Silvia Bleichmar

Silvia Bleichmar
NAS ORIGENS NAS ORIGENS
DO SUJEITO PSÍQUICO DO SUJEITO PSÍQUICO
DO MITO À HISTÓRIA
DO MITO À HISTÓRIA
Silvia Bleichmar é psicanalista, Doutora em Psicanálise
pela Universidade Paris VII- Sorbonne, e fundadora do
Colégio de Altos Estudos de Buenos Aires.
A partir da hipótese freudiana que o recalcamento
originário funda as barrerras entre os sistemas psíquicos, e
reconhecendo que o inconsciente não está desde as
origens, Silvia Bleichmar dá à função materna um lugar
na estruturação da sexualidade da criança. Ao afirmar que
"os tempos míticos não são construções, senão
movimentos reais de estruturação do sujeito psíquico",
define novos parâmetros para a prática psicanalítica desde
uma perspectiva que propõe terminar de constituir um
aparelho psíquico em estruturação.
O rigor científico com que busca a relação
entre a teoria e a técnica em cada uma
das observações clínicas que apresenta,
situa este livro no centro
do questionamento
psicanalítico atual,
testemunhando um verdadeiro
tr

· qualidade
de vida
AS ORIGEN� DO SUJEIT
AATES O PSIQUICQ DO M -

M:DK"AS ll9/0.LHI iD6611B000 9?/8512081

 BIBLIOTECA ARTES MÉDICAS
Psicanálise, Psicologia,
l')sicopedagogla. Psiquiatria
TÍTULOS EDITADOS
• Aberastury, A: Adolescéncla
• Aberastury, A.: Psicanálise da Crlanç<�- Teor/.1 e Técnlc.t

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Aberastury, A.: A Percepç.io da Morte n.1 Crlanç.t e Outros Escr/(os
Aberastury, A: A Crldnça e Seus jogos
Aberastury &.. Knobel: Adolescência Normal
Aberastury a.. Salas: A Pdtemldade - Um Enfoque Ps/canaHc/w
Ackerman, N.: Dl.1gnóstko e Tratamento dru Re/.lções Familiares
Almard, Paule: A Linguagem da Criança
NASO s
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Ajur!<�guerra 8... Marcelll: Manual de Ps/copatolog/a lnf,mtll
Ajuriaguerra, J.: A Dlslexla em Questão
A]uriaguerra, J.: A Escrita Infantil- Evolução e Dlflcu/d,lde
Albuquerque, T. Uns: Psicologia lt Educação
Afencar, Eunh.:e: Psicologia dd Crlddvldade
Alexa.nder, Franz.Med/clna Pslcossom.itica
Al!lende !'... Condemarin: A Leltt.Jr.:l
Andolfl, Maur!zlo: Por Trás da MJsc.:�ra Fi1IT1Hiar
DO SUJEITO SÍQUICO
Andolfl 1!... Angelo: Tempo e Mito em Psicoterapia Familiar
DO MITO À HISTÓRIA
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• Aruleu, Dldler: A Auto-Andl/se de Freud e a De.scobem da Pslc.l-
nJ//.se
• Aucouturler e colaboradores: A Pr<it/c.l Ps/comotora
• Aucouturler 1!.. Llplerre: Bruno- Pslcomotrlcldade e Terapia
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� Bergeret: Personalidade Normal e P.1to/óg/Cd.
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" Benelhelm, Bruno:Sobrev/véncl.l
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• Bleger, José: Psicologia da Conduta
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: ��:����:.t�,':: ·fjlf!';t:tl�r:;� t's��<tJ�!� �� ff i��r/a
• Blelchmar, Hugo: Depre.ss.Jo: Um Estudo Pslcanalftlco
• Blelchmar, Hugo: lntroduçJ.o Estudo das Perver5ões
.:10
• Blelchmar, Hugo: Narcisismo
r u fanra sma
:• :� Ps�c ��� �Pe�i�1!
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Bossuet, O Compurador na Escola - O Sistema Logo
• Bowlby, john: Uma Base Segura
• Brazelton: A Dln.ímh:a do Bebe
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: ������. LJ�1�,0;;:;��r=;��o �������co da 1: Infância
• Bryant 1!... Bradley: Problemas de Leitura na Crli!nÇ.:l
• Cabral, Lan:ta 8.. Tejera- fducar VIvendo- O Corpo e o Grupo
na Escola
• Calklns, lucy: A Arte de Ensinar a Escrever
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• Condemarln, Chadwlck 8.. Mlllc!c: Maturidade Escolar
• Costa 1!... K.atz: Dlnãmlca das Relações Conjugais
R /
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Curtlss, Sandra: A Alegria do Movimento na Pré-Escola
• Debray, Ros!ne: B�.siMãe.s em Revolta
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a em Dlnãmlca
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Dolto, françolse: A Dificuldade de VIver
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• Elzlrlk: Pslcoteri!pla de Ortentat;.áo Analftlca
" Elkaim, Mony 8.. Cals.: Formações e Práticas em Terapli! Familiar
• Enderle, Carmen: P$lcologl.l da Adolescência
• Enderle, Carmen: Ps/cologld do Desenvolvimento R
" E.tchegoyen, Horácio: fundamentos da Técnica Psicanalítica
• fendrlck, Silvia: A Ficção das Origens
• Fernandes, Alicia: A /nteJJgéncla Aprisionada 0
• ferreiro !l.. Palaclo: Novas Perspectivas Sobre os Processos de
Leitura e Escrita
• ferreiro &.. Teberosk!: Ps/cogênese da Lingua Escrita "f
• Fogel 1!... Cals.: Pslcologl.l Masculina
Gambatoff, Matlna: Utopia da Fidelidade
articu\ar J7
•
• Garma, Angel: A Psicanálise- Teoria, Clínica e Técnica
• Gibello, Bemard: A Crianç:.:t com Distúrbios de Inteligência
• Glovacch!nl, P.: Roteiro à Leitura de Freud w Bib\io
teca P
• Golbett, Clarlssa: A Evolução Pslcollngüístlca e Suas Implicações
na AlfabetLzaç.áo
• Goldberg: Descomplicando .1 Psiquiatria
" Goodrlch et ai.: Terapia Feminista da Fa.m!11.1 '
• Goodwln, Guz.e: Diagnóstico da Doença Ment.1/
• Hararl, Roberto: Discorrer a Ps/Cd.nállse
-� Herren &.. Herren: A Esrimulaç.áo Pslcomotora Precoce
• Hlnshelwood: Dicionário do Pen.s.unento Klein/ano
: Hornste!n, L: Cura Pslc.lnalft/c.:l e Sublimação R
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-•· ·Jerusallnsky, A.: Ps/Cd.nál/se da Autismo
• -J.eruSdllnsky. A.: PSICd.nJI/se e Desenvolvimento Infantil
 Silvia Bleichmar

NASORIGE
DO UJEITO PSÍQUICO
DO MITO À HISTÓRIA

2ª Edição
Revista e aumentada
B646n Bleichmar, Silvia
Nas origens do Sujeito Psíquico: Do Mito à História f Silvia
Bleichmar; Trad. Kenia M. Ballvé Behr - Porto Alegre: Artes
Médicas, 1993

l. Psicanálise. I. Título

CDU 159.964.2

Bibliotecária Responsável: Mônica Ballejo Canto- CRB 10/1023 Tradução e apresentação à edição brasileira:
KENIA M. BALLVÉ BEHR
Psicanalista. Diretora do Núcleo de Estudos Sigmund Freud, PoA.

PORTO ALEGRE/ 1993

 Obra originalmente publicada em espanhol sob o título
En los Orígenes del Sujeto Psíquico: Del Mito a la História
por Amorrortu Editores
Copyrighl Silvia Bleichmar, 1984

Capa:
Joaquim da Fonseca

Supervisão editorial:
Delmar Paülsen

Composição e arte final:

GRAFLINE -Assessoria Gráfica e Editorial Ltda.
Fone: (051) 341-1100

Para Carlos,
vigia da noite e da esperança

Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à

EDITORA ARTES MÉDICAS SUL LTDA.
Av. Jerônimo de Omelas, 670 - Fones (051) 330-3444 e 331-8244
Fax: (051) 330-2378 - 90040-340 Porto Alegre, RS, Brasil

LOJA-CENTRO
Rua General Vitorino, 277 - Fone: (051) 225-8143
90020-171 Porto Alegre, RS, Brasil

IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
 Apresentação à edição brasileira
Kenia M. BaUvé Behr

Há, evidentemente, no movimento psicanalítico atual, divergências

teóricas e clínicas importantes entre diferentes escolas, e a tentativa de
alguns em insistir que se trata apenas de diferenças semânticas significa a
impossibilidade de identificar discursos que são não apenas divergentes
como contraditórios dentro da psicanálise. Diferenças não apenas entre
escolas, como também de muitas delas em relação aos' conceitos básicos que
sustentam a obra freudiana. A busca de uma unidade no pensamento
psicanalítico é já totalmente inútil em razão dos deslizamentos teóricos e
suas conseqüências clínicas que não mais permitem a concretização deste
ideal.
Esta realidade pode determinar às vezes uma tendência a um encerra­
menta em um modelo teórico que "dê conta" de todas as respostas, como um
modo de proteção a todos os questionamentos que inevitavelmente surgem
para aqueles que estão comprometidos com a tarefa analítica. Essa atitude
determina uma renúncia a um espaço do pensar que a prática constante­
mente nos impõe e que tem uma relação estreita com o vínculo que se
estabelece entre o saber e nossa capacidade de desejar. É o desejo, que surge
nas origens da vida, que nos remete a uma interrogação constante sobre a
psicanálise como um método que tem acesso ao saber. Desejo e saber que
nos movem na busca de respostas para os enigmas que a teoria e a clínica
psicanalítica nos laçam quotidianamente. Criatividade e possibilidade de
pensar a partir de um espaço que se abre além do próprio mundo interior.
Lugar desde onde pode surgir a liberdade de falar e de escrever, assim como

vii
 viii I Apresentação à Edição Brasileira
de ouvir e ler. Não só é necessário que se criem espaços internos para que
ocorra o pensar, como também há determinadas condições que permitem
poder ouvir e ler a transmissão dos outros.
A leitura muda quando podemos ler o que está escrito. Leva a um
confronto entre o conhecido e o desconhecido. Essa outra perspectiva que
surge daí certamente inquieta, pode abalar convicções vigentes até esse
momento. Pode parecer arriscado e doloroso quando tememos que nossa
angústia fuja ao dominio de nossa liberdade. No entanto, ou nos expomos
a essa experiência ou ficaremos encerrados em um mundo narcisista,
defendendo-nos da angústia que o desconhecido nos traz, impedidos de
pensar, aderidos a certezas ilusórias diante de uma nova realidade proposta
neste fmal de século. Um livro, como diz Bachelard, possibilita uma técnica
de redução da angústia: "Um livro angustiante oferece aos angustiados uma
homeopatia da angústia. Mas essa homeopatia age sobretudo numa leitura
meditada, na leitura valorizada pelo interesse... e quando (o leitor) se toma
bastante consciente da estética da angústia, está bem perto de descobrir-lhe
a facticidade. Porque a angústia é factícia: somos feitos para respirar
livremente ". (1)
Este livro, "Nas origens do sujeito psíquico", que tenho o prazer de
apresentar á Edição Brasileira, é um livro angustiante? Certamente que é.
Diria também, enfatizando Jean Laplanche, que é um livro importante, não
apenas pelas idéias que condensa, como pelo modo que se insere na
psicanálise atual.
Na esteira das intensas contradições que se estabeleceram entre os
postulados kleinianos para o atendimento de crianças e a proposta surgida
nos idos dos anos 70 que fazia do campo analítico exclusivamente o âmbito
da linguagem, surgia a necessidade de um novo posicionamento técnico a
partir de uma reavaliação das diferentes propostas teoricamente. Nesse
contexto se insere o resultado do processo de investigação realizado por
Silvia Bleichmar e que é apresentado neste livro. Inspirada pela realidade
existente e movida pelos questionamentos constantes que sua prática lhe
apresentava, a autora partiu da hipótese freudiana de que o recalcamento
originário funda as barreiras entre os sistemas inconsciente e pré-incons­
ciente/ consciente para definir seu posicionamento. Ressituou o recalcamento
originário na constituição do aparelho psíquico, podendo, desta forma,
propor a concepção de um "sujeito em estruturação" e redefinir o conceito
de neurose na infância.
Ao reconhecer que o inconsciente não está desde as origens, Silvia
Bleichmar abre a possibilidade de pensar a prática psicanalítica com
crianças desde uma perspectiva que propõe terminar de constituir um
aparelho psíquico em estruturação. Desta forma, voltando a Freud e
retrabalhando suas idéias, define novos parâmetros para a psicanálise
infantil.
Apresentação à Edição Brasileira I ix
Poder-se-ia identificar este livro, então, como um livro que está
destinado apenas a psicanalistas que se ocupam com a infãncia? Podemos
afirmar que, evidentemente, não. E por várias razões:
Quem sabe, a primeira delas, fica contundentemente esclarecida nas
palavras de Bachelard: "Por alguns de seus traços, a infância dura a vida
inteira. É ela que vem animar amplos setores da vida adulta. Primeiro, a
infância nunca abandona as suas moradas noturnas. Muitas vezes uma
criança vem velar o nosso sono. Mas também na vida desperta, quando o
devaneio trabalha sobre a nossa história, a infância vive em nós e traz o seu
beneficio. É preciso viver, por vezes é muito bom viver com a criança que
fomos. Isso nos dá uma consciência de raíz. Toda a árvore do ser que
reconforta. (...) ... dramas da infância... esses dramas não se apagam, podem
renascer, querem renascer. (...) ...esse tempo de el�gia intima, esse tempo
do pesar que perdura é uma realidade psicológica. E ele que é o tempo que
dura... uma metáfora do inolvidável.(2)
E o que é o trabalho do psicanalista senão tentar ressimbolizar a
infãncia maltratada que oprime o mundo interno do adulto e que ressurge
em um outro espaço e em um tempo diferente do tempo em que foi vivida?
A fala do filósofo refere o tema das raízes. O título do livro ressalta a
questão das "origens", origens do sujeito psíquico. O primeiro que me ocorre
ao pensar nas origens são as diversas concepções que existem sobre o início
do mundo. Por exemplo, na mitologia grega, no princípio havia o Caos,
"personificação do vazio primordial, anterior à criação, quando a ordem
alndanão havia sido imposta aos elementos do mundo''. Na tradição chinesa
"o caos é o espaçamento homogêneo, anterior à divisão em quatro horizon­
tes, que equivale à criação do mundo. Esta divisão marca a passagem a o
diferenciado e a possibilidade de orientação, constituindo-se n a base de toda
a organização do cosmo".(3) E assim teríamos uma série de concepções
diferentes sobre os "inícios", embora a maioria delas assinale uma situação
de caos inicial, um vazio primordial e a passagem do indiferenciado a um
diferenciado. As palavras poderiam ser quase as mesmas que a psicanálise
toma para falar das origens de um sujeito.
No entanto, apesar disso e embora o mito nos conte a história do mundo
e dos homens, entre tomar uma verdade universal e entender a constituição
do sujeito psíquico existe uma grande distância, pois para se reduzir o
universal no singular há que se fazer alterações profundas. Posso dizer,
então, neste sentido, que esse livro inicia onde termina o mito, porque a
história, ao invés do mito, vai assumir uma importância fundamental nas
origens do aparelho psíquico, desde a singularidade de cada um. Posso
afirmar que o trabalho de Silvia Bleichmar, a partir de uma vertente da obra
freudiana, se dirige no sentido de filtrar o mito para desvendar a história,
marcando um encontro com a figura materna, dando-lhe um lugar na
estruturação da sexualidade da criança - não apenas na instalação da
 x I Apresentação à Edição Brasileira
desordem pulsíonal inicial, como em um trabalho de organização desse caos
que constituí o primeiro tempo da sexualidade no ser humano.
Quando aborda a questão das origens do aparelho psíquico, no
Capítulo 4, afirma que na psicanálise de crianças o psicanalista se verá
confrontado com tempos avant-clivage que poderão ser considerados em um
verdadeiro processo histórico de constituição do sujeito psíquico. Propõe a
hístorícídade do recalcamento originário e seu caráter estruturante, consi­
derando, no entanto, a realidade historicamente constituída como diferente
dos constituíntes que a determinam.
Embora n a clínica (;üm pacientes neuróticos adultos o analista não
será testemunho destes momentos iniciais estruturantes do sujeito psíquico
-na medida em que neste paciente existe um aparelho psíquico clívado, um
inconsciente e um ego já constituídos-, o fato de acreditar em um processo
histórico defme um posicionamento técnico diferente daquele que seria
adotado desde uma perspectiva fitogenética. O modo de compreender a
constituição do aparelho psíquico deve determinar os fundamentos que
regem a prática de todo psicanalista. Segunda razão pela qual afirmo que
este livro não dirige-se apenas a psicanalistas de crianças. E mais, o
processo de investigação de Silvia Bleichmar abre a possibilidade de serem
repensados aspectos da metapsicología que determinam novas perspectivas
na prática psicanalítica de adultos, em que o que predomina não são os
determinantes neuróticos da vida psíquica.
Na verdade, o rigor com que Sílvia Bleíchmar busca a relação entre a
metapsicología e a clínica, definindo a importância fundamental da vinculação
entre a teoria e a técnica é o que se observa na leitura de cada um dos
capítulos deste livro. Priorizando fundamentalmente os conceitos que
alicerçam o pensamento de Freud, propõe uma coerência entre o conheci­
mento e a transformação do objeto, que seja o reflexo da posição adotada pelo
psicanalista em relação a esses conceitos básicos, porque acredita que esta
postura terá conseqüências fundamentais ao agir clínico e, conseqüente­
mente, em seu posicionamento ético em relação àquele a quem analisa.
Condição ética e científica que, para ela, só existe a partir de um não
dogmatismo, em que os paradigmas teóricos adotados devem ser constan­
temente repensados e submetidos à prova clínica.
Este livro- "Nas origens do sujeito psíquico"- reflete, neste sentido,
seu modo de pensar e de agir como psicanalista. Sua afeição pelos conceitos
bem nomeados determina um interesse renovado diante de qualquer
sutileza que questione verdades aparentemente bem estruturadas. Assim,
evidencia uma exigência constante de pensar e de precisar a ação frente aos
enigmas aos quais se vê enfrentada no seu agir clinico. Diria que é uma
exigência que, muitas vezes, torna-se leve, na medida em que se enlaça com
um pensamento naturalmente inquieto, curioso e sempre interrogante, que
dá passagem a um entusiasmo por desvendar cada sintoma, cada silêncio,
Apresentação à Edição Brasileira I xi
cada manifestação de angústia, cada fato novo que surge a cada instante no
espaço que compartilha com aqueles a quem analisa. Ao deixar-se falar
livremente, transmite em uma linguagem sonora e precisa aquilo que pensa
e observa. E se observa e compreende seus "pequenos" pacientes, é porque
ao lado da objetividade de uma arqueóloga da alma, surge uma psicanalista
que é capaz de reconhecer e de amar o núcleo de infância sempre vivo dentro
de cada um de nós.
Como um modo de apresentar brevemente o conteúdo deste livro, diria
que o primeiro capítulo, um dos últimos a serem escritos, é o es ��ço onde
Silvia Bleíchmar aborda mais especificamente o tema da pratica com
crianças. Denuncia a crise da clínica psicanalítica, onde o que observa são
ações cujos princípios não se justificam nos desenvolvimentos teóricos que
parecem dar-lhes suporte. Propõe repensar os postulados teóricos que
regem a clínica, para de fin� , desta maneira, novos modos de o�e: ar na
psicanálise de crianças. A esteira principal de onde parte: a reVIsao os �
movimentos fundantes do aparelho psíquico, na busca de novas soluçoes
para os transtornos graves precoces. Desde modelos freudianos, trabalha os
indícios de falhas estruturais que podem ser observadas no trabalho com
crianças que apresentam severos transtornos da linguagem, dos processos
lógicos e das determinações espaço-temporais. Conclui pela necessidade de
um novo ordenamento, recuperando descobertas efetuadas pelo próprio
Freud, "buscando, por baixo das linhas manifestadas abertas, aquelas
outras que se enlaçam dando conta de um entramado que não fora
oficialmente proposto, e que, ínclusive, entra em contradição com outras
·
asseverações do próprio texto", conforme diz.
No Capítulo 2, a partir do estudo do núcleo patógeno e da formação d e
sintomas na infância, questiona o conceito de "neurose infantil", propondo
que seria mais adequado falar em conflitos neuróticos infantis, na medi a
_
�
em que a primeira infância pressupõe um sujeito em estruturaçao, CUJO
núcleo patógeno deve ser precisado desde a defmíção do mome �to em q_ue
se encontra o processo de constituição do aparelho psíquico. Propoe tambem
neste capítulo, tema que retoma sempre, mas mais exaustivamente nos
Capítulos 8 e 9 - onde se discute a questão da simbiose, do narcisi�mo �
da dupla função materna: a mãe que sexualiza o filho mas que tambem da
a ele uma imagem de si constitutiva do ego -, o caráter estruturante da
relação da criança com o outro, situando a estruturação da tópica psíquica
no marco de uma tópica intersubjetiva, ressaltando, no entanto, que a
intersubjetividade não é suficiente para explicar o conflito psíquico.
No capítulo que dedica à constituição da ínteligência, questiona
criticamente o fato de ser atribuído ao inconsciente a mesma realidade que
é atribuída à linguagem. Defende a idéia de que "o inconsciente é uma
estrutura radicalmente diferente do pré-consciente/ consciente, cuja carac­
terística é a possibilidade de ser signíficada na medida em que as representa-
xii I Apresentação à Edição Brasileira Apresentação à Edição Brasileira I xiii

ções-coisa se conectam com as representações-palavra." Em relação aos A apresentação deste livro implica, para mim, um comprometimento
chamados transtornos da linguagem ou transtornos de aprendizagem na que está além da ação formal de um leitor atento de um livro, que tem como
infãncia diz que, na maioria das vezes, são conseqüência das falhas da objetivo falar do valor da obra. Minhas palavras refletem o que tenho podido
constituição do recalcamento originário e que o estudo da divisão entre os aprender com Silvia Bleichmar ao longo destes últimos anos, não apenas no
sistemas psíquicos permite compreender a constituição da lógica e do juízo. que diz respeito à precisão que me ensinou amar no teórico, como em um
Atribui também ao déficit na constituição do recalcamento originário posicionamento ético diante da psicanálise, desde uma postura de rigor
algumas dificuldades que têm relação com alterações da memória. critico e de respeito em relação as diferenças do pensar. No entanto, além
No capítulo em que analisa as frases das crianças, propõe que o vazio mesmo de meu agradecimento, busquei com cuidado cada palavra que
do pronome deve ser ocupado pelo sujeito imaginariamente investido de pudesse dar ao leitor a dimensão da importãncia do conteúdo deste livro
atributos, única forma du discurso se constituir como enunciado. Segundo para a psicanálise atual. A obra está aí para justificar meus comentários.
pensa, as falhas na discriminação do discurso são uma conseqüência do Pois bem... entrego a Bachelard o encerramento desta apresentação:
"Mas não basta receber, é preciso acolher. É preciso ... "assimilar". Dividam
déficit na constituição do sujeito, na diferenciação entre os dois sistemas
cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas forem necessárias
psíquicos e no funcionamento do processo secundário. Desta forma,
para melhor resolvê-las. Sim, mastiguem bem, bebam em pequenos goles,
também estabelece uma relação entre os movimentos estruturantes do
saboreiem verso por verso os poemas. Todos esses preceitos são belos e
aparelho psíquico e a constituição da linguagem na criança.
bons. Mas um princípio os comanda: Antes de mais nada, é necessário um
Quando revisa as questões relacionadas com o campo das chamadas
desejo de comer, de beber e de ler. É preciso desejar muito ler, ler maís, ler
psicoses infantis, diz Silvia Bleichmar: "Construir um mapa sobre a
sempre."(4)
geografia existente não implica o mesmo esforço nem a mesma desesperação
a que o analista de autistas se vê submetido quando se encontra com o
deserto carente de acidentes geográficos. Meu paciente era um terreno
Notas de referência
selvagem, no qual Deus havia deixado cair ao azar uma montanha, um rio,
um vulcão, às vezes inclusive negligentemente no mesmo lugar, mas onde l. Gaston Bachelard. ·A prática do devaneio". Martins Fontes, São Paulo, 1988, p. 1 5.
os objetos habitavam e a presença de esboços de angústia indicavam a 2. lbid., p. 20, 2 1 .
vigência de precipícios antecipatórios de um psiquismo normal." A partir de 3 . Junito de Souza Brandão. Mitologia grega, Voi. I . Editora Vozes Ltda. Petrópolis. Rio
um material clínico, mostra a possibilidade de constituição de urn psiquismo de Janeiro, 1 986, p. 184
4. Gaston Bachelard, op. cit., p. 26.
no processo analitico, assinalando os momentos iniciais do tratamento em
que se observa o desconhecimento total do analista por parte da criança,
mostrando os primeiros episódios de transferência negativa e a importãncia
do "não" do analista como estruturante do psiquismo, assim como o início
dos primeiros sintomas em sentido psicanalitico propriamente dito-enfim,
o recorrido para uma criança chegar a ser um sujeito humano.
No último capítulo de seu livro, Silvia Bleichmar aborda a questão da
constituição sexual masculina, discutindo o tipo de identificação que o
menino deve realizar antes do sepultamento do Édipo e o movimento que vai
desde a captura no mundo materno até o movimento em que o menino se
apropria dos traços sexuados do pai. Parte do princípio que o menino se
apropria dos traços sexuados do pai. Parte do princípio que, paradoxalmen­
te, a homossexualidade - fantasiada ou atuada - é constitutiva da
passividade dos primeiros anos em relação à mãe, o menino deve enfrentar
a contradição de incorporar o atributo da atividade genital masculina ao
mesmo tempo que recusar-se a si mesmo o desejo homossexual que seria
então reativado.
 Sumário

Apresentação à edição brasileira

Kenía M. Ballué Behr ...................................................... vii

Prólogo
Jean Laptanche . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . .. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 1

Palavras preliminares . . . . .. . . .. . . .. . . . . . . .. .. . . .. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Impasses e aberturas -No tratamento dos

1 transtornos graves precoces ................................. .. 9

O conceito de neurose na infância a partir do

2 recalcamento originário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . ..... . . 20

Notas para a abordagem da constituição da

3 inteligência em psicanálise .................................... . 41

4 Mito o u história nas origens d o aparelho psíquico .......... . 58

 76
5 Notas sobre a memória e a curiosidade intelectual · · · ·
· · · · · · ·

93
6 Frases das crianças, estrutura do aparelho psíquico ........

os na constituição
Transtornos da linguagem: transtorn
7 do sujeito psíquico . . .. .
.. . . . . . ......
........ .. . . . .... . . . . . ......
.. · 1 15

Relações entre o recalcamento originário

8 e o princípio de realidade ....................
.................. .. 141
Prólogo
Do !ádo da mãe 165
9 .............. .............................................. ·
Jean Laplanche

ulina 185
1Q Paradoxos da constituição sexual masc
.................. ·

Conclusões .................. . ........ · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · ·

196 Eis aqui um livro importante; entendamos essas palavras injetando, no
termo "importância", a dupla dimensão presente no alemão Bedeutw1g e n o
inglês significance: o que constitui seu valor não ê apenas o peso das idêias
e da argumentação interna; tambêm a forma em que se inscreve, em que
"toma sentido" em um contexto geográfico e histórico: o da psicanálise
mundial, hoje. O lugar ê o Mêxico, aberto por sualocaliz'ação e pelos destinos
de uma conjuntura histórica, aos ventos do Norte, do Sul e do Leste. O tempo:
o do inventário por fazer e da herança por receber de três grandes
dogmatismos em vias de desaparecimento: Ego-psychology, kleinianismo e
lacanismo. Não pelo prazer de destruir revelando as debilidades e aportas
dos sistemas, mas tambêm não no afã de refazer um edifício eclêtico, nem
na pretensão de acampar tiritando sobre as ruínas de toda a teoria,
envolvidos na delgada tela remendada e cheia ele buracos da "clínica". Vir
depois de outros não ê nem uma: fonte de riqueza nem uma maldição, mas
pode ser um privilêgio se se sabe como situar-se em relação a eles, na posição
precisa, sígnificatiua, que o habilite a fazer trabalhar suas propostas, e ainda
mais parajazê-1as trabalhar novan1ente.
Trabajo de1 psicoaná1isis ê o título da revista fundada por Silvia
Bleichmar, e ê a máxima do presente volume; trazer de volta as grandes
interrogações que nos foram legadas por Freud, já que os conceitos que ele
f01jou são, na realidade, transmitidos no movimento psicanalítico como um
conjunto de interrogações, de enigmas ou, segundo o termo que define a
própria puisão, como "exigências de trabalho".

1
2 I Prólogo
Que o vento do Leste, aquele que sopra principalmente da França, seja
dominante nesta impulsão a questionar, a problematizar e a elaborar é, sem
dúvida, uma das razões que levou Silvia Bleichmar a pedir-me para
acompanhá-la e por á prova da discussão um itinerário já firmemente
assegurado. Que este texto tenha podido - em sua forma de série de
capítulos, certamente complementários, mas mais envolvidos em espiral
que cimentados em uma demonstração - encontrar sua consagração em
um doutorado em psicanálise, mostra que a Universidade segue sendo um
lugar privilegiado para um questionamento autêntico, sem conclusões pré­
concebidas, que une o rigor sem concessões de seu itinerário à prudência
frente a toda clausura apressada.
O lugar importante reservado às observações de casos, mas com
participação não menos ampla da discussão meta psicológica, defmem esta
obra. Não como exterioridade recíproca da"teoria" e da "clinica", senão como
um permanente voltar da prática sobre sua própria experiência: uma
experiência particularmente fecunda em Silvia Bleichmar, pela riqueza e
pela variedade de seu exercício de psicanalista, mas sobretudo pelo aspecto
pessoal, reflexivo, e como o expressa um termo que merece melhor sorte do
que às vezes lhe é dado, "comprometido". Porque não encontramos aqui as
confissões de "contratransferência", tais como "o que meu paciente me disse
produziu-me algo em algum lugar", que estão em vias de converter-se no
cartão de visitas (ou cartão de crédito?) melhor recebido em certos círculos.
Simplesmente, uma presença atenta, vigilante, ao que, no "fazer" e no"dizer"
cotidianos do psicanalista, sobrepassa, transborda suas intenções ajusta­
das. "Quem sou eu para ter dito ou ter feito isto, para ter-me proposto
imprimir tal ou qual direção ás coisas? E qual é a teoria latente (acaso
inconsciente) que está na base de certa intervenção que me surpreende e que
me destina aos efeitos do apres-coup?" Em suma, é sob a égide da práxis, do
ato analítico, que se realiza a tão desejada aliança teorético- clínica. Mas com
a condição de não esquecer que a prática psicanalítica, por sua vez, não é
um "fazer" manipulador, senão um dizer simbolizante, o que a assemelha,
embora em nível diferente, á própria teorização.
Esta ubiqüidade da teoria nos explica que questões aparentemente
abstratas, mesmo filosóficas, se tomem urgent�s. torturantes, quando se
trata de orientar-se em uma cura psicanalítica. E o caso de duas interroga­
ções, uma ligada à outra, que recorrem este livro: a relação entre gênese e
estrutura e o estatuto do recalcamento originário.
Avalia-se mal a comoção- outros diriam: a subversão- introduzida
no freudismo pelo estruturalismo lacaniano. Porque a psicanálise, em sua
origem freudiana, quer ser antes de tudo descoberta e reconstrução de uma
gênese histórica: a do ser humano, de seus conflitos e de sua neurose. Que
a história psicanalítica se desenvolva em uma temporalidade muito particu­
lar, destinada ao apres-coup e referida à perenidade dos fantasmas incons-
Prólogo I 3
cientes, não modifica em nada o caráter concreto, datável dos acontecimen­
tos (exteriores ou psíquicos) que o método propõe-se a exumar. Pois bem, o
lacanismo, remetendo a história contingente do individuo (o imaginário) a
uma intemporalidade ao mesmo tempo transindividual e constituinte (o
simbólico), entrega toda a teoria a uma revisão dilacerante, aonde as noções
de cronologia, de evolução e mesmo de trauma são consideradas outros
tantos veículos de falsas questões. Na prática, para dizer a verdade, essa
comoção é menos sensível, ao menos quando se trata da cura de adultos.
Porque, de ct;rto modo, não traz grandes conseqüências o fato que o
complexo de Edipo ou o de castração, revelado ou reconstruído em sua
universalidade, seja um apriori reitor de toda humanização ou deva ser
situado efetivamente no passado histórico de cada individuo. O "em outro
tempo e ontem não mais" da infãncia e o intemporal do simbólico têm que
ser reconstruídos, um e outro, pelo método interpretativo, e o juízo de
realidade histórica cede passo, na cura, à restituição da realidade psíquica
em seus plenos direitos. Dir-se-á, também, queFreud estendeu mais de uma
vez a mão, frente às aporias da reconstrução genética, a sua posterioridade
estruturalista, com conceitos como "fantasma originário" ou ainda "mito
cientillco".
Para a psicanálise de crianças, em troca, a alternativa entre geneticismo
e estruturalismo é decisiva na prática. QueFreud, em um momento de genial
temeridade, proclame ao pequeno Hans que, desde toda a eternidade, ele
sabia "que amaria de tal maneira sua mãe que estaria forçado a ter medo de
seu pai", deixa-nos, depois de um momento de suspensão, com mais
perguntas que respostas: que faz Freud frente a uma situação edípica tão
manifestamente trivial, senão injetar, como por força, a "Lei"? E para que
perguntar-se como se constrói a estrutura psíquica da criança, seafirmamos
que a estrutura fundamental transcende, rege, predeterrnina toda peripécia
individual e circunstancial? Na década de 1970, quando se desenvolve a
interrogação de Silvia Bleichmar, a tese estruturalista dava lugar inclusive
a excessos teoréticos-práticos desconcertantes: a criança ficava como
desapossada de sua neurose ou de sua psicose em beneficio da rede
relaciona! preexistente a seu vir-a-ser e à sua própria existência. Mas e m
virtude d e u m curioso arrependimento, a estrutura patógena não emigrava
ao céu das idéias: recaía, concretamente, na configuração psíquica dos pais
e, singularmente, da mãe, convertida em responsável por todos os males.
Periodo talvez superado, em que a criança ou o psicótico eram considerados
puro sintoma doEdipo parenta!. Pois bem, precisamente, um trabalho como
o deSilviaBleichmar, contribui de modo decisivo para esta superação, sem
abandonar nem a preocupação pela gênese, nem a referência indispensável
a estruturas preexistentes ao individuo particular. O leitor verá com que
atenção, em cada um dos casos clínicos apresentados, é mantida a
discriminação entre "o que se encontra na estrutura no momento em que o
4 I Prólogo Prólogo I 5
sujeito se insere nela e as condições de apreensão dos elementos desta por apres-coup, que não apenas põe em jogo a instância do ego senão a do
parte do sujeito". Ingresso na estrutura, portanto; ou também, como superego, em uma constelação edípica consumada.
preferimos dizer, no universo de significância dos adultos, mas com essa Cada uma das observações apresentadas propõe uma figura singular
cláusula suplem entária (no que Silvia Bleichmar quis seguir nosso pensa­ com referência a este eixo principal; convida o leitor, analista, a acompanhar
mento): que entre a estrutura preexistente (dos adultos) e a estrutura Silvia Bleichmar, a dialogar- até a controvérsia- mentalmente com ela,
terminal (do psiquismo da criança) se intercala um processo complexo de para verificar as hipóteses que propõe e as opções terapêuticas (dispositivo
"metábola", que não permite em absoluto descobrir uma homotetia entre as da cura, intervenções, interpretações) que delas derivam. O leitor se sentirá
duas escrituras; um processo cujo resto, o não-metabolizado, é precisamen­ sacudido pela aliança de entusiasmo, de não prevenção mas, ao mesmo
te o inconsciente. tempo, de sagacidade que anima esta prática teorético-clínica . Uma prática
Com o nascim ento do inconsciente, estamos no tema central do livro: que se situa no próprio centro do questionamento psicanalítico contempo­
o "recalcamento originário". Um termo, um conceito freudiano que ficou à râneo e que testemunha que este não está destinado, apesar de certas
espera, como hipótese indispensável para compreender todo recalcamento: aparências, nem à cacofonia, nem à desenvoltura "poética", nem à repetição
"... temos razões para supor um recalcamento originário, uma primeira fase dogmática ... Trabqjo de psicoanálisis.
do recalcamento...". O recalcamento originário só pode serpostuladoa partir
de seus resultados; isto deixava aberto o caminho para interpretá-lo como
um "tempo mítico", com toda contradição da própria expressão: um tempo
fora do tempo mas que admitiria ser descrito como uma sucessão temporal.
A fascinação pela noção de mito em psicanálise não é fortuita, nem é
fácil dissipá-la. Obedece, cremos, a razões profundas e, em particular, a essa
estranha temporali dade do ser humano, destinada ao apres-coup. Se são
necessários sempre dois traumas para fazer um trauma, dois tempos
diferentes parafazer umrecalcamento- equivale a dizer que o recalcamento
originário, o traum a-. não podem jamais ser assinalados com o dedo em
uma observação direta (mesmo sendo analítica), condenada a situar-se
sempre muito cedo ou muito tarde. Mas não é menos certo que a opção
"mítica" abandona esta singularidade da descoberta psicanalítica; e é com
toda razão que Silvia Bleichmar questiona definitivamente sua facilidade:
"Os tempos míticos não são construções, são movimentos reais, de estruturação
do sujeito psíquico que, mesmo quando não possamos capturar em sua
subjetividade, podemos cercar como se cerca um elemento na tábua
periódica de Mendeleiev... Talvez não podemos tocá-lo, mas sim podemos
conhecer seu peso específico, sua densidade, seu efeito, sua combinatória".
Cercar os momentos do recalcamento originário, mas também suas
vicissitudes, suas insuficiências, suas desigualdades ou seus fracassos, é
então estabelecer os marcos de referência dos tempos constitutivos do
inconsciente e de seus conteúdos fantasmáticos. Demarcação que, na
criança, é de importância decisiva para a prática (diferente do que ocorre na
cura do adulto) porque na escolha do dispositivo terapêutico é determinante
saber se nos situa mos antes ou depois da constituição do inconsciente e, em
que medida, dentro de qual configuração. E isto sem contar que esta
constituição mesm a, se é que se quer acompanhar Silvia Bleichmar neste
ponto, não ficadefmitivamente seladaantes da intervenção do recalcamento
"Se Aristóteles tivesse cozinhado, muito mais teria escrito".

Sor Juana Inês de la Cruz.

Palavras preliminares

Ser psicanalista implica situar-se na série das gerações. No consultório,

quando a prática cotidiana nos impõe um trabalho pem1anente d e
historização, aprendemos o quanto é difícil o processo pelo qual se discrimi­
na o que é -existente no inconsciente - do que poderia ser. ou do que foi
-temporalização que introduz o índice de realidade. É assim também como
se produz o trabalho teórico: romper amarras imaginárias, discriminar
aquilo que se pensou daquilo que o processo de elaboração mostra como
resultado, submetendo-nos a um trabalho permanente.
A neutralidade teórica é tão complexa como a neutralidade analítica.
Para que a acolhida benevolente de um texto se produza é necessário estar
disposto a esperar o inesperado. a não deixar-se submeter pelas paixões
mas. ao mesmo tempo. a conseguir uma boa dose de sublimação daquilo que
se nos representa. Tentei aproximar-me aos textos que abordo com o mesmo
espírito que me anima em relação aos pacientes que apresento. No entanto.
como ocorre também com eles. em certas ocasiões o amor e o ódio se ativam
no baquet psicanalítico e a neutralidade é um ideal ao qual se tende, sem
jamais consegui-la totalmente. Tratei de impedir - apesar disso - que,
igual que na escuta analítica, as emoções cegassem meu processo d e
conhecimento. Não creio que o tenha conseguido sempre. D e todos modos,
espero não ter dito mais do que me corresponde na tentativa de dar a
entender aquilo que começo a compreender.
Se as circunstâncias propiciam a benevolência de meus leitores, devo
dizer -como atenuante -que não são tempos fáceis os que nos tocam viver

7
8 I Palavras Prelirninares

1
e que o compromisso abarca todos os nossos sentidos. Permiti-me, em
muitas ocasiões, que a emoção do compromisso atentasse contra o rigor.
Isso de modo algum me desculpa, mas sabê-lo pern1itirá a quem se encontre
_
com esse fen omeno. abordar com menor dificuldade aqueles momentos em
que minha escrita está embargada por minhas paL'>:ões de sujeito.
Durante sete anos, longe dos lugares que constituem o centro de meu
universo pessoal, tanto a investigação psicanalítica como minha convicção
profunda na capacidade transfom1adora da psicanálise me ofereceram a
possibilidade ele reparar as lesões que a História infringira, em um mesmo
movimento, tanto a meus pacientes como a mim mesma. Muitas das
Impasses e aberturas
crianças das quais falo nos tell.ios que fom1am esta tese, retornaram a seus
países ele origem, outras estão para fazê-lo. Mesmo para aqueles que não No tratamento dos transtornos
�ofre :am p �rclas tão massivas (exílios, migrações, lutos precoces) . o futuro
1med�ato nao se apresenta sem dificuldades. Espero ter aj udado todos eles graves precoces
a aumentar sua capacidade critica e sua independência ele pensamento,
tanto no que diz respeito a si mesmos como frente ao mundo que os rodeia.
Este clescentramento ele si mesmos e a recuperação ele sua história lhes
permitirá ampliar sua margem ele liberdade dando-lhes ferramentas para
compreender com maior profundidade o difícil tempo novo. Quase inevitavelmente, depois ele Freud, na história da psicanálise, prática
Não creio que isto implique em uma proposta educativa no sentido e teoria vão cada uma por seu lado. Se um teoricismo dogmático parecia
tradicional. Sim, creio que a prática psicanalítica não é alheia a uma ética, reger grande parte elos trabalhos realizados na década ele oitenta, os anos
que diz respeito á ampliação elas margens da liberdade de dizer, ela liberdade noventa p arecem estar atravessados por um retorno ao empírio-clinicismo
de pensar. Há que ter-se atravessado o doloroso caminho de um processo no qual apenas o trabalho com o paciente torna-se soberano. E, no entanto,
�alítico para reconhecer o quanto é difícil o movimento de conquista desta este retorno circular,que retoma os postulados empiristas da psicanálise
hberdacle de p ensamento, movimento realizado sempre em uma luta intensa
anglo-saxã dos anos 50, apresenta-se tão inovador como enganoso.
contra as ataduras imaginárias com que as paixões amarram o pensamento.
A prática analítica está em crise, e isso não é apenas efeito elas
De Jean Laplanche, quem orientou minha busca, interrogando, ques-
. condições tanto econômicas como sociais na qual se desenvolve. A prática
twnanclo, permanentemente oferecendo pontos ele partida, aprendi a abrir­
analítica está em crise a nível ele seus fundamentos, onde se expressam as
me com maior liberdade e soltura ao pensan1ento psicanalítico que me
mais variadas fónnulas quejustificam o fracasso ou a imobilidade, mediante
precede, assim como ao de meus contemporãneos. Carlos Schenquerman
arepetição, até o cansaço, dejustificativas de uma ação cujos princípios nem
ensinou-me, tanto na viela como na psicanálise, a diferenciar cuidadosa­
sempre - mais ainda, na maioria elos casos - se derivam das formulações
mente a exigência rigorosa, elo dogmatismo e da intolerãncia. Rafael Paz
teóricas que p arecem regê-la.
guiou com precisão e respeito minhas primeiras leituras psicanalíticas; seu
Esta crise arrasta consigo as potencialidades produtivas de um campo
�ensamen�o critico sempre aberto à escuta produtiva permitiu uma de conhecimento que sabemos que é válido, e cujos efeitos foram provados
mterlocuçao que se estendeu ao longo dos anos, além mesmo da clistãncia,
em um vinculo marcado por minha gratidão e meu afeto. Situada na série ao longo de um século. Não se trata, portanto, de passar da esperança
das ger�ções elevo dizer que tive o privilégio de que tanto meus pais como enlouquecida à desesperança absoluta, senão ele saber, minimamente, onde
meus filhos sempre ajudaram a criar um espaço - além mesmo das estamos estacionados.
circunstância� difíceis que nos tocaram viver - onde foi possível pensar. É com pacientes graves que a crise teórico-clínica que arrastamos s e
Todos eles habitaram meu mundo interno e me acompanharam no processo nos propõe, d e modo mais imperativo, como um problema ético: "As
destas reflexões. necessidades materiais de meu semelhante são obrigações morais para
mim"1• Anos de infãncia perdidos, irrecuperáveis para a recomposição

9
 10 I Silvia Bleichmar
psíquica, dão conta, ao longo do tempo, da necessidade de estabelecer
paradigmas claros para nossa ação.
Quantas crianças com problemas de aprendizagem, com diagnóstico
de transtornos do desenvolvimento, déficits funcionais básicos ou, simples­
mente, "personalidades difíceis", nos chegam à consulta nos tempos
cronológicos de saída da infância, evidenciando urna verdadeira psicose
clínica com produtividade alucinatória ou delirante. Quantas crianças
manifestam, entre os dez e os quatorze anos, processos francos de irrupção
psicótica, ante o olhar desconcertado de um terapeuta que não previu, às
vezes durante um longo tempo transcorrido de análise, que aquilo com o que
se enfrentava não era simplesmente um conflito interfamiliar ou um
conglomerado fantasmático e sintoma! de origem inconsciente que, supu­
nha, cederia ao longo da análise.
Quantas crianças, enfim, são encaminhadas por professores, neurolo­
gistas, pediatras ou mesmo psicanalistas, a tratamentos funcionais de
reeducação fonoaudiológica, psicopedagógica e psicornotora, sem que nem
sequer se suspeite que aquilo que dá origem ao déficit que motiva a consulta
não é a insuficiência de uma função específica senão um fracasso, parcial
ou geral, de suas possibilidades de estruturação psíquica.
Isso ocorre em função de um desajuste de nossa teoria e nossa clínica?
Trata-se, simplesmente, de afinar nossas ferramentas para evitaras impasses
com os quais nos enfrentamos diariamente? Trata-se de incorporar novas
técnicas ou, inclusive, como começa a surgir cada vez mais no meio, de
retornar a esperança biológica e depositar nos novos descobrimentos
genéticos a possibilidade de transformação que parece subtrair-se a nossa
prática? Ou a solução viria no sentido de recorrer a urna suposta
interdisciplinariedade na qual as disciplinas convocadas obturassem suas
próprias falências a partir de uma suposta ilusão de totalização que
permitiria o encobrimento das misérias vigentes?
Faz já muitos anos que não é esta a direção que escolhemos. Se nossa
prática está em crise, o mais lógico é submeter os postulados teóricos que
a regem à revisão, visando uma reformulação que abra novas perspectivas
e inaugure novos modos de operar.
É necessário trocar, totalmente, a perspectiva desde a qualfocalizamos a
questão dos tempos de infância e, a partir disso, revisar os movimentos
jundantes do aparelho psíquico para que os transtornos graves com os quais nos
vemos confrontados na clínica possam encontrar uma via de resolução.
Entre o geneticismo evolucionista que se manifesta no fato de conceber
as falhas da constituição psíquica como déficits funcionais, por um lado, e
o estruturalismo que remete a psicopatologia infantil a suas determinações
edípicas sem diferenciar entre estas detern1inações e os modos específicos
de operacionalizar nos tempos de infãncia, por outro, o campo da clínica fica
entregue à improvisação e à ineficácia reiterada, ou, mais ainda, à repetição
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 1
esvaziada de conteúdos que esteriliza o ãmbito da produção como um
discurso que se desliza sobre o fenômeno não só sem penetrá-lo senão, e m
certos casos, sem nem sequer roçá-lo.
Sabemos, por outro lado, que nossa psicopatologia é insuficiente. Que
se caracteriza, em primeiro lugar, por uma transposição das categorias da
psicopatologia adulta à criança e, em segundo lugar, por uma série de
descobrimentos anárquicos e pontuais que apenas permitem algumas
detecções grosseiras sem que seja possível um ordenamento (as psicoses
simbióticas de Mahler, os desenvolvimentos a respeito do autismo psicogênico
de Tustin). A isso se soma a ignorância que ernbarga o meio psicanalítico nos
últimos anos tanto no que diz respeito aos descobrimentos obtidos por
outros campos do conhecimento como em relação ao já adquirido e m
psicanálise.
_ . . . .
A questão não se mostra simples; nao se reduz a arnphar as posstbüt-
dades transforn1adoras de nossa clínica com pacientes graves a partir das
conceitualizações vigentes - as voltas em círculo que vemos ocorrer desde
alguns anos dão conta de que uma perspec�va desta or d�U: n?s leva a u m
. _ .
novo impasse. Para poder ampliar novos honzontes de e �tcacta e � eces �a?-o ,
como sempre ocorreu em psicanálise, conceber novos parametros mtrateoncos
de ordenamento metapsicológico dos transtornos severos, transtornos que
abrem linhas irreversíveis de fracasso nos movimentos de constituição
psíquica do sujeito.
Destinarei as páginas que se seguem, de modo resumido e tendo e m
vista u m objetivo preciso, a realçar quais são os elementos que, a partir dos
modelos freudianos, possibilitam abordar os indícios de falhas estruturais
que escapam aos olhos dos analistas e que, considero, devem ser retomados
para nossa prática.
. _ .
Em primeiro lugar, aqueles que se manifestam como tmposstvets de
serem detectados sem uma revisão de conjunto dos paradigmas dominantes
até há poucos anos, os quais impedem sua localização no processo de
abordagem da consulta e levam à escolha de estratégias que, desde nossa
perspectiva, implicam diminuição de possibilida? e� transformadoras: se�e­
.
ros transtornos da linguagem, dos processos logtcos, das determmaçoes
espaço-temporais (com suas conseqüências fenomenológicas: hipercinesias,
torpezas motoras ou, inclusive, dislexias e dispraxias).
As posições adotadas ante consultas deste tipo estão definidas, e m
�
geral, pela espontaneidade mais absolu a: conside�rn: estes tr��tomos
_
_ tao facll como
corno de ordem não psicanalítica - a partir de uma dtstinçao
errônea entre "o afetivo" e "o cognitivo" que, transpassando a psicologia,
invade a psicanálise- e remetê-los então aos mais variados tratamentos de
reeducação específica; empreender o processo da cura exercendo satura­
ções de sentido através da atribuição fantasmático-sintomal a formações
que dão conta mais de um transtorno estrutural do que da operacionalidade
 1 2 I Silvia Blciclzmar
pontual do inconsciente; acompanhar o tratamento individual da criança
com entrevistas familiares , de binômio ou de casal de pais como um "tenteio"
que mantém múltiplos enfoques simultâneos sem que esteja claro desde
qual perspectiva específica opera cada indicação; propor, pura e simples­
mente, o tratamento do casal parenta! situando o tipo de determinação do
transtorno a partir deste, em uma confusão generalizada e freqüente entre
condições e �ípi �as, de início, e estrutura psíquica, de chegada, quer dizer,
estmtura pstqmca com um funcionamento específico na criança; propor, em
outros casos, que estas duas últimas opções se combinem com variados
trat�mentos colaterais ele acordo com a dominância do transtorno presente:
ele lmguagem, de aprendizagem, psicomotor, etc.
As conseqüências são ele ordem diversa: um menino com transtomo
das relações temporo-espaciais é tratado por um analista "que deixa ele lado
seu funcionamento cognitivo" e se dedica a resolver os conflitos interfamiliares
ou suas angústias orais, anais ou ele castração, sem que estas tenham um
estatuto metapsicolôgico preciso jã que o que interessa é "interpretar o
incons �ient :" (t� é a dominância ela Ego-psycho logy, que segue manifestan­
elo sua mfluenc1a, mesmo para analistas que não embarcam nesta corrente,
ao sustentar um ego função que seguiria um caminho independente em
relação ao fur:cioname n�o psíqui�o mais geral) . Em outra linha de pensa­
mento, tambem analthca, _ supoe-se que todo transtomo é efeito ela
opera�ionalização de um fantasma inconsciente, e a p artir disso o que se
tenta e atrib !lir um sentido - seja intrapsíquico, seja intersubjetivo -, aos
.
transtomos, fac1lmente concebidos como sintoma, que a criança manifesta (o
kleinianismo seguiu esta variável, produzindo saturacôes ele sentido ' em
alguns casos não sem resultados, a partir de certa ant�opomorfização dos
processos estmturai s , concebendo sua falha, em geral, como defesa) .
O que constitui o substrato comum de ambas as situações, de ambas
perspectivas clínicas falidas, em nossa opinião, é o fato de que algo se
desloca sob uma lente conceitual aparentemente diversa: a impossibilidade
de situar � estatuto metapsicológico do inconsciente, seus tempos de
estmturaçao, e o fato de que este não se sustenta senão a partir ele suas
relações com outro sistema psíquico: o pré-consciente-consciente.
Em ambos os casos o inconsciente "é o dado": determinado
endogenamente, existente desde as origens da vida, o método analítico não
se afasta do modo clássico tal como foi concebido, de início, para a
abordagem das neuroses: método e>..irativo. técnica da interpretação,
levantamento do recalcamento . . . o sujeito, centrado no inconsciente, encon­
trará seus próprios movimentos inteligentes a partir do momento em que 0
analista precipite este movimento que o catapulta desde a recusa pulsional
ao reconhecimento de suas próprias moções inconscientes.
Sob nenhuma perspectiva, então, se propõe que os mecanismos da
inteligência, quer dizer da lôgica, com suas categorias temporais, espaciais
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 3
e de operacionalização do princípio de não contradição, podem ter algo que
ver com os movimentos fundantes do psiquismo e com os tempos nos quais
o aparelho p síquico se constitui.
Que ocorre. por outro lado, com o exercício clínico daqueles que s e
alienaram na corrente impulsionada pela psicanálise francesa contemporâ­
nea que segue Lacan? A maior virtude que este posicionamento revolucio­
nário inaugurado na metade de nosso século teve foi marcar o caráter
exôgeno e de cultura da fundação do inconsciente. Realçar, mediante uma
inversão da perspectiva freudiana, o movimento que, desde a estmtura do
Édipo, faz o sujeito inicialmente submergir-se em um mundo sexttado e
simbólico que constitui a premissa de base da constituição do inconsciente.
No entanto, o movimento estruturalista não permite, de nenhum modo,
enfrentar duas questões centrais: por um lado, que os tempos desta
fundação do inconsciente não são tempos míticos senão tempos reais, e que
seu cercamento deve ser explorado nâo apenas a partir das condições d e
estmturaçâo nas quais o sujeito se constitui senão das vicissitudes histó­
ricas que a precipitam em diversas direções. Por outro lado, que o estatuto
da linguagem deve ser situado desde uma dupla perspectiva: desde aquela
elas condições ele estrutura eclípica, por um lado - enquanto universal
estruturante -, e, por outro lado, enquanto aquisição que é efeito de um
posicionamento metapsicológico nâo estabelecido inicialmente no sujeito
em constituição: caráter segundo ela linguagem em relação à barreira do
recalcamento originaria. O terceiro elemento que obstaculizou uma perspec­
tiva mais fecunda para os desenvolvimentos lacanianos provém ela perspec­
tiva invertida com a qual a criança é concebida: enquanto significante fálico
da mãe, que vem obturar a castração, seu posicionamento está definido
enquanto objeto e não como sujeito. O sintoma, enquanto tal é, então,
sintoma do outro; sua posição de mónada unificada, marcada pelo desej o do
outro, não abre a possibilidade de conceber o próprio sintoma, na infância,
como efeito do conflito intrapsíquico. Em tal sentido , a perspectiva que
enfatiza o ponto ele vista interacional, que já era realçado em certos textos
de Maud Mannoni, que aproximam a psicanálise empírico-lacaniana a certa
"familiologia", não é um desvio secundãrio a ser corrigido, senão o efeito d e
u m posicionamento intersubjetivo d e origem, que fecha toda possibilidade
de compreensão da produtividade p síquica da criança. A "referência a o
desejo matemo" deve ser retomada e m termos metapsicológicos para abrir
a exploração dos processos metabólicos com os quais o sujeito incipiente s e
apropria d o objeto enquanto fonte de sexualidade e sirnbolizaçâo, e arran­
cada da linealiclade diluente na qual desembocou.
Como recuperar, então, os descobrimentos efetuados - em primeiro
lugar pelo próprio Freud - e propiciar um ordenamento que nos permita
inaugurar novos avanços na clínica? Como efetuar urna virada ele nosso
olhar sobre este campo tão complexo dos transtomos graves e elas psicoses
1 4 I Silvia Bleic/wwr
infantis para começar a encontrar linhas terapêuticas capazes de enfrentar,
de modo responsável, as condições de nossa prática e abrir novas possibi­
lidades de eficácia transformadora?
uma inversão da persp ectiva do campo
João, de cinco anos, entra no consultório arrastado pela mão de sua
mãe. O olhar concentrado , o passo desarmônico, brinca com a língua no
interior da boca, de onde escorre um fio de baba. Foi enviado pelo Jardim de
Infância, onde não parece poder enfrentar as tarefas da pré-escolaridade que
sua idade impõe. Parece abúlico durante a entrevista, na qual, no entanto,
se negou a entrar só. Sentado ao lado de sua mãe, enquanto ela fala, passa
sua mão livre por seu colo, acaricia-lhe as pernas, sem que ela pareça
manifestar nenhuma incomodação por essa mãozinha que desliza, inclusi­
ve, às vezes, pela entrepema, produzindo, em mim mesma, certa sensação
de pudica incomodidade.
Na vida cotidiana João não parece disposto a aprender nada: não
consegue nenhum tipo de representação gráfica, não se interessa pelas
instruções que a professora propõe e, no entanto, diferente de qualquer
autista, não está ausente dos vínculos com o semelhante: em certas
ocasiões, como um cachorro torpe e excitado , tenta abraçar um coleguinha
com um. movimento asfixiante como se seu corpo pudesse fundir-se com o
outro. "E muito carinhoso", diz a mãe; "me beija, me abraça forte, às vezes
me cansa com seus excessos . . . " Uma certa torpeza motora caracteriza os
atos deste menino: não pode medir sua própria força: empurra outro menino
e não mede as conseqüências, atira objetos e não se dá conta que pode
machucar alguém.
Há transtornos da linguagem: desde o ponto de vista da fonação um
balbucio que toma difícil distinguir os vocábulos; em relação à estrutura, se
bem pode articular logicamente no que diz respeito a expressar um desejo:
"mami, vamos" - diz em certo momento da entrevista -, se expressa certa
desorganização no manejo do tempo e do espaço: "que há na frente?" me
pergunta, se referindo a uma porta que separa meu consultório de outro
ambiente; "ontem, fomos ontem" intervém, quando a mãe me conta que faz
algum tempo, fizeram uma consulta psicopedagógica porque no colégio já
começavam a preocupar-se por suas futuras dificuldades.
Depois o relato se estende pelas dificuldades conjugais dos pais. O pai,
que tem dois filhos mais velhos de um casamento anterior, não parece muito
comprometido na relação com esse filho que chegou um pouco tarde em sua
vida. "Creio que o agarrei cansado", diz a mãe. Ela mesma, que se casou mais
velha, não sabe muito bem o que fazer com esse menino a quem se dedicou
devotadamente e ante quem se sente desconcertada.
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 15
João sente intensos terrores à noite. Sua alimentàção também é
complicada: não come carne nem, em geral, alimentos que tenha que
destruir com os dentes ou mastigar. Papinhas, arroz, hambúrguer, revelam
uma severa inibição para a mastigação. Conserva uma enurese ocasional,
e, eventualmente, de dia, e em situações muito variadas, incontinência anal.
Quando fala, em certos momentos, é difícil compreendê-lo, já que, como fez
na entrevista, brinca com sua língua como se esta fosse um bico na boca.
Os problemas de dicção parecem estar associados a este fato: a boca não é
uma cavidade virtual, é um buraco, real, que deve ser preenchido e, por isso,
a língua vem a ser um objeto estranho que pode ser utilizado com estes fins .
Situemos rapidamente, a partir destes poucos elementos que tomamos
para a descrição, as linhas abertas em relação à situação proposta. O motivo
de consulta nos confronta, em uma primeira aproximação, com um conjunto
de fenômenos não sintomais. Trata-se de um transtorno geral do funciona­
mento psíquico, e não de uma constelação neurótica particular em u m
menino que, cronologicamente, s e supõe que teria quej á estar e m condições
de estabelecer seus primeiros sintomas- enquanto produtos transacionaís,
efeito de uma solução de compromisso entre os sistemas psíquicos em
conflito. João não apresenta fobias, também não está afetado pelas primei­
ras formas de representações obsessivas que poderiam aparecer nestes
momentos fundantes em relação à estruturação do Édipo complexo.
As dificuldades para a simbolização gráfica não deixam de estar e m
relação com a torpeza motora e o transtorno da lógica que se manifesta na
linguagem: falha na constituição das relações espaço-temporais que dão
conta de que o ego representação não logrou instalar suas coordenada s
definitivamente e m relação a uma tópica demarcatória tanto d o interno­
externo do inconsciente como do externo-exterior da realidade circundante.
A mão que desliza pela entreperna materna, a encoprese ocasional, que
dá conta de uma não recusa dos modos primários de resolução auto­
eróticos, marcando, em conseqüência, a não instalação definitiva d o
recalcamento originário. Quando s e joga compulsivamente sobre o seme­
lhante, quando a "pulsão de se apoderar" mostra seu profundo enraizamento
sádico operando em uma apropriação fagocitante do outro, evidencia que o
que está em j ogo não é a agressividade estrutural da primeira infância a
partir dos equilibramentos narcisistas, senão u m movimento pontual de u m
sujeito pontual no qual ainda falham o s objetos d e intercâmbio que
metonimizam simbolicamente o corpo alheio a ser apropriado. Não se trata
da intenção d e se lançar sobre o carrinho que outro menino tem em suas
mãos, se bem pode arrebatá- lo sem que isso implique ódio a seu possuidor:
o sujeito e o objeto se fundem em uma alternância que dá conta ele que, em
princípio, o que não se metonimizou através dos dons é o próprio corpo
matemo.
 1 6 I Silvia Bleichmar
Não se havendo estabelecido o intercâmbio que dá origem ao objeto
enquanto dom do semelhante, não é estranho então que João não tenha
usado bico, não tenha tido objeto transicional, e que o corpo da mãe se
ofereça como um contínuo auto-erótico de sua mão que se desliza sem
transições da própria boca à entrepema cedida sem estremecimento. Acaso
uma mulher pode receber uma mão alheia sobre suas zonas erógenas sem
se �terar? Trata-se de um traço geral de frigidez o que presenciamos, ou
ma1s bem, de uma aceitação prazerosa que não chega a se tomar excitação
recusada na me ?ida em que a :não de seu filho é ainda parte de seu próprio
�orpo_? .�or�ar o mgresso de Joao nas categorias que possuímos dá conta da
msuflCJencm de uma psicopatologia que vem operando como emprestada:
este menino não é, indubitavelmente, um autista; também nào é uma
patologia sirnbiótica clássica: ingressou na escolaridade sem dificuldades,
procura entrar em contato com outras crianças, e aproveita sua presença.
. já sabemos, pelos determinantes estruturais intrapsíquicos encontrados,
No Jard1m, quando brinca no pátio, não se mantém isolado nem aderido à
profess? ra, senão que se lança ao espaço compartilhado com o comporta­
.
mento av:d� e �orpe q�e d �s �reve� os. Também não é uma psicose precoce
com dommancm esqmzofremca: nao apresenta logorréianem fuga de idéias,
comportan1entos bizarros nem impossibilidade de ser controlado. · pré-consciente.
Jo�o é um protótipo. urr;a das inumeráveis crianças que circulam pelos
.
�onsu!t�no .
s e para os quais se decide uma estratégia terapêutica como
. tentew , d:ante da falha de categorias intrateóricas para precisar o movi­
mer:to e �tnto de estruturação no qual se encontra, apelando para isso a
noçoes tao vagas como ineficazes.
_Trata-se de uma captura no interior da mãe fálico- narcisista? É
poss1vel. Que ê o que o diferencia então de uma psicose sirnbiótica? Trata­
se d� um � desorganização pulsional de base, de uma dificuldade para a
subhmaçao? E em função de que, intrapsiquicamente, se constituiu desse
?
m� do Não é suficiente al?enas marcar o movimento que, desde a própria
mae, Joga nesta direção. E indubitável que esta mãe, que "encontrou seu
marid � cansado", não alude com isso apenas à dificuldade que suspeita111os
que ex1sta para o exercício da função paterna.
Se os componentes primálios pulsionais seguem operando, é indubitável
. é que se inaugura a possibilidade de aj udar a mãe para que ela "empreste
que 1sto se constituiu intrapsiquicamente, efeito de uma estrutura edípica
que o �etermina, mas que não pode vir a ser causa exlJlicativa da
metabohzaçao endopsíquica que João exerceu a respeito. Uma vez posto em
andamento, o apar�lho psíquico do menino seguiu um movimento que
enlaça �s��s determmaçoe _ s sob um modo singular,
jogando com uma gama
de posstbthdades abertas em leque e que dão conta da complexidade que
deve ser abordada: ao mesmo tempo em que parece não poder terminar de
sepultar em seu inconsciente os representantes pulsionais de base, que se
recu �a a um abandono dos modos primários de resolução auto-erótica, este
menmo manifesta urna inibição para a incorporação trituradora,
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 17
metaboliza11te, dos alimentos. O processo simbólico terá que ser afetado, a
partir disso, de dois modos: por um lado, sob o efeito de uma inibição que
dá conta da presença de fantasmas sádico-incorporativos-canibalísticos,
para apelar a urna terminologia clássica-; por outro lado, das irrupções d e
processo ptimàrio que u m recalcamen to que não termina d e se instalar deixa
aberto nas próprias fronteiras do ego afetando os modos de operacionalização
dos processos secundários.
Que tipo de estratégia é então necessária para abordar os transtornos
de estruturação que se evidenciam nestas primeiras consultas? É indubitável
que estamos ante um primeiro momento que não pode se desenvolver senão
na direção de uma exploração mais exaustiva. A indagação posterior até
definir a direção da cura deve estabelecer mais claramente se as hipóteses
propostas são corroboradas em uma direção mais certeira, ou se novos
elementos podem por em tela dejuízo o que foi proposto até aqui. No entanto,
que não se trata de começar uma análise clássica na qual o recalcarnento
- secundário - seja levantado p ara fazer circular os fantasmas inconsci­
entes que determinam o complexo sintoma! e lograr sua perlaboração no
Forçar precocemente a inserção do pai real como suporte da função
simbólica não p arece, ao menos até agora, possível. Pode-se pedir a alguém,
a nível de sua vontade e consciência, que seja diferente a como é e que opere
de modo diferente a como o faz? Grande parte dos tratamentos de família ou
de casal parecem destinados ao fracasso f!. partir disso: busca- se, desde uma
degradação do conceito de estrutura do Edipo ao de estrutura familiar, que
as figuras reais sejam as que assumam tarefas para as quais, em muitos
casos, estão estruturalmente impossibilitadas.
Inaugurar uma referência materna em relação a u m terceiro implica,
j á, abrir um campo de circulação obturado desde as origens. Que a mãe se
posicione transferencialmente em relação ao analista - recolhendo uma
transferência que, indubitavelmente, permitiu que esta mãe escute a
recomendação da escola e, como surge de relatos posteriores, do pediatra-,
abre um pólo que situaJoão em um referente edípico diferente. A partir disso
a força de contrainvestimento ao recalcamento originário" que a falta de uma
referência terciária obstaculizou.
O pai real poderá, a partir disto, se inserir na medida em que se abram
os espaços que possibilitem um movimento menos trabalhoso para este
homem "cansado", mais preocupado neste momento pela proximidade de
sua própria velhice, mais dedicado à rememoração de seus próprios
fracassos históricos, que no enfrentamento edípico necessário com este filho
ao qual já cedeu na batalha, na medida em que não sente que haj a tempo
suficiente para aproveitar o triunfo.
1 8 I Silvia Bleichmar
Terminar de fundar o recalcamento originário, em um movimento que
separe o interno-externo do inconsciente do e>-.iemo-exterior do semelhante
matemo é a única via para que o exercício pulsional direto inaugure um
caminho sublimatório. O espaço e o tempo então terminaram de se
constituir como categorias que regem os intercâmbios libidinais: distância
que "me" separa do objeto, posicionamento do mesmo "adiante" ou "atrás",
"antes" e "depois" marcando os intervalos reguladores que assinalam a
presença e a ausência . . . "A mim", "ante isto", "cabe em", "con-migo" , as
preposições adquirem seu valor funcional, diferencial, no interior de uma
linguagem que se constitui, então, como representação-palavra, em seu
estatuto segundo, situada no sistema pré-consciente-consciente.
Apenas quando a boca seja uma cavidade virtual, e os buracos do corpo
marquem seu caráter de borda em relação a um todo egóico no qual João
possa representar a si mesmo, a metaforização graficada poderá tomar,
ludicamente , um sentido de figura. Com isso, também, o zero e o um serão
possíveis, a partir da seriação que abre um contínuo organizante na
descontinuidade pontual que constitui o mundo regido por indícios sobre o
qual João ainda não pode exercer nenhum tipo de poder que não seja como
o de um corpo a corpo.
Nesta etapa, a intervenção no corte da relação mãe-filho,enquanto
"castração simbolizante" não pode senão ser exercida no interior do espaço
analítico. A estratégia escolhida será então a de um período de tratamento
no interior da díade, acompanhada por entrevistas de pn b que permitam , se
for possível, ampliar o lugar do pai real em relação à função simbólica
instaurada.
Um segundo tempo de tratan1ento individual com João pem1itirá a
recomposição das constelações fantasmáticas e tem1inará de ordenar as
passagens de constituição das instâncias ideais, a partir da polarização
transferencial das vicissitudes do Édipo complexo e seu sepultamento. Só
então, talvez, os déficits intelectuais, efeito de tempos não organizados que
marcam toda sua evolução p sicossexual, serão plausíveis de serem
retrabalhados em um tratamento psicopedagógico que harmonize o novo
processo inaugurado com as exigências que a vida cotidiana impõe.
Esperar "curar" aos pais para que sua mudança incida na estruturação
da criança é perder os tempos de infância, irreversíveis , nos quais as
instâncias segundas devem ser instaladas e, a partir disso, fundar o
inconsciente como inconsciente recalcado.
A intervenção precisa, por outro lado, não pode ser efeito senão de uma
leiturametapsicológica do momento de constituição do aparelho psíquico da
criança e das condições estruturais que o fundam.
Desde uma perspectiva que nos parece cada vez mais fecunda, faz já
muitos anos que tentamos encontrar uma via de rigorização da prática
clínica com crianças através de sua correl;1.ção com a metapsicologia
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 9
freudiana e , neste próprio processo, dar conta das contradições e impasses
que, desde o campo teórico, metapsicológico, devem ser depurados, revisa­
dos e postos em dia para gerar fundamentos válidos para permitir novos
avanços.
Para isso, é necessário exercer certos ordenamentos de leitura que
considero válido transmitir: em primeiro lugar, mais que remeter-se aos
textos genético-evolucionistas que o próprio Freud propõe como modelo para
abordar a constituição das "funções" no sujeito - textos, por outra parte,
marcados por uma imprompta psicológica que são resp�nsáveis, ei? g:ande
medida, pelos impasses antes assinalados na perspectiva mms class1ca da
psicanálise de crianças: Formulações sobre os dois princípi�s dojUnc}onamen­
to menta[, o segundo capítulo de O ego e o id, textos nos qums a funçao_ parece
ser definida por diferenciações sucessivas e corticais .-. recorrer a�ue es �
outros nos quais é oferecido um modelo de funcwr,mme�to . ps;qmco
fundante do próprio inconsciente: o Projeto para uma pstcotogta ctentífica, o
capítulo VII de A interpretação de sonlws, os trabalhos metapsicológicos de
_
1 9 1 4 e 1 9 1 5, Atém do plincípio de prazer, ou inclusive algumas observaçoes
do terceiro capítulo de O ego e o id, Inibições, sintomas e ansiedade, etc.
Trata-se, sobretudo, de uma leitura " a contrapelo" , no sentido estrito
do termoz, buscando, por baixo das linhas marlifestas abertas, aquelas
outras que se enlaçam dando conta de um entramad? que não fora
_
oficialmente proposto, e que, inclusive, entra em contradiÇao com outras
asseverações do próprio texto.
Definir, a p artir disso, a operacionalização do método, sabendo que.este
não é universal senão efeito das delimitações precisas impostas pelo obj eto,
é a tarefa que deve ser proposta como preliminar a toda intervenção clínica
nos tempos de infância.
.
Nessa perspectiva, nossa clínica será mais racional, pode-se diZer
necessária, a intuição submetida à prova da metapsicologia, e o prazer do
descobrimento permitiráobter um plus no marco das responsabilidades que
nos mobilizam.
Notas d e referência
1. E. Levinas, Du sacre au saint.
2. Em algumas espécies de cavalos, a cor do pêlo tem uma variação na tonalidade que
vai desde a raiz até a ponta, e o manto unificado se evidencia, ante um olhar atento,
como se fosse de origem diferente. A cor do pêlo pode ser observad a, por ?utra � an:_e,
em lugares onde falta o pêlo ou este seja muito curto. Isto pe �. te a d1ferenc:aç�o
categórica das pelagens jã que não apresenta atenuantes, senao que constitUI a
própria essência do animal.

