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JOSEPH COURTES

INTRODUÇÃO
À SEMIÓTICA
NARRATIVA
E DISCURSIVA

Prefácio de
A. J. GREIMAS

LIVRARIA ALMEDINA
COIMBRA—1979
Título original: «Introduction à la Semiotique Narrative et Discursive»

(Publicada na colecção: «Langue-Linguistique-Communication»,


dirigida por Bernard Quemada)

Librairie Hachette

Tradução de
NORMA BACKES TASCA
(Assistente da Faculdade de Letras do Porto)

Direitos reservados para todos os Países de Língua Portuguesa,


por Livraria Almedina — Coimbra — Portugal

Toda a reprodução desta obra, seja por fotocópia ou outro qualquer


processo, sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícita e passível
de procedimento judicial contra o infractor.
AS AQUISIÇÕES E OS PROJECTOS

Prefácio de A. J. GREIMAS

0. OBSERVAÇÕES INTRODUTÓRIAS

O domínio semiótico que conheceu, nos últimos anos, os


progressos mais notáveis — ou, ao menos, o maior número de
investigações teóricas e aplicações — é incontestavelmente o
da análise narrativa dos discursos. Tendo partido da explo-
ração um pouco prematura da «morfologia» de Propp, a
reflexão sobre a narratividade deu lugar ora a projectos de
uma disciplina autónoma, a «narratologia» por exemplo, ora
a construções rápidas de «gramáticas» ou de «lógicas» narra-
tivas. É que, contrariamente ao que se passou na U.R.S.S. ou
nos Estados Unidos, onde semióticos tais como E. Meletinsky
ou A. Dundes se esforçaram por aprofundar o conhecimento
dos mecanismos internos da narração limitada aos textos
etno-literários, a semiótica francesa quis ver na obra de Propp
um modelo capaz de permitir uma melhor compreensão dos
princípios mesmos da organização dos discursos narrativos
no seu conjunto. A hipótese da existência de formas univer-
sais organizando a narração, explicitamente reconhecida ou
implicitamente admitida, mesmo inspirando-se em numerosas
investigações, provocou ao mesmo tempo mal-entendidos
extremamente lamentáveis.
Independentemente das críticas que se apoiam em pres-
supostos ideológicos anti-científicos e que atingem — ou não
atingem — o conjunto das ciências humanas, o primeiro destes
malentendidos provém da aplicação mecânica dos modelos
proppianos — ou dos seus derivados triviais — a textos lite-
rários de uma grande complexidade. Sem colocar em questão
o postulado da universalidade das formas discursivas, tais
práticas conseguiram muitas vezes provar a ineficácia dos
procedimentos oferecidos pela semiótica. Duas tarefas, extre-
mamente distintas, eram continuamente confundidas nos exer-
cícios deste género: a primeira visa o alargamento dos nossos
conhecimentos das organizações narrativas e adopta muitas
vezes, por gosto ou por necessidade, procedimentos dedutivos
e formalizantes; a segunda, ao contrário, busca explorar o
conhecimento dos modelos narrativos, visando a leitura des-
tes objectos semióticos complexos e particulares que são os
textos, e sobretudo os textos literários. Não é surpreendente
que a pobreza dos meios dê lugar a leituras insignificantes.
Duas espécies de fraquezas — ou de insuficiências — ex-
plicam este estado de coisas. Certos semióticos não souberam
ter em conta os resultados das investigações de. um Dumézil
ou de um Lévi-Strauss, que evidenciaram a existência das
estruturas profundas, organizadoras dos discursos, mas subja-
centes às manifestações da narratividade de superfície de tipo
proppiano. Negligenciaram igualmente a avaliação da dis-
tância enorme que separa o desenvolvimento narrativo da
linearidade do texto manifestado e que as investigações de
retórica e de lingüística textual começam apenas a preencher.
A leitura de um texto literário, reduzido assim à sua dimensão
narrativa de superfície, só podia consequentemente aparecer
empobrecedora em extremo, tanto mais que os modelos da
análise narrativa tomados de Propp e ligeiramente ordenados
se tornam cada vez menos adequados para dar conta dos
objectos de uma complexidade estrutural cada vez maior.
Inscrevendo-se como prelúdio a uma obra de iniciação
aos problemas gerais da semiótica, este texto desejaria ilus-
trar um dos seus problemas mais delicados, mostrando, por
um lado, o caminho percorrido desde a redescoberta de Propp

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e distinguindo, por outro lado, tão nitidamente quanto pos-
sível, o que pode ser considerado como uma aquisição da
semiótica: projectos e hipóteses que querem abrir a via para
novas investigações.

I. EXAME CRÍTICO DA «MORFOLOGÍA» PROPPIANA

1. Problemas da linguagem descritiva

Sem procurar minimizar a importância da descoberta


de Propp, é no entanto necessário dizer que a apresentação
dos resultados da sua análise carecia de rigor e oferecia
lacunas evidentes.
a) Dizer, como faz (Propp, que o conto é a sucessão
de 31 (sic) funções, supõe a definição prévia do conceito de
«função». Ora, se pudermos fiar-nos na intuição de Propp ao
considerar as «funções» como recobrindo as «esferas de acção»
dos personagens do conto, as formulações que ele dá de dife-
rentes funções deixam-nos muitas vezes perplexos: se a «par-
tida do herói» aparece como uma «função» correspondendo
a uma forma de actividade, a «falta», longe de representar
um fazer, designa antes um estado e não pode ser considerada
como uma função.
Assim, quando consideramos o inventário das denomi-
nações das «funções» proppianas, temos a impressão de que
elas servem no seu espírito muito mais para resumir, subsu-
mindo as variantes e generalizando a sua significação, as dife-
rentes seqüências do conto, do que para designar os dife-
rentes tipos de actividade, cuja sucessão mostra o conto como
um programa organizado. A linguagem descritiva utilizada por
Propp apresenta-se, portanto, como uma linguagem documen-
tal: sem colocar-lhe outras exigências, podemos aplicar-lhe
alguns princípios simples que regem a construção de tais lin-
guagens, buscando, em primeiro lugar, dar a esta sucessão
de «funções» uma formulação canónica uniforme. Para per-
manecer fiel à noção de «esfera de acção», podemos repre-
sentar, por exemplo, de maneira uniforme, cada «acção» por
um predicado {ou junção, no sentido lógico de «relação»),
completando esta apresentação da «acção» pela adjunção de
actantes (— «personagens») implicados na acção. A «função»
proppiana tomará então a forma canónica de um enunciado
narrativo:
EN = F (Al A2...)

Sem trair de forma alguma a intuição proppiana, uma


tal notação homogénea constitui já um preâmbulo para uma
reflexão formal: ela permite, por exemplo, considerar a fun-
ção «deslocamento» como um invariante e examinar os
actantes que nela estão implicados em diversos lugares do
texto como variáveis; ela facilita, tomando tal actante como
invariante, a reunião de todas as suas funções como consti-
tuindo a sua «esfera de acção», etc.
b) Uma tal tentativa de uniformização, colocando exi-
gências de rigor, não pode deixar de revelar as lacunas e as
ambigüidades da apresentação proppiana. Assim, inscrevendo
na seqüência narrativa um enunciado narrativo que assinala
a partida do herói, não podemos deixar de notar a ausência
da «chegada do herói»; da mesma forma, examinando a fun-
ção proppiana de «casamento», somos levados a ver nela um
sincretismo de ao menos dois enunciados narrativos: o casa-
mento recobre o dom que o pai (ou o rei) faz da sua filha
ao herói, mas também a relação contratual entre os dois inte-
ressados. O problema da escrita «correcta» das unidades
encontra-se do mesmo modo ultrapassado; o facto de que
um enunciado narrativo, logicamente necessário, se encon-
tra omitido nas manifestações textuais e que, ao contrário,
um segmento textual está presente para assinalar dois enun-
ciados narrativos subjacentes, coloca a questão do estatuto
teórico do que era para nós até aqui somente um discurso
documental e das suas relações com o texto narrativo mani-
festado nas suas ocorrências. Em vez de ser um resumo
documental do que encontramos nos textos que ele recobre,
este discurso segundo aparece como uma representação sin-
táctico-semântica, ao mesmo tempo encatalizada e liberta de
ambigüidades, sendo considerada como uma estrutura pro-

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funda em relação às estruturas de superfície que são os textos-
-ocorrências.

2. O reconhecimento das regularidades

Viu-se que a simples normalização das denominações


das «funções» proppianas, formuladas como enunciados nar-
rativos, permite já reconhecer um certo número de regula-
ridades no interior da «sucessão» que constitui, segundo
Propp, o conto como narrativa.
a) Cl. Lévi-Strauss foi o primeiro a chamar a atenção
dos investigadores para a existência das projecções paradig-
máticas que recobrem o desenvolvimento sintagmático da
narrativa proppiana, e a insistir na necessidade de proceder
por acoplamentos de «funções». Com eifeito, os enunciados
narrativos podem ser acoplados não devido à sua contigui-
dade textual, mas à distância, tal enunciado convocando — ou
antes lembrando — o seu inverso anteriormente posto; novas
unidades narrativas — descontínuas em relação à trama da
narrativa, mas constituídas por relações paradigmáticas apro-
ximando os seus predicados^unções — aparecem assim como
pares do tipo:

/ partida / vs / retorno /
/ criação ida falta / vs / liquidação da falta /
/ estabelecimento do interdito / vs / ruptura do interdito /, etc.

No interior do esquema sintagmático, estas unidades


paradigmáticas desempenham o papel organizador da narra-
tiva e constituem, por assim dizer, a armação desta. Mais
ainda: não sendo a simples «sucessão» de enunciados narrati-
vos suficiente para dar conta da organização da narrativa,
é somente o reconhecimento das projecções paradigmáticas
que permite falar da existência das estruturas narrativas.
b) A leitura do inventário das «funções» proppianas
revela, por um lado, não somente a existência de unidades
sintagmáticas de dimensão maior que os enunciados narrati-
vos — pensar-se-á, em primeiro lugar, nas provas —, mas
também o seu carácter recorrente. Duas espécies de recor-
rências podem ser observadas. Encontramos antes de mais
duplicações (uma prova que fracassa é seguida da mesma
prova que triunfa) e/ou triplicações (três provas sucedem-se
e visam a obtenção do mesmo objecto de valor); dado que a
significação funcional destas recorrências — elas marcam a
intensidade ou a totalidade do esforço — não põe problemas,
o estudo comparativo das unidades recorrentes permite
reconhecer as características invariantes e formais da prova
e distingui-las dos investimentos semânticos e figurativos
variáveis. Após a redução deste género de recorrências, encon-
tramo-nos em presença de uma série de provas que, mesmo
possuindo a forma canónica já reconhecida, se distinguem
uma da outra tanto pela diferença dos objectos de valor
visados como pela sua posição no encadeamento sintagmá-
tico. Dito de outra forma, ao lado das relações paradigmá-
ticas precedentemente mencionadas, encontramos igualmente
relações sintagmáticas, susceptíveis de desempenhar o papel
organizador de estruturas narrativas. O reconhecimento de
uma armação relacionai organizadora da narrativa substitui
assim a definição proppiana do conto como «uma sucessão
de (31) funções».

II. AS ESTRUTURAS NARRATIVAS: APÓS PROPP

1. O esquema narrativo

1. 1. Uma seqüência de provas

Pode-se perguntar o que resta ainda da definição prop-


piana do conto, após este primeiro exame analítico que nos
permitiu substituir à noção vaga de «função» a fórmula canó-
nica de enunciado narrativo, reconhecer a existência de uni-
dades narrativas de caracter ora paradigmático, ora sintag-
mático, constituídas pelas relações que os enunciados nar-
rativos mantêm em si, e interpretar a narrativa como uma
estrutura narrativa, isto é, como uma vasta rede relacionai

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subentendida pelo discurso de superficie que só a manifesta
parcialmente. Pode-se perguntar nomeadamente o que quer
dizer neste caso a noção de «sucessão», elemento capital da
definição de iPropp: designa ela simplesmente o facto de que
os enunciados narrativos se sucedem ums aos outros no mo-
mento da manifestação linear da narratividade sob a forma
de discurso — o que, mesmo não sendo falso, nos reenviaria
novamente para a concepção da «morfología» como um simples
resumo de acontecimentos relatados no conto — ou convida-
-nos antes a considerar o dispositivo sintagmático da narrativa
como tendo um «sentido», uma direcção, uma intencionali-
dade subjacente cuja interpretação nos caberia propor? Ê esta
segunda hipótese que reteremos de momento.
A atenção do leitor de Propp não deixava de ser atraída,
dizíamos, pela recorrência das três provas que articulam como
outros tantos tempos fortes o conjunto da narrativa.
São elas:

— a prova qualificadora;
— a prova decisiva; e
— a prova glorificadora.

Seguindo passo a passo o herói do conto maravilhoso,


notamos, com efeito, que este, depois de ter aceite a sua
missão, deve submeter-se primeiramente a uma espécie de
exame de passagem que lhe permite adquirir — ou o confirma
como o detentor de — qualidades exigidas para empreender
uma busca que terminará pelo empenho decisivo e pela obten-
ção do objecto de valor procurado; na seqüência destas faça-
nhas, ele será reconhecido e glorificado como um herói. Reflec-
tindo um pouco a respeito disto, damo^nos conta de que se
trata aqui de uma «história» completa que nos é contada,
da história de uma vida exemplar, cujas provas articulam os
três episódios fundamentais que todos os contistas do mundo
repetem incansavelmente: a qualificação do sujeito, manifes-
tada sob diversas formas (rituais de iniciação, ritos de pas-
sagem, concursos e condecorações); a realização do sujeito
na vida, considerada como um esipaço virtual que o homem

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é convocado a preencher pelos seus actos, executando alguma
coisa e revelando-se a si próprio no mesmo gesto; o reconhe-
cimento, esse olhar do outro que atribui os actos ao seu
autor e o constitui em seu ser.
Esta é evidentemente apenas uma versão, entre outras
que o imaginário humano nos oferece, do «sentido da vida»,
apresentado como um esquema de acção: as variações sobre
este tema são numerosas e abrem assim todo um leque de
ideologias. O que conta de momento é o reconhecimento de
um princípio de organização invariante que permite consi-
derar este esquema como um conceito operatorio. O agen-
ciamento proppiano sugere-nos a possibilidade de 1er qualquer
discurso narrativo como uma busca do sentido, da signifi-
cação a ser atribuída à acção humana: o esquema narrativo,
aparece, portanto, como a articulação organizada da activi-
dade humana que o erige em significação.
•Uma tal concepção do esquema narrativo — embora
traga um começo de resposta à questão muito controversa
de saber o que é a narrativa — é evidentemente apenas uma
hipótese susceptível, no entanto, de convocar à sua volta
numerosas investigações particulares. O valor do modelo
proppiano, vê-se bem, não reside na profundidade das aná-
lises que o suportam, nem na precisão das suas formulações,
mas na sua virtude de provocação, no seu poder de suscitar
hipóteses: é a ultrapassagem da especificidade do conto mara-
vilhoso em todos os sentidos que caracteriza a preocupação
da semiótica narrativa desde os seus primordios. O alarga-
gamento e a consolidação do conceito de esquema narrativo
canónico aparece assim como uma das tarefas presentes.
Se a «sucessão» proppiana, interpretada como uma inten-
cionalidade significante e situada a um nível mais profundo do
que a simples linearidade da manifestação discursiva, permite
postular a existência de um esquema narrativo organizador,
a articulação lógica deste esquema dá, ao contrário, a imagem
de uma «sucessão às avessas». 'As três provas, para falar
somente delas, sucedem-se, efectivamente, na linha temporal
(ou gráfica), umas às outras, mas não existe nenhuma neces-
sidade lógica de que a prova qualificadora seja seguida de

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uma prova decisiva ou de que esta seja sancionada: quantos
exemplos de sujeitos competentes que nunca passam à acção,
quantas acções meritorias nunca reconhecidas. A leitura às
avessas instala, ao contrário, uma ordem lógica de pressuposi-
ção: o reconhecimento do herói pressupõe a acção heróica;
esta, por sua vez, pressupõe uma qualificação suficiente do
herói (abstracção feita, evidentemente, do dispositivo dos
valores de verdade que, sobredeterminando diferentemente
as provas, introduz novas variáveis). A intencionalidade do
discurso narrativo, simples hipótese à partida, encontra a
sua justificação, à semelhança do desenvolvimento do orga-
nismo em genética, no agenciamento lógico reconhecível a
posteriori.

1. 2. A confrontação

A reflexão que nos permitiu apreender o conceito de


esquema narrativo assenta, em grande parte, no exame do
conto maravilhoso proppiano. Observamdo-o atentamente,
percebe-se que este conto, em vez de constituir um todo
homogéneo, é na realidade uma narrativa complexa ou pelo
menos dupla, porque se ele se apresenta como a relação das
provas realizadas pelo sujeito (herói) contém ao mesmo
tempo — de uma maneira semi-oculta, é verdade — uma outra
história, a do anti-sujeito (traidor), duas narrativas que,
mesmo cruzando-se e interpenetrando-se, só se distinguem
uma da outra, do ponto de vista da sua organização formal,
pela sua coloração moral diferente, positiva ou negativa. Esta,
longe de ser uma característica constitutiva da narrativa, é
somente uma sobredeterminação secundária e variável: o
traidor proppiano, sobredeterminado negativamente, tem um
comportamento comparável ao do Pequeno Polegar, herói
positivo; o Ogre, apresentado como «traidor», não se distin-
gue essencialmente, devido à sua modalização por um poder-
-fazer em estado puro, do heróico Roland recusando-se a tocar
a trombeta, e a recorrer assim a um certo «saber-fazer».
A constatação deste desdobramento obriga-nos a consi-
derar o esquema narrativo como constituído por dois per-

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cursos narrativos, próprios de cada um dos sujeitos (sujeito
e anti-sujeito) instalados na narrativa. Estes percursos podem-
-se desenrolar separadamente, dominando um deles, por exem-
plo, o início e o outro o final da narração: é necessário, entre-
tanto, que eles se encontrem e se sobreponham num dado
momento, para produzir uma confrontação dos sujeitos que
constitui, por conseguinte, um dos eixos do esquema nar-
rativo. A confrontação, por sua vez, pode ser quer polémica,
quer transacional, manifestando-se ora por um combate, ora
por uma troca, permitindo esta distinção reconhecer duas
concepções das relações inter-humanas (luta de classes, por
exemplo, oposta ao contrato social) e dividir as narrativas,
segundo este critério, em duas grandes classes.

1. 3. Circulação dos objectos e comunicação entre sujeitos

O alcance destas confrontações, e pouco importa que


elas sejam violentas ou pacíficas, é constituído por objectos
de valor cobiçados dos dois lados, e as suas conseqüências
reduzem-se às transferências de objectos de um sujeito para
outro. A confrontação pode ser assim resumida, nos seus
resultados, por uma fórmula canónica simples:

S, U O n S2

que indica que na seqüência de um afrontamento ou de uma


transacção, um dos sujeitos se encontra necessariamente dis-
junto do objecto de valor, enquanto o seu antagonista entra
em conjunção com este mesmo objecto. No conto maravi-
lhoso, tais transferências produzem-se várias vezes (o traidor
apodera-se da filha do rei, o herói recupera-a e entrega-a a
seu pai que a oferece em casamento ao herói), e a etno-
-literatura conhece um género de narrativas caracterizado
pelo encadeamento sem fim de transferências de objectos.
A narratividade, deste ponto de vista, pode-se definir pela
circulação de objectos, constituindo cada transferência um
eixo narrativo a partir do qual tudo pode recomeçar.

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Entretanto — e isto é talvez o mais importante — vê-se
aparecer aqui uma nova distinção entre dois níveis de pro-
fundidade desigual: se a narrativa parece subentender uma
espécie de sintaxe elementar de transferências, os desloca-
mentos dos objectos são ao mesmo tempo recobertos, a um
nível mais superficial, por configurações discursivas de todas
as espécies (provas, raptos, fraudes, trocas, dons e contra-
-dons) que os desenvolvem de maneira figurativa. Disto resulta
que os dois níveis assim reconhecidos podem ser descritos
e tratados separadamente e que, para dar conta do funciona-
mento interno do texto narrativo, é necessário fixar, por um
lado, regras de circulação dos objectos de valor, e, por outro,
constituir uma tipologia das configurações discursivas gra-
maticais, através das quais estas transferências se manifes-
tam: novas regras de restrição, que precisassem as condições
de sutura das configurações com as transferências, estabe-
leceriam a ponte entre as representações lógica e figurativa
da narratividade.
A circulação dos objectos não é, portanto, qualquer
coisa de mecânico e de evidente; semelhante a uma bola que,
no momento de um jogo de futebol, muda continuamente de
campo, o objecto-valor necessita de ser arremessado e apa-
nhado pelos sujeitos performantes. As configurações discur-
sivas, que um pouco rapidamente situámos na dimensão figu-
rativa do texto, recobrem não somente as transferências de
objectos, mas também uma seqüência de actos efectuados
pelos sujeitos que realizam as transferências: dito de outra
forma, a circulação dos objectos pressupõe a colocação prévia
dos sujeitos que os manipulam, uma estrutura da comuni-
cação no interior da qual os objectos circulariam de forma
semelhante às mensagens.

2. O programa narrativo

2. 1. Os enunciados de estado

Mesmo conservando para as configurações discursivas


gramaticais o seu estatuto de cobertura figurativa de opera-

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ções lógicas, somos levados a reconhecer e a distinguir formal-
mente, sob esta cobertura transparente, duas espécies de
sujeitos: os sujeitos de estado e os sujeitos de fazer, consi-
derando os primeiros, devido às suas junções (conjunção e
disjunção) com os objectos, como depositários dos valores,
e os segundos como sujeitos agentes que, operando junções,
transformam os primeiros. Os sujeitos de estado definem-se,
na sua existência semiótica, pelas suas propriedades (qualifi-
cações, atribuições): com efeito, eles só podem ser reconhe-
cidos como sujeitos na medida em que estão em relação
com objectos de valor e participam em diferentes universos
axiológicos; os objectos de valor, por sua vez, só são valores
se forem objectos visados pelos sujeitos. Dito de outra forma,
não há definição possível do sujeito sem a relação deste com
o objecto, e inversamente.
Portanto, a representação canónica do sujeito só pode
tomar a forma de um enunciado de estado, cuja função é
constituída pela relação entre o sujeito e o objecto:

S n O ou S U O

Uma tal formulação tem a vantagem de permitir definir


cada actante do esquema narrativo, num determinado mo-
mento da narração, pelo conjunto de enunciados de estado
que o constituem.

2. 2. Os enunciados de fazer

lO sujeito de fazer opera transformações que se situam


entre os estados. Assim a fórmula

S u O -» S n O

deve ser lida como a representação de dois estados sucessivos


de um sujeito que, primeiramente disjunto do objecto de
valor, se encontra a seguir conjunto com ele, e isto após uma
intervenção que determina a mudança. Uma tal intervenção só
pode ser interpretada se postularmos a existência de um fazer

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transformador, exercido por um sujeito de fazer e visando,
enquanto objecto, um enunciado de estado que deve ser trans-
formado: o enunciado de fazer é, portanto, um enunciado que
rege um enunciado de estado. Notando de maneira redun-
dante o sujeito de fazer como Si e o sujeito de estado como S2,
pode-se representá-lo da seguinte forma:

F transí. [Si -> (S2 H O)] ou F. transí. [Si -^ (S2 U O)]

A distinção de dois sujeitos. Si e S2, não resulta unica-


mente de uma exigência formal, mas assenta em numerosos
casos observáveis; se, no caso do fazer chamado «furto», os
dois sujeitos estão sincréticamente reunidos num só actor,
em caso de «dom», o mesmo estado de 82 é obtido pelo fazer
de Si, distinto do primeiro.
Se quiséssemos traduzir no francês de todos os dias a
fórmula que acabamos de propor, faríamo-la corresponder a
qualquer coisa como «fazer-ser», o que constitui a definição
tradicional do acto: os enunciados de fazer e os enunciados
de estado são, portanto, apenas representações lógico-semân-
ticas dos actos e dos estados.

2. 3. A sintaxe actanciàl

Eis que, de forma inesperada, se encontra proposta a


solução de um problema que não cessa de inquietar os semió-
ticos, o de uma definição eventual da «narrativa mínima»:
com efeito, se concebermos a narrativa, intuitivamente, como
«qualquer coisa que acontece», a nossa concepção do acto
enquanto produção de um novo estado pode servir para uma
tal definição.
No entanto, as conclusões que dela podemos tirar dis-
tinguem-se fundamentalmente das que ordinariamente são
adoptadas e segundo as quais a narrativa mínima seria uma
espécie de micro-narrativa susceptível de se combinar com
outras micro-narrativas, para constituir, após integrações,
interpenetrações e encaixes sucessivos, a macro-narrativa que
corresponde às dimensões do texto narrativo no seu conjunto.

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Para nós, a diferença entre a «micro-narrativa» e a «macro-
-narrativa» é uma diferença de natureza e não de dimensão.
Em primeiro lugar, impõe-se uma precisão terminoló-
gica. Falando do enunciado de fazer como a representação
de um acto produtor de estado, omitiu-se assinalar — como
se fosse evidente — que se trata aqui não de um acto efecti-
vamente realizado, mas de um acto contado, de um acto
«em papel», por assim dizer. Por isso é preferível considerar
a fórmula em questão como a que representa não o acto, mas
o programa narrativo dando conta da organização sintáctica
do acto.
Pode-se, portanto, retomar a observação já assinalada
em 2.2.1., segundo a qual o enunciado de estado pode servir
para definir qualquer actante do esquema narrativo num
momento qualquer do seu desenvolvimento, acrescentando,
para a completar, que ela é válida também para os enun-
ciados de fazer, susceptíveis de definir como sujeito de fazer
diferentes actantes da narração (destinador, sujeito, anti-
-sujeito, etc). Disto resulta que o sujeito de fazer e o sujeito
de estado, que acabamos de definir, não são actantes semió-
ticos que participam directamente, como tais, do esquema
narrativo que organiza o discurso, mas actantes sintácticos,
espécies de indicadores sintácticos dos modi operandi e signi-
ficandi, que permitem calcular operações efectuadas por dife-
rentes actantes e medir o seu «ser» em progressão e/ou em
diminuição constante, no momento do desenvolvimento da
narrativa. Dito de outra forma, os programas narrativos são
unidades narrativas que relevam de uma sintaxe actancial
aplicável a todas as espécies de discursos; eles dão conta da
organização dos diferentes segmentos dos esquemas narrati-
vos, sem serem por isso constituintes deste esquema que
corresponde, no sentido que Martinet dá a este termo, a uma
«articulação» outra do discurso.
Os programas narrativos (que abreviamos por PN) são
unidades simples, mas susceptíveis de expansões e de comple-
xificações formais que não mudam em nada o seu estatuto
de fórmulas sintácticas aplicáveis às mais diversas posições
narrativas.

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a) Assim, já mencionámos, falando das provas, os factos
de dupHcação ou de tripUcação que são, na reaUdade, apenas
multiplicações quantitativas de PN, em que as significações
funcionais (no interior do esquema narrativo) de intensifi-
cação e de totalização são patentes.
b) Podem-se acrescentar a isto as multiplicações de PN
devidas às multiplicações de objectos de valor visados (o
Pequeno Polegar primeiro ressuscita os seus irmãos e a seguir
adquire riquezas).
c) Uma relação hipotáxica pode reger dois ou vários
PN ligados entre si, um iPN habitual precedendo o PN prin-
cipal (o macaco, para chegar à banana, procura primeiro a
vara).
d) Pode-se finalmente introduzir o cálculo dos PN cor-
relacionados, dando conta das transferências de objectos e da
comunicação entre sujeitos (cf. «Un problème de sémiotique
narrative: les objets de valeur», in Langages, n.° 31).
As lista das complexificações dos PN não é exaustiva,
mas dá, no entanto, suficientes indicações sobre a possibili-
dade de uma formalização mais desenvolvida da sintaxe
actancial, instrumento indispensável da análise dos discursos.

III. UMA SEMIÓTICA DA ACÇÃO

1. A performance do sujeito

É possível retomar agora o esquema narrativo para ver


como nele se manifestam os diferentes elementos da sintaxe
actancial, mais precisamente, como os PN, nos quais pensa-
mos ter reconhecido o mecanismo apropriado que dá conta
da narratividade, funcionam no interior das grandes unidades
que constituem este esquema. Procedendo passo a passo, não
consideraremos o esquema no seu conjunto, mas um dos per-
cursos narrativos que o compõem (v. supra, 1.2.), e não o
percurso inteiro, mas um dos seus sintagmas, nomeadamente
o que corresponde, no modelo proppiano, à prova decisiva.
Esta, dizíamos, é o lugar privilegiado da narrativa, onde o

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herói, após a sua busca, pode enfim realizar a missão de que
está incumbido: é o momento do percurso narrativo que estru-
turalmente iparece mais próximo da definição do PN como
acto performador.
No entanto, é preciso não esquecer que o PN é a forma
canónica que dá conta, em princípio, de qualquer acto: a
sua projecção, para fins de identificação, no sintagma do per-
curso narrativo considerado, deve ser acompanhada da colo-
cação de um certo número de restrições que, mesmo salva-
guardando as suas características de acto, terão por fim espe-
cificá-lo, distinguindo-o das outras manifestações possíveis
do PN. Eis as principais restrições:
a) É necessário, em primeiro lugar, postular a reunião
do sujeito de fazer e do sujeito de estado em um só actante
narrativo: é com esta condição que o sujeito semiótica pode
ser reconhecido como ente e como agente. (Vê-se que, a con-
trario, a separação do sujeito de fazer e do sujeito de estado,
manifestada na configuração «dom», por exemplo, caracteriza
a relação entre o Des tinador e o Destinatário.)
b) O sujeito assim constituído deve visar o objecto
investido de um valor descritivo. Os valores descritivos defi-
nem-se pela exclusão dos valores modais (v. infra) e dividem-se
em valores pragmáticos (relevando de todos os universos
axiológicos possíveis) e valores cognitivos (constituídos não
pelo fim do objecto de valor, mas pelo saber sobre este
objecto): conforme a natureza dos valores visados, dir-se-ia,
no primeiro caso, que o percurso narrativo se situa na dimen-
são pragmática e, no segundo, na dimensão cognitiva, que o
sujeito exerce o fazer pragmático ou o cognitivo.
c) A terceira restrição, finalmente, incide sobre o modo
de existência semiótica do programa narrativo: o PN, para
aplicar-se à componente do percurso narrativo que exami-
namos, deve ser realizado nela, chegando o fazer exercido ao
resultado inscrito no enunciado de estado (conjunção ou dis-
junção).
(O PN, submetido a estas restrições — mas susceptível
de expansões mencionadas em 2.2.3. —, define a componente
do percurso narrativo chamada performance do sujeito.

22
2. A competência do sujeito

Parece evidente que o sujeito só pode realizar uma per-


formance se possuir, previamente, a competência necessária:
a pressuposição lógica constitui assim, antes de qualquer
outra consideração, a base da componente do percurso narra-
tivo que precede a performance. Da mesma forma, se a per-
formance corresponde, apesar das restrições introduzidas,
à definição do acto como um «fazer-ser», a competência,
quanto a ela, pode ser formulada, no mesmo registo intuitivo,
como a condição necessária do acto, como «o que faz ser».
Mas, contrariamente ao que se passa quando se quer
apreender o conceito de performance, a definição da compe-
tência não pode ser obtida partindo do modelo do /PN e do
enunciado de fazer que constitui o núcleo deste: a compe-
tência é «o que faz ser», ela é da ordem do «ser» e não do
«fazer». Consequentemente, é a estrutura do enunciado de
estado que deve ser tomada como ponto de partida para o
seu exame, e o sujeito competente deve, em primeiro lugar,
ser definido com a ajuda de propriedades que lhe estão con-
juntas e que constituem o conjunto de restrições que o espe-
cificam como um sujeito de estado.
a) O sujeito competente deve estar na posse de um PN
que eventualmente deverá realizar, programa que, quanto ao
modo de sua existência, terá o estatuto do PN actualizado (e
não realizado):
S n PN (a)

b) O sujeito competente deve, por outro lado, estar


dotado de «marcas» da realização deste PN, o que quer dizer
que ele deve possuir um conjunto de modalidades de querer
e/ou dever e de poder e/ou saber fazer. Como sujeito de
estado, o sujeito competente deve, consequentemente, estar
em conjunção com um objecto investido de um complexo de
valores modais (e não descritivos):

iS n Ov (v/d + p/s)

23
o objecto modal em questão é constituído por um con-
junto de sobredeterminações do fazer, isto é, de propriedades
que o fazer deve possuir antes de se tornar efectivo, previa-
mente à sua realização: conjunto com este objecto, o sujeito
competente aparece então dotado de um fazer actualizado,
como um sujeito semiótica em potência.

Obs. — Para evitar eventuais malentendidos, é preciso


sublinhar que, segundo a nossa perspectiva semiótica,
por competência do sujeito entende-se aqui uma combi-
natoria de modalidades compatíveis (cf. «Pour une théo-
rie des modalités», in Langages, Set. 1976): a compe-
tência não é sempre positiva, podendo ser insuficiente ou
mesmo negativa, assim como a performance, que pode
ser bem sucedida ou conduzir a um fracasso.

São estas condições gerais que determinam o estado do


sujeito pronto para passar ao acto, na posição que precede
imediatamente a performance. No entanto, se o facto de
considerar a competência como um estado permite esboçar
a descrição desta, ele não esgota inteiramente a problemá-
tica. Os enunciados que formulam este estado devem ser
interpretados como sendo regidos por enunciados de fazer
que dão conta das transformações que conduziram à cons-
tituição de «estados de coisas». Dito de outra forma, a exis-
tência do sujeito competente introduz o problema e pressupõe
o mecanismo da formação da competência. lA este respeito,
a narrativa prqppiana é extremamente reveladora: as provas
qualificadoras, numerosas e diversas, que nela encontramos
desenvolvidas, confirmam a importância que a narrativa atri-
bui à aquisição da competência.
Não há nada de surpreendente então no facto de a
formação da competência, que, uma vez constituída, aparece
como um «estado» do sujeito, tomar a forma sintáctica pre-
visível de uma seqüência de PN destinados a produzir o seu
enriquecimento progressivo. Entretanto, contrariamente ao
que se passa no momento da performance, em que os dois
sujeitos — sujeito de fazer e sujeito de estado — se encon-

24
tram em sincretismo, o sujeito operador aparece aqui como
uma posição sintáctica disponível, susceptível de ser ocupada
por diferentes actores. Entre o simples dom do Destinador e
as qualificações adquiridas pelo sujeito ele mesmo — duas
representações imaginárias polarizadas das origens da com-
petência, que correspondem grosso modo a uma série de
dicotomías, tais como o determinismo e o livre arbítrio, o
ineísmo e o aquisicionismo — situam-se formas ambíguas,
termos complexos dominados por um ou outro dos dois
pólos: o mais belo exemplo disto é a prova qualificadora,
característica do conto maravilhoso, que compreende o com-
bate simulado que nos faz crer que o sujeito se torna compe-
tente pelos seus próprios meios, e que ao mesmo tempo deixa
transparecer, sob a máscara do adversário, a figura do Desti-
nador, verdadeiro doador da competência.

3. A concepção dinâmica das estruturas actanciais

Uma concepção renovada de actante semiótico despren-


de-se progressivamente do exame do percurso narrativo, do
qual acabamos de apreender duas instâncias — a competência
e a performance — logicamente encadeadas. Reconhecido pri-
meiramente como uma virtualidade originante do ser e do
fazer, susceptível de articulações taxinómicas, o actante apa-
rece agora como portador de definições sintagmáticas com-
plementares.
Tomemos o caso do sujeito semiótico: vimos que o
sujeito é dito competente ou performante, na medida em que
ele for registado como presente numa ou noutra das com-
ponentes. Esta distinção ainda está, no entanto, pouco escla-
recida: do ponto de vista sintagmático, o sujeito efectúa,
no esquema narrativo previsível, um percurso narrativo que
é feito de uma seqüência de estados, cada estado distinguindo-
-se do que o precede devido a uma transformação criadora
de descontinuidades reconhecíveis.
(Não basta, consequentemente, falar do sujeito semió-
tico in abstracto, fundado sobre os conceitos de individuação
e da «permanência do ser», é ainda necessário precisar de

25
cada vez a sua posição sintagmática (compreendida como a
situação do estado do sujeito em relação ao conjunto do
percurso) e o estatuto modal que o caracteriza a cada etapa
deste percurso (o sujeito competente é sucessivamente sujeito,
por exemplo, segundo o querer-, poder-, saberíazer). Assim,
na medida em que o percurso narrativo se decompõe numa
seqüência de estados narrativos, compreender-se-á por papel
actancial a definição ao mesmo tempo posicionai e modal de
cada um destes estados.
Surge uma primeira dificuldade quando se quer apreen-
der esta concepção dinâmica do actante semiótico: percebe-se
logo que o sujeito não é uma simples sucessão de papéis
actanciais que ele assume, mas que, ao contrário, ele é, a
cada estado do percurso, o conjunto organizado dos papéis
actanciais adquiridos ao longo do percurso precedente; que
o «herói», por exemplo, é somente o sujeito considerado no
instante em que sai vitorioso do seu combate decisivo, mas
que tem atrás de si todo um «passado» que, desde as
suas «infâncias» e através das provas, o fez como é. Esta
é uma das grandes dificuldades, mas também o principal
interesse da semiótica discursiva: o discurso, contraria-
riamente à frase isolada, possui uma «memória»; se, de um
certo ponto de vista, se pode dizer que ele é feito de uma
sucessão de enunciados, deve-se acrescentar imediatamente
que, semelhante ao «si» francês que pressupõe um «non»
anterior, um enunciado inscrito na continuidade do discurso
«recorda-se», e que um estado definido pressupõe um estado
latente anterior. Disto resulta uma espécie de incompatibi-
lidade de humor — ou de natureza? — entre a análise do
discurso narrativo e a gramática transformacional que só
trata das transformações entre enunciados susceptíveis de
ser colocados em paralelo, e não das seqüências ordenadas
de enunciados. É também aqui que reside a dificuldade de
utilizar, para este género de análise, as regras experimentadas
do cálculo lógico que assenta no princípio de substituição de
enunciados ou de segmentos tautológicos.
Seria agora mais fácil distinguir o papel actancial do
estatuto actancial: enquanto o papel actancial é apenas

26
um excedente que se acrescenta, num dado momento do per-
curso narrativo, ao que já constitui o actante após a progres-
são sintagmática do discurso, o estatuto actancial é o que
o define, tendo em conta a totalidade do seu percurso ante-
rior, manifestado ou simplesmente pressuposto. Assim, por
exemplo, o adjuvante é um actor que assume um papel actan-
cial do sujeito do qual ele está disjunto enquanto actor; o
estatuto actancial do sujeito, no momento da aquisição do
adjuvante, é constituído pelo seu próprio percurso anterior,
mais o adjuvante.

4. Os modos de existência semiótica

iNo nosso desejo de ser claros, utilizámos, para ilustrar


a problemática da organização dos papéis actanciais, princi-
palmente exemplos tomados do segmento do percurso em
que se encontra situada a formação da competência, isto é,
no fundo, interessando-nos o sujeito semiótico como sujeito
de fazer. Deste ponto de vista, como instância originante dos
seus actos, o sujeito passa sucessivamente por três modos
diferentes de existência semiótica:

sujeito virtual —> sujeito actualizado —> sujeito realizado,

três estados narrativos em que o primeiro é anterior à aqui-


sição e em que o último designa o sujeito que produziu o
acto que o faz entrar em conjunção com o objecto de valor,
realizando assim o seu projecto.
Entretanto, o sujeito semiótico pode ser igualmente con-
siderado na sua qualidade de sujeito de estado, como uma
virtualidade de ser susceptível de acolher a sua própria «his-
tória». Ora, o sujeito de estado define-se essencialmente e
somente pela sua relação com o objecto de valor, relação que
está submetida a variações ao longo do percurso narrativo.
Assim, independentemente dos investimentos semânticos que
os objectos de valor podem receber, é lícito falar tanto do
seu estatuto modal como dos modos da sua existência semió-

27
tica. Se um objecto só se torna um valor como projecção do
«querer-ser» do sujeito, isto é, dotado do estatuto modal de
«ser-querido», é possível conceber-se que, antes de se tornar
um valor para o sujeito, ele não deixava de ter por isso uma
existência virtual no seio do universo axiológico caucionado
actancialmente pelo Destinador. (Pode-se dizer, continuando,
que a assunção pelo sujeito e a sua inscrição no pro-
grama narrativo actualiza o valor, que a conjunção com o
sujeito o realiza, que uma renúncia o revirtualiza ou que uma
disjunção forçada o reactualiza... Encontramos assim não
somente os três modos da existência semiótica dos objectos
de valor:

objecto virtual —> objecto actualizado —» objecto realizado,

que correspondem ao percurso geral do sujeito e o definem


como ente, mas também novos desenvolvimentos possíveis
a partir da performance em que as renúncias dos objectos
criam prolongamentos do esquema narrativo e em que novas
privações de objectos servem de eixos narrativos, pretextos
para o lançamento de novos percursos.

