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Gramsci

e seus contemporâneos

Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos


Sabrina Areco
Organizadores

CULTURA
ACADÊMICA
Editora
Gramsci e seus
contemporâneos
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Organizadores)

Gramsci e seus
contemporâneos

Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica

2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS

Diretor:
Dr. Marcelo Tavella Navega
Vice-Diretor:
Dr. Pedro Geraldo Aparecido Novelli

Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Ana Maria Portich
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Giovanni Antonio Pinto Alves
Marcelo Fernandes de Oliveira
Maria Rosangela de Oliveira
Neusa Maria Dal Ri
Rosane Michelli de Castro

As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabili-


dade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
Processo FAPESP Nº. 2017/07069­7

Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação – Unesp - campus de Marília

G747 Gramsci e seus contemporâneos / Rodrigo Duarte Fernandes dos


Passos, Sabrina Areco (organizadores). – Marília : Oficina Uni-
versitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2016.
240 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7983-880-4 (Impresso)
ISBN 978-85-7983-881-1 (Digital)

1. Gramsci, Antonio, 1891-1937. 2. Comunismo. 3. Revoluções


e socialismo. 4. Sociologia política. 5. Trabalho. I. Passos, Rodrigo
Duarte Fernandes dos. II. Areco, Sabrina.
CDD 335.4

Editora afiliada:

Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora Unesp


À memória de Edmundo Fernandes Dias e
Carlos Nelson Coutinho

5
Sumário

Prefácio
Alvaro Bianchi ................................................................................. 9

Apresentação
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos e Sabrina Miranda Areco ........... 15

Benedetto Croce
Fabio Frosini .................................................................................... 21

William James
Giovanni Semeraro ........................................................................... 47

Sigmund Freud
Livio Boni ........................................................................................ 65

Achille Loria
Gianfranco Ragona ........................................................................... 91

Max Weber
Michele Filippini .............................................................................. 115

Albert Mathiez
Sabrina Areco ................................................................................... 145

Os socialistas italianos
Daniela Mussi .................................................................................. 165

Robert Michels
Renato César Ferreira Fernandes ........................................................ 191

Rudolf Kjellen
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos e Erika Laurinda Amusquivar .... 213
Prefácio

Alvaro Bianchi1

Há dez anos teve inicio na Universidade Estadual de Campinas


um seminário sobre os Quaderni del carcere, de Antonio Gramsci. O
estudo do problema da hegemonia na sociedade brasileira havia me
conduzido à obra de Antonio Gramsci, a qual estudei estimulado pelo
mestre e amigo Edmundo Fernandes Dias. Considerava que essa obra
tinha um enorme potencial analítico e que poderia ser uma ferramenta
importante para compreender a atualidade política. Mas as leituras
predominantes me incomodavam e avaliava que elas tiravam muito da
força do texto. Organizar um seminário de discussão era, assim, uma
tentativa de aprofundar os estudos, mas também de reorientar os estudos
gramscianos.
Coordenei, assim, o seminário, o qual reunia jovens
pesquisadoras e pesquisadores, em sua maioria estudantes de graduação
ou pós-graduação. O plano de estudos era fortemente inspirado na
leitura genético-diacrônica, sugerida por Giorgio Baratta (2004), e pelas
investigações filológicas promovidas no âmbito da International Gramsci
Society-Itália, em particular por Fabio Frosini (2003). Tais leituras e
investigaçõe pressupunham assumir como ponto de partida o caráter
fragmentário e incompleto da reflexão gramsciana. Esse pressuposto era
um potente antídoto contra as leituras fechadas e dogmáticas, as quais

1
Professor Livre-docente do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) e coordenador científico da International Gramsci Societey-Brasil.

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

procuravam restabelecer a verdade do texto, uma verdade frequentemente


definida a priori em alguma instância externa a ele próprio.
Assumir o caráter fragmentário e incompleto dos Quaderni
implicava em procurar reestabelecer o ritmo do pensamento de Antonio
Gramsci no próprio processo de produção conceitual. Tínhamos em
mãos algumas ferramentas que permitiam procedermos dessa maneira:
acompanhávamos avidamente as pesquisas mais recentes que estavam
ganhando corpo na Itália; possuíamos a edição crítica dos Quaderni,
organizada por Valentino Gerratana (GRAMSCI, 1977), a edição mexicana
da editora Era (GRAMSCI, 1981ss) e a nova edição brasileira, organizada
por Carlos Nelson Coutinho (GRAMSCI, 1999ss); conhecíamos a
datação de seus parágrafos levada a cabo por Gianni Francioni (1984);
sempre que tínhamos dúvidas podíamos recorrer a Edmundo Fernandes
Dias e também contamos com a enorme generosidade de Carlos Nelson
Coutinho, o qual embora discordasse em vários pontos de nossa leitura,
se dispôs a colaborar conosco. Rapidamente estabelecemos uma rede de
relações nacionais e internacionais que permitiu um intenso intercâmbio
com outros pesquisadores.
O plano de estudos era bastante simples. Líamos os cadernos em
sua completude seguindo uma ordem bastante óbvia. Começamos pela
filosofia nos cadernos 10 e 11, passamos à política no caderno 13 e 19 e
finalizamos com a questão dos intelectuais no caderno 12 e do americanismo
e fordismo no 22. Para cada caderno havia uma apresentação e um texto
introdutório elaborado por um dos participantes, o qual sumariamente
indicava os principais temas. A contextualização do caderno estudado no
plano geral de estudos de Gramsci era feita com base em Baratta e Frosini e
sempre que considerávamos necessário procurávamos comparar a primeira
com a segunda versão das notas de Gramsci. As dúvidas eram sempre
muitas, a discussão intensa e sempre muito produtiva.
Essa experiência extremamente rica de estudo coletivo revelou
rapidamente as dificuldades impostas pelo método de investigação que
nos guiava. Ao longo dos Quaderni, Gramsci construía seus argumentos
de maneira dialógica, enfrentando as questões postas pela política e pela
cultura italiana da época. Nas páginas que líamos atentamente saltavam
nomes estranhos à cultura brasileira. Benedetto Croce era o primeiro deles;

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Gramsci e seus contemporâneos

mas havia outros, como Antonio Labriola, do qual conhecíamos umas


poucas linhas; Giovanni Gentile, que só sabíamos ter promovido uma
reforma educacional durante o regime de Mussolini; e ainda um grande
número de autores sobre os quais algumas vezes sequer tínhamos ouvido
falar.
Assim, no segundo ano de nossos estudos, nos dedicamos
ao pensamento daqueles autores com os quais Gramsci dialogava, ou,
ao menos, aqueles que julgávamos ser os mais importantes. De Croce
lemos Materialismo storico ed economia marxistica (1927 [1900]), Etica e
politica (1994 [1931]) e Cultura e vita morale (1993 [1914]); de Antonio
Labriola os Saggi sul materialismo storico (2000); de Sorel as Réflexions sur la
violence (1981 [1908]); além de excertos de autores como Vilfredo Pareto,
Gaetano Mosca, Achille Loria, Vincenzo Cuoco e outros. Foi a partir
desses seminários sobre o pensamento de Antonio Gramsci e suas fontes
que escrevi O laboratório de Gramsci (2008), um livro no qual procurava
assentar as bases para uma nova leitura dos Quaderni del cercere no Brasil,
na qual essa perspectiva que hoje prefiro chamar de histórico-filológica
servia como guia metodológico.
Mas o efeito mais importante desses estudos, creio, foi o
desenvolvimento de importantes pesquisas sobre as fontes do pensamento
gramsciano. Daquelas leituras e discussões nasceram as investigações de
Luciana Aliaga (2011), sobre Vilfredo Pareto; de Leandro de Oliveira
Galastri (2015), a respeito de Georges Sorel; de Renato César Ferreira
Fernandes (2014), que estudou Robert Michels; de Daniela Mussi (2014)
que se debruçou sobre a estética de Francesco De Sanctis e Benedetto
Croce; e Sabrina Areco, a propósito de Albert Mathiez e a historiografia
da Revolução Francesa. A tentativa de reconstruir o processo de produção
do pensamento de Gramsci, a atenção ao contexto histórico, o cuidado
com as fontes e a diversidade dos autores tratados foram características
importantes desses estudos, os quais contribuíram, cada um a seu modo,
com a renovação dos estudos gramscianos no Brasil.
Este livro, organizado por Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
e Sabrina Areco, foi cuidadosamente planejado como uma continuidade
daqueles estudos sobre as fontes do pensamento gramsciano. Ele reúne
ensaios de importantes especialistas brasileiros e estrangeiros sobre autores

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

com os quais Antonio Gramsci estabeleceu um intenso diálogo. Não


se trata nunca de encontrar o que no pensamento do sardo pertence a
outros autores. Muito menos em insistir em uma mitologia da prolépsis,
procurando a antecipação ou a origem de ideias e conceitos desenvolvidos
nos Quaderni del carcere. Trata-se apenas de reconstruir esses importantes
diálogos, procurando compreender como por meio deles novas ideias
foram produzidas. Espera-se, com isso, contribuir para o desenvolvimento
das novas gerações de pesquisadores e dar continuidade aquele programa
de pesquisa que em 2016 completou dez anos.

Referências bibliográficas
ALIAGA Luciana. Vilfredo Pareto: il più leale degl i avversari. In: D’ORSI,
Angelo. (Org.). Il nostro Gramsci: Antonio Gramsci a colloquio con i
protagonisti della storia d’Italia. Roma: Viella, 2011, p. 200-204.
ARECO, Sabrina. Antonio Gramsci e Albert Mathiez: jacobinos e jacobinismo
nos anos de guerra. Outubro, v. 24, p. 37-60, 2015.
BARATTA, Giorgio. As rosas e os Cadernos: o pensamento dialógico de Antonio
Gramsci. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
BIANCHI, Alvaro. O laboratório de Gramsci: filosofia, historia e politica. São
Paulo, SP: Alameda, 2008.
CROCE, Benedetto. Cultura e vita morale: intermezzi polemici. Napoli:
Bibliopolis, 1993 [1914].
CROCE, Benedetto. Etica e politica: a cura de Giuseppe Galasso. Milano:
Adelphi, 1994 [1931].
CROCE, Benedetto. Materialismo storico ed economia marxistica. Bari: Laterza,
1927 [1908].
FERNANDES, Renato César Ferreira. O partido revolucionário e sua
degeneração: a crítica de Gramsci a Michels. Outubro, v. 21, p. 191-217, 2014.
FRANCIONI, Gianni. L’officina gramsciana : ipotesi sulla struttura dei
“Quaderni del carcere”. Napoli: Bibliopolis, 1984.
FROSINI, Fabio. Gramsci e la filosofia: saggio sui Quaderni del cárcere. Roma:
Carocci, 2003.
GALASTRI, Leandro de Oliveira. Gramsci, marxismo e revisionismo. Campinas:
Autores Associados, 2015.

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Gramsci e seus contemporâneos

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1999ss.
GRAMSCI, Antonio. Cuadernos de la cárcel. México: Era, 1981ss.
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere: edizione a cura di Valentino
Gerratana. Torino: Enaudi, 1977.
LABRIOLA, Antonio. Saggi sul materialismo storico: introduzioni e cura di
Antonio A. Santucci. Roma: Riuniti, 2000.
MUSSI, Daniela. Política e literatura: Antonio Gramsci e a crítica italiana. São
Paulo: Alameda, 2014. 
SOREL, Georges. Reflexions sur la violence. Paris: Slatkine, 1981 [1908]

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Apresentação

Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos e Sabrina Areco

Pode-se, portanto, dizer que um personagem é “nacional” quando é


contemporâneo a um nível mundial (ou europeu) determinado de cultura
e alcançou (é claro) este nível. (GRAMSCI, 1975, Q14, §7, p. 1660)

O alcance das interlocuções e elaborações gramscianas é


inestimável em face do caráter assistemático e incompleto de sua obra.
Tais características abrem um enorme potencial de discussão e elaboração
teórico-prática ao considerar-se o nexo de seus contemporâneos do
período de escrita de sua obra e suas interpretações posteriores, também
contemporâneas.
Esta coletânea reúne artigos que tratam do pensamento de
A. Gramsci considerando suas interações com a produção intelectual
e o ambiente político que lhe eram contemporâneos. Nos textos ora
apresentados, o tempo histórico de Gramsci - imperiosamente marcado
pela guerra, imperialismo, ascensão dos nacionalismos e do fascismo, a
experiência dos bolcheviques e de criação dos partidos comunistas - ganha
materialidade nos diálogos que o marxista estabeleceu com intelectuais
que pertenciam, com maior ou menor exatidão, à sua geração e que
produziram nas primeiras décadas do século XX. Os artigos aqui reunidos
tratam da produção gramsciana acentuando seu esforço de dialogar com as
questões de seu presente e as perspectivas abertas para o futuro, discutindo
as respostas que eram então elaboradas.

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

O debate em torno do marxismo e dos dilemas do socialismo


italiano de Gramsci com Benedetto Croce é o tema do artigo de Fabio
Frosini que abre esta coletânea. Frosini discute as mudanças na forma de
apropriação, por parte de Gramsci, da filosofia do espírito croceano. Esse
movimento teórico e político significaria a superação de uma condição
subordinada, na qual o jovem Gramsci postulava a possibilidade de uma
combinação do idealismo croceano e a necessária renovação profunda do
socialismo italiano, para uma tradução daquela filosofia no âmbito de sua
teoria política. A tradução é entendida como um tipo de assimilação, em
que o elemento traduzido é assimilado à própria perspectiva e portanto,
como afirma Frosini, «traduzir quer dizer instituir uma hegemonia».
Se Croce era o adversário que representava a mais elaborada
cultura liberal da Itália, a produção do historiador Achille Loria teve uma
apreciação bastante negativa por parte de Gramsci. Loria colocava-se, em
determinada fase de sua trajetória, como o intérprete e continuador por
excelência do pensamento de Marx na Itália. Gianfranco Ragona mostra
em seu texto como a crítica de Gramsci a Loria parte de uma recusa ao
determinismo técnico presente na leitura que Loria fez do pensamento de
K. Marx. Essa crítica é formulada desde os escritos do período anterior à
prisão. Mais tarde, ele elabora uma categoria - o lorianismo. A categoria
tipifica a produção intelectual não-sistemática, tratada por Gramsci como
um fenômeno não apenas italiano, mas internacional, e que teria como
origem a escassa organização dos intelectuais e fragilidade das forças
sociais, condições essa que geram um terreno pouco propício à crítica e
amadurecimento cultural.
O artigo que trata de Willian James, escrito por Giovanni
Semeraro, conduz-nos à análise feita por Gramsci do pragmatismo
americano, reputada como uma das frentes téoricas de batalha mais
avançadas para a filosofia da práxis. Semeraro aponta como, para Gramsci,
o pragmatismo é tratado tanto como uma filosofia intimamente conectada
com a modernidade e industrialismo dos EUA, mas também pode ser
considerada um desenvolvimento de correntes de origens europeias,
entre elas o próprio marxismo. Daí parece derivar a possibilidade de certa
influência de James em Gramsci, que para Semeraro residiria especialmente

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Gramsci e seus contemporâneos

na forma como ambos pensam o processo de adaptação das subjetividades


às novas condições de vida impostas pela modernidade capitalista.
A atenção de Gramsci à novidade imposta pela organização
industrial do trabalho e da vida, capaz de criar um padrão antropológico
novo, é o tema que aproxima Gramsci do sociólogo alemão Max Weber.
Michele Filippini discute como a análise da psicofísica do trabalho industrial,
pouco conhecido estudo de Weber, encontra afinidades com a análise do
americanismo e fordismo feita pelo italiano. A racionalização do trabalho
industrial é tratada, por ambos, como vinculada à racionalização da vida,
portanto à constituição de um novo homem adaptado à necessidade da
fábrica capitalista. Existiria ainda, para Filippini, uma influência de Weber
sobre Gramsci no que diz respeito à análise da burocracia. Os funcionários
aparecem então como fenômeno típico da racionalização burocrática, o
que permite ao italiano a avançar na elaboração de uma «sociologia do
político».
Livio Boni nos apresenta a leitura de Gramsci sobre a psicanálise
de Sigmund Freud. Leitura indireta, baseada em comentadores, e mediada
por um eixo «vívido e afetivo»: Boni encontrou nas cartas de Gramsci a sua
companheira, Giulia Shucht, um verdadeiro diálogo sobre a psicanálise
e seus alcances. Ela havia se submetido a um tratamento psicanalítico na
URSS nos anos de 1930, onde essa corrente passava a encontrar oposição.
Para o autor, a análise de Freud feita por Gramsci encontra originalidade
no panorama intelectual do período entreguerras, distinguindo-se das
críticas de certas correntes, como a leitura marxista ortodoxa difundida
na III Internacional e que considerava «coincidentes a alienação sexual
e a alienação econômico-social». Nas Cartas, e também nos Cadernos,
Boni mostra como é sobre os efeitos e influências da psicanálise, mais do
que em uma análise interna da disciplina, que se concentra a atenção do
marxista.
É no âmbito dos debates pós-1917 que se pode também ler a
contribuição de Sabrina Areco e seu artigo sobre o historiador francês Albert
Mathiez. A autora discute como a leitura de Gramsci sobre Mathiez situa-
se em uma disputa pelo passado (a Revolução francesa) e perpassa pelas
interlocuções entre duas culturas (a francesa e a italiana). O historiador

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

aparece então como uma influência fundamental para a superação do anti-


jacobinismo de juventude de Gramsci.
O artigo de Daniela Mussi trata dos debates entre os socialistas
italianos no período que antecede tal inflexão acerca do jacobinismo. Ela
nos mostra como a reflexão sobre a cultura passava a assumir uma posição
de relevância entre os socialistas, no momento em que as disputas entre as
frações internas se tencionavam entre a esquerda maximalista e o reformismo
atávico. Gramsci aproxima-se dos culturalistas em suas intervenções entre
os anos de 1914-1916, tendo como referências fundamentais Angelo Tasca
e Gaetano Salvemini.
A questão da tradutibilidade como recurso teórico e metodológico
em Gramsci aparece também no artigo de Rodrigo Passos e Erika
Amusquivar, que aborda a leitura elaborada no cárcere acerca da obra
de Rudolf Kjellen. Pouco conhecido no Brasil, assim como nos meios
anglo-saxônicos, os autores discutem como o pioneiro da geopolítica como
campo disciplinar, cujas formulações caracterizam-se pelo determinismo
geográfico e a ideia de potência germânica, foi traduzido na filosofia da
práxis. A dimensão geográfica e a geopolítica são assimiladas em uma
perspectiva não positivista e as relações entre os Estados são tratadas como
um nível das relações sociais e de forças, na qual o nacional e o internacional
completam-se e se determinam mutuamente.
Finalmente, mas não menos importante, o artigo de Renato
César Ferreira Fernandes trata de Robert Michels e a crítica de Gramsci
a sua teoria dos partidos. Fernandes chama atenção a um elemento pouco
explorado no pensamento de Michels: o papel do aspecto organizacional
no processo de oligarquização dos partidos. Fernandes mostra como em
Gramsci a ideia de transformismo ajuda a tratar de forma não essencializada,
tal como em Michels, a distinção entre dirigentes e dirigidos. E é através
da análise das relações entre partido e classe e dos diferentes estratos do
partido entre si, assim como a questão dos intelectuais, que Gramsci
encontra frestas para desafiar teoricamente a lei de ferro de oligarquia.
Os temas que se sucedem neste livro demonstram a grande
curiosidade intelectual e o esforço constante de sistematização presente na
reflexão de Gramsci desde os primeiros escritos. Mais tarde, ele elaborou

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Gramsci e seus contemporâneos

uma filosofia coerente - a filosofia da práxis - apesar de fragmentária e


inconclusa. Para tal, ele apoiou-se na produção intelectual mais proeminente
de seu tempo, não por meio de uma assimilação subordinada e sim através
da tradução de categorias à filosofia da práxis. Esse procedimento de
tradução é uma das chaves às quais os autores recorreram para tratar da
relação de Gramsci com seus contemporâneos.
Ao evidenciar o aspecto dialógico da reflexão gramsciana, este
livro pretende contribuir com a difusão de um pensamento coerente e
aberto a diferentes fontes e debates e que, mesmo em sua fase de isolamento
carcerário, foi fortemente conectado ao seu tempo coevo. Para Gramsci,
o presente corresponde a um amalgamado de passado que insistia em
resistir com um conjunto de possibilidades indefinidas de surgimento
do novo. O contemporâneo tratado como um agregado compósito de
diferentes tempos históricos. É esse aspecto pouco homogêneo do presente
de Gramsci que também pretendemos explorar neste livro. Acreditamos
que esta coletânea pode contriubir para elucidar um pouco das motivações
e fontes de elaboração do pensamento gramsciano e sua inesgotável
contemporaneidade. Boa leitura!

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Benedetto Croce

Fabio Frosini

A complexa personalidade de Benedetto Croce


Em uma carta da prisão à cunhada Tatiana Schucht, falando de
Umberto Cosmo seu professor de literatura italiana na Università di Torino,
Gramsci resume assim a corrente cultural na qual militava então:
Quando era aluno de Cosmo não estava de acordo com ele em muitas
coisas, naturalmente, se bem então não tivesse precisado minha
posição e, à parte o afeto que me ligava a ele. Mas me parecia que
tanto eu, como Cosmo e muitos outros intelectuais naquele tempo
(pode se dizer nos primeiros 15 anos do século), nos encontrávamos
em um terreno comum que era este: participávamos no todo ou em
parte do movimento de reforma moral e intelectual promovido em
Itália por Benedetto Croce, cujo primeiro ponto era este, que o homem
moderno pode e deve viver sem uma religião revelada, ou positiva ou
mitológica ou como se quiser dizer (GRAMSCI, 1996, p. 446-447).

Em que sentido é posta essa consideração? Acima de tudo ela


não delimita uma verdadeira ortodoxia filosófica, mas um amplo “terreno
comum”, bastante elástico para permitir aos intelectuais, os quais estavam
em desacordo sobre muitas coisas, tomar parte de um “movimento de
reforma moral e intelectual promovido na Itália por Benedetto Croce” (e
de fazê-lo “em todo ou em parte”). Naquele “terreno comum” é central a
referencia à religião, isto é, à inspiração ética do movimento patrocinado
por Croce. Este era, a saber – ou pelo menos foi compreendido assim por
Gramsci e muitos outros como ele –, um discurso voltado a estimular e

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

sustentar uma forma de vida, uma civilização: aquela moderna, oposta à


clerical-medieval, fundada respectivamente sobre a imanência e a religião
e sobre a transcendência e a revelação. A “reforma” promovida por Croce
é para Gramsci, em suma, uma afirmação dos valores da modernidade,
acima de tudo, do fato de que a cultura moderna “basta a si própria”,
está em condições de fundar autonomamente uma ética e um abrangente
projeto de civilização.
Como é interpretada a periodização fixada nos “primeiros 15
anos do século”? Na Storia d’Italia dal 1871 al 1915, publicada em 1928,
Croce fixa na entrada da Itália na guerra uma distinção decisiva para a
periodização: a guerra com a explosão do irracionalismo, do imperialismo,
do nacionalismo e, por outro lado, das reivindicações ideológicas das
massas operárias e camponesas assinala o fim do mundo liberal (CROCE,
1928, p. 250-257). Com a guerra tudo muda e o filósofo neoidealista
muda, por consequência sua própria atitude, passando de um inovador
que na virada do século flertou bastante – mas sempre a partir de posições
revisionistas – com o socialismo1 a um porta-estandarte da restauração
dos valores liberais contra o comunismo e, a partir de um certo momento,
também contra o fascismo.
A aversão de Croce ao fascismo ocorre apenas em 1925, quando
no dia 1º de maio publicou o Manifesto degli intellettuali antifascisti.
Ocorre, pode se dizer, quando ficou claro que Mussolini não se limitaria
a recolocar em seu lugar a burguesia ameaçada pelo avanço socialista e
comunista, mas havia transformado a própria estrutura constitucional da
Itália (de fato, a fundação do Estado “totalitário” fascista iniciou-se depois
do discurso de Mussolini à Câmara do dia 3 de janeiro de 1925).2 Mas, no
dia 9 de julho de 1924, em plena crise Matteotti,3, em uma entrevista ao
Giornale d’Italia, Croce afirmou:
Não se podia esperar, nem querer, que o fascismo caísse de repente.
Não era um arrebatamento ou um truquezinho. O fascismo respondeu
às necessidades graves e tem feito muita coisa boa, como cada alma
1
De fato, Gramsci considera nos Quaderni a figura de Benedetto Croce fundamentalmente como um leader do
revisionismo europeu (GRAMSCI, 1975, p. 1082, 1207, 1213-1214).
2
Sobre a construção do Estado totalitário na Itália ver Aquarone (1966).
3
O deputado Giacomo Matteotti foi raptado por um bando fascista no dia 9 de junho 1925 e seu cadáver
encontrado no dia 16 de agosto. O episódio desencadeou uma severa crise parlamentar.

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Gramsci e seus contemporâneos

justa reconhece. Ele avançou com a aprovação e aplausos da nação.


Assim, por um lado, há, agora, na mente do público, o desejo de
não deixá-lo dispersar os benefícios do fascismo, e não retornar à
fraqueza e à inconclusividade que o precederam; e, por outro, há a
sensação de que os interesses criados pelo fascismo, mesmo aqueles
que não são louváveis nem benéficos, são uma realidade de fato, e não
se pode dispersá-la assoprando sobre. Deve-se, portanto, dar tempo
para o desenrolar do processo de transformação. (CROCE apud DE
NAPOLI; BOLOGNINI; RATTI, 1985, p. 35).4

Gramsci estava então na Itália, havia retornado de Viena no dia


12 de maio de 1924, eleito para a Câmara dos deputados na lista do Partito
Comunista d’Italia (PC d’I), e certamente leu essa intervenção. Como mais
tarde leu no cárcere e comentou o ensaio croceano Antistoricismo (CROCE,
1930b). Nele o filósofo napolitano promove uma dura requisitória contra
um “irracionalismo” por ele pensado como um monstro bicéfalo: futurista-
anarquista e absolutista-autoritário, hiper-historicista e anti-historicista. Croce
não dá “exemplos” e “ilustrações” destas definições, mas nos dois fenômenos,
que para ele se convertem continuamente um no outro, de modo que ao final
hiper-historicismo e anti-historicismo são idênticos, não é difícil reconhecer
o fascismo e o comunismo, em uma medida igual e embaralhada. Do
comunismo se diz, de fato, que “com relação à vida social [...] põe seu ideal
em ordenações que suprimem a iniciativa pessoal e com isso a concorrência,
a competição, a luta”; e que é uma “imposição pelo alto do ritmo da vida”
racionalista e abstrata, uma “regra que em vez de ser criada pelo homem como
seu instrumento deva ela criar o homem”. É evidente a alusão ao primeiro
plano quinquenal soviético (lançado em 1928-1929), com sua ênfase sobre o
domínio da política sobre a história (CROCE, 1930b, p. 402-403, 405-406).
Até a guerra, ou seja, até a crise irreversível do Estado liberal,
Croce representava, então, aos olhos de Gramsci, uma função de inovação

4 Sobre o nexo Croce-fascismo Eugenio Garin escreveu páginas definitivas: “Na medida em que Croce e outros
com ele não podiam mais aprovar uma operação que depois de 1924-1925 não seguia o plano pré-estabelecido,
falavam de um tipo de invasão bárbara que vinha perturbar o luminoso desenvolvimento da vida italiana. Mas
aqueles bárbaros não vinham de fora: eram os companheiros fraternos de ontem; apelavam a um magistério
comum; e muitas vezes diziam as mesmas coisas”. O “antifascismo de tipo observador” teve isto de particular:
ele foi “simétrico ao fascismo e interno a uma práxis política que o fascismo representava, uma degeneração
anormal, mas apenas porque ele escapou, em algum momento, ao controle de quem queria fazer dele uma
ferramenta contra as forças populares ascendentes, contra o despertar provocado pela tragédia da Primeira
Guerra Mundial.” (GARIN, 1963, p. 22-23).

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

da cultura burguesa na Itália, contra o positivismo dominante na filosofia


acadêmica e no pensamento socialista, evolucionista e fatalista, o qual
desembocou algumas vezes no misticismo e no abraço com o catolicismo e,
geralmente, era matriz daquele “anticlericalismo fanfarrão, que não veta[va]
depois, no campo dos fatos, o acordo com os padres e seus interesses”, em
síntese, aquela que Croce denominou a “mentalidade maçônica”.
Dentro deste quadro de garantias, regras, balanço de forças (mas
com o evidente predomínio de uma delas, a burguesia), a filosofia do espírito
permitia pensar o conflito mesmo que duro. Uma vez que a contradição
dialética era reduzida a forma subordinada e interna às distinções – para a
qual a luta podia dar-se entre os contrários no interior de cada uma das
formas eternas do espírito que eram por isso matrizes de história, mas não
eram sobrepostas à historicidade,5 Croce havia preso a história ao estágio
da sociedade liberal, em cujo horizonte eram possíveis mudanças e também
lutas dramáticas – como a guerra, as mudanças de governo e até mesmo
a hipótese de afirmação do socialismo (BADALONI, 1975, p. 82-84) –,
mas não eram possíveis mutações que, como pretendiam os socialistas,
abolissem os Estados, isto é, “o político” tal qual Croce pretendia que
tivesse sempre existido e sempre existiria.
Vou me deter mais adiante sobre o modo no qual o jovem
Gramsci acredita poder fundir em um nexo inédito esta filosofia do espírito
com o projeto de um socialismo profundamente renovado. Por enquanto
é suficiente dizer que o neoidealismo italiano é por ele visto como uma
tentativa grandiosa de restituir ao homem a responsabilidade plena de sua
vida, de sua história, de colocá-lo de frente a suas responsabilidades. E a
seu ver esta posição não era enfraquecida nem por aquele tipo de horizonte
transcendental liberal que Croce lhe tinha assinalado, nem pela separação
programática entre o projeto de reforma cultural neoidealista e a prática
política. Tudo isso demonstra certa subalternidade de Gramsci à perspectiva
croceana, como se ele, pelo menos entre 1914 e 1918, não se desse contra
do fato de que o idealismo croceano, como tinha sido pensado, não podia,
estruturalmente ser combinado com a perspectiva do socialismo e que o
seu modo de fazer política consistia precisamente em separar a teoria da

5
Este é o sentido da grande operação revisionista que Croce (1913) conduz sobre a dialética de Hegel. Sobre o
significado político desta operação ver Valentini (1966).

24
Gramsci e seus contemporâneos

prática, a filosofia da política, e em transformar a filosofia em um tipo de


atividade política mais verdadeira e mais apropriada do que a atividade
política comumente (e de modo utilitário) levada a cabo.

Política e idealismo: sobre o jovem Gramsci


O jovem Gramsci acredita que era suficiente fazer a soma do
idealismo + política de massa para ter uma completa teoria e prática socialista
revolucionária. Certamente, mesmo no período juvenil, principalmente
depois de 1918, ou seja, na fase mais intensa do movimento dos conselhos
de fábrica, se notam uma série de mudanças e transformações internas.
Tomemos como fio condutor o tema da religião católica. A
antítese é, como se há visto entre catolicismo e modernidade,6 isto é aquela
“’filosofia moderna’ [...] que desconsidera a hipótese de Deus em sua visão
do universo, aquela que apenas na história coloca sua fundamentação,
na história da qual somos as criaturas do passado e criadores do futuro.”
(GRAMSCI 1980, p. 329). A redução de toda realidade à história,
compreendida como razão e imanência, portanto como coincidente com
a ação humana, com o “espírito” (GRAMSCI, 1982, p. 566-567), é o
elemento mais visível e importante que Gramsci retoma do idealismo. O
próprio socialismo, em sua globalidade, é pensado como uma extensão do
idealismo, mais do que um desenvolvimento crítico: “O socialismo crítico
repousa, graniticamente, sobre o idealismo alemão do século XVIII”
(GRAMSCI, 1980, p. 392); o “pensamento marxista” não é, senão, o
“senso hegeliano da história” (GRAMSCI, 1984, p. 35). 7
Onde está, então, a diferença entre idealismo e socialismo? Ou,
de que maneira esta concepção da história pode tornar-se uma filosofia
da revolução, da transformação das relações sociais? Em um primeiro
momento, para Gramsci, trata-se de “realizar” o idealismo, isto é, de
relê-lo a partir das divisões em classes da sociedade (elemento estranho ao

6
“[...] tudo aquilo que pode ser historicizado não pode ser sobrenatural, não pode ser o resíduo da revelação
divina. […] E assim é que nos sentimos inevitavelmente em antítese com o catolicismo e que nos dizemos
modernos” (GRAMSCI, 1980, p. 514).
7
Conforme também Gramsci (1980, p. 69-72). Em outro lugar fala de “hegelianismo marxista” como sinônimo
de “realismo” histórico (GRAMSCI, 1984, p. 33).

25
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

idealismo) (GRAMSCI, 1984, p. 183). Gramsci parece não se dar conta,


em um primeiro momento, de quão contraditória era essa pretensão de
reler o pensamento idealista à luz das divisões reais da sociedade em classes
contrapostas. Ele acredita que no momento em que a filosofia do espírito
e de sua liberdade não fosse mais apenas patrimônio das classes dirigentes,
mas se tornasse “íntima convicção das classes subalternas”, se produziria
uma sublevação material e na ordem histórica (GRAMSCI, 1982, p. 498-
499, 1980, p. 477). Aqueles acontecimentos que as massas populares
privadas de iniciativa histórica agora aceitavam com resignação, como uma
coisa que não poderiam controlar, sobre a qual não poderiam influir, como
uma “fatalidade”, apareceriam como aquilo que são: o produto de forças em
conflito entre si. O acontecimento seria reabsorvido na esfera da vontade
e, portanto, da liberdade humana. É evidente que aquilo que acima de
tudo interessa a Gramsci é fazer as massas sair da passividade: uma saída
que, para ser coletiva, precisa ser primeiramente individual. Ou seja, não
se trata de criar uma vontade coletiva heterodirigida mas de fazer com que
cada indivíduo adquira consciência de si, “acima de tudo espírito, isto é,
criação histórica e não natureza” (GRAMSCI, 1980, p. 101), que se torne,
a seguir, princípio do próprio agir e como consequência disto reconduza a
própria liberdade consciente à interpretação (teórica e prática) da história
como coincidente com a vontade, como modificável pela ação coletiva,
de classe. A aparência de fatalidade na história deriva apenas do fato da
indiferença e da passividade das massas.8 Eliminando esta, é eliminada
também aquela e, a seguir, a própria necessidade histórica. Em 1914-1918,
Gramsci considerava como uma mera construção ideológica a constante
referencia às forças produtivas, à economia como uma objetividade que
não poderia ser transformada pelos homens a seu bel prazer, ou seja,
aquilo que era o principal suporte do socialismo positivista e da Segunda
Internacional.9
8
“A indiferença opera potentemente na história. Opera passivamente, mas opera. […] A fatalidade que parece
dominar a história não é, senão, […] que a aparência ilusória desta indiferença, deste absenteísmo” (GRAMSCI,
1982, p. 13-14). É preciso substituir “a vida ao pensamento […] à inércia, à indiferença” (idem, p. 281).
9
A redução das leis científicas a expressões das relações de forças: “Todas as leis, mesmo aquelas que parecem
mais metafísicas, mais impalpáveis, são na realidade expressão de um estado de fato, cujas responsabilidades
se poderiam sempre personificar ou melhor, se fosse possível dizer, classificar” (GRAMSCI, 1980, p. 288).
[Gramsci utiliza em italiano o neologismo inclassare, representar como classe, como contraponto de impersonare,
que significa representar como pessoa. Utilizou-se aqui a palavra classificar em seu sentido de representar em
uma classe. N. do T.].

26
Gramsci e seus contemporâneos

O programa teórico (e, consequentemente, político) de Gramsci


consiste, definitivamente, em dissolver os mitos da objetividade e da
necessidade histórica na medida em que favorecem a permanência do
proletariado fora da história. Seu objetivo é o de reduzir progressivamente
à vontade, à política, e com esse propósito se serve do idealismo,
aceitando-lhe a posição fundamental, segundo a qual ser e conhecer “se
identificam” (GRAMSCI, 1984, p. 348). Mas esta aceitação, mesmo
que convicta, é contudo funcional com relação ao propósito que
quer alcançar e à intuição que está em sua base. “Os revolucionários
concebem a história como criação do próprio espírito, feita por uma
série ininterrupta de dificuldades que operam sobre outras forças ativas
e passivas da sociedade” (GRAMSCI, 1980, p. 11-12). Nesta passagem,
muito precoce, escrita em outubro de 1915, resulta já evidente o nexo
que há pouco mencionei: a história é reduzida a um entrelaçamento de
práticas complexas e diversificadas (ativas-passivas, etc.) atravessadas
todas pelas lutas de classe. Mas esta posição, plenamente correspondente
à intuição mais profunda e genuína do jovem intelectual socialista, é
nessa mesma passagem reduzida aos termos do idealismo (“concebem a
história como criação do próprio espírito”). No entanto, entre as duas
posições não existe uma conexão necessária. Ela pode, pelo contrário,
vincular-se sistematicamente a uma impostação completamente diferente
e colocar-se em um contexto teórico diverso e se pode afirmar que a
análise da realidade como uma trama de relações de forças permanece
substancialmente intacta ao longo de todo o itinerário de Gramsci, o qual
pode então ser lido como uma contínua e cansativa pesquisa do contexto
teórico adequado no qual colocá-la, para justificá-la a sua luz e impedi-la
de cair vítima de uma hegemonia adversária.

Filosofia como dispositivo de tradução-assimilação-redução


O contexto justo para a análise da realidade em termos de
“relações de força” na perspectiva dos subalternos é a filosofia da práxis,
sobre a qual não por acaso Gramsci escreve autobiograficamente nos
Quaderni:

27
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Em fevereiro de 1917, numa breve nota que precedia a reprodução do


escrito de Croce Religione e serenità (cf. Etica e politica, p. 23-25) na
época recentemente publicado na “Critica” escrevi que, assim como
o hegelianismo fora a premissa da filosofia da práxis no século XIX,
nas origens da civilização contemporânea, da mesma forma a filosofia
croceana poderia ser a premissa de uma retomada da filosofia da práxis
em nossos dias, para nossas gerações. A questão era apenas acenada de
uma maneira certamente primitiva e evidentemente inadequada porque
naquele tempo o conceito de unidade de teoria e prática, de filosofia e
politica não era para mim claro e eu era, sobretudo, tendencialmente
croceano. Mas agora, mesmo sem a maturidade e a capacidade
necessárias para tratar o assunto, parece-me que a posição deva ser
retomada e apresentada de maneira criticamente mais elaborada. Ou
seja: deve-se refazer para a concepção filosófica de Croce a mesma
redução que os primeiros teóricos da filosofia da práxis fizeram para a
concepção hegeliana. (GRAMSCI, 1975, p. 1233).

Não seria possível desejar maior clareza: agora (estas linhas foram
escritas em 1932) Gramsci sabe que sua posição de 1917 era subalterna à
perspectiva croceana porque “o conceito de unidade de teoria e prática, de
filosofia e politica” não era ainda “claro” e ele era “sobretudo, tendencialmente
croceano”. Não era claro: como demonstrei, aquele conceito já existia,
mas, por assim dizer, no estado prático, enquanto tentativa de pensar a
realidade como um conflito permanente de forças e “série ininterrupta de
dificuldades que operam” cada uma “sobre outras forças ativas e passivas
da sociedade”. Mas aquela concepção era neutralizada e despotencializada
se o vocabulário teórico permanecesse aquele do neoidealismo. Note-se,
além disso, que não por acaso, a relação com Croce é retomada de novo
nos Quaderni, sobre o tema da religião, ou seja, da ética da modernidade
como imanente e, portanto, autônoma com relação à religião revelada ou
mitológica.
A religião permanece o núcleo gerador seja da relação com Croce,
seja (agora) da necessidade de criticar-lhe suas posições (se verá mais adiante
de que modo). Mas com relação às posições juvenis, a grande e decisiva
novidade presente nos Quaderni del carcere, novidade que depende da
conquista teórica da unidade de teoria e prática, está no reconhecimento
do caráter político da filosofia croceana, ou seja, de seu caráter de classe.
Dizer que todo o pensamento de Croce é um grande projeto político

28
Gramsci e seus contemporâneos

voltado a justificar e reforçar o poder da burguesia não significa desvalorizar


ou ignorar o conteúdo especificamente teórico, filosófico; significa, pelo
contrário, valorizar aquele conteúdo à luz de um conceito de filosofia e
de verdade diferente e independente, um conceito que a filosofia da práxis
define de maneira completamente diversa do idealismo croceano e de
qualquer outra “filosofia tradicional”. Aquilo que Gramsci desenvolve nos
Quaderni, libertando-se da tutela croceana, é, em suma, não apenas uma
“filosofia da revolução:”, mas de modo inseparável também uma teoria da
filosofia e uma teoria da verdade, as quais somente tornam possível uma
crítica que não é reducionista, nem exterior, enfim, nem subalterna do
croceanismo, bem como de qualquer outra filosofia.
A crítica do pensamento de Croce que Gramsci deseja interpretar,
foi visto, consiste em “reduzir” a filosofia do espírito da mesma maneira
que Marx e Engels “reduziram” a filosofia de Hegel. O termo “redução”
é, entretanto, compreendido em um sentido particular. De fato, nos
Quaderni, Gramsci o utiliza com dois significados diferentes e opostos: no
sentido usual, segundo o qual a redução é uma simplificação inadequada
e uma mutilação interessada do objeto sobre o qual se exercita (p. ex. a
“redução do materialismo histórico a um mero cânone empírico de
metodologia histórica” por Croce (GRAMSCI, 1975, p. 503) e, em um
sentido particular segundo o qual a “redução” é um sinônimo de “tradução”,
no sentido específico que Gramsci atribui a essa expressão no contexto
da filosofia da práxis. O lugar no qual a acepção específica comparece de
maneira mais clara e abrangente é o seguinte, escrito no mesmo Quaderno
(o 10, La filosofia di Bendetto Croce) do qual foi extraído o precedente:
Traducibilidade das linguagens científicas. As notas escritas nesta rubrica
deverão ser recolhidas exatamente na rubrica geral sobre a relação da
filosofia especulativa e a filosofia da práxis e da própria redução a esta
como momento político que a filosofia da práxis explica ‘politicamente’.
Redução a ‘política’ de todas as filosofias especulativas, a momento da
vida histórico-política; a filosofia da práxis concebe a realidade das
relações humanas de conhecimento como elemento de ‘hegemonia’
política. (GRAMSCI, 1975, 1245).

Aqui Gramsci recorda que as notas pertencentes à rubrica


“traducibilidade das linguagens científicas” são consideradas como um caso

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

particular de um fato universal, que é o encontro ideológico entre filosofias


ou visões de mundo. Ter desenvolvido a teoria da traducibilidade de modo
“orgânico e profundo” é a característica que distingue a filosofia da práxis
de qualquer outro enfoque,10 na medida em que ela não apenas traduz,
mas teoriza até mesmo essa tradução como um fato que sempre ocorre no
momento em que duas posições entram em relação. A diferença é decisiva.
Traduzir é efetivamente uma forma de “redução”, na medida em que devendo
expressar uma perspectiva linguística nos termos de outra é destinada a ignorar
as margens de irredutibilidade (ou intraducibilidade) dos dois horizontes
linguísticos. Traduzir é, portanto, uma operação redutiva, mas precisamente,
assimilativa. Quem traduz “reduz a si” ou “assimila” à própria perspectiva
uma outra perspectiva. E dado que o caráter essencialmente pragmático da
linguagem, segundo o qual a “comunicação” é sempre também “ação” – a
tradução é um primeiro instrumento de intervenção sobre outras identidades
e, portanto, é organização de uma rede estruturada de relações de dominação
e de subordinação. Em certo sentido, traduzir quer dizer instituir uma
hegemonia, enquanto faz entrar dentro da própria perspectiva uma série de
outras perspectivas que o fazem de maneira subordinada.
A diferença introduzida pela filosofia da práxis no momento em
que desenvolve, apenas ela, a teoria da traducibilidade encontra-se em que
aquela “tradução-assimilação-redução que as filosofias sempre praticaram
no momento em que se reportam ao outro vem por ela reconhecida como
um “momento da vida histórico-política”. Dito de outra maneira, graças à
teoria da traducibilidade a filosofia da práxis pode reconhecer, por trás do
véu especulativo, “a realidade das relações humanas de conhecimento” e de
analisar tal realidade “como elemento de ‘hegemonia’ política”. “Realidade”,
obviamente, que deve ser entendida como eficácia prática, política, como
capacidade que uma visão de mundo tem de fazer-se história, hegemonizando
dentro de sua própria perspectiva uma série de outras posições que por isso
tornam-se “subalternas”.
10
“Precisa ser resolvido o problema: se a tradutibilidade recíproca das várias linguagens filosóficas e científicas
é um elemento ‘crítico‘ próprio de toda concepção de mundo ou somente próprio da filosofia da práxis (de
maneira orgânica) e apenas parcialmente apropriável por outras filosofias […] Parece que se possa dizer
exatamente que apenas na filosofia da práxis a ‘tradução’ é orgânica e profunda, enquanto de outros pontos
de vista frequentemente é simplesmente um jogo de ‘esquematismos’ genéricos” (GRAMSCI, 1975, p. 1468).
Os “outros pontos de vista” são aqueles das teorias pragmatistas sobre a linguagem como “causa de erro” (cf.
principalmente GRAMSCI, 1975, p. 1426-1428). Infelizmente não posso me deter o quanto seria necessário
sobre a teoria gramsciana da traducibilidade das linguagens, sobre isso ver Ives e Lacorte (2010).

30
Gramsci e seus contemporâneos

Religião e religião da liberdade


Podemos agora compreender o que Gramsci queria dizer quando
escrevia que a conquista da unidade de teoria e prática torna possível, a seus
olhos, realizar uma “redução” do pensamento de Croce análoga àquela que
Marx e Engels fizeram com Hegel. É porque Gramsci sabe ter – graças ao
desenvolvimento da teoria da traducibilidade e da hegemonia e do conceito
de unidade de teoria e prática, de filosofia e política – desenvolvido um
dispositivo teórico que lhe permite fazer reemergir o significado, o valor
e a função política de uma posição como a de Croce, que ele pode propor
esta tarefa sem arriscar cair em uma relação meramente especulativa (que
terminaria com a vitória de Croce, ao menos porque deste modo a filosofia
da práxis já não seria mais aquilo que é, ou seja, um movimento de massa
e uma nova posição da questão da verdade). “Redução” da filosofia de
Benedetto Croce quer dizer agora tradução dessa em termos histórico
políticos, ou seja, compreensão do modo específico em que ela é constituída
como uma elaboração hegemônica na Itália do século XX.
Aqui, mais uma vez, encontramos a noção de religião. Gramsci
de fato identifica na definição da “religião” como “uma concepção da
realidade e [...] uma ética correspondente”, levada a cabo na Storia
d’Europa (CROCE, [1932] 1965, p. 20), o selo de um percurso –
croceano – que tenta identificar e ao mesmo tempo ocultar o ponto em
que a filosofia possa realmente, ou seja politicamente, reformular-se como
matriz de uma hegemonia. Apenas quando anuncia a nova noção de
religião, implicitamente Croce revê a distinção fundamental entre teoria
e prática, entre filosofia e política, sobre a qual seu pensamento, antes de
1915, repousava. Deste modo, nota Gramsci, ele confessa não estar mais
em condições de manter distintas, sequer formalmente, ideologia e filosofia.
Comentando a Storia d’Europa, Gramsci escreveu:
Parece-me que Croce não consegue, nem mesmo de seu ponto de
vista, manter a distinção entre ‘filosofia’ e ‘ideologia’, entre ‘religião’
e ‘superstição’, distinção essencial em seu modo de pensar e em sua
polêmica com a filosofia da práxis. Acredita tratar de uma filosofia e
trata de uma ideologia; acredita escrever uma história da qual tenha
sido exorcizado o elemento de classe e, ao contrário, descreve com
grande acuidade e mérito a obra-prima política através da qual uma
determinada classe consegue apresentar a fazer aceitar as condições

31
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

de sua existência e de seu desenvolvimento de classe como princípio


universal, como concepção de mundo, como religião, isto é, descreve
em ato o desenvolvimento de um meio prático de governo e de domínio.
O erro, de origem prática, não foi cometido, neste caso, pelos liberais
do século XIX, os quais, pelo contrário, triunfaram praticamente e
atingiram os fins a que se propuseram; o erro, de origem prática, foi
cometido pelo seu historiador Croce, que depois de ter distinguido
filosofia da ideologia termina confundindo uma ideologia política com
uma concepção de mundo, demonstrando na prática que a distinção
é impossível, que não se trata de duas categorias, mas de uma mesma
categoria histórica e que a distinção é apenas de grau. (GRAMSCI,
1975, p. 1231).

Com a noção de “religião” (e com a consequência da identificação


do liberalismo e “religião da liberdade” Croce traz, em suma, à evidência
plena seu pensamento de sempre, ou seja, a ideia de que fazendo filosofia,
fazendo cultura, se complete uma “obra política, de política em sentido
lato” (CROCE, [1915] 1931, p. 388) e que efetivamente, é fazendo
cultura e filosofia que se faz a verdadeira política (“alta política” como diz
Croce em 1925).11 Nessa altura, a teoria das “distinções” não está mais
em condições de dar conta do modo de funcionamento do conceito de
“religião”. Esta, de fato, não é uma “fé”, de bom grado definida por Croce
como a consequência (a “filha”) da filosofia na vida prática (um tipo de
orthé dóxa que guia a ação do “não filósofo”, Croce, 1931, p. 21, 32-33,
38, 85, 156-158), nem é uma ideologia, ou seja, uma “psdeudoteoria que
não lhe serve [ao partido político] a outro que fim que não o de suscitar
a aparência de ter aliada a si a Verdade, a Razão, a Filosofia, a Ciência e a
História.” (CROCE, [1925] 1967, p. 193, [1912] 1926, p. 191-198)12.
Em vez disso, a religião é agora diretamente uma dimensão do espírito na
11
“Por que desejei assinalar novamente e com maior exatidão a distinção entre teoria e prática, entra a filosofia
da política e a política? Para recomendar modéstia aos filósofos [...]? Sim, certamente também tive esse
pensamento. Mas confesso de ter sido movido principalmente pela preocupação oposta, que é aquela de salvar
o juízo histórico das contaminações com a prática política que lhe priva a amplidão e a ausência de preconceito.
Preocupação que é, em seguida, também, a seu modo, política e alta política; se é verdade o que o velho
Aristóteles, pai da ciência política, disse sobre o contraste entre vida ativa e contemplativa: que não são práticas
apenas as operações que se voltam para os fatos, mas também muito mais e as contemplações e reflexões que
têm por origem e fim a si mesmas, e que educam a mente, preparando a eupraxia” (CROCE, 1915 [1931], p.
388). [Eupraxia, do grego clássico, quer dizer bom comportamento. Aristóteles emprega a palavra em sua Ética a
Nicômaco para definir o comportamento de acordo com as regras e as leis, o qual se opõe à dispraxia, à conduta
desregrada (Aristóteles, VI, 5, 1140 b 7). N. do T.].
12
Sobre essas ideias, ver Gramsci (1975, p. 888-889).

32
Gramsci e seus contemporâneos

qual teoria e prática, verdade e moralidade se misturam e se alimentam


entre si, é uma forma de unidade real, histórica, do teorético e do prático.
A teoria das distinções havia servido egregiamente para
delimitar o caráter político do trabalho intelectual, salvaguardando-o
do amesquinhamento “frenético” na política-paixão. Com a “religião da
liberdade” somos colocados, em vez, em um plano no qual os intelectuais
se veem destinados a uma tarefa sacerdotal, cuja diferença com relação às
outras religiões consiste precisamente em seu conteúdo e não mais em sua
forma (SARTORI, 1997, p. 169-201). A religião da liberdade enquanto
tradução ativista da filosofia liberal representa, portanto, a renúncia
croceana (ainda que nunca admitida por ele) a mover-se sobre o plano da
imanência identificado com as “distinções”.
Gramsci vê nesta passagem, ao mesmo tempo, uma afinação
da impostação croceana e seu enredamento: o intervencionismo mais
decidido vai unido, de fato, necessariamente, a uma maior abstração, a
eficácia prática da religião da liberdade deriva da ênfase colocada sobre o
caráter metapolítico de seu conteúdo, sobre a perfeição e universalidade
de seu ideal. Em outras palavras, a teoria dos distintos, na medida em
que havia colocado arreios e tornado ineficaz o negativo, fazendo-o andar
em círculos dentro das quatro formas sempre iguais, permitia pensar a
abertura da história, as infinitas combinações dos quatro momentos. Em
vez disso, a explosão do “negativo” no pós-guerra havia tornado necessário,
por um lado circunscrever e esclarecer e, por outro, alargar e confundir
o objetivo; por um lado, materializar os distintos em instâncias políticas
precisas (ou “ético-políticas”) e proceder à construção de uma hierarquia
entre eles em nome de uma instância sobreimposta à história, por outro
lado, usar aquela instância – a “religião da liberdade” – precisamente
em sua absoluta imprecisão dos conteúdos sociais e políticos, como um
potentíssimo motor para revitalizar, em escala não apenas italiana mas
europeia (e até “mundial), um processo hegemônico “burguês” colocado
em questão pela falta das margens sociais e políticas da mediação (com o
nascimento do comunismo e, mais tarde, da crise de 1929). Esse projeto era
adequadamente manejável apenas uma vez que a “burguesia” fosse negada
enquanto “classe”, esvaziada de conteúdos econômicos e naturalizada como
um modo de ser do homem moderno em geral, especificamente daquela

33
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

parte da humanidade moderna que, como “classe não classe” e “estrato


geral” tem particularmente “vivo o sentimento do bem público” (CROCE,
[1928] 1967, p. 282-283).
Negando que a burguesia seja uma classe, Croce tenta naturalizar
o papel de leadership exatamente no momento em que tal função é posta
em discussão mais seriamente em toda a Europa. Assim, a filosofia torna-
se mais flexível e capaz de aderir ao “mundo”, precisamente porque é
necessário enrijecer o desenho “prático” que é necessário estender sobre
o “mundo” para poder reconduzi-lo à ordem. Dessa maneira, a “religião
da liberdade” da Storia d’Europa assume o aspecto de uma confirmação:
confirmação do motivo político do filosofar croceano e do entrelaçamento
entre a mundanização da noção de “filosofia” e o efeito de neotranscendência
produzido por ela.

“...ele continua a considerar-se o líder intelectual dos revisionistas”

Gramsci escreve no Quaderno 10:


Elaboração da teoria da história ético-política. [...] contudo o mais
significativo da biografia científica de Croce é que ele continua a se
considerar líder intelectual dos revisionistas e sua elaboração ulterior
da teoria historiográfica é conduzida com essa preocupação: ele quer
chegar à liquidação do materialismo histórico, mas pretende que este
desenvolvimento ocorra de modo a identificar-se com um movimento
cultural europeu. A afirmação, feita durante a guerra, de que a própria
guerra pode ser chamada de ‘guerra do materialismo histórico’13 e os
desenvolvimentos históricos e culturais ocorridos na Rússia de 1917 a
nossos dias, esses dois elementos levam Croce a desenvolver com maior
precisão sua teoria historiográfica, a qual deveria liquidar qualquer
forma, mesmo atenuada, da filosofia da práxis. (GRAMSCI, 1975, p.
1214-1215).14

13
Cf. Croce (1928, p. 294-295) que se refere à opinião dos neutralistas (e socialistas), segundo a qual a guerra não
era “clara guerra de ideias”, mas ditada por razões “industriais e comerciais”, “um tipo de guerra do ‘materialismo
histórico’ ou do ‘irracionalismo filosófico”. Cf. também uma citação de Guido de Ruggiero, “Le pensée italienne
et la guerre” na Revue de métaphysique er de morale, 1916: “Um pensador italiano – (era eu que havia dito isso
em uma conversa) – resumiu de maneira científica essa concepção afirmando que esta guerra lhe aprecia ser ‘a
guerra do materialismo histórico’. É uma observação feliz que convida à reflexão” (CROCE, 1928, p. 347n).
14
Conforme ainda Gramsci (1975, p. 1207): “Croce de 1912 a 1932 (elaboração da teoria da história ético-
política) tende a permanecer o líder das correntes revisionistas para conduzi-las até uma crítica radical e à
liquidação (político-ideológica) até mesmo do materialismo histórico atenuado e da teoria econômico-jurídica.”

34
Gramsci e seus contemporâneos

Os estímulos à elaboração da história ético-política são dois: a


guerra mundial e a revolução soviética, ou seja, o fim do mundo liberal
com a organização e a consequente entrada na vida política de massas
imensas de populações e a tentativa de direcionar essa mobilização na
constituição de uma nova civilização. Eis porque Croce define a história
ético-política como seu “cavalo de batalha contra o materialismo histórico
e seus derivados” (cf. a carta de Croce ao diretor da Nuova Rivista Storica,
Corrado Barbagallo, Croce, 1929, p. 130-133).15 Croce pretende,
portanto, retomar em condições diferentes a linha daquele movimento
decisivo na determinação da crise do socialismo na passagem do século.
A seguir, Croce, juntamente com Sorel e Bergson (GRAMSCI, 1975, p.
421-422) trabalhou na absorção do marxismo pela filosofia idealista e na
transformação do socialismo em uma opção interna à sociedade burguesa.
No artigo de 1911 (o ano da guerra da Líbia e da divisão interna no PSI entre
favoráveis e contrários a ela), “La morte del socialismo”, Croce escreveu
que Georges Sorel “assimilou o movimento operário àquele cristão, [...]
concedeu-lhe, com a ideia da greve geral, o conforto do mito e o armou do
sentimento de cisão”. Mas “uma cisão teorizada é uma cisão desatualizada”
e o mito mantido por uma “explicação doutrinal” é “dissipado” (CROCE,
[1911] 1926, p. 157-158). Aquilo que permanece, o produto inerte da
reação química desencadeada pelo mito é uma organização sindical que
pode egregiamente servir para organizar a função “trabalho” dentro das
relações de força da sociedade liberal, mas não, certamente, para projetá-lo
em direção a uma alternativa global de civilização. Mas também no curso
dos anos 1920 e 1930, quando insiste sobre o caráter metafísico e pré-
moderno do pensamento de Marx ele, na realidade, tem sempre presente
a questão da organização e do disciplinamento das massas trabalhadoras
como encruzilhada decisiva da legitimação na sociedade pós-bélica.
Naquele contexto, a crítica em relação a Marx é desdenhosa.
Contemporaneamente ao congresso filosófico de Oxford foi publicada no
número de outubro da revista La Nuova Italia, sob a rubrica Commenti e
schermaglie, a “carta de um dos participantes”, cujo nome não é citado, mas
que Gramsci, como escreve a Tatiana Schucht no dia 1º de dezembro de

15
Esse texto faz parte de uma troca epistolar pública entre Croce e Barbagallo entre 1928 e 1929 e é recordado
por Gramsci em um texto dos Quaderni intitulado “Croce e Marx” (GRAMSCI, 1975, p. 436).

35
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

1930, supõe que fosse “talvez [...] o próprio Croce ou pelo menos [...] um
de seus discípulos”. Nela, prossegue Gramsci,
[...] se fala do debate, ocorrido no Congresso internacional dos
filósofos, entre Benedetto Croce e Lunacharski a propósito da questão
de se existe ou possa existir uma doutrina estética do materialismo
histórico. [...] Desta carta aparece que a posição de Croce em relação ao
materialismo histórico mudou completamente daquela que mantinha
até alguns anos atrás. Agora Croce mantém, nada menos, que o
materialismo histórico assinala um retorno ao velho teologismo [...]
medieval, à filosofia pré-kantiana e pré-cartesiana. Algo surpreendente.
(GRAMSCI, 1996, p. 368-369).

Naquele texto, Croce afirmava:


Devo pois observar ao senhor Lunacharski que contrariamente a sua
crença de que o materialismo histórico seja uma concepção secamente
antimetafísica e sumamente realista, aquela doutrina é pior que
metafísica, é mesmo teológica, dividindo o único processo do real em
estrutura e superestrutura, noumeno e fenômeno, e colocando na base,
como noumeno, um Deus oculto, a Economia, que puxa todos os
fios e que é a única realidade nas aparências da moral, da religião, da
filosofia, da arte e assim por diante. (CROCE, 1930a, p. 432).16

Gramsci nota, pontualmente, como essa mudança permaneceu


inexplicável se considerada no plano teórico. Embora nunca tenha aderido
ao marxismo, ainda na Prefazione à edição de 1917 de Materialismo storico
ed economia marxistica, Croce mostrava nutrir uma grande admiração
intelectual por Marx, a quem atribuía dois temas a respeito dos quais se
declarava em débito: a “firme asserção do princípio da força, da luta, da
potência” (CROCE, [1900] 1968, p. XIII) e o conceito de economia. E
exatamente por essa razão no mesmo texto afirma que “aquele que dirigir
seu pensamento à história italiana dos últimos decênios não poderá, a meu
ver, não advertir a longa e benéfica eficácia exercitada pelo marxismo sobre
os intelectuais italianos entre 1895 e 1900. [...] O pensamento filosófico
foi assim estimulado pela retomada da atividade que estava então se
preparando” (idem, p. XIV). E na Prefazione à primeira edição desse texto

16
Conforme também Croce ([1921] 1947, v. 2, p. 136): “O dualismo metafísico entre natureza e espírito, a
despeito de toda ‘tendência ao monismo’ [Labriola] persistia em sua crueza.”

36
Gramsci e seus contemporâneos

(1900) chegou mesmo a definir a obra de Marx como “genial” (CROCE,


[1900] 1968, p. X).
Entre a apreciação e a liquidação de 1930 não há, efetivamente,
um nexo lógico. A explicação deve, por isso, ser procurada na mudança
da realidade que obriga Croce, como foi, dito a se engajar diretamente na
batalha, a transformar a filosofia em instrumento direto de luta ideológica.

Croce e o fascismo: uma “concordância da mais íntima e eficaz”


A impressão suscitada em Gramsci pela leitura da Nuova Italia de
outubro de 1930 e depois da conferência croceana em Oxford, publicada
de antemão no número da Critica de 20 de novembro do mesmo ano
(CROCE, 1930b) deve ter sido forte. Como escreve em 1932 em um
texto que já foi aqui recordado, Gramsci pensa que Croce “deseja alcançar
a liquidação do materialismo histórico, mas deseja que esse resultado ocorra
de modo a identificar-se com um movimento cultural europeu” (GRAMSCI,
1975, p. 1214, grifos meus). Ora, a qual movimento cultural europeu se
alude aqui?
Dar uma resposta a esta pergunta é mais difícil do que possa
parecer, mesmo porque, como logo se verá, Gramsci se opõe à leitura
dominante que vê Croce em companhia de Mann, Ortega y Gasset,
Huizinga e Curtius (GIAMMATEI, 2009, p. 119-126) refletir, no
começo dos anos 1930, a partir do liberalismo, sobre a crise profunda da
Europa perante o surgimento do totalitarismo. Em vez disso, no primeiro
comentário escrito em novembro de 1930, imediatamente após ter lido o
texto, Gramsci observa
O discurso de Croce no congresso de filosofia de Oxford é na realidade
um manifesto político de uma união internacional dos grandes
intelectuais de todas as nações, especialmente da Europa, e não se
pode negar que isso possa se tornar um partido importante, que possa
ter uma função que não seja pequena. Hoje se verifica no mundo
moderno um fenômeno similar aquele de separação entre ‘espiritual’ e
‘temporal’ na Idade Média [...]. Os reagrupamentos sociais regressivos
e conservadores se reduzem sempre mais a sua fase inicial econômico-
corporativa, enquanto os reagrupamentos progressivos e inovadores se
encontram ainda na fase inicial, precisamente econômico-corporativa;
os intelectuais tradicionais, destacando-se do reagrupamento social ao

37
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

qual haviam dado até então a forma mais elevada e inclusiva e, portanto,
a consciência mais vasta e perfeita do Estado moderno, na realidade
desempenham um ato de incalculável dimensão histórica: assinalam e
confirmam a crise estatal em sua forma decisiva. (GRAMSCI, 1975,
p. 690-691).

