Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
INTRODUÇÃO
À SEMIÓTICA
NARRATIVA
E DISCURSIVA
Prefácio de
A. J. GREIMAS
LIVRARIA ALMEDINA
COIMBRA—1979
Título original: «Introduction à la Semiotique Narrative et Discursive»
Librairie Hachette
Tradução de
NORMA BACKES TASCA
(Assistente da Faculdade de Letras do Porto)
Prefácio de A. J. GREIMAS
0. OBSERVAÇÕES INTRODUTÓRIAS
8
e distinguindo, por outro lado, tão nitidamente quanto pos-
sível, o que pode ser considerado como uma aquisição da
semiótica: projectos e hipóteses que querem abrir a via para
novas investigações.
10
funda em relação às estruturas de superfície que são os textos-
-ocorrências.
/ partida / vs / retorno /
/ criação ida falta / vs / liquidação da falta /
/ estabelecimento do interdito / vs / ruptura do interdito /, etc.
1. O esquema narrativo
12
subentendida pelo discurso de superficie que só a manifesta
parcialmente. Pode-se perguntar nomeadamente o que quer
dizer neste caso a noção de «sucessão», elemento capital da
definição de iPropp: designa ela simplesmente o facto de que
os enunciados narrativos se sucedem ums aos outros no mo-
mento da manifestação linear da narratividade sob a forma
de discurso — o que, mesmo não sendo falso, nos reenviaria
novamente para a concepção da «morfología» como um simples
resumo de acontecimentos relatados no conto — ou convida-
-nos antes a considerar o dispositivo sintagmático da narrativa
como tendo um «sentido», uma direcção, uma intencionali-
dade subjacente cuja interpretação nos caberia propor? Ê esta
segunda hipótese que reteremos de momento.
A atenção do leitor de Propp não deixava de ser atraída,
dizíamos, pela recorrência das três provas que articulam como
outros tantos tempos fortes o conjunto da narrativa.
São elas:
— a prova qualificadora;
— a prova decisiva; e
— a prova glorificadora.
13
é convocado a preencher pelos seus actos, executando alguma
coisa e revelando-se a si próprio no mesmo gesto; o reconhe-
cimento, esse olhar do outro que atribui os actos ao seu
autor e o constitui em seu ser.
Esta é evidentemente apenas uma versão, entre outras
que o imaginário humano nos oferece, do «sentido da vida»,
apresentado como um esquema de acção: as variações sobre
este tema são numerosas e abrem assim todo um leque de
ideologias. O que conta de momento é o reconhecimento de
um princípio de organização invariante que permite consi-
derar este esquema como um conceito operatorio. O agen-
ciamento proppiano sugere-nos a possibilidade de 1er qualquer
discurso narrativo como uma busca do sentido, da signifi-
cação a ser atribuída à acção humana: o esquema narrativo,
aparece, portanto, como a articulação organizada da activi-
dade humana que o erige em significação.
•Uma tal concepção do esquema narrativo — embora
traga um começo de resposta à questão muito controversa
de saber o que é a narrativa — é evidentemente apenas uma
hipótese susceptível, no entanto, de convocar à sua volta
numerosas investigações particulares. O valor do modelo
proppiano, vê-se bem, não reside na profundidade das aná-
lises que o suportam, nem na precisão das suas formulações,
mas na sua virtude de provocação, no seu poder de suscitar
hipóteses: é a ultrapassagem da especificidade do conto mara-
vilhoso em todos os sentidos que caracteriza a preocupação
da semiótica narrativa desde os seus primordios. O alarga-
gamento e a consolidação do conceito de esquema narrativo
canónico aparece assim como uma das tarefas presentes.
Se a «sucessão» proppiana, interpretada como uma inten-
cionalidade significante e situada a um nível mais profundo do
que a simples linearidade da manifestação discursiva, permite
postular a existência de um esquema narrativo organizador,
a articulação lógica deste esquema dá, ao contrário, a imagem
de uma «sucessão às avessas». 'As três provas, para falar
somente delas, sucedem-se, efectivamente, na linha temporal
(ou gráfica), umas às outras, mas não existe nenhuma neces-
sidade lógica de que a prova qualificadora seja seguida de
14
uma prova decisiva ou de que esta seja sancionada: quantos
exemplos de sujeitos competentes que nunca passam à acção,
quantas acções meritorias nunca reconhecidas. A leitura às
avessas instala, ao contrário, uma ordem lógica de pressuposi-
ção: o reconhecimento do herói pressupõe a acção heróica;
esta, por sua vez, pressupõe uma qualificação suficiente do
herói (abstracção feita, evidentemente, do dispositivo dos
valores de verdade que, sobredeterminando diferentemente
as provas, introduz novas variáveis). A intencionalidade do
discurso narrativo, simples hipótese à partida, encontra a
sua justificação, à semelhança do desenvolvimento do orga-
nismo em genética, no agenciamento lógico reconhecível a
posteriori.
1. 2. A confrontação
15
cursos narrativos, próprios de cada um dos sujeitos (sujeito
e anti-sujeito) instalados na narrativa. Estes percursos podem-
-se desenrolar separadamente, dominando um deles, por exem-
plo, o início e o outro o final da narração: é necessário, entre-
tanto, que eles se encontrem e se sobreponham num dado
momento, para produzir uma confrontação dos sujeitos que
constitui, por conseguinte, um dos eixos do esquema nar-
rativo. A confrontação, por sua vez, pode ser quer polémica,
quer transacional, manifestando-se ora por um combate, ora
por uma troca, permitindo esta distinção reconhecer duas
concepções das relações inter-humanas (luta de classes, por
exemplo, oposta ao contrato social) e dividir as narrativas,
segundo este critério, em duas grandes classes.
S, U O n S2
16
Entretanto — e isto é talvez o mais importante — vê-se
aparecer aqui uma nova distinção entre dois níveis de pro-
fundidade desigual: se a narrativa parece subentender uma
espécie de sintaxe elementar de transferências, os desloca-
mentos dos objectos são ao mesmo tempo recobertos, a um
nível mais superficial, por configurações discursivas de todas
as espécies (provas, raptos, fraudes, trocas, dons e contra-
-dons) que os desenvolvem de maneira figurativa. Disto resulta
que os dois níveis assim reconhecidos podem ser descritos
e tratados separadamente e que, para dar conta do funciona-
mento interno do texto narrativo, é necessário fixar, por um
lado, regras de circulação dos objectos de valor, e, por outro,
constituir uma tipologia das configurações discursivas gra-
maticais, através das quais estas transferências se manifes-
tam: novas regras de restrição, que precisassem as condições
de sutura das configurações com as transferências, estabe-
leceriam a ponte entre as representações lógica e figurativa
da narratividade.
A circulação dos objectos não é, portanto, qualquer
coisa de mecânico e de evidente; semelhante a uma bola que,
no momento de um jogo de futebol, muda continuamente de
campo, o objecto-valor necessita de ser arremessado e apa-
nhado pelos sujeitos performantes. As configurações discur-
sivas, que um pouco rapidamente situámos na dimensão figu-
rativa do texto, recobrem não somente as transferências de
objectos, mas também uma seqüência de actos efectuados
pelos sujeitos que realizam as transferências: dito de outra
forma, a circulação dos objectos pressupõe a colocação prévia
dos sujeitos que os manipulam, uma estrutura da comuni-
cação no interior da qual os objectos circulariam de forma
semelhante às mensagens.
2. O programa narrativo
2. 1. Os enunciados de estado
2 17
ções lógicas, somos levados a reconhecer e a distinguir formal-
mente, sob esta cobertura transparente, duas espécies de
sujeitos: os sujeitos de estado e os sujeitos de fazer, consi-
derando os primeiros, devido às suas junções (conjunção e
disjunção) com os objectos, como depositários dos valores,
e os segundos como sujeitos agentes que, operando junções,
transformam os primeiros. Os sujeitos de estado definem-se,
na sua existência semiótica, pelas suas propriedades (qualifi-
cações, atribuições): com efeito, eles só podem ser reconhe-
cidos como sujeitos na medida em que estão em relação
com objectos de valor e participam em diferentes universos
axiológicos; os objectos de valor, por sua vez, só são valores
se forem objectos visados pelos sujeitos. Dito de outra forma,
não há definição possível do sujeito sem a relação deste com
o objecto, e inversamente.
Portanto, a representação canónica do sujeito só pode
tomar a forma de um enunciado de estado, cuja função é
constituída pela relação entre o sujeito e o objecto:
S n O ou S U O
2. 2. Os enunciados de fazer
S u O -» S n O
18
transformador, exercido por um sujeito de fazer e visando,
enquanto objecto, um enunciado de estado que deve ser trans-
formado: o enunciado de fazer é, portanto, um enunciado que
rege um enunciado de estado. Notando de maneira redun-
dante o sujeito de fazer como Si e o sujeito de estado como S2,
pode-se representá-lo da seguinte forma:
2. 3. A sintaxe actanciàl
19
Para nós, a diferença entre a «micro-narrativa» e a «macro-
-narrativa» é uma diferença de natureza e não de dimensão.
Em primeiro lugar, impõe-se uma precisão terminoló-
gica. Falando do enunciado de fazer como a representação
de um acto produtor de estado, omitiu-se assinalar — como
se fosse evidente — que se trata aqui não de um acto efecti-
vamente realizado, mas de um acto contado, de um acto
«em papel», por assim dizer. Por isso é preferível considerar
a fórmula em questão como a que representa não o acto, mas
o programa narrativo dando conta da organização sintáctica
do acto.
Pode-se, portanto, retomar a observação já assinalada
em 2.2.1., segundo a qual o enunciado de estado pode servir
para definir qualquer actante do esquema narrativo num
momento qualquer do seu desenvolvimento, acrescentando,
para a completar, que ela é válida também para os enun-
ciados de fazer, susceptíveis de definir como sujeito de fazer
diferentes actantes da narração (destinador, sujeito, anti-
-sujeito, etc). Disto resulta que o sujeito de fazer e o sujeito
de estado, que acabamos de definir, não são actantes semió-
ticos que participam directamente, como tais, do esquema
narrativo que organiza o discurso, mas actantes sintácticos,
espécies de indicadores sintácticos dos modi operandi e signi-
ficandi, que permitem calcular operações efectuadas por dife-
rentes actantes e medir o seu «ser» em progressão e/ou em
diminuição constante, no momento do desenvolvimento da
narrativa. Dito de outra forma, os programas narrativos são
unidades narrativas que relevam de uma sintaxe actancial
aplicável a todas as espécies de discursos; eles dão conta da
organização dos diferentes segmentos dos esquemas narrati-
vos, sem serem por isso constituintes deste esquema que
corresponde, no sentido que Martinet dá a este termo, a uma
«articulação» outra do discurso.
Os programas narrativos (que abreviamos por PN) são
unidades simples, mas susceptíveis de expansões e de comple-
xificações formais que não mudam em nada o seu estatuto
de fórmulas sintácticas aplicáveis às mais diversas posições
narrativas.
20
a) Assim, já mencionámos, falando das provas, os factos
de dupHcação ou de tripUcação que são, na reaUdade, apenas
multiplicações quantitativas de PN, em que as significações
funcionais (no interior do esquema narrativo) de intensifi-
cação e de totalização são patentes.
b) Podem-se acrescentar a isto as multiplicações de PN
devidas às multiplicações de objectos de valor visados (o
Pequeno Polegar primeiro ressuscita os seus irmãos e a seguir
adquire riquezas).
c) Uma relação hipotáxica pode reger dois ou vários
PN ligados entre si, um iPN habitual precedendo o PN prin-
cipal (o macaco, para chegar à banana, procura primeiro a
vara).
d) Pode-se finalmente introduzir o cálculo dos PN cor-
relacionados, dando conta das transferências de objectos e da
comunicação entre sujeitos (cf. «Un problème de sémiotique
narrative: les objets de valeur», in Langages, n.° 31).
As lista das complexificações dos PN não é exaustiva,
mas dá, no entanto, suficientes indicações sobre a possibili-
dade de uma formalização mais desenvolvida da sintaxe
actancial, instrumento indispensável da análise dos discursos.
1. A performance do sujeito
21
herói, após a sua busca, pode enfim realizar a missão de que
está incumbido: é o momento do percurso narrativo que estru-
turalmente iparece mais próximo da definição do PN como
acto performador.
No entanto, é preciso não esquecer que o PN é a forma
canónica que dá conta, em princípio, de qualquer acto: a
sua projecção, para fins de identificação, no sintagma do per-
curso narrativo considerado, deve ser acompanhada da colo-
cação de um certo número de restrições que, mesmo salva-
guardando as suas características de acto, terão por fim espe-
cificá-lo, distinguindo-o das outras manifestações possíveis
do PN. Eis as principais restrições:
a) É necessário, em primeiro lugar, postular a reunião
do sujeito de fazer e do sujeito de estado em um só actante
narrativo: é com esta condição que o sujeito semiótica pode
ser reconhecido como ente e como agente. (Vê-se que, a con-
trario, a separação do sujeito de fazer e do sujeito de estado,
manifestada na configuração «dom», por exemplo, caracteriza
a relação entre o Des tinador e o Destinatário.)
b) O sujeito assim constituído deve visar o objecto
investido de um valor descritivo. Os valores descritivos defi-
nem-se pela exclusão dos valores modais (v. infra) e dividem-se
em valores pragmáticos (relevando de todos os universos
axiológicos possíveis) e valores cognitivos (constituídos não
pelo fim do objecto de valor, mas pelo saber sobre este
objecto): conforme a natureza dos valores visados, dir-se-ia,
no primeiro caso, que o percurso narrativo se situa na dimen-
são pragmática e, no segundo, na dimensão cognitiva, que o
sujeito exerce o fazer pragmático ou o cognitivo.
c) A terceira restrição, finalmente, incide sobre o modo
de existência semiótica do programa narrativo: o PN, para
aplicar-se à componente do percurso narrativo que exami-
namos, deve ser realizado nela, chegando o fazer exercido ao
resultado inscrito no enunciado de estado (conjunção ou dis-
junção).
(O PN, submetido a estas restrições — mas susceptível
de expansões mencionadas em 2.2.3. —, define a componente
do percurso narrativo chamada performance do sujeito.
22
2. A competência do sujeito
iS n Ov (v/d + p/s)
23
o objecto modal em questão é constituído por um con-
junto de sobredeterminações do fazer, isto é, de propriedades
que o fazer deve possuir antes de se tornar efectivo, previa-
mente à sua realização: conjunto com este objecto, o sujeito
competente aparece então dotado de um fazer actualizado,
como um sujeito semiótica em potência.
24
tram em sincretismo, o sujeito operador aparece aqui como
uma posição sintáctica disponível, susceptível de ser ocupada
por diferentes actores. Entre o simples dom do Destinador e
as qualificações adquiridas pelo sujeito ele mesmo — duas
representações imaginárias polarizadas das origens da com-
petência, que correspondem grosso modo a uma série de
dicotomías, tais como o determinismo e o livre arbítrio, o
ineísmo e o aquisicionismo — situam-se formas ambíguas,
termos complexos dominados por um ou outro dos dois
pólos: o mais belo exemplo disto é a prova qualificadora,
característica do conto maravilhoso, que compreende o com-
bate simulado que nos faz crer que o sujeito se torna compe-
tente pelos seus próprios meios, e que ao mesmo tempo deixa
transparecer, sob a máscara do adversário, a figura do Desti-
nador, verdadeiro doador da competência.
25
cada vez a sua posição sintagmática (compreendida como a
situação do estado do sujeito em relação ao conjunto do
percurso) e o estatuto modal que o caracteriza a cada etapa
deste percurso (o sujeito competente é sucessivamente sujeito,
por exemplo, segundo o querer-, poder-, saberíazer). Assim,
na medida em que o percurso narrativo se decompõe numa
seqüência de estados narrativos, compreender-se-á por papel
actancial a definição ao mesmo tempo posicionai e modal de
cada um destes estados.
Surge uma primeira dificuldade quando se quer apreen-
der esta concepção dinâmica do actante semiótico: percebe-se
logo que o sujeito não é uma simples sucessão de papéis
actanciais que ele assume, mas que, ao contrário, ele é, a
cada estado do percurso, o conjunto organizado dos papéis
actanciais adquiridos ao longo do percurso precedente; que
o «herói», por exemplo, é somente o sujeito considerado no
instante em que sai vitorioso do seu combate decisivo, mas
que tem atrás de si todo um «passado» que, desde as
suas «infâncias» e através das provas, o fez como é. Esta
é uma das grandes dificuldades, mas também o principal
interesse da semiótica discursiva: o discurso, contraria-
riamente à frase isolada, possui uma «memória»; se, de um
certo ponto de vista, se pode dizer que ele é feito de uma
sucessão de enunciados, deve-se acrescentar imediatamente
que, semelhante ao «si» francês que pressupõe um «non»
anterior, um enunciado inscrito na continuidade do discurso
«recorda-se», e que um estado definido pressupõe um estado
latente anterior. Disto resulta uma espécie de incompatibi-
lidade de humor — ou de natureza? — entre a análise do
discurso narrativo e a gramática transformacional que só
trata das transformações entre enunciados susceptíveis de
ser colocados em paralelo, e não das seqüências ordenadas
de enunciados. É também aqui que reside a dificuldade de
utilizar, para este género de análise, as regras experimentadas
do cálculo lógico que assenta no princípio de substituição de
enunciados ou de segmentos tautológicos.
Seria agora mais fácil distinguir o papel actancial do
estatuto actancial: enquanto o papel actancial é apenas
26
um excedente que se acrescenta, num dado momento do per-
curso narrativo, ao que já constitui o actante após a progres-
são sintagmática do discurso, o estatuto actancial é o que
o define, tendo em conta a totalidade do seu percurso ante-
rior, manifestado ou simplesmente pressuposto. Assim, por
exemplo, o adjuvante é um actor que assume um papel actan-
cial do sujeito do qual ele está disjunto enquanto actor; o
estatuto actancial do sujeito, no momento da aquisição do
adjuvante, é constituído pelo seu próprio percurso anterior,
mais o adjuvante.
27
tica. Se um objecto só se torna um valor como projecção do
«querer-ser» do sujeito, isto é, dotado do estatuto modal de
«ser-querido», é possível conceber-se que, antes de se tornar
um valor para o sujeito, ele não deixava de ter por isso uma
existência virtual no seio do universo axiológico caucionado
actancialmente pelo Destinador. (Pode-se dizer, continuando,
que a assunção pelo sujeito e a sua inscrição no pro-
grama narrativo actualiza o valor, que a conjunção com o
sujeito o realiza, que uma renúncia o revirtualiza ou que uma
disjunção forçada o reactualiza... Encontramos assim não
somente os três modos da existência semiótica dos objectos
de valor:
1. Algumas conclusões
28
2. Uma exploração teórica mais ampla do reconheci-
mento dos percursos é igualmente concebível. Viu-se que,
abstracção feita dos conteúdos investidos nos discursos nar-
rativos e dos sistemas de valores que participam na sua cons-
trução, é possível reconhecer os sujeitos no seu ser (nas suas
relações com os objectos de valor) e na sua capacidade de
fazer (de produzir actos organizados em acções), sendo qual-
quer sujeito susceptível de ser dotado de uma definição ao
mesmo tempo modal e posicionai, isto é, formal e não subs-
tancial. A semiótica narrativa fornece assim um aparelho
processualista, com vista à constituição de uma tipologia dos
sujeitos semióticos, contribuindo por este meio para a elabo-
ração de uma semiótica das culturas.
3. Por outro lado, o exame do esquema narrativo mos-
trou-no-lo como dotado de uma estrutura transaccional e/ou
polémica, colocando em cena e confrontando sujeitos com
competências variáveis, com intencionalidades muitas vezes
conflituosas. A partir de uma tipologia dos sujeitos, que é
de ordem taxinómica, uma sintaxe dinâmica, concebida como
uma estratégia da comunicação — entre sujeitos competentes
que trocam quaisquer objectos de valor — poderia ser cons-
truída.
4. Este breve exame recapitulativo já permite medir o
caminho percorrido desde a redescoberta, em França, das
primeiras análises narrativas de Propp, caracterizado pela
elaboração de uma aparelhagem metodológica mais rigorosa,
e também pelo alargamento da problemática semiótica. Entre-
tanto, se no domínio da semiótica da acção, tal como acaba-
mos de circunscrevê-lo, o semiótico tem às vezes a impressão
de avançar com o pé firme, outros campos, e não dos meno-
res, permanecena ainda inexplorados.
2. O enquadramento axiológico
29
sujeitos, como o lugar privilegiado do esquema narrativo.
Entretanto, este núcleo está longe de constituir toda a nar-
rativa: ele é envolvido, ao contrário, a um nível hierarquica-
mente superior, por estruturas actanciais e desenvolvimentos
narrativos de natureza diferente.
Assim, o simples facto do desdobramento da narrativa,
característico do conto maravilhoso, obriga-nos a admitir a
existência de uma certa organização económica que subsume
as duas narrativas: os seus percursos narrativos — os do
sujeito e do anti-sujeito — desenvolvem-se em direcções opos-
tas e reduzem-se a uma fórmula de compensação, segundo a
qual a destruição da ordem social é seguida do retorno à
ordem, e a alienação é reparada pelas recuperações de objec-
tos perdidos. Tudo se passa como se a organização narrativa
obedecesse a um princípio de equilíbrio que transcende e
rege as acções humanas realizadas pelos sujeitos.
O que é válido para o cruzamento dos percursos dos
sujeitos, também o é para a componente aoção tomada sepa-
radamente. Ela encontra-se anunciada e enquadrada pela
estrutura contratual que domina o desenvolvimento da nar-
rativa: o contrato, estabelecido desde o início entre o Desti-
nador e o Destinatário-sujeito, rege o conjunto narrativo,
aparecendo então o resto da narrativa como a sua execução
pelas duas partes contratantes, sendo o percurso do sujeito,
que constitui a contribuição do Destinatário, seguido da
sanção ao mesmo tempo pragmática (a retribuição) e cogni-
tiva (o reconhecimento) do Destinador.
A acção do sujeito, consequentemente, encontra-se enqua-
drada por dois segmentos contratuais: o seu estabelecimento
e a sua sanção, que relevam de uma instância actancial supe-
rior, outra que a do sujeito. Dir-se-ia que existe, a montante,
uma instância ideológica para informar a acção e, a jusante,
uma nova instância ideológica para interpretá-la e homologá-la
com o universo axiológico que ela detém. À maneira da língua
que, como sistema, funda e instrui a fala como prática da
linguagem, a acção do homem parece, nesta perspectiva, ter
sentido somente se ela estiver inscrita no universo dos valo-
res que o circunda.
30
São conhecidos os constrangimentos que a sintaxe nar-
rativa de superfície impõe a esta forma de imaginário, exi-
gindo a colocação de actantes antropomórficos. Aparecem
assim — reunidos muitas vezes num arqui-actante — duas
figuras de Destinadores, o primeiro como o depositário dos
valores que procurará inscrever nos programas de acção, o
segundo como o juiz da conformidade das acções em relação
à axiologia de referência.