IV. NOVAS PERSPECTIVAS

1. Algumas conclusões

1. São fáceis de entrever as possibilidades de aplicação


de uma tal teorização dos percursos narrativos do sujeito à
análise textual: estes percursos, tomados com o conjunto das
suas variáveis, podem ser considerados como modelos de
previsibilidade e projectados sobre textos particulares mani-
festados, permitindo assim reconhe».,er a que tipo de percurso
e a que segmento do percurso corresponde o texto-ocorréncia.
Uma vez reconhecida a «macro-estrutura» do texto, é então
mais fácil, servindo-se dos instrumentos elaborados no qua-
dro da sintaxe actancial (enunciados de estado e de fazer,
PN, etc....), de empreender a análise das «micro-estruturas».

28
2. Uma exploração teórica mais ampla do reconheci-
mento dos percursos é igualmente concebível. Viu-se que,
abstracção feita dos conteúdos investidos nos discursos nar-
rativos e dos sistemas de valores que participam na sua cons-
trução, é possível reconhecer os sujeitos no seu ser (nas suas
relações com os objectos de valor) e na sua capacidade de
fazer (de produzir actos organizados em acções), sendo qual-
quer sujeito susceptível de ser dotado de uma definição ao
mesmo tempo modal e posicionai, isto é, formal e não subs-
tancial. A semiótica narrativa fornece assim um aparelho
processualista, com vista à constituição de uma tipologia dos
sujeitos semióticos, contribuindo por este meio para a elabo-
ração de uma semiótica das culturas.
3. Por outro lado, o exame do esquema narrativo mos-
trou-no-lo como dotado de uma estrutura transaccional e/ou
polémica, colocando em cena e confrontando sujeitos com
competências variáveis, com intencionalidades muitas vezes
conflituosas. A partir de uma tipologia dos sujeitos, que é
de ordem taxinómica, uma sintaxe dinâmica, concebida como
uma estratégia da comunicação — entre sujeitos competentes
que trocam quaisquer objectos de valor — poderia ser cons-
truída.
4. Este breve exame recapitulativo já permite medir o
caminho percorrido desde a redescoberta, em França, das
primeiras análises narrativas de Propp, caracterizado pela
elaboração de uma aparelhagem metodológica mais rigorosa,
e também pelo alargamento da problemática semiótica. Entre-
tanto, se no domínio da semiótica da acção, tal como acaba-
mos de circunscrevê-lo, o semiótico tem às vezes a impressão
de avançar com o pé firme, outros campos, e não dos meno-
res, permanecena ainda inexplorados.

2. O enquadramento axiológico

No nosso esforço de explicação do modelo proppiano,


partimos de um núcleo central, feito de uma sucessão de
provas, e interpretámo-lo como o percurso do sujeito, consi-
derando-o mesmo, devido à presença da confrontação dos

29
sujeitos, como o lugar privilegiado do esquema narrativo.
Entretanto, este núcleo está longe de constituir toda a nar-
rativa: ele é envolvido, ao contrário, a um nível hierarquica-
mente superior, por estruturas actanciais e desenvolvimentos
narrativos de natureza diferente.
Assim, o simples facto do desdobramento da narrativa,
característico do conto maravilhoso, obriga-nos a admitir a
existência de uma certa organização económica que subsume
as duas narrativas: os seus percursos narrativos — os do
sujeito e do anti-sujeito — desenvolvem-se em direcções opos-
tas e reduzem-se a uma fórmula de compensação, segundo a
qual a destruição da ordem social é seguida do retorno à
ordem, e a alienação é reparada pelas recuperações de objec-
tos perdidos. Tudo se passa como se a organização narrativa
obedecesse a um princípio de equilíbrio que transcende e
rege as acções humanas realizadas pelos sujeitos.
O que é válido para o cruzamento dos percursos dos
sujeitos, também o é para a componente aoção tomada sepa-
radamente. Ela encontra-se anunciada e enquadrada pela
estrutura contratual que domina o desenvolvimento da nar-
rativa: o contrato, estabelecido desde o início entre o Desti-
nador e o Destinatário-sujeito, rege o conjunto narrativo,
aparecendo então o resto da narrativa como a sua execução
pelas duas partes contratantes, sendo o percurso do sujeito,
que constitui a contribuição do Destinatário, seguido da
sanção ao mesmo tempo pragmática (a retribuição) e cogni-
tiva (o reconhecimento) do Destinador.
A acção do sujeito, consequentemente, encontra-se enqua-
drada por dois segmentos contratuais: o seu estabelecimento
e a sua sanção, que relevam de uma instância actancial supe-
rior, outra que a do sujeito. Dir-se-ia que existe, a montante,
uma instância ideológica para informar a acção e, a jusante,
uma nova instância ideológica para interpretá-la e homologá-la
com o universo axiológico que ela detém. À maneira da língua
que, como sistema, funda e instrui a fala como prática da
linguagem, a acção do homem parece, nesta perspectiva, ter
sentido somente se ela estiver inscrita no universo dos valo-
res que o circunda.

30
São conhecidos os constrangimentos que a sintaxe nar-
rativa de superfície impõe a esta forma de imaginário, exi-
gindo a colocação de actantes antropomórficos. Aparecem
assim — reunidos muitas vezes num arqui-actante — duas
figuras de Destinadores, o primeiro como o depositário dos
valores que procurará inscrever nos programas de acção, o
segundo como o juiz da conformidade das acções em relação
à axiologia de referência.

3. Os percursos dos destinadores

O exame dos discursos narrativos enriquece-se assim


com uma nova problemática ainda pouco explorada, e o
esquema narrativo faz aparecer novas componentes que se
pode procurar apreender e interpretar como novos percursos
narrativos efectuados não mais por sujeitos, mas por novos
actantes designados como Destinadores semióticos.
Já assinalámos certas diferenças que existem entre os
dois tipos de percursos. Resumamo-las brevemente.
1) Do ponto de vista sintagmático, o esquema narrativo
apresenta-se no seu conjunto como um duplo percurso do
Destinador, em que dois segmentos — inicial e final — encai-
xam o percurso do sujeito. Esta característica formal não
nos esclareceria quase nada se não pudéssemos correlacioná-la
com outras propriedades narrativas. É necessário então acres-
centar que o percurso do Destinador se situa na dimensão
cognitiva do esquema e que o Destinador exerce aí um fazer
cognitivo, contrariamente à dimensão pragmática do percurso
do sujeito e ao fazer do acontecimento somático que aí está
manifestado.
2) A relação existente entre os dois sujeitos de fazer
parece-nos ser do tipo contratual, sendo o esquema construído
sobre uma troca dupla: em primeiro lugar, uma troca de
compromissos, em seguida, uma reciprocidade de programas
de execução. Entretanto, o contrato que os liga não é iguali-
tário, e uma relação hierárquica nele permanece implícita,
pelo simples facto de que a estrutura da troca é para o

31
Destinador somente o quadro em que se exerce a sua comu-
nicação participativa: enquanto o sujeito hipoteca na tran-
sacção a totalidade do seu fazer e do seu ser, o Destinador,
soberano poderoso, se oferece tudo, nada perde com isso da
sua substância.
Estes são somente traços superficiais, reconhecidos
quando do exame do esquema proppiano. Determinações
mais precisas só aparecerão se considerarmos separadamente
os dois segmentos — inicial e final — dos percursos do Des-
tinador.
A tomar só o primeiro segmento deste percurso, observa-
-se imediatamente que a diferença entre este Destinador origi-
nante e o sujeito reside no seu estatuto modal respectivo:
enquanto o sujeito semiótico é definido como um sujeito
de fazer, pela sua capacidade de agir, de «fazer-ser» as coisas,
o Destinador, considerado deste mesmo ponto de vista, é o
que «faz fazer», isto, é o que exerce um fazer visando provocar
o fazer do sujeito. Uma tal definição do Destinador semiótico
— caracterizado pelo seu estatuto modal factitivo e pela sua
posição sintagmática de antecedente em relação ao sujeito —
permite considerar o percurso deste Destinador como uma
unidade narrativa autónoma e desligá-lo do esquema de Propp,
em que ele aparece condensado como a expressão de uma
certa ideologia, que é apenas uma variante (particular no que
diz respeito às relações possíveis entre o Destinador e o Desti-
natário-sujeito. Assim, a relação entre o Destinador e o sujeito,
tal como ela aparece na narrativa proppiana, é a de uma
hierarquia estabelecida e a relação dominante/dominado que
a caracteriza é dada aí antecipadamente. Ora, é possível, e
parece mesmo necessário, inverter os termos do problema:
em vez de considerar o poder como pré-existindo ao fazer-
^fazer e como a sua fonte, pode-se, ao contrário, pretender que
o fazer-fazer, isto é, a manipulação dos sujeitos por outros
sujeitos, é um facto criador das relações de dominação e
origem do poder estabelecido. As configurações discursivas
de «bajulação», de «chantagem», podem mesmo servir de
contra-exemplos de um poder segundo, recobrindo as rela-
ções hierárquicas pré-existentes.

32
Compreende-se, portanto, que o percurso narrativo do
Destinador, assim definido, possa aparecer não somente como
o lugar de exercício do poder estabelecido, mas também como
aquele em que se esboçam os projectos de manipulação e se
elaboram os programas narrativos visando levar os sujeitos
— amigos ou adversários — a exercer o fazer desejado. Se,
a um certo nível em que se constituem ou exercem os actantes
colectivos, a modalidade do fazer-fazer pode definir o governo
dos homens, estruturas modais comparáveis podem dar conta
tanto do governo pelos homens como para os homens: isto
quer dizer que o percurso narrativo considerado é uma cons-
trução formal susceptível de ser investida por ideologias dife-
rentes. Quer dizer também que o percurso narrativo, consi-
derado como tal, é indiferente ao tipo de actantes que são o
Destinador ou o sujeito manifestado: Estados, sociedades,
grupos sociais ou indivíduos.
Considerando agora o segmento final do percurso do
Destinador, percebe-se que a figura do Destinador que dele
se desprende é muito diferente: não é mais o grande mani-
pulador, mestre varuniano do universo que aí está presente,
mas o soberano à maneira de Mitra, guardião dos contratos,
da equidade das relações humanas e da verdade das coisas e
dos seres. O fazer que ele aí exerce é duplo. Trata-se primeiro
de um fazer cognitivo de reconhecimento, isto é, de identifi-
cação dos actos realizados e das maneiras de ser apresentadas
com as normas da axiologia de que ele é o detentor. É ele
que julga a conformidade dos fazeres e dos seres: são justas
as acções dos sujeitos conformes aos modelos pré-estabele-
cidos, tornam-se verdadeiros os julgamentos de existência que
os sujeitos lhe submetem, quando são conformes às normas
previstas. Portanto, a estrutura modal que caracteriza tal
Destinador é, em primeiro lugar, o saber-fazer. O segundo
tipo de fazer, que se segue à conformidade estabelecida pelo
reconhecimento, é recoberto pelo termo de sanção, termo
complexo e ambíguo porque designa ao mesmo tempo o juízo
de conformidade considerado como acto cognitivo, o exer-
cício do poder (retribuição), e o fazer-saber (o reconhecimento

3 33
público dos actos do sujeito), sendo o conjunto destas moda-
lidades regido por um querer original.
Desprendendo-se progressivamente da figura soberana
deste Destinador — aliás, muito mais dumeziliana do que
proppiana—, vê-se como é possível conferir ao percurso nar-
rativo, do qual acabamos de traçar as grandes linhas, um
estatuto ao mesmo tempo mais autónomo e mais geral. Aqui,
bem como por ocasião do exame do primeiro percurso do
Destinador, encontramo-nos em presença da concepção, legada
por toda uma tradição mitológica e folclórica, de uma sobe-
rania absoluta, pré-estabelecida e indiscutível: um Destinador
epistémico, único possuidor da justiça e da verdade, domina
então o conjunto do percurso. Mas os termos da problemá-
tica podem ser facilmente invertidos e a instância epistémica
ela mesma relativizada. Se, em vez de um Destinador que
dispõe de um saber e de um saber-fazer assegurados, imagi-
narmos um Destinador que se encontra em busca do saber
verdadeiro e que para tanto exerce um fazer interpretativo
permanente, o percurso narrativo que traçamos, longe de
ser dominado pela teoria da verdade estabelecida (o que é
apenas uma das maneiras de conceber este percurso), será
caracterizado pela investigação das condições da verdade,
e a sanção soberana exercida pelo Destinador absoluto apa-
recerá como uma das formas possíveis da adesão do Desti-
nador à imagem do mundo que lhe é apresentado, adesão que
sanciona o inquérito do detective, o trabalho do investigador
científico e a busca do crente.
Dois percursos narrativos, tendo cada um por sujeito
um Destinador distinto, ou antes dois segmentos autónomos
de um único e mesmo percurso que um único Destinador
toma sucessivamente? Qualquer resposta, neste estádio da
investigação, seria presunçosa e nada traria para a compreen-
são dos mecanismos cognitivos. O terreno está apenas apla-
nado e a investigação não faz senão começar.

Condé-sur-Huisne, 30 de Junho de 1976

A. J. GREIMAS

34
INTRODUÇÃO

1. O presente trabalho, que é uma iniciação à lingüística


discursiva, compreende duas partes:
(1) A primeira secção é uma apresentação, em forma
didáctica, da metodologia proposta por A. J. Greimas e seus
colaboradores: trata-se do acervo semiótico de que apenas
retivemos aqui — por razões de mais clareza — os eixos prin-
cipais sobre que se estabeleceu desde há muito um largo
consenso. A este respeito, a nossa apresentação é somente
uma introdução pedagógica à leitura dos trabalhos efectuados
desde há vários anos por A. J. Greimas e pelos investigadores
que participam no seu empreendimento científico, no quadro
do seminário de Semântica Geral, na Escola dos Altos Estudos
em Ciências Sociais (=ex-E.P.H.E., VI secção): para maiores
detalhes será possível referir-se às suas publicações. O nosso
trabalho consistiu, num primeiro tempo, em constituir um
léxico com a definição proposta para cada entrada; este corpus
terminológico passou em seguida de uma distribuição alfa-
bética para uma disposição mais orgânica e mais legível,
susceptível assim de desempenhar o papel de «manual» de
semiótica geral (cujas noções essenciais são precisadas).
(2) A segunda parte do trabalho é um exemplo peda-
gógico de aplicação, que ilustra concretamente a metodologia
apresentada. Como se sabe, o domínio dos textos orais — dado
que, entre outros, põe em jogo narrativas simiples (que são

35
formas narrativas e discursivas quase universais) — designa
um campo privilegiado para o exercício do saber-fazer semió-
tico. É essa a razão porque propomos, sob a forma de «tra-
balho prático», a análise de um conto popular maravilhoso
francês muito conhecido, Cinder ela, que, graças ao jogo das
suas variantes, permite investir — num espaço restrito — a
maior parte dos conceitos fundamentais recenseados e defi-
nidos na primeira parte.
Este trabalho é a forma resumida de um ciclo de confe-
rências semanais, dadas na Escola de Altos Estudos em Ciên-
cias Sociais (Paris), durante o ano de 1974-1975.

2. A síntese aqui apresentada pode, portanto, definir-se


como uma introdução à lingüística do discurso, cuja neces-
sidade se faz sentir cada vez mais na análise de textos (orais
ou escritos), tais como os da mitologia, do folclore, da lite-
ratura, bem como no estudo de diferentes discursos, sejam
eles de natureza económica, política, jurídica, administrativa,
religiosa, filosófica, etc.
Esta abordagem, relativamente nova, situa-se na con-
fluência da antropologia e da lingüística. A descoberta de
V. Propp, por um lado, tinha permitido a cíarificação, ainda
muito parcial, de uma organização sintáctica das narrativas
que, ultrapassando o quadro da frase, se fixava na articulação
de conjuntos narrativos muito mais amplos: todo um campo
de investigações se abria, a tal ponto que necessitava de com-
plementos teóricos e metodológicos, ao mesmo tempo mais
precisos e mais rigorosos.
Por outro lado, na via traçada por Claude Lévi-Strauss
— que se ocupava da organização do discurso mítico de que
nós, pela nossa parte, em Lévi-Strauss et les contraintes de la
pensée mytique (Mame, 1973, col. «Univers Sémiotiques», diri-^
gida por A. J. Greimas), tentámos, entre outros, retomar a
metodologia por ele posta em prática — anunciava-se a possibi-
lidade de um estudo da componente semântica.
Conjuntamente com estas abordagens de carácter antro-
pológico, a análise discursiva recorreu mais ainda ao saber-
-fazer lingüístico, de que retoma um grande número de con-

36
ceitos, de maneira a passar de uma primeira apreensão de
tipo mais ou menos intuitivo à constituição de uma disciplina
mais orgânica, de vocação científica. Às primeiras atitudes,
por vezes hesitantes, sucede-se assim hoje a colocação de
um saber mais seguro: a semiótica está agora integrada, intei-
ramente, no campo das ciências humanas e a metodologia
aqui descrita, de que muitos fragmentos são do conhecimento
dos estudantes da Universidade, já se repercutiu muitas vezes
às classes terminais do ensino secundário: daí o interesse,
mesmo a necessidade (para evitar falsas aplicações), de uma
apresentação de conjunto, tornando mais acessível este novo
domínio dos conhecimentos humanos.
Diferentemente de uma semântica lexemática e sobre-
tudo frástica — tal como ela é praticada em 'França (com B.
Pottier, O. Ducrot e A. Rey, por exemplo), mas também no
estrangeiro (Suíça, Alemanha, Inglaterra, etc....), e sem esque-
cer toda a importante corrente de semânticos generativistas —,
o enfoque semiótico desloca-se do nível da frase para o do
discurso, transpondo o modelo sintáctico, como veremos, de
um plano para o outro. Esta transferência metodológica, sur-
preendente à primeira vista, justifica-se na m.edida em que,
do ponto de vista semântico, os limites da frase permanecem
pelo menos problemáticos (cf. o problema das pressuposições):
não nos esqueçamos de que, com efeito, uma equivalência
semântica pode existir entre dois segmentos lingüísticos bas-
tante desiguais (ex.: a explicação de texto). A passagem da
frase para o discurso funda-se então sobre o reconhecimento
dos fenómenos de condensação e de expansão, característicos
das línguas naturais: trata-se aqui, todos o sabemos, de con-
ceitos essenciais para a descrição lingüística, já que permitem
o funcionamento metalinguístico do discurso: paráfrases resu-
mos, definições em expansão dadas pelos dicionários, etc.
Um dos objectivos da nossa exposição é o de mostrar
como é possível estruturar e gerar em profundidade, segundo
patamares hierárquicos, conjuntos discursivos que se mani-
festam em extensão (qualquer discurso aparecendo como um
encadeamento de enunciados): e isto não somente ao nível
da ordenação narrativa (ou da forma «gramatical» ou «lógica»)

37
das narrativas, mas também ao nível da componente semân-
tica (que corresponde ao investimento da estrutura sintáctica).
Como se adivinha, a análise efectuar-se-á no plano do
conteúdo, independentemente, portanto, da (e anteriormente á)
manifestação em língua natural (que pode ser o francês, inglês,
italiano, etc). Do mesmo passo, isto significa que o nosso
trabalho não abordará, mesmo se ele o prepara, o enfoque
estilístico, tal como este se desenvolve sob os auspícios da
semiótica literária.

INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

O sistema de reenvíos aos trabalhos de A. J. Greimas é o seguinte:

— G. R. 1966 : Sémantique Structurale, Paris, Larousse, il966;


— G. R. 1970 : Du Sens, Paris, Seuil, 1970;
— G. R. 1973a: «Un problème de sémiotique narrative: les objets de
valeur». Langages, n.° 31, Paris, DidierLarousse, 1973;
— G. R. 1973b: «Les actants, les acteurs et les figures», in Sémiotique
narrative et textuelle, volume colectivo, Paris, Larousse, <•
1973.

A referência colocada directamente após a citação e não ao pé


de página, deve ler-se assim: exemplo:

«GR 1970, 177-,178»=2)M Sens, pp. 177478

35
Primeira parte

A ABORDAGEM METODOLÓGICA
0. PERSPECTIVA SEMIÓTICA

0.1. PROJECTO SEMIÓTICO

A semiótica — tal como ela será aqui considerada — tem


por objectivo a exploração do sentido. Isto significa, em pri-
meiro lugar, que ela não se reduz somente à descrição da
comunicação (definida como a transmissão de uma mensagem
de um emissor para um receptor): englobando-a, ela deve igual-
mente dar conta de um processo muito mais geral, o da
significação. Restringir o campo semiótico à comunicação,
como fazem alguns, consiste muitas vezes em postular uma
«intenção» de comunicar, cujo estatuto será sempre muito
difícil precisar: a que nível, com efeito, colocar a «intenção»
(psicológica, sociológica, etc.) e segundo que critérios reconhe-
cer a sua existência? £ ela somente da ordem do explícito,
ou será necessário ter em conta o implícito? Noutros termos,
o campo da comunicação (concebida como um fazer-saber)
poderá ser delimitado por um querer-coraunicar, um querer-
-fazer-saber? O que acontecerá com a comunicação efectiva
mas não voluntária (ex.: aquele que «se trai») ou constran-
gedora (por um fazer-querer-comunicar), devido a ameaça, por
exemplo?
iSe a montra de uma loja indica lingüísticamente «Far-
mácia», é possível ver nela uma mensagem emitida pelo pro-
prietário (emissor=farmacêutico) em proveito dos eventuais
destinatários (receptores=clientes). Se considero agora o

41
estado dos caminhos de ferro italianos e se me dou conta de
que os vagões destinados às zonas meridionais estão mais
freqüentemente num estado deteriorado do que os que cir-
culam no norte do país, posso ainda falar de comunicação?
Há, neste último caso, uma mensagem emitida pela socie-
dade X que quereria dizer em substância aos viajantes: «Para
as regiões pobres, vagões velhos; para as províncias ricas,
vagões em bom estado». Parece manifesto que aqui não há
nenhuma «intenção» de comunicar (nenhum querer-comunicar)
por parte de X; em compensação, posso afirmar que esta
repartição de vagões não deixa infelizmente de ter uma signi-
ficação, muito pelo contrário: poderíamos ver aí uma comu-
nicação involuntária, mas real. Tomemos ainda outro exem-
plo: a distribuição e a organização do espaço, quer no domínio
arquitectónico (hospital psiquiátrico, catedral, prisão, escola
materna, etc), quer na topologia urbana (zonas de habitação,
de circulação, espaços verdes, etc), pressuporão um emissor
(individual ou colectivo) como exige o esquema clássico da
comunicação? Há aí um ig-Merer-comunicar? Isso não é evi-
dente, nem está excluído. De qualquer modo, a significação
de tais conjuntos não escapa aos seus utilizadores: a forma
dos lugares e os percursos que neles são possíveis (ou inter-
ditos) fornecem uma comunicação, por exemplo, sobre a
insegurança, o prazer, a angústia, a tranqüilidade, a atmos-
fera de segredo, etc...., que deles emana.
Estas poucas ilustrações — e nós poderíamos multiplicá-
-las amplamente — lembram-nos apenas que o problema do
sentido — de que a semiótica quereria ocupar-se — ultrapassa
largamente, integrando-o, o da comunicação, que é só uma
forma particular daquele. A este respeito, não nos esque-
çamos, por exemplo, de que a comunicação impõe, num
determinado campo de significação, um percurso obrigató-
rio extremamente selectivo, eliminando ao máximo qualquer
ambigüidade ou pluralidade de leituras possíveis: tal é a
diferença que existe entre um enunciado unívoco do género
«Encontro amanhã às 14 horas na casa de Z» (supondo que
não se trata aqui de uma mensagem codificada, que seria
então simultaneamente compreensível a um outro nível de

42
significação) e o poema de Mallarmé, Salut, que F. Rastier
mostrou que pode ser lido, ao mesmo tempo, do ponto de
vista de um banquete, da navegação e da escrita («Systémati-
que des isotapies», in Essais de sémiotique poétique, colec-
tânea colectiva, Paris, Larousse, 1971).
iA descrição da significação não deixa de colocar a ques-
tão mesma da sua possibilidade, pelo menos numa perspectiva
que se quer científica. Na medida em que ela trata do sentido,
a semiótica — como qualquer investigação sobre a signifi-
cação — só pode ser a «transposição de um nível de linguagem
num outro, de uma linguagem numa outra diferente» (GR 1970,
13). Deste ponto de vista, a semiótica define-se como uma
metalinguagem em relação ao universo de sentido que ela se
dá como objecto de análise. Ela não se reduz por isso a uma
simples paráfrase que restituiría, sob uma outra forma, os
dados de base, segundo um princípio de equivalência: neste
caso, com efeito, a melhor equivalência de um texto, por exem-
plo, é este mesmo texto.
Se a semiótica é uma transcodificação, ela é também
mais do que isso. Enquanto operação de descrição, ela deve
precisar o ou os níveis de análise em que pretende situar-se:
isto significa que ela considera os objectos que estuda só
sob um aspecto bem determinado que lhes é comum: tal
é o princípio de pertinência: tratando de uma colecção de
dados, o fazer semiótico só se exercerá na medida em que
retiver apenas as suas características comuns (é evidente que
cada variável pode ser considerada sucessivamente como inva-
riante e permitir gradualmente, segundo os ângulos mais
diversos, uma exploração comparativa mais fina). Diferen-
temente do antigo tipo de dissertação, por exemplo, que, a
respeito de um determinado texto, misturava inextricavel-
mente os pontos de vista biológico, histórico, sociológico,
psicológico, estilístico, etc, para extrair o sentido, a semió-
tica postula que o estudo da significação só pode ser feito
por abordagens diversificadas e distintas, isto é, segundo
níveis diferentes, definidos eles-mesmos pelo conjunto de
traços distintivos comuns aos (ou extraídos dos) objectos
estudados.

43
É evidente que a aplicação do princípio de pertinência
aparecerá necessariamente como uma redução em relação ao
material submetido à análise. O fazer semiótico, exercendo-se
sobre uma colecção de «objectes» (compreendidos no sentido
corrente) determinados (ex.: textos, narrativas orais, banda
desenhada, planos de arquitectura, obras musicais, etc), só
os estuda sob um ângulo particular: a sua análise não pre-
tende restituí-Ios tais quais, mas dar conta do objecto que
ela se propõe, que ela constrói neles ou através deles. É sufi-
ciente pensar, por exemplo, no conhecimento das plantas:
uma flor será considerada diferentemente, conforme se trate
de uma pessoa que a oferece à sua amiga em sinal de afeição,
do florista ou do botânico. E ninguém censuraria esse último
se colocasse entre paréntesis, no seu trabalho científico, o
aspecto estético ou económico das flores que estuda. Da
mesma forma, a semiótica só se fixa num nível de análise
(preservando assim a possibilidade de outros estudos dos
mesmos «objectos», com os quais ela mantém uma relação
de complementaridade): no momento presente, um dos objec-
tos próprios que ela se dá, através de todos jos corpus que
sonda, é a narratividade (que nós definiremos ulteriormente
de maneira mais precisa). A partir de todas as formas discur-
sivas possíveis (ex.: narrativas escritas e orais, notícias e
casos do dia de jornais, filmes, bandas desenhadas, etc), a
semiótica tenta determinar o conjunto de leis que dão conta,
em parte, deste elemento central da nossa vida quotidiana, o
facto «contar». Desta forma, a prática semiótica estabelece
um plano homogéneo para a análise, retendo só o que é perti-
nente ao objecto escolhido: todo o resto fica fora do seu
campo de exercício. De onde, para alguns, um verdadeiro
mal-estar, na medida em que semelhante abordagem se recusa
— a priori — a dar conta de todo o material estudado, de
todas as suas componentes: a «percepção totalizadora», a
«plenitude», não poderiam relevar de nenhuma investigação
científica analítica, mas situam-se, ao contrário, do lado das
sínteses interpretativas, cuja necessidade — reconhecemo-lo
sem dificuldade — se faz sentir paralelamente. É preciso,

44
no entanto, distinguir bem os pontos de vista, e respeitá-los,
se se quiser saber exactamente do que se fala.
Uma vez designado o nível de análise escolhido, é con-
veniente então proceder à sua ordenação, esclarecendo o seu
arranjo fundamental. Após ter delimitado os níveis de estudo,
a primeira operação consiste em articular cada um separa-
damente, de maneira a estabelecer o inventário das unidades
que os constituem: será necessário então definir os consti-
tuintes (conforme a terminologia lingüística) pelas relações
que mantêm entre si (estudo morfológico), tanto no plano
sintagmático como paradigmático, e determinar as regras das
suas combinações possíveis (estudo sintáctico). Num segundo
tempo, a análise esforçar-se-á então por agenciar os diferentes
níveis num conjunto coerente, que se postula como sendo de
natureza hierárquica: «Todas as teorias da linguagem con-
cordam sobre este ponto: a linguagem é uma hierarquia»
(GR 1970, 105).
Uma tal elaboração pode efectuar-se de duas maneiras
diferentes e complementares, tendo em conta o material de
base sobre o qual ela se exerce. Como escreve A. J. Greimas, «a
descrição obedece (...) a dois princípios simultaneamente pre-
sentes e contraditórios: ela é indutiva no seu desejo de dar
fielmente conta da realidade que descreve; ela é dedutiva,
devido à necessidade de manter a coerência do modelo em
construção e de atingir a generalidade coextensiva do corpus
submetido à descrição. Uma tal concepção do procedimento
descritivo, fundada na busca do compromisso, seria desen-
corajadora se ela não fosse a condição de qualquer descrição
científica» (GR, 1966, 1968).
O carácter indutivo da descrição define-se em relação
à «realidade que ela descreve». No caso da abordagem semió-
tica, a base de partida não é um «objecto» (no sentido cor-
rente) qualquer (ex.: narrativas, textos, imagens, quadros,
publicidades, etc.), cuja manifestação é praticamente sempre
de natureza heterogénea (susceptível que ela é de estudos
diferentes, segundo os pontos de vista adoptados), mas um
plano homogéneo de significação (projectado sobre o dado
manifestado), e é em relação a este que poderá ser julgada

45
a adequação do «modelo em construção», que poderá se
efectuar a verificação do modelo. Convém então determinar
procedimentos de verificação em função da perspectiva inicial
escolhida: assim, seria aberrante exigir que estes procedi-
mentos se efectuassem no plano do significante (da forma
lingüística, por exemplo), quando as investigações (a serem
testadas) se operam no plano do significado (no caso de um
estudo semântico).
O caracter dedutivo da descrição manifesta-se na cons-
trução a priori do modelo, numa perspectiva lógica (que não
se identifica necessariamente com a lógica tradicional: pode-se
conceber a realização de uma lógica semiótica específica):
«Ao lado de uma semântica interpretativa, cujo direito à exis-
tência não é mais contestado, a possibilidade de uma semió-
tica formal, que só procuraria dar conta das articulações e
das manipulações de quaisquer conteúdos, precisa-se cada
vez mais. Determinar as múltiplas formas da presença do
sentido e os modos de sua existência, interpretá-las como ins-
tâncias horizontais e níveis verticais de significação, descrever
os percursos das transposições e transformações de conteú-
dos, são algumas das tarefas que, hoje, não .parecem mais
utópicas. Só uma semiótica das formas poderá aparecer,
num futuro previsível, como a linguagem que permite falar
do sentido. Porque, justamente, a forma semiótica não é
outra coisa que o sentido do sentido» (G. R. 1970, 17).
É evidente que tal projecto de uma articulação hierár-
quica e sintáctica está ainda longe de qualquer realização.
Só daremos como prova disto as classificações que encon-
tramos no domínio semiótico: enquanto uma ciência se
define mais pelas suas metodologias e pelo objecto próprio
que ela se propõe, do que pelo material concreto visado,
fala-se geralmente da semiótica não em função dos seus crité-
rios internos, estruturais ou formais, mas em relação aos seus
campos de aplicação ou de exploração (semiótica do espaço,
semiótica do cinema, semiótica da música, etc). No entanto,
a denominação de semiótica narrativa ou de semiótica dis-
cursiva (que são susceptíveis de englobar toda uma parte da
obra de A. J. Greimas), por exemplo, mostra bem o esboço

46
possível de uma distribuição e de uma definição formais,
independentemente dos domínios de intervenção.

0.2. PONTO DE PARTIDA

A autonomia da semiótica como tal está longe de ter


sido atingida. Por um lado, como acabamos de constatar, «a
classificação mais corrente agrupa as semióticas segundo os
canais de comunicação ou, o que significa o mesmo, segundo
as ordens sensorials que servem para a constituição do signi-
ficante» {A. J. Greimas, artigo «Sémiotique», in Encyclopédie
Larousse): o que nos coloca sob os auspícios da sociologia:
poder-se-á então estudar quer a significação como tipo de
mensagem (ao nível do enunciado), quer a instância emissora
(problemas de enunciação e de produção), quer o receptor
com referência à questão da interpretação. Por outro lado,
a semiótica (e teremos toda a ocasião de o observar) aparece
como derivada da lingüística; a maior parte dos conceitos
fundamentais e dos procedimentos são comuns às duas pers-
pectivas, ou pelo menos transpostos desta para aquela.
Esta situação resulta do facto de que «as línguas natu-
rais, objecto da lingüística, ocupam um lugar privilegiado,
devido à tradução para elas dos outros sistemas significantes,
e não inversamente» (A. J. Greimas, Ibid.). De onde a tenta-
ção de trazer para o lingüístico conjuntos significantes não
lingüísticos: assim se viu em tempos R. Barthes constrangido
a analisar da moda só a sua manifestação lingüística (in Sys-
tème de la mode, Paris, Seuil, 1967), precisamente porque
no não-verbalizável não se sabe onde situar nem como arti-
cular o «significante» e o «significado» (terminologia cuja
referência nos parece obrigatória, desde que desejemos falar
do sentido: o que coloca uma vez mais em epígrafe o primado
da lingüística). Inversamente — e é a posição de A. J. Grei-
mas — dada a nossa ignorância inicial, é necessário propor-
mos explicitamente um ponto de partida: a escolha da lin-
güística (por oposição aos que retêm o esquema sociológico
da comunicação como persipectiva do estudo semiológico:

47
cf. G. Mounin) não deixa evidentemente de ter conseqüências,
na medida em que 1) os modelos que ela utiliza não serão
sem dúvida adequados para uma investigação semiótica apli-
cada a um material lingüístico, e em que 2) a passagem e a
transposição do lingüístico para o não-linguístico põe parti-
cularmente problemas: tal é, por exemplo, o caso da análise
da imagem.
O ponto de partida retido — entre outros possíveis —
é então o da lingüística francesa (segundo a qual a linguagem
é considerada como um facto social, por aposição a outras
investigações como, por exemplo, o trabalho de N. Chomsky
que se situa do lado do sujeito falante), ao nível metodológico,
e o das línguas naturais, ao nível do material concreto sobre
o qual se vai exercer o fazer semiótico. No entanto — e é
esse o objectivo deste empreendimento —, tratar-se-á de ultra-
passar estes dois dados essenciais, para tentar elaborar mode-
los, que, situados anteriormente a qualquer manifestação
lingüística (ou não lingüística), permitiriam dar conta de
universos de significação, quaisquer que sejam os modos
(lingüísticos ou não) segundo os quais a seguir eles se expri-
mem. Isto significa que o objectivo visadoj para além da
independência em relação à lingüística (ou à sociologia), não
é outro senão o estabelecimento de uma articulação semió-
tica específica a que se poderia chegar qualquer que fosse o
ponto de partida: uma esipécie de lugar comum em direcção
ao qual convergeriam perspectivas e metodologias diferentes.

0.3. DELIMITAÇÃO

Seja um determinado texto, um conto, por exemplo.


Temos aqui uma «história» expressa numa língua natural
qualquer: trata-se de um conjunto significante (ou signo lin-
güístico), isto é, constituído pela reunião de um significante
( = a forma lingüística) e de um significado ( = a história que
nela é contada). Esta dissociação entre significante e signi-
ficado (na terminologia de F. de Saussure), ou, mais ampla-
mente, entre expressão e conteúdo (na formulação de L.