Gramsci se refere, provavelmente, à seguinte passagem:


[...] e farei a hipótese de que eu [...] não seja capaz de ver o quid maius
que vem sendo preparado entre a rudeza e barbárie daquele movimento
e troque por depressão aquilo que é elevação, por enfermidade
um frutífero trabalho espiritual, por insanidade terrena a sagrada
loucura da cruz. Dada essa hipótese, posto o caso de que uma nova
civilização esteja em elaboração, o que deveríamos esperar, filósofos
e historiadores, que vemos entretanto ser jogado fora com desprezo
tudo aquilo que para nós tem mérito supremo, nossos conceitos sobre
as vias necessárias da verdade e do bem e sobre o caráter sagrado do
trabalho levado a cabo pelas gerações humanas? Deveremos, por um
presumido quid maius, o qual bem merece desta vez ser acompanhado
pelo néscio, ajudar à obra de destruição e abandonar nosso posto de
combate para seguir a turba inimiga em direção a um sinal que não
conhecemos? [...] se concedendo que o novo povo, a nova história,
a nova civilização italiana nasceram das invasões bárbaras, vivendo
um de nós, cultivadores da verdade, no quinto ou no sexto século, no
tempo dos lombardos, teríamos escolhido um posto ao lado de um
Totila ou de um Albino, ou em vez disso, ao lado de um Boécio e de
um Gregório? – A estes últimos que continuaram a tradição romana
e não àqueles que rapinaram e massacraram com os godos e com os
sórdidos lombardos, se deve a que estes bárbaros cessaram, pouco a
pouco, de serem bárbaros e, dando e recebendo, concorreram a gerar os
italianos das Comunas e aqueles do Renascimento. (CROCE, 1930b,
p. 408-409).

Na medida em que se admite que as mudanças contemporâneas


são o anúncio confuso e rude de uma nova civilização e não uma mera
“doença” da atual, a tarefa do sacerdote da verdade é a de “deter” a história
e não de acelerá-la, porque apenas detendo-a se dá verdadeiramente
alimento à civilização nascente, que será verdadeira civilização e saberá
reviver em si a herança do velho mundo como fizeram as Comunas e o
Renascimento.

38
Gramsci e seus contemporâneos

Gramsci não partilha do diagnóstico croceano: a nova Europa


anti-historicista não é uma doença do liberalismo mas a expressão de
um choque hegemônico entre a burguesia e a classe operária, ambas,
entretanto, incapazes de prospectar um projeto articulado e completo
e, portanto apegadas especularmente à fase “econômica-corporativa”.
A seguir, a estratégia de “detenção” da história proposta por Croce à
“união internacional dos grandes intelectuais”, em vez de salvaguardar
a herança da cultura da barbárie temporária termina por acelerar a crise
do Estado moderno. O manifesto político croceano seria, em suma, a
expressão da crise e não ainda o encaminhamento de sua solução, porque
aquele desenho político (favorecer o surgimento de uma nova civilização
burguesa precisamente graças à não participação ativa nos processos em
curso) nem leva em conta o fato de que (como Gramsci escreve mais
adiante no mesmo texto) “hoje o ‘espiritual’ que se separa do ‘temporal’ e
não se distingue como a si própria, é uma coisa não orgânica, descentrada,
uma poeira instável de grandes personalidades culturais ‘sem Papa’ e sem
território” (GRAMSCI, 1975, p. 691).
O germe da crise do Estado não era novo. Exatamente em 1930,
no dia 27 de outubro (poucos dias antes de Gramsci escrever essa nota),
no Messaggio per l’anno IX, Mussolini havia afirmado:
Isso explica como a luta se desenvolva agora sobre um terreno mundial
e como o fascismo esteja na ordem do dia em todos os países, aqui
temido, lá implacavelmente odiado, mais além ardentemente invocado.
[...] Hoje afirmo que o fascismo enquanto ideia, doutrina, realização,
é universal: italiano em suas instituições particulares ele é universal
no espírito, nem poderia ser de outro modo. O espírito é universal
pela sua própria natureza. Se pode então prever uma Europa fascista,
uma Europa que inspire suas instituições com a doutrina e a prática
do fascismo. Uma Europa, isto é, que resolva, em sentido fascista o
problema do Estado moderno, do Estado do século XX, muito diferente
dos Estados que existiam antes de 1789 ou que se formaram depois.
O fascismo hoje responde a exigências de caráter universal. Ele resolve
de fato o triplo problema das relações entre Estado e indivíduo, entre
Estado e grupos, entre grupos e grupos organizados. (MUSSOLINI,
1958, p. 283).

39
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Neste discurso, do qual Gramsci teve seguramente notícia


pela imprensa cotidiana e pelas crônicas do mensário fascista Gerarchia,
Mussolini pontilha o desenho de uma expansão do fascismo na Europa
graças sua capacidade de resolver a crise do Estado moderno criando uma
nova unidade entre Estado e sociedade civil. Era um tema que não era novo
na propaganda fascista – boa parte dos artigos publicados em Gerarchia
naqueles anos discorrem sobre este ponto (POMBENI, 1984, p. 165-167,
205-208) – mas que agora tornava-se o pivô de uma nova concepção do
fascismo como fato “universal”, capaz de hegemonizar a nova Europa, a
Europa acometida do que Croce chamava doença anti-historicista.
Não é casual que nesta nota gramsciana se encontre uma das
raras apreciações de Gentile com relação a Croce: “Deve-se ver em que
medida o ‘atualismo’ gentiliano corresponde à fase estatal positiva, à qual,
porém, se opõe Croce. A ‘unidade no ato’ dá a Gentile a possibilidade
de reconhecer como ‘história’ aquilo que para Croce é anti-história”
(GRAMSCI, 1975, p. 691). Ou seja, Gentile conseguiu reconhecer
positivamente no recrudescimento da crise de hegemonia que agitava a
Europa o delineamento de uma possível nova ordem (fascista), à qual Croce
permaneceria cego porque estava concentrado sobre o lado dissolutivo do
velho liberalismo e projetando em direção a um horizonte futuro sobre o
qual, entretanto, se recusa a dizer positivamente qualquer coisa.
O comentário ao discurso de Oxford é, entretanto, apenas o
início de uma reconsideração abrangente do pensamento de Croce que
Gramsci desenvolve ao longo do ano de 1931 e que o conduz ao juízo sobre
a “religião da liberdade” como síntese entre uma posição filosoficamente
transcendente e uma forte capacidade de intervenção política. Àquela
síntese Gramsci atribui um nome preciso, “revolução passiva” reconhecendo
finalmente em todo o pensamento de Croce posterior a 1915 a elaboração
desta teoria que tem valor ao mesmo tempo filosófico e político. Assim,
quando em 1932 sai a Storia d’Europa nel secolo decimonono, que Gramsci
pode ler em parte, ele já tem pronto um juízo elaborado e completamente
original que deixa para trás as cautelas do outono de 1930 e termina por
reconhecer entre o antifascismo croceano e o fascismo um parentesco
orgânico, embora não aparente.17 O livro de Croce, ele afirma
17
Gramsci anuncia a chegada da Storia d’Europa na carta de 9 de maio de 1932, precisando, entretanto que

40
Gramsci e seus contemporâneos

[...] é um tratado das revoluções passivas, para dizer com a expressão


de Cuoco, que não podem justificar-se ou compreender-se sem a
revolução francesa, que foi um evento europeu e mundial e não
apenas francês. (Pode ter esse tratamento uma referência atual? Um
novo ‘liberalismo’, nas condições modernas, não seria exatamente o
‘fascismo’? Não seria o fascismo precisamente a forma de ‘revolução
passiva’ própria do século XX, como o liberalismo foi para o século
XIX?) (...). (Pode-se assim conceber: a revolução passiva se verificaria
no fato de transformar a estrutura econômica ‘reformistamente’ de
individualista a economia segundo um plano (economia dirigida) e o
advento de uma ‘economia média’ entre aquela individualista pura e
aquela segundo um plano em sentido integral, permitindo a passagem
a formas políticas e culturais mais avançadas, sem cataclismos radicais
e destrutivos de forma exterminadora. O ‘corporativismo’ poderia ser
ou tornar-se, desenvolvendo-se esta forma econômica média de caráter
‘passivo’. (GRAMSCI, 1975, p. 1088-1089).

Aqui não há mais nada nem daquele juízo de 1930 sobre o


fascismo como “regressão corporativa”, nem da valorização da atividade
de Croce como “dissolutiva” do Estado. Pelo contrário, objetivamente,
enquanto teorização da revolução passiva, a historiografia croceana
apoia o fascismo como tentativa de sair da crise de hegemonia de uma
maneira não catastrófica. Na Europa dos anos 1930, é necessário projetar
uma nova forma de hegemonia, capaz de absorver o choque das massas
mobilizadas e sindicalizadas e da revolução de 1917. O fascismo é o
equivalente da Restauração pós-napoleônica e objetivamente Croce,
teorizando a revolução passiva como estratégia política liberal, favorece
uma aproximação orgânica entre o liberalismo em crise e os novos regimes
populistas que se afirmam em muitos países europeus. Ele aceita, então,
implicitamente, o fascismo como fato “europeu” mais que italiano porque
ele se demonstra capaz de reintroduzir as massas no Estado graças ao
corporativismo, ou seja, a superação gradual do individualismo econômico,

o livro não lhe tinha sido ainda entregue (GRAMSCI, 1996, p. 572). Ainda em agosto de 1932 escreve uma
requisição a Mussolini para obter a leitura, requisição que, entretanto, não foi expedida. O volume, agora no
Fondo Gramsci, tem o carimbo da prisão mas não a assinatura do diretor e, por isso, provavelmente não foi
entregue ao prisioneiro. Em maio de 1932, entretanto, Gramsci havia lido o “capítulo introdutório” da Storia,
contido em um opúsculo (CROCE, 1931) que chegou na prisão de Turi provavelmente entre o final de 1931 e
o início de 1932. Cf. a carta de 18 de abril de 1932 (GRAMSCI, 1996, p. 562 – “que apareceu já […] há alguns
meses” – e 1975, p. 3045-3046).

41
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

e desta maneira consegue, mais uma vez, reabsorver as classes subalternas


dentro da estratégia burguesa.
Este texto pertence ao início de maio de 1932. Pouco depois na
carta de 6 de junho, Gramsci chega a um juízo definitivo sobre o nexo entre
Croce e o fascismo exatamente em relação à capacidade de atrair de modo
passivo as classes subalternas dentro do Estado. Muitos fascistas, afirma
Gramsci, “estão persuadidos da utilidade das posições tomadas por Croce,
que cria a situação na qual é possível a educação real para a vida estatal
dos novos grupos dirigentes que afloraram no pós-guerra” (GRAMSCI,
1996, p. 586). A absorção das classes subalternas de forma passiva dentro
do Estado:
[...] assume uma dimensão imponente no pós-guerra, quando aprece que
o grupo dirigente tradicional não está mais em condições de assimilar
e dirigir as novas forças que se expressaram nos acontecimentos. Mas
este grupo dirigente é mais ‘malin’18 e capaz do que se poderia pensar:
a absorção é difícil e custosa, mas ocorre apesar de tudo, por muitas
vias e com métodos diversos. A atividade de Croce é uma destas vias e
destes métodos; seu ensinamento produz talvez a maior quantidade de
‘sucos gástricos’ presentes no trabalho de digestão. Colocada em uma
perspectiva histórica, da história italiana naturalmente, a atividade de
Croce aparece como a mais potente máquina para ‘conformar’ as forças
novas aos seus interesses vitais (não apenas imediatos, mas também
futuros) que o grupo dominante possui hoje e que eu creio aprecie
justamente, não obstante qualquer aparência superficial. Quando se
atiram em fusão corpos diversos dos quais se deseja obter uma liga,
a efervescência superficial indica precisamente que a liga está se
formando e não vice-versa. De resto, nestes fatos humanos a concórdia
se apresenta sempre como discurso, como uma luta e uma briga e não
como um abraço teatral. Mas é sempre concórdia e da mais íntima e
ativa. (idem, p. 596-597).

Aqui estamos, em certo sentido, no final de um percurso que


apenas aparentemente reconduz ao escrito de 1926, Alcuni temi dela
questione meridionale, no qual Benedetto Croce e Giustino Fortunato são
definidos como “os reacionários mais ativos da península” (GRAMSCI,
1971, p. 155). A teoria da revolução passiva permite a Gramsci reconhecer
agora o surgimento de uma nova organização abrangente da relação entre
18
Em francês no original: malicioso (N. do T.).

42
Gramsci e seus contemporâneos

Estado e sociedade. A atividade de “detenção” é agora reconhecida como


absorção na organização do novo Estado fascista dos leader das camadas
subalternas (os “novos grupos dirigentes que afloraram no pós-guerra”)
graças exatamente ao antifascismo metapolítico.
Croce acredita “salvar” os grandes valores do humanismo, mas
para afirmar qual objetivo? “Para obter uma atividade reformista pelo
alto que atenue as antíteses e as concilie em uma nova legalidade obtida
‘transformistamente’” (GRAMSCI, 1975, p. 1261). Deste modo, Croce
contribuiria “a um reforço do fascismo, fornecendo-lhe indiretamente
uma justificativa mental depois de ter contribuído a depurá-lo de algumas
características secundárias” (GRAMSCI, 1975, p. 1228) e faria assim de
“passagem entre a estabilização do capitalismo, à qual a socialdemocracia
tendia na Europa desde o pós-guerra, e aquela realizada na Itália pelo
fascismo” (ROSSI; VACCA, 2007, p. 53). Se isto é verdade, não joga,
então, uma luz retrospectiva também sobre a “reforma intelectual e moral”
promovida por Croce na Itália do início do século com o qual se iniciou
este escrito? Não era já aquela uma forma de absorção dos leader das classes
subalternas (também de Antonio Gramsci) dentro da estrutura do Estado?
E não suscita, então, o confronto com Croce nos Quaderni del carcere,
a necessidade de repensar as formas da autonomia política das classes
subalternas e, principalmente, da democracia como forma de luta mais do
que regime político?

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45
William James

Giovanni Semeraro

William James e o pragmatismo americano


Na carta de 25 de março de 1929, Gramsci menciona o livro de
William James Princípios de Psicologia, “traduzido em italiano e publicado
pela Libreria Milanese”, definindo-o “o melhor manual de psicologia”
e comenta logo em seguida que “a psicologia tem se desligado quase
completamente da filosofia, para tornar-se uma ciência natural como a
biologia e a fisiologia: de modo que para estudar a psicologia é preciso ter
muitos conhecimentos especialmente de fisiologia” (LC, p. 249)1. A carta
é um documento precioso não apenas pela referência a W. James, um dos
pioneiros do pragmatismo americano, mas também porque sintetiza em
três pontos essenciais a diversidade de temas enunciados nos vários planos
de trabalho que Gramsci vinha esboçando no cárcere desde o início de
1927: “Resolvi concentrar-me prevalentemente e escrever anotações sobre
esses três assuntos: - 1º A história italiana no século XIX, com particular
atenção à formação e ao desenvolvimento dos grupos intelectuais; - 2º A
teoria da história e da historiografia; 3º O americanismo e o fordismo”.
No contexto da carta, portanto, a referência a W. James aparece associada
ao interesse de Gramsci pelo “Americanismo e fordismo”. O novo sistema
de produção e de cultura em fermento nos Estados Unidos da América, na
verdade, é um fenômeno tão importante aos olhos de Gramsci que aparece
já enumerado nos “Temas principais” da primeira página do Caderno
1
GRAMSCI, Antonio. Lettere dal carcere, Edição de Antonio Santucci, 2 vols, Palermo, Ed. Sellerio, 1996, p.
249 (doravante citado com as letras LC, seguidas pelas indicações das datas).

47
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

1, escrita em 8 de fevereiro de 19292. Recorrente em diversas anotações


esparsas nos Cadernos do cárcere, o tema vai encontrar sua condensação no
Caderno especial 22, escrito em 1934, no auge da maturidade dos escritos
carcerários. O que nos revela que, na estruturação dos Cadernos, além de
questões relativas à Itália e à Europa, Gramsci volta suas atenções críticas
para a sociedade industrial e a crescente concepção de mundo em formação
nos Estados Unidos.
A América do Norte, para Gramsci, mostrava-se como o terreno
mais moderno na “organização de uma economia programática”, com um
modo de vida e a formação de uma civilização em consonância com “uma
composição demográfica racional” inserida no mundo produtivo sem a
formação de “classes parasitárias”, como ocorria ainda em boa parte da
Itália e da Europa refratárias à “civilização industrial”. Não tendo o estorvo
das tradições feudais e das corporações cristalizadas no velho Estado, a
América apresentava condições mais favoráveis para deslanchar uma
sociedade de caráter industrial, onde o sistema organizativo expressado
nos métodos de Ford conseguia “racionalizar a produção e o trabalho,
combinando habilidosamente a força (destruição do sindicalismo operário
com base territorial) com a persuasão (altos salários, diversos benefícios
sociais, propaganda ideológica e política habilíssima), conseguindo assim
centrar toda a vida do país sobre a produção. A hegemonia nasce da fábrica
e para se exercer só precisa de uma quantidade mínima de intermediários
profissionais da política e da ideologia” (Q 22, § 2, p. 2145-2146).
Como na carta de 1929, também nas análises de “americanismo
e fordismo” do Caderno 22, o “pragmatismo americano (de James, etc)”,
está associado às transformações na América, onde: “a racionalização
tem determinado a necessidade de elaborar um novo tipo humano, em
conformidade com o novo tipo de trabalho e de processo produtivo [...]
em fase de adaptação psicofísica à nova estrutura industrial” (Q 22, p.
2146). A ligação explícita que Gramsci estabelece entre o “pragmatismo
americano” e a psicologia de James, marcada pela “biologia e a fisiologia”,
aparece clara nas suas anotações, particularmente no Q 1, § 34 e no Q
17, § 22. A avaliação, portanto, de James não está separada das ideias que

2
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere, Edição crítica de Valentino Gerratana, v. 4, Torino, Ed. Einaudi,
1975. (doravante citado pela letra Q, seguido pela indicação do parágrafo e o número da página).

48
Gramsci e seus contemporâneos

Gramsci expressa em relação ao pragmatismo, uma concepção de mundo


que sente os reflexos da filosofia da práxis. Nos Cadernos, de fato, Gramsci
procura mostrar que a filosofia da práxis “tem determinado ou fecundado
algumas correntes” da cultura moderna, gerando variadas combinações e
sofrendo deturpações nesse processo. Para rejuvenescer suas teses, “a escola
historiográfica” e o pensamento de Croce assimilaram aspectos da filosofia
da práxis, mas a “reduziram a cânon empírico de pesquisa histórica”. Assim,
“sem se deixar impressionar pelas semelhanças exteriores”, seria preciso
analisar cuidadosamente como a filosofia da práxis “tem modificado os
velhos modos de pensar por ações e reações nem sempre aparentes e
imediatas”. Neste sentido, além de Croce, Gentile, Sorel, etc.: “o estudo
mais importante parece ser o da filosofia bergsoniana e o pragmatismo [para
ver como certas suas posições seriam inconcebíveis sem o elo histórico da
filosofia da práxis]” (Q 16, § 9, p. 1856). Oportunamente, portanto, G.
Baratta (2000, p. 148) observa que desde o Caderno 1, Gramsci “ventila
a hipótese de que o terreno de confronto teórico mais avançado [para a
filosofia da práxis] vem a ser o pragmatismo.”
Como se sabe, W. James é um dos pioneiros do pragmatismo,
uma corrente de pensamento que, entre final de 1871 e início de 1872, teve
início nos Estados Unidos de América quando um grupo de intelectuais
se reúne periódica e informalmente em Cambridge, Massachusetts, para
conversar sobre filosofia, psicologia, ciência, cultura, política, dando
origem ao que passam a chamar de “Metaphysical Club”. Na realidade,
uma denominação irônica para um círculo de estudiosos determinados
a minar radicalmente a metafísica. Suas ideias convergem sobre diversas
questões, mas logo emergem pontos comuns:
Mostravam-se convencidos de que as ideias não estavam ‘lá fora’
esperando para serem descobertas, mas eram instrumentos inventados
para enfrentar o mundo [...] Acreditavam que, por serem reações
provisórias a circunstâncias particulares e únicas, as ideias não estavam
vinculadas à imutabilidade, mas à adaptabilidade” (MENAND, 2001,
p. 12).

Seus debates, no entanto, não se limitam apenas a romper


com a velha tradição filosófica da Europa, mas avaliam as repercussões
do industrialismo, da tecnologia e das novas descobertas científicas

49
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

na configuração da identidade dos Estados Unidos da América. Entre


as teorias e os diversos autores examinados no Club, ocupam lugar de
destaque os escritos de C. Darwin, publicados naqueles anos: “A origem
das Espécies” (1859) e “A descendência do Homem” (1871). Ao minar
qualquer forma de dualismo, dogmas consagrados pela religião e convicções
cristalizadas no senso comum, a evolução e a biologia darwiniana abriam
o caminho para as teorias de interação entre organismo e ambiente, para
o entendimento do conhecimento como um instrumento que surge e se
modifica constantemente na luta pela sobrevivência. Darwin, de fato,
apontava que o cérebro se desenvolve ao longo do processo evolutivo para
solucionar problemas e indicava na linguagem o lugar mais apropriado
para o surgimento da consciência. A mente, portanto, não podia ser mais
entendida como uma faculdade autônoma e espiritual superior, mas como
um órgão especializado do corpo para analisar o ambiente, para adaptar-se
e construir instrumentos úteis ao prolongamento da espécie. A biologia
evolucionista oferecia, portanto, munição para a lógica genética e para
analisar os mecanismos do conhecimento como uma operação estimulada
pelos interesses e os impulsos vitais.
Charles Sanders Peirce (1839-1914) é o pensador mais
perspicaz e produtivo do “Metaphysical Club”. As primeiras formulações
do pragmatismo podem ser observadas nos ensaios que ele escreve
na década de 1870. Em The fixation of belief (A fixação da crença), de
1877, Peirce mostrava que precisava sair das “crenças” fundadas sobre
bases inconsistentes como a tradição, a obstinação, a autoridade e as
ideias a priori. Para “fixar crenças” que são sempre falíveis e mutáveis
seria necessário, ao contrário, “inquirir” seus fundamentos com espírito
cientifico e verificá-las continuamente. No ano seguinte, no ensaio How
to make our ideas clear [Como tornar nossas ideias claras], aprofunda suas
análises entre a conduta humana e a lógica, sustentando que o significado
racional de uma palavra ou de outra expressão se percebe pelos reflexos
sobre a conduta de vida. Ou seja, o valor de uma ideia está relacionado
aos seus efeitos, à ação que produz e à crença que se fixa em nós. Devem,
portanto, ser consideradas verdadeiras as ideias cujos efeitos são verificados
e comprovados na prática e que nos levam a agir e organizar o futuro.
Não tendo autonomia e substância próprias, as ideias não são compêndios

50
Gramsci e seus contemporâneos

de verdade, mas são instrumentos operativos que se expressam nos sinais


que construímos. Neste sentido, Peirce (1980, p. 83ss) desenvolve uma
teoria dos sinais onde mostra que “todo pensamento é sinal e participa
essencialmente da natureza da linguagem” que se forma a partir de três
termos: o sinal, o objeto e o intérprete.
Se C. Peirce concentra suas pesquisas sobre a lógica e a
semiótica, W. James (1842-1910) se dedica particularmente aos estudos
de psicologia, criando em Harvard o primeiro laboratório de psicologia
experimental e divulgando o pragmatismo no mundo. Suas pesquisas
desmentem a concepção substancialista tradicional que separava a alma
do corpo, as teorias baseadas sobre as estruturas centrais e periféricas e
a relação mecânica de estímulos e respostas. Ao contrário, para James, a
psique humana está estritamente ligada à vida corporal, sente o influxo do
ambiente e reage ativamente a ele, é uma atividade integrada e coordenada
de estímulo-movimento-sensação-unidade. No seu livro mais importante,
Princípios de psicologia (1890), James mostra que as emoções têm base
na experiência fisiológica e que a mente não é uma realidade distinta do
mundo natural, mas um aspecto desse, um instrumento para se adaptar ao
ambiente. Qualquer conexão que acontece na psique não é uma relação
colocada pela mente soberana sobre os átomos dispersos da experiência,
como ocorria com as “formas transcendentais” de I. Kant. Para James, as
elaborações teóricas são experimentáveis e materializáveis e acontecem na
própria experiência. Desta forma, mais do que pelo seu conhecimento
abstrato, o valor da psicologia se mede pelos seus efeitos, pela sua eficácia,
pela sua engenharia de adaptação e melhorias da vida.
A partir dessas premissas, em Existe a consciência? (1904), James
tenta mostrar que a “consciência” não passa de uma corrente de pensamento
(stream of thought) que flui e muda a cada momento, que evolui com a
fluidez do indivíduo, e é impossível capturá-la em doutrinas metafísicas.
Originada na experiência, a nossa consciência, de um lado, é individual,
privada, transeunte (‘percepto’, percebido), e de outro, é intersubjetiva e
compartilhada, de modo a formar ‘conceitos’ comuns. Em relação ao que
se costuma chamar de verdade, James sustenta que o nosso conhecimento
é a capacidade de operar, é uma relação satisfatória (satisfactoriness) com
outras partes da nossa experiência, é mensurado pela sua adequação

51
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

e utilidade. Quer dizer, uma ideia é tornada verdadeira pelos fatos que
podemos verificar e confirmar e “na medida em que acreditar nela pode ser
útil para nossas vidas” (JAMES, 1979, p. 67).
Para James, mais do que a mente, é a ação da vontade subjetiva
que orienta de forma utilitarista as atividades intelectuais. Imbuído de
otimismo, acreditava que o mundo poderá ser melhor, se acreditarmos
nessa possibilidade. Em A vontade de crer (1897), afirma que “na nossa
natureza a área da vontade domina tanto a área da conceitualização quanto
a dos sentimentos” (JAMES, 1984, p. 138). Neste sentido, tanto as “nuas
verdades da física”, como as mais elevadas atividades intelectuais de criar
conceitos e de prever, são movidas pelas nossas paixões e pelas intenções
subjetivas (JAMES, 1984, p. 143-153).
Sem desvalorizar o método científico, que nos garante a fidelidade
aos fatos e à realidade, James sustenta que é preciso consultar as “razões do
coração” quando se trata das questões fundamentais da existência humana,
quando se faz necessário encontrar o sentido da vida, tomar as decisões
pessoais e estabelecer os valores a serem seguidos. São essas razões que nos
dizem se determinados fatos satisfazem ou não as nossas exigências. Assim,
também, são a capacidade de iniciativa e a criatividade do indivíduo, o
relacionamento com os outros, a tolerância e a pluralidade das opiniões
que nos fazem sentir parte do “grande partido internacional e cosmopolita
da liberdade, o partido da consciência e da inteligência”.
Longe da metafísica e das teorias epistemológicas clássicas, o
pragmatismo inaugurado por Peirce e James apresentava-se como “um
método, e em segundo lugar, uma teoria genética do que se entende por
verdade” (JAMES, 1980, p. 25). Desta forma, o conhecimento e a verdade
se fazem na pesquisa, na experiência, no ato de cognição, em operações que
se podem justificar e convalidar. Ancorada na realidade concreta e avaliada
pelos efeitos, a verdade não depende da adequação a princípios estabelecidos
nem de teorias representacionais, mas da verificação na prática: “Verdadeiro
é um nome para qualquer ideia que inicie o processo de verificação, útil
é o nome para a sua função completada na experiência” (JAMES, 1980,
p. 73). Não tendo como objetivo descobrir “os princípios”, as primeiras
coisas, como na filosofia tradicional, mas os “frutos, as consequências, os
fatos”, o pragmatismo repele as questões inúteis e visa a prática, a utilidade,

52
Gramsci e seus contemporâneos

a ação. Orienta o conhecimento para resolver problemas, busca melhorias


para a vida humana, procura pragmaticamente o equilíbrio e o consenso
entre as partes sem recorrer a teorias especulativas, doutrinas e ideologias:
O pragmatismo volta as costas de uma vez por todas a uma série de
hábitos inveterados, caros aos filósofos profissionais. Afasta-se da
abstração e da insuficiência, das soluções verbais, das más razões a
priori, dos princípios fixos, dos sistemas fechados, com pretensão ao
absoluto. Volta-se para o concreto e o adequado, para os fatos, a ação
e a força, o que significa fazer prevalecer a atitude empirista sobre
a racionalista, a liberdade e a possibilidade sobre o dogma, sobre o
artifício e a pretensão da verdade definitiva (JAMES, 1980, p. 80).

James e os pragmatistas procuravam mostrar suas posições


avançadas estabelecendo uma contraposição entre a Europa especulativa,
tradicional, retórica, ideológica e autoritária e o espírito americano prático,
aberto, livre, dotado de capacidade criativa, de dinâmica científica e de
propulsão para o futuro. Mas, Gramsci não se deixa levar por impressões.
Embora apresentasse algumas assonâncias com a filosofia da práxis, o
“empirismo-pragmatismo” (Q 1, § 105, p. 97) - como o qualifica - não
podia ser entendido “sem levar em conta o quadro histórico anglo-saxão em
que nasceu e se difundiu. Se é verdade que toda filosofia é uma ‘política’ e
que todo o filósofo é essencialmente um homem político, isto é tanto mais
verdade para o pragmatista que constrói a filosofia ‘utilitaristicamente’ em
sentido imediato” (Q 17, § 22, p. 1925). As “novidades” trazidas pelo
pragmatismo americano, na verdade, não conseguiam eliminar o fato de
que antes do seu surgimento diversos autores e movimentos culturais,
aprofundando um processo desencadeado desde o início da modernidade
na própria Europa e indo além do empirismo, haviam praticamente
golpeado de morte a metafísica e a velha ordem amalgamando a filosofia
com a ciência, fermentando revoluções sociais e políticas e originando a
filosofia da práxis, culminância desse processo. A novidade que pretendia
o pragmatismo, portanto, não podia ser estabelecida nesse sentido.
Pelo contrário, em comparação com o imediatismo e a praticidade do
pragmatismo, observa Gramsci, o filósofo tipo italiano ou alemão vincula-
se à prática por meio de diversas mediações e acaba se tornando “mais
‘prático’ que o pragmatista que julga a partir da realidade imediata, muitas

53
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

vezes vulgar, enquanto o outro se coloca um objetivo mais elevado e


procura assim elevar o nível cultural existente (quando consegue, é claro)”
(Q 17, § 22, p. 1925).
Mais do que uma fronteira avançada em termos teóricos, o
pragmatismo era a expressão, isto sim, das novas formas de produção de
um capitalismo de ponta, em um país que se estruturava para assumir a
hegemonia mundial. Entre o final do século XIX e o início de XX, de
fato, os Estados Unidos despontavam como um mundo promissor diante
da Europa convulsionada por crises e grandes conflitos. A expansão da
indústria, da ciência e da tecnologia, o ritmo vertiginoso das atividades
econômicas e dos investimentos, a organização social e urbana, a difusão
da democracia e de uma nova cultura liberal exigiam um pensamento ágil,
experimental, prático, capaz de promover as liberdades e os interesses do
indivíduo, de atender às mudanças, de prever resultados e consequências.
Contra os sistemas burocratizados e esclerosados, os autoritarismos
religiosos e ideológicos, os pragmatistas passavam a considerar a ciência
e as novas descobertas como caminho prático a ser percorrido para
a constituição de uma sociedade livre e criativa, organizada por um
liberalismo renovado, capaz de neutralizar as lutas de classes e deter o avanço
do comunismo, tidos como elementos desagregadores (DEWEY, 1997,
p. 112-114). Era o que sustentava John Dewey (1859-1952), o terceiro
pioneiro do pragmatismo, aluno de Peirce na universidade J. Hopkins.
Fascinado pelos escritos e as experiências psicológicas de James, que o
afastam de Kant e de Hegel, Dewey dedica-se a ampliar a nova concepção
de mundo que está se desenhando nos Estados Unidos (DEWEY, 2002) e
orienta seus estudos para desenvolver “uma adequada filosofia americana”
(DEWEY; HICKMAN, 1967-1991, v. 3, p. 144) em sintonia com o
“modelo democrático de vida” (DEWEY; HICKMAN, 1967-1991, v. 8,
p. 22) e a construção de uma “nova civilização” (DEWEY, 1968, p. 109).
Esta “concepção americana da vida”, reivindicada pelos pragmatistas e
difundida no mundo por diversos intelectuais e escritores (Q 1, § 105, p.
97), chamava a atenção de Gramsci.

54
Gramsci e seus contemporâneos

Ecos de W. James em Gramsci


Não é possível estabelecer com exatidão o conhecimento que
Gramsci tinha de W. James e da literatura do pragmatismo americano,
hoje, muito extensa e disponível. Nas Cartas do cárcere, W. James aparece
explicitamente só na carta de 1929, mencionada acima, e nunca se fala
de Peirce ou Dewey. Nos Cadernos do cárcere, há algumas referências a W.
James, enquanto J. Dewey é mencionado uma só vez (Q 4, § 76, p. 516) e
nunca C. Peirce. Pode-se alegar que Peirce, embora tenha sido o iniciador
do pragmatismo, na verdade, teve seu reconhecimento tardiamente,
enquanto os primeiros escritos de Dewey começaram a circular na Itália
quando Gramsci estava preso e a maioria depois da sua morte. De qualquer
modo, nas anotações de Gramsci, a referência a W. James é mais recorrente
e vinculada ao pragmatismo americano.
Além das referências diretas, um eco das teorias de W. James
pode ser percebido quando Gramsci se adentra na análise dos hábitos e
dos comportamentos coletivos, das habilidades para o trabalho industrial,
da disciplina e das aptidões ao estudo que os subalternos precisam adquirir
com muito esforço (Q 12, § 2, p. 1549). Atento aos processos produtivos
da indústria moderna, à psicologia e à política de massa, Gramsci encontra
nos escritos de W. James elementos para compreender como “os novos
métodos de trabalho são indissociáveis de um determinado modo de viver,
de pensar e de sentir a vida” (Q 22, § 11, p. 2164) e de que modo o
americanismo se tornava “o maior esforço coletivo até hoje ocorrido para
criar com inaudita rapidez e com uma consciência do fim nunca vista na
história, um novo tipo de trabalhador e de homem” (Q 22, § 11, p. 2165).
Ainda que de forma indireta, é possível encontrar em Gramsci
reflexos de algumas ideias de W. James sobre o “hábito”, os atos voluntários
e involuntários, a atividade muscular-nervosa e a centralidade da
vontade. O psicólogo americano sustentava que nós tendemos a seguir
comportamentos repetidos e a adquirir hábitos ao longo do tempo que
nos servem para canalizar energias individuais, sem reprimi-las, de modo a
impedir a sua dispersão e economizar tempo e esforço diante de situações
semelhantes. A conduta persistente de tornar automáticos e habituais a
maioria dos atos úteis, assimilada principalmente na juventude, geraria
uma gradual mutação da estrutura nervosa facilitando os movimentos,

55
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

tornando-os mais fluentes e ‘espontâneos’, evitando que o individuo


tenha um dispêndio de energias excessivo na ativação do autocontrole
ou quando se depara diante de uma nova situação. Com isso, sem muito
esforço, se conseguiriam dominar também diversas atividades necessárias
para viver em sociedade, como, por exemplo, seguir leis estabelecidas,
respeitar direitos, observar convenções coletivas, etc. Tais mecanismos
criariam um “conformismo útil” que permitiria deixar a mente mais livre
para desempenhar suas tarefas (JAMES, 1950, v. 1, cap. 5). Desta forma,
a continuidade dos hábitos adquiridos e educados daria estabilidade à
democracia e a própria coerção do poder político seria reduzida ao mínimo.
De fato, para James, não há sistema mais sólido e legítimo do que aquele
construído sobre a ‘espontaneidade’ e a confirmação dos hábitos.
Há reflexões em Gramsci que parecem comungar com a separação
estabelecida por James entre atividade muscular-nervosa nas modernas
habilidades de trabalho e cérebro que ganha mais liberdade para outras
ocupações (Q 22, §12, p. 2170-71) e na disciplina que é preciso adquirir,
principalmente na infância e juventude. O que tem levado alguns analistas
a afirmar que a relação entre moral e psicologia, entre atos voluntários
e involuntários presente em Gramsci deve muito a James (MANCINA,
1999, p. 326). Um eco das ideias de James pode ser ouvido, também,
em algumas afirmações de Gramsci sobre o conformismo: “Há um
conformismo ‘racional’, ou seja, correspondente à necessidade, ao mínimo
esforço para obter um resultado útil e a disciplina de tal conformismo
deve ser valorizada e promovida, de modo a torná-la ‘espontaneidade’ ou
‘sinceridade’” (Q 14, § 61, p. 1719-20). A própria construção do “senso
comum”, de um consenso assimilado pelos hábitos, dos comportamentos
sociais e dos códigos linguísticos que cimentam a sociabilidade, pode ser
vista em conexão com a visão de James. Também as considerações deste
sobre a religião têm dado margem para deduzir que, mais do que de Weber,
são do pragmatista americano as influências que devem ter levado Gramsci
a ponderar a eficácia prática do marxismo entendido como fé religiosa.
Contrariamente aos empiristas e materialistas que vinculavam a experiência
religiosa a fenômenos primitivos e alienantes, de fato, James reconhece que
o universo da religião abre os homens para um mundo fascinante que pode
mudar sua existência. O estado místico, para James, amplia a capacidade

56
Gramsci e seus contemporâneos

perceptiva e as possibilidades de conhecimento restritas à razão. Mas, é


preciso ressaltar que analisando o livro de James sobre As diversas formas
da ciência religiosa. Estudo sobre a natureza humana, de 1904, Gramsci
observa que pela falta de separação entre religião e vida cultural, já ocorrida
na Europa desde a “Renascença e a Contrarreforma”, se explica como “o
pragmatismo torna-se um ‘partido ideológico’ [imediato] mais do que
um sistema de filosofia”, revelando assim “o imediatismo do politicismo
filosófico pragmatista” (Q 17, § 22, p. 1925).
Gramsci chega a essas avaliações porque conhece também o
pragmatismo italiano. De Mario Calderoni e Giovanni Vailati possui o
livro O pragmatismo. No cárcere, consegue a coleção da revista “Leonardo”
(LC, 14/05/31), “o melhor repertório de cultura geral” (LC, 23/03/31), na
qual colaboram Giovanni Papini, Giuseppe Prezzolini, Giovanni Vailati e
Mario Calderoni, mas também W. James, C. Peirce e Schiller. Reconhece
na revista “Leonardo” um instrumento significativo voltado para uma
“reforma moral e intelectual da vida italiana” (Q 5, § 34, p. 570). Levando
em consideração esse clima, é possível ver uma ressonância e um contraponto
à revista dos pragmatistas italianos no ideal de educação do tipo “moderno
de Leonardo” retratado na carta do cárcere de 1 de agosto de 1932. Gramsci
acompanha as discussões dos pragmatistas italianos sobre a distinção entre
“conhecer e querer” enfrentadas por Vailati, entre “atos voluntários e
involuntários” enfatizados por Calderoni, sobre a influência da vontade
nas ações e no conhecimento evidenciada por Papini e Prezzolini. Estes
últimos, de fato, pendiam mais para um pragmatismo psicológico/místico,
enquanto Vailati e Calderoni ressaltavam as contribuições do pragmatismo
na lógica e na semiótica, uma separação de campo que na Itália reproduzia
as diferenças de temas que haviam caracterizado os pioneiros americanos.
Em relação à questão da linguagem, menciona os escritos de Vailati e anota
que “a concepção da linguagem de Vailati e de outros pragmatistas não lhe
parece aceitável” (Q 10, § 44, p. 1330).
A ligação de Papini com os temas de estudo de W. James também era
conhecida na Itália. No Prefácio escrito para o livro “Ensaios pragmatistas”
de W. James, traduzido em italiano, Papini expressa abertas simpatias com
“uma filosofia voluntarista e pluralista” (PAPINI, 1910, p. 7). Tendências
que se manifestam também no seu próprio livro “Pragmatismo”, onde

57
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Papini descreve o pensamento americano como uma filosofia que promove


“uma reforma dos instrumentos do pensamento [...] com sua aspiração a
uma maior potência da vontade e a uma eficácia direta do espírito sobre as
coisas.” (PAPINI, 1913, p. 10).
A centralidade da vontade tem levado alguns analistas a enfatizar
as influências de James (e do pragmatismo) sobre o pensamento de
Gramsci. Assim, C. Mancina (1999, p. 325) procura mostrar não apenas
que os conceitos de previsão e de psicologia do pragmatismo “se colocam
plenamente dentro da filosofia da práxis em sentido próprio”, mas, que
apresentam “indubitáveis tonalidades pragmaticistas”. No mesmo sentido,
N. Urbinati (1997, p. 296) afirma que “Gramsci pode ser aproximado
dos pragmatistas americanos porque, como eles, compreendeu a natureza
hegemônica da democracia propondo-a como trincheira avançada da
modernidade.”

Pragmatismo e marxismo: uma história de confrontos


Autores que apontam afinidades entre o marxismo e o pragmatismo
não faltam nos estudos comparados dessas duas correntes de pensamento,
praticamente contemporâneas. Já em 1912, R. Mondolfo (1968, p. 97-99)
indicava diversas semelhanças entre pragmatismo e “filosofia da práxis”
entendida simplesmente como “filosofia da ação”. Poucos anos depois, G.
Preti (1975, p. 273-275), ao considerar Marx como filósofo da ação, do
“pragma”, do “trabalho”, o aproximava do pragmatismo norte-americano
que “parecia seu irmão mais jovem”. Também, para B. Russell (1951, p.
138-143), o pragmatismo se sintonizava com as formulações de Marx nas
Teses sobre Feuerbach porque “para os dois o que importava não era conhecer
o mundo, mas transformá-lo”.
Como evidencia recentemente C. Meta (2004, p. 41-53),
não faltariam também assonâncias entre o pensamento de Gramsci e o
pragmatismo. Nos escritos de Gramsci, de fato, podem ser encontrados
elementos que fazem pensar a essa sintonia: a concepção imanente de
filosofia (Q 11, § 28, p. 1438; Q 16, § 80, p. 1226); o fim da filosofia
tradicional essencialista, inatista ou transcendental (Q 1, § 132, p. 119); a
oposição ao positivismo e a crítica ao racionalismo e ao idealismo (Q 11,

58
Gramsci e seus contemporâneos

§ 15, p. 1403-58); a superação de dualismos e dicotomias (Q 11, § 37, p.


1457); o abandono das abstrações e dos problemas inúteis e a construção
experimental e histórica do conhecimento (Q 11, § 22, p. 1426); a ênfase
na ação, nas práticas concretas, nos resultados verificáveis coletivamente
(Q 10, § 44, p. 1330); a valorização da ciência e da experiência (Q 11, §
45, p. 1467); a busca do consenso e o reconhecimento do senso comum (Q
11, § 12, p. 1380); o caráter histórico, social e superável do conhecimento
(Q 1, § 123, p. 114); a construção de uma educação democrática, criativa,
elaborada em conjunto, não hierárquica e autoritária (Q 10, § 44, p.1330).
Estas e outras questões, juntamente com uma certa proximidade
de linguagem, têm levado alguns autores a ignorar ou a secundarizar as
diferenças e as contraposições entre Gramsci e o pragmatismo. Pelos dados
que evidenciamos acima, no entanto, tais interpretações perdem de vista
o embate de fundo que Gramsci travou nos Cadernos com o neoidealismo
e o pragmatismo, consideradas como correntes modernas de pensamento
que assimilaram partes da filosofia da práxis e desfiguraram seu sentido
revolucionário. Além disso, mesmo com a elegância que o caracteriza e
as cautelas intelectuais que o levam a não aceitar um antiamericanismo
gratuito (Q 4, § 76, p. 515-16), Gramsci tem deixado juízos severos sobre
o pragmatismo. Não apenas em relação a Papini, retratado como “um
pequeno burguês cético e árido, sem caráter” (Q 14, § 14, p. 1670), com
um “diletantismo moral” e uma “atividade canalha” (Q 17, § 24, p. 1926),
mas, também, em relação a W. James e ao pragmatismo norte-americano
(e italiano). Ainda que reconheça a relevância de alguns aspectos, Gramsci
acima de tudo, ressalva neles insuficiências, contradições e perigos. De um
lado, anota: “Parece que eles [os pragmatistas] tenham percebido algumas
questões reais e as tenham ‘descrito’ com uma certa exatidão, embora não
tenham conseguido impostar os problemas e indicar a solução” (Q 10, §
44, p. 1330). Mas, por outro lado, deixa claro que o pragmatismo está
marcado pelo “imediatismo”, o “politicismo” e o “ideologismo”, que o
tornam menos “prático” do “filósofo italiano ou alemão” (Q 17, § 22, p.
1925). Na dinâmica do seu “pensamento em movimento”, a pergunta que
Gramsci se coloca no primeiro Caderno: “Pode o pensamento moderno
difundir-se na América, superando o empirismo-pragmatismo, sem uma
fase hegeliana?” (Q 1, § 105, p. 97), encontra uma resposta no Caderno 17,

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

onde se afirma que, à diferença de “Hegel [que] pode ser considerado como
o precursor teórico das revoluções liberais do séc. XIX, os pragmatistas, no
máximo, têm ajudado a criar o movimento do Rotary Club ou a justificar
todos os movimentos conservadores e reativos” (Q 17, § 22, p. 1926). O
americanismo, conclui no Caderno 22, “não é um novo tipo de civilização
pelo fato de que nada tem mudado no caráter e nas relações dos grupos
fundamentais” (Q 22, § 15, p. 2180).
Tais afirmações podem parecer duras e extremadas, mas, retratam
essencialmente as posições sobre as quais Gramsci se atesta quando enfrenta
o pragmatismo. De fato, da mesma forma como desvela as armadilhas do
materialismo mecanicista, da filosofia de Croce e do seu transformismo,
deixa claro que a filosofia americana, por trás de sua aparência inovadora,
mina os horizontes da filosofia da práxis voltada a construir a hegemonia
das classes subalternas. A concepção evolucionista e naturalista do
pragmatismo, de fato, não se coaduna com as perspectivas histórico-
dialéticas e revolucionárias do marxismo. Não surpreende, portanto, se
Gerratana (1951, p. 478-487) enfatiza a incompatibilidade entre os
pressupostos do marxismo e os do pragmatismo e Lukács (1959, p. 787ss)
aponta no pragmatismo uma ideologia funcional ao imperialismo e ao
capitalismo americano.
As interpretações que vislumbram afinidades ou até influências de
W. James e do pragmatismo sobre Gramsci perdem ainda mais consistência
quando se examinam de perto os contrapostos significados que emergem
de conceitos aparentemente comuns. Há uma profunda diferença, por
exemplo, entre o conceito central de experiência no pragmatismo e o
conceito de práxis que configura o marxismo de Gramsci (SEMERARO,
2008, p. 13-28). Enquanto a filosofia “prática” do pragmatismo é moldada
pela inteligência experimental e procura a utilidade e o resultado para
melhorar o que está estabelecido, a filosofia da “práxis” de Gramsci é uma
ação revolucionária dos subalternizados que se organizam politicamente a
partir das contradições e das injustiças que inviabilizam a própria existência.
Em Gramsci, não se trata de chegar a um ajuste com o ambiente, mas,
de elaborar um projeto político alternativo de sociedade, construído pelas
classes subalternas em disputa hegemônica com as classes dominantes.
Neste sentido, para Gramsci, a vontade não é só uma expressão otimista

60
Gramsci e seus contemporâneos

de empreendimento individual, mas a ação de uma “vontade coletiva


nacional-popular”, de uma “consciência operosa da necessidade histórica,
protagonista de um real e efetivo drama histórico” (Q 13, § 1, p. 1559).
Assim, também, quando se confrontam o conceito de “hábito” de James
e o de “conformismo” de Gramsci emergem profundas diferenças. Mais
do que uma adequação ao ambiente, em Gramsci o “conformismo” está
relacionado ao conceito de “catarse”, um processo de subjetivação e de
transformação consciente da realidade objetiva colocado em marcha
por trabalhadores politizados. Neste horizonte, o árduo processo de
modernização do trabalho e da cultura (Q 22, § 10, p. 2161) não prepara
apenas pessoas mais adaptadas e eficientes, mas forma sujeitos livres e
socializados porque voltados a criar uma “sociedade regulada”, dirigida
por eles mesmos. Por isso, Gramsci sinaliza a grande distância entre a
noção naturalista de “instinto construtivo” dos trabalhadores evocado
por James e a distinção feita por Marx entre o instinto das abelhas e a
criatividade consciente do trabalhador (Q 7, § 32, p. 880). Em Gramsci, a
“regulação dos instintos” pela educação, pelo trabalho e a cultura, embora
disciplinar, não é um mecanismo coercitivo para se adaptar a um sistema
estabelecido, mas um processo teórico-político consciente conduzido pelas
classes subalternas em vista de uma sociedade dirigida por autoprodutores
e autogovernantes. Estes, na criação de uma verdadeira civilização do
trabalho, precisam “encontrar o sistema de vida ‘original’ e não de marca
americana, para tornar ‘liberdade’ o que hoje é ‘necessidade’ (Q 22, §
15, p. 2179). Trata-se, portanto, de uma outra concepção de sociedade
que não se conjuga com o liberalismo naturalista, mas visa subverter a
estrutura social, política e econômica do próprio sistema capitalista que os
pragmatistas nunca questionam, pelo contrário, modernizam e fortalecem.

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63
Sigmund Freud

Livio Boni1

Para introduzir a relação de Gramsci com o fundador da


psicoanálise é preciso partir de uma primeira constatação histórico-
filológica: Gramsci não teve oportunidade de conhecer Freud e é provável
que ele o tenha lido apenas indiretamente, como sugerido em uma carta
escrita a Tania em 20 de abril de 1931 em que se declara interessado em
receber a tradução francesa de Introduzione alla psicoanalisi [Introdução à
psicanálise], indicada por Sraffa, para em seguida adicionar: “Li algumas
coisas sobre a psicanálise, artigos de revistas especialmente; em Roma,
Rambelinsky me emprestou alguma coisa para ler sobre este tema.” (L, p.
415)2.
Declaração lacônica porém precisa o suficiente para confirmar a
impressão provocada pela leitura dos vários apontamentos nos Quaderni
em que está em questão Freud, o “freudismo” ou a “psicanálise” 3: o juízo
moldado por Gramsci sobre a psicoanálise deriva de uma avaliação de seus
efeitos ideológicos indiretos, ou de seu impacto cultural, mais do que de
um juízo de mérito sobre a disciplina e a racionalidade freudiana enquanto
tal. No entanto, Gramsci poderia ter acesso mais direto à fonte freudiana,
não apenas por ser poliglota (quase toda obra de Freud foi traduzida para

1
Tradução Sabrina Areco.
2
“L” refere-se às Lettere dal carcere (GRAMSCI, 1996) e “Q” aos Quaderni del carcere (GRAMSCI, 1975).
3
Gramsci hesita, nas Lettere como nos Quaderni, entre os termos “psicoanálise”, mais próximo da variante alemã
de “psico-análise”, e a forma “psicanálise”, mais coloquial e afrancesada, e termina por optar pela última forma.

65
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

o italiano somente mais tarde4), mas também em razão de sua estadia


em Viena, onde permaneceu entre dezembro de 1923 e abril de 1924 na
qualidade de delegado do Comintern, ou na Rússia em meados dos anos
de 1920, quando a psicoanálise era ainda debatida entre os bolcheviques e
na Internacional.
Apesar da ausência de uma relação direta, orgânica e aprofundada
de Gramsci com Freud e a psicoanálise, a leitura das notas “freudianas”
espalhadas pelos Quaderni constituem muito mais do que uma mera
curiosidade erudita, revelando os rudimentos e as premissas de uma
reflexão de absoluta originalidade, tanto em relação ao panorama filosófico-
ideológico da Itália entre a I e II Guerra Mundial, quanto no contexto do
pensamento marxista em geral e não deixa de suscitar certa inflexão em
alguns temas maiores da reflexão gramsciana.
Seu exame exigirá, portanto, uma reconstrução paciente das
passagens dos Quaderni, esporádicas mas repletas de tensões teóricas,
através das quais se pode dar conta - mas também colocar em perspectiva -
a singularidade da reflexão de Gramsci em relação à cultura marxista da III
Internacional e ainda em relação à cultura italiana, dominada no período
do entre guerras pelo idealismo na filosofia, pelo positivismo no campo
científico e pelo pedagogismo católico em matéria de moral5.
À este primeiro volet, conduzido sobretudo nos Quaderni, pode-se
adicionar ou sobrepor um segundo, relativo ao confronto com a psicoanálise
que Gramsci estabelece nas Lettere del carcere. Neste segundo, a relação com
Freud se estabelece de fato sempre indiretamente, através da mediação de
sua esposa Giulia que se valeu de um “tratamento psicanalítico” na URSS
no início dos anos de 1930 para curar um grave exaurimento acompanhado
por esporádicas crises de epilepsia. Infelizmente, não existem documentos
sobre a terapia de Giulia Shucht e nem testemunhas diretas (pelo menos de
acordo com o nosso conhecimento), em uma época em que a psicoanálise,
do ponto de vista ideológico, não era mais bem aceita na União Soviética.
4 Nos anos de 1920 somente alguns escritos de Freud, como I tre saggi sulla teoria sessuale [Três ensaios sobre
teoria da sexualidade] e Cinque conferenze di psicoanalisi [Cinco lições de psicanálise], ambas traduzidas por
Levi Bianchini; ou Introduzione alla psicoanalisi [Introdução à psicanálise] e Il delirio e il sogno nella Gradiva di
Wilhelm Jensen [Delírios e sonhos em “Gradiva” de Wilhelm Jensen], traduzidos por Edorado Weiss, estavam
disponíveis em italiano.
5
Para uma compreensão histórica geral da influência cultural da psicoanálise na Itália entre as duas guerras
mundiais, cf. David (1990).

66
Gramsci e seus contemporâneos

O fato é que tal circunstância dará ensejo para um verdadeiro


diálogo entre Gramsci e Giulia sobre o alcance da ciência freudiana, ou ao
menos para um monólogo dialogante nas Lettere; diálogo cuja consistência
e importância parecem, em grande parte, ter escapado aos intérpretes de
Gramsci e que deve ser apresentada em sua textualidade a fim de analisar
este segundo aspecto da relação oblíqua absolutamente mediada de
Gramsci com Freud.
Somente no curso desta revisão e a partir de articulações precisas
será possível estabelecer os pontos de convergências e de distanciamentos
entre a elaboração mais abstrata dos Quaderni e aquela vívida e subjetiva,
mas nem por isso irrefletida, das Lettere.

A psicoanálise como prosseguimento das luzes


Dispondo-se a confiar no fio condutor da cronologia dos Quaderni,
sempre frágil e incerto (FRANCIONI, 1984), umas das primeiras notas
sobre o tema encontra-se já no Quaderni 1:
A difusão da psicologia freudiana parece ter como resultado o
nascimento de uma literatura típica do século XVIII; o ‘selvagem’, em
sua forma moderna, é substituído pelo tipo freudiano. A luta contra
a ordem jurídica é feita através da análise psicológica freudiana. Este
é um aspecto da questão, ao que parece. Não tenho podido estudar a
teoria de Freud e não conheço outro tipo de literatura assim chamada
‘freudiana’: Proust-Svevo-Joyce (Q 1, § 33, p. 26).

Por trás da aparência extemporânea, esta primeira ocorrência de


Freud entre as notas carcerárias contém diversas estratificações destinadas
a se repetirem e a perdurarem:
− a analogia entre a psicanálise e um revival do rousseaunismo;
− a localização da ruptura introduzida por Freud em um plano mais
antropológico-jurídico do que epistemológico ou psicológico;
− a confirmação da ausência de aproximação direta com a obra de Freud;
− a percepção diante dos efeitos estéticos-literários da subversão freudiana.

67
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Quanto ao primeiro ponto - a analogia entre o homo psicoanaliticus


e o bon sauvage - ele aparece em uma passagem de uma carta a Giulia quase
contemporânea à nota citada acima:
É estranho e interessante – escreve Gramsci em 30 de dezembro de
1930 – como a psicoanálise de Freud está criando, especialmente na
Alemanha (o que me parece a partir das revistas que leio), tendências
similares àquelas existentes na França do século XVIII e vai formando
um novo tipo de ‘bom selvagem’ corrompido pela sociedade, isto é,
pela história. O resultado é uma nova forma de desordem intelectual
muito interessante (L, p. 302).

Não há dúvida que o paralelo entre o bom selvagem e a concepção


da sexualidade infantil freudiana pode parecer um tanto ingênuo para
quem conhece a concepção freudiana do “perverso polimorfo”6 e parece à
primeira vista endossar a vulgata freudo-marxista segundo a qual a pulsão7
nada mais é do que energia positiva corrompida e pervertida pela ordem
social e familiar.
No entanto, observando mais de perto, a questão não pode
ser colocada propriamente nestes termos: o que interessa a Gramsci, ao
estabelecer o paralelo Freud-Rousseau, não é tanto uma identificação
teórica e sim uma analogia entre os efeitos ideológicos suscitados pela
psicoanálise através da criação de “tendências” - ou de um “tipo” - em
nítida contradição com a moral de origem jesuítica (Q 1, § 123). A
“espontaneidade” rousseauniana é para Gramsci um mito pedagógico cujo
alcance, em relação ao império do educatio jesuítico, deve ser avaliado
dialeticamente. E aos seus olhos algo semelhante parece reproduzir-
se no freudismo, sobretudo na medida em que este dá origem a um
questionamento da moral paternalista dominante e sua expressão jurídica
através da exaltação do conflito pais-filhos:
A teoria de Freud, o complexo de Édipo, o ódio pelo pai-patrão,
modelo, rival, expressão primeira do princípio de autoridade –
colocado na ordem das coisas naturais. A influência de Freud sobre
a literatura alemã é incalculável: ela está na base de uma nova ética
revolucionária (!). Freud deu um aspecto novo ao eterno conflito entre

6
cf. Sigmund Freud, Tre saggi sulla sessualità (1905).
7
N.T.: No original, pulsionalità.

68
Gramsci e seus contemporâneos

pais e filhos. A emancipação dos filhos da tutela paterna é a tese em


voga entre os romancistas atuais. Os pais abdicam de seu “patriarcado”
e fazem uma honrosa reparação suas culpas diante dos filhos, cujo senso
moral ingênuo é o único capaz de quebrar o contrato social tirânico e
perverso, de abolir as coerções de um dever mentiroso (Q 3, § 3, p
288)8.

Assim, se a analogia entre Rousseau e Freud subsiste, ela se baseia


na comum função dialética de ruptura com a moral dominante e não em
uma afinidade filosófica tout court. A elaboração de tal analogia, aliás, não
impedirá Gramsci de se mostrar bastante crítico diante da reabilitação das
teses neo-rousseaunianas na União Soviética em uma carta importante à
Giulia que teremos oportunidade de rever.
A partir destas primeiras conexões, baseadas na avaliação
presente nos Quaderni da contribuição freudiana indireta (a influência
“incalculável” de Freud na literatura alemã), pode-se inferir um primeiro
postulado gramsciano relativo à psicoanálise e ao freudismo, válido para
a maioria de suas reflexões sobre o assunto: a psicoanálise constitui uma
forma de racionalismo moderno e de prolongamento do Iluminismo e
não é, de nenhum modo, uma forma de indulgência irracionalista como
sugerido pela vulgata marxista de matriz terceiro-internacionalista9.

A ideologia versus a ideologia?


Uma mudança implícita, mas substancial, de Gramsci em relação
à abordagem marxista da psicoanálise está na nota “Conceito de ideologia”
do Quaderni 4, retomada quase literalmente no Quaderni 11. Esboçando
uma verdadeira arqueologia sumária do conceito, Gramsci recorda como:
A ‘ideologia’ era um aspecto do ‘sensualismo’, ou seja, do materialismo
francês do século XVIII. O seu significado originário era ‘ciência
das ideias’ e, uma vez que a análise era o único método reconhecido
e aplicado na ciência, significava ‘análise das ideias’, isto é, ‘busca da
origem das ideias’. As ideias devem ser decompostas em seus ‘elementos’

8
Gramsci enumera alguns exemplos ‘menores’ deste gênero de literatura em âmbito alemão.
9
O que vale para o importante escrito de Mikhail Bachtin, Il freudismo [O freudismo], de 1927. Note-se como
mesmo o termo “freudismo” estava estabelecido no ambiente marxista e designava uma indevida extensão da
psicoanálise como Weltanschauung, como “visão de mundo” (ASSOUN, 2001, p. 32-35).

69
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

originais e estes não podem ser outra coisa que não as ‘sensações’: as
ideias derivam das sensações (Q 11, § 63, p. 1490).

No prosseguimento da nota Gramsci acena para os limites de


tal abordagem, muito facilmente conciliável com a fé na “potência do
Espírito”, como em Manzoni, ao menos até a descoberta do pensamento
de Rosmini. Um papel privilegiado é reconhecido a Destutt de Tracy,
como “eficaz propagador literário da ideologia”, juntamente com Cabanis
(Rapports du Physique et du Moral), Bourget, Taine e Stendhal. E neste
ponto insere a menção a Freud como o “último dos Ideólogos” (no sentido
de Idéologues):
Como o conceito de Ideologia de ‘ciência das ideias’ de ‘análise sobre
a origem das ideias’ passou a significar um determinado ‘sistema de
ideias’ deve ser examinado historicamente, pois logicamente o processo
é fácil de entender e compreender. Pode-se afirmar que Freud é o
último dos Ideólogos e que um ‘ideólogo’ é De Man, pelo o que é
tanto mais estranho o entusiasmo de Croce e dos croceanos por De
Man, se não existisse uma justificação ‘prática’. Deve-se examinar como
o autor do Ensaio Popular tenha permanecido ligado à Ideologia, ao
passo que a filosofia da práxis representa uma nítida superação que
se contrapõe historicamente à Ideologia. Mesmo o significado que o
termo ‘ideologia’ assumiu na filosofia da práxis contém implicitamente
um juízo de desvalor e exclui que para os seus fundadores a origem das
ideias deve ser procurada nas sensações e portanto, em última análise,
na fisiologia: esta mesma ‘ideologia’ deve ser analisada historicamente,
segundo a filosofia da práxis, como uma superestrutura (Q 11, § 63,
p. 149I).