31
Destinador somente o quadro em que se exerce a sua comu-
nicação participativa: enquanto o sujeito hipoteca na tran-
sacção a totalidade do seu fazer e do seu ser, o Destinador,
soberano poderoso, se oferece tudo, nada perde com isso da
sua substância.
Estes são somente traços superficiais, reconhecidos
quando do exame do esquema proppiano. Determinações
mais precisas só aparecerão se considerarmos separadamente
os dois segmentos — inicial e final — dos percursos do Des-
tinador.
A tomar só o primeiro segmento deste percurso, observa-
-se imediatamente que a diferença entre este Destinador origi-
nante e o sujeito reside no seu estatuto modal respectivo:
enquanto o sujeito semiótico é definido como um sujeito
de fazer, pela sua capacidade de agir, de «fazer-ser» as coisas,
o Destinador, considerado deste mesmo ponto de vista, é o
que «faz fazer», isto, é o que exerce um fazer visando provocar
o fazer do sujeito. Uma tal definição do Destinador semiótico
— caracterizado pelo seu estatuto modal factitivo e pela sua
posição sintagmática de antecedente em relação ao sujeito —
permite considerar o percurso deste Destinador como uma
unidade narrativa autónoma e desligá-lo do esquema de Propp,
em que ele aparece condensado como a expressão de uma
certa ideologia, que é apenas uma variante (particular no que
diz respeito às relações possíveis entre o Destinador e o Desti-
natário-sujeito. Assim, a relação entre o Destinador e o sujeito,
tal como ela aparece na narrativa proppiana, é a de uma
hierarquia estabelecida e a relação dominante/dominado que
a caracteriza é dada aí antecipadamente. Ora, é possível, e
parece mesmo necessário, inverter os termos do problema:
em vez de considerar o poder como pré-existindo ao fazer-
^fazer e como a sua fonte, pode-se, ao contrário, pretender que
o fazer-fazer, isto é, a manipulação dos sujeitos por outros
sujeitos, é um facto criador das relações de dominação e
origem do poder estabelecido. As configurações discursivas
de «bajulação», de «chantagem», podem mesmo servir de
contra-exemplos de um poder segundo, recobrindo as rela-
ções hierárquicas pré-existentes.
32
Compreende-se, portanto, que o percurso narrativo do
Destinador, assim definido, possa aparecer não somente como
o lugar de exercício do poder estabelecido, mas também como
aquele em que se esboçam os projectos de manipulação e se
elaboram os programas narrativos visando levar os sujeitos
— amigos ou adversários — a exercer o fazer desejado. Se,
a um certo nível em que se constituem ou exercem os actantes
colectivos, a modalidade do fazer-fazer pode definir o governo
dos homens, estruturas modais comparáveis podem dar conta
tanto do governo pelos homens como para os homens: isto
quer dizer que o percurso narrativo considerado é uma cons-
trução formal susceptível de ser investida por ideologias dife-
rentes. Quer dizer também que o percurso narrativo, consi-
derado como tal, é indiferente ao tipo de actantes que são o
Destinador ou o sujeito manifestado: Estados, sociedades,
grupos sociais ou indivíduos.
Considerando agora o segmento final do percurso do
Destinador, percebe-se que a figura do Destinador que dele
se desprende é muito diferente: não é mais o grande mani-
pulador, mestre varuniano do universo que aí está presente,
mas o soberano à maneira de Mitra, guardião dos contratos,
da equidade das relações humanas e da verdade das coisas e
dos seres. O fazer que ele aí exerce é duplo. Trata-se primeiro
de um fazer cognitivo de reconhecimento, isto é, de identifi-
cação dos actos realizados e das maneiras de ser apresentadas
com as normas da axiologia de que ele é o detentor. É ele
que julga a conformidade dos fazeres e dos seres: são justas
as acções dos sujeitos conformes aos modelos pré-estabele-
cidos, tornam-se verdadeiros os julgamentos de existência que
os sujeitos lhe submetem, quando são conformes às normas
previstas. Portanto, a estrutura modal que caracteriza tal
Destinador é, em primeiro lugar, o saber-fazer. O segundo
tipo de fazer, que se segue à conformidade estabelecida pelo
reconhecimento, é recoberto pelo termo de sanção, termo
complexo e ambíguo porque designa ao mesmo tempo o juízo
de conformidade considerado como acto cognitivo, o exer-
cício do poder (retribuição), e o fazer-saber (o reconhecimento
3 33
público dos actos do sujeito), sendo o conjunto destas moda-
lidades regido por um querer original.
Desprendendo-se progressivamente da figura soberana
deste Destinador — aliás, muito mais dumeziliana do que
proppiana—, vê-se como é possível conferir ao percurso nar-
rativo, do qual acabamos de traçar as grandes linhas, um
estatuto ao mesmo tempo mais autónomo e mais geral. Aqui,
bem como por ocasião do exame do primeiro percurso do
Destinador, encontramo-nos em presença da concepção, legada
por toda uma tradição mitológica e folclórica, de uma sobe-
rania absoluta, pré-estabelecida e indiscutível: um Destinador
epistémico, único possuidor da justiça e da verdade, domina
então o conjunto do percurso. Mas os termos da problemá-
tica podem ser facilmente invertidos e a instância epistémica
ela mesma relativizada. Se, em vez de um Destinador que
dispõe de um saber e de um saber-fazer assegurados, imagi-
narmos um Destinador que se encontra em busca do saber
verdadeiro e que para tanto exerce um fazer interpretativo
permanente, o percurso narrativo que traçamos, longe de
ser dominado pela teoria da verdade estabelecida (o que é
apenas uma das maneiras de conceber este percurso), será
caracterizado pela investigação das condições da verdade,
e a sanção soberana exercida pelo Destinador absoluto apa-
recerá como uma das formas possíveis da adesão do Desti-
nador à imagem do mundo que lhe é apresentado, adesão que
sanciona o inquérito do detective, o trabalho do investigador
científico e a busca do crente.
Dois percursos narrativos, tendo cada um por sujeito
um Destinador distinto, ou antes dois segmentos autónomos
de um único e mesmo percurso que um único Destinador
toma sucessivamente? Qualquer resposta, neste estádio da
investigação, seria presunçosa e nada traria para a compreen-
são dos mecanismos cognitivos. O terreno está apenas apla-
nado e a investigação não faz senão começar.
A. J. GREIMAS
34
INTRODUÇÃO
35
formas narrativas e discursivas quase universais) — designa
um campo privilegiado para o exercício do saber-fazer semió-
tico. É essa a razão porque propomos, sob a forma de «tra-
balho prático», a análise de um conto popular maravilhoso
francês muito conhecido, Cinder ela, que, graças ao jogo das
suas variantes, permite investir — num espaço restrito — a
maior parte dos conceitos fundamentais recenseados e defi-
nidos na primeira parte.
Este trabalho é a forma resumida de um ciclo de confe-
rências semanais, dadas na Escola de Altos Estudos em Ciên-
cias Sociais (Paris), durante o ano de 1974-1975.
36
ceitos, de maneira a passar de uma primeira apreensão de
tipo mais ou menos intuitivo à constituição de uma disciplina
mais orgânica, de vocação científica. Às primeiras atitudes,
por vezes hesitantes, sucede-se assim hoje a colocação de
um saber mais seguro: a semiótica está agora integrada, intei-
ramente, no campo das ciências humanas e a metodologia
aqui descrita, de que muitos fragmentos são do conhecimento
dos estudantes da Universidade, já se repercutiu muitas vezes
às classes terminais do ensino secundário: daí o interesse,
mesmo a necessidade (para evitar falsas aplicações), de uma
apresentação de conjunto, tornando mais acessível este novo
domínio dos conhecimentos humanos.
Diferentemente de uma semântica lexemática e sobre-
tudo frástica — tal como ela é praticada em 'França (com B.
Pottier, O. Ducrot e A. Rey, por exemplo), mas também no
estrangeiro (Suíça, Alemanha, Inglaterra, etc....), e sem esque-
cer toda a importante corrente de semânticos generativistas —,
o enfoque semiótico desloca-se do nível da frase para o do
discurso, transpondo o modelo sintáctico, como veremos, de
um plano para o outro. Esta transferência metodológica, sur-
preendente à primeira vista, justifica-se na m.edida em que,
do ponto de vista semântico, os limites da frase permanecem
pelo menos problemáticos (cf. o problema das pressuposições):
não nos esqueçamos de que, com efeito, uma equivalência
semântica pode existir entre dois segmentos lingüísticos bas-
tante desiguais (ex.: a explicação de texto). A passagem da
frase para o discurso funda-se então sobre o reconhecimento
dos fenómenos de condensação e de expansão, característicos
das línguas naturais: trata-se aqui, todos o sabemos, de con-
ceitos essenciais para a descrição lingüística, já que permitem
o funcionamento metalinguístico do discurso: paráfrases resu-
mos, definições em expansão dadas pelos dicionários, etc.
Um dos objectivos da nossa exposição é o de mostrar
como é possível estruturar e gerar em profundidade, segundo
patamares hierárquicos, conjuntos discursivos que se mani-
festam em extensão (qualquer discurso aparecendo como um
encadeamento de enunciados): e isto não somente ao nível
da ordenação narrativa (ou da forma «gramatical» ou «lógica»)
37
das narrativas, mas também ao nível da componente semân-
tica (que corresponde ao investimento da estrutura sintáctica).
Como se adivinha, a análise efectuar-se-á no plano do
conteúdo, independentemente, portanto, da (e anteriormente á)
manifestação em língua natural (que pode ser o francês, inglês,
italiano, etc). Do mesmo passo, isto significa que o nosso
trabalho não abordará, mesmo se ele o prepara, o enfoque
estilístico, tal como este se desenvolve sob os auspícios da
semiótica literária.
INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
35
Primeira parte
A ABORDAGEM METODOLÓGICA
0. PERSPECTIVA SEMIÓTICA
41
estado dos caminhos de ferro italianos e se me dou conta de
que os vagões destinados às zonas meridionais estão mais
freqüentemente num estado deteriorado do que os que cir-
culam no norte do país, posso ainda falar de comunicação?
Há, neste último caso, uma mensagem emitida pela socie-
dade X que quereria dizer em substância aos viajantes: «Para
as regiões pobres, vagões velhos; para as províncias ricas,
vagões em bom estado». Parece manifesto que aqui não há
nenhuma «intenção» de comunicar (nenhum querer-comunicar)
por parte de X; em compensação, posso afirmar que esta
repartição de vagões não deixa infelizmente de ter uma signi-
ficação, muito pelo contrário: poderíamos ver aí uma comu-
nicação involuntária, mas real. Tomemos ainda outro exem-
plo: a distribuição e a organização do espaço, quer no domínio
arquitectónico (hospital psiquiátrico, catedral, prisão, escola
materna, etc), quer na topologia urbana (zonas de habitação,
de circulação, espaços verdes, etc), pressuporão um emissor
(individual ou colectivo) como exige o esquema clássico da
comunicação? Há aí um ig-Merer-comunicar? Isso não é evi-
dente, nem está excluído. De qualquer modo, a significação
de tais conjuntos não escapa aos seus utilizadores: a forma
dos lugares e os percursos que neles são possíveis (ou inter-
ditos) fornecem uma comunicação, por exemplo, sobre a
insegurança, o prazer, a angústia, a tranqüilidade, a atmos-
fera de segredo, etc...., que deles emana.
Estas poucas ilustrações — e nós poderíamos multiplicá-
-las amplamente — lembram-nos apenas que o problema do
sentido — de que a semiótica quereria ocupar-se — ultrapassa
largamente, integrando-o, o da comunicação, que é só uma
forma particular daquele. A este respeito, não nos esque-
çamos, por exemplo, de que a comunicação impõe, num
determinado campo de significação, um percurso obrigató-
rio extremamente selectivo, eliminando ao máximo qualquer
ambigüidade ou pluralidade de leituras possíveis: tal é a
diferença que existe entre um enunciado unívoco do género
«Encontro amanhã às 14 horas na casa de Z» (supondo que
não se trata aqui de uma mensagem codificada, que seria
então simultaneamente compreensível a um outro nível de
42
significação) e o poema de Mallarmé, Salut, que F. Rastier
mostrou que pode ser lido, ao mesmo tempo, do ponto de
vista de um banquete, da navegação e da escrita («Systémati-
que des isotapies», in Essais de sémiotique poétique, colec-
tânea colectiva, Paris, Larousse, 1971).
iA descrição da significação não deixa de colocar a ques-
tão mesma da sua possibilidade, pelo menos numa perspectiva
que se quer científica. Na medida em que ela trata do sentido,
a semiótica — como qualquer investigação sobre a signifi-
cação — só pode ser a «transposição de um nível de linguagem
num outro, de uma linguagem numa outra diferente» (GR 1970,
13). Deste ponto de vista, a semiótica define-se como uma
metalinguagem em relação ao universo de sentido que ela se
dá como objecto de análise. Ela não se reduz por isso a uma
simples paráfrase que restituiría, sob uma outra forma, os
dados de base, segundo um princípio de equivalência: neste
caso, com efeito, a melhor equivalência de um texto, por exem-
plo, é este mesmo texto.
Se a semiótica é uma transcodificação, ela é também
mais do que isso. Enquanto operação de descrição, ela deve
precisar o ou os níveis de análise em que pretende situar-se:
isto significa que ela considera os objectos que estuda só
sob um aspecto bem determinado que lhes é comum: tal
é o princípio de pertinência: tratando de uma colecção de
dados, o fazer semiótico só se exercerá na medida em que
retiver apenas as suas características comuns (é evidente que
cada variável pode ser considerada sucessivamente como inva-
riante e permitir gradualmente, segundo os ângulos mais
diversos, uma exploração comparativa mais fina). Diferen-
temente do antigo tipo de dissertação, por exemplo, que, a
respeito de um determinado texto, misturava inextricavel-
mente os pontos de vista biológico, histórico, sociológico,
psicológico, estilístico, etc, para extrair o sentido, a semió-
tica postula que o estudo da significação só pode ser feito
por abordagens diversificadas e distintas, isto é, segundo
níveis diferentes, definidos eles-mesmos pelo conjunto de
traços distintivos comuns aos (ou extraídos dos) objectos
estudados.
43
É evidente que a aplicação do princípio de pertinência
aparecerá necessariamente como uma redução em relação ao
material submetido à análise. O fazer semiótico, exercendo-se
sobre uma colecção de «objectes» (compreendidos no sentido
corrente) determinados (ex.: textos, narrativas orais, banda
desenhada, planos de arquitectura, obras musicais, etc), só
os estuda sob um ângulo particular: a sua análise não pre-
tende restituí-Ios tais quais, mas dar conta do objecto que
ela se propõe, que ela constrói neles ou através deles. É sufi-
ciente pensar, por exemplo, no conhecimento das plantas:
uma flor será considerada diferentemente, conforme se trate
de uma pessoa que a oferece à sua amiga em sinal de afeição,
do florista ou do botânico. E ninguém censuraria esse último
se colocasse entre paréntesis, no seu trabalho científico, o
aspecto estético ou económico das flores que estuda. Da
mesma forma, a semiótica só se fixa num nível de análise
(preservando assim a possibilidade de outros estudos dos
mesmos «objectos», com os quais ela mantém uma relação
de complementaridade): no momento presente, um dos objec-
tos próprios que ela se dá, através de todos jos corpus que
sonda, é a narratividade (que nós definiremos ulteriormente
de maneira mais precisa). A partir de todas as formas discur-
sivas possíveis (ex.: narrativas escritas e orais, notícias e
casos do dia de jornais, filmes, bandas desenhadas, etc), a
semiótica tenta determinar o conjunto de leis que dão conta,
em parte, deste elemento central da nossa vida quotidiana, o
facto «contar». Desta forma, a prática semiótica estabelece
um plano homogéneo para a análise, retendo só o que é perti-
nente ao objecto escolhido: todo o resto fica fora do seu
campo de exercício. De onde, para alguns, um verdadeiro
mal-estar, na medida em que semelhante abordagem se recusa
— a priori — a dar conta de todo o material estudado, de
todas as suas componentes: a «percepção totalizadora», a
«plenitude», não poderiam relevar de nenhuma investigação
científica analítica, mas situam-se, ao contrário, do lado das
sínteses interpretativas, cuja necessidade — reconhecemo-lo
sem dificuldade — se faz sentir paralelamente. É preciso,
44
no entanto, distinguir bem os pontos de vista, e respeitá-los,
se se quiser saber exactamente do que se fala.
Uma vez designado o nível de análise escolhido, é con-
veniente então proceder à sua ordenação, esclarecendo o seu
arranjo fundamental. Após ter delimitado os níveis de estudo,
a primeira operação consiste em articular cada um separa-
damente, de maneira a estabelecer o inventário das unidades
que os constituem: será necessário então definir os consti-
tuintes (conforme a terminologia lingüística) pelas relações
que mantêm entre si (estudo morfológico), tanto no plano
sintagmático como paradigmático, e determinar as regras das
suas combinações possíveis (estudo sintáctico). Num segundo
tempo, a análise esforçar-se-á então por agenciar os diferentes
níveis num conjunto coerente, que se postula como sendo de
natureza hierárquica: «Todas as teorias da linguagem con-
cordam sobre este ponto: a linguagem é uma hierarquia»
(GR 1970, 105).
Uma tal elaboração pode efectuar-se de duas maneiras
diferentes e complementares, tendo em conta o material de
base sobre o qual ela se exerce. Como escreve A. J. Greimas, «a
descrição obedece (...) a dois princípios simultaneamente pre-
sentes e contraditórios: ela é indutiva no seu desejo de dar
fielmente conta da realidade que descreve; ela é dedutiva,
devido à necessidade de manter a coerência do modelo em
construção e de atingir a generalidade coextensiva do corpus
submetido à descrição. Uma tal concepção do procedimento
descritivo, fundada na busca do compromisso, seria desen-
corajadora se ela não fosse a condição de qualquer descrição
científica» (GR, 1966, 1968).
O carácter indutivo da descrição define-se em relação
à «realidade que ela descreve». No caso da abordagem semió-
tica, a base de partida não é um «objecto» (no sentido cor-
rente) qualquer (ex.: narrativas, textos, imagens, quadros,
publicidades, etc.), cuja manifestação é praticamente sempre
de natureza heterogénea (susceptível que ela é de estudos
diferentes, segundo os pontos de vista adoptados), mas um
plano homogéneo de significação (projectado sobre o dado
manifestado), e é em relação a este que poderá ser julgada
45
a adequação do «modelo em construção», que poderá se
efectuar a verificação do modelo. Convém então determinar
procedimentos de verificação em função da perspectiva inicial
escolhida: assim, seria aberrante exigir que estes procedi-
mentos se efectuassem no plano do significante (da forma
lingüística, por exemplo), quando as investigações (a serem
testadas) se operam no plano do significado (no caso de um
estudo semântico).
O caracter dedutivo da descrição manifesta-se na cons-
trução a priori do modelo, numa perspectiva lógica (que não
se identifica necessariamente com a lógica tradicional: pode-se
conceber a realização de uma lógica semiótica específica):
«Ao lado de uma semântica interpretativa, cujo direito à exis-
tência não é mais contestado, a possibilidade de uma semió-
tica formal, que só procuraria dar conta das articulações e
das manipulações de quaisquer conteúdos, precisa-se cada
vez mais. Determinar as múltiplas formas da presença do
sentido e os modos de sua existência, interpretá-las como ins-
tâncias horizontais e níveis verticais de significação, descrever
os percursos das transposições e transformações de conteú-
dos, são algumas das tarefas que, hoje, não .parecem mais
utópicas. Só uma semiótica das formas poderá aparecer,
num futuro previsível, como a linguagem que permite falar
do sentido. Porque, justamente, a forma semiótica não é
outra coisa que o sentido do sentido» (G. R. 1970, 17).
É evidente que tal projecto de uma articulação hierár-
quica e sintáctica está ainda longe de qualquer realização.
Só daremos como prova disto as classificações que encon-
tramos no domínio semiótico: enquanto uma ciência se
define mais pelas suas metodologias e pelo objecto próprio
que ela se propõe, do que pelo material concreto visado,
fala-se geralmente da semiótica não em função dos seus crité-
rios internos, estruturais ou formais, mas em relação aos seus
campos de aplicação ou de exploração (semiótica do espaço,
semiótica do cinema, semiótica da música, etc). No entanto,
a denominação de semiótica narrativa ou de semiótica dis-
cursiva (que são susceptíveis de englobar toda uma parte da
obra de A. J. Greimas), por exemplo, mostra bem o esboço
46
possível de uma distribuição e de uma definição formais,
independentemente dos domínios de intervenção.
47
cf. G. Mounin) não deixa evidentemente de ter conseqüências,
na medida em que 1) os modelos que ela utiliza não serão
sem dúvida adequados para uma investigação semiótica apli-
cada a um material lingüístico, e em que 2) a passagem e a
transposição do lingüístico para o não-linguístico põe parti-
cularmente problemas: tal é, por exemplo, o caso da análise
da imagem.
O ponto de partida retido — entre outros possíveis —
é então o da lingüística francesa (segundo a qual a linguagem
é considerada como um facto social, por aposição a outras
investigações como, por exemplo, o trabalho de N. Chomsky
que se situa do lado do sujeito falante), ao nível metodológico,
e o das línguas naturais, ao nível do material concreto sobre
o qual se vai exercer o fazer semiótico. No entanto — e é
esse o objectivo deste empreendimento —, tratar-se-á de ultra-
passar estes dois dados essenciais, para tentar elaborar mode-
los, que, situados anteriormente a qualquer manifestação
lingüística (ou não lingüística), permitiriam dar conta de
universos de significação, quaisquer que sejam os modos
(lingüísticos ou não) segundo os quais a seguir eles se expri-
mem. Isto significa que o objectivo visadoj para além da
independência em relação à lingüística (ou à sociologia), não
é outro senão o estabelecimento de uma articulação semió-
tica específica a que se poderia chegar qualquer que fosse o
ponto de partida: uma esipécie de lugar comum em direcção
ao qual convergeriam perspectivas e metodologias diferentes.
0.3. DELIMITAÇÃO
48
Hjelmslev) tem uma base pragmática: o facto, por exemplo,
de que esta «história» (o conteúdo) pode ser contada em
línguas naturais t(=a expressão) diferentes (francês, inglês,
russo, chinês, etc), sem que nelas ela se encontre substancial-
mente muito modificada. Certamente — não o esquecemos —
a autonomia entre significante e significado não é total, como
o testemunham os idiotismos e mais geralmente a difícil
investigação das equivalencias, tão familiar aos tradutores:
passar do francês para o inglês ou para o italiano não é
somente uma mudança de significantes (fónicos ou grá-
ficos), é também sair de um universo cultural determinado
— com suas articulações semânticas específicas — para entrar
num outro que não possui necessariamente o mesmo corte
conceptual, a tal ponto que, por vezes, se imporá uma ver-
dadeira transposição, senão uma supressão parcial ou total.