48
Hjelmslev) tem uma base pragmática: o facto, por exemplo,
de que esta «história» (o conteúdo) pode ser contada em
línguas naturais t(=a expressão) diferentes (francês, inglês,
russo, chinês, etc), sem que nelas ela se encontre substancial-
mente muito modificada. Certamente — não o esquecemos —
a autonomia entre significante e significado não é total, como
o testemunham os idiotismos e mais geralmente a difícil
investigação das equivalencias, tão familiar aos tradutores:
passar do francês para o inglês ou para o italiano não é
somente uma mudança de significantes (fónicos ou grá-
ficos), é também sair de um universo cultural determinado
— com suas articulações semânticas específicas — para entrar
num outro que não possui necessariamente o mesmo corte
conceptual, a tal ponto que, por vezes, se imporá uma ver-
dadeira transposição, senão uma supressão parcial ou total.
Mas, feitas as contas, trata-se aqui apenas de casos limite em
que a manipulação da transcrição é mais delicada: toda a
experiência corrente mostra bem, ao contrário, que — a maior
parte do tempo — a tradução não é impossível: sob uma
forma lingüística diversa, encontra-se, pelo menos aproxima-
damente, o mesmo significado. Para justificar esta dissocia-
ção bastar-nos-ia convocar quer a possibilidade de um outro
suporte que não fosse lingüístico (exemplo parcial: filme
mudo), quer mesmo, no interior de uma língua natural, o
jogo da sinonimia e o da paráfrase: sem o que, nenhum dicio-
nário existiria.
Por evidente que ela pareça ao nível pragmático (e a
lingüística não pode prescindir dela, uma vez que ela permite
a prova fundamental da comutação, que funda o corte em
unidades e, indirectamente, a descoberta dos traços distin-
tivos), a distinção entre significante e significado é definida
somente pela relação de pressuposição recíproca, sem que
se possa chegar a uma descrição independente para cada um
(ou só para um) dos dois termos, a menos que, na seqüência
de F. de ¡Saussure, se faça apelo ao «conceito» e à «imagem
acústica» (no caso do signo lingüístico). Sem entrar nos pro-
blemas que as relações (definicionais) entre percepção (sen-
sorial) e significação colocam, retemos como base de partida a

4 49
oposição — e a complementaridade — entre significante e
significado, entre expressão e conteúdo.
No caso de um conto popular tomado como exemplo,
temos então uma manifestação textual (de tipo lingüístico),
que se define como a reunião de uma expressão (de uma
forma lingüística: numa determinada língua natural) e de
um conteúdo (parcialmente autónomo, já que ele pode ser
retomado numa outra língua natural, ou sob forma de ima-
gens encadeadas: filme, banda desenhada, etc). Este plano
da manifestação (tal como ele é dado) não poderia constituir
um lugar satisfatório de análise: «desde Hjelmslev, sabemos
que nada de bom se pode fazer em lingüística enquanto não
se ultrapassar este nível, enquanto não se explorar, após ter
disjunto os dois planos do significante e do significado, as
unidades ao mesmo tempo mais pequenas e mais profundas
de cada um dos dois planos tomados separadamente» (GR
1973b, 1969). Se a lingüística se preocupou sobretudo com o
significante, poucos estudos, comparativamente, foram reali-
zados ao nível do significado. É esta lacuna que a investi-
gação de A. J. Greimas, situada essencialmente ao nível do
conteúdo, preenche em parte. O próprio do fazer semiótico
será então o abandono (em parte), num primeiro tempo, do
plano da forma lingüística, para trabalhar no campo do signi-
ficado: o que quer dizer, entre outras coisas, que não consi-
deraremos aqui o estudo do nível textual.
De que maneira empreender então a análise do conteúdo,
senão tomando como modelo a que é praticada no plano da
expressão: «De momento parece que o melhor ponto de par-
tida para a compreensão da estrutura semântica é a concepção
saussuriana dos dois planos da linguagem — o da expressão
e o do conteúdo —, sendo considerada a existência da expres-
são como a condição da existência do sentido. Uma tal
concepção permite:
a) postular o paralelismo entre a expressão e o con-
teúdo, dando assim uma idéia aproximada do modo de exis-
tência e de articulação da significação;
b) considerar o plano da expressão como constituído
de desvios diferenciais, condição da presença do sentido arti-

50
culado, e, consequentemente, instrumentos de apreciação e
de adequação dos modelos utilizados para a descrição do
plano semântico (conforme a regra derivada do princípio
de paralelismo, segundo a qual a qualquer mudança de expres-
são corresponde uma mudança de conteúdo).
lA hipótese do isomorfismo entre os dois planos autoriza
então a conceber a estrutura semântica como uma articula-
ção do universo semântico em unidades minímas de signifi-
cação ( = o u semas), correspondendo aos traços distintivos do
plano de expressão ( = o u femas); estas unidades semânticas
são 'formadas, da mesma maneira que os traços da expressão,
em categorias sémicas binarias (sendo a binaridade conside-
rada como uma regra de construção e não necessariamente
como um princípio estatuindo sobre o seu modo de existên-
cia)» (GR 1970, 39-40).
O paralelismo, aqui em questão, entre a expressão e o
conteúdo ao nível morfológico, pode ser estendido à com-
ponente sintáctica (cf. infra). Notemos, por outro lado, que
«as unidades de comunicação dos dois planos (do significante
e do significado) não são equidimensionais. Não é um fonema
que corresponde a um lexema, mas uma combinação de fone-
mas. A análise dos dois planos deve então ser conduzida
separadamente, ainda que pelos mesmos métodos, e deverá
visar o estabelecimento da existência dos femas para o signi-
ficante e dos semas para o significado, unidades mínimas dos
dois planos da linguagem» (GR 1966, 30). Desta maneira,
«duas formas semióticas paralelas — uma forma da expressão
e uma forma do conteúdo — podem ser distinguidas: elas
são derivações de uma única forma lingüística; mas elas não
são isomórficas, sendo os planos da expressão e do conteúdo
articulados de duas maneiras diferentes» (GR 1970, 47).
Após termos fixado o plano do conteúdo como campo
de análise, é-nos necessário introduzir aqui uma segunda
distinção fundamental que orientará a atitude semiótica numa
dupla direcção. Segundo a teoria de Hyelmslev, os dois níveis,
da expressão e do conteúdo, articulam-se cada um conforme
a aposição forma versus (=vs) substância. Assim a expres-
são lingüística comporta uma forma: o sistema de fonemas

51
(ou de grafemas); e uma substância: a cadeia fónica (ou
gráfica) que cada língua natural articula diferentemente. No
plano do conteúdo, pode-se imaginar que a descrição faça
apelo a uma «gramática» (=forma), incluindo uma morfo-
logía e uma sintaxe, e a um «dicionário» ( = substáncia semân-
tica), susceptíveis de dar conta de um determinado universo
de significação. Neste sentido, poderíamos dizer que um conto,
por exemplo, comporta — no plano do conteúdo — dois ele-
mentos diferentes e articulados um sobre o outro:
a) uma componente gramatical, que permite a com-
posição e o encadeamento dos enunciados narrativos: tal
seria o caso das estruturas formais que determinam o género
«conto» com os seus mecanismos narrativos particulares;
b) uma componente semântica, de ordem conceptual
e/ou figurativa, que corresponde ao investimento da orde-
nação formal: assim, uma mesma estrutura narrativa do
tipo falta/busca/aquisição pode ser encontrada em diferentes
materiais semânticos, conforme se trate de um conto popular,
de um caso do dia, de um romance policial, de uma autobio-
grafia, etc.

substância: cadeia fónica


expressão forma: sistema lingüístico
conto
narrado
oralmente substância: semântica
conteúdo { í morfología
l f°'^"^a- gramática | ^.^^^^^

Assim concebida, «a oposição da forma e da substância


encontra-se então inteiramente situada no interior da análise
do conteúdo; ela não é a oposição do significante (forma) e
do significado (conteúdo), como uma longa tradição do sé-
culo XIX nos queria fazer admitir. A forma é tão signifi-
cante como a substância, e é surpreendente que esta formu-
lação não tenha podido encontrar até ao momento presente
a audiência que merece» (G. R. 1966, 26).
É claro que, «forma e substância são apenas dois con-
ceitos operacionais que dependem do nível de análise esco-

52
Ihido: o que será denominado como substância a um certo
nível, poderá ser analisado como forma a um nível diferente»
(G. R. 1966, 26): assim, a cadeia fónica, acima mencionada
como substância, pode ser considerada como forma num
plano superior, por exemplo, no da percepção auditiva.
A partir deste ponto, a análise semiótica operar-se-á em
duas direcções: ela considerará, em primeiro lugar, a subs-
tância do conteúdo que, como veremos, só pode ser apreen-
dida ou descrita através de uma forma específica, através de
uma «morfología», (secção 1); ela tratará, a seguir, da forma
do conteúdo, concebida como uma ordenação de tipo «sin-
táctico» (secção 2), que, como não deixaremos de notar, com-
porta de facto uma substância.
Observemos desde já que a distinção entre relações gra-
maticais e unidades semânticas não é sempre concretamente
fácil de realizar (tarefa que, no entanto, se impõe ao analista
na apreensão de um determinado texto): com efeito, acontece
constantemente (ou quase) que as unidades do conteúdo
relevam simultaneamente de uma ou outra componente. No
limite, aliás, a dissociação mesma entre dados gramaticais e
semânticos revela-se contestável: ela pressuporia que os pri-
meiros fossem de ordem estritamente formal, enquanto só os
segundos veiculariam a informação precisa (conjugando-se uns
e outros para produzir o sentido). Ora, é evidente que as
relações gramaticais, por exemplo, não são pura forma: é o
caso das categorias sintácticas (cf. infra) de «sujeito» e de
«objecto»: mesmo se o seu investimento semântico completo
só se opera conforme a narrativa, ou se ele só é dissociado
pelo analista, o simples recurso a tais designações antropomór-
ficas já é uma informação sobre o seu estatuto substancial;
da mesma forma, a modalização sintáctica (querer/saber/
/poder-fazer) que a gramática narrativa utilizará, correspon-
derá, apesar do seu nível elevado de generalidade, a um inves-
timento semântico particularizante. Assim, para a sua cons-
tituição, a gramática narrativa está constrangida a explorar
em parte a componente semântica. Da mesma forma, e reci-
procamente, esta não poderia ser apreendida independente-
mente de uma forma.

53
Dito isto — e para poder apesar de tudo proceder às
operações práticas —, somos obrigados a manter uma linha
de demarcação entre termos e relações, mesmo se estes dois
conjuntos só se definam um pelo outro. Porque a «gramá-
tica» permanece teoricamente distinta do «dicionário», mesmo
se ela se exprime através dele.
A análise das duas componentes «morfológica» e «sin-
táctica» permite assim a exploração do conteúdo: portanto,
as estudaremos sucessivamente.

Nível textual • Manifestação textual


!
I
expressão conteúdo
I I
Nível superficial • Unidades do pla- Relações do plano da
no da manifesta- manifestação do con-
ção do conteúdo teúdo

Nível profundo-
t t
Semas (Universo Estrutura elementar da
imánente) significação (organiza-
ção sémica)

«morfologia» «sintaxe»

N.B. Como dissemos mais acima, o «nível textual» (que aparece às


vezes na terminologia de A. J. Greimas) não pode constituir um
lugar satisfatório de análise. Este «nível» não está então em
relação directa com os dois outros, já que se operou uma des-
vinculação entre expressão e conteúdo.

54
1. COMPONENTE «MORFOLÓGICA»

Como acabámos de anunciar, o estudo da substância do


conteúdo só pode efectuar-se no quadro de urna forma esco-
lhida. Eis porque a descrição mesma da componente semân-
tica, independentemente da sua utilização ou da sua mani-
pulação ao nível sintáctico, se reduz à revelação de uma arti-
culação, a um corte formal em diferentes unidades semân-
ticas.
A nossa apresentação da componente semântica eqüiva-
lerá então ao estabelecimento. de unidades em cada um dos
dois níveis que se pode distinguir na substância do conteúdo:
o nível imánente, em que se articulam os semas, e o nivel da
manifestação (do conteúdo), que se divide em sememas e
metasememas.

1.0. UMA ARTICULAÇÃO

Empreender a análise da substância do conteúdo (de


um determinado universo de significação) pressupõe que se
admite, como postulado, a possibilidade mesma de articular
este material. Isto significa que se pretende cortar o dado
semântico (percebido globalmente como uma totalidade) em
unidades diferentes, que se aceita assim passar do continuo
para o discreto. À saída do teatro ou do cinema, o espectador
conserva do que viu uma «impressão» de conjunto que, para

55
ser explícita, deverá ser analisada, isto é, cortada em segmen-
tos diferentes, encadeados segundo urna coerência narrativa
e discursiva particular; partindo de urna percepção totali-
zante do espectáculo de que foi testemunho, ele tem a possibi-
lidade de articular este continuum indistinto (ou inorgânico),
segundo um esquema ao mesmo tempo morfológico e sin-
táctico. Por evidente que ela pareça — como confirma a nossa
prática quotidiana — esta passagem do contínuo para o dis-
creto escapa à explicação: «O conceito de descontinuidade,
que não conseguimos definir, não é propriamente da semân-
tica; ele preside também, por exemplo, ao fundamento das
matemáticas. É, portanto, uma pressuposição que se deve
depositar no inventário epistemológico dos postulados não
analisados» (G. ¡R. 1966, 18).
iSe a descontinuidade causa particularmente problema
no domínio da semântica, isto provém sobretudo do facto de
que este parece, à primeira vista, muito frágil. Porque, na
medida em que a articulação — como operação — se efectúa,
e é o caso aqui, ao nível do conteúdo, é claro que os critérios
que ela utiliza poderão estar sujeitos à caução e variar (even-
tualmente) de uma metodologia a outra, dado-que se exclui,
à partida, qualquer referência «objectiva» ao significante, à
expressão.
Para atenuar esta dificuldade, e para não cair em solu-
ções ocasionais, iA. J. Greimas, apoiando-se na lingüística, pre-
feriu analisar a substância do conteúdo com os procedimentos
já preparados: colocando como hipótese o paralelism.o entre
os níveis, ele propõe imaginar «uma articulação do universo
semântico em unidades mínimas de significação ( = o u semas),
correspondendo aos traços distintivos do plano da expressão
( = o u femas)» (G. R. 1970, 40).

1.1. O SEMA COMO TRAÇO DISTINTIVO

A unidade semântica de base é o sema, elemento mínimo


de significação que só aparecerá como tal em relação a um
outro elemento que não é ele: a sua função é diferencial e,

56
por este motivo, ele só pode ser apreendido num conjunto orgâ-
nico, no quadro de uma estrutura. Sejam, por exemplo, os
dois lexemas:

filho vs filha

poder-se-á dizer que eles têm um sema comum no eixo da


/geração/ (na sua relação de filiação que diz respeito a um
ou aos dois pais), e um sema diferente no eixo da sexualidade:
/masculinidade/ num caso, e /feminidade/ no outro (supondo
que /masculinidade/ e /feminidade/ sejam elementos simples).
Tomemos um outro exemplo, clássico em lingüística.
Sejam os seguintes lexemas.

(1) (2) (3)


homem mulher criança
touro vaca vitelo
galo galinha pintainho
pato pata patinho
garanhão égua potro
carneiro ovelha anho

Cada uma das três colunas comporta ao menos um elemento


comum, determinado por oposição aos outros:

— na coluna (1), temos o sema /macho/ por oposição


— à coluna (2), em que temos /fêmea/;
— na coluna (3), há um elemento comum («pequeno»)
que pode ser lido quer no eixo da /geração/ (no sentido em
que «criança», por exemplo, equivale a «homenzinho»), quer
no do desenvolvimento, no sentido de /não-adülto/ (por oposi-
ção ao traço /adulto/ que está subentendido nas colunas (1)
e (2), e que a coluna (3) permite extrair). Sem entrar mais
em detalhes, podemos dizer (grosso modo) que a significação
dos lexemas recenseados é determinada pe>lo produto dos
semas constituintes (que postulamos, para a nossa ilustração,
como sendo elementos mínimos, isto é, simples).

57
homem mulher criança pai mãe filho filha
/humano/ + + + + + + +
/macho/ + — 0 + — + —
/fêmea/ — + 0 — + — +
/adulto/ + + — + + 0 0
/não-adulto/ — — + — — 0 0
/procriação/ 0 0 — + + — —
/fiHação/ 0 0 + — — + +

Sem levar a descrição mais avante, é-nos suficiente cons-


tatar aqui que a significação dos lexemas existe em função
de um feixe de semas (mesmo se a análise é, de facto, bastante
defeituosa: ela se quer somente indicativa). Comutando numa
colecção de semas um elemento por outro, obter-se-ia uma
outra significação: como no estudo do plano da expressão,
pode-se recorrer aqui à prova da comutação que é a única
a permitir a extracção destas unidades mínimas de signifi-
cação que são os semas. Por outro lado, é fácil imaginar
como um pequeno número de semas pode gerar, por meio de
uma combinatoria, um número considerável de unidades se-
mânticas mais amplas: a exemplo do plano da expressão em
que, a partir de um pequeno conjunto de fonemas (31 a 33
em francês), por exemplo, somos capazes de engendrar uma
infinidade de «palavras».

1.2. O NÚCLEO SEMICO

Segundo a teoria de A. J. Greimas, distinguir-se-ão duas


espécies de semas: os semas nucleares e os classemas. Os
semas nucleares são os que entram na composição destas
unidades sintácticas que são os lexemas (elementos do ní-
vel da manifestação), enquanto os classemas, ao contrário,
«manifestam-se em unidades sintácticas mais amplas que
comportam a junção de dois lexemas, pelo menos» (G. R.
1966, 103).
Para esclarecer estas distinções terminológicas e para
melhor precisar o seu conteúdo, tomemos em primeiro lugar
o caso do lexema «cabeça» (analisado em Sémantique struc-

58
turale). Trata-se aqui de uma unidade do plano da manifes-
tação lingüística (ou textual), cujo conteúdo se deseja arti-
cular. Esta entrada de dicionário é então estudada em função
dos diferentes contextos em que ela aparece. Extrai-se assim
dela um núcleo sémico, isto é, «um mínimo sémico perma-
nente» (G. R. 1966, 44), uma espécie de invariante. Com efeito,
no lexema analisado este núcleo é duplo e constitui-se à volta
dos semas /extremidade/ e /esferoicidade/, em que o segundo
se manifesta às vezes pelo seu termo positivo («esferoide»),
outras vezes pelo seu termo negativo («ponto»: neste caso, o
espaço, como extensão preenchida ou susceptível de o ser,
não é levado em conta).
O núcleo sémico ou figura nuclear de «cabeça» é cons-
tituído por semas nucleares, cuja distribuição parece bem
organizada:

a) com o núcleo /extremidade/:

1. extremidade + superioridade + verticalidade:

«Ia tête d'un arbre»


«être à la tête des affaires»
«avoir des dettes par-dessus la tête»

2. extremidade -f anterioridade + horizontalidade + continui-


dade:

«tête d'un canal»


«tête de ligne» '

' 1. «o topo de uma árvore»


«estar à frente dos negocios»
«estar endividado até aos cabelos»
2. «extremidade de um canal»
«testa de linha» (estação)

59
3. extremidade + anterioridade + horizontalidade + descon-
tinuidade:
«fourgon de tête»
«tête de cortège»
«prendre la tête» '.

Como se vê, a simples substituição do sema /continuidade/


por /descontinuidade/ permite obter um efeito de sentido
(cf. infra) diferente.
b) O mesmo acontece com o núcleo /esferoicidade/:
1. Esferoicidade:
«Ia tête d'une comète»
«la tête d'épingle, de clou, etc.»
2. Esferoicidade + solidez:
«se creuser la tête»,
«avoir la tête dure»
3. Esferoicidade+solidez+continente:
«se mettre dans la tête»
«une tête bien pleine»
«se creuser la tête» ^.

Eis porque se poderá dizer que o núcleo sémico é «um arranjo


hipotáxico de semas» (G. R. 1966, 44).
Os semas nucleares extraídos aqui e, mais amplamente,
o conjunto de todos os semas nucleares susceptíveis de se

' 3. «furgão das bagagens»


«cabeça de cortejo»
«estar à cabeça».
2 1. «núcleo de um cometa»
«cabeça de alfinete, de prego, etc.»
2. «quebrar a cabeça»
«ser cabeçudo»
3. «encasquetar-se na cabeça»
«cabeça cheia»
«dar tratos à imaginação».

60
encontrarem, em imanência, para além de todas as manifes-
tações lingüísticas, definem o que A. J. Greimas chama de
«nível semiológico» da linguagem ou — segundo a termino-
logia (reencontrada) de Ampère — o plano cosmológico (por
oposição ao nível noológico, que será abordado mais adiante):
trata-se aqui da «exteroceptividade», isto é, da percepção que
o homem tem do universo que o cerca. Em outros termos,
os semas nucleares, constitutivos das figuras nucleares, reen-
viam para esta apreensão exterior do mundo: é neste ponto que
se esboçam, entre outros, a especificidade e a organização
do discursivo (vs narrativo) à volta das figuras (do mundo)
que ele explora (cf. infra).

1.3. O SEMA CONTEXTUAL OU CLASSEMA

Permanecendo sempre ao nível imánente (por oposição


à manifestação), dispomos de uma outra categoria de semas:
os classemas, que, como já salientámos — ao nível da manifes-
tação —, implicam a junção de dois lexemas pelo menos (ou,
mais exactamente, de duas figuras). Com efeito, trata-se de
semas que não pertencem à figura nuclear, ao núcleo inva-
riante considerado nele mesmo: eles são determinados (e assi-
nalados) pelo contexto: o classema é um sema contextual.
Se o núcleo sémico de um lexema, do lexema «cabeça»,
por exemplo, é um invariante, «as variações de sentido (pro-
duzidas por este lexema) só podem provir do contexto (...)
que deve comportar as variáveis sémicas, únicas a poder dar
conta das mudanças de efeitos de sentido que registamos.
Consideremos (...) estas variáveis sémicas como semas con-
textuáis (...). Aos contextos:
«fendre la tête»
«se casser la tête»
«la tête de mort», etc. '.

' «rachar a cabeça»


«quebrar a cabeça»
«a caveira».

61
corresponde um só efeito de sentido que podemos traduzir
por «parte ossosa da cabeça». Parece então possível agrupar
os contextos em classes contextuáis, que seriam constituídas
por contextos que provocassem sempre o mesmo efeito de
sentido. Podemos considerar que o sema contextual é este
denominador comum a toda uma classe de contextos (G. R.
1966, 45).
Tomemos um outro exemplo mais explícito ainda. A se-
qüência (o) cão late comporta não somente duas figuras
sémicas (que correspondem aos dois formantes «cão» e
«late»), mas também um sema contextual, o classema /ani-
mal/: é o que aparece se o «cão» se substituir por outra
figura, como a do «comissário» («o comissário late»): neste
último caso, ter-se-á o classema /humano/ que torna compa-
tível a união das figuras. Dito de outra maneira, a colocação
de uma figura nuclear, no contexto que a liga a uma ou várias
outras, faz sobressair pelo menos um novo sema, o sema
contextual ou classema, que assegura a sua junção e os torna
compatíveis. A título de ilustração complementar, conside-
remos o qualificativo «boa» (cujo núcleo invariante pode
definir-se sumariamente como «apreciação positiva») nos dois
contextos:

(1) «une bonne bière»


(2) «une bonne affaire» ^

Em (1) observamos a presença do classema /gustativo/, já


que se trata de uma cerveja «saborosa»; em (2), o sema con-
textual é de ordem /económica/, dado que o sentido parece
ser: «um negócio rentável».
Paralelamente aos semas nucleares que, como indicamos,
definem o plano «semiológico» da linguagem, os classemas
constituem o nivel «semántico» (segundo a denominação de
A. J. Greimas) ou noológico (segundo a terminologia reto-
mada de Ampère): é o que designa o contexto de «interocepti-

' «uma boa cerveja»


«um bom negocio».

62
vidade» (vs exteroceptividade: cf. supra) que reenvia a uma
organização categorial, ao estabelecimento de classes concep-
tuáis (por oposição às figuras do mundo). Diferentemente da
«exteroceptividade», há «interoceptividade» quando a um
significado de uma língua natural não corresponde nenhum
significante do mundo natural.

1.4. A ISOTOPÍA

Os semas contextuáis ou classemas definem, num deter-


minado texto, a (ou as) isotopias(s) que garante(m) a sua
homogeneidade: uma seqüência discursiva qualquer será con-
siderada isotópica se possuir um ou vários classemas recor-
rentes; «o sintagma, que reúne pelo menos duas figuras sémi-
cas (cf. acima: «o cão late»), pode ser considerado como o
contexto mínimo que permite o estabelecimento de uma iso-
topía» (GR 1966, 72). O conceito fundamental de isotopía
deve, portanto, ser compreendido como «um conjunto redun-
dante de categorias semânticas (=classemáticas) que toma
possível a leitura uniforme da narrativa, tal como ela resulta
das leituras parciais dos enunciados e da resolução das suas
ambigüidades, que é guiada pela busca da leitura única»
(GtR 1970, 188). Neste sentido poder-se-ia facilmente «mos-
trar, graças ao conceito de isotopía, como textos inteiros se
encontram situados a níveis semânticos homogéneos, como o
significado global de um conjunto significante, em vez de ser
postulado a priori (conforme propõe Hjelmslev), pode ser
interpretado como uma realidade estrutural da manifestação
lingüística» (GR 1966, 53).
A isotopía pode definir-se como «a permanência de uma
base classemática hierarquizada que permite, graças à aber-
tura dos paradigmas que são as categorias classemáticas, as
variações das unidades de manifestação, variações que, em
vez de destruir a isotopía, ao contrário, só a confirmam»
(GR 1966, 96). Mesmo nos interditando aqui desenvolvimentos
mais amplos (que facilmente se encontrará algures) e reme-
tendo para a segunda parte do nosso trabalho (na análise de

63
Cinderela, em particular) uma ilustração aferente, gostaríamos
de acrescentar apenas duas observações:
(1) Como sublinha A. J. Greimas (o primeiro a ter
introduzido este conceito operatorio), a isotopía permite su-
primir as ambigüidades de um enunciado: enquanto as
figuras nucleares parecem estrangeiras umas às outras e têm
a tendência, como veremos ulteriormente, a associarem-se a
outras figuras aparentadas, e, portanto, a jogarem na ordem
paradigmática, as categorias classemáticas, constituindo a iso-
topía, tèm por missão, ao contrário, refrear este movimento
que rapidamente se tornaria anárquico, impondo às figuras
sémicas, na sua distribuição sintagmática, uma espécie de
plano comum (=isotopía), mesmo que estas, neste momento,
coloquem entre paréntesis a sua especificidade bastante gran-
de. A homogeneidade assim obtida (pela suspensão parcial
das particularidades e pela colocação de um denominador
comum permanente) determina um nível de leitura, um plano
isotópico: é sabido, está visto, que um determinado texto
pode, ao contrário, explorar a ambigüidade como tal, intro-
duzindo propositadamente isotopías diferentes e paralelas
(sem que elas sejam necessariamente subsumjdas por uma
ordenação hierárquica semântica): tal será muitas vezes o caso
do discurso poético que é susceptível de admitir uma pluri-
-isotopia.
Como se vê, reencontramos aqui, em parte, a teoria da
comunicação da qual fazíamos alusão no início desta exposi-
ção: o conceito de isotopía, assegurando a homogeneidade da
mensagem, não é estranho à comunicação, em que um dos
objectivos pretendidos é precisamente a eliminação das ambi-
güidades; ele excede, no entanto, este caso de espécie, para
englobar outros modos de significação nos quais a ambigüi-
dade é, por exemplo, uma riqueza. Acrescentemos, por outro
lado, que o conceito de isotopía permite definir a pertinência
(apresentada mais acima) de maneira mais rigorosa.
(2) Assim, as primeiras isotopías que parecem despren-
der-se são, evidentemente, de natureza conceptual: trata-se
de isotopías semânticas que reenviam para a dimensão «inte-
roceptiva»: é-nos suficiente citar, por exemplo, as Fábulas de

64
La Fontaine que jogam na dupla categoria /animal/ vs /hu-
mano/. No entanto, parece oportuno não limitar o conceito
de isotopia somente às categorias semânticas (tais que, /ani-
mado/ vs /inanimado/, etc.), porque as figuras (do mundo)
do plano cosmológico — constituídas pelos semas nucleares —
são também susceptíveis de se constituir em classes e de
estabelecer assim, num determinado texto, um nível de leitura
autónoma, uma isotopia semiológica: é assim que em Salut
(poema de Mallarmé) F. Rastier (op. cit.) extrai três isotopías
semiológicas: o banquete, a navegação e a escrita.

1.5. SEMEMAS E METASSEMEMAS

Os semas nucleares (de carácter semiológico) e os clas-


semas (de natureza semântica) pertencem ao nível imánente.
A sua reunião, permitindo a passagem para um plano supe-
rior, constitui a manifestação do conteúdo como tal, que não
deve, evidentemente, ser confundida com a manifestação lin-
güística ou textual (na qual se conjugam o conteúdo e a
expressão). A combinação do núcleo sémico e dos semas con-
textuáis «provoca, no plano do discurso, estes efeitos de sen-
tido que nós denominamos sememas» (GR 1966, 45).
Os sememas aparecem assim como o resultado de uma
combinatoria, cujas regras de construção ou de funciona-
mento, com as restrições que a caracterizam, será suficiente
então determinar: assim, por exemplo, os semas nucleares
nunca poderão aparecer — ao nivel da manifestação do con-
teúdo — sem classemas: tal é o caso dos sememas; ao con-
trário, os semas contextuáis podem combinar-se entre si,
constituindo um corpus de metassememas; sememas e metas-
sememas são dois tipos de unidades de significação mani-
festada.
Quaisquer que sejam os limites impostos à combinatoria
(como, por exemplo, o das incompatibilidades, cuja explo-
ração resta fazer), é fácil prever assim «que um conjunto de
semas relativamente muito reduzido é capaz de produzir um
número considerável de sememas compatibilizados em milhões
e milhares de exemplares» (GR 1966, 110).

5 65
1.6. EM DIRECÇÃO À FORMA LINGÜÍSTICA

Do nível da manifestação do conteúdo, não nos é possível


passar — no estado actual dos nossos conhecimentos — ao
patamar superior, o da forma lingüistica, onde se articulam
significante e significado. Com efeito, o semema ou o metas-
semema são unidades da significação manifestada e, do ponto
de vista da sua lexicalização, não se pode dizer que eles corres-
pondam a formantes particulares. É assim que um semema
pode ter «extensões» diferentes ao nível da expressão: ele
terá o tamanho de um lexema («abricot») ou de um para-
lexema («pomme de terre»), ou de um sintagma («pain de
seigle») ', e mesmo de toda uma seqüência definicional. Apreen-
de-se assim tudo o que o diferencia de um lexetna: com efeito,
este último pode-se caracterizar «como um modelo virtual
subsumindo o funcionamento inteiro de uma figura de signi-
ficação recoberta por um determinado formante, mas anterior
a qualquer manifestação no discurso que, quanto a ele, só pode
produzir sememas particulares» (GR 1966, 51). Eis porque, mes-
mo relativizando-a, tendo em conta a nossa observação prece-
dente, poder-se-ia fazer esta comparação: o lexema parece
ser para o semema o que uma entrada de dicionário é para
uma palavra em contexto.

1 «Damasco»; «batata»; «pão de centeio».

66
2. COMPONENTE «SINTÁCTICA»

Em conformidade com os princípios que à partida nos


propusemos (em 0.1.), distinguimos — no conteúdo — dois pla-
nos: o nível imánente e o da manifestação (do conteúdo).
Articulamos o nível imánente em unidades simples, dife-
rentes: os semas, e avançamos — numa base tanto formal
(núcleo/contexto) como substancial (exteroceptividade/intero-
ceptividade)—uma tipologia geral destes elementos: semas
nucleares e ciássemos.
O nível, hierarquicamente superior (isto é, numa relação
de pressuposição com o universo imánente) da manifestação
(do conteúdo) foi cortado, por sua vez, em duas espécies de
unidades — sememas e metassememas —, na medida em que
elas são o produto de uma combinação entre semas nucleares
e classemas ou apenas entre classemas.
Esta dupla distribuição, de tipo morfológico ou taxinó-
mico, exige então — complementarmente — um estudo das
relações que, já podemos prever, se situará por sua vez: 1) ao
nível imánente ou profundo, 2) ao nível da manifestação (do
conteúdo) que, neste sentido, nos é lícito qualificar de super-
ficial; esta dupla terminologia, adoptada por A. J. Greimas
(em dois tempos diferentes da investigação, é verdade), ganha-
ria talvez se fosse reduzida a uma formulação única.
Só para maior clareza da exposição, do ponto de vista
didáctico, e de uma maneira totalmente ifictícia, disjuntamos
o aspecto morfológico da organização sintáctica, os termos

67
das relações. Em conformidade com o ensino da lingüística,
com efeito, está convencionado que os termos-objectos, consi-
derados isoladamente, não têm significação em si mesmos:
eles só se definem pelas relações que mantêm entre si. É por
isso que a significação só poderá ser apreendida ao nível das
estruturas: finalmente, é só neste quadro, e não ao nível dos
elementos, que as unidades significativas elementares poderão
ser realmente especificadas.
Em Du Sens, o termo — muito freqüente —de «gramá-
tica» arrisca-se talvez a provocar certas ambigüidades, na
medida em que, nesta obra, ele geralmente designa o domínio
das relações e das operações, sem lembrar suficientemente,
na nossa opinião, a componente morfológica (já proposta em
Sémantique Structurale). Com efeito, de acordo com a sua
definição, a gramática engloba, por um lado, as articulações
morfológicas estabelecidas aos dois níveis (profundo e super-
ficial), apresentadas no parágrafo precedente, e, por outro, as
relações e as operações que correspondem às duas faces
complementares do sistema e do processo. É por isso que,
para designar esta segunda secção (distinguida da primeira
por precaução didáctica), não retomaremos a terminologia de
«gramática profunda» e de «gramática superficial»: preferi-
mos nos apoiar nesta outra denominação: organização funda-
mental e organização superficial.

2.1. ORGANIZAÇÃO FUNDAMENTAL

2.1.1. A estrutura elementar

,Na nossa definição do sema, já mencionámos que ele


só tem uma função diferencial, isto é, que ele só pode ser
apreendido no interior de uma estrutura. Retomemos um
dos nossos exemplos precedentes:
«menino» vs «menina»
/masculinidade/ vs /feminidade/

Temos aqui dois semas subjacentes — /masculinidade/ vs


/feminidade/ — em que um só tem existência em referência

68
ao outro. A relação que se encontra estabelecida entre os
dois semas é de natureza antonímica, relevando ao mesmo
tempo da disjunção e da conjunção: a disjunção é evi-
dente, enquanto o aspecto conjuntivo o é um pouco menos;
para o apreender é necessário colocar-se num plano hierar-
quicamente superior, o da categoria sémica inteira que engloba
a /masculinidade/ e a /feminidade/. Temos assim uma cate-
goria única, que podemos designar aqui por /sexuahdade/,
articulando-se em dois semas opostos e complementares (/mas-
culinidade/ e /feminidade/), definindo uma estrutura ele-
mentar da significação. «Diremos que ao lado da relação
antonímica (disjunção e conjunção) entre os semas de uma
mesma categoria, a estrutura elementar da significação se
define ainda pela relação hiponímica entre cada um dos
semas tomados individualmente e a categoria sémica inteira»
(GR 1966, 29).
Estas categorias sémicas são postuladas como sendo de
carácter binario, «sendo a binaridade considerada como uma
regra de construção e não necessariamente como um prin-
cípio estatuindo sobre o seu modo de existência» (GR 1970,
40): a escolha da distribuição binaria não se apoia sobre
razões teóricas não explicitadas, ela é muito simplesmente
retomada da prática actual dos lingüistas na sua descrição
do significante, do ¡plano da expressão.
No que diz respeito ao conteúdo formal da categoria
sémica, ou do eixo semântico, parece-nos que as primeiras
proposições de A. J. Greimas — tal como eram apresenta-
das— podiam provocar alguma hesitação no leitor. Por outro
lado, com efeito, a estrutura elementar era categoricamente
(ver GR 1966, 24) articulada assim:

s vs não s,

parecendo reter só a relação de contradição. Ao mesmo tempo,


entretanto, o autor tratava (GR 1966, 20) de maneira análoga:

(b) sonoro vs (p) não-sonoro, e


grande vs pequeno.

69
Com Du Sens o que nos parece ter sido uma imprecisão
passageira foi inteiramente clarificado: «Esta estrutura ele-
mentar (...) deve ser concebida como o desenvolvimento lógico
de uma categoria sémica binaria do tipo branco vs preto,
em que os termos estão, entre si, numa relação de contrarie-
dade, sendo cada um ao mesmo tempo susceptível de pro-
jectar um novo termo, que seria o seu contraditório, podendo
os termos contraditórios contratar, por sua vez, uma relação
de pressuposição relativamente ao termo contrário oposto»
(GR 1970, 160).
À oposição
s vs nao s,
definida pela relação de contradição, foi assim substituída
uma mais geral
si vs s2,
fundada na relação de contrariedade: a razão disto parece-nos
ser que a relação de contradição é apenas um caso de espécie
da relação de contrariedade.
Por outro lado, esta descrição sintéctica da estrutura
elementar da significação (ou quadrado semiótico) permite
dar conta da ordenação dos universos semânticos no seu
conjunto. «De facto, cada um dos conteúdos que ela define
pode subsumir, na qualidade de eixo semântico, outros que
são organizados por sua vez em estrutura isomórfica à estru-
tura hierarquicamente superior» (GR 1970, 138): há então
assim como que uma espécie de encaixe possível no quadro
de uma integração cada vez mais generalizada, sendo cada
categoria sémica binaria susceptível de ser retomada — a um
nível imediatamente superior — como elemento constituinte
de uma outra categoria sémica binaria mais ampla. Exemplo:
humano vs animal
! I
I
animado vs inanimado

2.1.2. O quadrado semiótico

A organização da estrutura elementar da significação,


situada ao nível profundo e de natureza lógico-semãntica,

70
toma a forma de um modelo bem preciso, espacialmente repre-
sentável pelo quadrado semiótico (chamado também, mode/o
constitucional). Como se trata de um esquema formal, cons-
truído anteriormente a qualquer investimento semântico, dare-
mos dele primeiro a organização geral e as propriedades
formais, antes de propormos uma breve ilustração concreta
do mesmo.

2.1.2.1. A estrutura do quadrado

«Se a significação S (o universo como significante na


sua totalidade ou um sistema semiótico qualquer) aparece
ao nível da sua primeira apreensão como um eixo semântico,
ela se apõe a S, tomado como uma ausência absoluta de
sentido e como contraditório do termo ,S. Se admitirmos
que o eixo semântico S (substância do conteúdo) articula-se,
ao nível da forma do conteúdo, em dois semas contrários:

sl- -s2,

estes dois semas, tomados separadamente, indicam a exis-


tência de seus termos contraditórios:

sl- • s2.
Tendo em conta o facto que S pode ser redefinido, na seqüên-
cia da colocação das suas articulações sémicas, como um
sema complexo reunindo si e s2 por uma dupla relação de dis-
junção e de conjunção, a estrutura elementar da significação
pode ser representada como:

si-* -s2

•-si

-»: relação entre contrários


->: relação entre contraditórios
.: relação de implicação

71
Este modelo é construído utilizando um pequeno número de
conceitos não definidos:
a) os conceitos de conjunção e de disjunção, necessários
para interpretar a relação estrutural;
b) dois tipos de disjunção áQ&.contrários (indicada aqui pela
linha pontilhada) e a disjunção dos contraditórios (indicada
pela linha contínua).
Observação: O modelo acima é somente uma formulação remo-
delada do que foi proposto anteriormente (Greimas, Séman-
tique Structurale, \%6, Larousse). Esta nova apresentação per-
mite compará-lo ao hexágono lógico de R. Blanche (cf. C. Cha-
brol, Structures Intellectuelles, in Informations sur les sciences
sociales, 1967, VI-5), bem como às estruturas designadas, nas
matemáticas, como grupo de Klein, e, em filosofia, como grupo
de Piaget (GR 4970, 136, 137).

2.1.2.2. Características formais do quadrado

A esta apresentação de conjunto da organização do


modelo constitucional, A. J. Greimas acrescenta algumas indi-
cações sobre as propriedades formais aferentes:
«Os termos do modelo: a partir de cada urri dos quatro
termos, podemos, pelas duas operações, tomar o contrário,
tomar o contraditório e oBter os três outros. A sua^définição
é formal, e anterior a qualquer investimento.
As relações:

a) hierárquicas:

— uma relação hiponímica é estabelecida entre si, s2 e S;


uma outra entre si, s2 e S;

b) categóricas:

— uma relação de contradição é estabelecida entre S e S;


e, ao nível hierarquicamente inferior, entre si e si, entre
s2 e s2;
— uma relação de contrariedade articula si e s2, por um
lado, si e s2 por outro. Nos termos de Hjelmslev, ela

72
pode ser identificada como a solidariedade, ou a dupla pres-
suposição.

Observação: As duas operações, tomar o contraditório, tomar


o contrário, são involutivas: o contrário do contrário de s é s;
o contraditório do contraditório de s é s.

— uma relação dejmpiicação é estabelecida entre si e s2, p ^


um lado, e s2 e si por outro: s2 implica si e si implica s2,
ou inversamente.
As dimensões: pelas suas definições relacionais, os ter-
mos sémicos se agrupam de dois a dois, segundo seis dimen-
sões sistemáticas.
Pode-se distinguir:
— dois eixos, S e S. Eles estão em relação de contra-
dição. S pode ser chamado o eixo-do comple&o: ele subsume
si e s2. S é o eixo dos contraditórios si e s2 (de s2 e si); ele é
então o eixo do neutro em relação a si e s2, porque pode ser
definido por: nem si, nem s2;
— dois esquemas: si + si definem o esquema 1; s2-f-s2
o esquema 2. Cada um dos esquemas é constituído por uma
relação de contradição;
— duas deixis: a primeira é definida pela relação de implica-
ção entre sí e s2; a segunda, pela implicação entre s2 e si
(GR 1970, 139).

2.1.2.3. Sistema e processo

Esta apresentação do modelo constitucional, inteira-


mente retomada de A. J. Greimas e de F. Rastier, fez-se ao
nível do sistema, isto é, numa ppT'vpprt'v'i p^^rj^digmátira
Pode-se então, complementarmente, considerá-lo do ponto de
vista do processo, isto é, segundq_j2_eixo_ sintagmático. «Se a
significação, na medida em que procuramos encontrá-la no
objecto, aparece como uma articulação de relações funda-
mentais estáveis, ela é ao mesmo tempo susceptível de uma
representação dinâmica, desde que seja considerada como
uma apreensão ou como a produção do sentido pelo sujeito.

73
Tendo em conta este aspecto dinâmico, pode-se estabelecer
uma rede de equivalencias entre as relações fundamentais
constitutivas do modelo taxinómico e as projecções destas
mesmas relações, ou operações, que incidem desta vez sobre
os termos já estabelecidos desta mesma morfologia elementar;
operações cuja regulamentação constituiria a sintaxe. Assim,
a C-OJÜCadicap, como relagãft, serve, ao nível da taxinomia. para
o estabelecimento de esquinas _binários; como operação de
ccmtradiçãõT ela consistirá, ao nível sintáctico, em negar um
dos termos do esquema e em afirnaar_.au.lïiesmo tempo o seu
termo contraditório» (GR 1970, 164).

