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Itatiaia, 1958.
“Assim, a característica mais original da obra sartriana parece ser, à primeira vista, a de
superar numa reflexão filosófica metódica, pela sistemática (uma vez que submetida
então pelo menos a postulados metódicos), o grande problema moral da literatura do
século XX: a angústia da responsabilidade humana por um homem que não admite guia
algum no exercício desta responsabilidade.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad.
Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 9)
“Mas se o pensamento de Sartre é sistemático, sua obra romanesca nada tem de artificial
e não lembra quase, salvo em algumas ocasiões, a literatura de tese. O talento próprio de
Sartre soube assim sobrepor a um pensamento rigoroso uma ilustração imaginativa que
não parece ter sido criada pelas necessidades da causa.
Seus romances possuem uma vida independente e uma atmosfera própria, uma
existência literária que ao primeiro contato não deixa suspeitar que sejam a ilustração de
uma doutrina. A náusea parece ser a pintura do tédio e das obsessões de um celibatário
isolado e desabusado numa pe|quena cidade que ele detesta.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-
Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 9-10)
“Pretende Sartre, por uma espécie de redução ao absurdo, fazer surgir o destino do
homem entre seres que o negam. Os que o aceitam nada provam, e apenas conseguem
afirmar sua crença neste destino: Sartre pretende demonstrá-lo, tornando visível sua
ausência e aniquilamento entre os que o negligenciam. Que ponha talvez muito amor e
complacência nesta pintura da fraqueza é outro assunto, isto é, o eterno problema do
escritor que pinta o Mal ou as paixões para inspirar horror e pode se deixar levar por
eles. É, no fundo, um reproche que se fez a Racine e a Mauriac.” (ALBÉRÈS, R.-M.
Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 11)
“Em primeiro lugar, na medida em que observa e analisa o homem, Sartre toma
conhecimento de toda a realidade humana e mesmo da que fere o pudor. Este realismo
pode chocar, mas Sartre responderá que usa do privilégio de observador especialista e
científico, e que seu próprio dever de médico da alma é de nada negligenciar,
surpreendendo o homem em todas as posturas pelo simples cuidado de uma verdade
completa e sem restrições. Além disso, acreditou-se notar nele não somente a vontade
de nada esconder, por franqueza e exatidão, das misérias do homem, mas uma
complacência visível em certas pinturas. A imoralidade em foco não consistiria pois em
pintar com muita audácia o verdadeiro, mas em envolver certas cenas em um halo
afetivo que, tirando-lhes seu caráter desagradável, lhes confere um perigoso poder de
fascínio. |
Finalmente e sobretudo, Sartre não se limita a descrever: julga também, visando
a sugerir, se não regras, pelo menos métodos de conduta, chegando assim a critérios
morais que não são os da sociedade que o cerca e que o julgará assim ‘imoral’.”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 14-15)
“Para os não especialistas em filosofia estes personagens tomam uma determinada
forma à primeira leitura, mas para chegar ao sentido próprio que lhes dá Sartre é preciso
decifrá-los com a ajuda das obras filosóficas.
Encontramo-nos então em face de uma obra que independentemente da
impressão literária de primeira leitura, possui um sentido oculto acessível somente aos
iniciados, aos professores de filosofia, como os textos esotéricos têm um sentido
primeiro e um sentido segundo, conhecido somente dos sacerdotes e dos iniciados.
Abellio retomava recentemente a velha idéia da Bíblia, documento cifrado: mas os
romances de Sartre são também documentos cifrados.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul
Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 15)
“Para o homem moderno a quem a civilização não oferece mais caminhos inteiramente
traçados, e que passeia dentro da noite sua angústia, os escritores do destino e da
responsabilidade produziram obras confusas, gerais, contraditórias, mas que são
fogueiras acesas na escuridão. Compreendendo que não há método rigoroso para definir
as chances e os deveres do homem, queimaram-se a si mesmos para servir de balizas e
pontos de referência. Sartre distingue-se deles por crer que um método pode resolver o
problema, um pensamento medi-lo e, em lugar dos fogos de sacrifício, estabelecer
faróis. Não que ele queira nos dar uma doutrina inteiramente perfeita, uma vez que
deixa a cada um sua liberdade de julgamento, mas, pelo menos, um método. Frente a
Bernanos, a Mauraux, a Camus, que se acreditam perdidos na noite, acendendo sua
fogueira para mostrar aos companheiros sua posição e abrir um pouco as trevas, Sartre é
o engenheiro que coloca em equações a tempestade e o amor.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-
Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 18)
“Em 1938 aparecia, sob o nome de Jean-Paul Sartre, um livro intitulado A náusea, ao
qual o editor ajuntara a classificação de ‘romance’. Tratava-se verdadeiramente de uma
espécie de diário metafísico escrito por um intelectual sem raízes, Antoine Roquentin.