Mas, feitas as contas, trata-se aqui apenas de casos limite em
que a manipulação da transcrição é mais delicada: toda a
experiência corrente mostra bem, ao contrário, que — a maior
parte do tempo — a tradução não é impossível: sob uma
forma lingüística diversa, encontra-se, pelo menos aproxima-
damente, o mesmo significado. Para justificar esta dissocia-
ção bastar-nos-ia convocar quer a possibilidade de um outro
suporte que não fosse lingüístico (exemplo parcial: filme
mudo), quer mesmo, no interior de uma língua natural, o
jogo da sinonimia e o da paráfrase: sem o que, nenhum dicio-
nário existiria.
Por evidente que ela pareça ao nível pragmático (e a
lingüística não pode prescindir dela, uma vez que ela permite
a prova fundamental da comutação, que funda o corte em
unidades e, indirectamente, a descoberta dos traços distin-
tivos), a distinção entre significante e significado é definida
somente pela relação de pressuposição recíproca, sem que
se possa chegar a uma descrição independente para cada um
(ou só para um) dos dois termos, a menos que, na seqüência
de F. de ¡Saussure, se faça apelo ao «conceito» e à «imagem
acústica» (no caso do signo lingüístico). Sem entrar nos pro-
blemas que as relações (definicionais) entre percepção (sen-
sorial) e significação colocam, retemos como base de partida a
4 49
oposição — e a complementaridade — entre significante e
significado, entre expressão e conteúdo.
No caso de um conto popular tomado como exemplo,
temos então uma manifestação textual (de tipo lingüístico),
que se define como a reunião de uma expressão (de uma
forma lingüística: numa determinada língua natural) e de
um conteúdo (parcialmente autónomo, já que ele pode ser
retomado numa outra língua natural, ou sob forma de ima-
gens encadeadas: filme, banda desenhada, etc). Este plano
da manifestação (tal como ele é dado) não poderia constituir
um lugar satisfatório de análise: «desde Hjelmslev, sabemos
que nada de bom se pode fazer em lingüística enquanto não
se ultrapassar este nível, enquanto não se explorar, após ter
disjunto os dois planos do significante e do significado, as
unidades ao mesmo tempo mais pequenas e mais profundas
de cada um dos dois planos tomados separadamente» (GR
1973b, 1969). Se a lingüística se preocupou sobretudo com o
significante, poucos estudos, comparativamente, foram reali-
zados ao nível do significado. É esta lacuna que a investi-
gação de A. J. Greimas, situada essencialmente ao nível do
conteúdo, preenche em parte. O próprio do fazer semiótico
será então o abandono (em parte), num primeiro tempo, do
plano da forma lingüística, para trabalhar no campo do signi-
ficado: o que quer dizer, entre outras coisas, que não consi-
deraremos aqui o estudo do nível textual.
De que maneira empreender então a análise do conteúdo,
senão tomando como modelo a que é praticada no plano da
expressão: «De momento parece que o melhor ponto de par-
tida para a compreensão da estrutura semântica é a concepção
saussuriana dos dois planos da linguagem — o da expressão
e o do conteúdo —, sendo considerada a existência da expres-
são como a condição da existência do sentido. Uma tal
concepção permite:
a) postular o paralelismo entre a expressão e o con-
teúdo, dando assim uma idéia aproximada do modo de exis-
tência e de articulação da significação;
b) considerar o plano da expressão como constituído
de desvios diferenciais, condição da presença do sentido arti-
50
culado, e, consequentemente, instrumentos de apreciação e
de adequação dos modelos utilizados para a descrição do
plano semântico (conforme a regra derivada do princípio
de paralelismo, segundo a qual a qualquer mudança de expres-
são corresponde uma mudança de conteúdo).
lA hipótese do isomorfismo entre os dois planos autoriza
então a conceber a estrutura semântica como uma articula-
ção do universo semântico em unidades minímas de signifi-
cação ( = o u semas), correspondendo aos traços distintivos do
plano de expressão ( = o u femas); estas unidades semânticas
são 'formadas, da mesma maneira que os traços da expressão,
em categorias sémicas binarias (sendo a binaridade conside-
rada como uma regra de construção e não necessariamente
como um princípio estatuindo sobre o seu modo de existên-
cia)» (GR 1970, 39-40).
O paralelismo, aqui em questão, entre a expressão e o
conteúdo ao nível morfológico, pode ser estendido à com-
ponente sintáctica (cf. infra). Notemos, por outro lado, que
«as unidades de comunicação dos dois planos (do significante
e do significado) não são equidimensionais. Não é um fonema
que corresponde a um lexema, mas uma combinação de fone-
mas. A análise dos dois planos deve então ser conduzida
separadamente, ainda que pelos mesmos métodos, e deverá
visar o estabelecimento da existência dos femas para o signi-
ficante e dos semas para o significado, unidades mínimas dos
dois planos da linguagem» (GR 1966, 30). Desta maneira,
«duas formas semióticas paralelas — uma forma da expressão
e uma forma do conteúdo — podem ser distinguidas: elas
são derivações de uma única forma lingüística; mas elas não
são isomórficas, sendo os planos da expressão e do conteúdo
articulados de duas maneiras diferentes» (GR 1970, 47).
Após termos fixado o plano do conteúdo como campo
de análise, é-nos necessário introduzir aqui uma segunda
distinção fundamental que orientará a atitude semiótica numa
dupla direcção. Segundo a teoria de Hyelmslev, os dois níveis,
da expressão e do conteúdo, articulam-se cada um conforme
a aposição forma versus (=vs) substância. Assim a expres-
são lingüística comporta uma forma: o sistema de fonemas
51
(ou de grafemas); e uma substância: a cadeia fónica (ou
gráfica) que cada língua natural articula diferentemente. No
plano do conteúdo, pode-se imaginar que a descrição faça
apelo a uma «gramática» (=forma), incluindo uma morfo-
logía e uma sintaxe, e a um «dicionário» ( = substáncia semân-
tica), susceptíveis de dar conta de um determinado universo
de significação. Neste sentido, poderíamos dizer que um conto,
por exemplo, comporta — no plano do conteúdo — dois ele-
mentos diferentes e articulados um sobre o outro:
a) uma componente gramatical, que permite a com-
posição e o encadeamento dos enunciados narrativos: tal
seria o caso das estruturas formais que determinam o género
«conto» com os seus mecanismos narrativos particulares;
b) uma componente semântica, de ordem conceptual
e/ou figurativa, que corresponde ao investimento da orde-
nação formal: assim, uma mesma estrutura narrativa do
tipo falta/busca/aquisição pode ser encontrada em diferentes
materiais semânticos, conforme se trate de um conto popular,
de um caso do dia, de um romance policial, de uma autobio-
grafia, etc.
52
Ihido: o que será denominado como substância a um certo
nível, poderá ser analisado como forma a um nível diferente»
(G. R. 1966, 26): assim, a cadeia fónica, acima mencionada
como substância, pode ser considerada como forma num
plano superior, por exemplo, no da percepção auditiva.
A partir deste ponto, a análise semiótica operar-se-á em
duas direcções: ela considerará, em primeiro lugar, a subs-
tância do conteúdo que, como veremos, só pode ser apreen-
dida ou descrita através de uma forma específica, através de
uma «morfología», (secção 1); ela tratará, a seguir, da forma
do conteúdo, concebida como uma ordenação de tipo «sin-
táctico» (secção 2), que, como não deixaremos de notar, com-
porta de facto uma substância.
Observemos desde já que a distinção entre relações gra-
maticais e unidades semânticas não é sempre concretamente
fácil de realizar (tarefa que, no entanto, se impõe ao analista
na apreensão de um determinado texto): com efeito, acontece
constantemente (ou quase) que as unidades do conteúdo
relevam simultaneamente de uma ou outra componente. No
limite, aliás, a dissociação mesma entre dados gramaticais e
semânticos revela-se contestável: ela pressuporia que os pri-
meiros fossem de ordem estritamente formal, enquanto só os
segundos veiculariam a informação precisa (conjugando-se uns
e outros para produzir o sentido). Ora, é evidente que as
relações gramaticais, por exemplo, não são pura forma: é o
caso das categorias sintácticas (cf. infra) de «sujeito» e de
«objecto»: mesmo se o seu investimento semântico completo
só se opera conforme a narrativa, ou se ele só é dissociado
pelo analista, o simples recurso a tais designações antropomór-
ficas já é uma informação sobre o seu estatuto substancial;
da mesma forma, a modalização sintáctica (querer/saber/
/poder-fazer) que a gramática narrativa utilizará, correspon-
derá, apesar do seu nível elevado de generalidade, a um inves-
timento semântico particularizante. Assim, para a sua cons-
tituição, a gramática narrativa está constrangida a explorar
em parte a componente semântica. Da mesma forma, e reci-
procamente, esta não poderia ser apreendida independente-
mente de uma forma.
53
Dito isto — e para poder apesar de tudo proceder às
operações práticas —, somos obrigados a manter uma linha
de demarcação entre termos e relações, mesmo se estes dois
conjuntos só se definam um pelo outro. Porque a «gramá-
tica» permanece teoricamente distinta do «dicionário», mesmo
se ela se exprime através dele.
A análise das duas componentes «morfológica» e «sin-
táctica» permite assim a exploração do conteúdo: portanto,
as estudaremos sucessivamente.
Nível profundo-
t t
Semas (Universo Estrutura elementar da
imánente) significação (organiza-
ção sémica)
«morfologia» «sintaxe»
54
1. COMPONENTE «MORFOLÓGICA»
55
ser explícita, deverá ser analisada, isto é, cortada em segmen-
tos diferentes, encadeados segundo urna coerência narrativa
e discursiva particular; partindo de urna percepção totali-
zante do espectáculo de que foi testemunho, ele tem a possibi-
lidade de articular este continuum indistinto (ou inorgânico),
segundo um esquema ao mesmo tempo morfológico e sin-
táctico. Por evidente que ela pareça — como confirma a nossa
prática quotidiana — esta passagem do contínuo para o dis-
creto escapa à explicação: «O conceito de descontinuidade,
que não conseguimos definir, não é propriamente da semân-
tica; ele preside também, por exemplo, ao fundamento das
matemáticas. É, portanto, uma pressuposição que se deve
depositar no inventário epistemológico dos postulados não
analisados» (G. ¡R. 1966, 18).
iSe a descontinuidade causa particularmente problema
no domínio da semântica, isto provém sobretudo do facto de
que este parece, à primeira vista, muito frágil. Porque, na
medida em que a articulação — como operação — se efectúa,
e é o caso aqui, ao nível do conteúdo, é claro que os critérios
que ela utiliza poderão estar sujeitos à caução e variar (even-
tualmente) de uma metodologia a outra, dado-que se exclui,
à partida, qualquer referência «objectiva» ao significante, à
expressão.
Para atenuar esta dificuldade, e para não cair em solu-
ções ocasionais, iA. J. Greimas, apoiando-se na lingüística, pre-
feriu analisar a substância do conteúdo com os procedimentos
já preparados: colocando como hipótese o paralelism.o entre
os níveis, ele propõe imaginar «uma articulação do universo
semântico em unidades mínimas de significação ( = o u semas),
correspondendo aos traços distintivos do plano da expressão
( = o u femas)» (G. R. 1970, 40).
56
por este motivo, ele só pode ser apreendido num conjunto orgâ-
nico, no quadro de uma estrutura. Sejam, por exemplo, os
dois lexemas:
filho vs filha
57
homem mulher criança pai mãe filho filha
/humano/ + + + + + + +
/macho/ + — 0 + — + —
/fêmea/ — + 0 — + — +
/adulto/ + + — + + 0 0
/não-adulto/ — — + — — 0 0
/procriação/ 0 0 — + + — —
/fiHação/ 0 0 + — — + +
58
turale). Trata-se aqui de uma unidade do plano da manifes-
tação lingüística (ou textual), cujo conteúdo se deseja arti-
cular. Esta entrada de dicionário é então estudada em função
dos diferentes contextos em que ela aparece. Extrai-se assim
dela um núcleo sémico, isto é, «um mínimo sémico perma-
nente» (G. R. 1966, 44), uma espécie de invariante. Com efeito,
no lexema analisado este núcleo é duplo e constitui-se à volta
dos semas /extremidade/ e /esferoicidade/, em que o segundo
se manifesta às vezes pelo seu termo positivo («esferoide»),
outras vezes pelo seu termo negativo («ponto»: neste caso, o
espaço, como extensão preenchida ou susceptível de o ser,
não é levado em conta).
O núcleo sémico ou figura nuclear de «cabeça» é cons-
tituído por semas nucleares, cuja distribuição parece bem
organizada:
59
3. extremidade + anterioridade + horizontalidade + descon-
tinuidade:
«fourgon de tête»
«tête de cortège»
«prendre la tête» '.
60
encontrarem, em imanência, para além de todas as manifes-
tações lingüísticas, definem o que A. J. Greimas chama de
«nível semiológico» da linguagem ou — segundo a termino-
logia (reencontrada) de Ampère — o plano cosmológico (por
oposição ao nível noológico, que será abordado mais adiante):
trata-se aqui da «exteroceptividade», isto é, da percepção que
o homem tem do universo que o cerca. Em outros termos,
os semas nucleares, constitutivos das figuras nucleares, reen-
viam para esta apreensão exterior do mundo: é neste ponto que
se esboçam, entre outros, a especificidade e a organização
do discursivo (vs narrativo) à volta das figuras (do mundo)
que ele explora (cf. infra).
61
corresponde um só efeito de sentido que podemos traduzir
por «parte ossosa da cabeça». Parece então possível agrupar
os contextos em classes contextuáis, que seriam constituídas
por contextos que provocassem sempre o mesmo efeito de
sentido. Podemos considerar que o sema contextual é este
denominador comum a toda uma classe de contextos (G. R.
1966, 45).
Tomemos um outro exemplo mais explícito ainda. A se-
qüência (o) cão late comporta não somente duas figuras
sémicas (que correspondem aos dois formantes «cão» e
«late»), mas também um sema contextual, o classema /ani-
mal/: é o que aparece se o «cão» se substituir por outra
figura, como a do «comissário» («o comissário late»): neste
último caso, ter-se-á o classema /humano/ que torna compa-
tível a união das figuras. Dito de outra maneira, a colocação
de uma figura nuclear, no contexto que a liga a uma ou várias
outras, faz sobressair pelo menos um novo sema, o sema
contextual ou classema, que assegura a sua junção e os torna
compatíveis. A título de ilustração complementar, conside-
remos o qualificativo «boa» (cujo núcleo invariante pode
definir-se sumariamente como «apreciação positiva») nos dois
contextos:
62
vidade» (vs exteroceptividade: cf. supra) que reenvia a uma
organização categorial, ao estabelecimento de classes concep-
tuáis (por oposição às figuras do mundo). Diferentemente da
«exteroceptividade», há «interoceptividade» quando a um
significado de uma língua natural não corresponde nenhum
significante do mundo natural.
1.4. A ISOTOPÍA
63
Cinderela, em particular) uma ilustração aferente, gostaríamos
de acrescentar apenas duas observações:
(1) Como sublinha A. J. Greimas (o primeiro a ter
introduzido este conceito operatorio), a isotopía permite su-
primir as ambigüidades de um enunciado: enquanto as
figuras nucleares parecem estrangeiras umas às outras e têm
a tendência, como veremos ulteriormente, a associarem-se a
outras figuras aparentadas, e, portanto, a jogarem na ordem
paradigmática, as categorias classemáticas, constituindo a iso-
topía, tèm por missão, ao contrário, refrear este movimento
que rapidamente se tornaria anárquico, impondo às figuras
sémicas, na sua distribuição sintagmática, uma espécie de
plano comum (=isotopía), mesmo que estas, neste momento,
coloquem entre paréntesis a sua especificidade bastante gran-
de. A homogeneidade assim obtida (pela suspensão parcial
das particularidades e pela colocação de um denominador
comum permanente) determina um nível de leitura, um plano
isotópico: é sabido, está visto, que um determinado texto
pode, ao contrário, explorar a ambigüidade como tal, intro-
duzindo propositadamente isotopías diferentes e paralelas
(sem que elas sejam necessariamente subsumjdas por uma
ordenação hierárquica semântica): tal será muitas vezes o caso
do discurso poético que é susceptível de admitir uma pluri-
-isotopia.
Como se vê, reencontramos aqui, em parte, a teoria da
comunicação da qual fazíamos alusão no início desta exposi-
ção: o conceito de isotopía, assegurando a homogeneidade da
mensagem, não é estranho à comunicação, em que um dos
objectivos pretendidos é precisamente a eliminação das ambi-
güidades; ele excede, no entanto, este caso de espécie, para
englobar outros modos de significação nos quais a ambigüi-
dade é, por exemplo, uma riqueza. Acrescentemos, por outro
lado, que o conceito de isotopía permite definir a pertinência
(apresentada mais acima) de maneira mais rigorosa.
(2) Assim, as primeiras isotopías que parecem despren-
der-se são, evidentemente, de natureza conceptual: trata-se
de isotopías semânticas que reenviam para a dimensão «inte-
roceptiva»: é-nos suficiente citar, por exemplo, as Fábulas de
64
La Fontaine que jogam na dupla categoria /animal/ vs /hu-
mano/. No entanto, parece oportuno não limitar o conceito
de isotopia somente às categorias semânticas (tais que, /ani-
mado/ vs /inanimado/, etc.), porque as figuras (do mundo)
do plano cosmológico — constituídas pelos semas nucleares —
são também susceptíveis de se constituir em classes e de
estabelecer assim, num determinado texto, um nível de leitura
autónoma, uma isotopia semiológica: é assim que em Salut
(poema de Mallarmé) F. Rastier (op. cit.) extrai três isotopías
semiológicas: o banquete, a navegação e a escrita.
5 65
1.6. EM DIRECÇÃO À FORMA LINGÜÍSTICA
66
2. COMPONENTE «SINTÁCTICA»
67
das relações. Em conformidade com o ensino da lingüística,
com efeito, está convencionado que os termos-objectos, consi-
derados isoladamente, não têm significação em si mesmos:
eles só se definem pelas relações que mantêm entre si. É por
isso que a significação só poderá ser apreendida ao nível das
estruturas: finalmente, é só neste quadro, e não ao nível dos
elementos, que as unidades significativas elementares poderão
ser realmente especificadas.
Em Du Sens, o termo — muito freqüente —de «gramá-
tica» arrisca-se talvez a provocar certas ambigüidades, na
medida em que, nesta obra, ele geralmente designa o domínio
das relações e das operações, sem lembrar suficientemente,
na nossa opinião, a componente morfológica (já proposta em
Sémantique Structurale). Com efeito, de acordo com a sua
definição, a gramática engloba, por um lado, as articulações
morfológicas estabelecidas aos dois níveis (profundo e super-
ficial), apresentadas no parágrafo precedente, e, por outro, as
relações e as operações que correspondem às duas faces
complementares do sistema e do processo. É por isso que,
para designar esta segunda secção (distinguida da primeira
por precaução didáctica), não retomaremos a terminologia de
«gramática profunda» e de «gramática superficial»: preferi-
mos nos apoiar nesta outra denominação: organização funda-
mental e organização superficial.
68
ao outro. A relação que se encontra estabelecida entre os
dois semas é de natureza antonímica, relevando ao mesmo
tempo da disjunção e da conjunção: a disjunção é evi-
dente, enquanto o aspecto conjuntivo o é um pouco menos;
para o apreender é necessário colocar-se num plano hierar-
quicamente superior, o da categoria sémica inteira que engloba
a /masculinidade/ e a /feminidade/. Temos assim uma cate-
goria única, que podemos designar aqui por /sexuahdade/,
articulando-se em dois semas opostos e complementares (/mas-
culinidade/ e /feminidade/), definindo uma estrutura ele-
mentar da significação. «Diremos que ao lado da relação
antonímica (disjunção e conjunção) entre os semas de uma
mesma categoria, a estrutura elementar da significação se
define ainda pela relação hiponímica entre cada um dos
semas tomados individualmente e a categoria sémica inteira»
(GR 1966, 29).
Estas categorias sémicas são postuladas como sendo de
carácter binario, «sendo a binaridade considerada como uma
regra de construção e não necessariamente como um prin-
cípio estatuindo sobre o seu modo de existência» (GR 1970,
40): a escolha da distribuição binaria não se apoia sobre
razões teóricas não explicitadas, ela é muito simplesmente
retomada da prática actual dos lingüistas na sua descrição
do significante, do ¡plano da expressão.
No que diz respeito ao conteúdo formal da categoria
sémica, ou do eixo semântico, parece-nos que as primeiras
proposições de A. J. Greimas — tal como eram apresenta-
das— podiam provocar alguma hesitação no leitor. Por outro
lado, com efeito, a estrutura elementar era categoricamente
(ver GR 1966, 24) articulada assim:
s vs não s,
69
Com Du Sens o que nos parece ter sido uma imprecisão
passageira foi inteiramente clarificado: «Esta estrutura ele-
mentar (...) deve ser concebida como o desenvolvimento lógico
de uma categoria sémica binaria do tipo branco vs preto,
em que os termos estão, entre si, numa relação de contrarie-
dade, sendo cada um ao mesmo tempo susceptível de pro-
jectar um novo termo, que seria o seu contraditório, podendo
os termos contraditórios contratar, por sua vez, uma relação
de pressuposição relativamente ao termo contrário oposto»
(GR 1970, 160).
À oposição
s vs nao s,
definida pela relação de contradição, foi assim substituída
uma mais geral
si vs s2,
fundada na relação de contrariedade: a razão disto parece-nos
ser que a relação de contradição é apenas um caso de espécie
da relação de contrariedade.
Por outro lado, esta descrição sintéctica da estrutura
elementar da significação (ou quadrado semiótico) permite
dar conta da ordenação dos universos semânticos no seu
conjunto. «De facto, cada um dos conteúdos que ela define
pode subsumir, na qualidade de eixo semântico, outros que
são organizados por sua vez em estrutura isomórfica à estru-
tura hierarquicamente superior» (GR 1970, 138): há então
assim como que uma espécie de encaixe possível no quadro
de uma integração cada vez mais generalizada, sendo cada
categoria sémica binaria susceptível de ser retomada — a um
nível imediatamente superior — como elemento constituinte
de uma outra categoria sémica binaria mais ampla. Exemplo:
humano vs animal
! I
I
animado vs inanimado
70
toma a forma de um modelo bem preciso, espacialmente repre-
sentável pelo quadrado semiótico (chamado também, mode/o
constitucional). Como se trata de um esquema formal, cons-
truído anteriormente a qualquer investimento semântico, dare-
mos dele primeiro a organização geral e as propriedades
formais, antes de propormos uma breve ilustração concreta
do mesmo.
sl- -s2,
sl- • s2.
Tendo em conta o facto que S pode ser redefinido, na seqüên-
cia da colocação das suas articulações sémicas, como um
sema complexo reunindo si e s2 por uma dupla relação de dis-
junção e de conjunção, a estrutura elementar da significação
pode ser representada como:
si-* -s2
•-si
71
Este modelo é construído utilizando um pequeno número de
conceitos não definidos:
a) os conceitos de conjunção e de disjunção, necessários
para interpretar a relação estrutural;
b) dois tipos de disjunção áQ&.contrários (indicada aqui pela
linha pontilhada) e a disjunção dos contraditórios (indicada
pela linha contínua).