2.1.2.4. Ilustração do quadrado

Na segunda parte da nossa exposição, teremos a oca-


sião de ilustrar concretamente a estrutura elementar da signi-
ficação (com o jogo do ser e do parecer). (No entanto, pode-
mos desde já dar, brevemente, um exemplo de investimento
possível, que se apoiará unicamente na distribuição sistemá-
tica, deixando de lado, portanto, as operações virtualmente
realizáveis. [Sublinhamos a este respeito que sempre encon-
tramos apenas maus exemplos: com efeito, para exprimir
uma articulação semântica situada ao nível do conteúdo,
somos, de facto, constrangidos a utilizar a forma lingüística
(francesa): é por isso que as denominações lexicais empre-
gadas ficam sujeitas à caução. A nossa ilustração só será
então aproximadamente indicativa].
Ponhamos um eixo semântico (S), que designa a cate-
goria das «injunções», que chamaremos /injuntivo/: esta
pode ser quer positiva: o /prescrito/, quer negativa: o /inter-
dito/. Suponhamos que estes últimos elementos são simples
( = semas), em relação de contrariedade:

/prescrito/ vs /interdito/

e que eles definem inteiramente, em sua complementaridade,


a categoria (mal denominada) do /injuntivo/. Deste modo,
/prescrito/ e /interdito/ mantêm entre si uma dupla relação

74
de disjunção e de conjunção; por outro lado, cada um destes
dois semas está numa relação hiponímica com a categoria
sémica do /injuntivo/.
iCada um dos dois semas, /prescrito/ e /interdito/, dá
lugar a um termo contraditório:
a) /prescrito/ vs /livre/ ( = não-prescrito);
b) /interdito/ vs /permitido/ ( = não-interdito).
Se a conjunção do /prescrito/ e do /interdito/ define a cate-
goria sémica do /injuntivo/, a do /livre/ e do /permitido/
poderá exprimir-se no /facultativo/. Desta forma, obtemos
um termo complexo (o /injuntivo/) e um termo neutro (o
/facultativo/) que é a negação simultânea dos dois contrários,
/prescrito/ e /interdito/.
injimiivo
prescrito-* •- interdito

permitido-« -•-livre
(não-interdito) (não-prescrilo)
facultativo
É claro que o /injuntivo/ e o /facultativo/ podem tor-
nar-se, por sua vez, a base de um novo quadrado semiótico
de ordem imediatamente superior, e assim dar lugar a uma
organização similar que engendra novos termos.
Como se vê, temos aqui uma espécie de micro-universo
semântico que «se apresenta como um modelo imánente,
constituído (...) por um pequeno número de categorias sémi-
cas apreensíveis, simultaneamente, como uma estrutura»
(GR 1966, 127); uma outra característica merece ainda ser
sublinhada: «A isotopia dos termos da estrutura elementar
garante e funda, de certa maneira, o micro-universo como
unidade de sentido e permite considerar (...) o modelo cons-
titucional como uma forma canónica, como uma instância
de partida para uma semântica fundamental» (GR 1970, 161).

N. B. — Pode acontecer que a relação de contrariedade entre si


e s2 corresponda exactamente à relação de contradição (que é apenas

75
um caso particular da contrariedade). Suponhamos, por exemplo, os
dois semas: /asserção/ e /negação/. Neste caso, a negação da /nega-
ção/ equivale à /asserção/ e a negação da /asserção/ é somente
/negação/.
si s2
asserção negação

não-negação nao-asserçao

Desta forma: sl = s2 e ^ = s l . No entanto, observaremos neste exemplo


particular que se sl = s2 no plano paradigmático, o mesmo não acon-
tece completamente ao nível sintagmático. Ê suficiente referirmo-nos
à língua francesa, para nos darmos conta disto: digamos «oui» para a
/asserção/ e «non» para a /negação/. Depois do «oui» (si) do locutor,
pode intervir o «non» (s2) por parte de um interlocutor; mas após o
«non» deste último, no lugar do «oui» (si) ter-se-á um «si» (=s2):
assim, introduz-se aqui uma dissociação entre s2 («si») e si («oui»),
sendo que a denegação se diferencia sintagmáticamente da asserção.

2.2. ORGANIZAÇÃO SUPERFICIAL

2.2.1. Dos sememas aos acfantes

Vimos mais acima (em 1.5.) que a manifestação do con-


teúdo compreendia dois tipos de unidades: os sememas e os
metassememas. Se deixarmos de lado os segundos (dado que
são de ordem contextual), para retermos somente os primeiros,
já podemos propor uma tipologia para este sub-conjunto que
são os sememas. Para tanto, (A. J. Greimas introduz uma nova
articulação: «Diremos (...) que o universo manifestado no
seu conjunto constitui uma classe definível pela categoria
da «totalidade» e que esta categoria, que na seqüência de Bron-
dal nos propomos conceber como articulando-se em

discrição vs integralidade,

divide o universo manifestado, realizando no momento da


manifestação um dos seus termos sémicos, em duas sub-

76
-classes constituídas, no primeiro caso, de unidades discretas
e, no segundo, de unidades integradas» (GR 1966, 121). Tere-
mos então dois tipos de sememas:
a) os que, como «efeito de sentido», são percebidos
como suportes (conotando a ideia de «substância») ou como
entidades;
b) os que, ao contrário, parecem susceptíveis de serem
integrados, isto é, como devendo ser referidos aos suportes
que são as unidades discretas.
«iPrapomos reter o nome de actante para designar a
sub-classe de sememas definidos como unidades discretas,
e o de predicado para denominar os sememas considerados
como unidades integradas» (GR 1966, 122).
íCom a conjunção de um actante e de um predicado, já
se esboça a base de uma organização sintáctica da manifes-
tação (do conteúdo), definindo-se os dois termos apenas um
pelo outro, sendo que qualquer mensagem semântica com-
preende necessariamente a presença de um e de outro.
Para facilitar a análise de um determinado universo de
significação, poder-se-á, em primeiro lugar, propor «a divisão
da classe dos predicados, postulando uma nova categoria clas-
semática, a que realiza a oposição «estatismo» vs «dinamis-
mo». Na medida em que comportam o sema «estatismo» ou
«dinamismo», os sememas predicativos são capazes de forne-
cer informações, quer sobre os estados, quer sobre os pro-
cessos (=acções) que dizem respeito aos actantes. Assim,
anteriormente a qualquer gramaticalização, o semema pre-
dicativo, tal como ele se realiza no discurso, recoberto pelo
lexema ir em:
Este vestido lhe vai bem
Esta criança vai à escola,
compreenderá, no primeiro caso, o classema «estatismo» e,
no segundo, o classema «dinamismo». Reter-se-á o termo
função para designar o predicado «dinâmico» e o de quali-
ficação para o predicado «estático» (GR 1966, 122-123).
Assim, depois de ter introduzido as restrições semânticas
na classe dos predicados, de maneira a articulá-los em duas

77
categorias diferentes e complementares, será fácil proceder
a uma análise funcional e a uma análise qualificativa, tendo
por duplo objectivo — num e noutro caso — o inventário para-
digmático de todos os dados susceptíveis de nelas serem toma-
dos em consideração e a organização sistemática (sob a forma
de modelos) do conjunto assim extraído. Notar-se-á, aliás,
que as duas perspectivas, qualificativa e funcional, podem
ser, de facto, convertíveis uma na outra.
No entanto, se os elementos qualificativos e funcionais
constituem um lugar de análise importante e indispensável
(cf. os trabalhos temáticos realizados no domínio da lite-
ratura), eles podem (ou devem, segundo a nossa hipótese),
porém, ser subordinados a uma instância superior, a classe
de actantes (organizados num modelo actancial). À primeira
vista, o funcionamento do discurso, por exemplo, consiste
em colocar um certo número de entidades (personagens, objec-
tos, lugares, etc.) e a atribuir-lhes progressivamente um certo
número de propriedades: ter-se-ia assim, em primeiro lugar,
os actantes, aos quais juntar-se-ia a seguir os predicados; o
que corresponde ao fazer sintáctico no momento do seu desen-
volvimento hic et nunc. Se em vez de nos nñantermos na
ordem (sintagmática) do processo (da actividade sintáctica),
considerarmos a relação actante-predicado do ponto de vista
sistemático, diremos que os actantes — como conteúdos inves-
tidos — são constituídos por paradigmas de predicados. Um
pouco à imagem do herói de um romance, cujo «retrato» se
elabora conforme a narrativa e que só está totalmente cons-
tituído no termo da narração: no início ele é apenas um
suporte vazio (designado muitas vezes por um nome «pró-
prio», isto é, praticamente sem nenhum conteúdo semântico
preciso), ao qual o autor acrescenta sucessivamente, no enca-
deamento do romance, um certo número de funções (ou
acções) e/ou qualificações, através das quais o herói toma
corpo e se define.
Desta forma, «se (...) ao nível das mensagens tomadas
individualmente, as funções e as qualificações parecem ser
atribuídas aos actantes, o contrário produz-se ao nível da
manifestação discursiva: vê-se que as funções, como as quali-

78
ficações, são aí criadoras de actantes, que os actantes são
convocados para uma vida metalinguística pelo facto de serem
representativos, dir-se-ia mesmo compreensivos, das classes
dos predicados. Disto resulta que os modelos funcionais e
qualificativos, tais como os postulamos, são dominados, por
sua vez, pelos modelos de organização de um nível hierar-
quicamente superior, que são os modelos actanciais» (GR
1966, 129).

2.2.2. Observações întrodutîvas sobre o modelo actancial

Os predicados — qualificativos e funcionais — são então,


do ponto de vista sintáctico, assumidos ou (integrados, se-
gundo a definição dada acima) pelos actantes. É então a
este nível superior que convém nos colocarmos, para termos
uma visão de conjunto da organização superficial da mani-
festação (do conteúdo). Retomemos, precisando-o, o quadro
geral (dado precedentemente em O.3.), no qual esta se inscreve:

«morfología» «sintaxe»

Nível superficial isemenias modelo actancial


(organização dos sememas ou
organização superficial)
Nível profundo Bemas modelo constitucional o u
estrutura elementar
da significação
(organização dos semas ou
organização profunda)

Reenviando para mais adiante (na seqüência da nossa


exposição: em 2.3.) o estudo da relação entre organização
profunda e organização superficial, fixaremo-nos logo na des-
crição do modelo actancial: para tanto, após algumas obser-
vações preliminares, o consideraremos, sucessivamente, sob
o ângulo do sistema (ou das relações entre os termos que o
constituem), e a seguir sob o do processo (isto é, das ope-
rações a que ele é susceptível de dar lugar).

79
Diferentemente da investigação de V. Propp de que ela
ao mesmo tempo se inspira amplamente, a hipótese de A. J.
Greimas — e é esta em parte a sua originalidade — consiste
em se deslocar do domínio nas funções (de que Propp pro-
punha uma primeira tipologia, no campo do conto popular
maravilhoso), para o dos actantes (termo retomado a L. Tes-
nière, para quem o verbo permanece o núcleo da frase).
Desenvolvido em particular a partir dos inventários de
Propp e de Souriau, o modelo actancial (níiítico) apresenta-se
assim:

destinador objecto >• destinatário

adjuvante
í
> sujeito •< oponente

Resultante da análise de corpus específicos (contos maravi-


lhosos, situações teatrais), este modelo é ao mesmo tempo
«construído, tendo em conta a estrutura sintáctica das lín-
guas naturais» (GR 1966, 180): está suficientemente explícita
aqui a referência com a ordenação da frase, em que sempre
se distribuem os mesmos papeis (sujeito, objecto, circuns-
tantes, etc.), em número restrito: o que só pode favorecer a
percepção da significação. «Já dissemos, escreve A. J. Grei-
mas, que fomos marcados por uma observação de Tesnière
(...) que compara o enunciado elementar a um espectáculo.
Se nos lembrarmos de que as funções, segundo a sintaxe tra-
dicional, são apenas os papéis desempenhados pelas palavras
— o sujeito é nela «alguém que pratica a acção»; o objecto,
«alguém que sofre a acção», etc. — a proposição é, com efeito,
numa tal concepção, somente o espectáculo que o homo
loquens se dá a si próprio. O espectáculo porém tem isto de
particular, é que ele é permanente: o conteúdo das acções fc,
muda todo o tempo, os actores variam, mas o enunciado-
-espectáculo mantém-se sempre o mesmo, porque a sua per-
manência está garantida pela distribuição única dos papéis»
(GR 1966, 173).
O modelo actancial, «obtido graças à estruturação para-
digmática do inventário dos actantes» (GR 1966, 189), funda-se

80
então sobre a articulação sintáctica tradicional, ajustando-se
ao mesmo tempo ao universo semântico que ele deve assumir.
Assim em:
(1) Pedro recebe uma carta do seu tio André, e
(2) O tio André envia uma carta ao seu sobrinho Pedro,
«Pedro» terá, nos dois casos, o mesmo estatuto de destinatário,
do ponto de vista da forma do conteúdo, mesmo se — ao
niveil da manifestação lingüística — o seu papel sintáctico é
evidentemente diferente em (1) e (2).
Para dar uma primeira ilustração do investimento deste
modelo, e «simplificando muito, poder-se-ia dizer que, para
o sábio filósofo dos séculos clássicos, a relação do desejo
(que une o sujeito e o objecto) estando precisada (...) como
o desejo de conhecer, os actantes do seu espectáculo de conhe-
cimento se distribuiriam mais ou menos da seguinte maneira:
Sujeito . . . . Filosofia
Objecto . . . . Mundo
Destinador . . . Deus
Destinatário . . Humanidade
Oponente . . . Matéria
Adjuvante . . . Espírito

Da mesma forma, a ideologia marxista, ao nível do militante,


poderia ser distribuída, graças ao desejo de ajudar o homem,
de maneira paralela:
Sujeito . . Homem
Objecto . . Sociedade sem classes
Destinador . História
Destinatário Humanidade
Oponente Classe burguesa
Adjuvante Classe operária» (GR 1966, 181)

2.2.3. O modelo acfancial como sistema

Consideremos, em primeiro lugar, o modelo actancial no


plano sistemático. Temos aí uma organização de conjunto,
articulada em três pares de actantes, cujo eixo central é cons-
tituído pela relação sujeito/objecto.

81
2.2.3.1. Sujeito/objecto

«A relação entre o sujeito e o objecto (...aparece) com


um investimento semântico (...), o do «desejo». Parece então
possível conceber que a transitividade, ou a relação teleo-
lógica (...), situada na dimensão mítica da manifestação, apa-
reça como um semema que realiza o efeito de sentido «desejo»,
na seqüência desta combinação sémica» (GR 1966, 176-177).
Sem poder precisar mais a natureza da relação sujeito/objecto,
e tendo em conta o esquema da sintaxe lingüística tradicional,
pode-se contudo colocá-la como uma base (hipotética) da des-
crição semiótica, antes de dar dela eventualmente uma justi-
ficação mais adequada.
Tomemos então a relação sujeito/objecto que corres-
ponde à relação activo vs passivo (sujeito = ser querente,
objecto = ser querido): ela definirá o que A. J. Greimas chama
um enunciado de estado. Trata-se, com efeito, da posição de
um elemento em relação ao outro, posição que, na nossa
terminologia presente, corresponderá à junção. Em outros
termos, a relação sujeito/objecto é uma relação juntiva que
permite «considerar este sujeito e este objecto como semio-
ticamente existentes um para o outro» (GR 1973, 19), sem que
tenhamos de nos pronunciar sobre a natureza (ontológica) de
cada um destes dois termos (que só se definem um pelo
outro, numa relação de pressuposição recíproca).
A junção (ou relação juntiva) pode, como categoria
sémica, articular-se em dois termos contraditórios: conjunção
e disjunção.
junção
(categoria sémica)

/ \
disjunção conjunção
(sema 1) (sema 2)

Observação: Mesmo se a presente investigação de A. J. Greimas está


centrada na colocação destes dois semas (conjunção e disjunção) que
definem a junção, podemos — entre paréntesis — indicar aqui a possibi-
lidade de uma outra função (ainda inexplorada), a da suspensão,

82
que corresponderia, segundo o quadrado semiótico (cf. supra), à nega-
ção simultânea da disjunção e da conjunção: suspensão=nem disjunção
nem conjunção. Assim, por exemplo, se o «desejo» aparece conjuntivo
por oposição ao «temor» (de carácter disjuntivo), a «indiferença» cor-
responderia bem ao termo neutro (suspensão).

Teremos assim duas formas da relação de estado, ou


dois enunciados de estado (anotados arbitrariamente):

enunciados conjuntivos: S (1 O
enunciados disjuntivos: S U O .

a) Os enunciados conjuntivos ou atributivos (falaremos


mais adiante do fazer que o enunciado de estado pressupõe,
na medida em que ele é o resultado de uma acção antecedente)
foram, com A. J. Greimas, objecto de uma primeira tipologia,
conforme relevem da ordem do ter ou da ordem do ser
(GR 1970, 170): esta dissociação permitia-lhe distinguir duas
espécies de objectos: os que são investidos de «valores objec-
tivos» e os que comportam «valores subjectives» (GR 1973,
167). Com efeito, tratava-se de levar em conta o modo de
atribuição que se realiza, num caso, segundo o ter e, no outro,
segundo o ser; este critério estrutural encontrava-se confir-
mado, por outro lado, ao nível da manifestação actorial
no discurso (cf. infra 3): «enquanto os objectos investidos
de «valores objectivos» estão presentes no discurso sob a
forma de actores individualizados e independentes (alimento
ou crianças no Pequeno Polegar), os objectos de valor subjec-
tive estão manifestados por actores que são conjuntamente
e ao mesmo tempo sujeitos e objectos (o Pequeno Polegar é,
como actor, ao mesmo tempo sujeito-herói e objecto de con-
sumo para o Ogre, fornecedor, no final, para toda a sua
família») (GR 1973b, 167). No entanto, conforme A. J. Greimas
observará (GR, 1973a, 17-18) ulteriormente (mesmo se o apa-
recimento do seu texto é anterior)», sem ser falsa, uma tal
interpretação situa-se ainda demasiado próxima das linguagens
de manifestação (a distribuição dos papéis de ter e de ser pode
ser diferente de uma língua para outra: os possessivos, por

83
exemplo, podem perturbar a dicotomia postulada, etc.)». É por
isto que, acrescenta ele, «um único enunciado semiótico do tipo

S n O

pode ser postulado como subsumindo uma grande variedade


de manifestações lingüísticas de uma mesma relação de con-
junção entre o sujeito e o objecto, até que se possa prever
ulteriormente uma tipologia estrutural da manifestação e, na
sua seqüência, regras de engendramento de enunciados que
correspondam a níveis gramaticais mais superficiais». Abre-
-se então aqui um campo de explorações possíveis...
b) Os enunciados disjuntivos, exprimindo a outra for-
ma possível da relação de estado (se não levarmos em conta
a suspensão), podem aparentemente levantar problemas se
esquecermos que a disjunção é também uma relação. Como
sublinha A. J. Greimas, «a disjunção, sendo a denegação da
conjunção, não é a abolição de qualquer relação entre os
dois actantes (sujeito-objecto): de outra forma, a perda de
qualquer relação entre sujeitos e objectos conduziria à aboli-
ção da existência semiótica e reenviaria os ©bjectos para o
caos semântico original. A denegação mantém então o sujeito
e o objecto no seu estatuto de entes semióticos, conferindo-
-Ihes ao mesmo tempo um modo de existência diferente do
estado conjuntivo. Diremos então que a disjunção só faz
virtualizar a relação entre sujeito e objecto, mantendo-a como
uma possibilidade de conjunção» (GR 1973a, 20). É assim
que, por exemplo, se o sujeito «Cinderela» estiver disjunto
do objecto «sapato» (a seguir a uma perda ou a um furto),
a relação continua a manter-se, mesmo sob esta forma
negativa.
Esta definição da virtualização como «transformação que *.
opera a disjunção entre o sujeito e o objecto», e do valor
virtual como «qualquer valor investido no objecto que está
disjunto do sujeito» (GR 1973a, 20), convocará, correlativa-
mente, a do fazer conjuntivo como realização («transforma-
ção que estabelece a conjunção entre o sujeito e o objecto»
(GR 1973a, 20), e a do valor realizado como o «valor inves-

84
tido no objecto, no momento (na posição sintáctica) em que
este se encontra em conjunção com o sujeito» (GR 173a, 20).

2.2.3.2. Destinador/Destinatário

O segundo par de actantes que entra na composição do


modelo actancial é constituido pela dualidade destinador/
/destinatário. Estamos aqui perante uma relação bastante
particular que não seria redutível, por exemplo, a que — me-
diatizada por um objecto — existiria entre dois sujeitos: neste
último caso, com efeito, os dois sujeitos estariam em pé de
igualdade, por assim dizer, o que permitiria considerar a sua
relação, equivalentemente, quer do ponto de vista de um, quer
do ponto de vista do outro. Ao contrário, «a existência de
uma relação de pressuposição unilateral entre o destinador
— termo pressuposto, e o destinatário — termo pressuponente,
torna a comunicação assimétrica entre eles: assim, o estatuto
paradigmático do destinador em relação ao destinatário de-
fine-se pela relação hiperonímica, enquanto o do destina-
tário, em relação ao destinador, se caracteriza pela relação
hiponímica, podendo esta assimetria acentuar-se somente
por ocasião da sintagmatização dos dois actantes conside-
rados como sujeitos interessados por um único objecto»
(GR 1973a, 33).
A introdução do par destinador/destinatário no modelo
actancial justifica-se em relação ao objecto. Este último, com
efeito, toma lugar, conforme anotamos, no eixo do «desejo»
(relação sujeito/objecto), mas ao mesmo tempo inscreve-se
no da comunicação. Tomemos, por exemplo, o enunciado:
«É uma sorte que eu possa dar-te este livro, dado
que tenho a oportunidade de fazê-lo».
Temos aqui: destinador: «sorte»;
destinatário: «te»;
sujeito: «eu»;
objecto: «livro»;
adjuvante: «oportunidade».

85
É evidente que um só actor (manifestado) pode cumular várias
funções actanciais: o sujeito da acção pode ser o destinatário
dela (ex.: aquele que se atribui qualquer coisa em seu pro-
veito); da mesma forma, «o destinatário pode ser o seu
próprio destinador (como o herói corneliano que «se res-
peita»). O actor único estará então encarregado de subsumir
os dois papéis actanciais» (GR 1973b, 167). Retemos aqui
sobretudo o facto que, como actividade, qualquer fazer hu-
mano (considerado do ponto de vista da manifestação mítica:
cf. o que dissemos precedentemente sobre o «espectáculo»)
«pressupõe um sujeito; como mensagem, ele está objectivado
e implica o eixo de transmissão entre destinador e desti-
natário» (GR 1970, 168). É porque estes diversos elementos
se sobrepõem muitas vezes de maneira sincrética (no plano
da manifestação actorial: ver infra em 3), como acabamos
de lembrar, que nos arriscamos a esquecer a sua presença
subjacente e necessária para a organização sintáctica de qual-
quer universo semântico.

2.2.3.3. Adjuvante/Oponente

Tendo em conta o que a sintaxe tradicional chama de


«circunstante», pode-se, a respeito da relação sujeito/objecto,
extrair pelo menos «duas espécies de funções bastante dis-
tintas.
1. Umas que consistem em trazer ajuda, agindo no sen-
tido do desejo ou facilitando a comunicação;
2. Outras que, ao contrário, consistem em criar obstá-
culos, opondo-se quer à realização do desejo, quer à comu-
nicação do objecto.
Estes dois feixes de funções podem ser atribuídos a dois
actantes distintos que se designará pelos nomes de: adjuvante
e oponente» (GR 1966, 178479).
íNão insistiremos aqui sobre esta última categoria actan-
cial, porque veremos mais adiante (em 2.2.5.2.) que formu-
lação mais satisfatória pode dela ser dada, quando nos colo-
carmos no plano mais geral da modalização.

86
2.2.4. O modelo ac^ancíal como processo

2.2.4.1. Elementos de urna sintaxe

Como facilmente se observará, a nossa apresentação


do modelo actancial é mais desenvolvida em certos aspectos
que noutros, deixando aqui e ali toda a possibilidade de
novas explorações que, se efectivamente se efectuassem, per-
mitiriam talvez, em retrospecção, reajustamentos, e, em todo
o caso, uma colocação mais coerente (porque menos parce-
lar) da organização sintáctica. Tentaremos somente dar aqui
alguns tópicos sobre o modelo actancial ao nível do processo,
lembrando-nos que as indicações apresentadas constituem
outros tantos esboços para uma investigação mais genera-
lizada.
(A passagem do sistema para o processo equivale ao
desencadeamento das relações acima apresentadas. Partamos,
em primeiro lugar, da relação juntiva entre sujeito e objecto:
vimos que ela era de natureza quer conjuntiva, quer disjun-
tiva. (Não faremos intervir aqui a relação suspensiva que
corresponde ao termo neutro: cf. supra; este terceiro tipo
de relação permitiria evidentemente alargar a combinatoria
de que falaremos).
Se encadearmos num mesmo enunciado

(S n O) -^ (S U O),

temos já o esboço de uma narrativa; poder-se-á aqui «reser-


var o nome de junção sintagmática à seqüência de dois enun-
ciados juntivos (conjunção e disjunção, ou inversamente)
que têm o mesmo sujeito, e estão ligados por uma relação
de pressuposição simples» (GR 1973a, 25).
A passagem de uma relação de estado para uma outra
(da disjunção para a conjunção, ou inversamente: não leva-
remos em conta a suspensão — nem conjunção nem disjun-
ção — que multiplicaria igualmente as possibilidades sintác-
ticas) implica um recurso à transformação, a um fazer. O enca-
deamento de um enunciado conjuntivo e de um enunciado

87
disjuntivo, ou vice-versa, que afecta um mesmo sujeito (S)
na sua relação com o objecto (O), «só se pode fazer pela inter-
pelação de um meta-sujeito operador, cujo estatuto formal
se explicita apenas no quadro de um enunciado de fazer
de tipo:
F (transformação) (SI -> OI),

em que SI é o sujeito que opera a transformação e 01 o enun-


ciado de estado a que ela conduz» (GR 1973a, 19-20).
iSe tivermos então a seqüência sintagmática:

(SI U O) -> (iSl n O)

conforme a qual o sujeito SI está em primeiro lugar disjunto


do objecto O, e a seguir conjunto com ele, graças a uma
transformação intermediária, devemos admitir a existência
de um fazer transformador que permita obter a segunda
relação de estado (conjuntiva: SI D O), efectuada por um
meta-sujeito operador S2:

F [S2 -> (SI n O)]

Poderemos 1er este último enunciado assim: iS2 (=sujeito do


fazer transformador) age de modo que SI fique conjunto
com o objecto O.
lA este respeito, precisemos que se, ao nível da mani-
festação actorial, SI e S2 reenviarem para o mesmo «perso-
nagem», ter-se-á um fazer reflexivo; no caso contrário, tratar-
-se-á de uma acção transitiva. Como se vê, é então «o tipo
de relação mantida entre a estrutura actancial e a estrutura
actorial que determina como casos-limite, ora a organiza-
ção reflexiva dos universos individuais, ora a organização
transitiva dos universos culturais, e que uma mesma sintaxe
é susceptível de dar conta da narrativização psico-semiótica
(«a vida interior») e da narrativização sócio-económica (mito-
logias e ideologias») (GR 1973a, 19). Reencontraremos esta
questão ulteriormente, quando tratarmos da relação entre o
discursivo e o narrativo, entre o conteúdo manifestado e a

88
sua organização sintáctica. Queríamos apenas chamar a aten-
ção aqui, de maneira a sublinhar a autonomia da estrutura
actancial em relação ao seu investimento semântico.

2.2.4.2. Desdobramento do programa narrativo

No nosso exemplo precedente, tínhamos um sujeito em


relação com um objecto. Pode-se alargar a combinatoria,
introduzindo quer um outro sujeito interessado pelo mesmo
objecto, quer um outro objecto. Tomemos o primeiro caso.
Teremos então:

quer: (SI U O) e (S2 fl O)


quer: (SI f] O) e (S2 U O),

dado que, à partida, preferimos fazer intervir somente as


duas relações contraditórias de conjunção e de disjunção.
Ao nível sintagmático, teremos assim:

junção paradigmática

junção <1.) (SI U O) ^ (SI n O)


sintagmática (2) (S2 n O) ^ (S2 U O)

À junção sintagmática, definida mais acima, e que encontra-


mos nos dois planos correlacionados, (1) e (2), acrescenta-se
aqui a junção paradigmática que designa «a concomitância
logicamente necessária de dois enunciados de conjunção e de
disjunção, afectando dois sujeitos distintos» (GR 1973a, 15),
interessados por um mesmo objecto.
«Uma narrativização tão simples como esta (...) faz
aparecer, como se vê, a existência não de apenas um pro-
grama, mas os dois programas narrativos, cuja solidariedade
é garantida pela concomitância das funções, em relação con-
traditória, definindo os dois sujeitos, promotores cada
um de uma cadeia sintagmática autónoma e correlativa.

89
A existência de dois programas correlativos dá conta da
possibilidade de manifestar discursivamente, isto é, de contar
ou de ouvir a mesma narrativa, explicitando quer um, quer
outro dos dois programas, conservando ao mesmo tempo
implícito o programa concomitante, mas invertido. Uma tal
interpretação, embora ainda muito restrita pelo seu campo
de aplicação, pode, porém, servir de ponto de partida para
uma formulação estrutural do que se chama às vezes a
perspectiva» (GR 1973a, 25).
Este duplo programa narrativo que acabamos de evo-
car, pode ser formalmente reescrito de outra maneira (obe-
decendo sempre ao princípio segundo o qual a relação entre
sujeitos só poderia existir mediatizada por um objecto):

(SI u O n S2) ^ (SI n O u S2).


O mesmo aconteceria se, em vez de introduzirmos assim dois
sujeitos interessados pelo mesmo objecto, fizéssemos apelo
a dois objectos. Este procedimento exige porém alguma
justificação: «sendo o sujeito definido pela sua relação de
objecto e só por ela, a presença de dois objeotos nos obriga
a postular, num primeiro tempo, a existência de um sujeito
distinto para cada um dos objectos; é somente a seguir que
a identificação dos dois sujeitos, devido ao sincretismo acto-
rial, permite a redução de dois enunciados elementares num
enunciado complexo. Isto, consequentemente, autoriza-nos a
distinguir duas espécies de enunciados de junção, de estrutura
comparável: enunciados juntares de sujeitos e enunciados
juntares de objectos» (GR 1973a, 30), respectivamente do tipo:

(SI u O n S2) -» (SI n O u S2)


e
(01 u S n 02) -^ (01 n s u 02)
o duplo programa narrativo, na sua forma elementar

(SI U O) ^ (Sl n O)
. (S2 n O) -» (S2 U O),
90
evidentemente só pode funcionar numa espécie de universo
fechado, no qual o que é concedido a um o é em detrimento
do outro, o que é retirado de um o é em proveito do outro.
Ter-se-á então, simultaneamente, uma transformação conjun-
tiva para SI (figurativizada pela aquisição) e uma transfor-
mação disjuntiva {privação) para S2. Se reintroduzirmos aqui
a relação reflexivo vs transitivo, podemos prever, figurativa-
mente: a) duas espécies de transformação conjuntiva: a apro-
priação, no caso de um fazer reflexivo, e a atribuição com a
acção transitiva; b) duas formas de transformação disjuntiva:
renúncia, se o fazer é reflexivo, e despossessão, se ele é tran-
sitivo. «¡Se designássemos com o nome de prova a transfor-
mação que dá lugar a uma apropriação e a uma despossessão
concomitantes, e com o nome de dom a que produz solida-
riamente uma atribuição e uma renúncia, obtemos as duas
principais figuras pelas quais a comunicação de valores se
manifesta em superfície» (GR 1973a, 28).
Situando-nos assim ao nível figurativo, constatamos,
porém, que há casos em que a transferência do objecto de
um sujeito para o outro não se efectúa desta maneira. Tome-
mos «o caso do destinador que, como sujeito transformador,
opera um dom endereçado ao destinatário; se a transforma-
ção tem como conseqüência a atribuição de um valor ao
destinatário, esta atribuição não é por isto solidária, como
se deveria esperar, da renúncia por (parte do destinador (...).
O objecto de valor, mesmo tendo sido atribuído ao destina-
tário, permanece em conjunção com o destinador. Os exem-
plos que podem ilustrar este fenómeno insólito são nume-
rosos. Assim, no momento da comunicação verbal, o saber
do destinador, uma vez transferido para o destinatário, é
com este «partilhado», sem que o destinador se encontre
privado dele (...). Diremos (...) que se trata aqui de um tipo
específico de comunicação, que propomos designar como uma
comunicação participativa, e isto nos referindo às relações
estruturais particulares entre o destinador e o destinatário, as
quais interpretamos no quadro geral da fórmula pars pro
tota» (GR 1973a, 33-34): reencontramos aqui o estatuto parti-
cular da relação destinador/destinatário, mencionado mais
acima.
91
2.2.4.3. Sintagmas narrativos

Como facilmente se notará, estas poucas indicações sobre


a organização sintáctica são somente fragmentárias e deixam
a via aberta para desenvolvimentos mais amplos (a vir ou
possíveis). Sem falar do problema do destinador/destinatário,
apenas evocado aqui, apresentamos, por exemplo, só as trans-
formações que afectam a relação sujeito/objecto (notemos,
aliás, que o artigo de A. J. Greimas, «Un problème de sémio-
tique narrative: les objects de valeur», desenvolvido parcial-
mente aqui, não faz sequer alusão ao termo neutro de sus-
pensão que a estrutura elementar da significação permite
fazer aparecer): em vez de nos mantermos, como fizemos,
unicamente na relação sujeito/objecto, poderíamos analisar
igualmente o problema das substituições, efectuáveis tanto
ao nível do sujeito como ao do objecto, extraindo assim novas
leis de construção no campo semiótico.
Dito isto, os poucos enunciados elementares ou mais
complexos que acabamos de apresentar, já nos dão uma
certa idéia do que é a narratividade: esta «consiste numa ou
várias transformações, cujos resultados são junções, isto é,
quer conjunções, quer disjunções dos sujeitos com os objec-
tos» (GR 1973a, 20). Em termos mais imagísticos, «a narrati-
vidade, considerada como a irrupção do descontínuo na per-
manência discursiva de uma vida, de uma história, de um
indivíduo, de uma cultura, a desarticula em estados discretos
entre os quais ela situa transformações; isto permite des-
crevê-la, num primeiro tempo, sob a forma de enunciados
de fazer afectando os enunciados de estado, sendo estes
últimos os garantes da existência semiótica dos sujeitos em
junção com os objectos investidos de valores» (GR 1973a, 34).
Vimos que a partir destes elementos que são os actantes
(sujeito, objecto, destinador, etc.) e as funções (cf. acima o
exemplo do fazer transformador), pode-se engendrar os enun-
ciados narrativos que são as formas sintácticas elementares.
Num plano superior, um encadeamento de enunciados narrati-
vos pode organizar-se como unidade narrativa: tal é, por

92
exemplo, o caso da «performance» que A. J. Greimas apre-
senta em três enunciados narrativos (EN) (GR 1970, 172-173):

EN 1 = F : confrontação (SI <—> S2)


EN 2 = F: dominação (SI > S2)
EN 3 = F: atribuição (SI < 0)

que estão encadeados segundo uma relação de implicação:

EN 3 3 EN 2 3 EN 1.

Esta definição da unidade narrativa, «como uma seqüência de


implicações entre enunciados, tem uma certa importância
prática no momento da análise narrativa ao nível da mani-
festação (do conteúdo), em que ela funda as regras de elipse
e de catalise» (GR 1970, 174).
A evidenciação das unidades narrativas só pode, é claro,
efectuar-se a partir de um corpus suficientemente amplo, por
via comparativa (graças, em particular, à prova de comu-
tação): «A correlação de dois elementos narrativos não idên-
ticos que pertencem a duas narrativas diferentes conduz ao
reconhecimento da existência de uma disjunção paradigmá-
tica que, operando numa determinada categoria semântica,
faz considerar o segundo elemento narrativo como a trans-
formação do primeiro. Entretanto (...) contata-se que a trans-
formação de um dos elementos tem como conseqüência pro-
vocar transformações em cadeia ao longo da seqüência con-
siderada. Esta constatação conduz, por sua vez, às seguintes
conseqüências teóricas:
1. ela permite afirmar a existência de relações neces-
sárias entre os elementos cujas conversões são concomi-
tantes;
2. ela permite delimitar sintagmas narrativos (...): eles
são definíveis ao mesmo tempo pelos seus elementos consti-
titutivos e pelo seu encadeamento necessário;
3. finalmente, ela permite definir os próprios elementos
narrativos não apenas pela sua correlação paradigmática (pelo
procedimento de comutação, recentemente proposto por Lévi-

93
"Strauss), mas também pela sua função no interior da unidade
sintagmática de que eles fazem parte» (GR 1970, 190).
Nesta linha de investigação, uma primeira exploração
através do conto popular permitiu a A. J. Greimas afirmar
que «os elementos necessários à existência da narrativa (...)
são em número de três: disjunção, contrato, prova» (GR 1970,
253): os «elementos» de que se trata aqui são, mais preci-
samente, sintagmas narrativos (segundo a terminologia pre-
cedente, mais rigorosa); quanto à prova (ou, noutros casos,
a «tarefa difícil» ou «teste»), o autor propôs mais tarde
(GR 1973b, 164) substituir-lhe o conceito de performance (que,
mais adiante, veremos como se articula na organização sin-
táctica). O conjunto destes três sintagmas narrativos (ou
unidades narrativas?) constitui uma seqüência narrativa de
que uma das definições possíveis seria: «uma unidade do dis-
curso narrativo autónoma, susceptível de funcionar como
narrativa, mas que igualmente se pode encontrar integrada,
enquanto uma das suas partes constitutivas, numa narrativa
mais ampla: o lugar que ela ocupará nesta, determinará a
sua função na economia global da estrutura narrativa» (GR
1970, 253). Ver-se-á ulteriormente que definição pode ser
dada da narrativa, porque não se trata neste caso de uma
unidade narrativa, mas antes de uma unidade discursiva.

2.2.5. A modalização sintáctica

2.2.5.1. A modalidade

Com o problema das modalidades entramos num domí-


nio extremamente delicado («de modalibus non gustabit asi-
nusi>), que exige ainda muitas investigações para se poder
tornar o objecto de uma apresentação de conjunto, coerente
e aprofundada. Como por ocasião do parágrafo precedente, só
daremos alguns elementos fragmentários, esboços de inves-
tigações a vir. (Cf. Langages, Set. 1976).
Vimos que os sememas (unidades do nível da mani-
festação do conteúdo) se dividiam em duas classes: unidades

94
discretas (denominadas actantes e organizadas segundo uma
estrutura específica, o modelo actancial) e unidades integra-
das ou predicados); estes últimos repartem-se em qualifi-
cações ou funções conforme relevem do «estatismo» ou do
«dinamismo».
«No interior da classe das funções, pode-se distinguir
uma sub-classe de modalidades (...), caracterizadas pela sua
relação hiperotáxica em relação ao predicado. Assim, nas
seqüências:

«João gosta de tocar guitarra»


«A terra parece redonda»,

gosta e parece são modalidades que, logicamente anteriores


aos predicados, constituem o quadro da sua modificação»
(GR 1966, 155). Em outros termos, e de modo mais geral,
diremos que há modalidade quando dois predicados estão
entre si numa relação tal que um é regido pelo outro. Com

«Ele dizia que tinha razão para fazer aquilo»,

vê-se aparecer uma primeira modalização («ele tinha razão


para») e uma sobremodalização («ele dizia que») de tipo
assertivo que corresponde a uma enunciação enunciada. Como
se observa, o enunciado increve-se aqui a três níveis, em
relação 'hiperotáxica. Adivinha-se desde logo que o campo
das modalidades é um imenso domínio (entre outros elemen-
tos, conviria situar, por exemplo, o problema da enunciação)
que, como tal, permanece praticamente fora do nosso pro-
pósito.
>Restringiremo-lo então aqui unicamente à perspectiva
narrativa. Se, conforme propusemos, se pode analisar esque-
máticamente a ordenação narrativa como uma seqüência de
relações de estado, entre as quais se inscrevem as transfor-
mações, estamos em condições de prever que a modalização
poderá incidir tanto sobre o jazer, que corresponde às trans-
formações, como sobre o ser (definido pela relação de estado).