Sem se deter nesta ocasião em referências conjunturais à figura


de Henri De Man, que é muitas vezes discutida nos Quaderni10, pode-se
extrair desta passagem uma série de posições fundamentais do pensamento
de Freud destinada a se tornar um plano de fundo no confronto teórico de
Gramsci com o fundador da psicoanálise:

10
Henri de Man (1885-1953), intelectual, homem político e diplomata belga, influente no milieu progressista
entre as duas guerras mundiais, é autor de alguns importantes ensaios como Zur psychologie des Sozialismus
(1925), Der kampfe um die Arbeitsfreude (La joie du travail, 1927), Le socialisme constructif (1933) e ainda Au-
delà du nationalisme (1946). Alvo polêmico importante nos Cadernos, De Man não hesitava aplicar paradigmas
psicologizantes na análise das relações sociais para enfrentar o marxismo, encontrando apoio, entre outros,

70
Gramsci e seus contemporâneos

- a psicoanálise é uma ideologia no sentido iluminista de uma análise


materialista dos elementos que constituem o pensamento;
- Freud é, portanto, considerado e criticado como o último
representante de uma ideologia cujo significado foi superado pela
concepção dialética-materialista (marxiana) da ideologia, mas
cuja mudança de sentido permanece ainda por “ser considerado”
plenamente, “historicamente”;
- a filosofia da práxis reconhece, portanto, o valor dialético da
ideologia iluministicamente compreendida e ao mesmo tempo
apreende o seu “desvalor” como redução fisiologista e mecanicista,
no fundo ainda compatível com a sua própria suplementação
espiritualista (Manzoni, Cabanis, Bourget, Taine, Maurras,
Stendhal).

Poderia-se então concluir que a psicoanálise, aos olhos de Gramsci,


permanece assentada em um fisicalismo ingênuo e em tudo superado pelo
materialismo histórico. Mas esta seria uma conclusão tanto precipitada
quanto parcial. Melhor seria aplicar na leitura de Gramsci a mesma lógica
que ele utiliza na avaliação da função ideológica da psicoanálise: o fato de
que Freud pode ser indicado como “o último dos Ideólogos” na década
de 1930 revela uma função histórica-prática (no sentido da filosofia da
práxis) da psicoanálise que excede a sua genealogia ideal abstrata. Em
outros termos, trata-se para Gramsci de valorizar a importância (in)atual
do freudismo, os efeitos que ele pode produzir, mantendo o fato de que sua
“busca pela origem das ideias” permanece abstrato (“deshistorizado”) como
é o materialismo sensualista e, como tal, está exposto ao risco de prestar-se
como suplemento da consciência espiritualística.
Veremos na continuidade desta apresentação do confronto
indireto de Gramsci com Freud, tão fragmentário quanto singularmente
nos idealistas italianos e em Croce. Gramsci denúncia a incoerência teórica e o interesse puramente “prático”
da simpatia de Croce com as contribuições de De Man (cf. Q 10, § 26), recordando como tanto Croce como
seu aluno Guido De Ruggiero, autor da influente Storia della filosofia [História da Filosofia] em treze volumes
(1918-1948), tinham demonstrado desprezo e indiferença em relação a Freud (Gramsci considera, de forma
inapropriada, a obra Il superamento del marxismo de De Man como “uma derivação da corrente psicanalítica”).
Para uma análise minuciosa, ver Boni (2003). Sobre a relação geral entre o idealismo de Croce e Gentile com a
psicoanálise, cf. David (1963).

71
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

pertinente, como esta tensão entre a eficácia crítica da psicoanálise e a


sua pretensa ingenuidade epistemológica (do ponto de vista da filosofia da
práxis) revela-se fértil em Gramsci.
O que já pode ser estabelecido e destinado a não ser contradito
adiante é a tendência geral de Gramsci de não liquidar a psicoanálise
como ideologia, no sentido de pura construção superestrutural da má
consciência da moral burguesa, mas no lugar disso recuperar a “ciência
das ideias” iluminista, recuperação aparentemente anacrônica, mas que é
feita sob “a base de uma nova ética revolucionária”, com a ampliação de
seu campo de aplicação: já não é mais apenas a crítica da metafísica, da
teologia, da autoridade e da moral religiosa, mas a crítica estendida para as
formas fundamentais da sociedade burguesa, como o paternalismo, que a
psicoanálise ataca em sua base sexual:
Também a literatura ‘psicanalítica’ - escreve Gramsci em uma
importante nota de Americanismo e fordismo – é um modo de criticar
a regulamentação dos instintos sexuais de modo ‘iluminista’, com a
criação de um novo mito do ‘selvagem’ com uma base sexual (incluídas
as relações entre genitores e filhos) (Q 22, § 3, p. 2148.).

É possível finalmente esclarecer os termos da contradição aparente


do juízo gramsciano sobre a natureza iluminista da psicoanálise: embora
ele pareça recuperar sic et simpliciter alguns temas filosóficos fundamentais
do iluminismo (elogio dos instintos + análise materialista de ideias morais),
tal recuperação é acompanhada por um deslocamento e alargamento de
perspectiva concernente agora à ordem familiar burguesa pós-iluminista,
na qual a “regulamentação dos instintos sexuais” coincide com uma certa
ordem simbólica e política.
É preciso, portanto, considerar os juízos gramscianos
dialeticamente sem reduzi-los ao âmbito gnoseológico ou epistemológico,
na medida em que a filosofia da práxis tenta conciliar a análise filosófica
com a abordagem da função histórico-prática das construções ideológicas,
recusando manter-se no plano puramente especulativo. A complexidade de
tal abordagem renuncia de uma vez por todas qualquer teoria do reflexo,
da emanação da superestrutura pela estrutura, para restituir à ideologia sua
própria autonomia dialética.

72
Gramsci e seus contemporâneos

Esta será a razão maior, no caso de Freud e da psicoanálise, pela


qual o interesse de Gramsci recai justamente em uma série de contradições
internas entre a subversão ética que suscitam e a sua sobredeterminação
filosófica materialista-espiritualista.

Centralidade e autonomia da “questão sexual”


Neste confronto à distância, indireto e fragmentário estabelecido
com Freud, um lugar de importância primordial e de particular densidade
crítica é ocupado pela nota “Alguns aspectos da questão sexual” e, mais em
geral, no Quaderni 22: Americanismo e fordismo. Caderno sui generis, como
já foi observado, devido ao fato de que Gramsci parece, em certa medida,
suspender a abordagem historicista da filosofia da práxis adotando uma
perspectiva mais estrutural e sociológica.
Desde o primeiro parágrafo a “questão sexual” foi inserida entre
os nove argumentos para reflexão indicados em seu plano de trabalho
provisório, que convergem justamente na análise do fordismo como
uma nova forma de racionalização não apenas produtiva mas totalizante
(ideológica, demográfica, jurídica e “sexual”). O interesse pela psicoanálise é
apresentado sob uma luz um pouco diversa em relação às notas precedentes
no oitavo ponto do plano de trabalho redigido em 1934: “A psicoanálise
(sua enorme difusão no pós-guerra) como expressão do aumento da coerção
moral exercida pelo aparato estatal e social sobre os indivíduos singulares e
da crise mórbida que tal coerção determina” (Q 22, § 3, p. 2140).
A avaliação da função da psicoanálise parece então colocar-
se em um horizonte preciso: o problema mais geral imposto pela
“regulamentação dos instintos” na sociedade taylorizada e na formação de
uma ética compatível com a massificação do trabalho produtivo. Este é
um aspecto fundamental e rico dentre os apontamentos esboçados por
Gramsci em Americanismo e fordismo, que partem da questão da regulação
econômica dos “instintos sexuais” para então indicar a contribuição central
da psicoanálise na edificação de uma nova ética de relação entre os sexos11.

11
Outro polo da análise psicológica do taylorismo e de suas formas disciplinares é representado, em Americanismo
e fordismo, pela psicologia de William James e, em particular, pela original recepção por parte de Gramsci da
noção de “habit”. cf. Mancina (1994).

73
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Reconstruamos, então, a passagem da questão sexual à questão feminina,


feita através da mediação discreta mas essencial da psicoanálise sem perder
de vista que esta transição teórica corresponde também a um certo balanço
feito por Gramsci a partir da “crise mórbida” da esposa Giulia e de um
diagnóstico sobre o “aumento da coerção moral exercida pelo aparato
estatal e social sobre os indivíduos singulares” na União Soviética – o que
será visto no item seguinte, em particular através das Lettere.
Por enquanto, voltamos à longa nota sobre a “questão sexual”,
que demanda uma análise minuciosa e completa e que constitui um “texto
C” substancialmente homogêneo para uma nota do primeiro caderno,
embora essa tenha assumido um alcance diferente na organização geral do
Quaderni 22.
A psicoanálise é evocada já no final do primeiro parágrafo do
Quaderni 22. Gramsci parte da hipótese segundo a qual o naturalismo dos
utopistas em matéria sexual corresponde a um tipo de sublimação do mal-
estar real imposto por toda construção social:
Obsessão pela questão sexual e perigos de tal obsessão. Todos os
‘projetistas sociais’ colocam em primeira linha a questão sexual e a
resolvem ‘candidamente’. É de se notar como em utopias a questão
sexual tem amplíssimo destaque e mesmo preponderância (a observação
de Croce de que as soluções de Campanella na Cidade do Sol não
podem ser explicadas através das necessidades sexuais dos camponeses
calabreses é inepta). Os instintos sexuais são aqueles que têm sofrido
a maior repressão por parte da sociedade em desenvolvimento; o seu
‘regulamento’, pelas contradições a que dá lugar e pelas ‘perversões’
que a eles se atribuem, parece mais ‘não-natural’ quando mais
frequentes neste campo as referências à ‘natureza’. Também a literatura
‘psicoanalítica’ é uma forma de criticar a regulamentação dos instintos
sexuais de forma por vezes ‘iluminista’, com a criação de um novo
mito do ‘selvagem’ com uma base sexual (incluídas as relações entre
genitores e filhos) (Q. 22, § 3, p. 2147-2148).

A nota prossegue articulando diversos aspectos sociológicos da


“questão”: as diferenças entre campo e cidade (Gramsci recusa a ideia, de
ascendência lombrosiana, segundo a qual as populações “degeneradas”
seriam os subproletariados de recente imigração urbana, uma vez que
observou que o “incesto” e outras “perversões” são comprovadas no

74
Gramsci e seus contemporâneos

campo e nas organizações familiares patriarcais); as mudanças na estrutura


da família também em razão dos “progressos da higiene” e do aumento
da expectativa média de vida; o problema da urbanização maciça como
mutação sócio-política da cidade que coloca “continuamente sobre novas
bases o problema da hegemonia”.
Somente ao fim desta breve e substancial discussão é anunciado
aquilo que, aos olhos de Gramsci, constitui o problema fundamental
colocado pela questão sexual:
A questão ética-civil mais importante ligada à temática sexual é aquela
da formação de uma nova personalidade feminina: até que a mulher
alcance não apenas uma real independência em relação ao homem,
mas também um novo modo de conceber a si mesma e a sua parte nas
relações sexuais, a questão sexual permanecerá repleta de características
mórbidas e necessitará ser cautelosa toda inovação legislativa.

Para depois prosseguir:


Toda crise de coerção unilateral no campo sexual carrega consigo um
desencadeamento ‘romântico’ que pode ser agravado com a proibição
da prostituição legal e organizada. Todos estes fatores tornam dificílima
a regulamentação do ato sexual e qualquer tentativa de criar uma nova
ética sexual que seja conforme com os novos métodos de produção e
de trabalho. Por outro lado, é necessário realizar tal regulamentação
e a criação de uma nova ética. Deve-se notar como os industriais
(especialmente Ford) são interessados nas relações sexuais de seus
funcionários e na sistematização geral de suas famílias; a aparência
de ‘puritanismo’ que assumiu este interesse (como no caso do
proibicionismo) não deve levar ao engano, a verdade é que não se pode
desenvolver o novo tipo de homem demandado pela racionalização
da produção e do trabalho até que o instinto sexual não esteja
conformemente ajustado e seja também esse racionalizado (Q 22, §
3, p. 2150).

Portanto, não existe para Gramsci nenhuma adaequatio entre


estrutura econômica e “ética sexual” - como sustenta uma grande parte do
marxismo ortodoxo, seguindo Engels (2006) - embora os dois planos devam
ser pensados em suas articulações fundamentais, como explicita o caso do
fordismo. A alternativa parece estar entre a hetero-coerção de tipo fordista,

75
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

imposta pelo modelo produtivo e suplementada pelo “puritanismo”, e o


“desencadeamento ‘romântico’” que se opõe a ele (Gramsci menciona
várias vezes o fracasso do proibicionismo e fala muitas vezes de uma “crise
de libertinagem”)12.
Nesta falsa alternativa de soluções, que são no fundo solidárias,
Gramsci contraporá o ideal de uma certa auto-regulamentação dos instintos
sexuais: “uma coerção de tipo novo, exercida por uma elite de uma classe
sobre a própria classe, não pode ser senão uma auto-coerção, isto é, uma
autodisciplina (Alfieri que se amarra em uma cadeira)” (Q 22, § 10, p.
2163)13.
A solução gramsciana parece aparentemente distante da perspectiva
psicoanalítica, na medida em que adota uma moral humanística ‘clássica’ de
autolimitação e de superação dos instintos. Mas, ainda uma vez, tal tomada
de posição deve ser compreendida dialeticamente e não axiologicamente.
O ideal de “autodisciplina” não constitui um modelo em si, mas a tentativa
de superar a falsa alternativa disciplinamento/libertinagem. Sem contar
o fato de que Gramsci não apenas compartilha a tese ‘antropológica’ de
Freud segundo a qual “os instintos sexuais são aqueles que têm sofrido a
maior repressão por parte da sociedade em desenvolvimento” (Q 22, § 3,
p. 2147) - resumida exemplarmente em O mal-estar da civilização (1930),
um texto pouco anterior a Americanismo e fordismo e que Gramsci não
teve certamente acesso - mas também reconhece na questão sexual uma
autonomia substancial em relação à questão econômica:
Os progressos da higiene – lê-se ainda na nota ‘Sobre a questão
sexual’ - que elevou a média da vida humana, colocam sempre mais
a questão sexual como um aspecto fundamental e distinto da questão
econômica, o que por sua vez coloca problemas complexos do tipo de
“superestrutura” (Q 22, § 3, p. 2149).

Tal reconhecimento da centralidade e da autonomia da questão


sexual em relação à questão econômica distingue Gramsci tanto do

12
Como em “’Animalidade’ e industrialismo”, no Q 22, § 10, que deve ser lida em paralelo com a nota “Sobre
a questão sexual”.
13
N.T.: Diz-se sobre o literato Vittorio Alfieri (1749-1803) que amarrava a si próprio em uma cadeira para
fazer suas leituras.

76
Gramsci e seus contemporâneos

economicismo do marxismo ortodoxo quanto da abordagem freudo-


marxista, que concordam ao considerar coincidentes a alienação sexual e a
alienação econômico-social.
Então, uma vez reconhecida a singularidade da abordagem
gramsciana, o problema será o seguinte: de que modo a psicoanálise pode
contribuir com a tarefa histórica que consiste em conceber uma nova e
superior forma de auto-regulamentação dos instintos? Antes de prosseguir
com a leitura dos fragmentos teóricos dos Quaderni para buscar os ulteriores
apontamentos que responderiam este problema, será indispensável realizar
um longo détour através das Lettere, onde a questão se apresenta de uma
forma diversa - menos reflexiva, mais subjetiva e quase performativa -
através do confronto com Giulia. Somente após este détour será possível
retornar aos Quaderni para apreciar em toda sua extensão as conclusões
formuladas pela reflexão gramsciana.

O encontro indireto com a psicoanálise: o tratamento de Giulia


(1929-1932).
A questão do “mal-estar” de Giulia constitui um dos temas centrais
da produção epistolar gramsciana e não apenas nas Lettere endereçadas
diretamente para a esposa, mas do epistolário em geral. É, portanto,
surpreendente constatar a pouca atenção que o diálogo de Gramsci com
Giulia acerca das razões de sua “doença” recebeu na abundante literatura
crítica sobre as Lettere, que alcançaram na Itália o lugar de um clássico
literário no período imediato do pós-guerra.
O tema biográfico - ou a leitura que reconduziu as Lettere ao gênero
de “escritos carcerários” ou da psicologia a que ele corresponde - parece ter
negado a peculiaridade e a singularidade do confronto de Gramsci com
a psicoanálise, que tem em Giulia um motivo subterrâneo e constante,
em particular na segunda parte. Outro ‘obstáculo epistemológico’ para a
valorização deste tema é sem dúvida a tendência à saturação do sentido
político das Lettere, fazendo da evolução da relação entre Giulia Schucht e
Gramsci um tipo de metonímia da evolução da relação entre o fundador
do partido comunista italiano e a URSS.

77
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Quanto a nós, tentaremos restituir a pertinência e a complexidade


da referência à psicoanálise na correspondência carcerária de Gramsci no
que diz respeito à questão feminina, cuja centralidade ética é apontada
nos Quaderni, mas que tem nas Lettere a sua transcrição subjetiva. Não se
trata, portanto, de psicologizar a leitura das Lettere, mas ao contrário, de
reconhecer-lhe uma modalidade própria de transcrição do pensamento e
da experiência de Gramsci, complementar embora diversa daquela presente
nos Quaderni.
Para tal, deve-se partir da carta a Giulia de 4 de novembro de 1930,
primeira ocorrência na qual a enfermidade da última foi explicitamente
tematizada:
Enquanto isso, aviso-lhe – escreve Gramsci – que ‘tudo está claro’,
que não existem mais mistérios para mim, ou seja, que estou
minunciosamente informado de suas verdadeiras condições de saúde.
Para dizer a verdade, era o que na Itália se chama ‘o mistério das coisas
óbvias’, no sentido de que eu havia compreendido que você estava
bastante mal ou, pelo menos, atravessava uma crise psíquica que deveria
ter uma base fisiológica; seria um ‘literato’ bem mesquinho se não
compreendesse isso lendo as suas cartas, que depois da primeira leitura
que chamaria de desinteressada, na qual somente o afeto por você
me guia, são relidas, por sim dizer, segundo a posição de um ‘crítico’
literário e psicanalítico. Para mim, a expressão literária (linguística)
é uma relação de forma e conteúdo: a análise me demonstra ou me
ajuda a compreender se entre forma e conteúdo existe adesão completa
ou se existem brechas, dissimulações, etc. Pode-se também errar,
especialmente quando se quer deduzir demais, mas, se há critério,
pode-se compreender bastante, pelo menos o estado de espírito geral.
Escrevo tudo isso para lhe avisar que, agora, pode e deve me escrever
com extrema franqueza (L, p. 363).

De fato, Gramsci foi informado explicitamente sobre a natureza


psíquica da enfermidade da esposa pela primeira vez em uma carta de
Tatiana poucos dias antes:
Quanto a sua enfermidade – escreve Tania Schucht em 22 de
outubro – disse-me ela mesma: os sintomas principais são amnésia,
devido a qual em determinados momentos não lembra do significado
das palavras. Em algumas situações perdeu a consciência; mas isto
aconteceu somente 6 ou 7 vezes nos últimos anos. Os médicos não
estão de acordo sobre o diagnóstico: um diz tratar-se de psicastenia,

78
Gramsci e seus contemporâneos

outro de histerismo. O médico que a trata atualmente pensa que não


é nenhuma dessas enfermidades, mas acredita que essas amnésias
estão relacionadas com sua habitual insegurança, especialmente para
encontrar as palavras, acentuada pelas provações pelas quais passou nos
últimos anos (L, p. 844).

Não que a notícia dos problemas psíquicos de Giulia fosse uma


novidade. No final de 1927 Gramsci foi informado da “grande depressão
psíquica” que a afligiu e da “angústia” que a inquietava e que justificava sua
dificuldade em escrever. Sem contar o fato de que Gramsci conhecia desde
antes do cativeiro a fragilidade nervosa das irmãs Schucht, em particular de
Eugenia, “Genia”, convencida de ser a segunda mãe de Delio, primogênito
de Gramsci, desenvolvendo um apego prejudicial no momento de seu
nascimento, em Moscou, que ocorreu na ausência do pai (LEPRE, 1998,
p. 77).
O verão de 1930, no entanto, representa uma virada por duas
razões essenciais: Sraffa visita a União Soviética e, entre outras coisas,
encontra Giulia em um sanatório em Sochi, no Mar Negro, dando-se conta
que a “crise” por ela atravessada por quatro anos não é provisória e cíclica,
mas profundamente enraizada, e sugere a Tania informar Gramsci; a outra
novidade é constituída pelo fato de que Giulia começa, também neste
período, um tratamento psicoanalítico14.
Infelizmente não sabemos nada, ou quase nada, sobre as
circunstâncias desta experiência: nem o nome do analista de Giulia, nem a
escola psicoanalítica a qual pertencia, nem detalhe algum sobre o curso do
tratamento15. Isso é justificado provavelmente, ao menos em parte, pelo fato

14
Carta publicada em Sraffa e Gerratana (1991, p. 11). Escreve Sraffa em 12 de abril de 1931: “Estou muito
feliz que Giulia está experimentando o tratamento pela psicoanálise: assim que a vi percebi que o seu caso era
um daqueles em que poderia ser útil este tipo de tratamento, mas não sugeri porque pensava que, dado que
é apresentada por seus seguidores como uma filosofia universal, na Rússia recusavam-na em bloco. Mas, não
obstante à primeira vista pareça uma mistura de charlatanismo e ingenuidade, certamente tem um núcleo
verdadeiro no fundo e em alguns casos tenho visto tratamentos psicoanalíticos com sucessos impressionantes.
Não sei se Nino já se interessou pela psicoanálise – mas, em caso negativo, certamente se interessará agora.
Você poderia perguntar se deseja algum livro e, neste caso, pode pedir para a livraria: Freud, Introduction à la
Psychanalyse, edição Payot, Paris (existe também uma tradução italiana, mas é péssima e custa o dobro da edição
francesa)”.
15
Algumas cartas mais tarde de Gramsci a Giulia, como em 7 e 14 dezembro de 1931, aludem a uma “doutora”
que trata de Giulia Schucht.

79
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

de que a psicoanálise era banida na URSS desde segunda metade dos anos
1920 e, portanto, sua prática era discreta, quase clandestina e secreta, nos
anos de 193016.
Não é impossível que futuras pesquisas em arquivos possam trazer
alguma luz sobre isso, mas no momento temos que nos contentar com o
que emerge dos textos. Há uma única certeza: que é no sanatório de Sochi
que Giulia, após a tentativa de tratamento psiquiátrico tradicional, tenta
o tratamento analítico. A supracitada carta de Tania de 22 de outubro cita
crises epiléticas e os diagnósticos precedentes de “psicastenia” e “histerismo”,
utilizando categorias da psiquiatria e não da psicoanálise, aos quais se
contrapõe o diagnóstico do “médico que a trata atualmente que acredita
que não seja nenhuma destas duas enfermidades, mas pensa que essas
amnésias estão relacionadas com sua habitual insegurança, especialmente
para encontrar as palavras, acentuada pelas provações pelas quais passou nos
últimos anos”.
Ora, é justamente a fragilidade da “expressão literária (linguística)”,
a “dissimulação” e as “brechas” entre “forma e conteúdo” na correspondência
de Giulia que Gramsci propõe-se a analisar como “‘crítico’ literário e
psicoanalítico”. Para além do toque de ironia reconhecível na fórmula, a
carta de 4 de novembro de 1930 testemunha a vontade de participar da
experiência de Giulia, de jouer le jeu, e ao mesmo tempo de concorrer com a
autoridade do analista, fundada na escuta e na análise da palavra.
A sequência do “tranfer” de Gramsci com Giulia e com o tratamento
por ela experimentado confirmará a oscilação entre estas duas atitudes: a
concorrência e a cumplicidade com o representante da psicoanálise.

O diagnóstico gramsciano: o “complexo de inferioridade” de Giulia


Um passo fundamental é representado pela carta a Giulia de 31 de
agosto de 1931. Gramsci crê agora poder estabelecer um diálogo honesto,
com “extrema franqueza”, mas não deixa de intervir no percurso da esposa
indo até o ponto de formular um esboço de diagnóstico:

16
Sobre a progressiva reprovação ideológica - mais do que propriamente repressão - da psicoanálise na União
Soviética, cf. por exemplo Chemouni (2004).

80
Gramsci e seus contemporâneos

O que você me escreve sobre sua saúde me interessa muito, mas não
sei se ainda continua o tratamento psicanalítico. Como Freud observa
que os familiares são um dos obstáculos mais graves para a cura pelo
tratamento psicoanalítico, eu nunca quis insistir na questão e não é
agora que vou insistir. De resto, você mesma lembrou como muitas
vezes eu me referi a alguns princípios da psicanálise ao insistir para
que você se esforçasse por ‘desencolher’ sua verdadeira personalidade.
Estava convencido de que você sofria daquilo que, acredito, os
psicanalistas chamam de “complexo de inferioridade”, que leva à
sistemática repressão dos próprios impulsos volitivos, isto é, da própria
personalidade, e à completa aceitação de uma função subalterna na hora
de decidir, mesmo quando se tem certeza de estar com a razão, salvo as
esporádicas explosões de irritação furiosa até por coisas insignificantes
(L, p. 455-456).

A passagem é interessante sob vários pontos de vista. Gramsci parece


evocar certa familiaridade com a psicoanálise. A menção ao “complexo de
inferioridade” como conceito atribuído à psicoanálise e pedra angular dos
sintomas de Giulia traduz todavia uma proximidade maior com a “psicologia
individual” de Alfred Adler do que com a freudiana. É a Alfred Adler - o
único psicoanalista citado nos Quaderni (Q 4, § 30), ainda que Gramsci o
confunda com o líder social-democrata Max Adler - que se deve a introdução
do conceito operatório de “complexo de inferioridade”, o que lhe custará a
excomunhão freudiana e a exclusão do Movimento psicoanalítico em 191117.
Militante social-democrata, próximo da corrente “austro-marxista”, Alfred
Adler desenvolveu uma concepção sócio-fisiológica da neurose, explicando-a
justamente como um “complexo de inferioridade” entre o biológico
e o sociológico, o que acabava, aos olhos de Freud e dos freudianos, por
dessexualizar o problema da neurose, mas que terá certa fortuna no freudo-
marxismo austríaco, atraindo o interesse mesmo de Trotski (NICOLINO,
1978, p. 605-625). O extrato supracitado parece testemunhar que Gramsci
estava, em alguma medida, permeado por tal abordagem difusa nos ambientes
vienenses marxistas dos anos de 1920.
A utilização de um diagnóstico de matriz adleriana no caso de
Giulia será reiterada alguns meses mais tarde em uma importante carta a
Tania:

17
Para uma apresentação do conjunto da obra de Alfred Adler, remeto ao trabalho de Orgler (1947).

81
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Minha impressão central – escreve Gramsci em 15 de fevereiro de


1932 - é esta: que o sintoma mais grave de desequilíbrio psíquico de
Giulia não são os fatos, muito vagos, aos quais ela se refere e que seriam
a razão para o tratamento psicanalítico, mas antes, o fato de que ela
tenha recorrido a este tratamento e tenha tanta confiança nele. Não
tenho conhecimentos amplos e precisos sobre a psicoanálise, mas do
pouco que estudei parece possível chegar a conclusões ao menos sobre
alguns pontos que podem ser considerados firmemente estabelecidos
pela teoria psicanalítica, depois de tê-la despojado de todos os
elementos fantasmagóricos e curandeiristas. O ponto mais importante
me parece este: o tratamento psicanalítico pode ter benefício apenas
para aquela parte da sociedade que a literatura romântica chamava de
‘humilhados e ofendidos’ e que são muito mais numerosos e variados
do que tradicionalmente parece. Isto é, aquelas pessoas que presas
nos duros conflitos da vida moderna (para falar apenas da atualidade,
mas todo tempo teve uma modernidade em oposição a um passado)
não conseguem como os meios próprios compreender estes mesmos
conflitos e assim superá-los, alcançando uma nova serenidade e
tranquilidade moral, isto é, um equilíbrio entre os impulsos da vontade
e as metas a alcançar (L, p. 534)18.

A atribuição de pertinência da psicoanálise para alguns “elementos


sociais” que Gramsci define, dostoievskianamente, como os “humilhados e
ofendidos”, parece de fato confirmar a tendência sociologizante adleriana
de sua leitura, não apenas no caso de Giulia, mas do interesse mesmo pela
psicanálise enquanto tal.
Gramsci, após as críticas feitas por Tania (em 23 de fevereiro
de 1932), será induzido a precisar e desenvolver significativamente sua
posição:
Gostaria de precisar melhor – escreve a Tania em 7 de março de 1932
– uma afirmação minha a propósito da psicanálise. Eu não disse estar
comprovado que o tratamento psicanalítico só seja adequado aos casos
dos elementos ditos ‘humilhados e ofendidos’; não sei nada a propósito
e não sei se alguém, até o momento, colocou a questão nestes termos.
Trata-se de algumas reflexões pessoais minhas, não verificadas com base
na crítica mais confiável e cientificamente formulada da psicoanálise e
que lhe apresentei para explicar meu comportamento diante da doença
de Giulia: este comportamento não é assim tão pessimista como lhe
pareceu e especialmente não se baseia em fenômenos de tipo primitivo

18
Ver também o prosseguimento da mesma carta (p. 535) e o pró-memória “Pontos da carta à Giulia”, no Q. 9.

82
Gramsci e seus contemporâneos

e baixo, como foi induzida a crer pelo uso da expressão ‘humilhados e


ofendidos’ que eu utilizei por concisão e só como referência genérica.
Eis meu ponto de vista: acredito que tudo o que de real e de concreto
se possa salvar da ‘échaffuadage’ psicanalítica pode e deve se restringir a
isto, à observação das devastações que provoca em muitas consciências
a contradição entre o que parece obrigatório, de modo categórico, e as
tendências reais fundadas na sedimentação de velhos hábitos e velhos
modos de pensar. Esta contradição se apresenta em uma multiplicidade
de manifestações, até assumir um caráter estritamente singular em cada
indivíduo. Em todo momento da história, não só o ideal moral, mas o
‘tipo’ de cidadão estabelecido pelo direito público é superior à média
dos homens que vivem em um determinado Estado. Esta discrepância
se torna muito mais pronunciada nos momentos de crise, como é este
do pós-guerra, seja porque o nível de moralidade se abaixa, seja porque
mais alto se coloca a meta que se deve alcançar e que é expressa em uma
nova lei e em uma nova moralidade. Em ambos os casos, a coerção sobre
os indivíduos aumenta, aumenta a pressão e o controle de uma parte
sobre o todo e do todo sobre cada um de seus componentes moleculares.
Muitos resolvem a questão facilmente: superam a contradição com o
ceticismo vulgar. Outros se atêm exteriormente à letra da lei. Mas para
muitos a questão não se resolve senão de modo catastrófico, visto que
determina desencadeamentos mórbidos de paixões reprimidas, que a
necessária ‘hipocrisia’ social (isto é, a obediência fria à letra da lei) não
faz mais do que aprofundar e perturbar. Este é o núcleo essencial das
minhas reflexões, que eu mesmo entendo que é abstrato e impreciso se
tomado ao pé da letra: trata-se, porém, somente de um esquema, de
uma orientação geral, e se compreendido assim, me parece bastante
claro e nítido (L, p. 544-545)19.

O desenvolvimento de Gramsci permite matizar o que foi exposto


anteriormente:
- malgrado a referência ao “complexo de inferioridade” de Giulia, ao qual
recorre outras vezes nas Lettere20, Gramsci não o associa explicitamente a
uma leitura sociologizante da psicoanálise, ainda que esta referência não
exclua certa abordagem adleriana em sua leitura “pessoal”;
- mais que uma psicodinâmica fundada no complexo de inferioridade

19
No prosseguimento da carta ele trata do sentido da fórmula “humilhados e ofendidos” em Dostoiévski e as
reservas filosóficas expressas acerca da pretensa cientificidade da psicologia.
20
Como na carta a Giulia de 11 de abril de 1932, espécie de esclarecimento de final de Gramsci sobre o
‘diagnóstico’ que formulou.

83
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

social, Gramsci parece sustentar a ideia de uma “contradição” estrutural


entre “o que parece obrigatório, de modo categórico, e as tendências reais
fundadas na sedimentação de velhos hábitos e velhos modos de pensar”:
tal contradição entre o dever social e os hábitos não corresponde, todavia,
à contradição freudiana entre o superego e as pulsões, aproximando-se
mais da perspectiva durkheimiana do “tipo” social como necessariamente
“superior à média” e os efeitos da “coerção” daí resultantes e que são
exacerbados em tempos de “crise” 21.
É necessário reconhecer e ao mesmo tempo não exagerar na
invocação da noção de “complexo de inferioridade” na análise gramsciana
do sintoma de Giulia. No entanto, o conceito aparece, ainda que
esporadicamente, também nos Quaderni quando abordada a literatura
popular e mais uma vez é associado ao nome de Freud:
O romance de folhetim substitui (e favorece ao mesmo tempo) o
fantasiar do homem do povo, é um verdadeiro sonhar de olhos abertos.
Pode-se ver o que afirmam Freud e os psicanalistas sobre sonhar de
olhos abertos. Neste caso, pode-se dizer que no povo a fantasia é
condicionada pelo ‘complexo de inferioridade’ (social) que determina
longos devaneios sobre a ideia de vingança, de punição dos culpados
dos males pelos suportados, etc. (Q 6, § 134, p. 799).

Veremos, todavia, que o complexo de inferioridade não constitui


um fin mot de Gramsci nem em relação à doença de Giulia nem quando
trata da aplicação fundamental da psicoanálise na teoria social.

Catarse
Existe de fato uma estratificação ulterior do confronto gramsciano
com a psicoanálise que é invisível nos Quaderni, mas inteligível nas Lettere
sobretudo se lermos no epistolário a relação com Giulia e com a sua doença
seguindo um fio de Ariadne. Tal estratificação posterior é constituída
pela evocação por parte de Gramsci - a partir do fim do verão de 1932,
21
Apesar da ausência de referências explícitas ao fundador da sociologia francesa e a recusa gramsciana da
sociologia positivista, é possível encontrar diversos ecos do pensamento de Durkheim nos Quaderni, in primis
sobre a noção de “orgânico”, central em Durkheim, como ilustrado recentemente por Michele Filippini,
Una filogia della società. Antonio Gramsci e la scoperta delle scienze sociali nella crisi dell’ordine liberale. Tese de
doutorato em Ciência Política defendida na Universidade de Bologna, 2008.

84
Gramsci e seus contemporâneos

provavelmente o ano no qual Giulia termina seu tratamento psicanalítico


- de uma “catarse” na relação de ambos. Em uma carta de 18 de julho,
Gramsci declara-se:
[...] contente que [você] não tem mais a obsessão pelo tratamento
psicanalítico, que, pelo pouco que posso julgar no estado de meus
conhecimentos, me parece por demais envolto em charlatanice e capaz
- se o médico responsável não conseguir em pouco tempo vencer a
resistência do sujeito e arrancá-lo da depressão com sua autoridade - de
agravar a doença em vez de curá-la, sugerindo ao paciente motivos de
novas inquietações e redobrado marasmo psíquico (L, p. 597-598).

Entre o verão e o outono de 1932, a correspondência entre


Gramsci e Giulia tem, então, o momento de maior intensidade e que
coincide com o fim da análise de Giulia. Uma passagem de uma carta de
28 de novembro parece testemunhar certa evolução na visão da doença da
esposa por parte de Gramsci. Não se trata mais de constatar a influência
de um complexo de inferioridade, mas uma verdadeira “dilaceração” entre
Superego e o Ego22:
Há sempre um fundo ‘genebrino’ em seu espírito e este fundo é a
causa de uma parte considerável de seu mal-estar psíquico e portanto
também de suas dores físicas. Há algo de contraditório em seu íntimo,
uma dilaceração que você não consegue sanar, entre teoria e prática,
entre o consciente e o instintivo (L, p. 644)23.

Este é o último diagnóstico gramsciano sobre a neurose de Giulia


e que repropõe a aproximação entre Rousseau e Freud já encontrada nos
Quaderni. Na correspondência com Giulia, também do período pré-
carcerário, encontram-se outros diversos apontamentos polêmicos no
confronto com a pedagogia soviética, que afirmava desde o início dos anos de
1920 tendências baseadas na educação espontânea e na rejeição da coerção;
tendências essas difusas em certas vertente da psicoanálise24. Gramsci refuta
22
N.T.: No original, Super-io e Io.
23
Dentre os poucos intérpretes que levaram em conta a analogia entre a concepção de conflito psíquico de
Giulia sugerida por Gramsci e a formulação freudiana, ver o anteriormente citado artigo Mancina (1994).
24
Cf., por exemplo, o texto exemplar de Vera Schmidt, “Psychoanalytische Erziehung in Sowietrussland-Bericht
über das Kinderheim-Laboratorium in Moskau”, em Internationaler Psychoanalytischer Verlag, Leipzig-Wien-
Zürich, 1924 (traduzido em francês como “Education psychanalytique en Russie soviétique”, em Schmidt e
Reich (1979)). É preciso recordar como a psicopedagogia alternativa de Vera Schmidt é estreitamente conexa

85
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

tal perspectiva, considerando que o “homem é uma formação histórica” e


que “aquilo que se crê ser uma força latente não é mais que o complexo
sem forma e indistinto das imagens e das sensações dos primeiros dias, dos
primeiros meses, dos primeiros anos de vida, imagens e sensações que não
são sempre as melhores que se pode imaginar” (L, p. 301)25.
Mais uma vez, a perspectiva gramsciana segue em sentido contrário
à tendência freudo-marxista, para a qual se trata de liberar a infância da
alienação educativa e da repressão do corpo e da libido, assegurando assim
a pretensa neutralidade dos instintos. Gramsci mostra-se nesta questão
ao mesmo tempo mais marxiano (não existe uma essência a-histórica da
natureza humana) e mais freudiano (a formação da personalidade infantil
não é ausente de elementos mórbidos desde os seus primeiros passos).
Voltando ao resultado do diálogo entre Gramsci e Giulia sobre o
tratamento psicanalítico desta última - diálogo do qual temos considerado
obviamente somente a escrita gramsciana - é possível acompanhar um
último sinal, se não a extrema ratio, na conclusão de uma breve carta a
Giulia de 8 de agosto de 1933 em que se lê: “Parece-me que deve acontecer
entre nós uma catarse, como diziam os gregos, para que os sentimentos
sejam revividos “artisticamente” como beleza e não mais como paixão
compartilhada e ainda ativa” (L, p. 738).
Abstraindo-se as circunstâncias biográficas e literárias precisas
desta referência à “catarse” na correspondência com Giulia, esta carta
representa provavelmente a última disputatio com a psicoanálise. É sabido
que Gramsci serve-se da noção de “catarse” no primeiro parágrafo da
importante nota 6, “Introdução ao estudo da filosofia” do Quaderni 10:
Pode-se empregar o termo ‘catarse’ para indicar a passagem do momento
meramente econômico (ou egoístico-passional) ao momento ético-
político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura
na consciência dos homens. Isto significa, também, a passagem do
‘objetivo ao subjetivo’ e da ‘necessidade à liberdade’. A estrutura de
força exterior que esmaga o homem, assimilando-o e o tornando
passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para
criar uma nova forma ético-politica, em origem de novas iniciativas. A

com a experiência dos grupos de educação sexual de massa - Sexpol - feita na Alemanha por Wilhelm Reich.
25
Carta a Giulia de 30 de dezembro de 1929. Ver também a carta a Giulia de 30 de julho do mesmo ano (L, p.
277) e ainda de 6 de outubro de 1924 em Gramsci (1992, p. 390).

86
Gramsci e seus contemporâneos

fixação do momento ‘catártico’ torna-se assim, parece-me, o ponto de


partida de toda a filosofia da práxis, o processo catártico coincide com a
cadeia de sínteses que resultam do desenvolvimento dialético (Q 10, §
6, p. 1244, cursivos do autor).

A noção de catarse, instituída na filosofia a partir da Poética de


Aristóteles é revisitada por Gramsci para indicar a tradução ou transfert do
plano da determinação objetiva para aquele da subjetivação e que deriva
da consciência de tal determinação, produzindo um deslocamento em que
reside a “liberdade” de ação ético política. Não estamos aqui muito distantes
da lógica freudiana da sublimação (catarse e sublimação designam, de resto,
dois processos químicos análogos). É importante notar que a psicoanálise
utilizou como recurso a noção de “catarse” quando Freud e Breuer
colocaram em prática o primeiro esboço de método analítico, fundado
na livre rememoração e ainda associado à hipnose, um tipo de mimesis de
uma memória traumática removida e cujo efeito era em si terapêutico e
catártico. Freud e Josef Breuer (1967) chamaram de “método catártico”
este percursor da técnica analítica em seu Estudos sobre a histeria publicado
em 1895. É provável que esta revisitação freudiana da catarse tenha ecos na
concepção gramsciana26, sobretudo no momento em que essa é convocada
no diálogo com Giulia. No entanto, é difícil justificar objetivamente tal
hipótese, visto a raridade das ocorrências textuais. É possível que, como no
caso do “complexo de inferioridade”, trate-se de uma idiossincrasia teórica
não plenamente consciente por parte de Gramsci mais do que de uma
referência explícita. No entanto, a referência à “catarse” como horizonte
último da relação com Giulia confirma o exercício subterrâneo suscitado
pelo confronto com Freud e com a psicoanálise no aparato ético-poético
das Lettere e também no trabalho aparentemente mais “clássico” 27 dos
Quaderni, esforço complementar e inseparável das Lettere e que assumiu
um aspecto de constatação e racionalização ao qual se deve voltar uma
26
Para uma análise conceitual da ocorrência da noção de catarse em Gramsci, cito Jaulin (1984, p. 61-84).
27
Cfr. Giacomo Debenedetti, «Gramsci uomo classico», em l’Unità, 22 maggio 1947, depois publicado em
Santarelli (1977). Neste texto exemplar Debenedetti observa como a escritura carcerária gramsciana, em
acordo com a visão ética e filosófica de seu autor, não se submete nem à pura introspecção e nem a uma
posição contemplativa, enforçando-se em manter em qualquer cicunstância uma relação molecular entre o
Eu e o Mundo. A tal ponto que, em uma das rarissímas ocasiões nas quais Gramsci deixa-se levar por uma
observação, aflitiva apesar de sua aparente banalidade, sobre o mundo externo, sem referências relacionais e
subjetivas, permite identificar o sinal do desfalecimento inexorável da personalidade psíquica do autor das
Lettere: o desaparecimento de seu ethos “clássico” no qual o mundo está sempre em relação ao homem e vice-

87
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

última vez para concluir esta apresentação da relação Gramsci/Freud tal


como se dá no interior do texto palimpséstico de Gramsci.

A neurose futura: Freud e a construção do homem coletivo


A análise precedente deve ser suficiente para fornecer uma ideia
da originalidade da reflexão gramsciana acerca das formulações de Freud,
tanto em relação ao contexto italiano a ele contemporâneo - polarizado
pela oposição entre o idealismo no campo humanístico e um positivismo
residual no campo médico-psiquiátrico - quanto no pensamento marxista
em seu complexo. Tal singularidade consiste essencialmente, como se viu,
em uma avaliação do freudismo como fator de desestabilização em relação
a toda uma série de equilíbrios ideológicos da cultura europeia ‘moderna’ e,
como tal, fundamenta-se essencialmente em um juízo acerca dos efeitos do
freudismo nos diversos campos da cultura de massa (filosofia materialista,
questão feminina, literatura, pedagogia, etc.), que é acompanhada de um
confronto mais íntimo nas Lettere, em que se pode reconhecer o esboço de
uma tomada de posição sobre a psicoanálise enquanto psicologia aplicada
e concreta.
Neste confronto bicéfalo com Freud, Gramsci tanto evita a
redução da psicoanálise a um irracionalismo biologizante – adotado a partir
do final dos anos de 1920 pelo marxismo oficial – quando a vague freudo-
marxista (SCHMIDT; REICH, 1979), para a qual se tratava de “inserir
na psicoanálise o materialismo histórico, erigido portanto, por meio de tal
operação, ao posto de visão de mundo” (ASSOUN, 1999, p. 224).
Todavia não se pode concluir esta apresentação crítica do confronto
gramsciano com Freud sem fazer menção a uma passagem fundamental

versa. Este momento foi mostrado por Debenedetti, quando Gramsci acena às impressões que teve no momento
da transferência do cárcere de Turi para Civitavecchia, que remonta ao inverno de 1933: “Há dez anos fui
cindido do mundo (que impressão terrível experimentei no trem, depois de seis anos que não vejo senão os
mesmos tetos, as mesmas paredes, os mesmos rostos sombrios, ver que em todo esse tempo o vasto mundo tinha
continuado a existir com os seus prados, os seus bosques, as pessoas comuns, os grupos de meninos, algumas
árvores, algumas hortas, - mas especialmente, que impressão tive ao me ver no espelho depois de tanto tempo:
voltei rapidamente próximo dos guardas” (Lettere dal carcere, 25 gennaio 1936, p. 772). O sentimento de
permanecer indiferente no mundo aparece aqui agravado pela imagem refletida da deteriorização do corpo e
do Eu, em uma assimetria que rompe a ética molecular adotada por Gramsci em toda escritura e experiência
carcerária, traindo um sentimento “romântico” que destrói a postura “clássica”. Para prolongar este ponto,
autenticamente analítico, ver também G. Debenedetti, “Il metodo umano di Antonio Gramsci”, in Rinascita,
29, 1972.

88
Gramsci e seus contemporâneos

dos Quaderni na qual Gramsci parece ir além de sua abordagem crítica


pronunciando-se sobre o interesse da psicoanálise em relação ao futuro da
hipótese comunista:
O núcleo mais saudável e imediatamente aceitável do freudismo -
escreve Gramsci em uma nota intitulada na edição de Gerratana ‘Freud
e o homem coletivo’ – é a exigência do estudo dos efeitos mórbidos
de toda a construção do ‘homem coletivo’, de todo ‘conformismo
social’, de todo nível de civilização, especialmente naquelas classes
que ‘fanaticamente’ fazem o novo tipo humano alcançar uma religião,
uma mística, etc. Deve-se observar se o freudismo necessariamente não
devesse concluir o período liberal, que é justamente caracterizado por
uma maior responsabilidade (e consciência de tal responsabilidade) dos
grupos selecionados para a construção de ‘religiões’ não autoritárias,
espontâneas, libertárias, etc. […] Coloca-se a questão de saber se é
possível criar um ‘conformismo’, um homem coletivo, sem suscitar certa
medida de fanatismo, sem criar ‘tabus’, em suma, criticamente, como
consciência da necessidade livremente aceita porque ‘praticamente’
reconhecida como tal por um cálculo de meios e fins adequados, etc.
(Q 15, § 74, pp. 1833-1834).

Pode-se sem dúvida reconhecer nesta nota, redigida por volta de


1933, mais do que um eco do diálogo com Giulia sobre a natureza de
seu ‘caso’. Deve ser colocada em relevo a formulação do sentido geral do
interesse da psicoanálise aos olhos de Gramsci: longe de ser apenas uma
alavanca útil para forçar a resistência ideológica da cultura burguesa, o
seu núcleo “mais saudável e imediatamente aceitável” está localizado na
possibilidade, que esta inaugura, de analisar os “efeitos mórbidos” próprios
da formação de todo novo ideal e de toda nova forma de organização
coletiva. Como Freud em O mal-estar da civilização (1930), Gramsci
pensa de fato que toda aquisição de um novo “nível de civilização” implica
em novos sacrifícios pulsionais e no risco de novos “efeitos” e formação
de novos “tabus”. O comunismo não seria, assim, uma exceção: como
edificação de um “novo tipo humano”, de um “novo conformismo”, longe
de fazer tábula rasa de toda forma de alienação (como pretende o ideal
freudo-marxista), dará origem a fomas inéditas e ampliadas de mal-estar
individual e coletivo. E é a análise da produção deste novo mal-estar,
inseparável da superação da civilização liberal, que Gramsci identifica a
contribuição freudiana fundamental.

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

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90
Achille Loria

Gianfranco Ragona

Loria, Marx e o marxismo


Personalidade exuberante, sempre disposto a se distinguir e
se destacar, Achille Loria (1857-1943) ocupou um lugar de relevo no
mundo intelectual italiano e internacional durante os séculos XIX e XX1.
Estudioso extremamente prolífero e, por vezes, engenhoso, foi docente
universitário em Siena, Padova e Turim, ainda que a atividade de ensino e
o relacionamento com os seus alunos não estivessem entre suas predileções
(ALLOCATI, 1990, p. XI; D’ORSI, 2000b, p. 98).
No campo político, Loria foi admirado por exponentes
importantes do socialismo italiano da época, em particular por Filippo
Turati, Leonida Bissolati e Enrico Ferri, velhos companheiros de estudos
no Ateneo de Bolonha. No entanto, recebeu críticas, tanto pessoais como
aos seus trabalhos, das principais figuras do marxismo europeu: Friedrich
Engels, Antonio Labriola e, mais tarde, Antonio Gramsci, que não poupou
os tons mais ásperos em sua polêmica. O último, em particular, contribuiu
de maneira decisiva na determinação da desventura que viria a acompanhar
o nome de Loria no percurso do século XX, com observações pontuais
em seus primeiros escritos e em seguida, no período do cárcere, forjando
uma verdadeira e própria categoria, que do “ilustre” economista recebia o
nome: lorianismo.
1
Sobre a recepção de Loria em contextos extra italianos, cfr. a obra de Varejão (2000) sobre sua fortuna na
América Latina e Marchionatti (2000) sobre o eco de suas ideias na Grã Bretanha.
Tradução Camila Góes

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Na última parte do século XIX, a figura de Loria foi parcialmente


reavaliada por um coro multidisciplinar intenso que buscava contextualizar
obra e ideias (D’ORSI, 2000c). Na economia, Loria foi decididamente
antimarginalista (antes, um estimador de Marshall): contestava a noção de
utilidade da Escola austríaca, sobretudo, por seu caráter atomista, que a tornava
inutilizável do ponto de vista da análise profunda dos fatos econômicos.
O seu pensamento amadureceu nas décadas em que desenvolveu uma tese
fundamental, enunciada de modo precoce, e inspirada em uma mistura
não totalmente coerente de Ricardo e Marx: a evolução de cada sociedade
histórica poderia ser entendida partindo-se da estrutura da propriedade
fundiária, que com o capitalismo progressivamente concentrou-se em
razão da ocupação de terras antes livres, o que determinou a compressão
do lucro em relação à renda e a compressão dos salários em relação ao
lucro (LORIA, 1880; 1889; 1899). Se a apropriação de terra era a base
da exploração capitalista, o Estado deveria intervir para estimular a difusão
da pequena propriedade agrícola e o desenvolvimento da cooperação
(FAUCCI, 1978; FAUCCI-PEERI, 2000). Uma perspectiva que revelaria,
segundo alguns estudiosos, o horizonte ideal autêntico de Loria, já não
um pensador socialista e socializante, mas adepto de uma mais genérica
democracia dos produtores (SCAVINO, 2000). Nem mesmo a perspectiva
de classes lhe era simpática, uma vez que, valorizando a noção de “trabalho
improdutivo”, ele negava a hipótese de uma polarização do mundo
capitalista em duas classes principais, apontando a existência de uma mais
rica articulação social baseada nos múltiplos interesses contrastantes.
As avaliações do marxismo nos confrontos de Loria foram,
portanto, muito difíceis, desde a sua entrada na cena cultural. Símbolo dos
piores defeitos daquele socialismo que, no quadro de um geral sincretismo,
tornavam evidentes os estigmas do positivismo, o Loria por vezes “nebuloso”,
“imprudente”, “estudioso sem consciência”, “charlatão”, foi, contudo, o
primeiro a informar o público italiano sobre o trabalho teórico de Karl
Marx, nas obras em que acreditava ter descoberto o método de análise
da realidade social, aplicado em seu trabalho sobre La rendita fondiaria
e la sua elisione naturale (LORIA, 1880). Loria se dirige diretamente ao
autor do Capital, buscando receber uma avaliação de seu grande esforço
e, incidentalmente, para lhe oferecer colaboração, como secretário. A

92
Gramsci e seus contemporâneos

circunspecção inicial de Marx indica uma suspensão de julgamento sobre


o jovem obsequioso, mas rapidamente, entre 1881 e 1883, a sua opinião
se torna precisa quando desaprova sem desculpas “[...] a adulação doentia
privada em seus confrontos e o comportamento público de ‘superioridade’,
bem como algumas falsificações de minhas opiniões” (BRAVO, 1992, p.
208).
Na realidade, Loria havia contraído dúvidas importantes sobre
o Capital e, no ano de 1822, em viagem à Londres, se confrontou com
Engels e outros hóspedes, entre eles, as filhas de Marx, Eleonor e Jenny.
Em sua memória, o evento teria sido sedimentado de maneira pitoresca
e repleta de amor próprio: “Aqueles pensadores poderosos, que sabiam
de modo audaz parear sobre os picos mais altos de abstração, não foram
capazes de resistir à terra firme da discussão científica e do raciocínio
rigoroso” (LORIA, 1927, p. 48). Com um testemunho passado por Engels
e entregue como prestação de contas em favor de outra filha de Marx,
Laura Lafargue, surge, por sua vez, uma interpretação distinta: os hóspedes
londrinos haviam ridicularizado Loria, tanto que – escrevia Engels, sem
saber que em breve os tons cáusticos tiveram que deixar o palco para a
crítica – “[...] acredito que o pobre pedante já tenha o suficiente de nossa
‘sarcástica’ companhia.” (BRAVO, 1992, p. 210).
A morte de Marx representou uma reviravolta, quando em dois
escritos sucessivos, um em italiano na Nuova Antologia (LORIA, 1883),
outro em francês publicado no Journal des économistes (LORIA, 1884),
Loria assinalou seriamente suas relações com a teoria do socialismo
científico, revelando como as suas perplexidades não eram razoáveis. Tais
relações concerniam principalmente o tema da transformação do valor em
preço, um problema mais tarde muito discutido no âmbito do marxismo,
mesmo no que diz respeito à ligação entre o primeiro Livro do Capital e
seus sucessivos.
Em sua primeira contribuição, Marx vinha classificado entre
os seguidores do hegelianismo, mesmo que tivesse substituído do mestre
a Ideia a qual o princípio da história era seu “instrumento técnico”. O
conceito não se encontrava desta forma na obra marxiana, ao contrário,
aparecia como muito mais significativos aqueles conceitos relacionados
aos “meios de produção” e “modo de produção”, para não mencionar a

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

categoria de “força produtiva”, que compreendia também o fator subjetivo,


a força de trabalho. Acusando, em seguida, a teoria “teleológica” de Marx de
ser uma mera tradução em termos sociológicos das afirmações darwinianas
acerca da origem da espécie, a perspectiva se manifestava desde o início
em favor da simplificação, um “novelo muito emaranhado” havia notado
Croce (CROCE, 2001, p. 52-54)2.
No plano econômico, Loria contestava o caráter fideísta da
determinação do valor dos bens com base na quantidade socialmente
determinada de trabalho contida nela, convicto de que na realidade
fossem livres dinâmicas de mercado a determinar os preços, de modo
algum coincidentes com os seus valores. O estudioso se inseria, assim,
entre os fundadores de uma corrente de reflexão crítica, composta entre
outros por Eugen von Böhm-Bawerk e Ladislus von Bortkiewicz, mas
parecia também apanhar as ideias de um outro velho adversário de Marx
e de Engels, Eugen Dühring. Loria estava convencido de que Marx tinha
plena consciência da contradição entre a teoria do valor e a da realidade
fenomênica, de modo a deixar inconclusa sua Economia, abandonando a
ideia de dar sequência ao primeiro volume do Capital. Tal insinuação e
ataque à escassa cientificidade de Marx convenceu Engels a lhe escrever
uma carta pessoal, depois publicada em 27 de maio de 1883 em Der
Sozialdemokrat de Zurique, na qual rotulava o economista italiano como
um perturbado, desmentindo-o inclusive com o anúncio da eminente
publicação do segundo Livro (MARX; ENGELS, 1964, p. 296).
Loria naturalmente não ficou em silêncio e confirmou em uma
nova intervenção as suas obsessões (fundadas – advertia – em “trabalhosa
pesquisa”), que ele considerava reforçadas pelo fato mesmo de que o seu
antagonista não “sabia de modo algum contestá-lo” (LORIA, 1884, p.
137). Assegurava que as hipóteses fundamentais de Marx baseavam-se
sobre a convicção de que o capital constante empregado no processo de
produção não gerava mais-valia, o que significava necessariamente admitir
2
Anos mais tarde, Gramsci retornaria à questão da simplificação de Marx: nos Cadernos, enquanto conduzia
um exame atento de uma contribuição teórica de Nikolai I. Bukharin, estigmatizara o caráter genérico do russo
utilizando como comparação o próprio Loria, exemplo paradigmático de um “modo de pensar barroco” (Q11,
p. 1441). As mesmas palavras, empregadas por Croce, se encontravam no artigo Achille Loria e il socialismo,
incluso na edição piemontesa de Avanti! de 29 de janeiro de 1918: o eminente professor é definido como
“perturbado e confuso” (GRAMSCI, 1958, p. 163). Sobre a relação de Gramsci com o pensamento de Croce,
cfr. Matteucci (1977).

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Gramsci e seus contemporâneos

a existência de uma diferente taxa de lucro entre as indústrias de alto


conteúdo de capital variável (única fonte de mais-valia) e aquelas de alto
emprego de capital fixo:
Isto é absolutamente incompatível com a concorrência entre capitalistas,
e torna logicamente impossível, irracional, a existência das indústrias
que exigem uma forte proporção de capital fixo, ou, ainda mais, de
cada indústria outra do que aquela que exige a mínima proporção de
capital variável (LORIA, 1884, p. 138).

Marx compreendeu que a taxa de lucro não podia ser diferente nas
diversas indústrias, mas havia deixado inesperadamente para à prossecução
de sua obra a solução do mistério: “[...] ao socialista alemão se é concedido
a licença arquitetônica de construir o topo de seu edifício, referindo-
se ao cuidado futuro de assegurar suas bases.” (LORIA, 1884, p. 139),
afirmava Loria, negligenciando, contudo, dois aspectos cruciais do esforço
teórico do autor do Capital. Em primeiro lugar, a sua análise da economia
política era de natureza crítica e girava em torno da tentativa de integrar os
aspectos quantitativos àqueles qualitativos: o valor constituía uma relação
quantitativa entre produtos, mas ao mesmo tempo uma relação determinada
entre os produtores, ou seja, entre os homens e entre as classes que se
agitavam no âmbito dos fenômenos efêmeros da moeda e dos bens. O que,
de fato, estava por trás do valor? Nada mais do que o trabalho em geral,
o “trabalho abstrato”, determinado historicamente pelas relações sociais
entre capitalistas e trabalhadores. Em segundo lugar, a insistência sobre
os volumes ausentes ignorava a articulação interna do projeto, explicitada
na introdução ao Primeiro Livro: depois de compreender o processo de
produção, Marx pretendia examinar o tema da circulação do capital e, ao
fim, propor uma síntese do processo global. Loria acusava Max de uma
lacuna, sem se dar conta de seu programa (MARX, 1975, p. 7).
As ideias de Loria se difundiram na Itália desta forma, não
somente no mundo intelectual, mas também no político, o que alarmou
Antonio Labriola, preocupado a respeito das nefastas consequências que
teria uma similar recepção do marxismo sobre o movimento socialista.
Em correspondência com Engels, o filósofo napolitano estigmatizara
mais uma vez a duplicidade de Loria, que se apresentava hora como

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

leitor competente e continuador da obra marxiana, hora como flagelo


dos vícios da mesma teoria; às vezes, atuando como socialista, outras
vezes, vestindo as roupas de um antissocialista. Loria, explicava Labriola
ao interlocutor, não era ao certo um “corretor” de Marx, mas sim uma
expressão paradigmática dos retardos culturais e políticos da Itália, que
havia acabado de alcançar a Unidade (FIOROT, 1990; BRAVO, 1992).
Em tais observações se reconhecem os tons com os quais Engels atacou
o economista italiano, nada menos do que na Introdução ao tão esperado
Livro Terceiro. Direcionando-se ironicamente ao “Mestre”, escreveu
palavras que se tornaram célebres:
Desfaçatez sem limites, enguia a deslizar por situações impossíveis,
desprezo heroico aos pontapés recebidos, rapidez no apropriar-se de
trabalhos alheios, impertinente propaganda charlatanesca, promoção
da glória pelas confrarias: em tudo isto, quem chega aos pés de Loria?
A Itália é a pátria do classicismo. Desde o grandioso tempo em que nela
surgiu a aurora do mundo moderno, gerou protagonistas ciclópicos,
de Dante a Garibaldi, de perfeição clássica nunca antes atingida. Mas,
também a época da humilhação e do domínio estrangeiro trouxe-
lhe caracteres clássicos, entre os quais dois especialmente elaborados:
Sganarell e Dulcamara. A unidade clássica de ambos se corporifica em
nosso ilustre Loria (ENGELS, 1975, p. 24).

Turati – que nunca poupou os juízos mais lisonjeadores sobre


Loria – contrastou a tradução do escrito engelsiano na Critica Sociale, ao
qual Engels aparentemente se dispôs a absolver, tendo como base sempre
a sua avaliação a respeito do atraso do movimento socialista na península.
Mas se tratava, de fato, de um atraso? Talvez o socialismo italiano não
fosse de tal forma inábil e desordenado, mas agisse com base num
consciente ecletismo: para se expandir, o movimento socialista deveria se
tornar popular, atraente “[...] aos mais diversos paladares”, uma teoria mais
aberta do que aquela que parecia se desenhar a partir do pensamento de
Marx seria funcional ao objetivo de inserir no Partido setores da pequena e
média burguesia, assim como os intelectuais (SCAVINO, 2000, p. 203). A
virulência demonstrada por Labriola em relação a Turati parecia se fundar
sobre a própria consciência de que estas características do socialismo
nacional eram frutos da vontade política de seus principais dirigentes e
não apenas do imperativo da história.

96
Gramsci e seus contemporâneos

Depois de ler em alemão as páginas que Engels havia lhe


dedicado em 1894, Loria pegou a caneta novamente (LORIA, 1902) para
escrever triunfalmente que as velhas hipóteses sobre a incompletude da
obra marxiana haviam se confirmado: o volume proposto ao público não
era outro senão um apanhado de notas inconclusas, que Marx não tinha
publicado por uma razão – estava consciente da contradição ainda não
resolvida acerca da “transformação”. Ainda mais: o livro primeiro, no qual
o autor havia postulado que o valor seria determinado pela quantidade de
trabalho contido nos bens e que as trocas seriam baseadas nestes valores,
estaria claramente em contradição com o terceiro, onde, ao contrário, o
alemão havia reconhecido a exclusão objetiva entre uns e outros, depois
fornecendo hipóteses, sem demonstração, da igualdade da soma total do
valor produzido em um determinado tempo e a soma dos preços. Tratava-se
de uma “mistificação”, polemizava o mantuano, de um “falimento teórico”,
ou mesmo de um verdadeiro e próprio “suicídio científico”: o “sistema
marxista”, em uma palavra, havia demonstrado toda a sua inconsciência
científica (POTIER, 1986; FAVILLI, 1980).
Em definitivo, enquanto se defendia dos ataques pessoais que
havia recebido há pouco, Loria não trazia novos argumentos ao debate.
De resto, sobre um ponto, ao menos, ele tinha razão: nos últimos anos de
vida, Marx havia nutrido dúvidas sobre a publicação de novos volumes do
Capital, o que apareceu postumamente como fruto legítimo do trabalho
de composição de seu companheiro, embora isso tivesse acontecido por
razões que pouco ou nada tinham a ver com a contradição entre a teoria
do valor exposta no primeiro livro e a da teoria dos preços de produção
argumentada no terceiro (Cfr. RUBEL, 1968, p. CXVIII-CXXI).
Com o escrito de Engels, as bases do damnatio memoriae foram,
no entanto, sepultadas. O término foi afixado por Benedetto Croce:
Com a acusação de Engels e ainda mais com a defesa de Loria,
verdadeiramente compassivo pelo constrangimento e pelas desculpas
demandadas, o processo pode se considerar fechado [...]. As palavras
adotadas por Engels contra Loria, e o prefácio de um livro como o
Capital, têm muito peso, e seria pouco útil, e também pouco generoso,
insistir na acusação (CROCE, 2001, p. 36-37).