Observação: O modelo acima é somente uma formulação remo-
delada do que foi proposto anteriormente (Greimas, Séman-
tique Structurale, \%6, Larousse). Esta nova apresentação per-
mite compará-lo ao hexágono lógico de R. Blanche (cf. C. Cha-
brol, Structures Intellectuelles, in Informations sur les sciences
sociales, 1967, VI-5), bem como às estruturas designadas, nas
matemáticas, como grupo de Klein, e, em filosofia, como grupo
de Piaget (GR 4970, 136, 137).
a) hierárquicas:
b) categóricas:
72
pode ser identificada como a solidariedade, ou a dupla pres-
suposição.
73
Tendo em conta este aspecto dinâmico, pode-se estabelecer
uma rede de equivalencias entre as relações fundamentais
constitutivas do modelo taxinómico e as projecções destas
mesmas relações, ou operações, que incidem desta vez sobre
os termos já estabelecidos desta mesma morfologia elementar;
operações cuja regulamentação constituiria a sintaxe. Assim,
a C-OJÜCadicap, como relagãft, serve, ao nível da taxinomia. para
o estabelecimento de esquinas _binários; como operação de
ccmtradiçãõT ela consistirá, ao nível sintáctico, em negar um
dos termos do esquema e em afirnaar_.au.lïiesmo tempo o seu
termo contraditório» (GR 1970, 164).
/prescrito/ vs /interdito/
74
de disjunção e de conjunção; por outro lado, cada um destes
dois semas está numa relação hiponímica com a categoria
sémica do /injuntivo/.
iCada um dos dois semas, /prescrito/ e /interdito/, dá
lugar a um termo contraditório:
a) /prescrito/ vs /livre/ ( = não-prescrito);
b) /interdito/ vs /permitido/ ( = não-interdito).
Se a conjunção do /prescrito/ e do /interdito/ define a cate-
goria sémica do /injuntivo/, a do /livre/ e do /permitido/
poderá exprimir-se no /facultativo/. Desta forma, obtemos
um termo complexo (o /injuntivo/) e um termo neutro (o
/facultativo/) que é a negação simultânea dos dois contrários,
/prescrito/ e /interdito/.
injimiivo
prescrito-* •- interdito
permitido-« -•-livre
(não-interdito) (não-prescrilo)
facultativo
É claro que o /injuntivo/ e o /facultativo/ podem tor-
nar-se, por sua vez, a base de um novo quadrado semiótico
de ordem imediatamente superior, e assim dar lugar a uma
organização similar que engendra novos termos.
Como se vê, temos aqui uma espécie de micro-universo
semântico que «se apresenta como um modelo imánente,
constituído (...) por um pequeno número de categorias sémi-
cas apreensíveis, simultaneamente, como uma estrutura»
(GR 1966, 127); uma outra característica merece ainda ser
sublinhada: «A isotopia dos termos da estrutura elementar
garante e funda, de certa maneira, o micro-universo como
unidade de sentido e permite considerar (...) o modelo cons-
titucional como uma forma canónica, como uma instância
de partida para uma semântica fundamental» (GR 1970, 161).
75
um caso particular da contrariedade). Suponhamos, por exemplo, os
dois semas: /asserção/ e /negação/. Neste caso, a negação da /nega-
ção/ equivale à /asserção/ e a negação da /asserção/ é somente
/negação/.
si s2
asserção negação
não-negação nao-asserçao
discrição vs integralidade,
76
-classes constituídas, no primeiro caso, de unidades discretas
e, no segundo, de unidades integradas» (GR 1966, 121). Tere-
mos então dois tipos de sememas:
a) os que, como «efeito de sentido», são percebidos
como suportes (conotando a ideia de «substância») ou como
entidades;
b) os que, ao contrário, parecem susceptíveis de serem
integrados, isto é, como devendo ser referidos aos suportes
que são as unidades discretas.
«iPrapomos reter o nome de actante para designar a
sub-classe de sememas definidos como unidades discretas,
e o de predicado para denominar os sememas considerados
como unidades integradas» (GR 1966, 122).
íCom a conjunção de um actante e de um predicado, já
se esboça a base de uma organização sintáctica da manifes-
tação (do conteúdo), definindo-se os dois termos apenas um
pelo outro, sendo que qualquer mensagem semântica com-
preende necessariamente a presença de um e de outro.
Para facilitar a análise de um determinado universo de
significação, poder-se-á, em primeiro lugar, propor «a divisão
da classe dos predicados, postulando uma nova categoria clas-
semática, a que realiza a oposição «estatismo» vs «dinamis-
mo». Na medida em que comportam o sema «estatismo» ou
«dinamismo», os sememas predicativos são capazes de forne-
cer informações, quer sobre os estados, quer sobre os pro-
cessos (=acções) que dizem respeito aos actantes. Assim,
anteriormente a qualquer gramaticalização, o semema pre-
dicativo, tal como ele se realiza no discurso, recoberto pelo
lexema ir em:
Este vestido lhe vai bem
Esta criança vai à escola,
compreenderá, no primeiro caso, o classema «estatismo» e,
no segundo, o classema «dinamismo». Reter-se-á o termo
função para designar o predicado «dinâmico» e o de quali-
ficação para o predicado «estático» (GR 1966, 122-123).
Assim, depois de ter introduzido as restrições semânticas
na classe dos predicados, de maneira a articulá-los em duas
77
categorias diferentes e complementares, será fácil proceder
a uma análise funcional e a uma análise qualificativa, tendo
por duplo objectivo — num e noutro caso — o inventário para-
digmático de todos os dados susceptíveis de nelas serem toma-
dos em consideração e a organização sistemática (sob a forma
de modelos) do conjunto assim extraído. Notar-se-á, aliás,
que as duas perspectivas, qualificativa e funcional, podem
ser, de facto, convertíveis uma na outra.
No entanto, se os elementos qualificativos e funcionais
constituem um lugar de análise importante e indispensável
(cf. os trabalhos temáticos realizados no domínio da lite-
ratura), eles podem (ou devem, segundo a nossa hipótese),
porém, ser subordinados a uma instância superior, a classe
de actantes (organizados num modelo actancial). À primeira
vista, o funcionamento do discurso, por exemplo, consiste
em colocar um certo número de entidades (personagens, objec-
tos, lugares, etc.) e a atribuir-lhes progressivamente um certo
número de propriedades: ter-se-ia assim, em primeiro lugar,
os actantes, aos quais juntar-se-ia a seguir os predicados; o
que corresponde ao fazer sintáctico no momento do seu desen-
volvimento hic et nunc. Se em vez de nos nñantermos na
ordem (sintagmática) do processo (da actividade sintáctica),
considerarmos a relação actante-predicado do ponto de vista
sistemático, diremos que os actantes — como conteúdos inves-
tidos — são constituídos por paradigmas de predicados. Um
pouco à imagem do herói de um romance, cujo «retrato» se
elabora conforme a narrativa e que só está totalmente cons-
tituído no termo da narração: no início ele é apenas um
suporte vazio (designado muitas vezes por um nome «pró-
prio», isto é, praticamente sem nenhum conteúdo semântico
preciso), ao qual o autor acrescenta sucessivamente, no enca-
deamento do romance, um certo número de funções (ou
acções) e/ou qualificações, através das quais o herói toma
corpo e se define.
Desta forma, «se (...) ao nível das mensagens tomadas
individualmente, as funções e as qualificações parecem ser
atribuídas aos actantes, o contrário produz-se ao nível da
manifestação discursiva: vê-se que as funções, como as quali-
78
ficações, são aí criadoras de actantes, que os actantes são
convocados para uma vida metalinguística pelo facto de serem
representativos, dir-se-ia mesmo compreensivos, das classes
dos predicados. Disto resulta que os modelos funcionais e
qualificativos, tais como os postulamos, são dominados, por
sua vez, pelos modelos de organização de um nível hierar-
quicamente superior, que são os modelos actanciais» (GR
1966, 129).
«morfología» «sintaxe»
79
Diferentemente da investigação de V. Propp de que ela
ao mesmo tempo se inspira amplamente, a hipótese de A. J.
Greimas — e é esta em parte a sua originalidade — consiste
em se deslocar do domínio nas funções (de que Propp pro-
punha uma primeira tipologia, no campo do conto popular
maravilhoso), para o dos actantes (termo retomado a L. Tes-
nière, para quem o verbo permanece o núcleo da frase).
Desenvolvido em particular a partir dos inventários de
Propp e de Souriau, o modelo actancial (níiítico) apresenta-se
assim:
adjuvante
í
> sujeito •< oponente
80
então sobre a articulação sintáctica tradicional, ajustando-se
ao mesmo tempo ao universo semântico que ele deve assumir.
Assim em:
(1) Pedro recebe uma carta do seu tio André, e
(2) O tio André envia uma carta ao seu sobrinho Pedro,
«Pedro» terá, nos dois casos, o mesmo estatuto de destinatário,
do ponto de vista da forma do conteúdo, mesmo se — ao
niveil da manifestação lingüística — o seu papel sintáctico é
evidentemente diferente em (1) e (2).
Para dar uma primeira ilustração do investimento deste
modelo, e «simplificando muito, poder-se-ia dizer que, para
o sábio filósofo dos séculos clássicos, a relação do desejo
(que une o sujeito e o objecto) estando precisada (...) como
o desejo de conhecer, os actantes do seu espectáculo de conhe-
cimento se distribuiriam mais ou menos da seguinte maneira:
Sujeito . . . . Filosofia
Objecto . . . . Mundo
Destinador . . . Deus
Destinatário . . Humanidade
Oponente . . . Matéria
Adjuvante . . . Espírito
81
2.2.3.1. Sujeito/objecto
/ \
disjunção conjunção
(sema 1) (sema 2)
82
que corresponderia, segundo o quadrado semiótico (cf. supra), à nega-
ção simultânea da disjunção e da conjunção: suspensão=nem disjunção
nem conjunção. Assim, por exemplo, se o «desejo» aparece conjuntivo
por oposição ao «temor» (de carácter disjuntivo), a «indiferença» cor-
responderia bem ao termo neutro (suspensão).
enunciados conjuntivos: S (1 O
enunciados disjuntivos: S U O .
83
exemplo, podem perturbar a dicotomia postulada, etc.)». É por
isto que, acrescenta ele, «um único enunciado semiótico do tipo
S n O
84
tido no objecto, no momento (na posição sintáctica) em que
este se encontra em conjunção com o sujeito» (GR 173a, 20).
2.2.3.2. Destinador/Destinatário
85
É evidente que um só actor (manifestado) pode cumular várias
funções actanciais: o sujeito da acção pode ser o destinatário
dela (ex.: aquele que se atribui qualquer coisa em seu pro-
veito); da mesma forma, «o destinatário pode ser o seu
próprio destinador (como o herói corneliano que «se res-
peita»). O actor único estará então encarregado de subsumir
os dois papéis actanciais» (GR 1973b, 167). Retemos aqui
sobretudo o facto que, como actividade, qualquer fazer hu-
mano (considerado do ponto de vista da manifestação mítica:
cf. o que dissemos precedentemente sobre o «espectáculo»)
«pressupõe um sujeito; como mensagem, ele está objectivado
e implica o eixo de transmissão entre destinador e desti-
natário» (GR 1970, 168). É porque estes diversos elementos
se sobrepõem muitas vezes de maneira sincrética (no plano
da manifestação actorial: ver infra em 3), como acabamos
de lembrar, que nos arriscamos a esquecer a sua presença
subjacente e necessária para a organização sintáctica de qual-
quer universo semântico.
2.2.3.3. Adjuvante/Oponente
86
2.2.4. O modelo ac^ancíal como processo
(S n O) -^ (S U O),
87
disjuntivo, ou vice-versa, que afecta um mesmo sujeito (S)
na sua relação com o objecto (O), «só se pode fazer pela inter-
pelação de um meta-sujeito operador, cujo estatuto formal
se explicita apenas no quadro de um enunciado de fazer
de tipo:
F (transformação) (SI -> OI),
88
sua organização sintáctica. Queríamos apenas chamar a aten-
ção aqui, de maneira a sublinhar a autonomia da estrutura
actancial em relação ao seu investimento semântico.
junção paradigmática
89
A existência de dois programas correlativos dá conta da
possibilidade de manifestar discursivamente, isto é, de contar
ou de ouvir a mesma narrativa, explicitando quer um, quer
outro dos dois programas, conservando ao mesmo tempo
implícito o programa concomitante, mas invertido. Uma tal
interpretação, embora ainda muito restrita pelo seu campo
de aplicação, pode, porém, servir de ponto de partida para
uma formulação estrutural do que se chama às vezes a
perspectiva» (GR 1973a, 25).
Este duplo programa narrativo que acabamos de evo-
car, pode ser formalmente reescrito de outra maneira (obe-
decendo sempre ao princípio segundo o qual a relação entre
sujeitos só poderia existir mediatizada por um objecto):
(SI U O) ^ (Sl n O)
. (S2 n O) -» (S2 U O),
90
evidentemente só pode funcionar numa espécie de universo
fechado, no qual o que é concedido a um o é em detrimento
do outro, o que é retirado de um o é em proveito do outro.
Ter-se-á então, simultaneamente, uma transformação conjun-
tiva para SI (figurativizada pela aquisição) e uma transfor-
mação disjuntiva {privação) para S2. Se reintroduzirmos aqui
a relação reflexivo vs transitivo, podemos prever, figurativa-
mente: a) duas espécies de transformação conjuntiva: a apro-
priação, no caso de um fazer reflexivo, e a atribuição com a
acção transitiva; b) duas formas de transformação disjuntiva:
renúncia, se o fazer é reflexivo, e despossessão, se ele é tran-
sitivo. «¡Se designássemos com o nome de prova a transfor-
mação que dá lugar a uma apropriação e a uma despossessão
concomitantes, e com o nome de dom a que produz solida-
riamente uma atribuição e uma renúncia, obtemos as duas
principais figuras pelas quais a comunicação de valores se
manifesta em superfície» (GR 1973a, 28).
Situando-nos assim ao nível figurativo, constatamos,
porém, que há casos em que a transferência do objecto de
um sujeito para o outro não se efectúa desta maneira. Tome-
mos «o caso do destinador que, como sujeito transformador,
opera um dom endereçado ao destinatário; se a transforma-
ção tem como conseqüência a atribuição de um valor ao
destinatário, esta atribuição não é por isto solidária, como
se deveria esperar, da renúncia por (parte do destinador (...).
O objecto de valor, mesmo tendo sido atribuído ao destina-
tário, permanece em conjunção com o destinador. Os exem-
plos que podem ilustrar este fenómeno insólito são nume-
rosos. Assim, no momento da comunicação verbal, o saber
do destinador, uma vez transferido para o destinatário, é
com este «partilhado», sem que o destinador se encontre
privado dele (...). Diremos (...) que se trata aqui de um tipo
específico de comunicação, que propomos designar como uma
comunicação participativa, e isto nos referindo às relações
estruturais particulares entre o destinador e o destinatário, as
quais interpretamos no quadro geral da fórmula pars pro
tota» (GR 1973a, 33-34): reencontramos aqui o estatuto parti-
cular da relação destinador/destinatário, mencionado mais
acima.
91
2.2.4.3. Sintagmas narrativos
92
exemplo, o caso da «performance» que A. J. Greimas apre-
senta em três enunciados narrativos (EN) (GR 1970, 172-173):
EN 3 3 EN 2 3 EN 1.
93
"Strauss), mas também pela sua função no interior da unidade
sintagmática de que eles fazem parte» (GR 1970, 190).
Nesta linha de investigação, uma primeira exploração
através do conto popular permitiu a A. J. Greimas afirmar
que «os elementos necessários à existência da narrativa (...)
são em número de três: disjunção, contrato, prova» (GR 1970,
253): os «elementos» de que se trata aqui são, mais preci-
samente, sintagmas narrativos (segundo a terminologia pre-
cedente, mais rigorosa); quanto à prova (ou, noutros casos,
a «tarefa difícil» ou «teste»), o autor propôs mais tarde
(GR 1973b, 164) substituir-lhe o conceito de performance (que,
mais adiante, veremos como se articula na organização sin-
táctica). O conjunto destes três sintagmas narrativos (ou
unidades narrativas?) constitui uma seqüência narrativa de
que uma das definições possíveis seria: «uma unidade do dis-
curso narrativo autónoma, susceptível de funcionar como
narrativa, mas que igualmente se pode encontrar integrada,
enquanto uma das suas partes constitutivas, numa narrativa
mais ampla: o lugar que ela ocupará nesta, determinará a
sua função na economia global da estrutura narrativa» (GR
1970, 253). Ver-se-á ulteriormente que definição pode ser
dada da narrativa, porque não se trata neste caso de uma
unidade narrativa, mas antes de uma unidade discursiva.
2.2.5.1. A modalidade
94
discretas (denominadas actantes e organizadas segundo uma
estrutura específica, o modelo actancial) e unidades integra-
das ou predicados); estes últimos repartem-se em qualifi-
cações ou funções conforme relevem do «estatismo» ou do
«dinamismo».
«No interior da classe das funções, pode-se distinguir
uma sub-classe de modalidades (...), caracterizadas pela sua
relação hiperotáxica em relação ao predicado. Assim, nas
seqüências:
95
2.2.5.2. A modalização do fazer
96
do destinador/destinatário e o poder ao do adjuvante/opo-
nente. Acrescentemos, por outro lado, que estas modali-
dades não nos parecem ser do mesmo nível. Sem entrar em
análises sémicas muito exaustivas, que estão por se fazer,
já se pode estabelecer uma linha de demarcação entre o
querer, por um lado, o saber e o poder, por outro. O que-
rer, com efeito, instaura o sujeito como tal, enquanto o
saber e o poder estão directamente ordenados ao fazer: em
outros termos, a modalidade do querer, por caracterizar o
eixo sujeito-objecto, incidiria mais sobre a relação de estado
(conjuntiva, disjuntiva ou suspensiva), enquanto o saber
e o poder se inscreveriam ao nível do fazer transformador
(que assegura a passagem de uma relação de estado para
uma outra diferente).
Seja como for, a introdução das modalidades permite
precisar o esquema actancial, dando-lhe um desenvolvimento
mais amplo e novas possibilidades de combinatoria na cons-
trução de uma sintaxe narrativa superficial. Ê assim que,
considerando apenas o actante-sujeito, por exemplo, A. J.
Greimas propõe articulá-lo graças às modalidades, fazendo
aparecer desta forma os papéis actanciais diferenciados: «Se
o sujeito competente é diferente do sujeito performante, eles
não constituem por isso dois sujeitos diferentes: são somente
duas instâncias de um único e mesmo actante. Segundo a
lógica motivadora (post hoc, ego propter hoc), o sujeito deve,
em primeiro lugar, adquirir uma certa competência para se
tornar performador; segundo a lógica das pressuposições, o
fazer performador do sujeito implica previamente uma com-
petência do fazer. Diremos então que o actante-sujeito pode
assumir, num determinado programa narrativo, um certo
número de papéis actanciais. Estes são definidos ao mesmo
tempo pela posição do actante no encadeamento lógico da
narração (sua definição sintáctica) e pelo seu investimento
modal (sua definição morfológica), tornando assim possível
a regulamentação gramatical da narratividade. Uma termi-
nologia dos papéis actanciais deveria poder ser constituída,
para permitir distinguir nitidamente os actantes em si dos
papéis actanciais que eles são chamados a assumir no desen-
7 97
volvimento da narrativa. Poder-se-ia distinguir, assim, o
sujeito virtual do sujeito querer (ou sujeito instaurado); este,
do herói segundo o poder (Ogre, Roland) ou do herói segundo
o saber (o 'Pequeno Polegar, a Raposa), etc.» (GR 1973b,
164.165).
Esta focagem das modalidades do sujeito poderia esten-
der-se igualmente aos outros actantes. Notemos, por outro
lado, que as modalidades são susceptíveis de afectar os
actantes quer de maneira positiva (como acima), quer de
maneira negativa (não-poder, não-querer, não-saber), impe-
dindo assim o herói de passar ao acto; consequentemente,
na medida em que tal modalidade positiva é necessária para
a execução do fazer, assistir-se-á eventualmente a uma (se-
qüência de) transformação(ções) que conduz(em) à sua obten-
ção (cf. infra, nossa análise de Cinderela).
Como se vê, «uma sintaxe dos operadores deve ser cons-
truída, independentemente de uma sintaxe das operações (de
posição hierarquicamente inferior) (...) Os operadores sin-
tácticos serão concebidos nela como sujeitos dotados de
uma virtualidade particular do fazer que os tornará suscep-
tíveis de desempenhar a operação de transferência prevista.
Esta virtualidade do fazer é apenas uma modalidade: o saber
ou o poder; pode-se formulá-la (...) de duas maneiras dife-
rentes: quer como um enunciado modal que representa o
saber-fazer ou o poder-fazer do sujeito; quer como um enun-
ciado atributivo que assinala a aquisição de um valor modal
pelo sujeito» (GR 1970, 178).
Ultrapassando o quadro restrito do sujeito (o mais
estudado até aqui), estendendo então esta última distribuição
a qualquer actante, podemos — se nos colocarmos ao nível
actorial — considerar de duas formas a relação da modali-
dade com o actante. Num caso, a modalidade estará conjunta
com o actante, dada de maneira «inata»: tal é o caso do
Pequeno Polegar ou de Ogre («naturalmente» dotados do saber
ou do poder); no outro, ela aparecerá dis junta, podendo assim
dar lugar a «performances» destinadas à aquisição e à trans-
missão dos valores modais» (GR 1970, 179): é assim que às
vezes o poder, no conto popular, será assumido por um
98
objecto mágico (figurativização do valor modal), que se toma
ele próprio o objecto de uma aquisição.
iE neste ponto que reencontramos a dualidade actancial
adjuvante vs oponente que, momentaneamente, tínhamos dei-
xado em suspenso: ela recebe aqui, com efeito, uma interpre-
tação mais adequada: «;0s papéis actanciais que definem a
competência do sujeito podem ser manifestados quer pelo
mesmo actor que o sujeito ele mesmo, quer por actores dis-
juntos. iNeste último caso, o actor individualizado será deno-
minado, no seu estatuto de auxiliar, e no caso de ser con-
forme a deixis positiva ou negativa, ora adjuvante, ora opo-
nente» (GR 1973b, 167).
Por outro lado, como no caso (cf. supra 2.2.4.2.) dos
objectos em circulação, pode-se verosimilmente postular que
a transmissão dos valores modais se efectúa muitas vezes em
circuito fechado, segundo um sistema cerrado, e que, nesta
hipótese, a aquisição do poder por um sujeito, por exemplo,
só pode operar-se em detrimento de um outro: qualquer con-
junção para Si implicando uma disjunção para S2.