95
2.2.5.2. A modalização do fazer

Consideremos, em primeiro lugar, a modalização do


fazer, Na nossa terminologia precedente, e colocando-nos do
ponto de vista do sujeito do fazer, introduzimos o conceito
de performance (que corresponde ao fazer). Este termo, per-
mitindo «dar uma definição simples do sujeito (...) no seu
estatuto de sujeito do fazer (...) convoca naturalmente o de
competência (...). Propomos definir a competência como o
querer e/ou poder e/ou saber-fazer do sujeito que pressupõe
o seu fazer performancial» (GR 1973b, 164).
Em relação ao fazer, temos assim três modalidades
possíveis: o querer, o saber e o poder (sem esquecer, é evi-
dente, a modalidade factitiva ela mesma). Observemos logo
que este primeiro inventário não se quer exaustivo. Há já
quem proponha a introdução do dever. À primeira vista, e
na esfera de uma análise mais rigorosa, pareceria que o
querer e o dever são parentes próximos, porque, nos dois
casos, poder-se-ia discernir um fazer-querer: se o sujeito deste
fazer-iquerer coincidisse — ao nível dos actores — com o su-
jeito da acção a ser realizada, ter-se-ia o querer; se o sujeito
do fazer-querer fosse diferente do sujeito da acção a ser reali-
zada, ter-se-ia o dever. Deste ponto de vista, os dois termos
(querer e dever) seriam parcialmente interdefiníveis, distin-
guindo-se ao menos devido ao facto de que o querer con-
vocaria uma organização reflexiva, enquanto o dever seria
de tipo transitivo. Não avançaremos mais longe, dado que
as modalidades são objecto — entre nós — da investigação
actual. Dito isto, não é menos verdade que outras modali-
dades são sem dúvida possíveis: é assim que, por exemplo,
A. J. Greimas promove a do crer (cf. infra: 2.2.5.3.).
'Como dissemos (em 2.2.5.1.), as três modalidades retidas
no momento (querer/saber/poder) inscrevem-se numa sub-
classe de funções, ela mesma constitutiva do conjunto das
unidades integradas; paralelamente, estas modalidades podem-
-se unir também às unidades discretas que são os actantes:
o querer corresponde ao eixo sujeito/objecto, o saber ao

96
do destinador/destinatário e o poder ao do adjuvante/opo-
nente. Acrescentemos, por outro lado, que estas modali-
dades não nos parecem ser do mesmo nível. Sem entrar em
análises sémicas muito exaustivas, que estão por se fazer,
já se pode estabelecer uma linha de demarcação entre o
querer, por um lado, o saber e o poder, por outro. O que-
rer, com efeito, instaura o sujeito como tal, enquanto o
saber e o poder estão directamente ordenados ao fazer: em
outros termos, a modalidade do querer, por caracterizar o
eixo sujeito-objecto, incidiria mais sobre a relação de estado
(conjuntiva, disjuntiva ou suspensiva), enquanto o saber
e o poder se inscreveriam ao nível do fazer transformador
(que assegura a passagem de uma relação de estado para
uma outra diferente).
Seja como for, a introdução das modalidades permite
precisar o esquema actancial, dando-lhe um desenvolvimento
mais amplo e novas possibilidades de combinatoria na cons-
trução de uma sintaxe narrativa superficial. Ê assim que,
considerando apenas o actante-sujeito, por exemplo, A. J.
Greimas propõe articulá-lo graças às modalidades, fazendo
aparecer desta forma os papéis actanciais diferenciados: «Se
o sujeito competente é diferente do sujeito performante, eles
não constituem por isso dois sujeitos diferentes: são somente
duas instâncias de um único e mesmo actante. Segundo a
lógica motivadora (post hoc, ego propter hoc), o sujeito deve,
em primeiro lugar, adquirir uma certa competência para se
tornar performador; segundo a lógica das pressuposições, o
fazer performador do sujeito implica previamente uma com-
petência do fazer. Diremos então que o actante-sujeito pode
assumir, num determinado programa narrativo, um certo
número de papéis actanciais. Estes são definidos ao mesmo
tempo pela posição do actante no encadeamento lógico da
narração (sua definição sintáctica) e pelo seu investimento
modal (sua definição morfológica), tornando assim possível
a regulamentação gramatical da narratividade. Uma termi-
nologia dos papéis actanciais deveria poder ser constituída,
para permitir distinguir nitidamente os actantes em si dos
papéis actanciais que eles são chamados a assumir no desen-
7 97
volvimento da narrativa. Poder-se-ia distinguir, assim, o
sujeito virtual do sujeito querer (ou sujeito instaurado); este,
do herói segundo o poder (Ogre, Roland) ou do herói segundo
o saber (o 'Pequeno Polegar, a Raposa), etc.» (GR 1973b,
164.165).
Esta focagem das modalidades do sujeito poderia esten-
der-se igualmente aos outros actantes. Notemos, por outro
lado, que as modalidades são susceptíveis de afectar os
actantes quer de maneira positiva (como acima), quer de
maneira negativa (não-poder, não-querer, não-saber), impe-
dindo assim o herói de passar ao acto; consequentemente,
na medida em que tal modalidade positiva é necessária para
a execução do fazer, assistir-se-á eventualmente a uma (se-
qüência de) transformação(ções) que conduz(em) à sua obten-
ção (cf. infra, nossa análise de Cinderela).
Como se vê, «uma sintaxe dos operadores deve ser cons-
truída, independentemente de uma sintaxe das operações (de
posição hierarquicamente inferior) (...) Os operadores sin-
tácticos serão concebidos nela como sujeitos dotados de
uma virtualidade particular do fazer que os tornará suscep-
tíveis de desempenhar a operação de transferência prevista.
Esta virtualidade do fazer é apenas uma modalidade: o saber
ou o poder; pode-se formulá-la (...) de duas maneiras dife-
rentes: quer como um enunciado modal que representa o
saber-fazer ou o poder-fazer do sujeito; quer como um enun-
ciado atributivo que assinala a aquisição de um valor modal
pelo sujeito» (GR 1970, 178).
Ultrapassando o quadro restrito do sujeito (o mais
estudado até aqui), estendendo então esta última distribuição
a qualquer actante, podemos — se nos colocarmos ao nível
actorial — considerar de duas formas a relação da modali-
dade com o actante. Num caso, a modalidade estará conjunta
com o actante, dada de maneira «inata»: tal é o caso do
Pequeno Polegar ou de Ogre («naturalmente» dotados do saber
ou do poder); no outro, ela aparecerá dis junta, podendo assim
dar lugar a «performances» destinadas à aquisição e à trans-
missão dos valores modais» (GR 1970, 179): é assim que às
vezes o poder, no conto popular, será assumido por um

98
objecto mágico (figurativização do valor modal), que se toma
ele próprio o objecto de uma aquisição.
iE neste ponto que reencontramos a dualidade actancial
adjuvante vs oponente que, momentaneamente, tínhamos dei-
xado em suspenso: ela recebe aqui, com efeito, uma interpre-
tação mais adequada: «;0s papéis actanciais que definem a
competência do sujeito podem ser manifestados quer pelo
mesmo actor que o sujeito ele mesmo, quer por actores dis-
juntos. iNeste último caso, o actor individualizado será deno-
minado, no seu estatuto de auxiliar, e no caso de ser con-
forme a deixis positiva ou negativa, ora adjuvante, ora opo-
nente» (GR 1973b, 167).
Por outro lado, como no caso (cf. supra 2.2.4.2.) dos
objectos em circulação, pode-se verosimilmente postular que
a transmissão dos valores modais se efectúa muitas vezes em
circuito fechado, segundo um sistema cerrado, e que, nesta
hipótese, a aquisição do poder por um sujeito, por exemplo,
só pode operar-se em detrimento de um outro: qualquer con-
junção para Si implicando uma disjunção para S2.

2.2.5.3. A modalização veredictória

Até aqui, e tendo em conta as aquisições semióticas,


tínhamos em vista apenas a modalização do fazer; é verdade
que a que afecta o ser não foi ainda objecto de explorações
detalhadas. Parece-nos que somente a dimensão cognitiva deu
lugar a algumas primeiras articulações; não se tratará aqui
— sublinhamos — do saber-fazer, mas do saber sobre o ser
que este ser exprime através de qualificações ou de funções.
Evidentemente, importa lembrar ainda que, mesmo neste
sector particular, a investigação se encontra apenas em come-
ços balbuciantes '.

1 Um estado da questão foi realizado depois disso por A. J.


Greimas e J. Courtes, num artigo «The Cognitiva Dimension of Nar-
rative Discourse» (in New Literary History, vol. VII, Primavera 1976,
Número 3, pp. 433437. University of Virginia, U.S.A.).

99
«o jogo da verdade e da decepção (muito amplamente
empregado na literatura oral, entre outros) apoia-se numa
categoria gramatical, a do ser vs parecer (que constitui, sabe-
mos, a primeira articulação semântica das proposições atri-
butivas)» (GR 1970, 192). A partir desta dicotomía fundamen-
tal e pondo em prática o modelo constitucional, obtém-se
quatro categorias de posição imediatamente superior, que são
o verdadeiro, o falso, o segredo e a mentira, susceptíveis de
articular ao seu nível a dimensão cognitiva:
verdadeiro
í serv^ ^parecer )
segredo l ^^'v,/^ } mentira
:ecev^ ^»
nao-parecer^ ^» nãc
nao-ser
falso

Desta forma, a conjunção ou a disjunção entre ser e


parecer (e seus contraditórios) permite designar estados que
modalizam funções e/ou relações (que, quanto a elas, per-
tencem ao nível inferior dos enunciados narrativos). Assim,
se nos situarmos neste plano — hierarquicamente superior —
que é a modalização segundo o saber, podemos não somente
levar em conta os quatro estados acima propostos (verda-
deiro, falso, segredo, mentira), mas igualmente introduzir
entre eles um fazer transformador que se definirá como fazer
cognitivo.
Sabendo que qualquer disjunção, no campo da veridic-
ção só se exprime na medida em que coloca em relação
dois sujeitos, seremos levados a distinguir duas espécies de
fazer cognitivo: o fazer persuasivo (do lado do destinador)
e o fazer interpretativo (do ponto de vista do destinatário).
Em outros termos, isto significa que a relação entre os dois
actantes se estabelece pela mediação de um objecto moda-
lizado segundo o saber, e que — do mesmo passo — a dimen-
são cognitiva é susceptível de se organizar segundo um esque-
ma narrativo sintáctico, comparável ao do nível inferior: no
entanto, com a diferença de que, neste último caso, estamos
perante uma circulação de valores objectivos (ou pragmá-

100
ticos), enquanto, no caso da modalização, a transferência
que se opera diz respeito ao valor modal do saber. Uma
combinatoria extremamente complexa pode-se instaurar a par-
tir daqui, a qual introduzirá, por exemplo, as categorias (da
base actorial) de reflexividade e de transitividade, e na qual
o saber pode incidir não somente sobre o ser e o fazer de
um determinado sujeito (em relação a um outro), mas também
sobre o seu próprio saber; efectuando-se então a transmissão
do objecto-saber segundo as próprias regras da ordenação
superficial (parcialmente apresentada mais acima), mas trans-
posta para um nível superior, ou mesmo para vários hierar-
quicamente ligados entre si (qualquer saber, por exemplo,
podendo ser o objecto de um meta-saber de posição supe-
rior). A título de ilustração, seja-nos suficiente reenviar aqui
ao Essai sur la vie amoureuse des hippopotames (por A. J.
Greimas e um grupo de investigadores). Pela nossa parte
veremos concretamente que esclarecimento resulta da veri-
dicção aplicada a um conto como «Cinderela» (cf. infra,
segunda parte). Acrescentemos, por outro lado, que o fazer
persuasivo e o fazer interpretativo que manipulam os estados
de veridicção, se situam em relação a eles a um nível hierar-
quicamente superior, o da modalidade do crer (fazer persua-
sivo = «fazer crer»; fazer interpretativo—«crer»).
'Notemos, ao terminar, que uma das vantagens do qua-
drado da veridicção (apresentado aqui acima) não é somente
a de «libertar» esta categoria modal das suas relações com
o referente não semiótico, mas também e sobretudo a de
sugerir que a veridicção constitui uma isotopia narrativa
independente, susceptível de colocar o seu próprio nível refe-
rencial e de nele tipologizar as diferenças e os desvios, insti-
tuindo assim a «verdade intrínseca da narrativa» (GR 1973b,
165-166).

2.2.5.4. O saber sobre o ser

Aproveitando o facto de que a modalidade do saber, ao


nível do ser, já se tornou assim o objecto de uma primeira
análise (hoje suficientemente confirmada), podemos talvez,

101
a título mais pessoal, tentar esclarecer parcialmente a relação
do ser e do fazer, do ponto de vista das modalidades, detendo-
-nos, porém, exclusivamente no saber (as coisas se passariam
sem dúvida de modo completamente diferente com o querer
e o poder). Precisemos que se trata aqui somente de algumas
observações preliminares, de natureza particularmente hipoté-
tica, na expectativa de análises fundamentais.
Como distinguir então o saber sobre o ser (no qual o
ser recobre tanto estados como transformações: trata-se de
tudo o que existe) do saber-fazer (ordenado às acções, por-
tanto unicamente às transformações)?
Se compararmos os dois enunciados:

(1) Je sais marcher


(2) Je me sais marchant ',

pode-se dizer que — do ponto de vista da acção considerada —


a fórmula (2) implica um saber (uma consciência) simultâ-
neo, enquanto na (1) o saber precede a acção. Nesta pers-
pectiva, poder-se-ia avançar que o saber sobre o ser é actual,
enquanto o saber-fazer é virtual. Notar-se-á -assim que, em
relação à acção, o saber sobre o ser está em posição para-
digmática, e o saber-fazer em posição sintagmática.
Com efeito, este último é definível como consciência vir-
tual, como memória (que reenvia para um passado, para uma
anterioridade) de um programa narrativo (exemplo: «cami-
nhar», segundo o Petit Robert, é «deslocar-se através de movi-
mentos e de apoios sucessivos das pernas e dos pés, sem
deixar o solo»).
Evidentemente, a memória (compreendo-a no sentido da
informática e não da psicologia) — que caracteriza um saber-
-fazer — joga, por sua vez, em dois eixos diferentes e com-
plementares:
a) uma memória sintagmática que, no momento do

1 Eu sei andar.
Eu sei que ando.

102
fazer, dará lugar a uma repetição: o programa narrativo é
nesta cada vez retomado tal qual (exemplo: o caminhar);
b) uma memória paradigmática que, levando em conta
determinados elementos já registados, permitirá uma distri-
buição ad hoc: o que explicaria que o saber^azer pode ser
não somente repetição, mas também criação: é suficiente pen-
sarmos, por exemplo, nos artífices (carpinteiro, sapateiro, etc.)
que, nos seus trabalhos, são capazes de adaptar a sua técnica
(o saber-fazer), isto é, de organizar os elementos constituintes
desta em dois eixos, paradigmático e sintagmático, tendo em
conta a diversidade dos materiais com que devem tratar.
Estas duas formas do saber-fazer — repetitivo e cria-
tivo — são evidentemente interpretáveis de duas maneiras.
Numa hipótese de tipo ontológico, colocar-se-ia uma origem:
exterior ao sujeito, no caso do fazer repetitivo (imitação de
um modelo exemplar), interior ao sujeito, como fazer cria-
tivo («il a du génie») '. Em contrapartida, numa perspectiva
realista, não se impõe nenhum recurso a uma projecção
mítica: como constata o sentido comum, o fazer, uma vez
realizado (ou inscrito no passado), automaticamente se trans-
forma em saber-fazer («C'est en forgeant qu'on devient for-
geron») ^, no momento em que é registado pela memória.
Se, logicamente (ou miticamente), o saber-fazer precede
o fazer do ponto de vista genético (sob o ângulo da praxis),
é, ao contrário, a acumulação de vários fazeres que engendra o
saber-fazer. Para um determinado sujeito (numa narrativa),
a modalidade do saber-fazer é a recapitulação paradigmática
de acções passadas (que lhe são explícita ou implicitamente
atribuídas); do ponto de vista do processo, o saber-fazer con-
cedido ao sujeito permite dar-lhe (ficticiamente) uma história
anterior, de o inserir no tempo.
Reconhecemos assim que, em qualquer caso, se adquire
o saber-fazer ao longo de um eixo temporal, graças a um ou
a vários fazeres sucessivos. Certamente, o conto popular, por
exemplo, atribui às vezes este saber-fazer ao sujeito de ma-

1 «Ele tem qualquer coisa de gênio».


2 «É ferreando que a gente se torna ferreiro».
103
neira inata (o Pequeno Polegar é «naturalmente» hábil): mas
trata-se aqui — e é talvez uma característica deste género de
narrativa — de uma suspensão do eixo temporal que liga o
início e o final do programa de aquisição: a redução, ou a
negação do intervalo (ou da «aprendizagem») ou do programa
que o preenche, aparece consequentemente como um fenó-
meno «sobrenatural» ou «maravilhoso» (cf. o menino pro-
dígio). Diferentemente do saber sobre o ser, que releva da
contemporaneidade e da duração indefinida (ou inarticulada),
o saber-fazer pressupõe então a relação do antes e do depois,
a inclusão (memorial) do passado no presente.

N.B. A memória joga tanto no saber-fazer como no saber sobre o ser,


ordenada como ela pode estar tanto em relação à acção (ver
acima) como à «existência»:
saber
1
saber actual saber virtual
consciência ^ memória
esquecimento-^^ ^ ignorância
1

não -saber

2.3. ORGANIZAÇÃO SUPERFICIAL E ORGANIZAÇÃO PROFUNDA

No quadro da «morfología», vimos que os semas (=uni-


dades do nível profundo) podiam combinar-se entre si, fazendo
aparecer assim — no plano superficial — estas unidades com-
plexas que são os sememas e os metassememas. Passando a
seguir da «morfología» para a «sintaxe» — ou dos termos
para as relações — mostramos que a estruturação dos semas
(nível profundo) efectuava-se segundo o modelo constitucional,
enquanto a ordenação dos sememas (nível superficial) era
assumida pelo modelo actancial. Neste estádio da nossa
apresentação, resta-nos então esclarecer a passagem da estru-
tura elementar da significação para o funcionamento sintác-
tico do nível superficial. Se, no caso de descrição «morfo-
lógica», a passagem de um plano para o outro se operava pela

104
mediação de uma combinatoria, o mesmo não acontece entre
a organização profunda e a organização superficial.

«Morfología» «Sintaxe»
Nível superficial: sememas ^ organização actancial
f -f
Nível profundo: semas > modelo constitucional

Como o nosso esquema indica, partindo dos semas


obtém-se, directamente, quer o modelo constitucional (qua-
drado semiótico), quer os sememas e — através deles — a
organização superficial (ou actancial); ao contrário, não há,
ao que parece, um itinerário que vá directamente da estru-
tura elementar da significação para a distribuição sintáctica
da superfície: a flecha pontilhada mostra apenas que há
aparentemente um salto entre os dois níveis, diferentemente
da «morfología», em que a combinatoria assegura e garante
a hierarquia (concebida, lembremos, como uma relação de
pressuposição lógica) dos dois planos.
Conforme notamos, o modelo constitucional é de tipo
lógico-semántico, enquanto o modelo actancial envia para
a noção de «espectáculo» retomada de ,L. Tesnière. Nesta
perspectiva, a organização superficial manifesta um «caracter
antropomórfico», por oposição à organização fundamental
de «caracter lógico» (GR 1970, 167). É por isto que A. J.
Greimas propõe definir a passagem de um nível para o outro
«como uma equivalência entre a operação e o fazer» (GR 1970,
168): portanto, se um dos conceitos de base do nível pro-
fundo «é o da operação sintáctica (cf. supra 2.1.2.3.), ele
corresponderá, ao nível superficial, ao fazer sintáctico. O esta-
belecimento da equivalência entre a operação e o fazer cons-
titui (...) a introdução, na gramática, da dimensão antropo-
mórfica» (GR 1970, 167).
Para esclarecer a formulação de A. J. Greimas, é neces-
sário que desloquemos aqui (o que é sempre possível, já que
se trata de uma relação) a oposição morfologia/sintaxe, que
organizava o conjunto da nossa apresentação (conforme lem-
bra uma vez ainda o nosso esquema precedente), e a intro-

105
duzamos no interior do que chamamos «sintaxe». Do mesmo
passo, o modelo constitucional, considerado então como mo-
delo taxinómico, aparece como uma morfología elementar, e
a sintaxe fundamental correspondente é a «que opera sobre
os termos taxinómicos previamente interdefinidos» (GR 1970,
166). A morfología reenvia então aqui para a organização
sistemática do quadrado semiótico, com as relações que per-
mitem definir os termos. Quanto à sintaxe, ela «consiste em
operações efectuadas sobre os termos susceptíveis de serem
investidos de valores de conteúdo; desta forma, ela os trans-
forma e os manipula, negando-os e conjuntando-os ou, o que
significa o mesmo, disjuntando-os e conjuntando-os» (GR 1970,
166); assim acontece, por exemplo, como mencionamos (em
2.1.2.3.), com a operação de contradição.
A sintaxe, concebida como um conjunto de regras ope-
ratorias, possui certas propriedades: as operações efectuadas
no interior do modelo constitucional são, por exemplo, orien-
tadas: «assim, no quadro de um só esquema taxinómico,
podem-se prever duas operações sintácticas e duas possíveis
transformações de conteúdo:

quer si -^ si
quer sT -» si» (GR 1970, 165).

Esta característica já permite prevê-las e calculá-las. Acres-


centemos enfim uma outra propriedade: «estas operações
são (...) ordenadas em séries e constituem processos seg-
mentáveis em unidades sintácticas operacionais» (GR 1970,
166): assim «a operação de contradição que, negando, por
exemplo, o termo si, coloca ao mesmo tempo o termo si,
deve ser seguida de uma nova operação de pressuposição que
faz surgir, conjuntando-o ao termo si, o novo termo s2»
(GR 1970, 165).
Estas poucas indicações são aqui suficientes para — se
necessidade houvesse — mostrar o carácter lógico da «gra-
mática fundamental», postulada como base de partida da
ordenação narrativa. Estamos então muito longe de qual-
quer narrativa, por exemplo. É por isso que a teoria

106
semiótica se vê constrangida a introduzir uma espécie de
nível intermediário, anterior a qualquer manifestação (na
medida em que uma tal teoria se esforça por dar conta
da organização do sentido, independentemente dos canais de
comunicação utilizados), e ao mesmo tempo distante de uma
distribuição puramente lógica, insuficiente para dominar, até
ao detalhe, o objecto que ela se dá. Neste sentido, «pode-se
dizer que a gramática fundamental, que é de ordem concep-
tual, para poder produzir narrativas manifestadas sob forma
figurativa (em que actores humanos ou personificados reali-
zariam tarefas, submeter-se-iam às provas, atingiriam objec-
tivos), deve receber em primeiro lugar, a um nível semiótico
intermediário, uma representação antropomórfica, mas não
figurativa. É este nível antropomórfico que se designará com
o nome de gramática narrativa superficial, precisando que o
qualificativo «superficial», não tendo nada de pejorativo,
indica apenas que se trata de um patamar semiótico, cujas
definições e regras gramaticais são susceptíveis, com a ajuda
de uma última transcodificação, de passar directamente para
os discursos e para os enunciados lingüísticos» (GR 1970, 166).
Este patamar intermediário, que descrevemos parcial-
mente com a denominação de organização superficial (em
2.2.), não é simplesmente uma «representação» do nível lógico.
É certo que A. J. Greimas coloca uma equivalência entre a
operação sintáctica do nível profundo e o fazer (antropomór-
fico) do plano superficial: o que o autoriza a falar em «repre-
sentação». Introduzindo, no entanto, o «fazer», ele faz surgir,
do mesmo modo, elementos necessariamente ligados a este,
que não terão obrigatoriamente o seu correspondente ao nível
profundo. Assim, conforme já salientámos, «o fazer é (...)
uma operação duplamente antropomórfica: como actividade,
ela pressupõe um sujeito; enquanto mensagem, ela é objec-
tivada e implica o eixo de transmissão entre destinador e des-
tinatário» (GR 1970, 168).
Sem dúvida a correspondência entre a «gramática pro-
funda» e a «gramática superficial» manifesta-se muitas vezes
de forma bastante clara. É suficiente que retomemos aqui,
a titulo de ilustração, o caso da performance (situada como

107
tal ao nível superficial). «Se admitirmos que a representação
antropomórfica da contradição é de natureza polémica, a
seqüência sintagmática — que corresponde à transformação
dos valores do conteúdo, resultante, ao nível da gramática
fundamental, das operações de negação e de asserção — deverá
aparecer como uma seqüência de enunciados narrativos, cujas
restrições semânticas terão por tarefa conferir-lhe um carác-
ter de afrontamento e de luta» (GR 1970, 172). O autor extrai
então os três enunciados narrativos (=EN), subsumidos pela
unidade narrativa que é a performance:

EN 1 = F: confrontação (SI <—> S2)


EN 2 = F: dominação (SI > S2)
EN 3 = F: atribuição (SI < 0)

O encadeamento sintagmático destes três enunciados per-


mite aproximar, uma vez ainda, os dois níveis superficial e
profundo: «à orientação (mencionada acima como uma das
características das operações sintácticas), que é uma regra
da gramática fundamental, corresponde a relação de impli-
cação ao nível da gramática superficial, com esta pequena
diferença, porém, que se a orientação segue a ordem dos
enunciados
EN 1-» EN 2-> EN 3,

a implicação é orientada em sentido inverso:

EN 3 3 EN 2 3 EN 1» (GR 1970, 174)

Como se vê, o conceito de equivalencia (entre nivel


superficial e profundo) joga no plano funcional: à asserção
e à negação, por exemplo, utilizadas na «gramática profunda»,
correspondem a conjunção e a disjunção na «gramática super-
ficial». Em contrapartida, não se poderia estabelecer uma
equivalência em relação ao modelo actancial. Se nos lem-
brarmos que este último foi formulado em função do «espec-
táculo» que o homo loquens se dá a si próprio (no quadro
da sintaxe tradicional), não nos surpreenderemos por não

108
encontrarmos nenhum ponto de ancoragem na organização
lógico-semântica fundamental. Como A. J. Greimas reconhece,
a «sintaxe do acontecimento que nos esforçamos por cons-
truir é, quer se queira ou não, de inspiração antropomór-
fica, projecção que ela é das relações fundamentais do
homem com o mundo, ou talvez inversamente, pouco importa»
(GR 1973a, 34).
Nesta perspectiva, a sintaxe superficial aparece como
uma «representação imaginária, mas também como a única
maneira de imaginar a apreensão do sentido» (GR 1973a, 16),
que corresponde ao fazer somático tal como ele se encontra
assumido e descrito ao nível da forma lingüística. Significa
afirmar com isto que os conceitos de «sujeito» e de «objecto»,
de «destinador» e de «destinatário», por exemplo, não são
tanto criações teóricas como a expressão de uma determinada
praxis, anterior a qualquer organização lógica. Mesmo as
modalidades sintácticas do querer e/ou saber e/ou poder
— logicamente anteriores aos enunciados narrativos de super-
fície e situadas, portanto, a um nível mais profundo — não
nos permitem fazer a junção entre «gramática superficial»
e «gramática profunda»: também elas, parece-nos, pertencem
a um nível especificamente antropomórfico.
¡Finalmente, quer se trate da organização sintáctica super-
ficial (modelo actancial), ou da sua modalização, estamos,
com efeito — num caso como noutro —, no que diz respeito
à «gramática fundamental», perante um investimento semân-
tico particular. Vimos assim como a constituição dos actantes
podia efectuar-se apenas pela introdução de restrições (ou
especificações) semânticas. Conforme tínhamos observado
desde a partida (em O.3.), a «gramática superficial» exige, para
a sua constituição, a exploração da componente semântica.
Entre o nível profundo e o nível de superfície, a correspon-
dência só pode ser parcial, dado este contributo semântico
particularizante, que não é seguro que não esteja ligado a
um determinado contexto socio-cultural: o que significa afir-
mar, do mesmo modo, a relatividade do projecto semiótico
(do ponto de vista da universalidade das estruturas de super-
fície) e, ao mesmo tempo, as chances de sua eficácia, na

109
medida em que, inserido numa determinada totalidade cul-
tural, ele se reconhece mais próximo de um imaginário colec-
tivo (do qual procedeu e que lhe serve de base para a des-
crição de corpus particulares).
Dito isto, e qualquer que seja o julgamento que se possa
proferir sobre os ¡pressupostos metodológicos aqui em jogo
(mas, de todas as maneiras, os pressupostos são sempre
necessários), não podemos deixar de nos interrogarmos sobre
a relação formal entre a organização fundamental e a orga-
nização superficial. Na nossa apresentação de conjunto, lem-
bramos várias vezes que no plano (por nós denominado)
«morfológico», a passagem de um nível para o outro se
efectuava por meio de uma combinatoria (a combinação dos
semas que produz sememas e metassememas). Paralelamente,
poderíamos esperar uma mediação análoga entre a organi-
zação dos semas (modelo constitucional) e a organização dos
sememas (que dá lugar à sintaxe superficial): ora, parece
não ser assim, e esta dissimetria revela-se problemática pelo
facto de que, no segundo caso, parece difícil falar de hierarquia
entre «gramática fundamental» e «gramática superficial»: na
medida em que, como A. J. Greimas lembra? o «conceito de
hierarquia (...) deve ser compreendido como a relação de
pressuposição lógica» (GR 1966, 14), vê-se mal — num pri-
meiro momento — como o «fazer» antropomórfico exigiria
previamente uma «operação» de tipo lógico. Mais do que
hierarquia, conviria então falar aqui somente de paralelismo
(de carácter a priori hipotético).
A dificuldade levantada aqui tem o seu corolário na impos-
sibilidade em que nos encontramos, no momento actual, de pro-
por modelos susceptíveis de fazer a ponte entre o nível profun-
do e o nível de superfície. Isto, porém, não significa que a
estruturação em patamar(es) intermediário(s) fique fora da ^
nossa alçada, sobretudo na medida em que disporíamos de um
sistema (coerente e ordenado) de restrições semânticas. Da
mesma forma que a modalidade (definida, num plano muito
geral, como a subordinação de um predicado pelo outro) pode
ser tipologizada pela introdução de classemas específicos
(ex.: «querer», etc), também o nível superficial pode ser para

110
o nível profundo o que a especie é para o género: nesta hipó-
tese, a relação entre os dois planos é a do englobado para o
englobante. Reencontraríamos então, sob uma forma dife-
rente, é verdade, da evocada relativamente aos semas e aos
sememas, a relação hierárquica que é indispensável à dife-
renciação dos níveis. A organização superficial (ou sintaxe
do acontecimento) é, portanto, uma «representação» — entre
outras possíveis — das relações e das operações do nível pro-
fundo (concebido como o lugar de investimentos semânticos
e virtuais).
Quanto à escolha de um investimento de carácter antro-
pomórfico (tal como ela aparece na estruturação actancial),
ela assenta no postulado segundo o qual a organização do sen-
tido, ao nível superficial, só se explica como a projecção
imaginária da relação do homem com o mundo ou com a
experiência, ou vice-versa (não sendo, a orientação desta rela-
ção, pertinente para uma abordagem que se quer de tipo
científico).

111
3. DISCURSIVO E NARRATIVO

(«morfología» e «sintaxe» ao nível superficial)

3.0. REPETIÇÃO

Para maior clareza, lembremos mais uma vez a distri-


buição proposta:

«Morfología» «Sintaxe»
Nível superficial: sememas —v organização narrativa
(modelo actancial)
t t
Nível profundo: semas —>- organização sémica (lógica)
(modelo constitucional)

Colocámos, ao nível profundo, estes traços distintivos


que são os semas, e propusemos uma distinção entre semas
nucleares e classemas: permanecendo no domínio do que
(impropriamente) chamamos «morfología», mostramos que
a combinatoria permitia, entre outros, dar conta destes «efei-
tos de sentido» que são os sememas (=unidades do plano da
manifestação do conteúdo, do nível superficial).
Por outro lado, observamos que o reconhecimento dos
semas só era possível no interior de uma estrutura e que,
no campo do que (mal) denominamos «sintaxe», estas uni-

8 113
dades elementares organizavam-se entre si de maneira lógica,
segundo o esquema do modelo constitucional (ou quadrado
semiótico). A este nível profundo, e levando em conta o que
já dissemos até aqui, observa-se facilmente que a nossa dis-
tinção (para fins didácticos) entre «morfologia» e «sintaxe»
está particularmente sujeita à caução: colocámos, com efeito,
os termos (=semas) na componente «morfológica»; quanto
às relações e às operações, colocámo-las na «sintaxe», en-
quanto teria sido mais normal reservar para esta apenas as
operações propriamente ditas (pelas quais ela se define),
devendo as relações serem transferidas para a «morfologia»,
dado que somente elas permitem a identificação dos termos.
A passagem do nível profundo para o plano superficial
opera-se — do lado da «sintaxe» — pela introdução de res-
trições semânticas (apresentação antropomórfica das opera-
ções lógicas); paralelamente, no domínio da «morfologia»,
vimos que esta passagem fazia igualmente apelo ao mesmo
procedimento, recorrendo à distinção entre «conceptual» e
«figurativo» (que corresponde, na terminologia de Ampère,
à oposição «noológico» vs «cosmológico», e, na própria for-
mulação de A. J. Greimas, ao par «semântiso» vs «semioló-
gico»). Observamos, no entanto, que, no segundo caso, a
tipologia avançada se apoia, em parte, também sobre consi-
derações formais (os classemas diferenciam-se dos semas
nucleares por conjuntarem pelo menos duas figuras: cf. supra).
Ao nível superficial, relevamos que os sememas («efeitos
de sentido») se repartiam, do ponto de vista das suas relações
mútuas (segundo discreto vs integrado), em actantes e predi-
cados (ligados entre si por uma relação de pressuposição
recíproca): o que já instaura uma primeira forma sintáctica
elementar, esboço da organização narrativa. Estabelecendo,
porém, uma tipologia de actantes por restrições semânticas,
introduzimos simultaneamente um análise «morfológica» no
interior da componente «sintáctica»: o que significa afirmar,
uma vez mais, a relativa adequação desta dicotomía.
De qualquer modo, se a oposição actante/predicado per-
mitia dar conta da organização dos sememas entre si (por-
tanto, num plano sintáctico), ela deixava (metodológicamente)

114
de lado as suas características particulares, o seu estatuto
de «termos» enquanto tais (que exigem uma descrição «mor-
fológica»). Em outros termos, poderíamos dizer que o uni-
verso semântico, como conteúdo, pode ser considerado quer
do ponto de vista da forma (de onde a dicotomía actante/
/predicado e, mais ainda, a organização narrativa), quer do
ponto de vista da substância: esta, dissemos, articula-se em
semas nucleares e semas contextuáis.
Deixaremos aqui momentaneamente de lado os semas
contextuáis (nos quais falaremos mais adiante, em 3.3.), para
nos fixarmos no exame dos semas nucleares (base da com-
ponente discursiva) e no estudo das suas relações com a
organização narrativa.
Ainda aqui, como nos capítulos precedentes a investi-
gação não está senão no seu começo: poderemos então apre-
sentar apenas alguns prolegómenos, de forma muito hipoté-
tica, prenuncio de investigações a vir.

3.1. ORGANIZAÇÃO DISCURSIVA

3.1.1. Figuras e configurações discursivas

Como já notámos, os semas nucleares, constitutivos


das figuras nucleares, reenviam para a apreensão exterior do
mundo (designada sob a categoria da «exteroceptividade»).
Estes semas nucleares organizam-se então em figuras, dando
assim lugar a unidades de conteúdo estáveis, definidas pelo
seu núcleo permanente, cujas virtualidades se realizam diver-
samente segundo os contextos. Observamos, por exemplo,
que o lexema cabeça comportava um duplo elemento inva-
riante (extremidade/esferoicidade) e produzia diferentes «efei-
tos de sentido» (=sememas), conforme os contextos que
o assumem. Pudemos notar, entre outros, que o sema
nuclear /esferoicidade/ podia intervir positivamente (por
exemplo, em «cabeça de alfinete»), mas também negativa-
mente (reduzido então ao /ponto/): tal era o caso do primeiro
inventário que dizia respeito à outra metade do núcleo sémico,

115
o relativo à /extremidade/. Dito de outra forma, temos aqui,
com cabeça, «uma figura nuclear a partir da qual se desen-
volvem certas virtualidades, certos percursos sémicos que
permitem a sua colocação em contexto, isto é, a sua reali-
zação parcial no discurso» (GR 1973b, 169-170).
Tomemos, por exemplo, o baile. Esta unidade figura-
tiva compreende vários semas nucleares. Sem querer pro-
por uma análise precisa desta, podemos, apesar disto, relevar
que ela implica a /temporalidade/ (o baile é uma reunião que
só dura um tempo), a /espacialidade/ (o baile é um lugar),
a /gestualidade/ (dança-se ali), a /socialidade/ (o baile é uma
reunião de pessoas), eventualmente a /sexualidade/ (na me-
dida em que o baile faz apelo à relação homem vs mulher), etc.
Um determinado discurso pode explorar o conjunto destes
elementos, ou só reter dele um ou outro:

/temporalidade/: «Enquanto o seu amigo estava no baile,


ele aproveitou-se disso para...»
/espacialidade/: «Atravessando o baile, ele observou que...»
/gestualidade/: «Porque o baile a tinha esgotado...»

Poder-se-á desde já reconhecer que «o lexema é (...)


uma organização sémica virtual que, com raras excepções
(quando ele for monossémico), nunca se realiza tal qual no
discurso manifestado. Qualquer discurso, no momento em
que coloca a sua própria isotopía semântica, é sempre uma
exploração muito parcial das consideráveis virtualidades que
o tesouro lexemático lhe oferece; se ele prossegue o seu
caminho, é deixando-o juncado das figuras do mundo que
rejeitou, mas que continuam a viver sua existência virtual,
prontas a ressuscitar no mínimo esforço de memorização»
(GR 1973b, 170).
É evidente que, no quadro de uma determinada seqüên-
cia, as figuras organizam-se entre si e isto sob dois pontos
de vista:
a) Do ponto de vista paradigmático, elas associam-se para
constituir configurações discursivas susceptíveis de especifi-
car os conjuntos discursivos: «para tomar um exemplo fami-

116
liar, a figura do sol organiza à sua volta um campo figurativo
que comporta raios, luz, calor, ar, transparência, opacidade,
nuvens, etc. Uma tal constatação nos leva a dizer que, se as
figuras lexemáticas se manifestam, em princípio, no quadro
dos enunciados, elas transcendem facilmente este quadro e
organizam uma rede figurativa relacionai que se estende sobre
seqüências inteiras, constituindo aí configurações discur-
sivas (...): as configurações em questão não são outra coisa
senão as figuras do discurso (no sentido hjelmsleviano deste
termo), distintas ao mesmo tempo das formas narrativas e
das formas frásticas, fundando desta maneira, pelo menos
em parte, a especificidade do discurso como forma de orga-
nização do sentido» (GR 1973b, 170).
b) Do ponto de vista sintagmático, as figuras distribuem-
-se segundo um encadeamento relativamente constrangedor,
no quadro da configuração discursiva: neste sentido, poder-
-se-á falar de percursos figurativos, quando uma figura, logo
que colocada, chama uma outra, e assim por diante.
Estas primeiras observações já permitem esclarecer cer-
tos pontos. Assim, o nosso exemplo do baile, referido acima,
ajuda-nos a «compreender como (...) a escolha de uma figura
plurissemémica, que propõe virtualmente vários percursos
figurativos, pode dar lugar, contanto que os termos figura-
tivos que emergem no momento da realização não sejam
contraditórios, à organização pluri-isotópica do discurso (...).
No caso da pluri-isotopia, uma única figura no princípio dá
lugar a desenvolvimentos de significação sobrepostos num só
discurso» (GR 1973b, 172-173). Desta forma, a polissemia de
uma determinada figura abre a via a isotopías paralelas:
quanto à figura em si, ela desempenhará um papel de conector
(ou emhrayeur) de isotopías, lugar — simultaneamente — de
disjunção e de conjunção entre diferentes isotopías.

