, logo só devemos estudar a consciência’, há apenas a diferença de duas
posições originais, das quais nenhuma é tola. Tais são os postulados iniciais de Sartre
que só se expõem a uma crítica: a possibilidade indefinida de escolher outros.”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 50-55)

“Assim, o próprio modo de existência da consciência humana, existir somente como um


reflexo que passeia sobre as coisas petrificadas para lhes dar um sentido, implica da
parte do homem em um esfor;o constante. Se ele se define como a possibilidade de dar
uma significação às coisas, é todo atividade. Esta atividade, esta necessidade de
escolher em cada minuto como vemos o mundo, constitui a liberdade. Uma tal liberdade
contém, paradoxalmente, sua própria antinomia: somos livres de dar, não importa que
sentido a não importa que coisa, mas somos obrigados a dar um sentido a alguma coisa,
a pensar, a interpretar, a escolher.
A necessidade que está em nossa liberdade, isto é, nossa consciência, é que
existe apenas pensando alguma coisa, apenas em função de um objeto fora dela:
‘Conhecer, é ‘manifestar-se em direção’... para tratar, lá longe, além de si, em direção
ao que não é de si’. Na medida em que o homem é o ser que se distingue das coisas, ele
não é ‘ser’ mas ‘liberdade’, ressentindo então a ‘inapreciável’ distância que me revela as
coisas e delas me separa para sempre’. Num sentido, o homem domina a existência das
coisas, uma vez que delas se destaca para as conhecer; encontra-se então arrancado da
úmida intimidade deste mundo, sente-se exilado, lamenta covardemente não ser uma
destas coisas que não precisam fazer qualquer esforço para existir, uma vez que sua
própria existência é apenas o exercício constante de sua liberdade: ‘Ele estender as
mãos e as fez passear lentamente sobre a pedra da balaus|trada; ela era enrugada,
fendida, uma esponja petrificada, quente ainda do sol da tarde. Aí estava enorme e
maciça, encerrando em si o silêncio massacrado, as trevas comprimidas que são a parte
interna das coisas. Estava aí: uma plenitude. Ele queria agarrar-se a esta pedra, fundir-se
nela, encher-se de sua opacidade, de seu repouso. Mas ela não lhe servia como socorro
algum: estava fora, para sempre’ [Sursis].
A consciência está só e vazia se não temos a coragem de fazê-la viver, de
comprometê-la num projeto: ‘Consciência esquecida, desamparada entre estes muros,
sob o céu cinzento. E eis aqui o sentido de sua existência; é que ela é consciente de ser
de mais. Dilui-se, dispersa-se, procura perder-se sobre a parede marrom, ao longo do
revérbero ou lá longe na fumaça da tarde’.
Mas neste mesmo desespero aparece um valor: a liberdade. É justamente porque
a ‘consciência não é o que é’ que é livre: sua grandeza terrível nasce de sua situação de
exílio. Se fosse como os objetos, seria uma existência imóvel, segura de si mesma,
congelada, não teria este chocante e maravilhoso poder que é a liberdade, e que se
descobre na amargura desta existência flutuante: ‘Fora. Tudo está fora: as árvores, na
praça, as duas casas da ponte que colorem a noite, o galope congelado de Henrique IV
acima de minha cabeça, tudo que pesa. Dentro, nada, nem mesmo uma fumaça, não há
dentro, não há nada. Eu: nada. Sou livre, disse para si, a boca seca’ [Sursis].
Porque o homem não é nada, ele é aquele que tem a ser, a se fazer: ‘Não sou
nada, não tenho nada. Tão inseparável do mundo como a luz e não obstante exilado,
como a luz, deslizando à superfície das pedras e da água, sem | que nada, jamais, me
prensa ou me segure. Fora. Fora. Fora do mundo, fora do passado, fora de mim mesmo:
a liberdade é o exílio e sou condenado a ser livre’ [Sursis].
Tal é a posição dramática da consciência no mundo: ‘Ela se surpreende
inicialmente em sua inteira gratuidade, sem causa e sem finalidade, incriada,
injustificável, sem outro título à existência a não ser o mero fato de já existir. Não
poderia encontrar pretextos fora de si, desculpas ou razões de ser, uma vez que nada
pode existir para si, se não toma inicialmente consciência disto, pois nada tem outro
sentido além daquele que quer lhe emprestar’. Se o homem não escolhe, se aceita seu
papel, que é sempre o de pensar e esclarecer um objeto exterior, permanece então
indefinidamente frente à angústia de existir, com Roquentin. Enquanto a consciência
não se resume numa interpretação do mundo, no qual deve comprometer-se, sua
existência continua injustificada. Mas se aparece gratuita para si mesma, não pode
suportar esta gratuidade, porque não o é menos aí. Quando a consciência, cuja única
vida é trazer um sentido ao que a cerca, não preenche esta função natural, então
enrosca-se sobre si mesma, tornando-se obsedante: o homem quereria suprimir-se,
levantar do mundo este pensamento que é ele e que o tortura por sua inutilidade: ‘Goetz
(bruscamente): Tire-me o pensamento! Tire-o! Faça com que eu esqueça! Transforme-
me num inseto!’, e Hugo, em As mãos sujas, sofre o mesmo suplício: ‘Existem muitos
pensamentos em minha cabeça. É preciso que eu os procure... Que faço aqui? Tenho eu
razão de querer o que quero?’. |
A consciência, sozinha, está encarregada de dar um sentido ao mundo, poder que
a constitui e amedronta; ela gostaria de elidi-lo e não o pode fazer: ‘Quando se foi
encontrado uma vez pelo cogito, não há mais jeito de se perder: não há abismo, não há
noite, o homem se levanta a todas as partes; onde quer que ele esteja aclara, não vê nada
mais do que aclara, é ele que decide sobre a significação das coisas’.
Criadora do sentido das coisas, a vida humana é, por natureza, esforço perpétuo;
se os homens se cansam desta constante atividade, se este esforço de decisão e lucidez
enfraquece, nada mais tem sentido, pois vêem ‘sua impura e insípida existência, que
lhes é dada por nada’. Eles se sentem ‘de mais’: ‘tenho vontade de partir, de ir a
qualquer parte onde estarei verdadeiramente em meu lugar, onde me encaixarei... mas
meu lugar não está em nenhuma parte; eu sou de mais’. Temendo não ter justificado
bastante sua vida, o resistente Henri sente-se também ‘de mais’: ‘Não. Não falto em
parte alguma, não deixo nenhum vazio. Os metrôs estão pululantes, os restaurantes
cheios, as cabeças quase a arrebentar de pequenas preocupações. Deslizo para fora do
mundo e ele continua cheio. Como um ovo. É preciso crer que não era indispensável’. E
Júpiter, em As moscas, mostra a Orestes que o homem não é um objeto no mundo, mas
uma consciência exilada: ‘Não estás em casa, intruso; estás no mundo como o espinho
na carne, como o caçador furtivo na floresta senhorial...’. Sozinho, este intruso, este
exilado, é o único ser pelo qual as significações aparecem no mundo. |
E é por aí que a consciência encontrará seu verdadeiro ‘si’: conquistando, por
seus projetos, pelo sentido que ela lhe dá, pelas transformações que lhe impõe, este
mundo que a condenava à sedência.