o conceito de neurose na infância
a partir do recalcamento originário
Há dez anos, quando comecei a interessar-me pela problemática que hoje se
converte em tema deste texto, estava nesse momento da formação analítica
pelo qual todo praticante que começa deve ter passado e que se caracteriza
pelo manejo timido e ao mesmo tempo temeroso de lidar com os precários
conhecimentos teóricos que possui no campo da clínica.
Em meu país, a Argentina, desde a década de 1970, produziu-se um
movimento teórico complexo e revulsivo que pôs em crise os modelos teórico­
clínicos sustentados até esse momento. Efetivamente, a Escola Inglesa, da
corrente de Melanie Klein, tinha sido a guia que direcionava nosso trabalho.
Mas no início de 1970 se introduziram conjuntamente os princípios da
epistemologia althusseriana e os trabalhos da escola psicanalítica francesa;
começamos a ler Freud de outra maneira, guiados pelo Vocabulário da
psicanátisede Jean Laplanche e Pontalis, o CotóquiodeBonneva� Vidae nwrte
em psicanálise ou o s Escritos de Lacan. A situação era tal que alguém que se
propusesse a abordar a tarefa clínica tinha a impressão de que começava a
ter mais claro o que não podia fazer, e não tanto o que podia, no campo
específico, tomando como eixo as novas problemáticas que se abriam a partir
do chamado "retorno a Freud".
Essa busca submetia aqueles que se iniciavam na tarefa analítica a
uma situação muito estressante, já que não contávamos com princípios
diretivos claros nem com guias técnicas que nos permitissem saber com que
parâmetros nos devíamos manejar quando nos encontrávamos frente áo
paciente. Chegou-se a tal grau de maniqueísmo ciência-ideologia, que um
20
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 21
pequeno artigo que escrevi em 1976 mostrava a imagem grotesca de um
analista aterrorizado, agarrado firmemente à poltrona, preocupado em
evitar qualquer deslizamento "pré-científic o", "ideológico", na interpretação,
mais do que interessado no processo da própria cura em que se encontrava
comprometido.
Interpretação da transferência em relação à história, interpretação da
história em função da transferência, interpretação Iacunar ou transcrição
simultânea, interpretação da defesa ou interpretação do conteúdo, interpre­
tação, enfim, ou não interpretação, eram algumas das opções nas quais nos
debatíamos.
Suponho que este mesmo processo, com apenas alguns anos d e
diferença, deve ter sido vivido em diferentes âmbitos nos quais a psicanálise
se desenvolve.
Mas no campo da psicanálise de crianças a situação tornou-se mais
complexa. Um certo purismo que fazia do campo analítico exclusivamente
o âmbito da linguagem, e isso através do movimento discursivo do paciente,
põs em crise a própria técnica na qual nos tínhamos baseado até este
momento, a técnica dojogo, proposta e desenvolvida por Melanie Klein entre
1920 e 1940. Como trabalhar, se se abandonava a técnica do jogo com
crianças pequenas, em um momento de sua evolução em que a linguagem
ainda não podia ser a ferramenta de trabalho possível?
Este tipo de conflito levou, em alguns anos, a uma saída fácil, mas não
por isso frutífera: o abandono do campo da clínica de crianças por uma
.
quantidade de psicanalistas, que não puderam enfrentar-se com o conJunto
de contradições que esta mesma prática lhes propur;tha. Outros, entre o s
quais me incluo, nos propusemos revisar o s princípios fundamentais d e
nossa própria técnica, a partir das novas propostas que o processo teórico
abria.
Em meu caso particular, pareceu-me mais produtiva alinha que punha
em jogo a redefinição de neurose na infância, partindo da concepção de um
sujeito em estruturação. Foi ficando cada vez mais claro para mim que não
se podia defmir a p riori nenhum tipo de técnica se o conceito reitor de
recalcamento originário não fosse ressituado assim como o lugar deste na
constituição do aparelho psíquico. O "mito" do recalcamento originário devia
ser retomado como conceito e posto em j ogo no próprio campo clínico.
Parti, então, da hipótese desenvolvida por Freud na Metapsicotogia
( 19 15) , que postulaque o recalcamento* 1 fundaa diferença entreos sistemas
inconsciente e pré-consciente- consciente, e que antes disto são os outros
*1 [N.T. Optamos por traduzir o termo Verdrãngung como recalcamento � · não, �?� o
repressão, que é a tradução adequada do alemao _ para o espanhol ( repres1on ) .
?,
Seguimos Laplanche e Pontalis n o Vocabulário a Psicanálise (págs. 552 e 594), o
_ ou supressao
que nos permite diferenciar recalcamento (Verdrangung) de repressao _
(Unterdrückung). Será assim a tradução deste termo daqui em diante.]
 22 I Silvia Bleichmar
destinos pulsionais - o retomo sobre a própria pessoa e a transformação
no contrário - que podem atuar como defesa.
O recalcamento originário era, por outra parte, nesta formulação
freudiana, a condição de transformação do prazer em desprazer, em relação
com a pulsão, porque a possibilidade de exercício do prazer em um sistema
se convertia em desprazer em outro sistema.
Em continuação: quem sofre? e por quê? se transformaram nas
perguntas chave para propor-me qualquer tipo de começo de intervenção
terapêutica possível.
Vou desenvolver agora essas idéias relacionadas com o conceito de
núcleo patógeno e de formação de sintomas na infância, com vistas a
apresentar o modelo do que, eu entendo, será meu processo de investigação.
Em primeiro lugar, assinalarei que se a teoria do recalcamento é a
pedra angular sobre a qual repousa a teoria das neuroses na psicanálise, o
é a partir de marcar sua correlação com o conceito de inconsciente e, por isso,
de sujeito cindido, quer dizer, de sujeito em conflito.
Quero, por outra parte, deixar assentado que no momento falarei de
sujeito no sentido amplo, no sentido geral do termo, equivalente a psiquismo.
Não o farei por agora remetendo-me às categorias propostas por Lacan para
a definição deste termo: sujeito do imaginário, sujeito do enunciado, etc.
Em tomo destes eixos que marquei me introduzirei no problema do
sintoma para ver como se desenvolve a proposta.
Em Inibições, sintomas e ansiedade1, Freud começa pela observação de
que as circunstâncias de um caso real de doença neurótica são muito mais
complicadas do que supomos enquanto trabalhamos com abstrações . Em
princípio resulta dificil averiguar qual é o impulso recalcado, qual é o
sintoma substitutivo e qual o motivo do recalcamento. O pequeno Hans
nega-se a sair à rua porque tem medo dos cavalos. Esta é a matéria prima
que se oferece à nossa investigação. O sintoma pode ser considerado o
desenvolvimento de angústia?. Ou talvez a escolha do objeto desta? A
renúncia ao movimento livre? Talvez vários destes elementos conjuntamen­
te? Onde està a satisfação pulsional que o pequeno Hans se proíbe e por que
esta proibição?
Freud propõe, neste caso, um modelo de análise da neurose. Primeiro,
definição do sintoma. Logo, busca da satisfação proibida. Por último, motivo
da proibição. De qualquer maneira, e em uma primeira aproximação,
podemos dizer que tudo transcorre "dentro do psiquismo do pequeno Hans" ,
que o conflito possui um caráter intrapsíquico mesmo quando possa ter
conseqüências no mundo externo e receber influências deste.
Na parte II do mesmo texto defme o sintoma nos seguintes termos: "O
sintoma seria, pois, um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional
que permaneceu em estado latente; é uma conseqüência do processo de
recalcamento". Aqui o sinal remete a uma manifestação, um observável qu_.
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 23
não se pode compreender em si mesmo, senão no conjunto das representa­
ções que o originam.
Primeira conclusão trivial que podemos extrair: se todo sintoma s e
manifesta como um sinal, nem todo sinal é um sintoma. N o entanto, esta
aparente trivialidade permite-nos orientar-nos no emaranhado de conclu­
sões com que, às vezes nos aparece, a clínica de crianças. Manifestações de
conduta das crianças não podem ser entendidas em si mesmas como
sintomas no sentido psicanalítico, enquanto não nos manejemos com uma
defmição deste último que permita caracterizá-lo com maior precisão.
Substitutivo, em segundo lugar, remete ao caráter simbólico do
sintoma, enquanto representação indireta e figurada de uma idéia, de um
conflito, de um desejo inconsciente. E se é simbólico, se é substitutivo, se
marca o aparecimento deformado de um desejo, estamos falando de
deslocamento como mecanismo de funcionamento do inconsciente?
A extensão do conceito de neurose variou; atualmente o termo tende a
ser reservado para as formas clínicas que podem ser relacionadas com a
neurose obsessiva, com a histeria e com a neurose fóbica. A tendência,
então, é o abandono da classificação das denominadas "neuroses atuais" e
as "neuroses de caráter" a partir da consideração de que, seja qual for o valor
desencadeante que os fatores atuais possuam, é sempre nos sintomas aonde
encontra-se a expressão simbólica de conflitos estruturais.
Pois bem, qual é, neste marco, o sentido de manter o conceito de
"neurose infantil"?Tomandoessaidéiareitoradeumsujeitoemestruturação,
não deveriamos mais adequadamente falar de conflitos neuróticos infantis,
na medida em que toda a primeira infância é um processo altamente
complexo que submete o sujeito psíquico em constituição a movimentos
suficientemente lábeis e massivos para que não tenhamos que propor os
elementos como definitivos?
Se pretendemos situar mais precisamente este problema da neurose
infantil (que pode seguir tendo valor descritivo), será necessário repensar a
noção de conflito na criança, além mesmo das classificações evolucionistas
e de uma cronologia empírica na qual as noções psicológicas de "desenvol­
vimento", maturação, crescimento, seguem atuando dentro do campo
psicanalítico sem que se ponha em tela de juízo sua função.
Para isso, nos situaremos de início em uma concepção do sujeito
psíquico cuja tópica se apresenta intersubjetiva desde o início. No marco
desta tópica intersubjetiva ocorrerá um processo de constituição do apare­
lho psíquico que no momento de abordar o diagnóstico do núcleo patógeno
deveremos levar em conta para precisar, em um corte, em que momento
desta constituição se encontra.
Se a idéia de onde partimos é que a tópica psíquica se constitui em um
marco da tópica intersubjetiva que o Édipo defme com sua estrutura, é
necessário assinalar que me propus, como primeiro movimento de indaga-
 24 I Silvia Bleic/unar
ção, a revisão do conceito de inconsciente que se encontra na base das
concepções clínico- técnicas que se desenvolveram até o momento na
psicanálise de crianças.
Revisei atentamente os textos kleinianos e fiz outro tanto com os
trabalhos de Maud Mannoni e Anna Freud. Não acredito que seja necessário
insistir nos méritos dos aportes de Melanie Klein à psicanálise de crianças;
hoje em dia é impossível dedicar-se à prática clínica com crianças sem ter
sua obra presente. A abordagem kleiniana da neurose e do conflito como
problemática intrapsíquica não deixa lugar a dúvidas em relação a seu
caráter altamente freudiano, como também, por exemplo, sua tentativa de
por em jogo a problemática da pulsão de morte no domínio da clínica, que
até então tinha sido proposta em um terreno puramente especulativo.
No entanto é necessário, em minha opinião, diferenciar os elementos
que dão início à constituição do aparelho psíquico, que levam à estruturação
do aparelho, do funcionamento destes mesmos elementos uma vez este sej a
constituído.
Para ser mais precisos: o fato que o sujeito psíquico que se oferece ao
conhecimento psicanalítico seja um sujeito em coni1ito, marcado pela cisão ,
não implica que isso seja assim desde as origens , ou ao menos com as
mesmas caracteristicas ao longo de seu processamento. Melanie Klein dá­
se conta disso, dai que inaugure uma indagação em relação às defesas
precoces, defesas que devem ser consideradas como elementos constitutivos
do psiquismo e anteriores ao recalcamento originário. Situo-as no momento
da constituição dos destinos pulsionais que o próprio Freud dá como
anteriores ao recalcamento. No entanto, desde a perspectiva que propomos
e diferente do kleinianismo, estes movimentos pulsionais, estas defesas pre­
coces, sofrem uma reestruturação não apenas quantitativa, senão integradora,
no momento em que o aparelho atinge sua constituição definitiva.
Por suposto que esta diferença de Melanie Klein,que assinalo, não
opera simplesmente em relação às defesas, senão que marca a abertura de
duas grandes problemáticas: por um lado, a diferença entre inconsciente
originário e inconsciente desde as origens e, por outro lado, o papel do outro
humano na constituição do sujeito e o problema da constituição da tópica
psíquicano marco de uma tópica intersubjetiva. Não fazemos comisso senão
retomar uma linha que vem desde o próprio Freud. O modelo de "Luto e
melancolia", vigente na segunda tópica (por exemplo, no terceiro capítulo de
O Ego e o Id}, mostrou o caráter estruturante que a relação com o outro tem
para o sujeito humano.
Encontramos a mesma preocupação nos desenvolvimentos de Winnicott.
Dizem OBru:cc:r e a realidade:"Um bebê . . . ê capaz de conceber a idéia de algo
que a�endena a crescente necessidade . . . Não se pode dizer que o bebê saiba .
de saida, o que deve ser criado. Nesse ponto do tempo a mãe se apresenta.
Comumente ela dá o seio e seu impulso potencial de alimentar. . . Há um;
Nas Origens do Sujeito Psíq uico I 25
sobreposição entre o que a mãe supre e o que a criança poderia conceber.
Para o observador, a criança percebe aquilo que a mãe realmente apresenta,
mas essa não é toda a verdade . . . Não há intercâmbio entre a mãe e o bebê.
Em termos psicológicos o bebê recebe de um seio que faz parte dele e a mãe
dá leite a um bebê que é parte dela mesma. Em psicologia, a idéia de
intercâmbio se baseia em uma ilusão do psicólogo"2• Entre a tópica do
vinculo ou a tópica edípica e a tópica do sujeito, em geral as correntes
clássicas oscilam.
Por exemplo, tomemos um tex'i:o que realça justamente o oposto que
Melanie Klein. Refiro-me à A Primeira en.treuista em psicanálise, de Maud
MannonP. O trabalho de Maud Mannoni, apoiado na teorização lacaniana,
é deslumbrante, marcou uma revolução em nossa fommçâo ao oferecer uma
nova ferran1enta técnica: a entrevista mãe-filho. Permitiu correlacionar o
desejo matemo com a patologia infantil e, desta maneira, abriram-se novas
possibilidades de compreensão para esta mesma patologia. Não creio
necessário estender-me sobre isso. Mas há um ponto que diz respeito ao
tema que venho expondo, e cujo aprofundamento me preocupa: o problema
da especificidade sintomática.
O primeiro caso que Maud Mannoni nos apresenta é de um menino d e
onze anos incapaz de seguir o nível d e uma classe de quarta série; as
dificuldades surgem especificamente em matemática. O menino foi objeto de
consultas médicas desde os quatro anos (não se diz porque) . A partir da frase
inicial: "Repare, tenho um irmão engenheiro e um filho como este" , Maud
Mannoni dedica-se a trabalhar os detalhes da história da mãe, sua
orfandade de pai desde a idade de quatorze anos, a debilidade e submissão
a uma mãe fálica, a sombra desta avó sobre o casal que ela constitui com
um homem débil e tímido. O menino teve transtornos de linguagem desde
que começou a falar; tem uma relação simbiótica com sua mãe, toda a
agressividade lhe está proibida, o ideal paterno proposto ao filho pela mãe
é o tio materno. A imagem do pai aparece em segundo plano, não conta. D e
que se trata n a realidade? - diz a autora -, "de uma insatisfação d a mãe
como filha? ( . . . ) A esta mãe depressiva a quem nunca consegue satisfazer,
tenta ocupá-la, pelo menos mediante seus fracassos e sua conduta fóbica,
que aparece aqui mais como a expressão do desej o materno do que como
uma doença própria do menino".
Assim François aparece como menino joguete, entregue às mulheres
da casa "para ficar tranqüilo" (palavras do pai)4•
O texio que estamos vendo gira em torno da posição do menino e m
relação ao desejo matemo. Não conhecemos e m que consistiram os trans­
tornos da linguagem mencionados, que características teve a escolaridade
até o momento da consulta, como são suas relações com as outras crianças,
como se coloca neste momento de sua vida frente ao desenvolvimento
puberal.
 26 I Silvia Bleichnzar Nas Origens do Sujeito Psíquico I 27
Se, evidentemente, há um salto entre o motivo de consulta e o material "De imediato, fica pelo menos a possibilidade de verbalizar ao menino
�
c ico e�osto, pensamos que isto é legítimo quando se busca uma respos
_ ta (diante dos pais) sua situação e o significado de seus fracassos escolares".
psicanalitJca e nao uma resposta estritamente sintomática. E em uma nota de rodapé relata: "Explico ao menino que seus fracassos
No entanto, algo nos deixa em dúvida: de que se trata na realidade?, escolares não se devem a uma deficiência intelectual. Adquirem sentido em
diz
Maud Mannoni. relação à forma como cresceu, protegido contra tudo o que foi vivido por uma
"De uma insatisfação da mãe como filha". mãe órfã de pai desde pequena. ·se mamãe tivesse tido um papai teria tido
Na realidade (o sublinhamos), de quê? menos medo que seu marido se convertesse em um papai muito brabo. A
Porque ur_na insatisfação da mãe como filha pode produ cólera de papai teria te ajudado a que te convertesses em homem, ao invés
zir em outro
caso �n:a fobia grave, uma sintomatologia obsessiva, de seguir sendo o bebê que sente os medos de mamãe"'.
um quadro de
agressivrdade, etc. E aindã. mais: desde os trabalhos sobre O psicanalista tem o direito, em uma primeira entrevista, de dar a um
a sexualidade
� ?
emi�in� que abriram essa pro lemática em Freud, qual é a mãe
quenão está paciente uma explicação totalizadora que funcione como uma racionaliza­
msatisfeita como filha? Podenamos pensar, levando isto ção? Pode-se propor a um menino de onze anos com uma sintomatologia
até suas últimas
conseqüências, que uma mulher que estivesse satisfe especifica que seu conflito é efeito da falta de um pai à sua mãe? Se
ita como filha talvez
não se propusesse ser mãe. entendemos mecanicamente que "o Inconsciente é o discurso do Outro",
Por suposto que há tipos e graus de insatisfação, mas esse quando um menino apresenta um sintoma, não importa qual, nem que idade
não é tema
:p ara abo 7d�r aqui. O que, sim, podemos assinalar é um interrogante: qual tenha, nem qual seja a estrutura psíquica, isto se deverá a um conflito em
e a especificidade do conflito que põe em movimento o sintom relação ao desejo matemo. Mas se o sintoma tem como único sentido ou,
a? Quer dizer:
por onde devemos explorar para encontrar o rumo que nos para ser menos taxativos, como sentido principal, satisfazer uma mãe
permita entender
o motivo de consulta? depressiva, mantê-la ocupada mediante fracassos e fobias, não se considera
Por sup osto q:re não somos tão ingênuos para pensa desta maneira uma intencionalidade sintomática que se constituiria cen­
r que o motivo de
consulta seJa o motivo de consulta da primeira entrevista. tralmente como beneficio secundário, e não como resolução no marco da
Mas também não
nos sentimos obrigados a dar uma resposta imediata. A economia libidinal intrapsíquica?
matriz teórica de
o?de P a:te Maud Mannoni para formular o problema nos No entanto, a teorização que Maud Mannoni nos p�opõe como "atitude"
termos antes
Citados e sua compreensão da patologia infantil tal como frente à consulta é absolutamente válida: "Na psicanálise de crianças, na
é apresentada em
�
seu exto A criança, sua "doença" e os outros5, aonde coloca
a criança no primeira consulta, estamos submetidos à demanda dos pais, que pode ser
movrmento que se constitui desde o desejo da mãe. Se "o urgente e grave. Existe então, frente aos pais, uma tendência a tomar uma
Inconsciente é o
discu�so d? Outr " , q ando a mãe fala encontramos em seu posição de psiquiatra ou de psicopedagogo, e corre-se o risco de deixar
� .� próprio discurso
a exphcaçao do signifi cado sintomático. Isto, tanto desde o que diz, como escapar a dimensão essencial, que é, justamente, a apreensão psicanalítica
desde o que não diz. do caso. Mantendo-se no papel de analista, o profissional pode evitar as
• E poderíamos acrescentar: estamos parcialmente de acord orientações apressadas, colocar precipitadamente a criança em um Lar ou
o. Sua
� a: �
proposta tem mérito de situ o sujei o em uma linha de
_ inters ubjetiv idade em um Instituto, pode ser a tentativa que uma verdade substitua uma
que defme as lli_:rhas pelas q�ars se abmao, em grandes traços mentira. Nem todas as consultas levam à indicação de uma psicanálise, mas
, os movimen­
tos que ha�er o de permitir-nos entender a constituição em todas, sem dúvida, é possível salvaguardar a dimensão psicanalítica e,
� de seu próprio
aparelho psiqmco. inclusive, ajudar com ela ao pediatra ou ao médico de cabeceira da família".
No entanto, no caso que estamos vendo , não se anula E estamos de acordo. Nem todas as consultas levam à indicação de uma
. o conceito de
mconsciente como sistema intrapsíquico? Não se acaba psicanálise. Em quais, então, é adequado fazer essa indicação? E mais
remetendo o conflito
a u�a tópica intersubjetiva que, se pode ser geradora ainda, se não acontecer uma análise individual, qual é a estratégia terapêu­
de patologia, não é
suficiente para explicar as peculiaridades do confli ticaadequadaapropor? Em que momento podemos dizer que estamos frente
to psíquico?
E Maud Mannoni propõe: "Que mais pode fazer o analis a um sintoma infantil? Em E[ psicoanálisis precoz, Diatkine y Simon6
ta além de
.
_f
espera:? Se se orça, neste caso, uma psicanálise,
que causa probl emas tão formulam o conceito de neurose infantil nos seguintes termos: "O conceito
essenciaiS a mvel do casal, corre-se o risco de que de neurose e ao mesmo tempo o conceito de cura psicanalítica supõem a
SUIJ'am dificuldades de
outro tipo." intemalização do conflito, quer dizer, uma contradição entre o ego, o id e o
28 I Silvia Bleichmar
superego. A partir de que fase ou de que processo pode-se falar de
intemalização?" Compartilhamos a pergunta que se fazem; o conceito de
neurose só pode defmir-se como intrapsíquico. No entanto, há um matiz que
nos interessa deixar assinalado: falardeinternalização do conflito implicaria
partir de duas unidades diferenciais; em determinado momento, sobre a
base da interação que se gera entre elas, uma intemaliza o que primeiro
ocorreu "fora", quer dizer, na outra. Nesse sentido, a tópica paradoxal que
Winnicott propõe parece-nos mais adequada porque, como assinalamos
antes, borra o interno e o externo como a priorL Deixamos de lado, então, a
utilização das noções de!!tro-fora (salvo como categorias descritivas) . e
situamos o problema como um campo de diferenciação progressiva que se
produz em relação a uma tópica que se constitui no marco do Édipo e cujo
momento privilegiado de diferenciação é, para o sujeito, o recalcamento
originário.
O conceito de metábola que Laplanche propõe parece- nos, em tal
sentido, altamente operativo. Propõe-nos que o inconsciente é afetante
{aifectant). O ego, afetado (ajfecté). Na clínica de crianças, no momento da
consulta, onde está o afetante, onde está o afetado?
Em Melanie Klein não há dúvidas; o obj eto inicial (como objeto fonte)
aparece afetando ao sujeito que se defende desde o ego. E o inconsciente, já
que funciona desde as origens, pode ser precocemente analisado. Para
Melanie Klein, na medida em que há angústia, há inconsciente. Em minha
opinião, isto não é tão claro, ou ao menos tem que ser desenvolvido dentro
dos marcos da conceitualização com que nos manejamos aqui.
Esboçamos algumas idéias em relação à proposta de Maud Mannoni.
Retomemos o conceito de metábola que Laplanche propõe: "O inconsciente
da criança não é diretamente o discurso do Outro, nem mesmo o desejo do
Outro. Entre o comportamento significante, totalmente carregado de sexua­
lidade (o que sempre se pretende, novamente, esquecer) . entre este compor­
tamento-discurso-desejo da mãe e a representação inconsciente do sujeito
não há continuidade, nem também pura e simples interiorização; a criança
não interioriza o desejo da mãe". "Entre esses dois 'fenõmenos de sentido'
(. .. que são por uma parte o comportamento significativo do adulto e
especialmente da mãe, e o inconsciente, emvias de constituição, da criança)
está o momento essencial que se deve denominar 'desqualificação'. O
inconsciente ( . . . ) é o resultado de um metabolismo estranho que, como todo
metabolismo, implica decomposição e recomposição; por algo falamos aqui
freqüentemente de incorporação, porque a incorporação se parece mais a
seu modelo metabólico do que habitualmente se acredita"7•
Esta substituição da fórmula do ColóquiodeBonneval, aonde Laplanche
considera a "contigüidade e similitude como recortes da vida antes de ser
duas direções de linguagem", relaciona este conceito de metabolização com
a fundação do inconsciente. Trata-se então de retomar duas direções: 1)
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 29
localização d o conflito n a infância na tópica intersubjetiva; 2) localização do
conflito em estrito sentido sintomático, na tópicaintra-subjetiva do aparelho
psíquico.
No entanto , o sujeito não se "cria do nada" a partir do recalcamento
originário. A simbolização primordial não é equi�alente �o recalcamento
�
primordial. "Nesta região obscura das origens e da genese, ha ugarp�a u�a
espécie de constituição de um primeiro fantasma que amda nao sena
exatamente recalcado, também não seria exatamente inconsciente, e que
estaria destinado, em um segundo tempo, ao recalcamento"8•
Pois bem, levando em consideração todos estes elementos, na infância:
abordagem do inconsciente para o diagnóstico e a escolha da estratégia
terapêutica? Ou abordagem do aparelho em constituição?
Se 1) o aparelho implica dois sistemas, dois modos de funcionamen�o
e dois conteúdos, e está assinalado por relações de conflito; e se 2) o pre­
consciente não se funda a partir do inconsciente senão que cada sistema está
em correlação com o outro, não há análise do inconsciente, não há formação
de sintomas no sentido psicanalítico, antes da constituição deste aparelho .
Mas, que h á então? Porque esta conclusão pareceria levar-nos à paralisia.
Ou ainda, quais são os requisitos de constituição e funcionamento deste
aparelh o? . .
Falar de requisitos de formação do aparelho parecena derxar-nos,sem
possibilidade de escape, em uma postura normativizante . Normal,
normativizar, tudo nos remete às normas. E nesse sentido abrem-se duas
grandes direções: o conceito de normalidade, que s� aferia à norma, social
ou como modelo de desenvolvimento (segundo propoe Anna Freud). ou algo
que eu ainda não poderia denominar, mas que leva aos pré-requisitos
básicos do funcionamento do psiquismo. Algumas perguntas podem orde­
nar nossa busca:
1) Há relação entre o Édipo e a fundação do aparelho?
2) Há relação entre a constituição das estruturas cognitivas e o
ordenamento do sujeito sexuado na infância?
3) Se a constituição do superego introduz uma legalidade no psiquismo,
de que ordem é a ausência dessa legalidade ou sua não instaura­
ção, em relação com todos os transtornos de simbolização que
encontramos nas crianças?
4) Há alguma correlação entre a lógica da castração e a lógica do
pensamento?
No caso de que estas perguntas propostas sejam respondidas aruu: a­
tivamente, teremos que demonstrar clinica e teoricamente de que manerra
isto se produz.
 30 I Silvia Bleichmar
No e�tanto, voltarei sobre o problema da constituição do sujeito no
marco do Edipo ou do que chamaremos a tópica intersubjetiva para ver como
se jogam essas questões.
Em primeiro lugar assinalarei que, em termos gerais, parece-me
fecundo retomar a proposta de Lacan a respeito dos três tempos do Édipo
para marcar os movimentos de constituição do sujeito, assim como a
proposta de classificação da patologia em três grandes ãreas: psicose,
perversão e neurose.
Em minha opinião, esses três tempos marcam privilegiadamente os
grandes movimentos pelos quais o sujeito psíquico em estruturação deve
passar a partir da tarefa fundamental que deve enfrentar nos primeiros anos
da vida: o desprendimento da mãe e a constituição de uma estrutura
singular que lhe permita situar-se no mundo enquanto sujeito.
Neste sentido a identificação primãria e secundãria, e o recalcamento
originãrio, são parâmetros desta constituição.
Pois bem, isto não deixa de ser uma formulação geral, salvo que o
possamos compreender na exploração clínica. As pré- psicoses infantis são
um campo privilegiado para fazê-lo. Por que utilizo o termo pré-psicoses?
Porque se para as psicoses o mecanismo que aparece como o que defme a:
estrutura psicótica é a forclusão, que dá lugar à alucinação e ao delírio, as
psicoses infantis (as grandes psicoses infantis como o autismo de Kanner e
a psicose simbiótica de Mahler) são como movimentos falidos, não termina­
dos. na constituição do sujeito. Mas. ao mesmo tempo, se pensamos que o
sujeito está em um momento de sua constituição, a intervenção terapêutica
ainda pode modificar o curso dos acontecimentos e ser produtora de saúde.
Neste sentido poderia dizer, através da experiência, que no autismo
precoce, o a�tismo primãrio, o que se produz é uma não-constituição do ego­
representaçao, enquanto que nas psicoses simbióticas o sujeito não pode
separar-se do objeto matemo com o qual a representação se soldou. É como
se a membrana representacional egóica englobasse ambos objetos, criança­
mãe, e a efração desta membrana produzisse uma dor insuportável que poria
em risco de desintegração essa estrutura simbiótica.
Um exemplo clinico: em geral todas as crianças choram nos primeiros
dias quando são deixadas no jardim de infância. As crianças fóbicas
agarram-se desesperadamente à mãe na porta da escola e tratam de não se
separarem dela. A criança simbiótica faz o mesmo. Como diferenciá-las,
então? A experiência me demonstrou que enquanto a criança fóbica espera
atentamente o momento da saída e busca a mãe com os olhos entre as
pessoas que esperam, a criança simbiótica faz uma desconexão durante o
dia de trabalho (poderiam os dizer uma regressão autista), não busca com o
olhar a saida, não se apressa, nem tenta reencontrar a mãe. Por quê? Porque
não tem a representação diferenciada do objeto de amor. Poderíamos dizer
que a separação gerou hostilidade; e esta hostilidade, intensas ans iedades
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 31
persecutórias (assim seria possível fazê-lo desde uma perspectiva kleiniana) ;
no entanto, desde a perspectiva que estou propondo, o objeto funciona na
medida em que é parte do sujeito, e não funciona, converte-se em estranho,
a partir da separação. Desde este ponto de vista a diferença radica em
conceber no início o objeto como externo ao sujeito ou não, como enfrentado
ou não a este, ou concebê-lo como diferenciando-se no seio de uma matriz
que os engloba e que adquire formas simbólicas (deslocadas) do corpo real.
Narcisismo e identificação narcisista nas origens da vida, constituição
da representação do ego, ligação à mãe, são pré-requisitos necessãrios para
a constituição do sujeito. E embora não haja uma cronologia, há uma etapa
necessãria para que isto se produza.
Separação da mãe, castração do segundo tempo do Édipo, como Lacan
propõe, são movimentos defmitórios na organização das identificações
secundãrias, da escolha de objeto e da instauração do superego como forma
definitória da constituição do aparelho psíquico.
Há possibilidade de explorar clinicamente esses elementos na infân­
cia? E se é assim, quais são as vias adequadas para fazê-lo?
Aparece na literatura psicanalítica contemporânea preocupações em
relação ao próprio conceito de infância. Um texto recente, o número dedicado
a "L'enfant" da NouveUe Revue de Psychanalyse, exemplifica a variada gama
que esta problemática pode implicar. Desde a localização da criança em
relação aos lugares que lhe foram sendo dados na história (Entretien avec
Philippe Aries, no qual participam J . B. Pontalis e F. Gantheret) . até um texto
de Renê Diatkine, cujo titulo não deixa de ser sugestivo,, Le psychanalyste et
l'enjant avant l'apres- coup, ou le vertige des origines [O psicanalista e a
criança antes do apres-coup, ou a vertigem das origensf. Antes do apres-coup.
Diatkine refere-se claramente ao fato que a preocupação da psicanálise pela
criança começou a partir da descoberta freudiana segundo a qual a neurose
do adulto atualizava, de alguma maneira, uma neurose infantil. Mas, desde
a perspectiva que nós estamos propondo, quando e onde começa o apres­
coup da infância? E quando falamos de apres-coup, o fazemos em relação ao
próprio inconsciente, estamos falando em alguns casos do pré-consciente ou
teríamos que referir-nos às relações entre ambos os sistemas? E , se é assim,
em que caso?
Vou relatar uma experiência: uma menina é trazida à consulta em
função de uma série de transtornos (que não chamarei de sintomas por
agora) produzidos pelo nascimento de uma irmãzinha. A menina tem três
anos e meio e nos últimos meses manifestou alguns rituais obsessivos
precoces, choro constante, marcadamente agarrada à mãe, de quem não
pode separar-se.
Por razões que me parece desnecessãrio relatar aqui, escolho como
estratégia terapêutica sessões de binômio mãe-fllha (duas semanais) acom­
panhadas de entrevistas mensais com os pais. Em poucas semanas de
32 I Silvia Bleiclmwr
tratamento começam a produzir-se mudanças: a menina começa a manifes­
tar condutas agressivas em relação à irmã, aparecem movimentos de
separação da mãe e um esboço de rivalidade edípica em relação a esta.
Mas o ponto ao qual quero chegar é o seguinte: um dia, quatro meses
depois de iniciara tratamento, no final de uma sessão na qual a menina tinha
manifestado uma série de fantasmas relacionados com sua posição a
respeito do pai e com o desejo de ter um filho deste, tal como a mãe havia
feito , disse esta frase: "Mamãe, lembras quando eu era pequena?". Eviden­
temente, discurso absurdo para quem escutasse, emitido por uma menina
que ainda não começou sua escolaridade. No entanto, algo havia ocorrido em
relação ao tempo: uma historização que marcava um corte que possibilitava
ordenar um antes e um depois, um passado e um presente; que anancava
a menina da posição cristalizada na qual havia chegado ao tratan1ento. A
observação dos pequenos movimentos de constituição do psiquismo infantil
passa quase pelo imperceptível.
Lacan propõe em O estágio do espelho que "nesse ponto ele articulação
ela natureza com a cultura ( . . . ) só a psicanàlise reconhece esse núcleo d e
servidão imaginária que o amor sempre eleve voltar a desfazer o u cortar de
uma vez"10• Núcleo de servidão imaginária que liga a criança à mãe nas
origens e que se conserva como uma estrutura intra-subjetiva no narcisis-
mo.
Eu falava antes ele um campo , de uma tópica na qual a criança encontra
os movimentos para sua constituição. As "funções" propostas por Lacan
(função materna, função paterna, filho, falo) na estrutura do Edipo são
modelos a serem explorados em relação a esta tópica por onde a criança se
desloca. No entanto, é um erro, em minha opinião, tomá-los como elementos
"puros", no sentido elos a priori kantianos. A criança não "realiza" o desejo
materno como a História não encarna a Idéia absoluta. A idéia de "referência
ao desejo materno" deve ser retrabalhada e repensada no campo desta
tópica, aonde os movimentos da história não estão pré-determinados, senão
apenas esboçados como rotas possíveis.
Vou tratar de expor brevemente o caso de um menino, que pode situar
mals concretamente algumas das linhas que proponho desenvolver neste
trabalho.
Em outubro de 1974 uma das perguntas que me surgiu a partir da
consulta dos pals de Sebastião, quando o menino tinha apenas 28 meses,
foi: desde quais parãmetros podemos dellnir o momento adequado em que
um sujeito pode ser passível de um tratamento psicanalítico que tenha
características como tal, garantindo a mínima racionalidade que nosso
trabalho demanda?
Vocês sabem que esse não ê um problema que se questione quando se
trabalha com uma concepção kleiniana da psicanálise de crianças. A
concepção manejada por Melanie Klein sobre o inconsciente. como um
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 3 3
sistema, se nos é permitida a expressão, presente desde as origens da vida,
não propõe questões desta ordem. No entanto, eu já conhecia as idéias
desenvolvidas por Lacan e as contribuições em relação ao caráter do
recalcamento originário propostas por Laplanche e Leclaire no Colóquio de
BonnevaL . Tinha lido A primeiraentrevistaempsicanálise, de Maud Mannoni;
.
enfim, como o leitor compreenderá, tinha mais p erguntas do que uma
técnica aonde apoiar-me.
O motivo da consulta de Sebastião não foi um sintoma determinado ,
senão a sensação geral dos pais el e que "algo andava mal", de que "não
sabiam o que fazer com o menino". Estava decididamente agressivo e
ciumento em relação ao irmão menor, ele oito meses: batia nele, só se
alimentava com a mesma comida com que alimentavam o bebê. Teve uma
série de transtornos somáticos: clianéias repetidas, otites , ir:J.fecções na
garganta, ante os quais o pediatra recomendou uma consulta pSicológica.
Queixava -se, chorava constantemente, estava "chato" , anelava permanente­
mente atrás da mãe; "não me deixa viver", esta dizia. Negava-se a dorn1ir em
sua própria cama e se o fazian1 dormir no quarto dos pais, despertava-se
quando o levavam p ara seu próprio quarto.
Alguns elementos da história: o menino é filho de um casal jovem,
uruguaio, que no momento em que a mãe ficou grávida encontrava-se
transitoriamente em Israel. A mãe relata o parto de Sebastião como uma
experiência terrivel, quando põde ser ajudada por uma parteira argentina
com a qual, afortunadamente, conseguiu comunicar-se, porque era a única
pessoa que falava espanhol na maternidade, e diz que lhe "cortaram a
lactação quando o menino nasceu para dar-lhe alimentação artificial". Como
ela não era judia não circuncizaram o menino, o que lhes trouxe sérios
problemas de vinculação no hotel de imigrantes onde se alojavam, situação
que os levou a deixar o país quando Sebastião tinha menos de dois anos.
Em abril de 1973 a mãe fica grávida de um segundo filho e em setembro
do mesmo ano, quando Sebastião tem quinze meses, a casa na qual vivem
é bombardeada em razão de um ataque aéreo. Dois dias depois o menino
começa a chorar e a vomitar e três semanas mais tarde se mudam para a
Argentina.
Em um mês começam os p rimeiros sintomas preocupantes: Sebastião
reiteradamente abre a boca, grita e logo fica tenso, fazendo um gesto d e
horror que dura alguns minutos. Dois meses mais tarde Sebastião começa
com suas primeiras dianéias repetidas. A aquisição da linguagem se detém
a partir do nascimento do irmão (aos 20 meses de idade do menino) .
A primeira pergunta que me fiz quando me enfrentei com esse material
foi a seguinte: os sintomas de Sebastião podiam ser considerados como
verdadeiros sintomas em sentido psicanalítico? Eram, em tal caso, um
produto transacional, uma formação do inconsciente? Expressavam um
conflito intersistêmico?
34 I Silvia Bleiclwwr
Isto, que à primeira vista é um problema de ordem teórica, tinha para
mim uma profunda conotação clínica; o tipo de indicação terapêutica ia
depender de sua elucidação. TrataJ" o menino individualmente, tratar aos
pais, fazer um grupo familiar, uma terapia mãe-filho, todas as possibilidades
eram igualmente válidas desde diferentes perspectivas de aproximação
teórico- clínica ao paciente.
Mas, quem era meu paciente? Este menino que não tinha saído nunca
do meio familiar, nem para ir a umjardim de infância, que ainda não possuía
linguagem, senão dois ou três ruídos, e se expressava somente pelo choro,
que ainda parecia estar sumido no universo matemo? Ou essa mãe débil,
carente. que engordou 1 8 quilos durante a gravidez e que viveu o parto como
se lhe tivessem querido roubar o filho; que sentia falta de sua própria mãe
radicada no Uruguai, e que a partir do nascimento do segundo filho entrou
em um estado de frigidez que lhe impedia gozar suas relações sexuais? Ou
o pai, debilitado, ausente, que se identificava com Sebastião naagressividade
ao irmão menor- sendo ele próprio irmão maior-, incapaz de por qualquer
limite ao menino porque qualquer situação repressora o situava na posição
de carrasco? Pai que não sabia o que fazer com esse filho pequeno a respeito
de quem perguntava-se se não era hora de ensiná-lo a ler quando o menino
ainda não falava, porque não podia comunicar-se com seu filho, cachorro
ainda. Ou o vínculo de ambos os pais, desconcertados frente ao mundo,
dependentes, em que cada um deles esperava encontrar no outro a imagem
da mãe e elo pai ausentes e que se enchiam de hostilidade quando cada um
não respondia à demanda do outro?
Comecemos por definir "o" paciente, motivo manifesto da consulta,
tratando de determinar se os. sintomas antes mencionados são realmente
assim. Freud define em Inibições, sintomas e ansiedade ( 1 926) o sintoma
como símbolo substitutivo de uma não lograda satisfação pulsional, propon­
do que isto é o resultado do processo do recalcamento. Diz: " .. . a maioria dos
recalcamentos com os quais temos de lidar em nosso trabalho terapêutico
são casos de pressão posterior {Nachdrdngenj. Pressupõem a atuação de
recalcamentos primordiais {Urverdrdngungen} mais antigos que exercem
atração sobre a situação mais recente. Muitíssimo pouco se sabe até agora
sobre os antecedentes e as fases preliminares do recalcamento"1 1 • E
acrescenta que o recalcamento surge quando: a) uma percepção externa
desperta uma moção pulsional indesejável e b) quando tal impulso emerge
no interior sem nenhum estímulo externo. Desta maneira, o sintoma surge
da moção pulsional obstruída pelo recalcamento.
Na Metapsicologia postula que o recalcamento não é um mecanismo de
defesa originariamente dado, senão que, pelo contrário, não pode surgir até
que tenha se estabelecido uma precisa separação entre a atividade anímica
consciente e a inconsciente. Sua essência consiste exclusivamente em
manter determinados elementos distantes da consciência.
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 35
Estes conceitos tém seu complemento n a hipótese de que antes desta
fase serão os demais destinos da pulsão - transformação no contrário e
volta sobre si mesmo - os que vão reger a defesa frente às moções
pulsionais. As conseqüências do processo do recalcamento serão a criação
de substitutivos e o fato de deixar sintomas atrás ele si.
Voltemos agora a Sebastião e seus "sintomas".
A agressão e os ciúmes em relação ao irmão podem ser considerados
dentro do que Freud postula como condutas não neuróticas. "Não podemos ,
portanto , descrever o medo que faz parte desta fobia como um sintoma. S e
o pequeno Hans, estando apaixonado pela mãe, mostrava medo do pai, não
devemos ter direito algum de dizer que ele tinha uma neurose ou fobia. Sua
reação emocional teria sido inteiramente compreensível. O que a transfor­
mou em _uma neurose foi apenas uma coisa: a substituição do pai por u m
cavalo. E esse deslocamento que tem o direito d e ser denominado d e
sintoma, e que, incidentalmente, constitui o mecanismo alternativo que
permite um conflito devido à ambivalência ser solucionada sem o auxilio da
formação reativa."12
A agressão e os ciúmes de Sebastião em relação ao seu irmão são um
emergente direto da hostilidade que lhe produz o aparecimento de um rival
no amor matemo e, em tal sentido, podem ser compreendidos. O que não
pode ser tão claramente compreendido é o horror que a mãe sente frente a
isso, que coloca o menino e m uma posição quase de "criminal", e a
cumplicidade antes assinalada do pai com o filho.
Por outra parte, por razões que logo assinalarei, o irmão rival aparece
situado na linha do duplo transitivo no campo especular, marcando u m
corte que se pode situar nos termos definidos por Lacan em O Estágio do
espelho: "Este momento em que termina o estágio do espelho inaugura, pela
identificação à imago do semelhante e o drama dos ciúmes primordiais (tão
acertadamente valorizado pela escola de Charlotte Bühler nos fatos d e
transitívismo infantil), a dialética que desde então liga o e u [je] com situações
socialmente elaboradas". (Escritos I, pág. 16.)
E as diarréias repetidas não parecem corresponder a esse mecanismo
arcaico , marcado pelo ego-prazer que Freud descreve em Pulsões e destinos
das pulsões*Z, mediante o qual o sujeito separa e joga no mundo externo, em
um movimento que será um precursor daprojeção, os aspectos desprazerosos?
*' [N.T. Optamos pela tradução do título deste artigo (Jríebe und triebschicksale)
conforme o Vocabulário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis [pág. 508), tomando
o tenno "pulsão'' como equivalente do alemão Trieb, para evitar as implicações do
tenno instinct [instinto). Segundo o Vocabulário Trieb "conserva sempre a tonalidade
de impulsão (treiben = impelir) . . . sublinha o caráter irreprimível da pressão mais do
que a fixidez do alvo e do objeto" [pág. 506). Trieb será assim traduzido daqui em
diante.]
36 I Silvia Bleic!zmar
Mas, como se pode entender o pânico noturno? A mãe relata que
quando colocam o ursinho de Sebastião na cama, onde este nega-se a
dormir, chora angustiado e trata de recuperá-lo. Hâ algo que ocorre nesta
cama, espaço onde ativa-se o que produz pânico.
Na segunda entrevista a mãe me conta que, depois do bombardeio
sofrido pela casa em Israel, nessa mesma noite, retiraram -se a uma peça nos
fundos da casa, jâ que o quarto estava na frente e era perigoso permanecer
nele, e Sebastião dormiu em um berço colocado ao lado da cama dos pais.
Essa noite� estes tiveram uma relação sexual que foi interrompida pelo choro
de Sebastião, que acreditavam estar dormindo, e ao qual não conseguiram
acalmar durante longo tempo.
Freud põe em discussão, no Homem dos lobos, a teoria que tenta
explicar os fantasmas primordiais das neuroses em sua relação com as
cenas originârias de épocas arcaicas. Inclina-se ali pela construção da
neurose em dois tempos, e na realidade o tempo do desejo e a escolha da
neurose é o segundo. Os momentos prévios aparecem como marcos
significativos, mas não é um contínuo que se incrementa até desembocar no
sintoma, senão a reorganização e a ressignificação dos conteúdos prévios ­
complexa rede de marcas mnêmicas - o que determinará a escolha da
neurose.
Mas é claro que, até o sintoma se desencadear, um longo recorrido vai
ser transitado pelo sujeito: constituição dos fantasmas originârios -
sedução, castração, cena primária -, instauração do recalcamento, cons­
tituição da linguagem, aparecimento dos processos de condensação e
deslocamento nas formações do inconsciente.
Em "O inconsciente, um estudo psicanalítico", Laplanche propõe: "A
origem do inconsciente deve ser buscada no processo que introduz o sujeito
no universo simbólico. Poderiam ser descritas, em abstrato, duas etapas
deste processo. Em um primeiro nível de sirnbolização, a rede das oposições
significantes é lançada sobre o universo subjetivo, mas nenhum significado
particular fica capturado em urna malha particular. O que se introduz,
simplesmente, com esse sistema coextensivo em relação ao vivido, é a pura
diferença, a escansâo, a barra: no gesto dojo rt da a borda da cama. Trata­
- ,
se ai, deve ser repetido, de uma etapa puramente mítica, mas os fenômenos
da linguagem psicótica mostram que pode ressurgir apres-coup na "regres­
são", sob a fonna do sh!ft indómito de um par de elementos diferenciais" . 13
O segundo nível ele simbolização, acrescenta, é o que descrevemos, seguindo
a Freucl, como recalcamento originário, seguindo Lacan, como metáfora.
O que me interessa assinalar, no que diz respeito aestafommlação, que
teve variações nos últimos seminários de "La référence à l'inconscient", é a
precisão de um tempo, primeiro nível de simbolização, que só encontrará seu
destino definitivo quando, mediante a fixação da pulsão através do
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 37
recalcamento , esta fique presa em certas redes que limitem sua oscilação
indefinida.
Talvez poderíamos dizer que,nesta aproxihmçâo ao sujeito em consti­
tuição que estamos fazendo, os tempos míticos não são construções, são
movimentos reais ele estruturação do sujeito psíquico que, mesmo quando
não possamos capturar em sua subjetividade, podemos cercar como se
cerca um elemento na tábua periódica de Mencleleiev antes que o próprio
elemento seja descoberto. Talvez não possamos tocá-lo, nem vê-lo, mas
podemos conhecer seu peso especí11co, sua densidade, seu efeito, sua
combinatória. São os momentos que poderíamos chamar constitutivos do
inconsciente.
Voltando a "La référence à l'inconscient", Laplanche assinala que o
inconsciente aparece como composto por elementos separados, discretos ,
uma espécie el e átomos. E diz que poderíamos desconfiar desta nossa
apreciação porque esta apresentação atômica elo inconsciente poderia ser o
simples resultado de nossa abordagem metodológica. Conclui: "Admitamos,
no entanto, esse caráter separado das unidades do inconsciente, sem chegar
a considerar a origem destas unidades: o que elas devem a unidades
perceptivas, a fenômenos de gestalt, de forma (o seio, o objeto parcial. . . ) e o
que conservam do recorte da estrutura da linguagem, das unidades
significantes?" . 14
Entre o momento do bombardeio e a presentificação da cena primária,
por um lado, e o nascimento do innão, por outro, algo ocorreu com Sebastião.
Os sintomas se desencadeiam entre estes dois episódios, sintomas que têm
um duplo caráter: por um lado, durante a primeira etapa, aparecimento de
angústia- denominemos esta de liberada: choro imotivado- e dos quadros
somáticos repetidos. Durante o segundo período, fobia noturna (mais
especificamente fobia a suaprópria cama), detenção da linguagem, agudização
da simbiose com a mãe.
Podemos propor-nos uma relação entre os "episódios traumáticos", o
aparecimento de modificações no menino (chamemos estas de sintomas) e
a constituição destas representações básicas do inconsciente? Neste sentido
o trauma tomaria um caráter altamente específico, devido a sua inserção no
complexo conjunto de relações que assinalamos.
Sebastião encontra-se, no momento ela consulta, como vimos anterior­
mente, submerso na especularidade e no transitivismo. Quando eu lhe digo
"mostra-me teu cabelinho", leva a mão à cabeça. Quando a mãe diz "mostra­
me teu cabelinho", leva a mão à cabeça materna.
Chora quando seu ursinho é posto na cama que o assusta; ele e o
semelhante estão postos na mesma posição, e sujeitos às mesmas vicissi­
tudes.
Poderíamos dizer que se encontra nesses momentos prévios ã instau­
ração definitiva do recalcamento originário, momento dos grandes movi-
38 I Silvia Bleiclzmar
mentos pulsionais. em que a pulsão pode orientar-se contra o próprio
sujeito. transformar-se no contrário.
A borda da cama. de sua cama, marca um ponto limite que o deixa
inem1e frente aos impulsos destrutivos que voltam sobre si mesmo.
O caráter terrorífico dos fantasmas se corporiza nessa cama (símbolo
da exclusão) não apenas pelo significado sádico que a cena primária sempre
possui. senão pqrque em seu caso singular essa cena encontra -se enquadra­
da no pânico dos pais frente ao bombardeio, a cara de horror da mãe. o
brusco translado à peça dos fundos.
Como definir uma estratégia terapêutica em relação a Sebastião? Ou
melhor dito, em um primeiro movimento, como definir, e desde onde, a
necessidade de uma intervenção terapêutica?
Em primeiro lugar assinalemos que se há angústia transbordante. esta
está localizada tanto na mãe como no menino. O menino sofre diariamente
quando vai dormir. quando se levanta, quando na primeira consulta teme
ser separado da mãe e aferra-se a seu colo com desespero, quando dão de
comer a seu irmão e quandolhe dão banho. quando tem suas otites e anginas
repetidas. Por outra parte (o que compromete toda sua evolução) . sua
linguagem se deteve. o que anula toda possibilidade de ingressar em um
jardim de infância.
Estabeleceu uma membrana protetora no interior do vínculo matemo
e qualquer elemento que venha efracionar essa membrana produz intensos
transbordamentos de angústia.
A mãe. por sua parte. sente-se aprisionada neste vínculo que "não a
deixa víver" , no qual se sufoca, e frente a um filho que a marca em uma
posição de fracasso como mãe. gerando um montante de angústia que a faz
odiá-lo porque sua demanda a situa na posição de quem deve dar e não ele
quem recebe. E o pai, com seu desconcerto e sua impotência, enfrenta a
função paterna mais como cúmplice elo que como pai.
A partír elos elementos que expus gostaria de assinalar brevemente as
linhas de trabalho que vão permitira definição de uma estratégia terapêutica
e que me proponho desenvolver ao longo dos capítulos seguintes.
Para encarar a situação diagnóstica desde esta perspectiva. tomarei
três elementos que serão os parâmetros ele definição do núcleo patógeno:
l) O modelo elo aparelho psíquico e sua constituição.
2) A localização do paciente na tópica intersubj etiva.
3) As determinações da história (em seu caráter significante e,além
disso. estabelecendo as correlações entre movímento sintomático
e trauma) .
Neste sentido. explicitarei alguns dos processos que podem servir como
índices para o diagnóstico.
Nas Orige11s do Sujeito Psíquico I 3 9
a. Em relação ao modelo elo aparelho psíquico. a constituição elos
processos primários e secundários como cliferenciaclos. com a
conseqüente constituição das fom1ações elo inconsciente: em
primeiro lugar. sintoma. no sentido freudiano mais estrito; em
segundo lugar, sonhos. atos falhos e a função ela transferência.
b. No que é específico elo processo secundário. a instauração da
(cle)negação, com a conseqüente constituição do juízo.
Alguns índices precursores podem ser trabalhados, tais como
a constituição do não e do sim, e sua localização precisa em relação
ã estruturação elo sujeito.
c. O problema ela linguagem, os transtornos no uso elos pronomes e
a concordância verbal são elementos que possibilitam conhecer as
perturbações na constituição do aparelho e. ao mesmo tempo. a
localização elo mesmo na tópica intersubjetiva.
c!. Definido o momento ele corte na constituição do aparelho psíquico.
o estudo elo caráter dominante ela defesa desde as três ordens que
a escola lacaniana propõe: recusa. recalcamento e forclusão. E m
minha opinião. nas pré-psicoses infantis não encontramos a
forclusão como mecanismo tal como aparece nas psicoses adultas.
senão outros índices ele organização psicótica que podem ser
utilizados para o diagnóstico.
e. A localização elo sujeito na tópica intersubjetiva pode ser explorada
em relação a uma genealogia da castração aonde aparecem os
fantasmas de separação ela mãe como momentos constitutivos ela
castração fálica.
É deste modo que o reconhecimento da linguagem pulsional predomi­
nante e as possibilidades elo sujeito de estabelecer novos complexos
representacionais que permitam a sublimação. e também o processo desta
última. elevem igualmente ser tomados em consideração para estabelecer o
diagnóstico.
Proponho-me expor nas páginas que se seguem um modelo provisório
da constituição desta tópica. As dificuldades não são poucas; trata-se de um
modelo que deve incluir, no mesmo movímento, o corte da estrutura
sincrónica, dando razão, por sua vez. à história, quer dizer, ãs determinações
passadas. reais, significantes, que a determinam.
Um modelo com estas características e o fato de que sejam postas à
prova na clínica permitirá superar os obstáculos que tanto o estruturalismo
formalista como o geneticismo propõem à psicanálise ele crianças.
Notas d e refe rência
I. Cf. S. Freud. Inibições, sintomas e ansiedade, em Obras completas, Rio de Janeiro:
!mago Editora Ltda, (nas próximas notas OC), vol. XX, 1 976.
40 I Silvia Bleichmar

2 . Veja-se D. \V. Winnicott, O brincar e a realidade, Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda. ,
1975.
3. M. Manno ni, A primeira entrevista em psicanálise, Rio de Janeiro: Ed. Campos,

3
1 98 1 .
4. Ibid.
5. M. Mannoni, A criança. sua "doença" e os outros, RiodeJaneiro: Editora Guanabara,
1987.
6. México: Sigla XXI, 1975.
7. J. Laplanche, "La référence à l'inconscient", em L'inconscient et le ça, Problématiques
IV, Paris: Presses Universitaires de France, 1 9 8 1 . (O inconsciente e o id, São Paulo:
Martins Fontes, em produção.)
8. Ibid.
9. "L'enfant", Nouvelle Revue de Psychanalyse, Paris, n' 19, 1979.
10. J . lacan, "El estádio de! espejo como formador de la funciôn de] yo Uel tal como se nos Notas para a abordagem da constituição
revela em la experiencia psicoanalít_ica", em Escritos I, México: Sigla XXI, 1972.
1 1 . Cf. S. Freud, Inibições, sintomas e ansiedade, op. cit., pàg. 1 1 5 .
1 2 . flJid., pág. 1 25.
da inteligência em psicanálise
13. J. Laplanche e S. Leclaire, "El inconsciente,un estudio psicoanalítico", em El
inconsciente (Colóquio de' Bonneval), México: Sigla XXI, 1970.
14. J. Laplanche. "La référence à L'inconscient", em L'inconscient et le ça, op. cit.

Acreditei durante muito tempo - efeito da similcadência dos discursos ­

que o texto apresentado por Laplanche e Leclaire no Colóquio de Bonneval
era um desenvolvimento da teoria lacaniana, uma contribuição mais (lúcida,
certamente) à teorização que centralizara, a partir de uma reformulação do
conceito de inconsciente, a discussão estabelecida com a escola inglesa em
relação a um inconsciente entendido como puro conteúdo - phantasies
inconscientes -, do qual se derivava uma técnica ' correspondente, que
consistia na tradução simultânea.
Desta maneira, o fato que o texto começasse com uma critica à teoria
politzeriana do inconsciente, que reduz o inconsciente a um puro efeito
fenomenológico que depende das variações do campo da consciência;
entendi esse fato, pois, como um enfrentamento interno no marco da cultura
francesa, uma discussão que tinha como pretexto um autor sobre o qual
girava , estando na realidade destinada a outro. Assim, em minha ingênua
e principiante leitura, a polêmica tinha como objetivo marcar a ilusão da
técnica de interpretação simultânea (e por isso centrava a concordância com
Lacan em relação ao caráter lacunar da consciência); a necessidade de
ressituar as formações do inconsciente como eixo do processo analítico e,
por certo, reconsiderar o caráter do recalcamento fundante do aparelho
psíquico, o recalcamento originário, a partir da metáfora paterna e seu lugar
em relação ao Édipo estrutural tal como começávamos a compreendê-lo.
Conhecia vagamente, e sobretudo por comentários passageiros, que
havia uma discrepância proposta entre o posicionamento adotado no