3.1.2. Tema e papel temático

Observamos que as figuras se agrupam para dar lugar


a configurações discursivas. Ê evidente que estas podem ser
muito amplas e os seus elementos constituintes geralmente

117
só são explorados parcialmente numa determinada seqüência.
Por isso, na análise de um determinado discurso, poder-se-á
reter apenas o percurso figurativo particular efectuado, e
tentar retomá-lo numa forma específica, a do tema, cujas
manifestações podem ser ao mesmo tempo diferentes e com-
paráveis. Assim, «uma ligeira hesitação na escolha desta ou
daquela figura, encarregando-a de um papdl determinado, pode
provocar o aparecimento de percursos figurativos distintos,
mas paralelos. A realização destes percursos figurativos intro-
duz assim a problemática das variantes» (GR 1973b, 173).
Como nós propusemos noutro texto, «pode-se conside-
rar cada lexema utilizado como constituído de semas gené-
ricos (que permitem as aproximações) e de semas específicos
(que engendram a diversidade); o baile e a missa são, em
Cinderela, reuniões públicas que fazem apelo às exigências do
vestuário, mas num caso trata-se de uma reunião para dançar
e no outro de uma reunião de oração, própria dos católicos.
A escolha de um ou de outro termo não muda em nada a
ordenação classemática (ou a isotapia geral). Pelo contrário,
ao nível das figuras nucleares, virtualmente prontas a desen-
volverem-se por si próprias, surgem diferenças aptas a pro-
longarem-se ao longo do conto, ou pelo menos, em certas das
suas partes: a descrição do baile em iPerrault ocupa espaço
bastante e mostra-nos em particular a heroína — chegada atra-
sada— partilhando com suas irmãs «as laranjas e os limões
que o Príncipe lhe tinha dado»; esta ilustração da /bondade/
encontra-se em situação de equivalência na versão 5: Cinde-
rela entra na igreja — no momento em que a missa já come-
çou (aqui também a heroína está atrasada) — e «passando
perto de sua irmã, coloca-lhe uma moeda de prata na mão
(estando a moeda de prata certamente ligada, ao nível semân-
tico, à colecta de dinheiro que se realiza durante o ofício).
É evidente que a prossecução de um tal paralelismo não se
imporá sempre» (J. Courtes, «De Ia description à la spécificité
du conte populaire merveilleux français», in Ethnologie fran-
çaise, II, 1-2, p. 36).
Nesta perspectiva, A. J. Greimas pode por sua vez escre-
ver: «Que a figura encarregada de representar o sagrado seja

118
a do padre, do sacristão ou a do bedel, o desenvolvimento
figurativo de qualquer seqüência encontra-se afectado por
isso, e os modos de acção, os lugares em que esta se deverá
situar, sempre conformes à figura inicialmente escolhida,
serão diferentes nas mesmas proporções uns dos outros (...).
No caso da plurivariância, a diversificação figurativa, retida
e disciplinada pela presença implícita de um papel único,
não impede a procura de uma significação comparável, senão
idêntica, em vários discursos manifestados» (GR 1973b, 173).
Na medida em que, conforme mostra esta ilustração
de A. J. Greimas, se considera o tema como podendo ser
confiado a alguém, a um determinado personagem, pode-se
então, da mesma forma, introduzir aqui a noção de papel
temático. Este definir-se-á por uma dupla redução: a pri-
meira é a redução da configuração discursiva a um só per-
curso figurativo, realizado ou realizável no discurso; a segunda
é a redução deste percurso a um agente competente que o
subsume virtualmente» (GR 1973b, 174).
lÉ assim que «o personagem do romance, a supor que,
por exemplo, ele seja introduzido pela atribuição de um nome
próprio que 1'he é conferido, se constrói progressivamente ao
longo do texto, por notações figurativas consecutivas e difu-
sas, e só manifesta a sua figura completa na última página,
graças à memorização operada pelo leitor. A esta memori-
zação, fenómeno de ordem psicológica, pode ser substituída
a descrição analítica do texto ( = a sua leitura, no sentido do
fazer semiótico), que deve permitir extrair as configurações
discursivas que o constituem e reduzi-las aos papéis temá-
ticos que ele assume» (GR 1973b, 174). Neste ponto,
A. J. Greimas propõe então inverter a perspectiva, para
precisar a relação entre figuras e papéis temáticos: «colo-
cando-nos do ponto de vista da produção do texto, somos
obrigados (...) a conceder a prioridade lógica aos papéis temá-
ticos que se apoderam das figuras e as desenvolvem em per-
cursos figurativos, comportando implicitamente todas as con-
figurações virtuais do discurso manifestado» (GR 1973b,
174475).

119
Este reagrupamento de figuras sob um determinado
papel temático explica-se, evidentemente — como veremos —,
devido à importância concedida ao modelo actancial e, atra-
vés dele, aos actores: lembremos, mais uma vez, que, dife-
rentemente de V. (Propp que joga exclusivamente com as
«funções», a semiótica — aqui apresentada — atribui a prio-
ridade aos actantes, e esta escolha privilegiada inicial deter-
mina a leitura da componente semântica do discursivo. É es-
cusado dizer que uma outra semiótica, de tipo não narrativo,
procederia diferentemente, de acordo com a sua própria
perspectiva de análise.

3.2. HEGEMONIA DAS ESTRUTURAS NARRATIVAS

Se nos mantivermos unicamente no plano lexemático,


já sabemos que «somente a rede sintáctica subjacente é sus-
ceptível de seleccionar os lexemas para extrair deles os
valores» (GR 1973a, 17). Com efeito, «o lexema, que é um
objecto lingüístico, aparece (...) como um conjunto de virtua-
lidades (...), virtualidades essas cujas realizações eventuais
só se encontram precisadas graças a percursos sintácticos
que se estabelecem no momento da manifestação discursiva»
(GR 1973a, 15).
Se passarmos das figuras lexemáticas particulares para
o plano superior das configurações discursivas organizáveis
em papéis temáticos, estamos perante uma situação análoga:
o discursivo é aí assumido pelo narrativo.

3.2.1. Os conceitos de papel e de actor

À partida, nós dispomos dos papéis temáticos. «Pode-se


tentar definir (...) o conceito de papel: ao nível do discurso,
ele manifesta-se, por um lado, como uma qualificação, como
um atributo do actor e, por outro, esta qualificação do ponto
de vista semântico, é somente a denominação que subsume
um campo de funções (isto é, de comportamentos realmente

120
anotados na narrativa ou simplesmente subentendidos)» (GR
1970, 256). Assim acontece no caso do romance, em que os
«comportamentos» de um personagem são recenseados con-
forme a narrativa, diferentemente da literatura oral, em que
os papéis temáticos — e mais particularmente os papéis so-
ciais ou morais — não têm necessidade de serem explícitos,
sendo supostos como conhecidos por qualquer auditório
(ex.: a «madrinha», o «lenhador», o «padre», etc), dado que
se trata de clichés fortemente esteriotipados.
«O conteúdo semântico mínimo do papel é, consequen-
temente, idêntico ao do actor, com excepção, porém, do sema
de individuação que ele não comporta: o papel é uma
entidade figurativa animada, mas anónima e social; em com-
pensação, o actor é um indivíduo integrado que assume um
ou vários papéis» (GR 1970, 256). Noutros termos, «se reser-
varmos ao termo de actor o seu estatuto de unidade lexical
do discurso, definindo ao mesmo tempo o seu conteúdo
semântico mínimo pela presença de semas a) entidade figu-
rativa (antropomórfica, zoomórfica ou outra), h) animada
e c) susceptível de individuação (concretizada no caso de cer-
tas narrativas, sobretudo literárias, pela atribuição de nomes
próprios), apercebemo-nos de que tal actor é capaz de assumir
um ou vários papéis» (GR 1970, 256).
Esta definição do actor está evidentemente incompleta:
ela só diz respeito ao seu investimento semântico. Com efeito,
não esqueçamos que o actor não se reduz unicamente à com-
ponente discursiva: integrado na narrativa, ele tem também
um lugar na ordenação sintáctica. Nesta perspectiva, o actor
aparece então como «o lugar de encontro e de conjunção das
estruturas narrativas e das estruturas discursivas, da com-
ponente gramatical e da componente semântica, porque ele
está encarregado ao mesmo tempo de pelo menos um papel
actancial e de pelo menos um papel temático, que precisam
a sua competência e os limites do seu fazer ou do seu ser.
Ele é simultaneamente o lugar de investimento destes papéis,
mas também da sua transformação, uma vez que o fazer
semiótico, operando no quadro dos objectos narrativos, con-
siste essencialmente no jogo de aquisições e de perdas, de

121
substituições e de trocas de valores modais ou ideológicos.
A estrutura actorial aparece, portanto, como uma estrutura
topológica: relevando ao mesmo tempo das estruturas nar-
rativas e das estruturas discursivas, ela é apenas o lugar da
sua manifestação, não pertencendo particularmente nem a
uma nem a outra» (GR 1973b, 176).

3.2.2. Papéis actanciais e papéis temáticos

Para situar mais claramente a relação da estrutura


actorial e da estrutura actancial, não é talvez supérfluo reto-
mar aqui (quase termo a termo) o resumo sucinto que havía-
mos elaborado com A. J. Greimas, colocado em epígrafe no
nosso estudo sobre «Cendrillon va au bal» (a aparecer em
Hommage à G. Dietrelen, Éditions Hermann): isto nos per-
mitirá determinar as coordenadas de maneira mais concreta
ou ao menos mais próxima das investigações efectuadas.
Na análise da narrativa simples, distinguimos, do ponto
de vista semiótico, dois elementos complementares:
a) Urna componente gramatical, que se articula segundo
uma morfología e uma sintaxe específicas, independentes das
estruturas lingüísticas propriamente ditas: é ela que, com
as suas leis de construção, institui a narrativa como forma
narrativa (do conto);
b) Uma componente semântica, que corresponde ao
investimento da ordenação narrativa e que, no plano da
manifestação discursiva, se distribui geralmente (no conto)
em figuras (unidades de conteúdo estáveis, definidas pelo seu
núcleo permanente, e cujas virtualidades se realizam diver-
samente segundo o contexto).
Ao nível gramatical, a narrativa aparece, logo à primeira
vista, como uma série (mais ou menos importante) de estados,
entre os quais se situam as transformações. Isto, no plano
da descrição, dá lugar — conforme vimos — a duas espécies
de enunciados: os enunciados de fazer (que são transitivos ou
reflexivos) e os enunciados de estado (de natureza atribu-
tiva, isto é, conjuntiva ou disjuntiva: cf. supra). Os pro-

122
cessos sucessivos que balizam a narrativa efectuam-se por ou
em função de actantes (unidades sintácticas de tipo nominal
que entram em jogo nos dois tipos de enunciados que aca-
bamos de evocar) — tais que sujeito, objecto, destinador ou
destinatário — susceptíveis, como assinalamos, de serem mo-
dalizados segundo o querer, o saber e o poder, dando assim
lugar a papéis actanciais distintos. Lembremos que o fazer
sintáctico — ao qual nos limitamos aqui — corresponde, em
última análise, às operações lógicas (situadas ao nível pro-
fundo) de que ele é uma representação antropomórfica.
A análise gramatical permite então, entre outros, extrair
os papéis actanciais, graças aos quais se operam as trans-
formações, segundo programas narrativos específicos. Para-
lelamente, a componente semântica da narrativa pode ser
retomada em parte, através de um certo número de papéis
temáticos, de caracter quer social (ex.: pai, mãe, madrasta, etc),
quer psico-sociológico (cf. os trabalhos de C. Bremond), quer
psicológico (v. g. em vários romances), quer morais (ex.: Cin-
derela é muitas vezes qualificada de «boa»), papéis que regem
os comportamentos apropriados, mais ou menos esterioti-
pados.
Se nos colocarmos do ponto de vista da manifestação
figurativa da narrativa, definiremos estes papéis temáticos
como a redução de um conjunto de unidades qualificativas
e/ou funcionais a um agente que os subsume como outras
tantas expressões virtuais possíveis: assim, a /madrinha/
(papel temático relativo à organização social para-familiar,
freqüente nas variantes de Cinderela) sintetiza um certo
número de atributos, de acções e de comportamentos pre-
visíveis («bondade», «visita à sua afilhada», «presentes ofe-
recidos», etc), susceptíveis de a definir.
Dispomos, portanto, de dois tipos de papéis, actanciais
e temáticos, prontos a serem sobrepostos: o seu encontro
realiza-se efectivamente ao nível dos actores (de que a análise
gramatical e semântica permite assim dar conta). Estes estão,
com efeito, encarregados de uma dupla missão: por um lado,
eles suportam a estrutura narrativa, repartindo entre si as
funções fundamentais, segundo as seqüências em jogo na

123
narrativa; por outro, eles endossam os elementos semânticos
de ordem atributiva ou funcional, de que o texto está tecido.

3.2.3. Acfantes e actores

Esta breve recordação sintética permite apreender o


lugar preciso em que se articulam as duas componentes,
semântica e gramatical: «É a assunção dos papéis temá-
ticos pelos papéis actanciais que constitui a instância
mediadora que dispõe a passagem das estruturas narrativas
para as estruturas discursivas» (GR 1973b, 175). Encontra-se
assim colocada a prioridade lógica da estrutura narrativa,
como regendo o elemento discursivo. Conforme A. J. Grei-
mas reconhece, «a geração da significação não passa, primeiro,
pela produção dos enunciados e sua combinação em discurso;
ela é substituída no seu percurso pelas estruturas narrativas
e são elas que produzem o discurso sensato, articulado em
enunciados» (GR 1970, 159).
Estando assim correlacionados (e numa relação hierár-
quica ou de subordinação), os dois planos —^.narrativo e dis-
cursivo — não são sobreponíveis termo a termo. Desta forma
«apercebeu-se (...) que a relação entre actor e actantes, longe
de ser uma simples relação de inclusão de uma ocorrência
numa classe, era dupla:

que se um actante (Al) podia ser manifestado no discurso por


vários actores (al, a2, a3), o inverso era igualmente pos-
sível, podendo um só actor (al) ser o sincretismo de vários
actantes (Al, A2, A3)» (GR 1973b, 161). Assim, «a manifesta-
ção actorial pode ter uma expansão máxima, caracterizada
pela presença de um actor independente para cada actante
ou papel actancial (a máscara, por exemplo, é um actor que
tem a modalidade do parecer por papel actancial): diremos

124
que a estrutura actorial está, neste caso, objectivada; a dis-
tribuição actorial pode ter uma expansão mínima e reduzir-se
a um só actor que assume todos os actantes e papéis
actanciais necessários (dando lugar a uma dramatização inte-
rior absoluta): a estrutura actorial será dita, neste caso,
subjectivada» (GR 1973b, 168).
Deste modo, «o reconliecimento do principio de não-
-concomitância posicionai dos actantes semióticas e dos acto-
res discursivos (que, por sua vez, não devem ser confundidos
com os actantes lingüísticos frásticos), e da distancia que
separa um dos outros, garante assim a autonomia da sintaxe
narrativa e a instaura como uma instância organizadora e
reguladora da manifestação discursiva» (GR 1973a, 18).
Não é isto o que já havíamos sublinhado, em particular
a respeito dos enunciados juntores de objectos (ou de sujei-
tos), em que somente «a identificação dos dois objectos,
devido ao sincretismo actorial, permite a redução de dois
enunciados elementares num enunciado complexo» (GR 1973a,
30)? Do mesmo modo, como igualmente observamos, é a
relação entre a estrutura actancial e a estrutura actorial que
permite introduzir a dupla categoria do reflexivo e do tran-
sitivo para uma primeira tipologia do fazer transformador.
Num e noutro caso o plano sintáctico, de natureza propria-
mente semiótica, não poderia confundir-se com a distribuição
discursiva.
«O reconhecimento de dois níveis — narrativo e discur-
sivo — autónomos e encaixados dá perfeitamente conta do
processo ambíguo do sujeito da narração, convidado a seguir
simultaneamente os dois percursos sintagmáticos que lhe são
impostos: por um lado, otfprograma narrativo determinado
pela distribuição de papéis actanciais e, por outro, o caminho
privilegiado estabelecido pela configuração discursiva, em que
uma figura, logo que colocada, propõe um encadeamento
figurativo relativamente constrangedor (...). A conjunção das
duas instâncias — narrativa e discursiva — tem (...) por efeito
o investimento dos conteúdos nas formas gramaticais canó-
nicas da narração e permite a produção de mensagens nar-
rativas sensatas» (GR 1973b, 171-172).

125
3.3. OBSERVAÇÕES SOBRE A UNIDADE DISCURSIVA

3.3.1. Marcas formais da narrativa

A análise da narrativa (escolhida como tipo de unidade


discursiva) pode operar-se em duas direcções opostas e com-
plementares:
a) Conforme uma primeira hipótese, «a narrativa, para
ter um sentido, deve ser um todo de significação; ela apre-
senta-se por este motivo como uma estrutura elementar sim-
ples. Disso resulta que os desenvolvimentos secundários da
narração, não encontrando o seu lugar na estrutura simples,
constituem uma camada estrutural subordinada: a narração,
considerada como um todo, necessita então uma estrutura
hierárquica do conteúdo» (GR 1970, 187).
iParte-se então aqui de uma compreensão global da nar-
rativa, que articula o conteúdo, no seu conjunto, segundo o
modelo constitucional: assim, o universo bernanosiano será
finalmente apreendido de acordo com uma • distribuição em
vida e não-vida, morte e não-morte (ver o último capítulo de
Sémantique Structurale); a partir desta distribuição geral que
organiza o nível profundo e que subsume toda a componente
discursiva, poder-se-ia — fazendo o caminho inverso da com-
preensão (ou da leitura) — gerar patamares hierarquicamente
inferiores, através de um conjunto de regras adequado. No
caso das narrativas dramatizadas simples, a estrutura funda-
mental é muitas vezes susceptível de ser quase directamente
apreendida ao nível da manifestaçãb: o modelo constitucional,
de tipo acrónico, é assumido pela dimensão temporal
(propriedade comum a esta classe de narrativas) que, intro- *
duzindo um antes e um depois, permite a ordenação sucessiva
(isto é, no tempo) de conjunções e de disjunções.
Assim acontece nos contos ou nos mitos, em que «ao
antes vs depois discursivo corresponde uma «inversão da
situação» que, no plano da estrutura implícita, não é nada

126
mais do que a inversão dos signos do conteúdo. Uma correla-
ção existe assim entre os dois planos:

antes conteúdo invertido


~ » (GR 1970, il87).
depois conteúdo posto
b) Uma segunda operação possível é a que parte do
nível superficial para encontrar a estrutura semântica sim-
ples. «Se considerarmos a narrativa como um enunciado
global, produzido e comunicado por um sujeito narrador, este
enunciado global pode ser decomposto numa seqüência de
enunciados narrativos ( ^ a s «funções» de Propp) concate-
nados» (GR 1973b, 162), articulando assim um espaço tem-
poral. Deste ponto de vista, «a narrativa, unidade discursiva,
deve ser considerada como um algoritmo, isto é, como uma
sucessão de enunciados, cujas funções-predicados simulam
linguisticamente um conjunto de comportamentos orientados
em direcção a um fim. Como sucessão, a narrativa possui
uma dimensão temporal: «os comportamentos que nela se
desenvolvem mantêm entre si relações de anterioridade e de
posterioridade» (GR 1970, 187).
Vimos precedentemente (em 2.2.4.3.) que os enunciados
narrativos (=formas sintácticas elementares da narratividade)
combinavam-se entre si, para constituir unidades narrativas.
No caso da narrativa, as unidades narrativas necessárias «são
em número de três: disjunção, contrato, prova (=perfor-
mance)» (GR 1970, 253), correspondendo:
(1) À partida do 'herói;
(2) Ao mandado e à aceitação (da tarefa) no caso do
estabelecimento do contrato, ou à proibição e à violação se
há ruptura de contrato;
(3) Ao fazer, no qual se encontra empenhado o sujeito
da busca (com a tripartição: prova qualificadora, que equivale
à aquisição das modalidades; prova principal, com a obtenção
dos valores objectivos; prova glorificadora que permite re-
conhecer o herói e, correlativamente, confundir o traidor).
Se deixarmos de lado o ponto (1), que sob forma figu-
rativa (topológica), enquanto deslocamento, se encontra impli-

127
cado pela busca (cf. A. J. Greimas e J. Courtes: «Cendrillon
va au bal», op. cit.), isto é, pela disjunção entre sujeito e
objecto, reconheceremos que a narrativa compreende final-
mente duas componentes: uma organização polémica e um
elemento contratual.
No eixo sujeito-objecto, vimos que qualquer aquisição
de valores (objectivos ou modais) num universo fechado só
se realiza em detrimento de um outro sujeito. Qualquer pro-
grama narrativo realizado por um sujeito implica, neste caso,
um programa inverso (ou anti-programa), em que o promotor
é o adversário. Segundo esta organização polêmica, poder-
-se-ia prever, na seqüência de A. J. Greimas (GR 1973b, 163),
um desdobramento da estrutura actancial (correspondendo às
duas__deixis, positiva e negativa, do quadrado semiótico:
sl + s2 e s2 + sl): destinador vs anti-destinador; destinatário
vs anti-destinatário; sujeito vs anti-sujeito; objecto positivo vs
objecto negativo (furtar qualquer coisa a alguém pode ser
considerado como a outorga de um objecto negativo: deste
ponto de vista, «dom» e «furto», por exemplo, relevam funda-
mentalmente de uma mesma organização). A correlação de
um determinado programa narrativo com um anti-programa
implícito permite, mesmo na narrativa mais simples, situar
este último não somente no eixo sintagmático (o que é evi-
dente), mas também no eixo paradigmático; é claro que a
manifestação pode explicitar igualmente o anti-programa, des-
dobrando assim a narrativa (cf. o conto-tipo 480).
Se a distribuição polémica (cf. supra, a apresentação da
«performance») tem finalmente por objecto articular a com-
ponente do acontecimento da narrativa, o contrato, ao contrá-
rio, poderá representar a componente sistemática desta.
Dado que uma análise suficientemente exaustiva do ele-
mento contratual não foi ainda realizada, poderemos dar,
ainda aqui, apenas alguns primeiros elementos de reflexão.
Suponhamos que a narrativa é ao mesmo tempo sistema e
processo:
a) ao nível profundo teremos então o sistema taxinó-
mico dos valores investidos na narrativa e um certo número

128
de operações ( = processos) possíveis, de tipo lógico, efectuá-
veis no quadro do modelo constitucional;
b) ao nível superficial, concebido — conforme consta-
tamos — como uma representação antropomórfica do nível
profundo, temos o fazer sintáctico (correspondendo às opera-
ções lógicas) que é da ordem do processo; quanto ao sistema,
que este fazer performancia! antropomórfico pressupõe, pode-
mos simplesmente identificá-lo ao contrato (que é a figura
do sistema axiológico subjacente).
Na medida em que o sistema (contrato) tomar lugar
antes do processo (fazer), a narrativa aparecerá como a reali-
zação do contrato: como, por exemplo, no caso do contrato
social inicial; em contrapartida, se o sistema só se desvendar
no termo do processo, a narrativa definir-se-á como a busca
do contrato (prática significante); pode-se igualmente prever
o caso no qual a recusa de um contrato inicial permitirá
manifestar — através do fazer — um contrato oposto (ou
diferente).
Por outro lado, o enunciado contratual increve-se entre
o destinador e o destinatário. Enquanto sistema, o contrato
releva primeiro do destinador, que pode ser considerado como
a figura antropomórfica ou o suporte dos valores axiológicos
em jogo; o conteúdo do contrato é então proposto — sob a
forma de programa narrativo — ao destinatário que, a partir
daí, assegurará o papel de sujeito do fazer performancial.
Em outros termos, o destinador representa, do ponto de vista
paradigmático, os conteúdos investidos (postos); correlativa-
mente, o destinatário, tendo-se tornado sujeito da componente
do acontecimento, é a projecção sintagmática do sistema
taxinómico. Nesta perspectiva, o contrato é para o desenvol-
vimento (ou para a execução do programa) narrativo o que
o virtual é para o actualizado, sendo a mediação entre sistema
e processo assegurada pelo destinatário-sujeito. Esta relação
do contrato com a realização, homologável como ela é a do
virtual e do actual, nos convida a aproximá-la do par compe-
tência vs performance: deste ponto de vista, o destinador
poderá subsumir, sintéticamente, o conjunto das modalidades
(saber, poder, querer) que o fazer performancial pressupõe.

9 129
3.3.2. As componentes narrativa e discursiva da narrativa

Se abandonarmos agora qualquer relação com a organi-


zação fundamental (ou modelo constitucional), para nos deter-
mos unicamente no nível da manifestação do conteúdo (ou
nível superficial), podemos considerar a narrativa — de um
outro ponto de vista — como o encontro de duas componentes,
narrativa e discursiva, dando assim lugar a pelo menos duas
leituras possíveis:
a) por um lado, «a isotopía narrativa está determinada
por uma certa perspectiva antropocêntrica que apresenta a
narrativa como uma sucessão de acontecimentos, cujos acto-
res são seres animados, agentes ou pacientes» (GR 1970, 188);
b) por outro, é possível uma segunda isotopía que «se
situa, ao contrário, ao nível da estrutura do conteúdo, postu-
lada neste plano discursivo» (GR 1970, 189).
Se a componente narrativa, de que falámos suficiente-
mente, não exige aqui observações particulares, o mesmo não
acontece com o elemento discursivo. Um dos problemas que
pelo menos permanece em suspenso é, coqi efeito, o da
relação da narrativa ao contexto (cultural). O investimento
semântico da ordenação gramatical, que faz com que duas
narrativas de estruturação sintácticas idênticas possam com-
(portar significa,ções completamente diferentes, só se opera
em conhecimento de causa.
Os conteúdos investidos são — como o qualificativo subli-
nha — de procedência estrangeira ao modelo narrativo. Ao
nível superficial (ou da manifestação do conteúdo), os seme-
mas (=efeitos de sentido) provêm, pelos seus semas nuclea-
res, do domínio «cosmológico», isto é, eles referem-se ao
mundo ou à experiência. Este conhecimento de tipo «extero-
ceptivo», articula-se diferentemente conforme as culturas. No
interior do nosso próprio universo cultural, dispomos de um
número (não finito ou aberto) de figuras nucleares, organi-
záveis em códigos diversificados ou em conjuntos «discur-
sivos» organizados. Tomando como exemplo o universo mítico
descrito por C. Lévi-Strauss, pode-se imaginar a nossa cultura,

130
como uma série de códigos (ou de níveis «discursivos» arti-
culados) em número indeterminado:
Narrativa
culinário Y _ |
social _
sexual.
estético __| \-J^ 1 I -I - - - I - 1 / - - - I
moral | 1 __T | :
tecnológico | | -| -|
etc.

estando cada plano cortado em unidades diferentes. Nesta pers-


pectiva, o contista, por exemplo, dispondo de modelos narrati-
vos no plano gramatical, escolhe no universo cultural, atra-
vés dos diferentes níveis discursivos, as unidades de conteúdo
(pertencentes a qualquer código ou nível) de que necessita e
as investe no seu esquema formal. Poder-se-ia então dizer
que o «texto» (ou narrativa) que ele produz é a ordenação
narrativa (sintagmática) de elementos necessariamente retira-
dos do «contexto» socio-cultural (através do qual a narrativa
estabeleceria um determinado percurso).
«Dado que estes conteúdos constituídos são manifes-
tados sob a forma de lexemas, poder-se-ia considerar que o
contexto no seu conjunto é redutível a um dicionário» (GR
1970, 193). Entretanto, conforme mostramos, as «entradas
de dicionários» são como núcleos, cujas virtualidades semé-
micas variam, ao nível da manifestação, segundo os con-
textos (sintagmáticos) que os assumem. Deste ponto de
vista, as unidades de conteúdo, escolhidas pelo contista,
definem-se, por um lado, pelo código (ou nível discursivo
orgânico) de que são extraídas, mas também pelas relações
que mantêm entre si, no interior da narrativa que as apro-
ximou.
Temos assim, do ponto de vista discursivo, duas formas
de contexto: uma de tipo paradigmático (constituído pela cul-
tura ou pelo saber comum de um grupo social bastante largo
ou bastante restrito: numa perspectiva semiótica, A. J. Grei-
mas fala de «senso comum»; no domínio lingüístico, B. Pot-

131
tier é obrigado a postular um nível «banal» da linguagem)
e na ausência da qual nenhuma análise da narrativa seria
possível; outra de natureza sintagmática que determina as
relações de isotopía (de «acordo semântico», diz B. Pottier,)
entre as unidades de conteúdo.
O contexto sintagmático, produzindo isotopías, permite
reter das unidades de conteúdo, das figuras nucleares, apenas
os elementos compatíveis entre si (dando assim lugar aos
sememas, unidades que, lembremo-nos, incluem os semas
contextuáis), operando desta forma uma selecção discursiva,
ao mesmo temipo particular (ou local) e necessária. !A isotopía
torna assim possível, discursivamente, a homogeneidade das
figuras, sobretudo quando estas são disparatadas, isto é, quan-
do não pertencem ao mesmo código cultural, ao mesmo con-
junto discursivo.
Ê neste ponto que é necessário situar estas unidades do
nível da manifestação do conteúdo, que deixamos em sus-
penso: os metassememas produzidos, como dissemos, pela
combinação apenas entre semas contextuáis. O seu papel clas-
semático é evidentemente determinante em cada organização
discursiva particular: é suficiente pensar, ao.nível da forma
lingüística, em francês, por exemplo, nas conjunções (et ou),
nos advérbios relacionais (plus ou moins) e nos substantivos
que não implicam a presença de elementos «semiológicos» que
são de ordem categorial, «conceptual».
Se, como acabamos de fazer, dissociarmos na narrativa
a componente discursiva (analisável segundo os eixos paradig-
mático e sintagmático) e a organização narrativa, isto só é
possível, com efeito, de maneira teórica ou para fins didác-
ticos. Não poderíamos esquecer, de facto, que o nosso conhe-
cimento dos conteúdos investidos só se pode elaborar através
de esquemas sintácticos e que, inversamente, os modelos nar-
rativos — mesmo se lhes dermos a prioridade lógica na pers-
pectiva da produção da narrativa — só se podem constituir
com o corihecimento da componente discursiva: a exemplo
do domínio lingüístico, da «gramática» e do «dicionário» que,
teoricamente distintos, só se especificam um em relação ao
outro.

132
4. PARA CONCLUIR

4.1. A IMPORTÂNCIA DOS NÍVEIS

A nossa exposição de uma semiótica narrativa e dis-


cursiva não poderia esconder os limites que a afectam. Não
se tratava aqui de uma apresentação completa das aquisições
da semiótica, que facilmente se encontrará noutros textos.
Com efeito, não tínhamos por objectivo retomar todo o saber-
-fazer semiótico, tal como ele se manifestou e acumulou no
decurso desta última década: o empreendimento teria sido
tanto mais difícil quanto um grande número de pontos bá-
sicos constituem ainda o objecto de discussões cerradas. Por
preocupação didáctica, tentámos somente indicar as artérias
principais que parecem dar forma a este novo campo do
saber e sobre as quais parece manifestar-se um certo consenso.
Limitando-nos assim a uma base comum mínima, fomos cons-
trangidos a deixar de lado vários elementos metodológica-
mente importantes, de maneira que transparecesse melhor a
organização geral do fazer semiótico. Por outro lado, ter-se-á
notado haver desproporções nesta exposição: esta ou aquela
articulação teria ganho em ser mais desenvolvida do que uma
outra: esta situação, adivinha-se, deve-se em particular ao
estado da investigação, que avança mais em certos pontos
do que noutros.
Dito isto, queríamos, ao terminar, sublinhar mais uma
vez a importância dos níveis que já tínhamos colocado em
epígrafe na nossa introdução (em 0.). Na seqüência de A. J.

133
Greimas e de F. Rastier, podemos imaginar que o espírito
humano, para chegar à construção de objectos culturais (lite-
rários, míticos, picturais, etc), parte de elementos simples
e segue um percurso complexo, encontrando no seu caminho
tanto constrangimentos a que deve submeter-se como escolhas
que é livre de operar.
Procuramos dar uma primeira idéia deste percurso. Pode
considerar-se que ele conduz da imanência à manifestação,
em três etapas principais:
— as estruturas profundas, que definem a maneira de
ser fundamental de um indivíduo ou de uma sociedade, e
através disso as condições da existência dos objectos semió-
ticos. Do que sabemos a este respeito, os constituintes ele-
mentares da estrutura profunda têm um estatuto lógico, sus-
ceptível de ser definido;
— as estruturas de superfície constituem uma gramática
semiótica que ordena em forma discursiva os conteúdos sus-
ceptíveis de manifestação. Os produtos desta gramática são
independentes da expressão que os manifesta, conquanto
possam teoricamente aparecer em qualquer substância e, no
que diz respeito aos objectos lingüísticos, em Qualquer língua;
— as estruturas de manifestação produzem e organizam
os significantes. Embora possam compreender quase-univer-
sais, elas permanecem particulares a esta ou àquela língua
(ou, mais precisamente, elas definem as particularidades das
línguas), relativamente a este ou àquele material» (GR 1970,
135-136).
Encontram-se assim resumidos e especificados os prin-
cipais níveis, de que somente os dois primeiros foram consi-
derados na nossa exposição. Dado o estado da investigação,
não nos é possível transpor o passo que vai das estruturas
de superfície às da manifestação propriamente dita (incluindo
o significante). Assim, por exemplo, no caso de uma mani-
festação lingüística (conto, romance, etc), distinguimos o
plano do significante, em que a narração está submetida «às
exigências específicas das substâncias lingüísticas, através
das quais ela se exprime» (GR 1970, 158) com constrangi-
mentos estilísticos, entre outros, e, por outro lado, «um nível

134
imánente, constituindo uma espécie de tronco estrutural
comum, em que a narratividade se encontra situada e orga-
nizada anteriormente à sua manifestação. Um nível semió-
tico comum é, portanto, distinto do nível lingüístico e é-lhe
logicamente anterior, qualquer que seja a linguagem escolhida
para a manifestação» (GR 1970, 158). No entanto, esta dis-
sociação dos dois planos, teórica e praticamente necessária,
exigiria, para ser totalmente satisfatória, procedimentos de
conversão (ou sistemas de transcodificação) que permitissem
a passagem de um ao outro: o que, no estado presente dos
nossos conhecimentos, está fora das nossas possibilidades.
jSeja como for, reter-se-á pelo menos que a semiótica
não corresponde ao estudo dos signos (nível da manifestação
lingüística, ou pictural, ou musical, ou visual, etc), mas a
tudo o que lhes é anterior, a tudo o que é pressuposto pelos
signos, a tudo o que permite e conduz à sua produção. Isto
significa que a investigação semiótica só é possível se ela se
situar num plano logicamente anterior ao da manifestação,
numa espécie de «espaço» que lhe compete organizar: «deve-se
conceber a teoria semiótica de tal modo que entre as instân-
cias fundamentais ab quo, em que a substância semântica
recebe as suas primeiras articulações e se constitui em forma
significante, e as últimas instâncias ad quem, em que a signi-
ficação se manifesta através de múltiplas linguagens, um vasto
espaço seja organizado para a instalação de uma instância de
mediação, em que estariam situadas as estruturas semióticas
que possuem um estatuto autónomo — entre as quais as
estruturas narrativas —, lugar em que se esboçariam as arti-
culações complementares dos conteúdos e uma espécie de
gramática ao mesmo tempo geral e fundamental, que presi-
diria à instauração de discursos articulados (...). A teoria
semiótica só será satisfatória se souber dispor no seu seio
um lugar para uma semântica e uma gramática fundamentais»
(GR 1970, 159-160).
Assim, entre uma instância ab quo postulada como sendo
o nível mais profundo e que, como vimos, se organiza segundo
o modelo constitucional, e o plano da manifestação, se inserem
«articulações complementares», definidas por uma «gramá-

135
tica» específica. Na medida em que abandonarmos — momen-
tânea e metodológicamente — o nivel da manifestação dis-
cursiva (em toda a extensão: concatenação de enunciados),
para nos fixarmos numa análise em profundidade, seremos
levados a propor patamares hierárquicos que correspondam,
conforme vimos, à introdução de novas componentes semân-
tico-sintácticas, como a representação antropomórfica das
operações lógicas, a modalização, a espacialização (cf. a oposi-
ção espaço tópico vs espaço heterotópico, definindo-se o
espaço sempre pelo actor que lhe está conjunto), a tempora-
lização (com os seus mecanismos aspectuais que são as rela-
ções antes/depois, passado/presente/futuro, incoativo/dura-
tivo/terminativo) e a figurativização. Fazendo assim apelo
a estas poucas formas de organização da significação, é evi-
dente que nos aproximamos cada vez mais do plano da
manifestação.
O fim perseguido é, com efeito, suficientemente claro:
partindo de uma estrutura fundamental, colocada como o
plano de análise mais profundo possível, esforçamo-nos por
remontar em direcção à manifestação, tendo como recurso
as componentes cada vez mais especificadoi^s. Se um tal
projecto parece simples no seu objectivo, ele faz surgir, na
praxis, dificuldades insuspeitadas.
Com efeito, por um lado, se a organização geral:
— estruturas profundas,
—estruturas de superfície,
— estruturas de manifestação,
é, logo à primeira vista, extraída muito facilmente, a intro-
dução — necessária — de patamares intermediários conduz-
-nos a uma complexificação cada vez maior; demo-nos conta
de que as coisas são menos simples do que parecem: é sufi-
ciente lembrarmo-nos aqui do abandono, ao nível semiótico,
da distinção entre «valores objectivos» e «valores subjectivos»
(fundada na oposição ter ou ser), julgada muito próxima da
manifestação lingüística; de onde uma espécie de «redescida»
para um patamar inferior (reconhecido então como realmente
semiótico), «em que um só enunciado semiótico do tipo
S n O
136
pode ser postulado, como subsumindo uma grande variedade
de manifestações lingüísticas de urna mesma relação de con-
junção entre o Sujeito e o Objecto, deixando de lado o facto
de prever ulteriormente uma tipologia estrutural da mani-
festação e, a seguir, regras de engendramento de enuncia-
dos, correspondendo a níveis gramaticais mais superficiais»
(GR 1973a, 18).
A esta complexificação cada vez maior, como as actuáis
investigações semióticas testemunham, acrescenta-se, correla-
tivamente, uma outra dificuldade. A introdução, no modelo
geral, de novas componentes semântico-sintácticas mais finas,
não pode efectuar-se sem colocar o problema das suas rela-
ções mútuas. Queremos dizer com isso que a estruturação
em diferentes patamares — enriquecedora e necessária, ao
mesmo tempo —, deve operar-se de maneira diferente: a ques-
tão aqui levantada (e já fizemos alusão a ela por ocasião da
nossa descrição da relação entre estruturas profundas e estru-
turas de superfície) é a da equivalência ou a da conversão
entre os níveis propostos.
Ainda aqui a investigação é mais tateante do que con-
vincente: o que não lhe deveríamos censurar, dado que ela
se encontra num começo de exploração metodológica. Se
várias «semióticas» se anunciam como tais à nossa volta,
com teorias brilhantes e subtis, muito poucas — reconheça-
mos — estão capacitadas para nos propor os instrumentos
metodológicos adequados que, aplicados ao estudo de deter-
minados materiais, permitiriam apreciar o seu valor intrín-
seco e operatorio. O esforço de investigação, apresentado
nestas páginas, evidentemente, não é satisfatório em todos
os pontos, e não constitui um conjunto acabado, inteiramente
organizado. No entanto, e é isso pelo menos um dos seus
méritos (que alhures se não encontra muitas vezes), a semió-
tico narrativa e discursiva, elaborada pela e/ou na perspec-
tiva de A. J. Greimas, apresenta-se como um fazer concreto,
certamente imperfeito, mas de carácter operacional e anun-
ciador de investigações e de descobertas possíveis a vir.

