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Angústia e Trabalho
A relação sujeito-trabalho-organização
na contemporaneidade e a psicanálise:
porta de saída ou pacto com o diabo?1
Matheus Cotta de Carvalho
Resumo
O objetivo do artigo é estudar a relação sujeito/trabalho/organização a partir do ponto de vista da
psicanálise. No ambiente organizacional o capital demanda um novo perfil de profissional, dife-
rente daquele da era industrial, e diante dessa nova realidade o sujeito busca se inserir. Qual o
papel que cabe à psicanálise, tanto em sua dimensão clínica como em sua extensão, diante desses
novos desafios trazidos pela contemporaneidade? Será a psicanálise uma possível porta de saída
para os impasses trazidos ao mercado de trabalho pela modernidade?
Palavras-chave
Discurso do capital, Desejo, Gozo, Pós-modernidade.
1. Agradeço as contribuições dos membros do Grupo de Estudos sobre Psicanálise e Organização, vinculado ao
CPMG, e, em particular, a Eliana Rodrigues Pereira Mendes.
Função Paterna assume, já que é exatamen- o grito ou choro não se constituem ape-
te por meio da operação da Função Pater- nas como descarga motora, mas estabele-
na que se permite a internalização por par- cem-se como signos de uma demanda, de-
te do sujeito sujeito já barrado das leis manda ao outro 3, a ajuda externa não se
básicas de convivência em sociedade. Isto limita a atender a uma necessidade como
porque para Freud é exatamente a interdi- também introduz o infante na ordem do
ção do desejo incestuoso que marca a pas- simbólico.
sagem da ordem natural para a ordem cul- Para Freud, portanto, o desejo refere-
tural. se principalmente a desejos inconscientes,
O segundo ponto a destacar é o signi- formados a partir de experiências e signos
ficado de desejo e gozo nas obras de Freud infantis indestrutíveis e constitui-se no ele-
e Lacan. mento essencial de introdução do ser hu-
Para Freud, a vivência de satisfação mano na ordem do simbólico.
constitui-se na base do desejo humano. Assim, a partir dessa referência que
Esta noção está conectada com a situação buscamos em Freud, vamos introduzir al-
de desamparo humano, já que o ser huma- gumas idéias lacanianas seguindo sempre
no é incapaz de garantir, por seus próprios a orientação segura dos textos de Rabino-
meios, a ação específica capaz de suprimir a vich, em particular, do capítulo primeiro
tensão resultante do afluxo das excitações en- do livro Clínica da pulsão4.
dógenas; esta ação necessita do auxílio de uma Toda a reflexão de Rabinovich situa-
pessoa exterior (fornecimento de alimentação, se no esforço de entender a articulação do
por exemplo); o organismo pode então supri- chamado objeto a com o mais de gozar e
mir a tensão. com o desejo, a partir de uma leitura dos
Pode-se esclarecer que para Freud essa textos originais de Lacan. Segundo a au-
vivência de satisfação constitui a base do tora, o objeto a funciona como uma espé-
desejo humano, mas não se confunde com cie de dobradiça de articulação com a fun-
ele, na medida em que essa experiência de ção causa do desejo e com a função do mais
necessidade nasce de uma tensão interna de gozar. E aí encontra-se a importância
e encontra a sua satisfação por meio de do correto entendimento dessas relações
uma ação específica o aleitamento ma- já que o objeto a, como real, oscilará entre
terno, por exemplo. O desejo, por sua vez, duas dimensões: a dimensão da causa do
encontra-se ligado a traços mnésicos e sua desejo e a dimensão do mais de gozar.
realização ocorre na reprodução alucina- A primeira dimensão refere-se ao de-
tória das percepções que se tornaram si- sejo tanto em Lacan quanto em Freud. Já
nais dessa satisfação. a segunda dimensão, a do mais de gozar, é
Em suma, será a partir dessas primeiras uma elaboração que se encontra em La-
experiências infantis, da satisfação de ne- can, e diz respeito ao conceito de objeto
cessidades e da formação de traços mnési- pulsional inseparável da definição do gozo
cos e na sua realização alucinatória, que o como satisfação pulsional.
desejo humano irá se articular em torno Deve-se estabelecer de partida que
do que Freud denominou de a coisa ou Lacan definiu no Seminário 7, A Ética da
das Ding, que pode ser entendido como Psicanálise, o gozo como a satisfação da
o resíduo do que há de comum a todas as
percepções relativas à presença do Outro, não
se reduzindo a um componente perceptivo 3. GARCIA-ROZA, L. Alfredo. Introdução à metapsico-
banal. logia freudiana, v.1, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001,
p.161.
