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Junho. 2012.
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Doutor em Ciência Política UFMG, professor do Departamento de Ciênbcias Sociais e do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFES.
SINAIS - Revista Eletrônica. Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.11, v.1,
Junho. 2012.
Introdução
“capa” que encobre a realidade efetiva da vida social, revelando a dinâmica por
meio da qual se constroem os fundamentos últimos da socialidade –
fundamentos esses assentados nos consensos de primeira ordem, não
questionados, que atuam maquinalmente nas interações prático-imediatas
entre ego-alter-mundo. Para Husserl, essa instância da socialidade é anterior a
qualquer teoria explicativa da realidade (social ou natural) porque é aí que o
mundo como tal (óbvio, pré-refletido) se dá a consciência, e só a partir então
pode ser teorizado.
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A síntese dessa vertente está na formula de Berkeley: “Existir é ser percebido”.
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A essa característica da consciência chama-se de intencionalidade.
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Para explicações detalhadas dos processos de percepção, seguidos de exemplos, ver
Merleau-Ponty: 1971 e Luria: 1986.
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deste e as leis que o regem são fenômenos, aparições que revelam toda a
“verdade” do átomo à mente humana. Neste sentido, nada é falso no
fenômeno: se ele é pura aparência, e se a aparência é tudo que se pode
conhecer na interação prática com o mundo, é todo essência – nada há atrás
do fenômeno para ser captado, todo o conhecimento possível se resume à
forma exterior da coisa, ao seu aspecto captável, à sua relação com a
consciência. Eis o mundo para a fenomenologia de Husserl e Schutz: a
“aparessência” dos objetos na consciência do indivíduo.
Cada indivíduo, por óbvio, tem um ponto de vista único sobre a sociedade, pois
se trata do fenômeno social na sua consciência. Apesar desse atomismo, em
função dos contatos sociais e da socialização, ele apreende formas de
interpretação comuns que possibilitam a sustentação dos padrões de conduta
intersubjetivamente aceitos. Senão, logicamente, seria impossível a existência
das coletividades humanas estáveis. A idéia central e original da
fenomenologia social é que a transformação de percepções individuais do
mundo em um conjunto de padrões compartilhados de interpretação ocorre
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O conceito de modelização é utilizado na psicologia cognitiva de tradição russa, e têm o
sentido de ajuste imediato entre a consciência e os objetos, ajuste a partir do qual a atuação no
mundo se torna possível. Como se vê, esse conceito é muito próximo da idéia de lebenswelt.
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Mas não num sentido evolucionista. É um circulo virtuoso contingente, como se verá adiante.
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Isso é muito importante para justificar a importância das análises conversacionais de
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2 – Linguagem e Socialização
Com referência a Nós, cujo centro sou Eu, outros se destacam como Você, e com
referência a Você, que se refere de volta a Mim, terceiros se destacam como Eles.
Meu mundo social, com os alter egos nele incluídos, está arrumado, em torno de Mim
como centro, em associados, contemporâneos, predecessores e sucessores, com o
que Eu e minhas diferentes atitudes para com os Outros, instituímos esses
relacionamentos mútuos. (Kilminster em Outhwaite & Bottomore, 1996: 309. Grifo
nosso)
Esse problema foi denominado por Norbert Elias de monadologia – termo que
resume a excessiva ênfase na consciência individual como mônada e fonte
exclusiva de sentido. Se o sentido do mundo tem origem puramente subjetiva,
como tais percepções isoladas podem produzir interpretações comuns? Para
fenomenólogos como Sartre e Merleau-Ponty9, o “cartesianismo” residual da
fenomenologia de Husserl e Schutz ignora o fato de que o homem se faz
homem entre homens – em sociedade. Reconhecer isso implica reconhecer
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Jean Piaget dispensa apresentações. Alexander Luria (1902-1977) é psicólogo russo
preocupado com as relações entre o aprendizado da linguagem e o desenvolvimento da
percepção e do pensamento abstrato no indivíduo. Para ele, o desenvolvimento do raciocino
abstrato individual é análogo e mutuamente relacionado ao desenvolvimento social da
linguagem. Seus trabalhos têm como base idéias de Saussure, Piaget, Vigotski e Chomski,
entre outros, e apresentam uma síntese da produção psicolingüística moderna. Suas hipóteses
foram testadas e confirmadas com base em algo mais que 800 casos de pacientes de todas as
idades e com todo tipo de problemas mentais e afecções cerebrais, que ele teve a
oportunidade de observar enquanto tratava de vítimas russas da segunda guerra mundial.