137
4.2. SEMIÓTICA E IMAGINÁRIO

No termo desta apresentação sucinta, queríamos subli-


nhar que toda a sintaxe colocada é somente uma maneira de
imaginar a apreensão do sentido. É, com efeito, impressio-
nante constatar que a terminologia utilizada se refere cons-
tantemente ou quase ao esquema de uma representação,
espacio-temporal. No momento em que se abandona o plano
lógico, por exemplo, com operações de asserção e de negação,
introduz-se ao mesmo tempo elementos de ordem topológica,
como: disjunção, conjunção, transferência de objectes, deslo-
camento de sujeitos, patamares (semióticos), concatenação
(de enunciados), e mesmo paradigma e sintagma (que reen-
viam à linearidade, ela mesma de ordem espacio^emporal).
Isto provém do facto de, diferentemente do estudo que
incide sobre a forma científica, visando extrair articulações
de tipo discriminatório ao nível daquilo que é, a investiga-
ção efectuada sobre a forma semiótica se fixa, ao contrário,
naquilo que significa e tenta dar conta disso graças a um
corte (hipotético) adequado, concebido como a projecção
— ou a expressão — conceptual da experiência somática do
homem: de onde, por exemplo, a importância do fazer que
releva ao mesmo tempo do comportamento real do homem e
da articulação do dizer ou do imaginário.
Ao iniciar a nossa exposição, dissemos que a semiótica
não poderia restringir-se a um estudo dos modos (ou dos
canais) da comunicação e que ela devia, englobando-a mesmo
(cf. a relação destinador vs destinatário, e as transferências
de objectos), proceder à análise — mais ampla — do sentido.
No termo da nossa apresentação, pode-se dar conta dos moti-
vos da nossa reserva inicial. Como vimos, o eixo do emissor
e do receptor não é suficiente para um estudo da significa-
ção, porque o homem não se situa somente numa relação do
tipo eu/tu (colocada em relevo na teoria da comunicação),
mas também numa relação com o mundo, no qual e sobre
o qual se exerce o seu fazer quotidiano. Introduzindo uma
terminologia espacio-temporal, referimo-nos ao alcance que

138
o homem dá à sua experiência, à sua posição no espaço e no
tempo, a este ponto em que o dizer (ou, mais exactamente,
todas as linguagens de manifestação) e o fazer somático
entram em conjunção e em disjunção para criar o sentido.
Dito isto, se a semiótica — tal como nós a entendemos,
e entre outras possíveis — recusa limitar-se somente à análise
dos significantes (dos códigos) que servem para a transmissão
das mensagens entre emissor e receptor, ela não despreza por
isso o facto humano da comunicação: ao contrário, ela inte-
gra-o totalmente — mas desta vez como componente na aná-
lise do conteúdo — no quadro da sintaxe narrativa, com a
articulação dos objectos (pragmáticos ou modais) entre os
sujeitos, revelando entre uns e outros relações de disjunção
ou de conjunção. Longe de recusar o esquema da comuni-
cação (cf. GR 1970, 175; 1973b), a semiótica narrativa e dis-
cursiva, aqui apresentada, considera-o como uma das formas
primeiras do imaginário e do fazer real do homem, e faz
dele o eixo central do seu modelo sintáctico antropomórfico.
Nesta perspectiva, o esquema da comunicação não serve
já para restringir a semiótica ao estudo dos códigos (=signi-
ficantes) utilizados e para excluir talvez indirectamente o das
mensagens (=significados): ele é retomado aqui, em parte,
para uma articulação do conteúdo. Da mesma forma, a comu-
nicação, definida ao nível do fazer semiótico (real) ou ao da
representação como transmissão regulada de objectos entre
sujeitos, só pode ser apreendida por meio de uma distribui-
ção espacio-temporal: é o que testemunha amplamente a ter-
minologia que tentamos apresentar, diferindo de um simples
léxico, numa forma concisa e sistemática.

139
Segunda parte

UMA LEITURA SEMIÓTICA


DE «CINDERELA»

iNa apresentação sistemática da perspectiva semiótica,


pareceuinos oportuno acrescentar — mesmo que brevemente —
uma ilustração correspondente, mostrando de que nraneira
pode ser utilizada a aparelhagem conceptual montada. Notar-
-se-á, em primeiro lugar, a este respeito — e a observação
não nos parece supérflua —, que qualquer análise de vocação
científica (na medida em que ela busca as constantes ou as
leis) deve efectuar-se por via comparativa: a nossa escolha
de um conjunto de variantes de um mesmo conto apoia-se
evidentemente neste postulado fundamental. Por outro lado,
tratar-se-á aqui de uma leitura semiótica que estabelece, por-
tanto, um nível de pertinêmcia entre outros possíveis: o nosso
estudo não pretende de modo algum extrair «o» sentido (que
seria «definitivo») do conto em questão, nem dar conta desta
totalidade que ele representa para um etnólogo, por exemplo.
O objectivo deste trabalho é pôr em evidência a organização
narrativa e discursiva subjacente a este pequeno corpus que,
postulámos à partida, constitui, para além das variações de
superfície, um certo micro-universo (ao mesmo tempo sintác-
tico e semântico) específico: deixámos para a análise o cui-
dado de confirmar a hipótese inicial.
1. A ORGANIZAÇÃO GERAL

Globalmente, postulamos que Cinderela ' é a história

de um casamento, cuja estrutura sintáctica subjacente nos é


dada no enunciado:

(SI U S2) -^ (SI n S2)

em que SI representará o «príncipe» e 82 a heroína, e que


indica a transformação entre um estado disjuntivo e uma
ligação conjuntiva (correspondendo o «casamento», segundo
o Petit Robert, à «união legítima de um homem e de uma
mulher»).

1.1. SEQÜÊNCIA INICIAL E SEQÜÊNCIA FINAL

No que diz respeito ao investimento semântico dos dois


sujeitos em presença, notaremos que se SI mantém como
traços permanentes e inalienáveis a /elevação/ e a /riqueza/,
o mesmo não acontece com S2. Se, no estado final (SI fl S2),
Cinderela conjunta a /elevação/ e a /riqueza/, no estado

1 A nossa análise incidirá sobre as seguintes variantes: 1, 5, 6, 9,


111, 12, 13, 14, 15, 16, 29, 30, 311, 32, 34, 38, escolhidas no O conto popular
francês. Paris, Maisonneuve et Larose, 1964, «catalogue raisonné», esta-
belecido por P. Delarue e M.-L. Tenèze.

143
inicial (SI U S2), ao contrário, ela tem como m a r c a s caracte-
rísticas a / h u m i l h a ç ã o / e a / p o b r e z a / . É p o r isso que, neste
p o n t o da narrativa, o casamento aparece como verosimilmente
impossível. O conto tipo 510 A introduz então assim entre
os dois parceiros u m a oposição na isotopía socio-económica,
cuja supressão seria a única a permitir o acesso ao casamento.
a) A existência da oposição entre S I e 'S2 requer, p o r
p a r t e do contista, u m a justificação correspondente. Dito de
o u t r o modo, a instauração da disparidade apela eventualmente
p a r a u m a espécie de narrativa introdutória, articulada segundo
u m sub-programa n a r r a t i v o particular, O n a r r a d o r tem, com
efeito, duas possibilidades:
1) Ou coloca a heroína n u m estado de / h u m i l h a ç ã o / e de
/ p o b r e z a / sem especificar as razões antecedentes, p o r t a n t o ,
de maneira «inata»; a perspectiva é aqui atributiva ou qua-
lificativa:

— «Três irmãs. Havia uma que não era mexida» (v. 30).
— «A mais jovem era tratada por Cul Cendron', porque se arras-
tava sempre na sujeira» (v. 3(1).
— «A filha do homem, chamada Cul Cendren, andava mal arran-
jada» (v. 6).
— «A terceira... era desprezada, não se vestia como as outras, e
deixava-se ficar sempre ao pé do fogo, e baptizaram-na de Cen-
drouse...» (v. 13).

Observar-se-á que o estatuto depreciativo de Cinderela


pode ser causado q u e r pela heroína ela m e s m a ( = f a z e r refle-
xivo), quer pelo seu meio ( = f a z e r transitivo: cf. mais adiante).
Por o u t r o lado, e sempre a respeito destas poucas citações
não seria demais sublinhar a importância da denominação:

«Ela tinha-a baptizado Cinderela, porque tratava sempre da


cozinha e lavava a louça, encarregando-se das tarefas mais
sujas» (v. 15).

1 De «cendres»=cinzas; da mesma forma, Cendrillon compõe-se


de cendres+ o diminutivo ilion (cf. mais adiante).

144
No caso do antropónimo Cendrillon (Cinderela), podemos
dizer que «se 'cendres' (cinzas) reenvia em primeiro lugar a
'resíduo' e 'humilhação' (e, secundariamente, a uma posição
virtual de 'elevação': cf. a expressão 'renascer das cinzas'),
a utilização do sufixo 'ilion' não é de modo algum pejorativo
(diferentemente de 'ouillon' que aparece em certas variantes):
trata-se aqui somente de um diminutivo (cf. oisillon, bouvillon,
raidillon O que atenua o conteúdo depreciativo do radical» ^.
O mesmo é o caso de «Cendrouzette». Em compensação «Cul
Cendron» revela-se mais pejorativa. Quaisquer que sejam as
nuances produzidas aqui e ali (com uma desinencia masculina
ou feminina), temos sempre uma denominação com um con-
teúdo semântico (o conto popular, diferentemente da litera-
tura escrita, ignora habitualmente os antropónimos não moti-
vados) que se opõe claramente ao «filho do rei». O recurso
à figura «cinzas» permite, mesmo neste nível lexemático, acen-
tuar a diferença entre 'SI e S2.

2) Ou então o narrador introduz uma perspectiva nar-


rativa (com procedimentos de aquisição) para dar conta do
estado no qual se encontra a heroína. De onde, por exemplo,
a explicitação da «repressão» (afigura do processo que engen-
dra a falta) de que Cinderela é o objecto:

— «(As suas irmãs) desprezavam-na e nunca queriam levá-la


consigo ao baile» (v. 30);
— «i(As suas irmãs), mais bonitas do que ela, maltratavam-
-na» (v. 6).
— «Durante toda a semana a pobre rapariga guardava as
ovelhas e, ao domingo, ficava em casa a trabalhar, enquanto a
mãe e a irmã se alindavam e iam à missa» (v. 5).

' Avezinha, vitelo, ladeira.


2 A. J. Greimas e G. Courtes, in «Cendrillon va au bal: remarques
sur les rôles et les figures dans la littérature orale française», a apa-
recer e m Hommage à G. Dieterlen, Éditions Hermann. —Várias vezes
na seqüência desta análise faremos alguns empréstimos a este trabalho
comum.

io 145
Ao nível semântico, tem-se então aqui uma oposição
do tipo:
dominador vs dominado,

na qual o poder é detido ou pela mãe (que não é sempre uma


«madrasta») *, ou pelas irmãs, enquanto Cinderela é o objecto
sobre o qual se exerce este poder ^. Teoricamente falando,
a repressão pode ser introduzida:

— iQuer pela /maldade/ do sujeito dominado: o que


seria o caso se Cinderela se apresentasse como má ou deso-
bediente: nesta medida, a repressão definir-se-ia como sanção:
ter-se-ia então, narrativamente, um sistema de troca, com dois
sujeitos entre os quais circulariam dois objectos negativos
(01 = desobediência; 02 = punição). De facto, esta situação
nunca aparece no conto tipo ( = c . t. 510 A). ('No que diz res-
peito à qualificação de «bondade», seguidamente atribuída à
heroína cf. infra 2.3.). A razão disso é simples: a troca (posi-
tiva, ou negativa como aqui) não pode engendrar a falta uni-
lateral (na heroína) por onde a narrativa de Cinderela pode
começar a funcionar.
—Quer pela /maldade/ do sujeito dominador: no nosso
corpus, se repressão há, esta explica-se sempre desta maneira:

— «Era uma mulher. Casou-se. O seu marido já tinha uma


filha, e depois ela teve duas filhas. Então ela não podia de forma
alguma ver a filha de seu marido: era uma mãe ruim» (v. 15).

' Se, na tradição norte-americana, por exemplo, o papel de


/mau/ é necessariamente assumido por uma «madrasta» (e, nunca,
por uma «mãe»: porque culturalmente esta não pode, em nenhum caso,
estar associada à /maldade/), o mesmo não acontece com a tradição
francesa que não exclui a possibilidade de uma «mãe má». Notemos
aliás que o papel moral de /mau/ não está necessariamente confiado
aos pais: ele pode ser suportado unicamente pelas irmãs, como teste-
munham as variantes 30 e 31 (a v. 30, iniciando a narrativa por «três
irmãs», não menciona nem o pai nem a mãe).
2 A este propósito, é interessante lembrar que certas variantes
invertem esta relação no final da narrativa, tornando a mãe ou as
irmãs «criadas» (v. 31) ou «domésticas» (v. 38) da heroína glorificada.

146
— «A mãe ciumenta enviava (Cinderela) para os campos com
a filaça: aqui estão os sete fusos e um alinhavador: se isto
não for fiado, diz-llie ela, cautela esta noite! (v. 9).

Figurativamente, a repressão poderá exprimir-se no plano


do trabalho (sempre muito difícil de ser reailizado, quer se
trate do efectuado nos campos: «fiar», «enfeixar», etc...., quer
de um trabalho de casa: cozinha, limpeza, etc; em todos os
casos, trata-se de tarefas que, no contexto socio-cultural corres-
pondente, estão habitualmente reservadas à «mulher»), ao
nível do vestuário (ao contrário das irmãs e/ou da mãe, a
heroína será privada das «roupas bonitas»), mas também ao
da alimentação: na variante 32, Cinderela só tem direito a
um pequeno pedaço de «pão preto», enquanto as suas irmãs
recebem muito «pão branco»; noutra parte — versão 6 — ela
é constrangida a jejuar; quanto a C. Perrault, ela a relega:

«num sótão sobre uma esteira miserável, enquanto suas irmãs


estavam nos quartos aparquetados em que tinham os leitos mais
modernos» (v. 1, in éditions Garnier, p. 157).

Narrativamente pode-se 1er a repressão sobre o eixo destina-


dor vs destinatário, transmitindo o destinador (mau) à desti-
natária um objecto negativo (supressão ou falta): trata-se
aqui de uma estrutura que corresponde ao que podemos
traduzir figurativamente pelo «dom» (em forma negativa: o
que não é surpreendente, uma vez que, em francês, podemos
dizer «dar a morte»).
É evidente que esta narrativa introdutória, permitindo
fixar Cinderela no estado de /humilhação/ e de /pobreza/, será
mais ou menos desenvolvida segundo a vontade do contista:
enquanto a versão 32 lhe dedica os dois terços da sua narra-
tiva, a V. 34 só propõe um condensado:

«Todas as velharias competia a (Cinderela) trazê-las.»

Acrescentemos enfim que, para tornar mais contrastante


a posição da heroína, o narrador tem necessidade de intro-
duzir pontos de comparação: o papel habitual das irmãs é

147
o de constituir ao menos um eixo de referência: a priori, com
efeito, não estarão elas melhor «colocadas» do que Cinderela,
em relação a um casamento virtual com o príncipe, dado que,
em nome dos seus atributos elas correspondem muito mais
às exigências da norma (segundo a qual os casamentos têm
de preferência lugar entre pessoas do mesmo nível social)?
A título de ilustração, reenviamos somente à v. 13, na qual
a heroína fica a «raspar as cinzas» enquanto as suas irmãs
trazem «bonitos vestidos (...) exactamente o que havia de
mais belo». Deste ponto de vista, a narrativa encontra-se como
que desdobrada (S2 e nãojS2), com dois programas narrativos
invertidos: à aquisição, por Cinderela, do poder-se casar
corresponde à perda deste mesmo poder por parte das irmãs:
assim, na v. 32, ver-se-á — através de uma mesma prova —
a heroína feia aceder à beleza (da qual veremos ulteriormente
toda a importância na possibilidade do fazer casamento), en-
quanto a sua irmã bela se torna horrível de ver, ao ponto de
«com a sua cauda de asno e os seus piolhos e pulgas, (ela ser)
motivo de escárnio de todos os convidados da boda».

Observação: Num artigo, «Die Ehe im Zaubermärchen» (in Acta Ethno-


graphica Academiae Scientiarum Hungarica, 19, 1970, 281-29í2), E. Mele-
tinsky levanta a hipótese segundo a qual o papel de /mau/ reservado
à «madrasta» se explica pela violação das regras da exogamia. Em
certas etnias, com efeito, narra-se — nos contos — que o rei enviuvado
envia alguém para procurar uma mulher fora do seu território, de
maneira a respeitar a exogamia; infelizmente, os seus mensageiros
perdem-se num nevoeiro mágico e trazem uma feiticeira má (perten-
cendo ao universo endogâmico do soberano) que não tarda a perseguir
a sua nova nora. Esta violação da exogamia no caso da madrasta
(c. t. 510 A) aproximar-se-ia da que está a ponto de ser realizada pelo
pai de Peau-d'Ane (c. t. 510il3), sendo a união incestuosa incompatível
com as leis da aliança: no primeiro caso, a violação leva a uma falta
de amor; no segundo, ela está ligada a um excesso de amor.

b) A supressão da dupla oposição correlativa (organi-


zando o conteúdo semântico do nível profundo):

— /humilhação/ vs /elevação/ e
— /pobreza/ vs /riqueza/

148
entre SI e S2 — que permitirá o casamento — apela necessa-
riamente para um processo correspondente: sem nada perder
daquilo que ele é, o Príncipe — em nome do seu «bel pra-
zer» — faz entrar Cinderela no seu universo de /elevação/
e de /riqueza/, segundo um tipo de comunicação participativa
(conforme a qual, por exemplo, a aquisição que eu faço do
saber não priva em nada o meu informador).

1.2, A ORDENAÇÃO SINTÁCTICA

Feitas estas precisões a respeito do investimento semân-


tico dos dois actantes SI e S2, retornemos à ordenação sin-
táctica do fazer casamento. A dupla transformação que ele
implica e na qual cada parceiro é sujeito e objecto (Osl/Os2)
para o outro (cf. as expressões: «arranjar uma mulher, arran-
jar um marido»),

(Si U OS2) -^ (Si n OS2)


(82 u Osi) -» (S2 n Osi)
aparece essencialmente operada, neste conto-tipo, pelo prín-
cipe (=(S2):

— «Tendo o filho do rei recolhido (o sapato) fez com que


o povo tomasse conhecimento de que o pé que calçasse esse
sapato seria o pé da que faria sua mulher» (v. 31);
— «Aquela a quem servir (o sapato), que o calçar bem, será a
minha mulher. Eu a esposarei» (v. 13);
— «Ela saiu correndo da igreja e perdeu um sapato. À saída
o filho do rei encontrou-o e gritou:
Quem calçar este sapato
Será a minha metade» (v. 32).

Ê surpreendente, com efeito, que, em todas as variantes, sem


excepções, o filho do rei manifeste a sua vontade decisiva
de tomar a heroína por esposa. Do enimciado representando
sintácticamente o casamento

[1] Ft [Si ^ ( 8 4 U Os2 n Si)] «—> Ft [:S2 ^ (S3 U Osi n S2)],

149
o contista só retém o primeiro membro, deixando assim na
sombra o fazer paralelo (correspondente) de S2 '. É aliás
significativo que os personagens que intervém em Cinderela
sejam somente os que correspondem aos actantes na primeira
parte de [1], a saber:

— iSi = príncipe;
— Os2 = Cinderela (em posição de objecto);
— S4 = família de Cinderela.

Em compensação, S3 — isto é, neste caso, a família do prín-


cipe — nunca é mencionado, salvo (mas sem nenhum papel
determinante) na versão 5 e na — «literária» — de C. Perrault,
durante o desenrolar do baile:

«Mesmo o Rei, velho como era, não deixava de olhá-la ( = Cin-


derela) e de dizer baixinho à Rainha que j'á fazia tempo
que não tinha visto uma pessoa tão bonita e tão amável» (v. 1,
op. cit., p. 160).

Como nós observamos, a fórmula:

Ft '[S, -^ (S4 u os2 n Si)]


é de tipo reflexivo e comporta simultaneamente uma conjun-
ção reflexiva (figurável pela apropriação) e uma disjunção
transitiva (correspondendo à despossessão): segundo a termi-
nologia de lA. J. Greimas, trata-se portanto aqui de uma prova.
Se a apropriação aparece claramente, como o testemu-
nham as citações precedentes (e todas as que nós teríamos
facilmente podido juntar a estas), o que acontece com a des-

1 Pode-se 1er o enunciado final assim: o rapaz (SI) faz com que
a rapariga lhe sej'a conj'unta como objecto '(Os2), ao mesmo tempo
que ele a disjunta de sua família; correlativamente, a rapariga une-se
ao rapaz que ela separa dos seus. A esta leitura de tipo reflexivo pode
ser substituída uma perspectiva transitiva, se o sujeito da acção for
diferente do beneficiário (ex.: nas sociedades em que o casamento é
uma questão entre clãs, onde se faz apelo a um agente matrimonial).

150
possessão? Em todos os casos onde a mãe de Cinderela
figura na narrativa, ela recusa-se freqüentemente a «dar» esta
filha em casamento ao príncipe: mesmo se — e porque — ela
a maltrata, ela pretende sempre conservá-la em seu poder:
— «(O filho do rei) ia de casa em casa (para experimentar
o sapato). A madrasta põe Cinderela debaixo de uma tina,
enquanto se experimenta o sapato na própria fiUia (...). Mas
nesse mesmo instante, a cadela dizia: Bai, baou, a bonita está
debaixo da tina, enquanto a feia corre pelas ruas». O rei per-
guntou: «Que diz ela? — Oh, nada, é Cendron, escondia-a porque
ela está muito suja...» (v. 9; a v. 6 introduz este mesmo episódio
com um «cão»);
— «Só restava ainda para visitar a casa da mãe das duas
filhas. Quando os mensageiros do rei (encarregados do ensaio
do sapato) chegaram, perguntaram-lhe onde estavam as suas
filhas. Ela só mostrou a Feia, dizendo que a outra (= Cinderela)
estava ausente '(...). Os enviados do rei iam partir quando ouvi-
ram um papagaio dizer: —A bonita está debaixo da tina (=o
barril). A mãe quis calar o papagaio. Em vão. Ela queria
enxotá-lo; mas ele obstinava-se a repetir: — A bonita está debaixo
da tina. Finalmente, os enviados do rei avistaram um barril
virado, e com efeito a bela estava lá debaixo» (v. 38).

No extremo limite, aliás, a mãe aceita o casamento


somente porque «é o rei que ordena» (v. 5). Esta mesma reti-
cência encontra-se transferida para as irmãs, quando a mãe
não intervém na narrativa:

«Então o filho do rei experimentou-o em todas as raparigas;


e as duas irmãs não queriam que se experimentasse nela porque
a chamavam Cul Cendron» (v. 30).

A oposição ao casamento situa-se no momento da prova


do sapato (uma vez que o príncipe faz saber previamente a
sua vontade de esposar aquela a quem o sapato servisse) ou
às vezes após a descoberta da heroína. Permitimo-nos citar
aqui in extenso o final da v. 34, que constitui — em relação
ao conjunto do nosso corpus — um caso bastante particular:
a contista (Corsa) inclui uma sub-narrativa, com um pro-
grama narrativo correspondente, que nos parece ilustrar me-
lhor a oposição de S4 («Genderella» vem de gendara: cinza).

151
«o sapato ia-lhe às maravilhas. O filho do rei estava con-
tente: ele queria esposar Genderella. Mas a madrasta não queria,
ela queria que ele esposasse Piccigotta (=irmã de Cinderela).
Então, à noite, ela acendeu o fogo para aquecer o forno e colocar
dentro Genderella. As duas raparigas estavam deitadas no mesmo
leito. A fada chega e diz à sua afilhada: —Atenção, esta noite,
tua madrasta quer te matar. Ela está a aquecer o forno para
colocar-te lá dentro. Troca de lugar no leito, e é Piccigota que
será morta. Genderella seguiu o seu conselho. —Tenho dor de
barriga, diz ela à Piccigotta, troca de lugar comigo. Ela troca
o seu lugar no leito com Piccigota. A madrasta tinha aquecido
o forno; ela vai no escuro até ao leito em que as duas raparigas
dormiam. Toma a sua filha e coloca-a no forno.
— Oh, mamãe, sou eu, mamãe — diz Piccigotta.
— Sei muito bem, és tu — diz a madrasta sem a olhar.
E na manhã seguinte, ela chama a sua filha:
— Piccigota, rizza-íe. Piccigotta, levanta-te.
Então uma voz lhe respondeu:
— Piccigotta furnellada (Picigotta está entornada).
Genderella maritada {Genderella está casada).
Assim o filho do rei esposou Genderella e Piccigotta está morta.»

Notemos, entretanto, que a despossessão (em detrimento


de iS4) não é sempre necessariamente explicitada: ela constitui
um elemento virtualmente disponível (e explorável, ao ponto
de dar lugar, como acabamos de ver, a uma narrativa na
narrativa) e ao menos logicamente pressuposto pelo fazer refle-
xivo de SI (na medida em que o objecto Os2 não vem de parte
alguma, mas pertence a um detentor S4, isto é, na perspec-
tiva de um sistema fechado da circulação dos objectos-valores).
As poucas citações que retivemos para ilustrar a disjun-
ção transitiva exigiria evidentemente — no quadro de uma
análise comparativa das variantes ^ — a clarificação dos sub-
programas narrativos, susceptíveis de assumir a sua expansão
(em particular com o jogo da modalidade do saber) e, correla-
tivamente, o seu investimento semântico: como o nosso objec-
tivo se situa ao nível mais geral do conto, nos será perdoado
não entrarmos aqui em mais detalhes.

• Este ponto já foi, parcialmente, o objecto do artigo citado


mais acima: «Cendrillon va au bal...».

152
o fazer transformador — «prova» — ( = apropriação +
+ despossessão) — operado de maneira unilateral pelo prín-
cipe supõe, neste último, as modalidades correspondentes:
a) O querer está sempre claramente manifestado em
todas as variantes, sem excepção, quase no final da narrativa:

— «Então o filho do rei quis esposá-la» (v. 30);


— «O príncipe traz a pantufa para o seu pai e conta-lhe tudo
e declara que ama a jovem da missa e que nunca casará com
uma outra» (v. 5).

Ver ainda as citações feitas no início deste parágrafo.


Notemos contudo, que se no momento do fazer casamento a
decisão parece pertencer unicamente ao filho do rei, seu
querer é, de facto, provocado pelo da heroína (que, veremos,
detém o poder-fazer-querer).
b) O poder — sempre presente — está geralmente suben-
tendido: ele está claramente indicado no caso de surgir um
impedimento, um obstáculo entre o querer e o fazer: cf. a
variante 5, em que a reticência da mãe de S2 cede diante de «é
o rei que o ordena»; no final da variante 34, que citamos
integralmente, o poder-casar é dado indirectamente ao prín-
cipe pela madrinha que informa Cinderela do projecto mortal
da madrasta: o saber dado à heroína torna-se para SI a
condição do ipoder; do mesmo modo ainda, nas variante 6,
9 e 38 — evocadas acima — o saber (incidindo sobre o lugar
onde foi escondida Cinderela) transmitido pela «cadela» ou
pelo «papagaio», estabelece a possibilidade do fazer de SI '.

1 No que diz respeito à terceira modalidade (o sujeito segundo


o saber) cf. mais adiante em 3., em que ela será objecto de um estudo
particular.

153
2. A INTRODUÇÃO DE UMA MEDIAÇÃO

Até aqui analisámos só o início e o final de Cinderela,


lembrando simplesmente a transformação sintáctica geral:

(Si U S2) - » (Si n S2)

que, vimos, é efectuada por Si. A esta ordenação global, o


conto tipo 510 A acrescenta — entre o estado inicial (SI U S2)
e o estado final (SI (1 S2) — uma mediação que, conforme
veremos, é essencialmente confiada não mais ao príncipe (SI),
mas à heroína ('S2) a quem compete fazer desejar (ou fazer-
querer) o casamento ao filho do rei.
Esta seqüência que, arbitrariamente, denominados media-
ção, pode-se condensar no enunciado «¡Cinderela vai ao baile
(à missa)...»' que coloca em relevo, sob forma figurativa, ao
mesmo tempo, o sujeito do fazer-querer e o espaço do encon-
tro (conjuntivo). Considerando atentamente este episódio,
observaremos que o conto tipo 510 A estabelece o «encontro»
a dois níveis isotópicos diferentes:

• Retomaremos aqui, quase que textualmente, alguns fragmentos


(os mais pertinentes para a nossa presente análise) deste artigo (citado
mais acima), sempre os completando e os ilustrando mais do que
fizemos quando da sua redacção, limitada pelos constrangimentos da
publicação.

155
— um de tipo «físico», correspondendo à conjunção espa-
cial com o «deslocamento» a que ele poderá levar, de onde
também, por exemplo, o recurso à «carruagem» como meio
de locomoção;
— outro de carácter «espiritual», que se traduzirá na con-
junção amorosa com a «sedução» que a torna possível»:
aqui toma lugar, entre outros, o papel dos «belos vestidos».
Se estes dois planos estão entre si numa relação de
duplicação, eles estão também numa relação hipotáxica: a
conjunção por «sedução» domina a que se efectúa por «des-
locamento» (eis porque, se todas as variantes sem excepção
mencionam a «toilette» da heroína e a sua maneira de agra-
dar», somente algumas farão apelo à «carruagem» que é
um elemento facultativo): isto justifica-se pelo facto de que
a conjunção amorosa — operada unilateralmente por Cinde-
rela — tem por objectivo instaurar no príncipe a modalidade
do querer (em relação ao fazer casamento).

2.1. A CONJUNÇÃO ESPACIAL

(No conto tipo 510 A, este tipo de conjunção realiza-se


ou no «baile», ou na «missa», ou numa «festa», ou numa «ceri-
mônia». Em todos os casos trata-se, portanto, de reuniões
públicas, mais ou menos directamente ligadas ao casamento.
Se o «baile» — no código aldeão — é uma assembléia de jovens
tendo por objectivo a constituição de casais, a «missa» ou as
«festas» são também ocasiões de encontro, desempenhando
uma função análoga, mesmo se elas são menos típicas; poder-
-se-ia, aliás, imaginar variantes de Cinderela que comportassem
um encontro de carácter absolutamente ocasional (por acaso),
inteiramente neutro em relação ao casamento. De facto, vê-se
que o contista se apoia em esteriótipos próprios do seu meio
socio-cultural.
Por outro lado, é evidente que, numa determinada nar-
rativa, o espaço só se define em relação ao actor que lhe
está conjunto: do mesmo modo que a «casa» — onde Cinde-
rela evolui no início do conto — está ligada à /humilhação/

156
e à sua /pobreza/, o «baile» ou a «festa» (ou ir à «missa»)
é uma figura do estatuto social reconhecido (que a presença
do filho do rei só sublinha e valoriza): não esqueçamos que a
/humilhação/ da heroína se exprime sempre ao menos pela
sua exclusão do «baile»:

«Um dia ela chorava e aconteceu que a sua madrinha pas-


sasse, ela era feiticeira. Então ela perguntou-lhe o que tinha,
porque chorava. Então ela disse-lhe que as suas irmãs a despre-
zavam, que elas não queriam levá-la ao «baile» (v. 30).

ou — equivalentemente — da «missa» (tomando o seu meio as


disposições para a impedir de participar no ofício religioso):

— «Eis que no domingo seguinte era preciso ir à missa. Pre-


parou-se a Bonita para lá ir e a que se chamava Feia ( = Cinde-
rela) para que ela não fosse» (v. 32);
— «A mãe diz à Bonita ( = Cinderela): —Eis um pacote
de agulhas e de alfinetes misturados, é necessário separá-los
enquanto estivermos na missa. E ela parte com a Feia para a
grande missa. Havia naturalmente que fazer também a limpeza
da casa» (v. 38).

Qualquer que seja aliás o tipo de reunião pública


escolhido (e nós não esquecemos que a missa, em fim de
manhã, constitui muitas vezes ainda hoje uma exibição de
«toilettes», inclusive nas grandes cidades...), ele exige sempre
uma apresentação de vestuário de qualidade (cf. infra), even-
tualmente ligada à prática das boas maneiras: temos neste
caso a /elevação/:

«Era um senhor e uma dama que tinham três filhas. As


primeiras estavam sempre no baile; eram as bonitas jovens que
sabiam se apresentar. A mais jovem, chamavam-na Cul Cendron,
porque ela se arrastava sempre na sujeira. Um belo dia, ela
disse à sua madrinha, que era fada: —Oh madrinha, eu gostaria
de ir ao baile, mas estou tão mal vestida que não ouso apre-
sentar-me» (v. 31).

Reencontra-se assim, ao nível da figurativização espacial


(casa/baile ou casa/missa), a oposição profunda — /humilha-
is/
ção/ vs /elevação/ e /pobreza/ vs /riqueza/ — que o conto
deverá superar para tornar possível o fazer casamento.
No quadro desta conjunção espacial — não nos esque-
cendo de que ela é temporária ' —, a modalidade do poder
(correspondente) funcionará tanto ao nível topológico (recurso
ao meio de locomoção: «carruagem») como ao das exigências
do vestuário:
«Eis que a minha Cenáronse abre muito depressa a sua
avelã. Ela encontra uma bela carruagem, bem atrelada, dois
excelentes cavalos, um cocheiro e vestidos que eram quatro
vezes mais bonitos que os das suas irmãs. E eis que ela se
veste muito depressa, monta na sua carruagem e chega à missa
tão cedo como as suas irmãs. E quando viram chegar esta
carruagem, todos se tinham posto a olhá-la: —De quem é esta
carruagem? De quem é esta carruagem?» (v. 13).

Em outros termos, Cinderela não parece poder aceder ao


«baile» ou à «missa» senão dotada dos signos da /elevação/
e da /riqueza/. Sua conjunção espacial com o príncipe só
parece possível uma vez negada a sua baixa condição e o seu
aspecto miserável: operação que corresponde evidentemente
a um sub-programa narrativo particular. Para'justificar esta
transformação, o contista recorre a uma espécie de mini-
-narrativa prévia (que examinaremos mais adiante, com a
obtenção das «roupas»: a aquisição da «carruagem» paralela
à dos «belos vestidos»). Notemos aqui somente que a «carrua-
gem» (ou o «belo carro») — variantes 1, 5, 13, 14, 15, 38 — ou
o «cavalo» (com uma «estrela de ouro na fronte») na varian-
te 34, não são somente meios de transporte {poder-se deslo-
car): eles devem ser lidos também como o signo da alta
posição social: porque conotam o «luxo» ou a «ostentação»,
eles inscrevem-se nos eixos da /elevação/ e da /riqueza/.
Compreender-se-ia então porque é que os dados topoló-
gicos e o fazer «deslocamento» só são realmente significa-
tivos na medida em que forem articulados com os elementos

' No que diz respeito aos mecanismos narrativos de temporali-


zação, reenviamos ao artigo pré-citado; ao contrário, quanto ao aspecto
«passageiro» (isto é, da ordem do parecer), cf. infra, em 3.

158
semânticos profundos que eles veiculam no contexto que é
o seu. Uma vez assegurados estes últimos, a escolha das
figuras é bastante livre (ficando claro que elas se mantêm
nos esteriótipos que dizem respeito aos encontros entre rapa-
zes e raparigas): se o «baile» e a «missa» se podem encontrar
ao mesmo nível isotópico (dado que certas das suas virtua-
lidades são deixadas em suspenso), não é menos certo que
temos apesar de tudo de ter em conta aqui duas figuras niti-
damente diferentes (num caso trata-se de uma reunião para
dançar, no outro de uma reunião de orações, própria dos
católicos), susceptíveis de levar a variações correspondentes
ao longo do conto. Dado que é em função do casamento
(final) que se inscrevem na narrativa — de perto ou de longe —
todas as unidades figurativas, comprender-se-á facilmente que
nunca apareçam elementos que têm directamente relação com
a descrição da «missa» como ofício religioso (toda a seqüência
de Cinder ela se passa imediatamente antes ou depois: à saída);
do mesmo modo, se o «baile» é por vezes (essencialmente nas
versões «literarizadas» ou escritas) o objecto de uma apre-
sentação, só o é evidentemente em relação (ou para situar)
a conjunção amorosa de que tradicionalmente ele é o quadro:
deste ponto de vista, sublinhemos, as versões propriamente
orais são particularmente sucintas (os auditores não sabem
acaso o que é um «baile»?), e descrevem esta seqüência em
duas frases, no máximo:
— «E o filho do rei vendo-a assim tão bela, convidava-a sempre
a dançar» (v. 30);
— «Chegada ao baile, ela entra, mas ninguém podia conter
a emoção tanto ela era bela. Tocando o primeiro som da meia-
-noite ela desapareceu» (v. 31);
— «Todos chegavam ao baile; o filho do rei, quando viu esta
jovem vestida de princesa, vai logo convidá-la para dançar.
Todos admiram uma jovem tão bela» (v. 34).

2.2. A CONJUNÇÃO AMOROSA

A fascinação que a heroína exerce sobre o príncipe é um


dado constante nas variantes: ela corresponde ao fazer sedu-

159
tor (ou ao fazer-querer) de Cinderela (podendo-se analisar a
«sedução» com o poder-fazer-querer):

— «A jovem causava muito desejo ao filho do rei» (v. 6);


— «O príncipe maravilhado, não desvia os seus olhos dela» (v. 5);
— «O filho do rei vendo-a tão bela...» (v. 30);
— «Seguramente (o filho do rei) estava apaixonado pela bonita
pessoa a quem pertencia a pequena pantufa» (v. 1).

A conjunção amorosa — operada pela 'heroína — implica


um poder (fazer-querer) correspondente: esta modalidade tra-
duz-se pela sua maneira de «agradar» (v. 14):

«Quando ela entra na igreja, todos ficam em admiração (...).


O príncipe, maravilhado, não desvia os seus olhos dela» (v. 5).

ou de «se apresentar» (v. 13), e — num outro registo figura-


tivo mais pungente — pelos «belos adornos»: dada a impor-
tância central da conjunção amorosa (que determina, no prín-
cipe, a modalidade do querer, em relação ao fazer casamento),
não nos espantará vermos todas as variantes,'sem excepção,
mencionar com mais ou menos detalhes a «bela toilette» de
Cinderela:

— «Vestido cor de noite» (v. 11);


— «Vestido cor de estrela, de lua, de sol» (v. 5, 6, 29).

Conforme as narrativas, como indicaremos mais adiante,


o vestuário pode ser objecto de uma expansão por decom-
posição morfológica (em elementos constituintes). Na com-
ponente do vestuário figuram também os «sapatos» (cuja fun-
ção de marca para o reconhecimento mostraremos ulterior-
mente): que eles apareçam aliás como mediador privilegiado
da conjunção amorosa (entre Cinderela e o Príncipe) não tem
nada que nos surpreenda: basta referirmo-nos aqui — ao nível
da formulação lingüística — à expressão popular «encontrar
o sapato para o seu pé» (isto é, encontrar a mulher ou o
marido que convém), para ver que a figura «sapato» se ins-

160
crevé facilmente na isotopía sexual ' do casamento, ligando-se
m u i t o directamente ao «baile» (e, de maneira mais ampla,
às «festas» ou o u t r a s ocasiões de encontro entre jovens) que,
como l e m b r a m o s , visa a constituição de casais.
lO belo vestido justifica-se, p o r outro lado, ao nível d a
p r á t i c a social habitual: «vestir a toilette p a r a o baile» (v. 14),
«vestir as belas roupas p a r a ir à missa» (v. 13), fazem p a r t e
dos hábitos correntes tradicionais e, conforme lembramos
mais acima, perpetuam-se ainda nos nossos dias nas zonas
urbanas.
Deste m o d o , o «baile», a «missa» ou a «festa» p o r u m
lado, e os «ricos vestidos» por outro, conjugam-se, ao mesmo
tempo, do iponto de vista do fazer sedutor (orientado em
direcção ao casamento) e sob o ângulo da /elevação/ e da
/ r i q u e z a / . No extremo oposto, a «casa» está ligada aos «reles
vestidos» (v. 1):

«Estou tão mal vestida que não ouso apresentar-me» (v. 31),

que são a figurativização da / p o b r e z a / e ida / h u m i l h a ç ã o / da


heroína, e que — n e s t a qualidade — parecem constituir u m
impedimento p a r a u m casamento eventual com o Príncipe.
É significativo, p o r exemplo, que a v. 38 associe desde o início
da n a r r a t i v a a «casa» com o não-casamento:

«Uma mãe tinha duas filhas das quais uma era bela (Cin-
derela) e a outra feia. A mãe preferia a feia. Ela tudo fazia
para impedir a bela de se casar; levava a feia a todos os bailes,
deixando a bela em casa, e esta devia lavar a roupa, limpar a
casa, preparar as refeições, fazer todo o trabalho, enquanto
a feia nunca fazia nada».

Observações: «Cinderela vai ao baile (à missa)», uma, duas ou três


vezes, segundo as variantes. Em todos os casos de duplicação ou de

' Em Trois essais sur la théorie de la sexualité, Freud escreve:


«O pé é um símbolo sexualmente antigo e já se encontra na mitologia»
(N. R. F., col. «Idées», p. 40) e acrescenta em nota: «Nesta ordem
de idéias, o sapato ou a pantufa tornam-se o símbolo das partes genitais
da mulher».

11 161
tiiplicação da seqüência, a «toilette» torna-se mais bela de uma noite
para outra, de um domingo para outro e — correlativamente — a «sedu-
ção» mais forte: na primeira noite, Cinderela está vestida de bronze,
por exemplo, na segunda está vestida de prata e na terceira vez ela
apresenta-se num ornamento de ouro (v. 34); em todas as variantes
(5, 6, 29), e segundo o mesmo esquema, os seus vestidos têm sucessiva-
mente cor de estrela, de lua, de sol. Esta gradação — freqüente no
conto popular, particularmente ao nível das provas — marca a inten-
sidade da conjunção amorosa ou a instauração reforçada (no príncipe)
do querer-casar.