41
 42 I Silvia Bleichmar
Colóquio por tais autores e a concepção do inconsciente em Lacan,
discrepãncia que se resumia, desde meu ponto de vista, no seguinte: para
Lacan a linguagem é a condição do inconsciente; para Laplanche -
fundamentalmente -, o inconsciente é a condição da linguagem. O conflito
de lealdades que isto precipitava em mim, junto ã dificuldade para embrenhar­
me em textos que me pareciam de dificil abordagem, levava-me a uma
resolução fácil: o inconsciente, tal como propõe Lacan, é um efeito das
determinações da ordem significante, da ordem simbólica e, em tal sentido,
1
é um efeito da linguagem. Por outra parte, desde minha experiência clinica
com crianças pequenas nas quais o recalcamento originário não tinha
terminado de constituir-se e com crianças psicóticas nas quais se eviden­
ciavam as falhas desta estruturação, pensava que era absolutamente
coerente propor que o inconsciente é a condição da linguagem, na medida
que sua não constituição como sistema alterava todas as possibilidades de
instauração do discurso e explicava muitos dos problemas descritos pela
psiquiatria clássica em relação aos transtornos da linguagem que encontra­
mos nestes casos.
Deste modo facilmente conciliava duas posturas diferentes, na fórmula
simples de que a linguagem é a condição do inconsciente enquanto
estrutura, enquanto ordem significante, mas o inconsciente é, por sua vez,
a condição da linguagem enquanto fala; esta tentativa conciliatória não
estava distante das necessidades sistêmicas do método que a teoria
lacaniana me proporcionava, sobre o qual depois voltarei. Assim, simples­
mente, a proposta de Saussure de diferenciar entre língua e fala permitia­
me situar dois pólos de uma discussão antitética em uma conciliação
absurda e, por certo, obturar as perguntas não formuláveis em uma
explicação totalizante. Por outra parte, a possibilidade de separar linguagem
em sentido sistêmico e linguagem em sentido cotidiano, assimilável ã "fala" ,
abria a possibilidade de incluir o discurso como o elemento da
intersubjetividade que se define entre o sujeito e o outro no caso da clínica;
e nos momentos incipientes de constituição do sujeito, entre este e a mãe.
Acreditava resolver desse modo outro problema teórico-clínico: a linguagem
enquanto estrutura precede o suj eito; o discurso matemo constitui seu
inconsciente, e a linguagem (entendida como noção) constitui-se como um
efeito do processo secundário.
Em um jogo de reduplicações especulares, o que Laplanche propunha
era, então, para mim, apenas um agregado ao que fõra proposto por Lacan;
e o que eu interpretava, um agregado ao agregado, que permitia eludir as
dificuldades da confrontação teórica.
Neste processo, poderiam talvez ser reencontradas semelhanças com
o movimento de circulação fálica no Édipo no momento de formação do
analista, defmido pela transferência aos mestres e ao caráter de apêndice em
que o principiante se coloca. Nos últimos tempos publicou-se suficiente
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 43
bibliografia a respeito.1 Ficaríamos, sem dúvida, limit�dos ã o�ção �e
oferecer simplesmente um modelo do decurso do conhecnnento pslcanali­
tico nos últimos vinte anos, se o único sentido do que hoje exponho fosse
mostrar o erro metodológico de uma leitura preconceituosa do texto. Não é
essa mirlha intenção, senão dedicar-me ao problema das opções propostas
frente ã questão do inconsciente e, em relação a isso, do caráter fundante
do recalcamento originário para sua constituição.
Desde meu ponto de vista, são três os problemas centrais propostos no
\j
texto do citado Colóquio, e qu.YIJaQ:em de uma primeira questão: que
a:
mutações implicaria, para a\teori(l_ psic� ítica, o fat� de atribuir ao
inconsciente uma realidade da mesma espeCle que a realldade da letra? , ,
Deste primeiro problema deriva-se a seguinte proposição: tentar-se-á
esclarecer a realidade do inconsciente pela realidade da linguagem, objeto
da lingüística?
Em segundo lugar devemos perguntar-nos: o campo do inconsciente é
assimilável ao campo do sentido, tal como Politzer teria formulado explici­
tamente, ou seu realismo deve ser situado - quer dizer, seu caráter de
realidade própria cindida radicalmente do campo da consciência - n�s
termos da tópica freudiana: o sistema inconsciente e o sistema pre­
consciente- consciente, como sistemas contrapostos e em oposição, defmi­
dos pela constituição do recalcamento?
(.
Em terceiro lugar, a noção de inconsciente é assimilável à noção de
I
desconhecimento do sujeito? O inconsciente pode ser então efeito da posição
.
do sujeito, mais que uma estrutura defm1da pelo recalcamento?
Alguns e le mentos de aproxi mação aos problemas propostos
Assinalemos, em primeiro lugar, que a diferença estabelecida por
Freud entre inconsciente em sentido descritivo, utilizado como adjetivo para
mostrar em relação a um elemento a qualidade de estar fora do campo da
consciência, e que é contraposto a um Ice enquanto sistema, toma nova
vigência na discussão interna da psicanálise, a partir da proposta que o
estruturalismo fez às, assim chamadas, ciências do homem.
O texto de Freud "O inconsciente", da Metapsico[ogia2, no qual ele define
as características do sistema Ice, esclarece: "O atributo de ser inconsciente
é apenas um dos aspectos do elemento psíquico, de modo algum bastan o �
para caracterizá-lo. O inconsciente abrange, por um lado, atos que sao
meramente latentes, temporariamente inconscientes, mas que em nenhum
outro aspecto diferem dos atos conscientes; e, por outro lado, abrange
processos tais como os recalcados que, caso se tomassem conscientes,
estariam propensos a sobressair num contraste mais grosseiro com o
restante dos processos conscientes". 3
44 I Silvia Bleiclwwr
E logo acrescenta, em uma tentativa de pensara inconsciente enquanto
sistema: "Empregamos as palavras 'consciente' e 'inconsciente' algumas
vezes em um sentido descritivo , algumas vezes em um sentido sistemático,
sendo que, neste último, elas significam a inclusão em sistemas particulares
e a posse de certas características".4
Definido o inconsciente enquanto sistema, não se trataria apenas de
situá-lo em uma posição, senão de reconhecer- lhe determinadas proprie­
dades, assim como determinados conteúdos específicos.
O incémsciente, enquanto sistema, pode ser resumido do seguinte
modo:
a. Seus conteúdos são representantes elas pulsões.
b. Estes conteúdos especiftcos são regidos pela legalidade especiftca
do proceso primário.
c. A fixação destes conteúdos no inconsciente encontra- se determi­
nada pelo recalcamento, o que não permite seu acesso ã consciên­
cia.
Conhecidos por todos os psicanalistas, estes conceitos não têm nada
de novidade e são o esqueleto e a carne do inconsciente, tal como o
concebemos aqueles que temos feito uma leitura mais ou .menos exaustiva
da metapsicologia. No entanto, como assinalei antes, a proposta do estru­
turalismo ele certo modo tomou esses conceitos mais complexos. A assimi­
lação do inconsciente a tudo aquilo que não faz parte do manifesto adquiriu
alcances tão amplos que se desliza elo campo ela antropologia ao campo da
psicanãlise, e também ao campo da pedagogia. Desde tal perspectiva, toda
estrutura funclante, determinante do manifesto, é assimilada a "inconscien­
te" e pode- se falar de estruturas inconscientes da cultura, da linguagem , da
aprendizagem. 5
O conceito ele inconsciente utilizado por extensão na própria psicaná­
lise perde a especificidade definida na tópica freudiana. E por um paradoxo
teórico, o inconsciente descritivo, ao qual Freud aludia, e o inconsciente
sistémico do estruturalismo têm raízes em uma mesma perspectiva : o que
definirá seu caráter é apenas seu valor posicional.
Nesta direção, do valor pos icional do inconsciente, é onde se situa,
desde meu ponto de vista, a formulação lacaniana de "cadeia significante
inconsciente" . A hipótese - central - de Lacan, teorizada em "A Instância
da letra", e».1Jressa: "Nosso titulo dá a entender que além mesmo desta
palavra, o que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente é toda
a estrutura ela linguagem. Alertando desde o início para o espírito advertido
sobre o fato ele que pode ver-se obrigado a revisar a idéia de que o
inconsciente não é senão a sede dos instintos". 6
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 45
A partir disso são duas as opções: ou admitimos em seguida que o
inconsciente não é a sede dos instinto s, e ao não ser a sede dos instintos não
fica outra possibilidade que adotar a hipótese de que é a linguagem o que
constitui sua materialidade (e a linguagem entendida como estrutura ela
linguagem, quer dizer enquanto sistema da lingual , ou nos vemos embretados
com aqueles que possuem uma concepção instintivista elo inconsciente,
poderíamos dizer "naturalista", e ficamos totalmente fora da psicanálise
contemporânea.
Em minha opinião são duas falsas opções. Dizer que o inconsciente não
é a sede elos instintos marca a divergência fundamental com aqueles que
assimilaram o inconsciente à biologia ou à psicologia, e que inclusive hoje
encontram na etologia um campo ele e».1Jerimentação - paradoxalmente ­
humano. Mas, não foi justamente a psicanálise francesa contemporânea
que assinalou a diferença fundamental entre instinto e pulsão na obra
freudiana, salientando o caráter cultural de toda se».'Ualidade, inclusive a
mais primitiva? Distinção absolutan1ente adequada e que marca, por sua
vez, o caráter estritamente cultural elo inconsciente como sede desta
sexualidade recalcada.
O fato de que o inconsciente não sej a a sede elos instintos, no sentido
�
biológico do tem1o, não implica que a estrutura ela linguagem seja o que
constitui integralmente seu campo. Por sua vez, se definimos o campo da
experiência analítica como o campo ela cura, é evidente que ela só é possível
através ela linguagem e pela linguagem. Mas Freud separou claramente a
possibilidade ele conhecer o inconsciente e sua existência como tal, de ·�
maneira que uma não se reduza à outra. Nem o inconsciente se reduz ao que .,
·
conhecemos no processo da cura nem, correlativamente, existe apenas por
seu conhecimento. 7
O problema de uma legalidade esp ecífica com u m conteúdo também
específico não é só uma questão geral , exclusivamente teórica, senão u m
problema concreto que leva à constituição de u m a teoria da técnica. S e o
inconsciente apenas fosse um valor posicional de sentido, como questionam
Laplanche e Leclaire à Politzer, com isso desapareceriam dois conceitos
chaves ela psicanálise: o ele recalcamento e o de resistência. Sejamos mais
claros: na teoria lacaniana elo significante, o significado só é um valor
posicional definido por sua localização em relação à barra, quer dizer, u m
significante em posição de significado; não h á então nenhuma qualidade
específica no elemento que está abaixo da barra, s alvo sua posição.
Admitidos o paralelismo absoluto entre ambas as cadeias e a proposta de que
é a "propriedade do significante ele compor-se segundo as Íeis de uma ordem
fechada [a que] afirma um substrato topológico do qual o termo cadeia
significante dá uma aproximação8, surge uma necessidade lógica de definir
a particular posição do inconsciente não como um efeito do recalcamento,
senão como um efeito da combinatória pura e simples elo significante. Desta
46 1 Silvia Bleichnza r
maneira, substituído o recalcamento pela "resistência d a barra à significa­
ção" , também desaparece o conceito de resistência com todas suas conse­
qüências clínicas e a técnica sofre uma variação definitiva.
Na psicanálise, propor o recalcamento novamente como centro leva,
por sua vez, a salientar o caráter do conflito no aparelho psíquico. O conflito
é impensável à margem da tópica psíquica. Os três aspectos dametapsicologia
(tópico, dinâmico e econômico) se enraizam no problema do conflito psíquico
e, se bem Freud optou em diversos momentos de sua obra por soluções
aparentemente contraditórias, essas soluções não são tão diversas como
pareceria em uma primeira aproximação. As duas propostas freudianas têm
como centro a definição do conflito no nível tópico e no nível pulsional. No
entanto, o antagonismo pulsional não se produz em geral, senão inscrito no
marco das duas teorias das pulsões. Quer dizer: como as pulsões sexuais
coexistem entre si e apenas estão em oposição às pulsões de autoconservação
ou pulsões do ego; como as pulsões de vida são opostas às de morte, e como
a libido do ego é oposta à libido objetai, o conflito pulsional aparece sempre
como dualismo pulsional. No entanto , o dualismo pulsional não reduz as
pulsões a duas, senão que as ordena em dois tipos desde a diversidade que
as constitui.
Estes dois dualismos pulsionais básicos a que nos referimos, pulsões
sex"Uais e de autoconservação (ou do ego: o destacan1os porque imbrica o
problema pulsional co:n ? problema tópico). e pulsões d : vida e de morte,
foram revisados nos ulümos anos por Laplanche9 ma1s ou menos nos
seguintes termos: enquanto Freud estabeleceu o primeiro dualismo pulsional
como um conflito entre as pulsões de autoconservação e as pulsões sexuais,
na Metapsico1ogia propôs o caráter da autoconservação como da ordem do
não recalcável e, por sua vez, estabeleceu a pulsão sexual como o protótipo
de toda pulsão. Este dualismo, portanto, ficava contraditoriamente anulado
pela definição da sexualidade como única pulsão no sentido estrito do termo,
e se deslocava em direção ao de um conflito entre a libido do ego e a libido
objetai, a partir da inclusão da problemática do narcisismo. O órgão
participante do conflito parece então o terreno onde ocorre o conflito
puls ional, mais que um dos pólos deste conflito.
o segu ndo dualismo pulsional trataria de resgatar o caráter indomável
da sexualidade originária, ligada à busca enlouquecida de satisfação, quer
dizer anárquica, não ligada, conceitualizada desta vez como pulsão de morte.
A libido ligada (ao ego ou ao obj eto) ficaria contraposta deste modo à
sexualidade do id, de um inconsciente entendido em sua profunda anarquia
pulsional, mas que não estaria por sua vez presente desde as origens: seu
caráter originário estaria dado por sua separação do sistema do ego. Os
dualismos pulsionais, e o conflito proposto, ficariam imbricados com o
problema tópico, recolocando-se o problema do conflito pulsionalem termos
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 47
intersistêmicos e ficando assim resolvido o aparente paradoxo de que o
irlconsciente - em sentido sistêmico - pudesse ser a sede do conflito.
Em minha opinião, só se pode pensar o conflito referindo-o a instân­
cias; e neste sentido, também, só pode ser definido através da posição que
o recalcan1ento ocupe na teorização que se proponha para o aparelho
psíquico10.0 recalcamento é um processo que ocorre sobre as representa­
ções na fronteira dos sistemas Ice e Prcc-Cc, segundo o que foi proposto por
Freud em "O inconsciente" . 1 1 Esta afirmação dá origem a dois problemas: o
problema da significação, por um lado, e o problema da intrínseca relação
existente entre inconsciente e recalcamento, pelo outro.
Em relação com o primeiro , assinalemos a ligação estreita que existe
entre a significação e o desenvolvimento proposto por Freud sobre o tema dos
sentimentos inconscientes: "Faz parte da natureza de uma emoção que
estejamos cônscios dela, isto é, que ela se torne conhecida pela consciência.
Assim, a possibilidade do atributo da inconsciência seria completamente
excluída no tocante às emoções, sentimentos e afetos ( . . . ) "12• "No recalcamento
se produz um divórcio entre o afeto e a representação, a partir do que amb o s
vão ao encontro d e seus destinos separados (. . . ) " . Deste modo, Freud nos
propõe, e m função da separação entre o afeto e a representação: "Se
restaurarmos a verdadeira conexão, chamaremos o impulso afetivo origirlal
de 'inconsciente'. Contudo, seu afeto nunca foi inconsciente". 13
Interessa-nos destacar o seguinte ponto: assim como o sentimento
chamado inconsciente é um efeito da qualificação da consciência a propósito
da carga, a significação não pode ser entendida senão c omo a reorganização
das representações inconscientes a partir de um sujeito que signifique.
Sujeito posto do lado do consciente, mas efeito do encontro entre os dois
sistemas. Sendo o processo analítico, por seu caráter, um processo d e
ressignificação e d e re-historização, é uma contradição teórica pensar que
este processo ocorre do lado do inconsciente. Está suj eito às relações entre
ambos os sistemas e aos enlaces simbolizantes que se produzam entre
ambos.
O processo de constituição do recalcamento origirlário, separação e
fundação dos sistemas inconsciente e pré-consciente- consciente, implica a
instalação d e uma contracarga que se encarregue da produção e d a
permanência do sistema inconsciente. Uma inscrição originária, um repre­
sentante pulsional que nunca esteve recalcado , encontra uma localização
defirlitiva n o sistema psíquico a partir da constituição deste recalcamento
originário. Mas, em que consiste esta contracarga e qual ê sua origem? A
partir da laboriosa diferenciação que tenta realizar entre as representações
correspondentes a cada um dos sistemas, Freud propõe o seguinte: "Agora
parece que sabemos de imediato qual a diferença entre uma representação
consciente e uma inconsciente. As duas não são, como supúnhamos,
 48 I Silvia Bleichmar
registros diferentes do mesmo conteúdo em diferentes localidades psíqui­
cas, nem tampouco diferentes estados funcionais de catexias na mesma
localidade: mas a representação consciente abrange a representação-coisa
mais a representação-palavra que pertence a ela, ao passo que a represen­
tação inconsciente é a representação-coisa apenas."14
A conclusão à qual se chega é a seguinte: a constituição de um sistema
significante definido pela linguagem, que opera desde o sistema pré­
consciente, sistema capaz de qualificar, definido por unidades diferenciais
no sentido proposto por Saussure, e retornado por Lacan para a constituição
do sistema da lingua, atua corno urna verdadeira contracarga no processo
que separa em um mesmo movimento o sistema inconsciente do pré­
consciente, ao mesmo ü;rnpo que cria as condições de dissociação entre o
afeto e a representação. E este caráter da representação-palavra que cria as
condições de instauração, no pré-consciente, da lógica e da ternporalidade.
Mas o caráter mais social, menos singular, do pré-consciente assinala a
radicalidade antitética de um inconsciente que se defme pela aternporalidade,
pela ausência de lógica, pelo caráter profundamente singular que o defme.
A linguagem é então, paradoxalmente, a rnaterialidade_cla_(;<LI!tracarga do I
sistema pré-c?nsciente, assi� c�m ? a pulsão o é do si �te rna inconsciente
_
j é a condição de existência de ambos os sistemas, mas sua existência não é
Mas, ass1rn corno a pulsao na o e um ser abstrato, bwlogico, defmido em
si mesmo, senão que é o efeito da intrusão sexualizante do outro humano,
desprendida da biologia comum a todos os homens e enraizada em uma
história singular da sexualidade do sujeito psíquico, a linguagem do Prccnão
é também a estrutura do código a que se referem os lingüistas , senão que
é o resíduo dos discursos particulares nos quais o sujeito se constitui.
O próprio adulto, esse outro, que sexualiza a criança, instaura o
sistema de proibições, dá respostas e impõe silêncios e proporciona as
representações com as quais contrainveste o inconsciente. Nesta defasagem
entre a palavra e o ato, entre o inconsciente e o pré-consciente, entre a
representação-coisa e a representação-palavra, instaura -se a relação entre
os dois sistemas, que dá origem à fantasia, à teoria sexual infantil, à
recordação encobridora.
A linguagem da qual nós, os psicanalistas, falamos é, em minha
opinião, diferente da linguagem dos lingüistas, assim como a sexualidade
da qual falamos é diferente da anatomia. A partir disso, a pergunta com que
começamos este capítulo fica respondida da seguinte maneira: nem a
linguagem é a condição do inconsciente , nem o inconsciente é a condição da
linguagem. Trata-se de pôr em relação ambos os sistemas em sua constitui­
ção originária e de recolocar a metáfora constitutiva do inconsciente , o
recalcarnento originário, no movimento fundador de ambos os sistemas.
Concluiremos estas observações com as seguintes propostas: sendo a
metáfora fundante do Ice algo que ocorre entre ambos os sistemas ,
consideramos, diferente do que proporia Lacan, que a metáfora não faz parte
Nas Origens do St!jeito Psíquico I 49
do inconsciente, senão que é fundante deste sistema. A idéia de uma
metáfora fundadora do inconsciente abre-se, então, na direção de assinalar
a criação, no inconsciente , de um espaço aonde os significantes se tomam
enigmáticos porque são apartados de forma absolutamente enigmática à
criança, de forma traumatizante, isolada. A partir disso, o recalcamento
originário não pode ser concebido senão como uma profunda mutação dos
significantes ou como uma diferenciação desde duas tópicas, dois sistemas
de cargas, dois tipos de conteúdos; em termos freudianos: da separação
entre repres entações-coisa e representações-palavra. E serão premissas da
possibilidade de inaugurar a significação, a instauração do pré-consciente
e a constituição do processo secundário contraposto ao processo primário.
Não se trataria, então, de contrapor à estrutura significante de Lacan
a estrutura do significado no inconsciente, senão de ressituar a problemá­
tica que, desde nosso ponto de vista, se resume nos seguintes termos: o
inconsciente é uma estrutura radicalmente diferente do pré-consciente/consci­
ente, clfia caracteristica é a possibítidade de ser signifu::ada na medida em que
as representações-coisa se conectam com as representações-palavra.
A contracarga, modelo de funcionamento do pré- consciente e do ego,
autônoma nem independente; ela é efeito de uma transmutação da carga
inconsciente, tal como é proposto por Freud. Neste sentido, deveremos
considerá-la corno partícipe do processo de constituição do recalcamento
originário; não será então um simples derivado deste, senão que será
instaurada em uma verdadeira contraposição de eleme.ntos dialeticamente
entrelaçados.
A (de)negação. Constituição d o recalcamento originário e d o ju ízo.
Em 1925, Freud publica um texto breve e surpreendente onde oferece,
a partir de uma série de observações realizadas no interior do processo
analítico, alguns elementos para a abordagem da constituição da inteligên­
cia em psicanálise; referimo-nos a "A negativa"15, trabalhado como um texto
técnico, que justifica um mecanismo de defesa para a "psicologia do ego".
Jean Hyppolite retoma o texto em um seminário de Jacques Lacan16,
tentando em sua exposição assinalar os alcances mais vastos de uma
proposta que revelaria a constituição da posição do sujeito: o que logo
conheceriamos amplamente como "sujeito da (de)negação", em sua relação
com um postulado central da teoria lacaniana: o sujeito de desconhecimento.
Freud tinha partido do seguinte paradoxo: não é suficiente que algo
esteja no plano do manifesto para que faça parte do consciente, para que s e
possa considerar que eludiu o recalcamento: " (. . . ) O conteúdo de uma
imagem ou idéia recalcada pode abrir caminho até a consciência, com a
50 I Silvia Bleiclz ma r
condição de que sej a negado. A negativa const!tui um modo ele �om�
conhecimento elo que está recalcado ( . . . ) embora nao. e_ claro, uma aceJtaçao
elo que está recalcado". 1 7
• •
Se não é suficiente que algo esteja no plano elo mantfesto para que se
considere que o recalcamento tenha sido levantado, se ainda não é suficiente
que esteja no plano ela consciência para que isto ocorra, como redefinir a
proposta ele que analisar é tomar consciente o inconsciente?
Mas Freucl volta, no parágrafo seguinte, a um postulado fundamental
ela psicanálise, um princípio que regeu sua proposta meta p sicológica desde
as origens Qá desde os Estudos sobre a histeria), a separaçao entre a carga e
a representação: "Vê-se como a função intelectual aqui se separa elo processo
afetivo. Com a ajuda ela negação apenas uma conseqüência elo processo elo
recalcamento é desfeita, ou seja, o fato de que seu conteúdo ele representação
não atinja à consciência. O resultado disso é uma espécie ele aceitação
intelectual do recalcado, com a persistência do que é essencial ao
recalcamento''. Poderíamos acrescentar: porque o essencial elo processo
recalcante consiste em que a representação não se ligue ao afeto concomitante
para produzir o clesprazer esperado.
_ _
No entanto, essa relação entre o afeto e arepresentaçao, essaseparaçao
entre a função intelectual e o processo afetivo, se manifesta no processo
analítico, por uma não aceitação ele um sujeito que considera um determi­
nado conteúdo representacional como alheio. A partir disso, posição ele
sujeito e (cle)negação são inseparáveis. Mas sempre qu e se consicl :re, como
base deste processo, a existência elo recalcamento tal e como esta no texto
freudiano, quer dizer, como o elemento pivô e o motor fundamental em torno
elo qual toda problemática haverá ele girar.
_ . _ .
Assim, a significação fica ligada inseparavelmente a postçao ele sujetto
e é impensável antes ela separação precisa entre inconsciente e pré­
consciente/consciente. Na mesma direção, o juizo é considerado por Freucl
como um atributo elo processo secunclátio (embora esteja ligado aos mais
primitivos movimentos elas moções pulsionais e, em tal sentido. relacionado
com o ego prazer originário).
Jean Hyppolite propôs, desde o ângulo ela filosofia, uma nova visão
sobre este teÀ'tO. A partir elos exemplos propostos por Freucl eÀtrai uma
primeira conclusão: " ( . . . ) Esta observação leva Freucl a ur:1a generalização
cheia de audácia, aonde vai propor o problema da (cle)negaçao como podendo
ser a própria origem ela inteligência. É assim como compreendo o artigo em
toda sua densidade jilosójica".18 A visão filosófica nos ofereceria o seguinte
ponto ele vista: a partir elos procedimentos técnicos concretos elo analista,
que consistem em pedir ao paciente que diga o que lhe pareça mais
inverossímil para, deste modo, aproximar-se ao material recalcado, chega à
conclusão ele que se trataria ele um modo ele apresentar o que se é no modo
ele não o ser. Pois é exatamente isso o que o constitui: "Vou dizer-lhe o que
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 51
não sou; cuidado, é exatamente o que sou". Hyppolite pensa que esta
opacidade do ser, que se apresentaria no modo de não o ser, constitui
exatamente a ftmção ela (cle)negação.
A palavra alemã Aujhebung, a partir ela qual Freucl assinala o movimen­
to ela (cle)negação ("a (cle)negaçào é uma Aujhebung elo recalcamento, mas
nem por isso é uma aceitação elo recalcado") é o conceito que permite a
Hyppolite chegar à seguinte conclusão: "Apresentar o próprio ser no modo
cle nào o ser, disto se trata verclacleiramentenessaAt!fhebungclorecalcamento
que não é uma aceitaçào elo recalcado. Aquele que fala diz: 'Isto é o que não
sou'. Se recalcamento significa inconsciência, aqui já não haveria
recalcamento, já que é consciente. Mas o recalcamento subsiste, no
essencial, na forma ela nào aceitaçào" (pág. 395) .19
Da releitura filosófica elo texto freudiano queJean Hyppolite nos propõe
retomaremos três elementos: em primeiro lugar, a estruturaçào da inteligên­
cia é inseparável ela constituição ele uma posição ele sujeito. Em segundo
lugar. esta constituição inaugura a abertura ele dois espaços, radicalmente
diferentes, e cuja característica é estar em oposição dialética. Terceiro, a
constituição desta posição ele sujeito é inseparável ela contracarga que
impede a emergência elo recalcado desde o sistema pré-consciente, ao
mesmo tempo que inaugura a possibilidade da constituição ela inteligência
sobre a base ele separar o afeto ela representação.
No entanto , esta abertura ao problema elo desconhecimento do suj eito,
o fato ele que o sujeito desconheça suas determinações, pode encontrar duas
vertentes diferentes ele acordo com o modo como nos situemos em relação
ao problema do recalcamento e segundo a significação que outorguemos a
este. "A psicologia concreta, precisamente porque não considera que a
.
ignorância elo sujeito a respeito do seu próprio ser sej a um fato particular­
mente notável, não tem nenhuma necessidade ela noção ele inconsciente",
dizem LaplancheeLeclaireno Colóquio. E respondem à proposta politzeriana:
"Não dissimulamos aquilo que destes textos encontra um eco na experiência
e na doutrina freudiana, assim como em certa tradição filosótlca: cegueira
que. pelo próprio fato ele sua posição, surpreende o sujeito quanto à
signillcação de seus atos, opacidade radical do cogito, esta tesemalebranchiana
tem seu correspondente na teoria ele Freucl". 20
A posição ele sujeito é um efeito de desconhecimento ou é um efeito do
recalcamento? Quer dizer: a posição de sujeito está determinada pelo lugar
que ocupa na tópica psíquica em relação ao inconsciente ou o inconsciente
está definido pelo movimento discursivo do paciente em relação a seu
próprio desconhecimento?
_
Podemos dizer que todo movimento de análise que se define em relaç �o
à perda das certezas elo st0 eito é parcialmente correto, sempre que s eJ a
pensado e m relação ao seguinte: se as certezas do sujeito são abandonadas
para produzir um impulso que leve (sem juizo crítico prévio) à livre
 52 I Silvia Bleichmar Nas Origens do Sujeito Psíquico I 53

sociação é apenas porque subsiste a ilusão de encontrar alguma outra para mostrar como este mecanismo opera entre inconsciente e pré-consci­
�:demde s�ntido. Quancons do AI�_Millerdize msuas Conjerências Caraque fiaS-I
_ ente, entre processo primário e secundário, já que o inconsciente freudiano
que 0 simbólico está �1tmdo por d�as vertentes, uma que te�de a e a linguagem dos lirlgüistas opõem-se radicalmente e as tentativas de
significação e outra que esta antes de mms nada do lado do sem-senhdo, e transpor termo a termo suas propriedades apareceriam como uma tentativa
que se pode afirmar que a ênfase de Lacan pass?u ;ndubitavelmente da paradoxal. O cotejo entre psicanálise e lirlgüística apenas é possível ao preço
primeira vertente para a s�gu�?a. A que alude .com :st� . . O rr:esmoescl�ece : de um desdobramento de ambos os campos: no campo psicanalítico, um ·

é desde 0 sem- sentido do s1gmflcante que se cna a s1gmflcaçao. E estanamos campo pré-consciente regido pelo processo secundário e um campo irlcons­
parcialmente de acordo se comisso se aludisse a que se criauma significação ciente regido pelo processo primário. No campo lingüístico, o da linguagem
no movimento da ]ivre associação, na medida em que um discurso aparen­ com a qual nos comunicamos e a ficção de uma lirlguagem em estado
temente sem sentido toma um sentido diferente daquele que parecia ser-lhe reduzido". (Colóquio de Bonneval).
proposto inicialmente . No entanto , nossa interpretação desta hipótese não Tratar-se-ia não de um desdobramento do campo da lingüística, senão
parece ajustar-se totalmente à proposta de Alain Miller quando este de marcar o efeito radicalmente diferente da lirlguagem no inconsciente.
assinala· "De modo geral diria que para Lacan não há teoria do irlconsciente Lirlguagem que-se conservamos tal denominação - é apenas um produto
enquant� tal. Há fun damentalmente uma teoria da prática analítica e, em origirlal defirlido por leis do processo primário, e não pelas leis do processo
­
defirlitivo, é sempre a estrutura rec?nhecid.a da pr�p.ria experiência cu;.�líti secundário. Desqualificada a lirlguagem comunicacional, ao produzir-se o
ca, que se supõe ser a estrutura do mconse1ente. D�� qu.e todos os teoncos movimento de constituição do irlconsciente, não teria outro caráter, como
sérios da psican álise sempre reconheceram esta eXIgenc1a e sempre deram Freud assinalou, que aquele de constituir-se em representações-coisa.
ao analista um lug::rr na es�rut��� do inconsciente. O analístafo1TTl(lP9:rte do
-próprio conceito de mcocien�ctente · . .. . . J Neste sentido é tão inadequado falar de umalógica da cadeia significante no
inconsciente, como de uma lógica da significação. Hoje se deve sair da
Definido 0 inco ns te pelo sem - sentido, no entanto sua eXIstenc m so captura lirlgüística, assim como Lacan mesmo propôs em seu momento sair
tem estatuto na _ pro post a de Alain Miller - a partir do sentido que toma da captura biologista. As opções ligadas às duas posições que hoje prevale­
na prática analítica. O objeto ?esapareceu como tal e ficará defmido em cem na psicanálise oscilam entre um irlconsciente defmido como pura
.
função de sentido ou sem-sentido legalidade, como a combirlatória pura e simples do significante e um
, Dizer que 0 anali sta está i� plicado na �strutura do inconsciente, dizer irlconscientedefirlido como puro conteúdo, como phantasy (correlato pulsional
na .
\ que 0 inconsciente apen as eXIste med1da em que pode ser hdo pelo direto). O inconsciente freudiano, como já assirlalamos, defme-se por
J analista, ou dizer que o mconscien
quanto
t� é o que vem a? encont:o do analista,
diZer que a graVIdade eXIste desde que
conteúdos específicos - sexualidade infantil recalcada -, e por uma
nde

I
é um absurdo tão gra legalidade própria, a legalidade dos processos primários. Nesta dimensão,
Newton descobriu a lei da queda dos corpos. A realidade desapareceu e sua posição não está isolada da relação que mantém com outra irlstãncia:
apenas é um existente definido pela posição do científico e pelo fenômeno ao o pré-consciente/consciente, sem o que perde toda razão de existir.
1 qual este acede. _
. _ . _ O problema da busca de um princípio explicativo único não é patrimônio
\
Ao voltar à significaçao em ps1eanál1se nao apenas se aborda um dos psicanalistas. No início da filosofia grega existia o dilema do uno e do
problemateórico que de�e , �m mirlha opirl�ão, se� cuid ��osamente ?eslindado múltiplo.23 A busca de um princípio fundamental que permitisse entender
dos problemas da Hngürstl.c� conten:po.r�e�: e o S UJeito qu: esta no.c�ntro a diversidade dos fenômenos levou os filósofos a buscarem uma "causa
da problemática psicanahtica da s1gmücaçao e, em relaçao ao SUJ eito, a material" de todas as coisas. E isto nos levou ao ponto de partida de que o
posição que este ocupa no que diz respeito a seu próprio irlconsciente mundo estava constituído de matéria. Mas, por sua vez, se lhes propôs o
definido nos marcos da tópica freudiana. O que está em j ogo também é a problema de averiguar se a causa material deveria ser identificada com
questão da cura analítica, a situação das . re�is.tências e o pr?blema da alguma das formas existentes de matéria (água, na filosofia de Tales, fogo,
irlterpretação , defirlido no� T?arcos de um pnnc1p10 geral � o funcwn.amento na de Heráclito) ou com alguma substância fundamental da qual a matéria
psíquico marcad o pelas senes pr�erldesprazer, quer . diZer, defi�udo pel� real apresentaria apenas as formas transitórias (como na proposta de
dor que captura 0 sujeito entre o smtoma e o reconhecimento do mconscl- matematização de Platão).
ente. A intenção da hipótese atômica foi mostrar o camirlho do múltiplo ao
Ao utilizar 0 modelo lirlgüístico da metáfora para ilustrar o mecanismo uno, estabelecer o princípio fundamental, encontrar a causa material a
do recalcamento , Laplanche e Leclaire esclarecem: "Este modelo é tomado partir de onde pudessem ser entendidos os fenômenos : mas encontrou-se
54 I Silvia Bleichma r
com dois enunciados contraditórios: a matéria é divisível infinitamente e,
por outra parte, existem as unidades menores da matéria. Assim, um
problema filosófico que está na origem da religião e da ciência, a busca do
uno como fonte última de compreensão, formou parte dos paradoxos iniciais
de nossa cultura.
Só a ciência moderna mostrou que o paradoxo teórico poderia ser
resolvido, mas á custa de abandonar as soluções iniciais: o produto de um
fenômeno de choque de partículas de grande energia não ê a "cisão"
daquelas, senão a criação de partículas a partir da energia; a equação
relativista que une energia e massa permite compreender a constituição da
partícula elementar.
O problema do uno e do múltiplo encontra-se proposto na psicanálise
em diversas perspectivas: desde o problema do caráter produtivo elo
inconsciente, e em conseqüência de sua estrutura, até as formas ele
passagem e constituição elo sujeito psíquico em relação á estrutura fundante
do Édipo.
O inconsciente em constituição do sujeito ê homotêtico com os objetos
parentais eclípicos dos quais é fruto? A criança é simplesmente um
desprendimento elo objeto materno, uma subdivisão desprendida elo
psiquismo matemo marcada pelos mesmos conteúdos representacionais,
pelas mesmas estruturas clesejantes, expressão idêntica do único, eterna
estn1tura que se repete a si mesma?
Propor que a metáfora é fundante elo aparelho psíquico, que aquilo que
constitui a origem elo inconsciente é o recalcamento originário, pode dar
algumas respostas. Em primeiro lugar, se falamos de metáfora, falamos da
criação ele um novo sentido. Aquilo que estava, aquilo que era um existente,
transfom1a-se em um significado novo através ele uma operação combinatória.
Mas esta operação combinatória, ao estabelecer a metáfora, o corte entre
ambos os sistemas psíquicos, é o que possibilita uma nova significação .
Significação que não está dada em si mesma no inconsciente, senão que é
justamente efeito ela cisão através da qual o que é perturbador para o sujeito
fica recalcado .
A desqualificação elas marcas mnêmicas acústicas do _<:!!scurso mater-
.!lQque se instalam no inconsc!efüe como parre-dasrepresen�õ_es:::.çgts. a fica
( 4.
contraposta ao discurso ela proibição que se instaurã·no 15ré-consciente. A
metáfora paterna, o recalcamento primário, não é senão a fundação de duas
instâncias radicalmente diferentes, a partir ela constituição ele um sentido
que coloca o sujeito como contraposto a seu próprio inconsciente (constitu­
ído como instância alheia a um si-mesmo) , tópica que se situa no ego.
A proposta de Lacan, então, pode ser parcialmente compartilhada: a
origem do inconsciente não eleve ser buscada na biologia, nos instintos, deve
ser buscada nas ordens que possibilitam a constituição do sujeito psíquico
na cultura. Mas não há uma a-historicidade do discurso matemo que se
------ Nas Origens do Sujeito Psíquico I 55
transmita em um movimento eterno e perpétuo ao inconsciente da criança.
Não há uma homogeneidade desejante que instaure uma causa única, u m
elemento único e m torno d o qual s e constituiria o SL� eito. O que marca,
justamente, a ruptura da ilusão de um sujeito unificado na teoria freudiana
é o contraditório conjunto de representações desejantes que habitam o
inconsciente, sua incoerência, sua compatibilidade a-lógica e, por isso
mesmo, sua contraposição ao sistema pré-consciente/ consciente.
Os elementos assinalados são propostas introdutórias para a aborda­
gem da constituição do processo secundário em psicanálise. Os chamados
transtornos da linguagem ou transtornos ele aprendizagem na infância são,
na maioria dos casos, efeito das falhas na constituição elo recalcamento
�
originário e, e m conseqüência, fracassos na estrutu:açã� elo sujeito psíqui­
. .
co. Neste sentido e_ que, ao abordar o processo de constitmçao do recalcamento
originário, da divisão entre os sistemas psíquicos, estudamos o problema da
constituição ela lógica e do juízo, cujas condições de estruturação são
também as condições de uma lógica ela linguagem marcada por oposições
que definem significações diversas.
O juízo, o discurso gramaticalmente estruturado , são um produto do
recalcamento e, portanto, sua singularidade só será estabelecida pela
correspondência que os entrelaça a um inconsciente, este sim, absoluta­
mente singular.
Notas d e referên cia
l. À respeito, confronte-se S. Leclaire, Un encantamiento que se rompe, Buenos Aires:
Gedisa, 1983. G. Rosolalo. "La psychanalyse idéaloducte", em Nouvelle Revue de
Psychanalyse, Paris, nº 27, 1983. F. Rouslang, Un destin sijí.meste, Paris: Ed. de
.
Minuit, 1976.
.
2. S. Freud, OC. vai. XN, 1974.
3. Ibiel . pág. 198 (os bastardos são nossos) .
5.
Ibiel., pág. 198 (os bastardos são nossos).
Em sua Antropología estructural, Lévi-Strauss deu o modelo pertinente a isso, ao
tomar deTru betzkoy os passos do método fonológico: "Em primeiro lugar- assinala
Lévi -Strauss -, a fonologia passa do estudo dos fenômenos lingüísticos 'conscientes'
ao estudo de sua estrutura 'inconsciente"' . Antropología estructural. Buenos Aires:
Eudeba, 1 968. E uma autora como Sara Pain, em um livro recente, Estructuras
inconscientes del pensamiento. Lafunción ele la ignorancia, (Buenos Aires: Nueva
Visión, 1979, vol. 1), tenta uma assimilação entre as chamadas "estruturas cognitivas
inconscientes" e as estruturas do inconsciente em sentido psicanalítico, apoiando­
se para isso na teorização ele Piaget, por um lado, e na psicanálise estruturalista, pelo
outro. '1ratarnos de adotar aqui a noção mais geral ele inconsciente para que
abarque tanto o inconsciente cognitivo como o inconsciente simbólico, e o entende­
remos então como uma categoria concreta, positiva e estruturante, que tem por
objeto a instauração simultânea de um mundo compreensível e ele um sujeito que
56 I Silvia Bleichmar Nas Origens do Sujeito Psíquico / 57
nele se reconheça e torne seu desejo reconhecível . O inconsciente é então o lugar do de adaptação biológica, em primeiro plano, e social, em segundo termo, por
processamento do pensamento, de onde a consciência recolherá imagens atribuíveis derivação, ao tornar equivalentes a sociedade com o meio no qual o organismo se
à realidade ou ao ego . . . ". (Os bastardos são nossos.) Ao esvaziar a estrutura de seus desenvolve.
conteúdos específicos, esta assinúlação assume uma coerência notável apenas 11. S. Freud, op. cit., pág. 207.
compreensível a partir do efeito enganoso com o qual o formalismo estruturalista 12. Ibid., pág. 203 (Os bastardos são nossos).
impregnou as ciências. 13. Ibid., pág. 204.
6. J. Lacan, "Lainstancia de la letraen elinconsciente", em Escritos I, México: Siglo XXI ,
14. Ibid., págs. 229-230.
1972, pág. 180. 15. S. Freud, "A negativa" , em OC, op. cit., vol. XIX, 1976.
7. Referindo-se ao exemplo famoso de "Poordjeli", dado por Leclaireno texto do Colóquio 16 Intervenção de Jean Hyppolite no seminário deJacques Lacan "Les écrits techniques
de Bonneval, em seu senúnãrio La situation psychanalytique ("Le psychanalyste et de Freud" (1953-54), publicado posteriormente em Escritos II com o titulo de
son baquet"), Laplanche propõe: '"Poordjeli', em sua pureza fonatória, é apesar de "Comentaria hablado sobre lá Vemeinung de Freud", México: Sigla XXI 1975, pág.
,

tudo algo único, um apaxno próprio Leclaire. Entre um certo número de analisandos 393.
a respeito dos quais Leclaire nos informa, não encontra em todos os casos uma 17. Cf. S. Freud, vol.XIX, op. cit. , pág. 295-296.
continuidade desta índole; o mesmo vale para os outros analistas: se às vezes um 18. J . Hyppolite, op. cit. , pãg. 394 (os bastardos são nossos) .
vocábulo deste gênero pode parecer concentrar sobre si uma série de cadeias 19. Aujhebung do recalcamento, quer dizer negação determinada, ao mesmo tempo que
associativas, não se poderia fazer disso o modelo da análise, nem uma etapa comum nega, determina uma certa posição: "O resultado de uma experiência da consciência
de toda análise. não é, com efeito, absolutamente negativo senão para ela mesma; de fato a negação
é sempre negação determinada. Se é verdade que toda posição determinada é uma
"Em segundo lugar: este 'Poordjeli' não é nem uma palavra da linguagem
negação (omnis a.ffirmatio est negatio), não é menos verdadeiro que toda negação
comum, nem uma frase, nem nada que possa ser entendido em relação ao sistema
determinada é uma certa posição". J. Hyppolite, Génesis y estructura de la
ordenado da linguagem; nada que se refira diretamente à linguagem como código e
como sintaxe . E um neologismo, que condensa fonemas, dos quais cada um é o
fenomenologia del espíritu de Hegel, Paris: Aubier-Montaigne, 1946, pág. 19.
elemento de partida de uma pista em direção a um desejo. De certa forma, se poderia
20. J. Laplanche e S. Leclaire, "E! inconsciente, un estudio psicoanalitico", em El
mconsciente (Colóquio de Bonneval), México: Siglo XXI , 1970, pág. 99.
dizer que 'Poordjeli' é outra versão daquilo que Freud descobriu na recordação
21. J . Alain Miller, Cinco conferencias caraqueftas sobre Lacan, Caracas: E! Ateneo,
encobridora.
1980.
"Em terceiro lugar: esta 'fórmula imprudente', para retomar o mesmo termo de
22. Ibid. , pág. 1 2 (os bastardos são nossos).
Leclaire, não encontra, segundo ele, sua subsistência mais que naquilo do qual ela
23. W. Heisenberg, "La ley natural y estructura de la materia",' em El humanismo en la
é a representação, e que é explicitamente concebido como extralingüistico. Quero
Júosofia de la ciencia, México: UNAM, 1967.
dizer que jamais o 'Poordjeli' está dado como o conteúdo último do inconsciente,
senão como uma anteúltima (poder-se-ia dizer) 'representação' do que é chamado
'representante inconsciente'. " Psychanalyse à l'Université, vol. 5, nº 20, setembro de
1980. (Os bastardos são nossos.)
8. J. Lacan, Escritos I, op. cit., pãg. 187
9. J . Laplanche, L'inconscient et le ça, Problémattques N, Paris: Presses Universitaires
de France, 1981. (O inconsciente e o id, São Paulo: Martins Fontes, em produção).
10. Nesta mesma direção é como, hoje, deveria ser recolocada a polêmica com a
"psicologia do ego". O fato de que esta escola tenha enfatizado a função sintetizadora
do ego não é senão um resultado da subsunção do campo da sexualidade no campo
da autoconservação. Na medida que se considera o sujeito como submerso em um
conflito cujos pólos parecem ser, por um lado, a autoconservação e pelo outro a
realidade, a sexualidade tende a desaparecer do campo do conflito; nem sequer se
transforma em um desses pólos (como poderia parecer em Freud desde a primeira
teoria da pulsões, aonde este conflito se daria entre a sexualidade, por um lado, e as
pulsões do ego, pelo outro), senão que desaparece pura e simplesmente.
Desta maneira, a postura da psicologia do ego, em relação à forma pela qual
concebe esta instância como lugar de conhecimento, não é senão um efeito do
deslocamento e o posicionamento, na teoria freudiana, por uma teoria do conflito.
No momento que a autoconservação é defmida por suas relações com o real, é
inevitável que o ego passe a tomar o lugar que ocupa em suas teorizações e que se
defina por suas caracteristicas de organismo presente desde as origens; organismo

M ito o u h i stória
nas origens do aparelho psíqu ico
Salientamos, nos capítulos precedentes, como a preocupação da qual somos
objeto quando nos dedicamos à constituição de uma teoria da clínica de
crianças nos leva à busca de respostas em relação ao auant-clíuage, aos
tempos míticos das origens.
Ao partirmos da opção teórica que o aparelho psíquico implica dois
modos de funcionamento e dois conteúdos marcados por relações de conflito
e que o pré-consciente não se funda a partir do inconsciente, senão que cada
sistema está em correlação com o outro, afirmaremos que não se pode falar
de inconsciente, não se pode falar de formação de sintomas na infància em
sentido psicanalítico, antes que o recalcamento originàrio se instaure, sendo
a partir disso que se constitui o aparelho psíquico. Mas, o que hà então no
psiquismo antes desta instauração? E, por outra parte, desde que perspec­
tiva devem ser considerados os estados anteriores a tal recalcamento? São
momentos genéticos, momentos do "desenvolvimento" determinados inter­
namente por um movimento evolutivo que depende da maturação do
psiquismo infantil entendido como um organismo? São apenas tempos
míticos, quer dizer, supostos das origens cujo efeito de conceitualização tem
interesse em função de u m preenchimento conceitual da teoria psicanalíti­
ca, compreendida como uma verdadeira antropologia no estudo do homem
em geral? Ou são - tal e como pretendemos demonstrar desde uma
perspectiva histórico-estrutural-verdadeiros momentos de organização do
psiquismo que vão pem1itir a localização dos elementos constitutivos em
função de determinantes constituintes, cuja correlação possibilitará não
58
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 59
apenas comprovar as hipóteses teóricas senão a determinação, no momento
da consulta, de um campo de trabalho sobre o qual operar com um índice
de maior cientificidade?
Como aquilo que guia nosso trabalho é a preocupação por fazer
trabalhar o recalcamento originârio, para dar um fundamento metapsicoló­
gico à análise de crianças, vemo-nos tendo a necessidade ele salientar a
seguinte observação: toda aMetaps ico log ia tende amostrar umacomplexização
crescente das estruturas psíquicas em função da organização defensiva do
�uj �ito em r� lação àquilo ele que ele não pode fugir, quer dizer, em relação
a ;11c!a pulswnal. Paradoxalmente, na meclicla em que essa estrutura
ps1quica se complexiza, assistirían10s no manifesto a um ordenamento
empobrececlor desse mundo pulsional. A riqueza fantasmática atribuída por
Melanie Klein ao sujeito das origens tenderia aparentemente a um
obscurecimento, a um apaziguamento, na medida em que o aparelho
consegue formas superiores ele organização, como se este caos inicial só
encontrasse uma estrutura possibilitadora de prazer á custa de uma
regulação menos angustiante.
O problema radicaria, possivelmente, não em considerar uma totalida­
de assinalada pelo caos ou pela ordem, senão por urna complexização na
qual esses fantasmas precoces devem encontrar uma localização definitiva
no interior da tópica psíquica.
Freud não deixou ele assinalar, na própria Metapsicologia, que a agência
representante ela pulsão se desenvolve com maior riqueza e menores
interferências quando é subtraída do influxo elo consciente pelo recalcamento
�"O Recalcamento"). Concebido o recalcamento originârio como a clivagem
maugural elo aparelho, aquela que tem a virtualidade ele constituir urna
tópica definitiva, é justamente pelo fato de que na análise de adultos (e na
análise ele crianças, cuj a tópica já se encontra organizada) encontramos
através do recalcamento secundàrio a marca desse verdadeiro acontecimen­
to fundador, que sua existência real pem1aneceu na ordem do mito, reduziu­
se a ser simplesmente uma necessidade lógica no cmpus ela teoria psicana­
lítica. No entanto, na psicanálise de crianças, nos momentos em que nos
vemos obrigados a enfrentar-nos com o auant- clíuage, a relocalização destes
tempos permitirá considerá-los no interior de um verdadeiro processo
histórico de constituição do sujeito psíquico, confrontando-nos com os
movimentos estruturantes que não são só anteriores ao recalcamento
originário senão que preparam sua instalação definitiva.
Vemos em "Pulsões e destinos das pulsões" que a meta (Ziel] da pulsão
_
e. em todos os casos, a satisfação que só pode ser alcançada cancelando o
estado de estimulação na fonte. As primeiras diferenças entre o estimulo
interno e o estimulo e"iemo são dadas pela possibilidade de fuga ou não do
organismo frente a eles. A diferença entre estímulo (Reiz) e excitação
(Erregung)1 permite a mesma diferenciação: a pulsão é aquele estím�_llo
60 I Silvia B!cichnwr
endógeno frente ao qual a fuga está impedida, levando, a partir disso, a
movimentos psíquicos defensivos cuj a complexidade desembocará na cons­
tituição de uma tópica no sujeito psíquico. O caráter altamente paradoxal
do objeto no momento do apaziguamento da necessidade, o fato de que o
suporte do agente que satisfaz essa necessidade seja o mesmo que o do
agente de excitação se:-a1al, toma mais complexo esse movimento diferenciador
gerando um el\.'temo-intemo, objeto fonte. derivado da estimulação sexual
precoce à qual a criança está exposta pelo fato de estar sujeita aos cuidados
da prática materna antinatural. E nesse sentido devemos assinalar que,
quando incluímos os cuidados maternos entre as práticas antinaturais, não
o fazemos só no sentido proposto por Lacan (ortopedianarcisizante obturadora
da incompletude fetalizada das origens) , senão que o fazemos no sentido de
considerá-las entre todas aquelas práticas capazes de mudar a natureza do
objeto, de subverter sua harmonia natural - a do instinto , nesse caso -,
através de uma ação modificadora. Ao tomar um objeto natural (a criatura
humana) e transfom1á-lo em um produto de cultura, um produto sexualizado,
subvertido em seu instinto, guiado a partir dessa inclusão sedutora e
traumática em um mundo regido pelo prazer-desprazer, pelo an1or e pelo
ódio, o agente matemo abre as vias dessa humanização em virtude da qual,
mesmo em suas falhas, nos produtos oligofrenizados da psicose infantil, já
se vê uma produção cultural e artificial e não um ser natural constituído.
Como conceber então, sem aludir à própria constituição do sujeito
psíquico, as transformações da defesa às quais a pulsão é constringida,
verdadeira mutação de seu destino; se conservamos a hipótese do apoio e
a situamos desprendida da ordem vital no movimento que a consUtui como
objeto externo- interno p erturbador excitante?
Se bem assinalávamos antes nossa preocupação em fazer trabalhar o
recalcamento originário , dizendo que este não aparece nos tel\.'i:os freudianos
senão como uma necessidade teórica, a necessidade ele oferecer um
fundamento lógico ao recalcan1ento secundário - sendo uma necessidade
do sistema que aquilo que é secundariamente recalcado eleve ser ao mesmo
tempo expulso ela consciência e atraído pelo inconsciente, inconsciente
originário que permitirá esta atração -, há noções presentes no conjunto da
obra que permitem cercá-lo: afiXação. a contmcarga e o traumatismo são as
que escolhemos para tal.
Nas páginas seguintes desenvolveremos estas idéias com o objetivo de
fazer jogar essa preocupação sem dúvida compartilhada, mesmo que não
resolvida por Freucl, quando dizia que se o recalcamento não é u m
mecanismo de defesa presente desde as origens, poder-se-ia adiantar a
hipótese ele que " . . . antes de a organização mental alcançar essa fase, a tarefa
ele rechaçar as moções pulsionais cabia às outras vicissitudes ( . . . ) por
exemplo, a transformação no contrário e a uolta contra a própria pessoa'',2 O
primeiro destes processos afeta a meta, o segundo, ao objeto, e estão ligados
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 61
entre s i até o ponto em que é impossível descrevê- los separadamente; ambos
se estruturam em uma gramaticaliclacle (mesmo quando seu caráter seja
anterior à linguagem como tal) na qual o reflel\.ivo é o caminho para a
permuta entre o sujeito e o objeto (olhar/olhar-se/ser olhado), cujas
altemãncias pennitem ao próprio sujeito ser tomado como objeto.
Em "Pulsões e destinos elas pulsões" encontramos a exposição mais
el\.'i:ensa a respeito destes mecanismos. Dos três tempos propostos para a
constituição do exibicionismo: olhar, como atividade dirigida sobre u m
objeto estranho; abandono do objeto e retomo ela Schau1ustsobre uma parte
do próprio corpo (olhar-se), e introdução ele um novo sujeito para ser olhado
por ele, o primeiro tempo não corresponcleria à tendência pulsional ativa
propriamente dita, nem à perversão como tal: Freud designa com isso a
função visual enquanto função autoconservaclora. A origem da pulsão
corresponclerá ao segundo estágio, o estágio elo registro sel\.L.Jal do fantasma. 3
No terceiro tempo, a introdução de um novo sujeito p ara ser olhado por ele,
propõe uma dimensão diferente ela questão, a qual comentaremos mais
adiante.
Detenhamo-nos no segundo tempo, momento do "retomo sobre a
própria pessoa", deixando o primeiro tempo que, como dissemos, correspon­
de ao sujeito da autoconservação (não há pulsão de ver, o olhar não está a
serviço ela sexualidade). Dizer que o sujeito olha-se a si mesmo n ão é
suficiente. Isto seria puramente descritivo. Para o observador o sujeito olha­
se a si mesmo. mas quem olha quem e desde onde? Conservando a linha que
adotamos, de um primeiro tempo da sel\.L.Jalidade ligada ao auto- erotismo,
objeto parcial da pulsão parcial (segundo tempo elos tempos propostos p or
Freud, já que deixaremos ele lado esse primeiro tempo da autoconservação,
tempo míUco elo sujeito não sexuado), ê esta pulsão p arcial a que está e m
jogo e apenas fenomenologicamente existe u m olhar-se que implique u m
Sl�jeito imaginariamente unificado possuidor d e uma imagem completa d e
si mesmo, quer dizer, um ego que tome a seu encargo a representação elo
sujeito psíquico. Esta primeira cisão entre olhar (elo primeiro tempo) e olhar­
se, elo segundo, não se realiza pela linha que marcará o recalcamento
posteriormente, cisão determinada pelo conflito intersistêmico, senão por
uma primeira clivagem entre o sujeito ela autoconservação e o sujeito
sel\.'Llado, abarcando múltiplas linhas que só põem ele manifesto a fragmen­
tação libidinal deste último.
Ser olhado pelo outro - do terceiro tempo, se nos referimos à proposta
ele Freucl; elo segundo tempo, se falan1os no campo exclusivo ela sexualidade
- em nossa opinião, eleve ser considerado como um efeito da estruturação
do ego narcisista, qualitativamente diferente ela anterior na constituição do
aparelho psíquico.
Já que a satisfação é a meta necessária e obrigatória ela pulsão, que
significaria falar de umapulsão de fim passivo? Ou teremos que incluir nesse
62 I Silvia Bleic/wwr Nas Origens do Sujeito Psíquico I 63

caso o sujeito considerado em sua condição de contracarga, quer dizer, intenso sofrimento, deveria ser levado em conta, não ex-plicava ele nenhum
incluir a constituição do ego para tomar inteligível esse processo que marca modo nem a estrutura psíquica ã qual me enfrentava no momento ela
os movimentos primários de cisão do psiquismo incipi :nte? consulta, nem a especificidade sintomática que se enraizava nela.
. . . _

Tentaremospor à prova nossa hipótese de trabalho, teoncae de conseque�­

cias dmicas, de que a transformação no contrário e a volta sobre a propna_
A história de A n dré
pessoa, como mecanismos de defesa, são mecanismos estruturantes do apare­
lho psíquico, cujo aparecimento marca o primeiro teml?o do re�alcamento
. Os pais casaram muito jovens, depois de um namoro de três anos, e um
originário, recalcamentojundante deste aparelho, e da diferenctaçao entre os
ano e meio mais tarde nasceu André, quando a mãe tinha dezenove anos e
sistemas inconsciente e pré-consciente/consciente.
o pai vinte e cinco anos. Na metade do namoro morreu o pai da mãe, ele quem
Proporei para discussão, mediante um caso clínico, as hip?teses antes
. tomaram o nome para o menino. O parto, previsto p ara meados de julho,
assinaladas, para posteriom1ente retomar alguns problemas teoncos que se
aconteceu 20 dias antes, coincidindo com o terceiro aniversário ela morte do
derivan1 daí.
avô . A família festejou o nascimento de André dizendo que "meu pai voltou
a nascer" (palavras ela mãe) .
Durante os primeiros tempos o desenvolvimento elo menino foi normal,
André: vicissitudes da a ngústia, v i cissitudes do suj e ito
sem dados significativos, salvo algumas dificuldades na lactação em função
de que era incômodo para sua mãe dar-lhe o seio, passando rapidamente ã
O motivo de consulta de André, quando contava seis anos de idade, foi
alimentação artificial. Apesar disso, o menino se adaptou em seguida à
detem1inado por uma fobia de origem antiga. Essa fobia, estereotipada e sem
mamadeira, comendo com entusiasmo e aumentando ele peso rapidamente.
variações, aparecia desde que ele tinha trê � cu:os aderida a urna mesma
. Aos nove meses, quando surgiu o primeiro dente, começaram os
representação, Drácula, o que lhe produzm mtenso� sofnrnent?s . Nos
. . . transtornos: teve diarréias e vômitos repetidos, choro contínuo e alguns
últimos tempos (e esta foi a razão para que os pa1s dec1d1ssem ped1r aJuda
transtornos elo sono: despertava três ou quatro vezes por noite pedindo
profissional) , a crise de angústia se havia intensif�cado d� t� :n odo �ue e :n
: "suco" e, simultaneamente, rechaçou o leite abandonando completamente
seu desespero, André se arrancava os cabelos e tu:ha ep1sodw s de msoma
.
que duravam até altas horas da madrugada. Tal smtomatolog1a era acom­ sua ingestão. Estes transtornos mantiveram-se até os dois anos, quando
completou a dentição. Apesar disso, durante todo esse período, foi excelente
panhada de uma conduta supersegura durante o dia, oposicionisrno e
. . tanto seu desenvolvimento intelectual, corno motor. Aos nove meses come­
atitudes incontroláveis, birras freqüentes e uma d1flculdade acentuada para
tolerar o não do adulto. Havia em relação a isso certa complacência çou a ficar de pé e aos onze meses já caminhava. Com um ano e meio falava
narcisista por parte do pai, que descrevia a situação combinando ge �tos ele perfeitamente e conhecia as cores. Antes elos dois anos e meio sabia as letras
_ e os números. Em função desses conhecimentos precoces, o pai, entre
horror e risos, dizendo: "Observe as coisas que ele e capaz ele fazer! . .
A atitude onipotente diurna era a contraparte �e um� �1ar�acla complacente e incomodado, dizia para a mãe que o exibia: "Este menino é
dependência noturna, que chegava ao pof.lto ele que �ao pod1a 1r so ao teu circo".
barilleiro e que seu pai devia acompanha-lo. Sua mae, extremamente As coisas se desenvolviam a tal ponto em torno ele André que a mãe
exigente, referindo-se aAndré dizia: "Sernpre falasobre o que lhe falta, nunca relata que lhe perguntaram se ele queria ter um irmãozinho e apenas
sobre o que tem" e o pai acrescentava: "Embor� o ameacen:o �, nu�ca tomaram a decisão de ter um outro filho quando ele aceitou. "Eu estava tão
_ feliz com o menino que não tinha necessidade de outro filho", diz a mãe. "Na
cumprimos as ameaças. Creio que ele sabe que nao podemos hrn1ta-lo .
Bom aluno, fisicamente muito bonito, o menino podia ser descrito como realidade nos decidimos porque pensamos que ele necessitava companhia",
um filho mimado ele uma família de bons recursos econômicos, como o acrescenta o pai. Desta maneira, aos dois anos e onze meses ele idade ele
depositário do narcisismo parenta]. Mas nos últimos tempos t�to s�a André a mãe ficou grávida, e teve uma menina que nasceu quando seu irmão
conduta diurna como sua fobia noturna tinham transformado a s1tuaçao tinha três anos e oito meses.
familiar em um verdadeiro inferno, que os país não tinham condições de Nesta época novamente iniciaram os transtornos. No terceiro mês da
melhorar. A vida ele todos girava em tomo desta situação e, em minha gravidez materna, o menino levantou-se angustiado uma noite, queria
opinião, teria sido ele uma simplicidade extrema interpretar isto corno o quid assegurar-se ele que os pais o viam enquanto dormia. A pariir dai começou
ela questão. Se bem o beneficio secundário que obtinha, ã custa ele um a exigir que os pais demonstrassem que o viam, em função do que o pai
64 1 Silvia Bleiclwzar Nas Origens do Sujeito Psíqllico I 65
. . ue ia a seu quarto , punha-lhe um
levantava-se relteradamen e e , cada vez
�
carrinho sobre o travesseiro: na n1anh
1
segu inte 0 menino contava os
vivido, campo comum compartilhado por ambos: o fato que a irmã de
não foi amamentada. Por outro lado, a forma como este fato se enlaça
André
dez carn'nhos . Simultaneamente , nos
carrinhos, chego� a c�.ntar � ove ou fantasmas matemos (seu próprio nojo aos seios de onde vazava
o leite) . E ,
. desaparecido aos dois anos.
reapareceu o ped1do de suco que h avia . em um terceiro plano, a fom1a como a recordação "se fixa" no menino,
ligada
.
. d o nasc1men
Logo d epms to de su a Irma - , quando André tinha trés anos às suas próprias vicissitudes pulsionais (há uma inversão sujeito-o
1
. h 0 1a!ou-lh e pe a primeira vez sobre Drácula. Foi
bjeto e m
.
e nove meses, um an1lgum relação à mãe, é ele quem adoeceu do peito - inversão possivelmente
. ,
cuj· a existência levaria poste1ior- ligada
nesse mome� to qu� � e cns tal'!ZOu a fo b'Ia, ao momen to constitutivo da subjetividade no qual o fato foi inscrito -,
e uma
. sica nalítica.
mente os pa1s a sohc1tar uma cons ulta P modificação relacionada com a elaboração secundá ria: não são
os seios
doentes da mãe , senão o peito do menino que fica posto em
posição
significante em relação à oralidade) . Podemos dizer que quando a irmãzinh
evist as a
o utros dado s reco l h idos nas p rime ira s e n tr nasce, André está em um momento de sua constituição ele passage
m ela
e sessões de trata m e n to tópica intersubjetiva ligada à especularidade, a uma triangulação que
abriu
as possibilidades ele instauração do recalcamento originário. O sujeito
. . . . . e o
chamou-m e a atenção o fato
Desde a pnme1ra entreV1sta que real izei, obj eto intercambiáveis na tópica intersubjetiva passaram sob a fom1a
de
_ g u stiav a fazia u m movimento com
de que nos momentos em que And re se an1 - .
. fantasmas a o inconsciente e o recalcamento efetuou um sepultam
ento
a bios vári as vezes com a lmgua
a língua e com os lábios (umed ecia os destas inscrições relacionadas com as frustrações orais arcaicas, permitin
­
fora) Nesta primeira entrevista ,
embora sem tirá-la manifestamente para do o aparecimento no pré-consciente, no sujeito cla contracarga, da assunçã
o
quando o menino falou longamente de seu
med �
esse movimento apareceu do papel ativo em relação com o que foi vivido passivamente. Podemo
. que le �
se encontra de repente s
repetidamente . Re1 atou- I?e um sonho em
���
também assinalar como essa recordação encobridora realiza, em um
duplo
_
rodeado de Dra�ulas; est� em um . ug :
tranho,
aginas?-
depois todos vão para sua
diz-, são meus pais!".
movimento, o desej o de, por um lado, privar de leite a irmã rival e, pelo
outro,
casa e, quando üram a �ascara. . . o q de identificar o sujeito com o objeto, incorporando-o em si mesmo.
No
_ tras épocas, embora não pudesse
O sonho repetiu-se vanas vezes em ou entanto, a ambivalência desta identificação não deixa sem castigo o sujeito
precis� quando. usurpador, tal como Freucl o assinalou para alguns modelos ela identificação
. . ,. ão deram leite para minha irmã porque histérica.
D1z na segunda entreV1sta. N
. hamãe (na maternidade), meu
eu fique1' d oent·e d o pe1· to" · " Q uando fU!ve rmm
·
Poderíamos fazer um gráfico para representar esta significação do real
burgu er e depois não me levou".
pai se ofereceu P ara I e_var-me a come h arn
.
''Tomei mamade1ra ate os quatro (an . s) '
�
dep ois , ao lixo" (faz o gesto e ri) . "E
vivido da seguinte maneira:

. . " (nostálgico) "Ainda às vezes

depois atirei fora o bico . . . Gostava mUito dele . . Explicação raciona1izante
chupo o dedo . . . ". Mãe --
--

Digo -lhe: "Sab es por q� e Dra. cu 1a tem

dentes dos lados? Porque se os
1
Fantasmas relacionados com
_ dedo" (faço 0 gesto). Fica vermelho stta própria oralidade
tivesse no centro nao podena chup ar 0
baunilha". "Estes dedos eu os comi" Fato
e ri. Diz: "O dedo tem gosto de sorvete de
(dobra três dedos: o mínimo, o anul ar e 0 �
.
I?
o polegar que trod uz
.
- na boc a e o m d !Ca
aior)
dor ,
"ficaram
com 0
os outros": assinala
qual
-
cobre o nariz.4 l __
Reco rdação encob rido ra
Cri nça _____ _________________ _ _______
______
___

. menino, a mae .
postenormente Fantasmas relacionados com
Em relaça? aos dados tra::Id os elo
fn
•

orque , guiando-se pela lactação sua própria oralidade

corrobora que na o amamentou amnãZ hap
a ela_ decidiu não amamentar
de André que foi bastante desprazero sa pa
. .
a memna. Assm al a tamb em . que am a me n t � �
u -o ap nas 15 dias ' porque não
Isto
. . Ih e causa va: "O leite que esconia me Constitu ição dos tem p os da fobia e m A ndré
podia suportar a incomodidade que .
. . s seio s ' não ele", acrescenta .
dava nOJO " , d'lZ. " Era eu que adoecia do
·
· te obs ervar como os dados, tanto os
Em pnme�ro lugar e· 1'nteres san
• Assinalei em outros trabalhos que no momento ele aproximação a uma
elo meni no, podem ser situados em um
trazidos pelamae como os r_: latadosp problemática clínica na infãncia nos enfrentamos nã ape as co
1 rentes: por um lado o fato , o real ? � � a
duplo corte que abarca tres planos d'fe abordagem dos fantasmas inconscientes (como Melame Klem propoe),
66 I Sílvia Bleic/nnar
senão, fundamentalmente, com a localização precisa do estatuto metapsi­
cológico destes fantasmas. assim como com sua constituição histórica,
considerando tanto os elementos intra-subjetivos como o momento de
estruturação deste aparelho no marco da tópica intersubjetiva, quer dizer,
no seio da estrutura edípica.
Tomando os parâmetros assinalados no segundo capítulo: 1) o modelo
do aparelho psíquico e sua constituição; 2) a localização elo paciente na
estrutura eclípica e o tempo (no sentido proposto por Lacan) desta inserção
e 3) as cletern1inações da história singular (em seu caráter significante e
propondo as correlações entre o movimento sintomático e o traumatismo) ,
quais são os movimentos constitutivos, os diferentes pontos de referência
que podem ser analisados nos tempos estruturantes do psiquismo de
André?
Evidentemente, no momento em que o paciente consultou encontrava­
me frente a um menino que já tinha sofrido os efeitos do recalcamento: a
estruturação deumafobia, com os conseguintes mecanismos de condensação
e deslocamento, a constituição de recordações encobridoras e o manejo
tanto ela linguagem como da lógica do processo secundário não deixavam
dúvidas sobre este ponto.
No entanto, a intenção de trabalhar não apenas o diagnóstico do núcleo
patógeno, senão a interpretação com intenção simbolizante já no plano do
próprio tratamento, requer uma exploração dos movimentos constitutivos
do quadro atual que permitirá intervir logo no processo terapêutico ligando
a fantasmatização à história. No caso de André, entre os nove meses,
momento aonde aparece a angústia difusa que produz o sono intranqüilo e
a primeira sintomatologia a nível corporal (diarréia, vômitos) , assim como
o rechaço elo leite, e os três anos e sete meses, momento de constituição da
fobia (momento máximo de simbolização, ele ligação a um conteúdo
angustiante representacional), quais são esses tempos de estruturação? E,
por outra parte, por que o incremento da angústia poucos meses antes ele
iniciar o tratamento?5
Tempos de constituição dafobia
a. Nove meses: dentição e começo da cleambulação.
Transtornos: sono intranqüilo, rechaço do leite e abandono ele sua
ingestão, diarréia e vômitos repetidos. Pedido noturno elo "suco".
b. Três anos e dois meses: gravidez materna.
Transtornos: pedido aos pais que o vej am enquanto dorme,
reaparecimento elo pedido de "suco" que havia desaparecido aos
dois anos.
c. Três anos e nove meses: nascimento ela irmã, lactação artificial ela
mesma.
Sintoma: constituição da fobia ao Drácula
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 67
Diferenciamos entre transtorno e sintoma para marcar o caráter abso­
lutamente novo deste último, que já apresenta as caracteristicas, como
dissemos antes. ele uma forn1ação elo inconsciente. Por sua vez, incluímos
nos acontecimentos precipitantes do sintoma tanto o nascimento da irmã como
as caracteristicas particulares da lactação desta, levando em conta o
material recolhido nas entrevistas e e:x1Josto anteriormente. Por suposto,
essa escolha nos levará a por em discussão o conceito de traumatismo que
estamos utilizando.
Interp retação dos movim e n tos e s tr utura n tes do sujeito
a. Como considerar, no primeiro tempo, o rechaço do leite? Assinale­
mos, em primeiro lugar, que o leite que André rechaça j á está
desprendido do leite originário. Ele foi privado do seio quinze dias
depois de seu nascimento; o leite que recebeu a partir desse
momento é um deslocamento do leite originário: não apenas há
uma metonimização na qual o seio - objeto da pulsáo se:x'Ual -
metaforiza o leite - objeto da necessidade, da autoconservação -,
senão que há também um deslocamento a partir do real que requer
reatualizações estruturais no menino.
No momento em queAndré rechaça a alimentação primordial,
algo o "ataca" a partir ele seu próprio corpo. Os dentes, irrompendo
como objetos cortantes na gengiva, tomam a seu cargo a constitui­
ção de um primeiro fantasma (ainda não recalcado) que conclensa,
em um movimento originário, o objeto atacante como objeto-fonte
pulsional externo-interno. Dai que André se recuse a ingerir (no
real) o leite que o ataca reativando suas próprias frustrações orais.
Algo que dói dilacerantemente na zona oral e do que só pode
defender-se mediante uma clivagem em um objeto apaziguante: "o
suco". O abandono da ingestão marca o primeiro tempo deste
movimento onde o objeto e o sujeito estão fusionaclos, mas não no
sentido elo narcisismo, não enquanto ego-não ego simbióticos,
senão no sentido ela ordem da pulsão parcial que torna sincrética
uma parte do corpo elo sujeito com o objeto de tal pulsão, em um
fantasma constitutivo.
Primeiro tempo traumático da se:x'Ualidade: algo se instala no
próprio sujeito; algo é "atacante", mesmo que as defesas ainda
requeiram um movimento de fuga "no real". Há derivações corpo­
rais nesse primeiro movimento: diarréias, vômitos, a expulsão
daquilo que perturba se realiza por orificios corporais. Ainda não hà
movimentos defensivos que possibilitem a utilização de defesas
psíquicas mais elaboradas.
68 I Silvia Bleichmar
b. O segundo movimento que encontramos marca um salto qualita­
tivo na constituição do psiquismo de André. O menino busca
alguém que o olhe à noite, que dé sinal de sua presença para que
ele se sinta em condições de conter a angústia que o invade: esse
segundo tempo é concomitante à gravidez materna. Apareceu um
esboço de triangulação, o irmãozinho está presente no ventre da
mãe. O menino requer de um adulto que o ajude a controlar -
durante o sono , justamente durante a emergência do incontrolável
- aquilo que se converte em ameaçador.
Mudou o motivo da angústia e o tipo da defesa. Já não é algo
que s e produz apenas apoiado no corpo, ligado às séries prazer­
desprazer da zona erógena, senão algo da ordem da simbolização
amorosa. André foi e.x"Pulso do universo materno, sua mãe está
dedicada a cuidar e esperar um terceiro, um rival que o tira de sua
posição de privilégio. Que é o traumático neste caso? Ele foi
informado que vai ter um irmão. Im1ào que, segundo dizem os pais,
nasce para satisfazê-lo. Frente à situação de e.x"Pulsão de que foi
objeto, a simbolização que aqueles oferecem aparece como um
movimento inacabado, insuficiente e, poderíamos dizer, com ca­
racteristicas negativas. Há em André uma demanda de simbolização
não satisfeita que o deixa entregue a seus fantasmas mais arcaicos.
Se sua onipotência é tão grande - e logo voltaremos sobre isto
- que pode decidir sobre a vida, também pode decidir sobre a
morte. As fantasias mortíferas são possíveis da mesma forma como
o são seus próprios fantasmas pulsionais desenfreados e entregues
a seu próprio movimento. Por isso necessita o olhar do outro, não
só como uma prova de amor, senão também como algo que controle
e supervisione o que sua própria estrutura defensiva não consegue
fazer por si mesma. Os carrinhos, metonimia do pai, da função
protetora paterna, devem ser deixados sobre o travesseiro, próxi­
mos de sua cabeça, para que indiquem que não ficou entregue a si
mesmo. Um si mesmo que lhe é estranho e que o submete às
angústias mais intensas. Um si mesmo que é já um outro, um id. No
entanto, isto não basta, e André retoma à ingestão do suco -
metonímia do primeiro objeto da pulsão oral - reatualizando os
movimentos defensivos arcaicos - de clivagem - que lhe pern1i­
tiram enfrentar os primeiros momentos traumáticos.
Estamos, neste segundo tempo, no momento da ruptura do
narcisismo, entendido como zona de constituição do ego em relação
com a identificação primária. Entre o primeiro tempo, o tempo da
dentição e a constituição dos primeiros índices de angústia, e este
segundo tempo, de separação da mãe e de instauração do terceiro,
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 69
o ego passou por sua estruturação narcisista e, em seu desprendi­
{
mento da tópica intersubjetiva, abre o caminho em direção ao
terceiro movimento, o movimento da instalação da fobia. Dai que
ainda necessite do outro adulto real para defender-se do que é
atacante. Só quando - d,f';§Qre�c;l!99" .c!�finitiyamente do outrq, d o
lD""'" 1-ü\
_ semelhante - possa funcionar como instância intrapsíquica,
jo'?;cv '-' b poderá estruturar-se a defesa que dá origem à constituição do
-I c , f'f' /ouh<l sintoma neurótico, da verdadeira "fobia", mediante a projeção.
v
c. O terceiro tempo já varreu decididamente os remanescentes
anteriores. É o tempo da simbolização maior, da constituição de u m
significante referencial externo que pem1ite a passagem ao medo.
Estamos em plena relação da angústia com seu objeto. Já não
há indeterminação do perigo.já estamos na ordem do recalcamento
e da racionalidade do processo secundário . André não está "louco" ,
teme algo que é compreensível no mundo de significações de
qualquer ser humano. Encontrou, finalmente, uma representação
privilegiada em torno da qual pode organizar sua angústia. Há
"angústia sinal", no sentido freudiano, embora esta angústia não
remeta diretamente à castração senão à devoração, devido a que o
impromptu, a linguagem pulsional privilegiada neste menino, faz
que todo o perigo "genital" , toda angústia de castração fálica, seja
remetida a angústias orais. A castração não está ausente no
momento em que André começa seu tratamento: no entanto, é
significada como devoração. ·
A lactação artificial da im1à converte-se em um significante
que pode reatualizar suas próprias frustrações orais .6 A importân­
cia deste acontecimento em seu caráter significante, deste real
visto (vivido em tanto se engrama em seu inconsciente) , é assina­
lada por André mesmo quando relata, um em continuidade ao
outro, os dois elementos pregnantes do nascimento de sua irmã: o
fato de que ela não recebeu o seio matemo, por um lado, e o fato de
que o pai mentiu-lhe, prometeu levá-lo a comer hamburguer, o que
nunca cumpriu. Por suposto que a mentira do pai é algo mais
abarcativo, no marco do Édipo, que o hamburguer ao qual o
discurso fica fixado. No entanto, mesmo quando evidentemente s e
abre por aí uma vertente para pensar o engano no marco da queda
narcisista por ter-se sentido até esse momento único objeto d e
amor, a via proposta pelo paciente mesmo não pode ser descuida­
da, quer dizer, a fantasmatização oral do desengano amoroso, se o
que queremos, adotando uma postura verdadeiramente psicanalí­
tica, é ser conseqüentes com a linha que a livre associação nos
propõe.
70 I Silvia Bleichnzar
Permutações ativo-passivo nas clivagens d o a pa re l h o incip i e nte
Assinalamos o primeiro tempo de constituição desta fobia como um
tempo traumático que desemboca em fantasmas pulsionais que ainda não
possuem um estatuto metapsicológico preciso. Neste primeiro tempo não se
pode falar de clivagem no sentido tópico do termo. Ainda não há sistemas em
conflito enfrentados; o que constitui este primeiro tempo é o "retomo sobre
a própria pessoa" por parte da pulsão, o fato de que esta se instaure como
interno-externo atacante para o sujeito. Desde esta perspectiva, estamos
frente ao "retomo sobre a própria pessoa", ao qual Freud se refere como
mecanismo anterior ao recalcamento originário.
Mas, como situar a "transformação no contrário" que Freud apresenta
tanto como uma. transmutação do conteúdo (do amor em ódio), quanto do
fim (ele ativo em passivo)?
No capítulo li ele Além do princípio do prazer encontramos, nas origens
do jogo (com o fan10so exemplo do carretel) , a tentativa ela criança de resolver
pela repetição de uma mesma ação (aparecimento e desaparecimento do
carretel no j ogo jort-da) a transformação ele uma situação passiva, pela qual
foi afetado, em uma situação ativa, não obstante o clesprazer que esta ação
deveria produzir. A pergunta que Freud formula é a seguinte: "Assim ficamos
em dúvida quanto a saber se o impulso para elaborar na mente alguma
experiência ele dominação, de modo a tomar-se senhor dela, pode encontrar
expressão como um evento primário e independentemente elo princípio do
prazer. Isso porque, no caso que acabamos de estudar, a criança, afinal de
contas, só foi capaz ele repetir sua experiência desagradável na brincadeira
porque a repetição trazia consigo uma produção de prazer de outro tip o, uma
produção mais direta.''7 No capítulo III acrescenta: "Isso, no entanto ,
constitui desprazer cle uma espécie que já consideramos e que não contradiz
o princípio ele prazer: desprazer para um dos sistemas e , simultaneamente,
satisfação para outro. Contudo, chegamos agora a um fato novo e digno ele
nota, a saber, que a compulsão à repetição também rememora elo passado
experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca,
mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para moções pulsio­
nais que desde então foram recalcaclas".8
O exemplo elo carretel é um paradigma da transformação de passivo em
ativo. No entanto, não é o primeiro tempo de constituição elo suj eito psíquico,
e menos ainda o primeiro tempo da sexualidade.
A polarid ade passivo-ativo é um dos princípios fundamentais da vida
psíquica e, tomada em seu conjunto, poderia ser anterior às oposições
posteriores às quais se integrará: fálico-castraclo e masculino-feminino.
Como situar, então, com relação à tópica psíquica e a sua constituição, estes
momentos de ativo-passivo que encontramos nas oposições anteriores?
Nas Origens do Sujeito PsíqL?ico I 71
Definimos como primeiro tempo el a sexualidade o "retomo sobre a
própria pessoa"; momento no qual a pulsão se instaura no sujeito psíquico
e a partire! o qual se produz a Schau lus tque toma esta objeto interno-externo
atacante. Que é ativo e que é passivo neste movimento? O fato que a pulsão
se inscreva enquanto obj eto estranho atacante é efeito ela sexualização
precoce à qual a criança é submetida. Se o primeiro elos tempos descritos por
Freucl é olhar, esta atividade ligada à ordem vital, à autoconservação, se
engrama na passividade sex'Ualizante que submete a criatura humana aos
cuidados sedutores da mãe. É desta forma como nas origens da vida, neste
primeiro tempo que não é sexual no sujeito , pode-se descrever a movimento
nos seguintes tem1os:
Mete ________.,. Criança
(Sexualmente ativa) Ativa na busca
da autoconservação
(Sexualmente passivo).
Quer dizer, mãe: suj eito da sexualidade; filho: submetido à sexualidade
materna.
Neste primeiro tempo que Freud define como primeiro (olhar), mas que
podemos considerar ÇQ.mo e4f;�Q:J,_Q_à se�t.aligª,de no suJ�ifE, a criançéltQJ?.L�tCI .
da sedução materna, já que quando vai ativamente na busca da satisfação
âã necess1âwe encontra-se com a intromissão da sexualidade por p arte d o
semelhante.
No segundo tempo, o tempo da constituição da pulsao, o externo sexual
matemo inscreve-se como interno-externo excitante, e a pulsao é ativa frente
a um sujeito que é objeto passivo de um primeiro núcleo ativo sexual
excitante. A volta sobre a própria pessoa transforma-se então em uma
primeira clivagem entre o sujeito da autoconservação e o sujeito da pulsão
sexual, ao mesmo tempo que o objeto fica clivado em excitante- apaziguante
(recordemos a dicotomia leite-suco que André apresenta); clivagem entre o
objeto bom e o objeto mau, na linguagem de Melanie Klein; é a mãe excitante­
má quem aparece em múltiplos fragmentos parciais de objetos internos
atacantes . Este é verdadeiramente o tempo da constituição da pulsão sexual
de morte.
Como vemos, tudo ocorre no "interior do psiquismo" indiferenciado
desde o ponto de vista tópico, cujo primeiro núcleo se cindiu na direção da
ordem da sexualidade, da pulsão.
Podemos ilustrar esse movimento da seguinte maneira:
Sujeito passivo _____ .,.. Objeto clivado
(atacado pelo iniemo-extemo (excitante e apaziguante)
da seYttalidade)
72 I Silvia Bleichmar
No terceiro tempo, passivo e ativo aparecem situados em relação à
tópica psíquica. A constituição do ego propõe um equilíbrio intersistêmico
entre o passivo e o ativo. O recalcamento originário se constitui separando
defmitivamente o ego do id (de acordo com a segunda tópica) , e separando
o inconsciente do pré-consciente-consciente (de acordo com a primeira
tópica) . Em virtude do que precede, o ativo e o passivo ficarão ao encargo da
tópica psíquica, e o que é passivo em um sistema será ativo no outro. Os
fantasmas entrarão em jogo neste movimento, dando lugar à projeção a
partir do recalcamento: um representante externo (Drácula) se oferece a
André e nele fica depositada a atividade da pulsão oral de sucção, enquanto
que ele (sujeito do ego) se constitui como vítima passiva do ataque. Neste
terceiro tempo, o conflito entre o id e o ego entra em jogo pela linha da cisão
que marca o recalcamento originário, ao mesmo tempo que o desejo se
projeta em direção ao outro atacante.
Podemos ilustrá-lo da seguinte maneira:
Ego (da defesa}
ativo na defesa,
passivo na sexualidade Representação
simbólica (ativa}
Id (pttlsão de s ucção} projetada
ativo-atacante
O conflito éintersistêmico: o ego, ativo na defesa, entra emjogo no lugar
do desconhecimento (na linguagem de Lacan) . O id atacante, ligado à
sexualidade recalcada, impõe ao sujeito movimentos defensivos que o
enfrentam (por uma inversão dentro-fora) às representações angustiantes
projetadas. Estas representações que aparecem a partir dg r��sà�JtQ"da
condensação e do deslocamento da transmutação do[çl'[se}adó-elTiteiTil��
Neste terceiro tempo, definido pela constituição-aà recãlcãmentó
originário, o ativo e o passivo já não são qualidades diferenciais do sujeito
e do objeto, senão que estão definidas pela cisão do próprio sL*ito. Por isso,
justamente, assinalamos o caráter ativo do inconsciente - cuja legalidade
tende à emergência do recalcado, ao avanço permanente em direção ao pré­
consciente, ao mesmo tempo que à captura das representações provenientes
deste último - em relação ao ego atacado (passivizado pelo desejo),
defensivo.
O problema da transformação do ativo em passivo e do passivo em ativo
deve ser, hoje, repensado no que diz respeito às relações entre a estrut rra
edípica e o sujeito inserido nela. Como assinalamos anteriormente. r organização do sintoma: encontro com uma representação privilegiada
criança, objeto passivo da sedução materna, só pode chegar a incorpor·· · capaz de tomar a seu encargo a angústia em forma simbolizante; sintoma
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 73
este ativo-excitante na ordem que contém os elementos discretos constitutivos
do inconsciente.
No caso de André, no momento que rechaça o leite - leite rechaçado
pela própria mãe nas origens da vida - evidentemente, não é de um objeto
exterior atacante que o menino se defende, senão de algo externo-interno
excitante que se converteu no primeiro tempo de um fantasma pulsional cujo
destino será mais tarde recalcado. A inversão, a passagem à atividade, não
é um correlato direto, no nível metapsicológico, da agressão vivida passiva­
mente.9 Se a agressão é inscrita em forma fantasmática, assim o é enquanto
sexualizada, quer dizer, enquanto efeito da sedução traumática. Há uma
verdadeira transmutação aonde o objeto atacante - sendo interno - é um
verdadeiro cotlage do real vivido com o objeto libidinal (como demonstra o
gráfico que mostra a relação entre os fantasmas matemos e os fantasmas
infantis) .
Podemos imaginar esse primeiro fantasma boca-mamilo- leite-dentes
cortantes, dolorosos, atacantes, frente ao qual André permanece inerme,
mordido e desgarrado por uma p arte de si mesmo que se voltou sobre a
própria pessoa. Apenas desde o ponto de vista fenomenológico pode-se falar
de uma identificação com o agressor, a partir do fato que André inverte o que
viveu passivamente (o rechaço da mãe de dar-lhe leite, ao rechaço de ingerir
este leite) . Mas o leite que André rechaça não é o leite da autoconservação,
é o leite fantasmático da pulsão oral excitante, já que o leite do qual sua mãe
o privou não foi o leite da alimentação, senão o seu próprio objeto seio. Leite
que, como diria Melanie Klein, conserva os restos do seio despedaçado, dos
dentes cortantes (do objeto e do sujeito), leite que deve ser cuidadosamente
diferenciado - clivado - do suco apaziguante que o protege.
Definimos dois tempos anteriores à constituição do sintoma em André
e o fizemos entendendo que se manifestaram em transtornos pré-sintomais.
O primeiro tempo, traumático, desemboca em -f���lB�=g�s que -1
ainda não têm estatuto metapsicológico preciso; (Q:-;ség�ndo temJ:!!\ltestá
ligado à constituição do ego e à instauração do recaicãinenio:Nêsfádireção
abrem-se, por sua vez, dois movimentos estruturantes da defesa: um
primeiro tempo, de "volta sobreaprópriâ pessoa", de instalação do objeto­
fonte atacante contra o qual atuam os mecanismos arcaicos: clivagem,
expulsão no nível corporal, choros, rechaço a incorporar o obj eto
fantasmatizado. Um segundo tempo, de busca do outro amado que proteja
contra a angústia a que fica submetido o sujeito quando permanece só frente
ao ataque pulsional. A constituição do ego marca o sentido da frase: "pode
ocorrer-me algo". E estes dois tempos culminam em um terceiro, verdadeiro
movimento estruturante do recalcamento, que dá lugar à projeção e à
2?.
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74 I Silvia Bleichnwr Nas Origens do Sujeito Psíquico I 75

que já poderíamos considerar, em sentido psicanalítico estrito, como
formação do inconsciente .
Se fazemos entrar em jogo a historicidade do recalcamento originário,
o caráter estruturante que este possui em relação com o aparelho psíquico
porque funda a distinção entre os sistemas inconsciente e pré-consciente­
consciente, situamo-nos em uma perspectiva teórica que considera esta
realidade historicamente constituída como diferente dos constituintes que
a detem1inam, com os quais está em correlação metabólica, embora não
sendo um simples "reflexo" dela.
Notas de referên cia
l . Tomamos a proposta .de tradução de Jean Laplanche que assinala que o alemão
dispõe de dois termos bastante próximos, mas que possibilitam a distinção entre o
intemo e o externo : Reiz aludindo ao estímulo extemo, e Erregung, ao in temo, cuja
tradução adequada, jã no próprio campo pulsional, como excitação, pennite-nos
situar a ordem pulsional em décalage com a ordem vital.
2. Cf. S. Freud, Metapsicologia, em OC, voi XIV, 197 4, págs, 1 70- 1 7 1 (os bastardos são
.
9. O mecanismo de "identificação com o agressor" proposto por Anna Freud em seu
texto O ego e os mecanismos de defesa é uma conseqüência lógica da concepção que
esta autora tem da constituição do psiquismo infantil. Sendo o ego um organismo
que deve defender-se do perigo extemo e sendo definido no nível da adap tação, a
identificação com o agressor é o efeito de um processo do psiquismo que se propõe
obter defesas mais adequadas e mais eficazes frente à indefensão natural da criança.
Se a mãe é considerada como agente que satisfaz a necessidade, é evidente que,
em seu papel ele ego auxiliar, é a única couraça protetora ele que o bebê dispõe frente
ao dano que os traumas que afetam seu ego lhe podem infringir. Evidentemente, na
concepção ele Anna Freucl, não é a seJ<:ualiclacle materna o que é traumático; a falha
ela função materna se situa no caráter insatisfatório no nível de apaziguamento ela
necessidade. Separada elo campo ela sexualiclacle, a agressiviclade funciona como um
conceito que atua simultaneamente em diversos campos: agressão física, critica dos
adultos, frustração reCLl elo objeto, gerando a partir disso um medo real na infância,
que requer este mecanismo de identificação com o agressor para "transformar a
angústia em uma segurança agraclàvel", quer dizer, conforto no mundo definido por
suas caracleristicas hostis que ameaçam a segurança do organismo. (Veja-se, a
respeito desta autora, Neurosis y sintomatologia en la infanciCL, Buenos Aires:
Paiclós, 1 977).

nossos).
3. Para um desenvolvimento deste tema, veja-se J . Laplanche, Vida e Morte em
Psicanálise, Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1 985, e Gerard Bonnet, Voir-être vu,
Paris: PUF, 1 98 1 .
4. Esta fom1a das crianças de chupar o dedo é totalmente diferente de uma simples
sucção, já que reproduz no mesmo movimento o mamilo que se introduz na boca e
o seio que cobre o nariz na lactação, ao mesmo tempo que é acompanhada de uma
respiração fatigante. Este tipo de sugar auto-erótico - que em geral apresenta-se
tardiamente - deve ser explorado com atenção porque apresenta aderências
simbiólicas ao objeto matemo, diferente do sugar corno prazer de órgão aderido ao
seio fantasmático.
5. Na realidade, esta última pergunta, como ocorre sempre com as incógnitas em um
diagnóstico, só póde ser respondida ao longo do tratamento. Um dia de tormenta,
estimulado pelo ruído da chuva, que produzia no interior do consultório uma
sensação de intimidade e segurança, André "me confessou" que poucos meses antes
de iniciar suas consultas - isto é, no momento em que as crises de angústia
tomaram-se intoleráveis - tinha tido uma série de jogos sexuals com dois amigos
(irmãos entre si, menino e menina). Ele tinha sido o expectador passivo desses jogos
- enquanto voyeur. não menos ativo -, e sentia-se hon·orizado e complacente pelo
espetáculo que relatava, invertendo seu papel na sessão ao transfonnar a mim,
mediante uma reduplicação especular, em uma expectadora passiva de seus relatos
eróticos.
6. Utilizamos frustração no sentido proposto por Lacan: dano imaginário sofrido em
relação ã falta de um objeto real, sendo que tal sentido pertence ao domínio da
reivindicação, das exigências desenfreadas, sem possibilidade de satisfação. Recor­
demos o caráter peremptório que a demanda adquire em André quando a mãe diz
"sempre fa la do que lhe falta, nunca daquilo que tem".
7. Cf. S. Freud, Além do principio do prazer, em OC, op. cit., vai. XVIII, 1 979, pág. 28.
8. Ibid., págs. 33 e 34.