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Embora não seja possível uma analogia perfeita entre o desenvolvimento social
da língua (ontogênese) e o desenvolvimento da língua no indivíduo
(filogênese), Luria esclarece que um paralelo cauteloso pode ser bastante
produtivo. Veja-se.
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Ou categorial, na definição de Luria.
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Existe uma distinção, amplamente aceita pelos linguistas, entre os conceitos de linguagem,
língua e fala. Linguagem é todo o conjunto dos sistemas semióticos – dos quais a língua é um,
como a pintura, a matemática, etc. Língua é a aspecto falado ou escrito da linguagem e é
constituída por estruturas gerais que permitem uma combinação infinita de frases construídas
na conversação cotidiana. A fala é precisamente a conversação, ou seja, o uso prático e
situacional da língua. Neste trabalho adotam-se estas distinções.
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Essa não é uma operação trivial. Os estudos de Luria provam que, em decorrência de certos
problemas neurofisiológicos, alguns indivíduos perdem a capacidade de pensar categorial
mente.
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Existem outras palavras com “que”, “porém”, “mas”, “conseqüentemente” que indicam formas
complexas de relações abstratas entre os objetos. Alem disso, certa formas de organizar o
discurso (na conversação) revelam deduções e induções só possíveis por meio da língua.
Conforme Bienveniste (1989: 99): “Nada pode ser aprendido que não tenha sido reduzido à
língua”.
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Ver Bienveniste, 1989.
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O ato voluntário é entendido não como um ato espiritual primário, não como um
simples hábito, mas sim como uma ação de estrutura mediada que se apóia em
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meios verbais, os quais compreendem não só a linguagem externa como meio de
comunicação, mas também a linguagem interna reguladora da conduta individual.
(Luria, 1986: 111. Grifo nosso)
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Ver Luria (1986), especialmente capitulo 7.
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A língua interior é apenas predicativa, ao passo que a língua exterior é nominativa e
predicativa. Ao falar para si, o indivíduo elimina todo o óbvio, o que permite a rapidez da
comunicação dele consigo mesmo. Na iminência de um temporal, por exemplo, a indivíduo
percebe que precisa se proteger. Todos os elementos do contexto já são óbvias para ele, o que
torna supérfluo enumerá-las para si. A única coisa a ser comunicada é “proteja-se” – de quê e
como já não precisa ser anunciado.
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Certamente este é a pressuposto central do interacionismo simbólico, de Herbert Mead a
Erving Goffman. Como veremos, isto é igualmente central no pensamento de Garfinkel.
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Nesta obra, Luria usa as termos língua e linguagem de forma intercambiável. Mas têm a
sentido de língua a maior parte das vezes em que ele usa a palavra linguagem.
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3 – A Etnometodologia
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Ver, por exemplo, Cooley (1972).
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sociológica.
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Na lingüística clássica, valência é a demanda de certas palavras por outras que completem
seu sentido. O verbo “emprestar”, por exemplo, exige palavras complementares que
respondam “o quê” e “para quem”. O tema “membro” exige complemento “de que”, a palavra
“indivíduo” não tem essa propriedade, não têm valência.