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Por alguns anos a polêmica foi arquivada até que chegasse a hora
de Antonio Gramsci, que contribuiu de maneira decisiva a sancionar
a decadência do economista, há muito celebrado “imprudentemente”
como o Marx italiano (D’ORSI, 2000a, p. ix), e que talvez justamente
em razão desta máscara, havia chamado e chamava a atenção de jovens
que frequentavam as suas aulas em Turim. É o caso surpreendente, mas
paradigmático, de Palmiro Togliatti, aluno apaixonado e exemplar da
Facoltà di Giurusprudenza dell’ Ateneo entre 1911 e 1915, ano no qual
obteve o Título cum laude apresentando uma dissertação em Economia
Política. Por muito tempo a historiografia aceitou e avaliou a “lenda” de
que ele havia debatido os argumentos de sua tese com Luigi Einaudi,
também porque em vida o mesmo protagonista não fez nada para
corrigi-la. De resto, o futuro Presidente da República, economista liberal
celebrado e respeitado, era bem mais apresentável do que o verdadeiro
relator. Somente em anos recentes a pesquisa dissipou as nuvens que por
tanto tempo envolveram esta história, e isto apesar do desaparecimento
do fascículo togliatiano dos arquivos universitários: foi Loria e não
Einaudi – cujas aulas de Ciência das Finanças, contudo, Togliatti seguiu
avidamente -, quem escreveu o registro na sessão de atribuição de Grau
em 27 de novembro de 1915 (D’ORSI, 2007, in partic. p. 40-44). As
razões das sombras sobre os eventos que surgiram no segundo pós-guerra
devem ser reconduzidas às reflexões de Gramsci sobre o lorianismo, que
não podiam deixar indiferente o primeiro editor dos Quaderni: Togliatti
havia certamente julgado o professor mantuano como um “charlatão”
(AGOSTI, 1996, p. 8-9), mas a ele havia também confiado a conclusão
de seu percurso universitário. Em sede historiográfica, avançou-se numa
explicação congruente com o itinerário político e cultural do personagem:
Teria sido, para dizer a verdade, inconveniente para Togliatti, o Togliatti
pós-gramsciano, o seu mais fiel companheiro de luta, autocreditado
intérprete oficial de Gramsci-pensamento, além de seu continuador
político, [...] admitir que o responsável de sua tese tenha sido, na
realidade, justamente o tão criticado e insultado Loria, insultado por
Gramsci, e antes ainda, pelas vozes mais genuínas do marxismo, por
Engels e Labriola. (D’ORSI, 2007, p. 43).

98
Gramsci e seus contemporâneos

Mesmo que se tratasse de um pecado perdoável e não de uma


mancha indelével sobre o mais importante secretário do Partido comunista
italiano, seu passado arranhou sua imagem de dirigente a uma parte,
comum a uma tradição que havia já transformado Marx, Engels, Lênin e
Stalin em heróis de um itinerário linear, sem contradições, na qual a teoria
e a prática conviveram sempre harmoniosamente, com as passagens juvenis
a antecipar, explicar e mesmo para refletir a grandeza da maturidade.

Loria e “lorianismo” na reflexão de Gramsci


O “fenômeno Loria” ocupou os pensamentos de Gramsci de fim
de 1915, quando em páginas turinenses de Avanti! formulou uma irônica
invocação de Piedade à ciência do prof. Loria. O artigo, surgido anônimo,
não era combativo apenas no título: o docente do Ateneo de Savoia se
encontrava incluído entre “os vulgares golpistas da inteligência”, porque
no curso de uma conferência organizada no principal lugar piemontês
pela “Gazzeta del popolo, órgão de abastardamento político e intelectual
de turinenses”, havia experimentado pateticamente reduzir a guerra em
curso a uma dentre as tantas manifestações da dor do mundo (GRAMSCI,
1915, p. 11-12. Cfr. também GRAMSCI, 1916, p. 7-8)3. O ataque contra
a “ciência ruim” de Loria renovava as polêmicas sobre o materialismo
histórico que haviam envolvido Engels, Labriola e Croce, embora a velha
diatribe, que certamente o jovem sardo conhecia muito bem,4 tenha sido
apenas evocada. Neste período, Gramsci estava principalmente preocupado
com a influência nefasta, enfraquecida no tempo, mas não extinta, que
com os seus discursos de “pastor quaker” Loria exercitava no socialismo
italiano (GRAMSCI, 1917, p. 113)5. Sobre este exemplo, ainda em 1916
tornou ao ataque, também com a arma do sarcasmo, lembrando “[...] a tese
[loriana] da depressão da renda, causa principal da guerra.” (GRAMSCI,

3
GRAMCI, Antonio. Pietà per la scienza del prof. Loria. In: Avanti!, XXI, n. 348, 16 de dezembro de 1915.
Artigo publicado na coletânea Per la verità. Scritti 1913-1926 (GRAMSCI, 1974). GRAMCI, Antonio. E
lasciateli divertire. In: Avanti!, edizione piemontese, 9 de janeiro de 1916. Artigo reunido em Sotto la mole
(GRAMSCI, 1960).
4
Não por acaso, em 1918 Gramsci lembraria “o rude golpe de bastão” lançado por Engels a Loria (GRAMSCI,
1918, p. 49).
5
GRAMCI, Antonio. La scala d’oro di Achille Loria. In: Avanti!, edizione piemontese, 17 de maio de 1917.
Artigo publicado na coletânea Scritti giovanili (GRAMSCI, 1958).

99
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

1916, p. 27)6, quando depois de dois anos, em Grido del popolo, aumentou
a dose estigmatizando a imagem do “homem santo” que Loria havia se
tornado aos olhos de muitos trabalhadores. Escrevia:
Lendo os escritos de Achille Loria, quem tem um forte senso de crítica,
se pergunta se ele é um louco melancólico ou um homem genial. Porque
em Loria tem um e tem outro. Raios de luz e escuridão idiota, trabalho
consciencioso e tolice incrivelmente profunda. O seu pensamento não
tem qualquer congruência; a autocrítica é negada ao seu raciocínio
desorganizado [...]. Ele não tem senso de distinção; confunde tudo,
gigantes e pigmeus, verdades e despropósitos, imagens e conceitos,
metáforas e argumentos (GRAMSCI, 1918, p. 49)7.

O juízo sobre o caráter histriônico do “descobridor de todas as


descobertas” e “teórico de todas as teorias”8 foi comprovado a partir da
publicação de um breve esboço de Marx composto por um olhar popular
de Loria e difuso pelo editor genovês Formiggini durante a guerra. Neste,
entre observações documentais sobre a vida e as ideias do protagonista, o
Autor inseria bizarras e falsa informações: como o relato, por exemplo, de
que no exílio londrino Marx havia se estabelecido chefe de um cenáculo
“[...] ao qual nenhum homem poderia ser admitido se não se sujeitasse
a um severo exame sobre as ciências mais variadas e em especial sobre
a economia política [...] e mais ainda (sombra de Lombroso se alegra!)
a uma exata medição craniométrica” (LORIA, 1916, p. 23). Tratava-se
de uma enésima prova daquela “trivialidade espiritual” que levava Loria
a negligenciar os deveres do homem de ciência em favor do diletantismo.
Em um artigo de 1918, significativamente intitulado Os critérios da
vulgaridade, Gramsci esclareceu:
Nós continuaremos a chamar de vulgares homens, quando estes
operam vulgarmente, quando manifestam um pensamento vulgar,
também se exprimem o pensamento de forma elegante (e esta elegância

6
GRAMSCI, Antonio. Parole! parole! Parole! In: Grido del popolo, XXV, n. 605, 26 de fevereiro de 1916
(GRAMSCI, 1974).
7
GRAMSCI, Antonio. Achille Loria. In: Grido del popolo, 19 de janeiro de 1918 (GRAMSCI, 1968).
8
“Ele é o descobridor de todas as descobertas, o teórico de todas as teorias, o mergulhador indefeso que do
oceano assustador de todos os mistérios humanos traz as cintilantes e preciosas pérolas do conhecimento e da
sabedoria”. Le cause della guerra. In: Avanti!, edizione piemontese, 17 de setembro de 1918 (GRAMSCI, 1960,
p. 437).

100
Gramsci e seus contemporâneos

é somente aparência vistosa, sequer arte), mesmo que operem com


luvas e salvando as formas exteriores. (GRAMSCI, 1918, p. 198)9.

Que um tal intelectual fosse elevado a mâitre à penser do Partido


socialista havia de que se preocupar Gramsci, que lembrava as antigas mas
sempre atuais palavras com as quais Croce havia estigmatizado a “universal
reputação de inteligência” da qual Loria desfrutava naquele ambiente10.
Mesmo depois da fundação do Partido comunista da Itália, o professor
“tão admirado pelos reformistas” (GRAMSCI, 1921, p. 158-160)11 não
foi esquecido e até os últimos meses de liberdade, como forma de atacar
toda vez que o fascismo se consolidava e o antagonista se sentava sobre
os bancos do Senado do Reino, Gramsci continuou a manter perante o
público ludibrio a figura deste “aventureiro da ciência” (GRAMSCI,
1926)12, com exemplos paradigmáticos de seu método:
O notável professor Achille Loria descobriu, quando apareceram as
primeiras aeronaves, uma solução genialíssima do problema social.
Segundo este maravilhoso exemplar da ciência universitária, teria
sido suficiente multiplicar o número de aeronaves, polvilhar visco
sobre as asas de cada máquina e voar. Todos, ao invés de trabalharem,
voariam nutrindo os pássaros que inevitavelmente cairiam no visco
(GRAMSCI, 1926b, p. 344).13
9
GRAMSCI, Antonio. I criteri della volgarità. In: Il Grido del Popolo, 23 de março de 1918 (GRAMSCI,
1958).
10
“Na Itália, em seguida [Loria] não somente desfrutou, nos últimos anos, da reputação universal de inteligência
original e de descobridor de ‘novos horizontes’, mas foi singularmente amado no partido socialista, que, sem
contá-lo oficialmente em suas fileiras, o considerou quase como o teórico italiano do socialismo” (CROCE,
2001, p. 35).
11
GRAMSCI, Antonio. Cronache della verità, “Falce e martello”, II, n. 15, 11 de junho de 1921 (GRAMSCI,
1974). O juízo de Gramsci sobre o socialismo italiano, que ao invés de lutar por resultados concretos aguardava
ao advento do socialismo como se devesse ser um presente da história, renovava ainda a antiga avaliação crociana
sobre o caráter “quietista” das teorias de Loria, “a despeito de todos os ares e declamações” (CROCE, 2001, p.
58).
12
GRAMSCI, Antonio. Un avventuriero della scienza. In: l’Unità, 16 de março de 1926 (GRAMSCI, 1974).
13
GRAMSCI, Antonio. La nuova pietra filosofale ovvero: il socialismo dell’«Avanti!». In: l’Unità, III, n.
258, 30 de outubro de 1926 (GRAMSCI, 1974). Gramsci se refere ao artigo As influências sociais da aviação,
originariamente publicado na Rassegna contemporanea de janeiro de 1910, republicado em Loria (1915, p.
379-386), onde se pode ler: “Hoje, de fato, o trabalhador que se recuse a servir na qualidade de assalariado, ao
lucro de um capitalista, não tem outra perspectiva, sequer a morte por inanição, ou a reclusão no hospício ou
no cárcere. Mas tudo isso mudará de repente, quando o operário, relutante a entrar na fábrica, ou banido desta,
encontrar um avião, que os levante aos espaços. Vocês diriam, certamente, com aquele sorriso irônico que tudo
congela e mata, que os livres espaços não alimentam. E porque não? Mas porque não sobre os futuros aviões não
poderão dispor-se das folhas e do visco, criando formidáveis caças de aves, às quais assegurariam aos viajantes
aéreos um alimento abundante e gratuito? E é então que os trabalhadores refratários poderão generosamente

101
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Nos Cadernos, o tom de Gramsci mudou e as razões da aversão nos


confrontos de Loria resultaram em uma reverberação diferente. Querendo
legitimar um trato orgânico do lorianismo, explicava preliminarmente:
À parte o fato de um juízo “apaixonado” da obra geral de Loria e da
aparente “injustiça” de colocar apenas um relevo às manifestações de
seu talento, resta, para justificar estas notas, uma série de razões. Os
“autodidatas” são especialmente inclinados, pela ausência de uma
disciplina crítica e científica, a fantasiar regiões de abundância e fáceis
soluções para cada problema. (Q 28, p. 2330-2331).

A propósito disso, Filippo Barbano esclareceu que o lorianismo


dos escritos carcerários não se relacionava diretamente ao professor Achille
Loria, transfigurado em uma categoria adaptável para caracterizar um
amplo número de intelectuais ativos na Itália. Apresentava-se, em suma,
uma cisão entre o lorianismo in nuce das primeiras intervenções, nos quais
Gramsci contestava “um modo de ser intelectual privado”, e a introdução
de uma tipologia que ora estigmatizava “um modo de ser cultural público”
(BARBANO, 2000, p. 27-28). Gramsci notava, de fato, “que em Loria não
falta o espírito de sistema e uma certa coerência e, ainda que as suas ‘bizarrices’
não sejam casuais, mas devidas a impulsos de diletantismo improvisador,
elas correspondem a um substrato cultural que aflora continuamente”
(Q 28, p. 2323). O acúmulo de materiais, de fatos e de informações de
Loria, muitas vezes ornados de maneira extravagante, já não era apenas
fruto de uma deformação individual, manifestação de estéril erudição de
um docente universitário excêntrico. As consideráveis notas dos Cadernos
abrangiam todo um mundo intelectual marcado por uma estrutural falta
de perspectiva sistemática, que é capaz de inserir em uma visão universal e
responsável os problemas particulares sempre que afrontados. Tornava-se
objeto de observação “[...] um fenômeno geral de deterioração cultural,
que talvez tivesse o inchaço mais vistoso no campo ‘sociológico’: as ciências
sociais, na fase embrionária de seu desenvolvimento, refletiam de fato todos
os limites do positivismo mais dogmático.” (Q 28, p. 2328)14.

se saciarem e escaparem vitoriosamente dos impérios do empresário capitalista” (LORIA, 1915, p. 381). Sem
deixar de conceder a Loria o fato de ter tentado (sem sucesso) dizer que a inovação tecnológica permitiria que os
trabalhadores se movessem livremente nos mercados em busca de melhores condições para a venda de sua força
de trabalho, estas frases imaginativas parecem justificar plenamente o recorrente sarcasmo gramsciano.
14
“O fato é que Loria, cientista falsificável, economista discutido, sociólogo imaginoso e polígrafo, pode ser

102
Gramsci e seus contemporâneos

Se não eram mais centrais as extravagâncias de Loria, primeiro com


o seu marxismo emprestado e depois com o seu anti-marxismo, a ênfase
literária, “a vaidade pueril de descobertas originais” (Q 11, p. 1438), agora
também as nefastas consequências da admiração do socialismo italiano
em seus confrontos foram deslocadas para um segundo plano. A visada de
Gramsci se estendia sobre o plano nacional e internacional:
Loria não é um caso teratológico individual: é, ao contrário, o mais
completo e finalizado de uma série de representantes de um certo
estrato intelectual de um determinado período histórico [...]. Mas
é de notar que cada período tenha o seu lorianismo mais ou menos
completo e perfeito e cada país tenha o seu (Q 28, p. 2325).

Sobre estas bases, ao invés de fornecer uma descrição completa


do conceito, Gramsci definia o lorianismo em negativo, elencando os
seus piores aspectos: nenhuma organicidade e sistematicidade; ausência
de espírito crítico; insuficiência de rigor científico na pesquisa; carência
de organização; ausência de uma ética (cuja ligação com a política era
fundamental para ele, já que a boa política era só aquela conforme ao fim);
irresponsabilidade “sobre a formação da cultura nacional” (Q 28, p. 2321).
O lorianismo, efeito sintomático da desorganização dos
intelectuais, era também o emblema de uma forma de “tratamento dos
clérigos”, que Gramsci remontava ao Risorgimento com a “fraqueza e
inconsistência orgânica da classe dirigente” inadequada para promover
uma profunda reforma intelectual e moral (Q 19, p. 1977-1978). Em
particular, assinalava ao Partido de Ação e seus intelectuais, a incapacidade
de agir como alterativa ao bloco histórico moderado: se tivessem apoiado
aos camponeses e sustentado as suas reivindicações de base (acima de tudo,
a reforma agrária), movendo os intelectuais dos estratos médio-inferiores
sobre suas próprias posições, através de um programa concreto de governo
alternativo ao processo de unificação, teria sido possível criar uma nova
formação nacional autenticamente liberal. Gramsci recuperava o exemplo
dos Jacobinos, que na França havia imposto à burguesia sua tarefa histórica,

considerado como um tipo de compêndio de contradições, das disputas e ainda das questões que caracterizaram
as ciências sociais na Itália, Europa e nas Américas, na passagem do século XIX para o XX” (BARBANO, 2000,
p. 4).

103
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

empurrando-a para frente “a pontapés no traseiro” (Q 19, p. 2027) com


vigor e determinação, e reprovava também os expoentes democráticos do
modo risorgimental de abrir a estrada a um bloco agrário e latifundiário,
permitindo entre outras coisas, ao lorianismo, criar raízes:
Mérito de uma classe culta, por ser sua função histórica, é dirigir as
massas populares e desenvolver seus elementos progressistas; se a classe
culta não for capaz de cumprir sua função, não se deve falar de mérito,
mas de demérito, ou seja, de imaturidade e fraqueza íntima (Q 19, p.
2053).

Os homens que haviam feito o Risorgimento, em definitivo,


enquanto ansiavam o nascimento de um Estado moderno italiano,
originaram alguma coisa de híbrido e não conseguiram criar as condições
para que se desenvolvesse uma classe dirigente madura e prospectiva: “A
mesquinha vida política de 1870 a 1900, a rebelião elementar e endêmica
das classes populares, a existência insignificante e atrofiada de uma classe
dirigente cética e inativa é a consequência daquela deficiência [...]” (Q 19,
p. 2053-2054).
Com o olhar centrado no presente, o lorianismo aparecia para
Gramsci também como uma corrente, com algumas figuras principais
acompanhadas de “elementos genéricos e vagabundos” (Q 28, p. 2328).
Uma nota mordaz, consignada ao Caderno 9, testemunha como a ideia de
uma “galeria” estava presente entre os projetos iniciais:
Ao início desta série de notas sobre o lorianismo poderá ser citada a
história contada pelo barbeiro nos primeiros capítulos da segunda
parte de Dom Quixote. O tolo recorre ao bispo para ser liberado do
hospício, sustentando, em uma carta sensatíssima, ser sábio e por isso
ter sido arbitrariamente segregado do mundo. O arcebispo envia seu
mandatário, que se convence se tratar de uma pessoa de mente sã, até
que com a saudação dos amigos do alegado sábio decorre a catástrofe.
Um tolo, que diz ser Júpiter, ameaça que se o amigo for embora, ele
não fará mais chover sobre a terra, e o amigo, temendo que o enviado
do bispo se assustasse, disse-lhe: Não tenha medo porque o senhor
Júpiter não fará mais chover, eu que sou Netuno, encontrarei um
modo de remediar. Portanto, essas notas referem-se a autores que, em
uma ou muitas instâncias de suas atividades científicas, demonstraram
ser o “senhor Netuno” (Q 9, p. 1113).

104
Gramsci e seus contemporâneos

A categoria de intelectual à qual Gramsci se referia era muito


dilatada: se não compreendia todos os “escrevinhadores de domingo”,
cada obscuro professor universitário ou qualquer político de profissão,
certamente incluía cientistas, jornalistas e políticos que exercessem um
papel nacional. Não era estranho, portanto, que à parte de sua avaliação
severa, Gramsci reconhecesse aqui e ali papéis e méritos particulares dos
protagonistas. A sua análise era rigorosíssima: os intelectuais deviam
possuir todas as qualidades para formar a cultura nacional (sistematicidade,
espírito crítico, centralização, planejamento, etc.) e certamente não bastava,
maquiavelicamente, “parecer tê-las”. Era uma via típica do lorianismo, de
fato, dissimular qualidades não possuídas, impondo ao crítico um trabalho
fatigante de desvelamento, tanto mais difícil em seu caráter sutil, próprio
ao senhor Netuno de Cervantes.
Na “galeria”, bem como Luigi Einaudi, autor de uma Bibliografia
de Achille Loria (EINAUDI, 1932) e responsável por credenciar imagem
séria e científica à obra do colega (Q 28, p. 2321),15 e Turati, que sempre
apreciou a obra do mantuano, sendo um de seus amigos mais próximos,
ao qual atribuía “uma autoridade científica por vezes superior aos seus
méritos” (MONTELEONE, 1987, p. 143), apareceram personagens entre
eles objetivamente coligados, como demonstração de que o lorianismo vivia
historicamente no âmbito de uma rede de concretas relações, inclusive de
natureza pessoal.
Gramsci, por exemplo, recordava o “entulho sem nenhum valor”
de Roberto Ardigò (1828-1920) e, ao fim de sublinhar a importância da
forma, que sempre dava força à reflexão e às argumentações, acusava o seu
modo de exposição de “perversíssimo” (Q 16, p. 1851). Ardigò caia com
pleno direito em uma genealogia do lorianismo, e em posição de primeiro
plano. Ordenado padre em 1851, suspenso a divinis em 1869, se arriscou
profundamente com obras na fronteira entre a filosofia e a psicologia,
chegando a negar a existência de uma “causa primeira”. Abandonando
totalmente a fé e a batina, se torna um adepto do positivismo no campo

15
Foi notado como, na realidade, nos Cadernos a influência de Loria sobre Einaudi foi superestimada: em
primeiro lugar a Bibliografia era uma mera homenagem a um colega, não se tratava certamente de uma
hagiografia; em segundo lugar, embora ele tivesse tido o fascínio na juventude – como muitos economistas
de sua geração – ao final dos anos 1920, Einaudi havia sido completamente liberado daquele peso (FAUCCI,
1986, p. 277-279).

105
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

das ciências e da ideologia democrática e republicana na política. Antes de


ter acesso à cátedra universitária (a partir de 1811 foi docente de história
da filosofia no Ateneo de Padova), havia lecionado há muito tempo no
Liceo Virgilio de Mântua, e entre os seus alunos – o que Gramsci talvez não
soubesse – figuraram Loria e Ferri16. Não somente, em 1878 foi um dos
colaboradores da “Revista Republicana” fundada em Milão por Arcangelo
Ghisleri, se tornando uma referência importante para alguns jovens
companheiros, entre esses, dois expoentes do lorianismo: Turati e Bissolati
(BORTONE, 1962, passim).
Gramsci reservou, obviamente, amplo espaço ao socialista Enrico
Ferri (1856-1929), estigmatizando-o por sua alegada “objetividade baseada
na ignorância” (Q 8, p. 983-984.; Q 9, p. 1103). Positivista, docente de
direito penal em Bolonha, Siena, Pisa e Roma, Ferri aderiu precocemente
ao Partido socialista (1893), tornando-se também diretor de Avanti!, mesmo
que admitisse a propriedade privada e refutasse a perspectiva de classes.
Sem preconceitos (e por vezes oportunista) na vida do Partido, tornou-se
nacionalista em 1911, portanto simpatizante do fascismo e, sobretudo de
seu chefe, a quem reconhecia o carisma e a capacidade de interpretar as
necessidades das massas. A Ferri, cuja associação com Loria foi caracterizada
por intensa familiaridade e confiança recíproca17, Gramsci associava o
turinense Alberto Lumbroso (1872-1942), erudito, escritor insistente,
portador de uma historiografia de matriz crônica, repleta de detalhes, mas
incapaz de interpretação, e Alfredo Trombetti (1866-1929), filólogo e linguista
de Bolonha. Glória nacional para os jornais da época, emérito estudioso
aos olhos dos católicos, já que havia difuso a ideia do desenvolvimento
da linguagem por monogênese, que “[...] era a prova da monogênese da
humanidade, com Adão e Eva como fundadores.” (Q 3, p. 365), Trombetti
exemplificava uma das maiores características do lorianismo, a ausência de
método, típica também de Ferri e Lumbroso. Gramsci recordava a polêmica
sobre a alegada decifração do etrusco que havia envolvido Trombetti ao
fim dos anos 1920, mas na verdade não estava interessado tanto no caso
específico, mas na dedução geral que podia propor:

16
Sobre a amizade de longo curso entre Loria e Ferri cfr. Giacheri Fossati (2000, passim.)
17
Sobre as relações entre Loria e Ferri, retorno ao sábio documento de Luciana Giacheri Fossato, baseado sobre
correspondência conservada no Fundo Achille Loria do Arquivo de Estado de Turim (GIACHERI FOSSATI,
2000, passim).

106
Gramsci e seus contemporâneos

Nas ciências em geral o método é a coisa mais importante: em certas


ciências, ainda, que necessariamente devem se basear sobre um
conjunto restrito de dados positivos, restrito e não homogêneo, as
questões de método são ainda mais importantes, se não a mais. Não
é difícil, com um pouco de fantasia, construir hipóteses e dar uma
aparência brilhante de lógica a uma doutrina: mas a crítica destas
hipóteses põe a baixo todo o castelo de cartas e encontra o vácuo sob o
brilhantismo. (Q 3, p. 366).


Por causa dos “absurdos” em seu trabalho científico (Q 28, p.
2332), foi inserido entre os lorianos de destaque também Guglielmo
Ferrero (1871-1942), que contrário ao mundo acadêmico, no entanto,
soube suscitar o interesse de vasto público, procurando incansavelmente
lhe satisfazer o gosto: também ele, em suma, foi expoente de uma
historiografia pouco inclinada ao rigor metodológico, preocupado, acima
de tudo, em responder ao senso comum da época (TREVES, 1997, p. 20).
Foi, todavia, um intelectual apreciado no exterior, não somente na Suíça,
onde foi chamado à Universidade de Genebra, e ao Institut des Hautes
Études Internationales, mas também nos Estados Unidos, estimado em
particular pelo Presidente Roosevelt (BIANCOTTO, 1994). Influenciado
pelo ensino lombrosiano, Ferrero foi aluno de Cognetti de Martiis (1844-
1902), o habilitado economista fundador da escola econômica turinense,18
tão estimado pelo jovem Loria do período de Mantuano, quando
Cognetti não apenas lecionava economia política no Instituto industrial
e profissional, mas dirigia também a local Gazzetta. Justamente Cognetti
Loria foi quem o sucedeu na cátedra de Economia política da Universidade
de Turim em 1903, marcada desde o antecessor pelo caráter positivista.
O lorianismo também se espreitava nas atitudes de certos
intelectuais exteriores. Gramsci apontava como exemplo a “arrogância” de
um dos amigos mais próximos de Ferrero, Corrado Barbagallo (1877-1952),
historiador desprovido de olhar crítico e portador de uma visão de mundo
baseada na crença de “[...] que nada é novo sob o sol, que ‘todo o mundo
é uma cidade’ que ‘quanto mais as coisas mudam, mais são as mesmas’”:
autoproclamado adepto da filosofia da práxis, apontava Gramsci, Barbagallo
não era outro que não um insípido compilador (Q 16, p. 1848).
18
Sobre a escola econômica turinense recomendo Marchionatti (2009) e Marchionatti; Becchio (2005).

107
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

O lorianismo, portanto, havia assumido uma forma específica


no fascismo, como demonstrava exemplarmente o católico Giuseppe
Attilio Fanelli, que denegria incansavelmente a modernidade capitalista,
contrapondo-a a um modo artesanal sereno e mais adequado ao espírito
italiano, sem perceber a contradição de suas afirmações. A nostalgia de
Fanelli, de fato, e o ideal da nação armada, difuso e sustentado pelo regime,
não poderiam estar juntos, se não renunciado a qualquer forma de lógica:
“Não se pode pensar em armas e navios de guerra construídos por artesãos
ou vagões movimentados por bois”, notava Gramsci, “[...] os grupos
intelectuais que exprimiam este lorianismo na verdade não se importavam
apenas com a lógica, mas com a vida nacional, com a política e tudo
mais.” (Q 28, p. 2335). Eram mais escassas, porém incisivas, as notações
sobre as “estranhezas” e “ausências” (Q 28, p. 2327) do ex-sindicalista
Paolo Orano (1875-1945), assim como as considerações sobre Benito
Mussolini, não elencado como part entière na corrente do lorianismo, mas
vítima do malgrado de Loria intérprete de Marx. Na obra Dottrina del
fascismo, redigida com a contribuição decisiva de Gentile em benefício da
Enciclopedia Italiana, o chefe do governo havia contestado a concepção
materialista da história seguindo uma interpretação muito simplista, que
acusava de ler a evolução da sociedades humanas sobre a base dos fatores
econômicos19. Surpreendentemente, contudo, uma crítica similar poderia
ser endereçada a Croce. Mesmo que tivesse representado uma das poucas
vozes dissonantes nos anos mais obscuros do regime, Gramsci não esquecia
que a interpretação da concepção materialista da história do filósofo
napolitano era redutiva tanto quanto aquela oferecida por Loria. A ideia
da filosofia da práxis como um cânone de interpretação histórica destinada
a valorizar os movimentos estruturais, trazia, na verdade, o mesmo defeito
do “economicismo”: “Se Loria for despojado de todas as suas bizarrices
estilísticas e irregularidades fantasmagóricas (e, certamente, muito daquilo
que é característico de Loria é assim perdido) se vê que ele se aproxima de
Croce no núcleo mais sério de sua interpretação.” (Q 10, p. 1236).

19
A obra ressoava à “doutrina do materialismo histórico, segundo a qual a história das civilizações humanas se
explicaria somente com o conflito de interesses entre os diversos grupos sociais e com a mudança dos meios e
instrumentos de produção. Que as vicissitudes da economia – descobertas de matérias primas, novos métodos de
trabalho, invenções científicas – tenham a sua importância, ninguém as nega, mas são insuficientes para explicar
a história humana, excluir todos os outros fatores é um absurdo”: cfr. Mussolini (1932, p. 849), e a avaliação de
Gramsci (Q 9, p. 1145).

108
Gramsci e seus contemporâneos

Fenômeno não exclusivamente italiano, o lorianismo apareceu


também no caminho alemão para o Terceiro Reich, produto de uma cultura
– Gramsci pensava certamente ao pensamento völkisch, com o seu propenso
racismo, espírito hierárquico, ressoando os mitos dos antigos Germânicos
– que foi afirmado passo a passo até se tornar cultura de Estado. De resto,
o lorianismo encontrava terreno fértil nos contextos políticos e sociais nos
quais houvesse menos “minas críticas” construídas ao longo do tempo: não
era por acaso, então, que os exemplos principais envolvessem a Itália e a
Alemanha, que chegou tardiamente à unificação nacional e à integração no
mundo moderno, embora com muitas diferenças de desenvolvimento. Em
condições extraordinárias (Gramsci pensava nas revoluções do pós-guerra
e na reação fascista e nazista), foi “[...] fácil aos Lorias, apoiarem-se em
forças interessadas, transbordarem cada mina e afundar por décadas um
ambiente de civilização intelectual ainda débil e frágil.” (Q 28, p. 2326).
Individualizada a doença, Gramsci se interrogou sobre as
possibilidades de remediá-la, lançando luz sobre as razões do sarcasmo
desdenhoso com qual havia enfrentado Loria em seus primeiros escritos,
antes do cárcere:
Como reagir? A melhor solução seria a escola, mas é solução de
longa espera [...]. Ocorre, portanto, combater momentaneamente a
“fantasia” com os tipos “grandiosos” de hilotismo intelectual, criar
aversão “instintiva” para a desordem intelectual, acompanhando-a
com o senso do ridículo, que, como foi visto em outros campos, pode-
se obter, também com certa facilidade, porque o bom senso deve ser
despertado por um tiro, como um relâmpago que destrói o efeito
do ópio intelectual. Esta aversão é ainda pouco, mas é já a premissa
necessária para instaurar uma ordem intelectual indispensável: talvez
seja o meio pedagógico indicado para a sua importância. (Q 28, p.
2331).

Omitindo quanto na proposta gramsciana ressinta de influências


comportamentais – a intervenção pedagógica parece, de fato, dever-
se basear sobre um tipo de reflexo condicionado -, esta nota levantava
problemas de ordem geral, com respeito ao papel de absoluta importância
atribuído aos intelectuais no dirigir os processos de compreensão e

109
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

transformação do mundo20. Tratava-se de uma função crucial que exigia


grande responsabilidade, o que Gramsci – propondo uma correlação
aparentemente arbitrária – colocava junto à deterioração intelectual
representada pelas diversas formas de lorianismo e sua negligência
ética: “A falta de sobriedade e de ordem intelectual acompanha muito
frequentemente a desordem moral” (Q 28, p. 2331). Manifestava desta
forma a firme convicção de que para assumir tarefas grandes e terríveis,
seria necessária uma firmeza moral em grau de não se abater “frente aos
piores horrores” e de não se exaltar diante de “cada absurdo”. Em outras
palavras, a disciplina intelectual que predicava estava contida em sua
célebre fórmula, que foi de Romain Rolland: “pessimismo da inteligência,
otimismo da vontade” (Q 28, p. 2331-2332).
A centralidade do intelectual como organizador da hegemonia
emergia também de uma outra consideração: para Gramsci, o lorianismo
sempre se esconde onde faltam os anticorpos da crítica, onde a opinião
pública é desligada, silenciada ou censurada. Se é verdade que na
sociedade “pós-moderna o lorianismo é elevado a norma”,21 a categoria
não perdeu hoje o seu potencial explicativo e esclarecedor. Não é
certamente no Pulcinellaland, o país de Pulcinella, para usar e expressão
de Engels revocada pelo próprio Gramsci, que “[...] proclama em voz alta
a liberdade e a ordem, e treme a cada palavra estridente, a cada afirmação
teórica de princípio.” (GRAMSCI, 1919, p. 182)22.

20
Referindo-se a intelectuais como Loria, tão escutados pela opinião pública em razão do prestígio que
desfrutavam e não certamente pela parte de verdade que ajudavam a esclarecer, Gramsci escreveu em 1918
em um artigo intitulado Bolchevismo intelectual: “A polêmica estrita e pessoal, ainda que pareça exagerada, tem
sempre um valor educativo: destruir a idolatria, habituar a dar maior importância às coisas que às palavras,
habituar a controlar tudo, também as palavras dos cientistas”. Bolscevismo intellettuale. In: Avanti!, edizione
piemontese, 16 de maio de 1918 (GRAMSCI, 1958, p. 226).
21
“São muito mais numerosas as formas nas quais se manifesta o novo lorianismo, em comparação ao passado:
o fingimento do talkshow dos intelectuais, a despolitização da inteligência, o interesse teórico indiferenciado
sobre qualquer produção cultural, em suma, um tipo de abolição dos limites disciplinares, que reduz a filosofia,
a sociologia, a etnologia, a linguística e a estética a uma única e transbordante mistura de lugares comuns, de
teses sem fundamento e de metáforas não convencionais. Seria necessário poder entender e criticar tudo isto”
(REITZ, 1997, p. 212-213).
22
GRAMSCI, Antonio. Il paese di Pulcinella. In: Avanti!, edizione piemontese, 30 de janeiro de 1919
(GRAMSCI, 1967).

110
Gramsci e seus contemporâneos

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114
Max Weber

Michele Filippini1

A relação entre Antonio Gramsci e Max Weber é uma relação


indireta, no sentido que ela não pode ser reconstruída com base nos
encontros pessoais ou nas poucas referências explícitas do primeiro ao
segundo (Weber morre quando Gramsci inicia sua atividade). Isso não
impede, todavia, de se reconstituir um traço teórico comum que ambos,
a partir de posições políticas e subjetivas diversas, identificaram na crise
política da ordem liberal do século XIX-XX.
A investigação dessa relação, através dos escritos que eles nos
deixaram, deve então partir necessariamente de uma consideração geral:
ambos questionaram a natureza política daquilo que não é normalmente
considerado como eminentemente político, a saber, a sociedade em si como
um campo de forças, durante um período de transformações epocais seja na
forma como nos conteúdos da justificação do poder político. De forma mais
geral, pode-se dizer que para isso Weber utilizou o conceito de legitimidade
e Gramsci o de hegemonia; e mais particularmente, ambos interessaram-se
pelo fenômeno da burocratização e pela figura do intelectual/funcionário.
Este estudo levou-os a refletir sobre um conceito novo de poder, determinado
a partir das tensões que se geram no âmbito social e que têm um significado
eminentemente político, assim como um efeito sobre a organização do
poder político em todas as suas formas, sobretudo nas formas institucionais.
Tratando do entrelaçamento entre a resistência das formas institucionais e a
força necessária ao projeto político para modificá-las, ambos identificaram
1
Tradução: Sabrina Areco.

115
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

uma mutação antropológica no homem moderno traçando um possível


destino que oscila entre uma passividade mecânica e uma nova forma de
liberdade. Por isso, ambos dedicaram grande interesse às novas formas de
produção massificada e ao modelo americano de organização do trabalho e
da sociedade. Ambos, um a partir de uma sólida posição burguesa e o outro
comunista, procuraram tratar do advento do social em seu próprio campo,
reformulando os pressupostos de suas próprias tradições de pensamento, o
liberalismo burguês e o comunismo marxiano-leninista.
O primeiro núcleo forte de pensamento que os dois compartilham
refere-se aos processos de burocratização, entendidos em seu sentido mais
amplo. A contribuição de Weber para uma definição de um paradigma
teórico para a moderna forma burocrática de organização do poder é
sintetizada em algumas partes de sua grande obra póstuma: Economia e
sociedade (WEBER, 1999). O tema da “crescente burocratização” e dos
seus efeitos na condução da vida representa uma das teses principais de seu
trabalho. O desenvolvimento do poder burocrático muda o fundamento
da legitimidade do domínio estatal, que passa de um poder legitimado
pela tradição para um baseado na legalidade formal dos procedimentos,
ou seja, «na crença da legalidade das ordenações instituídas e no direito de
domínio que são chamados a exercer o poder (poder legal) de acordo com
elas» (WEBER, 1999, v. I, p. 210). Esta forma determinada de legitimidade
investe algumas figuras com o poder de domínio, baseado na instituição
da lei, criando assim um «tipo ideal» específico, aquele do «funcionário».
Este poder burocrático, que se baseia em uma legitimação legal-racional, é
para Weber «um inevitável fenômeno colateral da moderna democracia de
massa», e como tal chega ao poder «na base de um nivelamento, ao menos
relativo, das diferenças econômicas e sociais na importância que possuem
para o exercício das funções administrativas». O funcionário age então
«sem considerações pessoais» (WEBER, 1999, v. I, p. 76), favorecendo o
processo no qual «a realização consequente do poder burocrático significa
o nivelamento da “honra” de classe». O processo de democratização está
assim, a montante e a justante, no desenvolvimento burocrático, é uma
premissa e ao mesmo tempo consequência mesmo se os dois fenômenos
possam encontrar-se em oposição uma vez sedimentados os específicos
aparatos de poder:

116
Gramsci e seus contemporâneos

[...] a democratização – prossegue Weber – é na verdade um terreno


particularmente favorável ao fenômeno da burocratização mas […]
devemos examinar ainda repetidamente que a “democracia” enquanto
tal – não obstante e em função de sua inevitável, mas não desejável,
exigência de burocratização – é adversária do “poder” da burocracia
(WEBER, 1999, v. I, p. 90).

Portanto, os dois poderes podem estar em conflito entre si


enquanto os dois processos têm uma afinidade substancial que consiste
no nivelamento dos dominados, na igualdade resultante da comum
submissão a uma autoridade: «a “democratização”, no sentido aqui
utilizado, não deve significar um aumento necessário de participação ativa
dos dominados no poder da formação social em questão». O processo ao
centro da análise weberiana é, ao contrário, aquele da «democratização
“passiva”», vinculado à «“igualdade jurídica” dos dominados» e não à
participação destes no poder (WEBER, 1999, v. I, p. 85-86).
A ascensão do poder burocrático e da figura do funcionário, assim
como a democratização passiva, são elementos também abordados, ainda
que de modo menos sistemático, nas notas gramscianas dos Quaderni
del carcere. Antes de assinalar as continuidades e diferenças entre as duas
análises convém fixar alguns pontos de partida desta relação: Gramsci
tinha no cárcere (mas apenas a partir de 1934) uma antologia de textos
organizada por Robert Michels chamada Politica ed economia [Política
e economia], na qual foram traduzidos trechos de Economia e sociedade
sobre Tipos de poder e sobre Carisma;2 possuia e cita repetidamente o
texto de 1918 Parlamento e governo na Alemanha reordenada, assim como
o ensaio A ética protestante e o espírito do capitalismo.3 É também muito
provável que durante sua estadia em Viena entre 1923-24 Gramsci tenha
lido algumas das obras de Weber, que havia falecido há pouco tempo,

2
Os textos correspondentes da edição italiana são: I tipi del potere, cap. III de Max Weber, Economia e società,
Vol. I, a cura di Pietro Rossi, Edizioni di comunità, 1999, p. 207-97 e Il potere carismatico e la sua trasformazione,
primeira parte da seção V do cap. VIII em Max Weber, Economia e società, Vol. IV, cit., p. 218-39 (a tradução
não se reporta ao texto inteiro, mas salta frases inteiras ou períodos).
3
Gramsci possuía no cárcere a seguinte versão: Max Weber, L’etica protestante e lo spirito del capitalismo, tradução
de Piero Burresi, publicada de forma fracionada em Nuovi studi di diritto, economia e politica, IV, nn. 3-4 (maio-
agosto) 1931, p. 176-223; 5 (setembro-outubro) 1931, p. 284-311; 6 (novembro-dezembro) 1931, p. 369-96;
V, nn. 1 (janeiro-fevereiro) 1932, p. 58-72, e 3-4-5 (maio-outubro) 1932, p. 179-231.

117
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

entra as quais a famosa conferência A política como vocação.4


Gramsci aborda a questão da burocracia em numerosas passagens
dos Quaderni. Em uma breve nota do caderno 8 (1931-32) fez emergir
uma abordagem comum à reflexão weberiana e que, ainda que tenha
certamente motivações diferentes, percorre o mesmo terreno da crise de
legitimidade da política e do Estado.
Maquiavel. História da burocracia. O fato de que o desenvolvimento
histórico e das formas econômicas e políticas tenha formado o tipo
de funcionário técnico tem uma importância primordial. Foi uma
necessidade ou uma degeneração, como sustentam os liberistas? Cada
forma de sociedade teve o seu problema sobre os funcionários, o seu
modo de colocar e resolver a questão, seu sistema de seleção e o seu
“tipo” de funcionário a educar. Examinar o desenvolvimento de todos
esses elementos é de importância capital. Em parte esse problema
coincide com o problema dos intelectuais. (Q 9, 21, p. 1109).

A nota apresenta potentes ecos weberianos. Emerge a questão


sobre se a formação do «tipo de funcionário técnico» seria uma necessidade
ou uma degeneração do «desenvolvimento histórico e das formas econômicas
e políticas». É evidente como para Gramsci o problema da criação de um
grupo de funcionários dedicados à administração da “vida organizada”
representa essencialmente uma necessidade, constatada na asserção de que
«cada forma de sociedade teve o seu problema sobre os funcionários».
Gramsci reafirma essa posição em uma nota sucessiva, quando o problema
que se coloca não é mais aquele da necessidade da burocracia (agora,
escreve, «burocracia tornou-se necessidade»), mas sim aquele da relação
entre burocracia e política: «a questão deve ser colocada sobre a formação
de uma burocracia honesta e desinteressada, que não abusa de sua função
para se tornar independente do controle de sistema representativo» (Q 8,
55, p. 974). E ainda mais adiante, em uma nota do caderno 14 (1932-35)
que trata da crítica ao parlamentarismo, diz:
Que o regime representativo possa politicamente “incomodar” a
burocracia de carreira se compreende, mas essa não é a questão. A
questão é se é [o] regime representativo e de partidos, ao invés de

4
Gramsci transfere-se de Moscou à Viena em novembro de 1923 e permanece até maio de 1924 com o objetivo
de intensificar e coordenar o trabalho político do PCd’I na Itália, não podendo retornar em razão de um
mandado de prisão emitido contra ele em fevereiro de 1923.

118
Gramsci e seus contemporâneos

ser um mecanismo idôneo para escolher os funcionários eleitos que


integram e equilibram as burocracias nomeadas, para impedir [essas]
que se petrifiquem, se tornou um obstáculo e um mecanismo inverso
e por quais razões. De resto, mesmo uma resposta afirmativa a esta
pergunta não exaure a questão: porque, mesmo que admitido (o que é
de se admitir) que o parlamentarismo tornou-se ineficiente e mesmo
danoso, não se pode concluir que o regime burocrático seja reabilitado
e exaltado. (Q 14, 49, p. 1708).

Paralelamente à crítica das degenerações burocráticas do


parlamentarismo e do regime representativo, Gramsci direciona sua
atenção à progressiva burocratização da atividade política como fator
epocal e irresistível da nascente política de massa. Caso se pretenda estudar
a “forma partido”, escreve Gramsci, «é preciso distinguir: o grupo social; a
massa do partido; a burocracia ou estado maior do partido. Esta última é a
força consuetudinária mais perigosa: caso se organize como um corpo em
si, solidário e independente, o partido termina por se tornar anacrônico».
A perda da «base social histórica» do partido e de sua capacidade de
“aderência” com o real conduz à «crise dos partidos», que não obstante
mantém ainda um papel central na vida política.
Ainda que não se possa atribuir a Gramsci o mérito de ter
encontrado uma solução para a complexa relação entre democracia e
burocracia, é preciso reconhecer seu mérito de ter tratado pela primeira
vez, ao menos no campo marxista, da espinhosa questão. O conflito
entre poder burocrático e democrático, esse último na forma burguesa da
representação parlamentar, é para Gramsci inerente ao desenvolvimento da
sociedade moderna e uma tendência de longa duração com a qual também
os comunistas deverão lidar. O aspecto “inelutável” do confronto de
poderes foi reconhecido também por Weber, que havia identificado como
marca característica e necessária do mundo contemporâneo a «organização
rigorosamente racional do trabalho sob o terreno da técnica racional». Para
Weber «a ampliação da “socialização” significa inevitavelmente a ampliação
da burocratização» (WEBER, 1982, p. 82), porque «a burocracia, em
relação aos outros fatores históricos do moderno ordenamento racional
da vida, distingue-se por sua muito maior indispensabilidade» (WEBER,
1982, p. 91).

119
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

A resposta de Weber ao problema da relação entre burocracia e


sistema representativo é classicamente liberal, ou seja, o fortalecimento
do parlamento «sobre os qual crescem e emergem, no curso da seleção,
a qualidade de chefe não no sentido meramente demagógico, mas
autenticamente político» (WEBER, 1982, p. 114). Gramsci, como veremos,
de uma perspectiva marxista delega sua atenção à fratura de classe que a
burocracia incarna e reproduz. O seu ponto de partida é a reflexão sobre a
fragilidade dos partidos políticos italianos e seu isolamento das massas, que
é crônico «do risorgimento em diante» (Q 3, 119, p. 386). Dez anos antes,
em seu Parlamento e governo também Weber refletia sobre a fragilidade
da burguesia alemã no período guilhermista, e a referência ao texto do
sociólogo alemão é explicitada ao fim da nota gramsciana. Mas se na
Alemanha a imaturidade da classe burguesa e a sua inabilidade no governo
eram atribuídas ao papel paternalista historicamente desempenhado por
Bismarck, para Gramsci a situação italiana caracterizava-se pelo fato de que
[...] o governo atuou como um “partido”, ele é colocado acima dos
partidos não para harmonizar os interesses e as atividades no quadro
permanente da vida e dos interesses estatais nacionais, mas para
desagregá-los, para destacá-los das grandes massas e ter “uma força
de sem-partido ligada ao Governo por vínculos paternalistas de tipo
bonapartista-cesarista” (Q 3, 119, p. 387).

A referência ao governo, neste caso, deve ser lida como referência


à burocracia, como Gramsci esclarece logo em seguida: «a burocracia assim
se separava do país, e através de posições administrativas transformava-se
em um verdadeiro partido político, e o pior de todos porque a hierarquia
burocrática substituía a hierarquia intelectual e política: a burocracia se
convertia precisamente em partido estatal-bonapartista» (Q 3, 119, p.
388). Gramsci trata então do caráter mecânico e brutal da burocracia
italiana reconduzindo-a para sua composição social, ou seja, identificando
os estratos sociais para os quais «a carreira militar e burocrática» é «um
elemento muito importante da vida econômica e da afirmação política».
Reconstrói, em seguida, essa determinada função social e a «psicologia
que é determinada para esta função». Trata-se, no caso, da «pequena e
média burguesia rural», habituada a «comandar politicamente», mas «não
“economicamente”», não tendo funções econômicas mas apenas rendas

120
Gramsci e seus contemporâneos

parasitárias decorrentes da «“bruta” propriedade», «vive sobre a miséria


crônica e o trabalho prolongado do camponês»: uma pequena burguesia
formada por «mortos de fome» (Q 3, 46, p. 224-5), habituada há séculos
à repressão de toda organização do trabalho camponês. Um estrato social
de crucial importância na história da Itália e que ao se tornar burocracia
adquire uma função diretiva específica e que pode coincidir, ao menos em
seus fundamentos, com a «vontade [...] da classe alta»: Gramsci precisa
então que «nesse sentido deve-se entender a função diretiva deste estrato,
e não em sentido absoluto: todavia, isso não é pouca coisa» (Q 4, 66, p.
510).
Tal problemática sobre o papel dos funcionários permite a Gramsci
criticar a «ideologia liberal», que tem como sua principal fragilidade a
recusa em lidar com o problema da «cristalização do pessoal dirigente que
exerce o poder coercitivo e que em um determinado ponto transforma-se
em casta». Esta crítica é retomada também a propósito da definição de
«centralismo burocrático»:
[...] nos Estados, o centralismo burocrático indica que está formado
um grupo restrito privilegiado que tende a perpetuar seus privilégios
regulando e mesmo sufocando o nascimento de forças em conflitos
na base, ainda que estas forças tenham interesses homogêneos aos
interesses dominantes (exemplo, o protecionismo em luta com o
liberismo). (Q 9, 68, p. 1139).

Essas considerações têm como referência polêmica principal


as ideologias liberais que entendem o Estado como «veilleur de nuit»,
como «um Estado cujas funções são limitadas à tutela da ordem pública
e ao respeito das leis», e que se recusam a assumir a dimensão epocal das
transformações estruturais provocadas pela organização burocrática e
estratificação dos níveis de poder na sociedade: «não se insiste sobre o fato
de que, nesta forma de regime (que nunca existiu senão como hipótese-
limite, no papel), a direção do desenvolvimento histórico pertence às
forças privadas, à sociedade civil, que são também “Estado”, na verdade
o próprio Estado» (Q 26, 6, p. 2302). Gramsci amplia a base do Estado
(BUCI-GLUCKSMANN, 1976, fala de “Estado ampliado”) para todas as
formas organizadas da vida civil, para as burocracias estatais, consideradas
muito mais do que um simples “braço executivo” do poder político, e

121
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

mesmo para os partidos políticos, descrevendo um «Estado em sentido


mais orgânico e mais amplo (Estado propriamente dito e sociedade civil)»
(Q 6, 87, p. 763).
O liberalismo do século XIX falhou estruturalmente ao tratar
deste problema e este é um limite fortemente enfatizado por Gramsci, mas
o desafio também deixa em aberto a questão de “como” o comunismo,
entendido como um movimento e como futura sociedade comunista,
pode lidar com o processo de burocratização. Weber, «burguês dotado de
consciência de classe»,5 é o autor liberal que mais avançou na busca de uma
via para a superação da “gaiola da burocratização” e na tentativa de tratar
destas transformações conciliando liberalismo e burocratização, e resolve
a antinomia permanecendo com os pés firmemente fincados na tradição
liberal, chegando a recuperar desta última sua margem extrema, a saber,
sua abertura carismática (FERRARESI, 2003, p. 418-24; NEGRI, 1967,
p. 450).
Retornando às citações gramscianas, encontramos a afirmação de
que o problema dos funcionários «em parte […] coincid[e] com o problema
dos intelectuais», isto é, de como o discurso sobre os intelectuais é também um
discurso sobre o papel das figuras nomeadas para a reprodução das relações
sociais e manutenção da ordem. Os funcionários, os intelectuais, são neste
caso «os “prepostos” do grupo dominante», utilizados para as «funções […]
organizativas e conectivas», são os elementos necessários «para o exercício
das funções subalternas da hegemonia social e do governo político» (Q
12, 1, p. 1519). Formam assim a cadeia de transmissão do aparato estatal
e dependem do «grupo dominante», no sentido em que não representam
um grupo autônomo em relação aos detentores do poder, ainda que não
tenha sido criado e imposto por esse grupo. Mas, ao contrário, o domínio
do grupo dominante depende dele. Gramsci sublinha como «cada relação
nova de propriedade teve necessidade de um novo tipo de funcionário» (Q
9, 21, p. 1109) e, ao apontar a indispensabilidade desta figura, como já
afirmado aqui, busca tematizar o que será um problema central nos anos
que se seguirão: a relação entre socialismo e burocratização. Weber, por sua
vez, advertiu que «em um estado moderno o poder real não se exercita nem

5
Max Weber, carta para Robert Michels de 6 de novembro de 1907, cit. in Wolfgang J. Mommsen, Max Weber
e la politica tedesca. 1890-1920, Il mulino, Bologna 1993, p. 190.

122
Gramsci e seus contemporâneos

nos discursos parlamentares e nem nas enunciações dos soberanos, mas no


uso cotidiano da administração e está necessariamente e inevitavelmente
nas mãos da burocracia» (WEBER, 1982, p. 80). Como consequência deste
dado, abordou os princípios que informam esta organização do poder e o
tipo ideal que ela representa, o funcionário, chegando assim a conclusão
de que « trata-se de algo inevitável com o qual, prioritariamente, também
o socialismo deverá confrontar-se» (WEBER, 1998, p. 109).
Em suma, pode-se dizer que Gramsci assume plenamente o fato
de que a organização de um corpo de funcionários diferenciados pela
especialização técnica é a característica dos modernos sistemas de domínio
e partindo de tal fato tenta reformular as formas de luta política.
O “tecnicismo” político moderno mudou completamente depois de 48,
depois da expansão do parlamentarismo, do regime associativo sindical
e de partido, da formação de vastas burocracias estatais e “privadas”
(político-privada, de partido e sindicais) e das transformações ocorridas
na organização da polícia em sentido amplo, isto é, não só do serviço
estatal destinado à repressão da delinquência, mas do conjunto de
forças organizadas pelo Estado e pelos privados para tutela o domínio
[político e econômico] da classe dirigente. Nesse sentido, partidos
“políticos” e outras organizações econômicas ou de outro gênero devem
ser considerados organismos de polícia política de caráter “repressivo” e
“investigativo”. (Q 9, 133, p. 1195).

Gramsci exprime nesta citação a constatação que «se reproduz neste


campo a mesma situação estudada a propósito da fórmula jacobina de tipo
1848 da “revolução permanente”», ou seja, a passagem de uma estratégia
de “assalto” para a fórmula de «hegemonia civil». Portanto, é o reforço do
domínio estatal, como efeito da burocratização tanto do Estado como das
organizações “privadas” como partidos e sindicatos, o ponto fundamental
em torno do qual orbitam as considerações gramscianas. E sob esse plano
nota-se também a forte simetria entre a conceitualização da “democratização
passiva” em Weber e a de “revolução passiva” em Gramsci. Weber escreve
como uma democracia sem parlamento, ou seja, sem seleção dos chefes
e, portanto, sem o elemento “político”, produziria uma «democratização
exclusivamente passiva [que] seria uma forma absolutamente pura do poder
burocrático livre de controles» (WEBER, 1982, p. 168). Gramsci por sua
vez chama de «revolução passiva [a] ausência de uma iniciativa popular

123
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

unitária no desenvolvimento da história italiana», reafirmando a força dos


processos impostos pelo alto da política subjetiva das massas. Para um como
para outro, a passividade das massas na construção da história é resultado
daquele potente processo de disciplinamento que investe todos os campos
da existência humana. Ambos tratam desse processo de «disciplinamento
social» através da categoria de passividade: mas, se para Weber o dilema que
permanece é aquele “democrático”, que se interessa então pelas mutações de
longo período nos termos da liberdade individual, para Gramsci o dilema
torna-se em vez disso “revolucionário”. A diferença terminológica esconde
uma substancial diferença política: Gramsci empenhava-se na tentativa de
articular um conceito de revolução à altura das transformações em curso,
que leve em conta os “grupos tradicionais” e seu peso específico, sua força
para modificar o êxito da revolução e sua capacidade de se manter no poder
mesmo diante de crises momentâneas. A revolução sofre então em Gramsci
uma abertura conceitual à “realidade do presente”, não nos termos de uma
mediação com os grupos tradicionais, mas no sentido realistas de assumir a
novidade epocal da solidez da sociedade civil que se vislumbra por trás da
«oscilação do Estado» (Q 7, 16, p. 866).
As soluções resultantes das análises de Weber e Gramsci são,
portanto, diferentes. Em Weber, o homem político capaz de lidar com as
transformações do presente é descrito em termos trágicos: é essencialmente
o homem heroico que pode compatibilizar carisma e burocracia. Em
Gramsci o resultado é mais construtivo, avançando para a definição de um
novo tipo de intelectual que combine os elementos técnicos com aqueles
mais estritamente políticos e manifestos por meio da ligação com o seu
grupo social. A famosa distinção gramsciana entre intelectuais tradicionais
e intelectuais orgânicos pode também ser lida como uma distinção entre
função técnica e função política do intelectual. Os intelectuais tradicionais
representam a capacidade técnica de manter a estrutura formal de domínio
e ao fazê-lo executam a função política da manutenção desta ordem.
Os intelectuais orgânicos, por sua vez, são a especialização técnica de
um grupo social em ascensão que reivindica para si o poder político. A
novidade da análise gramsciana situa-se na constatação do duplo papel
político e indispensavelmente técnico desta figura no panorama moderno.
Os «intelectuais orgânicos», ou melhor, os novos intelectuais que o grupo

124
Gramsci e seus contemporâneos

em ascensão deve ser capaz de fazer emergir, devem aspirar tanto o papel
“técnico” na relação com o grupo social ao qual está vinculado como
também a direção política da sociedade, somando assim função política e
técnica - essa vinculada ao trabalho industrial.
O tipo tradicional e vulgarizado do intelectual é dado pelo literato, pelo
filósofo, pelo artista. […] No mundo moderno, a educação técnica,
estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo ao mais primitivo
e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual.
[…] O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na
eloquência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas
numa inserção ativa na vida prática, como construtor, organizador,
“persuasor permanentemente”, já que não apenas orador puro —
mas superior ao espírito matemático abstrato; da técnica-trabalho,
chega à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual
permanece “especialista” e não se torna “dirigente” (especialista +
político) (Q 12, 3, p. 1551).

É o «dirigente», o «especialista + político», o horizonte que


Gramsci vislumbra para uma nova estratégia de longo curso (cfr. também
Gramsci, 1970, p. 150). Para conseguir romper o domínio burocrático
com os seus sedimentos e os seus intelectuais tradicionais e para poder
fazer política revolucionária, deve-se somar a capacidade política de direção
com a necessidade técnica de um estrato especializado de intelectuais
“dirigentes”. Em Weber essa dualidade apresenta-se como conflito entre
éticas diversas: «o espaço da ação política […] de um lado, encontra seu
próprio extremo na rotina burocrática, na racionalidade conservadora, na
técnica de administração; e de outro, no ímpeto desenraizante da “revolução
permanente”» (CACCIARI, 2006, p. XXX). Em Gramsci o conflito entre
as duas éticas não é tematizado, mas amplamente estimulada a “soma” dos
dois elementos, o «especialista + político», como única resposta possível à
exigência de reativação da política (revolucionária) no presente.
Na conclusão desta primeira reconstrução pode-se destacar que os
elementos aqui acenados fazem parte de uma possível assunção de Gramsci
do discurso weberiano sobre burocracia, o que significaria a colocação
de alguns nós conceituais weberianos no âmbito do projeto gramsciano
de uma “sociologia do político”. Podemos assim sintetizar esses nós: 1) a
identificação do funcionário como «tipo», ou seja, como figura específica da

125
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

racionalização burocrática, 2) o reconhecimento da superioridade técnica


do funcionário burocrático e, portanto, de sua indispensabilidade e 3) o
problema da relação da burocracia e política na época da burocratização
universal.
Uma diversa perspectiva para observar a relação Gramsci-Weber
e que identifica outro núcleo forte do pensamento em torno do qual os
dois autores se interrogam é o americanismo como novo sistema produtivo
e de organização social. Americanismo e fordismo é um caderno muito
importante no qual Gramsci confronta-se com um problema central que
se pode preliminarmente formular deste modo: a moderna «racionalização
do trabalho» (Q 22, 11, p. 2164) e os efeitos que esta tem sobre um «novo
modo de vida» (Q 22, 15, p. 2179) e sobre a criação de um «tipo novo
de trabalhador e de homem» (Q 22, 11, p. 2165). Vista desta perspectiva,
as notas gramscianas sobre americanismo e fordismo lembram as notas
muito menos conhecidas de Max Weber sobre a psicofísica do trabalho
industrial, contidas em dois ensaios escritos para a investigação sobre
Seleção e adaptação promovida pela Verein für Sozialpolitik entre 1909
e 1911 (DE FEO, 1992). O centro do interesse dos dois autores é a
avaliação de um fenômeno de racionalização produtiva que leva consigo
uma espetacular racionalização da conduta de vida. Um processo que é
considerado “objetivo”, irreversível, a ser enfrentado na investigação sobre
um novo tipo de homem e sobre suas características éticas e políticas.
A formalização das relações sociais que no âmbito político
leva à crescente burocratização é espelhada no âmbito produtivo com
uma nova forma de interação entre homem e natureza que cria uma
nova relação entre trabalhador e processo de trabalho, entre trabalho e
capital, entre “tipos humanos” diferentes. Uma análise comparada das
duas contribuições - mesmo que partindo do pressuposto que os escritos
weberianos dificilmente tenham chegado diretamente a Gramsci - pode
mostrar uma conceitualização comum que opera no ponto mais dinâmico
e que anuncia as mudanças do ponto de vista produtivo, mas também da
organização social: a dimensão do trabalho industrial na grande fábrica
moderna.
Gramsci não esteve jamais na América, Americanismo e fordismo
é o fruto de uma série de sugestões obtidas da leitura de livros e artigos

126
Gramsci e seus contemporâneos

consultados essencialmente no cárcere. As escassas fontes através das quais


se pode reconstruir a trama teórica das notas gramsciana são dois livros de
Lucien Romier (1927) e André Siegfried (1927), três volumes de Henry
Ford (1926, 1926, 1931) e, provavelmente, um opúsculo do sociólogo
belga Henri De Man (1919). Por fim, duas fontes “literárias”: o romance
Babbit de Sinclair Lewis (1930) e o número especial de Die Literarische
Welt sobre literatura americana, que Gramsci traduz no cárcere6.
As páginas que Weber dedica ao tema “seleção e adaptação” têm
uma gênese diversa. Weber percorreu no verão de 1908 uma indústria
têxtil da família em Oerlinghausen, quando «imerge no exame dos livros
de pagamento e dos quadros de registros de horário, cálculo das curvas de
desempenho por hora, dia e semana dos tecelões, com o propósito de sondar
as causas psicofísicas das variações da produtividade» (WEBER, 1995, p.
414). Sua pesquisa de campo é enriquecida com o exame cuidadoso dos
estudos existentes na época sobre psicofísica, em particular os de Emil
Kräpelin. Weber precisa seu interesse já nas primeiras páginas de Por uma
psicofísica do trabalho industrial:
A presente investigação busca estabelecer, de um lado, qual efeito
a Grande indústria exerce sobre as características pessoais, destino
profissional e mesmo sobre o “estilo de vida” extraprofissional dos
trabalhadores, quais qualidades psíquicas e físicas são desenvolvidas
neles e como tudo isso se manifesta na condição geral de sua vida;
de outro lado, em que medida a grande indústria depende, para seu
desempenho e seus percursos de desenvolvimento, de determinadas
características dos trabalhadores com base em sua origem étnica, social,
cultural, tradição e condições de vida. (WEBER, 2000, p. 37).