5
Notas so bre a memória
e a curiosidade intelectual
Fu nes ou o d esgarrame nto da memó ria
Borges criou um personagem vítima d e sua própria memória. Sua percepção
agudizou-se a tal ponto que é assim descrito: "Nós, de um só lance,
percebemos três cálices em uma mesa; Funes, todos os rebentos, racimos
e frutos que uma parreira compreende. Sabia as formas das nuvens austrais
do amanhecer desde o trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia
compará-Ias, na recordação, com as riscas de um livro de pasta espanhola
que havía olhado apenas uma única vez, e com as linhas da espuma que um
remo levantou no rio Negro nas vésperas da ação do Quebracho. Essas
recordações não eram simples; cada imagem vísual estava ligada a sensa­
ções musculares , térmicas, etc. ( . . . ) Duas ou três vezes reconstruiu um dia
inteiro; nunca havía duvídado, mas cada reconstrução requereu um dia
inteiro. Disse-me: Mais recordações tenho eu sozinlw do que as que terão tido
todos os homens desde que o mundo é mundo. E também: Meus sonhos são
como a uigília de uocês. E também, na primeira luz do dia: Minha memória,
senhor, é como depósito de lixo". Paralisado na cama, Funes nunca sai elo
quarto aonde ficou enclausurado. Não sai do catre, olhos postos na figueira
ao fundo ou em uma teia de aranha. Nos entarcleceres permite que o levem
até ajanela. Pode passar horas com os olhos entrecerraclos ou contemplando
um galho de santonina.
A narração se transfomm, paulatinamente, em um episódio de horror,
há algo monstruoso, repulsivo, no encontro com esse homem que tem as
76
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 77
condições d o esquecimento alteradas: "Locke, no século XVII , postulou ( e
reprovou) uma língua impossível na qual cada coisa indivíclual, cada pedra,
cada pássaro e cada ramo tivesse um nome próprio; Funes projetou alguma
vez uma língua análoga, mas a desprezou por parecer-lhe demasiadamente
geral, demasiadamente ambígua. Efetivamente, Funes não recordava ape­
nas cada folha d e cada ánrore de cada monte, senão cada uma das vezes que
a havía percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma ele suas
jornadas pretéritas a umas setenta mil recordações, que logo definirta por
cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa
era interminável, a consciência ele que era inútil. Pensou que na hora da
morte não teria acabado ainda ele classificar todas as recordações da
infãncia".
O personagem idealizou também um sistema original de numeração.
Transforma cada cifra em uma palavra completa, referencial: "Seu primeiro
estímulo, acredito, foi o desagrado de que os trinta e três orientais
requisessem dois signos e três palavras, em lugar de apenas uma palavra e
apenas um signo. Logo aplicou esse disparatado princípio aos outros
números. Em lugar de sete mil e treze, dizia (por exemplo) Máximo Pérez; e m
lugar d e sete mil e quatorze, O Trem; outros números eram Luis Melíán
Lafinur, Olimar ( . . . ) Em lugar de quinhentos, dizia noue. Cada palavra tinha
um signo particular, uma espécie de marca (. . . ). Eu tratei de explicar-lhe que
essa rapsódia de vozes inconexas era precisamente o contrário ele u m
sistema d e numeração. Disse-lhe que dizer 365 era dizer três centenas, seis
dezenas, cinco unidades; análise que não existe nos 'números' El Negro
Timoteo, ou manta de carne. Funes não me entendeu ou não quis me
entender.
"Os dois projetos que indiquei (um vocabulário infinito para a série
natural dos números, um catálogo mental inútil de todas as imagens da
recordação) são insensatos, mas revelam certa grandeza balbuciante.
Deixam-nos víslumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não
o esqueçamos, era quase incapaz de idéias gerais, platônicas. Não apenas
lhe custava compreender que o símbolo genérico cachorro abarcasse tantos
indivíduos díspares de diversos tamanhos e forma diversa; incomodava-o
que o cachorro das três e quatorze (vísto de perfil) tivesse o mesmo nome que
o cachorro das três e quinze (visto de frente) . Sua própria cara no espelho,
suas próprias mãos, surpreendiam-no cada vez ( . . . ) Era o espectador
solitário e lúcido de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravel­
mente impreciso".
E conclui: "Havía aprendido sem esforço inglês, francês, português,
latim. Suspeito, no entanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é
esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes
não havía senão detalhes, quase imediatos" .
78 I Silvia Bleic/mwr
A memória não se apresenta como uma condição do pensamento no
personagem id ealizado por Borges, quer dizer, como uma condição do
simbolismo organizado . U m mundo pontual não requer o sistemaordenador
da numeração. Não há prazer em Funes, vítima de sua própria percepção
que, sem seleção, transforma-o no "solitário e lúcido espectador de um
mundo multiforme, instantáneo e quase intoleravelmente impreciso". Sua
memória é um depósito de lixo, os dejetos de objetos penetram nela e se fixam
sem que o personagem possa selecionar aquilo que realmente quer incorpo­
rar. A riqueza da qualidade sensorial não deflne em nenhum momento uma
"qualidade significante", as palavras se intercambiam com os objetos, e estes
com os números. O conceito não consegue uma fixação no sistema e o
pensamento circula ligado à qualidade sensorial e referencial.
O texto é uma metáfora sobre a insônia, diz Borges no prólogo que
escreveu para Ficciones. O dormitar propício a todos os delírios, a circulação
vertiginosa de imagens e significantes marca em Funes esse estar na metade
do caminho entre a imagem e a linguagem.
A longa introdução a respeito de um homem que não pode esquecer nos
permitirá, talvez, introduzir-nos nos labirintos do psiquismo ele um menino
que, aparentemente, não pode recordar. Memória e esquecimento vão
juntos. Se se esquece em excesso, se s e recorda sem discriminação, as
condições do pensamento se perturbam. O objeto deste trabalho é voltar a
investigar o problema ela memória na estruturação do aparelho psíquico.
Antônio, u m menino "desmemoriado"
Diferente ele Funes, cuj o afastamento solitário nunca propõs um
problema de escolaridade - pelo menos Borges não o relata - Antõnio,
como tantas crianças que não aprendem , chegou à consulta aos dez anos de
idade, depois de longas passagens por tratamentos de reeducação
psicopedagõgica, extensas baterias de testes e múltiplas mudanças de
colégio.
Se bem desde que era pequeno na escola acreditaram que suas
dificuldades se deviam a "problemas emocionais" (excluindo- se transtornos
neurológicos), a única indicação que os pais receberam durante longo tempo
foi fazê-lo ter aulas particulares e, desde dois anos atrás , um tratan1ento
psicopedagõgico três vezes por semana.
A caracteristica predominante que seus professores assinalavam era
que o menino "não retinha". Desmemori::tdo, esquecidiço, um caso a mais
desses pacientes enfadonhos frente aos quais os psicanalistas de crianças
se propõem u m tratamento de rotina a partir da individualização dos
elementos "inibitórios" que aparecem como responsáveis pelo fracasso
intelectual.
Nns Origens do Sujeito Psíquico I 79
Repetidor "empedernido", fez duas vezes a primeira série, duas a
segunda e , no momento da consulta, estava a ponto de fracassar novamente.
Sua história também é rotineira. Não houve problemas no parto, não
chorava nem demandava atenção nos primeiros meses ele vida, e se isto nos
fez pensar inicialmente na existência de certos componentes autistas , foi
preciso desconsiderá-los, porque o menino não oferecia a conhecida face
indiferente, nem o isolamento , nem a falta de contato afetivo patognomõnico
do autismo. Equánime e pouco hostil em seus primeiros anos, não parecia
perturbar-se profundamente com as repreensões, e teve um desenvolvimen­
to normal (sentou-se aos seis meses, engatinhou aos oito, caminhou aos
dez) . Mostrava-se independente ao ponto de fazer-nos suspeitar daquilo que
Margaret Mal1ler chama um "fracasso elo companheiro simbiótico matemo".
No entanto , aos três anos e meio quis ir ao jardim de infáncia, onde teve um
contato tranqüilo e agradável com seus companheiros e professores (o que
nos levou, também, a descartar a possibilidade de uma psicose simbiótica
no sentido clássico, com detenções do desenvolvimento em função d a
separação do companheiro matemo) . U m elemento chamativo era seu medo
aos ruídos fortes nos primeiros anos , que lhe produziam crises de pánico,
a partir do que e baseando-se em um preconceito psicologista, alguém
"autorizado" recomendou que frequentasse aulas de caratê parareassegurá­
lo, apesar da opinião dos pais de que era um menino muito independente e
que não apresentava transtornos de conduta.
Problemas mais severos começaram com seu ingresso na escolaridade
primária: manifestou uma dislexia ao começar a escrever, evidenciando-se
transtomos do pensamento lógico e m dificuldades para as matemáticas e a
já mencionada perturbação da memória. Este último dado pareceu
chamativamente contraditório no momento de tomar sua história.
Não posso deixar de fazer uma digressão neste momento. Quando
realizo uma entrevista para organizar a história ele uma criança, sempre a
faço com a mãe (ou com o substituto matemo) e na presença da própria
criança. Assim abre-se um espaço de simbolização, deverdadeirahistorização,
que proporciona um ordenamento desde o início, ao mesmo tempo que a
i abertura de uma série de interrogantes, tanto para a mãe como para o filho .
'j Elementos que sempre estiveram dissociados s e conectam e episódios
I
vividos são ressignificados, proporcionando ã criança um contexto frente ao
qual suas próprias vivências se reestruturam.
Não acredito, como alguns autores da Ego psychology propõem, que a
mãe possua o critério de realidade frente a uma criança submetida a u m
mundo fantasmático; que aquilo que está em jogo seja um discurso
verdadeiro em oposição a uma atitude fantasiosa. Mas também não
compartilho a proposta de Maucl Mannoni, para quem o discurso matemo
é o que justifica, de um modo lineal, o inconsciente da criança, e é o que
oferece uma resposta para a compreensão sintomática. Entendo que o nível
80 I Silvia Bleidzmar
de simplicidade que sua teorização oferece funcionou mais como organizador
si stêmico obturante do que como um movimento de abertura, que é o que
toda entrevista diagnóstica deve proporcionar. Assinalei, no capítulo ante­
rior. que se trata de correlacionar os elementos da história (traumaticamente
significante) com o discurso matemo - e. conseqüentemente, com os
próprios fantasmas da mãe - em relação ao discurso do filho e sua própria
fantasmática. Em tal sentido, há momentos desse relato matemo que se
fraturam em função de informações que esta sente como absolutamente
íntimas, atinentes à sua própria sen1alidade, e que merecem a abertura de
um espaço. uma entrevista a sós sem a criança, para que possam ser
desabafadas . Informo , então, à criança que assim como ela tem coisas que
considera íntimas, que não quer que sejam conhecidas em outro lugar,
ocorre o mesmo com sua mãe; e que ela e eu teremos uma entrevista a sós
para que possa me expor essas coisas. Garanto- lhe também que tudo que
tenha que ver com ele lhe contarei posteriormente, mas que tudo que tenha
que ver com sua mãe exclusivamente merece o respeito de meu silêncio.
Tento inaugurar, deste modo, dois espaços, ambos atinentes à intimidade
e ao segredo privado , que permitam em um ato simbólico separar dois
diferentes sujeitos da sexualidade e o fantasma. Como se verá, não é meu
critério que aquilo que cura seja património da franqueza absoluta, senão
da ordem da demanda de simbolização da criança. Vi crianças que,
bombardeadas por um excesso ele infom1ação que não lhes diz respeito, o
que sentem como perturbante e alheio, manifestam seu desacordo em
recebê-la, saindo do consultório, assobiando, ou isolando-se e deixando ele
alguma maneira explicitada sua necessidade de um espaço diferente do
espaço matemo , tentando frear o desborclamento do qual sua mãe é objeto.
Nem a informação em si mesma, nem a falta dela, são razões suficientes para
a doença ou para a saúde de uma criança; pode dizer-se "tudo" sem que se
proporcionem os significantes chaves para que se inaugure a simbolização .
No caso deste menino, minha preocupação era encontrar as relações
entre os determinantes edípicos e a forma singular (específica) na qual o
déficit simbólico havia se instaurado. Intuía que o fracasso ela simbolização
podia corresponder a uma ordem diversa daquela relacionada com a inibição
(sobre o que voltarei logo). Era-me difícil determinar onde estavam as falhas
que o produziam, mas alguns elementos me faziam pensar em um fracasso
na estruturação do recalcamento originário, nas relações entre o processo
primário e o secundário : quando via televisão não compreendia a trama e
pedia a quem estivesse perto "conta-me o que ocorre" , angustiando-se
quando isto ocorria; possuía certa ingenuidade (frente ao duplo sentido) ,
como se houvesse uma dificuldade para a metaforização, para a compreen­
são do discurso; ao mesmo tempo em que também não entendia o duplo
sentido elos chistes nem elo que vulgarmente se chama "palavra com duplo
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 8 1
senticlo " . 1 Tinha tendência a substituir a realidade pela fantasia, e a
preencher aquilo que não havia entendido por uma explicação arbitrária.
Esta dificuldade para a metaforização, para a substituição simbólica, já se
havia apresentado na primeira infãncia; a mãe relatou: "Nunca demandou
cuidados, sempre pediu coisas concretas, e tomou mamadeira até os cinco
anos".
Na entrevista mãe-filho ocorreram alguns fatos surpreendentes, que
me levaram a propor-me a uma investigação teórica mais exaustiva para
encontrar respostas a interrogantes que não podia responder. A mãe contou
alguns episódios muito precoces da infãncia de Antônio: "Com um ano e
meio (o menino) pegou um pau acreditando que era um bico. Tinha a ponta
verde; era veneno para as plantas". Antônio acrescenta: "Havia um jardim,
me puseram em uma cama e me deram uma água vermelha. Vomitei .
Disseram-me que retivesse a água vermelha na boca e joguei-a fora". (Esta
recordação, vinculada ã e;..rpulsão-retenção, vermelho da água que logo
aparece em outro contexto, não é, apesar de sua antiguidade, o mais
arcaico .)
O relato continua: "Quando Antônio tinha menos de um ano fiquei
grávida. Estávamos com problemas no casamento . Aos três meses d e
gravidez abortei naturalmente, fiquei muito triste". Antônio acrescenta: "Ah
sim, no banho. Puseram o bebê em um frasco. Eu estava na sala e de repente
havia muito sangue (vermelho) , mamãe foi ao banheiro, trouxeram u m
frasco. Vi o frasco, mas não vi nada".
"Fiquei grávida novamente - diz a mãe - . Foram seis meses de uma
boa gravidez. D epois . . . lembras?". "Sim, havia muito sangue no chão outra
vez; tive medo que morresses. Não queria ficar em casa, íamos ao hospital.
Havia um murinho e um vidro, aproximei-me e vi um tubo que tinha u m
aquário , e m baixo havia algodão, o menino estava agarrado ao tubo dando
voltas, voando". A mãe acrescenta: "Tinhas dois anos e três meses".
A partir desses elementos surgidos na entrevista definiu-se o primeiro
interrogante: O que ocorria com esse menino, cujas recordações arcaicas
mantinham tal grau de vigência que impediam o acesso d e toda infommção
nova a seu aparelho psíquico, ao mesmo tempo que p arecia não haver
sucumbido à amnésia infantil, quer dizer, ao recalcamento que se encontra
na base de toda neurose, mas que é por sua vez a condição do lastro do
inconsciente, lastro possibilitador das operações do processo secundário e,
em conseqüência, de todo processo sublimatório?
Talvez um elemento podia ser a chave da situação: ao final desta
entrevista, quando propus para a mãe outra entrevista a sós com ela (tal
como assinalei anteriormente que faço em muitas ocasiões) , respondeu- m e :
"Não sei se é necessário, Antônio sabe tudo acerca d o que lhe posso dizer,
eu não tenho segredos para com meu filho".
82 I Silvia Bleichma r
Como ex'}Jlicar, então, esta situação de um menino que chega à Estas duas possibilidades - porum lado a de saturação, por outro lado
consulta porque não retém, porque não tem memória e, repentinamente,
aparecem recordações tão arcaicas, tão precoces e, ao mesmo tempo, com
um caráter tão traumático, tão diretamente ligadas à sexualidade materna?
Nas provas que fez durante o processo diagnóstico para a terapia de
aprendizagem, aparece um dado significativo: Antônio não tem memória
imediata. Quando em uma delas (o WISC) lhe é pedido a repetição de dígitos,
sua pontuação aparece como a mais baixa de sua perjom1cmce - este item
está, segundo os texios de análise de testes, diretamente associado à
recepção e à memória passiva -, como se a membrana anti-estímulos, ao
soldar-se, tivesse se convertido e m algo verdadeiramente impern1eável à
recepção (recordemos o pânico aos ruídos já mencionados) , como se tudo
que viesse de fora fosse altamente perturbador e não pudesse ser qualificado
e, em tal sentido , se convertesse em ameaçador. Mas, por outra p arte, não
é chamativa esta falta de separação dos sistemas, o que pareceria ser uma
característica de uma falha do recalcamento, condição do esquecimento e
da memória, em relação a esta mãe que parece "não ter segredos para com
seu illho"?
o problema d a memória
O tema d o esquecimento - e suas relações com o recordar - foi
proposto pela psicanálise desde suas origens, convertendo- se inclusive no
eixo fundamental da teoria do recalcamento. O trabalho com histéricas põs
de manifesto que, além mesmo do caráter sintomático da conversão, algo se
definia estruturalmente no esquecimento, permitindo relacionar a memória
com a sexualidade. Posteriormente, Freud pôde retomar estas questões
quando, ao universalizar o recalcamento e transfom1ar o fenômeno histérico
ele dupla consciência em algo atinente ao funcionamento psíquico em geral
(através do conceito ele inconsciente), justificou o fenômeno ela amnésia
infantil como momento funclante ela passagem elo polimorfismo perverso à
sexualidade regrada.
Os trabalhos inaugurais da metapsicologia ele Freucl puseram em jogo
o fato de que se o recalcamento traz como efeito o esquecimento, ele é
também a condição da memória. No capítulo VII ele A interpretação dos
sonhos distingue o pólo perceptivo (que sempre deve estar aberto ao ingresso
ele estímulos) dos engramas mnémicos , capazes ele conservar marcas
permanentes, e em "Uma nota sobre o 'bloco mágico"' se pergunta como o
aparelho conserva as marcas mnêmicas sem saturar sua capacidade ele
recepção. E se questiona: A capacidade ilimitada ele recepção e a conserva­
ção ele marcas duradouras se excluem mutuamente? É preciso renovar a
superfície receptora ou devem-se aniquilar os signos registraclos?2
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 83
a ele borrar o que já está inscrito - podem ser comparadas a dois tipos ele
escrita diferente: aquela que fazemos sobre uma folha de papel com tinta
indelével, ou a que fazemos sobre um quadro-negro, com giz, e cujos
caracteres podem ser destruídos assim que deixam ele interessar-nos (a
desvantagem deste último procedimento é que não se pode obter nenhuma
marca duradoura) .
Diferente destes sistemas ele inscrições, o aparelho psíquico, tal como
foi descrito em diferentes momentos da obra, seria ilimitadan1ente receptivo
para percepções sempre novas, ao mesmo tempo que tentaria marcas
nmêmicas duradouras. "Já em 1 900, em A Interpretação dos sonhos, dei
expressão a uma suspeita ele que essa capacidade fora do comum deveria
ser dividida entre dois sistemas diferentes ( . . . ) Temos um sistema Pcpt. -Cs . ,
que recebe percepções mas não retém traço permanente delas, podendo
assim reagir como uma fo lha em branco a toda nova percepção". 3 O modelo,
então, não é o modelo da folha escrita nem o modelo elo quadro-negro, senão
o de uma nova invenção que acaba ele aparecer no comércio com o nome ele
"bloco mágico". A característica fundamental elo bloco mágico é que consta
ele dois estratos que podem ser separados entre si, salvo em ambas as
margens transversais. O ele cima é uma lâmina transparente ele celulóide e
o de baixo , um fino papel encerado, também transparente. A ação de escrever
sobre ela não consiste em fazer surgir um material à superfície receptora,
mas a superfície é roçada, pressionada por um estilete, o que faz com que
a face inferior elo papel encerado oprima a face de cera, e que estes sulcos
tomem-se visíveis , como traços ele tom escuro. "Estando algo escrito sobre
o bloco mágico, se levantarmos cuidadosamente o celulóide do papel
encerado podemos ver a escrita ele modo também claro sobre a superfície elo
último, e a questão de saber p orque haveria necessidade ela parte de
celulóide ela cobertura poderá surgir. O experimento mostrará então que o
fino papel se amassaria ou rasgaria com muita facilidade se se escrevesse
diretamente sobre ele com o estilete. A camada de celulóide atua, pois, como
wn escudo protetor para o papel encerado, afim de manter afastados efeitos
prejudiciais oriundos defora. O celulóide constitui um 'escudo protetor contra
estímulos'; a camada que realmente recebe os estímulos é o papel".(ibid. , pág.
288, os bastardos são nossos.)
"Sobre o Bloco Mágico, a escrita se desvanece sempre que se rompe o
íntimo contato entre o papel que recebe o estímulo e a prancha ele cera que
preserva a impressão". (pág. 289); e Freucl segue: "não penso, porém, que
seja demasiado exagerado comparar a cobertura ele celulóide e papel
encerado ao sistema Pcpt-Cs e seu escudo protetor; a prancha ele cera com
o inconsciente por trás daqueles, e o aparecimento e desaparecimento ela
escrita com o bruxuleio e a extinção da consciência no processo ela
percepção. (ibid., pág. 289)
84 I Silvia Bleiclzmar
Podemos concluir: nenhum dos sistemas em si mesmo justifica a
memória como fenômeno que pode ser alcançado pela consciência, senão
que ê necessária a conjugação de ambos para que esta sej a possível. Duas
capas, então, cuja característica principal ê a de não estarem totalmente
aderidas, senão pelas bordas; dois sistemas em contato, diferenciados e ao
mesmo tempo comunicáveis. Se não há contato entre ambos, se a folha não
pode estar em contato com a folha de celulóide, em minha opinião, estamos
ante o modelo do es quecimento neurótico. Algo força a separação entre os
campos, ele modo que aquilo que se inscreve não pode aparecer na superfície.
Se se soldaram - ou melhor ainda, pensando em um modelo constitutivo
elo recalcamento originário -, se não se produziu a separação necessária
que permite a constituição das duas capas, a lãmina ele celulóide ilcará
colada à folha escrita, impedindo deste modo toda nova inscrição e, ao
mesmo tempo, fazendo ressaltar os caracteres já inscritos, em outros
tempos, para sempre.
Ini bição e recalcamento
Sempre me chamou a atenção que no Vocabulário da psicanálise, de
Laplanche e Pontalis, não apareça o tem1o inibição, sendo um dos compo­
nentes do título de um trabalho freudiano tão importante como Inibições,
sintomas e ansiedade, além do fato de que tanto o sintoma como a angústia
são dois conceitos chaves para a compreensão da psicopatologia psicanalí­
tica. Parece-me importante situar a inibição no marco da segunda tópica,
cuja constituição definitiva é alcançada em 1 923 em O ego e o id, sendo
InilJiçóes, sintomas e ansiedade um trabalho de 1 926, portanto , escrito no
marco desta teorização.
A inibição, díz Freucl, liga-se conceitualmente de modo íntimo à função
e, em tal sentido, expressa uma limitw;ãofuncional do ego que, por sua vez,
pode ter diversas causas (nem todas elas patológicas) . Mas esta inibição,
esta limitação funcional do ego, é efeito elo interjogo entre angústia, ego e
recalcamento: a inibição é o produto da contracarga do ego em relação ao icl
ou ao Ice para evitar um conflito no exercício elo recalcamento . Deste modo,
a inibição não é senão um resultado, o produto observável, fenomenológico,
ela forma peculiar em que se organiza a transação entre os sistemas para que
não apareça a angústia.
Em seu seminário sobre a angústia\ Laplanche propõe alguns eixos
introdutórios para ler Jniliições, sintomas e ansiedade. "Em primeiro lugar é
necessário, para Freud, ressituar a angústia em relação ao processo
defensivo". E, no processo defensivo - acrescenta, em relação a uma
questão que já está presente no texto "O recalcamento", de 1 9 1 5 -, é
necessário um motivo para o recalcamento. E que melhor motivo para o
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 85
recalcamento , o u para a defesa em geral , que a angústia? (pág. 133) Mas
Laplanche marca a contradição em relação à qual o próprio Freud já se havia
questionado : se pensávamos que a angústiaera conseqüência do recalcamento
-já que é precisamente na medida em que uma pulsão está recalcada que
o afeto correspondente se transforma em angústia - a angústia não pode
ser conseqüência elo recalcamento e , ao mesmo temp o , ser invocada como
causa. Há que se fazer uma escolha, ou pode-se encontrar uma saída no
interior da própria contradição?
São duas as questões que se abrem neste momento em relação com o
tema que é nosso objeto de trabalho. Se a angústia é conseqüência elo
recalcamento, o é na medida em que existem dois sistemas em conflito U á
desenvolvemos a hipótese d o icl atacante , d o ego atacado, em capítulo s
anteriores) ; mas uma vez que h á u m ego que emite sinais el e alar_rne frente
ao ataque do id, o recalcamento tem como objeto evitar a angústia. E evidente
que estamos falando de dois tipos de recalcamento diferentes: o recalcamento
originário, organizador da diferença entre os sistemas e, portanto, capaz d e
permitir a produção deste afeto chamado angústia, e o recalcamento
secundário, que tem por objeto evitar seu aparecimento.
O outro aspecto que nos díz resp eito é o fato de que podemos considerar
a angústia em geral como um efeito do recalcamento . originário, mas a
emergência de angústia não é senão o produto da inscrição singular do
sistema de representações que o sujeito possui em seu aparelho psíquico.
Voltamos assim ao interrogante que deixamos em aberto com a intenção de
encontrar uma resposta: a inibição, como empobrecimento funcional que é
efeito da contracargado ego, não é um processo originário, senão secundário
- neurótico - ao recalcamento originário, e produto do recalcamento
secundário.
A partir disso, para falar ele uma "curiosidade intelectual inibida", h á
que s e definir, primeiro , s e o processo de curiosidade intelectual s e
constituiu verdadeiramente, e s e seu não aparecimento é, e m conseqüência,
um efeito da inibição derivada do recalcamento; ou se, pelo contrário, essa
curiosiclacle não se constituiu, isto é , não se estruturouapulsão epistemofilica.
Não posso deixar ele assinalar, a esta altura de meu trabalho, que tenho
dúvidas em relação ao fato de situar a aptidão para o conhecimento e m
termos d e pulsão epistemofílica. Nesta não aparece nenhum elos componen­
tes que tomamos como ponto de partida para a definição de pulsão: não s e
apoia nem, portanto, s e desprende da necessidade; não parece remeter-se
ao prazer de órgão e , quando o faz, é por deslocamento e apoiada em outra
pulsão: conhecimento masturbatórío, retenção anal, impossibilidade el e
reter como vômito ligado à oralidade, incorporação canibalística també m
relacionada com esta, etc. Pareceria que faz parte d e u m processo psíquico
mais amplo, que se encontra vinculado, por um lado, com a sublimação e ,
por outro, com o domínio el a alteridade, efeito da castração, no sentido dado
86 I Silvia Blcichmar
a esta por Lacan: corte do objeto primordial, separação que implica o
aparecimento do terceiro e da falta em relação à posição fálica iniciaL E, em
tal sentido, chama a atenção que tenha sido Melanie Klein - como
e:ll:poremos nas páginas que se seguem - quem propôs este processo e suas
conseqüências no plano da clínica de crianças, enquanto que os psicanalis­
tas lacanianos se aferraram à formulação de "conhecimento paranóico", que
remete à especularidade e à constituição do narcisismo, sem verna proposta
de Lacan a respeito da arte e da ciência, como tentativas de domínio do real,
a margem teórica que se abria para urna teorização mais produtiva em
relação ã constituição da alteridade como pré-requisito da constituição da
inteligência.
A p ro p osta d e M e l a n i e Klein
As primeiras observações detalhadas a respeito do desenvolvimento
intelectual de urna criança, desde o ponto de vista da psicanálise, são as
apresentadas por Melanie Klein ante à Sociedade Psicanalítica Húngara, em
julho de 1 9 1 9 . 5 Nelas se postula a hipótese de que a origem da inibição
intelectual deve ser buscada na ordem do recalcamento, recalcamento
sextlal que leva à anulação de toda curiosidade científica. Seu maior mérito
foi por à prova, no campo da observação da criança, que a dissociação entre
o "afetivo" e o "cognitivo", com a qual a velha psicologia se manejava até
então, era facilmente questionável sob a condição de ressituar os conceitos
de afetivo e cognitivo em uma ordem de cientificidade que os incluísse. Freud
já havia mostrado em sucessivas ocasiões (em 1 900, com o capítulo VII de
A interpretQfão dos sonhos; em 1 9 1 5, com a Metapsicologia; ou mesmo antes ,
desde os trabalhos sobre a histeria e no Projeto) que o famoso "afeto" da
psicologia tinha que ser compreendido em termos de quantum de afeto, de
carga, e que havia algo que correspondia ao sistema da simbolização que era
da ordem da representação . Sistema de cargas e sistema de representações
aparecian1 então intimamente ligados (ou patologicamente dissociados) no
interior de um sistema cuja regulação tornava possível um funcionamento
mais os menos organizado de amb os: o aparelho psíquico.
O que chamou a atenção de Melanie Klein no pequeno Fritz (cujo
desenvolvimento explora no citado trabalho), foi que sendo um menino forte,
sadio e mentalmente normal, tivesse tido tamanho nível de lentidão em sua
evolução, a ponto de tornar-se preocupante para o observador: não falou até
os dois anos e só pôde expressar-se com fluidez aos três anos e meio, com
certa pobreza expressiva e simbólica; apenas adquiriu umas poucas idéias
próprias lentamente e tinha mais de quatro anos quando aprendeu a
distinguir as cores e quatro anos e meio quando pôde diferenciar as noções
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 87
de temporalidade de ontem, hoj e e amanhã. Em coisas práticas. diz Melanie
Klein, estava mais atrasado que outras crianças de sua idade, sendo
chamativo que, apesar de ser levado freqüentemente a fazer compras, não
entendia que as pessoas não presenteassem seus pertences, e não entendia
que se devesse pagar por eles e com diferentes preços de acordo com seu
valor.
Sem dúvida, é difícil para aqueles entre nós que lemos hoje o texto ,
avaliar os critérios mediante os quais se julgava, em 1 9 1 9 e na Europa
Central, um retardo intelectual . Há, em cada cultura, elementos d e
ordenamento que apenas podem ser compreendidos em relação a essa
mesma cultura (problema da estandardização cultural ou étnica, ao qual se
dirige a aplicação ele testes), mas dois elementos chaman1 nossa atenção: a
pobreza de simbolização da criança a quem a autora faz referência, e sua
dificuldade para a compreensão do código social, o fato de que não entenda
uma norma social predominante em sua cultura: a do dinheiro.
Esta constituição psíquica parece ser abordada desde os quatro anos
e meio por Melanie Klein, que registra minuciosamente o aparecimento da
curios idade sexual supostamente "inibida" . Parte para isso de uma hipótese
que guia todo seu trabalho: a curiosidade (sexLial-intelectual) é "natural" ;
seu não aparecimento, em conseqüência, não pode ser senão efeito de urna
coartada, de um recalcamento que aparece manifestamente como inibição.
A partir da constatação do problema, e de sua conseqüente proposta d e
resolução - responder sempre á criança com a verdade absoluta e , quando
seja necessário. com uma explicação científica adaptada à sua compreen­
são, tão breve quanto possível; nunca fazer referência às perguntas que já
foram respondidas. nem incluir um novo tema a menos que ela mesma o
traga ou faça espontaneamente uma nova pergunta -, a curiosidade
intelectual de Fritz se desenvolve em múltiplas direções que Melanie Klein
ordena em alguns itens: perguntas sobre o nascimento, sobre a existência
de Deus, sobre a existência em geral e afirmações sobre o ser, às quais refere
como perguntas e certezas óbvias: "Perguntou-me corno se chamava isso que
se usava para cozinhar e que estava na cozinha (se lhe havia escapado a
palavra) . Quando eu o disse, manifestou: Se chama fogão porque é um fogão.
Eu me chamo Fritz porque sou Fritz. A ti te chamam tia porque és tia".
Produziu-se no menino, afirma, um desenvolvimento do princípio d e
realidade - que não podemos deixar d e relacionar com o desenvolvimento
do juízo de existência - e uma diminuição de seus sentimentos onipotentes.
Três são os elementos que devem ser realçados do trabalho de Melanie
Klein, segundo nosso entendimento: em primeiro lugar, a fina observação
(desde uma perspectiva profundamente analítica) , que correlaciona o
aparecimento da curiosidade a respeito da existência do sujeito, com a
curiosidade intelectual em geral; segundo, a constatação intuitiva das
88 I Silvia Bleichmar
relações entre a constituição do princípio de realidade e a instauração do
juízo de existência; por último, a relação existente entre a saída de uma
posição onipotente infantil e a constituição do juízo de realidade ligado à
instauração do superego e à pergunta a respeito do lugar do pai (existência­
inexistência de Deus).
A conclusão a que chega em seu trabalho ê a seguinte: "Falei dos
conhecidos e danosos efeitos do recalcamento sobre o intelecto, devido ao
fato de que a força pulsional recalcada fica 'amarrada' e não disponível para
a sublimação, e porque, juntamente com os complexos. as associações de
pensamento ficam também submersas no inconsciente" .6 Um pressuposto
teórico que guia todo trabalho kleiniano é o que impõe o fato de que o
inconsciente não ê um efeito do recalcamento que produz a separação entre
os sistemas IcciPrcc-Cc, senão um existente originário; então, só se pode
concluir que tudo aquilo que dé origem a perturbações no processo
secundário não é s enão um efeito do recalcamento ou das defesas elo
psiquismo frente a este inconsciente. Não podemos compartilhar esta
conclusão, efetivamente, entendemos que o sistema pré-consciente, e em
conseqüência o pensamento, são efeito dos mesmos movimentos que
fundam o inconsciente, quer dizer, do recalcamento originário . E se bem nos
parece adequado respeitar esta conclusão (assim como a de Freud em
Inibições, sintomas e ansiedade) para as inibições neuróticas, como efeito do
recalcamento secundário, pensamos que o que ocorre nas chamadas
"inibições primárias" - aquelas que afetam a constituição do simbolismo
desde as origens -é da ordem da falha do recalcamento originário, um efeito
das dificuldades para sua instauração.
Não é pequeno o mérito de Melanie Klein ter detectado tão precocemen­
te, na história da psicanálise, as relações entre inibição intelectual e
contracarga do pré- consciente no que diz respeito aos fantasmas ela
sexualidade; mas o recalcamento não ataca uma curiosidade natural e um
impulso à indagação sobre o desconhecido desde as origens no sujeito
psíquico. Esta mesma curiosidade é um produto do movimento que institui,
em um mesmo processo, tanto o inconsciente como o objeto libidinal em sua
condição de objeto externo , separado do ego. Neste marco, justamente, nos
parece necessário trazer novamente à discussão, na teoria e na clinica
infantil, as condições de surgimento da curiosidade intelectual, em sua
relação com a constituição elo inconsciente e a alteridade elo objeto libidinal
primário.
A própria Melanie Klein, em "A importância da formação de símbolos
no desenvolvimento do ego"7, propôs elementos para cercar esta problemá­
tica, sem que extraísse deles derivações pertinentes para a teorização do
déficit intelectual. Este texto está destinado a mostrar dois fatores princeps
nas origens d o simbolismo: a constituição de equações simbólicas por
deslocamento do desej o fantasiado de ataque ao corpo matemo e a angústia
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 89
como motor deste deslo camento. É clip� e angústia, então, nas origens do
simbolismo: é o sadismo como efeito do Edipo precoce que predomina nesta
fase que instaura as primitivas phantasies propulsoras de angústia e
deslocamento; ê o fantasma de um corpo matemo repleto ele objetos valiosos
(fezes, crianças , pênis) , o que levaa criança a tentar apropriar-se sadicamen­
te deste; é a angústia frente a seu próprio sadismo, o que a detém. Um mito
de mãe fálica é constitutivo do Eclipo precoce. O interesse pelo segredo
matemo , aquilo da ordem da sexualidade da mãe que a criança desconhece,
põe-se emjogo impulsionando sua curiosidade deslocada para os objetos do
mundo.
Invertamos os termos que Melanie Klein propõe e encontraremos uma
nova perspectiva: o aparecimento ela triangulação do É dipo proporciona o s
elementos que permitem a emergência de angústia massiva, assim como a
inquietude intelectual a partir da tentativa de domínio do sujeito sobre o
objeto familiar que se tomou estranho, o Unheimlichfreucliano, a inquietante
estranheza, de que a criança quer apropriar-se, entendê-la, ê o que dá origem
a todas as curiosidades. E em nossa experiência clínica, hoje repensável
desde os elementos teóricos que estamos em via de desenvolver, tanto o
sadismo como a curiosidade (que encontramos transferencialmente presen­
te em tratamentos psicanalíticos de adultos aonde o processo de discrimi­
nação-separação começa a operar) são um efeito ela diferença que a inclusão
elo terceiro imprime ao psiquismo, dando origem deste modo tanto à
apreensão do outro enquanto outro, como à inquietude por aprender,
deslocada para o mundo.
Bipartição do espaço no vínculo:
p rem issa da constituição de u m a tópica
Desde esta perspectiva voltaremos a Antônio e a seu problema d e
aprendizagem. A frase da mãe "não tenho segredos para com meu filho" deixa
Antônio em uma posição que assinala precisamente a não constituição ele
um espaço diferencial, já que desde a própria indiscriminação materna não
se organizou nunca a possibilidade de um segredo, que permita, por sua vez,
organizar a ordem elo recalcado. A mãe foi partícipe elo prej uízo atual de uma
criação sem segredos, mas ao tentar escapar à mentira tradicional : "cego­
nha", "repolho", "semente", passou elo plano do recalcamento ao plano da
promiscuidade. Deste modo a ideologia serviu como uma coartada, sem que
por isso se deixe ele cair na mentira (mentira que tem que ver com seu gozo
como segredo, que se mantém oculto, e que aparece obturado pelo que foi
traumaticamente evidente em seus abortos e no seu desnudar-se). Na
realidade, se Antônio foi algo para sua mãe, esse algo não foi constituir-se
em um filho informado dos segredos da vida, elos mistérios do sexo, que é
 90 I Silvia Bleichmar
para onde se dirige a pergunta quando a criança a formula deslocadamente
(como Melanie Klein o percebe no pequeno Fritz) , senão que foi efeito de um
engano: o de anular toda possibilidade de curiosidade mediante uma
informação que, se é verdadeira, não o é para o menino, senão desde o real
da mãe.
Para que a criança estruture uma pergunta tem que haver um resquício
por onde a tntimidade materna se transforme em alteridade, e assim como
a obturação de toda curiosidade uma vez despertada - a insatisfação desta
curiosidade, desta demanda de satisfação - pode levar à inibição intelec­
tual , como propõe Freud, o não aparecimento desta abertura impede o
aparecimento de toda curiosidade. Já não estamos, então, na ordem do
recalcado, porque não há nada para recalcar, nada que o sujeito tenha que
expulsar do pré-consciente, do ego, porque seu aparecimento seria gerador
de angústia. Isso se faz evidente quand o Antônio não pode rir dos chistes
nem das palavras com duplo-sentido. Para ele, o sexo é da ordem do real, e
se é da ordem do real, não tem porque sentir prazer no momento em que, para
um sujeito neurótico, se produziria o levantamento do recalcamento com o
efeito conseqüente: riso, rubor.
Não há sintoma, não há prazer no chiste, encontramo- nos com o fato
de que duas formações do inconsciente não operam. Desde a perspectiva que
proponho, vai-se definindo uma estrutura psicótica. Não há psicose franca,
não há extravagâncias, nem autismo, nem neologismos . No entanto, há um
fracasso na simbolização expressa pela dificuldade, já assinalada, para
metaforizar.
Guy Rosolato, em seu artigo "O não dito"8, faz referência ao lugar do
segredo na clínica psicanalítica, ligando o "dizer tudo" à constituição do
núcleo paranóide e seu enfoque no processo analítico. O não dito faz sentido,
assevera, segundo o valor que se dé ao segredo. A questão é importante: o
não dito comanda o recalcamento, j á que este é tributário de um sistema
ético que está em conflito com as exigências pulsionais . E acrescenta: "Nas
psicoses o não dito tem um valor enigmático porque existe uma ignorância
real (no real) que se refere a um tema fundamental, mais que a um
desconhecimento, e sempre surpreende aquele que a percebe; é a base da
atividade delirante, quando esta se manifesta. Sem dúvida, diz respeito a um
dos pólos existenciais maiores que a psicanálise explora: a diferença dos
sexos, a diferença de gerações e o problema das origens, os jogos de poder
e os jogos da pulsão de vida e de morte; eles são o eixo da dupla articulação
narcisista. Clinicamente, vai desde uma simplesfalta de curiosidade quefaz
com que o sujeito pareça nunca ter tido que se propor questionamentos sobre um
determmado ponto, até um verdadeiro "branco" no discurso... ". Diferença entre
desconhecimento (méconnu) e "inconhecimento" (mconnu); aquilo que não é
desconhecido, senão não conhecido, quer dizer, da ordem do real não
significado) .
Nas Origens do Sujeito Psíq uico I 9 1
Retomando esta feliz idéia d e Rosolato d e diferenciar entre desconhe­
cimento (efeito do recalcamento que tenta desconhecer aquilo que é
inconsciente: o desejo, função princeps do ego tal como o assinalou Lacan)
e "inconhecimento", assinalemos que desde a perspectiva que estamos
fornmlando, o "inconhecido" faz parte desta primeira alteridade que é efeito
da separação do filho em relação à mãe, enquanto que o desconhecido são
os significantes chaves pulsionais que ficam inscritos no Ice a partir do
recalcamento, como resíduos do vinculo sexualizante das origens.
Em tal sentido, sendo a tnibição um efeito secundário do recalcamento ,
faz parte da cristalização por contracarga da função de desconhecimento do
ego e se abrem todas as possibilidades para que, uma vez levantado este
recalcamento, possa ser resolvida a formação sintomática que a sustenta,
como ocorre no caso de toda neurose.
Mas se o espaço não é repartido em dois, se fica fundido no interior do
laço que une o filho inseparável da mãe, não se geram as condições para o
surgimento da curiosidade intelectual e, por sua vez, as condições que
pudessem possibilitar a constituição ele um espaço tntemo - cisão radical
do psiquismo -; então as representações se fixam como marcas mnêmicas
não recalcadas no interior do aparelho indiferenciado e a conseqüência é a
impossibilidade do esquecimento e da memória.
No caso de nosso paciente Antônio (corno no caso de tantas outras
crianças que consultam aparentemente por um simples retardo do desen­
volvimento) vemos como as dificuldades de aprendizagem são efeito de u m
déficit na constituição do recalcarnento originário que põe em jogo as
condições da memória, ao não permitir a diferenciação dos sistemas
inconsciente/pré- consciente-consciente em estratos. O movimento perma­
nentemente regressivo no interior elo aparelho (regressão formal e d e
conseqüências temporais) em direção ao pólo perceptivo, que mantém
recarregadas as marcas mnêmicas origtnárias irnpedtndo seu ocultamento
por marcas p osteriores, deixa aberta a possibilidade ele que em um futuro
se possam produzir - se esta evolução não muda de signo mediante u m
tratamento analítico - formas d e evolução francamente psicóticas com
sintomatologia alucinatória.
Quando a mãe de Antônio reduz o mundo simbólico às necessidades
da criança: "Nunca demandou cuidados , sempre quis coisas concretas", o
que pode serre-invertido em "nunca entendi que pudesse querer outra coisa
que não fosse ela ordem da necessidade, ou daquilo que eu mesma necessito"
- oferecendo alimento ao menor sinal de desprazer -, acompanha sua
degradação simbólica com o oferecimento da realidade de seu sexo desnudo,
carente de todo recobrimento cultural . Deste modo, diremos que o s
significantes chaves, enigmas do desejo que a mãe deve outorgar para que
apareça a curiosidade intelectual, estão ausentes, produzindo esta falta de
memória e de inquietude em relação ao conhecimento, que estão no interior
92 I Silvia Bleichmar

de algo como "real-pleno", que não provocam no menino o desejo de espiar

nem a possibilidade de que esqueça aquilo mesmo que descobre.

6
Voltamos, deste modo, ao começo de nosso trabalho. Se Funes, o
memorião, deve fechar os olhos constantemente , pois os estímulos são
incômodos à sua capacidade ilimitada de recepção , não lhe permitindo o
respiro do esquecimento nem do relevamento perceptivo que permite a
organização si gnificante do mundo, e apenas a morte ou a cegueira, como
ocon·eu com Edipo, podem proporcionar-lhe alívio, Antônio, a quem a
Esfinge não propôs nenhum enigma, não tem ante o que fechar os olhos, na
medida em que é apenas o des erto o que se oferece a seu olhar impávido. Um
deserto que, por mais real que seja, não chega a constituir-se por si mesmo
mais que em um plano sem fissuras e sem intenogantes.
Frases das crianças, estrutura do
aparelho psíquico
N otas de referência

1 . É curioso que a linguagem cotidiana caracterize como d upia intenção d e uma palavra
aquilo que corresponde ao sexual recalcado, prototípico no Witz, dando assim uma
especificidade à polissemia da linguagem em relação à sexualidade.
2. S. Freud, "Uma nota sobre o 'bloco mágico"', em OC, vol. XIX, 1976.
3. Ibid. pág. 286.
,
4. J. Laplanche, A angústia, Problemáticas I, São Paulo: Martins Fontes, 1987.
5. M. Klein, "O desenvolvimento de uma criança", em Contribuições à Psicanálise, São
Paulo: Editora Mestre Jou, 1 970.
6. Ibid.
7. M. Klein, "A importância ela formação de símbolos no desenvolvimento do ego", em
Contribuições à psicanálise, op. cit.
8. G. Rosolato, La relationd'inconnu, Paris: Gallimard, 1978. I-lá tradução ao espanhol:
La relaciõn de desconocido, Barcelona: Petrel, 198 1 . Lamentamos que a tradução
tenha escolhido "desconhecido" para o que Rosolato chama inconnu, já que dois
vocábulos franceses, méconnu e inconnu, marcam a diferença entre desconhecer
(como forma do ego ele não reconhecer o desejo inconsciente), e o que nós preferimos
traduzir como inconhecido (aquilo que é da ordem do real não conhecido, e não da
ordem da defesa).
Ao longo destes anos, na medida em que minha investigação sobre o
recalcamento originário foi se desenvolvendo, dei-me conta que o problema
que tento cercar é aquele que se relaciona com a constituição do sujeito
psíquico e, especialmente, com a conelação entre os sistemas inconsciente/
pré-consciente-consciente.
Algumas observações a esse respeito poderiam ser resumidas d a
seguinte maneira: e m primeiro lugar, pensar nas determinações inconscien­
tes é estabelecer um modelo que permita compreendé-las em suas relações
com o pré-consciente e com o que se denominou genericamente processo
secundário.
O fato de que se tenha limitado a investigação psicanalítica a partir do
pressuposto que tudo aquilo que aparece no manifesto do sujeito psíquico
é efeito do inconsciente, entendo que seja fruto de um reducionismo
peculiar. Isto,sem deixar de ser verdadeiro, é parcial: aquilo que aparece no
sujeito como manifesto é efeito do esforço que o aparelho psíquico realiza,
uma vez instaurado o recalcamento, para manter separados os sistemas Ice
e Prcc-Cc. O inconsciente é efeito do recalcamento e, portanto , ambos os
sistemas se determinam mutuamente. Assim situado o problema, as formas
particulares de relação entre ambos são reconsideradas, abrindo-se a
possibilidade de apagar todo resto teórico construtivista mas, ao mesmo
tempo, marcando o caminho às hipóteses históricas.
A primazia de um processo primário anterior ao secundário, do qual
este iria se desprendendo paulatinamente através do sistema percepção-