Aos trinta e cinco anos, após uma vida de aventuras na qual não chegamos a acreditar,
Roquentin instala-se em Bouville (Le Havre) para prosseguir seus trabalhos de erudição
sobre um intrigante debochado do século XVIII, o Senhor de Rollebon. De fato, entre o
restaurante, o café e a Biblioteca Municipal, este intelectual se entedia. Nada lhe adianta
proclamar pomposamente: ‘Atravessei os mares, deixei para trás cidades inteiras,
naveguei por muitos rios ou enfrentei muitas florestas, eu ia sempre em direção a outras
cidades. Tive mulheres, briguei com alguns sujeitos...’, este passado não tem
absolutamente nenhuma verossimilhança e sentimos nele o solitário sombrio, o
predecessor do Professor Delarue que para ficar sempre livre não se ligou a nada. |
A pintura deste tédio foi feita de maneira tão chocante que muitos a consideram
‘mórbida’. A solidão é cultivada no que tem de mais sórdido e sombrio: ‘Estou só, a
maioria das pessoas voltou a seus lares e leu o jornal da tarde escutando a T.S.F. O
domingo que termina deixou-lhes um gosto de cinza e seu pensamento já se endereça
para a segunda-feira. Para mim não há domingo ou segunda-feira: existem apenas dias
que avançam em desordem...’.
Em volta de Roquentin não há ninguém, a não ser uma sombra, sua própria
caricatura, e um personagem ridícuolo que encontra na Biblioteca Municipal, ao qual
chama de autodidata, observando-o com desgosto como a um inseto repugnante. O
Autodidata está encarregado de representar, da maneira mais grotesca e sórdida, as
ilusões intelectuais do homem, como os burgueses de Bouville serão encarregados de
representar suas comédias hipocritamente morais. É um simples bedel tomado pela
paixão da cultura e pretendendo resolver, através dela, os problemas da vida.
Resolvendo instruir-se, passa os dias a ler na Biblioteca: Roquentin vê, com surpresa,
passar entre suas mãos sucessivamente A turfa e as turfeiras de Larbalétrier, Hitopadesa
ou a instrução útil de Lastex, A flecha de Caudebec de Julie Lavergne, para em seguida
compreender que o Autodidata lê toda a Biblioteca Municipal seguindo a ordem
alfabética dos autores. Em seu tédio, Roquentin, como todos os solitários, aceita
qualquer companhia e conversa algumas vezes com o autodidata que nele vê um homem
instruído e que viajou muito.
Esta figura representa toda a impotência e o ridículo da cultura frente à qual
Roquentin continua cético: ‘Al|gumas vezes levanto a cabeça e vejo o imenso colarinho
empertigado de onde sai seu pescoço de frango. Usa um terno surrado mas sua roupa
branca é de uma brancura chocante... Contemplo-o com admiração. Um dia, há sete
anos... ele entrou com grande pompa nesta sala. Percorreu com os olhos os inumeráveis
livros que cobrem as paredes e deve ter dito, mais ou menos como Rastignac: ‘Agora
somos dois, Ciência humana!’Depois foi buscar o primeiro livro da primeira estante...
Hoje está em L.K. depois J.L. depois K. Passou bruscamente do estudo dos coleópteros
à teoria dos quanta, de uma obra sobre Tamerlão a um panfleto católico contra o
darwinismo... E aproxima-se o dia em que dirá, fechando o último volume da última
estante da extremidade esquerda: ‘E agora?’. O aborrecimento de Roquentin frente à
pobre pretensão deste homem simplório não tem remédio, assim como o cansaço não
tem salvação frente aos esforços do Autodidata para expor-lhe seu ‘humanismo’:
‘Interroga-me com os olhos, aprovo movendo a cabeça, mas sinto que ele está um pouco
decepcionado, que gostaria de mais entusiasmo. Que posso fazer? Será erro meu se em
tudo que diz reconheço o empréstimo, a citação? Se reconheço, enquanto fala, os
humanistas já conhecidos?’ O Autodidata é talvez o melhor personagem que Sartre já
criou, sem dúvida porque nele colocou muito de si próprio, pelo menos o que gostaria
de recusar: este personagem que se deixa levar pelo prestígio do pensamento e da
matéria impressa é, no fundo, o retrato de todos os intelectuais. Tudo em que o
Autodidata acreditou foi também a crença do próprio Sartre por um instante ou por um
mês durante sua formação intelectual. Ele é o intelectual sem espírito crítico, | o que crê
nas sínteses superiores, que se deixa prender nas dialéticas primárias. Face a ele
Roquentin representa, ao contrário, o espírito crítico em estado puro e é preciso misturar
estas duas figuras para encontrar o verdadeiro personagem de A náusea. Finalmente, o
Autodidata verá seu universo afundar no dia em que for expulso da biblioteca por ter
muito timidamente tocado no braço nu de um adolescente.
Fora este personagem, não há nenhum outro, a não ser algumas figuras
episódicas que mostram toda a sórdida tristeza de uma vida provinciana vista do
exterior: a complacente dona do ‘Rendez-vous des cheminots’, um garçom de café e o
busto de Impétraz, o grande homem de Bouville, Inspetor de Academia do século XIX
dado aos pequenos livros eruditos, símbolo de tudo que tem de convencional a
existência medíocre da pequena cidade da qual o hipercrítico Roquentin recusa
participar, preferindo fumar seu tabaco de tédio nas tardes monótonas ao longo do
Bulevar Negro: ‘Atrás de mim há pessoas que bebem e jogam cartas nas cervejarias.
Aqui há somente a escuridão... Algumas vezes um caminhão imenso a atravessa com
toda velocidade, com um barulho de trovão’.
Nenhum acontecimento a mais a não ser o dia em que Roquentin descobre que a
biografia de um libertino do século XVIII o aborrece tanto quanto o resto. Aparece em
dado momento uma certa Annie, antiga conhecida de Roquentin, a qual acreditava ter a
vida momentos de exaltação que a justificam, ‘momentos perfeitos’, mas que não crê
mais nisso...