Podemos já traçar o duplo movimento que Weber pretende


realizar. De um lado, estudar os processos de seleção do “corpo social
produtivo”7 que a moderna indústria realiza e que “favorecem” algumas
«qualidades “caracterológicas”» (WEBER, 2000, p. 53) em relação a outras,
mesmo alguns “tipos humanos” em relação a outros. De outro, estudar
6
Antonio Gramsci, caderno A, “Die Literarische Welt” - número especial de 14 de outubro de 1927, dedicado à
Literatura dos Estados Unidos, em Antonio Gramsci, Quaderni del carcere, Vol. I, Quaderni di traduzioni (1929-
1932), Tomo 1, Roma, Istituto della Enciclopedia Italiana, 2007, p. 43-120.
7
Metamorfosi del corpo sociale produttivo é o título do posfácio de Giuseppe Cascione a Max Weber, Per una
psicofisica del lavoro industriale, in Id., La fabbrica dei corpi. Studi sull’industria tedesca, a cura di Angelo Chielli
e Giuseppe Cascione, Bari, Palomar, 2000, p. 115-45.

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

como e quanto a moderna indústria depende em suas possibilidades de


desenvolvimento de características específicas do corpo social produtivo,
sejam essas étnicas, sociais, culturais ou mesmo características psicofísicas
gerais. Se nos concentrarmos na primeira destas duas relações, que trata
do tipo de trabalhador que a indústria moderna seleciona e promove,
podemos começar a ver o caminho comum seguido por Weber e Gramsci.
Escreve Weber dando as indicações gerais aos pesquisadores da Verein:
[...] deve-se estudar de um lado o tipo de “processo de seleção” que a
grande indústria, em conformidade com as suas próprias necessidades,
implementa sob a população com a qual está vinculada através de
seu destino profissional; de outro, o tipo de “adaptação” do pessoal
empregado no trabalho “físico” ou “intelectual” nas grandes indústrias
às condições de vida que estes devem oferecer-lhes. Ao fazer isso,
nós nos aproximaremos gradualmente da resposta para a seguinte
pergunta: que tipo de homem é forjado pela grande indústria como
consequência de sua característica intrínseca, e qual destino profissional
(e, indiretamente, também extraprofissional) que essa lhe prepara?
(WEBER, 2000, p. 82-83).

A grande indústria, com as suas necessidades específicas, seleciona


e realiza o processo de adaptação do corpo social produtivo, modificando
o destino profissional, mas também extraprofissional, do novo tipo
de trabalhador. A seleção baseia-se nas «intrínsecas características» da
indústria, que estão cada vez mais direcionadas para uma decomposição e
mecanização do trabalho e para promover comportamentos e predisposições
para a ritmização, o automatismo e a aquisição de um novo nexo psicofísico
que repercute necessariamente também sobre o destino extraprofissional
do trabalhador. A mudança do nexo psíquico que a indústria moderna
requer é um ponto central também da análise de Gramsci, que escreve no
caderno 22 como «a vida na indústria demanda um tirocínio geral, um
processo de adaptação psico-físico a determinadas condições de trabalho,
de nutrição, de habitação, de costumes, etc., que não são inatas, “naturais”,
mas precisam ser adquiridas» (Q 22, 3, p. 2149).
A aquisição de um novo «nexo psicofísico» (Q 22, 11, p. 2165)
é, portanto, o tema central de ambas análises. Um nexo que é criado e
selecionado com base nas exigências industriais e dos novos métodos
produtivos, mas que representa uma etapa histórica no processo mais geral

128
Gramsci e seus contemporâneos

de “seleção e adaptação” que ocorre na humanidade a cada mudança de


civilização. Gramsci entende esse processo em sua generalidade e não se
escandaliza diante de sua profundidade e violência.
A seleção ou “educação” do homem adaptado aos novos tipos de
civilização, isto é, às novas formas de produção e de trabalho, ocorreu
com o emprego de brutalidades inauditas, atirando no inferno das
subclasses os frágeis e os refratários ou os eliminando totalmente. A
cada advento de novos tipos de civilização, ou no curso do processo de
desenvolvimento, ocorreu crise (Q 22, 10, p. 2161).

De sua parte, já no Discurso de Friburgo (1895) Weber havia dirigido


sua atenção aos problemas relacionados à seleção dos tipos humanos no
desenvolvimento da civilização, estudando a mudança da composição social
nos territórios ao leste do Elba como consequência do desenvolvimento
capitalista na agricultura (cfr. FERRARESI; MEZZADRA, 2005). Assim,
se o ordenamento das relações sociais influência a seleção do tipo humano,
a grande indústria moderna é seguramente um dos fatores mais relevante
na mudança deste ordenamento. Weber, como recordamos, escreve os dois
ensaios sobre a psicofísica do trabalho industrial em contato direto com
os operários da fábrica têxtil em Oerlinghausen, mas também apoiado
nas impressões obtidas na longa viagem aos Estados Unidos no ano
precedente, onde visitou os modernos complexos industriais e estudou as
características dos novos trabalhadores, assim como os grandes abatedouros
de Chicago, onde «no ritmo de seu trabalho […] os operários são sempre
ligados à máquina que os empurra adiante» (cit. in WEBER, 1995, p.
366). Gramsci, não tendo uma experiência direta como Weber, sublinha
como «na América a racionalização determinou a necessidade de elaborar
um novo tipo humano, em conformidade com o novo tipo de trabalho e
de processo produtivo» (Q 22, 2, p. 2146). Ambos reconhecem o fascínio
de uma mudança assim relevante, identificando o modelo americano - nas
palavras de Gramsci - como «o maior esforço coletivo verificado até agora
para criar com rapidez inaudita e com consciência do fim nunca visto na
história um tipo novo de trabalhador e de homem» (Q 22, 11, 2165).
Portanto, podemos dizer que os estudos weberianos Sobre a psicofísica do
trabalhado industrial e o gramsciano caderno 22 dedicado ao Americanismo
e fordismo enfrentam o mesmo núcleo de problemas: qual tipo humano
é forjado na grande indústria moderna? Qual é o novo nexo psico-físico

129
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
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(Org.)

adequado aos novos métodos produtivos? E, enfim, qual qualidade de


homens reserva este desenvolvimento e qual o “futuro político” desta nova
humanidade? (cfr. BARATTA; CATONE, 1989).
Weber inicia a exposição sobre a psicofísica apontando como
os «extraordinários progressos da pesquisa antropológica, fisiológica,
psicológico-experimental e psico-patológica» não correspondem a sua
utilização na «análise sócio-científica do trabalho econômico» (WEBER,
1983, p. 121). A colaboração entre estas disciplinas e «a ciência social do
trabalho moderno» deveria ao contrário «constituir o ponto de partida
para qualquer discussão». Weber explicita esta convicção apoiando-se na
seguinte consideração:
Qualquer processo de “divisão do trabalho” e “especialização”,
especialmente a “desmontagem do trabalho” dentro das grandes
empresas modernas, qualquer mudança do processo de trabalho em
geral devido à introdução e à mudança de instrumentos de trabalho
(máquinas), qualquer mudança na jornada de trabalho e nas pausas de
trabalho, qualquer introdução ou mudança no sistema de pagamento
que visa a premiação de determinados rendimentos qualitativos e
quantitativos de trabalho, - cada um desses processos significa, em
cada caso particular, uma mudança das exigências colocadas ao aparato
psicofísico do trabalhador. (WEBER, 1983, p. 121).

Há já aqui um eficaz sumário dos elementos que para Weber


influenciam a seleção e a adaptação dos trabalhadores à grande indústria:
inovação tecnológica e nova relação homem/máquina, tempo de trabalho
e sua intensidade, organização do sistema de salário. Aquilo que interessa
Weber não é uma análise das mudanças tecnológicas «como um fim em
si», mas sobretudo «apenas a acurada análise das manipulações que os
operários devem efetuar um vez colocados diante da máquina […] a
partir do problema de quais capacidades específicas são potencializadas
como resultado da concreta manipulação característica de cada categoria
de operários». Para fazer isto – prossegue – é preciso estudar a relação
entre a aquisição destas características e «a diversidade da proveniência
geográfica, étnica, social e cultural dos trabalhadores e o eventual efeito
exercido sobre a capacidade de aprendizagem» (WEBER, 2000, p. 49). As
questões sobre as quais a investigação deve oferecer uma resposta ao menos
parcial estão então relacionadas com a «qualidade “caracterológica” dos

130
Gramsci e seus contemporâneos

trabalhadores, assim como com o desenvolvimento da grande indústria»


(WEBER, 2000, p. 53).
A análise weberiana sobre esse tema encontra-se em um nível
ainda “exploratório”. Em 1908-1909, anos nos quais são redigidos seus dois
ensaios, a scientific management é ainda pouco conhecida e empregada nos
Estados Unidos, e somente dois anos depois foi publicado o Principles of
scientific management de Taylor e Henry Ford se preparava para a produção
em grande escala e introdução no mercado do seu modelo T. Os estudos
weberianos são, portanto, orientados pela percepção da necessidade de
estudar um fenômeno novo, consciente de suas consequências epocais
em termos de «qualidade “caracterológica” dos trabalhadores» (WEBER,
2000, p. 53), mas não ainda capazes de formular um juízo histórico ou de
identificar tendências sobre as modificações em curso. Se Weber escreve
seus ensaios no despertar das mudanças epocais, Gramsci, ao contrário,
escreve as notas sobre o Americanismo e fordismo entre 1929 e 1934, quando
a revolução fordista havia já desenvolvido boa parte de seu potencial, e
assim pode refletir, ainda que parcialmente, sobre um fenômeno que havia
já começado a delinear algumas coordenadas “epocais”. Sua atenção, no
entanto, concentra-se no ponto já fixado por Weber, ou seja, sobre o novo
nexo psicofísico que a indústria “seleciona” e busca “adaptar” no novo tipo
de trabalhador.
Taylor [...] expressa com brutal cinismo o objetivo da sociedade
americana: desenvolver em seu grau máximo, no trabalhador, os
comportamentos maquinais e automáticos, quebrar a velha conexão
psicofísica do trabalho profissional qualificado, que exigia uma
certa participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa do
trabalhador, e reduzir as operações produtivas apenas ao aspecto físico
maquinal. (Q 22, 11, p. 2165).

A parte “destrutiva” do processo em curso, diante da qual Gramsci


não se escandaliza, «na verdade não se trata de uma novidade original:
trata-se somente da fase mais recente de um longo processo que se iniciou
com o nascimento do industrialismo, fase que é somente mais intensa
que as precedentes e que se manifesta em formas mais brutais». O nexo
psicofísico do trabalhador qualificado é rompido, ocorrendo assim «uma
seleção forçada, uma parte da velha classe trabalhadora será impiedosamente

131
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
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eliminada do mundo do trabalho e mesmo do mundo tout court». Mas a


ruptura desse nexo e a seleção resultante abre caminho para um «novo nexo
psicofísico de tipo diferente do precedente» (Q 22, 11, p. 2165), com novas
características e, provavelmente, novas potencialidades políticas. É esse
processo de «adaptação psicofísica à nova estrutura industrial» (Q 22, 2,
p. 2146) que interessa Gramsci, tendo como plano de fundo uma possível
racionalização «não de marca americana, para transformar em “liberdade”
aquilo que hoje é “necessidade» (Q 22, 15, p. 2179). A primeira questão
a qual Gramsci responde trata então do «alcance objetivo do fenômeno
americano» (Q 22, 11, p. 2165).
Postas estas questões, apresenta-se o seguinte problema: se o tipo de
indústria e de organização do trabalho e de produção próprio da Ford
é “racional”, isto é, se pode e deve generalizar-se, ou se, ao contrário,
trata-se de um fenômeno mórbido a ser combatido com a força dos
sindicatos e com a legislação. Ou seja: se é possível, com a pressão
material e moral da sociedade e do Estado, fazer com que os operários
como massa sofram todo o processo de transformação psicofísica
capaz de transformar o tipo médio do operário Ford no tipo médio do
operário moderno, ou se isto é impossível, já que levaria à degeneração
física e à deterioração da espécie, destruindo toda força de trabalho (Q
22, 13, p. 2173).

A questão é abordada, com o mesmo tom e quase com as


mesmas palavras que Weber havia utilizado vinte anos antes, é então: o
que anunciam para o futuro as mudanças na indústria moderna? O que
promovem estes «elementos de “nova cultura” e de “novo modo de vida”
que hoje se difundem sob a etiqueta de americana»? (Q 22, 15, p. 2179).
Eles são “racionais”, capazes de se generalizar e forjar um novo “tipo
humano”? E qual o futuro para este “homem novo”? Gramsci responde à
questão de forma precisa e circunstanciada, associando ao tema técnico-
científico a questão do domínio como disciplinamento.
Parece ser possível responder que o método Ford é “racional”, isto é, deve
se generalizar, mas para isso é necessário um longo processo, no qual
ocorrerá uma mudança nas condições sociais e dos costumes e hábitos
individuais, o que não pode ocorrer apenas através de “coerção”, mas
apenas com uma combinação de coação (autodisciplina) e persuasão
(Q 22, 13, p. 2173).

132
Gramsci e seus contemporâneos

O «fenômeno americano» tem um «alcance objetivo», (Q 22, 11,


p. 2165) no sentido que tenderá a se generalizar visto sua superioridade
em termos de eficácia e eficiência do trabalho, mas Gramsci subordina
esta generalização do modelo às «condições sociais», a «uma mudança
dos costumes e hábitos individuais» que não podem ocorrer senão
com «uma combinação de coação (autodisciplina) e persuasão». Se a
persuasão, nesta citação, é representada pelos altos salários que Ford paga
aos trabalhadores qualificados, é interessante notar como a «coação»
não é definida como “imposição”, mas como «autodisciplina», isto é,
como processo por certo compulsório, e por vezes também violento, mas
que depende também da vontade do sujeito sobre o qual o domínio
se exercita. Os novos métodos industriais, assim como o novo tipo de
trabalhador, podem então se generalizar apenas na medida em que o
estímulo à criação de um novo nexo psicofísico “a partir do alto” – como
os altos salários ou aquilo que Weber chama de «chicote constantemente
ameaçador do “desemprego”» (WEBER, 1983, p. 179) – coincide com
um estímulo correspondente “de baixo”, ou seja, o trabalhador mesmo,
que deve apresentar as características que lhe permitam manter o novo,
diverso e mais oneroso nexo psicofísico: «As iniciativas “puritanas” têm
apenas o objetivo de conservar, fora do trabalho, um certo equilíbrio
psicofísico capaz de impedir o colapso fisiológico do trabalhador, coagido
pelo novo método de produção» (Q 22, 11, p. 2166). Entram assim em
jogo, na formação e manutenção do novo nexo, elementos extralaborais
como o uso do álcool, a regulação do instinto sexual e a ética religiosa.
Gramsci dedica a maior parte das páginas de Americanismo e fordismo
a estes componentes não estritamente técnico-econômicos (tayloristas)
do modelo: «os novos métodos de trabalho são indissolúveis de um
determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida: não se pode
obter sucesso em um campo sem obter resultados tangíveis no outro» (Q
22, 11, p. 2164). Ao lado das forças econômicas que pressionam para
a difusão das novas técnicas de produção, importantes mecanismos de
“organicidade social” jogam a mesma partida em terrenos diversos.
É preciso então referir-se às relações técnicas de produção, a um
determinado tipo de civilidade econômica que para ser desenvolvida
demanda um determinado modo de viver, determinadas regras de
conduta, um certo costume. Ocorre persuadir-se que não é apenas

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

“objetivo” e necessário um certo instrumento, mas também um certo


comportamento, uma certa educação, um certo modo de convivência,
etc. (Q 16, 12, pp. 1875-76).

O homem e o trabalhador não são mais duas entidades distintas,


mas sim duas faces da mesma moeda e ambas devem ser racionalizadas, no
campo social e econômico, com a finalidade de consolidar o novo modelo
produtivo. Aos olhos de Gramsci, esse processo se desenrola no mundo
moderno de modo sempre mais abrangente: a «persuasão», a «direção»,
a «hegemonia» em si, não são mais do que tentativas de formalizar
conceitualmente esta mudança, de começar a lidar com o lado “social” da
política e da economia.
Mas o americanismo chega a concluir essa racionalização social?
Gramsci parece responder negativamente a esta questão: «é ainda a fase
de adaptação psicofísica a nova estrutura industrial, buscada através dos
altos salários; ainda não se verificou (antes da crise de 1929), salvo talvez
de modo esporádico, nenhum florescimento “superestrutural”, isto é, não
foi ainda posta a questão fundamental da hegemonia» (Q 22, 2, p. 2146).
O equilíbrio psicofísico do novo trabalhador preservado das «iniciativas
“puritanas” […] só pode ser puramente externo e mecânico, mas pode se
tornar interno se for proposto pelo próprio trabalhador e não imposto de
fora, por uma nova forma de sociedade, com meios apropriados e originais»
(Q 22, 11, p. 2166). A seleção e adaptação dos trabalhadores, em seus
componentes estimulados a partir “de baixo” para a criação “orgânica” de
um novo nexo psicofísico, não produzem nos operários um equivalente
ético àquilo que para os capitalistas é a ética do trabalho, mas ao contrário,
fazem emergir uma subjetividade operária que luta no interior das relações
de forças na fábrica. Um dos passos mais controversos caderno 22 exprime
de modo exploratório esta convicção.
Quando o processo de adaptação se completou, verifica-se na realidade
que o cérebro do operário, em vez de mumificar-se, alcançou um
estado de completa liberdade. Mecanizou-se completamente apenas o
gesto físico; a memória do ofício, reduzido a gestos simples repetitivos
com ritmo intenso, “aninhou-se” nos feixes musculares e nervosos
e deixou o cérebro livre e desimpedido para outras ocupações. […]
Os industriais americanos entenderam muito bem […] que “gorila

134
Gramsci e seus contemporâneos

amestrado” é uma frase, que o operário “infelizmente” continua homem


e até mesmo que, durante o trabalho, pensa mais ou, pelo menos, tem
muito mais possibilidade de pensar, ao menos quando superou a crise
de adaptação e não foi eliminado: e não somente pensa, mas o fato de
que o trabalho não lhe dá satisfações imediatas, e que ele compreenda
que se quer reduzi-lo a um gorila amestrado, pode levá-lo a um curso
de pensamento pouco conformistas. (Q 22, 12, p. 2170-71).

Sobressai, aqui como em outras passagens, a convicção gramsciana


que o americanismo – como racionalização do processo produtivo – é
um fenômeno “objetivo”, mas que pode e deve ser declinado pela “parte
operária”. Um processo que realizou uma seleção e uma adaptação do corpo
social produtivo às novas exigências industriais segundo uma lógica brutal
e mecânica, tanto no comportamento laborativo como extralaborativo,
mas que não pode fazê-lo, sob o risco latente do conflito de classe, sem um
correspondente autodisciplinamento “por parte do operário”, certamente
não sensível à ética do trabalho como fruto secularizado do ascetismo
protestante (RICCIARDI, 2005). A «crise» ditada pelo «advento dos
novos tipos de civilização» são caracterizadas por Gramsci como «crises
de libertinagem», que atingem sobretudo «as classes médias e mesmo uma
parte da classe dominante, que sentiu também a pressão coercitiva que
era necessariamente exercida sob toda a área social». As massas operárias,
por sua vez, sob o julgo da seleção e da adaptação do qual depende sua
possibilidade de vida, são as primeira a adquirir «os hábitos e os costumes
necessários aos novos modos de vida», sobretudo porque «continuam
a sentir a pressão coercitiva sobre as necessidades elementares de sua
existência» (Q 22, 10, pp. 2161-62).
Na realidade, os trabalhadores qualificados italianos, nem
como indivíduos nem como sindicatos, nem ativamente e nem
passivamente, se opuseram às inovações tendentes à redução dos
custos, à racionalização do trabalho, à introdução dos automatismos
mais perfeitos e da mais perfeitas organizações técnicas do conjunto
da empresa. Muito pelo contrário. Uma análise cuidadosa da história
italiana antes de 1922 e mesmo antes de 1926, que não se deixe levar
pelas estrepitosas aparências exteriores, mas saiba captar os motivos
profundos do movimento operário, deve levar à conclusão objetiva
de que o precisamente os operários foram os portadores das novas e
mais modernas exigências industriais e, ao seu modo, defenderam-

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

nas implacavelmente; pode-se mesmo dizer que alguns industriais


compreenderam esse movimento e tentaram se apropriar dele (é desse
modo que se pode explicar a tentativa feita por Agnelli de absorver
“L’Ordine Nuovo” e a sua escola no complexo Fiat, e bem como de
instituir assim uma escola de operários e de técnicos especializados
tendo em vista uma radical mudança industrial e do trabalho através
de sistemas “racionalizados”). (Q 22, 6, p. 2156).

Gramsci recorda «a tentativa feita por Agnelli de absorver


“L’Ordine Nuovo” e a sua escola no complexo Fiat» uma vez constatada
que esse era capaz de afirmar «uma forma própria de “americanismo”
aceitável pelas massas operárias» (Q 22, 2, p. 2146). Sustenta Gramsci
que, longe de se relacionar corporativamente rejeitando as inovações, os
operários qualificados demonstram uma sólida vontade de desenvolver o
aparato produtivo. Esta é uma possibilidade, indissolúvel do seu processo
de auto-organização e do percurso revolucionário iniciado pelo “L’Ordine
Nuovo”, que levaria a « transformar em “liberdade” aquilo que hoje é
“necessidade»» (Q 22, 15, p. 2179).
Temos assim os operários como sujeitos do processo de inovação
dos métodos produtivos e sobre os quais se exerce uma pressão coercitiva
para um novo nexo psicofísico ditado pela necessidade de sobrevivência.
Mas esse nexo não é interiorizado pelo mesmo mecanismo que regula a
ética adquirida do capitalista. Esse, ao contrário, não é interiorizado senão
através das iniciativas puritanas que chegam a conservar um «equilíbrio
[…] puramente exterior e mecânico» (Q 22, 11, p. 2166), ou do sempre
ameaçador “chicote do desemprego”. A classe operária, agora um sujeito
político, encontra-se assim inserida em um verdadeiro campo de forças no
qual, de um lado, é “obrigada” recriar o seu próprio nexo psicofísico para
se adaptar à indústria moderna e, por outro, para lutar contra a imposição
mecânica deste nexo para libertar-se do controle capitalista e poder se
desenvolver completamente.
Também Weber, na descrição da «disciplina» necessária para a
revolução dos métodos produtivos, parece dedicar atenção para este lado
“operário” da disciplina quando menciona que se “necessitaria de uma
análise muito precisa para saber se a educação socialista ou uma introdução

136
Gramsci e seus contemporâneos

mais tardia ao ideário do socialismo também poderia ser apropriada para


despertar qualidades dormentes que favoreçam o rendimento de trabalho”
(WEBER, 1983, p. 212). Mas esta atenção é sempre colocada nos termos de
uma “racionalização produtiva”, nunca no “uso operário do americanismo”;
sempre direcionada à disciplina da classe operária na “comunidade”
nacional, nunca como constituição política autônoma de uma classe
capaz de tomar o poder e organizar a produção. A atenção de Weber aos
comportamentos operários é enfatizada algumas páginas adiante, quando
ele sublinha «o fato que as “convicções” do operariado e especialmente
suas respectivas relações com o empresário influenciarem o rendimento
[…]. Além disso, as reclamações sobre as “freadas” dos trabalhadores já
são antigas» (WEBER, 1983, p. 205). Ou ainda, quando escreve que
«empresários suficientemente imparciais costumam admitir, na questão
da qualidade dos sindicalistas socialdemocratas enquanto trabalhadores,
com grande regularidade e em indústrias muito diferentes entre si: que de
acordo com sua capacidade de rendimento, normalmente encontram-se na
ponta entre todos os trabalhadores» (WEBER, 1983, p. 210). Mas ser um
sindicalista, assim como ter convicções positivas em relação ao trabalho,
não são em Weber elementos que conduzem para uma possível organização
diversa das relações de classes. São, para ele, “características” específicas que
a organização industrial deve saber selecionar, tendo em vista a formação de
um corpo social produtivo adaptado às exigências psicofísicas da indústria
moderna através de um processo de disciplinamento (RICCIARDI, 2005).
As características a se investigar são múltiplas.
Ao lado dos “eventos profissionais”, deverá ser objeto de investigação
também o “estilo de vida” extraprofissional. […] sobre o que se deverá
indagar, em um primeiro momento em termos muito gerais, em que
medida se encontram diferenças notáveis entre os operários da grande
indústria em relação às correspondentes condutas de vida dos outros
estratos da população que dispõem de uma renda similar e análoga
formação escolar, no que diz respeito à vida familiar, a educação dos filhos,
a forma e os costumes da vida social, os hábitos alimentares e de bebidas,
as tendências de interesses intelectuais e estéticos e o tipo e a quantidade
dessas atividades neste campo (leitura), as relações com a escola, as formas
oficiais da vida religiosa e os problemas religiosos, ou de outro tipo
relacionados à “visão do mundo”, etc. (WEBER, 2000, p. 106-07).

137
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

É retomada neste âmbito de reflexão a contínua polêmica que


Weber mantém contra quem enfatiza excessivamente o caráter hereditário,
entendido como biológico, das predisposições ou modos de agir específicos:
«se a psicopatologia pode ensinar algo, é a necessidade de estar atento e
não considerar precipitadamente qualidades complexas e específicas como
“herdadas” no sentido biológico e também a ser o mais cauteloso possível
com a suposição da transmissão “hereditária” (no sentido biológico) de
qualidades psíquicas e psicofísicas “adquiridas” que determinam a aptidão
para o trabalho» (WEBER, 1983, p. 287-89). Este é outro elemento
compartilhado com Gramsci, que afirma a historicidade dessas atividades e
predisposições: «ao conceito de “natural” se contrapõe àquele de “artificial”,
de “convencional”. Mas o que significa “artificial” e “convencional” quando
se refere aos fenômenos de massa? Significa simplesmente “histórico”,
adquirido através do desenvolvimento histórico» (Q 16, 12, p. 1878).
Da análise conduzida pode-se afirmar que há, tanto em Weber
quanto em Gramsci, uma atenção à racionalização da atividade extra-
laborativa, da esfera da vida privada do operário moderno, que é funcional
à manutenção de um nexo psicofísico que o permite suportar os novos
ritmos e o novo tipo de desempenho requerido pela grande indústria. Dois
elementos principais são ressaltados nesta análise: o consumo de álcool e a
regulação do instinto sexual. Escreve Gramsci:
[...] a luta contra o álcool, o mais perigoso agente de destruição das
forças de trabalho, torna-se função do Estado. É possível que outras lutas
“puritanas” também se tornem função do Estado […]. Uma questão
ligada àquela do álcool é a questão sexual: o abuso e a irregularidade das
funções sexuais são, depois do alcoolismo, os inimigos mais perigosos
das energias nervosas e é observação comum que o trabalho “obsessivo”
provoca depravação alcoólica e sexual (Q 22, 11, p. 2166).

Transformar em «função do Estado» tais prescrições significa que


a conduta pessoal que eram «juridicamente indiferentes» (Q 6, 98, p. 773)
e pertenciam à “vida privada” do indivíduo tornaram-se objeto de interesse
e de regulação por parte do Estado, como no caso do proibicionismo, no
âmbito de um «Estado [como] instrumento para adequar a sociedade civil
à estrutura econômica» (Q 10, II, 15, p. 1254). A citação resume os três
elementos que a reflexão gramsciana propõe como chave de leitura da

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Gramsci e seus contemporâneos

racionalização extra-laborativa: 1) o álcool, assim como todo fenômeno


que influencia a capacidade laborativa do operário, torna-se «função do
Estado», ou seja, a própria vida passa a fazer parte do processo disciplinar
que alcança o homem em todas as suas esferas de existência; 2) as «iniciativas
puritanas» para a moralidade dos operários estão, na América, no centro
deste trabalho de racionalização extralaborativa; 3) a regularidade das
«funções sexuais» e a definição estável da figura feminina são elementos
imprescindíveis para a manutenção do nexo psicofísico que a indústria
moderna requer. No que diz respeito aos dois primeiros elementos – a
regulação do uso do álcool e as iniciativas puritanas – Gramsci reitera
como:
[...] na América a racionalização do trabalho e o proibicionismo são
indubitavelmente ligados: as investigações dos industriais sobre a vida
íntima dos operários, os serviços de inspeção criados por algumas
empresas para controlar a moralidade dos operários são necessidades
do novo método de trabalho. Quem ironizasse estas iniciativas
(mesmo fracassadas) e visse nelas apenas uma manifestação hipócrita
de “puritanismo”, estaria se negando a possibilidade de compreender a
importância, o significado e o alcance objetivo do fenômeno americano
(Q 22, 11, pp. 2164-65).

Esta pressão que se exerce sobre o corpo social serve para


«manter a continuidade da eficiência física do trabalhador, […] a sua
eficiência muscular-nervosa», assim como para «ter um quadro estável de
trabalhadores qualificados, um conjunto permanentemente harmonizado»
(Q 22, 11, p. 2166). À regulação do «instinto sexual» Gramsci dedica uma
longa nota no caderno 22, na qual, depois de tratar da grande importância
atribuída à questão sexual nas “utopias”, do desenvolvimento de uma
sexualidade tratada como “esporte”, da função econômica da reprodução
na sociedade assim como na família, ele explicita o elemento central de sua
reflexão sobre o tema.
A mais importante questão ético-civil ligada à questão da sexualidade
é a formação de uma nova personalidade feminina: enquanto a mulher
não tiver alcançado não apenas uma real independência frente ao
homem, mas também um novo modo de conceber a si mesma e o
seu papel nas relações sexuais, a questão sexual continuará repleta de
aspectos mórbidos e será preciso ter cautela em qualquer inovação
legislativa. (Q 22, 3, p. 2149-50).

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

A questão da regulação do instituto sexual está também presente


nas páginas weberianas sobre seleção e adaptação. Weber não está interessado
como Gramsci pelo “problema feminino” entendido como criação de uma
nova personalidade, mas muito mais atento à estreita ligação que a questão
sexual tem com a manutenção da capacidade psicofísica dos operários da
fábrica moderna, sejam esses homens ou mulheres. Quanto aos operários
homens, afirma que «trabalho mais folgado e afrouxamento mais precoce
devem ser frequente consequência de celibato demasiado longo – isto é,
além do período entre o 25º - 30º ano de vida» (WEBER, 1983, p. 223).
Para tratar das operárias, Weber reporta ao exemplo extraído da experiência
na fábrica de Oerlinghausen.
[...] a moça, que se desligou da empresa para se casar, já estava
noiva na época dos rendimentos de trabalho acima e o domingo,
portanto, não deve ser considerado exatamente como um “repouso”.
Nós continuaremos a encontrar a influência de “desgastes eróticos”
e também os explicitaremos através do exemplo dessa operária.
(WEBER, 1983, p. 201).

As referências aos excessos sexuais e os estímulos eróticos surgem


no texto repetidamente, mas não é tratado a fundo e em vez disso aparece
como um dos muitos exemplos de conduta que influenciam a produtividade
do trabalhador. Temos, portanto, também em Weber o interesse pelos
elementos que «condicionam o desenvolvimento da capacidade de trabalho
de uma forma significativa», entre os quais estão «os efeitos dos hábitos
alimentares (em parte, relacionados à qualidade de dona de casa da mulher
do operário), o consumo de álcool, as condições de higiene das habitações,
em certos casos a influência da vida sexual» (WEBER, 2000, p. 79). Mas a
atenção de Weber fixa-se sobretudo nos efeitos que estas condutas têm na
produtividade, na estabilidade psicofísica, na disponibilidade dos operários
ao trabalho.
Podemos então interpretar tais fatos à luz do hábito pietista de
desprezar os lugares de divertimento (como os salões de dança) como
consequência da “ascese protestante”, em outras palavras, como
consequência de uma disposição interior voltada para o trabalho
“desejado por Deus”. Um traço característico da religiosidade destes
círculos se exprime na hostilidade a toda forma de sindicalização; trata-
se de um antigo “individualismo”, entendido em um sentido religioso

140
Gramsci e seus contemporâneos

e também patriarcal, fonte de um comportamento de “disponibilidade


ao trabalho”. Os trabalhadores educados em condições e práticas
similares são, obviamente, um ótimo investimento para o empresário e,
do ponto de vista do seu interesse, ele não pode senão lamentar o fato
de que o poder da devoção está se rompendo entre os trabalhadores do
sexo masculino. (WEBER, 1983, p. 211).

No decorrer dessa análise Weber não pôde deixar de reconhecer


como o estilo de vida próprio do ascetismo protestante vai gradualmente
desaparecendo e sendo substituído por uma coerção mecânica guiada pela
técnica e que não contempla nenhum conteúdo ético, não se presta para
qualquer decodificação nos termos de uma ética conforme um fim.8 Weber
registra, quase com nostalgia, o enfraquecimento do estímulo ético em
conformidade a este específico estilo de vida, a secularização dos imperativos
ético-religiosos, até o esvaziamento total de sentido deste disciplinamento
moderno para avançar a uma constrição sempre mais mecânica guiada
pela técnica e que deixa o homem desarmado diante da «gaiola de aço» da
racionalização.
À perda de sentido do mundo – dada pela secularização da
ética puritana transformada em uma árida vontade aquisitiva, pelo
crescimento dos aparatos que se tornam “gaiolas” e pelo desaparecimento
da capacidade humana de “criar seu próprio destino” – Weber não
deixa de responder senão invocando a força de ânimo individual capaz
de suportar o peso desta ausência. Mostram-se assim o emprego tardo-
liberal das categorias weberianas, individualizantes de fato e ligadas à
figura de uma individualidade forte capaz de aceitar e, com o advento dos
relativismos de valores, capazes de escolher, o próprio destino profissional e
de vida. O capitalismo, em sua forma avançadas caracterizada pela grande
indústria, é então um “problema” no sentido em que amplifica ao nível da
produção um processo de esvaziamento que em outros âmbitos, como o
religioso, tinha já progredido. Esta perspectiva é coerente com a reiterada
afirmação de indiferença em relação ao domínio de classe sobre a produção
para o destino dos operários: não há saída no universo weberiano para o
8
Os estudos sobre seleção e adaptação na grande indústria surgem, não por acaso, logo após a primeira versão
de A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-05). A coerência de fundo entre os dois estudos em relação
ao “problema” central de Weber já foi algumas vezes sublinhada: cfr. A introdução de Angelo Chielli a Weber
(2000) e Marianne Weber em Weber (1995, p. 444).

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

trabalhador da moderna indústria capitalista, «na “gaiola” não há espaço


para uma conduta de vida: a racionalização a elimina. Basta a disciplina».
Gramsci por sua vez, reconhecendo a “objetividade” das mudanças
produzidas pelos fenômenos como o americanismo e o fordismo, vê no
conflito que os operários introduzem a possibilidade de uma utilização “de
parte” destas inovações, reivindicando uma subjetividade operária que se
exprime justamente no nível de “base” do trabalho de fábrica e também
uma possível solução à questão sexual e ao caráter mórbido que essa traz
consigo. Gramsci não compartilha assim a verdadeira “desesperança”
weberiana pela ausência de uma conduta de vida ética, mas sim pensa ser
possível recriá-la laicamente, sobre uma base secularizada, ligando-a com
as mudanças em curso através de um processo de “difusão molecular” que
crie uma nova civilização.
Que o processo atual de formação molecular de uma nova civilização
possa ser comparado ao movimento da Reforma pode ser demonstrado
também com o estudo de aspectos parciais dos dois fenômenos. O
nó histórico-cultural a ser resolvido no estudo da Reforma é o da
transformação da concepção de graça, que “logicamente” deveria
portar o máximo de fatalismo e de passividade, em uma prática real
de desenvoltura e iniciativa de escala mundial da qual era [por sua
vez] consequência dialética e que formou a ideologia do capitalismo
nascente. (Q 7, 44, pp. 892-93).

Nessa frase de Gramsci há uma assunção plena dos estudos


weberianos sobre o ascetismo intra-mundano.9 A nota assim prossegue:
Mas nós vemos ocorrer hoje o mesmo com a concepção de materialismo
histórico; embora dessa, para muitos críticos, não pode derivar
“logicamente” senão o fatalismo e a passividade, na realidade, em vez
disso, dá origem a um florescimento de iniciativas e de realizações que
deixa estupefatos muitos observadores. (Q 7, 44, p. 893).

Gramsci realiza, assim, um ato teórico de escopo notável


comparando a «concepção de graça» weberiana com a «concepção de

9
Foi Fabio Frosini o primeiro a notar a derivação quase literal dessa passagem da Ética protestante de Weber
em seu ensaio Gramsci lettore di Croce e di Weber. Rinascimento, Riforma, Controriforma (disponível on-line
em: www.uniurb.it/Filosofia/frosini_materiali_in_linea_05.pdf ). O ensaio de Frosini é útil também pela
reconstrução filológica, atenta à data de redação das notas e à influência weberiana nos Quaderni.

142
Gramsci e seus contemporâneos

materialismo histórico». A nova força social capaz de fundar uma «uma nova
civilização», nascida das vísceras do processo de crise do individualismo
burguês, tem sua própria ética secularizada sobre a qual baseia e justifica
sua própria ação. Esta concepção, o materialismo histórico, assim como a
concepção de graça puritana, reapresenta aquele que é um percurso geral
dos processos de «formação molecular de uma nova civilização», isto é, a
transformação de um impulso que parece ser o prelúdio de uma passividade
determinista em uma potente força inovadora capaz de conceber novos
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fabbrica dei corpi. Studi sull’industria tedesca, a cura di Angelo Chielli e Giuseppe
Cascione. Bari: Palomar, 2000. pp. 33-114.

144
Albert Mathiez

Sabrina Areco

As referências de Antonio Gramsci a Albert Mathiez - historiador


francês dedicado à história da Revolução e fundador da Société des
études robespierristes - podem parecer, à primeira vista, de pouco relevo
se considerada sua recorrência. Nos Quaderni1 ele foi citado apenas
duas vezes, porém em parágrafos importantes: Rapporti tra struttura e
superstrutture [Relações entre estrutura e superestrutura], § 38, Q. 4,
depois reformulado no § 17, Q. 13, Analisi delle situazioni: rapporti di
forza [Análise das situações: relações de força]. Nesses parágrafos Gramsci
tratou dos nexos entre estrutura e superestrutura, ou melhor, entre o
movimento histórico e os elementos sócio-econômicos e para tal recorreu
à França revolucionária e à produção de Mathiez para demonstrar através
de eventos concretos as orientações de metodologia histórica sobre as quais
refletia2.

1
Utiliza-se neste artigo a edição crítica de Gerratana dos Quaderni del carcere e as referências ao texto indicam o
número do caderno (Q.) e em seguida o parágrafo (§).
2 De acordo com o aparato crítico elaborado por Gerratana, Gramsci tinha no cárcere os três volumes da obra de
Albert Mathiez (La Révolution française). Ele já dispunha do volume I (La chute de la Royauté) e II (La Gironde et
la Montagne), quando solicitou o volume III (La Terreur) de La Révolution française - todos em primeira edição
de 1922 publicados pela Librairie Armad Colin (L. 147, p. 248; L. 190, p. 340). Outros célebres historiadores
da Revolução Francesa, como Gaetano Salvemini (1873-1957) e Alphonse Aulard (1849-1928), foram também
citados nos textos carcerários. Aphonse Aulard foi identificado como fonte principal a ser consultada (Q 1, § 47)
e em confronto com os conservadores Hippolyte Taine (1828-1893) e Augustin Cochin (1876-1916) (Q 2, §
91). Tal confronto não foi possível, talvez pelo motivo de que nenhuma obra de Aulard, Taine ou Cochin estava
no conjunto de livros acessíveis na prisão. Alguns textos de Gaetano Salvemini, por sua vez, constam no elenco
disponível ao marxista - mas não seu La rivoluzione francese (1788-1792). O importante Jean Jaurès figura
nos textos do cárcere como um homem da política em ato, com ênfase portanto em sua atuação no Partido
Socialista, definida como de tipo carismática. (Q 2, § 75; Q 3, § 4; Q 10, § 41).

145
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

A escolha de Gramsci em utilizar a Revolução francesa como um


“exemplo histórico concreto” não foi fortuita. A Revolução francesa, tema
central da história da formação da Europa contemporânea, era fortemente
presente nos debates políticos da primeira parte do século XX. O interesse
pela temática havia ainda sido renovado e mesmo ampliado no contexto
da Revolução Russa (KONDRANTIEVA, 1989; VOVELLE, 2000) e
desde o trabalho de Karl Kautsky e de Jean Jaurès, pode-se falar também
de uma inspiração marxista recorrente na produção historiográfica sobre a
Revolução Francesa (LOUVRIER, 2007; VOVELLE, 1999)3.
A Revolução apareceu, nos parágrafos de Gramsci, como
um exemplo através do qual se pode explorar toda a complexidade das
relações entre estrutura e superestrutura: um evento de longa duração, que
comportou mudanças de ordem econômica e social profundas - como a
corrosão do Antigo Regime, reagrupamentos sociais em torno de arranjos
novos de produção - com lutas políticas-ideológicas, organizações de
interesses corporativos e conflitos estatais. Analisando na história o lugar
ocupado pela economia e pela crise no processo revolucionário, Gramsci
sugere a necessidade de se “excluir qualquer resposta taxativa nesse sentido”,
sendo mais fecundo considerá-la um aspecto parcial da questão, envolvida
em toda uma dinâmica de relações de forças. Assim como Mathiez, que
se “opôs à história vulgar tradicional” mostrando que “[...] em 1789 a
situação econômica era boa, pelo qual não se pode dizer que a ruptura do
equilíbrio existente ocorreu em razão de uma crise de empobrecimento”
(Q. 4, § 38). O historiador francês apareceu, portanto, vinculado a um
tema de central importância na reflexão gramsciana.
Uma aproximação ainda mais substantiva entre Gramsci e
Mathiez pode ser apontada se considerada a influência do francês na análise
do jacobinismo, demonstrada entre outros por Medici (2000) e Gervasoni
(1998). Nos Quaderni, jacobinos e jacobinismo são termos que contém
diferentes dimensões: uma dimensão seria aquela mais propriamente
histórica (os jacobinos franceses do século XVIII e seus herdeiros políticos
tanto franceses como italianos) e outra a dimensão teórica-política. No

3 Histoire socialiste de la Révolution française, de Jean Jaurès, começou a ser publicado em 1900. O trabalho
de Karl Kautsky foi traduzido para o francês em 1901 com o título La lutte des classe em France en 1789.
Sobre a leitura de Karl Kautsky e da social-democracia alemã, que remonta às comemorações do centenário da
Revolução Francesa, ver Ducange (2012, p. 43-64).

146
Gramsci e seus contemporâneos

processo de formulação do conceito, Gramsci operou uma verdadeira


escavação histórica, procurando distinguir o sentido deteriore que eles
ganharam no decorrer do século XVIII-XIX e que os identificava como
abstratos; daquele sentido vinculado à experiência original, que deveria
ser entendida como uma “[...] ‘encarnação’ categórica do Príncipe
de Maquiavel. O moderno Príncipe deve ter uma parte dedicada ao
jacobinismo como exemplo de como se forma uma concreta e operante
vontade coletiva” (Q 8, § 21).
A produção de Mathiez explorou o programa econômico-social
dos jacobinos, mostrando como ele foi operado no decorrer do processo
revolucionário – e também como, segundo Mathiez, foi depois derrotado
com a queda de Robespierre. O francês demonstrou a unidade entre a
direção revolucionária e as massas populares do campo e da cidade; isto é, a
construção de uma unidade em torno de um programa, o que foi entendido
por Gramsci como a construção de uma vontade nacional-popular. Ainda
que não se possa falar de uma convergência integral entre Gramsci e
Mathiez, é sob esses fundamentos que o italiano irá abordar os jacobinos
franceses e formular o seu conceito teórico-político de jacobinismo.
Mas tal contorno na forma de abordagem do fenômeno histórico
remonta ao período anterior à prisão, assim como as referências de Gramsci
a Mathiez. O que se pretende neste artigo é analisar a aproximação inicial
de Gramsci com o historiador, que ocorreu nos anos finais da Guerra e em
meio aos debates sobre a Revolução Russa, explorando assim a gênese de
uma reflexão que irá depois alcançar maturidade nos Quaderni.
Entender a relação Gramsci e Mathiez implica em reconstruir as
interações entre ambientes intelectuais e políticos diversos, bem como entre
diferentes realidades nacionais (Itália e França)4. A produção acadêmica
francesa circulava na Península, onde Albert Mathiez era conhecido
entre os intelectuais desde meados da década de 1910. Ele teve trabalhos
publicados e resenhas de seus livros feitas em revistas como a Nuova Revista
Storica, publicação fundada por Corrado Barbagallo, e na Rivista delle
Nazioni (RAO, 2008, p. 277).
4
Essa abordagem inspira-se na proposta de construção de uma história cruzada ou comparada, seguindo
as sugestões de Wolikow (2010) que convida à reconstrução da história do comunismo considerando as
transferências, as circulações, os empréstimos e portanto seus cruzamentos ou intersecções, privilegiando os
intercâmbios em lugar de uma exposição de divergências ou identidades entre os comunistas europeus.

147
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Mathiez, sob inspiração de Jaurès, realizava então uma análise


que conjugava atenção às fontes e técnicas de pesquisa com erudição e
uma abordagem das esferas econômicas e sociais, se tornando um nome
central da historiografia jacobina5, uma nova tradição depois continuada
por nomes como Georges Lefebvre e Albert Souboul. Desde 1918
Gramsci passou a citar Mathiez e embora não tenha assumido a postura
filo-jacobinista que caracterizava o historiador francês, foi neste momento
que uma abordagem mais matizada e mesmo historicizada desse grupo
político começou a se expressar na reflexão gramsciana. Iniciou-se assim
em Gramsci um processo de adensamento da leitura dos jacobinos que
colocava em questão sua recusa integral inicial influenciada entre outros
por Sorel e pela forte presença do anti-jacobinismo no ambiente intelectual
italiano.

I
O jacobinismo era importante no léxico gramsciano mesmo
antes desse adensamento ao qual nos referimos aqui. Expressão recorrente
no vocabulário político italiano, era mobilizado para a reflexão sobre a
política contemporânea do jovem Gramsci. Ele foi utilizado com escassa
recorrência, maior a partir de 1917 e depois da Revolução de Fevereiro,
como uma expressão negativa e de forma a-histórica. O jacobinismo era
então o contrário de seu projeto socialista: sua única qualidade seria a de
mostrar o que os socialistas não devem ser (GRAMSCI, 1960, p. 206).
Em 1917, indicando o transformismo como um fenômeno
tipicamente moderno e próprio também dos pseudo-socialistas, Gramsci
procurou demonstrar como o mesmo relacionava-se com uma perspectiva
empírica e contingente do mundo social que impedia a apreensão de que a
“[...] ideia sempre supera o fato simples já que por meio da ideia criam-se
5
Esse termo, historiografia jacobina, designaria tanto o conjunto de trabalhos que tem como objeto os jacobinos
(seus clubes, a atuação na Convenção e o Terror jacobino, etc...), como também refere-se a uma posição
positiva dos historiadores diante dos mesmos. No começo do século XX, a historiografia jacobina era então
uma escola na qual convergia uma corrente “positivista, erudita e republicana”, que sob a inspiração de Marx
entediam “revolução burguesa” como advento do capitalismo (LOUVRIER, 2007). Mais tarde, François Furet
e Denis Richet criticaram o que chamaram de leitura “marxizante”. Souboul, ele mesmo inserido nesta escola,
respondendo à crítica definiu os historiadores jacobinos como aqueles que, além de atentos ao rigor acadêmico,
tinham como norte a compreensão e defesa dos interesses populares (sobre essa polêmica, ver LOUVRIER,
2007).

148
Gramsci e seus contemporâneos

outros fatos superiores” (GRAMSCI, 1960, p. 194)6. Esse idealismo tinha


um fundamento historicista: transcender os fatos significava entender sua
provisoriedade, ligando-se a uma visão mais ampla e complexa. Pensar
desta forma, atendo-se ao sentido vivo da história, era o oposto de ser
jacobino (GRAMSCI, 2004, p. 174). O termo é aproximado, portanto,
do transformismo e utilizado nos debates internos ao PSI e contra o grupo
que oferecia sustentação parlamentar ao Governo Giolitti7.
Em outra crítica enfática (de 22 de outubro de 1917) - no artigo
La scimmia giacobina8 - a limitação da perspectiva jacobina foi reiterada:
como os símios, eles são puro automatismo, repetem gestos, não tem
conteúdo e a história é por estes apreendida de forma esquemática. São
herdeiros da velha Itália liberal, das lojas maçônicas e grupos conspiratórios
e que no século XX eram os membros da pequena burguesia italiana,
livresca e particularista. Gramsci afirma que tal esquema histórico remete à
imagem romântica da revolução construída na literatura e em nomes como
Jules Michelet (1798-1874) e não aquela que havia “[...] transformado
profundamente a França e o mundo, que se estabeleceu no meio da
multidão e que abalou e trouxe à luz as camadas profundas da humanidade
submersa” (GRAMSCI, 1960, p. 205).
Sendo o particularismo dos interesses a característica da própria
classe, o jacobinismo poderia ser atendido como uma forma burguesa de
se fazer a política em geral e não apenas revoluções. O jacobinismo e o
Terror são, assim, fenômenos burgueses permanentes, que dependendo
do momento histórico são mais ou menos intensos (GRAMSCI, 2004,
p. 188); e de minoria e sempre potencialmente minoritário (GRAMSCI,
2004, p. 137). Em tudo, portanto, a utilização do termo para a análise

6
Il Bozzacchione, “Il Grido del Popolo”, 04 de junho de 1917.
7
A cisão entre os grupos colaboracionistas ou reformistas com os intransigentes ou maximalistas (de Gramsci)
foi aprofundada depois da Batalha de Caporetto (09 de novembro de 1917). Nos escritos do Il Grido, Gramsci
identificava os primeiro como empiricista no campo da política, que viam apenas o fato isolado. Essa era uma
forma de responder à crítica feita pelos colaboracionistas de que a proposta dos maximalistas era abstrata:
mostrando a superioridade da formulação por assim dizer abstrata, isto é, vinculada a um programa máximo
que deveria ser buscado e cuja viabilidade não poderia ser demonstrada de outra forma senão através da própria
síntese histórica (GRAMSCI, 2004, p. 174). Uma ênfase na prática política, que reverbera sua própria análise
de Marx operada nestes anos: como um historicista concreto, para quem a história tem substância na “ética,
na atividade prática, nos sistemas e nas relações de produção e troca. A história como acontecimento é pura
atividade prática” (GRAMSCI, 2004, p. 162).
8
“Il Grido del Popolo”, 22 de outubro de 1917.

149
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

da política contemporânea remetia à identificação de seu caráter burguês


e, por consequência, à sua refutação. Suas instituições, como o livre
pensamento e a democracia parlamentar eram formas políticas e culturais
necessariamente particularistas, incapazes de uma realização integral
na sociedade capitalista uma vez sua efetividade é “[...] condicionada
pelo modo de produção da riqueza e da concretude do pensamento da
humanidade” (GRAMSCI, 1972, p. 836)9.
A forma de luta ou estratégia política jacobina era assim
totalmente coerente com seu conteúdo de classe. Em realidade, conteúdo e
forma de luta formam uma unidade. Uma revolução proletária teria tanto
conteúdo como forma diametralmente diferentes da experiência francesa
do século XVIII. Ainda em julho de 1917 ele apontou que os bolcheviques
foram capazes animar a massa e organizar novas forças sociais de modo
que a Revolução se expandia e seguia adiante, e isso foi possível porque
evitou o jacobinismo, uma direção fechada e restritiva (GRAMSCI, 2004,
p. 100)10. Embora tivessem uma direção também minoritária, o partido
bolchevique pretendia se tornar maioria absoluta. Dessa forma, Gramsci
justifica a dissolução da Assembleia Constituinte russa, em 06 de janeiro
de 1918 (tratada pelos críticos como o Termidor russo11) como um evento
de liberdade apesar da aparência superficial de violência. A Assembleia
eleita sustentava-se em uma relação de forças desenhada no contexto pré-
revolucionário. Esse contexto modificou-se e havia sido oferecida uma
forma original de representação direita, que eram os sovietes (GRAMSCI,
2004, p. 138).
Ao identificar o jacobinismo como método e com os objetivos da
burguesia, é possível indicar que Gramsci não os entedia como arbitrários
ou abstratos, posição que ganhará espaço na produção carcerária e que o
colocava contra a argumentação bastante vigente no ambiente intelectual
e político italiano12. Ele afirmava que as análises burguesas erravam ao
9
Repubblica e proletariato in Francia, “Grido del Popolo”, 20 de abril de 1918.
10
Notas sobre a Revolução Russa, “Il Grido del Popolo”, 29 de abril de 1917.
11
Foi considerado o 9 Termidor russo pela ala menchevique internacionalista. Em artigo de março de 1918,
J. Martov (dirigente da ala) apontou que o fechamento vinculava-se a uma série de acontecimentos que se
contrapunham às conquistas democráticas da Revolução.
12
Ao contrário, Gramsci dá indícios de que o Iluminismo deveria ser tomado como uma concepção filosófica
bastante concreta. Tratando do universalismo iluminista, que como apontamos era para ele o correspondente
filosófico da política jacobina, afirmou que tal universalismo se torna concreto e individualizado através das

150
Gramsci e seus contemporâneos

criticá-los: “sem aquela violência, sem aquelas monstruosas injustiças”, as


formas antigas não teriam sido superadas (GRAMSCI, 2004, p. 149)13.
Elas foram uma necessidade histórica, fundamentais para a superação do
Antigo Regime e duplamente violentos: ao derrubar o velho e ao construir
a República jacobina. O revolucionário socialista deveria ser, no entanto,
de um tipo novo. A Revolução Russa, que iria para além da emancipação
francesa, não podia repeti-la. Mas tal tentativa esbarrava na seguinte
dificuldade: como refutar ideologicamente os radicais do Ano II, se não se
conseguia superar o mito daqueles revolucionários?
No ambiente russo, desde os acontecimentos de 1905, as analogias
com a França do século XVIII eram recorrentes. Para Lênin, embora na
tradição marxista a Revolução Francesa não fosse considerada mais atual,
na Rússia ela deveria ser tratada de forma diferente: ali, tanto se verificava a
presença de uma autocracia “asiática” e a miséria no campo; como também
as insurreições de 1905 e a participação do campesinato eram similares
ao período pré-revolucionário francês. Por outro lado, a Revolução Russa
teria chance de ser mais ampla devido à existência da crise agrária, que
com a participação do campesinato e da pequena burguesia permitiriam
que o proletariado instaurasse uma ditadura revolucionária democrática
do proletariado e do campesinato que teria como protótipo a Convenção,
entendida por ele como uma ditadura das classes baixas.
Em 1917, depois de Que fazer?, estava já demarcada a
particularidade dos bolcheviques em relação aos jacobinos no que tange
aos objetivos (proletários e não burgueses). Ainda assim, Lênin recorreu aos
radicais do Ano II para apontar que, como no século XVIII, a Rússia viu
a classe mais avançada (o proletariado) se dividir em duas, como outrora
ocorreu com a burguesia e a oposição entre girondinos e mencheviques.
Da analogia passa-se, mais tarde, à identificação dos bolcheviques com
os jacobinos (KONDRATIEVA, 1989, p. 69). Essa exposição sintética
experiências de homens também concretos e que se dão em espaços reais. Os nacionalistas, afirma Gramsci,
que pretenderam se contrapor à ideia do universalismo iluminista acabam formulando uma compreensão do
nacional puramente sensualista e que, por isso, “[...] não significa nada, nada de humano e portanto nada
que tenha qualidade” (GRAMSCI, 1982, p. 701). Dessa forma, o universalismo poderia ser considerado mais
concreto e superior ao nacionalismo, que embora seja uma forma “atrasada, é verdade, […] ela consente a
transição a uma forma mais alta de doutrina” (GRAMSCI, 1982, p. 701). Maurizio Barrès e il nazionalismo
sensuale. “Il Grido del Popolo”, 02 de março de 1918. Existe aqui, portanto, uma crítica ao empirismo e às
implicações políticas de uma apreensão do real centrada exclusivamente nos dados mais imediatos aos sentidos.
13
Wilson e os maximalistas russos, “Il Grido del Popolo”, 02 de março de 1918.

151
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

do jacobinismo no terreno cultural e político russo nos permite apontar


as diferenças de Gramsci nesta fase. Enquanto os bolcheviques recorriam
à analogia com os revolucionários franceses, Gramsci recusa qualquer
afirmação nesse sentido justamente por recusar a ideia de partido como
vanguarda ou direção revolucionária. Como aponta Del Roio (2005, p.
38), existe nesta recusa uma influência importante de Sorel, que apontava
o jacobinismo como uma política que se pautava na separação entre
dirigentes e dirigidos. À política de direção das massas Sorel contrapunha
a necessidade de auto-organização e autoeducação do proletariado. Essa
matriz soreliana do antijacobinismo do jovem Gramsci é mais evidente na
medida em que as greves e a organização dos conselhos de fábricas durante
o biênio vermelho (1919-1920) estimularam uma análise do trabalho
fabril como uma esfera cindida do mundo do capital, que seria pouco
mais tarde matizada em razão de uma mudança na reflexão sobre partido
e estratégia revolucionária. Mudança essa vinculada, assim, com o próprio
desfecho traumático do biênio. Assim, apenas depois (1921), Gramsci
aceitará a analogia bolcheviques-jacobinos, o que ocorre juntamente com
o processo de construção do PCd’I e com maior aproximação com o
marxismo. Portanto, a crítica do jacobinismo é fundamental na trajetória
da formulação inicial gramsciana de partido e, de forma correlata, à
elaboração de uma teoria socialista do político (GERVASONI, 1998, p.
62) que pudesse coincidir a ampliação da liberdade com um projeto de
mudança radical conduzido não por meio da coerção e sim do consenso.
Essa reavaliação coincide também com a experiência da violência.
No fim da I Guerra havia se difundido uma cultura bélica não apenas
entre militares mas também entre civis, acompanhada da ampliação de
ações autoritárias de diferentes governos nacionais, como restrição das
liberdades individuais, concomitantes a um processo de reorganização
econômica de tipo modernizador e de enfrentamento das associações
de trabalhadores. No caso particular da Itália de Gramsci, os socialistas
percebem que tinha se superado a fase de mediação de Giolitti. Mais do
que isso: “[...] o antisocialismo - recusado agora como anti-bolchevismo
- tinha se tornado então uma obsessão ideológica.” (D’ORSI, 2011, p.
161). O nacionalismo no período pós-guerra, fortemente marcado por
essa cultura bélica, expressou-se em ações violentas contra os socialistas,

152
Gramsci e seus contemporâneos

como o ataque e incêndio da sede do periódico Avanti! em Milão. E, por


isso, em Gramsci “[...] os tons libertários, antiautoritários e por assim
dizer consensualistas dos anos precedentes dão lugar a uma avaliação que
poderia ser identificada como mais realista.” (GERVASONI, 1998, p. 70).

II
A I Guerra marcou efetivamente a geração de intelectuais a
qual pertencem Gramsci e Mathiez. A produção do historiador francês
passou, naqueles anos, tanto pelo aprofundamento de uma abordagem
social e econômica - que culminou na superação da história política ou
parlamentar -, como sofreu também uma mudança de objeto relacionada
ao seu interesse pelas questões colocadas pelo conflito. Problemas que
Mathiez não reputava totalmente inéditos, mas que atualizariam aqueles
originalmente vivenciados na Revolução Francesa.
Enquanto seus primeiros trabalhos anteriores a 1914 tratavam da
religiosidade laica na Revolução14, com o início dos conflitos ele passou a
se dedicar às guerras revolucionárias de 1793-1794, às manobras políticas
parlamentares e tensões econômicas daquele período. Tratando em paralelo
passado e presente, o que não significava uma obliteração das diferenças
entre os dois momentos históricos, Mathiez pretendia que a história servisse
como estímulo à ação e “reforço ao entusiasmo”, ou mesmo como lição. Nas
guerras revolucionárias, segundo Mathiez, o patriotismo era idêntico ao
republicanismo, o exército subordinado à opinião pública e seus membros
oriundos do povo, de modo que havia uma identidade entre os interesses
do Estado e do próprio corpo militar, assim como entre a Assembleia e o

14
Mathiez deu contribuições importantes para essa temática em La Théophilanthropie et le culte décadaire, 1796-
1801 e Les Origines des cultes révolutionnaires (1789-1792), ambos redigidos para sua obtenção de tese em 1904.
No segundo, Les Origines..., defendeu que os cultos laicos poderiam ser tratados através do conceito de religião e
religiosidade de Durkheim. Mathiez concordava, então, que a religião deveria ser entendida como um fenômeno
social, definida não em razão do objeto ou conteúdo (noção de divindade) e sim por sua forma, quer dizer, o
fenômeno religioso caracterizaria-se pela existência de conjunto de crenças compartilhadas por um determinado
grupo, que exigem de seus membros a realização de culto ou ritual. Nesse sentido, as cerimônias patrióticas como
a celebração de 14 de julho para Mathiez poderiam ser entendidas como um culto (FRIGUGLIETTI, 1974,
p. 56). Ele foi criticado por ter expandido demasiadamente o conceito durkheimiano, ao qual não retomou em
seus trabalhos posteriores. Esse percurso do historiador ilustra bem a aproximação da história com as ciências
sociais naqueles anos e, mais particularmente, o interesse do autor em uma renovação téorica-analítica que irá
depois encontrar outras referências.