93
94 I Silvia Bleichmar
consciência em construção (hipótese vigente em alguns textos freudianos
corno "Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental" , ou
inclusive a vertente geneticista de O ego e o id) gerou, parece-me, os freios
teóricos aos quais o kleinianismo se viu submetido (inconsciente operante
desde as origens. organização de um objeto parcial integrado com o obj eto
total, em um deslizamento que vai desde uma compreensão profunda do
inconsciente como inconsciente fantasmático, até um cognitivismo no qual
entendeu-se o objeto total corno cognição da totalidade) .
Por outro lado, a Ego psychology, ao tentar resgatar o processo
secundário, ficou capturada na psicologia sem conseguir utilizar os conhe­
cimentos desta para propor uma teoria psicanalítica dos processos do
conhecimento.
Por último, e como rápida introdução a este tema que me proponho
des envolver, não posso deixar de assinalar que a proposta de Lacan, cujo
eixo se desenvolve em tomo do algoritmo que funda a constituição do
significante na letra, ao instaurar uma diferença entre duas cadeias
significantes, cuj o valor posicional é separado pela barra, mas que qualita­
tivamente não implicam senão um mero jogo fom1al de diferenças , não gera
condições para conservar uma especificidade d o inconsciente, nem tampouco
para compreender o aparelho psíquico que se põe em jogo na constituição
da linguagem infantil.
Um exemplo pem1itir-me-á introduzir-me no terna. Alberto, de cinco
anos, diagnosticado por seu pediatra como apresentando uma psicose
simbiótica, tenta desenhar uma casa, deitado sobre a almofada. Pergunto­
lhe: "Que estás fazendo, Alberto?"; "Pintar", responde.
A ação que efetua, evidentemente, fica fora de um sujeito que a exerça,
de modo que o verbo não pode ser conjugado na primeira pessoa. Poderiamos
dizer que está dissociada, mas, nesse caso, teríamos que pensar que o suj eito
está em outro lugar, e o infinitivo alude claramente á ausência de sujeito.
Também poderíamos dizer, um pouco rapidamente: está na mãe. Mas isso
também não seria correto. Se a mãe enunciasse, como s ujeito, e atravessas­
se Alberto com seu discurso, diria "pinto", sem saber - como ocorre com
qualquer sujeito neurótico - quem o faz, acreditando ser "ego" . Poderíamos
atrib uí-lo ao código como tal, e pensar que esse menino usa o verbo no
infinitivo justamente porque possui o código sem fazer uso dele na fala, mas
isso seria apenas uma abstração que implicaria uma fantasia - do
observador - a respeito de um sujeito transcendental: não possui o aqui e
agora, nem o quem de sujeito, porque o código o atravessa e o transcende.
Por último, poderíamos pensar urna hipótese mais simples. Suponha­
mos que a mãe não pode falar senão em um impessoal que os engloba:
"Vamos pintar?", dirá a Alberto, no qual o nós de vamos se liga ao
complemento que fixa a ação , diluindo-o no infinitivo. Se essa mãe pudesse
dizer "estás pintando?" , o situaria em uma ação própria definida por uma
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 95
ação singular que o situaria no tempo e n o espaço: "(Tu) (agora] estás
pintando". Que nós poderíamos refommlar como 'Tu (não eu}, agora (que
implica um antes e um depois, uma historizaçào), estás pintando?" (que
marca a pergunta que reconhece o outro corno estranho e realizando uma
ação que desconhecemos) .
Desta maneira, o "vamos pintar" ela mãe, embora venha do outro, não
constitui senão uma proposta que liga o possível sujeito em uma dupla que
o dilui.
Quando Alberto diz "pintar", não institui um discurso próprio, no qual
ele, por sua vez, se institua corno sujeito. Mas também não é o discurso da
mãe aquilo que se apresenta atravessand o-o. É uma partícula desse
discurso, no qual tanto o infinitivo como a ausência de sujeito marcam a
carência de uma constituição dis cursiva que permita assumir uma
estruturação singular.
Em Problemas de linguística general, Benveniste propõe: "É Ego quem
diz Ego. Desde o manifesto não há porque buscar o eu em outro lugar. Qual
é, pois, a 'realidade' a que se refere eu ou tu? Apenas uma 'realiclacle de
discurso', que é coisa muito singular". Esta afirmação está baseada em um
incontrovertível fato lingüístico: "Cada instância de emprego ele um nome s e
refere a uma noção constante e 'obj etiva' , apta para pem1anecer virtual o u
para s e atualizar e m um objeto singular, e que s e mantém sempre idêntica
na representação que desperta. Mas as instâncias de emprego elo eu não
constituem uma classe de referência, já que não há ' objeto' definível como
eu ao qual se pudessem remeter de modo idêntico estas instâncias. Quando
eu tem sua própria referência, e corresponde cada vez a um ser único, proposto
como tal". 1
Assim se inaugura uma dupla vertente: desde a realiclacle puramente
linguística, o eu não é senão um lugar vazio - parte do conjunto de signos
não referenciais da linguagem, sempre disponíveis , e que se tomam "plenos"
quando um locutor os assume em cada instância de seu discurso -; mas
desde a posição de sujeito, implica umareferência subj etiva, correspondente
à singularidade do suj eito que enuncia.
Que podemos dizer desde a psicanálise? Em primeiro lugar, que apenas
diz eu quem se sente eu. Quer dizer, que se tomamos a diferença introduzida
por Lacan entre moi eje, o je "restituirá ao moi em sua função universal d e
sujeito" , quando s e articule simultaneamente no dis curso e n a tópica
psíquica uma instância capaz de enunciar um discurso elo qual se sinta amo,
desconhecendo as determinações que o constituem, quer dizer, tendo sido
objeto do recalcamento e ela instauração sistêmica.
Em segundo lugar, que se isto ocorreu, se o ego se instaurou no sujeito
psíquico, só pode dizer eu quem teme ser outra coisa do que eu (função
denegatória do enunciado e produto da contracarga elo pré-consciente) .
96 I Silvia Bleichmar
Terceiro : que possa estar o ego separado, daquilo que eu diz a respeito
de eu. Quer dizer, que no enunciado o sujeito toma-se a si mesmo como
referente, obj etivando-se fora de si mesmo, ao afirmar-se em uma ação ou
em um atributo, momento a partir do qual eu poderá falar de id.
E por último, que se eu (partícula de discurso, pronome) não remete a
ego como instância, como permanência, pode desaparecer no enunciado, ou
nunca constituir- se como uma instância do discurso.
Retomando a formulação de Benveniste, proporíamos . desde a psica­
nálise, que ê necessário que o vazio do pronome seja ocupado pelo suj eito
imaginariamente investido de atributos (quer dizer, constituído em sua
existência e em sua atribuição) , para que o discurso se constitua como
enunciado. Isto foi descritivamente e.:\.'])Osto nos manuais de psiquiatria
infantil , quando se inclui entre os traços patognomónicos da psicose da
primeira infância a inversão pronominal que não possibilita o aparecimento
do sujeito como tal no enunciado . Desta maneira, a criança começará a
chamar-se ele ante a pergunta com a qual ê interpelado por seu interlocutor
("Quem ê o amor de mamãe?" ; "O nenê", responderá o pequeno) denominan­
do-se a si mesmo como ê denominado, não pelo outro, senão pelos outros
quando o incluam como obj eto de intercâmbio na comunicação discursiva ,
excluindo-o como sujeito ao qual se dirige a palavra; "o nenê está dormindo",
dirá a mãe ao pai, deixando pulsar na frase todo o horizonte semântico
evocativo da exclusão da qual aquele ê objeto .
Benveniste assinala em relação à pessoa verbal: "Uma teoria linguística
da pessoa verbal só pode se constituir sobre o fundamento das oposições que
diferenciam as pessoas; e se resumirá inteiramente na es trutura de tais
oposições. Para tirá- la a limpo, poder-se-á partir das definições que os
gramáticos árabes empregam . Para eles a primeira pessoa ê al-mutalcallimu,
'o que fala'; a segunda, al-muhatabu, 'a quem nos dirigimos'; mas a terceira
ê al-ya'ibu, 'aquele que está ausente"' (ibid. , pág. 1 63). O que os gramáticos
árabes demonstram com justeza, diz o autor, ao contrário do que nossa
terminologia faria crer, ê a disparidade entre a terceira pessoa e as duas
primeiras; elas não são homogêneas, e isto ê a primeira questão que se deve
enfatizar. A terceira pessoa traz consigo uma indicação do enunciado sobre
alguêm ou algo, mas não referida a uma "pessoa" específica. Trata-se do
"ausente" dos gramáticos árabes. Para que a criança se chame a si mesma
ela, deverá ser objeto de intercâmbio discursivo, quer dizer, considerada
como pessoa gramatical, anulada em seu ser pelo pronome, nas origens do
intercâmbio entre os pais. Logo, quando se produza a triangulação e ela seja
capaz de estruturar uma ausência, entender que alguêm fala a alguêm de
algo ou d e alguêm ausente, poderá assumir um eu que se dirija a um tu,
sendo capaz de colocar-se ela mesmacomo sujeito no intercâmbio discursivo.
Deste modo, Alberto, nosso paciente, não apenas marca atravês da
conjugação impossível sua incapacidade para organizar uma ordem grama-
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 97
tical que pem1ita o manejo da língua, senão que assinala, com o uso do
infinitivo . a não existência da concordância em que s e pudesse vislumbrar
o pronome que marca a posição de sujeito.
Isto tambêm se eh."}Jressa quando, em outra sessão, pergunto a Alberto
o que procura em sua cesta: "Lápis", responde, mostrando novamente n a
ausência de partículas da língua, que pudessem permitir o uso do demons­
trativo , do possessivo, do qualificativo , a ausência de qualidade relativa ao
objeto que sustenta sua ação ou a constitui. Se ele fosse um menino que pede
0 lápis (azul, vermelho , novo, este, aquele que usei ontem), cada elemento
ficaria discriminado em sua qualidade e em sua especificidade espaço­
temporal, ao mesmo tempo que Alberto poderia assumír, atravês do "eu" que
se joga no "meu", sua "função universal de suj eito" correlativa a u n: e o �
tópico organizador da diferença entre ele e o outro , entre ele e seu propno
inconsciente.
Volto , por meio do exemplo, ao que foi exposto anteriormente: Alberto
não pode instaurar uma discriminação em seu próprio discurso que o
habilite para a vida de relação da qual se encontra excluído, não por u m
problema de linguagem - o motivo de consulta, como em tantas crianças,
foram as dificuldades de aprendizagem que surgiam em seu ingresso na
escolaridad e - ; ê um dêficit na constituição do sujeito, na discriminação
possibilitadora da tópica do ego que inaugura a difen�..r:cia.çâo entre. dois
sistemas instaurados pelo recalcamento e, em consequenCia, o funcwna­
mento do processo secundário .
Um ano mais tarde, quando a terapia estabeleceu os movimento s
?
necessários para a discriminação entre o sujeito e o o jeto, e Albe o rJ;
encontrou no exercício da fala possibilidades de comunicaçao para arranca­
lo de seu mundo solipsista,d ir-me-á: "Sabes? Compramo s uma êgua"; e ante
a pergunta: " Que ê uma êgua, Alberto?", responderá com petulância: "Uma
êgua ê um cavalo que se chama êgua". E voltará a situar-me, em meu
desconcerto , ante as dificuldades dessa lógica em constituição na qual ainda
não pode precisar a exclusão dos contrários , mas onde já não está presente
a indiferenciaçâo das origens.
caliarda, a n ulação do gênero e d o número
Em 197 1, Elias Petropoulos fez surgir em Atenas uma obra intitulada
Caliarda, que ê um dicionário da língua especial dos homossexuais gregos .
No prefácio, Petropoulos acusa aos folcloristas, aos neo-helenistas e a� s
historiadores gregos de moralistas, interpretando como uma condenaçao
moral seu rechaço a reconhecer e a fazer conhecer esta realidade social que
ê a homossexualidade. Petropoulos pagou três vezes com a prisão suas obras
que desnudam aspectos secretos da sociedade grega. Não ê minha intenção
 98 I Silvia Bleiclzmar
deter-me nisso, senão simplesmente assinalar as dillculdades de uma
investigação científica quando esta põe em j ogo as ansiedades mais
profundas de um grupo humano.
O próprio nome desta língua, caliarda, leva a uma reflexão . Pode ser
traduzida, talvez, como "língua verde", e gramaticalmente é um plural
neutro. Quais são suas caracteristícas principais? É quase uma regra em
caliarda a omissão dos artigos (excepcionalmente encontramos um); os
adjetivos não são empregados senão no feminino (pelo que, todo sujeito se
deixa entender como pertencente a esse sexo-gênero); a derivação de verbos
a partir de substantivos ê muito mais freqüente que a derivação destes a
partir de verbos (diferente da derivação do grego comum) . Hêlêne Ioannidi2
propõe uma interpretação: a ininteligibilidade desta língua serve para fins
utilitários, mas também ambíguos . Os locutores de caliarda oferecem o
espetáculo de sua inteligência às testemunhas heterossexuais, para quem
o sentido de seu intercâmbio é ininteligível. No entanto, apoia-se em
Triandaphillidis e sua busca da origem da linguagem através da psicanálise,
o qual propõe: "Nenhumalinguasecreta é uma língua. Porque os interlocutores
de nenhuma língua secreta têm a força para romper com a sociedade da qual
são adversários, nem com a língua materna. A língua materna ê o fundamen­
to inquebrantável sobre o qual se constrói toda língua secreta" .3
A esta altura seria trivial dizer que o sexo não está constituído pelo
gênero . No entanto, o exemplo do caliarda põe em evidência a existência de
uma possível relação. Mesmo que partíssemos provisoriamente da hipótese
de que o gênero, no sujeito, é anterior ao sexo, é evidente que na língua
secreta dos homossexuais gregos o gênero se pôs a serviço do sexo ou, para
falar com maior precisão, o não-gênero se pôs a serviço da anulação da
diferença de sexos. A anulação dos artigos, a anulação dos gêneros, a
feminização d os adjetivos (o atributo é o feminino, paradoxo que se asseme­
lha a uma denegação massiva na língua da impossibilidade de reconheci­
mento do feminino como não- posse do atributo masculino), a derivação do
verbo a partir d o sub stantivo , que coloca no centro o sujeito e não a ação,
evidenciam a reversão de um processo constitutivo da linguagem na
infância, na qual se o gênero é anterior ao sexo, em algum momento terão
que ocorrer pontos de encontro que liguem significantes genéricos a
significados sexuais.
Octave Mannoni, em um texto que deixa entrever a intenção de marcar
as diferenças entre psicanálise e linguística, "La elipse y la barra"4 assinalou
os problemas que se abriam na busca das conexões e discordâncias entre
o gênero e o sexo, partindo de que, se bem nem todas as línguas possuem
marcas particulares para dar um gênero, pode-se perceber que todas são
capazes de significar o sexo. A definição de gênero - diz - é gramatical, uma
palavra feminina remete a outra palavra feminina, esteja o sexo implicado
ou não. Se o gênero correspond esse exatan1ente ao sexo, seguiria funcionan-
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 99
d o (por exemplo, como regra d e concordância) entre os signifi c:antes e o sexo,
como uma espécie de "lógica" do lado dos significados. Nao obstante -
esclarece -, isto só é assim em uma linguística rigorosa. Se pedíssemos a
uma criança das primeiras séries que analisasse "rã macho" ou "ratão
fêmea" e indicasse o gênero do adjetivo, poderia sentir-se perturbado porque
na consciência "ingênua" do sujeito existe certa relação, difícil de definir, entre
:
0 gênero e o sexo (por exemplo, "macho · deve � �
ser ��scul n� l .
.
A conclusão a que Octave Mannom chega e a segumte: Dma que s e o
gênero estrutura certas línguas, o sexo é, em troca, uma �strutura d :
linguagem . . . Se introduzo deste modo o sexo na linguagem, e porque a e �
agora nunca nos referimos ao sexo senão como significado, e como tal nao
sai dos limites da elipse. E, por suposto, o conhecimento desse sexo
significado nada tem que ver com o saber sobre a se;..."Ualidade, o que talvez
pareça uma verdade banal". 5
_
E em nota de rodapé acrescenta: "Esses universais que toda lmgua deve
poder expressar (o número, o sexo, o passado, a restrição, etc.) pertencem
a algo mais geral que a uma língua ou a outra; pode-se dizer que pertencem
à própria linguagem" .
.
A proposta toma duas dimensões. Por um l <:do, assm �la que o sexo ,
.
enquanto tal, enquanto estrutura de linguagem, poe a questao da diferen?a
como ponto central. Por outra parte, e como ele mesmo e.scl::rece dep �1s,
pergunta por esse saber do qual a psicanálise se ocupa, quats sao as relaço � s
que mantém com o saber objetivo e com o sujeito. Em tomo deste ponto, d1Z
Octave Mannoni, giram os problemas mais importantes. E termi�a por
.
assinalar: "Não deveríamos assimilar o gênero gramatical a uma especte de
retomado recalcado (pelo demais contingente, censurado e transtornado) , de
modo que, diferente do saber significado, manifestasse de alguma maneira
o caráter significante das marcas da anatomia sexual para � homem? A
.
palavra, que dá o sexo significado, mascara ou recalca seu carater propna­
.
mente significante. O sexo como significante reside na camada mats oculta.
Mas pode reaparecer, disfarçado , na camada mais superficial, a das fonnas
significantes língüísticas" .6
•
Que o sexo se marca enquanto significante de uma dtferença nao e
_ _
�rn
_
�
ponto que nos proponhan1os discutir; "as marcas" da ifere�ça anatomtca
não podem ser j ogadas senão como significantes e e asstm que Freud
assinalou. O impasse se produz, em minha opinião, quando o problema d a
diferença fica capturado e m u m encerramento linguístico que impede
aproximar-se ao caráter significante peculiar que, para o homem, essas
marcas da anatomia sexual possuem. E é significante na medida em que no
processo discursivo interrompido pelo lapso, ou pelo Witz, o fantasma a �
diversidade se toma possível "marcando" o sujeito em uma desestruturaçc:o
sexuada que irrompe desde os fantasmas erógenos elo conjunto do corpo pre­
genital.
100 I Silvia Bleiclzmar
Apelando ao conhecido chiste das duas crianças, menino e menina,
frente a um quadro que representa Adão e Eva e que os desconcerta em sua
pos sibilidade da diferenciação sexual na medida em que os personagens
_ é, para logo se reconhecer em sua atribuição - , "não brinco com bonecas".
estao nus, Octave Mannoni modifica a historieta inglesa e leva a menina a
dizer: "Escutemos o que dizem; dirão him e her e então saberemos" (porque
tais pronomes designam fielmente o sexo significado) . O efeito de Witz
depende da ignorância de algo que não é o sexo como significado. Quando
uma criança sabe que não há apenas palavras masculinas e femininas,
senão que além desses gêneros há um significado, sua curiosidade é
despertada e se pergunta "que que� dizer isso?". Tenta saber algo mais, que
não figura na elipse saussureana. "E, rigorosamente, e devemos a expressão
a Lacan, o sexo como significante (um significante que não depende da
linguística, apesar de Lacan ter dito algo diferente no texto citado como
epígrafe) " . E o te.xio citado como epígrafe diz: "Nosso tema é, por suposto, o
homem e a mulher (. . . ) . Aqui há, sem duvida, um significante oculto que não
é absolutamente encarnável em parte alguma mas que, não obstante, se
encarna na forma mais aproximada na existência das palavras 'homem' e
'mulher"' (Jacques Lacan, Seminário de 1 8 de abril de 1 956) . E nós
acrescentamos: partindo da preocupação de Lacan pelo caráter significante
do sexo, Octave Mannoni chega a uma conclusão que não é apenas um
desenvolvimento, senão que é diferente daquela do mestre. Voltaremos
sobre isso, mas não podemos deixar de assinalar o cuidado e a fina ironia
com os quais Octave Mannoni maneja a diferença, já não de sexos, senão de
propostas teóricas, que deixou submersos, durante muito tempo, aos não
iniciados, na confusão de propostas, sem permitir aceder aos movimentos
produtivos da discrepância.
Quando o autor dá os exemplos de him e her, mostra que o significante
pode atuar, desde o gênero, como traço secundário sem que isto o ligue ao
sexo como significado. Him e her, como os brincos das meninas, como os
soldadinhos com os quais brincam os meninos, entram de fato no gênero,
mas não apenas desde o gênero gramatical , senão desde aquele que prepara
o acesso ao sexo, e que, embora estej a constituído pela linguagem, joga-se
em todas as ordens da cultura e através destas, sendo a linguagem a via para
a explicitação dos fantasmas parentais a respeito do futuro sexo simbólico
do filho real que deve aceder a ele para possuí-lo.
As crianças da história de Octave Mannoni, da mesma forma que a
petulância de Alberto quando me responde "uma égua é um cavalo que se
chama égua", assinalam a diversidade pos sível antes que se instale a
difer:nça dos sexos. No entanto, cada um destes meninos pode responder
nommalmente a respeito de seu sexo atribuído. Nem Alberto , nem as
crianças dahistorieta, terão um momento de duvida quando lhes perguntem
a respeito do caráter de sua situação na diferença ele sexos. Alberto
responderá com segurança "menino", quando eu lhe pergunte o que é. No
Nas Orige11s do Sujeito Psíquico I 1 0 1
entanto , isso não justificará, de nenhum modo, o reconhecimento ela função
sexual, na medida em que imediatamente acrescentará - e depois de u m
trabalhoso processo terapêutico n o qual terá que descobrir primeiro o que
Como o Witz inglês relatado por Mannoni, freqüentemente as frases elas
crianças marcan1 o retorno desta "diferença" genérica que se estabelece
antes da fase fálica e que assinala como os elementos da cultura são tomados
para seremjogados em uma diversidade na qual, apesar elo clesconhecimen­
to elo caráter do sexo enquanto significado, o sujeito se enfrenta já com o
problema de sua identidade como ser sexuado. Um menino de quatro anos,
a cuj o pai são proibidos alguns alimentos e excessos orais em função ele um
transtorno gástrico crônico, responde para a mãe que lhe pergunta se quer
um pouquinho de café que os adultos vão ingerir: "Acreditas que sou uma
mulher para tomar café e fumar?". Profundamente humilhado ante o riso
daqueles que presenciam a cena, se retira. As perguntas são várias: A
humilhaçao é efeito elo fato de que o oferecimento materno o desconhece em
sua posiçao viril, marcada pela identificação ao pai ainda não definida pela
lógica fálica da diferença? Ou, talvez, ante o riso que sua resposta provoca,
sente que os adultos que o rodeiam negam sua posição masculina defendida
com orgulho através da resposta irritada e altiva? Haverá uma suspeita, em
vias de constituir-se, a respeito de que o masculino não passa pela ingestão
de café, senão que é de outra ordem secreta que começa a aparecer como
interrogante, e sente o riso como um desmascaramento de sua ignorância
a respeito desse algo que já começa a reconhecer, sem que possa ainda se
instaurar como um saber possível?
São tantas as respostas como o são as perguntas a formular. No
entanto, dois elementos podem ser ressaltados d a situação. Em primeiro
lugar , o fato de que na mesma mesa ela qual se levanta há outros homens,
menos seu pai, que tomam café sem que isso ponha em dúvida sua
masculinidade. Em segundo lugar, que a ferida narcisista que se evidencia
se instalou em nosso menino sem que isso signifique que este narcisismo s e
tenha ligado ainda a nenhum significante fálico d a diferença anatômica,
mesmo quando se encontrejá organizado em relação à diferença de gêneros.
Talvez, quando termine de se instalar o movimento que o há de
constituir ele sujeito atravessado pelo gênero masculino em suj eito sexuaclo,
haverá de responder com a mesma indignaçao quando sej a considerado
capaz de um atributo feminino, mas neste caso, porque a situação o
interpelará em sua condição masculina, agitando os fantasmas de castração
e passivização que se viu obrigado a recalcar no processo.
Laplanche recupera, em seu seminário sobre A castração7, dois termos
alemães que parecem assinalar duas problemáticas freudianas no texto a
respeito de A organização genital infantiL Trata-se de Unterschied, diferença,
e Verschiedenheit, diversidade. A diferença (Unterschied) implica urna pola-
 102 I Silvia Bleichmar
ridade, uma dualidade. Pelo contrário, a diversidade (Verschiedenheit) pode
existir entre dois elementos, mas também entre n elementos.
Se tomamos a diversidade das cores - diz -, nenhuma se define por
uma qualidade própria, nenhuma se define pela negação da outra - nem
sequer o branco ou o preto -. Em um sistema de duas cores, o branco se
define pelo não-preto, mas no sistema das cores naturais, sistema de n
possibilidades, o não-branco pode ser preto, mas também vermelho, verde,
etc.
Estamos em uma lógica do conceito que define dois tipos de oposições:
a dos contraditórios, por uma parte, e a dos contrários, pela outra. No
exemplo do menino que recusa tomar café, há uma diferença de gêneros ,
uma diferença entre o s homens e as mulheres, percebida mas não ligada a
uma diferença anatõmica dos sexos. Na diferença social, cultural, falta um
fundamento lógico, e o menino busca nesta bipartição um fundamento em
teoria, precisamente esse fundamento lógico. Deve buscar-se este funda­
mento lógico na anatomia - pergunta Laplanche -, quando o problema do
sujeito é reencontrar a natureza em continuidade ao longo processo no qual
a perdeu, quer dizer, quando as excitações sexuais no sujeito psíquico são
o efeito de uma verdadeira perversão do instinto por sua inclusão no mundo
da sexualidade adulta que o constituiu parcelando seu corpo em múltiplas
zonas erógenas que tomaram o rumo inicial do auto-erotismo?
O problema da lógica da exclusão, do terceiro excluído, não é algo da
ordem do real, da anatomia. O pênis, a vagina, o seio, o ânus, não começam
a circular até que se organiza uma nova repartição, efeito da lógica da
sexualidade genital. Mas esta lógica é impensável fora do processo secun­
dário, já que no inconsciente subsistem todos os elementos que só são
contraditórios para o pré-consciente. O contrário ou o contraditório apenas
é algo que afeta o sujeito, a um portador dos atributos.
Mas ter um atributo, diz Laplanche, pode ser entendido em duas
dimensões diferentes. Um atributo pode ser só isso, ou pode transformar­
se em uma insígnia; o atributo pode ser uma qualidade ou uma insígnia.
Como atributo apenas entra em uma lógica dos contrários, como insígnia,
em uma lógica da contradição: se não se é homem, necessariamente se é
mulher. A insígnia, como tal, não existe na natureza, só na lógica do sujeito.
Desde o real, algo pode ser vermelho, azul ou branco. Mas desde a lógica, se
está assinalado por verde/ não-verde, aquilo que é vermelho entra na lógica
da negação (não-verde).
A conclusão provisória que Laplanche tira a respeito dos termos de
Unterschiede Verschiedenheité que a diferença absoluta remete a uma marca
da presença ou ausência de apenas um atributo. A diferença relativa dos
gêneros está fundada sobre a escolha de dois ou mais atributos. A diferença
de gêneros remete, então, à diversidade e não à diferença, não aos
contraditórios , senão aos contrários. A lógica da contradição, portanto, esL
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 103
definida e m relação a uma pautação que vem por fora do sujeito, que
organiza o princípio do terceiro excluído e abre as possibilidades ao processo
secundário. Se no inconsciente os contrários coexistem, é apenas no suj eito
que se constituiu onde estes são sentidos, sofridos , como contradição: a
diversidade transformada em diferença no interior do aparelho psíquico e
instituída como conflito.
No menino que se nega a tomar café e fumar, a masculinidade não s e
define pela existência do atributo masculino pênis, senão por todos os
elementos secundários ligados à constituição da posição masculina. Mas,
a diferença de gêneros funcionou como prévia à diferença de sexos ,
marcando desde a cultura as alternativas possíveis que logo serão inscritas
e ressignificadas no psiquismo.
Para que nosso sujeito alcance a diferença de sexos deverá passar
previamente pela oposição fálico-castrado que constitua o pênis como
insígnia da masculinidade, o falo como símbolo da diferença, como insígnia
que abrirá a lógica da contradição. Lógica da contradição que no sujeito
ficará marcada como lógica da castração.
Poderíamos pensar, seguindo esta mesma linha, que a lógica da
contradição é inaugurada através da insígnia. A insígnia como algo susten­
tado no real, mas significado simbolicamente. Mas, por sua vez, a insígnia
poderá ser recuperada em um novo movimento quando o processo lógico
seja arrancado da lógica binária, ã qual ficou submetido pela angústia d e
castração, e substituído em um reconhecimento d a contradição que não
implique a anulação do contraditório. ·
Por que situar, então, como o faz Octave Mannoni, a diferença de
gêneros do lado do significante, a diferença de sexos do lado do significado?
Não seria, de alguma maneira, tentar colocar o significado do lado do
inconsciente? O sexo como recalcado não é o da lógica fálica; nele coexistem
o fantasma de castração com a mãe fálica.
Para o sujeito em constituição, tudo o que leve a um ordenamento dos
enigmas do sexo (nascimento, morte, castração) funciona do lado da
significação, quer dizer, do ordenamento significante em uma lógica que
permita a simbolização. Tanto a diferença de gêneros como a diferença de
sexos é algo que ocorre do lado do pré-consciente; ordenamentos diverso s
dos enigmas nos quais o sujeito s e constitui e pelos quais é interpelado. Do
lado do inconsciente, as representações coexistem e apenas se transformam
em contraditórias quando atacam o pré-consciente, o ego, guiado pelo
processo de organização da lógica do processo secundário.
.
Em tal sentido, o sexo pode ser defmido, como propõe Octave Mannom,
do lado da linguagem, esta entendida como sistema que organiza as
diferenças. Mas, na medida em que o sistema da língua não se instaura
senão como organizador dos sistemas inconsciente e pré-consciente-cons­
ciente através da constituição do recalcamento originário - tal como
104 I Silvia Bleichmar
desenvolvemos no Capítulo 3 -, a linguagem, ao se constituir no sujeito, é
um efeito do recalcamento originárto e funciona dando origem à significação,
quer dizer, possibilitando a emergência ou não do recalcado. Na constituição
do gênero na criança j á está presente a marca do sexo que o adulto imprime.
Igual que na linguagem caliarda, o gênero se correlaciona com o sexo,
não "na consciência ingênua do sujeito" senãojustamente na suspicácia das
vicissitudes do fantasma sexual recalcado. O sexo retoma no gênero,
denegado ou ligado ao fantasma recalcado, mais aquém da intenção de
constituir uma língua neutra. Uma história relacionada com o problema do
racismo o exemplifica: em um ônibus vão negros e brancos brigando. O
condutor, irritado, detém o veículo e ordena: " Chega, desde hoje todos são
verdes!". Nesse momento um negro sobe no ônibus e pergunta: "Onde me
coloco?". O chofer responde: "Você, atrás, com os verde escuro".
Além da tentativa de mostrar, com este exemplo, como reaparece,
através de novas dicotomias no interior da linguagem, aquilo que se pretende
expulsar, é necessário que assinale que este problema se expressa brutal­
mente por meio das formações reativas no racismo contemporâneo. Assim,
a hipocrisia racista que se esconde na expressão "gente de cor", como se o
branco fosse a "não-cor", encobre o caráter depreciativo com que se marca
(ou se desmarca) o preto, eludindo na linguagem a marca da segregação que
retoma através do encobrimento. Ou a modalidade de chamar o índio
"indiozinho", em uma proposta paternalista que oculta o caráter altamente
hostil a partir do qual um traço étnico se converte em um significante da
menos-valia. Ninguém diria, para referir-se aos norte-americanos, "os norte­
americaninhos" , a não ser em um sentido irônico.
Diversidade prévia, então, à diferença dos sexos, que já constitui os
elementos significantes que a cultura estabelece para a assunção social do
próprio sexo: a organização parenta! do Édipo, a atribuição do sexo através
do nome, da cor da roupa, e dos signos distintivos que a cultura imprime no
sujeito , antes que a angústia de castração o coloque na alternativa de ser
sel\.'Uado.
A precocidade da educação sexual não resolve nada disto, se não
acompanha o processo de simbolização que os movimentos de constituição
do sujeito propõem na estrutura edípica e aos concomitantes intra-subjeti­
vos, fantasmáticos, deste processo. Uma situação que se produziu em um
jardim de infância onde se dá educação sexual exemplifica isto: as meninas
formulam "Lupita tem vagina, Mariana tem vagina, Paty tem vagina, Paula
tem 'checheca"'. Assim irrompem na lição monótona de uma diferença não
apreendida com u m ex-abrupto que j oga por terra as inquietudes
programáticas da professora.
A diversidade ou diferença, no manifesto, marca o movimento c'e
constituição de um aparelho psíquico infantil incipiente, onde a instauraç2 n
da castração abrirá a possibilidade d e comprender o surgimento do zero, ci' ,
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 105
nada contraposto ao traço. Lógica da instauração do zero que implica a
possibilidade de abertura em direção às matemáticas e à numeração.
Se a lógica do zero precede o sujeito na cultura, se a constituição da
diferença, na ordem da linguagem, surge desde um antecedente que, sendo
transubjetivo, é condição necessárta para a constituição do próprio sujeito,
os índices que permitem cercá- lo na criança possibilitam ao analista
encontrar as pistas de organização do aparelho e situar as linhas com as
quais deve orientar a direção da cura.
Momentos do tratamento de um menino, que el\.1Jorei em continuação,
podem ser úteis para explorar a hipótese que acabo de apresentar.
Mariano. o zero e o nada.
Mariano, quatro anos e meio. O olhar atento , inteligente. O corpo na
metade do caminho entre a primeira infância e a infância. Uma linguagem
rica e desalinhavada. Jogos explosivos e altamente simbolizados - guerras
interplanei:árias, mega-aranhas e mega-escorpiões - acompanhando preo­
cupações "cotidianas": a bomba de nêutrons, os conflitos mundiais.
Motivo de consulta: intolerância excessiva e enurese noturna; Mariano
converteu-se em um menino "não manejável".
O reverso de sua atitude querelante: a depressão. Teve uma migração
recente e um dia, quando cede a brusquidão do jogo e o discurso deixa de
ser verborréico - uma micção que se derrama pelo consultório - deita-se no
chão e, com tristeza profunda, diz: "Sabes o que ê o mais triste, mas o mais,
mais triste?: quando já não te lembras da cara dos teus amigos". As sessões
transcorrem em um ritmo lento, trabalhoso, que tenta reconstruir as caras,
os lugares, os jogos perdidos.
Pouco tempo depois entra na sessão com sede. Diz: "quero água de
nada". No México existe a água de laranja, de tamarindo, de orchata.
Mariano pede "água de nada".
Em uma primeira visão, facilmente acessível ao pensamento psicana­
lítico, interpreto: água de nada, preencher-se com a ausência que s e
substancializou. Em seu caráter de presença, a ausência, o que não está, é
nada, mas nada é algo que pode conseguir uma incorporação benigna. Até
este momento, enquanto durou o quadro querelante, a ausência operou,
desde o inconsciente, como um ataque- objeto mau, propõe Melanie Klein.
No inconsciente o objeto ausente é sempre objeto mau. A ausência não
é representável senão como presença atacante. Laplanche8 faz trabalhar
esta idéia e chega a uma lei geral do psiquismo: a pulsão de morte ê a
sel\.'Ualidade não ligada que ataca o sujeito com a desintegração da pulsão
parcial, frente à libido ligada no ego ou no objeto de amor.
1 06 I Silvia Bleiclunar
Cabe uma pergunta: não é o inconsciente, porsua própria constituição,
o lugar de inscrição da ausência do obj eto? Este é o modelo de toda a
constituição do aparelho psíquico em Freud, j á que o que se inscreve é uma
marca do objeto perdido. O nadanão tem representação, atua por presença,
morde e desgarra o sujeito. Não é outra a função atacante do inconsciente
em seu conjunto. Se o inconsciente é o lugar do desejo, da inscrição da
pulsão em sua impos sibilidade de satisfação - e neste sentido haveria que
pensar o conceito kleiniano de voracidade: uma discordância fundamental
entre a alimentação da qual o bebê é objeto em relação ao seu desejo oral de
acumulação ilimitada - , o :oujeito se defende. (Thomas Mann, emAs Tábuas
da Lei, referindo- se à lenda que atribui a Moisés um crime em sua precoce
juventude, diz: "Soube que, se matar era bonito, ter matado era terrível, e por
isso matar devia estar proibido". Apenas a possibilidade de desejar o terrível
com a convicção de que não se realizará é o que garante a tolerância ao
sinistro .)
No desgarramento que Mariano se encontra quando chega no trata­
mento, em sua atitude tipicamente paranóide, irritável , nada o satisfaz,
porque diante de cada reclamação, quando o objeto demandado lhe foi
oferecido, é em sua presença que o objeto ausente aparece marcando a
impossibilidade de sua recuperação. Por isso a metonimização permanente
(no manifesto) de sua demanda não consegue recobrir aquilo que ficou não
só como perdido, senão como não verbalizável, e que o tratamento permitirá
recuperar.
Quando água de nada se faz presente em seu discurso, o nada aparece,
no marco da cura, remetendo ao objeto primordial da ingestão; mas é no pré­
consciente onde isto pode se manifestar e assim adquirir uma qualidade
diferente: de presença atacante transformar-se-á em ausência desejada, em
possibilidade de representação da lógica da ausência (lógica, por outra parte,
que é apenas atributo do sistema pré-consciente-consciente) . Água de nada,
no entanto , não ê ainda o nada como conceito. É a substantivação na língua
do que havia sido inominável. Também não é uma soma, não é água com
nada, senão a combinação discursiva que estruturalmente liga água com
laranja e a transforma em água de laranja, em uma anulação das proprieda­
des particulares de cada um dos elementos combinados, em uma fusão do
objeto e do atributo. O atributo é o objeto, ao mesmo tempo que o objeto é
seu atributo; a água e a laranja se diluíram no de que as constitui como
unidade.
\
Se a análise e a síntese dos passos do conhecimento cientifico são
possíveis, isto não tem existência no psiquismo infantil antes que os
sincréticos originários se descomponham em suas unidades constitutivas,
e isso é assim tanto desde a instauração pulsional (representação da
primeira experiência de satisfação, na qual a boca e o seio constituem um
todo que permite pensar que a boca é uma cavidade que falta no seio) como
i'
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 107
desde a própria experiência da língua, que propõe composições e recompo­
sições do real que a criança deverá rearmar quando se instale a lógica do
terceiro excluído. Só ali haverá possibilidade de análise e síntese posteriores
aos movimentos de constituição dos objetos totais.
Pierre Fédida, em seu livro L'absence,9 vai marcando os diferentes
espaços nos quais a ausência constitui o objeto; sua preocupação é
encontrar a ausência da qual o objeto é portador. O objeto fetiche (portador
da castração), o obj eto relíquia (portador do luto) , o objeto transicional,
sustentação da presença-ausência da mãe. Na apresentação deste teÀio
propõe: "A ausência dá conteúdo ao objeto e assegura um pensamento à
separação ". Tomando um neologismo de F. Ponge, objeu, para intitular um
texto destinado a elaborar, com uma escrita que está entre a psicanálise e
a poesia, as relações entre jogo e objeto, Fédida diz: "Tratar-se-ia de fazer do
objeto o acontecimento depressivo da perda. É um acontecimento porque há
uma descob erta do objeto pelo jogo: consiste em abrir a mão, em se soltar.
O objeto se constituiria como significante da separação, o abandono ou a
perda . . . Institui-se no lugar de uma falta" . 10 O pensamento, às vezes, tem
como espaço a dor. O ausente é então o objeto de ódio do amor.
No caso de Mariano, quando os pais são obrigados a me consultar pela
atitude querelante que o menino manifesta- sempre hostil, mal-humorad o ,
reivindicativo -, é a ausência do objeto desejado que coloca os pais como
obj eto odiado, ou ao menos, como sustentação deste, como objeto de ódio
do amor? A situação clínica volta a atualizar, uma e outra vez, a velha
discussão entre Melanie Klein e Anna Freud no "Simpósio sobre análise
infantil", de 1 926, a respeito da possibilidade da criança de estabelecer
transferência. Qual é o objeto desejado, se os pais estão presentes, se o s
objetos primordiais são aparentemente conservad os?
Do objeto parcial (p leno) ao objeto total (da fa lta)
Uma situação com uma paciente adulta pode servir para esclarecer este
ponto. Teve um breve encontro com o homem que ama e do qual está
separada. Lembra que ela era "tudo para ele" e agora ele fez amor com ela
apenas porque gosta dela, mas já não a ama. Minha paciente relata: "Quando
terminamos de fazer amor dormi, e sonhei que dormia a seu lado. Não
entendo porque, estávamos dormindo juntos e, no entanto, eu sonhava que
dormia com ele". Na verdade, ela dormia "com outro" . A isto se referia Melanie
Klein quando naquela velha polêmica dizia a Anna Freud que a transferência
não requer a perda dos pais "reais" infantis. Na realidade, nunca foran1 reais ,
I e na cura s e transferem aspectos fantasmáticos, resíduos das relações d e
objeto ocorridas com eles. Quando Mariano acusa os pais presentes ,
'
'
reclama deles querelantemente serem portadores d a ausência das relações
I'
f,
108 I Silvia Bleichmar
primordiais perdidas. Um "resto de pais" ficou no lugar de origem, do qual
foi transladado. Quando se perde algo, o objeto presente marca a falta do
ausente (não foram poucas às vezes em que assisti ao desconcerto de um pai
ou de uma mãe, viúvos ou separados, enfrentados com a hostilidade do filho
�
que idealiza ao ausente. Não há porque se apressar na compreens o de� te
fenômeno, mas se inscreve, em linhas gerais, na ordem de determmaçoes
que estamos expondo).
Spitz, ao descobrir a angústia do oitavo mês como um momento do
desenvolvtinento infantil evidenciado pela reação da criança que, ao se
enfrentar com a gestalt facial de um desconhecido, chora pela presença
estranha, não se limitou a descrevê-la como um fenômeno normal na
constituição da criança, senão que arriscou uma hipótese cujo valor deve ser
relevado: se a criança chora frente ao estranho é porque sua presença remete
à ausência do objeto esperado, a gestalt materna. O objeto presente
ameaçador é o estranho que marca a ausência do objeto conhecido. Uma
característica geral do psiquismo está em jogo: o real só angustia se é
transfundido pelo objeto psíquico.
Jogo enganoso . O desconhecido só assume tal caráter diante do
conhecido (quer dizer, do re-conhecido, no sentido de que o representado
coincida ou não com o que é percebido); por outra parte, o que é percebido
como real, e que coincidiu com o que foi outrora representado, deixa de sê­
lo na medida em que, apesar da percepção do idêntico, inaugura-se a não
coincidência com a representação interior. Neste duplo movimento deve­
riam, talvez, ser pensadas as duas variáveis freudianas relativas à "prova de
realidade": uma, que consistirá em diferenciar o representado daquilo que
é percebido e que assim marcaria a diferença entre o interior e o exterío : (caso
.
do bebê de Spitz); outra, que consistiria em comparar o percebido objetiva­
mente com o representado, para retificar as eventuais deformações deste
último. No entanto, o que vemos no caso de Mariano (e coincidindo com a
preocupação expressa por Laplanche e Pontalis no Vocabulário da psicaná­
lise, de que esta última variante do conceito de prova de realidade leve a
considerar esta eÀ'])ressão como se a realidade fosse aquilo que põe à prova,
mede e atesta o grau de "realismo" dos desejos e das fantasias do sujeito e
lhes serve de padrão) é que a cura analítica não pode passar em nenhum
_ dade não deixam de estar relacionadas" . 12
momento - e sinto o absurdo de ter que repetir isto a esta altura da historía
da psicanálise - por fazer coincidir os pais reais com os fantasmas que
agitam o sujeito na produção do sintoma, senão que passa por reconhecer,
junto a meu paciente - e compartilhando para isso, dolorosamente, o
processo da cura - que os pais perdidos das origens são os restos de
ausência atacante que hoje precipitam sua raiva desmedida.
Passar do ódio à tristeza não é tarefa pequena para o aparelho
incipiente. Tratar-se-ia, talvez, no movimento descrito por Melanie Klein,
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 0 9
como a passagem à posição depressiva, do abandono d o objeto pleno, mas
parcial, ao objeto total?
O objeto pleno, das origens, apenas pode sobreviver à custa de uma
cisão em outro objeto que seja portador de todos os atributos negativos
positivizados. Neste sentido, os objetos parciais são objetos plenos, cada um
portadordeum único atributo maniqueisticamente dissociado. De tal modo,
se existe um objeto da completude nas origens, não é senão parcial, relativo
à pontualidade de um momento e coexistente com outro objeto da
I
i incompletude absoluta, objeto mau. O objeto total, caracterizado por sua
I incompletude, quer dizer, pela integração do positivo e do negativo
(significantes no inconsciente de objetos parciais não representáveis como
I
ausência), deve-se repensar, desde este ponto de vista, como constitutivo de
uma lógica que implica o reconhecimento da ausência no sistema pré­
consciente. No texto antes assinalado, Fédida diz: " O objeto coincide, em sua
constituição objetiva e objetai, com o juízo de atribuição e o juízo de
existência, que marcam a localização da exterioridade a titulo de uma
instauração superegóica" . n
Neste recorrido que estamos fazendo com Mariano, quais são os pré­
requisitos que se impõem para a conclusão lógica à qual o sujeito se dirige,
e como isto se vincula com a instauração dos juízos de existência e de
atribuição?
Talvez devamos deter-nos mais cuidadosamente na afirmação de
Fédida, no sentido das relações entre o objetivo e o objetai.
A parte relativa ao conceito de objeto, no Vocabulário de Laplanche e
Pontalis, fmaliza asseverando o seguinte: "Por fim, a teoria psicanalítica se
refere também à noção de objeto no seu sentido filosófico tradicional, isto é,
emparelhada com a de um sujeito percepcionante e cognoscente. Evidente­
mente que o problema da articulação entre o objeto assim concebido e o
objeto sexual não pode deixar de pôr-se. Se concebemos uma evolução do
objeto pulsional e, ajortiorí, se vemos esta desembocar na constituição de um
objeto de amor genital, definindo-se pela sua riqueza, pela sua autonomia,
pelo seu caráter de totalidade, relaciona-mo-lo necessariamente com a
edificação progressiva do objeto da percepção: a 'objetalidade' e a objetivi­
Podemos demarcar esta proposta em dois aspectos: por um lado, a
preocupação a respeito das relações entre objeto cognitivo e objeto de amor
genital; por outro lado, se este objeto de amor genital, como é posto em
evidência, é efeito de um construtivismo que passa pela integração progres­
siva dos objetos parciais, ou responde a outra ordem, na qual o narcisismo
e a constituição do ego não deixariam de ocupar um lugar importante.
A teoria da integração dos objetos parciais (ou das pulsões parciais) em
· uma genitalidade totalizante se evidencia em Freud fundamentalmente a
110 I Silvia Bleichmar
partir de Três ensaios. Um construtivismo pulsional que desemboca na
totalidade unificadora genital. A proposta de Três ensaios, se bem permite os
grandes desenvolvimentos posteriores a respeito da sexualidade, não
possibilita entender as relações entre esta sexualidade e a constituição
tópica, tal como apareceriam defmidas em textos como "Introdução do
Narcisismo" e O ego e o id. "Introdução do Narcisismo" pareceria, neste
sentido, a primeira tentativa para conseguir correlacionar estes movimentos
constitutivos da tópica psíquica com aqueles da sexualidade, na medida em
que o conceito de "libido do ego" ressitua pela primeira vez os vinculas
internos entre sexualidade e formação de uma instância (a estruturação do
ego como efeito do movimento que inaugura, mediante o narcisismo, uma
primeira bipartição no sujeito psíquico, efeito de duas formas diferentes de
organização da libido). A partir de "Introdução do Narcisismo", então, duas
formas de ftmcionamento da libido: uma ligada - no ego ou no objeto - e
uma não ligada - no inconsciente -, já que até 1 923 não aparecerá o id
como a instãncia capaz de abrigar essa sexualidade parcial. Por sua vez, um
ir e vir desta libido ligada: ora depositada no ego, ora no objeto.
O objeto parcial, como um dos pólos da pulsão parcial, deixa de entrar
na série parcial-genital para entrar na série parcial-total, ou parcial-amor,
não correspondendo necessariamente ao genital, senão como um movimen­
to prévio à constituição do amor de objeto. O narcisismo, como oposição ao
parcial, não inclui necessariamente o amor genital, defmido pelo amor de
objeto. Neste sentido o narcisismo aparece como um momento mítico prévio
ao amor de objeto que, no entanto,já implica uma totalização do objeto (neste
·
caso o ego ou seu equivalente) .
Que ocorre com o objeto total, no sentido proposto por Melanie Klein?
Embora haja oscilações em sua obra, é evidente que a característica
predominante do objeto total não se deve a uma integração cognitiva (embora
possa ser o pré-requisito desta), senão à integração dos aspectos positivos
e negativos do objeto, gratificadores e frustrantes, "bons" e "maus", para
utilizar a terminologia intrinseca a esta teoria. A posição depressiva é então,
desde meu ponto de vista, a possibilidade de reconhecimento, em um mesmo
objeto, de sua incompletude (a incompletude do objeto, antes desta posição,
marcada como presença do objeto mau}, e em tal sentido só localizável
topicamente no pré-consciente.
Seguindo este desenvolvimento, e levando em consideração a idéia
princeps de Melanie Klein de que as posições não são simples momentos do
desenvolvimento, senão fases de recaída constante, a posição esquizo­
paranóide seria um modo específico de funcionamento do id, defmido este
pela pulsão de morte, pela não ligação, pela voracidade (discordãncia
fundamental entre a possibilidade de satisfação e a impossibilidade de
satisfação).
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 1 1
Se o inconsciente é o fracasso do amor (como Lacan propõe, coincidindo
com Freud, que faz passar o amor pela constituição do ego ou do narcisismo) ,
a posição depressiva não pode ter outra localização metapsicológica que o
pré-consciente.
No entanto, poderia ser-nos dito, e com razão, que a posição depressiva
não goza das caracteristicas totalizantes que fixam a constituição do ego ao
narcisismo (ou à especularidade, como o define Lacan em uma proposta que
abriu novas vias para a compreensão deste conceito). A posição depressiva
não se caracteriza pela instalação do traço unitário senão, justamente, pela
abertura da possibilidade de reconhecimento da diversidade existente no
objeto.
Nosso desenvolvimento tende a mostrar que o objeto total - descrito por
Melaníe Klein- não é correlativo ao objeto da completude-teorizadoporLacan
-, senão que é justamente seu reverso. Deveríamos, melhor, considerar o
objeto total como o resultado do reconhecimento da falta, defmido pela lógica
da ausência- como assinalamos antes-, e seria necessário ainda levar em
consideração as vicissitudes da castração em sua constituição e instauração
defmitivas.
Talvez a exploração dos movimentos de Mariano no tratamento nos
ajude a encontrar novas respostas. Um dia, quando a atitude querelante
havia cedido e o menino encontrava-se com ótima disposição para o trabalho
em comum, um novo elemento veio acrescentar-se à situação e me
desconcertou pela segunda vez. No meio de uma sessão, e com certa malícia,
como se fizesse um chiste, Mariano disse: "Sabes o que é zero? Zero é nada,
e depois,jàz um". Observação que ligou o nada às origens, mas que marcou,
ao mesmo tempo, o começo da numeração.
Depois desta formulação Mariano ri, o prazer é intenso. Terá, em algum
lugar, a percepção de que realizou o primeiro Witz de sua vida, ou é o
descobrimento em si mesmo, de uma posição ontológica que liga as origens
à ausência, o que produziu o intenso prazer do investigador que há nele, essa
excitação que acompanha o descobrimento científico?
É suficiente assinalar, neste caso, a conexão que marca o surgimento
da instauração do zero e do objeto "tanto no sentido objetivo como objetai"?
Detenhamo-nos um momento nesta relação que é inaugurada no psiquismo
infantil, na constituição desta "cifra que indica uma quantidade nula", cuj a
origem remonta ao árabe - sifer, vazi? -, e a instauração de um lugar
diferencial no interior da estrutura do Edipo.
Vamos à teoria dos conjuntos; duas propriedades podem ser utilizadas
para a compreensão do tema ao qual estamos assinalando: a soma e a
multiplicação. Na matemática moderna, o somatório está dado, no caso de
dois conjuntos, pela soma de todos os elementos pertencentes a ambos. A
intersecção, só por aqueles elementos comuns aos dois. Se supomos o
1 1 2 I Silvia Bleichmar
conjunto A, cujos elementos são l , 2, 3, 4, 5, e o conjunto B, cujos elementos
são 4, 5, 6, 7, 8, a soma de ambos será igual a 1 , 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 , enquanto
que sua intersecção será igual a 4, 5. No caso de que ambos os conjuntos
não tivessem nenhum elemento comum, o resultado da intersecção seria
equivalente a um conjunto vazio, cuja notação é, na matemática moderna,
o símbolo zero. A soma ou união, neste caso, implica uma incorporação
anulatória dos elementos diferenciadores de cada um deles. A intersecção,
pelo contrário, realça apenas os elementos comuns, permitindo a existência
independente das divergências dos elementos existentes em cada um dos
conjuntos participantes da operação.
Outros dois princípios matemáticos podem ampliar nossa perspectiva:
o zero implica a noção de identidade; é aquele número que somado a outro
dá como resultado este último. Por sua vez, implica a existência de inversos
aditivos, quer dizer, que a soma de um número positivo mais o seu negativo
dá zero como resultado.
Se bem não é minha intenção atual introduzir-me profundamente nas
relações entre a lógica e o pensamento - tema, por outra parte, amplamente
discutido pela filosofia-, pretendo, isto sim, mostrar que a constituição das
premissas lógicas na criança não está desligada dos movimentos específicos
da constituição do aparelho psíquico e, neste sentido, dos movimentos pelos
quais este se desliza no interior da estrutura edípica.
Com "zero é nada e depois faz um", Mariano fez um descobrimento
fundamental, ao mesmo tempo em que abordou um enigma aceitando seu
caráter de postulado, abandonando a tentativa de resolução que todo
enigma existencial propõe. Em minha experiência, a pergunta a respeito da
morte por parte da criança vai precedida pela pergunta a respeito das
origens. As origens são o limite que marcam a não existência. A criança que
chora porque ao ver a foto de casamento de seus pais não encontra uma
resposta a "onde estava eu?", ou a "por que não me convidaram?", resiste a
reconhecer uma anterioridade à sua existência, uma fratura da permanên­
cia "desde sempre". Por isso a primeira pergunta é "como nascem as
crianças?", antes de que se possa perguntar a respeito da morte. Que
significa aceitar a morte senão aceitar a possibilidade de incompreensão do
fato vazio de significação? O nascimento, a origem, é da mesma ordem.
Marca uma anterioridade ao sujeito, assim como a morte assinala a
continuidade sem este.
Zero é, então, o reconhecimento do conjunto vazio enquanto diferença
produzida no interior dos elementos de um conjunto indiferenciado. Zero é
a abertura de dois sistemas de pertencer diversos, e neste sentido não pode
estar isento da marca que a diferença com o semelhante deixa no sujeito. O
atributo fálico, pertencente a um dos dois universos, inaugura a abertura
pela qual se instala o conjunto vazio. Já há intersecção e possibilidade de
existência independente dos participantes da operação.
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 1 3
Em Mariano, os diversos movimentos d o nada sustentado no objeto
irão se desprendendo até que da plenitude da água de nada encontre a água
sem nada, e logo a água pura, que o marcará em sua posição de identidade
diferente do objeto das origens , através de situá-lo em uma posição frente
à castração.
Em pouco tempo isto aparece em seus jogos: a mega- aranha pretende
tirar o rabo do mega-escorpião. Me diz: "Eu entendo que a aranha quer
capturar as moscas, o que não entendo é porque a mosca vai ao lugar das
aranhas" . Rompida a simetria na qual devoraçãoimplica tanto o temor de ser
devorado como o desejo de devorar, ambos os pólos do desejo aparecem
desprendidos, inscritos em duas instâncias diferentes. Mariano - sujeito ­
enfrentou-se dissimetricamente com o objeto. Um devora, o outro teme ser
devorado. Há um fora e um dentro constituídos, ao mesmo tempo que há
portadores de atributos desejáveis e sujeitos carenciados deste atributo. A
pergunta pelo desejo aparece assinalando, por sua vez, a posição do sujeito
decentrado já do inconsciente. A angústia de castração desenvolve-se em
todas as direções. Em uma ocasião em que interpreto seu temor às meninas­
mulheres, Mariano responde: "Isso não é certo, além disso eu não me junto
com mulheres , nas meninas faço assim (gesto de dar um encontrão)". Como
no conto da caldeira que Freud relata, coexistem, no entanto, as três
possibilidades; isto indica que ainda não se instaurou a lógica da contradi­
ção que assinale a constituição definitiva do recalcamento. Mais adiante,
dirá: "André é um convencido". "Que é um convencido, Mariano?" "Conven­
cido é quem tem namorada . . . ", deixandojogar, naam�igüidade da resposta,
o movimento que assinala a posição masculina na possibilidade de conjun­
ção com a feminina e esquivando o temor à diferença para marcar o
acoplamento possível.
Nesse momento se desenvolve a numeração e se instaura o zero.
Mariano conta, aprende a escrever, organiza o tempo: "Sabes o que é ter
quase cinco (anos)? Dormir na casa de amigos, desde que peças licença". "Os
de cinco podem passar o fim-de-semana em casa de amigos, mas não podem
voltar sós". "Quando tens quatro e meio podes ver televisão até às 9, mas não
podes ficar acordado com papai e mamãe até as 12". Ao mesmo tempo,
Mariano encontra uma maneira de se apropriar libidinalmente da realidade
que o rodeia e à qual rechaçou porque os objetos não podiam ser substitu­
ídos: põe nome em todos os gatos da vizinhança, assim tem a possibilidade
de ser o amo de todos os seres carenciados que o rodeiam e dar-lhes seu amor
vicariado. Se ele, em seu anonimato, não podia ser amado pelos seres
desconhecidos que o rodeiam a partir da migração e não podia amar esse
conjunto estranho em que o mundo se havia transformado, pode modificar
esta situação em sua fantasia e construir para si um mundo menos hostil
que inverte, no ato designativo, seu desejo de ser reconhecido. A auséncia,
1 1 4 I Sílvia Bleichmar

7
a castração e a constituição do zero, fazem parte, no processo de cura de
Mariano, dos movimentos centrais que determinam o tratamento.
Esses pedaços de discurso, fragmentados de processos da cura de
crianças, têm por objeto realçar um aspecto que está sempre em jogo nos
tratamentos infantis: refiro-me à surpresa com a qual o psicanalista se vê
confrontado cada vez que uma frase, uma proposta enigmática, o descon­
certam no movimento da cura, submetendo-o à busca de uma resposta
possível que traz igualados momentos de revisão não apenas do conjunto do
processo clínico, senão também dos elementos teóricos com que conta para
cercá-lo.
Transtornos da linguagem:
Frases das crianças que justificam espaços escuros de desconheci­
mento aos quais nos vemos enfrentados; frases que, além mesmo do transtornos na constituição
fantasma que revelam, e talvez possivelmente em conjunção com este,
deixam aberta a possibilidade de pensar em mudanças estruturais no do suj eito psíquico
conjunto do aparelho psíquico. Em relação a isso, minha investigação abre­
se na direção de pór duas questões em conjunção: por um lado, a relação
entre a constituição da linguagem como tal na criança, enquanto fala (para
retomar a tem1inologia de Saussure), em sua correlação com os movimentos
estruturantes do aparelho psíquico; em segundo lugar, o fato de que as Explorei, ao longo dos capítulos anteriores, os desflladeiros nos quais os
formas gramaticais mediante as quais esse discurso se organiza relacionam­ mecanismos,que vão abrindo a possibilidade de acesso ao pleno funciona­
se com movimentos de constituição do sujeito psíquico que incluem tanto mento do aparelho psíquico, fecham-se em pontos a respeito dos quais
a logicização do pensamento em suas diversas variantes: organização obtemos evidências, através de diferentes formas, do fracasso do recalcamento
temporo-espacial, constituição do zero e acesso à matemática, como originário.
também o ordenamento das relações entre os sistemas inconsciente/pré­
O reconhecimento de que o inconsciente não está presente desde as
consciente-consciente, derivados do recalcamento originário. origens do sujeito, senão que é produto de um extenso movimento que abre
tanto suas possibilidades de existência como as possibilidades do processo
secundário, põe emjogo uma forma de aproximação ao fenômeno clínico na
Notas de referência
infãncia que propõe múltiplos interrogantes aos que nos vemos comprome­
1. E. Benveniste, Problemas de lingüística general, México: Sigla XXI , 1976, pág. 173
tidos na prática psicanalítica com sujeitos cujo aparelho psíquico não
(Os bastardos são nossos.) terminou de se constituir.
2. H. Ioannidi, "Caliarda, la Iangue secréte des homosexuels grecs, em Topique, Paris, A partir disso, este processo de indagação e de exposição de algumas
nº 20, outubro de 1 977. idéias centrais, que dizem respeito à minha concepção da contribuição
3 . Ibid., pág. 129. clínica a alguns problemas metapsicológicos, não se pode fechar sem tentar
4. La otra escena. Claves de lo imaginaria, Buenos Aires: Amorrortu editores, 1973.
5. Ibid., pág. 47.
cercar os problemas relacionados com esse campo escorregadio e sempre em
6. Ibid., pág. 49. tela de juizo das chamadas psicoses infantis.
7. J. Laplanche, Castração. Simbolizações, Problemáticas II, São Paulo: Martins Tento, para isso, ordenar o material da curadeum menino de três anos.
Fontes, 1 988. A questão não é simples, tudo parece estar aí: a desorganização pulsional e
8. J. Laplanche, L'inconsciente et le ça. Problématiques N, Paris: PUF, 1981. (O os déficits de constituição do aparelho psíquico; a_fragmentação do corpo e
inconsciente e o id, São Paulo: Martins Fontes, em produção).
do mundo circundante; a estrutura peculiar do Edipo e os traumatismos
9. P. Fédida, L'absence, Paris: Gallimard, 1978.
10. Ibid. , pág. 1 0 5 . vividos; a história contada e sua repetição circular nas sessões; os proble­
1 1 . Ibid. , pág. 1 06. mas de simbolização e a instauração do simbólico (no sentido de ordenamento
12. J. Laplanche e J . - B . Pontalis, "Objeto", Vocabulário daPsicanálise, Lisboa: Moraes
Editores, 1 9 76, pág. 4 1 1 . 115
1 1 6 I Silvia Bleichmar
estrutural , de registro, como propõe Lacan) . Tudo isso desemboca em um
transtorno severo da linguagem: Martin, de três anos recém feitos , é trazido
à consulta porque não fala. O pai não pode deixar de pensar - apesar das
garantias dadas pelo pediatra em sentido contrário - que um problema
orgânico afeta seu filho. Depois da realização dos exames médicos é
descartada qualquer possibilidade de algo "mal formado" no organismo.
Como tantos outros progenitores de crianças com transtornos seme­
lhantes, estes pais - cultos e preocupados por seu filho - chegam a meu
consultório desconcertados pela situação. Sua confiança em mim alcança
os limites de sua própria crença na psicanálise. Nenhum deles submeteu­
se a um tratamento analítico; não o questionam mas nunca se questionaram
sobre sua necessidade; não negam que sofram nem que tenham problemas,
mas dizem que "podem dar conta sozinhos".
Esta frase, "podem dar conta sozinhos", parece ser o traço dominante
de Martin; ele se caracteriza por sua absoluta independência; busca sua
comida no refrigerador quando tem fome e conhece todos os passos para
preparar uma mamadeira, tendo transformado essa operação em um ritual.
Com indicações balbuciantes e gestuais controla a preparação de seu
alimento: pega a garrafa, desenrosca a tampa, diz ao adulto em que momento
deve derramar o leite e logo a fecha, pondo-lhe a tampa de proteção; logo
assinala que o acompanhem até o lugar aonde decide bebê-la- geralmente
deitado sobre almofadas -, recosta-se, tira a tampa protetora, entrega a
mamadeira ao adulto, que deve sustentá-la enquanto ele se acomoda e
depois devolvê-la para que a tome.
Há em Martin , evidentemente, urna subversão na relação com o
semelhante. Poderíamos pensar, talvez mais corretamente, que o problema
deste menino é que o objeto não foi subvertido. Essa subversão- necessária
para a constituição do humano - de passagem do objeto da autoconservação
ao objeto libidinal, essa verdadeira perversão da alimentação que produz no
lactante a intromissão da sexualidade adulta no mundo infantil e que o
obriga a um trabalho psíquico de organização da descarga de excitação a que
se vê submetido por esta intromissão - sedução originária do agente
matemo - pareceria não ter tido lugar.
Em Martin, o outro humano, o semelhante, é um suporte para o objeto
que quer obter. Ele não utiliza a mamadeira noturna para conseguir a
presença dos pais em seu quarto , não pede água como qualquer criança que,
na escuridão da noite, põe a sede a serviço da busca de amor; pelo contrário ,
utiliza o outro humano como suporte que permite a satisfação de necessi­
dades vitais elementares .
O p ai de meu paciente é um economista; explico-lhe: Martin vive em um
mundo de objetos, mas obj etos que se caracterizam por seu valor de uso. Não
há para ele um obj eto que funcione como pretexio para o intercâmbio inter­
humano ; pelo contrário, o que nós denominamos homens, não são senão
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 1 7
meios que servem para aproximar-se daquilo mediante o qual garante sua
sobrevivência. Nesse mundo de obj etos em que este menino habita, as coisas
não se constituem como objetivas na medida em que não podem ser
libidinizadas; a condição de obj etividade, tal como a viemos desenvolvendo,
não é independente do recalcamento, senão um efeito da constituição do
inconsciente.
Em sua primeira entrevista a s ó s comig o , M artin reite ra,
ritualizadamente, um processo evacuativo . Torna-me a mão e indica, com
um gesto, que abra a porta do consultório, depois a elo banheiro; de o �
_
acender a luz, senta-se no vaso enquanto repete em forma monocordm
n;t
"popó, popó, popó" 1 , levanta -se e olha o que ficou depositado. Com movi en­
tos e ruídos imperativos me obriga a abrir a torneira, depois a levanta-lo,
lava-se as mãos, devo deixá-lo no chão, seca-se as mãos, assinala-me que
apague a luz e volta ao consultório com um sorriso ausente enquanto vai
indicando que devo fechar a porta. Isto se repete seis ou sete vezes durante
a primeira entrevista. A partir da segunda vez o ritual do banheiro fica
estabelecido em todos seus termos e muitos elos atos casuais que eu havia
realizado na primeira vez são reengolfados na ordem elo ritual. Se, por
casualidade, havia fechado uma porta ao dirigir-me ao consultório acompa­
nhada pelo menino, este ato eleve ser repetido cerirnonialmente em cada
ocasião que nos dirijamos ao banheiro. A seqüência converte-se em uma
recuperação de ações pontuais a reiterar, não definidas por uma meta; elas
não se encadeiam como condutas significantes organizadas pela consecu-
·
ção ele urna finalidade que se quer alcançar.
No entanto, o cuidado que põe nesta tentativa de ordenamento do
mundo caótico em que se desenvolve mostra que há algo neste menino que
não o reduz exclusivamente à ordem da autoconservação. Em tal sentido, as
idas reiteradas ao banheiro mostram que o que se constitui na passagem
pela micção não é da ordem ela simples evacuação urin � m:
a. "Quando do e
- diz a mãe - e me aproximo para dar-lhe sua mamaderra, devo desperta­
lo para que ele mesmo tire o bico , porque do contrário pode ter um ataque
de raiva" . Estes fato s, incluído o uso do bico, mostram que Martin se move
em um mundo marcado pela existência de movimentos pulsionais despren­
didos ela função libidinizante que culmina no amor objeta!. Movimentos
pulsionais que indicam que é um mundo marcado pelo humano, mesmo
quando ele mesmo não esteja constituído ainda como sujeito.
Lacan introduziu a hipótese do fracasso da função simbólica para
explicar os transtornos psicóticos. Sem a inclusão do sujeito na ordem
simbólica- sustenta-, "o homemjá não pode nem sequer se sustentar em
posição ele Narciso", quer dizer, o ego não encontra uma possibilidade de
estruturação na medida em que fracassa a relação com o semelhante
sustentada por esta ordem, mantendo-se a partir disso uma relação mais
estreita com o real do que aquela que um neurótico pode estabelecer. Martin
 1 1 8 I Silvia Bleichmar
parece confirmar essa hipótese; no entanto, a postura de Lacan leva a uma
segunda afirmação em relação a esta função simbólica, que fica desmentida
no caso de nosso paciente e que pareceria ser discutível na formulação
teórica da psicose em geral. Esta segunda afirmação consiste no seguinte:
se a função simbólica fracassa, diz Lacan, o ânúna, como por efeito de um
elástico, volta a colar-se ao animus e o animus ao animal,2
Na primeira parte da formulação há uma busca teórica da especificidade
da constituição da psicose como fracasso da função da simbolização no
sujeito (e, por conseqüência, da constituição do Mo i} , desde sua não inclusão
no registro simbólico. Na segunda, a erradicação do especificamente
humano - equivalente ao simbólico - arrasta inevitavelmente o psicótico
a ficar desprovido de "essência humana". Como mostra nosso paciente, a
criança psicótica não é alguém que não passou por um processo de
humanização, senão alguém em quem este processo adquire um movimento
peculiar. Reduzir o humano ao registro simbólico, assim como reduzi-lo à
alma ou à razão, como fizeram em algum momento a filosofia ou a religião,
não é patrimônio do corpus teórico da psicanálise. Se o humano só pode devir
do humano, talvez o que a fenomenologia veio mostrar é que a essência de
uma coisa não está na própria coisa e, mesmo quando seus alcances não
permitiram definir porque, uma teoria da contradição e do conflito mostraria
que a essência não pode estar na própria coisa porque esta coisa não pode
ser senão produto do conflito.
Neste menino, aquilo com o qual nos encontramos e que nos leva a falar
de modo de constituição a predominância autista, é o produto dos despren­
dimentos libidinais de um vinculo que, se bem permite a constituição
precária de objetos pulsionais, não é suficiente para a instauração do
narcisismo capaz de produzirumainstància egóica e obriga, eventualmente,
a uma degradação destes objetos que regridem ao plano da necessidade.
No momento da consulta, Martin não possui, evidentemente , um ego
que implique "um universo de um pertencer" . Esta é a razão pela qual não
pode, também, discriminar a partir das próprias sensações que se produzem
em seu corpo. 3 Quando se levanta do vaso para olhar o que ficou depositado
nele, é porque nem sua urina nem suas fezes são pedaços desprendidos de
seu próprio corpo, elementos integrados em um todo que permita a discrimi­
nação. Seus buracos são zonas de expulsão e de incorporação indiferenciadas
ãs quais não se liga um objeto específico. O prazer por apertar o botão fica
mais associado ao ruído que a água produz do que a uma verdadeira
despedida dos desprendimentos de si mesmo que um menino neurótico
sente flutuar na água, o que nos indica que não há ansiedade de despren­
dimento, nem obj etalidade significante. Do mesmo modo, quando se bate e
chora, ante as perguntas da mãe "onde te dói, Martin? onde te bateste?",
responde mostrando o objeto com o qual se bateu: porta, parede, borda da
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 1 9
cama, sem poder localizar em seu próprio corpo o lugar da dor que é
registrado pela parte lesionada.
Uma h istória em dois tempos
Martin é o segundo de dois irmãos: Aníbal de cinco anos, e ele de dois
anos e dez meses no momento em que se realiza a primeira entrevista.
Sua história pode ser dividida em duas partes . Da primeira, temos
dados muito precários, em função das circunstàncias nas quais ocorreu sua
criação. Quinze dias antes de seu nascimento, a avó materna, residente no
estrangeiro, chegou ao México e cuidou do menino desde o nascimento até
os dezesseis meses, momento em que regressou a seu país de origem. Nesta
época - quando tinha menos de um ano e meio - Martin já caminhava,
corria, dizia algumas palavras. A partir disso o desenvolvimento da lingua­
gem se deteve e algumas das palavras adquiridas desapareceram; quando
isto ocorreu, o menino já havia deixado a mamadeira e o bico e, posterior­
mente, os retomou. Relata a mãe - o que não deixa de produzir certo
assombro, levando em consideração que era seu segundo filho - que não
sabia muito bem como cuidar do menino quando sua mãe se foi; a sensação
que o racconto da história produz é como se tudo tivesse começado de novo,
como se este filho tivesse sido dela a partir do momento em que sua própria
mãe se distanciou. Recém aí Martin teve existência para os país, que
puderam fazer frente a seus cuidados, descobrindo,,não sem surpresa, que
o menino nunca havia tido um verdadeiro lugar na família; todos os espaços
haviam sido inteiramente ocupados pelo irmão maior, temerosos de fazê-lo
sentir a exclusão que a criação do irmão podia provocar-lhe.
Um elemento tomado da história materna pode abrir algumas vias de
compreensão para esta situação: quando tinha oito anos, seu irmão, de
dezoito meses - segundo filho homem de sua mãe - morreu subitamente
de uma doença incurável. Para esta menina, que havia tomado aseu encargo
o irmãozinho como próprio filho, a morte do irmão foi um episódio que a
afundou em uma desesperação profunda. Combinava-se nelaaambivalência
de ter amado este irmão-filho, com a hostilidade que lhe despertava nos
momentos em que queria voltar a seus jogos infantis e era obrigada a cuidá­
lo. No momento de nascer seu segundo filho homem restituiu aquele menino
perdido à mãe, ocupando-se com ele na época em que o outro havia morrido ;
sua mãe foi embora antes da data que marcava o prazo daquela perda e ela
pôde exercer a reparação da história em seu próprio filho.
Esta história pode permitir entender, talvez, o caráter contraditório dos
transtornos que o menino apresentava quando foi trazido à consulta . A
detenção da linguagem, a partir da época que Margaret Mahler chama de
separação-individuação, podia fazer-nos pensar em um autismo secundá-
120 I Silvia Bleichmar Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 2 1

tia indicavam a vigência de precipícios

rio, produto de uma regressão a partir de uma psicose simbiótica. No presença d e esboços d� �gús
o normal.
entanto, não possuiamos dados suficientes sobre os primeiros tempos do antecipatórios de um pslqmsm
menino para que esta hipótese se corroborasse. Se nos ativermos ao fato já
mencionado de que a avó se fora antes de que se cumprisse o prazo da morte
de seu �róprio filho, é provável que o menino tenha sido visto sempre por ela constit uiçã o da tóp ica:
e do externo -ex teri or
como nao sendo outro que aquele que substituía e que constituísse com ele os l u gare s do externo-interno
uma psicose simbiótica. O fato de que houvesse elementos de ecolalia em
ar a pergunta a res?eito ?o �ue
relação ao irmão e aos pais pode levar-nos a pensar na direção desta Em A angústia, Laplanche propõe abord
simbiose falida: quando o irmão parava em frente ao estúdio fechado onde s i tuar o que se passa no confl1to ps1qmco ,
é uma tópicas, "a fim de podermo �
.

.
o pai trabalhava, gritando "abre, papai" , Martin se posicionava a seu lado e tal como a psicanálise o descreve lise, - . - na top1. ca sao
d1z
-
repetia os últimos sons. Quando nos aniversários se cantava"Las maiJ.anitas"4 "Em primeiro lugar, e em prim eira aná _:u
' idade de u� em :elaçao a outro. Isso
Martin repetia "itas" e o final de alguma palavra de uma frase. lugares, comportando uma exterior . dade a qual F eud se ateve
e, espac1al1
Para Margaret Mahler, o que caracteriza o funcionamento simbiótico é implica uma verdadeira espacialidad is co n o seu Prq;
:
eto para uma
a constituição de uma unidade dual com o objeto matemo, mas que ana tõm icos , depo : .
desde os primeiros estudos
necessita a presença externa da mãe para se manter. Diatkine entende esta psicolog ia científica de 1 895, e que .
n �o abandona ate o fim, chegando mesmo
a
condição da necessidade de presença da mãe como aquilo que vai permitir a sublinhá-la no fmal de sua obr
·

1938 a resp e1to de qu� .�

. ,.