99
«o jogo da verdade e da decepção (muito amplamente
empregado na literatura oral, entre outros) apoia-se numa
categoria gramatical, a do ser vs parecer (que constitui, sabe-
mos, a primeira articulação semântica das proposições atri-
butivas)» (GR 1970, 192). A partir desta dicotomía fundamen-
tal e pondo em prática o modelo constitucional, obtém-se
quatro categorias de posição imediatamente superior, que são
o verdadeiro, o falso, o segredo e a mentira, susceptíveis de
articular ao seu nível a dimensão cognitiva:
verdadeiro
í serv^ ^parecer )
segredo l ^^'v,/^ } mentira
:ecev^ ^»
nao-parecer^ ^» nãc
nao-ser
falso
100
ticos), enquanto, no caso da modalização, a transferência
que se opera diz respeito ao valor modal do saber. Uma
combinatoria extremamente complexa pode-se instaurar a par-
tir daqui, a qual introduzirá, por exemplo, as categorias (da
base actorial) de reflexividade e de transitividade, e na qual
o saber pode incidir não somente sobre o ser e o fazer de
um determinado sujeito (em relação a um outro), mas também
sobre o seu próprio saber; efectuando-se então a transmissão
do objecto-saber segundo as próprias regras da ordenação
superficial (parcialmente apresentada mais acima), mas trans-
posta para um nível superior, ou mesmo para vários hierar-
quicamente ligados entre si (qualquer saber, por exemplo,
podendo ser o objecto de um meta-saber de posição supe-
rior). A título de ilustração, seja-nos suficiente reenviar aqui
ao Essai sur la vie amoureuse des hippopotames (por A. J.
Greimas e um grupo de investigadores). Pela nossa parte
veremos concretamente que esclarecimento resulta da veri-
dicção aplicada a um conto como «Cinderela» (cf. infra,
segunda parte). Acrescentemos, por outro lado, que o fazer
persuasivo e o fazer interpretativo que manipulam os estados
de veridicção, se situam em relação a eles a um nível hierar-
quicamente superior, o da modalidade do crer (fazer persua-
sivo = «fazer crer»; fazer interpretativo—«crer»).
'Notemos, ao terminar, que uma das vantagens do qua-
drado da veridicção (apresentado aqui acima) não é somente
a de «libertar» esta categoria modal das suas relações com
o referente não semiótico, mas também e sobretudo a de
sugerir que a veridicção constitui uma isotopia narrativa
independente, susceptível de colocar o seu próprio nível refe-
rencial e de nele tipologizar as diferenças e os desvios, insti-
tuindo assim a «verdade intrínseca da narrativa» (GR 1973b,
165-166).
101
a título mais pessoal, tentar esclarecer parcialmente a relação
do ser e do fazer, do ponto de vista das modalidades, detendo-
-nos, porém, exclusivamente no saber (as coisas se passariam
sem dúvida de modo completamente diferente com o querer
e o poder). Precisemos que se trata aqui somente de algumas
observações preliminares, de natureza particularmente hipoté-
tica, na expectativa de análises fundamentais.
Como distinguir então o saber sobre o ser (no qual o
ser recobre tanto estados como transformações: trata-se de
tudo o que existe) do saber-fazer (ordenado às acções, por-
tanto unicamente às transformações)?
Se compararmos os dois enunciados:
1 Eu sei andar.
Eu sei que ando.
102
fazer, dará lugar a uma repetição: o programa narrativo é
nesta cada vez retomado tal qual (exemplo: o caminhar);
b) uma memória paradigmática que, levando em conta
determinados elementos já registados, permitirá uma distri-
buição ad hoc: o que explicaria que o saber^azer pode ser
não somente repetição, mas também criação: é suficiente pen-
sarmos, por exemplo, nos artífices (carpinteiro, sapateiro, etc.)
que, nos seus trabalhos, são capazes de adaptar a sua técnica
(o saber-fazer), isto é, de organizar os elementos constituintes
desta em dois eixos, paradigmático e sintagmático, tendo em
conta a diversidade dos materiais com que devem tratar.
Estas duas formas do saber-fazer — repetitivo e cria-
tivo — são evidentemente interpretáveis de duas maneiras.
Numa hipótese de tipo ontológico, colocar-se-ia uma origem:
exterior ao sujeito, no caso do fazer repetitivo (imitação de
um modelo exemplar), interior ao sujeito, como fazer cria-
tivo («il a du génie») '. Em contrapartida, numa perspectiva
realista, não se impõe nenhum recurso a uma projecção
mítica: como constata o sentido comum, o fazer, uma vez
realizado (ou inscrito no passado), automaticamente se trans-
forma em saber-fazer («C'est en forgeant qu'on devient for-
geron») ^, no momento em que é registado pela memória.
Se, logicamente (ou miticamente), o saber-fazer precede
o fazer do ponto de vista genético (sob o ângulo da praxis),
é, ao contrário, a acumulação de vários fazeres que engendra o
saber-fazer. Para um determinado sujeito (numa narrativa),
a modalidade do saber-fazer é a recapitulação paradigmática
de acções passadas (que lhe são explícita ou implicitamente
atribuídas); do ponto de vista do processo, o saber-fazer con-
cedido ao sujeito permite dar-lhe (ficticiamente) uma história
anterior, de o inserir no tempo.
Reconhecemos assim que, em qualquer caso, se adquire
o saber-fazer ao longo de um eixo temporal, graças a um ou
a vários fazeres sucessivos. Certamente, o conto popular, por
exemplo, atribui às vezes este saber-fazer ao sujeito de ma-
não -saber
104
mediação de uma combinatoria, o mesmo não acontece entre
a organização profunda e a organização superficial.
«Morfología» «Sintaxe»
Nível superficial: sememas ^ organização actancial
f -f
Nível profundo: semas > modelo constitucional
105
duzamos no interior do que chamamos «sintaxe». Do mesmo
passo, o modelo constitucional, considerado então como mo-
delo taxinómico, aparece como uma morfología elementar, e
a sintaxe fundamental correspondente é a «que opera sobre
os termos taxinómicos previamente interdefinidos» (GR 1970,
166). A morfología reenvia então aqui para a organização
sistemática do quadrado semiótico, com as relações que per-
mitem definir os termos. Quanto à sintaxe, ela «consiste em
operações efectuadas sobre os termos susceptíveis de serem
investidos de valores de conteúdo; desta forma, ela os trans-
forma e os manipula, negando-os e conjuntando-os ou, o que
significa o mesmo, disjuntando-os e conjuntando-os» (GR 1970,
166); assim acontece, por exemplo, como mencionamos (em
2.1.2.3.), com a operação de contradição.
A sintaxe, concebida como um conjunto de regras ope-
ratorias, possui certas propriedades: as operações efectuadas
no interior do modelo constitucional são, por exemplo, orien-
tadas: «assim, no quadro de um só esquema taxinómico,
podem-se prever duas operações sintácticas e duas possíveis
transformações de conteúdo:
quer si -^ si
quer sT -» si» (GR 1970, 165).
106
semiótica se vê constrangida a introduzir uma espécie de
nível intermediário, anterior a qualquer manifestação (na
medida em que uma tal teoria se esforça por dar conta
da organização do sentido, independentemente dos canais de
comunicação utilizados), e ao mesmo tempo distante de uma
distribuição puramente lógica, insuficiente para dominar, até
ao detalhe, o objecto que ela se dá. Neste sentido, «pode-se
dizer que a gramática fundamental, que é de ordem concep-
tual, para poder produzir narrativas manifestadas sob forma
figurativa (em que actores humanos ou personificados reali-
zariam tarefas, submeter-se-iam às provas, atingiriam objec-
tivos), deve receber em primeiro lugar, a um nível semiótico
intermediário, uma representação antropomórfica, mas não
figurativa. É este nível antropomórfico que se designará com
o nome de gramática narrativa superficial, precisando que o
qualificativo «superficial», não tendo nada de pejorativo,
indica apenas que se trata de um patamar semiótico, cujas
definições e regras gramaticais são susceptíveis, com a ajuda
de uma última transcodificação, de passar directamente para
os discursos e para os enunciados lingüísticos» (GR 1970, 166).
Este patamar intermediário, que descrevemos parcial-
mente com a denominação de organização superficial (em
2.2.), não é simplesmente uma «representação» do nível lógico.
É certo que A. J. Greimas coloca uma equivalência entre a
operação sintáctica do nível profundo e o fazer (antropomór-
fico) do plano superficial: o que o autoriza a falar em «repre-
sentação». Introduzindo, no entanto, o «fazer», ele faz surgir,
do mesmo modo, elementos necessariamente ligados a este,
que não terão obrigatoriamente o seu correspondente ao nível
profundo. Assim, conforme já salientámos, «o fazer é (...)
uma operação duplamente antropomórfica: como actividade,
ela pressupõe um sujeito; enquanto mensagem, ela é objec-
tivada e implica o eixo de transmissão entre destinador e des-
tinatário» (GR 1970, 168).
Sem dúvida a correspondência entre a «gramática pro-
funda» e a «gramática superficial» manifesta-se muitas vezes
de forma bastante clara. É suficiente que retomemos aqui,
a titulo de ilustração, o caso da performance (situada como
107
tal ao nível superficial). «Se admitirmos que a representação
antropomórfica da contradição é de natureza polémica, a
seqüência sintagmática — que corresponde à transformação
dos valores do conteúdo, resultante, ao nível da gramática
fundamental, das operações de negação e de asserção — deverá
aparecer como uma seqüência de enunciados narrativos, cujas
restrições semânticas terão por tarefa conferir-lhe um carác-
ter de afrontamento e de luta» (GR 1970, 172). O autor extrai
então os três enunciados narrativos (=EN), subsumidos pela
unidade narrativa que é a performance:
108
encontrarmos nenhum ponto de ancoragem na organização
lógico-semântica fundamental. Como A. J. Greimas reconhece,
a «sintaxe do acontecimento que nos esforçamos por cons-
truir é, quer se queira ou não, de inspiração antropomór-
fica, projecção que ela é das relações fundamentais do
homem com o mundo, ou talvez inversamente, pouco importa»
(GR 1973a, 34).
Nesta perspectiva, a sintaxe superficial aparece como
uma «representação imaginária, mas também como a única
maneira de imaginar a apreensão do sentido» (GR 1973a, 16),
que corresponde ao fazer somático tal como ele se encontra
assumido e descrito ao nível da forma lingüística. Significa
afirmar com isto que os conceitos de «sujeito» e de «objecto»,
de «destinador» e de «destinatário», por exemplo, não são
tanto criações teóricas como a expressão de uma determinada
praxis, anterior a qualquer organização lógica. Mesmo as
modalidades sintácticas do querer e/ou saber e/ou poder
— logicamente anteriores aos enunciados narrativos de super-
fície e situadas, portanto, a um nível mais profundo — não
nos permitem fazer a junção entre «gramática superficial»
e «gramática profunda»: também elas, parece-nos, pertencem
a um nível especificamente antropomórfico.
¡Finalmente, quer se trate da organização sintáctica super-
ficial (modelo actancial), ou da sua modalização, estamos,
com efeito — num caso como noutro —, no que diz respeito
à «gramática fundamental», perante um investimento semân-
tico particular. Vimos assim como a constituição dos actantes
podia efectuar-se apenas pela introdução de restrições (ou
especificações) semânticas. Conforme tínhamos observado
desde a partida (em O.3.), a «gramática superficial» exige, para
a sua constituição, a exploração da componente semântica.
Entre o nível profundo e o nível de superfície, a correspon-
dência só pode ser parcial, dado este contributo semântico
particularizante, que não é seguro que não esteja ligado a
um determinado contexto socio-cultural: o que significa afir-
mar, do mesmo modo, a relatividade do projecto semiótico
(do ponto de vista da universalidade das estruturas de super-
fície) e, ao mesmo tempo, as chances de sua eficácia, na
109
medida em que, inserido numa determinada totalidade cul-
tural, ele se reconhece mais próximo de um imaginário colec-
tivo (do qual procedeu e que lhe serve de base para a des-
crição de corpus particulares).
Dito isto, e qualquer que seja o julgamento que se possa
proferir sobre os ¡pressupostos metodológicos aqui em jogo
(mas, de todas as maneiras, os pressupostos são sempre
necessários), não podemos deixar de nos interrogarmos sobre
a relação formal entre a organização fundamental e a orga-
nização superficial. Na nossa apresentação de conjunto, lem-
bramos várias vezes que no plano (por nós denominado)
«morfológico», a passagem de um nível para o outro se
efectuava por meio de uma combinatoria (a combinação dos
semas que produz sememas e metassememas). Paralelamente,
poderíamos esperar uma mediação análoga entre a organi-
zação dos semas (modelo constitucional) e a organização dos
sememas (que dá lugar à sintaxe superficial): ora, parece
não ser assim, e esta dissimetria revela-se problemática pelo
facto de que, no segundo caso, parece difícil falar de hierarquia
entre «gramática fundamental» e «gramática superficial»: na
medida em que, como A. J. Greimas lembra? o «conceito de
hierarquia (...) deve ser compreendido como a relação de
pressuposição lógica» (GR 1966, 14), vê-se mal — num pri-
meiro momento — como o «fazer» antropomórfico exigiria
previamente uma «operação» de tipo lógico. Mais do que
hierarquia, conviria então falar aqui somente de paralelismo
(de carácter a priori hipotético).
A dificuldade levantada aqui tem o seu corolário na impos-
sibilidade em que nos encontramos, no momento actual, de pro-
por modelos susceptíveis de fazer a ponte entre o nível profun-
do e o nível de superfície. Isto, porém, não significa que a
estruturação em patamar(es) intermediário(s) fique fora da ^
nossa alçada, sobretudo na medida em que disporíamos de um
sistema (coerente e ordenado) de restrições semânticas. Da
mesma forma que a modalidade (definida, num plano muito
geral, como a subordinação de um predicado pelo outro) pode
ser tipologizada pela introdução de classemas específicos
(ex.: «querer», etc), também o nível superficial pode ser para
110
o nível profundo o que a especie é para o género: nesta hipó-
tese, a relação entre os dois planos é a do englobado para o
englobante. Reencontraríamos então, sob uma forma dife-
rente, é verdade, da evocada relativamente aos semas e aos
sememas, a relação hierárquica que é indispensável à dife-
renciação dos níveis. A organização superficial (ou sintaxe
do acontecimento) é, portanto, uma «representação» — entre
outras possíveis — das relações e das operações do nível pro-
fundo (concebido como o lugar de investimentos semânticos
e virtuais).
Quanto à escolha de um investimento de carácter antro-
pomórfico (tal como ela aparece na estruturação actancial),
ela assenta no postulado segundo o qual a organização do sen-
tido, ao nível superficial, só se explica como a projecção
imaginária da relação do homem com o mundo ou com a
experiência, ou vice-versa (não sendo, a orientação desta rela-
ção, pertinente para uma abordagem que se quer de tipo
científico).
111
3. DISCURSIVO E NARRATIVO
3.0. REPETIÇÃO
«Morfología» «Sintaxe»
Nível superficial: sememas —v organização narrativa
(modelo actancial)
t t
Nível profundo: semas —>- organização sémica (lógica)
(modelo constitucional)
8 113
dades elementares organizavam-se entre si de maneira lógica,
segundo o esquema do modelo constitucional (ou quadrado
semiótico). A este nível profundo, e levando em conta o que
já dissemos até aqui, observa-se facilmente que a nossa dis-
tinção (para fins didácticos) entre «morfologia» e «sintaxe»
está particularmente sujeita à caução: colocámos, com efeito,
os termos (=semas) na componente «morfológica»; quanto
às relações e às operações, colocámo-las na «sintaxe», en-
quanto teria sido mais normal reservar para esta apenas as
operações propriamente ditas (pelas quais ela se define),
devendo as relações serem transferidas para a «morfologia»,
dado que somente elas permitem a identificação dos termos.
A passagem do nível profundo para o plano superficial
opera-se — do lado da «sintaxe» — pela introdução de res-
trições semânticas (apresentação antropomórfica das opera-
ções lógicas); paralelamente, no domínio da «morfologia»,
vimos que esta passagem fazia igualmente apelo ao mesmo
procedimento, recorrendo à distinção entre «conceptual» e
«figurativo» (que corresponde, na terminologia de Ampère,
à oposição «noológico» vs «cosmológico», e, na própria for-
mulação de A. J. Greimas, ao par «semântiso» vs «semioló-
gico»). Observamos, no entanto, que, no segundo caso, a
tipologia avançada se apoia, em parte, também sobre consi-
derações formais (os classemas diferenciam-se dos semas
nucleares por conjuntarem pelo menos duas figuras: cf. supra).
Ao nível superficial, relevamos que os sememas («efeitos
de sentido») se repartiam, do ponto de vista das suas relações
mútuas (segundo discreto vs integrado), em actantes e predi-
cados (ligados entre si por uma relação de pressuposição
recíproca): o que já instaura uma primeira forma sintáctica
elementar, esboço da organização narrativa. Estabelecendo,
porém, uma tipologia de actantes por restrições semânticas,
introduzimos simultaneamente um análise «morfológica» no
interior da componente «sintáctica»: o que significa afirmar,
uma vez mais, a relativa adequação desta dicotomía.
De qualquer modo, se a oposição actante/predicado per-
mitia dar conta da organização dos sememas entre si (por-
tanto, num plano sintáctico), ela deixava (metodológicamente)
114
de lado as suas características particulares, o seu estatuto
de «termos» enquanto tais (que exigem uma descrição «mor-
fológica»). Em outros termos, poderíamos dizer que o uni-
verso semântico, como conteúdo, pode ser considerado quer
do ponto de vista da forma (de onde a dicotomía actante/
/predicado e, mais ainda, a organização narrativa), quer do
ponto de vista da substância: esta, dissemos, articula-se em
semas nucleares e semas contextuáis.
Deixaremos aqui momentaneamente de lado os semas
contextuáis (nos quais falaremos mais adiante, em 3.3.), para
nos fixarmos no exame dos semas nucleares (base da com-
ponente discursiva) e no estudo das suas relações com a
organização narrativa.
Ainda aqui, como nos capítulos precedentes a investi-
gação não está senão no seu começo: poderemos então apre-
sentar apenas alguns prolegómenos, de forma muito hipoté-
tica, prenuncio de investigações a vir.
115
o relativo à /extremidade/. Dito de outra forma, temos aqui,
com cabeça, «uma figura nuclear a partir da qual se desen-
volvem certas virtualidades, certos percursos sémicos que
permitem a sua colocação em contexto, isto é, a sua reali-
zação parcial no discurso» (GR 1973b, 169-170).
Tomemos, por exemplo, o baile. Esta unidade figura-
tiva compreende vários semas nucleares. Sem querer pro-
por uma análise precisa desta, podemos, apesar disto, relevar
que ela implica a /temporalidade/ (o baile é uma reunião que
só dura um tempo), a /espacialidade/ (o baile é um lugar),
a /gestualidade/ (dança-se ali), a /socialidade/ (o baile é uma
reunião de pessoas), eventualmente a /sexualidade/ (na me-
dida em que o baile faz apelo à relação homem vs mulher), etc.
Um determinado discurso pode explorar o conjunto destes
elementos, ou só reter dele um ou outro:
116
liar, a figura do sol organiza à sua volta um campo figurativo
que comporta raios, luz, calor, ar, transparência, opacidade,
nuvens, etc. Uma tal constatação nos leva a dizer que, se as
figuras lexemáticas se manifestam, em princípio, no quadro
dos enunciados, elas transcendem facilmente este quadro e
organizam uma rede figurativa relacionai que se estende sobre
seqüências inteiras, constituindo aí configurações discur-
sivas (...): as configurações em questão não são outra coisa
senão as figuras do discurso (no sentido hjelmsleviano deste
termo), distintas ao mesmo tempo das formas narrativas e
das formas frásticas, fundando desta maneira, pelo menos
em parte, a especificidade do discurso como forma de orga-
nização do sentido» (GR 1973b, 170).
b) Do ponto de vista sintagmático, as figuras distribuem-
-se segundo um encadeamento relativamente constrangedor,
no quadro da configuração discursiva: neste sentido, poder-
-se-á falar de percursos figurativos, quando uma figura, logo
que colocada, chama uma outra, e assim por diante.
Estas primeiras observações já permitem esclarecer cer-
tos pontos. Assim, o nosso exemplo do baile, referido acima,
ajuda-nos a «compreender como (...) a escolha de uma figura
plurissemémica, que propõe virtualmente vários percursos
figurativos, pode dar lugar, contanto que os termos figura-
tivos que emergem no momento da realização não sejam
contraditórios, à organização pluri-isotópica do discurso (...).
No caso da pluri-isotopia, uma única figura no princípio dá
lugar a desenvolvimentos de significação sobrepostos num só
discurso» (GR 1973b, 172-173). Desta forma, a polissemia de
uma determinada figura abre a via a isotopías paralelas:
quanto à figura em si, ela desempenhará um papel de conector
(ou emhrayeur) de isotopías, lugar — simultaneamente — de
disjunção e de conjunção entre diferentes isotopías.
117
só são explorados parcialmente numa determinada seqüência.
Por isso, na análise de um determinado discurso, poder-se-á
reter apenas o percurso figurativo particular efectuado, e
tentar retomá-lo numa forma específica, a do tema, cujas
manifestações podem ser ao mesmo tempo diferentes e com-
paráveis. Assim, «uma ligeira hesitação na escolha desta ou
daquela figura, encarregando-a de um papdl determinado, pode
provocar o aparecimento de percursos figurativos distintos,
mas paralelos. A realização destes percursos figurativos intro-
duz assim a problemática das variantes» (GR 1973b, 173).
Como nós propusemos noutro texto, «pode-se conside-
rar cada lexema utilizado como constituído de semas gené-
ricos (que permitem as aproximações) e de semas específicos
(que engendram a diversidade); o baile e a missa são, em
Cinderela, reuniões públicas que fazem apelo às exigências do
vestuário, mas num caso trata-se de uma reunião para dançar
e no outro de uma reunião de oração, própria dos católicos.
A escolha de um ou de outro termo não muda em nada a
ordenação classemática (ou a isotapia geral). Pelo contrário,
ao nível das figuras nucleares, virtualmente prontas a desen-
volverem-se por si próprias, surgem diferenças aptas a pro-
longarem-se ao longo do conto, ou pelo menos, em certas das
suas partes: a descrição do baile em iPerrault ocupa espaço
bastante e mostra-nos em particular a heroína — chegada atra-
sada— partilhando com suas irmãs «as laranjas e os limões
que o Príncipe lhe tinha dado»; esta ilustração da /bondade/
encontra-se em situação de equivalência na versão 5: Cinde-
rela entra na igreja — no momento em que a missa já come-
çou (aqui também a heroína está atrasada) — e «passando
perto de sua irmã, coloca-lhe uma moeda de prata na mão
(estando a moeda de prata certamente ligada, ao nível semân-
tico, à colecta de dinheiro que se realiza durante o ofício).
É evidente que a prossecução de um tal paralelismo não se
imporá sempre» (J. Courtes, «De Ia description à la spécificité
du conte populaire merveilleux français», in Ethnologie fran-
çaise, II, 1-2, p. 36).
Nesta perspectiva, A. J. Greimas pode por sua vez escre-
ver: «Que a figura encarregada de representar o sagrado seja
118
a do padre, do sacristão ou a do bedel, o desenvolvimento
figurativo de qualquer seqüência encontra-se afectado por
isso, e os modos de acção, os lugares em que esta se deverá
situar, sempre conformes à figura inicialmente escolhida,
serão diferentes nas mesmas proporções uns dos outros (...).