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Uma simples descrição da consciência constatando a imobilidade e a


imbecilidade das Coisas, a gratuidade delas e sua própria, seu poder de tudo aclarar e
mesmo a necessidade de o fazer, implica já em uma Moral. Mas pensar simplesmente o
mundo como nós somos obrigados pela natureza de nossa vida consciente, é já
interpretá-lo e ‘comprometer’, por nossa interpretação, nossa ação futura dentro dele.
Certamente o homem quereria não ter mais que ‘se deixar viver’, receber uma
existência que não teria necessidade de justificar-se, existir simplesmente como existem
as coisas, sem historias, preocupações, esforço e responsabilidade. Mas ele não é assim:
‘Talvez não se seja para si mesmo à maneira de uma coisa. Talvez não se seja
absolutamente; sempre em questão, sempre adiado, talvez se deva fazer-se
perpetuamente’.
Automaticamente não será isto a característica do homem, uma vez que sua
consciência reduz-se a ser simplesmente liberdade e significação? Não, porque esta
liberdade que nos é ‘dada e a única coisa dada’ só se torna eficiente por um esforço,
como bem percebe Mathieu em Os caminhos da liberdade: ‘Mas para que serve isto, a
liberdade, se não for para se comprometer? Gastaste trinta e cinco anos em te purificares
e o resultado é o vazio’. Encontra-se aqui o drama ao qual o culto de uma ‘lucidez’ |
irresponsável pode levar em parte a geração de entre as duas guerras e, nesta
coincidência, é lícito ver como o pensamento pessoal de Sartre aparece como uma
transposição da história literária e moral.
Se a consciência não é mais que um afloramento das coisas por uma potência
que não é ela e que se chama homem, uma liberdade indefinida de as nomear e de lhes
emprestar um sentido, é necessário ainda que esta liberdade, embora inalienável e
adquirida por natureza, tome forma para se manifestar e receber sue valor. O homem a
quem foi dado este poder é culpado se não faz uso dele e se dele tem medo, sente-se
vazio e frouxo: ‘Estava sozinho sobre esta ponte, sozinho no mundo e ninguém podia
dar-lhe ordem. Sou livre ‘para nada’, pensou com lassitude... Mathieu corria na
superfície das coisas e elas não o sentiam’.
Após retirar completamente do homem o que poderia dar-lhe segurança, Sartre
carrega-o com um terrível dom, sua liberdade, pela qual ele pode reencontrar tudo que
perdera. É preciso ainda que desta liberdade, por seu esforço, faça pleno uso, o que lhe
permitirá realizar a possibilidade que está nele. Porque pensar e formar o mundo é
fazermo-nos responsáveis e desta responsabilidade nascida da liberdade podemos ter
medo.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia, 1958, p. 56-61)

“A característica da existência humana é criar o sentido da vida. Mas não se trata de


criá-lo uma vez por todas e de se estabelecer aí: é preciso renová-lo e assumi-lo a cada
instante. Por sua própria definição da consciência, que é perpétua lucidez e escolha
contínua, o valor da vida é um esforço constante.
Este esforço, os homens tentam elidi-lo porque nossa vida não recebe
automaticamente uma justificação e é preciso sempre, sem cessar, dar-lhe uma,
procurando um refúgio nos modos de atividades mais preguiçosos, na recusa da criação
e na obediência a um modelo já feito. Neste ponto Sartre retoma a atitude crítica e
revoltada de seus contemporâneos e predecessores, igualmente exigentes a esta
consideração, igualmente desprezadores de ‘estes que querem submeter a vida a um
modelo, estes cadáveres’ [Malraux, O caminho real, p. 54.].
Toda sua psicologia se resume em estudar as escapatórias, as ‘condutas de má
fé’ pelas quais os homens continuam seu destino difícil. É duro considerar-se sempre
responsável, ter-se sem cessar em estado de alerta. Os | homens preferem esconder de si
mesmos a obrigação que lhes impõe sua liberdade, imaginando-se não como
incessantemente criadores de novas significações, mas como existências estabelecidas,
imutáveis, reconhecidas pelos outros e pelo respeito público, como valores indiscutíveis
e tranqüilizadores.
O homem encontra-se em face da dificuldade de existir, que é sua condição, o
que Roquentin experimenta na angústia; para dominá-la, é preciso não parar de querer e
escolher, sempre novo e livre. Em vez de ter esta preocupação, a maioria prefere
imaginar-se de uma certa maneira definitiva, vendo-se condensada numa existência
segura.
Sartre analisou esta atitude em Baudelaire que se fez um maldito para ser
qualquer coisa sobre o que não havia de voltar, para deixar de perguntar-se: ‘Ele é o
homem que, pondo à prova mais profundamente sua condição de homem, procurou de
maneira mais apaixonada escondê-la. Visto que sua ‘natureza’ lhe escapa, tentará
apanhá-la aos olhos dos outros’. Como estas crianças que querem muito cedo afirmar
sua personalidade e existência e, não podendo fazê-lo normalmente, afirmam-na por
uma espécie de desafio, tendo prazer em se construir uma imagem depreciativa mas
que, ao menos, ‘existe’, é em se fazendo criticável e condenado que Baudelaire se dá a
ilusão de existir, visto não poder tê-la de outra forma; não podendo justificar-se sua
própria existência, faz-se objeto de escândalo para os outros e, é enfim desta forma que
existe e se liberta da angústia. ‘Este homem tentou toda sua vida, por orgulho e rancor,
fazer-se coisa aos olhos dos outros e aos seus próprios. Desejou compor-se frente à
grande festa social, à maneira duma estátua, definitivo, opaco, | inassimilável. Em uma
palavra, diremos que ele quis ser’.
‘Ser de pedra, imóvel, insensível, (...) sem um projeto, sem um cuidado’, aí está
o sonho do homem, sonho cuja covardia Sartre condena: não mais ser um homem livre
que tem incessantemente de decidir sob sua responsabilidade, mas uma coisa definida,
petrificada, que escapa a toda responsabilidade. ‘O que quero é fugir de mim mesmo,
não me lembrar de nada, nada... esvaziar-me de toda minha vida... reparar apenas em
meu corpo... ser somente este corpo’, dizia já uma heroína de Pirandello.
Todos queremos nos construir uma ‘personalidade’: um conjunto de convenções,
atitudes, tiques que nos definam de tal maneira que não tenhamos mais de nos dar ao
mal ‘de existir’, que tenhamos apenas de seguir fielmente estes traços gerais que
formamos para nós mesmos de uma vez por todas. Tal é a petrificação desejada pela
maioria dos homens e à qual os empurra os hábitos, a consideração social, as comédias
que representam diante de si próprios ou diante dos outros.