a criaçã� das ?�I?eiras representações mentais estáveis - assim o propõe Retomando a formulação freudian de
a
em El ps!coanállSlS precoz. No entanto, em minha opinião, e tal comojá expus espacialidade é talvez a projeção da_
� ensã o d � �parelho ps1qmco ,
.
espac1alidade fundamental,
em outro capítulo, a criança afetada por uma patologia simbiótica caracte­ Laplanche propõ e: " . . .haveria uma espec1e de
coisas mas a d �s partes do �p�relho
riza-se pela impossibilidade de estabelecer representações do objeto mater­ transcendental, que não seria a das
apenas um denvado secundaria, sua
no em ausência deste; é como se o limite englobante fosse da ordem real do psíquico . A espacialidade externa seria
corpo fusionado e por isso não admitisse representações separadas nem do 'projeção'". .
lho este carater de partes
semelhante nem, em conseqüência, do próprio ego. Em segundo lugar, esta extensão do apare � ten� c da parte um
Os poucos elementos com que contava para recriar a história de meu extrapartes, serviria em princípio a um<: espa
cializaça o, � �
ente , e nao pode ndo , por defrm çao, nenhuma
paciente, .devido ao fato de que a mãe não estava em condições de dá-los, já
.
_ estivera modo de funcionamento difer
que Martm nao ao seu encargo, faziam com que eu me inclinasse função coabitar com outra. .
por situar o quadro como seqüela de uma simbiose patológica originária, em terc eiro luga r, esta tópi ca i;npli ca uma ordem de r�comdos. Ou,
Em
ordem de recomdos sem certa
mais exatamente, não se pode defimr uma
a, justamente, voltar a traçar e��a
processo de desintegração no momento da perda de um objeto originário,
mais do que por um autismo primário tal como o descrito por Karmer. referência espacial sobre a qual se poss .
isso émais importante , � 1de1a
Isto dava, supostamente, melhores perspectivas ao prognóstico e ordem. "Mas -concluiLaplanche - creio que
o a de uma ordenaçao das
oferecia, por sua vez, possibilidades futuras de restituição muito mais de uma ordem de percurso implica sobretud
promissoras do que aquelas com as quais me houvera enfrentado no caso sucessões a qual só é figurável, precis�
�nte no espaço e que evoca a parte
de um autismo. Tratava-se de construir, em tomo de um tecido desparelho da matemática que se chama topologia ·
. . _
parta do ego, 1sto e, que nao
e impreciso, um bastidor que reordenasse e desse forma á figuras que, Se é imp ensável uma tópica que não
qual o sujeito se situe e que
alinhavadas ao azar, tinham impresso, e não apenas organizado, toda a constitua um interno-externo a partir do
rior (extem?-exterior)_ co:no d o
implique que tudo 0 que provenha do exte
rlhos a S I mesmo, e eV!den�e
trama na qual se pode dominar o fio que, no autista, caiu da lançadeira.
inconsciente (interno- externo) lhe sejam estra
egóica devem pro�uz�
Construir um mapa sobre uma geografia existente não implica 0
mesmo esforço nem a mesma desesperação a que o analista de autistas se que os fracassos na constitui�ão dest nstâ a i ncia
emb ram�nto no �r�p�o
vê submetido quando se encontra com o deserto carente de acidentes perturb ações que impliquem nao apenas um desm
ndo a cnança PSlCotica
geográficos. Meu paciente era um terreno selvagem no qual Deus havia sujeito senão no mundo no qual está imerso. Qua _ podem
que dois corpos nao
deixado cair ao azar uma montanha, um rio, um vulcão, às vezes inclusive sente -se colada ao outro , como se a lei que indica intuitiva nem
negligentemente no mesmo lugar, mas onde os objetos habitavam e a ocupar 0 mesmo lugar no espaço não tivesse vigência
 122 I Silvia Bleichmar Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 2 3
exp�rienc�al, isso ocorre por efeit� d� impossibilidade de que uma repre Recapitulemos: a teorização da constituição sexual da criança não
sen­
taçao de srmesmo (o ego como proj eçao de uma superfície) exerça sua pode ficar nos limites nem de um geneticismo abstrato que prop?nha uma
função
organizadora. evolução libidinal reduzida a fases que se desenvolvem desde sr mesmas,
Mas, por sua vez, o ego como limite englobante e nem também nos de um estruturalismo que assimile a constituição do
diferenciador
estabe!ece esse �niverso de ur:r pertencer que permite a organ sujeito, linealmente, às condições da estrutura na qual este estã imerso.
. ização de
equaçoes srmbohzantes da realrdade : o que está no interior desse No momento do nascimento do filho, a mãe, como sujeito cindido ,
limite me
pertence, � parte de mim, e as fezes se c? r:stituem como linguagem da possui tanto a capacidade de amor narcisista (que permitirá a unificação do
pulsão
na equaçao reter- exp ulsar- no exercrcw da pulsão de dominio e no amor libidinal na criança na constituição da tópica egóica) , como um
controle
do objeto - na medida em que o controle de esfmcteres ressig conjunto de desejos recalcados que tem como sede o próprio inconsciente
nifica a
analidade no momento em que o ego se instaurou. matemo. Como sujeito de desejo e contracarga, aquilo que exerça no corpo
Façamos urna �recis�o. O c�áte: objetai ou anobjetal da criança não será verbalizado senão como proibição. Deste modo, a mãe
. . do auto­
erotismo esteve em drscussao na psrcanálise,co rn oscilações, embora não introduzirá sua sexualidade brutal através da limpeza do ãnus, formulando
por �sso cor:r menos persistência' Melanie Kl�in assinalou corretame posteriormente a frase - quando a criança faça uso do auto-erotismo para
nte que
er� m�possrvelfal� de anobj. etahd . ade nos pnrne
iros temp os da const recriar os cuidados excitantes que o constituiram - : "As crianças não se
ituição
psrqmca: �a rne?rda em q:re o obj. et? do auto-erotismo, enqu tocam a bunda", gerando mediante a palavra a contracarga pulsional que vai
anto objeto
f�tasrnati�o, n �o era ;:; e:rao um resrduo dos Vinculas estabelecid operar como motor do recalcamento no aparelho psíquico infantil. A palavra
os pela
cnança :ro mt_enor do Edrpo. Deste modo, os objetos parciais, cairá degradada a coisa, e as condições da dupla inscrição estarão prontas
_ seio, pênis,
fezes, mae (ma-boa) estavam no centro da pratica auto-erótica, a para o retomo do recalcado.
qual não
se produzia no vazio do corpo senão no interior de um corpo-objeto libidin A possibilidade da mãe de narcisizar o filho vendo-o como um todo,
fragmentado na multiplicidade das zonas erógenas. No entan al
to, sua concep­ como significante fálico da completude- para utilizar a expressão de Lacan
çã? do desenvolviment9 libidinal � partir de uma gênese do própr
na qual o ou�o na9 opera senao com? suporte de projeções, imped
. io - é efeito, certamente, do reconhecimento de sua castração; mas para que
SUJerto,
. iu a carência se constitua como oposta à completude é necessário que uma
estabelecer uma drstinçao entre estes ObJeto s (da pulsão) lógica do total-parcial se tenha instaurado; somente a partir desta lógica o
e os objetos
libidinais (do ego), ficando as diferenças de passagem reduz filho (como totalidade) ingressará como objeto-pênis na mãe (tal como Freud
idas a um
constructivisrno onde desde o objeto parcial ao total não havia 0 definia em "Sobre as Transposições da Pulsão, em particular do erotismo
senão um
movimento integrativo definido pelas vicissitudes das relaçõ anal"). Ao ressituar o auto-erotismo como primeiro tempo da constituição do
es entre o
instinto de morte e o de vida. psiquismo, abrem-se as possibilidades também para repensar as di_:rersas
O estruturalismo lacaniano não ofereceu uma altern
ativa que resolves­ modalidades das psicoses infantis. O estruturalismo deixou duas opçoes: ou
se a questão. Ao colocar o narcisismo como primeiro tempo da constituiçã 0 filho entra como significante fálico e fica pregado nesta posição (caso das
o
psíquica, o auto-erotismo desapareceu do interior do camp ficand
o, o psicoses sirnbióticas infantis e da paranóia adulta) , ou o filho não encontra
subsumido em ui? n�cisismo estruturante a partir da mãe. A image
m dada um lugar no desejo matemo e ao escapar à cadeia simbióticanão se constitui
por La�� no Coloquw de Bonneval, de uma esfera de Magdeburgo partid como sujeito (em tal sentido haveria que situar o autismo e suas derivações).
a
pelos cmmes de Zeus, da qual escorre, corno de um ovo quebrado, interi
o or Apesar da tentação ordenadora que isto propõe, entendo, desde a
que se derrama como libido e onde em cada ponto de ruptura-su
tura se própria experiência clinica, que não é assim. Poder-se-ia resolver facilmente
escapa um fantasma, alude claramente a uma origem unificada que se
a questão dizendo que nunca a realidadepode ser totalmente capturada pelo
fratura a posteriori. Do interior da díade mãe-filho à constituiçã libidin modelo; no entanto, o modelo -ou o esquema teórico com o qual se trabalha
o al
marcada pelo terceiro que irrompe, produz-se esta imagem na
qual 0 auto­ -deve ser, além de umaforma de ordenamento do real, uma via para operar
erotismo não pode ser senão nostalgia de urna completude
perdida. A sobre este real a modificar. Se o modelo trava este procedimento é porque
proposta freudiana da instauração das séries prazer- desprazer partir
a da algo deve ser revisado e, assim, produzir- se uma nova espiral teórica.
experiência de satisfação se substitui então pela de completude- incorn
pletude, No caso da explicação da psicose por parte do estruturalismo, as
e se chega, mediante um rápido deslizamento, á equiparação de completude dificuldades são de duas ordens: em primeiro lugar, se produz o mesmo
com totalização narcisística.
fenômeno que Rosolato assinala quando em "El análisis de las resistencias"7
 124 I Silvia Bleichmar
propunha a falácia de remeter a resistência ao analista: um jogo de caixas
no qual o analista (se, por acaso, resistia) remetia a uma falha em sua própria
análise, mas como nesta análise havia sido paciente, a resistência era
remetida ao analista, e logo ao analista do analista, ad mfmítum. A vantagem
do problema que esta concepção das resistências, que Rosolato questiona,
apresenta é que a cadeia se corta ao chegar a Freud (ou ao menos a Fliess) .
� enquanto que r:o ca� o d a criança psicótica, a b�!!lD técia estruturalista pode
se remontar ate Adao e Eva. No entanto, mesmo quando se chegasse aí, e
mesmo quando se aceitasse que Deus forcluiu a metáfora paterna (porque
em sua função genitora era mãe fálica) , ficaria a dúvida de por que não foram
psicóticos todos os filhos do casal, e, aínda, por que Eva desejou Adão.
Se todas as psicoses são explicadas por uma única causa: forclusão da
metáfora paterna na mãe do sujeito, não se pode deixar de pensar que a
forclusão enquanto movimento deterrnip.ante (e não enquanto mecanismo,
Verwerfung, em Freud) é imodificável. E isto talvez o que levou à paralisia
clínica muitos lacanianos gue viram abertas suas possibilidades de compre­
ensão graças à teoria do Edipo que Lacan propôs, mas que se encontram
maniatados para revisar ao Maitre naquilo que obstaculiza a transformação.
Eis aqui a primeira ordem de dificuldade com a qual nos enfrentamos:
caráter a-histórico de um estruturalismo formalista no qual não há permu­
taçôes possíveis, na medida em que a função da estrutura é sua própria
L
reprodução, a partir de que esta estrutura responde a uma ordem fechada
que se desliza sobre o real recobrindo-o, mas sem relações com este. O
acontecimento, a história como ordenamento significante deste aconteci­
mento, não pode então ter nenhum lugar possível. A história vem a ser,
assim, a história das reverberações estruturais, a ação da estrutura, do
discurso no qual esta se constitui.
Em segundo lugar, o modelo da mãe de psicótico como entidade
defmida desde uma posição de "não atravessada pela castração", assume
um grau de generalidade em que os ínterrogantes se escamoteiam. Vejamos
alguns deles:
a. A mãe pode não estar atravessada pela castração e, nesse sentido,
o fllho não entra como significante da completude (totalizadamente)
porque ela mesma não constituiu uma tópica que possibilite a
integração libidínal em uma instância defmida pelo narcisismo e,
como conseqüência, pelo amor de OQjeto. Neste caso não se deveria
a um fracasso da castração, da constituição da instância superegóica
(instância parental) , senão do movimento prévio a ela, que implica
a constituição do ego . Isto é visto em mães de psicóticos para as
quais o filho foi sempre um objeto parcial (boca, ânus) e, a partir
disso, não deram a esse filho uma unificação de sujeito organizadora
da tópica egóica.
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 25
b. A mãe pode ter organizado o recalcamento e a instauração
superegóica e ter desejado o filho como objeto de completude e m
relação com sua própria angústia d e castração. Mas as vicissitudes
da história podem ter produzido uma desintegração parcial destas
estruturas no momento do filho nascer ou depois. Neste sentido , se
bem não são os acontecimentos em si mesmos os que definem a
posição do filho na estrutura do Édipo, a forma em que estes s e
encadeiam com as estruturas significantes dos pais define o s
movimentos que precipitam a história n a constituição libidinal d a
criança.
c. A mãe pode ser efetivamente uma estrutura narcisista. Mas o que
temos tentado demonstrar em outros textos é que o narcisismo,
paradoxalmente, não se sustenta senão por sua inclusão n o
interior d o aparelho, jogado em relações d e sistemas entre o i d (ou
o inconsciente) e o superego. O paradoxo consiste em que um
narcisismo que não está atravessado pelo superego, que não se
constitui como narcisismo secundário, é um narcisismo do qual
sobrevém um ego frágil, mesmo quando sua aparência seja onipo­
tente. Daí que o inteijogo que todos os clínicos reconheceram ao
narcisismo psicótico é o de constituir um ego duro e frágil ao mesmo
tempo; de gesso, mais que de fortaleza cercada. Mesmo aqueles
que, como Bettelheim, analisaram o autismo infantil como uma
defesa extrema pela vida, apelando à imagem de "fortaleza vazia",
não deixaram de reconhecer o risco extremo em que estes pacientes
psicóticos se encontravam, risco de desestruturação constante. E
o narcisismo da mãe pode, neste caso, impedir que o filho "se
sustente em sua posição de Narciso" ante a falha da função
simbólica na estrutura.
Não se esgotam com isso todas as possibilidades combinatórias que
podem justificar tanto a instauração de uma psicose infantil como a
especificidade que esta tome. Minha intenção é, simplesmente, assinalar
que as fórmulas podem, em teoria psicanalítica, ser ponto de partida para
a compreensão de um campo d e fenômenos, e apenas isso. Quando não
ocorre assim, quando as fórmulas se transformam em recursos de autori­
dade que impedem a ampliação de conhecimentos e a transformação da
realidade, devem ser "postas a trabalhar", revisadas em seu próprio
fundamento para encontrar novas vias explicativas.
Voltemos ao ponto do qual partimos: localização do auto-erotismo nas
origens do psiquismo infantil e , a partir disso, sua objetalidade ou
anobjetalidade.
Deixando o sentido proposto pela filosofia, na qual o objeto é concebido
como objeto de conhecimento (caráter que também tem na psicologia
126 I Silvia Bleichmar
clássica), o objeto em sentido psicanalítico pode ser entendido em duas
perspectivas diferentes: como correlato da pulsão - aquilo mediante o qual
a pulsão busca alcançar seu fim - ou como correlato de amor (ou de ódio),
tratando-se, neste caso, da relação do ego com o objeto ao qual aponta como
totalidade (pessoa, ideal, etc.).B
Nas origens a pulsão encontra-se totalmente orientada para a satisfa­
ção, isto é, para a resolução da tensão pelas vias mais curtas, de acordo com
as modalidades apropriadas à atividade da zona erógena correspondente.
Neste sentido, a contingência do objeto implica que responda a determina­
das características dos traços parciais que possibilitam essa descarga- ser
incorporável, no caso da pulsão oral -; estes traços são os que permitirão
a constituição de equações posteriores: podem-se incorporar idéias, por
exemplo, porque o conhecer fica ligado à atividade incorporativa que se
constitui na oralidade. 9
Pensando nesta direção (objeto da pulsão como correlato do sujeito
pulsional, parcial) , é evidente que a satisfação pulsional não se orienta pelo
amor ao objeto (objeto total de amor) , senão, justamente, por seu desconhe­
cimento. O par antitético (ao mesmo tempo complementário) proposto por
Freud em "Introdução do narcisismo" e em "Pulsões e destinos das pulsões"
organiza-se no interior de uma oposição do sujeito (do ego) ao objeto (de
amor). Deste modo, a libido de objeto, tal como é definida na Metapsicología
(em 1 9 1 5), só pode ser contraposta à libido do ego e efeito da ligação de cargas
no interior do aparelho que permite sua relação com o objeto; processo
impensável sem a constituição do narcisismo como amor a si mesmo, e
sendo este si-mesmo uma imagem representação do sujeito.
Objeto de amor e objeto da pulsão não só não são equiparáveis, então,
senão que, em certa medida, são opostos. O amor pelo objeto implica sua
preservação, está contraposto ao ódio e ambos, em seu conjunto, à
indiferença. A pulsão se satisfaz com o objeto parcial (ou se descarrega, o que
em seu caso é o mesmo) sem se importar com o destino do objeto, que é
sempre pontual e definido-comojá assinalamos- pela predominância de
um traço que o constitui como tal. Por isso preferimos reservar o termo
objetal, em sentido estrito, para a relação do ego com o objeto, tentando
buscar aquelas conexões que se põem emjogo para que esse objeto de amor,
que é a criança para a mãe, constitua por derivação e por apoio os objetos
das pulsões parciais.
A pergunta que fica proposta é: quais são os vínculos que se estabele­
cem entre ambos os obj etos (o do amor e do da pulsão) e desde quais vias
se deve considerar as possibilidades de passagem de um ao outro, levando
em consideração que ambos coexistem na estrutura psíquica materna no
momento do nascimento do filho?
Deixemos de lado a concepção que, desde um enfoque genético do
desenvolvimento psicossexual, considera que o sujeito passaria de um a
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 127
outro mediante uma integração progressiva de suas pulsões parciais dentro
da organização genital. Concepção construtivista cuj a origem estaria mais
do lado do cognoscitivismo do que da psicanálise: consideração crescente do
objeto em sua diversidade e riqueza de qualidades, em sua independência.
O que a experiência psicanalítica demonstra é que não é a cognição a
condição da integração dos objetos de conhecimento.
Se consideramos a constituição do objeto parcial em suas relações de
início com o objeto total, possivelmente encontremos outra via para a
resolução deste problema. Pensando desde a criança, desde a constituição
libidinal nas origens do aparelho psíquico, o objeto parcial é evidentemente
anterior ao objeto total. Como Martin mostra, o objeto da pulsão parcial pode
constituir-se enquanto o sujeito não constituiu objetos totais, de amor,
correlativos ao ego. Quando Martin ritualiza a preparação de uma mamadei­
ra estamos frente a uma situação na qual se pode dizer que a sexualidade
(como significação estruturante desgarrada da autoconservação) se insta­
lou. Se não fosse assim, este menino não poria tanto cuidado no ritual de
preparação, nem faria esforços tão marcados para conservar certas condi­
ções prazerosas na posição (deitado entre almofadas macias) que escolhe
para a ingestão da mamadeira. D a mesma forma, quando vai reiteradamente
ao banheiro na sessão, a micção não é um simples ato evacuativo, porque
nesse caso não se converteria no signo predominante mediante o qual se
inaugura o contato com a nova situação (não me atrevo a dizer colnigo) . De
outro modo, Martin se limitaria a urinar quando, ao encher a bexiga, a
pressão do líquido determinasse o reflexo evacuativo e este ato teria, então ,
as mesmas características mais ou menos automáticas que adquire em
qualquer outro "cachorro" não necessariamente humano.
A pergunta que podemos fazer-nos é por que Martin não consegue
estruturar esses objetos de amor que, como assinalamos anteriormente,
aparecem nas crianças quando os objetos auto-eróticos vão cedendo
(recalcando) em função do reconhecimento do amor matemo, quando a
comida se transforma em um dom que se recebejunto com o reconhecimento
da mãe.
Se partimos da teoria do apoio na constituição pulsional, o elemento
Pre:cip,itante desta possibilidade de derivação do objeto da alimentação em
objeto sexual (derivação metáforo-metonílnica do leite ao seio e do organis­
à boca constituída enquanto zonalibidinal) é a existência da sexualidade
outro humano que gera as condições para que se produza, retomando a
expressão já assinalada, a sedução originária. Esta sedução originária abre
possibilidade de compreensão para aquilo que Melanie Klein reconhe­
intuitivamente: o fato de que as fases da libido não se instituem senão
predominâncias do desenvolvimento infantil; o fato, por sua vez, de
n o momento da predominância oral, o anal e o genital já têm uma
embora caótica, desde as origens.
128 I Silvia Bleichmar
Mas esta imersão brusca elo "cachorro humano" nesse mundo
sexualizaclo elo adulto, implica algo mais. Os cuidados maternos são
produtos da libido ele obj eto da mãe. Deixemos em suspenso, como
secundária, a oposição libido narcisista/libido objeta!, e centralizemos a
oposição obj eto ela pulsão/ objeto libidinal. A mãe, suj eito atravessado por
seus próprios embates pulsionais, não pode deixar de jogar em seu
movimento libidinal as contradições entre o obj eta! (amoroso) e as pulsões
parciais (objeto da pulsão) , projetando sua própria realização de desejos no
filho - desejos orais , anais -. Deste modo, ao sexualizar o filho com os
cuidados que lhe proporciona, desprende em sua boca, junto com o leite que
o alimenta, o seio com o qual se constituirá - por derivação e por apoio -
o objeto da pulsão. Um derivado do outro, a mãe oferecerá essa parte de si
mesma que é o seio a essa boca "pulsionada" que se fusionará com seu
próprio seio e que retornará alucinatoriamente no auto-erotismo (possuidor
ele um obj eto derivado da objetalidade, mas anobjetal se se entende o objeta!
como capacidade de amar uma imagem derivada do ego e do semelhante
como um todo) .
De tal modo, o objeto p arcial - da pulsão - se constituirá por derivação
e por complementariedade do objeto amoroso. Poderá ser-nos assinalado, a
esta altura, que aquilo que propomos não se afasta do que foi assinalado por
Lacan quando considera o auto-erotismo como u m desprendimento do
narcisismo: da objetalidade n arcisista da mãe à imprompta da pulsão
parcial, por derivação, no filho. No entanto, não nos parece que seja assim;
o ponto central de discrepância é a concepção da mãe como sujeito cindido.
Nesta medida, a sexualização ela criança não é produto do narcisismo
materno , senão elo fato de que este narcisismo (que implica a constituição
do ego na mãe e a partir disso sua possibilidade de amor obj eta!) está em
contraposição com o inconsciente, no qual a boca que recebe no filho não
remete apenas ã castração-completude, senão à imbricaçào fantasmática
pela qual a série prazer-clesprazer jogada na oralidade recebeu formas
lógicas de organização pré-consciente na série fálico- castrado. � que
garante o equilíbrio constitutivo do ho[ding (para usar a e.x1Jressao de
Winnicott) é que a mãe estej a constantemente jogando com a intersecção de
dois sistemas com conteúdos e formas de funcionamento diferentes. Se não
ocorre deste modo, nos enfrentamos com os fracassos na constituição do
aparelho psíquico da criança, às psicoses.
o ritual do banho: problema d o d u a l ismo me nte/corpo
A partir da descrição d e Kanner, em 1 952, d o autismo precoce, a
ritualização que aparece nas crianças, prévia à laténcia,converte-se em u m
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 129
signo preocupante para todo analista ante o qual o quadro se apresente. A
obsessiviclacle precoce não pode ser considerada na maioria dos casos como
um sintoma neurótico: e se bem o diagnóstico não pode jamais ser efetuado
a partir ele um só traço, este sintoma só aparece em dois casos bem definidos:
em crianças com uma predominância de constituição psicótica (ou que
arrastam resíduos autistas reencapsulados na estnltura posterior) , ou em
crianças neuróticas que passaram por situações ele perdas massivas (morte
de progenitores , migrações bruscas) , nas quais a ritualização tem por objeto
manipular certa pem1anência de elementos básicos da viela cotidiana frente
à desorganização libidinal que as perdas precoces produzem.
Nos últimos anos, e em função ele circunstâncias especiais em que meu
trabalho se desenvolve, tive a opo rtunidade de analisar, em múltiplas
ocasiões, crianças neuróticas que apresentavam estes rituais como produto
de lutos massivos aos quais a história os havia enfrentado. Lembro
especialmente uma menina de quatro anos (cujo pai havia sido brutalmente
assassinado, em conseqüência do que foi obrigada a emigrar) que tinha uma
série ele rituais alimentares que, em caso de falhar por alguma circunstân­
cia, submetiam-na a episódios de ira angustiada com acusações em relação
à mãe. Um destes cerimoniais consistia em que, durante o cafê da manhã,
sempre devia ter sobre a mesaas mesmas bolachas, que d eviam ser untadas
com a mesma geléia e depositadas em um prato - ao mesmo tempo - no
momento em que se sentava à mesa. Se por casualidade tinham sido
previamente preparadas, ou não era o tipo de bolachas esperadas, ou a mãe
se oferecia para prepará-las na medida em que bebia. o leite, se submergia
em uma birra desesperada que não admitia mudanças de nenhum tipo.
Esta menina, que nas p rimeiras entrevistas desenhava globos com
caras ele boca ameaçadora, a partir ela terceira sessão começou a desenhar
a figura humana, quando pude elaborar com ela o sinis tro ele uma figura
paterna que " estava no céu" - como um globo-, frágil e a ponto de estourar
a qualquer momento, e que ela deveria sustentar com grande esforço,
impedindo que se escapasse: figura que representava ao mesmo tempo o
horror das experiências vividas ou relatadas pela mãe.
A partir da verbalização destes fantasmas começou a desenhar a figura
humana e a estabelecer diálogos com sua mãe -que sempre esteve presente
no consultório, já que foi necessário trabalhar com técnica ele binômio mãe­
filha-, mediante os quais pretendia ordenar a caos no qual se havia sentido
submersa depois ela situação traumática vivida. Um dia, em uma sessão n a
qual tentava "inflar" a mãe depressiva, a quem sustentava como um globo
com suas palavras ele consolo, e se oferecendo como obj eto substitutivo do
marido perdido, diz: "Verdade, mamãe, que eu sou parecida com papai? Não
é verdade que tenho o mesmo pescoço que ele?". No pescoço, lugar por onde
o alimento devia passar depois de sua ingestão, havia-se estabelecido a
130 I Silvia Bleichmar
ponte que ligava seu corpo ao sinistro, ao mesmo tempo que se havia
constituído o símbolo de obstáculo para o que havia ficado em sua vida como
não digerivel.
Neste caso, o caráter altamente simbólico do ritual alimentar mediante
o qual se controlava o que entrava proporcionando-lhe caracteristicas
reasseguradoras, marcava, junto ao restringido da área de conduta que
abarcava, o caráter transitório e facilmente desmantelável de um sintoma
que se ligava na organização simbólica do Édipo.
Na criança neurótica, como mostra este exemplo, o ritual possui a
caracteristica de estar associado a uma área restringida de conduta,
relacionada especialmente com momentos-chave da organização alimentar
ou do sono; e possui um conteúdo altamente objetal: se o objeto deve receber
um tratamento ritualizado pelo semelhante, não é o semelhante um pretexto
para o tratamento do objeto. Na criança autista, pelo contrário, o ritual
abarca as áreas mais amplas da conduta, situando-se no nível do objeto
externo: umarnesrnaorganização espacial dos brinquedos, intercambialidade
do semelhante no exercício do ritual, aparecimento permanente e extensão
dos movimentos repetidos ordenadores a todas as áreas da vida da criança.
Anteriormente assinalei como Martin era capaz de transformar toda
situação nova em um cerimonial ou, dizendo melhor, em urna situação
atravessada por cerimoniais; no entanto, me interessa deter-me especial­
mente na seqüência de ir ao banheiro que marcou nossos primeiros
encontros.
Disse anteriormente que não se podia considerar esta conduta reitera­
da como puramente rnecãnica, corno uma micção definida exclusivamente
no plano da autoconservação. No entanto, o que me preocupa agora é
entender o que representa metapsicologicamente e que aspecto do sujeito
estava comprometido neste ato.
Considerei a reiteração (seis ou sete vezes por sessão) do ritual de ir ao
banheiro corno um fato promissor. Algo ocorria no menino que o impulsio­
nava a essa necessidade evacuativa. Interpretei: "Martin sente coisas que o
incomodam dentro, que não aguenta, e que vai deixá-las no vaso" (unia as
minhas palavras ao recorrido que efetuávamos). "Estas coisas que lhe
incomodam, no entanto, estão em sua cabecinha" (punha minha mão sobre
sua cabeça).
O que eu tentava com a interpretação? Cada analista que se enfrenta
com urna criança psicótica se aferra (com convicção delirante) a urna
proposta teórica que lhe permita ter forças para seguir pensando em meio
ao caos. O ataque à razão, ao sentido comum, é tão poderoso que se
estabelece, de urna maneira nunca experimentada no processo analitico,
uma espécie de dissociação entre aquilo no qual se acredita cientificamente
e mediante o qual se opera e o sistema de crenças cotidianas. Em muitos
momentos das primeiras sessões com Martin, apesar da certeza de estar
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 3 1
trabalhando em urna direção teórico-clínica da qual esperava resultados
positivos para o menino e realimentação de interrogantes par� mim r_nesrna,
aparecia em minha cabeça, corno um flash, a pergunta: E se e surdo
realmente, e se tem algo mal formado, corno o pai suspeita?" A responsabi­
lidade com cada um destes pacientes produz urna mistura de entusiasmo
e angústia, similar àquela que uma mãe primípara experimenta frente à
criação de seu filho.
Bem, o que eu tentava com a interpretação? Para este tratamento eu
havia partido da idéia central de que em Martin as linhas que organizam o
ego, e por conseqüência oferecem urna tópica para a constituição do sujeito,
não se haviam instaurado. Nesta medida não podia haver nem ego nem
outro, nem totalidade englobante nem externo organizado estranho e
ameaçador, nem organização espacial nem temporal, só um caos de
momentos pontuais e espaços fusionais parciais. Martin me trazia um novo
problema: o da separação mente-corpo.
Dualismo que, corno Laplanche assinalou em "Problérnatique du ça",
não está no centro da psicanálise, senão que é da ordem dos problemas
fll.osóficos. E isto é assim não porque Freud tenha deixado de lado o dualismo
(a tentativa de abolição das diferenças mente-corpo apartada por Groddeck
não foi nunca aceita por ele) , senão porque esta problemática, que teve tido
tanta insistência na filosofia, encontra-se deslocada - sem que por isso
estej a resolvida- transposta a outra mais abordável em psicanálise, que se
situa na relação da sexualidade e da autoconservação.
"Dualismo da sexualidade e da autoconservação, inclusive se este
·
dualismo é instável, ameaçado pelo fato de que a autoconservação no
homem (sua capacidade autõnorna de perseverar no ser, o que se pode
chamar seus potenciais instintuais) é de tal modo precária, que é a
sexualidade, sem cessar, que vem supri-la". 10
No entanto, se este dualismo alma/corpo aparece na filosofia constan­
temente, é porque se mantém nas formas imaginárias com as quais o suj eito
organiza suas relações consigo mesmo e com o r:eal, separando um lugar
desde onde ao mesmo tempo que pensa, sepensa. E desde minhacabeça que
me imagino , creio, sofro; na cabeça o ego encontra uma representação
espacial desde a qual, se o próprio corpo é sentido como esse universo de
pertenceres, estes pertencem a um sujeito que se encontra instalado
representativamente na cabeça. Desde esta perspectiva, o sujeito, mais d o
que estar colocado na fortaleza d e um feudo cujos confins se estendem a
limites imprecisos, assemelha-se a um burgo onde a muralha cerca o limite
do corpo, mas na qual,por sua vez, urna construção interior delimita as
funções e os espaços de governo.
Em Martin, a energia libidinal, que se ativava corno movimento
inespecífico no momento da consulta, buscava vias de salda através dos
orificios uretrais e anais. Este modelo era similar ao da projeção; um
 1 32 I Silvia Bleichmar
precursor, evidentemente, tal como Freud o registra na Metapsicologia
quando alude aos movimentos que o ego-prazer realiza para se desfazer do
que é perturbador. Este ego-prazer que Freud situa entre dois momentos
constituídos do aparelho psíquico: por um lado é posterior ao ego-realidade
(ego da autoconservação, que só distingue o perceptwn da sobrevivência
biológica a partir de uma marca objetiva), e pelo outro, anterior ao
\ narcisismo, no qual a antítese será jogada no par amor-ódio.
Dos três movimentos propostos para a constituição das relações entre
o ego e o objeto, salvo o primeiro, momento do ego-realidade que distingue
o dentro e o fora de acordo com uma marca objetiva, tanto o ego-prazer, como
o ego do narcisismo, não deixam de ter o traço comum de que as relações
que separam o sujeito do mundo e ao mesmo tempo o vinculam a este, estão
defmidas pelas séries prazer-desprazer (em primeira instância), logo pelo
amor e o ódio (em segunda instância).
Nestecaso é evidente queFreud deixade lado o problema dedefiniruma
tópica que espacialize estes movimentos no próprio interior do aparelho,
para subordinar a espacialidade às relações de um sujeito constituído
enquanto ego a partir do prazer-desprazer em suas relações com o objeto:
"Para o ego do prazer o mundo externo está dividido em uma parte que é
agradável, que ele incorporou a si mesmo, e em um remanescente que lhe
é estranho. Isolou uma parte do seu próprio eu, que projeta no mundo
externo e sente como hostil. Após esse novo arranjo, as duas polaridades
coincidem mais uma vez:
Ego-sujeito (coincide) com prazer
Mundo externo (coincide) com desprazer (com o que anteriormen­
te era indiferente).
"Quando, durante a fase do narcisismo primário, o objeto faz sua
aparição, o segundo oposto ao amar, a saber, o odiar, atinge seu desenvol­
vimento".11
Primeiro movimento diferenciador, então, que não implica a constitui­
ção de um limite, mas simjá um esboço de espacialização, uma tentativa de
discriminação precária. (Isto é o que faz Martin quando a mãe lhe pergunta
onde te bateste: assinala o objeto hostil que produziu a dor, objeto alheio ­
tão alheio - como sua dor.) Do mesmo modo, ao não ter acedido ao
narcisismo, ao não ter constituído o ego representação com o qual o sujeito
encontra uma organização definitiva do dentro e do fora, no caos de
fragmentos de sensações desprazerosas e de objetos que o rodeiam, Martin
apela para a evacuação corporal daquilo que o perturba, e o traço que marca
sua humanidade é o fato de que o perturbante não está no plano da
autoconservação, senão de algo que se produz na nova situação que a
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 133
entrevista propõe: o alheio é simbólico, mesmo quando Martin não possa
simbolizar plenamente o alheio.
No paciente neurótico, o ego, como instância organizadora e defensiva,
impede o descobrimento das conexões pelas quais se produzem as passa­
gens mente-corpo. Se um paciente neurótico tem um sintoma de incontinên­
cia, ou vai urinar antes ou depois da sessão, a separação está estabelecida
no pré-consciente, tanto como as vias de conexão por condensação e
deslocamento o estão no inconsciente. O analista só deve refazer as conexões
recalcadas (e não sem um trabalho árduo), conseguindo que o sujeito
reconheça no movimento discursivo que realiza as diferentes formas nas
quais esta equação evacuativa se produz. Mas para um neurótico o xixi é xixi
e os pensamentos são pensamentos, já que o processo secundârio deu um
lugar a cada coisa e um sentido a cada palavra. A análise alterará estas
relações, m ostrando que se pode emitir umjorro de palavras, depositru- uma
idéia no vaso, evacuar uma interpretação perturbadora. Tratar-se-á, justa­
mente, do "reconhecimento do inconsciente", em um sujeito convencido de
que seu corpo e sua alma são diferentes.
Em Martin, como já assinalei, tratava-se de estabelecer estas delimi­
tações e relações ausentes. A partir da terceira sessão o menino tomou um
boneco e começou a depositar pedacinhos de massa de modelar na cabeça
dele. Colava cada pedacinho com cuidado enquanto repetia "popó, popó,
popó", igual ao que fazia no momento de ir ao banheiro. Eu interpretava:
"Martin quer que Silvia o ajude a limpar sua cabecinhp. de coisas que sente
como popó, coisas que o machucam dentro dele". Martin, em continuidade,
retirava com cuidado os pedacinhos e, em alguns casos, metia-os na boca.
Duas semanas depois (na décima sessão) caiu uma tormenta. Martin
assustou-se com um trovão, pegou um avião, elevou-o e deslocou-o no
espaço: "Avião" , disse, estabelecendo desta maneira uma relação entre seu
medo e sua dor, e as perdas sofridas em seus primeiros tempos.
Pude ligar, então, o ruído dos aviões à ida de sua avó, ao sofrimento que
isto lhe produzia e à sensação de solidão com que havia ficado desde então. 12
Começou a partir disso, no tratamento, uma seqüência caracterizada pelo
tema encontro-separação. O espaço e o tempo começavam a se organizar.
Quando Martin chegava fechava a porta da sala de espera e a abria no
momento em que eu ia buscá-lo; logo ia fechando as portas por onde passava
até chegar ao consultório, passando trancas, chaveando.
_ Perguntava-me, então, por q1;1e fechava tudo no momento de chegar e
nao no momento de ir embora. E freqüente que as crianças neuróticas
fechem tudo ao sair, como se quisessem garantir a permanência dos objetos
no interior do espaço analítico até que voltem. Martin operava de um modo
exatamente oposto: descobri, através de outros exemplos, que a seqüência
estava invertida. Tal como ocorre no modelo do sonho - ou do ataque
1 34 I Silvia Bleíchmar
histérico, segundo Freud -, o menino queria encerrar-me em um espaço que
evitasse perdas, mas em lugar de fazê-lo quando nos despedíamos, encer­
rava-me no momento de chegar. Seu aparelho psíquico parecia funcionar
como uma câmera de cinema que passasse o filme invertido: o último
convertia-se na primeira seqüência, o tempo invertia-se, regredia em lugar
de progredir. No entanto, um espaço e um tempo começavam a se ordenar,
mesmo que fosse em sentido inverso.
Os movimentos de constituição de uma tópica abriram em sua vida a
possibilidade de uma regressão temporal. Um dia - relatou-me a mãe ­
procurou uma almofada pequena do tempo em que era bebê, meteu-se em
uma caixa grande que havia ficado na despensa, das latas de leite vazias, e
mostrou para sua mãe que pegara dois brinquedos que simbolizavam uma
mamadeira e um bico. Indicou com gestos-como fazia sempre- seu desejo
de que estes objetos fossem utilizados com o objetivo de cuidá-lo. Durante
um longo momento desfrutou o jogo com sua mãe: alternativamente pedia
que lhe desse a mamadeira simbólica, em outro momento que lhe introdu­
zisse o bico na boca e o deixasse aí, depois que o tirasse; desfrutava o jogo
com uma cara sorridente e feliz. Depois saiu da caixa, levantou a blusa de
sua mãe e tentou que ela o amamentasse.
Começou a usar seu corpo para antecipar o que ia fazer: mexia a cabeça
antes de movimentar um trenzinho; abria a boca quando lhe atiravam algo
antes de tentar segurá-lo com as mãos. Procurava, ao mesmo tempo,
continentes onde poderia passar longo tempo: metia-se na cesta de brinque­
dos e desde seu interior brincava de ser um bebê com sua mãe.
Uma das características que sua criação havia tido, como já assinalei
antes, foi a impossibilidade dos pais de oferecer-lhe um lugar na família.
Martin havia passado longo tempo olhando seu pai brincar com seu irmão;
nesta etapa que agora se inaugurava punha o pai sentado em sua cadeirinha
e ele brincava com seu irmão, o pai devia olhar a brincadeira mas o menino
não lhe permitia intervir. Começava a se constituir a primeira passagem de
passivo a ativo na relação intersubjetiva; de ver, Martin passava a ser visto,
em um exercício de sadismo precoce onde o semelhante era submetido à
mesma passivização que ele havia sofrido.
Um dia o menino chega à sessão, fica no parapeito da janela e brinca
ele se atirar como se mergulhasse, repreendendo depois alguém imaginaria­
mente colocado a seu lado; o jogo se reproduz várias vezes. Alguns dias
depois fico sabendo que se trata de uma cena realmente vivida, transladada
em forma idêntica ao interior do espaço analítico. Martin tinha ido à praia
com sua mãe e na piscina havia encontrado um menino que lhe atirou água
nos olhos; ofendido, saiu e deu as costas a seu inimigo, na beira ela água.
A mãe, já percebendo o mecanismo de desconhecimento e desconexão que
todo sofrimento lhe produz, disse: "Martin, deste modo o único que se sente
mal és tu, volta para a água e não dá importância a esse menino, quando ele
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 135
t e incomode dá as costas; não deixa ele aproveitar". Martin voltou para a
água, mas no momento em que o outro menino se descuidou atirou -lhe água
e riu com prazer. Na segunda sessão em que reproduziu a cena vivida
acrescentou um novo elemento de significação: manifestou sua cólera
repreendendo o inimigo imaginário. O fato de atirar água havia sido
compreendido em sua própria significação agressiva, e Martin, no consul­
tório, mostrava-me sua raiva ao reproduzir a cena mudando o ato por aquele
que realmente simbolizava.
O processo começou a se desenvolver em um ritmo veloz. Começou a
brincar de ser "pesero" em sua casa; subia em sua bicicleta, pedia que lhe
atassem ao cano uma caixa com moedas, punha um gorrinho e convidava
a mãe para subir atrás enquanto ele dirigia. (O "pesero" é um táxi coletivo
que realiza sempre o mesmo recorrido. Tem uma característica: o continente
permanece sempre idêntico, enquanto os passageiros sobem e descem. Por
outro lado, este tipo de veículo era utilizado pelos pais exclusivamente para
trazê-lo à sessão.) Martin põe um gorrinho para dirigir, os chapéus conver­
teram-se para ele em uma verdadeira paixão: coloca uma armação protetora
da cabeça, algo que ofereça um limite a esta?
A constituição do não
Quando Martin começou o tratamento, do mesmo modo que não u s ava
o pronom e , não usava o "não"; confundia o "não" e o "sim", utilizando-os
indiscriminadamente. Podia dizer "não" quando queria algo, ou "sim" no
momentoderechaçar algo.Nãopareciahavernisso umaformade negativismo,
senão uma dificuldade para compreender a relação entre a palavra e seu
conteúdo, ou, como diriamos ele acordo com a lingüística atual, entre
significante e significado. Do mesmo modo, quando ficava brabo com um dos
pais podia repetir indiscriminadamente, enquanto chorava, mamãe, ma­
mãe, papai, papai, ou apelar à condensação "mapá".
Assinalei no Capítulo 3 o lugar estruturante que o recalcamento joga
na constituição do juizo, e como a (de)negação (Vemeinung}, tal como Freud
a trabalha em seu texto de 1925, é um mecanismo constitutivo do juizo, mas
ligado por sua vez à instauração do ego. A (de)negação determinada, q u e
marca uma posição d e sujeito e m oposição a o semelhante, é o fator
determinante na instauração ela oposição eu-não eu. Spitz, que possivel­
mente é o psicanalista que mais se dedicou a estudar esta questão da
constituição do "não" assinala, em seu livro Não e sim, 13 a relação que existe
entre a aquisição elo "não" e a constituição das estruturas cognitivas, a
frustração libidinal em relação com o semelhante e a passagem da passivi­
dade à atividade.
 136 I Silvia Bleichmar
Detenhamo-nos um momento em sua análise. Spitz faz um descobri­
mento fundamental em relação ãs condutas de movimento cefalogiro que se
encontram nas crianças despossuídas por hospitalismo. Recordemos a
experiência: as crianças hospitalizadas, separadas de suas mães por um
período que ia de seis meses a um ano, rodavam a cabeça em tomo do eixo
sagital da colunavertebral quando alguém se aproximava. Esta conduta, diz
Spitz, que se parece muito à pauta universalmente familiar dos adultos de
sacudir a cabeça, que significa "não", continuava enquanto o estranho os
enfrentava . Diferente das crianças sadias, que não rodam a cabeça mas que
se cobrem os olhos, bcilxam a cabeça ou a distanciam, escondem o rosto
atrás de sua roupa ou dos lençóis, estas crianças que padecem de
hospitalismo expressam seu rechaço de contato rodando sua cabeça como
um adulto farta para expressar uma negação.
No entanto, com uma aguda observação, Spitz marca a diferença entre
a negação semântica, que representa um rechaço, e a conduta defocinhar,
a dos porcos ou de outros animais que buscam sua comida na terra com o
focinho, movimento instintivo de busca do estimulo que tem valor de
sobrevivência, relacionando esta última aos movimentos cefalogiros nega­
tivos dos bebês hospitalizados. Aconduta defocinharimplica um movimento
de rotação da cabeça guiado pelo instinto de autoconservação, conduta que
é inata e não aprendida. A rotação de cabeça, então, no bebê recém-nascido ,
tem por função a aproximação a um estímulo alimentar definido no plano
da autoconservação. Pelo contrário, a negação é um ato semântico, com
caráter de identificação libidinal, definido por um traço de cultura presente
em um código (lingüístico-gestual) e, por outro lado, relacionado com as
frustrações às quais a criança se vê submetida em relação ao semelhante
no momento em que se instaura a proibição.
Spitz descobre algo importante nestas crianças hospitalizadas. O que
é vivido pelo observador como uma conduta de rechaço, de negação, não tem
tal caráter, não está dirigido a um objeto (não é objetai, no sentido que já
demos a este termo) , representa uma regressão . Mas neste ponto é onde sua
concepção das relações objetais faz com que Spitz caia em uma armadilha,
impedindo-o de chegar até às últimas conseqüências de seu descobrimento.
Ele propõe: "É importante recordar que esta conduta não está dirigida a um
objeto, senão que representa uma regressão a uma etapa sem objetos. Não
é um sinal a um objeto, senão uma conduta dirigida para aliviara tensão que
tem sua origem em um período muito anterior àquele no qual existem
verdadeiras relações objetais". 14 Prisioneiro de uma concepção onde o
anobjetal do auto-erotismo culminará em relações de objetos libidinais,
Spitz não pode incluir uma hipótese teórica que permita entender por que
o hospitalismo não faz o sujeito regredir até o plano da autoconservação Uá
que põe em risco sua vida) . senão até uma etapa na qual o objeto libidinal,
suporte sex'Ual do objeto parcial, se perdeu. Por isso não pode entender a
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 137
conduta cefalogira senão como um movimento de descarga de tensão no
vazio, movimento que retrotrai o sujeito à ordem da biologia, quando, na
realidade, o bebê tenta desesperadamente conservar o objeto parcial das
origens da alucinação primitiva mesmo à custa de sua própria vida, da qual
não tem, por outra parte, nenhuma consciência existencial.
No momento em que Martin chega à consulta, como os bebês descritos
por Spitz, expressa seu desconhecimento do outro com um giro de cabeça.
Isto é comum nas crianças nas quais há uma predominância autista: o
episódio da piscina apresenta resíduos desta conduta. Deverá estabelecer­
se uma relação libidinal com permanência do objeto total para que a negaçao _
se instaure.
Aos três meses de análise, quando estamos pela 44ª sessão, produz-se
a primeira raiva de Martin, e a primeira situação de transferência negativa
- mas, de todo modo, transferência ativa -. Eu proibi o menino de meter
os dedos nas tomadas, nas quais também tentou introduzir uma vara de
metal, enquanto me olha com um sorriso ausente. Em continuação, dirigiu­
se, reiteradamente, à máquina de escrever que está em um canto do
consultório e bateu nela. Repeti várias vezes "não, Martin", até que nesta
ocasião me aproximo, tomo-o do braço suavemente, mas com firmeza, e o
afasto da máquina.
Martin fica brabo pela primeira vez: parado no meio do consultório grita
e ameaça a almofada; por meio de um arremedo de discurso rabujento e
prepotente faz todos os gestos e emite todos os sons que já viu alguém furioso
realizar. Assinalo-lhe que a raiva é comigo, que está irritado porque não o
deixo fazer tudo que quer. A partir disso deixa de me cumprimentar quando
vai embora Uá havia começado a me dizer "tchau" no momento da partida) ,
resiste a entrar em minha casa quando chega, não quer que seu pai toque
a campainha ou fica recostado em uma poltrona da sala de espera negando­
se a buscar sua cesta.
Ao mesmo tempo se produz um fato surpreendente. Até o momento em
que surgiu sua raiva chamava tanto os cachorros como os gatos de "gato".
A partir do episódio descrito começa a dizer, quando ouve ou vê um cachorro,
"não gato". Isto faz especialmente ao chegar à minha casa, onde meu
cachorro cotidianamente o recebe e o acompanha até a sala de espera.
Produziu-se, a partir disso, um acontecimento decisivo para sua constitui­
ção: quando lhe digo "não, Martin", proibindo-o que se aproxime à tomada
ou à máquina de escrever, assinalo-lhe ao mesmo tempo que uma proibição
é um limite que marca o que ele não é. O não, Martinimplica tanto a proibição
como a discriminação entre ele e o outro, é tanto não, Martin, como não­
Martin. No mesmo momento começa a dizer eu. Não é na realidade eu como
pronome pessoal, acompanhado de um verbo ou como se responde a uma
interpelação de sujeito ("quem é o bebê querido de mamãe?"; "eu", responde
a criança exercendo sua função de sujeito atravessada por sua posição d e
138 I Silvia Bleichmar
objeto libidinal) . Martin utilizava o eu como um significante , correspondendo
mais ao ego ideal que à própria instância egóica. Viu um programa de
televisão onde um personagem megalomaníaco repete enquanto realiza uma
proeza: "Yoooo!", fazendo um gesto abarcativo com os braços como se
contivesse neles todo o universo. Quando se sente incomodado por mim na
sessão (seja porque não me presto a ser utilizada como um banquinho no
qual ele sobe para alcançar o botão da luz, sej a porque chega a hora de ir
embora) . demonstra- me sua força onipotente abrindo seus braços para os
lados como o personagem da televisão, atirando o peito para frente enquanto
diz "yoooo!", como uma demonstração máxima de sua negativa a aceitar
passivamente que eu mesma possa defender meu direito como sujeito ativo.
Para Martin, todavia, não há mais que uma dupla ativo-passivo jogada na
intersubjetividade do vinculo, no qual, se ele não me controla ativamente eu
posso submetê-lo passivizando-o nos esboços de sujeito que começa a
constituir.
Na mesma direção começam a aparecer os primeiros sintomas em
sentido analítico: nega-se a comer sólidos, especialmente carne, e quando
se vê obrigado a fazê-lo, mastiga e logo cospe às escondidas o alimento
rechaçado; urina-se quando embrabece (inclusive, em algumas ocasiões,
em sessão, parado no meio do consultório, desafiante, e logo cospe
reiteradamente na direção em que me encontro) ; desperta-se de noite e vai
deitar ao lado da mãe. Tudo isto acompanhado de momentos que não podem
ser descritos mais do que como momentos de intensa ternura: ele, que se
sentara em minha cadeira de balanço para se embalar impedindo que eu
pusesse minhas mãos nas travessas para embalá-lo, auto-suficiente e
mecãnico, começa a se sentar ao meu lado, aproveitando o balançar-se junto
comigo e aceitando que eu, sentada no chão, o embale enquanto se enrosca
em posição fetal no assento. Eu construo mitos , mitos da vida, humanizantes;
por momentos lhe falo longamente a respeito do que lhe ocorre, ou canto para
ele suavemente aquilo que me parece interpretável; escuta olhando-me com
gravidade, realizando às vezes um movimento como que incorporativo com
os lábios, como se as palavras penetrassem pela boca, não pelos ouvidos.
Nas sessões compartilhadas com a mãe (duas de cada quatro na semana)
restituo, neste espaço transicional em que se constituiu o consultório, os
pedaços fragmentados da história. Em um movimento simbolizante, com­
partilhando com a mãe o prazer do descobrimento do filho, tecemos
perlaborativamente os rasgões produzidos no processo que a reinstaura
como mãe deste menino.
Martin começa a ter movimentos que me parecem imagens precursoras
do conflito . Quando por alguma razão (e sempre há alguma, como as já
relatadas) fica comraiva, toma com cuidado um candelabro de cerãmica que
está no parapeito da janela e entrega a mim para que eu o coloque sobre a
mesa. Aparecem, transpostas, sua vontade de bater-me e o desej o de
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 3 9
conservar-me, deslocadas para este obj eto frágil e mrelação ao qual pede que
eu o ajude a cuidar. Ao mesmo tempo , uma caixinha pequena, com sacarina,
que esparramou em várias ocasiões em que sua mãe lhe dissera para não
tocar, toma-a em suas mãos e se aproxima de onde eu estou, deslizando-a
atê o fundo de meu bolso. É como se nesse ato representasse graficamente
o movimento psíquico mediante o qual se opera o recalcamento: aquilo
desejado, mas proibido, deve encontrar um lugar oculto que evite a tentação
e o sofrimento constante. O fundo de meu bolso será, simbolicamente, o
fundo de um aparelho que se converterá em receptáculo daqueles desej o s
aos quais o sujeito não poderá nunca aceder nem ter frente à sua visão .
Neste marco que agora descrevo , Martin pronuncia sua primeira frase.
A mãe conta-me emocionada: "Ele e seu irmão haviam saldo da aula d e
natação e e u disse ao maior 'Eu te vi boiar, como nadas bem'. Martin olhou­
me e disse: 'Viste-me, mamãe?"', primeira frase que alude ao reconhecimen­
to buscado do semelhante, ao mesmo tempo em que assinala seu próprio
reconhecimento em relação ao amor matemo.
A partir disto Martin começa a converter-se, definitivamente, em um
suj eito humano, marcado pelo amor e pelo ódio, reconhecido no olhar
matemo e no movimento gestáltico que o separa do mundo infmitamente
pontual d e obj etos em que se havia movimentado. As condições da função
simbólica e, portanto, da linguagem, já se instalaram.
Notas d e referência
l. "Papá" é a forma familiar com que as crianças mexicanas denominam as fezes .
2. "Para voltar à fórmula de que Freud tanto gostou n a boca d e Charcot, 'isto não impede
existir' o outro em seu lugar O. Pois tira-o daí, e o homem não pode já nem sequer
se sustentar na posição de Narciso. O anima, como por efeito de um elástico, volta
a colar-se ao animus e o animus ao animaL .. " J. Lacan, Escritos, México: Siglo XXI,
vol. 2, 1 9 75, pág. 236.
3. A totalidade englobante que simboliza tanto a mente como as paries do corpo é
representada muito claramente por algumas culturas indígenas, nas quais deve ser
constantemente preservada a manutenção dos pedaços do indivíduo(indiviso). Entre
os tzotziles, povo que habita no estado de Chiapas, México, uma série de rituais
preservam o sujeito do possível desprendimento de suas partes. Por exemplo: a mãe
corta as unhas dos pés e das mãos de seu filho com os dentes e engole o que roeu
depois de reduzi-las a fragmentos quase invisíveis, até que a criança engatinha ou
começa a caminhar. A partir desse momento, o que foi roído das unhas é guardado
em um pedacinho de fazenda limpa, como proteção contra a fuga da alma. Este
costume de conservá-las continua durante toda a vida de uma pessoa. O mesmo se
faz em relação ao cabelo que se desprende ao pentear- se, ou que se corta. Estas
precauções são tomadas em favor da alma que, de outro modo, se fatigaria depois
da morte buscando essas paries do corpo até ficar exausta; é o todo o que deve ir p ara
o Mais Além. C f. C. Guiteras Holmes, Los pelígros del alma, México: Fondode Cultura
Econômica, 1965.
140 I Silvia Bleichmar
4. Canção tradicional que se canta nos aniversários mexicanos, equivalente ao
"Parabéns a vocé" cantado na Argentina. [N.T. Também cantado no Brasil.]
5. J. Laplanche, A angústia, Problemáticas I, São Paulo: Martins Fontes, 1987, pág.
162.
6. Ibid., pág. 1 63.
7. G. Rosolato, "El análisis de las resistencias", em Trabajo del Psicoanálisis, México,
número 2, 1982.
8. J. Laplanche eJ. - B. Pontalis, Vocabulário da Psicanálise, Morais editores, Lisboa,
1976, parte "Objeto".
9. Deparei-me freqüentemente com casos de inibições para a aprendizagem em
crianças, nas quais, ao indagar acerca de outros sintomas, encontro inibições
severas para a alimentação. O processo de aprendizagem, que implica incorporar
algo estranho - alheio ao ego -, triturá-lo para decompõ-lo em elementos
assimiláveis e logo metabolizá-lo retendo o valioso e expulsando o desprezável, Relações entre o recalcamento
implica elaborações fantasmáticas que se apoiam em um processo de discriminação
tanto interno como eJderno, suficientemente complexo como para que seu fracasso
seja mals freqüente do que pensamos.
originário e o princípio de realidade
10. J. Laplanche, El inconciente y el ello, Problematicas N, Buenos Aires: Amorrortu
editores, 1987. (0 inconsciente e o id, São Paulo: Marttns Fontes, em produção).
1 1 . S. Freud, Metapsicologia, em OC, vol. XIV, 1974, págs. 1 57- 1 58.
12. É necessário que eu asstnale que o ruído deste avião não era somente algo ouvido na
partida da avó, senão reiteradamente sofrido pelo menino em idas freqüentes ào
aeroporto. Para as crianças migrantes, o aeroporto é o espaço de significação de todos
Nos últimos tempos minha curiosidade foi despertada por um fenômeno
os encontros e de todas as perdas, um lugar que se freqüenta constantemente e que observado na infância. Consiste em que os primeiros sonhos da criança são
faz parte de seu cotidiano. vividos por esta sem que ela possa diferenciar entre o campo da realidade e
13. R. A. Spitz, Não e sim, São Paulo: Martins Fontes, 1980. o novo fato psíquico ao qual se enfrenta. Isto tomou-se evidente no caso de
14. Ibid. uma menina que, ao chegar no quarto de seus pais ãnoite, meteu-se na cama
e ante ã pergunta "o que ocorre?" respondeu, meio dormindo "mas se tu me
chamaste e disseste que mamãe fôsse para minha carnal"; ou no caso de
outra menina que, por estar sua mãe grávida, todas as noites tinha que sair
da cama onde dormia porque "vinha uma galinha e bicava seus pés".
A partir de muitos exemplos corno estes me perguntei como se pode
explicar este fenômeno que indica, por um lado, que o recalcamento já se
estabeleceu, na medida em que uma formação do inconsciente aparece
constituindo um processo aonde se expressa a realização onirica do desejo
e, por outro lado, o fato de que ainda não se tenha instaurado o princípio de
realidade que estabeleça que este desejo só érealizável no espaço alucinatório
que o sonhar constitui.
Sendo o recalcamento originário o movimento constitutivo de dois
campos a partir dos quais se tomaram possíveis as formações do inconsci­
ente, e sendo a função do sonho a realização alucinatória de desejos,
precisamente possível pela inibição da motricidade, de que maneira o
aparelho psíquico incipiente opera para que ambos, realização alucinatória
e passagem à motricidade, não sejam contrapostos, senão complementares

141
142 I Silvia Bleichmar
e, ao mesmo tempo , como explicar a disparidade existente entre a emergên­
ciade uma formação do inconsciente e o caráter falido do juízo de existência?
Os capítulos precedentes dão conta de que optamos, no processo de
nossa investigação, por aquelas hipóteses freudianas que - desde os textos
metapsicológicos - abrem a possibilidade de pensar a constituição da
inteligência no interior da instauração da tópica psíquica, quer dizer, em
função da diferenciação entre dois sistemas que se caracterízam por diversos
modos de funcionamento.
Desde esta perspectiva é que nos vimos obrigados a revisar os
momentos que instalam o recalcamento originário, passando de sua
localização como movimentos míticos para a sua verificação no processo
histórico de organização do aparelho psíquico e deixando de lado, ao mesmo
tempo, um geneticismo lineal no qual este tivesse se constituído desde si
mesmo.
Esta definíção de opções teóricas nos leva a considerar também, no
caso do tema que abordamos neste capítulo, que a vertente que o próprio
Freud denominou "psicologia genética em formulação" não é amais frutífera
quando se trata de pora trabalhar o princípio de realidad: e sua concomitante
prova de realidade. O princípio de realidade, considerado desde un_m
�
perspectiva geneticista, é inseparável das pulsõ:s de au oconse;va5�o
(entendendo que o princípio do prazer rege as pulsoes sexuars e o pnncipiO
de realidade, as pulsões do ego) tal como é definido por ele mesmo no texto
citado. Não insistiremos nisso, porque já no Capítulo 3 desenvolvemos nossa
posição sobre este tema. Mas temos que s�blinhar, para a coe:ência de
!1'
nossa proposta, e baseados em A ínterpretaçan dos sonhos : o oJeto, que o
que decide sobre a realidade daquilo que se representa nao e uma prova,
senão um modo de funcionamento do aparelho psíquico: o que corresponde
à possibilidade do processo secundário (ou dos proce�so s de lig�ção)
de
a consbtm _ de sistemas
_ çao
inibir a tendência à descarga imediata mediante
de demora que possibilitam os movimentos pertinentes para que o aparelho
passe da identidade de percepção à identidade de per:_samento.
A questão proposta no Projeto de 1 895, em relaçao ao fato de que em
�
sua origem o aparelho psíquico não dispõe de um cri ério p�a di ��guir
entre uma representação fortemente investida do obJeto satisfatono e a
percepção deste, é retomada no "Suplemento metapsicológico à teoria dos
sonhos", quando Freud observa que a prova de realidade se define co:no �m
dispositivo que permite efetuar uma discriminação entre as exc :taç� es
externas (que podem ser controladas pela ação motríz) e as excitaçoes
internas que não podem ser suprimidas por esta prova de realidade. Se
voltássemos à diferenciação estabelecida em "Pulsões e destinos das
pulsões", diríamos que, em última instãncia, seguir nesta lin�a de p �ns�­
mento leva a assinalar que o princípio de realidade deriva da diferencmçao
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 143
entre dois campos, ambos alheios ao sujeito, e que este deve aprender a
discernir, um interno-externo e o outro eÀierno-exterior.
Desta maneira, não é suficiente a distinção na qual viemos trabalhan­
do, quando, em função de marcar os limites internos ao aparelho, que são
instaurados pelo recalcamento originário, abordamos as diferenciações dos
primeiros internos- externos que marcam a inscrição dos representantes
pulsionais das origens (cf. o Cap. 4) . Diversos fatos clinicas nos enfrentam
com o problema de que a existência das formações do inconsciente não
implica, nas origens, a anulação da passagem à rnotricidade, senão que são
freqüentemente acompanhadas por esta passagem. Isso parece reafirmar
nossa hipótese a respeito de que o recalcamento não inaugura o acesso ao
funcionamento psíquico normal em um só movimento, senão que parecem
ser necessários vários tempos para sua constituição.
Tentarei seguir desenvolvendo neste capítulo estes movimentos - que
já comecei a cercar em outros textos - a partir da análise do material clinico
de um rnenirlo de doze anos cujo processo analítico tive a oportunidade d e
conduzir. Quando Isaac tinha seis anos sua mãe deixou-o s ó durante alguns
momentos, acompanhando seu irmão menor que, nesta época, tinha um
ano e três meses. O pequeno começou a chorar e Isaac, intuindo que poderia
ter fome, decidiu encarregar-se da tarefa materna e dar-lhe o alimento
requerido. No entanto surgiu-lhe um problema: corno oferecer-lhe comida
sem transgredir a proibição que lhe havia sido feita, isto é, sem acender o fogo
necessário para aquecê-la? A resolução foi fácil. Põs leite em uma caçarola,
colocou-a sobre a chama do fogão apagada, deixou-a durante alguns
mirlutos sobre o fogo imaginário, derramou depois o leite na mamadeira e
deu-a a seu irmão, que bebeu com prazer; quando sua mãe voltou relatou­
lhe o ocorrido . Em nenhum momento Isaac sentiu que houvesse enganado
seu irmão, ele havia participado do campo de ilusão que incluía ambos.
Esta situação me foi contada na entrevista mãe-filho que realizei para
tomar a história de Isaac quando este tinha doze anos, depois de sérias
dificuldades para que ele aceitasse a consulta psicanalítica. O motivo dessa
consulta era o aparecimento de urna série de condutas absolutamente
desconcertantes para aqueles que o rodeavam, a partirdamigração efetuada
um ano antes, momento em que havia chegado transitoriamente ao México,
acompanhado de sua família. Estava apático, hipocondríaco, não havia feito
nenhum amigo ("ele, que sempre havia sido aparentemente tão sociável") .
isolado no colégio e sem interesse pelo estudo, e estava quase perdendo o
ano. A isso se s omavam as dificuldades da língua pois, mesmo que falasse
o espanhol desde sua primeira irlfãncia (língua materna de seus pais) . não
se expressava nesta língua com a fluidez com que o fazia em hebraico, língua
em que havia realizado toda sua socialização.
O quadro que se apresentava não era muito diferente do que eu havia
visto em outros meninos transladados bruscamente d e seus países d e
144 I Silvia Bleichmar
origem, mas as caracteristicas estavam extremamente agudizaclas, e mais
. claramente delimitado. Em segundo lugar, o horror aos tetos altos, tetos
ainda, se se levasse em conta que - diferente daqueles outros memnos ­
sua residência no México implicava o encontro com uma extensa família de
avôs, tios e primos, da qual seus pais se haviam separado no momento de
emigrar para Israel.
Aceitei fazer um diagnóstico situacional, isto é, um estudo das
condições nas quais a estrutura psíquica do menino, imersa em um
desencadeamento sintoma!, pudesse ser explorada no contexto das condi­
ções históricas determinantes. Em um corte sincrõnico do funcionamento
psíquico atual queria encontrar os determinantes históricos que produziam
os constituintes sintomáticos que meu paciente enfrentava.
Isaac entrou só na primeira entrevista; sua angústia era tão intensa que
quinze minutos depois de iniciar levantou-se da cadeira e depois de deter­
se uns instantes no centro do consultório tratou de conseguir meu consen­
timento para ir-se, praticamente fugindo, sem dar-me a possibilidade de u:n
assinalamento ou interpretação que pudesse aliviar o estado de desesperaçao
que se encontrava. Durante o breve lapso que permaneceu comigo fez
algumas tentativas de reconhecer o ambiente olhando de soslaio, apenas
movimentando a cabeça para ambos os lados e manifestando que nada do
que via lhe agradava; tudo era antigo, os tetos altos lhe eram insuportáveis
e negava-se a buscar alguma explicação do porquê. Resp ondia simplesmen­
te, "eu não gosto".
No dia seguinte recebi a chamada telefônica da mãe, desconcertada,
contando-me que o menino havia saído da frustrada entrevista sem dizer
uma palavra e negando-se a falar, posteriormente, da situação. Queria que
eu lhe dissesse como conduzir-se, dadas as circunstãncias, e duvidava se
devia insistir com seu filho sobre a possibilidade de realizar outra consulta.
Respondi que apesar da brevidade do encontro interrompido bruscamente
por Isaac, me havia dado conta de que seu filho passava por um sofrimento
muito intenso, que o montante de angústia desenvolvido nos indicava que
a situação deveria ser considerada com toda seriedade, e que mesmo que
fosse apressado de minha parte dar-lhe uma opinião sem outros dados que
aqueles que eu obtivera, pensava que era necessãrio oferecer uma ajuda
terapêutica imediata. Acrescentei que eu estava disposta a dar esta aju a �
mas que eles, os pais, deveriam conseguir que ele voltasse a meu cons;-üto­
rio. Disse: "Se Isaac tivesse fraturado um braço e não quisesse ir ao medico
vocês se encarregariam de levá- lo. Bem, esta é a questão: ele necessita que
vocês possam ajudá- lo a enfrentar um tratamento" .
Fiquei esperando uma resposta enquanto circulavam em minha
cabeça as poucas idéias que essa situação me havia permitido pensar. Em
primeiro lugar, o rechaço ao antigo, representado por alguns objetos do
consultório - espaço que se caracteriza, no entanto, pela diversidade de
cores e objetos que aí estão - e nos quais parecia depositado algo velho que
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 145
o menino sentia como angustiante, em um interior que não aparecia ainda
coloniais que poderiam propiciar, em sua nudez branca, o sentimento de
pequenez humana que toda uma época impõe desde a própria arquitetura.
Perguntava-me, ao mesmo tempo, a respeito ele mim mesma. Por que
havia dito à mãe que isto deveria ser tratado como um traumatismo, sendo
muitas as metáforas pediátricas que já me vi obrigada a utilizar em
conversação com os pais para explicar uma situação particular em uma
criança? Uma fratura em um membro, a idéia de uma ortopedia terapêutica
(tão questionada desde minhas próprias convicções psicanalíticas) movi­
mentando meu pensamento pelo campo onde começava a se instalar a
situação analítica.
Depois de uma semana recebi uma ligação pedindo uma nova entrevis­
ta. Havia preparado algum material gráfico: um caderno de desenho, lápis
pretos e de cores, massa de modelar. lsaac entrou e permaneceu uns
minutos em silêncio, temeroso; fiz- lhe um assinalamento alusivo à minha
compreensão a respeito do quanto podia resultar-lhe difícil a situação de
entrevista, logo lhe disse que havia ficado pensando sobre o que me havia
falado: os tetos altos e o horror ao antigo ; acrescentei que talvez esses tetos
fiZessem-no sentir-se muito pequeno, e que possivelmente esse não fosse
um sentimento novo, que talvez o que ocorria hoj e estivesse relacionado com
coisas muito antigas de sua vida.
A partir disto Isaac abriu o caderno e perguntou se podia desenhar. O
desenho tinha em um primeiro plano um enorme rnonstro cuja cabeça,
constituída de pontas salientes, lançava raios em direção a uma cidade
distante , situada em segundo plano, que representava - presumivelmente
-Nova York com sua Estátua da Liberdade. O corpo do monstro estava meio
submerso na água, o tronco e os braços riscados por nervos ou feridas
vermelhas. Os raios partiam da cabeça - unida ao tronco sem linha d e
separação -, e dirigiam-se tanto aos edifícios d a cidade como a uma nave
que, segundo disse, "tentava atacá-lo". Havia um pássaro antediluviano
sobrevoando a cidade e, em cima, no céu pontuado de estrelas, um planeta
cujo relevo interior demonstrava os acidentes geográficos (desenho 1).
Disse que o monstro tinha sido muito machucado (mostrou-me os
nervos ou feridas) e que se sentia desesperado e por isso atacava a cidade.
Como vinha de outro lugar, os habitantes se defendiam dele, em função do
que estava disposto a destruir tudo. Assinalei-lhe o pássaro do passado e o
monstro , estabelecendo a relação que havia entre o desenho e seu sentimen­
to de estranhamente, de estar ferido . . . como os tempos se misturavam .
'Talvez - disse - isto que estás vivendo agora é como se algo muito antigo
houvesse despertado dentro de ti e o sentes estranho, como se fosse
monstruoso".
146 I Sílvia Bleichmar
Ficou em silêncio uns minutos enquanto me olhava um pouco rubori­
zado, depois sorriu e disse: "Vou fazer outro desenho". Desenhou, desta vez,
um enorme vampiro com sua capa (pôs-lhe o nome de Drácula), no interior
do corpo do vampiro desenhou uma cabeça de um homem com óculos,
denominou-a Beguin (desenho 2) e contou a seguinte história: "Beguin vai
de férias para a Transilvânia porque descobriu um castelo nas montanhas.
Ele estava ansioso para ir ao castelo, mas não podia, não sabia o que ocorria,
e viu . . . entrou no castelo e ouviu vozes e de repente viu um ataúde e vários
sarcófagos com mortos. Abriu o ataúde e havia um homem e abriu os olhos
rapidamente e por tê-lo despertado de seu sono, que dormiu dois mil anos,
mordeu-o no pescoço e Beguin converteu-se em um dos dele. E para
conquistar o mundo Drácula usou Beguin para que ele dirij a; como era o
Presidente podia fazer o que queria, e assim começou a converter todos em
vampiros".
Sublinho nesta história a frase "e abriu os olhos rapidamente" porque
nelasecondensa, sob o modo do processo primário , a confusão entre o objeto
e o sujeito. Como nos sonhos, ou nos contos maravilhosos, o primeiro
personagem, que não pode ver, é visto, logo, pelo outro; voltamos a encontrar
o mecanismo de volta contra a própria pessoa tal como o descrevemos no
Capítulo 4, mantendo-se não apenas nas formações do inconsciente
classicamente conhecidas, senão também nas formas do relato.
A partir desta história, que aquém das precoces opiniões políticas de
lsaac, evidenciava seu reconhecimento de uma profunda e insuportável
transformação em si mesmo, um retomo do passado sobre o presente, a
presença do sinistro e a compulsão à repetição, meu paciente e eu selamos
nosso próprio pacto terapêutico.
O tratamento deslizava incessantemente sobre o problema das rela­
ções entre o passado e o presente. Em uma sessão o menino manifestou seu
desejo de ser arqueólogo. Desenhou uma caverna subterrânea; nela havia
tesouros escondidos, colunas caídas, um esqueleto humano, vasilhas e
vivendas misturadas (desenho 3) . Logo depois que lhe assinalei a semelhan­
ça entre o que estávamos fazendo e a busca e reconstrução arqueológica do
passado, um novo desenho reacomodou todos os elementos tal como se
encontravam nas origens. O próprio esqueleto transformou-se em um ser
humano parado entre duas colunas. Cada um dos elementos dispersos do
desenho anterior encontrou um lugar ordenadamente (desenho 4). Nestas
circunstâncias perguntava-me como situar este movimento: tratava-se da
desarticulação, em sua vida, de algo previamente armado? Devia entender
esses desenhos como Freud propunha fazê-lo com a recordação histérica:
começar pela primeira cena como se fosse a segunda, logo a segunda no
relato como a primeira no tempo? Ou talvez, neste caso, mesmo que se
tratasse de um reaparecimento do passado no presente, não se podia afirmar
a anterioridade de nenhuma cena, senão sua simultaneidade, uma eng1· '
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 147
bando a outra, justificando no inteijogo que se produzia entre ambas que o
que aparecia como articulado em um lugar e desarticulado em outro, como
um espelho refratário, estava presente não apenas a partir do tratamento,
senão que havia estado sempre (hipótese que podia ser corroborada
possivelmente pelo fato de que ambas, inclusive a segunda, aquela que
poderia ter estado historicamente não sepultada nas origens, estava borde­
jada por um limite englobante que marcava uma ordem no interior de outra
ordem) .
Talvez se poderia alegar que é disto que se trata em psicanálise, tirar
à luz o que sempre esteve vigente, dando-lhe um novo ordenamento,
produzindo uma ressignificação, uma ressimbolização. No entanto, os
elementos antes expostos: limite englobante, caráter idêntico de ambas as
cenas (os elementos articulados em uma, desarticulados na outra) me
impunham pensar em outra possibilidade. A saber: que ao mesmo tempo em
que tinha que me enfrentar com o develamento do inconsciente, como pode
ocorrer em toda análise, algo ocorria na própria estrutura do ego que se
movimentava no processo analítico e que estava vinculado a aspectos falidos
na constituição da tópica psíquica.
O que me chamava especialmente a atenção era a identidade de
elementos de ambas as cenas, mesmo quando sua composição fosse
diferente, e creio que operava nisto a escolha de uma ordem teórica na
apreciação dos conteúdos do inconsciente. Assinalei em outros momentos
que, desde a perspectiva com a qual abordo a constituição do aparelho
psíquico, partindo do fato de que o recalcamento ao mesmo tempo que
instaura dois sistemas, dois modos de funcionamento e conteúdos diversos,
o recalcado não pode ser da mesma ordem que o manifesto, senão
·
radicalmente diferente. Para isto parto do realismo do mconsciente, recupe"
rado por Laplanche, para recolocar, em meio a uma discussão enfrentada
com propostas fenomenológicas, o caráter específico que sustenta o incons­
ciente.
Se tomássemos, por exemplo, o seminário "A carta roubada" de Lacan
poderíamos formular-nos as duas cenas como duas versões diferentes de
um mesmo drama, onde a insistência significante dos mesmos elementos
põe em evidência a compulsão à repetição que defme a persistência do
inconsciente, considerando assim cada um dos elementos deslocando-se
entre ambas as cenas e sendo sua significância determinada pelo lugar que
vêem ocupar como significantes puros. Nesse sentido, o inconsciente não
seria senão aquilo que sempre esteve à vista mas, em função da cegueira
intersubj etiva com a qual lsaac enfrentou-se,jamais encontrou a localização
que possibilitara a formulação otimista de Lacan quando, ao terminar a
primeira parte de tal texto, escrevera: "Assim, o que quer .dizer 'A carta
roubada', inclusive 'em sofrimento', é que uma carta chega sempre a seu
destino". 1
148 I Silvia Bleichmar
Mas, desde a perspectiva de onde desenvolvo meu trabalho, o incons­
ciente não é aquilo que apenas necessita um olhar diferente para tomar
evidente o que sempre esteve à vista, senão que é o que em sua totalidade
é subtraído ao sistema pré- consciente/ consciente pelo recalcamento. Dizer
que o inconsciente é subtraído do sistema pré-consciente não é uma simples
diferença de formulação, senão que marca a distância fundamental entre
uma concepção pré-freudiana que centraria o caráter do inconsciente na
iluminação do campo por parte da consciência, e outra que considera a
especificidade deste inconsciente.
De modo que minha preocupação em relação a este paciente estava
centrada na busca da constituição tópica que me permitisse encontrar os
movimentos constituintes destas cenas graficadas no tratamento e, antes de
interpretar os conteúdos específicos, vislumbrar sua localização
metapsicológica.
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 49
senão de uma teoria explicativa dos fatos, isto é, a conjunção da ameaça de
castração com a comprovação da diferença anatõmica dos sexos) . Freud
oscilou, em diferentes momentos de sua obra, em considerar a recusa como
um mecanismo patológico ou estruturante do psiquismo, chegando inclu­
sive a soluções de transição em Algwnas conseqüências psíquicas dn. diferen­
ça anatõmica entre os sexos: "Ou pode estabelecer-se um processo que eu
gostaria de chamar de c1esmentidn.3, processo que, na vida mental das
crianças, não é nem raro nem muito perigoso, mas em um adulto levaria à
psicose".4
11 ustra çõ es

@'
o fenômeno da ilusão

Em 1963, Octave Mannoni apresentou na Sociedade Francesa de

Psicanàlise um texto dedicado ao problema da crença.2 Nele, depois de
marcar as relações com o pensamento mágico e o teatro, enfatizava o fato de
que o termo "crença" não figura nos índices de nenhuma edição das obras
de Freud, apesar de ser um problema que a teoria psicanalítica nunca
perdeu de vista. Talvez a razão disso seja dada pelo próprio Mannoni quando,
no final de seu artigo, propõe dois axiomas: "Não há crença inconsciente",
"a crença supõe o suporte do outro". A crença e suas transformações, assim
como a Verleugnung, propõem um ponto de partida, mas não permitem
esclarecer o ponto de chegada. A intenção do autor é mostrar como um
mecanismo constitutivo do psiquismo - a crença - tem a mesma origem
que uma derivação que sustenta uma entidade patológica: a Verleugnung e
o fetichismo como entidade sustentada. O fetichista, diferente do impostor,
não necessita da credulidade do outro: este lugar encontra-se ocupado pelo
fetiche. Depois da criação de um fetiche - diz - o campo da crença perde­
se de vista, já não sabemos o que ocorreu com o problema e dir-se-ia que o
propósito do fetichista é escapar-lhe. Se com a Verleugnung todo mundo
entra no campo da crença, os que se tomam fetichistas saem deste campo
no que diz respeito à perversão.
Jogada entre o desejo e a realidade, a Verleugnung constitui uma cisão
do psiquismo diferente daquela que origina o recalcamento neurótico. Por
uma parte, não se trata de um conflito entre o ego e o id, senão de dois tipos Desenho 1 .
de defesa do ego; por outra parte, Freud tenta mostrar um mecanismo que
alude à negação de uma percepção, quer dizer, que funciona como defes"
frente à realidade (no entanto, não se trataria de uma realidade perceptiva,
 ·
Nas Origens do s UJezto
· Psíquico 1 1 5 1
150 / 5 1'1vza
. Bleichmar

Desenho 4.
Desenho 2.

Desenho 5.

\l�.
' •..