Toda a poesia duvidosa de um tédio ‘mórbido’, passeios insípidos ao longo de
um bulevar deserto, a leitura de pequenos anúncios para enganar o tempo, um sorriso
em face da troca de saudações das pessoas ‘bem’, na rua | principal, domingo de manhã,
após a missa, a observação desabusada da falsa importância que os homens se dão na
vida cotidiana, tudo isto concorre para a idéia essencial do livro: nas condições normais
nada justifica a existência.
Eis porque Sartre escolheu como personagem Antoine Roquentin, pois ele é um
caso extremo. Sozinho, sem responsabilidades e gostos, está encarregado de tomar
consciência dessa falta total de justificação da vida diária. Os outros têm pequenos
negócios e pequenas alegrias, como o cavalheiro que entra com um menino ao seu lado
numa confeitaria para sair com um belo pacote amarrado com cordões azul e rosa, ou
ainda grandes hipócritas — armadores ou industriais, prefeitos e conselheiros — que
pretendem devotar-se ao bem público e com isto se beneficiam. Mas aos olhos deste
observador isolado suas vidas são vida de fingimento e Roquentin não faz mais que
reeditar Pascal opondo ao ‘divertimento’ e à comédia mundana a necessidade de
justificar a vida. Roquentin, aliás, não é mais generoso consigo mesmo, uma vez que
deixou de crer em todas as ilusões e imposturas com as quais os habitantes de Bouville
mascaram seus destinos; encontra-se, entretanto, vazio e desorientado.
Verdadeiramente é esta atitude que dá um caráter ‘negro’ ao livro. Mas é
necessário não se esquecer que ela é uma redução ao absurdo e que Pascal não é menos
pessimista. A vida cotidiana, com impostura ou com espírito crítico, não está
justificada.
Roquentin sente isto, tanto em si próprio como nos outros, e é tomado então pela
‘náusea’.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia, 1958, p. 31-35)
“Porque neste romance sem intriga ela [a náusea] é o acontecimento central. Todos a
sentimos, cada vez que, num momento de lucidez, num instante de cansaço temos a
impressão que perdemos nosso tempo, que a vida devia ser algo diferente disto. Neste
sentido a náusea é uma ascese, | esta tomada de consciência da falte de justificação do
que fazemos, e que se encontra, tanto quanto em Sartre, nos escritores cristãos.
Porque o que fazemos muitas vezes não é mais que agitação vã e falsa
importância. E, não obstante, aí estamos, responsáveis, e se nossa vida é vã, ou pelo
menos não suficientemente justificada, sentimos então que nossa presença e existência
são intoleráveis e somos tomados por um medo terrível. Quem ainda não sentiu este
choque e esta angústia, mesmo pela manhã ao levantar-se inopinadamente, quando
temos dificuldade em nos ligar outra vez a nossos móveis habituais de ação e de vida?
A ‘náusea’ sartriana não é um estado de exceção, mas o aprofundamento de um
sentimento que todo homem normal já sentiu, embora o tenha rejeitado o mais depressa
possível, e que os médicos já estudaram. Ela é ao mesmo tempo esta questão: ‘por que
vivo?’ e a terrível vertigem de não sentir a resposta imediata. Certamente, quando se
retoma o sangue frio, encontramos respostas e forjamos raciocínios: foi isto
precisamente que Sartre eliminou, colocando na frente todas as teorias na boca do
Autodidata. Assim, embora um cristão nunca siga o raciocínio de Sartre, é necessário
constatar que o ponto de partida da ‘náusea’ é o mesmo da reflexão cristã: examinando
sua vida comum, sua vida banal vivida na base de ilusões, exaltações e convenções, o
homem sente-se profundamente injustificado e tomado de terror. Ao ver que sua
existência não tem sentido por si só, ele tem medo, não desejando estar aí: mas sua
responsabilidade se impõe, acuando-o, e eis porque se esforça por esquecer o mais
rápido possível seu momento de ‘náusea’. Mas ele está aí e, se se sente injustificado,
deve ter medo. Compreende-se que existe no pensamento filosófico de Sartre uma
noção de ‘estar-aí-no-mundo’, provocadora da angústia de existir, que o permitiu ligar-
se a homens tão diferentes como Pascal ou Kierkegaard.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul
Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 35-36)
“Não obstante, existem meios de salvar a vida desta terrificante falta de significação
primeira, que os homens têm tanto medo de constatar, tentando serem obrigados a criar
uma. Roquentin foi outrora amigo de uma mulher que acreditava ser a vida um tecido
frouxo de instantes insignificantes, onde pelo menos há instantes nos quais ela toma
uma forma e aceita um sentido: ‘Queria sempre realizar ‘momentos perfeitos’. Se o
instante não se prestava a isto, perdia o interesse por todas as coisas, a vida desaparecia
de seus olhos, estirava-se preguiçosamente, com o ar de uma matrona na idade ingrata’.
E Annie tinha forçado Roquentin a adotar certas atitudes, a evitar certas inaptidões e
dissonâncias, para que a existência receba destes cuidados, em certos ‘momentos
perfeitos’, uma espécie de ressonância da eternidade. Mas Annie reaparece somente em
A náusea para dizer que ‘os momentos perfeitos não existem’. Com ela Sartre quer
repelir e recusar a tentação do esteticismo, os ‘atos gratuitos’ de Gide, os objetos puros
de Mallarmé e Valéry.