No caso da plurivariância, a diversificação figurativa, retida
e disciplinada pela presença implícita de um papel único,
não impede a procura de uma significação comparável, senão
idêntica, em vários discursos manifestados» (GR 1973b, 173).
Na medida em que, conforme mostra esta ilustração
de A. J. Greimas, se considera o tema como podendo ser
confiado a alguém, a um determinado personagem, pode-se
então, da mesma forma, introduzir aqui a noção de papel
temático. Este definir-se-á por uma dupla redução: a pri-
meira é a redução da configuração discursiva a um só per-
curso figurativo, realizado ou realizável no discurso; a segunda
é a redução deste percurso a um agente competente que o
subsume virtualmente» (GR 1973b, 174).
lÉ assim que «o personagem do romance, a supor que,
por exemplo, ele seja introduzido pela atribuição de um nome
próprio que 1'he é conferido, se constrói progressivamente ao
longo do texto, por notações figurativas consecutivas e difu-
sas, e só manifesta a sua figura completa na última página,
graças à memorização operada pelo leitor. A esta memori-
zação, fenómeno de ordem psicológica, pode ser substituída
a descrição analítica do texto ( = a sua leitura, no sentido do
fazer semiótico), que deve permitir extrair as configurações
discursivas que o constituem e reduzi-las aos papéis temá-
ticos que ele assume» (GR 1973b, 174). Neste ponto,
A. J. Greimas propõe então inverter a perspectiva, para
precisar a relação entre figuras e papéis temáticos: «colo-
cando-nos do ponto de vista da produção do texto, somos
obrigados (...) a conceder a prioridade lógica aos papéis temá-
ticos que se apoderam das figuras e as desenvolvem em per-
cursos figurativos, comportando implicitamente todas as con-
figurações virtuais do discurso manifestado» (GR 1973b,
174475).
119
Este reagrupamento de figuras sob um determinado
papel temático explica-se, evidentemente — como veremos —,
devido à importância concedida ao modelo actancial e, atra-
vés dele, aos actores: lembremos, mais uma vez, que, dife-
rentemente de V. (Propp que joga exclusivamente com as
«funções», a semiótica — aqui apresentada — atribui a prio-
ridade aos actantes, e esta escolha privilegiada inicial deter-
mina a leitura da componente semântica do discursivo. É es-
cusado dizer que uma outra semiótica, de tipo não narrativo,
procederia diferentemente, de acordo com a sua própria
perspectiva de análise.
120
anotados na narrativa ou simplesmente subentendidos)» (GR
1970, 256). Assim acontece no caso do romance, em que os
«comportamentos» de um personagem são recenseados con-
forme a narrativa, diferentemente da literatura oral, em que
os papéis temáticos — e mais particularmente os papéis so-
ciais ou morais — não têm necessidade de serem explícitos,
sendo supostos como conhecidos por qualquer auditório
(ex.: a «madrinha», o «lenhador», o «padre», etc), dado que
se trata de clichés fortemente esteriotipados.
«O conteúdo semântico mínimo do papel é, consequen-
temente, idêntico ao do actor, com excepção, porém, do sema
de individuação que ele não comporta: o papel é uma
entidade figurativa animada, mas anónima e social; em com-
pensação, o actor é um indivíduo integrado que assume um
ou vários papéis» (GR 1970, 256). Noutros termos, «se reser-
varmos ao termo de actor o seu estatuto de unidade lexical
do discurso, definindo ao mesmo tempo o seu conteúdo
semântico mínimo pela presença de semas a) entidade figu-
rativa (antropomórfica, zoomórfica ou outra), h) animada
e c) susceptível de individuação (concretizada no caso de cer-
tas narrativas, sobretudo literárias, pela atribuição de nomes
próprios), apercebemo-nos de que tal actor é capaz de assumir
um ou vários papéis» (GR 1970, 256).
Esta definição do actor está evidentemente incompleta:
ela só diz respeito ao seu investimento semântico. Com efeito,
não esqueçamos que o actor não se reduz unicamente à com-
ponente discursiva: integrado na narrativa, ele tem também
um lugar na ordenação sintáctica. Nesta perspectiva, o actor
aparece então como «o lugar de encontro e de conjunção das
estruturas narrativas e das estruturas discursivas, da com-
ponente gramatical e da componente semântica, porque ele
está encarregado ao mesmo tempo de pelo menos um papel
actancial e de pelo menos um papel temático, que precisam
a sua competência e os limites do seu fazer ou do seu ser.
Ele é simultaneamente o lugar de investimento destes papéis,
mas também da sua transformação, uma vez que o fazer
semiótico, operando no quadro dos objectos narrativos, con-
siste essencialmente no jogo de aquisições e de perdas, de
121
substituições e de trocas de valores modais ou ideológicos.
A estrutura actorial aparece, portanto, como uma estrutura
topológica: relevando ao mesmo tempo das estruturas nar-
rativas e das estruturas discursivas, ela é apenas o lugar da
sua manifestação, não pertencendo particularmente nem a
uma nem a outra» (GR 1973b, 176).
122
cessos sucessivos que balizam a narrativa efectuam-se por ou
em função de actantes (unidades sintácticas de tipo nominal
que entram em jogo nos dois tipos de enunciados que aca-
bamos de evocar) — tais que sujeito, objecto, destinador ou
destinatário — susceptíveis, como assinalamos, de serem mo-
dalizados segundo o querer, o saber e o poder, dando assim
lugar a papéis actanciais distintos. Lembremos que o fazer
sintáctico — ao qual nos limitamos aqui — corresponde, em
última análise, às operações lógicas (situadas ao nível pro-
fundo) de que ele é uma representação antropomórfica.
A análise gramatical permite então, entre outros, extrair
os papéis actanciais, graças aos quais se operam as trans-
formações, segundo programas narrativos específicos. Para-
lelamente, a componente semântica da narrativa pode ser
retomada em parte, através de um certo número de papéis
temáticos, de caracter quer social (ex.: pai, mãe, madrasta, etc),
quer psico-sociológico (cf. os trabalhos de C. Bremond), quer
psicológico (v. g. em vários romances), quer morais (ex.: Cin-
derela é muitas vezes qualificada de «boa»), papéis que regem
os comportamentos apropriados, mais ou menos esterioti-
pados.
Se nos colocarmos do ponto de vista da manifestação
figurativa da narrativa, definiremos estes papéis temáticos
como a redução de um conjunto de unidades qualificativas
e/ou funcionais a um agente que os subsume como outras
tantas expressões virtuais possíveis: assim, a /madrinha/
(papel temático relativo à organização social para-familiar,
freqüente nas variantes de Cinderela) sintetiza um certo
número de atributos, de acções e de comportamentos pre-
visíveis («bondade», «visita à sua afilhada», «presentes ofe-
recidos», etc), susceptíveis de a definir.
Dispomos, portanto, de dois tipos de papéis, actanciais
e temáticos, prontos a serem sobrepostos: o seu encontro
realiza-se efectivamente ao nível dos actores (de que a análise
gramatical e semântica permite assim dar conta). Estes estão,
com efeito, encarregados de uma dupla missão: por um lado,
eles suportam a estrutura narrativa, repartindo entre si as
funções fundamentais, segundo as seqüências em jogo na
123
narrativa; por outro, eles endossam os elementos semânticos
de ordem atributiva ou funcional, de que o texto está tecido.
124
que a estrutura actorial está, neste caso, objectivada; a dis-
tribuição actorial pode ter uma expansão mínima e reduzir-se
a um só actor que assume todos os actantes e papéis
actanciais necessários (dando lugar a uma dramatização inte-
rior absoluta): a estrutura actorial será dita, neste caso,
subjectivada» (GR 1973b, 168).
Deste modo, «o reconliecimento do principio de não-
-concomitância posicionai dos actantes semióticas e dos acto-
res discursivos (que, por sua vez, não devem ser confundidos
com os actantes lingüísticos frásticos), e da distancia que
separa um dos outros, garante assim a autonomia da sintaxe
narrativa e a instaura como uma instância organizadora e
reguladora da manifestação discursiva» (GR 1973a, 18).
Não é isto o que já havíamos sublinhado, em particular
a respeito dos enunciados juntores de objectos (ou de sujei-
tos), em que somente «a identificação dos dois objectos,
devido ao sincretismo actorial, permite a redução de dois
enunciados elementares num enunciado complexo» (GR 1973a,
30)? Do mesmo modo, como igualmente observamos, é a
relação entre a estrutura actancial e a estrutura actorial que
permite introduzir a dupla categoria do reflexivo e do tran-
sitivo para uma primeira tipologia do fazer transformador.
Num e noutro caso o plano sintáctico, de natureza propria-
mente semiótica, não poderia confundir-se com a distribuição
discursiva.
«O reconhecimento de dois níveis — narrativo e discur-
sivo — autónomos e encaixados dá perfeitamente conta do
processo ambíguo do sujeito da narração, convidado a seguir
simultaneamente os dois percursos sintagmáticos que lhe são
impostos: por um lado, otfprograma narrativo determinado
pela distribuição de papéis actanciais e, por outro, o caminho
privilegiado estabelecido pela configuração discursiva, em que
uma figura, logo que colocada, propõe um encadeamento
figurativo relativamente constrangedor (...). A conjunção das
duas instâncias — narrativa e discursiva — tem (...) por efeito
o investimento dos conteúdos nas formas gramaticais canó-
nicas da narração e permite a produção de mensagens nar-
rativas sensatas» (GR 1973b, 171-172).
125
3.3. OBSERVAÇÕES SOBRE A UNIDADE DISCURSIVA
126
mais do que a inversão dos signos do conteúdo. Uma correla-
ção existe assim entre os dois planos:
127
cado pela busca (cf. A. J. Greimas e J. Courtes: «Cendrillon
va au bal», op. cit.), isto é, pela disjunção entre sujeito e
objecto, reconheceremos que a narrativa compreende final-
mente duas componentes: uma organização polémica e um
elemento contratual.
No eixo sujeito-objecto, vimos que qualquer aquisição
de valores (objectivos ou modais) num universo fechado só
se realiza em detrimento de um outro sujeito. Qualquer pro-
grama narrativo realizado por um sujeito implica, neste caso,
um programa inverso (ou anti-programa), em que o promotor
é o adversário. Segundo esta organização polêmica, poder-
-se-ia prever, na seqüência de A. J. Greimas (GR 1973b, 163),
um desdobramento da estrutura actancial (correspondendo às
duas__deixis, positiva e negativa, do quadrado semiótico:
sl + s2 e s2 + sl): destinador vs anti-destinador; destinatário
vs anti-destinatário; sujeito vs anti-sujeito; objecto positivo vs
objecto negativo (furtar qualquer coisa a alguém pode ser
considerado como a outorga de um objecto negativo: deste
ponto de vista, «dom» e «furto», por exemplo, relevam funda-
mentalmente de uma mesma organização). A correlação de
um determinado programa narrativo com um anti-programa
implícito permite, mesmo na narrativa mais simples, situar
este último não somente no eixo sintagmático (o que é evi-
dente), mas também no eixo paradigmático; é claro que a
manifestação pode explicitar igualmente o anti-programa, des-
dobrando assim a narrativa (cf. o conto-tipo 480).
Se a distribuição polémica (cf. supra, a apresentação da
«performance») tem finalmente por objecto articular a com-
ponente do acontecimento da narrativa, o contrato, ao contrá-
rio, poderá representar a componente sistemática desta.
Dado que uma análise suficientemente exaustiva do ele-
mento contratual não foi ainda realizada, poderemos dar,
ainda aqui, apenas alguns primeiros elementos de reflexão.
Suponhamos que a narrativa é ao mesmo tempo sistema e
processo:
a) ao nível profundo teremos então o sistema taxinó-
mico dos valores investidos na narrativa e um certo número
128
de operações ( = processos) possíveis, de tipo lógico, efectuá-
veis no quadro do modelo constitucional;
b) ao nível superficial, concebido — conforme consta-
tamos — como uma representação antropomórfica do nível
profundo, temos o fazer sintáctico (correspondendo às opera-
ções lógicas) que é da ordem do processo; quanto ao sistema,
que este fazer performancia! antropomórfico pressupõe, pode-
mos simplesmente identificá-lo ao contrato (que é a figura
do sistema axiológico subjacente).
Na medida em que o sistema (contrato) tomar lugar
antes do processo (fazer), a narrativa aparecerá como a reali-
zação do contrato: como, por exemplo, no caso do contrato
social inicial; em contrapartida, se o sistema só se desvendar
no termo do processo, a narrativa definir-se-á como a busca
do contrato (prática significante); pode-se igualmente prever
o caso no qual a recusa de um contrato inicial permitirá
manifestar — através do fazer — um contrato oposto (ou
diferente).
Por outro lado, o enunciado contratual increve-se entre
o destinador e o destinatário. Enquanto sistema, o contrato
releva primeiro do destinador, que pode ser considerado como
a figura antropomórfica ou o suporte dos valores axiológicos
em jogo; o conteúdo do contrato é então proposto — sob a
forma de programa narrativo — ao destinatário que, a partir
daí, assegurará o papel de sujeito do fazer performancial.
Em outros termos, o destinador representa, do ponto de vista
paradigmático, os conteúdos investidos (postos); correlativa-
mente, o destinatário, tendo-se tornado sujeito da componente
do acontecimento, é a projecção sintagmática do sistema
taxinómico. Nesta perspectiva, o contrato é para o desenvol-
vimento (ou para a execução do programa) narrativo o que
o virtual é para o actualizado, sendo a mediação entre sistema
e processo assegurada pelo destinatário-sujeito. Esta relação
do contrato com a realização, homologável como ela é a do
virtual e do actual, nos convida a aproximá-la do par compe-
tência vs performance: deste ponto de vista, o destinador
poderá subsumir, sintéticamente, o conjunto das modalidades
(saber, poder, querer) que o fazer performancial pressupõe.
9 129
3.3.2. As componentes narrativa e discursiva da narrativa
130
como uma série de códigos (ou de níveis «discursivos» arti-
culados) em número indeterminado:
Narrativa
culinário Y _ |
social _
sexual.
estético __| \-J^ 1 I -I - - - I - 1 / - - - I
moral | 1 __T | :
tecnológico | | -| -|
etc.
131
tier é obrigado a postular um nível «banal» da linguagem)
e na ausência da qual nenhuma análise da narrativa seria
possível; outra de natureza sintagmática que determina as
relações de isotopía (de «acordo semântico», diz B. Pottier,)
entre as unidades de conteúdo.
O contexto sintagmático, produzindo isotopías, permite
reter das unidades de conteúdo, das figuras nucleares, apenas
os elementos compatíveis entre si (dando assim lugar aos
sememas, unidades que, lembremo-nos, incluem os semas
contextuáis), operando desta forma uma selecção discursiva,
ao mesmo temipo particular (ou local) e necessária. !A isotopía
torna assim possível, discursivamente, a homogeneidade das
figuras, sobretudo quando estas são disparatadas, isto é, quan-
do não pertencem ao mesmo código cultural, ao mesmo con-
junto discursivo.
Ê neste ponto que é necessário situar estas unidades do
nível da manifestação do conteúdo, que deixamos em sus-
penso: os metassememas produzidos, como dissemos, pela
combinação apenas entre semas contextuáis. O seu papel clas-
semático é evidentemente determinante em cada organização
discursiva particular: é suficiente pensar, ao.nível da forma
lingüística, em francês, por exemplo, nas conjunções (et ou),
nos advérbios relacionais (plus ou moins) e nos substantivos
que não implicam a presença de elementos «semiológicos» que
são de ordem categorial, «conceptual».
Se, como acabamos de fazer, dissociarmos na narrativa
a componente discursiva (analisável segundo os eixos paradig-
mático e sintagmático) e a organização narrativa, isto só é
possível, com efeito, de maneira teórica ou para fins didác-
ticos. Não poderíamos esquecer, de facto, que o nosso conhe-
cimento dos conteúdos investidos só se pode elaborar através
de esquemas sintácticos e que, inversamente, os modelos nar-
rativos — mesmo se lhes dermos a prioridade lógica na pers-
pectiva da produção da narrativa — só se podem constituir
com o corihecimento da componente discursiva: a exemplo
do domínio lingüístico, da «gramática» e do «dicionário» que,
teoricamente distintos, só se especificam um em relação ao
outro.
132
4. PARA CONCLUIR
133
Greimas e de F. Rastier, podemos imaginar que o espírito
humano, para chegar à construção de objectos culturais (lite-
rários, míticos, picturais, etc), parte de elementos simples
e segue um percurso complexo, encontrando no seu caminho
tanto constrangimentos a que deve submeter-se como escolhas
que é livre de operar.
Procuramos dar uma primeira idéia deste percurso. Pode
considerar-se que ele conduz da imanência à manifestação,
em três etapas principais:
— as estruturas profundas, que definem a maneira de
ser fundamental de um indivíduo ou de uma sociedade, e
através disso as condições da existência dos objectos semió-
ticos. Do que sabemos a este respeito, os constituintes ele-
mentares da estrutura profunda têm um estatuto lógico, sus-
ceptível de ser definido;
— as estruturas de superfície constituem uma gramática
semiótica que ordena em forma discursiva os conteúdos sus-
ceptíveis de manifestação. Os produtos desta gramática são
independentes da expressão que os manifesta, conquanto
possam teoricamente aparecer em qualquer substância e, no
que diz respeito aos objectos lingüísticos, em Qualquer língua;
— as estruturas de manifestação produzem e organizam
os significantes. Embora possam compreender quase-univer-
sais, elas permanecem particulares a esta ou àquela língua
(ou, mais precisamente, elas definem as particularidades das
línguas), relativamente a este ou àquele material» (GR 1970,
135-136).
Encontram-se assim resumidos e especificados os prin-
cipais níveis, de que somente os dois primeiros foram consi-
derados na nossa exposição. Dado o estado da investigação,
não nos é possível transpor o passo que vai das estruturas
de superfície às da manifestação propriamente dita (incluindo
o significante). Assim, por exemplo, no caso de uma mani-
festação lingüística (conto, romance, etc), distinguimos o
plano do significante, em que a narração está submetida «às
exigências específicas das substâncias lingüísticas, através
das quais ela se exprime» (GR 1970, 158) com constrangi-
mentos estilísticos, entre outros, e, por outro lado, «um nível
134
imánente, constituindo uma espécie de tronco estrutural
comum, em que a narratividade se encontra situada e orga-
nizada anteriormente à sua manifestação. Um nível semió-
tico comum é, portanto, distinto do nível lingüístico e é-lhe
logicamente anterior, qualquer que seja a linguagem escolhida
para a manifestação» (GR 1970, 158). No entanto, esta dis-
sociação dos dois planos, teórica e praticamente necessária,
exigiria, para ser totalmente satisfatória, procedimentos de
conversão (ou sistemas de transcodificação) que permitissem
a passagem de um ao outro: o que, no estado presente dos
nossos conhecimentos, está fora das nossas possibilidades.
jSeja como for, reter-se-á pelo menos que a semiótica
não corresponde ao estudo dos signos (nível da manifestação
lingüística, ou pictural, ou musical, ou visual, etc), mas a
tudo o que lhes é anterior, a tudo o que é pressuposto pelos
signos, a tudo o que permite e conduz à sua produção. Isto
significa que a investigação semiótica só é possível se ela se
situar num plano logicamente anterior ao da manifestação,
numa espécie de «espaço» que lhe compete organizar: «deve-se
conceber a teoria semiótica de tal modo que entre as instân-
cias fundamentais ab quo, em que a substância semântica
recebe as suas primeiras articulações e se constitui em forma
significante, e as últimas instâncias ad quem, em que a signi-
ficação se manifesta através de múltiplas linguagens, um vasto
espaço seja organizado para a instalação de uma instância de
mediação, em que estariam situadas as estruturas semióticas
que possuem um estatuto autónomo — entre as quais as
estruturas narrativas —, lugar em que se esboçariam as arti-
culações complementares dos conteúdos e uma espécie de
gramática ao mesmo tempo geral e fundamental, que presi-
diria à instauração de discursos articulados (...). A teoria
semiótica só será satisfatória se souber dispor no seu seio
um lugar para uma semântica e uma gramática fundamentais»
(GR 1970, 159-160).
Assim, entre uma instância ab quo postulada como sendo
o nível mais profundo e que, como vimos, se organiza segundo
o modelo constitucional, e o plano da manifestação, se inserem
«articulações complementares», definidas por uma «gramá-
135
tica» específica. Na medida em que abandonarmos — momen-
tânea e metodológicamente — o nivel da manifestação dis-
cursiva (em toda a extensão: concatenação de enunciados),
para nos fixarmos numa análise em profundidade, seremos
levados a propor patamares hierárquicos que correspondam,
conforme vimos, à introdução de novas componentes semân-
tico-sintácticas, como a representação antropomórfica das
operações lógicas, a modalização, a espacialização (cf. a oposi-
ção espaço tópico vs espaço heterotópico, definindo-se o
espaço sempre pelo actor que lhe está conjunto), a tempora-
lização (com os seus mecanismos aspectuais que são as rela-
ções antes/depois, passado/presente/futuro, incoativo/dura-
tivo/terminativo) e a figurativização. Fazendo assim apelo
a estas poucas formas de organização da significação, é evi-
dente que nos aproximamos cada vez mais do plano da
manifestação.
O fim perseguido é, com efeito, suficientemente claro:
partindo de uma estrutura fundamental, colocada como o
plano de análise mais profundo possível, esforçamo-nos por
remontar em direcção à manifestação, tendo como recurso
as componentes cada vez mais especificadoi^s. Se um tal
projecto parece simples no seu objectivo, ele faz surgir, na
praxis, dificuldades insuspeitadas.
Com efeito, por um lado, se a organização geral:
— estruturas profundas,
—estruturas de superfície,
— estruturas de manifestação,
é, logo à primeira vista, extraída muito facilmente, a intro-
dução — necessária — de patamares intermediários conduz-
-nos a uma complexificação cada vez maior; demo-nos conta
de que as coisas são menos simples do que parecem: é sufi-
ciente lembrarmo-nos aqui do abandono, ao nível semiótico,
da distinção entre «valores objectivos» e «valores subjectivos»
(fundada na oposição ter ou ser), julgada muito próxima da
manifestação lingüística; de onde uma espécie de «redescida»
para um patamar inferior (reconhecido então como realmente
semiótico), «em que um só enunciado semiótico do tipo
S n O
136
pode ser postulado, como subsumindo uma grande variedade
de manifestações lingüísticas de urna mesma relação de con-
junção entre o Sujeito e o Objecto, deixando de lado o facto
de prever ulteriormente uma tipologia estrutural da mani-
festação e, a seguir, regras de engendramento de enuncia-
dos, correspondendo a níveis gramaticais mais superficiais»
(GR 1973a, 18).