153
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

povo15. O êxito de Carnot na batalha de Marne demonstraria a eficácia da


tática ofensiva e o papel da “vontade, decisão e caráter” na ação militar16
(MATHIEZ, 1916).
Concomitante a essa atenção à história militar, ele passava
também a assumir a interpretação feita por Jean Jaurès. Fundador do
L’Humanitè e importante líder socialista, Jaurès tinha como fio condutor a
compreensão da Revolução como triunfo da burguesia contra a nobreza e
proletariado emergente, leitura que demarcou uma ruptura fundamental
no campo historiográfico. Mathiez aprofundou essa leitura ao delinear
com maior nitidez as disputas políticas na Convenção e ao procurar tecer
as relações desses grupos com as massas populares. No período de 1914-
1918, ele demonstrou como a guerra colocou em situação problemática
os consumidores urbanos, especialmente os artesãos, e também os
trabalhadores rurais. Esses grupos teriam então demandado ações para
contenção de preços através de dispositivos como requisição e controle. Mas
essa demanda era contraditória à política liberal que pretendia a ruptura
nos controles de mercado exercidos pelo Antigo Regime. Os jacobinos
- contra a monarquia e contra os girondinos - exerceram o controle de
preços para assegurar o consenso popular. Assim, com o agravamento da
crise econômica, derrotas militares e agitação das massas em setembro de
1793 foi instituída a lei do máximo (general maximum), ao que se segue o
Terror (FRIGUGLIETTI, 1972).
Esse breve triunfo dos jacobinos e de Robespierre, atribuídos à
formação do Comitê Salvação Pública e à derrota dos Enragé, dos hebertistas
extremistas de esquerda e os moderados dantonistas de direita, foi logo
superado pela “combinação dos inimigos que temiam uma verdadeira
revolução social”. O 9 thermidor, que marca a queda de Robespierre, foi a
vitória da burguesia beneficiada com a nova ascensão inflacionária e com
a liquidação de suas dívidas. E as classes populares suportaram as pesadas
consequências da inflação monetária, fazendo delas economicamente
frágeis e politicamente impotentes por um século adiante (cf. MATHIEZ,
1927; FRIGUGLIETTI, 1974, p. 577-578).
15
Si nous étions sous la Convention... (Le Rappel- 04/02/1916); L’esprit de l’armée de l’an II (Le Rappel –
22/09/1915). Os artigos da Mathiez no Le Rappel foram consultados no portal Gallica, Bibliothèque numérique
de la BnF (Bibliothèque nationale de France).
16
La tactique de Carnot (Le Rappel -13/09/1915).

154
Gramsci e seus contemporâneos

Em Mathiez, os jacobinos seriam assim a parte avançada da


Revolução que elaborou uma política compatível com os interesses dos sans-
culottes e, dessa forma, figuraram como portadores de certo republicanismo
popular, ainda não realizado na França que lhe era contemporânea. A não-
efetivação daqueles ideais é o que fundamentaria o recurso discursivo e
analítico que lê o passado um conjunto de “promessas” a se realizar no
presente. Então, se para Marx o “jacobinismo foi a forma plebeia de levar a
Revolução até o fim”, para Mathiez ela não tinha ainda terminado.

III
Mathiez estava também vinculado a um processo de renovação
da historiografia italiana em curso, que pretendia superar a hegemonia da
historiografia croceana e o neo-idealismo de matriz alemã na Itália. Ocorria
uma difusão na Península dos estudos de Aulard e Mathiez, considerados
ali como “figuras exemplares de uma nova historiografia que poderia
superar a tradição alemã e forjar na Itália uma ideologia democrática,
alternativa ao liberalismo” (DE FRANCESCO, 2003, p. 114). A difusão
estava relacionada ainda à retomada de interesse pela cultura francesa e
pelas origens comuns dos países latinos, o que pode ser ilustrado com a
fundação da Rivista delle Nazioni latine (1916) por Guglielmo Ferrero e
Julien Luchaire (DE FRANCESCO, 2003, p. 113)17.
Um papel fundamental na renovação da historiografia italiana
foi exercido por Corrado Barbagallo. Fundador da Nuova rivista storica,
ele pretendia superar um certo provincialismo da cultura italiana,
irrigando-a com outras fontes para além daquelas alemãs e que permitiriam
uma abordagem social e econômica como contraponto à concepção
idealista. Inspirado em Henri Berr e sua Reveu de synthèse historique, a
revista de Barbagallo comportava diferentes perspectivas (bergsonismo,
irracionalismo e mesmo idealismo) com certo aceno nacionalista no
momento da sublevação deste18, enquanto Barbagallo se afirmava como

17
A Rivista delle Nazioni latine publicou os trabalhos de Mathiez: La Rivoluzione e gli Stranieri, em 1916, e
Danton et la paix, em 1918. A Rivista storica italiana, publicou em 1912 seu Rome et le Clergé français (DE
FRANCESCO, 2003, p. 113).
18
Como, por exemplo, na leitura do Risorgimento feita por Volpe. Este renunciou à direção da revista em 1916.

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

materialista histórico19 e “[...] promotor mais tenaz e combativo da


renovação da historiografia italiana nas primeiras décadas do século XX
depois de Croce” e teria mesmo obtido maior reconhecimento que Croce
na França daqueles anos (RAO, 2008, p. 277).
A aproximação de Barbagallo e Mathiez e a presença do último na
Nuova Rivista Storica sinaliza a difusão de Mathiez no ambiente intelectual
italiano e também a circulação de ideias entre os dois países latinos20.
Embora seus trabalhos tenham sido resenhados anteriormente21, através
de Barbagallo a historiografia jacobina de Mathiez alçou maior repercussão
na Itália, onde ele introduzido como um partidário de Robespierre (RAO,
2008, p. 276).
Não tendo jamais se definido como marxista, Mathiez até mesmo
lamentou a repercussão do que chamou de “socialismo de origem germânica”
na França em detrimento do socialismo francês22. Isso não impediu que,
mais tarde, ele apoiasse os bolcheviques e participasse da adesão da SFIO
à Internacional Comunista em 1920. Nesses anos, suas publicações na
L’Humanitè (que se tornou órgão de imprensa dos comunistas) foram
recorrentes. Em 1917, Mathiez havia já escrito Bolcheviques e Jacobinos
(1917)23, traduzido por Gramsci e publicado de forma fracionada em
L’Ordine Nuovo em 1921.
As trajetórias de Gramsci e Mathiez têm, portanto, dois “campos”
convergentes ou de contato: um, a imprensa socialista, campo mais
19
Nos Quaderni Gramsci foi crítico de Barbagallo: ele seria um “[...] típico representante do “materialismo-
histórico” italiano”, influenciado pelo lorianismo (cf. por exemplo, Q. 4, § 60).
20
A proximidade entre Barbagallo e Mathiez, que era não apenas intelectual mas também de amizade, é
contatada pelo italiano em uma publicação de homenagem póstuma publicada nos AHRF (Annales historiques
de la Révolution française) em 1932. A Annales foi fundada por Mathiez em 1908, chamada então de Annales
révolutionnaires quando em 1923 recebeu a denominação de Annales historiques de la Révolution française.
21
Em 1916-1918, nas Rivista storica italiana e Rivista delle nazioni latine.
22
Nos debates públicos e em suas diversas publicações na imprensa nos anos de guerra, ele passou de uma
posição pacifista anterior à defesa patriótica e antigermânica, contrapondo a França republicana e civilizada
contra a barbárie, militarismo e despotismo do Império Alemão. Assim, como grande parte dos socialistas,
aderiu à Union Sacrée. É importante frisar que o antigermanismo também era um elemento que estimulava o
historiador francês a defender a Revolução Russa. Depois do Tratado de Brest-Litovski (março de 1918), ele
interrompeu as alusões à Revolução Russa, retomadas em 1920 com a defesa de Lênin (FRIGUGLIETTI,
1972, p. 574).
23
Além do citado Le Bolchevisme et le Jacobinisme, Mathiez defendeu o bolchevismo em seus artigos Le
Bolchevisme est-il antidemocratique? (Le Progres civique, 11 de setembro de 1920 e 18 de setembro de 1920)
e Lénine et Robespierre (Flordal, 12 de junho de 1920). Também contribuiu escrevendo vários textos para os
jornais L’Humanité, L’Internationale e Le Populaire de Bourgogne de Dijon entre os anos de 1920 e 1921.

156
Gramsci e seus contemporâneos

eminentemente político; e o outro, formado pelas revistas acadêmicas


ou de cultura. Gramsci interessa-se pelo debate das revistas de história,
inserindo-o nas suas reflexões publicadas na imprensa. E, assim, em 1918
Gramsci citou Mathiez pela primeira vez em A fortuna de Robespierre, no
qual tratou da trajetória da figura do líder jacobino. Este texto insere-se em
um debate interessante, inclusive no campo metodológico: como se estudar
o rastro histórico do homem revolucionário? O que Gramsci observou
foi que de forma recorrente a ênfase recai sobre seus caprichos e vontade:
mais do que sobre o que efetivamente aquele homem realizou, os estudos
se prendem à arbitrariedade de um indivíduo singular. O que o italiano
considerava é que o rastro de um revolucionário deveria ser construído a
partir aquilo que ele efetivamente contribuiu, ou seja, o produto das forças
sociais em luta por ele mobilizados e assim sua importância se demonstraria
historicamente. Em diferentes situações históricas e políticas, esse rastro
poderia ser interpretado de maneiras diferentes.
Citando amplamente um texto do historiador Eugenio
Giovannetti24, ele relativizou então a forma mitológica com que Robespierre
era abordado pela historiografia. Gramsci delineou ali o que poderia ser
chamada de uma história da recepção de Robespierre. O primeiro ponto
seria reconhecer então que os estudos da Revolução Francesa dividem-se
em dois partidos: dantonistas e robespierristas. A alusão é feita diretamente
ao debate de Mathiez e Aulard (defensor de Danton), que desenhavam um
perfil e uma interpretação dos acontecimentos integralmente favorável ao
seu herói e fortemente difamador do antagonista. O retrato de Danton
como corrupto, naquele início do século XX, havia se tornado consensual
enquanto Robespierre era entendido como o herói. No entanto, como
lembra Gramsci, a positividade atribuída a Robespierre era instável
e sofreu mudanças no decorrer da história. Na geração até 1880, os
estudos apologéticos de Ernesto Hamel e de Luis Blanc desenhavam um
Robespierre como o “Messias da nova era” (GRAMSCI, 1982, p. 703-
704). Mas sua figura foi sofrendo sucessivos golpes: com o II Império,
se incitou um anticlericarismo entre os historiadores e a ideia de Ser
Supremo o desfavorecia; o positivismo sugeriu uma nova depreciação
de Robespierre, com Comte vendo em Danton um político positivista

24
Publicado no “Il Resto del Carlino”, de 23 de fevereiro de 1918.

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

adequado à modernidade e herdeiro de Diderot. Se existia um juízo


positivo de Robespierre e se esse correspondia, mais do que Danton, “ao
espírito do nosso tempo” (GRAMSCI, 1982, p. 705), a responsabilidade
era de Jaurès.
Essa formulação pode ser inserida como um capítulo na
reabilitação do jacobinismo em Gramsci: a historiografia permitia um
amadurecimento da temática, que perpassava por entender como os
heróis foram interpretados em diferentes tempos históricos. Quer dizer,
era preciso levar em conta que estas trajetórias podiam ser positiva ou
negativamente avaliadas, dependendo do momento histórico e político
em que se operava tal avaliação. O perfil do revolucionário traçado pelo
autor da Histoire socialiste de la Révolution française é o que tornaria atual
e valorizado. Aqui existem dois pontos: é sob a chave do presente e de
suas contingências históricas que poderia se atribuir uma positividade a
Robespierre. Não há qualquer transcendência em sua figura histórica.
Outro ponto é que o retrato feito por Jaurès do jacobino, que Gramsci
considera válido e atual (e que, talvez, não corresponda fidedignamente
à sua personalidade, o que não importa para o argumento), é aquele que
o apresenta como uma figura mítica através de uma retórica inflamada,
atribuindo a ele uma personalidade heroica e apaixonada, dotada de
firmeza de caráter e fé tirânica em suas ideias (JAURÈS apud GRAMSCI,
1982, p. 705).
Mais tarde, nos Quaderni, Robespierre será tratado como uma
síntese da linguagem política francesa e que tem uma correspondência
com a filosofia alemã, ou seja, Robespierre é a expressão política da filosofia
kantiana (Kant-Robespierre) (como em Q 11, § 48, p. 1468-1470; Q
11, § 49, 1471-1473). As duas linguagens (filosófica e política), embora
de natureza diversa, são tradutíveis entre elas. Após uma verdadeira
arqueologia da formulação Kant-Robespierre, Gramsci demonstra que
sua origem está em Hegel, para quem os alemães e os franceses haviam
apreendido o espírito universal em seu desenvolvimento mais recente e o
manifestado sob as diferentes formas, isto é, política e filosófica (Q 11, §
49, 1471). Como observa La Porta (1990, p. 519-520), Gramsci entende
que as duas formas têm um mesmo equivalente superestrutural, de modo
que tanto a filosofia alemã (idealismo) com a política francesa (jacobina)

158
Gramsci e seus contemporâneos

seriam então superadas dialeticamente por Marx e pela filosofia da práxis.


Nessa síntese, era preciso reconhecer os jacobinos como realistas (o que
a historiografia conservadora não fizera), mas também como capazes de
construir o novo (a nova nação francesa).
Esta aproximação com o mito de Robespierre em Gramsci
poderia, assim, indicar caminhos interessantes especialmente no que
diz respeito à reflexão acerca do phatos revolucionário. Esse é um ponto
fundamental, ainda que não possa ser aqui desenvolvido. O segundo
aspecto não menos importante, que reitera posições anteriores mas
que a partir deste texto foi assumido integralmente por Gramsci, é a
ideia de que a Revolução - e seus revolucionários radicais - não foi um
“monstruoso despropósito contra a história, mas um fato animado como
todos os outros de uma irrepreensível lógica interior” (GRAMSCI,
1982, p. 705). E o fundamento de sua ação, o que a mobilizava e dava
tal lógica, era a derrubada do Absolutismo e a conformação do Estado
nacional moderno.
Ainda em 1918, Mathiez apareceu em outra referência, I
contadini e lo Stato publicado no Avanti!- seção piemontesa (6 de junho
de 1918). Gramsci discute neste artigo um texto publicado pelo francês
no periódico La Vérité e que tratava dos embates dos camponeses e
proprietários de terras contra o exército revolucionário durante a fase do
Comitê de Salvação Pública25. Tais conflitos, desencadeados pelo confisco
de bens e alimentos em um contexto de mobilização total pela revolução
e expansão da guerra, permitiam a Gramsci refletir sobre o que chamou
de solidariedade entre os proprietários de terras e o Estado. A questão
fundamental era: qual a densidade dos liames entre os proprietários de
terra, e também dos camponeses, com o Estado moderno? Gramsci cita
os episódios narrados por Mathiez de revoltas, rebeliões, assassinatos dos
comissionários do exército, demonstrando os limites de tal solidariedade.
Ela seria, na República Jacobina, antes uma solidariedade de tipo formal
(eleitoral/política) do que uma solidariedade viva (econômica). O
confronto então era entre o direito privado, da posse da propriedade, e
do direito do Estado. O direito do Estado demandaria uma elaboração
25
O artigo de Albert Mathiez é Les résistances aux réquisitoires e faz parte de La vie chère... anteriormente citada
(MATHIEZ, 1973).

159
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

mais abstrata, relacionada com o próprio desenvolvimento das relações


capitalistas, na qual o Estado é reconhecido como “[...] organização
que tutela os seus interesses permanentes, e solidariza com o governo
economicamente para reforçá-lo.” (GRAMSCI, 1972, p. 248). Essa
formulação é considerada abstrata por superar uma maneira de entender
o direito à propriedade e que se manifesta fundamentalmente no direito
à propriedade da terra, como um dado quase natural. Ou melhor, o
direito à posse da terra tem um sentido religioso, visto até mesmo como
uma extensão da família (GRAMSCI, 1972, p. 249).
Gramsci argumenta que essa forma abstrata de entender o
Estado por parte do proprietário rural e ao menos na França havia sido
alcançada, ou seja, havia sido superado o vínculo apenas formal. Mas,
para a luta socialista, era preciso entender a cultura política do camponês,
perceber em que medida eles haviam estabelecido laços de solidariedade
econômica de classe, o que resultaria de uma efetiva missão pedagógica
executada pelo Estado (GRAMSCI, 1972, p. 250).
Tal questão, que exigiria uma pesquisa “documentada e
precisa”, permitiria que se apreendesse o grau de desenvolvimento do
Estado moderno e seu influxo entre os camponeses. Como se vê, o ponto
mais relevante desta reflexão é pensar na potencialidade revolucionária
dos camponeses. Esse encontro de Gramsci com Mathiez revela-se
importante por ir ao encontro de uma preocupação crucial do socialista
do Mezzogiorno: as relações campo e cidade, mais propriamente, a aliança
entre campesinato e proletariado, que anima toda a análise e a política de
Gramsci no período anterior à prisão. Nos cadernos deste período, esse
ponto foi reformulado em uma perspectiva mundial que compreende
que apenas em uma recomposição cidade e campo/proletariado e
campesinato é possível deteriorar a base sobre a qual se funda o domínio
capitalista. Nesse sentido, o jacobinismo torna-se um elemento central
em Gramsci, que o dá instrumentos para uma abordagem da história da
Itália que aponta a incapacidade da burguesia em formar uma vontade
coletiva nacional-popular (no processo risorgimental e mesmo no Partido
da Ação).

160
Gramsci e seus contemporâneos

Considerações finais
O que se pretendeu apontar foi que, até 1917, as referências
ao jacobinismo eram fortemente negativas, ainda pouco elaboradas
conceitualmente e não faziam menção - ao menos diretamente - aos
jacobinos históricos franceses. Essa oposição pode ser explicada em razão
de seu contexto intelectual e político e pela influência de Sorel. Depois
da Revolução de 1917, essa expressão começou a ganhar um sentido mais
claramente histórico. Inicia-se um adensamento, que remete em geral aos
esforços de Gramsci em refutar a analogia entre jacobinos e bolcheviques.
A recusa reside na identificação dos primeiros como uma forma burguesa
de se fazer política: é entendida como um fenômeno de minorias, que
pretende continuar minoritária.
Tal desenvolvimento, depois de 1918, é bastante tributário
da aproximação de Gramsci com a historiografia jacobina francesa,
principalmente Mathiez. Esse historiador ofereceu elementos para a
inflexão positiva de Gramsci diante do jacobinismo e a conformação deste
em um modelo para a análise da política do século XX, mas também como
um recurso de análise da história da Itália em chave negativa. Esse processo
dependeu fundamentalmente da aproximação com as fontes historiográficas,
mais do que pela posição diante dos debates diretamente políticos colocados
pelos bolcheviques. Por isso sua posição até 1921, falando precisamente
deste debate, colocou-o em contraposição à retomada da herança da fase
radical da Revolução Francesa, mobilizada pelas necessidades políticas dos
revolucionários russos (quer dizer, era importante ter uma referência, que
ainda que não tivesse uma correspondência integral podia jogar luz sobre
uma ruptura histórica daquela proporção), que tanto tratava positivamente
os jacobinos como os via reencarnados no grupo de Lênin.
Nos escritos do ano de 1918, Gramsci demonstrou ter
encontrado nos radicais do Ano II três características que seriam, no
período do cárcere, cruciais para a análise da política e na formulação
de sua teoria política socialista. A primeira é o phatos (utilizado aqui em
seu sentido original - paixão, portanto em oposição ao logos), entendido
como fermento do movimento político e da construção da hegemonia,
de forma Robespierre e a questão religiosa “deveriam ser analisados
seriamente” (1). Essa formulação, nos cadernos, remeterá também ao mito

161
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

de Sorel e à concepção de religião laica croceana. Tratada aqui de forma


ainda aproximativa, pode-se remeter às sugestões de Frosini (2010, p. 93)
sobre a aproximação entre religião (no sentido croceano de “concepção
de mundo conciliada com uma ação conforme”) e a filosofia da práxis
entendida como unidade entre teoria e prática política. A experiência
jacobina poderia apresentar, então, um exemplo histórico-concreto em que
a crença revolucionária incindiu sobre o movimento das forças sociais reais.
Outro ponto (2) é a compreensão do jacobinismo como uma necessidade
histórica, quer dizer, não foi uma arbitrariedade e deveria ser entendido
em sua lógica interna motivada pela superação do Antigo Regime. E,
finalmente (3), tal necessidade histórica para se realizar dependeu de uma
unidade campo e cidade mobilizada/construída pelos radicais. Daí que
a questão da vontade coletiva, nacional-popular, deve ser aproximada de
investigação do modelo jacobino delineado por Antonio Gramsci. Os três
pontos acima apresentados remetem à questão colocada por Gramsci e
que é um condutor de toda a sua reflexão nos Quaderni: “como nasce o
movimento histórico sobre a base da estrutura” (Q 11, § 22, p. 1422)?

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Gramsci e seus contemporâneos

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164
Os Socialistas Italianos

Daniela Mussi

Este artigo tem por objetivo apresentar três momentos do debate


sobre cultura no início do século XX, na Itália, no contexto em que Gramsci
se aproximou do movimento socialista e que publicou suas primeiras
intervenções políticas. Fortemente atraído pelas correntes de pensamento
neoidealistas que se destacavam no ambiente intelectual italiano desde
os primeiros anos do século XX, a afinidade de Gramsci com os setores
“culturalistas” do Partido Socialista Italiano se deu logo nos primeiros anos
de sua vida universitária em Turim, iniciada em 1912.
No interior do movimento socialista, a perspectiva culturalista se
destacava, entre outros, nas ideias do historiador meridional radicado em
Florença, Gaetano Salvemini, colaborador da revista La Voce e fundador da
revista L’Unità. O engajamento de Gramsci em seus primeiros anos como
membro da juventude socialista, por sua vez, encontrou na figura de outro
estudante de letras da Universidade de Turim, o jovem socialista Angelo
Tasca, o principal aliado.
Na primeira parte, o artigo explora o momento de crise do Partido
Socialista Italiano que, em 1912, sofre uma forte guinada à esquerda, com
a derrota interna e expulsão de um conjunto de dirigentes reformistas.
Esse é o momento da ascensão da figura de Benito Mussolini entre os
socialistas, mas também do fortalecimento de uma perspectiva crítica ao
imobilismo e determinismo do PSI. Aqui, o problema da cultura passou
a adquirir espaço e relevância, como parte do debate sobre a formação de
uma nova classe dirigente.

165
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Em seguida, apresenta as polêmicas sobre cultura e revolução no


interior da juventude socialista em 1912, setor fortemente impactado pelos
debates do partido. Os polemistas Angelo Tasca, “culturalista”, e Amadeo
Bordiga, “revolucionarista”, encarnam a polarização entre a necessidade de
pensar e o dever de agir. É nesse contexto, às portas da I Guerra Mundial,
que Gramsci se aproxima do movimento socialista, intrigado pelo papel
que o PSI poderia cumprir na sociedade italiana.
Por fim, resgata a aproximação com o socialismo e as primeiras
intervenções jornalísticas de Gramsci entre 1914 e 1916, nas quais o tema
da cultura adquiriu um papel importante. Evidencia a dívida gramsciana
com os argumentos de Salvemini e Tasca, mas também seus primeiros
esforços por superar a dicotomia entre cultura e política e sua aproximação
com o marxismo. Pontua, portanto, o papel do conceito de cultura na
gênese de um pensamento político radicalmente engajado e de futuro
distraidamente promissor.

A solução “culturalista” para a crise do socialismo italiano


Quando Antonio Gramsci mudou-se para Turim no final de
1911, aos vinte anos, depois de aprovado em uma seleção de bolsas para
estudantes pobres provenientes dos territórios do ex Regno di Sardegna, seus
principais interesses eram os estudos e encontrar formas de trabalhar para
sobreviver (RAPONE, 2011, p. 39; FIORI, 2003, p. 84). A entrada na
Universidade de Turim como estudante de Letras teve um grande impacto
na vida do jovem sardo, que conhecia pela primeira vez uma cidade com
forte perfil industrial e urbano. As cartas trocadas com familiares mostram
que os sentimentos de Gramsci uniam um misto de espanto com a nova
condição e preocupação com a própria sobrevivência (GRAMSCI, 2009).
Neste momento, Turim era uma das cidades italianas com maior
concentração demográfica, com mais de 425 mil habitantes, sete vezes
maior do que a população da cidade sarda de Cagliari, de onde Gramsci
vinha.1 Nessa época, a capital do Piemonte já despontava como forte

1
No Censo de 1911, Turim possuía 427.106 habitantes, número que subiria para 502.706 em 1921, sendo a
capital do Piemonte a quarta maior cidade do país. Fonte: Ministero di agricoltura, industria e commercio (1861-
1921). Dados disponíveis em: www.timeseries.istat.it. Acesso em 04 dez. 2012.

166
Gramsci e seus contemporâneos

centro industrial, “especialmente em virtude dos carros produzidos por


seus estabelecimentos automobilísticos, a começar pela Fiat” (D’ORSI,
2004, p. 18).2 A indústria automobilística ajudava a consolidar na cidade
“o núcleo mais homogêneo, qualificado e compacto do operariado
metalúrgico” da Itália (D’ORSI, 2004, p. 18).
A Universidade de Turim, centro da cultura positivista desde a
metade do século XIX, estava em consonância com o caráter industrializante
da região e consolidava nesta época uma vida editorial científica e
didática de relevo nacional (D’ORSI, 2000, p. 4). Por outro lado, a vida
universitária que Gramsci conhece, especialmente nos cursos de Letras e
Direito, possuía “relação estreita com os organismos culturais (bem como
outras iniciativas livres) da cidade” (D’ORSI, 2000, p. 4).
Leitor e admirador dos florentinos Giovanni Papini e Giuseppe
Prezzolini e de sua revista La Voce,3 bem como do intelectual meridional
Gaetano Salvemini, ex-vociano, e da recém criada revista L’Unità, Gramsci
trazia na bagagem um contato com o movimento neoidealista, crítico ao
determinismo e ao positivismo filosófico e inspirado pelas elaborações que
o filósofo napolitano Benedetto Croce desenvolvia desde o final do século
XIX (MUSSI, 2014; DELLA TERZA, 1984, p. 147.
Jovem estudante universitário identificado com a questão do Sul
e ilhas e sua relação com o Norte italiano, Gramsci nutria grande estima
pelas elaborações sustentadas por Salvemini,4 que nesse período ainda era
membro do Partido Socialista Italiano (PSI), além de crítico ferrenho do
governo de Giovanni Giolitti.5 No PSI, Salvemini assumia uma postura
2
Em 1911, a Fiat contava “com um capital social de 17 milhões de liras, e produzia 3.000 carros anualmente sob
a direção de Giovanni Agnelli, e contava com 3.320 trabalhadores” (D’ORSI, 2004, p. 18).
3
A revista La Voce, com o subtítulo Rassegnadi cultura italiana e straniera, surgiu em dezembro de 1908. Era
dirigida por Giuseppe Prezzolini e tinha entre seus colaboradores figuras como Giovanni Papini, Giovanni
Amendola, Luigi Einaudi, Salvatore Minocchi, Benedetto Croce, Giovanni Gentile, Giovanni Boine, Augusto
Monti e Gaetano Salvemini. La Voce surgia como conjunto de “polêmicas contra o mundo oficial da cultura,
as suas convenções, as suas instituições; e contra o costume e as ideologias das classes políticas e o mundo a elas
consoante e vinculado” (ROMANÒ, 1960, p. 24).
4
Gaetano Salvemini (1873-1957) foi um importante historiador italiano. Nascido na região Sul da Itália,
mudou-se para Florença onde se especializou em história medieval. Profundamente interessado na questão
agrária, Salvemini foi um importante propositor do problema meridional como questão nacional para o país,
bem como o tema da reforma educacional. Sua agenda política teve forte influência nos jovens liberais e
socialistas italianos do início do século XX.
5
Giovanni Giolitti (1842-1928) foi um importante homem de estado italiano, tendo ocupado o cargo de
Primeiro Ministro por cinco vezes entre 1891 e 1921. Sua forma de fazer política era conhecida pelas coalizões

167
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

“reformista de esquerda”, posição que se reforçou entre 1910 e 1912, quando


PSI viveu o ápice de uma crise interna na qual as tendências reformistas e
revolucionárias polarizaram entre si, especialmente no balanço da relação
do partido com o governo.
Em 1910, no Congresso de Milão, o partido sofrera fortes divisões
internas. Havia a ala reformista, representada por dirigentes como Ivanoe
Bonomi e Leonida Bissolati, que defendia o aprofundamento do apoio
e participação no governo italiano. A ala esquerda, na qual se localizava
Salvemini, que criticava a participação e apoio ao governo, mas não se
identificava com o “revolucionarismo” ou qualquer forma de ruptura
jacobina com o poder. E, por último, se formara uma ala de extrema
esquerda, na qual despontou pela primeira vez a figura de Benito Mussolini
como dirigente político. Esta última cresceu no interior do partido a partir
de então e passou a fortalecer a ideia de depuração do mesmo dos setores
reformistas, o que se concretizou no Congresso de Reggio Emilia, em 1912.
Nesse conflito interno, Salvemini assumiu uma posição de
“terceira via”, de defesa de uma reforma no interior do partido que
permitisse sua autonomia em relação ao governo, ao mesmo tempo em
que evitasse a escalada do “revolucionarismo” no interior da organização
(SALVEMINI, 1910, p. 412-413). A seu ver, essa reforma deveria colocar,
no centro do partido, a bandeira do sufrágio universal, por meio da qual
poderia se aproximar das massas trabalhadoras e se afastar da politicagem
interna ao governo, bem como propor para elas uma série de mudanças
importantes para o país, a serem atingidas gradualmente (SALVEMINI,
1910).
A defesa do sufrágio universal como centro da política socialista
se relacionava, de resto, com a concepção mais geral que Salvemini
sustentava em relação ao socialismo e à própria revolução. Estudioso
da Revolução Francesa, tema sobre o qual chegou a publicar um livro,6
que buscava fazer entre interesses da grande burguesia e representantes dos partidos e organizações socialistas
e sindicais. O chamado “longo ministério” de Giolitti, entre 1906-1909, é considerado fundamental para a
burguesia italiana perceber, com Giolitti, que, por mais avançada que fosse, não era capaz de formar uma “classe
política forte” e autônoma, mas que dependia do governo (RAGIONIERI, 1976, p. 333; SCAVINO, 2006,
p. 55).
6
Livro chamado La Rivoluzione Francese (1788-1792), publicado pela primeira vez em 1905 (cf. SALVEMINI,
1905). Alguns anos depois, em carta escrita em 1918 a Giuseppe Lombardo Radice, Gramsci mencionou o uso
deste livro, entre outros de Salvemini, como parte da bibliografia usada nas iniciativas de formação de jovens

168
Gramsci e seus contemporâneos

Salvemini concebia as grandes transformações políticas como resultado


da interferência das grandes massas na política em determinado momento
histórico, processo este que poderia ter resultados heroicos ou desastrosos,
a depender da orientação seguida pela “multidão exasperada e frenética”
(SALVEMINI, 1905, p. 138). Apesar da ênfase na participação popular,
em sua pesquisa sobre o período entre 1789 e 1792 na França ganhavam
destaque os intelectuais responsáveis por profundas transformações
culturais que antecederam o processo revolucionário e os grupos políticos
que disputavam a opinião pública ao longo dos eventos mais marcantes
da revolução (SALVEMINI, 1905, p. 372, 358).
Dentre os revolucionários Girondinos e Jacobinos, Salvemini
buscava se distanciar de ambos, mostrando que nenhum dos dois poderia
ser responsável por simbolizar, isoladamente, o sucesso ou o fracasso das
lutas políticas. Nesse sentido, ainda, a revolução deveria ser pensada como
obra intelectual, “quase que completa dos filósofos pré-revolucionários”,
responsáveis por refutar “as velhas regras no campo da vida prática” e abrir
um espaço possível por onde as massas incultas poderiam caminhar em um
contexto de crise das classes dominantes (SALVEMINI, 1905, p. 354).
Em julho de 1912, a realização do Congresso de Reggio Emilia
confirmou a derrota dos setores reformistas giolittistas que haviam aderido
à política militar do Estado italiano na invasão da Líbia em 1911, bem
como consagrou Mussolini “como uma das figuras de primeiríssimo plano
no interior do partido socialista, (...) como um dos expoentes da fração
revolucionária em escala nacional” (DE FELICE, 1995, p. 84). A vitória
congressual da “intransigência absoluta” no que diz respeito às eleições e
ao parlamento, foi consolidada, além disso, pela expulsão dos dirigentes
“radicais-socialistas” Bissolati e Bonomi, bem como de outros “reformistas
de direita”, do PSI (DE FELICE, 1995, p. 115). Esta divisão interna foi o
contexto em que Salvemini iniciou seu afastamento progressivo do partido
e ampliou sua crítica aos socialistas, combinada à criação da revista L’Unità,
onde passou a expressar sua posição. Ao mesmo tempo, a nova orientação
política do PSI, abriu um importante campo de disputa no qual os debates
internos da juventude socialista representaram um importante episódio.

operários socialistas (GRAMSCI, 2009, p. 177).

169
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Cultura versus revolução: as polêmicas no interior da juventude


socialista

Entre 1912 e o início de 1914, Gramsci dedicou seu tempo


quase que exclusivamente aos estudos universitários e ao trabalho como
professor de aulas particulares. Apesar disso, acompanhava as principais
polêmicas intelectuais à distância, por meio da leitura dos jornais e revistas,
especialmente La Voce, L’Unità e outras inspiradas no ambiente cultural
neoidealista. Apesar disso, o contato com outro estudante de letras da
Universidade de Turim, o socialista Angelo Tasca,7 a partir de meados
de 1912, contribuiu para sua aproximação com o do Partido Socialista
Italiano (PSI).
Nesse período, Tasca, já militante do PSI, intervia de maneira
ativa nas atividades regionais e nacionais da Federazione Giovanile Socialista
Italiana (Federação Jovem Socialista Italiana – FGSI), na qual iniciou,
em julho de 1912, uma viva polêmica em que a relação entre cultura e
socialismo foi tema central. Mesmo sem exercer ainda nenhum tipo de
intervenção política própria e vítima de crises nervosas periódicas que o
impediam de ler, estudar e escrever, Gramsci acompanhou com interesse
as iniciativas de Tasca neste período e os debates no interior da FGSI
(GRAMSCI, 2009, p. 111, 115).
A Federação, fundada em 1903 em Florença e com sede em
Roma, era a entidade responsável pela organização das seções regionais
de jovens militantes socialistas e publicava, desde 1907, o periódico
L’Avanguardia – giornaledi propaganda e di battaglia socialista [A Vanguarda
– jornal de propaganda e batalha socialista]. Neste, eram noticiadas as
ações promovidas pelos jovens socialistas em cada cidade e província, bem
como informes comentados a respeito da política da direção “adulta”. As
campanhas promovidas pela FGSI giravam em torno de um programa
fortemente anticlerical, antirreformista e internacionalista. Em 1912, sob
a direção de Arturo Vella, o jornal impulsionava uma forte campanha
antimilitarista iniciada em 1911 contra a campanha da Itália na Líbia.
7
Angelo Tasca (1892-1960) vinha de uma família operária, cresceu em Turim e presenciou o desenvolvimento
industrial da capital do Piemonte. Sua vida política começou cedo, em 1909, quando fundou, no liceu em
que estudava, a primeira organização da juventude socialista na cidade. Além de “militante exemplar”, Tasca
desenvolve cedo o gosto pelos estudos e, assim como Gramsci, logo se aproxima das ideias propagadas pelos
intelectuais neoidealistas italianos e também do marxismo (SOAVE, 1995, p. 20-25; FIORI, 2003, p. 92).

170
Gramsci e seus contemporâneos

Antimilitarista, o Comitê Central da FGSI encarava a guerra


colonial promovida pela Itália como “necessidade” e “destino social” da
burguesia, que evidenciavam o caráter vão dos acordos do partido socialista
com o governo e as verdadeiras divisões sociais a partir dos interesses de classe
(COMITATO CENTRALE, 1911a, p. 1). Para a direção da juventude
socialista, em consonância com as mudanças políticas no interior do PSI,
a unidade socialista deveria se dar ao redor da não participação no Estado
italiano e da passagem à oposição parlamentar (VELLA, 1911, p. 1).
Nesse contexto, o “conteúdo espiritual”, “doutrina” e “sentimento”
– portanto, a cultura – adquiriam importância no interior da juventude
socialista e no L’Avanguardia, como possível solução para “a crise que
há alguns anos dilacera o socialismo italiano” (VELLA, 1912a, p. 1).8 A
direção da FGSI sabia que, com esta polêmica, estava em jogo a própria
integridade do PSI e contava com as depurações do congresso partidário
convocado para 1912 na Emília Romana para, então, realizar seu próprio
congresso (COMITATO CENTRALE, 1911b, p. 3).
Depois do Congresso do PSI, em 1912, a política “em favor da
preparação e cultura socialista” no partido, proposta por Angelo Tasca
e pela regional piemontesa da FGSI, ganhou destaque nos debates da
Federação. Inspirado pelas ideias de intelectuais como Giuseppe Prezzolini
e Gaetano Salvemini, Tasca interviu a esse respeito no jornal L’Avanguardia
e nos fóruns da FGSI, e sua posição teve repercussão na recém criada revista
L’Unità.
Em carta escrita na última semana de agosto de 1912, Tasca
comentou sua intervenção sobre a “cultura jovem” e anunciou ao amigo
Gramsci “uma ideia, que já está em plena maturação e que terá tua simpatia,
com certeza. Se trata de um cenáculo de estudo e de arte, de preparação
cultural” (GRAMSCI, 2009, p. 111-112). No início de setembro, Tasca
retomou, na segunda etapa do congresso piemontês da FGSI realizada
em Alessandria, sua polêmica em favor da “preparação cultural” entre
8
A homenagem a Benito Mussolini, então dirigente da ala esquerda do PSI, pelo congresso regional da FGSI na
Emilia Romana, realizado em Cervia em outubro de 1911, em razão de sua prisão política por ter organizado
protestos contra a guerra líbica, evidencia a emergência de novas referencias políticas no interior do partido
socialista (L’AVANGUARDIA, 1911, p. 3). Em artigo publicado em fevereiro de 1910 no jornal La lotta di
classe, o qual dirigia em Forlí, Mussolini já se conectava ao novo ambiente socialista: “O ideal é nossa meta (...)
será o primeiro ato de nossa purificação. Em seguida, passaremos ao trabalho (...) Seremos pouco a pouco dignos
da nova sociedade que desejamos e seremos capazes de criá-la.” (apud DE FELICE, 1995, p. 85).

171
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

os socialistas. Desta vez, precisou sua posição critica ao próprio perfil do


jornal L’Avanguardia, “que deveria ser menos polêmico e se ocupar mais
da propaganda, da educação geral da juventude” (L’AVANGUARDIA,
1912b, p. 4). Sua proposta, aprovada por unanimidade, colocava a exigência
de uma transformação completa da própria FGSI, “o que significa que a
principal tarefa da Federação é, sobretudo, de preparação”, “de cultura e
ação, sendo que a primeira tem mais importância” (L’AVANGUARDIA,
1912b, p. 4).
Em seguida, entre os dias 20 e 23 de setembro, Tasca participou
do IV Congresso Nazionale [IV Congresso Nacional], realizado na cidade
de Bolonha. Apesar de não fazer parte do Comitê Central e não ter
sido indicado para nenhuma posição institucional no interior da FGSI,
Tasca desempenhou um papel importante nos debates deste Congresso.
No editorial de dezembro, Ugo Barni, diretor responsável pelo jornal
recém eleito, resumiu: “a aprovação da ordem do dia sobre a orientação
do movimento contemplando a fecunda discussão sobre a cultura foi o
maior protesto contra o militarismo e a guerra” (BARNI, 1912, p. 1). A
“discussão sobre cultura” se refere à intervenção de Tasca, feita em duas
partes. Inicialmente, se discutiu a respeito da orientação do L’Avanguardia,
na qual Tasca contestou Vella e apresentou uma proposta de resolução para
que no jornal passasse a prevalecer “o trabalho de cultura”.
Na resolução de Tasca, “o congresso passaria a discutir o melhor
modo pelo qual nosso movimento em geral – e o jornal que é a sua expressão
– possam responder melhor à imperiosa necessidade de cultura e preparação
manifestas no movimento de jovens socialistas” (L’AVANGUARDIA,
1912a, p. 1). A resolução proposta pela direção da FGSI, apoiada por Ugo
Barni e, entre outros, pelo socialista napolitano Amadeo Bordiga, foi a de
que “considerando que nosso movimento, além da missão de preparação e
cultura, possui um caráter essencialmente político e de luta antiburguesa,
afirma que a orientação consequente deva ser inspirada nestes conceitos,
mantendo sua fisionomia de combate” (L’AVANGUARDIA, 1912a, p. 1).
A votação dividiu os delegados – 2.465 para a resolução de Tasca,
contra 2.730 para a resolução da direção da Federação – e expôs a crise
de orientação política do jornal, polarizada entre trilhar um caminho de

172
Gramsci e seus contemporâneos

formação e elaboração cultural ou reforçar o caráter de “ação, agitação e


rebelião” que encontrara na vitória da tendência revolucionária e na expulsão
dos reformistas de direita do PSI um novo fôlego. Neste mesmo congresso,
Bordiga foi o relator de um ponto de debate chamado “Educação e Cultura”,
e reforçou a ideia de que “nosso movimento é de cultura e preparação
(...), mas fazemos o nosso trabalho (...) para minar revolucionariamente a
sociedade” (L’AVANGUARDIA, 1912a, p. 2). Para Bordiga, a proposta
de Tasca era expressão de um “intelectualismo socialista” que em nada se
diferenciaria de um intelectualismo burguês. A cultura, de uma perspectiva
revolucionária deveria ser “uma teoria baseada no estudo ou mesmo na fé
de transformar as consciências” (L’AVANGUARDIA, 1912a, p. 2).
Em seguida, o debate sobre a reorientação da FGSI ganhou
contornos novos, de oposição entre formação teórica e agitação socialista,
entre renovação geral da cultura e difusão de uma doutrina socialista.
Bordiga, que seria eleito em seguida como parte do novo Comitê Central,
concluiu afirmando que a Federação não seria espaço para conformação
de instituições culturais, já que este tipo formação deveria ser resultado
do esforço individual de cada um. Em 3 de outubro, Tasca escreveu a
Gramsci falando de sua atuação no Congresso de Bologna, “trabalho duro
que me deixou todo moído (...) daqui um tempo colocaremos as coisas
no lugar e poderemos realizar nosso sonho que é, pelo menos para mim,
uma verdadeira necessidade espiritual” (GRAMSCI, 2009, p. 115, grifo do
autor).9
Tasca não chegou a enviar sua apresentação escrita para
Gramsci, mas a citação literal de uma parte em 12 de outubro na revista
de L’Unità, indica que esta foi enviada na mesma época a um colaborador
de Salvemini, Pietro Silva. No artigo, I giovanili socialisti [Os jovens
socialistas], Silva apresentou um comentário a respeito do IV Congresso
da FGSI, em que afirmava que os jovens italianos resolveram tentar
“mostrar que estão vivos (...) neste difícil momento para o país” (SILVA,
1912, p. 174). Enquanto “os velhos dirigentes perderam a capacidade de
agir” e o PSI se voltara, em muitos lugares, para os interesses mesquinhos

9
Por “colocar as coisas no lugar” Tasca fazia referência tanto às crises de saúde do amigo Gramsci como aos
problemas econômicos de sua família e aos problemas de saúde de seu pai (cf. RIOSA, 1979; GRAMSCI, 2009,
p. 115-116).

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
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e corporativistas, os jovens “com sua fé e energia fresca seriam capazes


de impor uma nova corrente de vida e força no movimento proletário”
(SILVA, 1912, p. 174). Para Silva, representante da posição salveminiana,
o debate de cultura proposto por Tasca era o que melhor representava
essa novidade.
Dentro do Congresso da FGSI, Tasca adquiriu ares de representante
daqueles que buscavam ideias claras a respeitos dos problemas e objetivos
socialistas, “buscando estudar as condições da Itália e as causas verdadeiras
da crise do partido socialista” (SILVA, 1912, p. 174). Ao citar o texto de
Tasca, Silva destacou a crítica “à um partido que quer renovar o mundo,
mas não renova a si mesmo”, em que “a cultura, ou seja, os homens” ficaram
estacionados ao mesmo tempo “em que as teorias progrediram” (SILVA,
1912, p. 174). Apesar de Tasca, continuava, o Congresso de Bolonha
não fora capaz de enfrentar esse “conjunto de coisas”, já que os líderes
tradicionais se mantiveram no lugar, afirmando que não havia mais “crise
do socialismo”, superada pelo Congresso de Reggio Emilia, e que restava à
FGSI manter seu caráter de entidade de combate (SILVA, 1912, p. 175).
A revista de Salvemini seguiu dando atenção à polêmica dos jovens
socialistas. Em 26 de outubro, outro colaborador do historiador napolitano,
Carlo Maranelli, publicou um artigo10 retomando as impressões de Silva de
maneira ainda mais pessimista. Para Maranelli, nenhum setor do partido –
organismos parasitas, forças renovadoras, movimento proletário industrial
– era capaz de superar a estagnação do desenvolvimento do partido. No
contexto “em que o país passa por uma nova entrada de forças populares na
vida política por meio do sufrágio universal”, nenhum dos partidos atuais
seria capaz de absorver e aguçar a ação política de maneira convincente
e eficaz (MARANELLI, 1912, p. 182). Além do artigo de Maranelli, a
L’Unità publicou, neste número, cartas de Tasca e Bordiga, enviadas à
redação do jornal na semana anterior, em que a polêmica do Congresso da
FGSI era comentada.
Para Tasca, Silva não acertara na caracterização do congresso,
que havia sido rico, fraterno, politizado e cuja votação refletira de maneira
importante o impacto do problema da cultura entre os jovens socialistas
10
Intitulado Per una organizzazione di cultura [Por uma organização de cultura].

174
Gramsci e seus contemporâneos

(TASCA, 1912, p. 184). Bordiga, por sua vez, dirigente recém eleito para
o Comitê Central da FGSI, afirmou que o congresso não havia declarado
“guerra à cultura”, tampouco negado a crise do socialismo ou a “necessidade
de estudar suas causas e encontrar meios adequados para eliminá-las”
(BORDIGA, 1912a, p. 184). A crise socialista, em sua opinião, não era
uma “crise de cultura, mas de sentimento”, de fé socialista (BORDIGA,
1912a, p. 184).
Em um comentário assinado por L’Unità (escrito por Salvemini?)
a revista respondeu às duas cartas reafirmando a crítica à posição de Bordiga.
A cultura, dizia, é algo que não deve ser secundarizado ou desprezado pelos
socialistas, já que “não basta querer, é preciso também saber” (L’UNITÀ,
1912a, p. 184). A fé e entusiasmo, neste caso, serviriam como fonte para
“a dura e penosa disciplina de estudar antes de operar, ou seja, apoderar-se
da realidade antes de pretender agir sobre ela” (L’UNITÀ, 1912a). Sem
esta “fase” cultural, a pura vontade conduz ao “ressecamento de toda fé e
entusiasmo”, bem como de seus propósitos. Este ressecamento estivera na
origem da crise do partido socialista, cuja busca pela “praticidade” levara à
negação de todo ideal.
Poucas semanas depois, em 9 de novembro, L’Unità publicou
uma nova carta de Bordiga a Salvemini. Nesta, o dirigente da FGSI refutou
as críticas dizendo que não considerava toda a cultura inútil, mas que não
seria prático “dedicar-se a um trabalho essencialmente de cultura escolar no
campo socialista” (BORDIGA, 1912b, p. 192). Isso por que o socialismo
teria suas bases “não tanto na cultura como no sentimento de solidariedade
proletária”, sendo que a negação desta é uma realidade comum a muitos
“estudiosos dos problemas técnicos” (BORDIGA, 1912b, p. 192).
A resposta, novamente assinada por L’Unità, questionou o fato de
Bordiga associar sempre a cultura à escola, sendo esta apenas “um meio de
transmitir cultura, o que faz muito mal diga-se de passagem” (L’UNITÀ,
1912b, p. 192). Neste caso, caberia chamá-la de “ignorância escolar”. O
termo cultura, aqui, adquiria contornos bem definidos “como sentido de
vivaz desejo de apoderar-se dos elementos da realidade, bem como do
esforço penoso por conquistá-los e transformá-los no sentido dos nossos
ideais” (L’UNITÀ, 1912b, p. 192). Assim, ao usar o “bom sentido de

175
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

cultura” seria possível afirmar que foi por meio do “estudo dos problemas”
que Bordiga concluiu que este “é tempo perdido” que pode levar à negação
do triunfo socialista.
Ao final do ano, em 22 e 29 de dezembro, um artigo de Tasca
publicado em duas partes no L’Avanguardia, Note d’un “culturista” [Notas
de um culturalista], reforçou as críticas ao dirigente da FGSI. “Bordiga
quer ‘acender’, nós queremos ‘evangelizar’”, começou Tasca (TASCA,
1912b, p. 2). Assumir a postura de “vanguarda” na vida do movimento
jovem socialista não poderia se restringir à assinatura em artigos, mas seria
preciso “um trabalho complexo delicado e dedicado” (TASCA, 1912b,
p. 2). Este deveria contribuir para superar a “desconfiança histórica das
massas no partido” gerada pela luta interna sem real conteúdo político e
pelo parlamentarismo (TASCA, 1912b, p. 2).
A “obra séria de cultura”, portanto, estaria no centro da elaboração
de um programa capaz de “reconstruir, com paciente ardor, a bagagem
ideal” do partido, como “base necessária da ação prática” capaz de assegurar
o que foi conquistado e avançar (TASCA, 1912b, p. 2). Em sua polêmica
com Bordiga, Tasca propunha a cultura de um ponto de vista político,
como pondo de partida para pensar o socialismo como “tomada de poder
do movimento”, e não como “assistente facilitador” (TASCA, 1912b, p.
2). Para tal, as observações de Salvemini eram retomadas para propor a
cultura como conhecimento “da natureza dos fins” que se quer atingir e
“adequação ao meio em que se atua” (TASCA, 1912b, p. 2).
Tasca compartilhava a argumentação antijacobina de Salvemini
de que “a revolução verdadeira não estará nos dias das barricadas, mas
no dia seguinte”, como “tomada do poder socialista” sobre toda a vida e
seus problemas (TASCA, 1912c, p. 2). Sua posição, cujo impacto fora
grande no interior da FGSI, era a de que a cultura se sobrepunha à ação
revolucionária, como “consciência de fazer bem”, “método e guia” (TASCA,
1912c, p.2). Tasca traduzia, no interior da juventude socialista, aspectos da
posição de “terceira via”, para a qual nem o reformismo pró Giolitti e nem
o revolucionarismo vitorioso no interior do PSI eram capazes de conduzir
o partido adiante. Da crítica ao pensamento determinista e voluntarista
de Bordiga, Tasca passava à ideia da revolução a partir de um ponto de

176
Gramsci e seus contemporâneos

vista “cultural”, como “meio com qual se oferece à classe trabalhadora a


capacidade e possibilidade de bastar a si mesma” (TASCA, 1912c, p.2).

“Cultura é organização”: o revolucionário “historicista” de Turim


As cartas trocadas com Tasca entre 1913 e 1914 evidenciam as
condições nas quais Gramsci se aproximou e aderiu ao socialismo italiano.
Entre elas, cabe destacar a posição favorável à vitória da ala esquerda no
interior do PSI, o que significava a ruptura com o governo e a política
deste para a região Sul e a Sardenha. A vida partidária socialista interessou
progressivamente a Gramsci à medida que este acompanhou sua dinâmica
e seus debates internos. O jovem sardo seguia dedicadamente com seus
estudos de filologia na universidade, com leituras nas quais a cultura
neoidealista ocupava espaço relevante, mas sofria com a falta de recursos e
crises de saúde periódicas (GRAMSCI, 2009, p. 121, 125, 129, 131, 154).
Ainda assim, seu interesse na política socialista cresceu nesse período.
“Evangelizador”, Tasca mantinha, nesse mesmo período, uma
atividade regular ministrando aulas sobre temas relevantes ao socialismo
na seção de Turim, anunciadas no jornal L’Avanguadia, como “iniciativa
de cultura”, quando foi chamado, em setembro de 1913, a cumprir seis
meses de serviço militar obrigatório (GRAMSCI, 2009, p. 141-143).
Em outubro, Gramsci aderiu ao grupo sardo da Lega Antiprotezionista
[Liga Antiprotecionista] impulsionada pelas revistas La Voce, L’Unità e
Riforma Sociale (FIORI, 2003, p. 101).11Esta Liga tinha por objetivo
criar uma rede para pressionar os candidatos às eleições gerais de 1913 no
sentido de medidas antiprotecionistas (redução de tarifas alfandegárias
principalmente), capazes de estimular o desenvolvimento das regiões
menos desenvolvidas do país. Para o caso da Sardenha de Gramsci, a
pobreza e o desemprego haviam se tornado problemas crônicos desde o
final do século XIX, quando o livre comércio de exportação agrícola com
a França fora proibido para beneficiar a burguesia industrial do norte da
península (LA VOCE, 1913, p. 1175; FIORI, 2003, p. 38).

11
A adesão ao “Grupo de ação e propaganda para os interesses da Sardenha”, lançado em 28 de agosto, foi
feita por carta de Gramsci a Attilio Deffenu em 28 de setembro de 1913 (GRAMSCI, 2009, p. 143). Em 9 de
outubro, a revista La Voce publicou sua adesão, “Antonio Gramsci, de Ghilarza” (LA VOCE, 1913, p. 1175).

177
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Os planos de Tasca com Gramsci nasciam como fruto de uma


compreensão mútua da necessidade de ampliar o acesso à cultura nos
meios socialistas. No entanto, a adesão do jovem sardo ao socialismo foi
também resultado da profunda impressão que as eleições gerais de 1913
provocaram. No período em que estava na Sardenha, durante as férias
escolares, Gramsci observara impressionado “a transformação produzida
neste ambiente pela participação das massas camponesas nas eleições”,
a interpretação “mística” que estas haviam dado ao fato eleitoral,
“acreditando que tudo mudaria no dia seguinte ao voto” (TASCA, 1971,
p. 88; FIORI, 2003, p. 102). Ao mesmo tempo, olhava para o recuo
das organizações socialistas, resultado da crise que o PSI vivia, e era
impossível não concluir a importância da organização partidária para
lidar com este contexto de massificação da política.
Em carta enviada em outubro, Tasca comentou as eleições
recém realizadas: “a vitória do socialismo não se prepara com vitórias
eleitorais (...) mas com a elaboração cansativa de novos valores ideais
realizada pelos poucos capazes” (GRAMSCI, 2009, p. 146). A “nossa
revolução”, continuava, “consiste em uma inversão de valores (...) todo o
resto será de pouco valor e não duradouro” (GRAMSCI, 2009, p. 147).
Ao dialogar com o amigo que descobria a importância da vida política
nacional para as massas, Tasca completava: “não existe consciência sem
autonomia” (GRAMSCI, 2009, p. 148). Gramsci, por sua vez, notara
que a inclusão de amplos estratos sociais na vida eleitoral impunha uma
“mudança de método” aos partidos políticos, que agora precisavam
apresentar um programa político para poder vencer, já que a vitória pela
corrupção do voto ficara mais difícil (FIORI, 2003, p. 104).
De volta à Turim, Gramsci participou de sua primeira
iniciativa como militante socialista, compondo em abril de 1914 o
Gruppo Studentesco Socialista di Cultura [Grupo Estudantil Socialista de
Cultura], criado a partir de uma iniciativa de Tasca. Foi neste contexto
que se aproximou, ainda, de outros estudantes universitários socialistas
e que começou a se interessar pelo marxismo, em especial para entender
o processo formativo da cultura no sentido da revolução.12 O problema
12
Entre 1914 e 1915, Gramsci frequentou algumas aulas particulares do professor Annibale Pastore, que
conheceu por intermédio de seu professor de glotologia Matteo Bartoli. Entre os temas das aulas, o estudo do
marxismo chamava atenção do jovem estudante de letras (FIORI, 2003, p. 112).

178
Gramsci e seus contemporâneos

da cultura era, para ele, o da transformação das ideias em força prática


(FIORI, 2003, p. 112).
Sua referência se mantinha forte “em Croce, antipositivista
e antimetafísico, e em Salvemini, em sua batalha contra a degeneração
corporativa do socialismo” (FIORI, 2003, p. 112). Gramsci compartilhava
o sentimento de seus companheiros socialistas de Turim a respeito de
Mussolini, que nutriam grande admiração e expectativas com relação
ao seu papel no interior do partido (RAPONE, 2011, p. 12). A Grande
Guerra começou em 28 de julho deste ano, e em 4 agosto, Mussolini
passou a expressar uma posição ambígua, sem rejeitar veementemente o
envolvimento na guerra tal como queriam os socialistas (MUSSOLINI,
1953, v.5, p. 298).
Em 18 de outubro, contra a ideia socialista de “neutralidade
absoluta”, Mussolini lançou a palavra de ordem “neutralidade ativa e
operante”, e passou a ser criticado no interior do PSI, o que culminaria
em sua expulsão alguns dias depois, do partido e do Avanti!.13 Em 24 de
outubro, Tasca escreveu um artigo no Il Grido del Popolo onde lamentou
a postura de Mussolini – a quem os socialistas haviam “depositado
toda a confiança” – com relação à guerra (RAPONE, 2011, p. 13-14).
Uma semana depois, Gramsci iniciou sua vida pública como intelectual
socialista, assinando o artigo Neutralità attiva ed operante [Neutralidade
ativa e operante] no mesmo jornal, na rubrica La guerra e le opinioni dei
socialisti [A guerra e as opiniões dos socialistas]. Neste, Gramsci comentou
o último editorial publicado em outubro por Benito Mussolini no Avanti! a
respeito de uma possível entrada da Itália na guerra mundial. Ao contrário
da maioria da direção socialista, a posição de Gramsci era de crítica à ideia
de “neutralidade absoluta”, “que lhe parecia interna ao giolittismo, em
um quadro de subordinação do movimento socialista à classe dominante
e aos seus expoentes mais inteligentes, aqueles dos quais Giolitti era o
condottiero” (D’ORSI, 2008, p. 130).
Gramsci defendeu a ideia de uma “neutralidade ativa e
operante” lançada por Mussolini, palavra de ordem que, a seu entender,
responsabilizava a burguesia e seu governo pela guerra e poderia ser
13
Especialmente no artigo Dalla neutralità assoluta alla neutralità attiva ed operante [Da neutralidade absoluta à
neutralidade ativa e operante], publicado no Avanti! que Mussolini então dirigia (MUSSOLINI, 1953, p. 393).

179
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

combinada a um intenso trabalho de base socialista para enfrentar os


impactos do conflito.14 Gramsci sentia “a necessidade de agir, a vontade
de fazer”, de dar resposta ao tradicional imobilismo do partido socialista
e da II Internacional (D’ORSI, 2008, p. 128). Para ele, aquele momento
histórico era, para a classe trabalhadora, “de uma inegável gravidade”, e
“porque tanto sangue versa e tantas energias são destruídas”, era “preciso
agir” sobre todas as questões fundamentais (GRAMSCI, 1973, p. 7). Sua
primeira intervenção pública apontava para a importância de localizar
corretamente os socialistas naquele contexto de guerra, como um “Estado
em potência que amadurece antagonista ao Estado burguês” (GRAMSCI,
1973, p. 7).
Gramsci considerava este um importante momento do
desenvolvimento de uma “dialética interna” pelo partido, fundamental
para qualquer transformação política. Para conformação deste “Estado em
potência”, era fundamental a elaboração de uma palavra de ordem capaz
de conduzir à independência do PSI em relação ao Estado burguês. Para
Mussolini, a “neutralidade ativa” era uma artimanha usada para conquistar
uma margem de manobra na política imperialista italiana (D’ORSI 2004;
2008; RAPONE, 2011). Para Gramsci, esta palavra de ordem era necessária
pois tornava claro o conflito entre as classes, desfazendo a “extraordinária
confusão” criada nos partidos e nas consciências, e servia como base para a
diferenciação e definição das tarefas socialistas no sentido de uma ruptura
revolucionária (GRAMSCI, 1973, p. 8; DIAS, 2000, p. 54; RAPONE,
2011, p. 28).
Este foi o primeiro episódio de polêmica entre Gramsci e Tasca,
que se manteve ao lado da posição majoritária entre os socialistas. Em
seguida, o isolamento político no interior do partido, as crises de saúde
e a necessidade de trabalhar para se sustentar foram responsáveis por um
período de afastamento de Gramsci da vida pública. Apesar das dificuldades,
as cartas trocadas com companheiros evidenciam um retorno às atividades
partidárias em Turim um pouco mais de um ano depois, em janeiro de
1916, com uma série de artigos nos jornais socialistas Avanti! e Il Grido
14
Neste período, assim como muitos socialistas, Gramsci nutria admiração por Mussolini, que representava no
interior do PSI e perante a opinião pública, a renovação política contra o reformismo e o imobilismo. Alguns
dias antes de publicar seu artigo na imprensa socialista, Gramsci chegou a enviar um cartão postal estampado
com o rosto de Mussolini para a irmã Teresina que estava na Sardenha. (GRAMSCI, 2009, p. 165).

180
Gramsci e seus contemporâneos

del Popolo. O artigo Socialismo e Cultura, publicado em Il Grido del Popolo


em 29 de janeiro sob o pseudônimo “Alfa Gamma”, recolocava justamente
“o problema da cultura”, antes desenvolvido por Tasca, reintroduzindo
Gramsci nas discussões públicas do partido.
Neste artigo, a cultura apareceu como o “problema de apoderar-
se de si próprio”, de buscar uma sincronia entre a existência natural e a
existência consciente (GRAMSCI, 1980, p. 99). Além disso evidenciava
que, analisada de um ponto de vista histórico, a cultura havia se convertido
em “consciência da igualdade humana” entre “plebeus” e “nobres” e, com
isso, na fundação de uma nova “base e razão histórica para o surgimento da
república democrática na antiguidade” e da república burguesa a partir da
Revolução Francesa no presente (GRAMSCI, 1980, p. 101). O enfoque
de Gramsci compartilhava parcialmente as ideias de Salvemini e Tasca, mas
possuía um elemento original. A cultura, aqui, não era apenas resultado de
embates intelectuais, mas aparecia como produto de entrechoques sociais
ao longo da história, e não apenas da “educação” oferecida por um grupo
social à outro. O “problema supremo da cultura” era pensado por Gramsci
em uma dimensão conflitiva, na medida em que a consciência da igualdade
humana, cultural, se afirmava, ao mesmo tempo, como “princípio e limite”
dos momentos de luta por essa igualdade. Dessa maneira, estabelecia o que
entendia por “uma justa compreensão do conceito de cultura, também em
relação ao socialismo” (GRAMSCI, 1980, p. 102).
Gramsci observava, absorvendo as considerações de Salvemini
a respeito da Revolução Francesa, que “toda revolução é precedida por
um intenso trabalho de crítica, de penetração cultural, um processo de
permeabilidade de ideias entre grupos de homens antes refratários a elas”
(GRAMSCI, 1980, p. 101). A relação entre crítica e revolução mantinha,
de fato, uma relação de “precedência”, mas a novidade proposta por Gramsci
estava em retirar dos “intelectuais” a exclusividade do protagonismo neste
processo. E, ao desenvolver este raciocínio, propôs uma nova definição
para o conceito: “cultura é organização” (GRAMSCI, 1980, p. 101).
Dessa forma, Gramsci traçava pela primeira vez a ideia da
permeabilidade da cultura entre grupos sociais, ideia que ganharia enorme
desenvolvimento posteriormente. Se a cultura é “permeável”, conhecer seus
“fatores” seria tarefa fundamental para o desenvolvimento de um “estado

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

de ânimo” orientado para um fim compartilhado, preparado, portanto,


para agir nos momentos de “explosão” social (GRAMSCI, 1980, p. 101).
O reconhecimento do processo coletivo de formação da “consciência
do eu, que se opõe aos outros, que se diferencia” orientava à identidade,
em algum nível, entre cultura e política. Afinal, apenas ao se expressar
socialmente e coletivamente este novo “eu” se tornava capaz de forjar “a
meta a partir da qual se pode julgar os fatos e os acontecimentos por si e
para além de si” (GRAMSCI, 1980, p. 102).
Em seus artigos deste período de retorno, Gramsci realizou o
elogio do Iluminismo, como o movimento que fora para a Revolução
Francesa a concretização desse momento de trabalho crítico e penetração
cultural, “uma magnífica revolução”, a partir da qual se formara, em
toda a Europa, “como uma consciência unitária, uma internacional
espiritual burguesa, sensível em toda parte às dores e desgraças comuns,
e que foi a melhor preparação para a revolta sanguinária depois verificada
na França” (GRAMSCI, 1980, p. 102). Porém, ao pensar a Itália do
presente, Gramsci dava um passo além do individualismo da crítica feita
pela intelectualidade do começo do século XX à modernidade capitalista,
expressiva nas revistas neoidealistas. O ambiente intelectual tradicional
passava paulatinamente a ser deslocado pelo movimento em que as
massas trabalhadoras se permitiam “sair do caos e tornar-se um elemento
de ordem”, consciente de sua história e engajado concreta e efetivamente,
orientado em seus limites e princípios (GRAMSCI, 1980, p. 99).
Neste contexto, era preciso uma nova forma de pensar a cultura,
uma nova forma de compreender o processo de decadência da vida civil
burguesa e o surgimento de novas formas de organização coletiva. Para
tal, a ideia de “disciplina do próprio eu interior”, de “tomada de posse
da própria personalidade”, deveria ser reformada (GRAMSCI, 1980, p.
101). Gramsci compartilhava das reflexões levadas a cabo pelo francês
Romain Rolland15 sobre o papel dos intelectuais na crise que culminara
na grande guerra, em especial a ideia de que estes, “les idoles de La
15
Neste caso, na referência ao artigo de Rolland Les idoles, de dezembro de 1914, no artigo Intellettualismo
[Intelectualismo], publicado em 11 de janeiro de 1916 na rubrica Sottola Mole, no jornal Avanti! O romancista e
crítico de arte francês Romain Rolland (1866-1944) cumpriu um importante papel na difusão da posição contra
a guerra e em defesa de uma postura militante dos intelectuais nesse sentido. Alguns de seus principais artigos
escritos durante a guerra foram traduzidos pelos jornais socialistas, e suas ideias tiveram muita influência sobre
Gramsci e parte da intelectualidade italiana da época (cf. D’ORSI, 2011).