Observa-se ainda, conforme pon- 4. RABINOVICH, Diana. Clínica da pulsão: as impul-
tua Garcia-Roza, que na medida em que sões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.
Trata-se da sublimação que ocorre de- do capitalismo para o qual evoluímos nos
vido ao deslocamento de libido que o apa- últimos anos. Essa era caracteriza-se pela
relho mental possibilita e que lhe confere prevalência do conhecimento como força
flexibilidade. Como exemplo Freud cita a motora básica de sua dinâmica. Nos ter-
alegria do artista ao criar, em dar corpo às mos de Peter Drucker, o que diferencia essa
suas fantasias, ou a do cientista em solu- fase do capitalismo das demais é a aplica-
cionar problemas ou descobrir verdades. ção do conhecimento ao próprio conhe-
Freud observa, no entanto, que se trata de cimento. O capitalismo desenvolve-se,
um método reservado a poucos com do- portanto, em sua fase atual, tendo como
tes e disposições especiais. base máquinas (organizações) de produção
Nesse ponto, Freud faz uma referência de riqueza, que devem estar preparadas
sobre a importância do trabalho e sua re- para inovar permanentemente, e, nesse
lação com a busca da felicidade que, em processo, eliminar a riqueza antiga. Dessa
minha opinião, merece bastante atenção: forma, o capital garante a sua reprodução
Nenhuma outra técnica para a conduta e acumulação e atinge seu objetivo funda-
da vida prende o indivíduo tão firmemente à mental de remunerar o capital investido
realidade quanto a ênfase concedida ao tra- pelos capitalistas.
balho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um Trata-se de mudança substancial, já
lugar seguro numa parte da realidade, na co- que a sociedade industrial baseou-se na
munidade humana. A possibilidade que essa chamada administração científica cujo
técnica oferece de deslocar uma grande quan- expoente máximo foi F. W. Taylor que, já
tidade de componentes libidinais, sejam eles no final do século XIX, desenvolvia mé-
narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para todos de analisar e organizar o trabalho
o trabalho profissional, e para os relaciona- visando aumentar sua eficiência e produ-
mentos a eles vinculados, empresta-lhes um tividade. Foi com base nas idéias de Taylor
valor que de maneira alguma está em segun- que toda a indústria nascente do início do
do plano quanto ao de que goza como algo século XX se estruturou como organiza-
indispensável à preservação e justificação da ções.
existência em sociedade. A atividade profis- Assim, pode-se concluir que estamos
sional constitui fonte de satisfação especial, passando por uma transição de fundamen-
se for livremente escolhida, isto é, se, por meio tal importância na história do homem: de
de sublimação, tornar possível o uso de incli- uma sociedade industrial em que havia
nações existentes, de impulsos persistentes ou uma relativa estabilidade das instituições
constitucionalmente reforçados. No entanto, e em que o acúmulo de capital se dava prin-
como caminho para felicidade, o trabalho não cipalmente por meio do aumento de pro-
é muito prezado pelos homens. Não se esfor- dutividade decorrente, principalmente, do
çam em relação a ele como o fazem em rela- controle sobre o trabalho humano, para
ção a outras possibilidades de satisfação. A uma outra sociedade cuja dinâmica baseia-
grande maioria das pessoas trabalha sob a pres- se na inovação permanente, e o trabalha-
são da necessidade, e essa natural aversão dor tem como papel primordial ser agente
humana ao trabalho suscita problemas soci- da inovação e que, portanto, não precisa
ais extremamente difíceis. de controle, mas de motivação e criativi-
Postos esses elementos de cunho teó- dade.