Proust tentava precisamente reconstruir o passado: de uma experiência vivida
no presente, que poderia ter sido frouxa e informe, os prestígios da memória, do tempo
perdido e da arte, podem fazer uma criação que traz sua justificação em si mesma.
Roquentin quer ainda apartar | esta ilusão e este vão consolo: ‘Quis que os momentos de
minha vida se seguissem e se ordenassem como os de uma vida que se recorda. Seria
tentar segurar o tempo pela cauda’. A arte que, ao contá-los, dá a uma série de
acontecimentos informes um aspecto de coerência, é uma mentira com a qual o homem
mascara para si mesmo a realidade: ‘Contar o presente no passado é usar um artifício,
criar um mundo estranho e belo, fixo como uma destas máscaras de terça-feira gorda
que se tornam apavorantes quando verdadeiros homens vivos as trazem sobre o rosto’.
Para não ser enganado por esta magia, com a ajuda da qual o artista transfigura a vida,
mas impede também de se fazer sobre ela as perguntas necessárias, Sartre não escreveu
nenhum de seus romances no passado; tanto A náusea como a maioria das histórias de
O muro e Os caminhos da liberdade são escritos no presente.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-
Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 43-44)
“Ora, a maioria dos homens não dá um sentido a sua existência sem passar pela náusea?
O homem em seu estado natural e normal não crê no que faz?
É justamente esta crença e confiança ingênuas e não refletidas que provocam o
motejo de Sartre, este falso sério dos homens que não colocam como Roquentin os
problemas em todo seu rigor e pretendem justificar o fundo da existência com seus
preconceitos, suas rotinas e convenções superficiais.
Desde A náusea Sartre coloca em cena o que chama os ‘Porcos’; por esta
expressão entende o que chamaríamos de modo mais comum e menos expressivo os
fariseus: os | que vivem tranqüilos e seguros de si mesmos, e que se crêem justificados,
enquanto que, pela angústia vivida, Roquentin coloca o problema da justificação com
mais exigência; os que crêem comodamente ter sua vida uma coerência e por isto se
entorpecem e se petrificam numa atitude de conforto, que Anouilh chama ‘felicidade’:
‘Raça de Abel, raça dos justos, raça dos ricos, como falais tranquilamente. É bom, é
realmente bom ter o céu a seu lado e também a polícia. É bom pensar um dia como seu
pai e o pai de seu pai...’.
De fato, Sartre, como Pascal e como tantos outros contemporâneos, denuncia aq
falsa tranqüilidade dos homens que tentam dar-se importância para crer em si, em sua
vida superficial, elidindo assim os problemas fundamentais da existência. Seu ar sério
choca Roquentin ao entrar em uma sala de restaurante: ‘Percorro a sala com os olhos. É
uma farsa! Todos estes homens estão sentados com ares sérios, comem. Não, não
comem: recuperam suas forças para desempenhar bem a tarefa que está a seu cargo.
Têm, cada um, suas pequenas obstinações que lhes impedem de perceber sua existência;
não há um sequer que se creia indispensável a qualquer um ou a qualquer coisa’. A falsa
importância com a qual os ‘porcos’, compondo de si uma imagem complacente e
segura, escondem o caráter mais agudo e angustiante de sua liberdade e
responsabilidade, é feita por sua honorabilidade, sua posição social, a consciência
assegurada de seus direitos. Mas é isto suficiente para justificar um homem? pergunta
Roquentin, enquanto passa em revista no Museu os retratos dos burgueses de Bouville,
irritantes em sua respeitabilidade congelada e em sua arrogância: ‘Nenhum destes aí
representados morreu sem filhos e testamento, nenhum sem os últimos | sacramentos.
De regra, neste como em todos os outros dias, com Deus e com o mundo, estes homens
escorregaram docemente na morte para irem reclamar a parte de vida eterna à qual
tinham direito. Porque tinham direito a tudo: à vida, ao trabalho, à riqueza, ao mando,
ao respeito, e, para terminar, à imortalidade’. Roquentin deixa o Museu com uma severa
apóstrofe endereçada a estes retratos envernizados dos homens que jamais se
inquietaram sobre o sentido de sua vida, iludidos que estavam com o sentimento de sua
importância e com as honrarias municipais: ‘Adeus belos lírios finos em vossos
pequenos santuários pintados, adeus belos lírios, nosso orgulho e nossa razão de ser,
adeus Porcos.
Que a importância exterior e mundana não é suficiente para constituir uma
verdadeira vida normal e uma verdadeira sinceridade humana, que a suficiência dada
pela notabilidade seja uma ilusão sem valor, isto não é assunto novo e Bossuet e Pascal
já o exploravam. Mas numa época que, como nosso século, agitou os valores sociais,
este tema tomou mais importância e nos o encontramos em todos os grandes escritores,
tanto em Gide como em Malraux, em Pirandello e Anouilh. A ferocidade de Sartre e a
crueza de sua apóstrofe recordam muito curiosamente Leon Bloy e o adeus aos
‘Porcos’, lembra também ‘Cochons-sur-Marne’ e ‘Memórias de um demolidor’.