182
Gramsci e seus contemporâneos

Kultur”, “vivem no reino das ideias” e, por isso, “na crise atual, não
apenas foram os mais expostos ao contágio bélico, como contribuíram
prodigiosamente para difundi-lo”, na medida em que a paixão “aderiu à
concepção que melhor serviu” (ROLLAND, 1953, p. 118, 125).
Para a conformação de uma vida cultura “verdadeira”, era preciso
pensar um plano de “atração”, em especial para as gerações mais jovens, um
programa que representasse “uma necessidade do espírito, a necessidade
de estar junto entre companheiros de ideal e de luta” (GRAMSCI, 1980,
p. 238). Gramsci notava que, apesar das várias iniciativas culturais, essa
tarefa não podia ser realizada plenamente pelos círculos intelectuais
tradicionais, cuja energia e potencialidade de desenvolvimento haviam
caducado, “perdido qualquer calor interno” e que representavam, agora,
“a proibição da livre discussão” (GRAMSCI, 1980, p. 238-239).16
Em sua opinião, “a educação socialista do proletariado” seria a
única capaz de resolver “a cada dia, em cada ato, por meio de cada atitude
ideal”, de maneira “equilibrada, geométrica, por assim dizer, e não
superficial”, o problema da cultura (GRAMSCI, 1980, p. 382). Aqui, mais
uma vez, aparecia a ideia de cultura como processo pedagógico e político,
conduzido não como transmissão de um somatório de conhecimentos
(“saber enciclopédico”), mas como formação para a elaboração e realização
de todas as tarefas colocadas, na medida de sua “afirmação plena em
todas as complexas e diversas atividades” (GRAMSCI, 1980, p. 382).
Por um lado, Gramsci refletia sobre a necessidade de “conferir
à palavra um conteúdo” e à “força moral” a “convicção sincera”, única
capaz de conferir dignidade ao convencimento (GRAMSCI, 1980, p.
328).17 Por outro, tinha a preocupação de que esta iniciativa servisse
como crítica da apatia em que se encontrava a maioria da população
com relação à política italiana. Foi com essa preocupação que, em 8
de setembro, em La scuola all’officina [A escola na oficina], publicado
também no Avanti!, apresentou “o problema da educação” como “o
máximo problema da classe”.

16
Reflexão expressa no artigo Giovani decrepiti [Jovens decrépitos], publicado por Gramsci no Avanti!, em 4 de
abril de 1916 (também citado em DIAS, 2000).
17
Artigo Audacia e fede [Audácia e fé], publicado em 22 de maio de 1916, na rubrica Sotto la mole do jornal
Avanti!

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Naqueles dias, o governo avançava na proposta de empregar


os estudantes da “escola média” (equivalente ao ensino médio atual) na
crescente indústria de fabricação de armamentos. Gramsci percebia que
por meio dessa experiência uma jovem geração inteira, “da qual se espera
a renovação italiana”, seria formada (GRAMSCI, 1980, p. 536). Porém,
essa formação se daria pela “exaltação da oficina” e pela “depressão da
escola”, estabelecendo um antagonismo entre a “escola do trabalho” e o
“saber desinteressado” (GRAMSCI, 1980, p. 537).
Em sua opinião – retomando o método com que Salvemini
havia olhado para a universidade alguns anos antes – seria preciso partir
da diferenciação histórica entre esses dois universos, o intelectual e
o do trabalho na fábrica, e permitir aos jovens a escolha de em qual
gostariam de se dedicar com afinco. A escola “deve ser verdadeiramente
escola” e a oficina não deve ser “uma prisão perpétua”. Salvemini havia
proposto uma divisão da escolha em três níveis, técnico, médio e de
alta complexidade, e concentrara sua atenção em fortalecer a formação
humanista nos estratos sociais médios. Afinal, ali era para ele o lócus da
formação cultural de uma nova classe dirigente.
Para Gramsci, o problema estava em permitir o desenvolvimento
em termos democráticos de uma geração capaz tanto de “um trabalho
profícuo nas artes liberais”, como “de oferecer à fábrica aquilo que a ela falta:
dignidade e reconhecimento da sua função indispensável” (GRAMSCI,
1980, p. 537). Em sua opinião, isso contribuiria para equiparar – moral e
concretamente – o operário a qualquer outro profissional. Aqui, a cultura
era vista como organização não apenas em termos partidários, mas em
um sentido mais amplo, histórico mas também pedagógico e econômico,
capaz de informar um programa político de longo alcance para a nação.
Isso significava “oferecer ao programa de educação do povo um
conteúdo real, definido a partir da consciência direta e imediata das suas
necessidades, das suas aspirações, dos seus direitos e deveres” (GRAMSCI,
1980, p. 643). Para tal, como “primeira emancipação da servidão política
e social”, o programa de cultura do proletariado deveria ser “formulado e
efetivado pelos órgãos que o proletariado mesmo constituísse, em defesa
dos próprios interesses” (GRAMSCI, 1980, p. 643). A cultura passava a

184
Gramsci e seus contemporâneos

ser colocada, dessa vez, não mais como questão partidária ou nacional-
histórica e econômica, mas como um problema de organização política
de massas, como “um massivo problema de classe, que não pode ser
resolvido senão sobre o ponto de vista de classe” (GRAMSCI, 1980, p.
643).
Indivíduo, história, intelectuais, escola, economia, partido: a
multiplicidade de sentidos foi a forma com que Gramsci tratou da ideia
cultura em seus primeiros artigos públicos, promovendo uma explosão
conceitual, provocando e tracionando a tradição neoidealista. Este
exercício, que se tornaria típico ao pensamento gramsciano, acompanhava
o movimento massivo de indagações e revoltas que se expressava na
vida das massas italianas, em seu desencantamento incontrolável com
a política e os políticos. Uma crise cultural para a qual era preciso dar
respostas.
Ainda em seus escritos durante a guerra, em 29 de dezembro
de 1916, Gramsci retomou o problema da cultura no artigo L’Università
Popolare [Universidade Popular], por meio da pergunta “por que não
se foi capaz de solidificar um organismo de divulgação da cultura em
Turim?” (GRAMSCI, 1973, p. 23). Sua crítica se dirigia à Universidade
Popular, criada para absorver a parcela da população que não alcançara
os estudos universitários regulares. Esta instituição, em sua opinião, não
fora capaz de “criar um público” pois reproduzia um sistema de ensino
dogmático, sem estimular nos estudantes o “esforço por conquistar a
verdade” (GRAMSCI, 1973, p. 23).
Para que “cada um” pudesse desenvolver o “estado de ansiedade
que precede uma descoberta”, continuava, era preciso remover todo
esquematismo da forma como se ensina, e “falar da série de esforços, erros
e vitórias que permitiram o alcance do conhecimento atual” (GRAMSCI,
1973). Inspirado pelas ideias de Croce, concluía que todo conhecimento
não é senão a história deste conhecimento, na medida em que “forma o
estudioso, permite em seu espírito a elasticidade da dúvida metódica”,
“purifica a curiosidade” (GRAMSCI, 1973).
Gramsci falava de si próprio: “quem escreve esta nota fala um
pouco por experiência pessoal”, como “jovem universitário” que se

185
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

interessou pelo ensino quando “o professor mostrou todo o trabalho de


pesquisa conduzido por séculos para aperfeiçoar o método de pesquisa”,
“liberando o espírito de preconceitos”, “apriorismos”, “sentimentalismo”,
“retórica” (GRAMSCI, 1973, p. 23-24). A parte vital de todo estudo
era, para Gramsci, o “espírito criativo, capaz de fazer assimilar os dados
enciclopédicos em seu lugar, fundidos em uma nova chama ardente de
uma nova vida intelectual” (GRAMSCI, 1973, p. 24).
Agora, propunha a ideia de que a cultura seria organização
na medida em que esta fosse capaz de resgatar aquele “eu” cultural
reivindicado por Tasca na polêmica com Bordiga em 1912. Aqui, o “eu”
perdia seu contorno tradicional, restrito aos grupos de intelectuais, para
encarnar um “público”, ainda bastante vago, mas nascente. Um público
que não possuía aquela formação intelectual precedente e para o qual o
ensino poderia se tornar “um ato de libertação” (GRAMSCI, 1973, p.
24). Este público deveria ser capaz de aprender com a história, que os
erros e enganos fazem parte da busca pelas certezas e pelo conhecimento,
e que, portanto, pudesse compreender o conhecimento como parte de sua
própria realidade, já que este “é o caminho que todos devem percorrer”
(GRAMSCI, 1973, p. 24).
A cultura, portanto, deveria ser pensada como ato público,
coletivo, de conhecimento e como método pelo qual se reconhece que
todo conhecimento será substituído por outro e é, portanto, histórico.
Gramsci buscou, a seu modo, propor os contornos de um novo
“Iluminismo”, que para ele significava a historicização completa do
conhecimento. O “Iluminismo burguês” fora capaz de contar a história
antiga e feudal, mas não a sua própria história e, por isso, a “cultura”
se mantivera cristalizada em um “eu” abstrato, alienado historicamente.
Gramsci via no desenvolvimento do pensamento europeu desde meados
do século XIX, passando pelos neoidealistas italianos, as bases fecundas
para este novo “Iluminismo”. Mas sabia que este movimento de ideias
só poderia encontrar no movimento socialista a sua realização plena. E
o movimento socialista, para reencontrar seu lugar ao lado das massas
trabalhadoras, precisaria enxergá-las como sujeito da cultura.

186
Gramsci e seus contemporâneos

Apontamentos finais
Este artigo evidenciou que, ao longo da década de 1910, a
cultura adquiriu espaço central nos debates no interior do movimento
socialista. Que este tema, resgatado pelos intelectuais da corrente
neoidealista italiana, ganhou os círculos militantes, em especial entre os
jovens do Partido Socialista Italiano. Por um lado, a posição de Bordiga
expressou o ascenso da ala esquerda revolucionária no interior do partido,
impulsionada pelos valores maximalistas originários, críticos ao reformismo
e ao parlamentarismo. Para esta posição, porém, a cultura nada mais
representava que um apêndice da ação política radical, como um resíduo
individual da luta coletiva.
Tasca, por sua vez, representou a absorção profunda do caráter
pedagógico, e mesmo religioso, da cultura. Aqui, a política tendia a ser
incorporada pela atividade evangelizadora, por uma promoção intelectual
capaz de realizar as transformações necessárias para alcance de uma
sociedade nova. Tasca pode ser considerado um tradutor, no interior do
movimento socialista, da orientação salveminiana.
Gramsci, desde suas primeiras intervenções públicas, evidenciou
sua proximidade à posição de Tasca, com quem partilhava a ideia de cultura
como educação coletiva, imprescindível para o avanço do movimento
socialista. Porém, já neste momento evidenciou o esforço por compreender
este conceito de maneira polissêmica, expandindo-o à noção de organização
e partido. Esta ampliação permitiu a proposição de um “novo Iluminismo”,
diferente da interpretação dada por Salvemini ao que fora empreendido
pelos intelectuais europeus antes da Revolução Francesa.
O iluminismo gramsciano compreendia relação entre intelectuais
e massas de um ponto de vista dialético, na qual se desenvolvem processos
permanentes de mediação, de compreensão ou incompreensão mútua. A
cultura, neste caso, era também política: ferramenta capaz de promover a
coesão ou sofrer a dispersão social; critério de pesquisa da relação histórica
entre governantes e governados; e, finalmente, um caminho – ainda que
contraditório – para a autonomia, individual e coletiva, no interior do
capitalismo.

187
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

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190
Robert Michels

Renato César Ferreira Fernandes

No presente artigo faremos uma reconstrução da crítica da análise


de Antonio Gramsci, realizada no cárcere, à lei férrea da oligarquia de
Robert Michels. A presença direta de Michels na obra de Gramsci não é tão
destacada como as de Nikholai Bukharin e Benedetto Croce. Mas o debate
indireto sobre a relação entre dirigentes e dirigidos, fundamental em toda
obra michelsiana e na teoria elitista, é de grande importância na obra do
comunista italiano. De todos os temas abordados por Gramsci na crítica a
Michels, a polêmica sobre a teoria dos partidos é o mais importante.
Na primeira parte recuperamos as formulações de Michels sobre
partidos e sua elaboração sobre a lei férrea da oligarquia. Na segunda parte,
discutimos a crítica de Gramsci à teoria dos partidos de Michels.

Michels e a lei férrea da oligarquia


A principal formulação de Michels, na sua compreensão
sociológica dos partidos, foi a “lei férrea da oligarquia”. Como síntese,
poderíamos descrever a lei da seguinte forma:
Quem diz organização, diz tendência para a oligarquia. Da natureza
da organização faz parte um traço profundamente aristocrático. A
mecânica da organização, ao criar uma estrutura sólida, produz também
importantes alterações. Inverte a relação entre o chefe e a massa. A
organização completa de modo decisivo a cisão de um partido ou de
um sindicato em dois grupos: uma minoria que dirige e uma maioria
que é dirigida. (2001, p. 54, grifos do autor).

191
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

A elaboração da lei está baseada no estudo do partido social-


democrata alemão (SPD) e do partido socialista italiano (PSI) (MICHELS,
1926), realizada pelo teórico ítalo-germânico. Seu ponto de partida foi um
fenômeno singular: a permanência da classe política ao longo de todas
as organizações, reproduzida inclusive por partidos, como o SPD e PSI,
que lutavam contra esta classe política. A formulação da lei é a principal
conclusão das críticas realizadas por Michels ao longo da primeira década
do século XX (MICHELS, 1989). A primeira formulação está no texto “A
democracia e a lei férrea da oligarquia”, de 1910. Mas foi em sua obra sobre
os partidos políticos, Para uma sociologia dos partidos políticos na democracia
moderna, de 1911, que o autor desenvolveu uma sistematização sobre a lei.
Nessa obra, a “lei férrea da oligarquia” é constitutiva das
organizações políticas em virtude de diversos fatores (organizativos,
administrativos, técnicos, psicológicos e sociais). Na base destes fatores
estão três características essenciais da sociedade moderna:
O complexo de tendências que levantam obstáculos à efetivação da
democracia só dificilmente se deixa deslindar e só com grande pedanteria
poderia ser catalogado. (…) Tais tendências assentam (1) na essência
da natureza humana, (2) na essência da luta política e (3) na essência
da organização. A democracia conduz à oligarquia, transforma-se em
oligarquia. (MICHELS, 1989, p. 08-09).

Em relação à natureza humana, Michels se apoiou nos argumentos


da psicologia da multidão formulada pelo francês Gustave Le Bon (1841-
1931). Para o autor ítalo-germânico, existem dois elementos importantes
sobre a formação psicológica dos indivíduos a serem considerados pela
teoria dos partidos (TUCCARI, 1993, p. 235-236). O primeiro diz
respeito à questão da apatia inerente às massas. Para Michels, as massas
vivem num “estado amorfo” (2001, p. 18), no qual estão desorganizadas
política, profissional e ideologicamente. Em seu estado desorganizado, as
massas não possuem uma vontade coletiva que possa atuar na luta política,
necessitando de dirigentes (MICHELS, 2001, p. 244).
A partir do momento em que aparecem os dirigentes e estes se
organizam enquanto tais, o exercício da função de direção faz com que
sua própria personalidade seja alterada. Este é o segundo fator psicológico

192
Gramsci e seus contemporâneos

importante levantado por Michels. Para o autor, o “certo é que o exercício do


poder modifica traços essenciais do caráter daquele que o exerce” (MICHELS,
2001, p. 248). A modificação do caráter psicológico faz com que aquele que
acreditava poder emancipar a todos de forma igual, no caso dos dirigentes
socialistas, ao levar sua prática enquanto direção, no jogo político, tem
que adaptar-se às suas leis. A adaptação às leis da luta política significa a
perpetuação da necessidade da elite dirigente dos partidos políticos, da
divisão entre dirigentes e dirigidos.
Em relação à psicologia de massas, Michels ainda acrescenta
o processo de fidelidade das massas em relação aos dirigentes. Ao fazerem
avançar a luta das massas, os dirigentes obtêm a gratidão das massas, de
modo que as massas só se sentem representadas e confiantes através de seus
dirigentes. A ação dos partidos políticos tende a formar uma consciência
nos indivíduos-massa de que é o dirigente quem age em nome das massas,
mesmo quando estas têm que agir e se colocar em luta (MICHELS, 2001,
p. 89-91).
Em relação à luta política, atuam mais claramente as leis de
diferenciação e transgressão. A “tendência diferenciadora” faz com que
cada partido, para conquistar a maioria que necessita para chegar ao poder,
precise se diferenciar do(s) outro(s) partido(s), em todas as suas atividades.
É neste sentido que Michels insiste que o partido “significa separação,
diferenciação; pars, não totum. Partido implica, pois, delimitação”
(MICHELS, 2001, p. 47, grifos do autor). A vida de um partido é
marcada pela diferenciação que, na prática cotidiana, lhe permite alcançar
seu objetivo. Por outro lado, junto a esta tendência, atua uma contrária: a
tendência à transgressão da base partidária ou do máximo numérico, que
expressa a necessidade do partido de ganhar o maior número de pessoas
possíveis para chegar ao poder. A tendência do máximo numérico faz com
que o partido ultrapasse os limites da sua própria base partidária. Mas se
ele ultrapassa a sua base partidária (ideologia/classe) ele renuncia à sua
própria base (social, ideológica, de elite). Este é um fator importante na
explicação michelsiana para a degeneração da socialdemocracia alemã: a
aceitação da legalidade burguesa pela socialdemocracia alemã (partido do
proletariado) representou a morte do projeto socialista (MICHELS, 1989,

193
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

p. 159)1. Para Michels, a tendência do máximo numérico predomina sobre


a tendência à diferenciação, pois é somente através da conquista das massas
que é possível chegar ao poder.
Além destas tendências, Michels acrescenta a necessidade da
centralização e da estabilidade política para a vitória. Para o autor, no
exercício da luta política é necessário adaptar-se a um campo de batalha.
Para vencer é preciso uma autoridade rígida (hierárquica e severa, de acordo
com Michels). Para construir uma direção é preciso também estabilidade,
isto é, não se pode modificar os dirigentes a todo momento, pois somente
uma direção coesa consegue levar as massas à vitória.
O terceiro campo de fatores que determinam a lei férrea da
oligarquia refere-se à organização em si. Para o sociólogo ítalo-germânico,
toda organização se baseia na diferenciação interna entre dirigentes e
dirigidos, pois é impossível que a maioria possa exercer o poder, já que a
atividade política é cada vez mais complexa, necessitando de uma atividade
especializada por parte dos dirigentes. Esta mudança da atividade política
foi analisada por Max Weber, quando o autor discutiu a ação dos políticos
a partir dos conceitos de viver para política para viver da política (WEBER,
2000a, p. 19)2. Para Michels, toda atividade dos partidos políticos é marcada
pela complexidade progressiva da atividade política. A complexidade da
atividade política nas sociedades capitalistas determina internamente a vida
partidária a partir da expansão das atividades do partido, fruto da tendência
de busca do “máximo numérico” por parte das organizações políticas
(MICHELS, 2001, p. 111-112). O desenvolvimento da organização
acarreta o aumento das suas atividades, que leva à especialização em
comissões específicas para a deliberação das atividades. O crescimento das
atividades, para que se tenha eficiência na resolução das mesmas, faz com
que o partido aumente o número de políticos profissionais, capazes de
decidirem. É através deste processo de complexidade da atividade política
1
No livro de Michels, Introdução à sociologia política, o autor expõe sua elaboração destas tendências dos parti-
dos políticos (1969, p. 136). Przeworski em seu livro sobre a socialdemocracia afirma uma compreensão bem
próxima de Michels sobre a transgressão da base partidária: “Os líderes de partidos baseados na classe operária
devem escolher entre um partido homogêneo em termos de apelo a uma classe, porém condenado à eterna
derrota eleitoral, ou um partido que luta pelo sucesso eleitoral às custas de uma diluição de sua orientação de
classe” (1991, p. 125).
2
Weber define o conceito de política desta forma: “Deste modo estabeleceremos como significado de política a
aspiração a participar no poder ou a aspiração a influenciar na distribuição do poder entre os diversos Estados
ou no interior de um mesmo Estado, entre os diversos grupos de indivíduos que o constituem” (2000a, p. 5-6).

194
Gramsci e seus contemporâneos

que, para Michels, a organização torna-se um meio de autonomização/


separação dos representantes políticos da sua base social.
Levando em consideração a lei férrea da oligarquia, Michels
chega à conclusão da impossibilidade da representação dos interesses
dos indivíduos e/ou grupos pelos partidos políticos, pois a relação
entre dirigentes e dirigidos é sempre uma relação entre dominantes
e dominados. Na democracia, ou nos partidos democráticos, esta
relação se transveste de representantes e representados. Desta forma, a
democracia não passa de uma ilusão de representação ou de um effet de
mirage (MICHELS, 2001, p. 423).

Oligarquia e divisão de classes nos partidos políticos


Nos seus escritos carcerários, o partido político tornou-se um
tema em Gramsci a partir da discussão dos intelectuais e das notas sobre
Maquiavel e o novo príncipe. Na primeira, a discussão centrou-se no papel
de construção da hegemonia dos intelectuais a partir do partido; já nas notas
sobre Maquiavel, a discussão sobre o partido apareceu na reconstrução do
fundamento estratégico, da unidade entre o partido e a formação de um
novo Estado. Na maior parte destas notas, Gramsci realizou uma reflexão
sobre o partido comunista.
A crítica de Gramsci em relação à concepção de partido político
de Michels se concentra em um parágrafo intitulado Robert Michels, “Les
partis politiques et la contrainte sociale” (Q 2, § 75, p. 230-239)3, escrito
entre 1929 e maio de 19304. A interpretação deste parágrafo apresenta uma
dificuldade em relação a outras notas, já que mais da metade da nota de
Gramsci é uma transcrição do texto de Michels. Nesta, o comunista italiano

3 As citações dos Cadernos do Cárcere de Antonio Gramsci serão feitas tomando como base a edição crítica a
cura de Valentino Gerratana (1975) e da edição brasileira (GRAMSCI, 1999-2002). Serão feitas da seguinte
forma: Q. (x), § (y), p. (z), onde x indica o número do Caderno, y indica o número do parágrafo e z o número
da página.
4 Ao todo, Gramsci escreveu quatorze parágrafos com alguma referência a Michels. Dentre estes parágrafos
existem sete nos quais há referência à obra de Michels, sendo que alguns só apresentam uma referência ocasional
e em outros já há um debate da obra do autor. Os outros sete parágrafos são aqueles nos quais Gramsci só fez
referência a algum conceito de Michels – na sua maior parte, ao conceito de chefe carismático. Os parágrafos
dos Cadernos do Cárcere, em sua edição crítica, foram divididos em três tipos de textos: A (primeira versão), B
(versão única) e C (textos reescritos a partir do A). Dos escritos de Gramsci sobre Michels há apenas um texto
A, oito textos B e cinco textos C. A principal nota crítica de Gramsci a Michels que analisaremos é um texto B.

195
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

acrescentou, além de reflexões sobre o texto, alguns pontos de exclamação


ou interrogação que produzem significação ao texto de Michels. O restante
da nota é uma confrontação explícita com a teoria de Michels.
A rubrica da nota é sobre um artigo de Michels publicado em
1° de maio de 1928. A maior parte do artigo trata da reformulação de
uma parte de seu curso de sociologia política (MICHELS, 1969), cujas
aulas foram ministradas em 1926 e a publicação data de 19275. A parte
sobre a qual se refere é “La naturaleza sociológica de los partidos políticos”
(MICHELS, 1969, p. 125-142). Esta coincidência textual é comum na
carreira de Michels. De acordo com o próprio Gramsci, a obra do sociólogo
ítalo-germânico era uma reelaboração contínua dos seus próprios textos
(GRAMSCI, Q 2, § 75, p. 237).
O primeiro questionamento de Gramsci é a afirmação de que “O
partido, portanto, é apenas uma fração, pars pro toto (?)” (Q 2, § 75, p. 230),
sendo este ponto de interrogação acrescentado pelo autor. Esta relação
entre partido como “parte” e não representação do todo foi constante na
obra de Michels. Para Gramsci esta afirmação é extremamente complexa,
em dois sentidos. O primeiro sentido é a compreensão literal da frase, do
partido como parte e não todo. Em determinado sentido, esta afirmação
é correta, já que o partido não é formado por toda classe ou grupo que
representa, muito menos por toda sociedade. Ao contrário, como diz
Gramsci, no início de um trabalho partidário, o partido começa com
uma elite precisa e decidida (Q 11, § 12, p. 1387). Inicia o seu trabalho
apenas enquanto parte da classe, e não enquanto “toda” a classe. Isto ocorre
também no processo de desenvolvimento, no qual o partido ainda tem
como característica abarcar apenas uma “fração” do todo.
Na polêmica travada entre Gramsci e Amadeo Bordiga, na década
de 1920, esta relação entre parte e todo também apareceu. No documento
escrito em conjunto com Palmiro Togliatti para o congresso de Lyon do
Partido Comunista Italiano (1926), Gramsci elaborou a crítica a alguns
elementos da concepção de Bordiga sobre o partido comunista. A crítica
consiste em três aspectos: 1) o partido não é um “órgão” da classe (concepção
de Bordiga), mas é parte da classe operária; 2) a função do partido é dirigir

5 Gramsci tinha este livro na prisão.

196
Gramsci e seus contemporâneos

a classe operária em todos os momentos e não apenas a de elaborar quadros


para o momento revolucionário (concepção de Bordiga); 3) as táticas devem
aderir à realidade de forma a realizar o contato permanentemente entre o
partido e as massas e não, como pensava Bordiga, ter como base das táticas
preocupações formalistas6. Para Gramsci, a concepção de Bordiga levava o
partido político à inatividade e, neste sentido, se aproximava dos desvios
de direita no partido, que eram expressos por Angelo Tasca (GRAMSCI,
2004, p. 344-347). A saída para Gramsci era construir o
[...] partido do proletariado como partido de massa, bem como
demonstrando a necessidade de que ele adeque sua tática às situações
com o objetivo de poder transformá-las, de não perder o contato com as
massas e conquistar zonas de influência cada vez maiores. (GRAMSCI,
2004, p. 347).7

Voltando à crítica de Gramsci a Michels, ao mesmo tempo em


que existiam elementos corretos na concepção do partido enquanto parte,
a negação de que a organização possa vir a ser o todo era tirar o sentido
do partido comunista. Na mesma polêmica contra Bordiga, o comunista
italiano escreveu que não é possível dizer que um partido seja uma força
definida, acabada: “A verdade é que, historicamente, um partido é e jamais
será definido. E isso porque ele só se definirá quando tiver se tornado toda a
população, ou seja, quando tiver desaparecido” (GRAMSCI, 2004, p. 182). A
definição que surge do partido aqui é que um partido só é partido quando se
torna a classe e, neste sentido, é a classe que delimita os limites da formação
do partido. Em relação à burguesia, pode-se dizer que o partido burguês
está definido quando a hegemonia da burguesia se torna predominante.
Já ao partido do proletariado, “que se propõe anular a divisão em classes,
sua perfeição e seu acabamento consistem em não existir mais, porque já não
existem classes e, portanto, suas expressões” (GRAMSCI, Q 14, § 70, p. 1732-
1733).

6 Neste ponto, Gramsci faz crítica a duas táticas políticas de Bordiga: 1) a adesão ao partido comunista não
poderia acontecer somente de forma individual, como defendia o último, mas também acontecer a partir de “fu-
sões” com outros grupos e organizações; 2) adaptar as fórmulas políticas (frente única, governo operário e cam-
ponês, etc.) de acordo com as relações de força e não em relação aos princípios formais, como defendia Bordiga.
7 Nesta concepção de partido de massas e de contato permanente com as massas está contido o desenvolvimento
do conceito de hegemonia em Gramsci. Para o debate de Gramsci e Bordiga no cárcere, cf. LIVORSI, 2001.
Aprofundaremos este debate na questão do centralismo, mais adiante.

197
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Este estágio, de partido definido, é apenas um momento particular


da vida do partido. Quando Gramsci está desenvolvendo a questão da
definição do partido, ele parece se atentar para outra pergunta: “quando
um partido se torna historicamente necessário?”. Aqui, de forma implícita, o
autor recupera os critérios de Marx sobre as condições de extinção de uma
sociedade8 para elaborar a sua resposta: “Quando as condições de seu “triunfo”,
de seu inevitável tornar-se Estado estão pelo menos em vias de formação e
deixam prever normalmente seus novos desenvolvimentos” (GRAMSCI, Q
14, § 70, p. 1733).
Para Michels, é impossível o partido tornar-se toda a população:
o partido é um instrumento de perpetuação da divisão entre dirigentes
e dirigidos. Mas para o comunista italiano, para que o partido se torne
a classe é necessário que a organização crie as condições para realizar a
hegemonia dos subalternos. E o primeiro passo para isto, de acordo com
Gramsci, é a fundação de um novo Estado. O processo de definição do
partido comunista, que quer acabar com as classes, tem a ver com o tornar-
se Estado, com a destruição das condições que sustentam os partidos nas
sociedades capitalistas modernas e com a transformação da sociedade civil-
política em sociedade regulada (Q 6, § 65, p. 734), isto é, a extinção da
sociedade política na sociedade regulada (Q 7, § 33, p. 882) – a separação
da sociedade civil e da sociedade política é uma das formas de perpetuação
da divisão entre dirigentes e dirigidos.
Este processo só pode se tornar real se o partido tiver uma política
para a superação dos interesses particulares e corporativos. A superação
destes interesses é, para Gramsci, a luta pela hegemonia, por uma nova
forma de Estado, isto é, a luta de classes pelo domínio da sociedade política
e sociedade civil. A luta pela hegemonia, travada pelo partido político é a
luta pela direção do movimento das classes sociais. Por isso, não faz sentido
a ideia de “transgressão” da base social do partido: para ser hegemônico é
preciso dirigir as classes aliadas e combater as classes inimigas.

8 “Uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais
ela é suficientemente desenvolvida, e novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes
que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade. É por isso
que a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegará
à conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou, pelo
menos, são captadas no processo de seu devir.” (MARX, 1974, p. 136). Sobre a recuperação da vontade humana
por Gramsci a partir desta passagem de Marx, cf. Bianchi (2008, p. 136-142).

198
Gramsci e seus contemporâneos

Nesta luta pela conquista do poder, para Gramsci, é fundamental


o tipo de relação que o partido desenvolve com o movimento de massas.
Para Michels, como vimos, era impossível uma representação de interesses,
já que toda relação dirigente/dirigido era de dominação. O terreno
da discussão de Gramsci é outro, pois a representação é justamente a
transformação da necessidade em liberdade dos dirigidos, isto é, em práxis:
Se a relação entre intelectuais e povo-nação, entre dirigentes e dirigidos,
entre governantes e governados, é dada graças a uma adesão orgânica,
na qual o sentimento-paixão torna-se compreensão e, desta forma,
saber (não de uma maneira mecânica, mas vivida), só então a relação
é de representação, ocorrendo a troca de elementos individuais entre
governantes e governados, entre dirigentes e dirigidos, isto é, realiza-
se a vida do conjunto, a única que é a força social; cria-se o “bloco
histórico”. (Q 11, § 67, p. 1505-1506).

A representação enquanto adesão orgânica é contraposta pelo


comunista italiano a relações burocráticas ou formais, nas quais os dirigentes
transformam-se em castas, como na Igreja – a forma de organização
destes partidos é a do centralismo burocrático (Q 11, § 67, p. 1505). Os
dirigentes eclesiásticos compreendem, mas não “sentem” os sentimentos
das massas. Para Gramsci, a adesão orgânica representa “a troca de elementos
individuais”, isto é, a passagem dos “simples” a “intelectuais orgânicos”:
O processo de desenvolvimento está ligado a uma dialética intelectuais-
massas; o estrato dos intelectuais se desenvolve quantitativa e
qualitativamente, mas todo progresso para uma nova ‘amplitude’ e
complexidade do estrato dos intelectuais está ligado a um movimento
análogo da massa dos simples, que se eleva a níveis superiores de cultura
e amplia simultaneamente o seu círculo de influência, com a passagem
de indivíduos, ou mesmo de grupos mais ou menos importantes, para
o estrato dos intelectuais especializados. (Q 11, § 12, p. 1386).

Para Michels existe a possibilidade da passagem de elementos


da “massa amorfa” à condição de “dirigentes partidários” ou da “elite
proletária”. Mas, de acordo com este autor, esta passagem não pode se
estender ao conjunto do proletariado e representa um afastamento da classe
de origem - a história do movimento operário internacional comprovaria
esta tese michelsiana. Esta foi a base sobre a qual o autor afirmou o partido

199
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

como “elitização” de parte do proletariado (MICHELS, 1969, p. 80). Para


Gramsci, o afastamento da classe de origem depende inteiramente de uma
relação política: o novo dirigente pode ou não elevar mais camadas de sua
classe à condição de dirigente? Pode ou não realizar um bloco histórico?
A partir destas considerações, podemos afirmar que para
Gramsci a relação entre parte e todo é sempre de desenvolvimento, isto
é, o partido é parte do todo e se desenvolve da parte ao todo. A forma
de realização deste processo é o bloco histórico. Para Gramsci, o bloco
histórico é “unidade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura),
unidade dos contrários e dos distintos” (Q 13, § 10, p. 1569). A relação
de representação (adesão orgânica das massas à política do partido) pode
colocar a questão da criação de um bloco histórico porque a transformação
do sentir das massas em compreensão ativa (práxis) é a forma de iniciar a
unidade do desenvolvimento entre as forças produtivas, as relações sociais
e a superestrutura política.
A partir do bloco histórico é possível reconstruir a unidade entre
o programa político e a forma de representação pela mediação do partido.
Para o comunista italiano, somente através da combinação entre a reforma
intelectual e moral e a reforma econômica, isto é, o programa de mudança
da sociedade, é que o partido político pode lutar pela hegemonia de uma
classe. Lutar pela implementação do programa comunista é a forma de
tornar-se Estado, construindo a hegemonia dos trabalhadores.
Seguimos com a nota de Gramsci sobre Michels. A próxima
crítica refere-se à tipologia dos partidos políticos de Michels (após diversas
passagens em que o autor critica a concepção de carisma e também da
história dos partidos). Michels classificava em três categorias centrais:
a primeira categoria é dos partidos no qual havia o predomínio de um
dirigente, chamados de partidos clientelistas (MICHELS, 1969, p. 126).
A segunda categoria era dos partidos que predominam os interesses de
classe econômicos e sociais (MICHELS, 1969, p. 129). A terceira era a
dos partidos doutrinários, Weltanschauung (MICHELS, 1969). A estes
tipos “puros” de partido, em sentido weberiano, Michels acrescentou as
categorias específicas de partidos confessionais e dos partidos nacionalistas
(MICHELS, 1969, p. 130).

200
Gramsci e seus contemporâneos

Para Gramsci, essa classificação dos partidos de Michels é


superficial e genérica. O comunista italiano afirma que o “partido de homens
fortes” é entendido por Michels enquanto “partido carismático”9. A crítica
a esta categoria é bastante dura, pois, para Gramsci, estes partidos nunca
existiram, já que um partido político moderno não vive apenas da relação
entre um dirigente e milhares de dirigidos. Mesmo no partido fascista, no
qual o carisma de Mussolini era um importante fator de coesão partidária,
outras estruturas eram fundamentais, como as organizações por bairros, os
secretários federais, as organizações de juventude, etc. (GENTILE, 2005,
p. 171-201).
Em relação a esta tipologia partidária, a crítica de Gramsci
delineia que a classificação de Michels é puramente descritiva, pois não
há uma metodologia inscrita na análise: o sociólogo ítalo-germânico
estabelece uma classificação por características empíricas sem aprofundar
teoricamente a importância de cada uma na definição conceitual. Por isso,
a tipologia do autor ítalo-germânico é considerada muito esquemática e
pouco eficaz, já que as categorias não explicam nenhum partido concreto.
O comunista italiano enfatiza que toda a teorização de Michels sobre a
tipologia partidária era vazia e imprecisa. Para Gramsci, a metodologia de
Michels tentou adaptar os fatos reais ao tipo sociológico, e isto não passou
de “escolástica”. Segundo Malandrino, a classificação desenvolvida por
Michels neste texto é contrária à riqueza analítica presente na Sociologia dos
Partidos Políticos, na qual não havia nenhuma classificação sistemática dos
partidos (MALANDRINO, 2010, p. 6). Para Malandrino, a classificação
de Michels tinha como propósito contrapor a elite carismática e o partido
carismático a outras formas de partido e elites surgidas na democracia
(MALANDRINO, 2010, p. 7).
Após a crítica à tipologia, Gramsci desenvolve uma crítica à lei
férrea das oligarquias. A primeira vez que a crítica à lei aparece é seguida
por uma passagem de Michels que explica a prisão que os operários criam
ao aceitarem os seus próprios chefes. Esta prisão, necessária para Michels,
leva a perpetuação da dominação dos dirigentes sobre os dirigidos. Esta
dominação se dá através da “superioridade técnica e intelectual, e na

9 Apesar de designar como “partido clientelista”, em alguns momentos, ao explicar esse tipo de partido, Michels
utiliza “carismático” como sinônimo de “clientelista” (MICHELS, 1969, p. 126).

201
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

impossibilidade de seus mandantes exercerem um controle eficaz” (MICHELS,


1969, p. 132, tradução nossa). O próprio Michels coloca que a presença
de intelectuais no partido exerce uma pressão que reforça a dominação dos
dirigentes sobre os dirigidos (GRAMSCI, Q 2, § 75, p. 236).
Michels discute então a complexidade da atividade política e afirma
que é flagrante a “contradição que existe, nos partidos políticos maduros, entre
as declarações e intenções democráticas, por um lado, e a concreta realidade
oligárquica, por outro” (MICHELS, 1969, p. 132, tradução nossa).
Gramsci transcreveu a passagem de Michels e esboçou uma
resposta:
[...] entretanto, é necessário observar que uma coisa é a democracia de
partido e outra a democracia no Estado: para conquistar a democracia
no Estado pode ser necessário – ou melhor, é quase sempre necessário
– um partido fortemente centralizado; e mais ainda: as questões
relacionadas com democracia e oligarquia têm um significado preciso,
que é dado pela diferença de classe entre líderes e seguidores: a questão
torna-se política, ou seja, adquire um valor real e não mais apenas de
esquematismo sociológico, quando na organização existe divisão de
classe: isso ocorreu nos sindicatos e nos partidos social-democratas. Se
não existe diferença de classe, a questão torna-se puramente técnica – a
orquestra não crê que o regente seja um patrão oligárquico –, de divisão
do trabalho e de educação, isto é, a centralização deve levar em conta
que nos partidos populares a educação e o ‘aprendizado’ político se
verificam em grande parte através da participação ativa dos seguidores
na vida intelectual – discussões – e organizativa dos partidos. A solução
do problema, que se complica exatamente pelo fato de que nos partidos
avançados os intelectuais têm uma grande função, pode ser encontrada
na formação de um estrato médio o mais numeroso possível entre os
chefes e as massas, que sirva de equilíbrio para impedir os chefes de se
desviarem nos momentos de crise radical e para elevar sempre mais a
massa. (Q 2, § 75, p. 236-237).

Nesta crítica de Gramsci à lei férrea da oligarquia de Michels,


existem três importantes formulações teóricas sobre os partidos políticos
que devem ser abordadas de forma separadas, para que os nexos da crítica
apareçam da forma mais explícita. A primeira formulação trata da diferença
entre o regime de organização e a política do partido. Para Michels, somente
de forma conjuntural e episódica poderia um partido oligárquico influir

202
Gramsci e seus contemporâneos

democraticamente na vida do Estado (MICHELS, 2001, p. 393). Para


Gramsci, esta não é uma relação necessária: um partido centralizado, mas
com um programa democrático, pode cumprir a função de democratização
do Estado. Para o comunista italiano, um partido de combate não só pode
como deve ser centralizado, pois esta, muitas vezes, é a única via para a
democratização do Estado.
Ao contrário de Michels, que considera que a contradição está
entre a democracia do partido e as estruturas políticas oligárquicas,
Gramsci considera que a contradição está nas forças antagônicas que
constroem cada partido e no projeto de Estado que defendem.
É a partir desta consideração que podemos discutir a segunda
formulação crítica de Gramsci: a diferença entre democracia e oligarquia
é uma diferença de classe e somente neste sentido esta disparidade adquire
um valor real, político. Para Gramsci, a classe burguesa só consegue manter
o seu domínio subordinando a prática política das outras classes à sua
própria concepção de mundo, isto é, estabelecendo um “conformismo”
que adapte as práticas de classe à sua direção e dominação (Q 8, § 2, p.
937)10. O domínio da burguesia impõe as suas “necessidades” a outras
classes subalternas. Dessa forma, entre a classe burguesa e as outras
classes subalternas não há relação orgânica de representação, já que a
burguesia não pode transformar em “liberdade” as “necessidades” das
classes subalternas, pois isso iria contra o seu próprio domínio. De acordo
com Gramsci, somente os intelectuais próprios das classes subalternas
podem estabelecer uma relação democrática e orgânica com as mesmas.
E na sociedade capitalista moderna, a única forma que os subalternos
têm para desenvolver sua própria camada dirigente é através do partido
político (GRAMSCI, Q 12, § 1, p. 1522).
No parágrafo que estamos discutindo, Gramsci coloca que a
divisão de classes existiu nos “sindicatos e partidos socialdemocratas” (Q 2,
§ 1, p. 236). O problema, para Gramsci, da divisão de classes é que a partir
do momento em que o partido não realiza a “educação” da massa através
da “participação ativa” dos dirigidos na discussão político-partidária,

10
A subordinação do SPD e dos partidos socialdemocratas no início do século XX à lega-
lidade burguesa é um exemplo disto.

203
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

a organização reproduz a separação de classes entre os dirigentes e


dirigidos, já que fecha a possibilidade de que os dirigidos se transformem
em dirigentes. Foi esta separação, por exemplo, que Gramsci criticou
no partido comunista italiano, em suas cartas de 1923 sobre a formação
de um novo grupo dirigente. Gramsci se opôs, nessa ocasião, ao fato de
que para o Partido Comunista da Itália (PCI), qualquer “participação das
massas na atividade e na vida interna do Partido que não fosse a que tem
lugar em grandes ocasiões e em decorrência de uma ordem formal do centro
dirigente era vista como um perigo para a unidade e para o centralismo”
(2004, p. 181-182). Portanto, para a definição de classe do organismo
partidário, não é somente necessário analisar a sua composição social,
mas a relação entre o partido e as classes sociais e isto serve também
para a definição de classe dos dirigentes do partido. Este critério de
definição de classe é o mesmo que Gramsci utilizou para a definição
dos intelectuais: a determinação de classe dos intelectuais não deve ser
procurada em sua atividade intrínseca e individual, mas nas relações que
a atividade intelectual-organizativa mantém no conjunto das relações
sociais (GRAMSCI, Q 12, § 1, p. 1516).
Portanto, para Gramsci, a análise de Michels sobre os dirigentes
enquanto “pequeno-burgueses” (MICHELS, 2001, p. 305), que fica
presa a uma concepção da função individual, é errônea. A análise de classe
de um partido deve ter como objeto a relação política que a organização
estabelece com a classe social a qual representa. Para Gramsci, a pergunta
fundamental a responder sobre os dirigente é se estes procuram perpetuar
a divisão entre dirigentes e dirigidos (interesse dos dominantes) ou acabar
com a mesma (interesse dos subalternos)? (Q 15, § 4, p. 1752). É a
partir deste prisma que o problema da oligarquia nos partidos políticos
adquire um valor real, político. Um partido subalterno que se oligarquiza
é um partido no qual os interesses da classe dominante prevalecem sobre
os interesses dos subalternos na organização. Esta oligarquização se dá,
principalmente, porque os dirigentes realizam uma política que favorece
outra classe social, isto é, se transformam em intelectuais orgânicos
de outra classe social. Neste sentido, o processo de oligarquização é a
efetivação do transformismo.

204
Gramsci e seus contemporâneos

O transformismo é um conceito que Gramsci desenvolveu a


partir da análise do Risorgimento11. O conceito está presente desde o
primeiro caderno e, sobretudo, nas notas históricas. Em um parágrafo
escrito entre dezembro de 1929 e fevereiro de 1930, do caderno 1, que
foi reescrito no caderno 19, entre fevereiro de 1934 e fevereiro de 1935,
Gramsci questionou a relação entre os dirigentes e as classes instrumentais:
que interesses os dirigentes políticos, na sua ação política, expressam? Das
classes subalternas ou dirigentes? (Q 19, § 26, p. 2041).
Para Gramsci, os moderados, que dirigiram a unificação italiana,
impuseram ao Partido da Ação uma atitude “paternalista”, não permitindo
que este partido conseguisse, a não ser de forma muito limitada, realizar
a unidade entre as classes subalternas e o Estado (Q 1, § 43, p. 38). Esta
falta de unidade entre o setor dirigente e as classes subalternas levou ao
fenômeno do transformismo dos dirigentes subalternos: “O chamado
‘transformismo’ é tão somente a expressão parlamentar do fato de que o Partido
da Ação é incorporado molecularmente pelos moderados e as massas populares
são decapitadas, não absorvidas no âmbito do novo Estado.” (Q 19, § 26, p.
2041).
A atitude dos dirigentes partidários em relação às massas é
fundamental para Gramsci. É ela a chave da resposta para o problema da
oligarquia: somente superando a relação paternalista dos dirigentes é que
se poderá incorporar o conjunto das massas no Estado, isto é, realizar a
hegemonia, definir o partido. Superar a política paternalista, inorgânica, é
incorporar ativamente o amplo conjunto das massas populares no Estado.
A política contrária a esta incorporação é a que resultou no fenômeno
histórico do transformismo, processo que Gramsci concebeu sob a ótica da
revolução passiva (Q 10[I], §13, p. 1238).
O transformismo ocorreu, historicamente, de duas formas:
o transformismo molecular, no qual alguns indivíduos se incorporam à
classe dirigente, e o transformismo “grupal”, no qual partidos e setores
partidários se incorporam ao setor dirigente. O predomínio de uma forma
sobre a outra depende das condições históricas (Q 8, § 36, p. 962-964).

11
Ao todo existem 13 referências ao transformismo nos Cadernos do Cárcere: Q 1, § 43 e § 44; Q 2, § 29; Q 3,
§ 119 e §137; Q 8, § 5 e § 36; Q 10 [I], § 13; Q 10 [II], § 14 e § 22; Q 15, § 11; Q 24, § 19 e § 26.

205
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

No Caderno 10, o comunista italiano se refere ao transformismo


efetivado por Croce, como um “reformismo pelo alto” (Q 10 [II],
§22, p. 1261). Já no Caderno 19, numa nota em que Gramsci discute
o problema da direção política no Risorgimento italiano, ele elaborou o
conceito de transformismo a partir da compreensão da hegemonia entre os
moderados e o partido da ação: o transformismo é uma absorção contínua
dos elementos ativos dos grupos aliados e dos grupos inimigos na ordem
defendida pelo grupo dominante. O transformismo é aceitação das “regras
do jogo” pelos inimigos da ordem dominante. Esta adaptação à ordem
só é possível, no caso italiano, porque os moderados conformavam um
grupo político, com um programa e com intelectuais, bem constituído,
enquanto o Partido da Ação não tinha um programa de governo e foi,
constantemente, influenciado pelo programa dos moderados (Q 19, § 24,
p. 2010-2014).
Em outro parágrafo, escrito entre agosto e setembro de 1930,
Gramsci escreveu: “Eficácia alcançada pelo movimento operário socialista
para formação de importantes setores para a classe dominante” (Q 3, § 137,
p. 396). Para o comunista italiano, esta formação de quadros burgueses
pelos socialistas italianos se explicava por diversos motivos, como a baixa
aderência das classes altas à vida do povo e a crise das gerações mais jovens,
que fez com que os jovens se aproximassem de movimentos populares.
Estes foram fenômenos transformistas de acordo com ele.
No mesmo período, entre agosto e setembro de 1930, Gramsci
escreveu uma rubrica chamada Passado e Presente. Agitação e propaganda.
Para ele, os partidos políticos italianos sempre sofreram de um desequilíbrio
entre agitação e propaganda, tática e estratégia, etc. A causa disto seria,
num primeiro momento, econômica: a debilidade das classes dominantes
italianas e a “gelatinosa” estrutura econômica do país. Mas, para uma
perspectiva não economicista é preciso afirmar que:
[...] embora seja verdade que os partidos são apenas a nomenclatura das
classes, também é verdade que os partidos não são apenas uma expressão
mecânica e passiva das próprias classes, mas reagem energicamente
sobre elas para desenvolvê-las, consolidá-las, universalizá-las. (Q 3, §
119, p. 387).

206
Gramsci e seus contemporâneos

Os partidos políticos operacionalizam uma dupla identidade: por


um lado são a nomenclatura de uma classe, enquanto parte desta, isto é,
são a forma como esta classe se apresenta na luta política; por outro, são
a forma de desenvolver, consolidar e universalizar a política de uma classe
social, parte da transformação da classe no todo. Os partidos apresentam-
se enquanto nomenclatura da classe, pois “as classes expressam os partidos, os
partidos elaboram os homens de Estado e de Governo, os dirigentes da sociedade
civil e da sociedade política” (Q 3, § 119, p. 387).
O Estado italiano surgido no Risorgimento era um Estado que não
somente estava separado das massas, mas que era sujeito ativo na separação
dos dirigentes dos partidos políticos das massas. Nesta passagem, a análise de
Gramsci sobre o parlamentarismo como um fenômeno do transformismo
é importante: aqui há uma coincidência com a crítica de Michels à
socialdemocracia. O parlamentarismo italiano serviu enquanto mecanismo
de autonomização dos partidos em relação às classes representadas. Neste
parlamentarismo, a burocracia se alienava do país e tornava-se o “pior dos
partidos políticos (…) o partido estatal-bonapartista” (Q 3, § 119, p. 388).
Não é à toa que o término da nota faz referência ao estudo análogo de
Weber sobre o parlamentarismo na Alemanha (WEBER, 1974). Apesar da
coincidência com Michels em relação ao parlamentarismo como fenômeno
de autonomização dos partidos políticos, há uma grande diferença na
elaboração da análise dos autores: Michels generaliza este fenômeno como
lei geral da política; Gramsci chega a este fenômeno a partir da análise
histórica, da gênese da separação entre intelectuais e povo na história
italiana. Foi devido à formação do Estado italiano que o parlamentarismo
jogou um papel regressivo na hegemonia da classe burguesa. O cenário em
que se produz o transformismo é o da falta de desenvolvimento teórico
do partido socialista, da falta de formação de novos quadros dirigentes
e que, em lugar de grandes livros e revistas, o partido opera com jornais
e panfletos – o que caracteriza, na opinião de Gramsci, a preocupação
somente com uma pequena política (Q 3, § 119, p. 388).
A amplitude de situações históricas discutidas por Gramsci
em relação ao transformismo nos parece indicar que este conceito pode
servir para a compreensão da ruptura empreendida entre os dirigentes
socialdemocratas e as massas trabalhadoras. As causas são variadas, mas

207
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

poderíamos pegar duas das principais tendências que operaram nestes


partidos e que Michels também analisou: a adaptação dos partidos
socialdemocratas ao regime parlamentar burguês e a não elevação de estratos
da classe à condição de dirigentes dos subalternos. A adaptação faz com
que só seja possível a guerra de posição e as reformas pelo alto do regime
capitalista, ainda mais em países como a Itália ou a Alemanha, em que o
parlamento não cumpriu um elo entre as classes subalternas e as classes
dominantes. Por outro lado, a não elevação dos subalternos é uma condição
da manutenção da subalternidade, já que os partidos socialdemocratas não
passam a lutar pelo fim da divisão entre governantes e governados, mas
apenas por uma troca, no poder, entre os setores dirigentes da sociedade
burguesa.
A divisão de classes no partido é para Gramsci uma divisão política,
isto é, é um problema da formação de hegemonia. Já num partido que
constrói a hegemonia de uma classe, a divisão entre dirigentes e dirigidos
é técnica e a querela da divisão de classes nestes casos é “esquematismo
sociológico”. A consideração da questão como técnica não quer dizer que o
comunista italiano retirasse o problema do âmbito da política. A questão
era técnica porque a política de construção da hegemonia dos subalternos
lhe permitiria que fosse desta forma: sem esta política, a divisão tornar-se-
ia de classe.
A última parte da crítica de Gramsci a Michels, no § 75 do Q
2, abre o debate sobre a estruturação interna do partido. Discussão esta
que Michels só faz no âmbito geral, através da lei de oligarquização e em
poucas referências às estruturas partidárias. A estrutura interna do partido,
para Gramsci, se relaciona diretamente com o combate ao processo de
oligarquização.
Para o autor italiano, a existência de um partido é determinada
pela confluência de três elementos fundamentais: base, direção e militantes
intermediários. Gramsci classifica cada um destes elementos como
“grupos”. A base partidária é definida como um setor “difuso, de homens
comuns, médios, cuja participação é dada pela disciplina e pela fidelidade, não
pelo espírito criativo e altamente organizativo” (Q 14, § 70, p. 1733). Para
Gramsci, sem este elemento o partido não existiria, mas o partido não pode
existir somente com este setor, pois a efetividade da ação destes militantes

208
Gramsci e seus contemporâneos

só acontece quando exista “quem os centraliza, organiza e disciplina” (Q


14, § 70, p. 1733). A condição de “militante de base” é uma condição
transitória, já que eles podem se transformar em elementos intermediários
e de direção do partido.
O segundo elemento necessário ao partido é justamente a “força
de coesão” principal, que o comunista italiano chama de Estado-maior do
partido, “que centraliza no campo nacional, que torna eficiente e poderoso
um conjunto de forças que, abandonadas a si mesmas, representariam zero
ou pouco mais” (Q 14, § 70, p. 1733). Este elemento é dotado de força
altamente centralizadora e inventiva. Assim como a base partidária, não é
possível formar um partido somente com uma direção, mas é muito mais
fácil formar um partido a partir de uma direção consolidada do que a
partir de “militantes de base”.
A forma de organização que dá coesão a relação entre base e a
direção, para Gramsci, é o centralismo organizativo. O centralismo foi
abordado, nos Cadernos, em nove parágrafos12. A maior parte dos parágrafos
sobre o centralismo discute o problema do centralismo orgânico. Este é
um debate importante também com Michels, pois para este era impossível
a compatibilidade entre centralismo e democracia.
A principal distinção realizada por Gramsci é entre centralismo
orgânico e centralismo democrático. Para Gramsci, os defensores do
centralismo orgânico, conceito utilizado por Bordiga13, acreditam “poder
fabricar um organismo de uma vez por todas, já perfeito objetivamente”
(GRAMSCI, Q 3, § 56, p. 337). Desta forma, a organização não precisa de
militantes ativos, mas de pessoas disciplinadas com a política “verdadeira”
da direção (GRAMSCI, Q 15, § 13, p. 1771).
Em oposição a esta concepção, Gramsci defendeu o centralismo
democrático, que é uma forma de centralização em movimento, na qual
12
Os parágrafos em que Gramsci discute o centralismo são: Q 1, § 49; Q 3, § 56; Q 4, § 33; Q 6, § 128; Q 9,
§ 68; Q 13, § 36; Q 13, § 38; Q 14, § 48; Q 15, § 13.
13
A fórmula do centralismo orgânico tem origem em Bordiga, num ensaio de 1922, Il principio democrático:
“propomo-nos a dizer que o partido comunista funda a sua organização sobre o ‘centralismo orgânico’. Embora
preservando o máximo do mecanismo democrático que possa nos servir, eliminaremos o uso de um termo caro
aos piores demagogos e cheio de ironia para todos os explorados, os oprimidos e os enganados, que é aquele da
‘democracia’, que é para uso exclusivo dos burgueses e defensores do liberalismo em disfarces diversos e às vezes
com posições extremistas” (BORDIGA apud LIVORSI, 2001, p. 69, tradução nossa). É possível afirmar que
todo o combate ao centralismo orgânico é um combate à concepção partidária de Bordiga.

209
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

a verdade/política é produto do movimento, da interação entre partido


e classe (GRAMSCI, Q 13, § 36, p. 1634). Por isso, a participação ativa
dos militantes de base na discussão partidária é fundamental para que
o programa possa ser elaborado. Sem esta participação, o partido não
consegue acompanhar o movimento real da classe que representa.
É pensando nesta relação que Gramsci ressalta a existência de
um grupo intermediário de homens no partido, que realiza a soldadura
necessária entre a direção e a base. Este grupo cumpre um papel importante
para Gramsci, já que é através dele que se torna possível atingir um
equilíbrio que possa “impedir os chefes de se desviarem nos momentos de crise
radical e para elevar sempre mais a massa” (Q 2, § 75, p. 237).
Em relação a estes quadros intermediários é preciso considerar
duas afirmações de Gramsci: a) a unificação entre a base e a direção se dá
através da discussão política (GRAMSCI, Q 14, § 70, p. 1734); b) pode
ocorrer um descompasso entre direção e base no desenvolvimento das
atividades políticas. Como correção deste descompasso, esteja o problema
nos dirigentes ou nos dirigidos, o corpo intermediário é fundamental para
remediar esta desigualdade temporal na política partidária.
Este estrato intermediário não foi levado em conta por Michels.
A discussão sempre se deu entre dirigentes e dirigidos de forma direta,
não havendo nenhum grupo intermediário14. Esta ampliação, no caso dos
partidos políticos, entre dirigentes e dirigidos é própria da progressiva
complexidade da atividade política, de modo que a ampliação dos aparelhos
estatais gerou um conjunto de camadas intermediárias que realizam a
unidade entre a direção e a base. O setor intermediário, na concepção do
centralismo democrático de Gramsci, é um elemento fundamental para a
elevação da classe à condição de dirigente.
Existe uma relação entre o tipo de centralismo e a forma do
recrutamento para a organização política. Para Gramsci, o partido é parte
da classe, mas tem fronteiras claras com a classe. Por isso, a concordância
com o programa e a organização em uma célula partidária são fundamentais
para o partido comunista. Para ele é preciso combater o recrutamento
14
Michels discutiu a questão dos dirigentes intermediários, principalmente no embate entre os novos dirigentes
e os velhos dirigentes (MICHELS, 2001, p. 238-240). Mas Michels localiza ora os dirigentes intermediários na
categoria de elite política, ora na de burocracia.

210
Gramsci e seus contemporâneos

do tipo trabalhista15, já que este não serve para a formação do partido


enquanto intelectual coletivo.

Conclusões
O campo teórico, assim como a economia e a política, é um espaço
de luta. Neste sentido, a crítica que reconstruímos neste artigo se inscreve
neste campo, de modo que compreender o processo de degeneração dos
partidos é fundamental para a compreensão histórica destes mesmos
partidos. É muito comum na análise dos partidos políticos a recuperação
das teses de Robert Michels. Isso se deve à recorrência da contradição entre
a defesa do socialismo e a realidade oligárquica dos partidos socialistas e
comunistas durante todo o século XX.
No campo do marxismo é muito comum falar de teoria da
organização política ou do partido comunista. O que poucos exploraram
foi que a teoria da organização também pode explicar a oligarquização ou
a degeneração dos partidos políticos. É com esta chave que procuramos ler
a crítica gramsciana: não para encontramos uma fórmula pronta, mas para
apontar eixos analíticos e estratégicos da teoria do partido comunista.
Identificar as relações entre partido e classe, entre os diferentes
estratos do partido, tratar da questão do centralismo e da problemática
dos intelectuais nos parece fundamental para explicar por que um partido
degenera. E discutir estas relações sobre o signo do transformismo, pareceu-
nos a melhor forma de desnaturalizar este processo de oligarquização
explicado por Michels. A crítica de Gramsci não é absoluta, a ponto de
descartarmos a contribuição de Michels, mas ela abre caminhos para uma
nova prática teórica e política no campo da organização partidária.

Referências
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GENTILE, Emilio. La vía italiana al totalitarismo: partido y estado en el régimen
fascista. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005.

15
O recrutamento de forma trabalhista tratava-se de um funcionamento que, para integrar o partido, bastava ser
filiado a um sindicato, como acontece no Partido Trabalhista Inglês.

211
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere. Turim, Einaudi: 1975. 4 v.


GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira: 1999-2002. 6 v.
GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira:
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LIVORSI, Franco. Il partito di classe tra settarismo e scienza politica. In.:
MASTELLONE, Salvo; SOLA, Giorgio (org.). Gramsci: il partito politico nei
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MALANDRINO, Corrado. Il pensiero di Roberto Michels sull’oligarchia, la
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Alessandria, n. 165, p.1-18, May, 2010.
MARX, Karl. Para a crítica da economia política. In.: MARX, Karl. Manuscritos
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MICHELS, Robert. Introdución a la sociologia politica. Buenos Aires: Paidos,
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MICHELS, Robert. Por uma sociologia dos partidos políticos. Lisboa: Antígona,
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MICHELS, Robert. Potere e Oligarchie. Milão: 1989.
MICHELS, Robert. Socialismo e Fascismo (1925-1934). Milão: Giuffre, 1991.
MICHELS, Robert. Storia critica del movimento socialista italiano : dagli inizi
fino al 1911. Firenze: Voce, 1926.
PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e social-democracia. São Paulo: Cia. Das
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TUCCARI, Francesco. I dilemmi della democrazia moderna. Bari: Laterza, 1993.
WEBER, Max. Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída. São
Paulo: Abril Cultura, 1974. (Os pensadores).
WEBER, Max. Politica y ciencia. Buenos Aires: El Aleph, 2000a.