Desenho 3.
 152 I Silvia Bleichmar
O ponto que está claro na teoria é o fato de que Verleugnung é um
mecanismo que se constitui no processo de reconhecimento da diferença
anatômica dos sexos, isto é, naquele que se dá no interior do par fálico­
cas�rado, inaugurando o movimento que dá origem à resolução do complexo
de Edipo e à assunção do próprio sexo. Por sua vez, essa cisão do psiquismo
deve ser resolvida pelo reconhecimento posterior da diferença e pela
passagem às identificações secundárias que resultam dai. E no texto antes
citado, Octave Mannoni propõe: é como se a Verleugnung do falo matemo
traçasse o primeiro modelo de todos os repúdios da realidade e constituísse
a origem de todas as crenças que sobrevêm à desmentida da experiência.
Quer dizer que o fetichismo ter-nos-ia obrigado a contemplar com perplexi­
dade uma ordem de fatos que freqüentemente passam inadvertidos sob
formas cotidianas e triviais. E recupera deste modo a preocupação de Freud
quando, em 1938, assinalava seu desconcerto ao encontrar-se em uma
situação de não saber se o que tinha que dizer - referindo-se à cisão do ego
no processo defensivo - devia ser considerado como algo muito familiar e
evidente ou como algo absolutamente novo e assombroso.
Mas o que nos interessa retomar para o tema que agora desenvolvemos
é o seguinte: em primeiro lugar, que o axioma proposto por Mannoni: "Não
há crença inconsciente", sugere a questão de que o mecanismo de recusa,
mesmo que possa constituir- se como um enfrentamento com a realidade
percebida, tal como assinalamos anteriormente, não pode ser pensado
senão em sua relação com uma lógica da castração que implica a existência
do processo secundário (na medida em que as oposições nao podem ser
abordadas como se tivessem esse caráter no inconsciente) . Em segundo
lugar, que para que o ego se cinda, e o faça em um plano de crenças, deve
ter-se constituido previamente e, por conseqüência, estar instaurada a
primeira linha divisória do recalcamento originário.
Assim situado , este mecanismo proporia sua inserção tópica em um
psiquismo cujas linhas de cisão abarcariam, por um lado, o recalcamento
originário e, por outro lado, o próprio ego. Deste modo, seria um movimento
intermediàri� na constituição do superego (efeito do sepultamento do
complexo de Edipo e as identificações secundárias) e da separação originária
entre o ego e o id.
Por outra parte Freud assinalava, em Inibições, smtomas e ansiedade,
o seguinte: "Como revelei em outra parte a maioria dos recalcamentos com
os quais temos de lidar em nosso trabalho terapêutico são casos de pressão
posterior {Nachdrilngen} . Pressupõem a atuação de recalcamentos originá­
rios* {Uruerdrdngungen} mais antigos que exercem atração sobre a situação
mais recente. Muitissimo pouco se sabe até agora sobre os antecedentes e
as fases preliminares do recalcamento. Há o perigo de superestimar o papel
desempenhado pelo superego no recalcamento. Não podemos no momento
dizer se seria o surgimento do superego que proporciona a linha de
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 5 3
demarcação entre o 'recalcamento originário' [Urverdrdngung] e a 'pressão
posterior'. Seja como for, as primeiras irrupções de angústia, que são de
natureza muito intensa, ocorrem antes de o superego tomar-se diferenciado.
É altamente provável que as causas precipitantes imediatas dos recalcamentos
originários sejam fatores quantitativos, tais como uma força excessiva d e
excitação e o rompimento do escudo protetor contra os estimulos".5
Em O brmcar e a realidade, Winnicott propõe as características de sua
descoberta a respeito do objeto transicional, marcando o paradoxo que este
implica. Não se trata do ursinho ou do pedaço de tecido que o bebê usa, trata­
se de um espaço fora-dentro, uma zona intermediária de experiência entre
o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto
- entendida como reconhecimento de uma dívida, de um não-ego externo
-. "Estou, portanto, estudando a substãncia da ilusão, aquilo que é
permitido ao bebê e que é inerente à arte e à religião na vida adulta, mas que
se toma marca distintiva da loucura quando um adulto exige demais da
credulidade dos outros, forçando-os a compartilharem de uma ilusão que
não é própria deles . . . Estou interessado na primeira possessão, e na área
intermediária entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido".6
Winnicott situa uma zona intermediária de ilusão entre a mãe e a
criança, que logo será ocupada pelo objeto transicional; esta zona de ilusão
é o efeito da capacidade materna de adaptar-se às necessidades do bebê.
Trata-se da constituição de uma zona intermediária de experiência, gerada
nos intercãmbios estabelecidos no vinculo intersubjetivo, que os primeiros
cuidados infantis opera.
A proposta é importante, tenta introduzir o espaço do vínculo
intersubjetivo na constituição de toda subjetividade, ao mesmo tempo que
tenta dar conta do recobrimento imaginário com o qual a cultura instaura
as condições do dentro-fora no marco da relação mãe-filho. No entanto, em
minha opinião, Winnicott fica preso em uma questão teórica não elucidada
pela escola inglesa: a redução do vínculo matemo aoplano daautoconservação,
o não desprendimento inicial da sexualidade na constituição do psiquismo.
Como poderíamos defmir a mãe suficientemente boa? Em geral, é
somente apres coup que os psicanalistas de crianças nos formulamos uma
resposta possível. Ao nos encontrarmos com uma criança medianamente
neurótica dizemos: "Eis aqui a função materna realizada". A partir disso
reconstruímos as vicissitudes de um vínculo. Talvez esta seja a herança que
a psicanálise de adultos nos legou; reaparece através de diversas formula­
ções, tanto da escola inglesa como das propostas oferecidas por certo
estruturalismo lacaniano. Quando nos encontramos frente a um fracasso na
constituição psíquica as hipóteses - em muitos casos - são tautológicas:
uma psicose infantil pode ser posta tanto na conta do fracasso da metáfora
paterna e sua forclusão por parte da mãe, como da incapacidade da criança
para aceder à posição depressiva devido ao montante de inveja constitucio-
154 I Silvia Bleichmar
nal que o instinto de morte originário determinou. Reconstrução do passado
não é equivalente, em nossa opinião, a um determinismo, nem biologizante
nem estruturalista. Reconstrução do passado é análise dos movimentos
históricos que dão conta das passagens das estruturas prévias às atuais,
com as quais nos defrontamos. Nesta mesma medida é que a psicanálise de
crianças poderá estabelecer prospectivas diagnósticas que lhe permitam
previnir patologias futuras . Nela, como ponto de articulação privilegiado,
nos encontramos jogados no mesmo movimento que, ao mesmo tempo em
que ressignifica o passado, aborda a constituição da estrutura futura. A
prospectiva é sempre parte dos interesses de uma psicanálise de crianças.
Daí a necessidade de levar em conta as condições peculiares da constituição
do psiquismo infantil para poder operar nesta direção .
Por isso, voltando ao início, onde introduzi a primeira consulta de Isaac,
devo assinalar que desde os primeiros momentos inquietou-me a situação
da cena relatada, aquela aonde o menino compartilhou com seu irmão o
campo da ilusão que os abarcava, e a relação que isto tinha com um sintoma
surgido nos meses posteriores à chegada ao México: o fato de Isaac ter-se
tomado um "mentiroso", segundo aqueles que o cercavam .
Recordei um artigo de Françoise Dolto: "Au jeu du désir les dés sont
pipés et les cartes truquées" (No jogo do desejo os dados estão viciados e as
cartas marcadas) . Que é um lactante?, pergunta Dolto: um pré-sujeito que
alucina um seio, pré-objeto ou obj eto parcial. "Falo do começo da vida, porque
é aí que vemos como obrigatoriamente os dados estão viciados, como afirmo;
quer dizer que para conservar uma saúde psicossomática, um tõnus
psicossomático a partir do qual toma-se possível continuar vivendo fisiolo­
gican1ente, o ser humano, por estar dotado de função simbólica, interioriza
o código de sua relação com o outro, ama-se a si mesmo tal como é amado
pelo outro; há nele um desejo fundamental de reencontrar em suas
percepções algo que lhe recorde a última relação de prazer com ele-outro, ele­
sua mãe não são senão umsó, por desejos acordes. Este encontro é necessário
ao ser humano porque no pré-sujeito se estruturam, de maneira coesa, a
inteligência, o corpo, o coração e a linguagem, antes dos cinco anos. É nesta
idade precoce que se origina a articulação do desejo com a função simbólica,
assim como suas armadilhas.
"Alguns seres humanos aos quais faltaram os intercãmbios simbólicos
com o mundo inter-humano, embora tenham sido assistidos materialmente
quanto às suas necessidades, não puderam exercer sua função simbólica no
que diz respeito ao desejo do mundo exterior, já que as pessoas nutridoras
que se ocupavam deles não souberam iniciá-los nisto".7
Dolto recupera uma idéia princeps de Lacan: não é a satisfação da
necessidade em si mesma que gera o campo do intercãmbio inter-humano,
senão que esta satisfação está imersa em um mundo simbólico cujo caráter
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 155
estrutura a possibilidade de humanização da criança. O problema das
relações entre o caráter enganoso do objeto do desejo e a satisfação de
necessidades abre uma dicotomia fundamental na compreensão do campo
da ilusão. O objeto transicional funciona justamente porque aquilo que
recupera do vinculo com a mãe são restos de realidade - um cheiro
compartilhado, certa textura -, mas se mantém um perigoso equilíbrio que,
por sua vez, dá conta do equilíbrio psíquico da criança entre realidade e
fantasia. Tenho visto crianças muito doentes cujo objeto transicional - se
é que é correto manter esta denominação - é um fragmento direto do corpo
matemo: a camisola da mãe , por exemplo. Em um caso de perturbação grave
do simbolismo, um menino que atendi nunca havia utilizado outro objeto
que não fosse a mamadeira que, ao domlli, succionava no vazio , conservan­
do-se abraçado nela toda noite.
A pergunta é formulada por Lacan no seminário "Las formaciones de!
inconsciente"8: suponhamos que o objeto apareça para s atisfazer a neces­
sidade, justamente no momento oportuno: o que permitiria distinguir a
realidade da alucinação? Se originalmente a alucinação e o desejo satisfeito
são indiscemíveis, quanto mais satisfatória seja a realidade, menos consti­
tui uma prova de realidade. E se isto é assim, acrescentemos, é porque a
ordem da satisfação e a ordem da alucinação são duas ordens de realidades
diferentes. A satisfação de necessidades é absolutamente resolúvel, a
alucinação se estrutura a partir da marca inatingível do obj eto perdido
(objeto sexual desde a origem) . É nestes termos que propus repensar o
conceito de "voracidade" empregado por Melanie Klein, para marcar a
impossibilidade radical da satisfação plena.
O vinculo matemo é enganoso de início porque na satisfação da
necessidade introduz a ordem do sexual, pelo qual humaniza a criança. E
Lacan produz uma revolução na psicanálise contemporânea quando teoriza
a tripartição dos registros que, se bem não podem de modo algum substituir
a tópica freudiana, inauguram uma possibilidade de pensar as condições d e
recobrimento d o real, quer dizer, a s origens d a humanização.
Voltemos agora ao ponto de partida. Se para haver crença tem que
haver ego, enquanto que o desejo inconsciente se realiza de modo alucinatório,
a crença implica o modo de pensamento do processo secundário, funciona
com uma lógica que inclui o semelhante e se diferencia nisso, talvez, d a
convicção delirante, como assinala Winnicott: mas não estamos falando d a
própria função d o ego? Não é o ego um sistema de crenças a respeito d o
sujeito e dos vinculas desse sujeito com o mundo? Assim entendida, a crença
seria o modo fundamental como a realidade é recoberta, realidade dispersa
e desorganizada antes da constituição do ego, o qual, mediante os processos
descritos por Freud como de ligação e inibição de estímulos, constituiria não
só a sede da crença, senão que o próprio sistema de crenças seria o ego.
1 5 6 I Silvia Bleichmar
Talvez, diz Laplanche no seminário A angústia, não exista tópica senão
com relação a um ego . . . Talvez toda tópica esteja ligada ao imaginário, isto
é, ao modo como um ego se figura (sefigure être}, se figura ser.9 Também se
poderia pensar, figura-ser, isto é, consegue um espaço representacional
figurativo como um todo, como o todo. E em nota ao pé de página acrescenta:
por mais sedutora que seja, uma tópica que recorre a uma geometria
transcendente, não-euclidiana, esbarra na objeção de legitimidade: se o
espaço psíquico tem seu protótipo no espaço imaginário, o do corpo, poder­
se-á recorrer, para figurá-lo, ao inimaginável? Tal figuração, que aboliria
contradições e incoerências talvez insuperáveis, não correrá o risco de ser
um modo sutil de racionalização?10
Alguns dos problemas que proponho abordar: relação ego- corpo e seu
desenvolvimento no espaço, instauração deste espaço determinado pelas
coordenadas que se constituem entre o próprio corpo e o corpo do semelhan­
te, entre o ego e o outro.
A constituição do ego deve estar sustentada em um sistema de crenças
que o semelhante mantém a respeito do sujeito que é a criança em
constituição. Quando Isaac supõe que o irmão tem fome, não faz senão
reproduzir a função materna constituinte do vinculo suporte da crença. Mas
quando -a partir do aquecimento imaginário do leite na chama apagada do
fogão, ante o irmão que espera - supõe que sua ação pode anulãr a
percepção da mamadeira fria no semelhante, talvez nos encontremos em
pleno terreno da Verleugnung. Enquanto uma parte de si mesmo realiza o
ritual ilusório no qual o outro acredita, outra parte de si mesmo também
acredita, e a mamadeira fria não funciona como prova presumida de
realidade que possibilite a desmentida. Igual ao que ocorre no fetichista, o
ritual anulou, sustentado por uma teoria, a percepção posta em jogo pela
realidade.
Se Freud partiu da castração materna para analisar o mecanismo da
Verleugnung e, em relação a isso, acisão do ego como movimento concomitante
no psiquismo, talvez o tema ao qual estejamos nos aproximando tenha que
ver com os efeitos intra-subjetivos de um movimento intersubjetivo que
marca o primeiro momento diferenciador entre o sujeito e o semelhante.
Deixei de lado a questão do ego como organismo vivente, para referir­
me exclusivamente ao ego em sentido psicanalítico, isto é, como uma
formação particular no interior do aparelho, catexizada pela energia deste.
Ao falar de catexização apresenta-se a seguinte questão: é o ego quem
catexiza este aparelho tomando a fonte que o constitui do narcisismo
originário, ou a catexização do ego é, pelo contrário, o efeito de uma
transformação da energia pulsional em energia ligada que, uma vez
?rganiz �danesta tópica particular, começa a funcionar como contracarga do
mconsctente? (Tema ao qual me referi no capítulo em que abordo a
constituição da inteligência.)
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 5 7
Esta poderia ser uma questão absurdameflte proposta, se não fôra
porque se confundiu a fonte catéxica do aparelho psíquico com a fonte do
narcisismo originário. A isso me referirei agora.
Assinalemos o valor da contribuição de Lacan em relação ao esclare­
cimento que implica a recolocação do ego em relação ao narcisismo, e a
abertura à qual o conceito de especularidade leva para a compreensão dos
fenômenos constitutivos do sujeito psíquico. No Seminário nº II dizia: 'Toda
dialética que lhes dei a título de exemplo sob o nome de estágio do espelho
está fundada sobre a relação entre, por um lado, um certo nível de
tendências, experimentadas-digamos por agora, em determinado momen­
to da vida, - desconectadas, discordantes, fragmentadas - e do qual
sempre resta algo -, e por outro lado, uma unidade com a qual se confunde
e se iguala. Esta unidade é aquilo aonde o sujeito se conhece pela primeira
vez como unidade, mas como unidade alienada, virtual. Ela não faz parte dos
caracteres de inércia do fenômeno consciente sob sua forma primitiva, tem
pelo contrário uma relação vital, ou contravital, com o sujeito."11
Unidade alienada e virtual - relacionada com o esquema ótico, com o
lugar do olhar no campo do sujeito - possibilitadora de uma unidade mais
constituinte que constituída, relação contravital com o sujeito.
Relação contravital, porque como Lacan mesmo propõe em O estágio do
espelho: "Este momento que faz oscilar decisivamente todo saber humano
na mediatização pelo desejo do outro, constitui seus objetos em uma
equivalência abstrata pela concorrência do semelhante, e faz do eu lje] este
aparelho para o qual todo embate instintivo constituil'á um perigo, mesmo
quando responda a uma maturação natural; e a própria normalização desta
maturação dependerá, desde então, no homem, de um intermediário
{truchement] cultural: como se vê o objeto sexual no complexo de Édipo. " 12
Ego, órgão de desconhecimento, aparelho para o qual o embate
instintivo será um perigo, oposto àquilo que, perdido para sempre, só tocará
o futuro do sujeito assintoticamente.
"A função do estágio do espelho se nos assevera então como um caso
particular da função de únago, que é a de estabelecer uma relação do
organismo com sua realidade; ou, como se disse, do Innenwelt com o
Umwelt".13
Relação com a realidade que não é imediata, senão que é constituída
pela interposição do semelhante, da imago constituinte do sujeito. Se esta
imagem é ao mesmo tempo o umbral do mundo visível, quer dizer,
estruturante da percepção, deve-�e ao fato de que o olho urlifica um campo
despedaçado desde a cenestesia. E a gestalt pregnante, constituinte do ego,
a envoltura imaginária que encobre esta fragmentação.
A partir disso, Lacan vai denominar como narcisismo originário a carga
libidinal própria deste momento de constituição da imagem especular e,
neste sentido, sua contribuição é decisiva. Introduzumaaberturaao que fica
158 I Silvia Bleichmar
em suspenso na teoria da constituição do ego quando Freud propõe, em
"Introdução do narcisismo", a passagem do auto-erotismo ã libido do ego e
daí ã libido de objeto, por interposição deste ato único que instaura uma
instãncia catexizada representante do sujeito.
No entanto, o problema aparece (e marcamos nossa divergência)
quando o estágio do espelho é situado como paradigma do primeiro tempo
do Édipo. No seminário "Las formaciones delinconsciente" diz: " ... ametáfora
paterna atua em si porque a primazia do falo é instaurada na ordem da
cultura... Neste primeiro tempo o menino trata de identificar-se com o que
é objeto do desej o da mãe: é o desejo do desejo da mãe e não somente de seu
contato, de seus cuidados; mas há na mãe algo mais do que a satisfação do
desejo do menino; atrás dela se perfila toda essa ordem simbólica, o falo. Por
isso o menino está em uma relação de espelhismo: lê a satisfação de seus
desejos no movimento esboçado do outro; não é tanto sujeito como sujeitado,
o que pode gerar uma angústia cujos efeitos seguimos no pequeno Hans,
tanto mais sujeitado ã sua mãe na medida em que ele encarna seu falo" 14 . rio e que hoj e possibilita, graças à contribuição de Lacan, ser entendido como
Podemos fazer algumas observações sobre isto. Em primeiro lugar, se
o estágio do espelho instaura a matriz simbólica na qual o ego se constitui,
sua função não é a função de precipitar da insuficiência à antecipação, senão
a de obturar o caráter despedaçante que o auto-erotismo tem na constituição
do sujeito psíquico. Este é um aspecto em relação ao qual discordamos de
Lacan. O caráter fundamental do vinculo materno nas origens não é, desde
nossaperspectiva, a unificação do corpo infantil, senão seu despedaçamento
libidinal. Isto quer dizer que a constituição das zonas erógenas, marcadas
pelo cuidado excitante ao qual o bebê é submetido como objeto passivo do
sujeito ativo que o pulsiona, introduz no corpo os espaços de discordãncia
que marcam o impromptu da sexualidade.
A mãe, como todo sujeito psíquico, está constituída pelas confronta­
ções intra-subjetivas de uma cisão tópica que lhe permite ver a criança como
sujeito humano, ou seja, unificadamente, ao mesmo tempo que introduz
brutalmente essa sexualização à qual nos referimos já em outras ocasiões
e que, seguindo Laplanche, situamos no marco da teoria traumática da
sedução originária. O narcisismo materno é, então, igual ao que será o ego
do menino posteriormente, o obturador da vida pulsional anárquica das
origens. Mas aquilo que está presente na mãe no momento do nascimento
do filho, não está no fllho no mesmo momento. Isto tem que ver com a
diferença que pretendemos estabelecer com uma teoria estruturalista,
desde onde seria impossível diferenciar o que se encontra na estrutura, no
momento no qual o sujeito se vé inserido nesta, e as condições de apreensão
dos elementos dela por parte deste sujeito.
Recuperando, então, o auto-erotismo originário, poderíamos assinalar
que o narcisismo que caracteriza o estágio do espelho se baseia na
defasagem, no recobrimento encobridor tanto da carência materna (que se
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 159
é ressignificada, como Freud mesmo propunha em "Sobre as transposições
da pulsão, em particular do erotismo anal", como castração não faz senão
ressignificar todas as frustrações libidinais prévias às quais foi exposta) . e
que "projeta" na criança - para usar uma terminologia adequada proposta
por Melanie Klein - na instauração da oralidade e da analidade, como do
polimorfismo perverso infantil que é resultado do estabelecimento 'dos
vinculas primitivos aos quais a criança é submetida.
Há outra razão teórica para propor as coisas desde esta perspectiva. Se
o ego é um sintoma, uma estrutura defensiva por excelência, é um contra­
senso situar o narcisismo como recalcado centralmente. O ego, como
estrutura privilegiada da contracarga do pré-consciente, não pode senão
fazer parte do que recalca (mesmo que guarde sempre os rastros do
recalcado, como implica o próprio conceito de contracarga) . De modo que o
narcisismo não pode ser o originário do sujeito. Há, sim, um narcisismo
originário, como Freud postulou, que podejustificar o narcisismo secundá­
esse momento estruturante do ego e efeito da circulação fática da criança no
interior da estrutura do Édipo, mas sempre posterior ao auto-erotismo.
Temos aqui a função libidinizante da mãe que constitui, por um lado, a
sedução inicial que instaura a sexualidade polimorfo-perversa na criança e,
por outro, desde o narcisismo, a sexualidade ligada obturadora deste
polimorfismo compartilhado (poderíamos dizer: o amor) .
Recolocar o primeiro tempo do Édipo proposto por Lacan abre, assim,
uma perspectiva para a compreensão do caráter benéfico da função
materna: irrompe brutalmente na criança a partir do momento libidinizante
sedutor ao qual a submete com seu cuidado, ao mesmo tempo que oferece
as possibilidades de ligação libidinal mediante o oferecimento de uma
imagem identificadora, tal como o estágio do espelho nos permitiu entender.
Corpo fragmentado libidinalmente e ao mesmo tempo unificação imaginá­
ria, corpo do auto-erotismo infantil e, em um segundo tempo, quando o ego
se constitua, angústia de fragmentação à qual o suj eito fica submetido para
sempre devido ao constante embate da pulsão sexual.
Não é então o soma que marca as linhas de cisão do corpo fragmentado ,
senão a sexualidade anárquica das origens. O ego não aparece, então,
contraposto em uma linha de cultura versus natureza, senão no interior da
cultura que constitui o sujeito sexuado como um dos pólos de um conflito
· enfrentado a outro. A pulsão é um produto de cultura (do recalcamento e d a
sexualidade materna pulsante) na criança, tanto quanto o é o ego narcisista
instaurado constituindo atópica do aparelho psíquico.
Retomamos, então, a teoria da especularidade como constitutiva do
narcisismo originário, situando-a em um segundo tempo da constituição do
aparelho psíquico, relacionada com a instauração de uma tópica do ego, que
no movimento que impõe funda ao mesmo tempo o inconsciente e abre as
160 I Silvia Bleichmar
possibilidades para os fantasmas do corpo despedaçado. Mas assim como
dissemos que a transformação no contrário e a volta sobre a própria pessoa
são precursores do recalcamento originário, poderiamos situar agora a cisão
do ego como um movimento precursor da abertura às identificações
secundárias, e do recalcamento secundário.
E por que só poderá produzir-se esta cisão,anterior à constituição do
superego, em relação ao movimento da castração e do reconhecimento da
diferença anatõmica dos sexos?
Propomos a seguinte alternativa: a cisão do ego no processo defensivo,
com a conseqüente instauração da Verleugnung, não é senão a primeira
derrubada do sistema universal de crenças que a criança possui na primeira
infância: posse absoluta da mãe, identidade total com o semelhante,
premissa universal do falo. Neste sentido, sofre o mesmo destino que os
mecanismos anteriormente descritos. Não desaparece pura e simplesmen­
te, senão que encontra um lugar que consolida, no suj eito psíquico, - se é
resolvida favoravelmente - as possibilidades da crença e a dúvida gue o
afasta da convicção delirante. Se quiséssemos retomar os tempos do Edipo
proposto por Lacan, essa formação seria o movimento correspondente ao
segundo tempo do Édipo, aquele no qual a proibição paterna ocupa a função
de separar o filho da mãe e instaurar as condições de acesso ao terceiro
tempo, onde se constituem as instâ?cias superegóicas (ideal do ego e
consciência moral) como resíduos do Edipo.
Mas, que ocorre se esta passagem não se produz? Pouco tempo depois
de iniciar o tratamento, um dia Isaac chegou na sessão e ficou em silêncio
uns minutos. Tomou seu caderno e desenhou uma estrada ao lado de um
campo; neste campo um enorme cartaz sustentado por estacas, como os que
se encontram às vezes com anúncios. No cartaz se via um pedaço de rosto:
olhos, nariz, boca, ocupavam todo o espaço (desenho 5). Disse: "Os
automobilistas se assustam e se acidentam. O cartaz está aí para cuidá-los,
mas causa desastres". Olhou de novo seu desenho e acrescentou: "Acreditas
que háalgo que funciona mal em minha cabeça?Acreditas que posso tornar­
me um louco?" . Respondi: "Talvez sentes tua cabeça como este cartaz: não
sabes se serve para proteger-te e entender-te ou se ao começar a funcionar
vai te enlouquecer". Respondeu: "Pode ser por isso que não posso pensar,
tenho medo que minha cabeça pense só e vá para outro lado". "Aonde?",
perguntei. Isaac: "Às vezes sinto que levo outro igual ami� algemado ao meu
lado. Não posso soltá-lo . . . algo se rompe". Acrescentei: "E como se tivesses
medo de perder-te fora de ti mesmo. Como se tivesses que transformar tua
pele em couraça para conservar um limite" . Isaac: "Me dá medo ficar dentro
de mim. Tornar-me louco é não poder escutar? Quando a professora pede
algo não a ouço. Depois, quando me pergunta porque não o fiz me dá medo,
medo porque não ouvi" . Interpretei: "Comigo talvez ocorra a mesma coisa.
Nas Origen s do Sujeito Psíquico I 1 6 1
Necessitas ouvir-me para entender, para não ficar encerrado, mas temes
perder-te, não saber quem sou eu e quem és tu. . . como algemar-te a mim".
Nesse momento pedi-lhe que pusesse sua mão com o dorso para cima.
Toquei-a com meu dedo. Disse: "Meu dedo está mais frio que tua mão, podes
se�ti-lo?". "Sim"-respondeu-. Acrescentei: "Sentes assim porque com tua
mao sentes meu dedo, sentes o que ocorre fora, estás em contato com meu
dedo mas o !m:es �om tua mão, desde dentro de ti". "Queres dizer que minha
:
pele e meu limite? - perguntou -. Respondi: "Tua pele e tua cabeça, 'com
a qual estás pensando que estás comigo, mas sabendo que eu toco tua mão
com meu dedo sem que meu dedo seja parte de tua mão". "Minha cabeça ­
disse - é como o aparelho de eletricidade que construí. Talvez por isso não
posso conectá-lo. Tenho medo que funcione, talvez os cabos estejam
enredados como minha cabeça . . . "
Na representação do outro que vai encadeado a si mesmo, Isaac m e
apresenta a constituição d o duplo imaginário. No entanto, diferente do
psicótico, o duplo não é alucinado, senão sentido como uma parte de si
mesmo. Quando mente busca no outro a corroboração da crença que
e�trutura, no entanto, o fazintra-subjetivamente. Porissoasduas cenas que
motivaram minha pergunta inicial podem encontrar uma resposta através
desta hipótese: não se trata de duas cenas diferentes no tempo, como ocorre
na recordação histérica, mas de uma modalidade estrutural que indica que
em uma mesma instância coexistem dois modos de funcionamento. Corno
dissemos, há uma refração da imagem despedaçada, que se constitui ao
mesmo tempo em outro lugar, sem que a primeira esteja recalcada.
Poderíamos graficar a tópica com a qual nos enfrentamos desta
maneira:
F'rnlura na rep. or;iginúrla
i
1
:
BGO /V
�):\ )�
�
Fratura no
linul e com o real
Dcsesl.
--,--- I
INC.
 Nas Origens do Sujeito Psíquico 1 1 63
162 I Silvia Bleichmar
s encontrar alguns elementos ego do men�no - diz M�su? � � --: dominou, prematura e precocemente,
A partir da história do paciente podemo os traumatrsm?s da pnmeira mfancm através da onipotência' criando esta
sagem que permitiria consolidar
para entender porque não se produziu a pas que o menino ficou submetido estrutura que e o falso selj.
po
as instãncias superegóicas, ao mesmo tem mo originário e, desta maneira,
a;:
cisis "Em minha experiência clínica- acrescenta - comprovei que nesses
c os de estrutw:ação rígida, pré-maturada de objetos primários intern�dos
ao movimento de não resoluçã o do nar
ou um lugar definitivo na tópica de
- paradoxalmente - o ego não encontr
s tempos de sua vida -desde um e an!asmas, �a uma atitude negativa em relação a toda experiência ou
seu aparelho psíquico. Durante os primeiro
pai esteve ausente por causa do relaçao de o_bJeto nova. De tal modo que durante a adolescência essas
ano até os três anos aproxímadamente - o
c permanecesse só com a mãe, a pessoas realiZam po�cas experiências que as enriqueçam, e vivem em u m
serviço militar, o que determinou que Isaa
pertenciam totalmente. Fez um m�ndo fech�do ou rrreal, d e sua própria fabricação. 0 que as toma
qual, por outro lad o, sentia que ambos se alienadas, nao so_ dos outros, senão de si mesmas."l6
- talvez pseudomaduro - com
desenvolvimento precocemente maduro
aquisições muito precoces e uma necessidad
e permanentemente estimula­
_
�
Desde nosso pont� de _vis a, � onipotência pela qual a criança domína
que seu pai voltou, quando a .
os traumatismos da pnmerra infancia não é, no entanto, patrimônio das
da de crescimento acelerado. Um ano depois
miu de início o papel paterno , e�u:nturas que desembocam na constituição de um pseudo-selj. É caracte­
mãe engravidou do filho menor, Isaac assu
tir do nascimento , por tarefas nstica _de u� moment� da constituição do ego narcisista, e só se desenvolve
colaborou em tudo e se responsabilizou, a par ifestou ciúmes em nenhum
a partir da mstauraçao do superego. Daí que na hipótese que estamos
que não correspondiam à sua idade. Não man
ovia profundamente aos adultos de �envolvendo prop?nhamos que após a clivagem originária que organiza
momento, e sua atitude responsável com
que o rodeavam , já que era um menino inte
ligente que "sabia ocupar seu � ms campos - o do Id e o do ego, ou o do irlconsciente e pré- consciente _
lugar que ocupou nunca foi um eva logo ocorrer a constituição das irlstàncias ideais para ue 0 e �
lugar". Talvez esta sej a a origem de tudo: o
identificações, aparentemente � ff
lugar para si mesmo, e o que poderiam ser e massiva s, sem que tivesse
secundárias, nunca deixaram de ser prim
árias
es edípicos próprios da idade.
�
�n�ontre uma posição intrapsíquica defmitiva. Se isto não ocorre perig é
�mu�en e, porque o embate pulsional o ataca permanentemente e as
�
passado pelos conflito s de rivalidades e ciúm mstancias protet�ras que deveriam estar a serviço da defesa não podem
desgarrado, encapsulado em
Assim cresceu em uma casca, um interior ex cer s�a funçao e, p�adoxalmente, esse ego narcisista onipotente fica
do, no momento de sua migra­
uma envoltura rigidizada, que eclodiu quan su mergido em sua propria fragilidade para fazer-lhe frente. No caso d e
sobre o presente e as perdas .
ção, produziu-se um retorno do passado nos� o �a�rente, o encaps�lm:nento que Masud Khan descreveria como
os aspectos de sua estrutura no
precoces foram revividas. Assim, atuou amb patrim�mo do pse�do-selfn::-o e senão uma medida protetora extrema frente
u-se emum encapsulamento
manifesto: o encapsulamento do interior converte aos pengos de des�tegraçao constante ao qual está exposto.
conexões estabelecidas com o
global em relação ao mundo, e as breves Certamente n�o compartilhamos a proposta teórica de um pseudo-se/f
losivo que em seus transborda­
exterior tomaram o caráter querelante e exp
�
com� ��a formaçao oposta a um seljverdadeiro, mas nos parece ue a
imediata ao ato.
mentos de angústia propiciavam a passagem
�
p ossibihdade de estruturação de uma irlstància definida por sua po ição
de, os tetos altos simboliza­ _ . entre o Id _ e o sup re o garante a neurose infantil; nisso radica a
Envolvid o em uma pele que lhe ficava gran t�pica �
o da loucura. Se a tópica que
vam para ele a marca de sua pequenez e o risc
�
diferença entre a permanencm do moi e as possibilidades de variação no
de fratura do recalcamento
desenhamos se caracteriza por uma zona
�
plano do iscurso, ��uilo queLacan chamouje.Asvariações dos enunciados
esteve protegido no interior de
originário e, a partir disto, com o real, Isaac a 2respe o d� sujeito so se tomam possíveis na medida em que esta
si mesmo durante anos. �nunciaçao nao exponha o ego (moi) a um risco de naufrágio. Daí que 0 eu
É pos sível que o caso clínico que descreve
mos e a partir do qual tiramos
tes possa ser pensado em fle), tal como �e apresenta na experiência psicanalítica, deve ser considerado
as conclusões teóricas que nos parecem pertinen por Masud Khan no como o que e: fragmentos de discurso que o sujeito emite a respeito de si
rita
relação a um a entidade psicopatológica desc mesmo, m�s que em seu d�smantelamento e correlação simbólica permitem
ingl esa real izad o em Londres em 1970 . 15
colóquio de psicanalistas de língua a permanencra de um nucleo estável que marca um lugar m
- ·

· trapsiqmco
o ego do menino criou uma
Nele este autor aludia a uma estrutura na qual representacwn� · 1 d a totalidade
. imaginário que o constitui.
que a neurose infantil, que é
organização intrapsíquica da mesma natureza O ego (moi}, então, imaginário, alienado, especularmente constituído
ncia, o levará a organ.zar _ _

uma falsa organização do seif, e que, em conseqüê e nao somente uma matriz simbólica, mas também a garantia de perrnanên�
defensiva dos instir; 1 ,
um modo de vida clivado e rígido e a uma organização cm. na neurose enquanto o irlconsciente se revela.
mento mental arcaico
pré-genitais, ao mesmo tempo que a um funciona
1 64 1 Silvia Blcichmar

N otas de referência

J Lacan Ecrits Paris: Seuil, pág. 4 1 . (Escritos, México: Sigla XXI, vol. �l, pág. 4 1 .)
à: O. Mann�ni, "Y� lo sé, pera aun así", em La oira escena. Claves para to tmagtnano,
Buenos Aires : Amorrortu editores, 1973.
3 . Desmentida é a forma como a nova edição das ?bras co �ple�a:' de Amorrortu
t�
9
editores traduzo conceito Verteugnung. No vcx;abutariodapszcanaltse, de La che
e Pontalis, foi escolhido renegação para a lmg':a es12.anhola, corresponc e? e ao
francês déni, se bem Rosolato, por razões de conJugaçao verbal, escolheu desaveu
para o mesmo termo.

[N.T. Laplanchee Pontalis, no Vocabulário daPsicanátise, traduzem paraoportuguês

Verteugnung como recusa.]
4. Cf S Freud, OC, vol. XIX.
: T
[N T. raduzimos a citação, neste casoc da edi?ã? das ?bras completas de Amorrortu
editores, para respeitar a interpretaçao de S!lvm BleJChmar.]
5. Ibid. vol. XX, 1976, págs. 1 1 5- 1 1 6. Do lado da mãe
:
[N .T Substituímos o termo "repressão primitiva" por "recal camento on·g·man'o" para o

respeitar a terminologia utilizada pela autora.]

. o
6. D. w. Winnicott, o brincar e a realidade, Rio de Janeiro: Irnago Editora Ltda., pag.

7. �� D �
olto, Nojogo do desejo, Rio de Janeiro : Zahar Edi ores , pág . 22 2 i
J. Lacan, Las jormaciones de! inconsciente, B uenos Aires: N ueva V!s ón 1970 Dentro deste verdadeiro baquet*- feliz imagem que Laplanche encontrou
�:
· ·
.
J. Laplanche, A angústia, Problemáticas I, São Paulo: Martms Fontes, 1987. para denominar o campo analítico - a centrifugação do discurso produz um
10. Ibid. pág. 223.
. . precipitado, aonde todos os movimentos são impregnados de amor e de ódio.
11. J. Lacan, Le séminaire, libra II: Le moi dan� ta theone de Freud et dans la techm·que
de la psychanalyse, Paris: Seuil, 1978, pag. 66.
Neste sentido, a psicanálise é sempre psicanálise da criança que o adulto
12. �
J. Lacan, Ecrits op. cit. pág. 98. Deixaraos a pala'::a francesa truc 1em: nt po :q�e r:ao
.
_
sustentano divã. A transferência não é apenas um espaço onde são recriadas
nos parece que haja em espanhol urna expressao que reil1ta a r:queza pol!sseJmca imagos infantis; é também um lugar de surgimento de novas possibilidades.
.
presente no discurso de Lacan. Truchmenté ao mesmo tempo mterprete, pessoa que Nunca um vínculo ofereceu ao sujeito a oportunidade de "dizer tudo"; nunca
fala no lugar de outra expressando s�u pensamento; representante porta-palavra foi escutado mais atentamente por alguém. Paradoxo da psicanálise: lugar
(porteoparole}, intermediário, cf. o Pettt Robert. para ocupar-se de si mesmo e lugar aonde se descobre, ao mesmo tempo ,
13. Ibid., pág. 96.
14.
o o
J. Lacan. Lasjormaciones de! mconsctente, ?P· �tt.
o que esse si mesmo é outros. Um lugar aonde o tempo está estritamente
, . . pautado e, no entanto, um lugar aonde todos os tempos são recriados. Um
15. M. Khan, "La névrose infantile fausse orgarusation du self . em La psycluatne de
l'enjant, vol. 15, 1972. verdadeiro Aleph, usando a imagem borgiana, ponto do infmito onde s e
16. Ibid, pág. 33. organizam todos o s espaços, todos o s tempos.
Nesse lugar, entrecruzamento de todos os tempos e de todos o s
espaços, as mães de nossos pacientes chegam à consulta. Apesar de sua
distância protetora ou de sua simpatia temerosa inicial. a angústia sempre
sustenta o tom de um primeiro encontro. A acolhidabenevolente permite que

* [N.T. Baquet foi traduzido para a língua espanhola corno cubeta. Optaroos pela
tradução para o português corno cuba: "vasilha grande de madeira . . . cuba de nivel
constante." (Novo dicionário da língua portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1975) .]

165
166 I Silvia Bleichmar
o discurso se derrame no consultório e o diálogo analítico estabeleça a ponte
que possibilite restituir os nexos perdidos.
Nesse ponto, articulação da história da mãe enquanto filha e da
instauração de urna estrutura aonde se geram novas reservas libidinais,
Helena, de 27 anos, começa um tratamento psicanalítico falando-me das
dificuldades para criar sua primeira filha.
"Quando Margarida nasceu, meu marido trazia sua filha para casa nos
fms-de-sernana, o que eu não podia suportar. . . Já durante a gravidez senti
que meu marido ia-se convertendo em alguém hostil, sentia que queria
apoderar-se de meu corpo e de minha pessoa. . . Que se acreditava com direito
de decidir o momento e a situação do parto, onde e corno. Eu queria fazer
minha vontade, não permitir que ele participasse. Não entendo corno posso
ser tão contraditória, sinto que a menina é exclusivamente minha e, por
outro lado, sinto que Estevão é o único responsável por minha maternidade.
É engraçado: quando em crianças nos portávamos bem, meu pai dizia 'meus
filhos fizeram isto ou aquilo'; quando nos portávamos mal, dizia para minha
mãe 'teus filhos fizeram isto ou aquilo . . . ' É corno se Margarida me devolvesse
urna imagem tão completa, tão perfeita de mim mesma, que não suporto vê­
la má. . . Minha mãe sempre esteve ausente, embora fisicamente presente;
estava na casa, mas tocando piano ou lendo; sempre foi ambivalente,
inclusive com minha filha. Faz-lhe casaquinhos tecidos, mas estes sempre
ficam grandes ou pequenos, apenas põe dois botões embora necessitem
quatro, carrega-a no colo, mas tão mal que acabo por não entregar-lhe. Meu
pai é mais honesto, nega-se a ver a menina, mas abertamente; diz que 'sente
medo dos bebês porque estes podem se quebrar, porque são frágeis,
horrorizam-no . . .' Parece-me que está bem que ele diga assim, ao menos ê
sincero, mostra seus conflitos, não me faz sentir que o problema sou eu . . .
"Ouça, você não será destes analistas que não falam, não?" (corno se
temesse que a deixe só novamente, com suas coisas, corno a mãe, e esteja
apenas acornpanhando_-a fisicamente).
Três dias depois: "E corno se o tempo não existisse . . . quando me separo
de alguém esse alguém já não existe . . . Pensava em Margarida, ela não tem
noção do tempo, então não sabe se vou voltar . . . Creio que não existe alguém
quando esse alguém não está. Sexta-feira tive medo de que terminasse a
sessão. Ontem voltei e a vi chorando. . . quando levantei-a não me olhava. . .
estava com o olhar perdido. . . creio que quando a deixo é corno se eu
desaparecesse . . . Beijei-ae beijei-a . . . necessitava que me sentisse ali . . . Tinha
medo que me odiasse. Sempre senti minha mãe ausente. D esde que tenho
memória, porque não lembro minha mãe quando eu era pequena, não
consigo imaginá-la. Minha mãe não queria estar no México quando Marga­
ridanasceu. Não queria ternenhurna obrigação de estar comigo. Para minha
mãe é corno se Margarida ainda não existisse. Outro dia pensei que minha
mãe nunca desejou ter um filho . . . pensei que não devia pensar assim, em
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 167
bloco. É corno se sempre quisesse m e unir a meus irmãos para não me sentir
mal . . . mas não posso aprofundar. Ela foi assim comigo. . . " .
N a sessão seguinte : "Sinto que não tenho nada para dizer . . . Como se
a última vez quevirn tivesse sido há anos . . . sinto-me como muito distanciada
de você, como se você fosse qualquer pessoa". (É o mesmo que teme que
ocorra com a filha: me desconhece, me odeia, evitando sentir a dor d e s e
separar.) "Sim, às vezes me acontece que conheço alguém e que ocorre uma
boa relação e depois me retraio e me distancio totalmente ... Sinto como se
fosse a primeira vez que a v�jo" (como outra, corno alheia a si mesma) , "vejo­
a com muita indiferença ... E uma �aneira de adiantar-me, sempre sinto que
os outros podem me abandonar. E como se em uma relação, ao romper-se
urna certa distãncia que me convém, o outro se convertesse em alguém
perigoso. E você é urna mulher mais velha, as mulheres mais velhas são
perigosas . . . O que sinto com Margarida é que ela não vai me abandonar. O
problema é a aproximação demasiada . . . mas com você o medo é de que eu
seja abandonada ... Você é adulta e ela é menina, você é mais perigosa do que
ela. Meu outro analista me tratava por tu. Com você não é que não sinta
confiança, sinto algo estranho aqui - aponta o próprio peito -. Sempre m e
chamou atenção que meu pai sempre fala 'você' aos amigos, meu pai não
consegue falar 'tu'". (O tu aparece como uma forma de aproximação e d e
anulação das diferenças. Só há uma mãe próxima quando esta mãe é parte
dela, quando não há separação entre ela e o outro, separação temida que
remete ao pai corno símbolo de toda separação. A distãncia entre uma sessão
e outra é uma forma de ruptura da simbiose imaginária na qual está
instalada comigo. Eu sou perigosa quando sou alheia, diferente, adulta.)
Sessão seguinte: 'Tenho a sensação de ser um barril sem fundo,
impossível de ser preenchida. Estava pensando que Margarida já começa a
prescindir de mim e o seio já não é tão importante . . . Eu como compulsiva-
mente, quisera encontrar tranqüilidade na comida . . . Como se me ocorresse
igual ao que ocorre com Margarida, o seio já é só um tranqüilizante para ela,
já pode viver sem o seio, e eu não posso encontrar outra forma d e
gratificação . . . nada pode m e acalmar" (longo silêncio). "É como se tudo s e
referisse à minha relação com minha mãe . . . não sei se quando pequena m e
sentia como me sinto agora . . . cada vez mais sinto que Margarida tem menos
a ver com tudo isto . . . Estou tonta, como se me distanciasse, sinto necessi­
dade de girar e me distanciar . . . algo me atrai para lá, para a rua. Sinto-'m e
pior com o fato d e que Margarida não tenha nada a ver. Todo o problema é
meu . . . Ai! já passou. As coisas passam através de mim e permaneço vazia" .
(Minhas interpretações também não lhe servem, vêm de um seio estranho,
de uma m�e alheia.) "Agora a comida passa através de mim, mas não m e
preenche. E como se fo sse uma silhueta, sem nada dentro . . . e agora sinto­
me pequena, pequena, como se o divã fosse muito grande. Minhas mãos são
muito grandes, e meus braços pequenos e magros. Como se não estivesse
168 I Silvia Bleichmar
aqui. . . Mãos de minha mãe, com as mãos se agarra, mas imagino as mãos
como não ativas, quase mortas, sinto náuseas. Minha mãe nunca suportou
o contato afetivo, nos proibia tocar-lhe o rosto . . . Eu quisera ter sido como
Margarida, poder tocar. Teria querido ter uma mãe que se deixasse tocar e
que me tocasse. . . É que minha mãe era como um morto. . . tão fria... nada lhe
importava. Pensei que a odeio, e pensei que à noite ela tocava piano, na hora
em que nos deitávamos, e eu me emocionava tanto ao ouvi-la tocar e ainda
me emociona . . . Era uma forma de deixar-me acariciar pelas notas ... As notas
eram parte de suas mãos, e eu queria que me acariciassem. Mas eu preferia
que tocasse, era uma forma de recebê-la. Senão, não havia nada. Essas
notas eram como uma forma de receber suas caricias. (Soluçando.) E é
curioso, mas minha mãe já não toca piano. Desde que seus filhos se foram,
já não toca piano. Talvez já não o necessita ... nem nós também. É curioso
que não tenha recordações de minha mãe, mas sim lembro-atocando piano" .
(Por isso minhas interpretações não lhe servem, minhas palavras são como
as notas do piano, são o único contato que recebe de mim, mas ao mesmo
tempo é algo que separa, um ruído, uma música que preenche o vazio
deixan do-a em uma solidão cada vez maior.)
"Vejo-a muito parecida com minha mãe . . . Não sei, você não se parece
em nada . . . imagino que fuma e toma café e não toma café da manhã, que é
uma forma de não estar presente. . . e sinto também que tenho medo que esta
distãncia se perca, porque é como se eu sentisse no fundo que ou nos
separamos defmitivamente ou eu desapareço, então sinto a distãncia, mas
prefiro que exista sempre . . . ".
As mãos constituem o único contato corporal que Helena e eu temos.
Quando chega, quando se despede, nos dan1os a mão. As mãos da mãe, nos
primeiros tempos, trocaramsuas fraldas, sustentaram-na, e ela as recria em
seu próprio corpo; mãos desprendidas do outro, objetos com os quais se
tomou a si mesma como objeto auto-erótico. O tratamento se prolonga mais
seis meses. Helena deixou de ouvir minhas interpretações como uma música
que preenche o espaço - ao mesmo tempo separadora e unillcante - para
começar a usá-las como mãos aderidas aos seus próprios braços infantis.
Como a criança que leva a colher à boca com suas próprias mãos; para evitar
que chegue desde o outro, alheia, ela retoma minhas palavras como mãos
com as quais anula a existência do semelhante. Absorve-as em seu corpo,
evita o perigo e a ameaça de ficar submetida aos meus cuidados matemos.
Nesse processo pode, também, diminuir seu vazio, começar a desprender­
se dessa fllha pela qual, se não é plenamente amada, será plenamente
odiada.
Depois desses seis meses interrompe bruscamente a análise; seu
marido conseguiu trabalho em outra cidade e decidiram mudar-se para lá.
Antes disso conseguiu desmamar sua filha, de dez meses, e começar a
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 6 9
trabalhar, aceitando ser ajudada por uma babá no cuidado da menina. A
despedida é brusca; anuncia-me a decisão em uma sessão e vem na seguinte
para pagar- me e despedir-se.
Um ano e meio depois liga para retomar sua análise. Teme que eu não
a aceite. Sente que posso ser vingativa e me cobrar de seu abandono; está
novamente grávida e Margarida, de dois anos e alguns meses, tem um
desenvolvimento harmõnico, que Helena teme se frature com o nascimento
do novo fllho. Sabe que este é um problema dela, mas necessita minha ajuda
para poder ter e amar a nova criança. Diz: "O tratamento anterior me ajudou,
sei que as dillculdades são coisas que passam pela minha cabeça. Aceitaria
tratar-me novamente?" Começa uma segunda etapa na qual Helena parece
ter começado a sedimentar e a reparar, através de seus ganhos na relação
com Margarida, o vinculo falido com a mãe.
Um dia, depois de umas férias que marcaram uma separação mais
longa do que a habitual entre uma sessão e outra, traz um sonho. É uma
freira vestida de vermelho e preto. Não se pode saber se é freira ou prostituta.
"Para minha mãe - diz -, a sexualidade sempre foi pecado. Sempre disse
'teu pai é um grosseiro', e eu sempre pensei 'eu não sou filha desejada porque
minha mãe não desejou meu pai'. Ela não tolerava nada relativo ao sexo. Por
exemplo, quando sabia que havia uma cena erótica em um filme dizia: 'Isso
é uma porcaria, é como cagar em público' . . . Outro dia passei pela porta d e
sua casa enquanto você não estava. Perguntava-me o que estaria fazendo . . . "
(Há alguma relação entre essa porta fechada e o que me conta sobre
sexualidade e sua mãe?) "Bom, quando éramos pequenos eu não aguentava
a porta do quarto fechada. . . tinha medo que meu pai lhe fizesse algo
horrível. . . Talvez me incomodasse que depois de dizer que meu pai era um
grosseiro se encerrasse com ele. . . tivesse segredos. Eu não vou ter segredos
com Margarida. . . repare, e queria consultá-la, até pensei que esteja presente
no parto . . . eu desejei ter o parto em casa e pensei que é melhor que Margarida
o veja, é algo natural. . . ". Assim como fez sua mãe, Helena pretende usar uma
parte da verdade para enganar sua fllha. Ao tentar mostrar "a naturalidade
do parto", além de voltar a indiscriminar-se, confundindo a realidade de sua
fllha com sua própria realidade de mulher adulta, fazendo tábula rasa com
as diferenças - que, por sua vez, implicam diversas realidades - oculta o
fundamental: que se um filho é um produto "natural" em seu caráter
biológico é, ao mesmo tempo, produto de um desejo que está subjacente à
gravidez. Desta maneira, ela usa uma parte da "realidade" para ocultar
aquela outra realidade que é a que verdadeiramente a perturba.
Mas a captura a que fica submetida, esta verdadeira dialética do amo
e do escravo da qual se falou tanto nos últimos anos na psicanálise para
referir-se à relação mãe-filho, não é da ordem do intersubjetivo. Se s e
manifesta intersubjetivamente, se s e joga no plano d o vinculo com a filha,
170 I Silvia Bleichmar
é porque extrai sua força do caráterintra-subjetivo das imagos inconscientes
com as quais seus próprios obj etos libidinais originários se instauraram.
Helena não reproduz uma simbiose vivida com sua mãe em sua infância;
restitui, mediante um vinculo simbiótico, os aspectos falidos nas relações
originárias com aquela mãe distante com quem se deparou em sua própria
história.
Se exponho, em seu desgarramento, os fragmentos destas sessões
exiraídos do processo da cura de uma jovem que, quando me consultou
demandando uma análise, estava em vias de estabelecer uma simbiose
patológica com sua filha de quatro meses, é porque, freqüentemente, tanto
nos textos como nas informações clínicas de colegas, encontro o problema
ela simbiose patológica reduzido a uma explicação estrutural vazia de
conteúdos específicos, na qual o conceito de mãe fálica, definido pela
impossibilidade desta de aceder á castração, converte-se mais em um
adj etivo pejorativo e em uma coartada que encobre a impossibilidade do
analista de crianças de encontrar as determinações para essa estrutura, do
que em uma verdadeira categoria explicativa.
Falou-se muito, nestes anos, da função paterna como impossível:
remeteu -se - retomando a teoria freudiana da castração - o desejo da mãe
de ter um filho a seu desejo de um pênis, e a partir disso se re-situou
corretamente o caráter antinatural do vinculo materno. A categoria de "mãe
fálica" foi substituída no centro da psicanálise de crianças e dela derivam,
- às vezes com certo grau de cientificidade, às vezes simplesmente como
preconceito dos analistas, - os ganhos ou os fracassos da constituição
infantil.
No entanto, as fórmulas também operam nos analistas como modos de
controle da angústia de desconhecimento: tenta-se apreender o obj eto
através de um preenchimento de todas as aberturas que são deixadas em
aberto pela ignorância. "Simbiótica - diz-se - é a mãe que forcluiu o Nome
do Pai". "A simbiose tem origem - escutamos com freqüência - na
impossibilidade da mulher de triangularizar as relações do Édipo em função
de seu narcisismo". Desde outra perspectiva, mas não sem o mesmo vicio
de generalidade: "A mãe do simbiótico é uma mãe profundamente hostil;
tenta reativamente, mediante a superproteção, impedir que se cumpram
seus desejos de morte em relação ao filho". Fórmulas mais culpabilizantes
do que produtoras de um conhecimento que inaugure novas possibilidades
clínico-teóricas na situação simbiótica constituída. A mãe, o desejo de
morte, o narcisismo, são assim desgarrados de seu contexto histórico, de
suas imbricações no interior de um psiquismo conflitivo, marcado por
contradições, produzindo-se uma anulação das diferenças entre os diversos
modos de organização simbiótica nas formas de instauração do aparelho
psíquico infantil e no interior das relações específicas nas quais este se
constitui.
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 7 1
o conceito d e psicose simbiótica
Em 1930 -antes de ser estabelecida a classificação de autismo infantil
precoce, de Kanner -, Margaret Mahler começa a encontrar-se com casos
de transtornos emocionais severos em crianças cujo quadro clínico não
encaixa nas categorias nosológicas existentes. No entanto, diz Mahler, estas
crianças "não podiam ser forçadas à categoria de organicidade que tem
servido como depósito de lixo" . 1
"Dei-me conta gradualmente - diz - que o autismo era uma defesa ­
uma defesa psicótica - contrária a essa necessidade vital e básica do ser
humano pequeno nos seus primeiros meses de vida: a simbiose com uma
mãe ou com seu substituto materno. . . Foi assim como a teoria da origem
simbiótica da psicose infantil foi tomando forma em minha mente" . 2 Partindo
da necessária simbiose mãe-filho, dividiu a infância em dois períodos
possíveis para a estruturação da psicose: um primeiro período, correspon­
dente ao primeiro ano de vida, e um segundo período (de localização da
psicose simbiótica) , durante o qual a Appersoniernng da mãe (incorporação
das características de objetos externos ou pessoas através de um processo
de extensão do ego) , até agora narcisista, já não era suficiente para atuar
contra a predisposição opressora de angústia nestas crianças.
Mahler chegou, então , à seguinte conclusão: "Foi a separação emocio­
nal da simbiose com a mãe o que atuou como gatilho para desconectar-se
psicoticamente da realidade" . 3 A partir disso tentou precisar as diferenças
entre o autismo infantil precoce e a síndrome de psi cose simbiótica.
A história do desenvolvimento da criança predominantemente sim­
biótica mostra - diz - uma desigualdade de crescimento e uma vulne­
rabilidade surpreendente do ego ante qualquer frustração menor. Em sua
anamnese encontram-se evidências de reações extremas aos pequenos
fracassos que ocorrem normalmente no período do exercício das funções
egóicas parciais; por exemplo, essas crianças abandonam a locomoção
durante vários meses porque caíram ou se sentaram alguma vez porque
foram empurradas: a quebra aguda da realidade é introduzida, o que
prova ser essencialmente um pânico de separação e de aniquilamento ,
em resposta a expressões tão comuns como serem inscritos no jardim d a
infância, a hospitalização com separação fisica d a mãe ou o nascimento
de um irmão, acontecimentos que podem servir como gatilho.
Na psicose infantil simbiótica, a representação mental da mãe perma­
nece ou se funde regressivamente , não se separa do ser, participa na ilusão
de onipotência do paciente infantil. As crianças do grupo simbiótico
raramente mostram de forma evidente um transtorno de conduta durante
o primeiro ano de vida, com excessão, talvez, de alterações do sono. Seu
transtorno torna-se aparente em forma gradual ou subitamente nestas
intersecções do desenvolvimento da personalidade aonde a maturação d o
 Nas Origens do Sujeito Psíquico I 173
172 I Silvia B leichmar
tomo de suas tentativas contínuas para alcançar a homeostase. O efeito dos
ego usualmente promoveria a separação da mãe e permitiria à criança
cuidados da mãe para reduzir os incômodos da necessidade-fome não pode
dominar um segmento sempre crescente da realidade, independentemente
serisolado, nem pode ser diferenciado pelo pequeno infante de suas próprias
dela.
tentativas de redução de tensão , tais como urinar, defecar, tossir, espirrar,
Enquanto que a criança autista nunca investiu libidinalmente a mãe
cuspir, regurgitar, vomitar e todas as formas através das quais um infante
e seus cuidados, a criança psicótica simbiótica está fixada a ela ou regride
tenta se livrar de uma tensão desagradável. O efeito destes fenômenos
a essa etapa da relação na qual a representação mental da mãe está fundida
expulsivos, assim como a gratificação alcançada pelos cuidados de sua mãe,
com a do ser.
ajudam o infante, com o tempo, a diferenciar entre uma qualidade d e
Mahler parte da formulação da Ego Psychology que considera relação
experiência 'prazerosa' e 'boa' e uma qualidade 'dolorosa' e 'má"' . 4
de obj eto o reconhecimento, por parte do suj eito, do obj eto externo como
Não insistirei neste momento a respeito das diferenças , já propostas,
diferente do ego e que implica uma superação do narcisismo primário
entre uma concepção do agente matemo como redutor de tensões e a
(equiparado ao anobjetal) . Se bem já nos detivemos nisto em capítulos
vertente em que nos colocamos ao longo de nossa investigação : mãe como
anteriores, é necessário assinalar que a fusão com a representação materna
fica colocada do lado do pré-objetal (para Margaret Mahler objetal é a relação
t!h
agente excitante, pulsante da sexualidade no f o. Mãe - q�e em um
segundo tempo da organização do psiquismo - da ao filho uma unagem d e
de amor com o objeto diferenciado do ego; se esta relação fracassa é anobjetal
si constitutiva do ego, sendo que esta imagem é defmida em função d o amor
ou pré-objetal).
a si mesmo, do narcisismo e da identificação. A redução do vínculo mãe-filho
No entanto, e apesar das diferenças teóricas que nos veremos obrigados
ao plano d a autoconservação é concordante com uma concepção do ego
a desenvolver, é de sublinhar o cuidado com que suas observações clinicas
organismo, ego percepção-consciência, regulador de necessidades: "Através
foram realizadas, permitindo o enriquecimento de nosso olhar sobre os
da faculdade perceptiva inata e autônoma do ego primitivo (Hartmann) ,
complexos fenômenos das psicoses infantis , ao mesmo tempo que nos
ocorrem traços de depósito de memória de duas qualidades primordiais dos
proporcionando uma nova ferramenta de análise ao separar esta entidade,
estímulos. Seguindo a hipótese, esses são investidos com uma energia
que descobre em sua vasta experiência, do conjunto da sintomatologia
impulsiva primordial indiferenciada ( . . . ) . Do segundo mês em diante, o
psicótica dispersa, para a qual a categoria de autismo converte-se em muitos
conhecimento confuso do objeto que satisfaz marca o, princípio da fase da
casos, de tão geral, em inoperante.
simbiose normal, na qual o infante se comporta e funciona como se ele e sua
Transtornos da linguagem tais como aqueles descritos em capítulos
mãe fossem um sistema onipotente: uma unidade dual dentro de um limite
anteriores, aonde a concordância verbal ou o manejo do pronome indicam
comum".5
que os limites do ego são confusos, englobando a um semelhante em um
Dever-se-á passar, então, segundo Mahler, porum processo maturativo,
plural inexplicável ou apelando a um infmitivo que dá conta da não
do plano da função ao plano da representação, a partir de engramas d e
constituição de um sujeito de enunciado; transtornos na instauração do
memória inatos presentes n o ego primitivo, e é neste ponto onde o
principio de realidade que nos enfrentam com uma falha no recalcamento
descobrimento desta autora ficará limitado ao que é puramente descritivo ,
originário; problemas na numeração ou no exercício das matemáticas em
na medida em que as forças que defmem os movimentos desta passagem são
geral, que indicam através da não instauração do zero a impossibilidade de
endógenas e, a partir disso, o êxito ou o fracasso estarão constitucionalmen­
organizar o um, do qual o ego é a primeira representação, são questões que
te condicionados.
Mahler aborda em sua tentativa de por em jogo a categoria de simbiose
Um processo maturativo regido por leis do desenvolvimento apenas dá
normal ou patológica, fazendo-o, no entanto, desde uma perspectiva
lugar a uma descrição do movimento natural que o constitui. Não há
diferente da nossa.
hipótese explicativa em jogo, as explicações tomam-se tautológicas. Por
O termo simbiose é tomado emprestado da biologia, onde é empregado
exemplo: "Na psicose infantil, a relação simbiótica, ou está gravemente
como referência à associação funcional de dois organismos para sua
distorcida ou está ausente; isto é o que representa, segundo meu ponto de
vantagem mútua. A partir disso, apesar do matiz que a autora tentou
vista, o transtorno central na psicose adulta, assim como na psicose infantil
introduzir, situando uma desigualdade entre os termos - para a criança a
e na psicose da adolescência. Portanto, o transtorno central na psicose
dependência é absoluta, para a mãe é relativa -, amb os ficam situados no
infantil é uma deficiência ou uma falha na utilização intrapsíquica que a
mesmo plano: o plano da autoconservação, e definidos pelas funções vitais
criança faz da companheira materna, durante a fase simbiótica e sua
que ligam a criança à sua mãe. Diz: "A vigília do recém-nascido centra-se em
174 I Silvia Bleichmar
conseqüente falta de habilidade para internalizar a representação do objeto
materno para sua polarização (. . . ) a individuação defeituosa ou ausente
encontra-se no centro da psicose infantil".6
Dizíamos que a causalidade torna-se tautológica, já que é impossível
explicar, sem apelar à hipótese freudiana da castração feminina e da
constituição das equivalências fezes- pênis-presente-dinheiro-criança, que
é o que leva a mãe a estabelecer esta "dependência", que Mahler assinala,
em relação à criança. Se nos mantivermos nos limites da autoconservação,
nos limites do corpo biológico, se reduzimos a função materna a agente
matemo, para usar a terminologia proposta por ela, é impossível capturar os
deslocamentos simbólicos que este vinculo sustenta ao deixar fora aquilo
que o determina: seu caráter sexual, especificamente humano.
O segundo problema teórico com que nos enfrentamos ao ler os textos
de Mahler se relaciona com sua concepção de narcisismo. Partindo de um
sujeito mõnada, fechado em si mesmo, impossibilitado de conhecer o agente
que satisfaz, o narcisismo primário é considerado como uma etapa onipo­
tente do ser, que regeria as primeiras semanas de vida. O conceito de
narcisismo fica, então, equiparado ao conceito de autismo normal (tentativa
que, como outros autores fazem freqüentemente - Tustin, por exemplo --'-; 7
pretende recuperar a classificação psiquiátrica para marcar sua vigência
não patológica nas origens da vida) . Na medida em que o narcisismo fica
definído pelo contato ou não contato com a realidade, é impossível situar a
estrutura metapsicológica que o sustenta.
Em seu seminário sobre A castração, Laplanche diz: "Evidentemente,
não podemos defmi-lo (o narcisismo), de um modo tão geral, como uma
relação de si consigo mesmo. Mas, de fato, na teoria psicanalítica, encontra­
mos duas interpretações possíveis (as quais, aliás, não são absolutamente
contraditórias, salvo se admitirmos uma e outra ao pé da letra, sem
interpretações) . Por um lado, a relação narcísica é concebida como uma
espécie de estado anobjetal, monádico, sem mediação, um sujeito fechado
em si mesmo e sem relação com o mundo exterior; estado evidentemente
hipotético, se supusermos que a criança começou, ao nascer, por encontrar­
se nesse estado, visto que, por defmição, nada poderíamos saber. Por outro
lado, na outra interpretação, mais próxima da própria origem da noção, o
narcisismo é uma relação de si mesmo consigo mesmo por intermédio de
uma certa imagem de si: é isso precisamente que indica o mito de Narciso
olhando-se na água. O narcisismo, se partimos da idéia de uma relação com
a imagem de si, implica além disso, uma noção de totalização ( . . . ). Remete
ao que se designa como constituição do ego e que é o fruto de experiências
complexas. Lacf.I: apresentou aqui a noção de "fase do espelho", que é
exemplar na m.edida em que a relação se estabelece verdadeiramente com
a imagem do outro e na medida, também, em que acelera e propulsiona a
tendência para uma unificação do individuo em sua própria imagem. Mas
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 175
existem muitas outras experiências que levam a essa totalização, em
particular todas as experiências de investimento do limite corporal". s
Atualmente, em muitos autores, esta oposição sujeito - objeto onde o
ego fica submerso substitui a velha concepção da alma por aquela de
organismo, mas não deixa, por isso, de estar na mesma perspectiva. Tanto
na concepção de um ego (cognitivo) enfrentado a um objeto (de conhecimen­
to), como de um ego (organismo) enfrentado a um meio (que satisfaz
necessidades) , o que é escamoteado é a libido, e a sexualidade fica fora do
campo de constituição do sujeito.
Na teoria em que Mahler se sustenta, o narcisismo é então uma espécie
de circuito fechado, de mônada auto-suficiente, na qual não se pode falar d e
obj eto enquanto que o sujeito aparece circunscrito a s i mesmo, desconhe­
cendo o objeto que satisfaz a necessidade.
. �ejamos um dos maiores problemas que isto nos propõe. Em psicaná-
lise nao se pode defmir uma entidade psicopatológica senão desde o plano
�o conflito: c � nflito �ulsional, conflito tópico; desde qualquer outra perspec­
tiva, . o confhto sera o tema central em tomo do qual se joga tanto 0
funcwnamento normal como o patológico do sujeito psíquico.
�
_A lo � ização ?os pólos ou dos termos do conflito determina a aproxi­
_
maçao teonco-chrnca com a qual a situação será defmida. Em que termos
Mahler propõe a compreensão da entidade que descreve?: "Nas crianças
psicóticas a falha das funções básicas do ego - de todas ou de muitas delas
- pode ser atribuída a qualquer das seguintes condições: 1) a inabilidade
d? e�� �e criar a imagem intrapsíquica relativamente complexa do obj eto
sunbwtico humano; 2) a perda de uma representação mental precária do
objeto simbiótico que, devido ao fato de estar excessivamente unida ã
satisfação da necessidade na constância de objeto, não pode, portanto ,
enfrentar-se com as demandas da fase de separação-individuação. 9
Ao situar a função do semelhante como agente que satisfaz a necessi­
dade e ao ego como organismo vital, o conflito fica, necessariamente, entre
o sujeito da autoconservação e a realidade. Por isso, ao longo de toda sua
obra, a sexualidade fica excluída. O fato de que a Ego Psychology tenha
evid enciado a função sintetizadora do ego não é, desde esta perspectiva,
_
senao o resultado da subsunção do campo da sexualidade no campo da
autoconservação (no que logo passou-se a chamar função adaptativa do
ego), assim como nos termos nos quais o conflito será proposto . Entre
autoconservação e realidade, o pseudo conflito joga o sujeito cindido para
fora do campo analítico.
A partir disso a psicose só pode ser explicada como um fracasso do
processo maturD:tivo normal e não como uma vicissitude particular do sujeito
na rede de relaçoes que o constituem, rede cujas determinações pudessem,
na verdade, ser cercadas . Assim, Mahler conclui: "Minhas próprias obser­
vações não apoiaram as teorias que implicavam exclusivamente, ou mesmo ,
176 I Silvia Bleichmar
principalmente a mãe esquizofrenizante". Creio que é mais útil enfocar este
problema em termos das séries complementárias (Ergiinzungsreihe): a. se
durante afase autista ou simbióticamais vulnerável ocorre um traumatismo
muito severo acumulado e cambaleante em um infante constitucionalmente
bastante robusto, pode se produzir a psicose e no mundo externo o objeto
humano perde sua capacidade catalizadora de sustentação e polarizante
para a evolução intrapsíquica do infante e seu 'rompimento da casca'; b. por
outro lado, em infantes hipersensíveis ou vulneráveis, a atuação maternal
normal não é suficiente para atuar contra o defeito inato da utilização
polarizante de apoio e catalítica do objeto amoroso humano ou da agência
maternal no mundo externo para uma evolução e diferenciação intrapsíqui­
ca". 10
Relações entre o externo-exterior (materno) e o externo-i nterno
(do inconsciente infa ntil)
Em 1905, nos TI-ês ensaios, Freud estabeleceu as primeiras relações
entre a vida sexual infantil e a pulsão de saber, propondo que não sãó os
interesses teóricos, senão os práticos, os que desencadeiam a atividade
investigadora na criança. Para suas condições de existência, a ameaça que
a chegada de um irmão real ou fantasiada significa, constitui o primeiro
problema teórico que a preocupa. Apergunta: de onde vêm as crianças?, que
remete à diferença dos sexos e, em conseqüência, à premissa universal do
pênis, instala-se nesse espaço que inaugura uma distânciaem relação à mãe
e que constitui a primeira tentativa de abertura de um lugar para cada um
dos membros da díade.
Esta relação entre a inquietante estranheza que remete ao corpo da mãe
como desconhecido e a instalação da curiosidade científica foi desenvolvida
por Melanie Klein em diversos trabalhos; os mais importantes deles - e aos
quais fizemos referência em outros capítulos - são "A importância da
formação de símbolos no desenvolvimento do ego" e "Uma contribuição à
teoria da inibição intelectual". Neste último, referindo-se às inibições de
aprendizagem expostas através do material clinico de um menino chamado
John, dizia: "Isto parece concordar com o que se pode ver confirmado na
análise de todo homem, ou seja, que seu temor ao corpo da mulher, como
lugar cheio de destruição, pode ser uma das causas principais de perturba­
ção da potência. Mas esta angústia também é um fator básico de inibição do
impulso epistemológico, já que o interior do corpo da mãe é o primeiro objeto
desse impulso; na fantasia, é explorado e investigado, e também atacado
com todo o armamento sádico, incluindo o pênis como uma arma perigosa
e ofensiva"; e, em continuação, Melanie Klein acrescenta: "J. Strachey
mostrou que a leitura tem o significado inconsciente de tomar conhecimento
Nas Origens do S ujeito Psíquico I 177
do corpo da mãe e que o temor d e roubá-la é fator importante para as
inibições da leitura". 11
Um saber que só se adquire através da intromissão no corpo matemo
tem como conseqüência a angústia de castração - no menino - e o temor
de ataque ao ventre fértil, como retaliação, na menina. Em ambos os casos,
a procriação - e, por conseguinte, a diferença de sexos - se obtém
arrancando do interior da mãe esse segredo, que é sua chave - ou a do
nascimento das crianças, se usamos a linguagem infantil -.
Por isso Melanie Klein estabelece uma relação estreita entre o sadismo
-patrimônio desta etapa do desenvolvimento infantil - e a constituição da
curiosidade intelectual, curiosidade que se desenvolve em meio a uma luta
despedaçadora para apropriar-se dos conteúdos valiosos que o corpo da mãe
possui em seu interior.
Mas o paradoxo que nos é oferecido é que essa luta apenas pode
produzir-se pela aquisição daquela posição fantasiada, em momentos em
que se sente que esse outro já não é parte de si mesmo. A partir disso, o
sadismo que impregna esta batalha por apoderar-se dos conteúdos mater­
nos não pode ser, em nossa opinião, senão o produto de uma separação que
gera um espaço exterior que marca o limite de todas as possessões possíveis.
Deste modo, a instauração do ego instância, constitutiva dos limites do
externo-exterior e do externo- interno, é um movimento simultâneo e, ao
mesmo tempo, efeito desta diferenciação do semelhante.
Uma situação que tive a oportunidade de presenciar no curso da cura
de uma pequena paciente pode servir de exemplo para abordar este ponto:
Regina, de quatro anos, toma um carrinho em uma sessão de análise.
Envolve-o em um cobertor e o embala enquanto canta. Pergunto-lhe: "É teu
bebê, Regina?". "Sim - responde - e vou mostrá-lo à minha mãe". Sai na
sala de espera e volta imediatamente, dizendo: "Desisti, minha mãe está
lendo". Interpreto: "Tens medo de mostrar o bebê à tua mãe porque temes
que ela embrabeça contigo como tu o fazes quando pensas que ela pode ter
bebezinhos na barriga". Responde, com um sorriso malicioso: "Ai, Silvia, que
boba que tu és, não te deste conta que era um carrinho?"
Da mesma forma que Helena engana suafllha com a verdade, ao tentar
apresentar-lhe o parto como natural quando, através da situação à qual
pretende expô-la, a violência pretendidamente eludida retoma, Regina
utiliza a realidade para encobrir outra realidade, aquela da rivalidade com
sua mãe, de seu desejo de ter um filho que, estando atravessado pelo desej o
de pênis d o pai - possessão imaginária da mãe - a submete a uma luta
mortal pela apropriação dos conteúdos valiosos em disputa. Esta realidade
- verdadeira - com a qual se encobre outra verdade, corresponde a outra
ordem de realidade. Arealidade (Wirklichkeit)põe-se a serviço do ocultamento
da realidade psíquica, da escamoteação do desejo inconsciente, que está
sempre presente no jogo intersubjetivo com o qual se pretende anular a
 178 I Silvia Bleichmar
diferençageneracional, que implica posições no interior da estrutura edípica
e formas de circulação dos objetos de desejo.
No entanto , o segredo da mãe a respeito de seu próprio corpo permite
que Regina possua seus próprios segredos, que desdobre a realidade
jogando com a possibilidade que é proposta pela abertura de diversos
espaços.
Ao enunciar sua prúneira mentira na sessão, Regina me mostra como "a
má fé" não é senão um efeito do reconhecimento da verdade, posterior à
interpretação que revela um segredo que até esse momento tinha estado
subtraído dela mesma, tinha sido da ordem do inconsciente.
Victor Tausk, em seu trabalho "Acerca de la génesis del aparato de
influir en el curso de la esquizofrenia" ( 1 9 19) 12, acentuava este papel da
primeira mentira como um momento constitutivo dos limites do ego.
Partindo do sintoma observado em pacientes psicóticos, atribuído a uma
perda dos limites do ego, pela qual esses pacientes se queixam de que todo
mundo conhece seus pensamentos, que estes pensamentos não se encon­
tram seguros em sua cabeça, senão difundidos sem limites no mundo, de
modo que se desenvolvem simultaneamente em todas as cabeças, dizia: "O
paciente perdeu a consciência de ser uma entidade psíquica, um ego que
possui seus próprios limites" . 13 A que etapa do desenvolvimento infantil
Tausk remetiaesta regressão que observava em pacientes psicóticos adultos
e cujo conhecimento permitiu-lhe proporcionar uma extensa informação a
respeito do "aparelho de influência"? A essa etapa na qual a identificação não
se diferencia da escolha de objeto, etapa do narcisismo que - descrita por
Freud no capítulo III de O ego e o id - corresponde à identificação primária.
Se introduzimos a teoria da identificação especular vemos que essa identi­
ficação primária anterior à constituição dos limites do ego e na qual os
pensamentos da criança e do adulto estão fundidos - etapa que retoma na
paranóia tanto através do roubo de pensamento , como do delírio de
influência -, esta primeira etapa narcisista, é anterior à instauração da
Spaltung que separa o sujeito, tanto do objeto, como de seus próprios desejos
inconscientes . Neste estágio, diz Tausk, "os pais sabem tudo, até o mais
secreto que possa existir, e sabem até que a criança consegue dar sua
primeira mentira". "A luta pelo direito de possuir segredos sem que os pais
o saibam é um dos mais poderosos fatores da formação do ego, da
delimitação e da realização de uma vontade própria" . 14
Estes parágrafos me fizeram refletir, em diversas ocasiões, a respeito
das relações entre o direito ao segredo e a constituição do inconsciente. Há
alguns anos fui consultada por uma senhora divorciada que veio consultar­
me com o obj etivo de pedir-me um diagnóstico de sua filha de treze anos.
Segundo seu relato , esta não apresentava : nenhum sintoma, era uma
menina agradável e sadia que possuía um bom desenvolvimento intelectual,
· sociável, aproveitava sua vida cotidiana e não parecia ter problemas
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 179
manifestos d e nenhum tipo. No inicio da entrevista a mãe disse: "Na
realidade, ela diz que sou eu quem deve vir- e acrescentou rindo -, diz que
se me interessa tanto uma consulta que a faça para mim". Na verdade, esta
não é uma situação atípica em consultas de crianças; os pais, em muitas
ocasiões, pedem entrevistas sem ter muito claro qual é o sentido delas, e se
eu me sentisse obrigada a fazer uso da ortodoxia psicanalítica não teria
dúvidas, neste caso, de que esta mulher sentia, na realidade, em uma parte
de si mesma, que esta frase que dizia de início era correta, e que mínha
função a respeito era, como ocorre com qualquer Witz que o sujeito formule
no interior do campo analítico, tender a que seja assumido em sua condição
de verdade recalcada.
No entanto, talvez no próprio pretexto da consulta estivesse, neste caso,
a resposta que me possibilitaria entender o que realmente ocorria. Permiti
que o discurso se ampliasse nessa direção: "Você sabe?, mínha filha e eu ­
em função do divórcio e porque temos vivido muito sós - sempre temos sido
muito unidas. Ela sempre me contou tudo e eu contei-lhe tudo a meu
respeito . Não temos segredos, sempre nos dissemos a verdade, toda a
verdade. . . e nos últimos temp os sinto que há algo que me escapa, como se
ela tivesse se tomado mais reservada . . . não me conta tantas coisas ; às vezes,
quando tento saber o que fez no sábado . . . me dá uma resposta geral: 'Fui ao
cinema com meus amigos'. 'Com quais?', pergunto. 'Com companheiras da
escola .. . ' 'O que viram?' 'Umfilme deTrinity .. .'. 'Gostaste?' 'Ai, mãe, tuqueres
sempre saber tudo!' Veja, doutora, tenho medo de, que nos estejamos
separando. Venho por isso . . . quero que você a veja, a faça falar e me conte
o que ocorre".
Nesta mãe havia uma vontade de saber, equiparável a uma possessão
imaginária, a uma captura do outro que não deixasse aberto nenhum espaço
de intimidade possível. Diante de sua filha adolescente, hermética e em u m
momento de iniciação, sentia que algo lhe escapava e vinha- submersa n a
angústia - buscar mais uma cúmplice do que uma analista, alguém que
pudesse extrair, nestas circunstãncias, "todos os segredos", para restituir­
lhe seu poder sobre esta filha em vias de independizar-se. Colocando-me na
posição das antigas alcoviteiras da novela ardilosa, esta mulher apelava a
outra mulher para que lhe permitisse apoderar-se do objeto amado.
Diferente de outros pais que demandavam "que a criança não sej a
agressiva", "que deixe d e tomar-nos a vida impossível" o u que "não esteja tão
enciumado em relação ao irmão" - o que, definitivamente, não representa
senão uma tentativa de estabelecer um contrato social básico em momentos
em que a estabilidade familiar está em perigo , para o qual se pede ao analista
que retire o sintoma que trava a convivência -, esta mãe, mais ambiciosa,
demandava que eu me pusesse a serviço de um desej o insaciável de saber,
saber que aparecia como a possessão imaginária do todo.
180 I Silvia Bleichmar
Em La pie[ de Zapa, através do monólogo do antiquário que inaugura a
obra, Balzac realiza uma apologia do saber nestes termos: "Vou revelar-lhe,
em poucas palavras, um grande mistério da vida humana. O homem se
consome através de dois atos cumpridos instintivamente que esgotam as
fontes de sua existência. Dois verbos expressam todas as formas que estas
duas causas de morte tomam: quererepoder. Entre ambos os termos da ação
humana, há uma fórmula da qual os sábios se apoderam e à qual devo a
felicidade de minha longevidade. O querer nos abrasa e o podemos destrói;
mas o sàber deixa nossa débil organização em permanente estado de
calma . . . Como preferir todos os desastres de vossas vontades enganosas, à
sublime faculdade de fazer comparecer em si mesmo o universo, ao imenso
prazer de se movimentar sem estar amarrado pelos laços do tempo nem pelas
travas do espaço, ao prazer de tudo abraçar, de tudo ver, de inclinar-se sobre
a borda do mundo para interrogar as outras esferas, para escutar a Deus!".
O saber aparece como aquilo que é capaz de atenuar todos os desejos,
de diminuir todos os anseios, de apoderar-se de todas as coisas. Não está,
de tal modo, na medula de toda simbiose? Nela não se trata apenas de
apropriar-se do corpo, não é apenas controle da materialidade do outro
através dos orificios do corpo passivizado. A simbiose tende a um absoluto:
se o corpo é controlado, em realidade o é através do fato de que os
pensamentos não se liberem. A garantia absoluta da simbiose está na
apropriação "da alma", em seu assassinato, como o doutor Schreber o
manifestava maravilhosamente na educação de seu filho, o futuro presiden­
te.
Pode-se sustentar a categoria de psicose simbiótica - e recuperar as
cuidadosas observações clínicas de Margaret Mahler- se a desgarramos do
contexto teórico no qual esta autora a constrói? Em minha opinião, não só
é possível efetuar esta operação, senão que inclusive aquela categoria pode
ser enriquecida e ser ampliada em novas perspectivas. O material de Helena,
antes exposto, mostra que o reconhecimento das condições simbióticas nas
quais a criança se constitui em reLação com o inconsciente matemo abre o
caminho para a prevenção da psicose simbiótica, evitando que esta se
instaure a partir da detecção das condições que a geram desde a própria mãe.
Quer dizer: o reconhecimento dos traços que, desde a estrutura, podem
precipitar uma entidade psicopatológica na criança permite não apenas o
diagnóstico precoce, senão inclusive a prevenção.
Optamos pela vertente teórica que considera o ego um objeto, como
enuncia Lacan no Seminário II: 'Toda a dialética que lhes dei a titulo de
exemplo sob o nome de estágio do espeUw está fundada sobre a relação entre,
por um lado, um certo nível de tendências, experimentadas - digamos por
agora, em determinado momento da vida - como desconectadas, discor­
dantes, fragmentadas - e do qualsempre resta algo -, e por outro lado, uma
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 8 1
unidade com a qual se confunde e s e iguala. Esta unidade é aquilo no qual
o sujeito se conhece pela primeira vez como unidade, mas como unidade
alienada, virtual. Ela não participa das características de inércia do
fenõmeno consciente sob sua forma primitiva, tem, pelo contrário, uma
relação vital, ou contra-vital, com o sujeito" . 15 Objeto contra-vital, ou contra­
investimento, efeito do amor totalizante da mãe quando a castração a
constituiu enquanto tal, quer dizer, enquanto mulher na qual a sexualidade
feminina se constitui nas equivalências pênis-criança.
Se o ego é um objeto capaz de ser amado - investido - por uma parte
cindida do sujeito, o narcisismo - apelando à teoria desenvolvida por Freud
desde "InlrodU{;ão do narcisismo" até Luto e melancoLia e O ego e o id-, esse
amor se dará sobre o ego, constituído por identificação primária, quer dizer,
por uma relação imediata com o outro, em que a carga e a identificação não
se diferenciam.
Tomando o que já desenvolvemos em outro capítulo em relação à
diferença entre amor de objeto - libido objetai - e objeto da pulsão, é
necessário introduzir uma nova diferenciação. A escolha narcisista de objeto
opõe-se à escolha de objeto por apoio.
Da mesma maneira que na autoconservação a relação de sexualidade
será marcada não por uma identidade com o outro, senão por uma espécie
de complementariedade: "Pelo contrário, na escolha de objeto narcisista, o
escolhido não é de nenhum modo o complementário, senão o idêntico a si
mesmo, ou em todo caso é escolhido por algum elemento que lhe é idêntico. 16
As formas de amor narcisista que Freud menciona nos permitirão
aproximar-nos aos fragmentos de Helena, anteriormente expostos, para ver
de que modo ocorre a relação com sua filha.
" . . . é como se Margarida me devolvesse uma imagem tão completa, tão
perfeita de mim mesma, que não suporto vê-la má". Através da imagem que
sua filha lhe reflete, Helena se vê completa, perfeita; de tal modo ama, em
Margarida, uma imagem de si, o que ela mesma é (primeiro tipo de escolha
narcisista que Freud propõe). Este primeiro tipo, que implica anão busca de
um objeto externo a si mesmo, não impede que Margarida seja amada por
sua mãe. Mas a frase remete ao caráter narcisista deste amor, na medida em
que é através de Margarida que Helena pode amar-se a si mesma, refletida
nela.
Se seguimos o curso de suas associações,encontramos: "Minha mãe
sempre esteve ausente, embora fisicamente presente. . . sempre foi
ambivalente, inclusive com minha filha. Faz-lhe casaquinhos tecidos que
sempre lhe ficam grandes ou pequenos , põe apenas dois botões quando são
necessários quatro, carrega-a em seus braços, mas mal. . . ". Margarida
permite a Helena, novamente, construir uma imagem de si mesma, mas por
contraposição. Ela é uma "boa mãe", está posta no lugar do ideal do ego; sua
 1 8 2 I Silvia Bleichmar
· mãe "má", no negativo deste ideal. Deste modo garante um lugar na
estrutura onde apenas há duas possibilidades: o totalmente bom e o
plenamente mau.
"Ontem voltei e a vi chorando... quando levantei-a não me olhava...
estava com o olhar perdido... creio que é como se eu desaparecesse quando
a deixo... beijei-a e beijei-a ... necessitava que me sentisse ali... Tinha medo
de que me odiasse. Sempre senti minha mãe ausente... ". O segundo tipo de
escolha narcisista, diz Freud, é amar o que fomos. O terceiro tipo, o que se
gostaria de ser.
No discurso de Helena aparece, através da anulação do tempo, amar
o que gostaria d e ter sido, para evitar o que foi. Ela foi uma menina carente,
com uma mãe ausente, e ama em sua filha, não o que quereria ser, senão
aquilo que teria querido ser. O narcisismo, neste caso, restitui o aspecto
falido de sua história através de um movimento pelo qual amando uma
pessoa que - apenas desde o observador - foi uma parte de si mesma
sendo, no presente, ainda parte de si.
A sessão começou com a frase: "É como se o tempo não existisse".
Talvez esse seja um elemento a reconsiderar nos modelos que Freud oferece
para o narcisismo. Ama-se o que se quisera ser, ama-se o que se foi, ama­
se o que se gostaria de ter sido, mas tudo isso se produz no presente. Ama­
se o que se é a partir do fato de que a imagem do outro, ao refletir-se, anula
todos os tempos, fecha todos os espaços. No momento da escolha narcisista
de objeto os tempos se unem em um presente permanente e, como ocorre nas
formações do inconsciente, a atemporalidade constitui a presentificação
constante do desejo.
Daí ã anulação dos espaços que instauram a diversidade dos sujeitos,
o mov imento se desliza sem transições. O ego de Helena engloba Margarida,
não lhe oferece resquícios através dos quais ela possa estabelecer um espaço
secreto, nem algo interno alheio à mãe. Para que se constitua a diferenciação
no interior do próprio aparelho, é necessário que, simultaneamente, se
fundem os espaços externo-exterior e interno-externo. A separação do outro
é a condição, também, da separação desse si mesmo que se toma estranho
e ao qual o recalcamento secund ário consolida posteriormente. A inquietan­
te estranheza, a que Freud aludia em "O sinistro", é o familiar que se tomou
estranho, aquilo que desgarrado do sujeito volta a importuná-lo constante­
mente de modo ameaçador.
Helena teme que Margarida a odeie se não está presente. No entanto,
ela me odeia quando se separa de mim. "É como se em uma relação, ao
romper-se uma certa distância que me convém, o outro se convertesse em
alguém perigoso. E você é uma mulher mais velha, as mulheres mais velhas
são perigosas... ".
A hostilidade se desfaz quando o objeto se distancia. O objeto perdido
sempre é um objeto mau, um objeto persecutório, odiado por sua ausência.
Nas Origens do S ujeito Psíquico I 1 8 3
Por isso Helena deve estar em uma fusão simbiótica constante com sua filha:
se a deixa, corre o risco de ser odiada como ela odiou sua mãe pelo abandono.
Não deve permitir nenhuma fissura, nenhum recorte que possibilite a
constituição de dois sujeitos diferentes. No momento em que isso ocorra a
angústia vai adquirir características mortíferas, como o confirma o desen­
volvimento posterior do tratamento, que faz surgir a despersonalização na
sessão.
Sua tentativa de anular toda separação, toda distância, que reaparece
de maneira simbólica quando se introduz um terceiro referente (cena
originária que marca a possibilidade permanente de satisfazer todo o ansei o ,
de fechar todos o s espaços, de compensar todas a s frustrações), é resultado
de seu desejo infantil insatisfeito e é uma defesa que impede que o ódio em
relação à sua própria mãe retome na filha, destruindo a imagem totalizante
que trabalhosamente tenta conservar. Narcisismo que não tem por
contrapartida a castração genital imaginária, senão a desintegração que põe
em risco permanente a imago de corpo despedaçado, o que mostra que, para
Helena, Margarida é o articulador que a sustenta e a preenche inteiramente,
deixando-a em risco de vazio e de fratura constante quando o desprendimen­
to se opere. Sustentada sua própria imagem através dessa filha-pênis, a
separação que a priva se converte em um buraco que abarca todo o seu ser
e pelo qual corre o perigo de esvaziar-se.
Nesse processo de consolidação que a análise busca, mediante o qual
pode desgarrar de sua própria história os elementos que a amarram em sua
impossibilidade de sentir um corpo matemo suave e nutrido, Helena
também poderá receber minhas interpretações (estranhas até pouco tempo,
música separadora) como articuladores que a constituem nes s e
entrecruzamento d e fios queainda lhê impedem a instauração de um espaço
externo não hostil que possibilita, por sua vez, a instauração do externo­
interno em sua própria filha.
Notas d e referência
1 . M. Mahler, Simbiosis humana; las vicisitudes de la individuación, México: Joaquin
Mortiz, 1 9 72 , pág. 1 7.
2. Ibid., págs. 1 8-9.
3. Ibid., pág. 20.
4. Ibid., pág. 25.
5 . Ibid.
6. Ibid., pág. 52
7. F. Tustin, Autisme et psychose de l'enfant, Paris: Seuil, 1 977.
8. J. Laplanche, Castração. Simbolizações, Problemáticas 11, São Paulo: Martins Fontes
Editora Ltda., 1 988, pág. 54.
9. M. Mahler, op. cit., pág. 145.
184 I Silvia Bleichmar