Este movimento marca uma desconfiança do homem com relação aos ‘valores’,
uma vez que eles estão comprometidos em uma civilização, petrificados de algum
modo, e tornam-se suscetíveis de se transformar de realidades vividas em álibis para a
hipocrisia. Ora, uma vez que um ‘valor moral’ pode tornar-se uma máscara em lugar |
de uma inquietude, uma falsa justificação em lugar de uma responsabilidade, Sartre
toma os valores morais na medida em que se degradam, tomando fatalmente o aspecto
de convenções; eis o que Péguy entendia por ‘mística deteriorada em ‘política’’. Sartre,
e este é bem o movimento de sua filosofia, vem então a criticar tudo pela sinceridade,
lucidez e responsabilidade nuas do indivíduo, desprezando os valores coletivos e a
‘moral’ que se transformam muito amiúde em paraventos para a insinceridade. Assim
fora já a atitude constante de André Gide e em geral de nosso século que Sartre aqui
sistematiza e que levara Bernanos a tacar os ‘animais com moral’.
Se nos estendemos longamente sobre este primeiro livro é que, em verdade, ele
contem em germe o pensamento de Sartre: uma redução ao absurdo e uma purificação
que afastam todas as desculpas que os homens inventam para viver covardemente e sem
problemas, a experiência vivida de uma gratuidade total do mundo e de si mesmo na
ausência destes álibis e, como conseqüência, o desvendamento desta liberdade e desta
responsabilidade que levam então o homem a criar justificações que ele não encontra
formuladas para a existência.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor
Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 44-47)
“Não obstante existem receitas para justificar o mundo e a si mesmo e é disso que se
ocupam as Metafísicas. | Sartre, porém, recusa a metafísica, isto é, o inverificável; ele
não quer imaginar atrás da consciência um espírito que a sustém, nem atrás das Coisas
uma existência própria.
Então descreve simplesmente a vida e a consciência, única realidade da qual o
homem tem experiência. Ora, a característica desta consciência é de nunca ser ela
mesma, mas estar sempre atenta a um objeto exterior: ‘Toda consciência é consciência
de alguma coisa’, escrevia em 1940 em O imaginário, retomando a fórmula de Husserl:
‘minha consciência jamais existe em estado puro mas, porque pensa em uma árvore ou
no rosto de Pedro, porque se faz percepção de uma árvore ou a imagem dos traços de
Pedro, só se torna realidade representando algo de exterior a si mesma; a consciência
nasce trazida por um ser que não está nela’. Ela existe apenas na medida em que se liga
a objetos exteriores, tendo necessidade deles para existir.
Estes objetos são as Coisas. Não têm necessidade de coisa alguma para existir,
estão aí, maciças, informes, como aparecem em A náusea. Impõem-se e quando tenho
uma folha de papel em minha frente, não posso fazer com que seja diferente do que é,
que não seja branca:
‘Em verdade, o branco por mim constatado não é certamente produzido por
minha espontaneidade. Esta forma inerte, aquém de todas as espontaneidades
conscientes, que se deve observar, aprender pouco a pouco, é a isto que chamo uma
coisa’.
Qual será a relação entre estas coisas que estão aí, insolentes como um desafio e
a consciência, que só existe quando as acaricia, quando as pensa? É aqui que Sartre
alicerça uma ‘ontologia’, uma descrição filosófica do | mundo. Estas Coisas, ele as
chama Ser. Existem em si mesmas (formam o ‘envio’, isto é, o projeto), mas não são
nada de preciso.
É a consciência que as aclara, é ela que no caos das coisas destaca uma forma
dando-lhe um sentido, que faz de uma aglomeração sem significado um marco, uma
cadeira, um objeto determinado. Assim, quando a consciência diz ‘eis uma cadeira’,
separa do universo bruto das coisas uma pequena porção de matéria, empresta-lhe uma
estrutura e um sentido. Em suma, assim procedendo, ela se faz indiferente ao resto do
mundo para considerar a cadeira; para destacá-la do acervo das aparências, considera
provisoriamente que o resto não existe, rejeita-o, lançando-o ao Nada. ‘Isto supõe um
corte limite de um ser no ser... O ser considerado está aí, e fora daí, nada. O artilheiro a
quem se designa um objetivo toma cuidado em apontar seu canhão em tal direção,
excluindo todas as outras’.
Perceber é então destacar um objeto do resto das aparências. É também tomar
consciência deste objeto, isto é, pensar nele mas se distinguindo dele. Quando nossa
consciência vê uma cadeira, realiza duas operações: formar a idéia de cadeira, dizer ‘há
uma cadeira’ e, ao mesmo tempo, não obstante, colocar-se fora da cadeira, acrescentar:
‘mas eu não sou esta cadeira’.
Então a consciência por si mesma não é mais que um poder de recortar o mundo,
isto é, negar-lhe uma parte, e também negar que ela se identifica com ele por ‘um recuo
feito em relação às coisas’. é o poder de ‘se colocar | fora do Ser’ e Sartre, dando-lhe o
nome de ‘para-si’, chama-a ‘um ser pelo qual o nada vem às coisas’.
ψψψ
ψψψ
ψψψ
ψψψ
“Mas a imagem que os outros têm dele [Jacques] lhe importa mais que a realidade e é
nesta tendência a fugir da responsabilidade interior, para substitui-la por uma aparência
exterior, que Sartre vê o pecado essencial do homem.