A esta complexificação cada vez maior, como as actuáis
investigações semióticas testemunham, acrescenta-se, correla-
tivamente, uma outra dificuldade. A introdução, no modelo
geral, de novas componentes semântico-sintácticas mais finas,
não pode efectuar-se sem colocar o problema das suas rela-
ções mútuas. Queremos dizer com isso que a estruturação
em diferentes patamares — enriquecedora e necessária, ao
mesmo tempo —, deve operar-se de maneira diferente: a ques-
tão aqui levantada (e já fizemos alusão a ela por ocasião da
nossa descrição da relação entre estruturas profundas e estru-
turas de superfície) é a da equivalência ou a da conversão
entre os níveis propostos.
Ainda aqui a investigação é mais tateante do que con-
vincente: o que não lhe deveríamos censurar, dado que ela
se encontra num começo de exploração metodológica. Se
várias «semióticas» se anunciam como tais à nossa volta,
com teorias brilhantes e subtis, muito poucas — reconheça-
mos — estão capacitadas para nos propor os instrumentos
metodológicos adequados que, aplicados ao estudo de deter-
minados materiais, permitiriam apreciar o seu valor intrín-
seco e operatorio. O esforço de investigação, apresentado
nestas páginas, evidentemente, não é satisfatório em todos
os pontos, e não constitui um conjunto acabado, inteiramente
organizado. No entanto, e é isso pelo menos um dos seus
méritos (que alhures se não encontra muitas vezes), a semió-
tico narrativa e discursiva, elaborada pela e/ou na perspec-
tiva de A. J. Greimas, apresenta-se como um fazer concreto,
certamente imperfeito, mas de carácter operacional e anun-
ciador de investigações e de descobertas possíveis a vir.
137
4.2. SEMIÓTICA E IMAGINÁRIO
138
o homem dá à sua experiência, à sua posição no espaço e no
tempo, a este ponto em que o dizer (ou, mais exactamente,
todas as linguagens de manifestação) e o fazer somático
entram em conjunção e em disjunção para criar o sentido.
Dito isto, se a semiótica — tal como nós a entendemos,
e entre outras possíveis — recusa limitar-se somente à análise
dos significantes (dos códigos) que servem para a transmissão
das mensagens entre emissor e receptor, ela não despreza por
isso o facto humano da comunicação: ao contrário, ela inte-
gra-o totalmente — mas desta vez como componente na aná-
lise do conteúdo — no quadro da sintaxe narrativa, com a
articulação dos objectos (pragmáticos ou modais) entre os
sujeitos, revelando entre uns e outros relações de disjunção
ou de conjunção. Longe de recusar o esquema da comuni-
cação (cf. GR 1970, 175; 1973b), a semiótica narrativa e dis-
cursiva, aqui apresentada, considera-o como uma das formas
primeiras do imaginário e do fazer real do homem, e faz
dele o eixo central do seu modelo sintáctico antropomórfico.
Nesta perspectiva, o esquema da comunicação não serve
já para restringir a semiótica ao estudo dos códigos (=signi-
ficantes) utilizados e para excluir talvez indirectamente o das
mensagens (=significados): ele é retomado aqui, em parte,
para uma articulação do conteúdo. Da mesma forma, a comu-
nicação, definida ao nível do fazer semiótico (real) ou ao da
representação como transmissão regulada de objectos entre
sujeitos, só pode ser apreendida por meio de uma distribui-
ção espacio-temporal: é o que testemunha amplamente a ter-
minologia que tentamos apresentar, diferindo de um simples
léxico, numa forma concisa e sistemática.
139
Segunda parte
143
inicial (SI U S2), ao contrário, ela tem como m a r c a s caracte-
rísticas a / h u m i l h a ç ã o / e a / p o b r e z a / . É p o r isso que, neste
p o n t o da narrativa, o casamento aparece como verosimilmente
impossível. O conto tipo 510 A introduz então assim entre
os dois parceiros u m a oposição na isotopía socio-económica,
cuja supressão seria a única a permitir o acesso ao casamento.
a) A existência da oposição entre S I e 'S2 requer, p o r
p a r t e do contista, u m a justificação correspondente. Dito de
o u t r o modo, a instauração da disparidade apela eventualmente
p a r a u m a espécie de narrativa introdutória, articulada segundo
u m sub-programa n a r r a t i v o particular, O n a r r a d o r tem, com
efeito, duas possibilidades:
1) Ou coloca a heroína n u m estado de / h u m i l h a ç ã o / e de
/ p o b r e z a / sem especificar as razões antecedentes, p o r t a n t o ,
de maneira «inata»; a perspectiva é aqui atributiva ou qua-
lificativa:
— «Três irmãs. Havia uma que não era mexida» (v. 30).
— «A mais jovem era tratada por Cul Cendron', porque se arras-
tava sempre na sujeira» (v. 3(1).
— «A filha do homem, chamada Cul Cendren, andava mal arran-
jada» (v. 6).
— «A terceira... era desprezada, não se vestia como as outras, e
deixava-se ficar sempre ao pé do fogo, e baptizaram-na de Cen-
drouse...» (v. 13).
144
No caso do antropónimo Cendrillon (Cinderela), podemos
dizer que «se 'cendres' (cinzas) reenvia em primeiro lugar a
'resíduo' e 'humilhação' (e, secundariamente, a uma posição
virtual de 'elevação': cf. a expressão 'renascer das cinzas'),
a utilização do sufixo 'ilion' não é de modo algum pejorativo
(diferentemente de 'ouillon' que aparece em certas variantes):
trata-se aqui somente de um diminutivo (cf. oisillon, bouvillon,
raidillon O que atenua o conteúdo depreciativo do radical» ^.
O mesmo é o caso de «Cendrouzette». Em compensação «Cul
Cendron» revela-se mais pejorativa. Quaisquer que sejam as
nuances produzidas aqui e ali (com uma desinencia masculina
ou feminina), temos sempre uma denominação com um con-
teúdo semântico (o conto popular, diferentemente da litera-
tura escrita, ignora habitualmente os antropónimos não moti-
vados) que se opõe claramente ao «filho do rei». O recurso
à figura «cinzas» permite, mesmo neste nível lexemático, acen-
tuar a diferença entre 'SI e S2.
io 145
Ao nível semântico, tem-se então aqui uma oposição
do tipo:
dominador vs dominado,
146
— «A mãe ciumenta enviava (Cinderela) para os campos com
a filaça: aqui estão os sete fusos e um alinhavador: se isto
não for fiado, diz-llie ela, cautela esta noite! (v. 9).
147
o de constituir ao menos um eixo de referência: a priori, com
efeito, não estarão elas melhor «colocadas» do que Cinderela,
em relação a um casamento virtual com o príncipe, dado que,
em nome dos seus atributos elas correspondem muito mais
às exigências da norma (segundo a qual os casamentos têm
de preferência lugar entre pessoas do mesmo nível social)?
A título de ilustração, reenviamos somente à v. 13, na qual
a heroína fica a «raspar as cinzas» enquanto as suas irmãs
trazem «bonitos vestidos (...) exactamente o que havia de
mais belo». Deste ponto de vista, a narrativa encontra-se como
que desdobrada (S2 e nãojS2), com dois programas narrativos
invertidos: à aquisição, por Cinderela, do poder-se casar
corresponde à perda deste mesmo poder por parte das irmãs:
assim, na v. 32, ver-se-á — através de uma mesma prova —
a heroína feia aceder à beleza (da qual veremos ulteriormente
toda a importância na possibilidade do fazer casamento), en-
quanto a sua irmã bela se torna horrível de ver, ao ponto de
«com a sua cauda de asno e os seus piolhos e pulgas, (ela ser)
motivo de escárnio de todos os convidados da boda».
— /humilhação/ vs /elevação/ e
— /pobreza/ vs /riqueza/
148
entre SI e S2 — que permitirá o casamento — apela necessa-
riamente para um processo correspondente: sem nada perder
daquilo que ele é, o Príncipe — em nome do seu «bel pra-
zer» — faz entrar Cinderela no seu universo de /elevação/
e de /riqueza/, segundo um tipo de comunicação participativa
(conforme a qual, por exemplo, a aquisição que eu faço do
saber não priva em nada o meu informador).
149
o contista só retém o primeiro membro, deixando assim na
sombra o fazer paralelo (correspondente) de S2 '. É aliás
significativo que os personagens que intervém em Cinderela
sejam somente os que correspondem aos actantes na primeira
parte de [1], a saber:
— iSi = príncipe;
— Os2 = Cinderela (em posição de objecto);
— S4 = família de Cinderela.
1 Pode-se 1er o enunciado final assim: o rapaz (SI) faz com que
a rapariga lhe sej'a conj'unta como objecto '(Os2), ao mesmo tempo
que ele a disjunta de sua família; correlativamente, a rapariga une-se
ao rapaz que ela separa dos seus. A esta leitura de tipo reflexivo pode
ser substituída uma perspectiva transitiva, se o sujeito da acção for
diferente do beneficiário (ex.: nas sociedades em que o casamento é
uma questão entre clãs, onde se faz apelo a um agente matrimonial).
150
possessão? Em todos os casos onde a mãe de Cinderela
figura na narrativa, ela recusa-se freqüentemente a «dar» esta
filha em casamento ao príncipe: mesmo se — e porque — ela
a maltrata, ela pretende sempre conservá-la em seu poder:
— «(O filho do rei) ia de casa em casa (para experimentar
o sapato). A madrasta põe Cinderela debaixo de uma tina,
enquanto se experimenta o sapato na própria fiUia (...). Mas
nesse mesmo instante, a cadela dizia: Bai, baou, a bonita está
debaixo da tina, enquanto a feia corre pelas ruas». O rei per-
guntou: «Que diz ela? — Oh, nada, é Cendron, escondia-a porque
ela está muito suja...» (v. 9; a v. 6 introduz este mesmo episódio
com um «cão»);
— «Só restava ainda para visitar a casa da mãe das duas
filhas. Quando os mensageiros do rei (encarregados do ensaio
do sapato) chegaram, perguntaram-lhe onde estavam as suas
filhas. Ela só mostrou a Feia, dizendo que a outra (= Cinderela)
estava ausente '(...). Os enviados do rei iam partir quando ouvi-
ram um papagaio dizer: —A bonita está debaixo da tina (=o
barril). A mãe quis calar o papagaio. Em vão. Ela queria
enxotá-lo; mas ele obstinava-se a repetir: — A bonita está debaixo
da tina. Finalmente, os enviados do rei avistaram um barril
virado, e com efeito a bela estava lá debaixo» (v. 38).
151
«o sapato ia-lhe às maravilhas. O filho do rei estava con-
tente: ele queria esposar Genderella. Mas a madrasta não queria,
ela queria que ele esposasse Piccigotta (=irmã de Cinderela).
Então, à noite, ela acendeu o fogo para aquecer o forno e colocar
dentro Genderella. As duas raparigas estavam deitadas no mesmo
leito. A fada chega e diz à sua afilhada: —Atenção, esta noite,
tua madrasta quer te matar. Ela está a aquecer o forno para
colocar-te lá dentro. Troca de lugar no leito, e é Piccigota que
será morta. Genderella seguiu o seu conselho. —Tenho dor de
barriga, diz ela à Piccigotta, troca de lugar comigo. Ela troca
o seu lugar no leito com Piccigota. A madrasta tinha aquecido
o forno; ela vai no escuro até ao leito em que as duas raparigas
dormiam. Toma a sua filha e coloca-a no forno.
— Oh, mamãe, sou eu, mamãe — diz Piccigotta.
— Sei muito bem, és tu — diz a madrasta sem a olhar.
E na manhã seguinte, ela chama a sua filha:
— Piccigota, rizza-íe. Piccigotta, levanta-te.
Então uma voz lhe respondeu:
— Piccigotta furnellada (Picigotta está entornada).
Genderella maritada {Genderella está casada).
Assim o filho do rei esposou Genderella e Piccigotta está morta.»
152
o fazer transformador — «prova» — ( = apropriação +
+ despossessão) — operado de maneira unilateral pelo prín-
cipe supõe, neste último, as modalidades correspondentes:
a) O querer está sempre claramente manifestado em
todas as variantes, sem excepção, quase no final da narrativa:
153
2. A INTRODUÇÃO DE UMA MEDIAÇÃO
155
— um de tipo «físico», correspondendo à conjunção espa-
cial com o «deslocamento» a que ele poderá levar, de onde
também, por exemplo, o recurso à «carruagem» como meio
de locomoção;
— outro de carácter «espiritual», que se traduzirá na con-
junção amorosa com a «sedução» que a torna possível»:
aqui toma lugar, entre outros, o papel dos «belos vestidos».
Se estes dois planos estão entre si numa relação de
duplicação, eles estão também numa relação hipotáxica: a
conjunção por «sedução» domina a que se efectúa por «des-
locamento» (eis porque, se todas as variantes sem excepção
mencionam a «toilette» da heroína e a sua maneira de agra-
dar», somente algumas farão apelo à «carruagem» que é
um elemento facultativo): isto justifica-se pelo facto de que
a conjunção amorosa — operada unilateralmente por Cinde-
rela — tem por objectivo instaurar no príncipe a modalidade
do querer (em relação ao fazer casamento).
156
e à sua /pobreza/, o «baile» ou a «festa» (ou ir à «missa»)
é uma figura do estatuto social reconhecido (que a presença
do filho do rei só sublinha e valoriza): não esqueçamos que a
/humilhação/ da heroína se exprime sempre ao menos pela
sua exclusão do «baile»:
158
semânticos profundos que eles veiculam no contexto que é
o seu. Uma vez assegurados estes últimos, a escolha das
figuras é bastante livre (ficando claro que elas se mantêm
nos esteriótipos que dizem respeito aos encontros entre rapa-
zes e raparigas): se o «baile» e a «missa» se podem encontrar
ao mesmo nível isotópico (dado que certas das suas virtua-
lidades são deixadas em suspenso), não é menos certo que
temos apesar de tudo de ter em conta aqui duas figuras niti-
damente diferentes (num caso trata-se de uma reunião para
dançar, no outro de uma reunião de orações, própria dos
católicos), susceptíveis de levar a variações correspondentes
ao longo do conto. Dado que é em função do casamento
(final) que se inscrevem na narrativa — de perto ou de longe —
todas as unidades figurativas, comprender-se-á facilmente que
nunca apareçam elementos que têm directamente relação com
a descrição da «missa» como ofício religioso (toda a seqüência
de Cinder ela se passa imediatamente antes ou depois: à saída);
do mesmo modo, se o «baile» é por vezes (essencialmente nas
versões «literarizadas» ou escritas) o objecto de uma apre-
sentação, só o é evidentemente em relação (ou para situar)
a conjunção amorosa de que tradicionalmente ele é o quadro:
deste ponto de vista, sublinhemos, as versões propriamente
orais são particularmente sucintas (os auditores não sabem
acaso o que é um «baile»?), e descrevem esta seqüência em
duas frases, no máximo:
— «E o filho do rei vendo-a assim tão bela, convidava-a sempre
a dançar» (v. 30);
— «Chegada ao baile, ela entra, mas ninguém podia conter
a emoção tanto ela era bela. Tocando o primeiro som da meia-
-noite ela desapareceu» (v. 31);
— «Todos chegavam ao baile; o filho do rei, quando viu esta
jovem vestida de princesa, vai logo convidá-la para dançar.
Todos admiram uma jovem tão bela» (v. 34).
159
tor (ou ao fazer-querer) de Cinderela (podendo-se analisar a
«sedução» com o poder-fazer-querer):
160
crevé facilmente na isotopía sexual ' do casamento, ligando-se
m u i t o directamente ao «baile» (e, de maneira mais ampla,
às «festas» ou o u t r a s ocasiões de encontro entre jovens) que,
como l e m b r a m o s , visa a constituição de casais.
lO belo vestido justifica-se, p o r outro lado, ao nível d a
p r á t i c a social habitual: «vestir a toilette p a r a o baile» (v. 14),
«vestir as belas roupas p a r a ir à missa» (v. 13), fazem p a r t e
dos hábitos correntes tradicionais e, conforme lembramos
mais acima, perpetuam-se ainda nos nossos dias nas zonas
urbanas.
Deste m o d o , o «baile», a «missa» ou a «festa» p o r u m
lado, e os «ricos vestidos» por outro, conjugam-se, ao mesmo
tempo, do iponto de vista do fazer sedutor (orientado em
direcção ao casamento) e sob o ângulo da /elevação/ e da
/ r i q u e z a / . No extremo oposto, a «casa» está ligada aos «reles
vestidos» (v. 1):
«Estou tão mal vestida que não ouso apresentar-me» (v. 31),
«Uma mãe tinha duas filhas das quais uma era bela (Cin-
derela) e a outra feia. A mãe preferia a feia. Ela tudo fazia
para impedir a bela de se casar; levava a feia a todos os bailes,
deixando a bela em casa, e esta devia lavar a roupa, limpar a
casa, preparar as refeições, fazer todo o trabalho, enquanto
a feia nunca fazia nada».
11 161
tiiplicação da seqüência, a «toilette» torna-se mais bela de uma noite
para outra, de um domingo para outro e — correlativamente — a «sedu-
ção» mais forte: na primeira noite, Cinderela está vestida de bronze,
por exemplo, na segunda está vestida de prata e na terceira vez ela
apresenta-se num ornamento de ouro (v. 34); em todas as variantes
(5, 6, 29), e segundo o mesmo esquema, os seus vestidos têm sucessiva-
mente cor de estrela, de lua, de sol. Esta gradação — freqüente no
conto popular, particularmente ao nível das provas — marca a inten-
sidade da conjunção amorosa ou a instauração reforçada (no príncipe)
do querer-casar.
162
outras. Uma deseja-lhe uma bela carruagem de seis cavalos,
com dois lacaios, fechada numa concha de noz; uma outra duas
pantufas de ouro; uma outra um vestido brilhante como a lua;
uma outra um vestido brilhante como as estrelas; uma outra
um vestido brilhante como o sol; uma outra um pente que faça
dourar os cabelos; uma outra um cofre para colocar todos os
seus pertences, e todas as coisas lhe são oferecidas» (v. 5).
— «A boa senhora (lhe) diz: —Dá-me do teu alimento,
minha pequena. —Oh, minha boa senhora, eu vos daria com
gosto, é pão preto, é muito ruim para vós. — Ora nada, dá-me
dele, eu o comerei com gosto, comerei do que comes. Então
ela abre a sua cesta e em vez de ser pão preto (efectivamente
dado pela madrasta), era pão branco com muita ração (...).
Depois de (sic) terem comido, a boa senhora diz-lhe: —Penteia-
-me, minha pequena. E a pequena começou a penteá-la. E o
que encontras em mim, minha pequena? — Ouro e prata, minha
bela senhora. —Muito bem, que o ouro e a prata venham para
ti, minha jovenzinha. E em seguida, as suas roupas, os seus
cabelos, tudo ficou prateado. E antes de deixá-la, ela diz-lhe:
— Quando estiveres sobre a ponte, em baixo, antes de chegar
à cidade, olha o ar. E assim ela deixa a jovem. E à noite a
jovem, trazendo os seus animais, passando sobre a ponte, olhou
o ar e caiu-lhe uma estrela na fronte» (v. 32).
O fazer transformador:
164
«A velha deu-lhe uma varinha e disse-lhe: —Terás somente
que dizer: por esta varinha, faça com que eu tenha o que desejo.
A Bela tomou a varinha e voltou à casa (...). Ela pediu à sua
varinha belas roupas para se vestir e uma bonita carruagem»
(V. 38).
«(o papá) traz dois belos vestidos às suas duas filhas (...)
e ele trouxe uma avelã para Cendrouse. Veio o domingo. Eis
que bem depressa a minha Cendrouse abre a sua avelã. Ela
encontrou uma bela carruagem bem atrelada, dois excelentes
cavalos, um cocheiro e roupas que eram quatro vezes mais boni-
tas que as das suas irmãs» (v. 13).
{Si U O) - ^ (S2 n O)
165
outro (que pertence a um universo transcendente e destina-
dor) que só se manifesta pelo resultado do seu fazer (apare-
cendo no universo imánente e destinatário). Ainda aqui, como
mostra a v. 13 acima, um mediador pode intervir (o pai tra-
zendo a avelã para Cinderela): sendo a adjunção de circuns-
tâncias, por definição, ilimitada.
Notemos de passagem que o inverso do dom — a saber,
o que poderíamos designar figurativamente pelo roubo —
encontra-se excluído do nosso corpus. iPoder-se-ia, com efeito,
prever uma disjunção transitiva e uma conjunção reflexiva
concomitantes, operada por Cinderela, correspondendo à prova
(na terminologia de A. J. Greimas): a heroína furtaria então
a um determinado detentor os «belos vestidos» e a «carrua-
gem» que a dupla conjunção espacial e amorosa convoca.
Sem dúvida, esta última possibilidade sintáctico-semântica
não foi afastada sem razão. Com efeito, teria sido necessário
conceder à heroína — nesta hipótese — ou a força física para
dominar o adversário ou a astucia ( = u m a forma do saber-
-fazer): ora, acontece que estas duas «qualidades» não são
geralmente reconhecidas à «mulher» no conto popular francês.
166
Se examinarmos agora mais detalhadamente o caso de
Cinderela, ele nos parece mais complexo na medida em que
este antropónimo serve para subsumir, ao longo da narrativa,
um certo número de papéis actanciais e temáticos, ao mesmo
tempo que ele garante a sua progressão e a sua transfor-
mação no seguimento do conto. Este anafórico discursivo
(anteriormente analisado ao nivel figurativo: supra 1.1.) apre-
senta-se então como o sincretismo de vários papéis, em que
alguns são estáveis no decurso de vários episódios (por exem-
plo, a posição social de /irmã/) e de outras variáveis (só
indicamos aqui os papéis temáticos):
167
Por outro lado, a aquisição da modalidade do poder
(-fazer-querer) pode introduzir, no caso do dom, os dois papéis
actanciais de destinador e de destinatário: o primeiro exerce-
-se, por exemplo, no personagem da /madrinha/ (que reenvia
para a organização social para-familial) e, correlativamente,
o segundo no da /afilhada/.
Salientemos enfim o caso de S4 (=ambiente de Cinde-
rela) que, socialmente, ganha forma na / m ã e / e/ou nas
/irmãs/, e ao qual está igualmente correlacionado — para
justificar a /pobreza/ e a /humilhação/ da heroína (cf. sua
exclusão permanente do «baile» ou da «missa») — o papel
moral de / m a u / (bem ilustrado pela v. 34 citada mais acima).
168
3. A MODALIZAÇÃO VEREDICTÓRIA
DA MEDIAÇÃO
169
ver S2 tomar a iniciativa, provocando SI para uma resposta
correspondente '.
Como se sabe, a heroína apresenta-se na missa ou no
baile de modo incógnito:
— ser (=e)
— parecer (==p)
— não-ser (=e)
— não-parecer ( = p )
170
superior aos termos primitivos: nós os designaremos pelas
letras A, B, C, D:
— A=e+p (a verdade)
— B=e + p (a mentira)
— C= e+p (o segredo)
— D=:e+p (o falso).
Suponhamos então a seguinte organização sistemática, com
a indicação dos investimentos semânticos particulares:
P elevação
C-< >B
humilhação.