212
Rudolf Kjellen

Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos


Érika Laurinda Amusquivar

A leitura na prisão por Gramsci do texto “Gli indirizzi attuali


della geografia e Il decimo Congresso Geografico Nazionale” publicado
na revista italiana Nuova Antologia de 1927 (ALMAGIÀ, 1927) ao qual
faz menção a Rudolf Kjellen1 evidenciou um contexto não somente da
importância das questões espaciais no conjunto da obra do comunista
sardo, como também daquela perspectiva geográfica de crescente relevância
e popularidade do jurista sueco – principalmente na Alemanha (G.R.C,
1930, p. 279) - para além dos círculos universitários e de poder de sua
época. A saber, a Geopolítica entendida como uma área de conhecimento
em que há predomínio do determinismo geográfico na explicação dos
fenômenos históricos e internacionais2, além de uma concepção organicista
geográfico-espacial concernente ao Estado e seu contexto mais amplo
dada a priori. A despeito de duas menções em único parágrafo a tal autor
nos cadernos carcerários (GRAMSCI, 1975, p. 193, Q2, § 39)3, não se
pode menosprezar as preocupações do comunista italiano com tal tema.
1
Joseph Buttigieg sustenta que Gramsci teve acesso a tal texto na prisão (BUTTIGIEG apud GRAMSCI, 2010,
p. 547)
2
É comum a referência ao termo “geopolítica” em perspectiva geral sobre as relações internacionais. A geopolítica
é tratada neste ensaio como uma abordagem que sobrevaloriza as variáveis e causalidades relacionadas ao espaço
e à geografia, ainda que possa considerar outras dimensões no âmbito dos fenômenos ocorrentes no além-
fronteiras. Tal abordagem é objeto da crítica gramsciana. Quando o termo for usado com outro sentido neste
texto, outra definição será enunciada.
3
Doravante, as referências específicas dos cadernos carcerários terão também o acréscimo do caderno (indicado
por “Q”) e seu número e o respectivo parágrafo (indicado com “§”) com a sua numeração, em conformidade
com indicações recorrentes em textos que contemplam estudos gramscianos. Os textos gramscianos a serem
tomados por base são aqueles da edição crítica organizada por Valentino Gerratana (GRAMSCI, 1975).

213
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Ademais, não se pode esquecer o jugo fascista e a aliança entre Alemanha


nazista com a Itália como um dos contextos que possivelmente favoreceu a
circulação e popularização das idéias de Kjellen, às quais Gramsci poderia
ter tomado contato nas publicações acessadas no cárcere.
A passagem referida no parágrafo anterior em que Gramsci
cita Kjellen é a primeira em que aparece a noção de “Geopolítica” nos
cadernos carcerários. Trata-se de um texto “B”, isto é, de redação única
e não reescrito em momentos posteriores da obra carcerária conforme a
classificação de Valentino Gerratana na organização da edição crítica dos
cadernos carcerários (GRAMSCI, 1975). Ela é assim escrita:
A Geopolítica. Já antes da guerra, Rudolf Kjellén, sociólogo sueco,
procurou construir sobre novas bases uma ciência do Estado ou
Política, partindo do estudo do território organizado politicamente
(desenvolvimento das ciências geográficas: geografia física,
antropogeografia, geopolítica) e da massa de homens que vivem e
sociedade naquele território (geopolítica e demopolítica). Seus livros,
especialmente dois deles – Lo Stato come forma di vita e Le grandi potenze
attuali (Die Grossmächte der Gegenwart, de 1912, reelaborado pelo
autor, tornou-se Die Grossmächte und die Weltkrise [As grandes potências
e a crise mundial], publicado em 1921; Kjellén morreu em 1922) -,
tiveram grande difusão na Alemanha dando lugar a uma corrente de
estudos. Existe uma Zeitschrift für Geopolitik; e são publicadas obras
volumosas de geografia política (uma delas, Weltpolitisches Handbuch,
pretende ser um manual para os homens de Estado) e de geografia
econômica. Na Inglaterra, na América e na França4 (GRAMSCI, 2000,
v. 3, p. 148-149, grifos do autor).

Evidentemente que Gramsci estabelece um diálogo crítico com


a perspectiva geopolítica alemã e de Kjellen5. Tratar de aspectos de tal
4
O trecho tem a seguinte redação no original em italiano: “La Geopolitica. Già prima della guerra Rodolfo
Kjellén, sociologo svedese, cercò di costruire su nuove basi una scienza dello Stato o Politica, partendo dallo
studio del territorio organizzato politicamente (sviluppo delle scienze geografiche: geografia fisica, geografia
antropica, geopolitica) e della massa di uomini viventi in società in quel territorio (geopolitica e demopolitica).
I suoi libri, specialmente i due: Lo Stato come forma di vita e Le grandi Potenze attuali (Die Grossmächte der
Gegenwart, del 1912, rielaborato dall’autore, divenne Die Grossmächte und die Weltkrise, pubblicato nel 1921; il
Kjellén 〈è〉 morto nel 1922) ebbero grande diffusione in Germania dando luogo a una corrente di studi. Esiste
una «Zeitschrift für Geopolitik»; e appaiono opere voluminose di geografia politica (una di esse, Weltpolitisches
Handbuch, vuol essere un manuale per gli uomini di Stato) e di geografia economica. In Inghilterra e in America
e in Francia” (GRAMSCI, 1975, p. 193, Q2, § 39, destaques no original).
5
Conforme Carlos Nelson Coutinho afirmou em seminário proferido ao Grupo de Pesquisa “Marxismo e
Pensamento Político” na Unicamp em 2008, Gramsci situa a formulação do seu pensamento no âmbito da
Ciência Política. Via com muitas reservas a Sociologia por associar os sociólogos de sua época ao positivismo.

214
Gramsci e seus contemporâneos

interlocução – nem sempre explícita e possivelmente oculta e indireta


- é o objetivo deste ensaio, no qual se buscará apresentar aspectos tanto
do autor sueco, como também do prisioneiro de Mussolini no tocante
à sua abordagem e percepção da geografia e do espaço, com ênfase na
Geopolítica.
O texto tratará de conceitos relevantes de Kjellen com o objetivo
de elucidar o contraponto gramsciano. Posteriormente, ir além e mostrar
como as reflexões gramscianas põem em evidência uma perspectiva dinâmica
e crítica em relação à abordagem tradicional e da própria Geopolítica, vista
no contexto específico desta contribuição.
Quais pontos estão relacionados à percepção da Geopolítica de
Kjellen por Gramsci (1975, p. 193, Q2, §39) como proposição de “um
manual para os homens de Estado”? Qual o alcance de uma contraposição
gramsciana à perspectiva geopolítica do jurista sueco que não seja
sistemática, mas de alguma forma consistente? Como o contraponto
gramsciano lida com a geopolítica de sua própria maneira em viés crítico
e de superação da abordagem de Kjellen? Por outras palavras, como
Gramsci incorpora de certa forma o termo “Geopolítica” e o trata em um
viés dinâmico, e não como a condição geográfica, geopolítica e espacial
do Estado dada de antemão? São estas as questões a serem respondidas de
uma forma introdutória neste ensaio.
A hipótese a ser defendida de modo embrionário neste texto
sustenta que a escrita incompleta e não sistemática de Gramsci deixa em
aberto a possibilidade de ter “traduzido6” criticamente a Geopolítica como
campo de embates pela hegemonia e de abordagem do espaço em face
Ao referir a Kjellen como um sociólogo que elaborava sobre temas próximos à Ciência Política, é provável
que Gramsci tivesse tal crítica em mente. Ressalte-se que a perspectiva gramsciana não é de uma abordagem
especializada na Ciência Política. Ela tem no horizonte a abordagem da totalidade, usando a política como fio
condutor, como elemento mediador, de modo semelhante ao papel desempenhado pela economia na obra de
Marx (COUTINHO, 2007, p. 93 e 101). Há que se considerar também a unidade indissolúvel entre história,
filosofia e política na formulação gramsciana. Ver a respeito BIANCHI, 2008.
6
Isto remete à categoria gramsciana de tradutibilidade ou traducibilidade. Ou simplesmente, tradução
(GRAMSCI, 1975, p. 468, Q4, §41). Por outras palavras, uma categoria ou conceito não deve ser tomado,
compreendido, aplicado de modo mecânico. Ele deve ser adaptado às diferentes línguas, às diferentes
tradições históricas, sociais e culturais. Assim, a apreensão de conceito, categoria, noção ou ideia pode ser
um desvio em relação a sua elaboração original, mas pode conotar também um enriquecimento em relação
a seu significado original. Conceitos estranhos ao aparato conceitual gramsciano em um primeiro momento
foram compatibilizados pelo comunista italiano de modo a se coadunar com sua chave crítica e marxista. Foi
justamente o que Gramsci fez com aspectos estranhos ao marxismo de autores que lhe serviram de fonte, como
Croce, Maquiavel, Guicciardini, Sorel, Pareto, Cuoco, dentre outros. Gramsci parece ter feito o mesmo com a
Geopolítica de Kjellen dentro do registro incompleto e não sistemático de seus cadernos carcerários.

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

das relações internacionais e até mesmo como uma relação de sinonímia,


proximidade com a Geografia. A propósito de argumento favorável que
corrobora tal hipótese, assim escreve Adam Morton (2007, p. 50, grifos
do autor):
No nível geopolítico, Gramsci visou ir além de um relato que ofereceria
simplesmente um “manual do homem de Estado” da geopolítica,
evidente no trabalho de Rudolf Kjellén, explicitamente criticado como
uma tentativa de construir uma ciência do Estado e da política que
se baseava na territorialidade do Estado como um pressuposto, algo
dado7.

O mapa deste apontamento introdutório prevê uma apresentação


de aspectos relevantes do contexto e pensamento do jurista escandinavo
focados principalmente na sua abordagem da Geopolítica. O determinismo
geográfico e sua abordagem tradicional e organicista do Estado serão
tratados também.
No tocante a Gramsci, o dinamismo de sua perspectiva mais
ampla relativa à geografia e ao espaço será contextualizado inicial e
sumariamente em um primeiro momento como ponto de partida para
tal discussão. Sucederá o foco no plano internacional com maior ênfase,
focando principalmente na Geopolítica nos textos carcerários.
As considerações finais apontarão resumos dos principais
argumentos e possibilidades ulteriores de pesquisa a partir dos problemas
em pauta neste artigo.

Kjellen e a geopolítica
Johan Rudolf Kjellen (1864-1922) foi um jurista, parlamentar e
sociólogo sueco de posições germanófilas a quem é atribuída a cunhagem
do termo “geopolítica” (KARAKASIS, 2014, p. 3; TUNANDER, 2001, p.
452). Em um artigo publicado em 1899 na revista Ymer, – da Sociedade
Sueca de Antropologia e Geografia (Svenska Sällskapet for antropologi och
geografi) – Kjellen publica seu artigo “Studier öfver Sveriges politiska
7
Adam Morton vai além na discussão geopolítica sobre Gramsci. Para ele, a categoria gramsciana de revolução
passiva como forma historicamente situada de uma hegemonia incompleta proporciona uma teoria do jugo
político do capital. Por extensão, tal teoria incorpora a competição geopolítica dentro de seu campo de
referência. Ver a respeito MORTON, 2013.

216
Gramsci e seus contemporâneos

Gränser” (“Estudos sobre os limites políticos da Suécia”, em tradução


livre) cita pela primeira vez o termo “geopolítica”. O artigo tinha como
objetivo destacar o ponto das tendências geopolíticas a respeito da fronteira
oriental da Escandinávia, em especial a Suécia e a Finlândia com a Rússia
(KJELLEN, 1899, p. 286).
Kjellen defendeu a política externa alemã durante a Primeira
Guerra Mundial e criticou de forma veemente o conteúdo do Tratado de
Versalhes que arrematou o conflito (G.R.C., 1930, p. 279). A ele é também
atribuído o entendimento da Geopolítica como uma disciplina de caráter
mais autônomo no contexto mais amplo de seus vínculos com a política e
a geografia. O Estado para Kjellen aparece quase como uma unidade, ao
possuir uma vontade maior do que a soma de interesses individuais que o
constituem. Ademais, Kjellen busca sintetizar todos os fatores que compõem
um Estado, tais como grupos sociais, território, recursos, organização,
entre outros (LUNDÉN, 1986, p. 181). Seu interesse e proximidade com
as questões políticas também remetem a posições ocupadas como professor
de Ciência Política na Universidade de Upsalla e de Teoria do Estado na
Universidade de Gotemburgo.
A dificuldade de acesso aos seus textos fora dos idiomas sueco
e alemão está fortemente associada à aversão do resto do mundo às suas
posições, recepcionadas e encampadas pelos militares e geopolíticos alemães
e nazistas – como o general Karl Haushofer (1869-1946)8 -, além de certo
desuso em cronologia mais recente da perspectiva determinista geográfica
e organicista do Estado – abordagens características do jurista sueco - no
âmbito da teorização e análise das relações internacionais.
Mencione-se também o nulo impacto de sua obra na Grã-Bretanha,
Estados Unidos e no restante do mundo anglo-saxônico. Seus escritos
tiveram uma maior repercussão na Alemanha e na Europa Continental
(TUNANDER, 2001, p. 453), ponto que muito provavelmente explicou
a motivação de Gramsci para escrever sobre o jurista sueco a partir de suas

8
Existe literatura que dá notícia da influência direta de Haushofer sobre Hitler (por exemplo, MELLO, 1997c,
p. 39 e WHTITLESEY, 1952) e de que ele teria comandado um influente e poderoso aparato conhecido
como Instituto Geopolítico de Munique. Algumas abordagens sustentam que tais pontos são controversos. Elas
sugerem que se criou toda uma mitologia e conjunto de exageros sobre o tema, dando inclusive notícia de que
sequer havia um contato pessoal direito e laços estreitos entre Hitler e Haushofer. Ver a respeito MURPHY,
2014; MIYAMOTO, 1995, p. 39. Um fato concreto é a iniciativa de Haushofer e seu grupo de colaboradores
buscarem, aparentemente, desenvolver conceitualmente de alguma forma as sugestões feitas pelo jurista sueco
na forma de um livro. Ver a respeito HOUSE, 1930, p. 661-662.

217
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

leituras efetuadas no cárcere e no período pré-carcerário, embora nenhuma


evidência apareça nesta direção no aparato crítico da edição dos cadernos
carcerários organizada pela equipe de pesquisadores de Valentino Gerratana.
Todavia, a citação em detalhes por Gramsci dos títulos traduzidos para o
alemão de livros de Kjellen é sugestiva da possibilidade de acesso em algum
momento de sua vida a tal informação, de modo direto ou indireto9.
Nenhuma obra de Kjellen foi traduzida para o inglês, a despeito de
versões em outras línguas na América Latina e Índia (TUNANDER, 2008,
p. 166; HAGAN, 1942, p. 482). A associação do nazismo às abordagens
geopolíticas em geral é outro motivo que não deve ser descartado na
dificuldade e ausência de estudos sobre o autor escandinavo, inclusive na
própria Suécia (TUNANDER, 2008, p. 165).
Não se deve esquecer, da mesma forma, a associação da já
mencionada abordagem geopolítica como predomínio do determinismo
geográfico a geógrafos e estudiosos brasileiros da geopolítica de inclinação
germanófila, como Everardo Backheuser (1933), e ao regime militar
brasileiro, pródigo nas fontes de suas análises dos autores clássicos desta
perspectiva, estando Kjellen entre eles10.
Kjellen concebe a geopolítica como campo de estudo do Estado,
considerado por ele um organismo geográfico. Um fenômeno situado em
espaço específico do Estado referido seja na forma de país, região, território
ou domínio político (KJELLEN, apud COUTO E SILVA, 1967, p. 160).
O caráter organicista do Estado funciona em seu pensamento de modo
muito mais estrito do que como uma analogia. A despeito disto, ele
considera o território do Estado como seu corpo. Compara o Estado a
uma árvore. Arrancada do solo, perece. (KJELLEN apud HOUSE, 1930,
p. 661). O Estado como organismo precisa crescer, devendo zelar por uma
vida saudável e espaço para a consecução de tal desenvolvimento. Assim,
o Estado deveria se voltar para o caráter de seus cidadãos no presente e
no futuro, considerando a autarquia ou autossuficiência como seu ideal
último. O entendimento do Estado como um organismo e a necessidade

9
Segundo a versão dos Cadernos do Cárcere de Joseph A. Buttigieg as informações sobre Rudolf Kjellen da nota
“A geopolítica” é extraída do artigo do geógrafo e historiador italiano Roberto Almagià intitulado “Gli indirizzi
attuali della geografia e il décimo Congresso geográfico nazionale” a partir do Décimo Congresso Geográfico
Nazionale na revista italiana Nuova Antologia, v. 332, 1937. (apud GRAMSCI, 2010, p. 547)
10
Ver a título de exemplificação as formulações do general e ex-ministro dos governos Geisel e Figueiredo,
Golbery do Couto e Silva (1967, p. 28, 29, 160, 161, 166 e 167).

218
Gramsci e seus contemporâneos

de expansão de seu espaço vital ou aquilo que o geógrafo prussiano


Friedrich Ratzel chamou em alemão de Lebensraum provavelmente indica
um parentesco intelectual ou influência deste em relação ao jurista sueco
(HAGAN, 1942, p. 481; HOLDAR, 1992, p. 311; HOUSE, 1930, p.
661; KISS, 1942, p. 638; KOST, 1989, p. 376; MELLO, 1997a, p. 12;
TUNANDER, 2005, p. 547 e 2001, p. 451 e 454). Para tal e para seu
fortalecimento também, de acordo com Kjellen, o Estado deve se valer
da guerra. Neste esteio, rejeitava o materialismo, o pacifismo e criticava o
laxismo do liberalismo (KJELLEN apud TUNANDER, 2001, p. 452). Na
medida em que os Estados maiores se desenvolvem e se organizam, mais
eles fazem sentir sua influência nos espaços nos vastos espaços, diminuindo
a importância dos Estados menores, relegados às áreas periféricas ou
condenados ao desaparecimento (KJELLEN apud KISS, 1942, p. 639).
Os contornos conceituais sobrevalorizados da geografia, do espaço
e da percepção do ente estatal como organismo já são evidenciados nestas
primeiras definições. Trata-se “do estudo daqueles processos políticos que
ocorrem em dependência do solo dos Estados” (KJELLEN, apud COUTO
E SILVA, 1967, p. 161, grifo nosso). O próprio determinismo geográfico
do jurista é admitido pelo general Golbery do Couto e Silva, aludindo a
outro entusiasta das formulações de Kjellen, o já citado geógrafo brasileiro
Everardo Backheuser:
Da feliz asserção de Backheuser, nada temos a dizer quanto ao âmbito
mais vasto que atribui à Geopolítica; apenas, julgamos útil ponderar
o leve sabor determinista que consigo traz a locução “em decorrência
das condições geográficas”, nada de admirar em quem aplaude Kjellén
por considerar o Estado ‘ fundamentalmente, essencialmente, um ser
vivo’ [...] (BACKHEUSER apud COUTO e SILVA, 1967, p. 166,
destaques no original).

Conforme já assinalado, o mapa de Kjellen aponta para a


Alemanha. Ele a identifica como natural e tendencialmente dirigente do
ponto de vista geográfico e cultural para, inclusive, a assumpção de uma
liderança mundial (apud MELLO, 1997c, p. 33). Somada à russofobia11 de
alguns setores de sua época – a Finlândia fora anexada pelo Império Russo
11
O próprio Kjellen tece várias análises críticas a respeito do posicionamento da Rússia. Em seu livro
Världskrigets politiska problem (1915), o jurista sueco aponta no seu capítulo 1 os problemas geopolíticos e
menciona diretamente os casos da Inglaterra e Rússia. Sobre a Rússia, o autor nesse mesmo livro discorre sobre
a ameaça russa ao qual afirma que a política russa é determinada por sua própria ótica (KJELLEN, 1915, p.15).

219
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

em 1809 após derrota sueca em campo de batalha –, Kjellen tinha em


mente um contrapeso germânico frente aos eslavos com a possibilidade de
restauração de alguns domínios territoriais e de uma posição hegemônica
no contexto escandinavo para a Suécia e a libertação ou reanexação da
Finlândia (TUNANDER, 2001, p. 455). Kjellen compunha um setor
significativo e politicamente bastante heterogêneo da elite e sociedade civil
sueca simpático à causa germânica e das potências centrais por ocasião da
Primeira Guerra Mundial, em contraste com a neutralidade oficial do país
(JONAS, 2014).
Neste sentido, a expansão alemã fazia parte da perspectiva
encampada por Kjellen (1985, p. 59):
O problema da Alemanha é na realidade o mesmo da Inglaterra. Ela
também deve assegurar-se de um mercado para a compra de matérias
primas e a venda de produtor manufaturados. Trata de solucioná-lo
assegurando-se de uma esfera especial de influência. Somente diferem
os caminhos pelos quais há de se alcançar: a Inglaterra já possui um
vasto império, e a única coisa a fazer é fechá-lo aos competidores
estrangeiros. A Alemanha, ao contrário, antes tem que criar essa esfera.
Enquanto a Inglaterra obtém seu propósito mediante a concentração,
a Alemanha somente poderá alcançá-lo mediante a expansão. Aqui
falamos do programa ‘Berlin a Bagdá’ e uma esfera centro-européia
de influência, cuja base é uma livre federação dos distintos Estados
interessados. Em outras palavras, consideramos a economia primária –
agrícola – [...] como um complemento da indústria alemã.12

A citada criação de “uma esfera especial de influência” para a


Alemanha na citação anterior é destacada no seu pensamento geopolítico
por Tunander (2001, p. 458), na perspectiva de unidades políticas maiores,
citando o próprio jurista sueco:
Por isso, é preciso distinguir a idéia de Estado-nação de prática
política, e era evidente para Kjellén que o Estado-nação estava se
12
O trecho citado tem tradução de nossa responsabilidade. No original da tradução argentina, é encontrado o
seguinte trecho: “El problema de Alemania es em realidad el mismo de Inglaterra. También ella debe asegurarse
un, mercado para la compra de materias primas la venta de produtos terminados. Trata de solucionar-lo
asegurándose una especial esfera de influencia. Solamente difieren los caminos por los cuales ha de alcanzar-
se: Inglaterra ya lo posee en un vasto imperio, y lo único que tiene que hacer es cerrarlo a los competidores
extranjeros. Alemania, por el contrario, antes tiene que crear esa esfera. En tanto que Inglaterra obtiene su
propósito mediante la concentración, Alemania sólo podrá alcanzarlo mediante la expansión. Aquí hallamos
el programa ‘Berlín a Bagdad y una esfera centroeuropea de influencia, cuya base es una libre federación de los
distintos estados interesados. En otras palabras, consideramos a la economía primaria – agrícola – [...] como un
complemento de la industria alemana” (KJELLEN, 1985, p. 58-59).

220
Gramsci e seus contemporâneos

tornando muito pequeno para corresponder a necessidades políticas


e econômicas do século vinte. ‘O exemplo clássico é próximo: se a
Prússia de Frederico, o grande, foi o suficiente para o equilíbrio do
século XVIII, então a Alemanha de Bismarck era necessária para o
equilíbrio do século XIX. E agora, quando o padrão aumentou para
incluir os grandes impérios da Inglaterra, Rússia e os EUA, o saldo
parece defender uma Mittel Europa, seja ela em forma menor da
Alemanha-Áustria-Hungria (Naumann) ou melhor, no maior formato,
para incluir o Levante (Jaeckh). Este é o retrato de um complexo
Estado ou um Estado-bloco para atender às mudanças geográficas. Em
outras palavras, estes são indicadores apontando para os blocos como a
OTAN ou a UE. Kjellén, entretanto, salienta que tal bloco de Estados
não tem uma unidade étnica e deve respeitar as nações particulares’,
identidades, de modo a não ser transformado em um regime que
“sufoca toda vida autônoma com a força de sua cultura”13.

Portanto, resume-se a abordagem de Kjellen em termos da


importância da autossuficiência de um Estado, sua influência como
unidade política maior na forma de bloco, o importante peso da sua
expansão econômica e espacial para sua sobrevivência e a enorme relevância
do meio, do solo, da geografia em todas as suas distintas manifestações. Tal
ausência de particularidade histórica na relação com as questões espaço-
geográficas é um dos pontos nevrálgicos da crítica gramsciana, como será
demonstrado a seguir.

Gramsci e a geopolítica
Não se pode descartar a possibilidade de que a curta menção a
Kjellen nos cadernos fosse o ensejo para futuros escritos, ponto sugestivo
da escrita sumária e pontual de Gramsci sobre o tema da Geopolítica.
Tampouco podem ser ignoradas as nove menções à Geopolítica ou posição
13
Tradução de nossa responsabilidade. No trecho original em inglês, é encontrada a seguinte redação:
“Consequently one must distinguish the idea of the nation-state from practical politics, and it was apparent to
Kjellén that the nation-state was becoming too small to correspond to the twenthieth century’s political and
economic necessities. ‘The classic example is close: if Fredric The Great’s Prussia was enough for the eighteenth
century balance, then Bismarck’s Germany was needed for that of the nineteenth century. And now, when
the standard has swollen to include the vast empires of England, Russia and the USA, the balance seems to
advocate a Mittel Europa, be it in the minor form of Germany-Austria-Hungary (Naumann) or rather in the
greater form, to include the Levant (Jaeckh). This is the picture of a state-complex or a state-block to meet
geographical changes.’ In other words, these are indicators pointing towards unions like NATO or the EU.
Kjellén, meanwhile, stresses that such a block of states lacks an ethnic unity and must respect the particular
nations’ identities, so as not to be transformed into a regime that ‘smothers all autonomous life with the force of
its culture’. ‘Neither Mittel Europa nor Pan-America have any relation to ethnic units”.

221
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

geopolítica nos cadernos carcerários distribuídas em seis parágrafos


(GRAMSCI, 1975, p. 193, Q2, § 39; p. 1182, Q9, §118; p. 1360, Q10,
§61; p. 1666, Q14, §11; p. 1723, Q14, §63; p. 1999, Q19, §12), seja
como alusão à Geopolítica como área ou disciplina, seja como sentido
próximo às questões de natureza geográfica. O contexto da Primeira Guerra
Mundial, tão caro à experiência política e à maturação do pensamento de
Gramsci, remete de alguma forma às temáticas que Kjellen discutiu em
sua obra.
As questões espaciais e geográficas são uma constante no construto
gramsciano de seus cadernos carcerários. Neste diapasão, Bob Jessop
destaca a conotação ou denotação geográfico-espacial de várias de suas
categorias e metáforas, entre elas algumas das mais importantes: “Oriente”,
“Ocidente”, guerra de posição, guerra de movimento, guerra de manobra,
Norte/Sul, morfologia do Estado, base e superestrutura, cosmologia
popular, trincheiras, fortificações, perímetro externo, casa-mata, revolução
passiva, bloco histórico, bloco hegemônico, vanguarda, transformações
moleculares (JESSOP, 2006, p. 28-29). E incluiria aí também noções e
referências também presentes na obra carcerária como centro, periferia e
cidade.
A historicização e o caráter dinâmico destas categorias e metáforas
aparecem no fato de que seus significados mudam justamente em função
de suas particularidades de análise. Vejam-se alguns argumentos a título
de exemplificação. A “guerra de movimento” e a “guerra de posição” não
são empregadas somente no âmbito dos conflitos e relações de força no
âmbito da sociedade civil dos Estados com a conotação de luta política,
mas também são usadas em análises das relações interestatais, no sentido
mais estrito de guerras entre países. “Oriente” e “Ocidente” não possuem
um significado eurocêntrico de referência tradicional aos hemisférios.
Referem, respectivamente, à menor e maior complexidade das sociedades
civis, que podem inclusive coexistir no âmbito de um mesmo Estado
em função das diferentes temporalidades de desenvolvimento dos vários
aspectos de seu modo de vida. Tal acuidade histórica nada tem a ver com
um esquema evolutivo ou mesmo de localização no mapa em termos
eurocêntricos, haja vista a possibilidade histórica de classificar uma
sociedade como a japonesa do fim do século XIX como “ocidental” em
face de sua complexidade.

222
Gramsci e seus contemporâneos

A preocupação gramsciana com o tema da Geopolítica tem


indícios que antecedem seu período carcerário. Não somente pelo fato
de ser conhecedor de vários aspectos da cultura alemã mesmo durante o
forte esforço propagandístico anti-germânico durante a Primeira Guerra
Mundial. A propósito de tema afim à preocupação já citada de Kjellen
durante a Grande Guerra, qual seja, uma integração da Europa Central sob
a direção da Alemanha, assim escreve Leonardo Rapone sobre Gramsci:
A questão da superação da forma tradicional da soberania dos Estados
tornara-se atual sobretudo após a publicação de Mitteleuropa, o volume
em que Friedrich Naumann, o maior dos escritores políticos alemães,
enuncia sua visão dos objetivos de guerra da Alemanha, gerando grande
ressonância internacional: o objetivo de uma integração da Europa
Central sob a direção econômica e política do Reich era relacionado à
tendência histórica de formação de organismos superestatais, de que as
redes de relações já constituídas em torno da Grã-Bretanha, dos Estados
Unidos e da Rússia forneciam os primeiros exemplos, evidenciando
a erosão dos Estados satélites e a concentração de poder nas mãos
daqueles que o autor denominava Welstaaten. Às questões levantadas
por Naumann fizera coro na Itália a conferência inaugural de Santi
Romano para os cursos do ano acadêmico de 1917 – 1918 do Instituto
Florentino de Ciências Sociais Cesare Alfieri, significativamente
intitulada ‘Além do Estado’, na qual se assinalava a obsolescência
da visão do Estado como ‘termo máximo e último de referência de
tudo aquilo que concerne ao desenvolvimento da humanidade’ e se
formulava a possibilidade de que os Estados ou mesmo só algum
deles, ‘ com o tempo’, permaneceriam ‘ contidos e talvez absorvidos
em organizações maiores não propriamente estatais’. Há dúvidas se
Gramsci teve notícia da intervenção de Romano, ao passo que o eco
das teses de Naumann certamente lhe chegou, ainda que não saibamos
dizer se teve conhecimento direto do texto (que, traduzido já em 1916
para o francês e o inglês, apareceu em edição italiana, em dois volumes,
entre 1918 e 1919)” (RAPONE, 2014, p. 270-271).

No que refere especificamente a Kjellen, Gramsci não somente


cita os títulos de dois de seus importantes livros traduzidos para o alemão
como também um manual de política mundial baseado no livro de geografia
política de autoria de Arthur Dix Politsche Geographie (1922) publicado na
Alemanha. Uma tradução livre do título desta obra, de modo semelhante
à escrita de Gramsci no parágrafo 39 do caderno 2, é “Geografia Política
- Manual Político Mundial”. O manual em questão explora temática afim
aos escritos de Kjellen (1917 e 1922), sem mencionar seus escritos, exceto

223
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

pelo anúncio publicitário no fim do volume dando notícia de obra do jurista


sueco publicada pelo mesmo editor. Gramsci cita também a “Revista de
Geopolítica” (Zeitschrift für Geopolitik)14, publicação justamente concretizada
pelo general alemão nazista Karl Haushofer e seus colaboradores no âmbito
de um simpósio sobre Geopolítica por eles organizado na Universidade de
Munique, o Bausteine zur Geopolitik (HOUSE, 1930, p. 661). De acordo
com o aparato crítico de Valentino Gerratana, na escrita deste texto Gramsci
teve acesso ao periódico Nuova Antologia, datados de 16 de julho e 1 de
agosto, ambos de 1927.
Os cadernos carcerários em que aparece o termo “Geopolítica”
foram provavelmente escritos em junho de 1930, setembro de 1932, maio
de 1933, julho e agosto de 1932, fevereiro e maio de 1933, e entre fevereiro
de 1934 a fevereiro de 1935. Tais datas correspondem respectivamente à
elaboração dos parágrafos dos cadernos 2, 9, 10, 14 e 19 (FRANCIONI,
1984, p. 142-145).
Podem eventualmente ter significados semelhantes as expressões
gramscianas “posição geográfica” e “posição geopolítica”? No que concerne à
expressão “posição geopolítica”, a hipótese aqui sustentada é de que Gramsci
a ressignificou em perspectiva crítica em relação à expressão homônima de
Kjellen. Para que possamos ter mais clareza sobre o que Gramsci entende e
analisa a geopolítica, apresentaremos os parágrafos dos cadernos ao qual o
autor sardo faz menção ao termo geopolítica.

La geopolitica (Q2, §39)


A primeira menção de Gramsci nos Cadernos do Cárcere
transcrita anteriormente nesse texto é escrita provavelmente em junho de
1930 (FRANCIONI, 1984, p. 142-145). No parágrafo que já sublinhamos
na primeira parte desse artigo aparecem as menções diretamente a Kjellen
(GRAMSCI, 1975, p. 139, Q2, §39) e nele Gramsci incorpora o sentido
tradicional da geopolítica, ao qual introduzido pelo jurista sueco. Gramsci
discute sucintamente como as ideias de Kjellen foram determinantes para
a criação da Ciência do Estado ou Política. A tradução para o italiano com
os títulos dos livros Lo Stato come forma di vita e Le grandi potenze attuali
14
Inclusive Rudolf Kjellen escreve em 1905 nessa revista (Zeitschrift für Geopolitik) cujo artigo Geopolitische
Betrachtungen über Skandinavien (Considerações geopolíticas da Escandinávia, tradução livre sob nossa
responsabilidade) discute sobre o relacionamento geopoliticamente afastado entre os países da Escandinávia,
apesar da existência de alguns fatores geográficos que pudessem complementá-los (KJELLEN, 1905).

224
Gramsci e seus contemporâneos

(Die Grossmächte der Gegenwart) deve ao texto publicado na revista Nuova


Antologia de 1927 escrita por Roberto Almagià, um importante geógrafo
italiano responsável pela elaboração crítica dos verbetes da Enciclopédia
Treccani (ALMAGIÀ, 1927; ALMAGIÀ, s/d). Devido ao seu provável
interesse pelo tema, portanto, o parágrafo ao qual faz menção à Rudolf
Kjellen se trata de uma resenha e foi crucial para o desenvolvimento da
crítica de Gramsci à geopolítica15.
Na prisão, Gramsci tinha uma conta na livraria Sperling & Kupfer
em Milão concedido por seu amigo Piero Sraffa para fazer encomendas
de livros, jornais e periódicos. Nas Cartas do Cárcere (2005), Gramsci
em correspondência a sua cunhada, Tatiana Schucht afirmara que havia
começado um programa ao qual buscava estudar a língua alemã e russa com
“método e continuidade” e também economia e história (Carta à Tatiana
Schucht, 9 dezembro de 1926. GRAMSCI, 2005, v.1, p. 80). Também
solicitara um dicionário bilíngue alemão-italiano para que pudesse ler
os textos em alemão. Muito provavelmente, Gramsci obteve os livros em
alemão. Também tinha acesso a bibliografias sobre geografia, inclusive na
revista italiana Nuova Antologia, ao qual dedicava algumas páginas para o
tema. Interesse esse se traduz na curiosidade de Gramsci sobre o tema, ao
passo que pouco tempo depois do ingresso na prisão, Gramsci relata que já
estava participava da escola de cultura geral organizada por ele: o autor sardo
ensinava história e geografia, e em troca frequentava as aulas de alemão junto
aos seus colegas de cárcere (Carta à Tatiana Schucht, 3 de janeiro de 1927.
GRAMSCI, 2005, v.1, p. 102).
Todo o interesse pela língua alemã, além da história e geografia
possivelmente favoreceu o contato de Gramsci pelo pensamento geopolítico
15
O trecho do artigo em questão da revista Nouva Antologia resenhado por Gramsci, com algumas modificações:
“Già negli anni immediatamente precedenti alla guerra um sociologo svedese, Rodolfo Kjellén, cercava di
costruire su nuove basi uma Scienza dello Stato o Política, partendo dallo studio Del territorio organizzato
politicamente (Geopolitica) e della massa di uomini, viventi in società su quel territorio (Demopolitica). I suoi
libri, specialmente i due intitolati Lo Stato come forma di vita e Le grandi potenze attuali, ebbero un’ enorme
diffusione in Germania (2), dove le idee del Kjellén hanno dato luogo subito ad una larghissima elaborazione,
specialmente nel campo geografico. In fatti, mentre si fanno sempre più frequenti gli studi e le monografie
su singoli stati, inspirati alle idee del Kjellén – cito a cagion d’esempio, quella dell’Hettner sulla Rusia, quelle
del Braun sui Paesi Scandinavi, quella del Tuckermann sull’Europa Orientale, ecc – si fonda una Zeitschrift für
Geopolitik, e appaiono opere voluminose di Geografia Politica (una diese – che porta il significativo sotto-tiolo
di Weltpolitisches Handbuch – vuo, essere dichiaratamente un manuale per gli uomini di Stato, i diplomatici
e quanti si occupano di politica mondiale) (3), ed anche di Geografia Economica (monumentale, tra esse, la
Geographie des Welthandels diretta dall’Andrée e dal Sieger, di cui si è iniziata nel 1926 la quarta edizione).
(2) Il secondo, che nella traduzione tedesca, apparsa nel 1912, si intitola Die Grossmächte der Gegenwart, ebbe
20 edizioni o ristampe tra il 1912 e il 1919; poi fu rielaborato dall’A. Col titolo Die Grosmächte un die Weltkrise
(1921). Il Kjellen è morto nel 1922.”

225
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

de Kjellen, que já se disseminava na Alemanha, ainda que indiretamente.


Ainda que seja apenas uma menção direta a Rudolf Kjellen, Gramsci
traduzirá criticamente seus escritos ao conceito tradicional de geopolítica.
Seu entendimento pela dimensão geopolítica e até mesmo geográfica será
organicamente dinâmico e não determinístico; tradução essa oposta à noção
tradicional de geopolítica, veiculada pela tradição germanófila de Kjellen.
Como desdobramento de tais menções, Gramsci esboça uma
análise justamente sobre o contexto regional escandinavo que põe a Suécia
em questão. Gramsci se debruça sobre um artigo da Nuova Antologia, na
datação já citada de 1 de agosto de 192716. Já em seus escritos carcerários, o
parágrafo La Geopolítica ao qual faz menção direta a Kjellen aparecerá em
junho de 193017.

La posizione geopolítica dell’Itália. La possibilita dei blocchi (Q9,


§118; Q19, §12)
Na segunda menção do termo geopolítica (Q9), Gramsci incorpora
um sentido que parece estar contemplado no léxico gramsciano. A essa análise
devemos destacar uma peculiaridade. A segunda menção do Caderno 9, um
texto A, isto é, de “primeira redação”18 provavelmente escrita em setembro
de 1932 será reescrita quase dois anos depois, em sua sexta e última menção
no Q19 §12. Esta última menção trata-se de texto C, ou seja, o de “segunda
redação” foi reescrito provavelmente entre fevereiro de 1934 e fevereiro de
1935. Cabe sublinhar as diferenças entre as versões, uma vez que alguns
de seus escritos, o autor sardo buscou rever suas anotações e repensá-las de
acordo com o seu ritmo de pensamento19:

16
Consulte-se o aparato crítico da edição crítica dos cadernos carcerários gramscianos (GRAMSCI, 1975, p.
2548 e 2549).
17
Vale ressaltar o parágrafo seguinte, Q2, §40 ao qual Gramsci tece uma crítica sobre o problema escandinavo
e báltico a partir de sua leitura da Revista Nuova Antologia, de 1º de agosto de 1927. Esta edição continha
uma seção sobre os assuntos geopolíticos do Décimo Congresso Geográfico Nacional. Ainda que Gramsci não
tenha citado Rudolf Kjellen diretamente, podemos indagar se essa era uma continuidade da crítica à noção
tradicional adotado pelo jurista sueco ao qual tinha uma análise sobre o problema da geopolítica a partir da
região Escandinávia e báltica, dada sua naturalidade sueca e a proximidade com os problemas geopolíticos
regionais, ao qual permitiu disseminar seus escritos sobretudo para a Alemanha, ganhando assim maior
notoriedade internacional.
18
Segundo a edição dos Cadernos do Cárcere de Carlos Nelson Coutinho em 6 volumes, o texto tipo A é o de
primeira redação.
19
A versão tipo C – segunda redação - em português não se encontra na edição de Carlos Nelson Coutinho. Por
isso a versão de Valentino Gerratana em italiano foi cotejada.

226
Gramsci e seus contemporâneos

Q9, §118. La posizione geopolitica Q9, §118. La posizione geopolitica


dell’Italia. La possibilità dei blocchi. dell’Italia. La possibilità dei blocchi.

Nella sesta seduta della Conferenza Nella sesta seduta della Conferenza
di Washington (23 dicembre 1921) il di Washington (23 dicembre 1921) il
delegato inglese Balfour, a proposito delegato inglese Balfour, a proposito
della posizione geopolitica dell’Italia, della posizione geopolitica dell’Italia,
disse: «L’Italia non è un’isola, ma può disse: «L’Italia non è un’isola, ma può
considerarsi come un’isola. Mi ricordo considerarsi come un’isola. Mi ricordo
dell’estrema difficoltà che abbiamo avuto a dell’estrema difficoltà che abbiamo avuto a
rifornirla anche con il minimo di carbone rifornirla anche con il minimo di carbone
necessario per mantenere la sua attività, i necessario per mantenere la sua attività, i
suoi arsenali e le sue officine, durante la suoi arsenali e le sue officine, durante la
guerra. Dubito che essa possa nutrirsi e guerra. Dubito che essa possa nutrirsi e
approvvigionarsi, o continuare ad essere approvvigionarsi, o continuare ad essere
una effettiva unità di combattimento, se una effettiva unità di combattimento, se
fosse realmente sottomessa ad un blocco fosse realmente sottomessa ad un blocco
e se il suo commercio marittimo fosse e se il suo commercio marittimo fosse
arrestato. L’Italia ha cinque vicini nel arrestato. L’Italia ha cinque vicini nel
Mediterraneo. Spero e credo che la pace, Mediterraneo. Spero e credo che la pace,
pace eterna, possa regnare negli antichi pace eterna, possa regnare negli antichi
focolari della civiltà. |88 bis| Ma noi focolari della civiltà. |88 bis| Ma noi
facciamo un esame freddo e calcolatore facciamo un esame freddo e calcolatore
come quello di un membro qualsiasi come quello di un membro qualsiasi
dello Stato Maggiore Generale. Questi, dello Stato Maggiore Generale. Questi,
considerando Il problema senza alcun considerando Il problema senza alcun
pregiudizio politico e soltanto come una pregiudizio politico e soltanto come una
questione di strategia, direbbe all’Italia: questione di strategia, direbbe all’Italia:
voi avete cinque vicini, ciascuno dei quali voi avete cinque vicini, ciascuno dei quali
può, se vuole, stabilire un blocco delle può, se vuole, stabilire un blocco delle
vostre coste senza impiegare una sola nave vostre coste senza impiegare una sola nave
di superficie. Non sarebbe necessario che di superficie. Non sarebbe necessario che
sbarcasse truppe e desse battaglia. Voi sbarcasse truppe e desse battaglia. Voi
perireste senza essere conquistati». È vero perireste senza essere conquistati». È vero
che Balfour parlava specialmente sotto che Balfour parlava specialmente sotto
l’impressione della guerra sottomarina e l’impressione della guerra sottomarina e
prima dei grandi passi fatti dall’aviazione prima dei grandi passi fatti dall’aviazione
di bombardamento, che non pare possa di bombardamento, che non pare possa
perinettere un blocco immune da perinettere un blocco immune da
rappresaglie, tuttavia per alcuni aspetti la rappresaglie, tuttavia per alcuni aspetti la
sua analisi è abbastanza giusta sua analisi è abbastanza giusta

(GRAMSCI, 1975, p. 1182, Q9, §118) (GRAMSCI, 1975, p. 1999, Q19, §12)

227
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Nas diferentes versões do parágrafo apresentado, ainda que


Gramsci tenha excluído o termo “posição geopolítica” da segunda versão
escrita, ainda sim o título permanece inalterado. No entanto, podemos
indagar até que ponto o conceito de geopolítica não fora excluído de
modo a ressignificar o sentido do termo “geopolítica” italiana ao qual
não se compreenda o significado tradicional do termo, mas a sua crítica
posterior. Aparece a expressão que será reproduzida algumas vezes nos
cadernos, “posição geopolítica”. Curiosamente, Gramsci também usa a
expressão “posição geográfica” ou “disposição geográfica” em oito menções
nos seguintes cadernos a partir da versão Valentino Gerratana de 197520:
a) Primeira menção – Italia e Yemen nella nuova política arabica21;
b) Segunda e sétima menções – Grandezza relativa delle potenze
/ Elementi per calcolare la gerarchia di potenza fra gli Stati: 22
c) Terceira e oitava menções – Risorgimento. L’Italia nel Settecento/
L’Italia nel Settecento23;
f ) Quarta menção – Giornalismo24;
g) Quinta e sexta menções – Il moderno principe / (Le note scritte a
proposito dello Studio delle situazioni e di ciò che ocorre intendere per “raporti
di forza”)25.
Na primeira menção, Gramsci avaliará historicamente a nova
política arábica a partir das relações da Itália e Yemen e, portanto, analisa o
papel político da Itália a partir de sua distribuição geográfica. Na segunda
e sétima menção, o autor sardo busca identificar a grandeza relativa de

20
Das oito menções nos cadernos carcerários, seis são decorrentes da escrita e reescrita de Gramsci: textos A
(primeira redação) e C (segunda redação). Para efeitos de análise, não trataremos minunciosamente cada uma
das razões da reescrita e consideraremos ambas as versões de um mesmo texto a partir do foco da geopolítica
e sua relação sinonímia, a geografia, embora respeitando as particularidades da reescrita de Gramsci e, assim o
ritmo de seus pensamentos.
21
GRAMSCI, 1975, p. 188, Q2, § 30 (escrito entre maio e junho de 1930)
GRAMSCI, 1975, p. 512, Q4, §67 (escrito em novembro de 1930) e p. 1597-1598, Q13, §19 (escrito entre
22

maio de 1932 e o primeiro mês de 1934), respectivamente.


23
GRAMSCI, 1975, p. 686, Q6, §6 (escrito entre novembro e dezembro de 1930) e p. 2077, Q19, §56 (escrito
fevereiro de 1934 e fevereiro de 1935), respectivamente.
24
No caderno 6, §104 (Giornalismo) aparece o termo “disposizione geográfica” (disposição geográfica) da Itália.
GRAMSCI, 1975, p. 777, Q6, §104 (escrito entre março e agosto de 1931)
25
GRAMSCI, 1975, p. 964, Q8, §37 (escrito em fevereiro de 1932); p. 1562, Q13, §2 (escrito entre maio de
1932 e primeiro mês de 1934), respectivamente.

228
Gramsci e seus contemporâneos

uma potência, ao qual depende de alguns fatores como extensão territorial


(a que Gramsci remete à dimensão geográfica), força econômica, militar,
entre outros. Na terceira e também na oitava e última menção do termo,
a posição geográfica é tida como um elemento de equilíbrio da influência
francesa na política italiana no período do Risorgimento italiano, uma
questão muito discutida pelo autor sardo26. Em seguida, a quarta menção,
o termo “disposição geográfica” também aparece em decorrência da falta
de interesse da população pela vida internacional e até mesmo nacional,
em especial da Itália, ao qual dispunha de uma disposição geográfica
desfavorável e da ausência de um centro político e intelectual nacional
mais engajado. Em todas essas passagens Gramsci analisa a proximidade
política com a dimensão geográfica, tendo a Itália como referência.
Já na quinta e sexta menção, Gramsci exporá de forma mais
enfática as relações internacionais. A reescrita do autor sobre tal temática
evidencia não apenas a importância da geografia, mas o papel político das
relações internacionais. Gramsci indagará:
As relações internacionais precedem ou seguem (logicamente) as relações
sociais fundamentais? Indubitavelmente seguem. Toda inovação
orgânica na estrutura modifica organicamente as relações absolutas e
relativas no campo internacional, através de suas expressões técnico-
militares. Até mesmo a posição geográfica de um estado nacional
não precede, mas segue (logicamente) as inovações estruturais,
ainda que reaja sobre elas numa certa medida (exatamente na medida
em que as superestruturas reagem sobre a estrutura, a política sobre a
economia, etc). (GRAMSCI, 2000, v.3, p. 20, Q. 13 § 2, grifo nosso).

Em diversas passagens dos cadernos carcerários, Gramsci enfatiza


o papel das relações internacionais para que se compreendam as relações
sociais no campo nacional. A essa diferenciação não se deve apenas por
uma perspectiva espacial, isto é, pelos limites territoriais, mas como existe
uma correlação entre as relações de força, traduzidas principalmente pelas
hegemonias em um espaço construído organicamente por tais relações
sociais. E, para se compreender a dimensão internacional, deve se considerar,
sobretudo a dimensão nacional, uma vez que as relações internacionais

26
O Q6, §6 e o Q19, §56 tratam-se de duas versões do mesmo texto sobre o Risorgimento italiano: texto A –
“primeira redação” e texto C – “segunda redação”, respectivamente.

229
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

resultarão das transformações orgânicas internamente. Portanto, a


posição geográfica não é determinante para as transformações orgânicas
na estrutura; ela derivará dessas transformações. Com essa passagem dos
cadernos carcerários, podemos reafirmar a hipótese defendida a respeito
da tradução crítica de Gramsci para com os conceitos da geopolítica e da
geografia.

Punti per um saggio critico sulle due storie Del Croce: d’Itália e
d’Europa (Q10, §61)

Este Caderno 10 – “Pontos para um ensaio crítico sobre as duas


histórias de Croce: da Itália e da Europa” – é o caderno mais extenso em
que aparece o termo “geopolítica”. Escrito provavelmente em maio de
1933 (FRANCIONI, 1984, p. 142-145), Gramsci tem a preocupação de
discutir o modelo de formação dos Estados modernos a partir dos escritos
de Benedetto Croce.
É verdade que conquista do poder e afirmação de um novo mundo
produtivo são indissociáveis; que a propaganda em favor de uma coisa
é também propaganda em favor da outra; e que, na realidade, somente
nessa coincidência é que reside a unidade da classe dominante, a qual é,
ao mesmo tempo, econômica e política; mas se manifesta o complexo
problema da correlação de forças internas ao país em questão, da
correlação de forças internacionais, da posição geopolítica do
determinado país. (GRAMSCI, 1999, p. 427-428; grifo nosso).27

Gramsci também entenderá que para se compreender a formação


dos Estados modernos (em especial o Risorgimento italiano), ao autor
buscará a correlação entre forças nacionais e internacionais, sobretudo entre
as classes dominantes (econômica e política). A noção espacial, conjugada à
dimensão política, portanto, perpassa a ideia do tradicionalismo geopolítico
introduzido na literatura germanófila, ao qual defendia o determinismo
geográfico sobre os assuntos do Estado.

27
O trecho tem a seguinte redação no original em italiano: “È vero che conquista del potere e affermazione di
un nuovo mondo produttivo sono inscindibili, che la propaganda per l’una cosa è anche propaganda per l’altra e
che in realtà solo in questa coincidenza risiede l’unità della classe dominante che è insieme economica e politica;
ma si presenta il problema complesso dei rapporti delle forze interne del paese dato, del rapporto delle forze
internazionali, della posizione geopolitica del paese dato.” (GRAMSCI, 1975, p. 1360, Q10, §61)

230
Gramsci e seus contemporâneos

O autor sardo tecerá sua análise crítica sobre o Risorgimento


em outros parágrafos, tal como mencionado no item anterior que
compõe a menção sobre o termo “posição geográfica”. Nessa temática, as
características políticas, sociais, econômicas e territoriais da Itália servem
como seu “laboratório” para compreender o mundo. A Itália, portanto,
seria uma microdimensão das forças sociais inseridas no mundo. Nesse
sentido, a dimensão geopolítica italiana permite compreender a política
internacional, ao qual o próprio autor afirma ser de grande importância
para o processo de unificação italiana, uma vez que para se compreender as
relações internas, devemos também mirar o desenvolvimento histórico das
relações internacionais.

Argomenti di coltura. Le grandi potenze mondiali (Q14; §11)


Nesta quarta menção do termo geopolítica, Antonio Gramsci
exporá de modo mais explícito sua crítica à visão mecanicista e determinista.
Ao analisar no Q14, §11 – seção dos cadernos miscelâneos – sobre “Temas
de cultura. As grandes potências mundiais”, Gramsci tratará sobre a
reconstrução histórico-crítica dos regimes políticos dos Estados, e terá
como foco a Constituição escrita. Para tanto, Gramsci se valerá da seguinte
perspectiva crítica:
Um estudo sério destes temas, feito com perspectiva histórica e
com métodos críticos, pode ser um dos meios mais eficazes para
combater a abstração mecanicista e o fatalismo determinista.
Como bibliografia, pode-se mencionar, por uma parte, os estudos de
geopolítica, para a descrição das forças econômico-sociais constitutivas
e suas possibilidades de desenvolvimento, e, por outra, livros como o de
Bryce sobre as democracias modernas. Mas para cada país é necessária
uma bibliografia especializada sobre a história geral, sobre historia
constitucional, sobre a história dos partidos políticos, etc. (o Japão e
os Estados Unidos me parecem os temas mais fecundos de educação
e de ampliação dos horizontes culturais) A história dos partidos e das
correntes políticas não pode ser separada da história dos grupos e das
tendências religiosas (GRAMSCI, 2000, p. 300, grifo nosso).


Escrito por volta de julho de agosto de 1932 (FRANCIONI,
1984, p. 142-145) o autor sardo busca apresentar sua crítica no que

231
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

se refere à leitura que tem como método a “abstração mecanicista e o


fatalismo determinista”. Para Gramsci a leitura determinista e mecanicista
se contrasta radicalmente com seus ritmos do pensamento, ao qual
eram considerados “orgânicos”. Giorgio Baratta afirma que Gramsci faz
referência a organicidade como um “conjunto das questões que o interessam, ao
mesmo tempo intimamente contraditório, ou seja, indicador e testemunha das
condições reais”. (BARATTA, 2004, p. 47). Para o pensamento gramsciano,
portanto, o tradicionalismo mecanicista e determinista é insuficiente para
compreender as questões que se apresentam dos países. Em uma passagem
dos Cadernos do Cárcere sobre o método, Gramsci afirmará que a pesquisa
do Leitmotiv, isto é, do ritmo do pensamento no seu conjunto deve ser mais
importante que o estudo particular e isolado (GRAMSCI, 1975 p. 419 Q4
§1). Tomando como base tal método, nesse parágrafo ao qual faz a quarta
menção sobre a geopolítica, a leitura que se faz sobre um determinado
país deve ser a partir de sua interação dos elementos que o compõe, como
por exemplo, a história constitucional, dos partidos políticos, tendências
religiosas, entre outros componentes que compreendem determinado país
– Japão e Estados Unidos, de acordo com sua ênfase no trecho sublinhado.
Portanto, os estudos sobre geopolítica na visão determinista, tal
como a do sueco Kjellen, assim como outras abordagens são combatidas
pelo autor sardo. Para Gramsci, a geopolítica deveria se conectar à descrição
das “forças econômico-sociais”, o que nessa perspectiva, trata-se de uma
nova forma de pensar o espaço constituído organicamente ao qual Gramsci
fortemente defendia. Assim, o pensador sardo ao conceber que os limites
espaciais dependem das relações sociais que lá são construídas, portanto,
refutará a ideia de que o espaço existe em si, de forma independente.
(JESSOP, 2006, p. 30-31).

Argomenti di cultura. Come studiare la storia? (Q14, §63)


Finalmente, Gramsci em sua penúltima menção28 sobre
geopolítica – escrita entre fevereiro e maio de 1933 (FRANCIONI, 1984,
p. 142-145) – discute de forma mais geral o problema apresentado na
28
Ressaltamos que a última menção do termo geopolítica foi discutida juntamente com a segunda menção, na
seção 2.2 (La posizione geopolítica dell’Itália. La possibilita dei blocchi), pois se trata de duas versões de um mesmo
texto – um, de primeira redação e outro redigido com modificações, o de segunda redação.

232
Gramsci e seus contemporâneos

passagem anterior dos cadernos miscelâneos. No Q14, §63 – “Temas de


cultura. Como estudar a história?” sua preocupação em compreender que
estudar a história é, na verdade, um problema político. Gramsci assinala
que a história “mundial”, isto é, a história europeia e seus apêndices é
um modo de interpretar os nossos interesses, nosso olhar a partir de uma
perspectiva não objetiva.
Na realidade, até agora nos interessou a história europeia, e chamamos
de “mundial” a história europeia com seus apêndices não europeus.
Porque a história nos interessa por razões ‘políticas’, não objetivas,
ainda que no sentido de científicas. Hoje talvez estes interesses se
tornem mais amplos com a filosofia da práxis, na medida em que nos
convencemos de que só o conhecimento de todo um processo histórico
pode dar conta do presente e dar uma certa verossimilhança de que
nossas previsões políticas são concretas. Mas não se devem ter ilusões
nem mesmo sobre este tema. Se na Rússia há muito interesse pelas
questões orientais, este interesse nasce da posição geopolítica da
Rússia e não de influências culturais mais universais e científicas. Devo
dizer a verdade: tanta gente não conhece a historia da Itália, mesmo na
medida em que ela explica o presente, que me parece necessário torná-
la conhecida antes de qualquer outra. Mas uma associação de política
internacional que estudasse a fundo as questões até a Conchinchina e
do Aname não me desagradaria intelectualmente: mas quantos teriam
interesse nisto? (GRAMSCI, 2014, v.5, p. 127-128, grifo nosso).

Com a ênfase no estudo da história, Gramsci retomará o conceito


de geopolítica a partir de um problema político – e, portanto a partir de uma
perspectiva orgânica. Em outras palavras, a história de um determinado
país deve ser concebida não somente pela dimensão geográfica/ espacial,
mas juntamente com a dimensão política. E tal estudo deve ser analisado
de tal forma não apenas para as grandes potências europeias, mas conhecer
os interesses políticos dos demais países em geral para que possamos de fato
compreender a história mundial em sua completude.

Considerações finais
Ao longo desse texto buscamos mapear como Gramsci traça as
diretrizes do seu pensamento, o Leitmotiv, para a questão geopolítica.
Ao compreender como a dimensão espacial sobre os temas presentes nos

233
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Cadernos do Cárcere incide sobre uma questão mais abrangente, isto é, um


problema de ordem política, Gramsci nos dá pistas sobre como interpreta
a sua nova proposição à ideia da geopolítica como “um manual para os
homens de Estado”. Não se trata apenas de uma perspectiva espacial e
geográfica ancorada nos limítrofes fronteiriços que determinam a estratégia
dos países. Nem ao menos devemos, no campo intelectual, interpretar dessa
maneira. Os “homens de Estado” devem retomar o método de estudos
a partir de um novo olhar, tal como Gramsci indica em seus cadernos
carcerários. Ao mesclar história nacional com internacional, o autor sardo
nos indica um caminho para uma nova interpretação, não determinística
e nem fatalista da história. Ao contrário, a perspectiva organicista deve
orientar o nosso olhar e também para os mesmos “homens de Estado” que
formulam políticas a partir de dimensões estanques e orgânica.
A hipótese levantada no início do texto – possibilidade de
Gramsci ter traduzido criticamente a geopolítica no âmbito de embates
pela hegemonia – se confirma, ainda de modo embrionário, por meio da
ressignificação do conceito de geopolítica. Ainda que não fosse leitor enfático
da literatura da geopolítica tradicional, Gramsci buscava compreender a
política em seu significado mais amplo, estabelecida a partir das relações
sociais. Em outras palavras, o fio condutor das relações sociais da análise
gramsciana era a política. E é pela política que tais relações, inclusive entre
Estados, se desenrolarão em um determinado espaço. Este espaço que será
palco para essas relações sociais, por sua vez, não é fruto de uma posição
geográfica determinada, mas é carregado de uma dimensão orgânica das
relações sociais, o que refuta a característica determinista e mecanicista
destas relações.
O espaço e a dimensão geográfica, portanto, assumem uma
característica que irá além de suas determinações naturais a priori. Ele
moldará, mas também será moldado por essas relações sociais, o que na
perspectiva gramsciana, assumirá importância para os rumos estabelecidos
pelos embates de força identificados nos processos de hegemonia. A luta
pela hegemonia prescinde o viés dinâmico e somente esse novo conceito de
geopolítica, tal como sua relação sinonímia com a geografia, pode garantir
esse modo de compreender a realidade que se apresenta.

234
Gramsci e seus contemporâneos

Neste texto, ainda que de modo ensaístico, podemos apontar


que o laboratório gramsciano também compreende a dimensão espacial e,
assim como a perspectiva territorial é importante para o desdobramento
das relações sociais, tais relações serão fortemente influenciadas pela
geopolítica. Em nossa análise, o nexo estabelecido entre espaço e relações
de força para Gramsci é o que garantirá esse novo conceito de geopolítica/
geografia. Gramsci, portanto, entenderá que a geopolítica é derivada
das relações sociais, dinâmica e não determinística. E nas passagens
sublinhadas nesse texto a partir de suas anotações carcerárias ao qual faz
menção à dimensão geopolítica e posição geográfica como produto das
relações sociais orgânicas, o autor sardo buscará traduzir criticamente esses
conceitos, de modo a alinhar as particularidades nacionais e internacionais
à sua concepção orgânica, dinâmica e crítica.

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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
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238
Sobre o livro

Catalogação
Telma Jaqueline Dias Silveira
Normalização e Revisão

Assessoria Técnica
Maria Rosangela de Oliveira
Capa e Diagramação
Gláucio Rogério de Morais
Produção gráfica
Giancarlo Malheiro Silva
Gláucio Rogério de Morais

Formato
16X23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Papel
Polén soft 80g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Acabamento
Grampeado e colado
Tiragem
300
Impressão e acabamento
Gráfica UNESP- Campus de Marília
Marília - SP
2017

239
Aos oitenta anos da morte de Gramsci certo é
que muitos eventos e escritos terão vindo a público
para lembrar essa importante efeméride, que, ade-
mais, coincide com o centenário da revolução russa.
O estudo e o esclarecimento de um sem números de
problemas teórico-políticos e históricos é prática
indispensável para que se possa enfrentar dramática
situação em que se encontra a humanidade. O fra-
casso da tentativa de se proceder a transição socialis-
ta no século XX, o retorno dos horríveis vultos do
fascismo, fazem obrigatório esse estudo, sem o que os
caminhos teóricos práticos da emancipação da huma-
nidade da tragédia para onde a persistência do capi-
talismo está a levar, será impossível.
O livro que o leitor ora manuseia é uma con-
tribuição muito importante para o conhecimento da
obra de Gramsci. Certo que todo autor dialoga e luta
no tempo em que vive. Alguns autores mais do que
outros só podem ser mais bem conhecidos se tam-
bém conhecermos o ambiente cultural e intelectual
no qual travou suas batalhas. Gramsci é um desses
autores que só podem ser bem conhecido se souber-
mos de seus interlocutores, mesmo porque foram,
em geral, interlocutores numerosos e de alto nível
intelectual e de reconhecida incidência cultural. A
batalha das ideias faz parte da complexa luta pela
construção de uma nova hegemonia que venha a
consubstanciar a derrota do capital e a salvação da
humanidade frente o avanço da aparentemente ine-
xorável da barbárie. Com esse livro, temos a oportu-
nidade de conhecermos alguns desses expressivos
interlocutores de Gramsci.

Prof. Dr. Marcos Del Roio

ISBN 978-85-7983-880-4

Processo FAPESP Nº. 2017/070697

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