Opinião do Outro, espelho onde a fraqueza humana procura seu reflexo que a
dispensará de ser realmente ela mesma, tal é a vertigem que, para Sartre, fascina a
humanidade. Nesta água superficial tornamo-nos enfim um objeto duro, sólido e
cessamos de ser uma interrogação e um esforço: ‘É o olhar de Medusa que congela e
petrifica. Baudelaire não poderia queixar-se: a ocupação do olhar dos outros não é a de
transformá-lo em coisa?’.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 69)
“Diz-se, com justa razão, que estes personagens são monstros, mas qual o escritor que
não lançou mão de monstros para ilustrar seu pensamento? Tal monstruosidade é
somente o símbolo mais gasto desta tentação de mentira a si mesmo que, segundo
Sartre, envenena o homem: justificar sua existência, impondo cruelmente aos outros
uma imagem qualquer mas definitiva de si, brutal e obscena se não pode ser de outra
forma. E o extremo desta tentação, sadismo ou masoquismo, parece necessário a Sartre
para iluminá-la.
O essencial é ser ‘visto’, parecer para não ter que ser.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-
Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 70)
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“Mas é certo que esta possibilidade de convenção oferecida pelos hábitos apresenta o
grande perigo de fornecer um álibi à preguiça mais que à fadiga, à falsidade mais que à
espontaneidade envelhecida. As máscaras que a civilização e a rotina põem à venda,
podem cobrir manobras e atitudes ilegais e as cobrem, de fato, muitas vezes. Eis porque
a crítica sartriana das comédias humanas guarda sua força e sobretudo seu valor. A
convenção social se oferece como uma máscara cômoda em sua maior porção, para que
a missão dos escritores não deva ser denunciar os abusos em lugar de mostrar seu
sentido relativo. Não acreditamos podermo-nos permitir estas reservas senão porque a
literatura de nossa época representa admiravelmente seu papel de guardiã contra a
ameaçadora hipocrisia — e Sartre precisamente dá prova disto.” (ALBÉRÈS, R.-M.
Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 77)
“Em sua obra Sartre exprime este conflito indubitavelmente eterno, mas especialmente
agudo em nossa época, entre civilização e sinceridade ao qual, século após século, é
consagrado um bom terço do que chamamos a literatura francesa. |
Sem dúvida, é particularmente em nosso tempo, com André Gide, que começa
esta procura de sinceridade e esta denúncia das máscaras sociais: ‘vivemos sob
sentimentos admitidos’, afirmam Os moedeiros falsos. Contemporâneo de Gide e, como
ele, precursor desta crise de correspondência entre sensibilidade social e sensibilidade
individual, Pirandello marcava o mesmo hiato entre sinceridade e verdade: ‘Muitas
vezes não somos mais sinceros com relação a nós que com relação aos outros’. O
grande dramaturgo italiano, mais que a simples evidência de uma relatividade
psicológica há tanto tempo conhecida, acentua o artifício usado pelo homem para
construir uma falsa coerência de si mesmo: ‘Não somos o que construímos, tal é a
intuição central da arte pirandelliana’.
Que o homem seja em si mesmo uma comédia, todos os precursores de Sartre o
disseram. É possível tratar assim da covardia interior à qual está preso Péguy, esta
‘sedência’ aceitada por rotina e lassidão e que é uma espécie de morte da sinceridade:
‘A morte de um ser é o acúmulo de seus hábitos e de lembranças, isto é, um acúmulo de
esclerose e de endurecimento’. Desta forma, Péguy previa a ‘viscosidade’ em Sartre
como Gide pressentia as definições sartrianas das magias do ‘olhar alheio’: ‘A maioria
das ações dos homens, mesmo as que o interesse não dita, deixa-se dominar pelo olhar
alheio, pela vaidade, pela moda...’
Pode tratar-se também de máscaras sociais e Jean Anouilh está bem próximo de
Sartre quando faz dizer a | Ludovic em Havia um prisioneiro: ‘Permito todas as
sujeiras! O vício, isto não é nada; é a comédia representada por ele que torna a vida
horrível’. Esta última frase justifica talvez todo aparente horror e imoralidade da novela
Intimidade, em O muro.
Assim, Sartre situa-se, na escolástica da sátira, à procedência de um movimento
já antigo e prolongado que contesta, em nome da sinceridade, a falsa coerência que a
vida humana dá a si.
A própria idéia de ‘personalidade’ é portanto posta em dúvida: reação normal
contra muitos séculos de ‘pintura de caracteres’ e ‘estudo das paixões’, contra um
século XIX onde esta tendência pode condensar-se na descrição de tipos sociais. É pois
bem compreensível que seja oposta a esta visão dos homens a noção de uma ‘liberdade’
pela qual o indivíduo deixa de ser submetido a uma coerência já feita, que seria seu
‘caráter’, a traços dados que o definiriam socialmente. E esta oposição entre sinceridade
e atitude toma, em Sartre, como aliás em Gide ou em Bernanos, um aspecto moral. Ele
quer que se recuse a atitude para ser libertado.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre.
Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 77-79)
“O estudo da ‘má fé’ no homem faz aparecer as comédias íntimas ou sociais pelas quais
cada um procura condensar-se num ‘personagem’ feito antes e complacentemente
elaborado. Nesta procura de álibis e nesta feira de máscaras o conformismo social
representa um papel para as pessoas ‘honoráveis’: aos importantes e suficientes, oferece
uma visão puramente formal feita de certezas e arrogâncias, de rotinas e idéias
apreendidas.