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Porque para construirmos uma ‘personalidade’ sem muito trabalho, temos


necessidade dos outros. Em seus olhos nós nos vemos, não como um ser flutuante que
deve sempre decidir o que fará no segundo seguinte, mas como uma ‘coisa’, com seus
traços próprios e suas características, que existe por si mesma. Para Sartre nossa vida
consiste muitas vezes em ‘posar’, em nos mostrarmos aos | outros, não por superficial
vaidade, mas porque nossa imagem concebida por eles exterior a nós, parece-nos uma
realidade sólida que nos afirma e dispensa de fazer esforço. Há uma alegria em ‘ser
visto’ e portanto em se sentir ‘alguém’; é por procurarmos esta importância aos olhos
dos outros que se torna mais fácil obter a aprovação de nossa consciência. ‘Assim
fugimos da angústia tentando nos apanhar de fora como outrem em como uma coisa’.
Preferimos nos imaginar tais como nos vêem as pessoas, que nos interrogar realmente
sobre nós mesmos: ‘Há seis grandes espelhos em meu quarto de dormir’, diz uma
personagem de Entre quatro paredes. ‘Quando falava, ajeitava-me para que houvesse
um espelho onde pudesse me olhar. Eu falava e me via falar. Via-me como as pessoas
me viam, isto me mantinha desperta’.
Tal é o sentido desta peça, encenada pela primeira vez em 1944, onde Sartre
reuniu no inferno três personagens somente para mostrar como cada um tem
necessidade dos outros para se iludir sobre si mesmo. E porque existe o inferno, aliás
simplesmente representado por um quarto de hotel de província, sem janelas e espelhos,
tendo apenas três canapés para os três condenados? Porque, para existir realmente, é
preciso ao homem poder querer, poder projetar-se no futuro e modificar sua
significação. Estelle, Inés e Garcin são condenados a uma existência falsa, com a qual
nesta vida se contentam, infelizmente, muitos homens. Garcin, no inferno, teme ter
morrido como um covarde. Queria que assim não fosse, mas o único meio para
demonstrar o contrário seria provar sua coragem, o que lhe é impossível, pois, morto,
nada pode fazer; usa então de uma escapatória empregada por muitos homens vivos,
tentando assegurar-se de que não é um fraco, construindo de | si uma imagem de homem
forte aos olhos de Estelle, tentando não parecer um covarde. Exatamente por isto tem-se
uma visão nova da eterna sátira sobre ‘ser’ e ‘parecer’. E Inés, igualmente, pode dizer a
Estelle: ‘Venha! Tu serás o que quiseres: água viva, água parada, tu te reencontrarás no
fundo dos meus olhos tal como desejares’. O que nos oferecem os outros — e eis
porque temos tal necessidade deles e da comédia social — é uma imagem de nós
mesmos que nos dá segurança. Esta imagem, no fundo, é uma mentira que imploramos
aos outros e que lhes impomos posando diante deles e lhes enganando sobre nós. Mas se
o outro recusa este papel, então torna-se nosso carrasco: ‘Não é necessário grelha, o
inferno são os outros’. Estelle acaba por jogar sobre Garcin sua responsabilidade, a qual
ele não quer aceitar. ‘GARCIN: Estelle, é verdade que sou um fraco? — ESTELLE:
Mas nada sei disto, meu amor, não estou na sua pele. Isto cabe a você resolver’.”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 63-67)

“Mas a imagem que os outros têm dele [Jacques] lhe importa mais que a realidade e é
nesta tendência a fugir da responsabilidade interior, para substitui-la por uma aparência
exterior, que Sartre vê o pecado essencial do homem.
Opinião do Outro, espelho onde a fraqueza humana procura seu reflexo que a
dispensará de ser realmente ela mesma, tal é a vertigem que, para Sartre, fascina a
humanidade. Nesta água superficial tornamo-nos enfim um objeto duro, sólido e
cessamos de ser uma interrogação e um esforço: ‘É o olhar de Medusa que congela e
petrifica. Baudelaire não poderia queixar-se: a ocupação do olhar dos outros não é a de
transformá-lo em coisa?’.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 69)

“Diz-se, com justa razão, que estes personagens são monstros, mas qual o escritor que
não lançou mão de monstros para ilustrar seu pensamento? Tal monstruosidade é
somente o símbolo mais gasto desta tentação de mentira a si mesmo que, segundo
Sartre, envenena o homem: justificar sua existência, impondo cruelmente aos outros
uma imagem qualquer mas definitiva de si, brutal e obscena se não pode ser de outra
forma. E o extremo desta tentação, sadismo ou masoquismo, parece necessário a Sartre
para iluminá-la.
O essencial é ser ‘visto’, parecer para não ter que ser.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-
Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 70)

“Aqui o que marca Sartre é a necessidade de fugir desta intervenção perpétua de si e do


mundo que é, não obstante, a própria natureza da consciência. Em suma, para não se
esforçar em ser um projeto constantemente renovado, o homem, covardemente, aspira
ser sua própria estátua.

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Eis porque, tão amiúde, ele cria um personagem. Ao identificarmo-nos a uma


imagem nossa, construída sobretudo para os olhos dos outros, damo-nos afinal um papel
muito fácil de representar. Não se trata sempre de futilidade mas antes de hábito e
rotina; nós escolhemos os gestos que convêm à nossa profissão e posição e os repetimos
automaticamente. Daí serem nossas expressões, nossa segurança, nossos tiques, nossa
auto-satisfação, apenas um pequeno jogo que mantemos como se nos olhássemos
complacentemente em um espelho.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor
Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 71)

“Mas é certo que esta possibilidade de convenção oferecida pelos hábitos apresenta o
grande perigo de fornecer um álibi à preguiça mais que à fadiga, à falsidade mais que à
espontaneidade envelhecida. As máscaras que a civilização e a rotina põem à venda,
podem cobrir manobras e atitudes ilegais e as cobrem, de fato, muitas vezes. Eis porque
a crítica sartriana das comédias humanas guarda sua força e sobretudo seu valor. A
convenção social se oferece como uma máscara cômoda em sua maior porção, para que
a missão dos escritores não deva ser denunciar os abusos em lugar de mostrar seu
sentido relativo. Não acreditamos podermo-nos permitir estas reservas senão porque a
literatura de nossa época representa admiravelmente seu papel de guardiã contra a
ameaçadora hipocrisia — e Sartre precisamente dá prova disto.” (ALBÉRÈS, R.-M.
Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 77)