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Note-se que aqui se trata da linguagem, ou seja, todos os conjuntos semióticos de
determinada comunidade: sua arte, sua ciência, suas religiões. Mas claro está que dentre
esses conjuntos a língua ocupa lugar central.
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A ordem social não é, pois, necessária, mas apenas um resultado possível que
atende a graus variados de probabilidade. Essa contingência se dá em função
do caráter conjetural da interpretação individual nas situações de interação. Os
contextos práticos das relações sociais limitam as probabilidades de
compreensão, reduzem a possibilidade de “desvios” interpretativos, e
produzem “padrões” de comportamento que, por serem mutuamente
compreendidos, causam uma aparência de ordem, da qual os indivíduos
necessitam para agir. Essa aparência, contudo, pode ser alterada com a
introdução de novos elementos, ou sinais, que induzem à composição de
novas conexões de sentido, o que tenderá a produzir novas formas de
comportamento – isso é visível quando alguém comete uma gafe ou percebe
que “pegou o bonde andando”. Sempre é possível ao agente interpretar as
situações de novas formas e reavaliar a sua posição e seu “papel” na
interação23, o que tende a mudar os rumos da ação para direções
potencialmente inesperadas. Assim, a natureza compreensiva do
comportamento individual exige um constante ajuste do sujeito ao ambiente e
faz da ação um sistema aberto. Isso significa não apenas que o telos da ação
social é resultado de uma coordenação incessante de pontos de vistas
individuais, mas também que a própria ordem social é um resultado
contingente de interpretações e comportamentos prováveis, mas não
necessários ou forçados pela estrutura social.
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Não seria essa a base da esperança de Marx ao pretender a transformação da classe-em-si
em classe-para-si?
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Há outras formas de sociologia da vida cotidiana que abordam as instituições de moda
diferente. Na obra “A Construção Social da Realidade”, Berger P. e Luckman T. –
diferentemente dos interacionistas e etnometodólogos – defendem uma sociologia do cotidiano
em que as instituições aparecem como força normativa, ao modo de Émile Durkheim.
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Observe-se que, na etnometodologia, para que sejam socialmente relevantes, as vivências
dos membros devem ser relatáveis (accountable), ou seja, precisam ser traduzíveis à língua.
Infelizmente, pelo caráter breve desse trabalho, o conceito de accountability não será abordado
diretamente aqui.
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Garfinkel lembra essa propriedade da conversação com as termos prospecção e
retrospecção. Certas falas esclarecem repentinamente conteúdos anteriores ou servem ao
entendimento de temas futuros.
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Claro está que, em seu aspecto mais geral, a método documentário é implícito a toda forma
de conhecimento. Piaget, Popper e Luria, entre outros, reconhecem que todo indivíduo
cognitivamente competente busca interpretar as regularidades do mundo construindo
“modelos” explicativos a partir dos sinais a que têm acesso. Portanto, não é privilégio da
ciência a criação de sistemas abstratos que expliquem totalidades.
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Tem razão Nietszche: “poderosos são aqueles que erigiram em lei os nomes das coisas”.
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Garfinkel cita o exemplo da pequena J. que, juntando os pontos, deduziu a loucura de sua
amiguinha K., por que esta não se comportava da maneira esperada em situações rotineiras.
Outros exemplos experimentais mostram que, ao serem “provocados” com a quebra de
reciprocidade do experimentador, os sujeitos “testados”, confusos, procuram reformular sua
interpretação, não encontrando explicações alternativas possíveis, se mostram irritados ou
indignados.
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Comentários Finais
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A esse respeito, veja-se, por exemplo, as críticas presentes na “teoria da estruturação” de
Giddens.
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Os métodos de comprovação empírica dos fundamentos da etnometodologia a diferenciam
positivamente da abstrata fenomenologia social de Schutz e Husserl. Garfinkel criou
instrumentos que permitem observar o comportamento individual tanto em situações reais
quanto em situações experimentais (“laboratoriais”). O que é uma grande contribuição para a
ciência social empírica.
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