Tais são os habitantes de Bouville, observados por Roquentin: ‘Como me sinto
longe deles, do alto desta colina. Parece-me que pertenço a uma outra espécie. Eles |
saem dos escritórios, depois de um dia de trabalho, olham as casas e praças com um ar
satisfeito, pensam que aquela é a sua cidade, uma ‘bela cidade burguesa’. Não têm
medo, sentem-se como em casa. Vêem apenas a água que escorre das torneiras, a luz
que espirra das redomas quando se aperta o interruptor, as árvores mestiças, bastardas,
mantidas com estacas. Têm a prova, cem vezes por dia, que tudo se faz por mecanismo,
que o mundo obedece a leis fixas e imutáveis. Os corpos abandonados no vácuo caem
com a mesma velocidade, o jardim público é fechado todos os dias às dezesseis horas
no inverno, às dezoito no verão, o chumbo funde a 335 graus, o último bonde parte do
Hotel da Cidade às vinte e três horas e cinco minutos. São pacíficos, um pouco
morosos, pensam no Amanhã, isto é, simplesmente um novo hoje. As cidades dispõem
de um só dia que volta sempre igual a cada manhã. Apenas o enfeitam um pouco aos
domingos. Os imbecis. Isto me repugna, pensar que vou rever seus rostos grosseiros e
tranqüilos’.
Sartre zomba aqui não somente das rotinas trazidas pela civilização — porque é
indispensável, apesar de tudo, que o último bonde parta às vinte e três horas e cinco
minutos — mas dos homens que se satisfazem com elas e a quem são suficientes como
justificação da existência, em quem, diria Bernanos, esta ordem banal e superficial
ocupa o lugar da vida espiritual. Criando uma espécie de suficiência e de pretensão da
vida social, elas se fazem geratrizes da hipocrisia. Acontece que o homem sente a
pobreza destes valores estabelecidos apenas quando está só, desarmado e vazio; [...].”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 79-80)
“Mas o que nos fará decidir por esta escolha, a transpor este passo? Toda a infelicidade
de Mathieu é não encontrar nenhuma razão para comprometer sua liberdade em um
determinado projeto. Comprometer-se cegamente, apenas para dar-se uma finalidade, é
cair num fideísmo e num ativismo que sua consciência repugna.
Parece esta razão que permitiu ao pensamento de Sartre dar um passo à frente,
não foi descoberta antes da guerra. Em 1945, entretanto, ele crê tê-la encontrado: é a
solidariedade humana.
Certamente poder-se-ia objetar que não somos teoricamente obrigados a
reconhecê-la (Roquentin não a reconhecia). Se ela é apenas um valor, não é absoluta:
pode sempre haver um homem que pretenda ‘não ser solidário’ e se desinteressar...
Chama-lo-emos de ‘imoral’, mas não poderemos contrariá-lo.
Eis porque Sartre não apresenta esta solidariedade como um valor, mas como
um fato. Não diz que devemos ser solidários, mas que o somos. O conjunto de
acontecimentos de 1939-1944 serve-lhe de exemplo nesta demonstração: o
abstencionismo e o expectativismo eram responsáveis pelas infelicidades sofridas
durante a ocupação por não terem detido mais cedo a subida dos fascismos, por não
terem contribuído para evitar a perda da campanha de 1940, porque não resistiram ao
ocupante. Faça o que fizer o homem e mesmo sua abstenção de ação, isto vai influir
sobre os acontecimentos coletivos, e seria bem estranho se | não fosse levado a sofrer as
conseqüências: ‘Estamos convencidos... que não se pode sair do jogo. Se fôssemos
mudos e parados como seixos mesmo nossa passividade seria uma ação’. O homem está
ligado ao destino de sua época e, pela sua própria existência, ai representa um papel.
Seus atos individuais repercutem sobre todos e, se deixa de agir, esta sua ausência de
ação repercute também sobre tudo. Esta interdependência, de fato, Mathieu descobri-la-
á na derrota, na queda de junho de 1940, num grande sentimento de impotência e cólera;
queria abstrair-se da vida social, política, mundial, mas esta abstenção é impossível:
‘Mas, Deus! eu não queria esta guerra nem esta derrota; por que espécie de engodo
obrigam-me a assumi-las? Sentia crescer nele uma cólera de animal pegado numa
armadilha e, levantando os olhos, viu brilhar esta mesma cólera nos olhos dos outros.
Gritar para o céu todos juntos: ‘Não temos nada com estas histórias! Somos inocentes!’
Seu entusiasmo caiu: certamente a inocência raiava no céu matinal, podia-se tocá-la
sobre as folhas das ervas. Mas ela mentia: a verdade era esta falta intocável e comum,
nossa falta’.
Assim, o homem não é mais o indivíduo isolado. Está comprometido, embora
não o queira, na vida coletiva da qual depende e que depende dele. Podemos constatar
que esta responsabilidade, que desde o início representava o fundo moral da obra de
Sartre, parece deixar de ser aqui um valor moral, uma responsabilidade livremente
assumida, uma vez que é automática, inevitável, imposta pelos fatos.
De fato, para Sartre, o valor moral não pode residir nesta responsabilidade em si
mesma porque é um simples | fato. Onde está então o ato moral? Está no fato de tomar
consciência desta responsabilidade e, consequentemente, agir. De fato a
responsabilidade pesa por si própria sobre cada homem, mas apenas de modo implícito.