“Em sua obra Sartre exprime este conflito indubitavelmente eterno, mas especialmente
agudo em nossa época, entre civilização e sinceridade ao qual, século após século, é
consagrado um bom terço do que chamamos a literatura francesa. |
Sem dúvida, é particularmente em nosso tempo, com André Gide, que começa
esta procura de sinceridade e esta denúncia das máscaras sociais: ‘vivemos sob
sentimentos admitidos’, afirmam Os moedeiros falsos. Contemporâneo de Gide e, como
ele, precursor desta crise de correspondência entre sensibilidade social e sensibilidade
individual, Pirandello marcava o mesmo hiato entre sinceridade e verdade: ‘Muitas
vezes não somos mais sinceros com relação a nós que com relação aos outros’. O
grande dramaturgo italiano, mais que a simples evidência de uma relatividade
psicológica há tanto tempo conhecida, acentua o artifício usado pelo homem para
construir uma falsa coerência de si mesmo: ‘Não somos o que construímos, tal é a
intuição central da arte pirandelliana’.
Que o homem seja em si mesmo uma comédia, todos os precursores de Sartre o
disseram. É possível tratar assim da covardia interior à qual está preso Péguy, esta
‘sedência’ aceitada por rotina e lassidão e que é uma espécie de morte da sinceridade:
‘A morte de um ser é o acúmulo de seus hábitos e de lembranças, isto é, um acúmulo de
esclerose e de endurecimento’. Desta forma, Péguy previa a ‘viscosidade’ em Sartre
como Gide pressentia as definições sartrianas das magias do ‘olhar alheio’: ‘A maioria
das ações dos homens, mesmo as que o interesse não dita, deixa-se dominar pelo olhar
alheio, pela vaidade, pela moda...’
Pode tratar-se também de máscaras sociais e Jean Anouilh está bem próximo de
Sartre quando faz dizer a | Ludovic em Havia um prisioneiro: ‘Permito todas as
sujeiras! O vício, isto não é nada; é a comédia representada por ele que torna a vida
horrível’. Esta última frase justifica talvez todo aparente horror e imoralidade da novela
Intimidade, em O muro.
Assim, Sartre situa-se, na escolástica da sátira, à procedência de um movimento
já antigo e prolongado que contesta, em nome da sinceridade, a falsa coerência que a
vida humana dá a si.
A própria idéia de ‘personalidade’ é portanto posta em dúvida: reação normal
contra muitos séculos de ‘pintura de caracteres’ e ‘estudo das paixões’, contra um
século XIX onde esta tendência pode condensar-se na descrição de tipos sociais. É pois
bem compreensível que seja oposta a esta visão dos homens a noção de uma ‘liberdade’
pela qual o indivíduo deixa de ser submetido a uma coerência já feita, que seria seu
‘caráter’, a traços dados que o definiriam socialmente. E esta oposição entre sinceridade
e atitude toma, em Sartre, como aliás em Gide ou em Bernanos, um aspecto moral. Ele
quer que se recuse a atitude para ser libertado.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre.
Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 77-79)

“O estudo da ‘má fé’ no homem faz aparecer as comédias íntimas ou sociais pelas quais
cada um procura condensar-se num ‘personagem’ feito antes e complacentemente
elaborado. Nesta procura de álibis e nesta feira de máscaras o conformismo social
representa um papel para as pessoas ‘honoráveis’: aos importantes e suficientes, oferece
uma visão puramente formal feita de certezas e arrogâncias, de rotinas e idéias
apreendidas.
Tais são os habitantes de Bouville, observados por Roquentin: ‘Como me sinto
longe deles, do alto desta colina. Parece-me que pertenço a uma outra espécie. Eles |
saem dos escritórios, depois de um dia de trabalho, olham as casas e praças com um ar
satisfeito, pensam que aquela é a sua cidade, uma ‘bela cidade burguesa’. Não têm
medo, sentem-se como em casa. Vêem apenas a água que escorre das torneiras, a luz
que espirra das redomas quando se aperta o interruptor, as árvores mestiças, bastardas,
mantidas com estacas. Têm a prova, cem vezes por dia, que tudo se faz por mecanismo,
que o mundo obedece a leis fixas e imutáveis. Os corpos abandonados no vácuo caem
com a mesma velocidade, o jardim público é fechado todos os dias às dezesseis horas
no inverno, às dezoito no verão, o chumbo funde a 335 graus, o último bonde parte do
Hotel da Cidade às vinte e três horas e cinco minutos. São pacíficos, um pouco
morosos, pensam no Amanhã, isto é, simplesmente um novo hoje. As cidades dispõem
de um só dia que volta sempre igual a cada manhã. Apenas o enfeitam um pouco aos
domingos. Os imbecis. Isto me repugna, pensar que vou rever seus rostos grosseiros e
tranqüilos’.
Sartre zomba aqui não somente das rotinas trazidas pela civilização — porque é
indispensável, apesar de tudo, que o último bonde parta às vinte e três horas e cinco
minutos — mas dos homens que se satisfazem com elas e a quem são suficientes como
justificação da existência, em quem, diria Bernanos, esta ordem banal e superficial
ocupa o lugar da vida espiritual. Criando uma espécie de suficiência e de pretensão da
vida social, elas se fazem geratrizes da hipocrisia. Acontece que o homem sente a
pobreza destes valores estabelecidos apenas quando está só, desarmado e vazio; [...].”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 79-80)

“Confiando-se assim inteiramente a eles, os valores estabelecidos nos fazem viver no


mundo ‘inautêntico’ que criam, um mundo de temores transformados em certezas e
pretensões. Somos arrastados a resolver o problema da vida, não por uma interrogação
de nossa consaciencia ou um compromisso pessoal de nossa responsabilidade, mas pelo
respeito à obediência e à admiração diante de valores que frequentemente são apenas
convenções e mentiras, como as habitantes de Bouville, respeitosas e orgulhosas do
grande homem estatificado de sua cidade: ‘As santas idéias, as boas idéias que herdaram
de seus pais, não têm a responsabilidade de defendê-las; um homem de bronze faz-se
sue guarda’.
Por este conformismo, em lugar de assumir um risco pessoal e de sermos nós
próprios, jogamos a responsabilidade de nossos atos sobre um código penal e moral:
abstará segui-lo, mesmo aparentemente, e estaremos tranqüilos, poderemos ter esta
consciência satisfeita que define a atitude farisaica: [...].” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul
Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 81)