10. Ibid., pág. 70 (os bastardos são nossos) .

1 1 . M. Klein, "Uma contribuição à teoria da inibição intelectual", em Contribuições à
psicanálise, São Paulo: Editora Mestra Jou, 1970, pág. 325.

10
12. V. Tausk, Trabajos psicoanaliticos, Barcelona: Granica, 1977.
13. Ibid., pãg. 98.
14. Ibid.
15. J. Lacan, Le séminaire, libra II: Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique
de lapsychanalyse, Paris: Seuil, 1978, pãg. 66.
16. J. Laplanche, A angústia, Problemáticas I, São Paulo: Martins Fontes Editora Ltda. ,
1987.

Paradoxos da constituição sexual

masculina

Estamos por demais habituados, nos últimos anos, ao fato de que as

reflexões a respeito da sexualidade feminina constituam o eixo de grande
parte das investigações psicanalíticas. Os desenvolvimentos de Lacan, que
invertendo a fórmula levistraussiana propõem que no centro da sociedade
está a mulher intercambiando filhos por falos simbólicos, o acesso a novos
modos de conceber a castração a partir de seu pens amento e, junto a isto,
a recuperação dos trabalhos freudianos da década de vinte, por um lado,
fizeram balançar nossas preocupações de tal modo que grande parte das
produções a respeito da sexualidade girem em tomo da pergunta inicial,
proposta por Freud , sobre o mistério que a feminilidade encerra. Por outro
lado, nossa prática se desenvolve em um meio no qual o auge dos
movimentos feministas, propondo-se interrogantes e tentando dar respos­
tas à condição da mulher no seio da sociedade, a partir dos novos fenômenos
históricos em relação à sua inserção nos aparelhos produtivos, precipitam,
desde outra perspectiva mais sociológica e também, em grande medida,
mais ideológica, uma centrifugação no sentido de produzir um certo
embargo de nossas linhas diretrizes de pensamento.
Pareceria que se sustenta a ilusão de que a teoria sexual da masculi­
nidade não oferece grandes interrogantes nem estáabertaa grandes revisões
no seio do freudismo. No entanto, tanto nossa clínica cotidiana como
inúmeros fenômenos historicamente inovadores manifestam que se faz
necessário uma atualização, dando conta de que a riqueza das mesmas
excede, em muito, certas noções que operam como eixo de nosso pensamen-

185
 186 I Silvia Bleiclzmar
to. É curioso comprovar que, enquanto o material recolhido em análises de
mulheres é imediatamente generalizado e trabalhado em relação à tentativa
de constituir uma teoria da feminilidade, o mesmo não ocorre com as
análises de sujeitos masculinos, e que grande parte daquilo que surge delas
em relação às vicissitudes da sexualidade ficam remetidos à singularidade
de uma subjetividade em processo sem que sejam postas em relevo nem
generalizações nem revisões teóricas.
Estaé a razão que hoje me leva a dar a conhecer alguns aspectos de uma
investigação iniciada faz já alguns anos, cujos resultados ainda precários
não deixam de incitar a abertura de uma certa linha de indagação que
considero válida em virtude do giro que inaugura tanto para nossa teoria
como para nossa clínica.
O primeiro interrogante se me propõs a partir do processo da cura
empreendida faz já vários anos1 com um menino que tinha sete anos de
idade. A consulta foi realizada a partir de um sintoma que consistia em
11 morder a gola de sua roupa até rasgá-la, além de uma atitude geral passiva.
A constelação edípica na qual se constituía estava fortemente marcada pela
presença de uma mãe muito narcisista, com certa atitude desvalorizante em
relação ao pai; este último assumia, por outra parte, o lugar secundário
outorgado, exercendo suas funções parentais de tal modo que tomavam
possível o desenvolvimento apropriatório que esta mulher operava.
Havíamos trabalhado longamente com este meníno sua sensação
asfixiante de estar encapsulado no interior matemo, seu temor a se
desprender desta posição inicialmente atribuída, a tentativa desesperada
por desgarrar, através de suas vestimentas, a membrana envolvente que o
continha ao mesmo tempo que o submetia, e o caminho em direção à
atividade e à masculinização pareciam abrir-se depois de um ano de
tratamento.
Foi nesse momento que ocorreu o seguinte: estávamos em uma sessão
muito rica em jogos e simbolizações, na qual Manoel desenvolvia uma série
de fantasias masculino-agressivas fazendo alguns soldados lutarem entre si
estabelecendo campos de batalha e zonas de risco, em uma cena que os
analistas que tratamos crianças estamos habituados a ver reiterar-se no
consultório. De repente, os soldados começaram a fmcar, com suas
baionetas, as nádegas do inimigo. Manoel começou a dar gritos nos quais
se conjugava o prazer e a dor. Intervi, então , fazendo uma interpretação em
relação ao desejo homossexual vigente; olhou-me espantado, comocionado,
e começou a gritar "não é isso, não é isso . . . !". Logo, enquanto chorava, dizia:
"não entendes nada, não entendes nada . . . ". Saiu bruscamente do consultó-
rio para procurar seu pai que esperava na sala de espera, e com sua ajuda
pude fazê-lo voltar para continuar a sessão.
Não sou daqueles analistas que pensam que uma interpretação
certeira pode produzir um desenvolvimento de angústia tão massiva. Cabia,
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 8 7
por certo, a possibilidade de pensar em uma defesa extrema, no entanto, j á
faz muito tempo que comprovei que a interpretação, quando acerta em um
alvo próximo ao centro do conflito sem desembargar certeiramente o que
ficou obturado, ocasiona uma angústia intensa, produzindo a mesma dor do
manuseio de uma pústula cujo orificio não terminou de se abrir e drenar.
Pelo contrário, aquela que consegue desentranhar o entramado fantasmático
que dá origem à angústia, proporciona alívio e gera, em muitos casos, o
prazer compartilhado do descobrimento.
No entanto, a homossexualidade estava presente. Que faltava então
para que minha intervenção fosse eficaz? O que eu não havia percebido,
aquilo que não havia logrado pensar- porque estava mais além dos limites
da teoria que manejava -, e que Manoel evidenciava, era o que pudemos
entender posteriormente: o desejo emergente em seu jogo não se esgotava
na interpretação proposta, como ficou demonstrado no curso das sessões
seguintes, um ponto paradoxal de sua constituição psicosse:h.'Ual: tratava-se
de vir a ser masculino, sexuado, a partir da incorporação anal do pênis
paterno. Eu havia interpretado o desejo homossexual, e o deixar de lado de
seu desejo de masculinização, que abria o caminho em direção à
heterossexualidade, a partir de uma nova dialética entre o ser e o ter,
deixava-o inerme produzindo-lhe uma dor intensa que manifestou no modo
descrito.
"Eu não entendia nada . . . ", e ante isto, ele me havia espetado a frase
mais dolorosa que um paciente pode formular a seu analista. Ao desconhe­
cer o móvel estrutural do fantasma, ao desconhecer o movimento histórico
no qual estava imerso, lhe havia proporcionado um saber acerca de si mesmo
que anulava o próprio processo que a análise havia inaugurado: incorporar
o pênis paterno e exercer ele mesmo seu sadismo genital no movimento que
o arrancava da presença capturante da mãe.
Múltiplas observações somaram-se a posterioria esta primeira reflexão
enlaçando-se, por sua vez, com uma questão que parecia entrar em
contradição na própria teoria. Sabemos, desde Freud, que inicialmente a
mãe é, para ambos os sexos, o primeiro objeto de an1or, e podemos afirmar,
junto com ele, que o menino retém este objeto no complexo de Édipo. Por
outra parte, e através de outros elementos presentes em seu pensamento e
daquilo que observamos em nosso trabalho clínico, depreende-se que a mãe
da pré-história do complexo de Édipo não é a mesma que aquela que se
constituirá no objeto de desejo a partir da instalação do reconhecimento da
diferença sexual anatõmica: a mãe da pré- história do complexo de Édipo é
a mãe fálica, investida de todos os atributos de completude com os quais
nossa teoria e nossa prática descreveram sua função.
A mãe atravessada pelo reconhecimento da castração está em uma
posição diferente da mãe das origens em relação ao menino. Entre uma e
188 I Silvia Bleichmar
outra transcorreu essa "tormenta afetiva" que Freud descreve nos múltiplos
textos elaborados a partir de 1919. O objeto vartou, seu estatuto mudou, não
há continuidade direta senão uma descontinuidade marcada pela
ambivalência e pela intervenção de outra vartável que, tendo estado presente
desde os inícios da vida, realmente não toma significado até esse momento
tanto para a menina como para o menino: o pai sexuado .
Que relação têm a mãe d o desejo edípico - atravessada pela castração
e genitalmente cobiçada - e o pai sexuado em relação . às suas inscrições
prévias? Os primeiros tempos da vida estão marcados pela passividade em
relação ao semelhante. Obj eto das manobras sexuais do semelhante,
desejado e atravessado por sua sexualidade, as moções pulsionais entram
em correlação com o corpo do outro de um modo ainda auto-erótico. Guiado
pela pulsão de indício, submetido aos restos que são indícios dos objetos
inscritos, o desejo infantil se revela como ativo em relação à meta pulsional,
mas conserva uma passividade radical em relação à mãe. Ao mesmo tempo,
não há sujeito no sentido estrito, sujeito do ego capaz de se representar a si
mesmo e capaz de enunciar-se a partir disso. Se a pulsão é acéfala2, se o
suj eito não se encontra ainda situado nestes primeiros tempos da vida,
apenas a constituição do sujeito do ego, correlativa ao narcisismo, mas
paradoxalmente sepultando os representantes pulsionais no inconsciente a
partir do recalcamento originário, pode dar curso a uma atividade que se
revela em continuidade ao desejo, mas que, ao mesmo tempo, paradoxal­
mente está a serviço da defesa. Atividade do inconsciente, passividade egóica
em relação ao outro , a obsessão narcisista, a recusa primária como um modo
de negativismo, realça o caráter profundamente ameaçador da alteridade do
semelhante.
Como ingressa o pai nestes tempos das origens,nos quais o originário
sepultado no inconsciente está em vias de se constituir? Isso ocorre, tanto
na menina como no menino, de dois modos diferentes: por um lado, como li\
aquele que separa o vínculo fusional inicial com a mãe - captura no W
fantasma de cena primitiva a partir do posicionamento que ocupa como
intervalo que separa do objeto primordial, assim o definiu Melanie Klein
) "Na fase do complexo de Edipo normal encontramos o menino ternamente
salientando sua função de corte mesmo antes de que se estabeleça seu
caráter de interditar -; por outro lado, e a partir dos cuidados precoces
compartilhados, como metonímia da mãe que inscreve, por sua vez, restos
de percepção que não terminam de ser assimilados pelos movimentos de
pulsação3 que ela exerce. ·
Não há, nestes primeiros tempos da vida, pai no sentido psicanalítico
do termo : em suas funções constituintes do ideal do ego e da consciência
� l
moral. (A criança, diz Freud em "Introdução do narcisismo", possui dois
objetos sexuais originários: ela mesma e a mulher que a criou). As renúncias
pulsionais básicas, aquelas que precipitam o sepultamento do auto-erotis-
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 8 9
mo, sempre ficam estabelecidas em relação à mãe e contribuem à auto­
estima do ego ideal. Está claro que nestas proibições de base o superego
matemo joga um papel fundamental, mas o faz sob modos particulares:
perder o amor da mãe não é o que está em jogo na dialética fático-castrado,
senão naquela da vida e da morte. Perder o amor da mãe põe em jogo o
aniquilamento do sujeito. A interdição do pai no filho homem, em sentido
estrito, �al como a concebemos a partir do sepultamento do Édipo, recai
sobre o Edipo complexo, sobre o desejo em relação à mãe enquanto objeto
do incesto.
A passagem de passivo a ativo pareceria se produzir quando o menino,
ao descobrir a castração feminina, é precipitado na direção de uma queda
narcisista do objeto matemo, queda que arrasta consigo a angústia d e
castração d o próprio menino e inaugura o movimento que o lança da
..
identificação à escolha amorosa de objeto: "A alta estima narcisista pelo .
pênis pode se basear - diz Freud - em que a posse desse órgão tem a . . �" �
\.
garantia de uma reunião com a mãe (com o substituto da mãe) no ato do" �"", .t�
coito. A privação desse membro equivale a uma nova separação da mãe; quer
'"'' :,
dizer: implica ficar de novo exposto, sem valor algum, a uma tensão
6)�-
desprazerosa . . . ?
No entanto, a pergunta vigente é: devido a quais fatores o menino
desejarta esta reunião ao modo de uma dominância genital e não através da
totalidade de seu próprio corpo? E ainda, que tipo de identificação o menino
deve realizar, antes do sepultamento do Édipo cuj a culminação inaugura a
possibilidade de se identificar ao pai através da incorporação das instâncias
que constituem o superego? De que modo se apropria, então, o filho homem,
dos traços sexuados do pai nesta passagem que o faz vir a ser ativo
atravessando seu posicionamento em relação à mãe?
A perspectiva freudiana parece se reger a esse respeito pela contigüi­
dade do obj eto real e por s�u caráter ativo a partir da determinação biológica:
afeiçoado ao progenitor do sexo contrário, enquanto que na relação com o
progenitor de igual sexo prevalece a hostilidade. Não tropeçamos com
nenhuma dificuldade para deduzir este resultado no caso do menino. A mãe
foi seu primeiro objeto de amor; logo, com o reforço de suas aspirações
@ enamoradas, segue sendo assim, e em função da compreensão mais }
� do vínculo entre a mãe e o pai, este último só pode vir a ser um
�ro f da
nvaLY. ,,
Aparente linealidade que situa o pai no lugar do rival, quando, por outra
parte , as moções eróticas em relação ao pai definem o caminho d a
•
identificação. Questão claramente analisada por Freud, por outra parte,
quando trata, em seus historiais clínicos, de marcar o caráter erótico do
desejo do filho em relação ao pai.

190 I Silvia Bleichmar
Paradoxo fu ndamental da identificação
Conhecemos o paradoxo da identificação masculina: ser como o pai-
1 enquanto sujeito sexuado -, e, ao mesmo tempo, não ser como o pai -
enquanto possuidor da mãe. De que modo se poderia produzir, no entanto,
uma identificação a um puro rival, a um puro obstáculo, sem enlace de amor
com ele? A identificação, nestes termos, seria impossível.
A bissexualidade constitutiva se revela como insuficiente para dar
conta disto. Há uma primeira explicação mecãnica, de caráter biológico:
segundo o predominio de tendências inatas, das "disposições" masculinas
ou femininas congênitas. Outra�terpretaçãopossível é que a bissexualidade
não é marcada na saída do Edipo complexo, senão em seu próprio
movimento e em suas implicações. "Uma indagaç?-o mais profunda deixa a
descoberto, na maioria das vezes, o complexo de Edipo em sua forma mais
completa... O menino não possui apenas uma atividade ambivalente em
relação ao pai, e uma escolha tema de objeto em relação à mãe, senão que
se comporta também, simultaneamente, como uma menina: mostra uma
atitude feminina tema em relação ao pai, e a correspondente atitude
ciumenta e hostil em relação à mãe. Esta inserção da bissexualidade ê o qúe
toma tão dificil penetrar com o olhar as constelações das escolhas de objeto
e identificações primitivas, e ainda mais dificil descrevê-las em uma sintese.
Também poderia ocorrer que a ambivalência comprovada na relação com os
pais deveria referir-se inteiramente à bissexualidade, e não, como antes eu
expus, que se desenvolvesse pela atitude de rivalidade a partir da identifi­
cação".
Questão amplamente corroborada nos historiais clínicos de Freud, em
Hans, no Homem dos Lobos, no Homem dos Ratos, e em Schreber, com suas
diferenças, seus matizes e seus graus de presença do componente homos­
sexual.
Aludimos anteriormente ao caráter sedutor e pulsante dos cuidados
primários nos quais o pai ocupa, ante o corpo do filho, um lugar não apenas
de interdição do gozo matemo senão de exercício, ele mesmo, de seu próprio
gozo auto-erótico - quer dizer, homossexual.
Sobre esta determinação prévia se constitui a aspiração erótica
primária em relação ao pai. No entanto, se a identificação ao pai tem em sua
composição um componente homossexual, sabemos que já não se trata da
passividade originária, da sedução passiva dos primeiros tempos da vida que
oferece seu substrato posterior à identificação primária. O material de
Manoel, antes exposto, e outros que comentarei a seguir. manifestam isto.
Nestes primeirissimos tempos, em razão de que não há sujeito, o passivo não
é vivido com a ressignificação feminina que lhe será outorgada posterior­
mente. Passivo e ativo ocorrem em tempos nos quais não adquirem
significado sexual para o sujeito que ainda está em vias de constituição.
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 9 1
Outra lU:� a po?� se� proposta: aquela que a via regressiva empreende, da
escolha a Identlflcaçao. Ela não nos afasta do que tentamos desenvolver. Se
esta via não pode ser concebida senão como residual ao Édipo e ainda com
seus p a:adoxos: o fato de que em ambos os sexos, a identificação por
regre�sao da escolha de objeto determine a renúncia ao objeto, rompe a
.
l�eahd�de sup osta: por que o menino se identificaria ao pai senão porque
.
? mv�stiu eroticament� de algum modo - mesmo que seja através da
_ que propicia o desejo da mãe em relação a seu parceiro
Identificaçao
sexuado?
É indubitável que o aporte libidinal, excitante, proporcionado pelo pai
.
nos cmdados precoces, oferece substrato histórico-vivencial das aderências
eróticas que se desenvolvem em relação ao mesmo. Que, em tal sentido
como metonímia da mãe, o pai inscreve marcas cujos indícios não s�
concebem na polarização que o corpo matemo exerce. Estas inscrições
f
precoces, unidas ao desejo da mãe pelo pai presente desde os inícios, se nos
apresenta como uma via teoricamente mais coerente e de maior corrobora-
ção clinica �o que a bissexu�idade constitucional enquanto biológica.
_ elo pm enquanto homem joga seu papel, por outra
O deseJO d � mae
.�
parte, d? !�do daidentificaçao proposta ao menino como modelo no qual deve
se precipitar. Jean Laplanche retomou, a partir da leitura de Freud, a
existência de dois significantes diferenciais para dar conta de doisfenôme­
nos de ordem diferente: Verschíedenheit (diversidade) e Unterschíed (diferen­
_ l distinguir entre o gênero e o sexo. Em relação ao
ç�). Eles to�a� possiv �
genero, a diversidade nao se manifesta no campo dos contrários, senão no
can_rpo de n possibilid�des: diferenças culturais, sociais, bipartição da vida
soci� n� qual o mernno busca um fundamento lógico ao enigma de ter
nascido filho de homem e mulher. As categorias de masculino e feminino não
se li�am inicialmente à diferença sexual anatômica, mas são propostas a
partir �o fa�o d e que o adulto sexuado temestadiferença inscrita. Aposteriori,
e�ta diversidade co�eça a ocupar seu lugar, a situar-se na categoria da
.
diferen�a. A !lartir diss� , podemos assinalar que os traços de identificação
n:asculma sao Pr?porc10nados pelo meio parental mesmo antes de que a
_
diferença anatomica venha a ocupar seu lugar e ressignificá-los em seu
caráter de sexuado6•
Esta diferenciação entre gênero e sexo deve ser levada em conta quando
se trata de discutir o preconceito, hoje menor, que ligava homossexualidade
à feminização afetada, já que os modos de superposição entre o gênero e o
sexo na homossexualidade masculina se mostram, em primeira instãncia,
como formas de recomposição a nível da identificação primária com a mãe
dos primeiros �empos ante o fracasso da estruturação do ego representação
e suas mutaçoes a partir das circulações edípicas7•
A identificação a partir do gênero, embora aporte um substrato a nível
de traços secundários da masculinidade, não esgota a questão identificatória
 192 I Silvia Bleichmar
e, mais ainda, opera, em certo momento , como contraparte do desejo erótico
pelo pai, sem o qual a identificação sexuada é impensável.
Que ocorre nesse momento de passagem no qual o menino circula em
seu movimento edípico pelos trilhos de uma identificação com o pai genital
mesmo antes de que a renúncia à mãe como obj eto incestuoso se tenha
instalado plenamente e antes que se estabeleça a introj eção das proibições
e emblemas que constituirão o superego? De que modo se identifica o pai
sexuado, genitalmente potente, possuidor da mãe? O suposto caráter ativo
da masculinidade como originária, a partir da presença real do pênis,
obturou nossas perguntas. No entanto, enquanto nós formulamos, um novo
paradoxo se propõe como eixo de nossas preocupações: o fato de que toda
identificação remeta a uma introjeção, e esta a um modo de apropriação
simb ólica, sem dúvida, mas em última instãncia fantasmática do objeto do
qual o outro é portador, nos propõe o caráter altamente conflitivo da
constituição da sexualidade masculin a- além mesmo da simplicidade com
a qual se pretende u reduzi-la à presença do pênis enquanto órgão real.
Ser como o pai em relação aos traços secundários . . . essa não é a
questão quando, tanto desde a cultura como desde o desejo da mãe, a
proposta vem articulada como identificação na qual o sujeito se inscreve a
partir do outro. Ser como o pai enquanto sujeito sexuado, portador de um
{
pênis capaz de proporcionar o gozo não apenas auto-erótico masturbatório
do menino senão do obj eto, se propõe como uma questão mais complexa.
O caminho da introjeção-identificatória sempre propôs à psicanálise a
questão da zona e do objeto. O protótipo de toda identificação é o seio:
suporte libidinal do intercãmbio apropriatório com o semelhante. Como
poderia o filho homem receber o pênis do pai que o torna sexualmente
l potente senão fosse a partir de sua incorporação? Incorporação introjetiva
que deixa a masculinidade entregue para sempre ao fantasma paradoxal da
I!P
homossexualidade.
Um paciente gravemente obsessivo mostra isso: cada vez que tem
relações sexuais com uma mulher, "outro" o atravessa com o seu pênis,
analmente, e lhe oferece a potência necessária para o exercício genital.
Sujeito pontual, masculino-feminino ao mesmo tempo, nele isso se encarna
brutalmente em fantasmas de passivização homossexual, único modo de
i
exercício, até o momento, da genitalidade masculina.
Se a passividade, aquilo que é realmente recalcado no homem, é a
homossexualidade, é necessário explorar as duas vertentes que a constitu-
em enquanto estrutural e não como resíduo bissexual de alguma biologia
fantas rnática: passivizado nos primeiros tempos da vida pela mãe fálico­
sedutora, não pode aceder à masculinidade senão através da incorporação
fantasmática do pênis paterno que oferece sua potência articuladora ao
mesmo tempo que submete analmente nos intercâmbios que abrem os
circuitos da rnasculinização.
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 1 93
Que esta presença inquietante do pai se torne patológica ou estrutural
depende das vicissitudes e destinos dos movimentos constitutivos que a
encadeiam, efeito tanto das alianças edípicas originárias como dos
traumatisrnos que o sujeito registra ao longo de sua constituição corno
sujeito sexuado.
Nathaniel e a identificação masculina falida
O menino vai em busca do significante fálico paterno e sua introjeção
simbólica abre os caminhos de uma fantasmatização que não o submete à
busca do real faltante . Neste caminho de sua aquisição,as determinações
que o regem precipitam movimentos cujas conseqüências inauguram novos
movimentos.
Nathaniel, cinco anos, iniciou tratamento a partir de um conjunto d e
transtornos estruturais que punham em risco sua evolução futura.
Simbioticamente aderido à mãe, não se desprendia de sua mamadeira nem
para ir ao colégio, ainda apresentava episódios de enurese e uma modalidade
queixosa que cansava suas professoras. Brincava de se disfarçar de
personagens femininos das histórias: Chapeuzinho Vermelho, Branca de
Neve ... Aceitava uma fantasia de Batman oferecida por seus pais, usando­
a, embora deixando em baixo dela a saia da Gata Borralheira.
No transcurso de dois anos, o tratamento conseguiu produzir urna
verdadeira mudança e abrir o caminho identificatório masculino, liquidar os
restos de aderências primárias tanto auto- eróticas corno de fixação à mãe,
sepultando-as no inconsciente, assim como o abandono de traços d e
transvestisrno iniciais. A alta foi proposta sem que ficasse resolvida, d e
minha parte, uma certa preocupação: ao longo de sua análise haviam
aparecido, reiteradamente, fantasias, desenhos e sonhos em que um leão
subia em cima de outro ; a repetição ia ligadaa uma impossibilidade absoluta
de associação por parte de Nathaniel, que suspendia aí todo intercãmbio
discursivo parecendo reduzir seu alívio à enunciação destas produções
compulsivas e ao meu silêncio respeitoso a respeito delas.
Minha dificuldade para compreender este material foi formulada aos
pais mais ou menos nos seguintes termos: resolvemos as principais queixas
que surgiram de início, diminuímos tanto seu sofrimento como o de vocês,
e, no entanto , há algo que não entendo , que é a recorrência dessas
produções. Que eu não o entenda justifica de que há algo não resolvido e,
no entanto, sinto que não há possibilidade de ir além disso por agora.
A constelação edípica inicial não me permitia entender o caráter
singular destas fantasmatizações. Um pai inicialmente ausente, a tendência
simbiotizante e passivizante da mãe, propunham condições estruturais nas
quais era fácil pensar em uma cena originária que se apresentava constan-
194 / Silvia Bleichmar
temente como uma resolução do enigma de seu engendramento e, no
entanto . . . por que dois leões? Por que uma cena primãria homossexual?
Oito meses depois a mãe me telefonou profundamente angustiada:
Nathaniel lhe havia confessado, nesses dias, que já fazia muito tempo -
r;t
tempos que correspondiam à etapa imediatame e anterior ao início do
. contradição de incorporar o objeto, outorgado pelo pai, que simboliza a
tratamento -, um primo maior, de doze anos, o havm encerrado no banherro
� �
para sodomizá-lo sem que ele pudesse, durante algu tem o, nem se re�e ar � xual que é reativado pela introjeção identificatória.
nem contar o que ocorrera- o manifesto era que havra tenndo as represálras
�
que o sedutorpudesse exercer- . Aanálise havia �berto o diálogo e Na aniel
havia podido liberar seu segredo para com a mae. Estava, agora snn, em
condições de assumir um novo processo onde pudesse reabrir aquilo que
havia ficado previamente obturado.
O menino retomou o tratamento no qual analisamos longamente sua
culpabilidade e o desejo que a sustentava. O enigma da masculinidade, a
falha na estruturação simbólica, o haviam levado a ceder ao outro sem que
pudesse se rebelar nem reconhecer o gozo secreto experimentado. Tratava­
se de um verdadeiro ato de busca do "enigma da masculinidade", tipo de
traumatofilia que havia constituído, desde o traumatismo real vivido, uma
nova constelação cujos alcances só agora podiam ser abordados. Canais
intestinais de massa de modelar com bebês que deslizavam como em um
escorregador, representando ao mesmo tempo sua fixação a uma teoria
cloaca! da feminilidade e sua identificação fértil à mãe, resolução homosse­
xual da pas sividade originãria ante a mesma e do desejo de masculinidade
falido . . . Nathaniel produziu, quase um ano depois, e na última sessão de sua
análise, uma ressignificação do valor traumático ao qual havia ficado
submetido a partir de seu déficit estrutural: "Silvia - me disse -, eu não
posso mudar o que me ocorreu, verdade?" Ante meu silêncio doído respon­
deu: "Mas posso evitar que ocorra o mesmo a meus filhinhos . . . " mostrando
em um mesmo enunciado a possibilidade futura d e reparação e sua
afrrmação de uma função paterna protetora que o remetia defmitivamente
a seu lugar de sujeito sexuado em relação a um objeto de amor.
A maioria dos casos que tratamos pareceriam não submeter-nos a uma
força dramática de tamanha magnitude. No entanto, o exemplo de Manoel,
com o qual comecei esta exposição, mostra algo mais próximo à nossa
prática cotidiana e põe em jogo, de todos os modos, nossa capacidade de
enfrentar o sofrimento humano. Algo em comum atravessa ambas as
situações: atuada ou fantasiada, a homossexualidade é constitutiva, para­
doxalmente, da masculinidade. Definida no jogo de duas vertentes: a
passividade originãria em relação à mãe fálico-sedutora dos primeiros
tempos da vida, se ressignifica, a posteTioTi, quando o sujeito se estrutura
como tal e se produz a conversão que o transforma de passivo em ativo t;m
relação a um objeto, que, de todos os modos, já não é o mesmo na medir
em que está atravessado pela castração. Nesta impulsão que transforma o
Nas Origens do Sujeito Psíquico / 1 95
passivo e m ativo s e inaugura uma nova dificuldade: a identificação sexuada,
masculina, se enfrenta com a incorporação do atributo da atividade genital
masculina, paterna, arrastando os restos libidinais d o vinculo originãrio
com o pai. Para ser homem, o menino vê-se confrontado com a profunda
potência, e, ao mesmo tempo, de recusar-se a si mesmo o desejo homosse­
Os fantasmas homossexuais constitutivos da masculinidade devem
ser restituídos a seu lugar correspondente e analisados, portanto, no
movimento paradoxal que inaugura novas vias para a constituição
psicossexual.
Notas d e refe rência
l . Em 1982. C umpriram-se, com sobra, os nove anos de espera que Freud, a partir de
Horácio, recomenda como reserva para confirmar uma verdade conjecturada. Ver
"Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos". OC, Voi.
XIX.
2. Como a definiuLacan em Los cuatro conceptosjundamentales delpsicoanalisis. Ver
cap. XIV, "A pulsão parcial e seu circuito".
3. Empregamos pulsação para referir-nos a estes movimentos que Jean Laplanche
desenvolveu em sua teoria da sedução generalizada, e que dão conta de um modo
especifico e particular de constituir- se, mediante o ingresso na sexualidade humana,
da pulsão como resíduo das relações libidinais com o semelhante.
4. S. Freud, Inibições, sintomas e ansiedade, em OC, vol. XX, 1 976.
5 . S. Freud, Sexualidadeje minina, em OC, vol. XXI, 1976.
6. Jean Laplanche, Castração. Simbolizações, Problemáticas li, São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
7. O material clinico de um menino transvestista, ao qual tive acesso faz algum tempo,
dava conta disso. Dormia com a camiseta de sua irmã mais velha, substituto matemo
que havia exercido estas funções nos primeiros tempos d a vida, como modo de evitar
uma fragmentação psicótica a partir de sua envoltura em uma membrana que
garantia a proteção de uma pele, em razão de que uma falha na constituição do ego
narcisista não havia pennitido constituir esta a nível simbólico.
8. G. Bonnet desenvolveu a esse respeito,em seu texto "La homosexualidad - A
proposito de un caso de homosexualidad de origen traumatico", uma linha de
trabalho que consideramos que abre perspectivas próximas a nossa. Em Trabqjo del
psicoanalisis, n. 9, Buenos Aires, 1988.

Conclusões
Todo processo de investigação deve ter, pelo menos, um momento parcial de
fechamento. Este momento permite uma parada para olhar aonde se chegou
-a partir daquelas propostas iniciais das quais se partiu - e para onde deve
tender o trabalho futuro , se é que a busca não constitui um processo
fechado, circular, senão um conjunto de movimentos espiralados com
pontos virtuais de entrecruzamento.
Três anos depois de ter iniciado um trabalho sistemático na elaboração
desta "contribuição", encontro-me em situação de propor que alguns dos
elementos centrais atinentes à proposta inicial , fundamentalmente aqueles
que se relacionam com a preocupação de por à prova a psicanálise de
crianças em sua correlação com a metapsicologia, deixaram de ser intuições
mais ou menos sustentáveis, a partir de uma certa relação entre a
experiência clinica e os desenvolvimentos teóricos freudianos, para conver­
ter-se em uma linha d e trabalho que se consolida em meu espírito e me
proporciona profundas possibilidades de transformação em meu trabalho
clinico.
A idéia central de considerar um sujeito em estruturação, em relação
ao qual não se pode definir, de inicio, nem a existência de sintomas - no
sentido psicanalítico, enquanto formações do inconsciente - nem, em
conseqüência, a existência de uma neurose que implique a instauração
definitiva do recalcamento, não só mantém sua vigência inicial, senão que
é confirmada, em minha opinião, ao longo do processo de investigaçã o
empreendido.
196
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 197
Por outro lado, as leituras realizadas nestes anos assinalam que esta
ê a tendência que cada vez mais a psicanálise de crianças deverá assumir,
além mesmo dos matizes teóricos com os quais os diferentes autores
enfrentam o fenômeno, e a perspectiva - predominantemente clínica ou,
também, predominantemente teórica -a partir da qual sua tarefa se instale.
Lang vai no mesmo sentido quando diz: "Sem dúvida os estudos
psicopatológicos em um ser em pleno desenvolvimento maturativo e libidi­
nal devem fazer-nos mais prudentes para evocar sob o nome de 'estruturas'
organizações ainda lábeis e não fixadas: noção de pré-estrutura ou, inclu­
sive, organização estrutural considerada em tal momento do desenvolvi­
mento, em tal criança, que apresenta tal história (. . . ) . Mas estes estudos
também nos levam a propor de outro modo o problema da especificidade d e
tais organizações, chamadas atípicas , precisamente e m relação ao estudo
atual de nossos conhecimentos". 1
A perspectiva pela qual optei tenta tomar as entidades psicopatolôgicas
que o estado atual de conhecimentos oferece, não para definir o momento
de estruturação da criança em relação a estas, senão que utilizando-as como
apoiaturas descritivas, recortes da realidade a partir dos quais se possa
teorizar metapsicologicamente o estado de constituição do aparelho psíqui­
co infantil no momento da consulta. Deste modo, tanto o conceito de
neurose, como o de psicose, foram postos em relação aos movimentos que
justificam a estruturação do aparelho psíquico nas origens, fundamental­
mente, aquele que considero seu momento fundador, isto é, o recalcamento
originário. .
Ao abordar a questão de que o processo secundário - a instauração da
lógica, da temporalidade, da linguagem - testemunha a possibilidade do
aparelho psíquico de ter constituído duas legalidades diferentes - a do
processo primário e a do processo secundário -, e dois tipos de conteúdos
diferentes marcados pelo conflito, cheguei necessariamente à conclusão de
que a neurose infantil ê indefmível em si mesma. Por isso, me vi obrigada a
diferenciar o que consideramos transtornos do funcionamento psíquico,
daquilo que podemos denominar, com pleno direito, sintomas; e defini
sintoma, em sentido psicanalítico, buscando não apenas suas determina­
ções específicas, senão sua localização metapsicológica. Isto me levou a por
em jogo os movimentos precursores que determinam os momentos prévios
da instauração sintomática no psiquismo e, em tal sentido, a redefmir os
mecanismos prévios ao recalcamento originário: transformação no contrá­
rio e volta sobre a própria pessoa, não apenas como movimentos anteriores,
senão como verdadeiros precursores que preparam o caminho para sua
instauração definitiva.
Trata-se, desde esse ãngulo, de uma "historização" dos momentos
míticos constitutivos do aparelho psíquico. Isto implica um abandono do
conceito de estrutura? Não parece ser totalmente assim, mas cada vez mais
 1 98 I Silvia Bleichmar
nosso caminho nos afasta do estruturalismo como modelo, tanto em seu
caráter de a-historicismo radical, como no de subordinação à lingüística e
transformação de todo fenômeno em um "sistema significante" .
Foucault assinalou em relação a esta problemática:2 "Admite-se que o
estruturalismo foi o esforço mais sistemático para desterrar o conceito de
acontecimento não apenas da etnologia senão de toda uma série de ciências
e, inclusive, no limite da própria história. Mas o que é importante é não fazer
com o acontecimento o que se fez com a estn;tum. Não se trata de por tudo
sobre certo plano, que seria aquele do acontecimento, senão de considerar
que existe toda uma série de categorias de acontecimentos diferentes que
não tem o mesmo alcance, nem a mesma amplitude cronológica, nem a
mesma capacidade de produzir efeitos.
"O problema é, ao mesmo tempo, distinguir os acontecimentos,
diferenciar as redes e níveis aos quais estes pertencem, e reconstituir os fios
que os ligam e os fazem engendrar-se uns a partir dos outros . Por isso o
rechaço às análises que se referem ao campo simbólico ou ao domínio das
estruturas significantes; e o recurso às análises realizadas em função de
genealogia, de relação de forças, de desenvolvimentos estratégicos, de
táticas. Acredito que devemos referir-nos não ao grande modelo da língua e
dos signos, senão ao da guerra e da batalha. A historicidade que nos
interessa e nos determina é belicosa, não 'linguageira' aangagíere}. Relação
de poder, não relação de sentido. A história não tem sentido, o que não quer
dizer que seja absurda ou incoerente. Ela é , pelo contrário, inteligível e deve
ser analisada até em seus menores detalhes: mas de acordo com a
inteligibilidade das lutas, das estratégias e das táticas. Nem a dialética (como
lógica de contradição) , nem a semiótica (como estrutura da comunicação)
poderiam dar conta do que é ainteligibilidade intrínseca dos enfrentamentos .
Para esta inteligibilidade, ' a dialética'é uma maneira de esquivar a realidade
sempre azarosa e aberta, abatendo-a sobre o esqueleto hegeliano; e a
semiologia é um modo de esquivar o caráter violento, sangrento, mortal
desta realidade, reduzindo-a à forma apaziguada e platônica da linguagem
e do diálogo".
E logo Foucault acrescenta: "Quisera ver como podem se resolver estes
problemas da constituição [dos objetos] no interior de uma trama histórica,
em lugar de remetê-los a um sujeito constituinte. Há que desembaraçar-se
do sujeito constituinte, desembaraçar-se do próprio sujeito, isto é, chegar a
uma análise que possa dar conta da constituição do sujeito na trama
histórica. E isto é o que eu chamaria genealogia, uma forma de história que
dá conta da constituição de saberes, de discursos, de domínios de objeto,
etc., sem referir-se a um sujeito que seja transcendente em relação ao campo
de acontecimentos ou que transcorra em sua identidade vazia, ao longo da
história".
Nas Origens do Su;eito Psíquico I 1 9 9
Oferece-nos como coincidente - além mesmo das diferenças específi­
cas que se abrem entre a ciência da história e a psicanálise - a tentativa de
erradicação de todo sujeito transcendental que retoma na psicanálise
através das formulações reificantes do Outro, a Estrutura do Édipo, a
primazia significante. E, como efeito disso, o caráter outorgado ao conflito,
que fica deste modo localizado no centro da história (historicidade belicosa,
não "linguageira").
No entanto, não estamos de acordo com a proposta de Foucault em
substituir totalmente o conceito de estrutura pelo de rede de acontecimen­
tos. Desde nossa perspectiva, destacamos o caráter histórico desta estrutu­
rae asituamos, por sua vez, em sua determinação, não como entrecruzamento
de redes de acontecimentos, senão como ligações e legalidade aonde esses
acontecimentos se inscrevem.
O recalcamento originário, tal como o abordamos , não é um simples
momento de corte em um devenirfático, senão um movimento de verdadeiro
reordenamento, de estabelecimento de legalidades específicas a partir das
quais ahistóriaadquire sentido. Nemuma realidade "linguageira" aangagiere},
nem uma realidade factual podem dar conta da constituição do aparelho
psíquico. São redes de relações estruturais - legais - inscritas em u m
movimento que deve ser historizado - isto é, provido de sentido -; são ­
dizemos - as redes assim entendidas as que determinam o movimento de
constituição do sujeito psíquico, marcado pelo conflito.
Em psicanálise, a partir do abandono da teoria da sedução, cujo ponto
de referência é marcado pela carta a Fliess de 21 de setembro de 1897, Freud
tende a matizar cada vez mais a teoria do traumatismo enquanto efeito do
papeljogado pelo acontecimento externo. Abre-se, então , a concepção de que
os acontecimentos exteriores extraem sua eficácia de fantasmas que ativam
e do afluxo de excitação pulsional que deles se desprende. Mas, por sua vez,
Freud não se contenta, nesse momento, em descrever o traumatismo como
a ativação de uma excitação interna por um acontecimento exterior, que s ó
seria a causa desencadeante deste; sente a necessidade de remeter esse
acontecimento, por sua vez, a um acontecimento anterior que estaria na
origem de todo o processo.
O modelo proposto, então, é um primeiro acontecimento desprovido de
significação (sedução originária), ressignificado por um acontecimento
posterior (constitutivo do traumatismo por apres coup}. Deste modo, o
traumatismo não pode ser equiparado a um acontecimento,já que se insere
em uma cadeia na qual a significação não deixa de ocupar um lugar
determinante. Mas essa significação é, narealidade, enganosa: seressignifica
a sedúção originária o faz através da "protonpseudos " , que conserva um resto
de realidade fatual, sem por isso revelar o acontecimento, que em si mesmo
segue sendo carente de significação.
200 I Silvia Bleichmar
Pierre Nora nos propõe uma elaboração a respeito do que considera as
relações entre "a produção do acontecimento" e os mass media que começam
a capturar o monopólio da história: "Jornal, rádio, imagens, não se limitam
a atuar como meios em relação aos quais os acontecimentos seriam
relativamente independentes, senão como a própria condição de existência
destes acontecimentos. A publicidade modela sua própria produção. Acon­
tecimentos capitais podem ocorrer sem que se fale neles (. . . ) o fato de que
tenham tido lugar apenas os faz históricos. Para que haja acontecimento, é
necessário que este seja conhecido. Por isso as afinidades entre um tipo
determinado de acontecimento e um determinado meio de comunicação são
tão intensas que se nos parecem como inseparáveis".3
Levando estas idéias em consideração, podemos assinalar que no
campo específico em que nossa tarefa se desenvolve as relações entre
traumatismo e acontecimentos podem ser pensadas desde um novo ângulo .
A proton pseudos já está, como assinalamos, no discurso matemo, embora
não do lado do inconsciente; está do lado da constituição do ego, mediante
a instauração de um discurso que opera como contracarga dos elementos
que a própria mãe inscreveu como excitantes através dos cuidados · · ·
sexualizantes das origens.
Nesse sentido podemos considerar, para o caso que nos ocupa, que os
mass media organizadores do acontecimento têm seu correspondente no
discurso matemo, quando organiza de um modo particular aquilo que é da
ordem do vinculo e da história do filho, assim como o j ornal organiza o
acontecimento político no marco de uma racionalidade que é própria do
sistema ao qual pertence.
Se Freud, para assinalar o caráter lacunar do discurso pré-consciente ,
utilizou a metáfora da censura dojornal russo, que proibia sem pudor aquilo
que era atacante para o regime, o discurso matemo, do mesmo modo que os
cabos das grandes agências de noticias atuais, tenta não deixar flancos
através dos quais se filtre uma informação que dê conta de outra realidade
que não aquela que pretende instaurar. No entanto, esses cabos não são
suficientes para recobrir uma realidade que é exudada pelos poros da
história, tal como ocorre com o recalcado na realidade psíquica do filho
através do sintoma.
Há então uma história fatual que não só não corresponde à história do
traumatismo, senão que tenta, precisamente, seu preenchimento; porque o
traumatismo é o que escapa a uma significação discursiva e não encontra
perlaboração senão no momento em que é posto em relação aos determinan­
tes estruturais que o constituem.
Para retomar a acertada formulação de Lyotard, na psicanálise de
crianças trata-se de acometer a suficiência do discurso e recuperar a sombra
que se escapa quando a penumbra arremessada pela linguagem sobre o
sensível não pode deixar de ser perfurada por aquilo que resiste, no
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 2 0 1
inconsciente, à captura do discurso. Trata-se, como propõe em Discurso,
figura4, não de passar ao outro lado do discurso -já que unicamente desde
seu interior cabe a possibilidade de passar para/ e dentro da figura -, senão
de recuperar o caráter violento que o silêncio assume. Este caráter violento
está dado no aparelho psíquico pela pulsão de morte que ataca, através das
representações recalcadas , ao sujeito que não pode significá-las, não a partir
do desconhecimento egóico, senão porque assumiram um caráter radical­
mente estranho ao cair no nível de representação-coisa.
O acontecimento enquanto talnão é, então, equiparávelao traumatismo.
O traumatismo é cercado através do acontecimento (sempre relatado, não
apenas ocorrido), o que implica que a história do suj eito não se limite a uma
rede de acontecimentos (como vimos que Foucault propõe), senão ao
encadeamento destes em uma rede estrutural que lhes outorgue significa­
ção através do processo perlaborativo, no momento em que se quebre a
compulsão à repetição e o sujeito passe de ser sujeito passivo de umahistória
a sujeito historizado.
Dizia no início deste livro que " . . . nos situaremos de início em uma
concepção do sujeito psíquico cuja tópica se apresenta, desde o começo,
intersubjetiva. No marco desta tópica intersubjetiva ocorrerá um processo
de constituição do aparelho psíquico que, no momento de abordar o
diagnóstico do núcleo patógeno, devemos ter em conta para precisar, em um
corte , em que momento desta constituição se encontra".
Penso, depois destes anos de elaboração, que se bem a hipótese da
constituição do sujeito no marco da tópica intersubjetiva segue tendo
validade, não é correto propor que o sujeito se constitui de início na
intersubjetividade. A diferença radicaria no seguinte: em um espaço,
instituído no interior da estrutura edípica, cada um dos membros desta
estrutura possui seu próprio aparelho psíquico marcado pela cisão e pelo
conflito. Deste modo, a criança não entra como um elemento de um sistema
significante caracterizado pela homogeneidade dos elementos constitutivos ,
senão em uma rede definida pelo caráter heterogêneo de cada um dos
elementos que constituem a estrutura. Quer dizer: cada um dos pais,
enquanto sujeito cindido - segundo demonstramos ao longo de nosso
trabalho -, em conflito com suas próprias representações desejantes
inconscientes, o narcisismo egóico e o sistema de proibições que opera desde
o superego. Em primeiro lugar, então , a diferença entre narcisismo primário
e secundário na mãe permite a abordagem de um requisito estrutural para
a futura constituição da criança; em segundo lugar, também possibilita a
diferenciação entre lei de proibição do incesto (lei paterna) e autoridade do
pai, deslizamento em que incorrem, freqüentemente, os lacanianos, quando
pensam as figuras da estrutura como termos significantes homogêneos.
Em relação à criança, não há no inicio uma tópica intersubjetiva. Há
uma estrutura prévia na qual a heterogeneidade de funções (materna-
 202 I Silvia Bleichmar
paterna) implica, por sua vez, na heterogeneidade no interior do aparelho
psíquico dos sujeitos suporte dessas funções . O s requisitos de
intersubjetividade da estrutura estão dados por uma condição prévia: o fato
de que cada um dos membros que a constituem se sustenta em uma intra­
subjetividade em conflito. Deste modo, a tópica psíquica da criança, se bem
é resultante da intersubjetividade que a preexiste, só se instaura a partir do
momento em que se produzem os movimentos diferenciadores do externo­
interno e do externo- exterior, que geram um espaço de discriminação e de
diversidade.
Esta última questão não podia ser vista por mim antes que tivesse
questionado a proposta de Lacan sobre o narcisismo primário como primeiro
tempo de constituição do aparelho psíquico. Ao recolocar a especularidade
como primeiro tempo do sujeito (do ego) , mas segundo tempo de constituição
do aparelho psíquico, se me propôs claramente que o primeiro tempo não
pode ser da ordem da constituição da tópica intersubjetiva, senão dos efeitos
do sujeitamento infantil ã sedução originária exercida pela mãe, mas que se
inscreve no aparelho incipiente como marca, representante pulsional que só
terá um lugar determinado quando os sistemas psíquicos obtenham sua
diferenciação, encontrando, deste modo, sua qualidade defmitiva (como
representação-coisa) .
Em tal sentido, do mesmo modo como ocorre com as novas propostas
da teoria da história social (que põem em jogo a constituição dos tempos
míticos como tempos reais). nas origens do aparelho psíquico descrevemos
continuidades sobre o modo do descontinuo. É uma história problema, em
lugar de ser uma história-relato.5 Uma história problema propõe sistemas
de ordenamento de momentos estruturais que não se reduzem a meros
acontecimentos (tal como assinalamos antes ao diferenciar nossa proposta
da proposta de Foucault) ; é uma descontinuidade que se organiza em
momentos de ordenamento legal: tempo de constituição dos grandes
movimentos pulsionais prévios ao recalcamento originário, tempo de instau­
ração do recalcamento orginário, tempo de ordenamento definitivo deste
recalcamento através da estruturação do superego e, em conseqüência, do
recalcamento apres coup. Modelo de uma descontinuidade que se afirma, no
entanto, em momentos prévios de instauração.
A diversidade do material clinico exposto ao longo de meu trabalho me
levou, ao mesmo tempo, a considerar a neurose infantil (além mesmo da
valorização que possa assumir em função de uma ideologia terapêutica:
criança neurótica, criança problema) como um verdadeiro momento de
produção do psiquismo que abre caminho em direção à saúde e à criatividade.
Dou-me conta de que em psicanálise de crianças bordejamos permanente­
mente aquilo que Lang denominou "as fronteiras da psicose infantil" , e que
nossa preocupação fundamental é criar as condições para que o aparelho
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 203
psíquico incipiente consiga aquilo que constitui o movimento definitivo de
sua instauração.
A partir disso- além mesmo das divergências teóricas que logo exporei
- minha posição me permite retomar as produções que considero mais
valiosas, tanto da escola kleiniana como de Lacan. Em relação à primeira ,
como diz E . Jacks , "Melanie Klein, explorando a primeira infância através
da análise de crianças muito pequenas, acrescentou uma nova dimensão
fundamental à teoria analítica: a ação dos processos p sicóticos inconscien­
tes e das angústias psicóticas nas neuroses e nos comportamentos normais
( . . . ) . Para Melanie Klein, a neurose infantil é o modo de elaboração (workíng
through) das angústias psicóticas precoces. É a expressão da elaboração d e
angústias precoces" .6
Não posso deixar de assinalar que há uma diferença fundamental na
constituição do aparelho psíquico infantil desde minha perspectiva e a d e
Melanie Klein. Esta diferença resume-se centralmente em que minha
investigação conduz, baseada na metapsicologia freudiana, ao fato de que
o inconsciente não pode ser considerado como existente desde as origens,
senão efeito da fundação operada no aparelho psíquico pelo recalcamento
originário. Esta diferença teórica propõe, por sua vez, divergências clinicas,
na medida em que não havendo inconsciente desde as origens, minha
preocupação central em psicanálise de crianças se focaliza em determinar
os critérios de analisabilidade e a busca de novas propostas técnicas a partir
da localização metapsicológica precisa onde se localiza o transtorno que
enfrentamos. No entanto, o que Melanie Klein chama elaboração de
ansiedades psicóticas não se diferencia, de fato, do que nós consideramos
como eixo da problemática infantil da primeira infância, isto é, uma
elaboração que permita a consolidação dos movimentos que operam para o
estabelecimento definitivo das fronteiras , deslindes e separações no interior
do aparelho psíquico.
Outro aspecto que nos situa em sua mesma linha de trabalho é a
convicção de que a problemática infantil deve ser cuidadosamente analisada
em sua intrinseca constituição fantasmática, e não em relação a uma
realidade na qual o traumatismo fica reduzido a uma facticidade ingênua
que desloca a psicanálise de seu eixo elaborativo para situá-la na ordem da
criação pedagógica da criança.
Em relação a isso, desejo destacar o profundo efeito que seu trabalho
teve em minha compreensão da especificidade do campo analítico; sua
aguda observação do simbolismo no processo da cura (que leva a considerar
que no consultório nunca um buraco na parede seja um buraco na parede,
senão algo da ordem dos orifícios de entrada e de saída, tanto do próprio
corpo como do corpo matemo) marcou minha perspectiva clinica dando-me
recursos para evitar que a rigorização de minha tarefa pudesse converter­
se em uma intelectualização.
204 I Silvia Bleichmar
Também retomei as propostas lacanianas em relação ao lugar que o
Édipo ocupa enquanto campo estruturante do sujeito, assim como a
importância do discurso matemo em sua constituição. No entanto, além das
diferenças já expostas nestas conclusões em relação ao conceito de estru­
tura e do modo em que penso que este conceito deve ser ressituado na
psicanálise de crianças, ao longo de meu trabalho encontrei determinações
que põem em correlação o sujeito psíquico com o desejo matemo, mas não
relações homotéticas entre a estrutura do Édipo e o aparelho psíquico
infantil. Creio que a divergência fundamental - j á desenvolvida - pode
resumir-se no fato de que desde a perspectiva teórica aonde nos situamos ,
o inconsciente está em relação com o discurso d o outro, mas não é o discurso
do Outro.
O exemplo de Dick, caso exposto por Melanie Klein em 1 930, pode ser
ilustrativo destas convergências e divergências.7 Trata-se - como é bem
conhecido - do processo da cura de um menino que hoje, a partir dos
conhecimentos que possuímos, podemos considerar psicótico. Melanie
Klein - como assinala Lacan - nas primeiras sessões lhe "enchapa" a
simbolização do mito edípico, e algo ocorre, pelo que se produz uma rápida
evolução no menino, que manifesta angústia e necessidade do outro
humano a partir do efeito das primeiras interpretações. Enquanto Melanie
Klein acredita que está interpretando o inconsciente de Dick, Lacan mostra
como, na realidade, o está fundando. Havendo, desde a ótica de Melanie
Klein, um inconsciente que opera desde as origens, ela põe em palavras o que
supõe que impede o desenvolvimento do ego travado pelo excesso de sadismo
precoce. Lacan, analisando o efeito da interpretação, diz: "Ela lhe encaixa o
simbolismo com a maior brutalidade. Melanie Klein ao pequeno Dickl Ela
começa imediatamente jogando-lhe as interpretações maiores. Joga-lhe
uma verbalização brutal do mito edípico, quase tão revulsiva para nós como
para qualquer leitor: Tu és o pequeno trem, tu queres transar com tua mãe".8
E que ocorre? "O menino simboliza a realidade que o rodeia a partir desse
núcleo, desta pequena célula palpitante de simbolismo que lhe dá Melanie
Klein".9 E estamos de acordo, o inconsciente de Dick se organiza, se
constitui, a partir do discurso de Melanie Klein, que simboliza com palavras
aquilo que não está organizado no sujeito. Com o que não estamos de acordo
ê com a conclusão ã que chega Lacan: que o discurso de Melanie Klein funda
o inconsciente de Dick porque "o Inconsciente é o discurso do Outro". Eis
aqui (diz) um caso no qual é absolutamente manifesto.
Se o discurso de Melanie Klein produz um efeito não é, desde nossa
perspectiva, porque revela o inconsciente (um inconsciente que não toma tal
caráter, na medida em que a tópica psíquica não terminou de constituir-se),
senão porque ajuda a fundá-lo. Mas o conteúdo deste inconsciente - e esta
é nossa divergência com Lacan - não é o discurso do Outro , não está
constituído pelas palavras de Melanie Klein; o inconsciente de Dick se
Nas Origens do Sujeito Psíquico I 205
constitui na medida em que as representaçõesjá inscritas em seu psiquismo
encontram uma localização tópica definitiva a partir do fato de que as
palavras de Melanie Klein introduzem uma simbolização maior, que funda
o recalcamento originário.
Neste movimento que realizamos para encontrar uma localização
metapsicológica precisa para os movimentos constitutivos do psiquismo ,
também se situa a questão da transferência em psicanálise de crianças.
Aquela discussão de 1927 ,entre Anna Freud e Melanie Klein, consistiu mais
em uma aproximação ao fenômeno clinico, um resumo de experiências e
uma visão intuitiva da perspectiva freudiana, do que em uma verdadeira
localização teórica daquele.
Revisando os temas desenvolvidos em relação a estes diversos movi­
mentos que inauguram a tópica psíquica e dão passagem à neurose infantil,
em meu espírito se insinua o seguinte: a diferenciação introduzida por
Lebovici para discriminar entre uma neurose da criança (aquela produzida
na infância) e a neurose infantil (reconstruída no transcurso da cura do
adulto , tal como é mostrado no exemplo do Homem dos Lobos). parece
correta.10 Compartilhamos também a proposta de diferenciar entre neurose
à transferência e neurose de transferência (a primeira, referida à capacidade
mais geral de estabelecer transferências, no sentido em que Freud diferen­
ciava as neuroses das psicoses; e a segunda, como aquela que pode se
estabelecer no interior do campo analítico). No entanto , parece-nos neces­
sário assinalar que a possibilidade de estabeleceruma -':1-eurose à transferên­
cia se produz já na infância, diferente do que é sustentado por Lebovici, j á
que é o efeito do recalcamento dos representantes dos objetos originário s
sepultados n o inconsciente , mas a o mesmo tempo - como desenvolvemos
em capítulos precedentes ao analisar a constituição do objeto de amor em
relação com o obj eto parcial (da pulsão) - da constituição do ego em suas
relações com o id e com o superego , isto é, da resignação do narcisismo
primário.
Em tal sentido, a instauração do recalcamento originário implica, por
sua vez, no funcionamento das diversas instâncias psíquicas e possibilita o
estabelecimento de uma passagem entre a libido de objeto e a libido do ego,
como condição da neurose à transferência e, por conseqüência, da neurose
de transferência.
A perda definitiva dos pais infantis se produz no movimento que
desprende definitivamente o sujeito do narcisismo originário, quer dizer, no
momento de constituição do superego e da instauração do recalcamento
aprés coup. A partir disso, nossa proposta considera que na própria infância
vão se criando já as condições no aparelho psíquico para a constituição da
neurose de transferência,mesmo que seja no marco da neurose da criança,
e não da reconstrução da neurose infantil.
206 I Silvia Bleichmar Nas Origens do Sujeito Psíquico I 207

Esta perda dos obj etos originários relacionados com a constituição do 3. P. Nora, "Le retour de !'événement", e m Faire de t'histoire. Nouveaux problemes,
Paris: Gallimard, 1974, pág. 2 1 2 .
ego ideal é o momento de estabelecimento das possibilidades da neurose à
4 . J . F. Lyotard, Discurso, figura, Barcelona: Gustavo Gili, 1979.
tranferência e, por conseqüência, da neurose de transferência no interior do
5 . Veja-se, a respeito, F. Furet, "Le quantitatif en histoire", em P. Nora, op. cit.
processo da cura da criança. De toda maneira, isso não implica que não haja 6. E. Jacques, "Le concept kleinien de névrose infantil e", em La psychiatrie de l'enfant,
movimentos de transferência prévios; já que o aparelho psíquico não pode Paris: PUF, vol. XY, fase. 1 , 1972.
constituir-se se não é pela perda dos obj etos originários, que deixam sua 7. M. Klein, "A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego", em
marca na instauração dos representantes representativos pulsionais, po­ Contribuições à psicanálise, São Paulo, Editõra Mestre Jou, 1970.
dendo se estabelecer precocemente, a partir disso, transferências de carga, 8. J. Lacan, Le Séminaire, libraI: Les écrits techniques deFreud, Paris: Seuil, 1975, pág.
81.
existentes já nas crianças muito pequenas antes de que existam as
9 . Op. cit., pág. 1 00.
condições para a neurose à transferência. Minha intenção é tomar explicito. 1 0 . S. Lebovici, "L'expérience du psychanalyste chez l'enfant et chez l'adulte devant le
a partir destas observações, que considero que os pais reais jamais são modêle de la névrose de transfert", Revue Française de Psychanalyse, Paris, nº 5-
objetos fantasmáticos de transferência, compartilhando o que foi proposto 6, setembro-dezembro de 1980.
por Melanie Klein, que definiu esta questão indiscutível na psicanálise de
crianças.
Devo assinalar, por último, que retomei, ao longo de todo meu trabalho,
a discussão aberta por Laplanche e Leclaire no Colóquio de Bormeual, para
propor que a assimilação do inconsciente ao discurso retoma, sob uma nova
forma, uma antiga proposta fenomenológica que reduz a estrutura ao efeito
- sej a este considerado sintoma, conduta ou palavra -, anulando o caráter
maior do descobrimento freudiano. Meus desenvolvimentos recuperam a
tese de uma estrutura intrapsíquica (topos discemível inclusive em uma
graficação formalizante) produtora de efeitos, da qual o suj eito conhece
apenas uma pequena parte como conseqüência de sua posição em relação
ao recalcamento, que subtrai o inconsciente e o isola defmitivamente.
A psicanálise de crianças , por encontrar-se na dificil posição de
trabalhar nos próprios momentos de constituição desta tópica, enfrenta-se
tanto com os movimentos que a instauram, como com a busca de uma
proposta teórico-clínica que permita abordar seus fracassos. Nas fronteiras
ou no interior da psicose infantil, mas sempre bordejando-a, define-se a
tarefa do psicanalista de crianças que, através da prática cotidiana,
enfrenta-se com uma diversidade de movimentos de passagem, verdadeiros
momentos de estruturação do aparelho psíquico, cuja fenomenologia se
plasma na diversidade de entidades psicopatológicas que, no entanto , não
são suficientes para compreender a multiplicidade mutante que se lhe
oferece.
Daí o retomo à metapsicologia freudiana, que inspira todo meu
trabalho.

Notas d e referência

1 . J. L. Lang, Auxfrontiêres de la psychose infantile, PUF, 1 978, pág. 27.

2. M. Foucault, "Vérité et pouvoir" , em L' are, Paris, nq 70, 1977

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