É possível que esse queira ignorá-la e escondê-la. Neste caso não cessará de ser válida
para o homem, mas ele não a reconhece, não agindo corretamente como se a olhasse
frente a frente. Não é portanto a solidariedade humana que constitui um valor, uma vez
que ela existe, mesmo que se a negue, mas sim a coragem de olhar na face a
interdependência dos destinos humanos e aceitar representar um papel em seu meio.”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 97-99)
“Vê-se então o que Sartre recusa — que existam valores preestabelecidos — e o que se
propõe: valores que teremos de criar. O mundo oferece uma ‘situação’, que parece
limitar nossa liberdade, respondendo os homens por um ‘projeto’: ‘o mundo onde vivem
se define apenas com referência ao futuro que projetam diante de si’[Sartre. Que é a
literatura?, in: Situações, II, p. 312.]. O que parece imoral a Sartre é recusar esta
criação perpétua, embotar-se com valores passados e imóveis.” (ALBÉRÈS, R.-M.
Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 108)
“É, portanto, totalmente livre, se considera que nenhuma das coisas adquiridas
compromete o futuro: ‘O homem não é de modo algum a soma do que tem, mas a
totalidade do que ainda não tem, do que poderia ter’. Esta liberdade com relação ao
adquirido e ao passado não a consideramos imoral, uma vez que à medida que nos
desliga do passado Sartre nos torna, bem depressa, responsáveis do futuro. Não sendo o
homem uma soma de aquisições mas de projetos, é portanto mais responsável por estes
projetos no futuro, pois não tem atrás de si, no passado, nenhuma desculpa, nenhuma
motivação.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 109)
“Assim a realidade romanesca em Sartre, em lugar de ser dada como destacada de nós
pelo modo objetivo, nos é imposta com um ressaibo determinado de uma consciência,
com o mesmo acompanhamento de humores que a realidade | realmente vivida por nós;
esta maneira de escrever, constrangindo-nos a seguir o movimento do livro numa
familiaridade com a consciência do personagem tão total como nossa familiaridade
conosco mesmo, exerce sobre o leitor verdadeira fascinação da intimidade subjetiva.”
(ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1958, p. 116-117) [nota do t.h.: Pois bem, acompanhamos os passos do personagem,
mas onde fica minha liberdade de ver, saber, entender aquilo que ele ignorou por algum
motivo? O que para ele é importante, pode não o ser para mim; do mesmo modo, o que
para ele é sem importância, pode ser para mim. Ocorre, neste último caso, que se ele
considera algum fato ou idéia desimportantes e os ignora, como terei, enquanto leitor,
liberdade de considerar tudo? Fico à mercê de seu olhar: meu olhar não é mais meu, é o
olhar que coexiste ao do personagem.]
“Mas esta pintura da ‘familiaridade consigo mesmo’ faz de Sartre um artista cheio de
nuanças desta vida comum da intimidade humana, composta de pensamentos perdidos,
movimentos abortados, hesitações e impressões fugitivas. Eis porque, sem nada perder
de sua densidade, sua história pode desenrolar-se através destes fatos da maior
banalidade que são a vida comum e chata da consciência, da qual Jules Romains até
agora fora o único pintor.” (ALBÉRÈS, R.-M. Jean-Paul Sartre. Trad. Heitor Martins.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1958, p. 117)
“Mas esta vida das coisas é a da consciência, única criadora de significações, que joga
sobre elas a imagem de sua ‘situação’ ou de seu ‘projeto’. Jamais Sartre interroga às
próprias coisas; quer desprezar este uso das palavras que as solicita para tirar delas e da
realidade as significações irracionais: ‘Nada mais nefasto que o exercício literário
chamado, creio, prosa poética, que consiste em servir-se das palavras para formar
harmonias obscuras que ressoam à sua volta e que são feitas de sentido vago, em
contradição com a significação clara’. Repudia, portanto, a herança surrealista e
rimbaldiana: ‘Não se trata mais de inflamar incêndios nas barreiras da linguagem, de
casar ‘palavras que se queimam’ e de alcançar o absoluto pela combustão do
dicionário’.
Em 1947, Que é a literatura? repudia a literatura poética, artística e metafísica,
em favor de uma prosa destinada a uma ação moral, social e política entre os homens,
cujo fim é simplesmente ‘comunicar-ser com os outros homens utilizando
modestamente os meios comuns’.
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Intimamente, nesta obra difundida e mais atual depois de 1945 Sartre, sem se
ligar às grandes forças políticas do mundo, procura não obstante tomar partido: sobre os
judeus em Reflexões sobre a questão judia, sobre os negros da América em A prostituta
respeitosa e nos seus artigos sobre Richard Wright, no acolhimento que dá em Tempos
modernos aos grandes problemas da injustiça.
Levando-o o desenvolver de seu pensamento a esta necessidade de fazer valer o
homem pelas responsabilidades que toma, vê para o escritor, nas questões políticas e
sociais, uma maior parcela desta responsabilidade.
De fato, trata-se sobretudo, para ele, de explicitar a conclusão provisória à qual
chegou em 1945, ao sair da conversão do entre as duas guerras em após-guerra. Este
valor moral da justificativa da vida pela responsabilidade encontrará sem dúvida seu
desenvolvimento na Ética que um dia deverá publicar.
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