“Refúgios de direitos sagrados recobrindo realidades hipócritas, disfarces cheios de


orgulho do homem fraco, os valores sociais, seguindo a própria ótica de nosso século,
aparecem como uma falsificação cômoda à qual recorrem os que escondem de si
mesmos que a vida exigiria deles, sem cessar, soluções novas e sobretudo uma
responsabilidade rigorosamente individual. Porque aí estaria muito amiúde o que Sartre
entende por ‘compromisso’: ‘Se todos estão embarcados isto não quer dizer que têm
consciência plena; a maioria passa seu tempo dissimulando seu compromisso’: agarram-
se então às convenções. E a literatura pode mostrar esta covardia uma vez que é uma
conveniência amável, já que é apenas ‘o talento encadeado, voltado contra si mesmo, a
arte de assegurar através de discursos harmoniosos e previstos, de mostrar, com o tom
da boa companhia, que o mundo e o homem são medíocres, transparentes, sem
surpresas, sem ameaças e interesse’. Eis aí o que Sartre exporá longamente em Que é a
literatura?, quando desejará que a literatura tenha um sentido atual e novo entre os
homens, em lugar de se consagrar apenas a jogos convencionais.” (ALBÉRÈS, R.-M.
Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 87)

“Mas o que nos fará decidir por esta escolha, a transpor este passo? Toda a infelicidade
de Mathieu é não encontrar nenhuma razão para comprometer sua liberdade em um
determinado projeto. Comprometer-se cegamente, apenas para dar-se uma finalidade, é
cair num fideísmo e num ativismo que sua consciência repugna.
Parece esta razão que permitiu ao pensamento de Sartre dar um passo à frente,
não foi descoberta antes da guerra. Em 1945, entretanto, ele crê tê-la encontrado: é a
solidariedade humana.
Certamente poder-se-ia objetar que não somos teoricamente obrigados a
reconhecê-la (Roquentin não a reconhecia). Se ela é apenas um valor, não é absoluta:
pode sempre haver um homem que pretenda ‘não ser solidário’ e se desinteressar...
Chama-lo-emos de ‘imoral’, mas não poderemos contrariá-lo.
Eis porque Sartre não apresenta esta solidariedade como um valor, mas como
um fato. Não diz que devemos ser solidários, mas que o somos. O conjunto de
acontecimentos de 1939-1944 serve-lhe de exemplo nesta demonstração: o
abstencionismo e o expectativismo eram responsáveis pelas infelicidades sofridas
durante a ocupação por não terem detido mais cedo a subida dos fascismos, por não
terem contribuído para evitar a perda da campanha de 1940, porque não resistiram ao
ocupante. Faça o que fizer o homem e mesmo sua abstenção de ação, isto vai influir
sobre os acontecimentos coletivos, e seria bem estranho se | não fosse levado a sofrer as
conseqüências: ‘Estamos convencidos... que não se pode sair do jogo. Se fôssemos
mudos e parados como seixos mesmo nossa passividade seria uma ação’. O homem está
ligado ao destino de sua época e, pela sua própria existência, ai representa um papel.
Seus atos individuais repercutem sobre todos e, se deixa de agir, esta sua ausência de
ação repercute também sobre tudo. Esta interdependência, de fato, Mathieu descobri-la-
á na derrota, na queda de junho de 1940, num grande sentimento de impotência e cólera;
queria abstrair-se da vida social, política, mundial, mas esta abstenção é impossível:
‘Mas, Deus! eu não queria esta guerra nem esta derrota; por que espécie de engodo
obrigam-me a assumi-las? Sentia crescer nele uma cólera de animal pegado numa
armadilha e, levantando os olhos, viu brilhar esta mesma cólera nos olhos dos outros.
Gritar para o céu todos juntos: ‘Não temos nada com estas histórias! Somos inocentes!’
Seu entusiasmo caiu: certamente a inocência raiava no céu matinal, podia-se tocá-la
sobre as folhas das ervas. Mas ela mentia: a verdade era esta falta intocável e comum,
nossa falta’.
Assim, o homem não é mais o indivíduo isolado. Está comprometido, embora
não o queira, na vida coletiva da qual depende e que depende dele. Podemos constatar
que esta responsabilidade, que desde o início representava o fundo moral da obra de
Sartre, parece deixar de ser aqui um valor moral, uma responsabilidade livremente
assumida, uma vez que é automática, inevitável, imposta pelos fatos.
De fato, para Sartre, o valor moral não pode residir nesta responsabilidade em si
mesma porque é um simples | fato. Onde está então o ato moral? Está no fato de tomar
consciência desta responsabilidade e, consequentemente, agir. De fato a
responsabilidade pesa por si própria sobre cada homem, mas apenas de modo implícito.
É possível que esse queira ignorá-la e escondê-la. Neste caso não cessará de ser válida
para o homem, mas ele não a reconhece, não agindo corretamente como se a olhasse
frente a frente. Não é portanto a solidariedade humana que constitui um valor, uma vez
que ela existe, mesmo que se a negue, mas sim a coragem de olhar na face a
interdependência dos destinos humanos e aceitar representar um papel em seu meio.”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 97-99)

“Vê-se então o que Sartre recusa — que existam valores preestabelecidos — e o que se
propõe: valores que teremos de criar. O mundo oferece uma ‘situação’, que parece
limitar nossa liberdade, respondendo os homens por um ‘projeto’: ‘o mundo onde vivem
se define apenas com referência ao futuro que projetam diante de si’[Sartre. Que é a
literatura?, in: Situações, II, p. 312.]. O que parece imoral a Sartre é recusar esta
criação perpétua, embotar-se com valores passados e imóveis.” (ALBÉRÈS, R.-M.
Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 108)

“É, portanto, totalmente livre, se considera que nenhuma das coisas adquiridas
compromete o futuro: ‘O homem não é de modo algum a soma do que tem, mas a
totalidade do que ainda não tem, do que poderia ter’. Esta liberdade com relação ao
adquirido e ao passado não a consideramos imoral, uma vez que à medida que nos
desliga do passado Sartre nos torna, bem depressa, responsáveis do futuro. Não sendo o
homem uma soma de aquisições mas de projetos, é portanto mais responsável por estes
projetos no futuro, pois não tem atrás de si, no passado, nenhuma desculpa, nenhuma
motivação.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 109)