D
171
posição enganadora (o q u e n ã o é e que parece, definindo a
mentira). Deste modo, Cinderela procede em relação ao prín-
cipe p o r u m fazer persuasivo (analisável ao menos n u m que-
rer-fazer-saber enganador) que desemboca n u m estado de
mentira: os «belos vestidos» que a heroína utiliza, b e m como
a «carruagem», caracterizam-se então, ao nível do saber, como
máscaras destinadas a camuflar a verdadeira identidade d a
heroína.
Esta função dos «vestidos» está sempre presente nas
variantes (com excepção da «carruagem» que, e m o s t r a m o s
porquê, permanece facultativa); elas mencionam assim o ves-
tuário q u e r n u m t e r m o genérico («roupas», «toilette»), quer
p o r u m dos seus constituintes mais visíveis, pelo menos (e
que, p o r t a n t o , escondem mais): «vestido», «saiote». Arti-
culando mais ainda a «toilette», o contista — procedendo a
u m a expansão p o r decomposição morfológica — pode intro-
duzir as «meias», o «penteado» («cabelos d e ouro», «chapéu»,
«fitas»), as «jóias adequadas» («diademas», «colar de péro-
las»), etc. É evidente que estes diversos elementos só são
máscaras na medida em que escondem o ser h u m i l h a d o de
Cinderela: p a r a desempenhar a sua função, ele» devem então
ser o signo ou a figura da / r i q u e z a / ^ Não é assim surpreen-
dente que todas as variantes, de u m a ou de o u t r a forma,
sublinhem o esplendor das roupas, fazendo apelo, por exem-
plo, à cor («azul», «de noite», «do tempo», «brilhante»), ao
material com o qual são confeccionadas («bronze», «prata»,
«ouro», «pedrarias», etc.) ou aos acessórios luxuosos que as
a c o m p a n h a m («colar», «jóias», «diadema»). Além das passa-
gens j á citadas, mencionamos somente a variante 15):
172
b) A este primeiro fazer persuasivo, efectuado por Cin-
derela, responde o fazer interpretativo (ou o poder-fazer enga-
nado) do príncipe: este último, colocado em contacto com
o parecer da heroína, concede muito espontaneamente a esta
(segundo a ordem da verdade) o ser correspondente; dito de
outra forma, ele procede pela transformação
e -^ e
o que autoriza (do seu ponto de vista, na sua «boa fé»: cf. infra)
a colocar Cinderela no lugar A. Apoiando-se na /riqueza/
aparente da heroína, ele atribui-lhe a /elevação/ (que o conto
popular francês, sabemos, pode associar à /pobreza/):
3.2. O RECONHECIMENTO
173
Cinderela tinha chegado à pressa a casa e tinha tido tempo
de se despir e de ir para a cozinha» (v. 5).
p -^ p
p -» p
174
precisar aqui. Ao nível da organização formal, esta prova
parece corresponder à transformação
175
vão ela lhe comprimia o pé, os cortava, quanto mais ela os cortava
mais eles inchavam, sendo impossível colocá-los dentro. E a boa
senhora, às escondidas, traz a estrela (=Cinderela) e em seguida,
ela calça o sapato» (v. 32).
176
A manipulação do que poderíamos chamar os «signos
exteriores da riqueza» (aqui os «belos vestidos» e a «carrua-
gem») permite à Cinderela suscitar no filho do rei o querer-
-casar. Dito de outra forma, quem se pretende casar deve
previamente dispor de bons trunfos socio-económicos: mesmo
se ela só os dispõe momentaneamente (no modo do parecer),
Cinderela sabe fazê-los intervir no seu propósito ou, ao menos,
na primeira etapa da sua busca: proceder de maneira a que
o príncipe deseje casar com ela.
Mas o casamento, por sua vez, aparece menos como um
fim em si (estabelecimento do duplo laço sexual e jurídico)
que como um meio — e, do ponto de vista da heroína, como
um estratagema — para realizar a ascensão social desejada:
a relação de parentesco podendo mesmo chegar a transfor-
mar-se a si própria em relação de dependência (na hierarquia
social):
(2
Í77
(Fazer transformador)
Disjunção -ED- » Conjunção
inicial final
(SI U -52) «CASAMENTO» (SI n S2)
Cinderela/Príncipe Performance Cinderela + Príncipe
( celibato) (casar) (aliança)
> do |PRINCIPE|
poder 1
(inato) saber ycoínpetência
Ausência de querer Ftl—• querer J
(aquisição)
Performance
(seduzir-)
> de I CINDERELA |
r querei- -i
( m a t o ) ^ sabei- ' ScompeíênciaJ
não-podcr [Ft}—»- poder J
(aquisição)
Performance -j
(ajudar)
da MADRINHA
querer i
Í saber
poder J
yCom petencia
| F t | : fazer transformador
distribuição sintagmática
I : implicação lógica
178
BIBLIOGRAFIA
(Alguns elementos de leitura de entre outros possíveis)
ALEXANDRESCU S . Logique du personnage. Mame, 1974.
ARRIVÉ M. et COQUET J . C . Sémiotiques textuelles. Langages 31, 1973.
AVALLE d'A. « System and structures in the folktale », 20th Century Studies, 3, 1970.
BARTHES R . « Introduction à l'analyse structurale des récits », Communications 8, 1966.
Le degré zéro de l'écriture. Éléments de sémiologie, Gonthier 1967. « L'analyse structurale
du récit » in Recherches de science religieuse, t. 58, 1, 1970. SjZ, Seuil, 1970.
BENVENISTE E . Problèmes de linguistique générale, Gallimard, 1966.
BoNNEFis P. « Récit et histoire dans Mme Bovary », Linguistique et littérature, La Nouvelle
critique. Colloque de Cluny, 1968.
BRÉMOND C . « La logique des possibles narratifs », Communications 8, 1966. Logique du
récit. Seuil, 1973.
BRONDAL Essais de linguistique générale, Copenhague, 1943.
CALLOUD J . et PANIER L . Analyse structurale d'un récit évangélique. Cahiers Universitaires
catholiques. Supplément au n" 5, 1974.
CALVINO I. « Notes towards a definition of the narrative form as combinatory process »
in 20th Century Studies, 3, 1970.
CHABROL C . Le récit féminin, La Haye Mouton, 1971. Sémiotique narrative et textuelle,
Larousse, 1973.
CHABROL C . et M A R I N L . Le récit évangélique. Aubier-Montaigne, 1974.
COLBY B . « T h e description of Narrative Structures » in G A R D I N P. (éd.) Cognition : a
multiple view, New York, 1970.
Collectif - Une initiation à l'analyse structurale. Cahiers évangile, 16, mai 1976.
COQUET J . - C . Sémiotique littéraire, Marne, 1973. « La relation sémantique sujet-objet »,
Langages 31, 1973. « Sémantique du discours et analyse du contenu » Connexions, I I ,
1974.
COQUET J . - C . et ARRIVÉ M. Sémiotique textuelles. Langages, 31, 1973.
COURTES J . « De la description k la spécificité du conte populaire merveilleux français »,
Ethnologie française, 11, 1-2, 1972. Lévi-Strauss et les contraintes de la pensée mythique.
Mame, 1973. Structures élémentaires de la signification (en collaboration avec F. N E F ) ,
Bruxelles, 1976. « La séquence du mariage dans le conte populaire merveilleux français »
(à paraître dans Ethnologie française).
COURTES J. et GREIMAS A . J . « Cendrillon va au bal : remarques sur les rôles et les figures
dans la littérature orale » in Hommage à G Dieterlen, Hermann (sous presse). « T h e
cognitive dimension of narrative discourse », New Literary History, Spring 1976, Uni-
versity of Virginia, U.S.A.
DARRAULT Y . et GREIMAS A.J. Langages, sept. 1976 (numéro spécial consacré aux moda-
lités).
179
DiLFOSSE P. Une idéologie patronale, essai d'analyse sémiotique, Didier-Aimav, 1974.
DUBOIS J . (sous la direct.) Dictionnaire de linguistique, Larousse, 1973.
DucROT O. et ToDOROV T. Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage. Seuil, 1972.
DucROT O. et A L . Qu'est-ce que le structuralisme?, Seuil, 1968.
DuNDEs A. The Morphology of the North American Indian Folklore, F F Communications,
vol. 81, n° 195, Helsinki, 1964.
E c o U. La structure absente. Mercure de France, 1972.
QALLAND C . « Introduction à Greimas », Etudes théologiqufs et religieuses, 48 (1).
GALMICHE M . Sémantique generative, Larousse, 1975.
GENETTE G. « Frontières du récit », Communications 8, 1966. Figures, Seuil 1966. Figures II,
Seuil, 1969. Figures III, Seuil. Mimologiques, Seuil, 1976.
GÎNINASCA J. « Analyse d'un conte italien : l'Orca », Actes du Congrès de littérature popu-
laire de Palerme (sous presse).
GEOLTRAIN P. « La violation du sabbat. Une lecture de Marc 3, 1-6 », Cahiers bibliques
de Foi et Vie, 9, 1970.
GREIMAS A . J . Sémantique structurale, Larousse, 1966. Du Sens, Seuil, 1970. « Les actants,
les acteurs et les figures » in Sémiotique narrative et textuelle, Larousse 1973. « Un pro-
blème de sémiotique narrative : les objets de valeur », Langages 31, 1973. « Dialogue
with Parret H », Discussing language, La Haye, Mouton, 1974. Sémiotique et sciences
sociales. Seuil 1976. Maupassant, la sémiotique du texte. Seuil, 1976.
GREIMAS A.J. el COURTES J. « Cendrillon va au bal : remarques sur les rôles et les figures
dans la littérature orale » in Hommage à G. Dieterlen, Hermann (sous presse). « The
cogninse dimension of narrative discourse », New Literary History, Spring 1976, Uni-
versity of Virginia, U.S.A.
Groupe 107, Sémiotique de l'espace, Paris, 1973. Sémiotique des plans en architecture,
Paris 1973.
GuiRAUD P. La sémiologie, P.U.F., « Que sais-je? », 1971.
HAMON P . « Qu'est-ce qu'une description? » Poétique, 1972. « Analyse du récit : éléments
pour un lexique », Le français moderne, avril 1974.
HJELMSLEV L . Prolégomènes à une théorie du langage. Minuit, 1971. Le langage. Minuit
1966. Essais linguistiques. Minuit 1971. • •
HENDRICKS W . « Linguistic Models and the Study of Narration : A critique of T O D O R O V ' s
Grammaire du Decameron ». Semiótica, 5. 1972. « Methodology of Narrative Structural
Analysis » Semiótica, 7, 1973.
JAKOBSON R . Essais de linguistique générale. Minuit, 1963.
K A T Z J . J . et FoDOR J.J. « The structure of a semantic theory », Language, 39.
K A T Z J.J. et POSTAL An integrated theory of linguistic description, M I T Press, 1964.
KRISTEVA J. « Narration et transformation », Semiótica, 1, 4, 1969.
KRISTEVA J . (SOUS la direct.) Langue, discours, société. Seuil, 1975.
LAI P . « Production du sens par la foi », Recherches de science religieuse, janvier-mars 1973.
LARIVAILLE P . « L'analyse (morpho)logique du récit. Poétique, 19, 1974.
LÉVI-STRAUSS C . Anthropologie structurale. Pion, 1958. Anthropologie structurale deux.
Pion, 1974.
í.\tiOí^ínsK. Éléments pour une sémiotique de la photographie, Didier-Aimav, 1971. Hjelms-
lev, prolégomènes à une théorie du langage, Hatier, 1975.
LYONS J. Linguistique générale, Larousse, 1970.
MALMBERG B . Structural linguistics and human communication. Berlin, 1963
MARANDA P . « Cendrillon : théorie des graphes et des ensembles » in CHABROL (éd.) Sémio-
tique narrative et textuelle. Larousse, 1973.
MARANDA P. et KONGAS E . Structural models in folklore and transformational essays, La
Haye, Mouton, 1971.
MARIN L . Sémiotique de la passion, Aubier-Montaigne, 1971.
MARIN L. et CHABROL C . Le récit évangélique, Aubier-Montaigne, 1974.
MARTINET A. Éléments de linguistique générale. Colin, 1967.
MARTINET A. (sous la direct.) Le langage, N . R . F . , 1968.
MELETINSKY E . « L'étude structurale et typologique du conte » in V. P R O P P , Morphologie
du conte. Seuil, 1970. « Die Ehe im Zaubermärchen - Ihre Funktion and ihre Platz im
J80
Struktur der Märchen » (les mariages dans le conte merveilleux, leur fonction et leur
place dans le conte). Acta Ethnographica Academiae Scientiarum Hungaricae. XIX,
Budapest, 1970.
M E T Z C . « La grande syntagmatique du film narratif». Communications 8, 1966. « Le cinéma
moderne et la narrativité », Cahiers du cinéma, 185, 1966. « Spécificité des codes et spéci-
ficité des langages », Semiótica I, 4, 1969. Langage et cinéma, Larousse, 1970.
MORRIS Ch.W. Signs, language and behaviour. New York, Baziller, 1955.
N E F F . (sous la direct.) Structures élémentaires de la signification, Bruxelles, Complexe.
1976.
OLSEN M. (sous la direct.) « Analyse narrative d'un conte littéraire ; Le signe de Maupas-
sant », Documents de travail, Urbino, Italie, 1971.
PAVEL T. v Phèdre : Outline of a Narrative G r a m m a r », Language science, 28, 1973.
PELC J . « On the concept of Narration », Semiótica, 1, 1971.
PETOFI J. « Text-grammars, text-theory and the theory of literature », Poetics, 7, La Haye,
Mouton.
PICARD J . - C . «Observations sur l'Apocalypse grecque de Baruch », Semitica, t. 20, 1970.
PoTTIER B. Linguistique Générale, Klincksieck, 1974.
PoTTiER B. (sous la direct.) Le langage, C.E.P.L./Denoël, 1973.
PRINCE G. « Introduction à l'étude du n a r r a t i f » , Poétique, 14, 1973.
PROPP V. Morphologie du conte. Seuil, 1970.
RASTIER F. Essais de sémiotique discursive. Mame, 1973.
Revues diverses ; Communications, Paris, Seuil. Langages, Paris, Didier-Larousse. Lan-
guage, U.S.A. Littérature, Paris, Larousse. Poetics, La Haye, Mouton. Poétique, Paris,
Seuil. Semiótica, La Haye, Mouton, etc.
REY A . (sous la direct.) La sémantique. Langue française, déc. 1969.
REY-DEBOVE J . « Le dictionnaire comme discours sur la chose et discours sur le signe »,
Semiótica, III, 1971-2.
SAUSSURE F. de. Cours de linguistique générale, Payot, 1960.
SouRiAU E. Les deux cent mille situations dramatiques, Paris, 1950.
TESNIÈRE L . Éléments de syntaxe structurale, Klincksieck, 1959.
ToDOROV T. Grammaire du décaméron, La Haye, Mouton, 1969. « Les transformations
narratives », Poétique, 3, 1970.
ToDOROV T. et DucROT O. Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage. Seuil, 1972.
TuTEScu M. Cours de sémantique. Université de Bucarest, 1973.
YucEL T. Figures et messages dans la comédie humaine, Marne, 1972.
ZiLBERBERG C. Une lecture des fleurs du mal, Marne, 1972.
181
INDEX
J83
contrario 72 específico (sema-) 118
contrariedade (relação de-) esquema 73
70, 72 estado (enunciado de -)
contrato: 94, 127, 128, 129; 29 82, 122, 18-19
conversão 135 estado (sujeito de -) 18
cosmológico (nível-) 61, 130 execução 30
crer 96, 101 expansão/condensação 37-38
expressão/conteúdo 48
D exteroceptividade 61, 62, 130
decisiva (prova-) 13
dedutivo (procedimento-) 45
deixis 73 factitiva (modalidade-) 96; 32-33
descontinuidade 55 falso 100
descritivo (valor-) 22 fazer
despossessão 91 87, 95, 96, 98, 107, 108, 129, 138
destinador/destinatário: fazer (enunciado de-) 88, 122; 18
85, 129; 25, 30, 31-33 fazer (sujeito do-) 96; 18
dever-fazer 96 fema 51
diferencial (desvio-) 50 figurativo (fxercurso-) 117, 119
diferencial (função-) 56, 58 figura 61, 64, 107, 115-117, 122
dimensão 72-73 forma/substância 52
discreta (unidade-) 76 formal (semiótica-) 46-47
discreto/contínuo 55 frástica (semântica-) 37
discurso (lingüística do-) 35 função 77, 80; 9
discursiva (componente) 130 funcional (análise'-) 78
discursiva (configuração-) fundamental (organização -) 76
115.117, 125; 17 fundamental (sintaxe-) 106
discursivo (actor-) 125
disjuntivo (enunciado-) 84
disjunção/conjunção:
69, 71, 12, 82, 83, 84, 127 genérico (sema-) 118
documental (linguagem-) 9 glorificadora (prova -) 13
dom 19 gramática
dominação 108, 32 52, 67-68, 107-108, 135
duplicação 12 gramatical (componente -)
52, 122, 123
E gramatical (relação-) 53
eixo 73
H
elipse 93
emissor 138 hierarquia 45, 72, 110
enunciado 47 hiperotáxica (relação-) 95
enunciação 47 , 95 hiponímica (relação-) 69, 72
epistémico (destinador) 34 imánente (nível-) 55, 61, 67
equilíbrio 30 implicação (relação de-)
equivalência 43, 107, 108 73, 93, 108
184
individuação (sema de-) 121 narrativa (gramática -) 107
indutivo (procedimento-) 45 narrativa (isotopía-) 130
integrada (unidade-) 77 narrativa (seqüência-) 94
interpretativo (fazer-) 109; 34 narrativa (unidade -) 92, 127
interpretação 47 narratividade 92; 7-8
interoceptividade 63 narrativo (anti-programa-) 128
investimento 130 narrativo (enunciado-) 92, 37
isomorfismo 51 narrativo (esquema -) 12-17
isotopia 63-64, 117, 132 narrativo (percurso-) 16
isotopías (conector de-) 117 narrativo (programa-)
89, 128, 129; 17-21
narrativo (sintagma) 92
junção 82 neutro (eixo do -) 73
neutro (termo do-) 75
nivel 45, 53, 133-137
noológico (nivel-) 62, 63
leitura 119
lexemática (figura-) 117 nuclear (figura-) 59, 130
lexema 58, 66, 116 nuclear (sema-)
lingüística (forma-) 66 58, 67, 114, 115, 130
lingüístico (signo-) 48, 135
O
lógica 46, 107-10«; 15
lógico-semântico 105 objectivada (estrutura actorial-)
125
M objectivo (valor-) 100
macro-narrativa 19 objecto/sujeito 82-i84; 16
manifestação 46, 61 objectos (enunciado juntor de-)
manifestação (nível da-) 90, 125
50, 55, 135, passim operação 68, 74, 105, 107
manipulação 33 operações (sintaxe das-) 98
memória 102-103; 26 operadores (sintaxe dos -) 98
mentira 100 oponente/adjuvante 86
metalinguagem 43 orientação (relação de-) 106, 108
meta-saber 101
metassememas: 55, 65, 66, 76, 132
micro-narrativa 19 papel 120
micro-universo 75 paradigmática (disjunção-) 93
modal (valor-) 99; 23 paradigmática (junção -) 89
modalidade 94-95; 23 paradigmática (memória-) 103
morfología 51, 68 paradigmática (projecção-) 11
motivadora (lógica-), 97 paradigmático (contexto-) 131
paralelismo 51, 56
N
paralexema 66
narrativa 126-132; 14, 19 participativa (comunicação -)
narrativa (estrutura-): 91; 32
,123, 135; 11 patamar 136, 137
185
performance sanção 33
94, 96, 107, 128, 129; 21-22 segredo 100
performante (sujeito-) 97
semântica (componente)
perspectiva 90
persuasivo (fazer-) 100 52, 55, 122, 123
pertinência 43, 64 semântica (estrutura -) 51
pluri-isotopia 64, 117 semântica (isotopía-) 64
poder-fazer 96 semântica (restrição-) 114
polémica (estrutura-) 128; 16 semântica (unidade-) 53, 55
posição 97; 24, 26 semântico (eixo-) 69
pragmática (dimensão-) 22, 31 sema 51, 55, 56-57, 67, 68
pragmático (valor-) 100; 23 semema 66, 67, 7i6-77, 113, 130-132
predicado 77 semémico (percurso-) 116
pressuposição 73; 15 semiológica (isotopía-) 65
pressuposições (lógica das-) 97 semiológico (nível-) 61, 62
privação 91 semiotico (actante-) 126; 20
processo/sistema semiotico (quadrado-) 70, 71-75
68, 73, 78, 79, 128-129 semica (categoria-) 51, 69, 70
profunda (estrutura-) 134; 8, 10 semico (núcleo-) 58-60
profundo (nível-) sentido 41, 42, 138
67, 104-111, 128-129 sentido (efeito de) 59, 60, 130
prova 91, 94, 127; 11 ser/parecer lOO-lOl
psico-semiótica 88 ser/ter 83-84, 95
significação 41, 42, 138
significação (estrutura elementar
qualificação 77 da-) 69, 74-76
qualificadora (prova-) 13
qualificativa (análise -) 78 significado 50-52
querer (sujeito do-) 98 significante 50-52
querer-fazer 96 significante (conjunto-) 48
sócio-semiótica 88
R solidariedade (relação de-) 73
realização 84 subjectividade (estrutura acto-
realizado (objecto-) 28 rial-) 125
realizado (sujeito-) 28 substância/forma 52
realizado (valor-) 84 substituição 92
receptor 138 sujeito/objecto 82-84
redução 44 sujeitos (enunciado juntor de-)
reflexivo/transitivo
89-90, 125
88, 96, 101, 125
relação 53, 68, 73, 106 superficial (nível-) 67, 129-130
renúncia 91 superficial (organização-)
68, 79, 105-111, 134
sintáctico (actante-) 20
saber (sobre o ser) 101-102 sintagmática (junção-) 87-88
saber-fazer 97, 102-103; 33 sintagmática (memória) 89-90
186
sintagmático (contexto) 132 transformação 87, 93
sintaxe 51, 77, 106 transformador (fazer-) 88
sistema/processo transitivo/reflexivo
68, 73, 78, 79. 128-129 88, 96, 101, 125
triplicação 12
187
INDICE
A ABORDAGEM METODOLÓGICA 39
0. Perspectiva semiótica 41
1. Projecto semiótico 41
2. Ponto de partida ' 47
3. Delimitação 48
1. Componente «morfológica» 55
0. Uma articulação 55
1. O sema como traço distintivo 56
2. O núcleo sémico 58
3. O sema contextual ou classema 61
4. A isotopía 63
5. Sememas e metassememas 65
6. Em direcção à forma lingüística 66
2. Componente «sintáctica» 67
1. Organização fundamental 68
2. Organização superficial 76
3. Organização superficial e organização profunda . . . 104
189
2. Hegemonia das estruturas narrativas 120
3. Observações sobre uma unidade discursiva . . . . 126
190
Execução gráfica
da
TIPOGRAFIA LOUSANENSE
Lousã Desembro/79