rico, devem-se explorar aspectos da socie- Essa era do capitalismo conhecida
dade contemporânea, em particular, do como sendo a do conhecimento, e que os
mundo do trabalho. sociólogos denominam de pós-moderna,
A sociedade do conhecimento, ou pós- também se caracteriza por uma orientação
industrial, é como se denomina o período para o mercado com a utilização intensiva
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Matheus Cotta de Carvalho
das técnicas de marketing visando ocupar Em suma, trata-se de uma era marca-
espaços crescentes na acirrada luta por es- da por mudanças profundas da infra-estru-
paço no mercado consumidor. É a época tura econômica, com mudanças na esfera
da prevalência do consumidor já que a pro- social e cultural, abrindo oportunidades de
dução industrial se dá de maneira mecani- novas inserções no social sem as mesmas e
zada, sem a mesma necessidade do traba- rígidas estruturas da era industrial, mas por
lhador operário que havia na sociedade outro lado, com a presença marcante do
industrial. discurso capitalista que desconhece o de-
Portanto, o capital busca acima de sejo humano e mesmo as leis sociais e cul-
tudo o conhecimento do consumidor, seus turais e que busca apenas sua própria va-
supostos desejos de consumo e o entendi- lorização máxima.
mento dos mecanismos de escolha do in- Nesse contexto, o trabalho deixa de
divíduo consumidor. Neste sentido, preva- ser o lugar seguro que permitia ao sujeito
lece o chamado discurso do capital, con- desenvolver o seu projeto de vida e passa
forme demonstra Lacan, uma variação do a se caracterizar como um conjunto de
discurso do mestre, em que o agente capi- experiências isoladas, o que dificulta so-
tal faz com que a ciência desenvolva gad- bremaneira a construção de narrativas a
gets para o gozo do sujeito, reduzido à con- respeito de sua própria experiência. Flexi-
dição de consumidor. A partir desta leitu- bilidade é o que caracteriza o mercado de
ra, inclusive, Lacan conclui que o discur- trabalho em que os interesses são compos-
so capitalista não é capaz de gerar laço so- tos por circunstâncias entre o empregador
cial, já que toda a relação entre o agente e e o empregado, gerando inúmeras relações
o outro a quem o discurso se dirige se dá de trabalho durante uma vida útil.
por meio de objetos. A predominância do Mesmo do ponto de vista ético, o tra-
discurso capitalista gera uma economia balho muda sua função já que não mais
centrada no consumismo que responde à faz sentido pensá-lo como uma construção
demanda do sujeito travestido de consu- que pode exigir, em um primeiro momen-
midor por meio do gozo proporcionado to, sacrifício a ser no futuro recompensado
pelo consumo. por meio de algum tipo de reconhecimen-
Segundo importantes sociólogos, to social. Ao contrário busca-se o prazer
como Zygmund Bauman, é um período (gozo?) em cada experiência em si mes-
marcado pelo estabelecimento de relacio- ma, ou seja, o trabalho passa a ser visto
namentos fluidos e instantâneos e pela fra- como um objeto de consumo como outro
gilidade dos laços humanos. O que vale é qualquer que precisa gerar algum tipo de
o instante em que se vive, e perde-se pro- satisfação imediata.
gressivamente a noção do passado e mes- O que se verifica, portanto, é um rom-
mo do futuro. O que vale é o hoje. pimento dos laços que ligam o trabalho ao
Ao se colocar como objeto passivo di- capital. Observa-se que se trata de rompi-
ante do discurso do capitalismo, como mento unilateral já que foi o capital que
mero consumidor em detrimento da posi- adquiriu uma autonomia em relação ao tra-
ção de sujeito, busca-se usualmente negar balho no capitalismo pós-industrial. Pelo
a própria condição humana de castrado e, menos do trabalhador manual que não
portanto, a lei do pai, caracterizando uma contribui com aquilo que o capital precisa
era que uma corrente de psicanalistas de- para se reproduzir em escala ainda maior:
nomina como de declínio da função pa- criatividade capaz de se transformar em
terna, responsável pela transmissão da tra- inovação. E inovação que possa, por sua
dição cultural do homem, conforme já vis- vez, gerar aumento de produtividade ou
to anteriormente. realimentar o ciclo de consumo.
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A relação sujeito-trabalho-organização na contemporaneidade e a psicanálise: porta de saída ou pacto com o diabo?
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SOBRE O AUTOR