“[...] Sartre se encerra numa consciência determinada [Sartre recusa mesmo ao


romancista o direito de tomar um ponto de vista que ‘fique’ acima da consciência de
seus personagens. Ver seu artigo ‘Mauriac e a Liberdade’, Situações, I.]. A história
toma assim uma certa intimidade, seu andamento identifica-se com o próprio
andamento dos pensamentos od que a vive. Tudo é visto através da consciência
individualizada de Roquentin, de Mathieu Delarue ou de Daniel Sereno, dos quais
sentimos até o próprio cheiro, insípido ou acre. Este traço dá aos romances de Sartre seu
caráter; o que seria em outro escritor narração objetiva, é nele inteiramente impregnado
do gosto particular da consciência humana que o vive. Não assistimos apenas aos
pequenos acontecimentos que Mathieu vive, mas os vemos com o mesmo gosto na
garganta que tem o personagem, com o mesmo mofo que está no fundo de seu espírito.
À realidade vista pelos olhos do personagem escolhido como herói, ajunta-se este halo
afetivo que é característica do sujeito vivo. As cenas de rua vistas por Mathieu, nós as
vemos como ele, através do mesmo estado visceral e coenestésico que é seu.”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 116)

“Assim a realidade romanesca em Sartre, em lugar de ser dada como destacada de nós
pelo modo objetivo, nos é imposta com um ressaibo determinado de uma consciência,
com o mesmo acompanhamento de humores que a realidade | realmente vivida por nós;
esta maneira de escrever, constrangindo-nos a seguir o movimento do livro numa
familiaridade com a consciência do personagem tão total como nossa familiaridade
conosco mesmo, exerce sobre o leitor verdadeira fascinação da intimidade subjetiva.”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 116-117) [nota do t.h.: Pois bem, acompanhamos os passos do personagem,
mas onde fica minha liberdade de ver, saber, entender aquilo que ele ignorou por algum
motivo? O que para ele é importante, pode não o ser para mim; do mesmo modo, o que
para ele é sem importância, pode ser para mim. Ocorre, neste último caso, que se ele
considera algum fato ou idéia desimportantes e os ignora, como terei, enquanto leitor,
liberdade de considerar tudo? Fico à mercê de seu olhar: meu olhar não é mais meu, é o
olhar que coexiste ao do personagem.]

“Mas esta pintura da ‘familiaridade consigo mesmo’ faz de Sartre um artista cheio de
nuanças desta vida comum da intimidade humana, composta de pensamentos perdidos,
movimentos abortados, hesitações e impressões fugitivas. Eis porque, sem nada perder
de sua densidade, sua história pode desenrolar-se através destes fatos da maior
banalidade que são a vida comum e chata da consciência, da qual Jules Romains até
agora fora o único pintor.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 117)

“Mas esta vida das coisas é a da consciência, única criadora de significações, que joga
sobre elas a imagem de sua ‘situação’ ou de seu ‘projeto’. Jamais Sartre interroga às
próprias coisas; quer desprezar este uso das palavras que as solicita para tirar delas e da
realidade as significações irracionais: ‘Nada mais nefasto que o exercício literário
chamado, creio, prosa poética, que consiste em servir-se das palavras para formar
harmonias obscuras que ressoam à sua volta e que são feitas de sentido vago, em
contradição com a significação clara’. Repudia, portanto, a herança surrealista e
rimbaldiana: ‘Não se trata mais de inflamar incêndios nas barreiras da linguagem, de
casar ‘palavras que se queimam’ e de alcançar o absoluto pela combustão do
dicionário’.
Em 1947, Que é a literatura? repudia a literatura poética, artística e metafísica,
em favor de uma prosa destinada a uma ação moral, social e política entre os homens,
cujo fim é simplesmente ‘comunicar-ser com os outros homens utilizando
modestamente os meios comuns’.

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Com a fundação de Tempos modernos em 1946, e com Que é a literatura?