2.3. A OBTENÇÃO DO PODER (-FAZER-QUERER)

A dupla conjunção — espacial e amorosa — faz intervir


estes objectos mediadores que são a «carruagem» e os «belos
vestidos», figuras da modalidade do poder-fazer-querer (ou
«sedução») exercido por Cinderela. Dada a posição do prín-
cipe na isotopía socio-económica, não é surpreendente que os
objectos «sedutores» se situem do lado da /riqueza/ e da
/elevação/. No mesmo momento, idada a situação inicial da
heroína, caracterizada pela /humilhação/ e pela /pobreza/,
o narrador é obrigado a explicar a transformação operada
entre-tempos (embora de maneira passageira: cf. infra: 3)
em benefício de Cinderela. Eis porque a aquisição da moda-
lidade do poider-fazer-querer (mesmo temporária) é um objecto
de programas narrativos particulares, que justificam uma
formulação em enunciados canónicos:
a) A troca intervém freqüentemente: Cinderela presta
um favor à fada e esta recompensa-a pela outorga dos «belos
vestidos» e da «carruagem»:

— «Cinderela senta-se perto do fogo, entre as fadas. Uma


delas pergunta-lhe: —Queres espiolhar-me, minha amiga, queres
espiolhar-me? —Sim, minha madrinha. (Naquele tempo era-se
mais polido que neste e as jovens diziam aos velhos: Bom-dia
meu padrinho, bom-dia minha madrinha). A fada colocou a
cabeça sobre os joelhos de Cinderela. Só eram piolhos, Igndeas
e sarnas. —Que encontras aí, minha amiga? —Ouro e prata,
minha madrinha. —Ouro e prata terás minha amiga, ouro e
prata terás. —Que lhe desejaremos nós — perguntou a fada às

162
outras. Uma deseja-lhe uma bela carruagem de seis cavalos,
com dois lacaios, fechada numa concha de noz; uma outra duas
pantufas de ouro; uma outra um vestido brilhante como a lua;
uma outra um vestido brilhante como as estrelas; uma outra
um vestido brilhante como o sol; uma outra um pente que faça
dourar os cabelos; uma outra um cofre para colocar todos os
seus pertences, e todas as coisas lhe são oferecidas» (v. 5).
— «A boa senhora (lhe) diz: —Dá-me do teu alimento,
minha pequena. —Oh, minha boa senhora, eu vos daria com
gosto, é pão preto, é muito ruim para vós. — Ora nada, dá-me
dele, eu o comerei com gosto, comerei do que comes. Então
ela abre a sua cesta e em vez de ser pão preto (efectivamente
dado pela madrasta), era pão branco com muita ração (...).
Depois de (sic) terem comido, a boa senhora diz-lhe: —Penteia-
-me, minha pequena. E a pequena começou a penteá-la. E o
que encontras em mim, minha pequena? — Ouro e prata, minha
bela senhora. —Muito bem, que o ouro e a prata venham para
ti, minha jovenzinha. E em seguida, as suas roupas, os seus
cabelos, tudo ficou prateado. E antes de deixá-la, ela diz-lhe:
— Quando estiveres sobre a ponte, em baixo, antes de chegar
à cidade, olha o ar. E assim ela deixa a jovem. E à noite a
jovem, trazendo os seus animais, passando sobre a ponte, olhou
o ar e caiu-lhe uma estrela na fronte» (v. 32).

Por vezes, em sentido inverso, o dom da madrinha inter-


vém em primeiro lugar: em troca do que a heroína contrata
uma obrigação, a obediência, por exemplo, cujo teor pode ser
ou não especificado (em relação hipotáxica):

— <f(A madrinha diz-lhe): vou-me para te preparar, se me


prometes uma coisa: entrar em casa antes que o último toque
da meia-noite soe» (v. 31);
— «A madrinha disse-lhe que a tornaria bela, que não a
reconheceriam e que ela lhe colocaria belos sapatos azuis, mas
quando ela ouvisse tocar meia-noite deveria retirar-se, de con-
trário perderia os seus sapatos» (v. 30).

Em todos os casos, temos — d o ponto de vista sintác-


tico — dois sujeitos e dois objectos (com relações inversas
entre eles):

(Oi n s, u 02) - > (Oi u Si n .O2)


(Oi u S2 n O2) -> <o, n S2 u O2)
163
Uma vez suspensas as relações virtuais (o que implica
que os dois objectos sejam reconhecidos como equivalentes,
no quadro de um contrato fiduciario — o qual poderá ser
submetido, em outros contos, ao jogo do ser e do parecer,
induzindo, por exemplo, às trocas enganadoras), a fórmula da
troca realizaida se escreverá:

F, [Si -^ (Si n O2)] <—» Ft [S2 -» (S2 n Oi)]

Observação: A imagem que habitualmente se faz de Cinderela é a de


uma rapariga /boa/, como nos propõe C. Perrault: ele sublinha, com
efeito, «as boas qualidades desta adolescente» e atribui-lhe «uma doçura
e uma bondade sem equivalentes», com ilustrações de apoio. O estudo
comparativo das variantes do nosso corpus revelou que o contista
só dota a sua heroína de «boas qualidades», quando os objectos («car-
ruagem» e «belos vestidos»), figurativizando a modalidade do poder-
-(fazer-querer), são obtidos no quadro da troca: a «bondade» ou a
«obediência» — como se terá observado nas citações precedentes — jus-
tificam o dom retribuído pela madrinha (ou pela fada), como acontece
em C. Perrault. Em compensação, e parece-nos interessante sublinhar,
todas as variantes que fazem apelo às formas de aquisição designadas
mais adiante não confiam nunca à heroína um papel moral: não
sendo então este traço exigido pela organização narrativa.

b) O dom dos «vestidos» e da «carruagem» equivale à


transferência de um objecto (O) de um sujeito destinador (Sx)
— papel tido pela «fada», pela «velha», pela «dama», etc.
(cf. infra) — a um sujeito-destinatário (S2: Cinderela):

(Sx n O u S2) - » (Sx u O n 82)

O fazer transformador:

Ft [Sx - ^ (S2 n O)]

pode recorrer a um mediador (facultativo), desempenhando


aqui o papel de destinador delegado, como o objecto mágico
«varinha» (que, sabemos, com a fada ela constitui um este-
riótipo no conto maravilhoso) e a fórmula mágica que, ocasio-
nalmente, o acompanha em posição hipotáxica:

164
«A velha deu-lhe uma varinha e disse-lhe: —Terás somente
que dizer: por esta varinha, faça com que eu tenha o que desejo.
A Bela tomou a varinha e voltou à casa (...). Ela pediu à sua
varinha belas roupas para se vestir e uma bonita carruagem»
(V. 38).

Outro objecto mágico possível:

«A fada diz-lhe: — Dou-te uma noz. Terás somente que abri-la


e dizer: Que eu seja transformada numa jovem elegante;
e tu sairás do mesmo lugar a tal hora, muito elegante, como
nunca se viu» (v. 34).

Notar-se-á aqui que o dom em questão incide sobre um


objecto positivo: ele é então diametralmente oposto ao dom
negativo («repressão»: cf. supra) da mãe ou das irmãs; ele
responde assim ao processo inicial que engendra a falta,
mesmo introduzindo, entretanto, como que um excedente («os
vestidos quatro vezes mais belos do que os das irmãs», os
quais eram já «o que de mais belo havia»: v. 13) com o qual
a heroína poderá desempenhar o papel de /sedutora/ sem
temer qualquer concorrência.

c) O «achado» é ainda uma forma possível de aquisição:

«(o papá) traz dois belos vestidos às suas duas filhas (...)
e ele trouxe uma avelã para Cendrouse. Veio o domingo. Eis
que bem depressa a minha Cendrouse abre a sua avelã. Ela
encontrou uma bela carruagem bem atrelada, dois excelentes
cavalos, um cocheiro e roupas que eram quatro vezes mais boni-
tas que as das suas irmãs» (v. 13).

Assim, a heroína parece encontrar «por acaso» os «ves-


tidos» e a «carruagem». No entanto, narrativamente, esta con-
junção certamente não é fortuita. A transformação

{Si U O) - ^ (S2 n O)

implica, sob a forma de um destinador não figurativizado e


ausente da narrativa, a existência de um sujeito anterior

165
outro (que pertence a um universo transcendente e destina-
dor) que só se manifesta pelo resultado do seu fazer (apare-
cendo no universo imánente e destinatário). Ainda aqui, como
mostra a v. 13 acima, um mediador pode intervir (o pai tra-
zendo a avelã para Cinderela): sendo a adjunção de circuns-
tâncias, por definição, ilimitada.
Notemos de passagem que o inverso do dom — a saber,
o que poderíamos designar figurativamente pelo roubo —
encontra-se excluído do nosso corpus. iPoder-se-ia, com efeito,
prever uma disjunção transitiva e uma conjunção reflexiva
concomitantes, operada por Cinderela, correspondendo à prova
(na terminologia de A. J. Greimas): a heroína furtaria então
a um determinado detentor os «belos vestidos» e a «carrua-
gem» que a dupla conjunção espacial e amorosa convoca.
Sem dúvida, esta última possibilidade sintáctico-semântica
não foi afastada sem razão. Com efeito, teria sido necessário
conceder à heroína — nesta hipótese — ou a força física para
dominar o adversário ou a astucia ( = u m a forma do saber-
-fazer): ora, acontece que estas duas «qualidades» não são
geralmente reconhecidas à «mulher» no conto popular francês.

2.4. A DISTRIBUIÇÃO DOS PAPÉIS SOCIAIS

Ao nível mais geral do /azer-casamento — para o qual o


conto tipo 510 A escolheu o príncipe como sujeito transfor-
mador— já observámos (em 1.2.) as modalidades concedidas
a Si:
— sujeito virtual do querer, ele é /filho (do rei) casa-
doiro/ (notar-se-á que as variantes utilizam geralmente «filho
do rei», muito raramente «príncipe», excepto nas narrativas
«literárias» escritas, mas nunca «rei»);
— sujeito do querer, ele torna-se tal após o fazer sedu-
tor de Cinderela: ele endossa então, conjuntamente com a
heroína, o papel de /enamorado/, cujos comportamentos
esteriotipados bem conhecidos encontrar-se-á nas variantes:
ex.: «fazer a corte» (v. 12), «convidar a dançar» (v. 30, 34),
«levá-la a casa» (v. 16), etc.

166
Se examinarmos agora mais detalhadamente o caso de
Cinderela, ele nos parece mais complexo na medida em que
este antropónimo serve para subsumir, ao longo da narrativa,
um certo número de papéis actanciais e temáticos, ao mesmo
tempo que ele garante a sua progressão e a sua transfor-
mação no seguimento do conto. Este anafórico discursivo
(anteriormente analisado ao nivel figurativo: supra 1.1.) apre-
senta-se então como o sincretismo de vários papéis, em que
alguns são estáveis no decurso de vários episódios (por exem-
plo, a posição social de /irmã/) e de outras variáveis (só
indicamos aqui os papéis temáticos):

a) estarão correlacionados ao sujeito virtual do querer:

— ao nível sexual e jurídico: o papel de /casadoira/;


— na isotopía socio-económica: os de /pobre/ e /humilhada/.

b) ao sujeito segundo o querer:

— plano sexual (e jurídico): o papel de /sedutora/ e o de


/coquete/;
— plano socio-económico: a /invejosa/.

c) ao sujeito segundo o poder:

— nível sexual e jurídico: a /casada/;


— na isotopía socio-económica: a /admirada/, a /rica/, a
/princesa/.

Observação: Notar-se-á que muitas variantes não falam mais de Cin-


derela no momento em que ela está no baile, mas a designam diferen-
temente («a bela desconhecida», «a bela jovem», etc), porque ela passa
— aparentemente (cf. mais a d i a n t e ) ^ d o papel de /humilhada/ (para
o qual o antropónimo reenvia: cf. supra 1.1.) ao de /admirada/.

Os diferentes papéis temáticos aqui salientados são a tra-


dução, em termos de comportamentos sociais esteriotipados,
do conteúdo semântico do nível profundo.

167
Por outro lado, a aquisição da modalidade do poder
(-fazer-querer) pode introduzir, no caso do dom, os dois papéis
actanciais de destinador e de destinatário: o primeiro exerce-
-se, por exemplo, no personagem da /madrinha/ (que reenvia
para a organização social para-familial) e, correlativamente,
o segundo no da /afilhada/.
Salientemos enfim o caso de S4 (=ambiente de Cinde-
rela) que, socialmente, ganha forma na / m ã e / e/ou nas
/irmãs/, e ao qual está igualmente correlacionado — para
justificar a /pobreza/ e a /humilhação/ da heroína (cf. sua
exclusão permanente do «baile» ou da «missa») — o papel
moral de / m a u / (bem ilustrado pela v. 34 citada mais acima).

168
3. A MODALIZAÇÃO VEREDICTÓRIA
DA MEDIAÇÃO

A leitura que efectuamos até aqui não nos permite ainda


restituir toda a historia de Cinderela. A partir da organiza-
ção de conjunto (1.) e após termos introduzido uma media-
ção (2.), poderíamos gerar uma narrati\'a completa, cujo
resumo daria mais ou menos isto:
A 'heroína, maltratada pela sua família, gostaria muito
de assistir ao baile (ou à missa) para aí encontrar o filho do
rei. Graças à sua madrinha, obtém tudo o que lhe é indis-
pensável, e mesmo muito mais, para nele participar. Ela apre-
senta-se então lá como uma jovem deslumbrante: o príncipe
é conquistado pelos seus encantos e seus magníficos vestidos,
e não tarda a esposá-la apesar da sua origem humilde e da
inveja do seu meio.
Para obter Cinderela, é-nos ainda necessário projectar
sobre a «mediação» este outro elemento da gramática narra-
tiva que é a modalização segundo o saber. A história do casa-
mento, que é o centro do conto, encontra-se aqui como que
desdobrada, ao ponto que se o fazer transformador («Ele se
casou») é manifestamente produção do príncipe (SI), e se a
«mediação» (com o fazer-querer) é essencialmente realizada
por Cinderela (52), a veridicção, pelo contrário, vai colocar
em jogo os dois participantes de modo alternado: entretanto,
dado que a modalização incide só sobre a mediação (e não
sobre o início ou o final do conto), não nos surpreenderemos

169
ver S2 tomar a iniciativa, provocando SI para uma resposta
correspondente '.
Como se sabe, a heroína apresenta-se na missa ou no
baile de modo incógnito:

«A madrinha disse-lhe que a tornaria bela, que ninguém a


reconheceria... (v. 30).

Há então aqui um jogo do ser e do parecer, caracterís-


tico do conto, que só se concluirá com o episódio do reconhe-
cimento (através do sapato).
Lembremos em primeiro lugar que, do ponto de vista
formal, a modalização veredictória pode fazer aparecer quatro
papéis actanciais:

— ser (=e)
— parecer (==p)
— não-ser (=e)
— não-parecer ( = p )

No caso de Cinderela, estes papéis actanciais podem estar


correlacionados a papéis temáticos. Admitamos que (na pers-
pectiva do príncipe):
—o ser corresponde à /elevação/;
—o não-ser corresponde à /humilhação/;
—o parecer corresponde à /riqueza/;
—o não-parecer corresponde à /pobreza/.

O quadrado semiótico permite postular — a partir destes


dados — quatro termos complexos, de ordem imediatamente

' Nesta secção retomaremos uma parte considerável dos ele-


mentos de análise propostos no artigo citado «Cendrillon va au bal...»,
mas introduzindo, no entanto, modificações (talvez não ainda total-
mente satisfatórias) que um exame mais aprofundado do nosso corpus
justifica.

170
superior aos termos primitivos: nós os designaremos pelas
letras A, B, C, D:
— A=e+p (a verdade)
— B=e + p (a mentira)
— C= e+p (o segredo)
— D=:e+p (o falso).
Suponhamos então a seguinte organização sistemática, com
a indicação dos investimentos semânticos particulares:

P elevação

C-< >B

humilhação.
D

No início do conto, Cinderela ocupa o lugar D(=:e+p)


numa posição de falta (como ilustrámos mais acima). A par-
tir daí, distinguiremos duas seqüências que fazem intervir os
dois participantes alternadamente:

3.1. UM ENCONTRO ENGANADOR

A primeira seqüência coincide com o «encontro» de


Cinderela e do Príncipe (no baile ou na missa) e desdobra-se
assim:
a) Referindo-nos aos dados sintácticos (acima lembra-
dos), a primeira transformação que aparece é a de

possível pelos presentes (vestidos, carruagem) da madrinha.


Do ponto de vista da veridicção, esta passagem — da /pobreza/
para a /riqueza/ — dá lugar à conjunção do não-ser e do
parecer (isto é: e-fp: lugar B): o que coloca a heroína numa

171
posição enganadora (o q u e n ã o é e que parece, definindo a
mentira). Deste modo, Cinderela procede em relação ao prín-
cipe p o r u m fazer persuasivo (analisável ao menos n u m que-
rer-fazer-saber enganador) que desemboca n u m estado de
mentira: os «belos vestidos» que a heroína utiliza, b e m como
a «carruagem», caracterizam-se então, ao nível do saber, como
máscaras destinadas a camuflar a verdadeira identidade d a
heroína.
Esta função dos «vestidos» está sempre presente nas
variantes (com excepção da «carruagem» que, e m o s t r a m o s
porquê, permanece facultativa); elas mencionam assim o ves-
tuário q u e r n u m t e r m o genérico («roupas», «toilette»), quer
p o r u m dos seus constituintes mais visíveis, pelo menos (e
que, p o r t a n t o , escondem mais): «vestido», «saiote». Arti-
culando mais ainda a «toilette», o contista — procedendo a
u m a expansão p o r decomposição morfológica — pode intro-
duzir as «meias», o «penteado» («cabelos d e ouro», «chapéu»,
«fitas»), as «jóias adequadas» («diademas», «colar de péro-
las»), etc. É evidente que estes diversos elementos só são
máscaras na medida em que escondem o ser h u m i l h a d o de
Cinderela: p a r a desempenhar a sua função, ele» devem então
ser o signo ou a figura da / r i q u e z a / ^ Não é assim surpreen-
dente que todas as variantes, de u m a ou de o u t r a forma,
sublinhem o esplendor das roupas, fazendo apelo, por exem-
plo, à cor («azul», «de noite», «do tempo», «brilhante»), ao
material com o qual são confeccionadas («bronze», «prata»,
«ouro», «pedrarias», etc.) ou aos acessórios luxuosos que as
a c o m p a n h a m («colar», «jóias», «diadema»). Além das passa-
gens j á citadas, mencionamos somente a variante 15):

«... e de resto eis um belo vestido, cor do tempo, belos sapatos,


belos chapéus, e aliás tudo enfim. Eis Cinderela vestida».

1 Não ignoramos que existem, fora de França, variantes de Cin-


derela que não fazem apelo à isotopía económica (riqueza ou pobreza):
sabemos, aliás, que os eixos semânticos sobre os quais o casamento
joga, são muito variáveis segundo os meios socio-culturais.

172
b) A este primeiro fazer persuasivo, efectuado por Cin-
derela, responde o fazer interpretativo (ou o poder-fazer enga-
nado) do príncipe: este último, colocado em contacto com
o parecer da heroína, concede muito espontaneamente a esta
(segundo a ordem da verdade) o ser correspondente; dito de
outra forma, ele procede pela transformação

e -^ e

o que autoriza (do seu ponto de vista, na sua «boa fé»: cf. infra)
a colocar Cinderela no lugar A. Apoiando-se na /riqueza/
aparente da heroína, ele atribui-lhe a /elevação/ (que o conto
popular francês, sabemos, pode associar à /pobreza/):

«O filho do rei, quando viu esta jovem vestida de princesa


foi convidá-la para dançar» (v. 34).

Poder-se-ia retomar aqui tudo o que assinalámos dizendo


respeito à maneira como o príncipe se empenha junto à
heroína: a faz dançar (v. 31), lhe faz a corte (v. 12), a recon-
duz à saída do baile (v. 16): todas as atitudes através das
quais ele reconhece à «bela desconhecida» um alto estatuto
social comparável ao seu. O que corresponde — somente para
o filho do rei — a um estado de verdade (isto é: e-Fp).

3.2. O RECONHECIMENTO

A segunda seqüência articula-se à volta da disjunção


espacial, que tem lugar entre Cinderela e o príncipe (nisto ela
está diametralmente oposta à primeira, que diz respeito ao
encontro conjuntivo):

«Ela é a primeira a sair (da Igreja), um pouco antes do


fim (da missa), entra na carruagem e parte à pressa. O príncipe
sai atrás dela para lhe falar, mas ela já lá não estava. Ele pro-
cura por todos os lados, informa-se junto às pessoas, ninguém a
conhecia e não sabia por onde ela tinha passado. Então no
domingo seguinte ele recomendou a dois dos seus homens para
vigiá-la e arrancar-lhe um sapato se não pudessem retê-la.

173
Cinderela tinha chegado à pressa a casa e tinha tido tempo
de se despir e de ir para a cozinha» (v. 5).

Esquemáticamente, esta seqüência subdivide-se também


em duas:

a) A fuga de Cinderela (e às vezes a sua recusa em dizer


quem ela é) constitui, ao nível do saber, um segundo fazer
persuasivo (ou querer-fazer-saber desengañador) que — do
ponto de vista do príncipe — termina por situá-la no segredo
(isto é: e + p : uma coisa que é e que não parece). Com efeito,
em todas as variantes esta partida precipitada, este retorno
à casa, está inscrito acompanhado da acção de despir-se. Na
perspectiva de Cinderela, a transformação operada aqui

p -^ p

fá-la passar do lugar B (que ela ocupava durante o baile:


estado de mentira) ao lugar D, isto é, à situação inicial, à
sua primeira condição:

«Ela partiu um pouco antes do fim da missa, e quando a sua


mãe chegou, a Bela (=Cinderela), como sempre, trazia o seu
vestido de trabalho» (v. 38).

Em compensação, esta mesma transformação

p -» p

considerada pelo príncipe, obriga-o a deslocar Cinderela do


lugar A (em que ele a colocara precedentemente) ao lugar C
(que designa um estado de segredo).

b) Ao segundo fazer persuasivo da heroína responde


então o segundo fazer interpretativo (poder-saber desenga-
ñado) operado pelo filho do rei e que está figurativizado pela
prova do sapato: elemento constantemente presente em todas
as variantes, mesmo nas mais sucintas, cuja função podemos

174
precisar aqui. Ao nível da organização formal, esta prova
parece corresponder à transformação

e desemboca, do ponto de vista do príncipe, no reconheci-


mento do que é Cinderela, sujeito /pobre/ e /humilhado/. Em
outros termos, o saber do filho do rei coincide então com
a posição real da heroína (retornada à sua primeira condição),
no lugar D.
Esta distribuição mostra assim que o que o príncipe
tinha admitido no início como verdade (segundo o verosímil
socio-cultural) — lugar A: e + p: o que é e que parece —
reconhece-se por falso a posteriori, e que, inversamente, o
que lhe poderia ter parecido falso (a saber a condição /pobre/
e /humilhada/ de Cinderela: e-f p) desvenda-se no fim como
verdade. O ponto de vista da heroína é evidentemente diame-
tralmente oposto: para ela, o lugar A representa o falso,
enquanto o lugar D designa a verdade.
•Notar-se-á, aliás, que o «sapato» tem, no conto, duas
funções diferentes e opostas: por um lado, enquanto elemento
constituinte da «toilette», ele se apresenta como parte da figura
da máscara e se inscreve, nesta qualidade, no eixo p -> p. Por
outro, o sapato, considerado como marca (no reconhecimento),
toma lugar no eixo e -^ e, na medida em que ele é conforme
ao ser-corpo da «princesa» (categoria da /elevação/), como
ao de «Cinderela» (categoria da /humilhação/): pelo seu exte-
rior o «sapato» releva da /elevação/, mas pelo seu interior
ele reenvia à /humilhação/. De onde a importância do ajus-
tamento:

— «Ah, meu Deus, se tivésseis visto todas as princesas, todas


as espécies de jovens. A pantufa não calçava nenhum pé,
nenhum, não servia a ninguém (...). Minha Cendrouse aproxima-
-se, experimenta esta pantufa, enfim ela estava moldada a seu pé.
Ela servia-lhe» (v. 13).
— «Todas as jovens do país se precipitaram para calçar o
sapatinho, mas nenhuma podia calçar nele o seu pé. Eis que
a mãe do Rabo de Asno (=irmã de Cinderela) traz a sua. Em

175
vão ela lhe comprimia o pé, os cortava, quanto mais ela os cortava
mais eles inchavam, sendo impossível colocá-los dentro. E a boa
senhora, às escondidas, traz a estrela (=Cinderela) e em seguida,
ela calça o sapato» (v. 32).

3.3. O CASAMENTO COMO MEIO DE ASCENSÃO SOCIAL

De forma conclusiva, notaremos somente que, entre o


incógnito e o reconhecimento (duas formas sintácticas correla-
tivas, em que a segunda pressupõe a primeira), Cinderela não
mudou fundamentalmente, uma vez que ela reencontra, no
termo (desta seqüência), a condição /pobre/ e /humilhada/
que era a sua no ponto de partida. A modalização veredictória
e a aquisição passageira (no modo do parecer) dos «belos
vestidos» e da «carruagem» não lhe conferem na isotopía
económica o poder-se casar. O encontro com o príncipe no
baile ou na missa, possível através do incógnito e da máscara
(roupa, carro), só tem finalmente uma função: a instauração,
no príncipe, da modalidade do querer-casar, instauração efec-
tuada— como mostrámos—pela «sedução» da heroína (que
manifesta assim o seu poder-fazer-querer).
A seqüência intermediária, que provisoriamente desig-
námos como «mediação», corresponde então somente à aqui-
sição do querer-casar por parte do filho do rei, processo de
tipo transitivo, operado por Cinderela. Competirá em seguida
(isto é, após o reconhecimento) — e trata-se então da seqüên-
cia final — ao príncipe proceder ao casamento, unir-se a uma
jovem de origem humilde e pobre, se ao menos for esta a
sua vontade: o que acontece efectivamente em Cinderela, como
em todos os contos em que intervém uma tal disparidade
socio-económica entre os dois participantes (cf. o que dissemos
mais acima sobre a comunicação participativa, segundo a qual
o príncipe não decai aliando-se a uma noiva de origem muito
modesta — o que está em contradição com a prática social
corrente, segundo a qual, em conformidade com as prescri-
ções dos sistemas de valores fechados, é degradante, para
alguém de posição social elevada, unir-se a uma pessoa de
posição inferior).

176
A manipulação do que poderíamos chamar os «signos
exteriores da riqueza» (aqui os «belos vestidos» e a «carrua-
gem») permite à Cinderela suscitar no filho do rei o querer-
-casar. Dito de outra forma, quem se pretende casar deve
previamente dispor de bons trunfos socio-económicos: mesmo
se ela só os dispõe momentaneamente (no modo do parecer),
Cinderela sabe fazê-los intervir no seu propósito ou, ao menos,
na primeira etapa da sua busca: proceder de maneira a que
o príncipe deseje casar com ela.
Mas o casamento, por sua vez, aparece menos como um
fim em si (estabelecimento do duplo laço sexual e jurídico)
que como um meio — e, do ponto de vista da heroína, como
um estratagema — para realizar a ascensão social desejada:
a relação de parentesco podendo mesmo chegar a transfor-
mar-se a si própria em relação de dependência (na hierarquia
social):

— «Depois, uma vez casada, ela tomou as suas duas irmãs


como criadas» (v. 31);
— «Alguns dias depois foi celebrado o casamento da Bela
(=Cinderela) com o filho do rei; e a mãe, bem como a Feia
( = i r m ã de Cinderela), foram obrigadas a servi-los como suas
criadas».

Como seguidamente acontece no conto popular, o casa-


mento equivale à modalidade do poder (fazer/ser): se se tratar
de uma jovem, ele é o operador da ascensão social; no caso
do rapaz, ele é o meio de aceder ao governo do reino.

N. B. É evidente que não quisemos propor aqui uma descrição com-


pleta ou exaustiva de Cinderela: só retivemos neste conto os elementos
que nos pareceram os mais pertinentes para uma ilustração da
semiótica narrativa e discursiva.

(2
Í77
(Fazer transformador)
Disjunção -ED- » Conjunção
inicial final
(SI U -52) «CASAMENTO» (SI n S2)
Cinderela/Príncipe Performance Cinderela + Príncipe
( celibato) (casar) (aliança)

> do |PRINCIPE|

poder 1
(inato) saber ycoínpetência
Ausência de querer Ftl—• querer J
(aquisição)
Performance
(seduzir-)

> de I CINDERELA |

r querei- -i
( m a t o ) ^ sabei- ' ScompeíênciaJ
não-podcr [Ft}—»- poder J
(aquisição)
Performance -j
(ajudar)

da MADRINHA

querer i

Í saber
poder J
yCom petencia

| F t | : fazer transformador
distribuição sintagmática
I : implicação lógica

178
BIBLIOGRAFIA
(Alguns elementos de leitura de entre outros possíveis)
ALEXANDRESCU S . Logique du personnage. Mame, 1974.
ARRIVÉ M. et COQUET J . C . Sémiotiques textuelles. Langages 31, 1973.
AVALLE d'A. « System and structures in the folktale », 20th Century Studies, 3, 1970.
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181
INDEX

acontecimento (sintaxe do-) 109 catalise 93


actante 77, 123, 124; 10, 25-26 classema 58, 61-63, 67
actancial (modelo-) 80-94 código 13)1-132
actancial (papel-) 97, 123-124; 26 cognitiva (dimensão-) 23, 31
actancial (sintaxe-) 19-20 cognitivo (fazer-) ICO
acto 19 cognitivo (valor-) ' 22
actor 121, 124-125 combinatoria 58, 65, 105
actorial (estrutura-) 121,, 123-125 comunicação 41, 64, 85, 139; 16, 29
actualizado (objecto-) 28 comutação 49, 58, 93
actualizado (sujeito) 27 competência/performance
adequação 46 %, 129; 22-25
adjuvante/oponente 8íi, 99; 26 competente (sujeito-) 97; 23
algoritmo 127 complexo (eixo do-) 73
antes/depois 127 complexo (termo-) 75
anti-destinador/destinatário 128 conceptual (corte) 49, 107
anti-programa 128 condensação/expansão 37
anti-sujeito 128; 15 conformidade 33
autonímica (relação-) 69 confrontação 108, 15
antropomórfica (dimensão-) conjuntivo (enunciado -) 83-84
105, 107, 111, 129 conjunção/disjunção:
apropriação 91 69, 71, 72, 82, 83
articulação '.51, 55-56 conteúdo/expressão 48
atributivo (enunciado-) 83-84 conteúdo (manifestação do-)
atribuição 98-99, 107 65, 67, 130
aquisição 91 contexto 131-132
axiológico 129; 29 contextual (sema-) 61-63
contínuo/discreto 55
B contradição (relação de-)
binaridade 69 70, 72, 73, 75, 106
busca .128 contraditório 71, 72

J83
contrario 72 específico (sema-) 118
contrariedade (relação de-) esquema 73
70, 72 estado (enunciado de -)
contrato: 94, 127, 128, 129; 29 82, 122, 18-19
conversão 135 estado (sujeito de -) 18
cosmológico (nível-) 61, 130 execução 30
crer 96, 101 expansão/condensação 37-38
expressão/conteúdo 48
D exteroceptividade 61, 62, 130
decisiva (prova-) 13
dedutivo (procedimento-) 45
deixis 73 factitiva (modalidade-) 96; 32-33
descontinuidade 55 falso 100
descritivo (valor-) 22 fazer
despossessão 91 87, 95, 96, 98, 107, 108, 129, 138
destinador/destinatário: fazer (enunciado de-) 88, 122; 18
85, 129; 25, 30, 31-33 fazer (sujeito do-) 96; 18
dever-fazer 96 fema 51
diferencial (desvio-) 50 figurativo (fxercurso-) 117, 119
diferencial (função-) 56, 58 figura 61, 64, 107, 115-117, 122
dimensão 72-73 forma/substância 52
discreta (unidade-) 76 formal (semiótica-) 46-47
discreto/contínuo 55 frástica (semântica-) 37
discurso (lingüística do-) 35 função 77, 80; 9
discursiva (componente) 130 funcional (análise'-) 78
discursiva (configuração-) fundamental (organização -) 76
115.117, 125; 17 fundamental (sintaxe-) 106
discursivo (actor-) 125
disjuntivo (enunciado-) 84
disjunção/conjunção:
69, 71, 12, 82, 83, 84, 127 genérico (sema-) 118
documental (linguagem-) 9 glorificadora (prova -) 13
dom 19 gramática
dominação 108, 32 52, 67-68, 107-108, 135
duplicação 12 gramatical (componente -)
52, 122, 123
E gramatical (relação-) 53
eixo 73
H
elipse 93
emissor 138 hierarquia 45, 72, 110
enunciado 47 hiperotáxica (relação-) 95
enunciação 47 , 95 hiponímica (relação-) 69, 72
epistémico (destinador) 34 imánente (nível-) 55, 61, 67
equilíbrio 30 implicação (relação de-)
equivalência 43, 107, 108 73, 93, 108

184
individuação (sema de-) 121 narrativa (gramática -) 107
indutivo (procedimento-) 45 narrativa (isotopía-) 130
integrada (unidade-) 77 narrativa (seqüência-) 94
interpretativo (fazer-) 109; 34 narrativa (unidade -) 92, 127
interpretação 47 narratividade 92; 7-8
interoceptividade 63 narrativo (anti-programa-) 128
investimento 130 narrativo (enunciado-) 92, 37
isomorfismo 51 narrativo (esquema -) 12-17
isotopia 63-64, 117, 132 narrativo (percurso-) 16
isotopías (conector de-) 117 narrativo (programa-)
89, 128, 129; 17-21
narrativo (sintagma) 92
junção 82 neutro (eixo do -) 73
neutro (termo do-) 75
nivel 45, 53, 133-137
noológico (nivel-) 62, 63
leitura 119
lexemática (figura-) 117 nuclear (figura-) 59, 130
lexema 58, 66, 116 nuclear (sema-)
lingüística (forma-) 66 58, 67, 114, 115, 130
lingüístico (signo-) 48, 135
O
lógica 46, 107-10«; 15
lógico-semântico 105 objectivada (estrutura actorial-)
125
M objectivo (valor-) 100
macro-narrativa 19 objecto/sujeito 82-i84; 16
manifestação 46, 61 objectos (enunciado juntor de-)
manifestação (nível da-) 90, 125
50, 55, 135, passim operação 68, 74, 105, 107
manipulação 33 operações (sintaxe das-) 98
memória 102-103; 26 operadores (sintaxe dos -) 98
mentira 100 oponente/adjuvante 86
metalinguagem 43 orientação (relação de-) 106, 108
meta-saber 101
metassememas: 55, 65, 66, 76, 132
micro-narrativa 19 papel 120
micro-universo 75 paradigmática (disjunção-) 93
modal (valor-) 99; 23 paradigmática (junção -) 89
modalidade 94-95; 23 paradigmática (memória-) 103
morfología 51, 68 paradigmática (projecção-) 11
motivadora (lógica-), 97 paradigmático (contexto-) 131
paralelismo 51, 56
N
paralexema 66
narrativa 126-132; 14, 19 participativa (comunicação -)
narrativa (estrutura-): 91; 32
,123, 135; 11 patamar 136, 137

185
performance sanção 33
94, 96, 107, 128, 129; 21-22 segredo 100
performante (sujeito-) 97
semântica (componente)
perspectiva 90
persuasivo (fazer-) 100 52, 55, 122, 123
pertinência 43, 64 semântica (estrutura -) 51
pluri-isotopia 64, 117 semântica (isotopía-) 64
poder-fazer 96 semântica (restrição-) 114
polémica (estrutura-) 128; 16 semântica (unidade-) 53, 55
posição 97; 24, 26 semântico (eixo-) 69
pragmática (dimensão-) 22, 31 sema 51, 55, 56-57, 67, 68
pragmático (valor-) 100; 23 semema 66, 67, 7i6-77, 113, 130-132
predicado 77 semémico (percurso-) 116
pressuposição 73; 15 semiológica (isotopía-) 65
pressuposições (lógica das-) 97 semiológico (nível-) 61, 62
privação 91 semiotico (actante-) 126; 20
processo/sistema semiotico (quadrado-) 70, 71-75
68, 73, 78, 79, 128-129 semica (categoria-) 51, 69, 70
profunda (estrutura-) 134; 8, 10 semico (núcleo-) 58-60
profundo (nível-) sentido 41, 42, 138
67, 104-111, 128-129 sentido (efeito de) 59, 60, 130
prova 91, 94, 127; 11 ser/parecer lOO-lOl
psico-semiótica 88 ser/ter 83-84, 95
significação 41, 42, 138
significação (estrutura elementar
qualificação 77 da-) 69, 74-76
qualificadora (prova-) 13
qualificativa (análise -) 78 significado 50-52
querer (sujeito do-) 98 significante 50-52
querer-fazer 96 significante (conjunto-) 48
sócio-semiótica 88
R solidariedade (relação de-) 73
realização 84 subjectividade (estrutura acto-
realizado (objecto-) 28 rial-) 125
realizado (sujeito-) 28 substância/forma 52
realizado (valor-) 84 substituição 92
receptor 138 sujeito/objecto 82-84
redução 44 sujeitos (enunciado juntor de-)
reflexivo/transitivo
89-90, 125
88, 96, 101, 125
relação 53, 68, 73, 106 superficial (nível-) 67, 129-130
renúncia 91 superficial (organização-)
68, 79, 105-111, 134
sintáctico (actante-) 20
saber (sobre o ser) 101-102 sintagmática (junção-) 87-88
saber-fazer 97, 102-103; 33 sintagmática (memória) 89-90

186
sintagmático (contexto) 132 transformação 87, 93
sintaxe 51, 77, 106 transformador (fazer-) 88
sistema/processo transitivo/reflexivo
68, 73, 78, 79. 128-129 88, 96, 101, 125
triplicação 12

taxinómico (modelo-) 106, 128


teleológica (relação-) 82 valor (objecto de-) 16
tema 117-119 variante 118
temático (papel-) 119,, 120-124 verdadeiro 100
temporal (dimensão-) 127 veridicção 100
ter/ser 83-84 veridictória (modalizaçao-)
termo 53, 106 99-101
textual (manifestação-) 50 verificação 46
textual (nível-) 51 virtualização 84
totalidade 76 virtual (objecto-) 28
transaccional 16 virtual (sujeito-) 98; 28
íranscodificação 43 virtual (valor-) 84

187
INDICE

Prefácio (A. J. Greimas) 7


Introdução 35

A ABORDAGEM METODOLÓGICA 39

0. Perspectiva semiótica 41
1. Projecto semiótico 41
2. Ponto de partida ' 47
3. Delimitação 48

1. Componente «morfológica» 55
0. Uma articulação 55
1. O sema como traço distintivo 56
2. O núcleo sémico 58
3. O sema contextual ou classema 61
4. A isotopía 63
5. Sememas e metassememas 65
6. Em direcção à forma lingüística 66

2. Componente «sintáctica» 67
1. Organização fundamental 68
2. Organização superficial 76
3. Organização superficial e organização profunda . . . 104

3. Discursivo e narrativo 113


(«morfología» e «sintaxe» ao nível superficial)
0. Repetição 113
1. Organização discursiva 115

189
2. Hegemonia das estruturas narrativas 120
3. Observações sobre uma unidade discursiva . . . . 126

4. Para concluir 133


1. A importância dos níveis 133
2. Semiótica e imaginário 138

LMA LEITURA SEMIÓTICA DE «CINDERELA» 141

1. A organização geral 143


1. Seqüência inicial e seqüência final 143
2. A ordenação sintáctica 149

2. A introdução de uma mediação 155


1. A conjunção espacial 156
2. A conjunção amorosa 159
3. A obtenção do poder (-fazer-querer) 162
4. A distribuição dos papéis sociais 166

3. A modalização veredictória da mediação 169


1. Um encontro enganador 171
2. O reconhecimento ^. . . 173
3. O casamento como meio de ascenção social . . . . 176
Bibliografia 179

190
Execução gráfica
da
TIPOGRAFIA LOUSANENSE
Lousã Desembro/79

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