Sartre dá ao escritor uma missão | moral que é a de esclarecer sua época e o trabalho de
influir sobre ela. Deseja que a literatura torne a ser ‘o que nunca devia deixar de ser:
uma função social’.
Esta posição é uma conseqüência do ‘compromisso’, isto é, da afirmação de
responsabilidade automática e inevitável, que procura tornar consciente para que seja
mais eficiente, do homem em geral e do escritor em particular na sua época e na
solidariedade dos homens. Sartre acha impossível que todos, inclusive o escritor,
possam desinteressar-se da atualidade, uma vez que, cedo ou tarde, ela influirá sobre sua
própria vida. De outro lado, ele já afirmara que viver de fato é colaborar nas
transformações do mundo: ‘Não é em nenhum refúgio que nos descobriremos, mas na
estrada, na cidade, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens’.
O homem não é uma realidade em si, mas um ‘projeto’, um simples poder de dar um
sentido ao mundo, resumindo-se numa escolha feita dentro, sobre e contra o mundo: ‘E
é desta escolha que é responsável. Não livre de não escolher: ele é comprometido, é
preciso apostar, a abstenção é uma escolha’.
Como cada homem, ‘o escritor está em situação na sua época: cada palavra
repercute. Cada silêncio também. Considero Flaubert e Goncourt como responsáveis
pela repressão que segue a Comuna porque não escreveram uma linha para impedi-la’.
É a condenação deste ‘recuo’ que o artista, o contemplativo, o intelectual, o poder
espiritual, acreditaram dever tomar às vezes. Sartre vê aí uma conduta de má fé que não
pode permanecer diante dos fatos: ‘O escritor, há cem anos, sonha levar | sua arte a uma
espécie de inocência, para além do Bem e do Mal e, por assim dizer, antes da falta.
Nossas tarefas e nossos deveres, é a sociedade que no-los acaba de colocar sobre as
costas’. Também ‘o escritor não é nem Vestal nem Ariel: faça o que fizer, está ‘visado’,
marcado, compreendido, até no mais longínquo asilo’. Mais uma vez, desta prisão,
Sartre faz um fato ao invés de um dever: este consiste então somente em tirar as
conseqüências do primeiro. ‘Uma vez que o escritor não tem nenhum meio de se evadir,
nós queremos que ele abrace estreitamente sua época. Ela é sua única chance: foi feita
para ele e ele para ela. Lamenta-se a indiferença de Balzac diante dos dias de 48, a
incompreensão amedrontada de Flaubert frente à Comuna; lamentamos por eles pois
nisto há algo que perderam para sempre. Nada queremos perder de nosso tempo: talvez
haja mais outros mais belos mas este é o nosso; temos apenas esta vida a viver, no meio
desta guerra, desta revolução talvez’.
É preciso então abraçarmos nossa época, uma vez que ela é a nossa e nos é
proibido refugiarmo-nos no eterno. É necessário tomar partido: ‘Para nós escrever é
uma empresa, pois os escritores estão vivos antes de estarem mortos’. Dir-se-á, não
obstante, que a arte não está a serviço da atualidade; mas, responde Sartre, admiramos a
arte das Provinciais... e não seria ela, no seu tempo, uma obra de atualidade?’.
A ‘beleza’ e a arte parecem então a Sartre uma desculpa para não enfrentar
diretamente os problemas do seu tempo; entretanto ele não as nega, mas lhes dá o
se|gundo lugar: ‘Na prosa, o prazer estético só é puro se vem por acréscimo’;
escrevemos, antes de tudo, para dizer alguma coisa aos vivos e tanto melhor se a nossos
netinhos, para quem o valor da atualidade não é mais sensível, ficando por último o
poder de admirar nosso estilo. Sartre não procura o estilo por si mesmo: a sinceridade e
a responsabilidade estão em primeiro lugar, e o estilo ou a beleza vêm depois.
Para Sartre o espírito não deve vagar acima dos acontecimentos, mas ser preso a
eles, e sua posição sobre este ponto é feita para salvar os intelectuais que se irritam de
serem julgados ‘abstratos’ e ‘longe da liberdade’. Não obstante, a característica da
abstração é, etimologicamente, recuar frente à realidade; mas com Sartre, ela não o quer
reconhecer. A atualidade deve dar seu valor principal às obras de espírito: ‘parece que
as bananas têm melhor gosto quando a gente acaba de colhê-las: as obras de espírito, do
mesmo modo, devem ser consumidas imediatamente’.
Tal foi o sentido que Sartre deu à sua revista Tempos modernos cujo critério é o
de colher mais o sentido da atualidade que um valor literário abstrato: ‘Nós ajuntaremos
cada mês a estes estudos, dizia ele no seu manifesto, documentos brutos que
escolheremos, tão variados quanto possíveis, pedindo-lhes somente para mostrar com
clareza a implicação recíproca do coletivo e da pessoa’. Revista puritana nesta exigência
da atualidade, Tempos modernos evitou chamar os grandes nomes, procurar sucesso,
querer agradar. Prende-se, antes de tudo à documentação e nem sempre é responsável
pelo caráter ‘abstrato’ e ‘intelectual’ ainda encontrado em boa parte de suas edições;
pois querer fazer ‘documento vivido’, é ainda mostrar um espírito de | sistema que
permanece ‘intelectual’ enquanto que os verdadeiros ‘duros’ comprometidos na
realidade, se escrevem, escrevem em estilo pomposo...
Isto não é abandonar o universal, mas considerar que não se situa no paraíso das
Ideias: ‘Assim, tomando partido da singularidade de nossa época, reajustamos
finalmente o eterno, sendo nossa tarefa de escritor fazer surgir os valores de eternidade
que são implicados nestes debates sociais e políticos. Mas não nos inquietamos em ir
buscá-los num céu inteligível: só têm interesse sob seu envoltório atual’.
Uma tal literatura tem um caráter moral: ela quer esclarecer uma época,
permitindo-nos aí encontrar diretivas. É assim que o teatro de Sartre torna-se um teatro
de problemas morais: ‘Muitos autores voltam ao teatro de situação. Não mais
caracteres: os heróis são pessoas livres, apanhadas em armadilhas, como todos nós.
Quais são as soluções? Cada personagem terá apenas a escolha de uma solução,
desejando apenas a solução escolhida. É de se desejar que a literatura inteira se torne
moral e problemática, como este novo teatro’. Com efeito, desde Malraux, Bernanos,
Anouilh e Camus, há muito ela se tornara assim, mas é Sartre quem sistematiza o fato,
insistindo sobre esta submissão e esta procura estética do problema moral que
caracteriza, em verdade, nosso meio século desde Péguy. Por isso, define o postulado
literário de nossa época que estava ainda impreciso: ‘o escritor contemporâneo
preocupar-se-á, antes de tudo, em apresentar a seus leitores uma imagem completa da
condição humana. Fazendo isto, compromete-se. Despreza-se um pouco, hoje, um |
livro que não é um compromisso. Quanto à beleza, ela vem depois, quando possível’.
Na verdade pode-se, perguntar se em todas as épocas não tem sido assim. À
parte o esteticismo do fim do último século que, apesar de tudo, não conseguiu abafar
Zola, parece que todo livro está implicado neste compromisso de que fala Sartre.
Stendhal estava bastante comprometido contra as lendas e Racine profundamente em
uma pintura sem pudor. Além disso, um soneto de cortesão ‘compromete’ bem seu
autor, posto que muitos destes sonetos valeram infortúnios... Sartre reconhece, aliás, que
mesmo abster-se é comprometer-se. É natural, portanto, visto que todo ato de fato
comporta compromisso, vermos que seu desejo é um compromisso político e que no seu
pensamento não há outro, embora, antes de tudo, um ofício, uma missão, um casamento
ou mesmo um simples soneto sejam também compromissos...
[...] |
É preciso notar que o ‘compromisso’ do qual fala Sartre, no fim das contas, nada
tem a ver com o Partido Comunista. Este último implica a entrada numa organização e a
aceitação da linha de conduta geral. Para Sartre, ao contrário, o compromisso consiste
simplesmente em ter uma opinião sobre os acontecimentos sociais e políticos e em dizê-
la, reservando, porém, sua liberdade individual para si. Em primeiro lugar Sartre
afastou-se do comunismo pela sua posição filosófica original que é antimaterialista.
Muitas vezes, porém, sua opinião pessoal coincidiu em diversas questões com a do
Partido. Trata-se somente de opiniões — e ele não sai do individualismo. Tempos
modernos toma muitas vezes uma atitude de simpatia em relação às posições
comunistas, mas também às vezes uma atitude de crítica exterior. Isto porque o
compromisso, inicialmente valor moral estendido a todas as responsabilidades humanas,
depois de querer tomar uma forma exclusivamente política, limita-se neste domínio
exprimindo uma opinião individual. E é neste sentido que Sartre o define: ‘No momento
em que todas as igrejas nos recusam e nos excomungam, em que a arte de escrever,
acantonada entre as propagandas, parece ter perdido sua eficácia própria, nosso
compromisso deve começar...’. Mas esse compromisso parece então solitário e,
paradoxalmente, situado acima dos partidos, situação que Sartre parecia, aliás,
condenar. Ele se justifica desta ambigüidade acusando ‘este tempo em que uma boa
vontade não é possível, ou antes, ela não é nem pode ser senão o desejo de tornar a boa
vontade possível’.
[...] |
Em suma, afirmando a necessidade de um compromisso político, Sartre não se
ligou a nenhum grande movimento político atual, conservando depois do
desaparecimento do R.D.R. [Rassemblement Démocratique Révolutionnaire] a
esperança de ver surgir o movimento correspondente a suas idéias. Foi talvez a
hesitação que experimentou entre a possibilidade de se afirmar numa grande potência
política existente e o desejo de continuar fiel à sua posição individual que lhe fez
escrever As mãos sujas, onde o jovem intelectual Hugo descobre que para agir é preciso
abandonar seu individualismo, aceitar as palavras de comando, sujar as mãos e esperar
também ver os indivíduos e os atos, que aos seus olhos fazem o preço de sua vida,
condenados pelas exigências de uma tática que o ultrapassa. [...] |

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Restava-lhe então agir pela literatura, ver no papel escrito um meio de


transformação do mundo. Muito cedo toma consciência da fatalidade que, apesar de sua
nostalgia da ação, fazia dele não um militante mas um ‘homem de letras’; e, com algum
rancor, descreveu a estreiteza desta vida fechada na aldeia parisiense: ‘Encontramo-nos
sempre — ou quase — em certos cafés, nos concertos da Plêiade e em certos
acontecimentos propriamente literários na embaixada da Inglaterra. De tempos em
tempos, um de nós, esgotado, anuncia que parte para o campo: vamos todos vê-lo,
mostramos-lhe que fez o mais certo, que é impossível escrever em Paris e lhe
mostramos nossa inveja apresentando-lhe nossos augúrios’. Sartre vê à sua volta,
aprisionando-o com sua reputação, o círculo fechado e familiar do mundo literário:
‘Bastaram cinco anos, depois de nosso primeiro livro, para que apertássemos as mãos de
todos nossos colegas. A centralização nos grupou todos em Paris; com um pouco de
sorte um americano apressado pode ajuntar-nos em vinte e quatro horas’.
Foi-lhe necessário então crer que a literatura pode transformar o mundo e agir
diretamente sobre os leitores, ainda que pelo meio da vulgarização, examinando então
este problema: ‘Recorrer a novos meios que existem. Os americanos já lhes deram o
nome de ‘mass media’; são os verdadeiros recursos de que dispomos para conquistar o
público virtual: jornal, rádio e cinema. Naturalmente, será preciso fazer calar nossos
escrúpulos’. Esta tendência explica a razão deste escritor esotérico consagrar os últimos
anos a diálogos cinematográficos, a peças de teatro cho|cantes, como também muitas
vezes à reportagem: ‘Há uma arte literária na T.S.F., no filme, no editorial e na
reportagem’. Tal foi sua reportagem sobre os Estados Unidos: nela Sartre conserva as
idéias diretrizes de seu sistema: tendo destacado filosoficamente a noção de
responsabilidade individual das rotinas apreendidas, vê nos Estados unidos o jogo entre
o conformismo dos costumes americanos e a liberdade individual: ‘O sistema, este
grande aparelho exterior, esta máquina implacável que se poderia chamar o espírito
objetivo dos Estados Unidos e que lá se chama Americanismo, é um monstruoso
complexo de mitos, valores, receitas, slogans, números e ritos... Lutam contra ele ou o
aceitam, abafam-no ou ultrapassam-no, sujeitam-no ou o reinventam a cada vez,
deixam-se levar ou fazem esforços furiosos para se evadirem dele; de qualquer modo,
ele lhes fica exterior, transcendente, porque são homens e isto é alguma coisa’.

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Intimamente, nesta obra difundida e mais atual depois de 1945 Sartre, sem se
ligar às grandes forças políticas do mundo, procura não obstante tomar partido: sobre os
judeus em Reflexões sobre a questão judia, sobre os negros da América em A prostituta
respeitosa e nos seus artigos sobre Richard Wright, no acolhimento que dá em Tempos
modernos aos grandes problemas da injustiça.
Levando-o o desenvolver de seu pensamento a esta necessidade de fazer valer o
homem pelas responsabilidades que toma, vê para o escritor, nas questões políticas e
sociais, uma maior parcela desta responsabilidade.
De fato, trata-se sobretudo, para ele, de explicitar a conclusão provisória à qual
chegou em 1945, ao sair da conversão do entre as duas guerras em após-guerra. Este
valor moral da justificativa da vida pela responsabilidade encontrará sem dúvida seu
desenvolvimento na Ética que um dia deverá publicar.

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Toda a nossa literatura, há vinte anos e há mais tempo, se deixarmos de lado o


retorno ao estetismo dos anos 1920-1930, afirmava o primado da moral sobre a estética
e se julgava ‘problemática’, transformando-se em campo de experiência para as diversas
soluções que o homem pode encontrar no emprego de sua vida. Desta procura moral
que se completava no desprezo das tradições e dos costumes e que prosseguem hoje,
contemporaneamente a Sartre, em Anouilh, um Camus ou um Graham Greene, pode-se
destacar com efeito, acima da ruína dos valores adquiridos, esta noção de
‘responsabilidade’: Graham Greene nos propõe o paradoxo de criminosos impenitentes
que continuam católicos porque, mesmo ao se saberem condenados, sua fé lhes dá o
orgulho de se acreditarem responsáveis.
Através de todo um longo trajeto por noções filosóficas, Sartre estabelece esta
responsabilidade e sua necessidade de se tornar eficiente. Apesar do caráter duro e firme
de algumas de suas concepções, sua lição, como a de seus contemporâneos, é que no
desespero moral de uma época envolvida mais vertiginosamente que nas outras nos
cataclismas e ruínas, na inutilidade das regras demasiadamente habituais e rotineiras da
vida, o homem deve lembrar-se de uma só coisa: a idéia de que é responsável e que, não
| obstante, deve agir, a vontade de não abdicar quando não vê a meta e a decisão de se
comprometer a seus riscos e perigos, o que constitui, quando tudo está liquidado, o
precioso e imperativo privilégio que ninguém pode arrancar-lhe. Cada um pode parar de
crer nisto ou naquilo que o tranqüilizava, o mundo pode desmoronar-se, o homem tem
em suas mãos sua salvação e sua dignidade enquanto se declarar responsável.
Esta idéia que uma dezena de grandes escritores no mundo acabam de definir e
iluminar como uma tocha de socorro em um universo gretado de ruínas e obscurecido
de ameaças, Sartre a exprime à sua maneira rigorosa e seca. Assim, quaisquer que sejam
suas considerações anteriores e exteriores, termina no domínio moral, senão na prática
desta moral no mesmo ponto que Bernanos, Malraux, Camus e Greene, esta obra
metódica e hábil que tende por sua parte a isolar o ser humano da vida do Cosmos, a
concebê-lo limitado e tenso, a reduzi-lo ao mais restrito de suas oportunidades para lhe
impor, tornando-o mais estreito e duro, ‘o ofício de ser homem — este ofício teimoso e
limitado que consiste em dizer sim e não segundo princípios, em empreender sem
esperar, em perseverar sem ter bom êxito’.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad.
Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 119-130)

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